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Abril, também…

Era o início de uma noite de fevereiro em 1974, toca o telefone da central


militar ligada diretamente a alguns quarteis da região de Lisboa e também ao
Quartel-general, donde provinha esta chamada.

No RAAF havia no mesmo espaço duas centrais telefónicas, civil e militar, e


naturalmente dois telefonistas de serviço, um para cada central.

O telefonista de serviço à central militar atendeu a chamada, de imediato vira-


se para o outro telefonista, Marmelo é um relâmpago, chama já o Oficial de
Dia!

Passados segundos, ecoa pelo sistema de som em todo o quartel “Atenção


senhor oficial de dia, entre em contacto urgente com a central telefónica”, e a
chamada repete-se, as chamadas eram sempre repetidas.

Um relâmpago, era uma mensagem não cifrada, transmitida por qualquer meio
disponível que não continha informação sensível. Neste caso, solicitava a
entrada da nossa unidade em segurança reforçada, toque de sirene, a seguir
forma-se o pessoal de serviço de piquete e reforçam-se os postos de vigia!

E…as comunicações são isso mesmo, comunicações, não sendo telefonista,


estava ligado à área das comunicações e tinha excelentes relações com os
telefonistas, logo, andava por ali, e…por ali passava tudo!

Entretanto deu-se o 16 de Março, nessa manhã formou-se uma companhia


para sair em defesa do governo mas…não aconteceu nada, e passadas umas
horas desmobilizou naturalmente!

Pelo que se falava e não falava, pairava no ar um aroma a tempos de mudança


como quando o corpo sente que está doente, mesmo sem saber que está o
quê, sente o mal-estar qual ar denso, insatisfação, peso, cheiro pesado a algo
indefinido, não sabemos o quê mas sabemos que está lá!

Chamavam-lhes “os Velhos do Restelo”, eram os mandantes, sempre os


mesmos que circulavam à volta do poder quais compadres e amigos dividindo
o bolo “naquele tempo era só um bolinho”, sempre ao jeito de quem tem a faca,
o queijo e o pão. O povo estava insatisfeito e o poder escondia tanto quanto
possível essa mesma insatisfação, havia vozes que gritavam, tanto quanto lhes
fosse permitido por tempos novos, liberdades, democracia e pão!

Efetivamente era um país pobre, de parcos recursos, governado por um pobre


governo com falta de ideias, falta de dinheiro e falta de renovação a que
acresciam os vícios naturais da longevidade e uma longa guerra de 13 anos

21/04/2023 00:22 – Autor: Ângelo P. Cruz. *Autorizo a reprodução do texto na íntegra, não parcialmente
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nas ex-colónias com os custos monetários, humanos, morais e políticos que


acarretava em todos os níveis, nomeadamente os internacionais!

O velho poder criou seus alicerces, nomeadamente uma polícia politica e uma
censura prévia, chamavam-lhes “os homens do lápis azul”, menos conhecida
havia também os serviços de informação militar, e…

Nesse ano o domingo de Pascoa foi no dia 14 de abril, plena primavera e


tempo de sementeiras, e eu militar, com outro irmão militar de serviço em S.
Tomé, solicitei uns dias de férias para ajudar os pais nas sementeiras o que me
foi concedido, como resultado devia-me apresentar ao serviço no dia 26.

Eram cerca de 18 horas quando ao fim de um longo dia de trabalho e no


regresso a casa, a prima Dulce que andava na escola em Belmonte me diz
“Ângelo fecharam a escola e mandaram todos os alunos para casa” houve
problemas em Lisboa, respondi “já aconteceu”, segui para casa, liguei um
rádio, pesquisei e encontrei no Radio Clube Português “aqui posto de
comando das forças armadas”…e o resto já sabem, fardei-me apanhei um
táxi para a estação da CP da Guarda e de manhã apresentei-me ao serviço no
quartel de Queluz onde estava colocado.

Este quartel não tinha aderido ao movimento, teve a saída de uma companhia
até que na área do Monsanto, e tendo o seu comandante percebido que os
homens se iriam entregar ao movimento, optou por regressar à unidade!

Tanques de guerra eram visíveis no alto da Amadora, o ambiente estava tenso!

Passados um ou dois dias, o comandante da nossa unidade RAAF, foi-se


apresentar e colocar à disposição do posto de comando do movimento tendo
os ânimos acalmado, voltou a regularidade!

Passei por dentro de grupos cheios de virilidade, reuniões com o comando


sobre as melhorias a implementar no quartel, grupos civis que pretendiam a
formação de novos partidos, ouvi lições de controlo das massas, a divisão da
sociedade em partidos, em dirigentes e dirigidos, reuniões sobre problemas
com militares e CP por causa de movimentos de fuga ao bilhete nas
deslocações, resultou na aplicação de tabela militar a nível nacional, tarifa de
25% em todas as linhas CP, anteriormente eram 100% e nalgumas linhas 50%

Com abnegados oficiais intervenientes do 25 de abril aprendi a…ser apartidário


tanto quanto possível, aprendi que o 25 de abril não teve por fim a tomada do
poder pelo poder, a tomada do poder para uso dos seus autores, de grupos de
amigos parentes e compadres, nem tão-pouco para a criação de novos “velhos
do restelo” sempre os mesmos, amigos e familiares, circulando à volta do
poder dividindo o bolo “agora um bolo grande”, aprendi a olhar de fora distinguir
o trigo do joio, notar que afinal o meu umbigo é igual ao das outras pessoas!

21/04/2023 00:22 – Autor: Ângelo P. Cruz. *Autorizo a reprodução do texto na íntegra, não parcialmente
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Prestando alguma atenção aos últimos 50 anos, cheguei a algumas conclusões


próprias.

Ao longo do tempo são criados ciclos, variam de acordo com as pessoas, as


necessidades no tempo, o desenvolvimento económico, as políticas
incrementadas e também não, variam com o arrastar das massas para um ou
outro lado do semicírculo, semicírculo porquê?

-Apetece-me fechar o semicírculo e pô-los todos a dançar à roda!

-Apetecem-me muitas coisas!

Deixar de abanar a bandeira do voto como expoente máximo da democracia!


Afinal o voto é o último e mais pequeno direito da democracia!

Onde está a justiça, justiça em tempo útil?

Não conheço! – Tribunais para ricos funcionam? – Para pobres não!

Eu disse justiça, tribunais e leis é outra coisa!

O ensino público, privado?

O ensino é só ensino, ensina-se ou não. O ensino tem de ser universal, todos


temos direito ao ensino e temos o dever de aprender!

Um ministério a que chamam “da EDUCAÇÃO” não pode ser o patrão dos
professores e simultaneamente defensor dos alunos. O ministério é
incompetente para defender duas realidades, que por natureza são
antagónicas, tem resultado em problemas constantes ao longo dos anos e sem
perspetivas de futuro.

Ao ministério os programas e organização escolar.

Às escolas o ensino competente.

A Saúde profundamente defendida pelo SNS?

Será por isso que a medicina privada tem um crescendo significativo. A


organização confusa e desorganizada do SNS, onde na linha da frente impera
o dinheiro ou a sua falta, tal como em tantos outros serviços do Estado?

Já imaginaram um ministro, deputado ou equiparado, 20 ou 30 horas nas


urgências de um qualquer Hospital publico, não imagino!

É sempre tempo de mudar!

Olhamos para o poder e vemos as diferenças!

Antigamente era um pobre governo que não devia nada a ninguém!


21/04/2023 00:22 – Autor: Ângelo P. Cruz. *Autorizo a reprodução do texto na íntegra, não parcialmente
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Agora é um rico governo que bem se governa, divide por todos o que não é
dele, endivida a sociedade atual e vindoura…faz muito ilusionismo!

Encontro imensas semelhanças, algumas exatamente iguais, mas invertidas


com os tempos antigos, sim…os tempos dos “velhos do restelo”

Acabou a censura prévia, o lápis azul…agora, tens uma caneta vermelha


sempre apontada…impera a auto censura, cuidado com o que escreves
cuidado com o que dizes…olha o emprego, não pises o risco…

É vê-los a distribuir o bolo “agora, um enormíssimo bolo” pelas “famílias” deles,


distribuindo alguns rebuçados, pelo povo que se ajoelhou na praça para assistir
ao cortejo triunfal da festa cheia de pompa e circunstância, pois chegaram
muitos milhões, oferecidos pela União Europeia!

Criámos um monstro, obeso, disforme e insaciável!

Onde estás democracia!

Deixámos crescer uma classe de escravos, alimentada pelas técnicas de


marketing, baseadas em serviços oferecidos por plataformas de serviços que
ganham milhões de migalhas, em que um pessoa precisa trabalhar 15 ou mais
horas para sobreviver com o título de trabalhador independente.

Por organizações que se propõem abastecer o mercado de, mão-de-obra em


serviços sazonais, ou mesmos regulares e não qualificados.

Paga com o fruto do seu trabalho, a ferramenta, consumos correntes, impostos


segurança social, e se o dia correr bem, poderá comer uma sopa e algo mais.

Por traz desta escravatura, estão em geral as maiores empresas a laborar no


país, nas mais diversas áreas empresariais. Os seus chefes e administradores
recebem avultadas verbas e olham a paisagem a partir do topo da sua
pirâmide!

Os tentáculos organizacionais, já se espalharam pelos vários continentes na


busca de matéria-prima, quais barcos negreiros que sulcam os mares a
caminho da europa, estão chegando de forma regular todos os dias…

Os cravos do 25 de abril, já estavam plantados, regados e colhidos, foi tão-só,


uma expressão de alegria e esperança na mudança!

Será que mudámos!

21/04/2023 00:22 – Autor: Ângelo P. Cruz. *Autorizo a reprodução do texto na íntegra, não parcialmente

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