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Datado de 16/3/1935, o poema "Liberdade" é um dos poemas mais

conhecidos e citados de Fernando Pessoa. É um poema ortónimo, ou seja,


escrito por Fernando Pessoa em seu próprio nome e aborda um tema raras
vezes abordado pelo poeta de modo tão explícito: a liberdade humana.

À primeira vista trata-se de uma abordagem leve e divertida ao tema.


Essa é claramente a sensação que se tem ao ler o poema. "Ai que prazer /
Não cumprir um dever" - uma leveza simples e reta, que fala de como é
bom não ter deveres, ou tê-los e não os cumprir, numa rebeldia com que
sonham todas as crianças.

O tema da liberdade é explorado ao longo do poema e manifesta-se


de várias formas, o que é imediatamente visível nos primeiros dois versos:
“Ai que prazer / Não cumprir um dever”, onde se verifica que a rejeição do
cumprimento de normas e regras traz grande felicidade e alegria ao sujeito
poético.

Por outro lado, nos versos 7 a 13: “O sol doura / Sem literatura. / O
rio corre, bem ou mal, / Sem edição original. / E a brisa, essa, / De tão
naturalmente matinal, / Como tem tempo não tem pressa.” e nos versos 21
a 23: “Mas o melhor do mundo são crianças, / Flores, música, o luar, e o
sol, que peca / Só quando, em vez de criar, seca.” vê-se que ele valoriza a
simplicidade, a naturalidade, a espontaneidade e a liberdade dos elementos
da natureza, características estas que são intensificadas pelo uso de recursos
expressivos, como a personificação da brisa no verso 11, caracterizando-a
como não tendo pressa, ou a enumeração presente na quarta estrofe, que
surgem como forma de destacar a independência que os elementos naturais
têm das regras e deveres que regem a vida dos seres humanos.
Temos ainda nesse mesmo verso 21: “Mas o melhor do mundo
são As crianças,”, o elogio e apreciação das crianças, que são inocentes,
ingénuas e não pensam, sendo inconscientes e representando uma idade de
total liberdade, por isso, são muito valorizadas pelo sujeito poético.

Para além disso, verifica-se, ao longo do poema, uma recusa geral


das tarefas que envolvem qualquer tipo de trabalho intelectual e olhar
crítico sobre os livros e a leitura, 14-16, onde outra vez despreza os livros e
os estudos, e 24-27, onde o sujeito poético afirma que a prova incontestável
da inutilidade dos estudos.

Depois, o eu lírico evidencia euforia, exaltação, entusiasmo, num


estado de alma que é despertado pelo apreço a tudo o que se prende com as
coisas naturais, simples: poesia, bondade, danças, crianças, flores, música,
luar, sol…

A "bruma" é um nevoeiro espesso, pelo que, em termos figurados,


representa a escuridão, a incerteza, mas também o mistério, o sonho, tudo o
que está para além do visível e é alimentado pela imaginação, pelo mito.
Daí a evocação de D. Sebastião, o Rei-Desejado, desaparecido em Alcácer-
Quibir, mas que, segundo a crendice popular, iria aparecer numa manhã de
nevoeiro, montado num cavalo branco, com a nobre missão de salvar
Portugal, emergindo assim o mito sebastianista, que foi durante muitos
anos o alimento da esperança na restauração da pátria, por parte de muitos
portugueses que viram o país ser ocupado pelos castelhanos.
Então, ao afirmar «Quanto é melhor, quanto há bruma, / Esperar por
D. Sebastião, / Quer venha ou não!», o sujeito poético quer dizer-nos que o
sonho é que dá sentido à vida, independentemente da certeza ou não da
concretização do ato sonhado/idealizado.

No final do poema, deixa transparecer uma certa ironia, ao sobrepor


Jesus Cristo a tudo o que é instituído, convencional: “O mais do que isto /
É Jesus Cristo, / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse
biblioteca...”. Aliás, não é por acaso que Cristo é referido. Com efeito, Ele
é frequentemente apresentado como exemplo de simplicidade, naturalidade,
espontaneidade. E não é ainda por acaso que Ele aparece associado às
crianças, também elas simples, verdadeiras, espontâneas - “Deixai vir a
mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que
se tornam semelhantes a elas” (Mat. 19, 13-14) – dizia Ele aos seus
apóstolos quando estes as queriam impedir de se aproximarem.

ESTRUTURA EXTERNA

A irregularidade formal é bem notória ao longo de toda a composição


poética. Com efeito, há irregularidade estrófica (o poema é constituído por
estrofes de oito, cinco, três e quatro versos), irregularidade métrica (o
metro ou medida dos versos é variado, indo das quatro sílabas - «Ai que
prazer" - até às doze sílabas métricas - «Estudar é uma coisa em que está
indistinta»), variedade rimática (rima emparelhada - «...prazer / ...ler»; rima
cruzada - «...original / ... matinal»; interpolada - «...seca / ... biblioteca»;
masculina ou aguda - «...mal /... original»; feminina ou grave - «...
nenhuma / ... bruma»; consoante, em todo o texto; rica ou antigramatical -
«... isto /... Cristo»; pobre ou gramatical - «... peca /... seca», destacando-se
ainda dois versos brancos ou soltos - «O Sol doira /
Sem literatura») e irregularidade rítmica (ritmo mais rápido e cadenciado,
nas duas primeiras estrofes, e mais pausado e irregular, nas restantes
estrofes. Ora, toda esta irregularidade está em consonância com o título e o
conteúdo do poema, pois reflete o inconformismo do sujeito poético face
aos estereótipos, aos convencionalismos, e consubstancia a apologia que o
eu lírico faz da LIBERDADE.

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