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 A filosofia de Nietzsche é uma coisa difícil de resumir, então nós vamos tentar ver, mais ou menos,
um panorama geral dela a partir do texto do Eugen Fink, na próxima aula. Essa aula será concentrada
na concepção dele de história e, lógico, junto com a concepção de história, veremos alguns outros
aspectos da filosofia de Nietzsche, que é bastante diferente do que a gente viu até agora, a proposta
dele é outra, e esse texto é ideal... O Nietzsche tem uma filosofia muito fragmentada! Tem alguns
problemas que são centrais, que tão na filosofia dele, então ele está sempre respondendo a esses
grandes problemas, mas na maior parte das vezes, o pensamento dele é muito disperso e você nunca
sabe com quem ele está dialogando, tá? É um diálogo muito impreciso, então, em geral, pra expor a
filosofia dele, você pegá-la num geral, não dá pra pegar livro a livro, porque as problemáticas não tem
um desenvolvimento muito linear.

 Outra coisa, que é uma opção do próprio Nietzsche, ele escreve por aforisma. Ele se recusa a
sistematizar a filosofia dele. A filosofia dele é toda feita por pequenas e médias reflexões, algumas um
pouco maiores. Zaratustra tem um formato um pouco diferente, que é um romance quase. Enfim, o
jeito que ele é escreveu, foi justamente pra jamais compor aquilo que Kant chamava “arquitetônica
da razão”, uma estrutura do pensamento, ele não está interessado nisso. E o modo que ele encontrou
pra se expressar, pra pensar, tem muito a ver com essa recusa em montar uma filosofia racionalista,
com uma arquitetônica.

 Nesse texto dele, sobre a história, que é condenação a história, na verdade. O texto como um todo é
uma condenação ao uso que se faz da história. O Nietzsche mostra duas coisas interessantes: primeiro
ele vai abrir mão da ideia de história mestra da vida. Então ele quer, num primeiro momento, de certo
modo, anular essa função da história como mestra da vida, o passado não é mestre da vida de ninguém.
Não significa que a história não tem uma função, uma função instrutiva pra vida contemporânea, pra
vida daquele que aprende a história, mas não é de mestra da vida, sem dúvida nenhuma. Talvez um
teatro de opções, mas não mestra da vida. Então, essa ideia de mestra da vida, que é uma ideia básica
dentro do Ocidente, quer dizer, se pensou a história, desde a Idade Média, como mestra da vida.

 Outra coisa que ele vai abominar... Enquanto a gente viu lá Kant, Comte, Hegel e Marx, todos estão
tentando ordenar o processo histórico. Que que eles tão tentando dizer? Que mesmo depois de um
acontecimento bastante desestruturante como a Revolução Francesa, e de certo modo dentro da lógica
de então imprevisível, ela vem romper uma certa estabilidade da história. Malgrado isso, é possível
olhar para a história, incorporar a tal da Revolução Francesa e encontrar uma lógica do processo de
desenvolvimento histórico. É isso que faz Kant, dizendo que a história é o caminho da razão, assim
como há leis naturais, há leis do desenvolvimento histórico, porque tá dentro do razoável, da
racionalidade. Hegel, embora comporte a mudança, tá mostrando lá que há uma lógica da mudança, e
o tempo tem uma lógica de desenvolvimento; Marx a mesma coisa, Comte idem. Todos vão tentar
implementar uma lógica no tempo. Embora os fatos pareçam, em uma primeira instância, caóticos,
eles na verdade tem uma razão de ser, tem uma lógica.

 Então, assim como Nietzsche vai abrir mão da história mestra da vida, ele também vai abrir mão da
história caminho da razão. A história não nos mostra um caminho de razoabilidade do ser humano,
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segundo Nietzsche. Ela não diz pra onde vai, ela não tem sentido específico e ela não tem uma lógica.
Nietzsche é um filósofo irracionalista, ele vai dizer que a lógica é produto de um choque de forças, a
história sempre bélica, e são esses choques de forças que dão a direção da história. Mas há modo de se
entender previamente a direção? Provavelmente não. E há alguma razoabilidade no caminhar? Ora, se
há nós não sabemos; pra Nietzsche não há. Então ele está dizendo que não há uma lógica do devir
histórico, não é por falta de instrumento de captação, é porque de fato não há uma lógica, a natureza
não pôs uma lógica no devir histórico, não faz parte dele ser um caminho da razão.

 Veja, ele não está fazendo um exercício de “por enquanto não temos instrumentos para entender os
caminhos de razoabilidade que a razão toma através do tempo”. Ele está falando que, naturalmente, na
essência das coisas, a natureza não deu uma lógica pra história humana! A história humana não é um
caminho da razão, não há uma razoabilidade. Do mesmo modo, não há previsibilidade possível. Então
Nietzsche vai mudar duas crenças fundamentais – a segunda delas muito forte – do pensamento do
século XIX: a história não é mestra da vida e a história não explica tudo, nós não sabemos pra onde
ela vai. Por quê? Porque não há um caminho prévio. Ao que parece, segundo Nietzsche, não há uma
lógica do devir humano.

 É assim que ele vai tomar a história. A história é o imprevisível, é um conjunto de forças de
interpretação e os vencedores dão a direção a esse conjunto. Isso não é possível de ser transformado
em uma arquitetura e não é possível de se estabelecer padrões – o famoso demônio de Laplace – ou
seja, condições iniciais a partir das quais eu posso prever o desenrolar do sistema. É com essa ideia
que Nietzsche vai vislumbrar a história.

 Ele abre com uma citação de um dos poucos alemães que ele gosta, que é Goethe, e ele vai dizer o
que? Junto com a frase de Goethe, e a inspiração pra pensar isso foi justamente o Goethe, é que o
Goethe tá dizendo que ele não acredita em nenhum conhecimento não impulsione a vida, ou seja, o
conhecimento só tem sentido se ele tiver uma função de potência pra vida prática, pra vida dos
indivíduos. A ideia de potência é spinozista, de Spinoza. Mas por que que ele parte de Goethe?
Justamente porque ele diz que conhecimento, seja ele histórico ou de outra natureza, ele só tem sentido
pra nós humanos, não pra buscar a verdade, mas pra impulsionar a vida.

 Então Nietzsche tá dizendo que a vontade de verdade não é o fundamental do conhecimento e se você
quer fazer o bom uso da história, você não pode partir de uma história verdade, partir para construir
uma história verdade, até porque ela não existe, então a vontade de verdade está em suspenso. Que que
a história deve fazer ou que que o conhecimento deve fazer? Não buscar a verdade, mas impulsionar
a vida, aquilo que acrescente ao ser humano: potência. Essa é a ideia de Nietzsche!. A razão, de certo
modo, ela nos diminui, ela nos enfraquece. Ele é um filósofo que estava fazendo uma crítica profunda
a razão. A razão domina os instintos e o que move a humanidade é o instinto dos fortes. Mas o que é
fundamental aqui, ele parte de Goethe, não por acaso, dizendo que o conhecimento só faz sentido
quando ele impulsiona a vida.

 Essa é a base de todo o escrito que a gente viu. Por quê? Porque ele lança uma interrogação, justamente
acerca desse conhecimento que impulsiona a vida, que gera potência. Ele pergunta, no início, “Há um
conhecimento histórico que impulsione a vida?” Essa é a pergunta de Nietzsche. Ele não tá
perguntando se há um conhecimento histórico verdadeiro, que consegue captar o movimento do tempo,
não! Nesse sentido, é muito utilitária a visão nietzschiana, se que é se pode falar em utilitarismo nesse
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livro, mas ela é bastante utilitária. Ele vai dizer que a história tem sentido desde que você a use para
impulsionar a vida e não é o que tem sido feito.

 Então, ele vai perguntar “a história impulsiona a vida?” Ele diz que sim, há um conhecimento histórico
que impulsiona a vida, mas há um outro conhecimento histórico que não impulsiona a vida, ao
contrário, ela limita a nossa ação e a nossa criatividade. Por quê? Porque ela impõe a nós os ossos e as
dívidas dos antepassados. Então essa é a ideia de Nietzsche. Se a história serve pra você sentir culpa,
ficar confuso, não ter orgulho do passado e não saber pra onde ir, ela não serve pra nada, ela tá
atrapalhando sua vida. Agora, se ela impulsiona a vida, se ela cria mecanismos para impulsionar nossa
ação e abrir nossa criatividade, como uma espécie de teatro, onde você aprende múltiplas
possibilidades, sempre muito criativas e felizes – Nietzsche convida você a olhar pro passado em tom,
não de exaltação, mas com uma visão trágica: é o que é. Então ou você se habitua com a tragicidade
da vida, ou então você vai chorar a vida toda. Assumir a tragicidade da vida, segundo Nietzsche, é
constatar que o destino é incerto e a gente está sujeito as três moiras do destino e há de se ver isso com
uma certa felicidade.

 Que que Nietzsche vai dizer então? Há uma história, sim, que impulsiona a vida, mas há uma outra
história que limita nossa ação e a nossa criatividade. Pra quem que ele tá falando fundamentalmente?
Pra Kant, como a gente vai ver, mas tá falando também pro historicismo, né? O que que diz o
historicismo? Que tudo se dilui no tempo, não há surpresas nem novidades, o passado informa o
presente, que vai virar passado de um futuro, que também já está informado nesse presente que vai se
tornar passado, então não há surpresas. Nietzsche diz que todo povo que pensa assim – e ele tá falando
do povo, os alemães -, que tudo se dilui numa longa cadeia de causal, numa sucessão temporal linear,
e que todo presente se explica se no passado, tem o que ele chama de um sentido histórico
hipertrofiado, ou seja, excessivo. Segundo ele esse século, o século XIX, comumente chamado de o
século da histórica, é o século da história hipertrofiada, por isso ele é um século doente e decadente.

 Ele vai apontar o decadentismo do século XIX, que vai se transformar gradativamente num século
niilista. Então ele vai dizer que na verdade essa ideia de diluir tudo numa história hipertrofiada e
racionalista na verdade está nos levando pra uma profunda decadência. Esse é o ponto fundamental.
Então essa história, ela deve ser deixada de lado, porque ela na verdade não ajuda, ela contamina o
presente. E por que que ela contamina? E aí vem toda a crítica de Nietzsche à História tradicional. A
gente pode pensar numa máxima que os antigos gostavam muito, tanto os estoicos quanto os
epicuristas, que diz assim: somente com o presente, ninguém é infeliz. Então os estoicos dizem que se
você pensar somente no presente, você não é infeliz. O que que te martiriza? É a lembrança do passado,
das muitas desgraças do passado, e a ansiedade do futuro. O presente só é.

 Nietzsche vai pensar que os povos felizes não tem história, porque os povos felizes vivem com o
presente. Aí vem o núcleo, digamos assim, dos malefícios causados pela história. A história preocupa
o seu presente com suas experiências passadas e ela cria um angústia em relação ao futuro, justamente
porque você já sabe das ameaças do passado que podem se reproduzir no futuro. Segundo Nie, por isso
que nós somos diferentes dos animais, porque eles só tem o presente. O homem não, ele é um
prisioneiro do passado; ele é constantemente atormentado pela expressão “eu me lembro”. Então ele,
de certo modo, carrega no caminhar, nas costas, os ossos dos antepassados, das formas mais plurais e
variadas: uma memória, um hábito, um gesto de corpo, uma doença, mas também a força de enfrenta-
las.

 Diante do peso que os antepassados impõe a nós, como é que a história entra nisso tudo? Ora, se você
não tiver aquilo que o Nie chama de limites pro sentido histórico, se você não encontrar elementos
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pra pôr em cena tanto da sua vida individual, quanto na vida civilizacional de um o povo, o elemento
esquecimento, tanto mais a história vai ser forte e negativa, no sentido de o peso do antepassados vai
se impor a você ou a esse povo que tem um sentido histórico hipertrofiado, segundo Nie.

 Na página 73 tem um trecho interessante sobre isso: “Há um grau de insônia, de ruminação, de sentido
histórico, para além do qual os seres vivos se verão abalados e finalmente destruídos, quer se trate de
um indivíduo, de um povo ou de uma cultura (Kultur).” Então, há um limite para o sentido histórico.
E que limite é esse? Ora, isso que Nie vai mostrar ao longo do texto. Há limites pra apropriação dos
modos de se fazer história. Pra quê? Pra que justamente você não sucumba ao fazer história. Há limites
pra isso, além dos quais ele vai se tornar um empecilho pra sua vida presente. Então, a história é viável
pra Nie? Em alguma medida, sim, desde que ela tenha alguns limites. Se ela ultrapassa esses limites,
se ela vai além, ela achata, ela congela esse povo. Se há muita ruminação no sentido histórico, esse
povo vê o seu presente e o seu futuro comprometido.

 Então a pergunta fundamental é o quanto o indivíduo ou o povo tolera de passado para que o seu
passado não vire coveiro do seu presente? Há diversos modos do passado virar coveiro do presente.
Segundo Nie, isso depende do que ele chama de uma força plástica do indivíduo, ou desse povo.
Então, o que é essa força? É a capacidade que esse indivíduo ou povo tem de modular, de criar o ajuste,
entre o espírito histórico e uma força ativa, apaixonante – e Nie diz aí que há um componente de
irracionalidade, de paixão – um elemento a-histórico (contrário à história). Então, uma força a-histórica
que funcione como contraponto pra um sentido histórico demasiado aguçado, demasiado hipertrofiado.
Pra deter a hipertrofia, no sentido histórico, é preciso uma força histórica ativa, plástica, que detenha
isso. Pra Nie é paixão! É uma força irracional, é a vontade que vai deter isso.

 Na página 74 ele dá uma palhinha sobre isso: “o elemento histórico e o elemento a-histórico são
igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de um povo, e uma cultura.” Então, você tem que
sempre contar com um elemento a-histórico, que é um elemento de paixão, por isso ele retoma
Goethe. A ideia de algo que é irracional e que nos move. É isso que deve ser contraposto, segundo Nie,
a essa ideia de hipertrofia do nosso sentido histórico. Então, tem que haver um senso de a-historicidade
que permite ao homem não sucumbir ao peso do passado. E aí, quando você impõe esse limites ao
conhecimento histórico, é possível utilizar esse conhecimento em prol da vida.

 Então, o homem de ação, o homem apaixonado, o que suspende por vezes a racionalidade e age, ele é
movido por essa força plástica que impõe limites ao sentido histórico. Em que sentido? É muito
simples, vejam, se você olha pro passado e vê falha, te fazendo desistir, o passado agiu como coveiro
do seu presente e inviabilizou o seu futuro. Agora, se você é obstinado prossegue mesmo diante disso.
Há uma certa coragem na obstinação. “Tá, tudo bem, suspendo o sentido histórico! Erraram lá atrás,
eu vou tentar de novo”. Uma forma simples de pensar como a história, por vezes, te congela e, por
vezes, te liberta, dependendo do uso que você faz dela.

 Então, Nie quer colocar a história a serviço da vida. E ela não é uma história científica, porque segundo
ele a história científica é um balanço do que é morto, ela não tem vida! Ele tá pensando em outra
coisa, ele tá pensando nessa história a serviço da vida, que se dobra a uma vontade não histórica. Então,
segundo Nie, num jogo de palavras que ele gosta muito, “a vontade de verdade dá vou (?) lugar a
valorização da vida”. Na página 81-82 ele explica isso, dizendo: “Na medida em que está a serviço da
vida, a história está a serviço de uma força a-histórica: portanto ela não poderia nem deveria jamais
se tornar, nesta hierarquia, uma ciência pura, como as matemáticas. Quanto a saber até que ponto a
vida tem necessidade dos préstimos da história, esta é uma das questões e das inquietações mais
graves que concernem à saúde de um indivíduo, de um povo ou de uma cultura. Pois o excesso de
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história abala e faz degenerar a vida, e esta degenerescência acaba igualmente por colocar em perigo
a própria história.”

 Então vamos ver agora como é que a história pode ser usada, num sentido positivo, e como é que ela
pode ser usada num sentido absolutamente negativo, que imponha aos indivíduos ou a determinado
povo, um peso demasiado que prejudique o próprio caminhar desse povo ao longo do tempo. Segundo
ele, nós usamos a história pra três coisas fundamentalmente: porque nós agimos e perseguimos um
fim; porque a gente venera e conserva o passado ou porque nós sofremos e queremos encontrar
mecanismos pra poder escapar desse sofrimento. Esses três usos que a gente faz do passado podem
prestar três serviços e três desserviços à vida, tudo depende da dose de passado que a gente vai
combinar com esse sentido que o Nie chama de a-histórico apaixonado, obstinado, que se mistura aí.
É nessa força plástica que o indivíduo ou povo vai sucumbir ou utilizar a história a serviço da vida.

 Lado positivo da História Monumental – Vamos voltar aos três usos. Se eu persigo meus fins – que
é o primeiro uso que o Nie diz que a gente faz da história – eu faço uma história que ele chama de
história monumental. Essa história monumental retoma os grandes feitos do passado e apresenta pra
nós essa história. Por quê? Porque eu to perseguindo meus fins, eu ajo e eu quero conhecer como
agiram. Ela põe pra nós as possibilidades de ação do passado, ela diz pra gente, no sentido positivo,
como uma potência pra vida, que grandes coisas foram feitas e grandes coisas podem ser feitas. Então,
você usa o passado como comparação para projetar grandes coisas, porque você olha pro passado
e vê que os humanos fizeram grandes coisas; se grandes coisas foram feitas, grandes coisas podem ser
feitas. Então, esse sentido de comparação, segundo Nie, não tem a ver com uma precisão de verdade,
não é dizer “vou encontrar situações no passado muito semelhantes as que eu vivo no presente para
tirar lições”. Não é isso que Nie está falando! Ele está falando em um sentido muito mais abstrato.
Esse é o uso positivo da história monumental.

 Lado negativo da História Monumental – Agora, uma história como essa, que olha pro passado e
vê que grandes coisas foram feitas, tem um sentido negativo, se ela for excessiva. Se ela não tiver o
devido contraponto daquilo que Nie chama de uma paixão, uma obstinação, uma crença em si, o que
que ela pode fazer? Ela pode apequenar o presente e isso é muito comum. Gerações que se sentem
apequenadas pelas anteriores, com a sensação de que tudo de grandioso já foi feito ou realizado. Isso,
segundo Nie, leva ao imobilismo, leva a uma dança idólatra e servil ao passado. Você simplesmente
vai ser um escravo do passado. O peso do passado foi tão forte que ela imobilizou o seu presente.

 Lado positivo da História Tradicional – Mas o ser humano não busca só a história pra agir, ele busca
também uma certa veneração das suas origens e do passado – ou da crítica das suas origens e do
passado. E aí Nie diz que a gente faz o uso da história tradicionalista. Quando eu pego essa história
tradicionalista e ponho a serviço da vida, ela oferece uma espécie de solo de proveniência, que indica
as potencialidades. Que potencialidades? Oras, o que seu povo e seus antepassados trouxeram consigo
e que te traz orgulho, permitindo que essas potencialidades possam ser exploradas; o orgulho daquilo
que me foi legado, mas também a consciência da fraqueza dos nossos antepassados, pra que a gente
possa abandoná-las. Uma fraqueza de corpo, uma fraqueza de caráter. Então, um olhar positivo sobre
os nossos antepassados, sobre essa história que nos vincula às tradições. Ela tem uma dupla função:
explorar as potencialidades da tradição e detectar as fraquezas que precisam ser corrigidas ou
abandonadas.

 Lado negativo da História Tradicional – Mas é possível fazer um uso negativo da história
tradicional. E qual é esse uso negativo? É a perspectiva mesquinha da tradição, redutora, caipira,
nós diríamos hoje. Essa deve ser usada com parcimônia, porque se não a gente congela no tempo e no
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espaço – a nossa terra natal, a nossa pátria, o nosso Estado ou mesmo nosso clã familiar. Nós temos
tanto orgulho deles que não há nada mais a fazer, é só manter no presente o que a tradição nos ensina
do passado. Veja, se a tradição traz essa força, ela nos congela no tempo-espaço, porque esse orgulho
está vinculado não só a uma tradição, mas uma tradição situada dentro de um espaço específico. Esse
excesso de orgulho, de veneração do passado, vai nos congelar no presente. Esse uso hipertrofiado da
tradição é, também, imobilizante.

 Tanto a História Monumental quanto a História Tradicional tem esses dois momentos. Eu posso usá-
la hipertrofiadamente, e aí ela vai me jogar pra baixo, ou posso usá-la com moderação e como
contraponto de um sentido a-histórico e aí ela vai funcionar como uma potência pra vida.

 Lado positivo da História Crítica – Há um terceiro, ainda, quando eu sofro ou estou numa situação
indesejável e quero sair dela, recorrendo ao passado pra ver se ele me oferece pistas pra sair dessa
situação de desconforto. Quando eu faço isso, eu faço o que o Nie chama de uma história crítica, me
libertar dos excesso do passado. Então, eu olho pro passado e percebo que ele me trouxe uma situação
indesejável e, portanto, eu tenho que criticá-lo para ver se eu encontro os caminhos pra sair dessa
situação. É positivo? Profundamente. Eu vou olhar pro passado, ver que conjunto de forças me trouxe
até aqui, por que que eu me encontro nessa situação indesejável e testar lançar mão de uma contraforça
pra sair.

 Lado negativo da História Crítica – Mas veja, segundo Nie, mesmo a crítica, se ela é excessiva, se
ela é extrema, ou seja, se eu olho pro meu passado só com críticas, aí eu já não estou me libertando.
Ao contrário, eu estou levando a crítica ao extremo da penitência, como se o passado monopolizasse
todos os malfeitos do mundo, como se tudo do ruim que aconteceu fosse culpa de alguém. Todo
passado merece ser criticado, mas há um limite pra crítica. Qual é esse limite? O limite de você não
tornar a história uma eterna penitência pelo o que fizeram os seus antepassados, pelos malfeitos do
mundo; uma história penitente e compensatória. O excesso de crítica congela a ação porque, ora, os
antepassados erraram em tudo, então não há nada que eu possa fazer. Então ela apequena o presente,
porque você olha pro passado e diz que a história foi um pasto da dor, um pasto da opressão; então ela
apequena o passado, congela nossa ação e ela mata o futuro. Por quê? Porque não há mais expectativa,
minha expectativa de futuro é ficar nesse eterno martírio da penitência.

 Então, a história não é necessariamente um conhecimento inútil e decadente. Em boa parte da obra do
Nie, a história é mal vista, porque ele olha pra ela e vê, na maior parte das vezes, uma apropriação
negativa dela, ou seja, ela funciona como uma espécie de adversário do nosso futuro. Mas, se ela se
livrar da sua pretensão científica, da busca da verdade, se ela se livrar da sua obsessão racionalista, ela
pode ser posta, segundo Nie, a serviço da vida, ou seja, ela pode ser usada naqueles três sentidos
positivos que vimos. Em geral, dentro do pensamento nietzschiano, a história é usada de maneira
negativa. O Ocidente, a Europa do tempo dele, segundo a perspectiva dele, fazia um uso hipertrofiado
do sentido histórico. Esse uso hipertrofiado estava conduzindo a civilização europeia à decadência, ao
niilismo. Mas é possível inverter esse processo, na medida em que você faça esse uso da história
valorizando a vida.

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