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Helder Nozima

A DESCENDÊNCIA DE ABRAÃO:
uma introdução à doutrina do batismo infantil
A descendência de Abraão:
uma introdução à doutrina do batismo infantil

© 2019 by Helder Nozima


Publicado por Editora 371
www.editora371.com

João Guilherme
Revisão e preparação
Yago Martins
Projeto gráfico e ilustrações
Le Magicien

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

N961d
Nozima, Helder
A descendência de Abraão, uma introdução à doutrina do
batismo infantil / Helder Nozima. - Brasília: Editora 371,
2019.
148 p. ; 14x21 cm.
Bibliografia: p. 110-112.
ISBN: 978.85.52900-20-7

1.Teologia dos sacramentos. 2.Batismo cristão - Pedobatismo.


3.Teologia Bíblica. I.Título.

CDU 27-558.3

Índice para Catálogo Sistemático: 1. Cristandade: Culto e rituais:


Sacramentos: Batismo 27-558.3
Bibliotecário responsável: Jônathas Rafael Camacho Teixeira dos
Santos (CRB-1/2951)
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por quaisquer meios existentes sem autorização prévia, por escrito,
da editora. Todos os direitos reservados e protegidos conforme Lei
9.610/98.
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Sumário

PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

I PACTO DE SANGUE

II DOIS PACTOS QUE VOCÊ NÃO CONHECE

III UM OU DOIS POVOS?

IV SACRAMENTOS

V A NOVA CIRCUNCISÃO

VI PAIS E FILHOS

VII A PROMESSA

CONCLUSÃO

OBRAS CITADAS

APÊNDICE

NOTAS
PREFÁCIO
O maravilhamento de (e com) uma
doutrina
Minha história com o presbiterianismo é ao mesmo tempo antiga e
nova. Apesar de ter nascido na igreja batista, depois de adulto e
casado, mudei para a igreja presbiteriana. Quando isso aconteceu,
minha mãe contou que havia nascido na presbiteriana e havia sido
batizada ainda criança. Aquilo me impressionou muito. Uma fala
despretensiosa da minha mãe atiçou em mim uma grande
curiosidade acerca desse meu passado presbiteriano. Além do
sentimento de que eu estava “voltando pra casa”.
É comum que as pessoas cheguem à igreja presbiteriana (ou
qualquer outra igreja reformada) e fiquem maravilhadas com as
chamadas doutrinas da graça. No meu caso, como havia
encontrado a teologia reformada previamente, o desafio foi lidar com
o batismo infantil. Eu precisei conciliar comigo mesmo várias
questões que iam muito além da dúvida acerca do que é mais
bonito, se mergulhar ou despejar um pouco de água na cabeça.
Afinal, as implicações em torno do tipo de batismo, se infantil ou de
crente professo, são profundas.
Busquei fazer todas as leituras que estavam ao meu alcance,
conhecer todos os argumentos em favor do batismo infantil e ouvir
pessoas que defendiam as duas vertentes. Curiosamente, esse
nunca foi assunto nas boas conversas com o autor deste livro, que é
meu amigo há cinco anos. Uma das conversas que tive foi com o
Rev. Joel Theodoro, pastor presbiteriano no Rio de Janeiro que foi
meu professor no Seminário Martin Bucer, em 2013. Como sempre
o admirei pelo seu rigor acadêmico e doutrinário, e também pelo seu
cuidado pastoral demonstrado para comigo, perguntei como ele
tratava dessa questão com pessoas que chegavam à sua igreja e
precisavam entender a doutrina do batismo infantil. Ele me mandou
alguns textos para leitura, que ele utilizava em sua igreja ao ensinar
os novos membros sobre esse assunto. Logicamente, dei especial
atenção.
Perscrutando os arquivos, qual não foi minha surpresa quando
me deparei com um trabalho de conclusão de curso de teologia, do
Seminário Presbiteriano de Brasília, que defendia o batismo infantil.
Esse trabalho foi escrito exatamente por Helder Nozima, o autor do
livro que você tem em mãos.
Entre as tantas voltas que a vida dá, tornei-me editor de livros
(essa é outra longa história). Nas minhas pesquisas e leituras em
torno do tema, eu não havia lido um texto que mexesse com meu
coração, que fosse além do convencimento argumentativo; nunca
havia encontrado algo suficientemente bom em português,
publicado em forma de livro. Vendo o potencial da monografia
escrita pelo Helder e conhecendo suas habilidades de escrita e
argumentação, o mais natural foi que eu o convidasse a transformar
sua monografia em livro. Felizmente, ele aceitou. Eis o resultado.
Curiosamente, o livro que Helder me entregou foi bem diferente do
que eu esperava. Quando o convidei, eu esperava algo mais
acadêmico, como um desenvolvimento da monografia, quase como
um tratado sobre batismo infantil. Bem, você pode notar que este
não é um tratado, nem pretende sê-lo. O que Helder me entregou é
um texto pastoral, amoroso, convincente - não pelos bons
argumentos, apesar de tê-los -, com ótimas ilustrações, utilizando
uma forma simples e profunda de explicar. Com singeleza, defende
uma doutrina que, depois de entendida, torna-se basicamente óbvia.
Como fiquei feliz com esse resultado. Com certeza, tem
potencial para alcançar muito mais pessoas que um tratado de tom
acadêmico. E por providência divina, enquanto Helder ainda
trabalhava seu texto e me pedia extensão de prazo para entregar o
manuscrito (o autor que nunca fez isso pode jogar a primeira pedra),
eu li um texto de internet, publicado em inglês, defendendo o
batismo infantil pela mesma ótica. Derek Radney, o autor desse
texto online dizia claramente que sua intenção não era convencer
quem pensava o contrário, era apenas relatar sua jornada rumo à
adesão do batismo infantil como a doutrina bíblica correta. Para ficar
claro, li o referido texto antes de ler o manuscrito do Helder. Então,
após terminar a leitura do manuscrito, não podia deixar de pensar
que seu livro combinava perfeitamente com aquele texto publicado
em inglês. Consegui que Derek Radney cedesse os direitos e
providenciei sua tradução. Agora ele consta como apêndice do livro
do meu amigo Nozima. Uma dobradinha perfeita.
Apesar de este livro ser muito bem escrito, possuir um
encadeamento lógico perfeito, de o autor demonstrar domínio do
tema e paixão pela teologia evangélica (como bom teólogo e
jornalista), não recomendo apenas por esses motivos. Minha
recomendação gira em torno principalmente do maravilhamento que
este livro me causou. Quando concluí a leitura, o que mais senti foi
alegria, aquela satisfação de ter lido algo tão bíblico e belo. Este
texto não agiu em mim apenas com convencimento, mas com
encantamento. Não posso deixar de me encantar com a verdade de
que Deus me concede o privilégio de educar meus filhos como
herdeiros da fé de Abraão, como pequenos integrantes da família do
pacto, ou, gosta de dizer meu pastor, Rev. Gustavo Villa, como
“cordeirinhos de Jesus”.
Aqui reside um ponto importante: o labor teológico não gira em
torno do convencimento apenas, mas da iluminação do Espírito
Santo, o maior dos encantamentos. É só pela luz do Espírito a
brilhar em nossos corações que podemos ser atraídos à salvação
que há em Cristo, não é meramente por uma argumentação
intelectual. Gosto de pensar que Deus não escreveu um livro de
teologia sistemática, ele escreveu (e ainda escreve) uma história. E
a doutrina do batismo infantil gira exatamente em torno da história
da família de Deus, do povo que ele decidiu chamar de seu.
Espero que ao concluir a leitura deste livro você esteja
encantado com a beleza da revelação, com a beleza do pacto, com
a beleza que é batizarmos nossos filhos em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo.

João Guilherme Anjos


Editor
Presbítero na Igreja Presbiteriana do Guará, Brasília-DF
Cursando mestrado em divindade pelo Andrew Jumper
INTRODUÇÃO
Filhos do Pacto
Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a
graça, a fim de que seja firme a promessa para toda a
descendência, não somente ao que está no regime da lei, mas
também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai
de todos nós) (Romanos 4.16)

Pai Abraão tem muitos filhos


Muitos filhos ele tem
Eu sou um deles
Você também
Louvemos ao Senhor

A fé nem sempre nasce dos livros. Especialmente para aqueles que


“nasceram na igreja”, os primeiros ensinamentos sobre Cristo e a
Bíblia devem ter vindo de canções como “Pedro, Tiago e João no
barquinho”, “Três palavrinhas só” e “Pai Abraão”. Para os adultos,
pode parecer que não há nada realmente importante nas músicas
para crianças. Mas, muitas vezes, a solução de grandes mistérios
está no beabá.
É exatamente o que acontece com o pedobatismo, a doutrina
do batismo infantil. Não há melhor resumo para a base bíblica dessa
doutrina do que ver professores de Escola Bíblica Dominical
cantando com crianças bem pequenas esta profunda verdade
espiritual: somos todos filhos de Abraão. Essa verdade é cantada e
inculcada na mente de crianças em várias igrejas, inclusive das que
condenam a prática do batismo de bebês. Qual a importância de ser
filho de Abraão para decidir se batizamos ou não bebês?
Certamente muita, e é isso que tentaremos estabelecer ao longo
deste livro.
Para vários cristãos de igrejas batistas e pentecostais (chamamos
de “credobatistas” aqueles que acreditam ser necessária uma
profissão de fé para que o batismo seja realizado), o batismo infantil
é uma inovação do catolicismo romano, sem qualquer
embasamento bíblico e adotada por “liberais”, como presbiterianos,
anglicanos e luteranos. Nesse caso, porém, a “culpa” não é de
Roma. Ao invés de heresia católica, a prática do batismo infantil é
bíblica. E isso não se baseia em apenas três ou quatro registros de
batismos de famílias. O pedobatismo é uma consequência lógica da
Teologia do Pacto, também conhecida como aliancismo. Para os
aliancistas, os pactos (ou alianças) são a forma como Deus
escolheu se relacionar com os seres humanos. Isso pode ser visto
na própria maneira como dividimos a Bíblia, em Antigo e Novo
Testamentos. A palavra “testamento” é uma tentativa de traduzir o
termo grego diathḗkēs (διαθήκης). Essa palavra também pode ser
traduzida como “aliança”, e por isso podemos chamar os Antigo e
Novo Testamentos de Antiga e Nova Alianças. E então, quando
estudamos os termos dessas alianças e a maneira como elas se
relacionam, vemos que o batismo infantil faz sentido dentro dessa
estrutura maior, que determina o modo correto de interpretar a
Bíblia.
Um dos pilares da Teologia do Pacto é a ideia de que as
continuidades e descontinuidades entre as diferentes alianças
podem ser explicadas dentro de uma perspectiva de
desenvolvimento de um pacto maior. Há uma espécie de
progressão. A aliança mais nova não é uma ruptura, mas sim o
desenvolvimento das alianças anteriores. Depois da Queda, não há
mais um pacto que revogue o anterior. Isso pode ser visto quando a
Bíblia fala que a Lei de Moisés não revoga a aliança feita com
Abraão: “E digo isto: uma aliança já anteriormente confirmada por
Deus, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não pode
ab-rogá-la, de forma que venha a desfazer a promessa” (Gl 3.17).
Jesus também diz o mesmo quando afirma que não veio para
revogar a Lei ou os Profetas (Mt 5.17).
A revelação de Deus é progressiva e orgânica. Entendemos isso
melhor quando olhamos o processo de crescimento das borboletas.
Inicialmente, elas são apenas lagartas: gordas, feias e pouco
atraentes. Mas essas mesmas lagartas se transformam em
borboletas depois de um tempo de encasulamento. Quando
olhamos para a borboleta, não nos lembramos que ela antes foi uma
lagarta e um casulo, mas cada fase foi apenas o desenvolvimento
do estágio anterior. Houve descontinuidades entre um estágio e
outro, mas ainda se trata do mesmo ser. O DNA celular não mudou:
em essência, a lagarta e a borboleta são o mesmo ser.
O mesmo ocorre com a Bíblia. Observando de longe, parece
que o Novo Testamento (Nova Aliança) é bem diferente do Antigo
Testamento (Antiga Aliança). Mas assim como a árvore toda está
dentro da semente, o Novo nada mais é do que o desenvolvimento
do Antigo. Sim, há descontinuidades. Mas não é possível
compreender o Novo Testamento se ignorarmos o Antigo
Testamento. A aliança posterior não invalida completamente as
anteriores. Isso é tão verdadeiro que a própria Bíblia, em Romanos
4.16, afirma claramente que Abraão é o pai de toda a igreja, de
todos os que creem em Jesus. E isso só é possível porque, de
alguma maneira, a aliança entre Deus e Abraão continua válida até
os dias de hoje.
A cereja do bolo
Dessa forma, precisamos saber onde colocar o batismo infantil
dentro deste quadro maior. Embora esteja dedicando um livro para
tratar do assunto, o pedobatismo é uma prática dependente de
várias questões teológicas. É como se fosse a cereja do bolo: é
preciso um bolo inteiro para que a cereja se torne especial. Sem o
bolo, a cereja não tem em si mesma nada de muito atraente. A
metáfora perderia o sentido.
É hora então de misturarmos alguns ingredientes. A Teologia
do Pacto é a massa do bolo. O evangelho é como se fosse o seu
recheio, a parte mais interior e marcante do bolo. Por cima, temos a
cobertura dos sacramentos (ceia e batismo), os sinais do pacto
entre Deus e a igreja. Antes da cereja ser colocada, é preciso
entender o que é um sacramento, quantos deles existem e qual a
sua função no Reino de Deus. O batismo em si é um desses
sacramentos, com um significado próprio e único. Apenas depois de
entender o que é o batismo, a cereja do pedobatismo pode ser
colocada de modo correto.
E aqui é preciso delimitar a questão. Não trato, neste livro, do
batismo de qualquer bebê ou criança. Falo apenas do batismo dos
filhos de pessoas cristãs que já são discípulas de Jesus Cristo
(ainda que apenas um dos pais seja cristão). Não faria sentido
algum falar do batismo de crianças que nasceram em lares não
cristãos. Dito isso, é preciso esclarecer que o meu ponto de vista é o
protestante, reformado e presbiteriano. Não pretendo defender aqui
as visões que o catolicismo romano, as igrejas ortodoxas orientais
ou o luteranismo usam para justificar o pedobatismo. Dentro da
analogia culinária, a minha receita é diferente das que são utilizadas
por essas outras perspectivas.
Mas, ao contrário do mundo da confeitaria, aqui há apenas
uma receita correta. Não há como a explicação católica e a
explicação presbiteriana estarem igualmente corretas. Embora a
prática seja a mesma, a motivação torna o ato completamente
diferente. Para o catolicismo romano, o novo nascimento espiritual
acontece durante o batismo e todo pecado é lavado nas águas
batismais. Para ele, batizar o filho é garantir que ele será salvo por
meio desse sacramento. Os presbiterianos batizam seus filhos por
motivos completamente diferentes. A ideia de batizar um filho para
que ele seja salvo é blasfema para nós. A intenção pode fazer da
mesma ação uma bênção ou um grave pecado.
Também não há como defender a ideia de que a “receita do
bolo” é opcional. Assim como católicos e presbiterianos não podem
estar igualmente corretos quanto ao motivo do pedobatismo,
credobatistas e presbiterianos não podem estar igualmente corretos
quanto à decisão de batizar ou não um bebê filho de cristãos. Não
se trata de uma escolha indiferente, onde qualquer alternativa é
equivalente à outra. Para o credobatista, geralmente, o presbiteriano
peca quando batiza inapropriadamente seus filhos. Da mesma
maneira, o presbiteriano normalmente considera que o credobatista
peca ao se recusar a dar a seus filhos o sinal do batismo.
Por tudo isso, não posso dar uma resposta simples sobre
batizar ou não bebês (ou crianças pequenas demais para crer).
Antes de adicionar a cereja ao topo do bolo, é preciso assá-lo. É o
que pretendemos aqui. Apenas ao entendermos a Teologia da
Aliança, o evangelho, os sacramentos e o batismo teremos a base
necessária para entender porque é bíblico e correto batizar nossos
filhos assim que possível.
E a História?
Um outro esclarecimento que gostaria de fazer é o de que esse livro
se preocupará mais com as evidências bíblicas do pedobatismo do
que com uma análise histórica. Como protestante, entendo que o
princípio Sola Scriptura se aplica aqui: a Bíblia é a autoridade
suprema sobre o assunto. A história da igreja e a tradição estão em
um nível abaixo, e o peso delas é apenas o de possível testemunha
da prática bíblica.
Mas por que digo “possível testemunha”? Porque a Bíblia em si não
é explícita sobre o batismo dos filhos dos cristãos no primeiro
século. Todos os batismos na Bíblia são de convertidos de primeira
geração: pessoas que conheceram o evangelho e decidiram por ele.
Há casos de batismos de famílias, onde eu vejo que a análise
histórico-cultural favorece a leitura de que as crianças eram
batizadas, mas o batista ainda não se dará por vencido se não ler
explicitamente que houve um batismo infantil. Por outro lado, já é
um argumento clássico dos pedobatistas apontar que também não
há nenhuma evidência bíblica de que a prática da igreja primitiva era
a de esperar que os filhos dos cristãos tivessem uma certa idade e
tomassem uma decisão pessoal sobre serem ou não cristãos, e só
então pedissem o batismo. Na verdade, a ideia de pais esperarem
seus filhos crescerem e tomarem uma decisão pessoal sobre a fé
parece mais um anacronismo. É enxergar no século 1 uma
consciência do indivíduo que não surgiu antes do século 16 com o
Renascimento. É enxergar um traço da cultura ocidental moderna
em uma religião que nasceu no Oriente Médio antigo.
Contudo, se não há nenhum registro explícito da prática, então
como aplicar o Sola Scriptura? Como disse antes, pela análise do
sistema teológico maior ensinado pelas Escrituras, podemos ver se
o batismo de crianças se encaixa ou não na estrutura. Alguns
elementos históricos e culturais do século 1 também serão de
grande utilidade para determinar o que realmente aconteceu nos
batismos de famílias. Por isso, não espere aqui nenhum debate
sobre o Didaquê ou outros livros escritos pelos Pais da Igreja (os
primeiros líderes cristãos após a morte dos apóstolos) falavam
sobre batismo infantil. Afinal, a única regra de fé e prática é a Bíblia,
não a patrística.
I. Pacto de sangue
A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos
discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu
sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de
muitos, para remissão de pecados. (Mateus 26.27-28)

A nossa sociedade pode ser descrita com palavras surpreendentes.


Uma delas é “contratos”. Sim, vivemos em uma sociedade de
contratos. Por exemplo, aprendemos nas ciências humanas que
existe um “contrato social” não escrito entre o povo e seus
governantes. O povo abre mão de certos direitos e dá alguns
poderes aos seus líderes civis. Em troca, estes líderes devem usar a
posição de autoridade em favor do povo. Se os governantes
falharem, o contrato foi quebrado, e o povo os substitui.
Um contrato medeia quase tudo o que fazemos. Quando
vamos trabalhar, queremos que o nosso empregador assine a nossa
Carteira de Trabalho. Pode não parecer, mas, ao fazer isso, o que
ocorre é um contrato de trabalho. Compramos uma casa e
queremos a escritura do imóvel, para termos segurança da venda.
Para isso, um contrato de compra e venda é assinado. Empresas,
ao serem constituídas, fazem um contrato social. No mundo das
relações internacionais, o princípio maior que regula os tratados
entre os países é o de que os contratos serão respeitados.
No Brasil, o contrato é tão importante que é o instrumento pelo
qual as famílias são formadas. Em tese, as famílias começam com
casamentos. E os casamentos são contratos feitos entre o noivo e a
noiva perante o Estado brasileiro. Há um regime de bens definido
para o caso de um divórcio e alguns até fazem um contrato pré-
nupcial. E, caso um dos cônjuges não se sinta mais feliz, ele pode
quebrar o contrato por meio de um divórcio.
Para a Bíblia, porém, os seres humanos não foram feitos para
viverem em um mundo de contratos, mas sim em um mundo de
alianças. É por meio de alianças que Deus se relaciona com os
seres humanos (a Antiga e a Nova Alianças). O casamento é uma
aliança, não um contrato, entre um homem e uma mulher. Os
homens da Bíblia não assinavam contratos, mas acertavam conflitos
por meio de alianças, como Abraão e Abimeleque (Gn 21.27) e Jacó
e Labão (Gn 31.44). Países não assinavam tratados, mas faziam
alianças, como a que havia entre Israel, governada por Salomão, e
Tiro, governada por Hirão (1Rs 5.12). Aparentemente, é a mesma
coisa. Mas, apesar das semelhanças, há grandes diferenças entre
contratos e alianças.
O que é uma aliança?
Segundo a Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, uma
aliança é “um pacto ou contrato entre duas partes, que as obriga
mutuamente a assumir compromissos cada um em prol da outra.”1
O Dicionário de Teologia do Novo Testamento (DITNT) diz que a
palavra grega para aliança, diathékēs, é distinta da palavra usada
para contrato, synthékē (συνθήκη).2 Uma das características é que
se trata de “uma decisão irrevogável, que não pode ser cancelada
por pessoa alguma”.3
Ainda de acordo com o DITNT, dentro da cultura do Antigo
Testamento, há seis elementos constitutivos de uma aliança:

1 – O preâmbulo, que menciona os nomes das partes em aliança;


2 – Um histórico preliminar do relacionamento entre os pactuantes;
3 – Uma declaração do relacionamento futuro entre as partes;
4 – Pormenores desse relacionamento futuro;
5 – Uma invocação dos deuses das partes, como testemunhas;
6 – Um pronunciamento de bênção para quem cumprisse a aliança
e de maldição para quem a desrespeitasse.4

O mesmo dicionário afirma que esse esquema pode ser visto dentro
e até além do Novo Testamento.5 Analisando esses elementos,
percebe-se que uma aliança é mais do que um simples acordo entre
as partes. Há um aspecto solene, pois há um ritual formal a ser feito
para o estabelecimento da aliança. Há um forte aspecto relacional
entre os pactuantes. Eles possuem uma história juntos e se
comprometem a manter esse relacionamento no futuro. Há um
aspecto sagrado, porque cada parte da aliança invoca o seu próprio
deus para testemunhar o compromisso assumido. E, como algo que
foi levado diante dos deuses, há um forte aspecto moral. Cumprir a
aliança é algo moralmente desejável e abençoador. Mas a sua
ruptura era algo tão abominável que uma maldição deveria atingir
quem quebrasse o pacto.
Uma vez que Deus fez uma aliança com o povo de Israel no
Antigo Testamento e com a Igreja no Novo Testamento, todo esse
contexto precisa estar na nossa mente quando estudamos qualquer
assunto teológico. Não é apenas Deus que assumiu compromissos
conosco, mas, de certa maneira, nós também temos deveres e
obrigações para com o Senhor (preâmbulo). Mesmo que você tenha
se convertido ontem, a verdade é que a sua história com Deus já é
antiga. Esse relacionamento já existia antes da criação do mundo,
quando fomos escolhidos para sermos santos e irrepreensíveis
diante do Senhor (Ef 1.4) e predestinados para ele, para sermos
adotados como filhos, por meio de Jesus Cristo (Ef 1.5). Não
apenas Deus nos conheceu, como estabeleceu as condições do
nosso futuro relacionamento com ele: fomos predestinados para
sermos filhos. O nosso relacionamento com Deus não é privado,
mas público, e, por isso, precisamos confessar publicamente a
nossa aliança com o Senhor, com a nossa boca (Rm 10.9). Aquele
que permanecer na aliança e perseverar até o fim será salvo (Mt
24.13), mas Deus não tem prazer naqueles que retrocedem (Hb
10.38).
No caso específico do batismo, independente de sermos
católicos, batistas ou presbiterianos, há vários vínculos com os
conceitos acima. Em todas as correntes cristãs, o batismo é um rito
de iniciação em que a aliança entre Deus e o batizando é
formalizada publicamente. É ali que, de uma maneira direta ou
indireta, o cristão verbaliza a sua intenção de entrar em aliança com
o Senhor. E, caso o cristão abandone esse compromisso, as
maldições da aliança são invocadas sobre ele. Afinal, como diz
2Pedro 2.21: “Pois melhor lhes fora nunca tivessem conhecido o
caminho da justiça do que, após conhecê-lo, volverem para trás,
apartando-se do santo mandamento que lhes fora dado”.
Um pacto de sangue
Há, porém, um elemento adicional que resta mencionar sobre as
alianças no contexto bíblico: elas eram “pactos de sangue”. De
Abraão em diante, todas as grandes alianças entre Deus e o seu
povo envolviam algum tipo de sacrifício, com derramamento de
sangue. Por exemplo, quando o autor de Hebreus fala da aliança
feita com Israel por meio de Moisés, ele se recorda que animais
foram sacrificados para formalizar aquele pacto:

porque, havendo Moisés proclamado todos os


mandamentos segundo a lei a todo o povo, tomou o
sangue dos bezerros e dos bodes, com água, e lã tinta de
escarlate, e hissopo e aspergiu não só o próprio livro, como
também sobre todo o povo, dizendo: Este é o sangue da
aliança, a qual Deus prescreveu para vós outros. (Hebreus
9.19-20)

Durante a celebração da Santa Ceia, Jesus também fez referência


ao “sangue da aliança”, como pode ser visto na citação que abre
este capítulo. Em 1Coríntios, Paulo é ainda mais enfático. A nova
aliança é feita no sangue de Jesus: “Por semelhante modo, depois
de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a
nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o
beberdes, em memória de mim” (1Co 11.25).
O sangue era tão importante para as alianças que, no hebraico,
o verbo “cortar” era usado para fazer alianças. Se você queria fazer
uma aliança, você queria “cortar uma aliança” (‫)בּ ִרית כּ ַָרת‬ְ com
alguém. Em seu livro Cristo dos Pactos, O. Palmer Robertson
explica que era costume no Antigo Oriente Médio que um animal
fosse cortado ao meio durante a realização de pactos. Na hora de
invocar as maldições para a quebra de alianças, as partes andavam
entre as metades e diziam que, caso alguém rompesse o pacto, que
a parte infiel deveria ter o mesmo destino do animal: “A divisão do
animal simboliza um ‘compromisso até a morte’ no momento da
oficialização da aliança. Os animais desmembrados representam a
maldição que o pactuante chamava para si caso ele violasse o
compromisso que ele havia feito.”6
Mas por que sangue? Porque o sangue simboliza a vida (Lv
17.11) e a aliança é um compromisso de vida. Apenas a morte pode
por fim à aliança:

A imagem bíblica de sacrifício de sangue enfatiza a


interrelação entre a vida e o sangue. O derramamento do
sangue-vida significa a única maneira de escapar das
obrigações da aliança uma vez assumidas. Uma aliança é
um ‘laço de sangue’, comprometendo os participantes a
uma lealdade até a dor da morte. Uma vez que se inicia um
relacionamento pactual, nada menos que o derramamento
de sangue pode aliviar as obrigações impostas, no caso de
uma eventual violação da aliança.7

Mas qual a importância disso para o batismo infantil? Mais à frente,


veremos em detalhes que o batismo é a oficialização da entrada do
cristão na aliança entre Deus e a igreja. Contudo, antes de
concluirmos apressadamente que um compromisso desses só pode
ser feito por um adulto, precisamos entender que a aliança de Deus
com Abraão e Israel é um relacionamento eterno, de vida e morte.
Vamos mostrar que, na verdade, a aliança de Deus com a igreja é a
mesma aliança que Deus tem com Israel: ela foi apenas renovada e
ampliada para incluir formalmente os não judeus. E, se a aliança de
Deus com Abraão e Israel não acabou, e ela incluía a descendência
de Abraão (ou seja, crianças!), então há uma clara implicação para
os dias de hoje.
Um pacto eterno
O problema é que o século 21 d.C. é bem diferente do século 20
a.C. Hoje, a palavra “compromisso” parece não ter mais nenhum
atrativo. O casamento “de papel passado” virou um contrato, e,
mesmo assim, muitos preferem a informalidade de apenas
“morarem juntos”. Até os namoros deram lugar para o ficar, e os
namorados viraram “peguetes”. Emprego pra vida toda, só se for
público. Amizades podem terminar com uma simples divergência
política em um ano eleitoral. O Brasil do século 21 prefere a
incerteza ao comprometimento.
Não à toa os brasileiros do século 21 são muito mais ansiosos,
inseguros e estressados do que os que viviam nos anos 1950.
Deixar tudo em aberto significa viver em um mundo instável, onde
ninguém tem compromisso algum conosco. Quando o mar está
calmo, o passeio da vida até parece agradável. Mas as tempestades
e furacões sempre vêm. Os barcos envelhecem e precisam de
reparos. E, nessas horas, a falta de uma âncora e de um porto
seguro pode custar a nossa vida. No mínimo, garante um enjôo
daqueles.
O verdadeiro amor e a verdadeira paz dependem de
estabilidade. Não exatamente de circunstâncias estáveis, mas de
relacionamentos estáveis. Precisamos de amigos, parentes e até de
patrões que vão manter sua palavra e caminhar conosco, nos dias
bons e ruins, quando estivermos saudáveis ou doentes, quando
estivermos com um ótimo humor ou com um espírito de porco. Sem
isso, enlouquecemos, nos vigiando o tempo todo, nos anulando a
todo instante. E, se isso importa nos nossos relacionamentos
humanos, imagine no nosso relacionamento com Deus.
E era exatamente isso que Abrão precisava em Gênesis 15.
Enquanto ele ainda morava em Harã, junto de sua família, o Senhor
apareceu e prometeu fazer dele uma grande nação. Muita coisa
havia se passado até ali. Houve uma fome em Canaã, Ló precisou
se separar de seu tio Abrão e até uma guerra para salvar a vida de
Ló (e de Sodoma e Gomorra) aconteceu. Mas nada de filho.
Deus então apareceu a Abrão e voltou a dizer que a
recompensa dele seria muito grande (Gn 15.1). Mas Abrão estava
cansado! Em um momento de desabafo, Abrão ousadamente
pergunta: “que me haverás de dar, se continuo sem filhos e o
herdeiro da minha casa é o damasceno Eliézer? A mim não me
concedeste descendência, e um servo nascido na minha casa será
o meu herdeiro” (Gn 15.2-3). Deus então levou Abrão para fora e
prometeu que a descendência dele seria tão numerosa como as
estrelas no céu. Abrão creu e isso foi imputado para a justificação
dele (Gn 15.6). Que momento!
No entanto, apesar da grandeza daquela conversa, há horas
em que precisamos de mais do que palavras. Repare: Abrão tinha
fé, ele não estava duvidando do Senhor. Mesmo assim, quando
Deus prometeu dar a terra de Canaã em herança, Abrão perguntou:
“Senhor Deus, como saberei que hei de possuí-la?” (Gn 15.8). A
resposta divina é estranha para nós, mas foi perfeitamente
compreensível para o patriarca: pegar uma novilha, uma cabra, um
cordeiro, uma rola e um pombinho. Em outras palavras, o Senhor
iria fazer uma aliança, para dar ainda mais peso às suas promessas.
Perceba que Abrão fez várias coisas que ele não fora instruído
para fazer. Ele matou os animais, partiu-os no meio e fez um
caminho, colocando as metades uma na frente da outra, mas não
dividiu os pássaros. Obviamente, as águias, quiçá falcões e urubus,
sentiram o cheiro do sangue e tentaram pegar um pedaço, mas o
diligente Abrão as enxotou. Passaram-se horas, e o sol se pôs. Até
o momento em que o já idoso patriarca ficou cheio de sono.
Aquela não era uma aliança entre iguais, mas sim entre um
vassalo (inferior) e um suserano (superior). O vassalo providenciou
tudo para a cerimônia, e esperou, pacientemente, pela vinda do
suserano. Pelo protocolo normal descrito nesse capítulo, era
esperado que ambos se apresentassem, falassem das condições do
acordo e passassem por entre as metades dos animais mortos,
evocando bênçãos e maldições. Mas, se Abrão preparou o
sacrifício, todo o resto ficaria por conta do Senhor.
Amortecido pelo sono, Abrão só percebeu a chegada de Deus
porque um grande pavor se apoderou dele, e uma densa escuridão
o cercou. Pode-se dizer que a justiça divina o visitou primeiro, e o
que ela tinha a dizer não parecia agradável. Os descendentes de
Abrão seriam escravizados em uma terra alheia, por quatrocentos
anos. Depois disso, eles sairiam com grandes riquezas e voltariam
para Canaã. Tanto os egípcios como os amorreus (moradores de
Canaã) seriam julgados naquele dia. Os pormenores de como o
Senhor cumpriria a sua promessa foram esclarecidos. Faltava agora
dizer as obrigações e o anúncio das bênçãos e maldições.
E, então, uma tocha de fogo se acendeu no meio daquelas
trevas. Deve ter sido um espetáculo de beleza e terror. Talvez as
maldições divinas fossem ser extremamente duras. E aí, algo
surpreendente aconteceu: Deus passou sozinho pelas metades.
Mais impressionante ainda: Ele apenas fez promessas ao seu
vassalo, e não impôs nenhuma condição para o cumprimento delas.
Não acabou: Deus disse que ele já havia dado aquela terra aos
descendentes de Abrão (Gn 15.18).
Em uma espetacular quebra de protocolo, Deus fez uma
aliança onde apenas o suserano estabeleceu promessas, e onde
apenas o suserano seria morto no caso de descumprimento do
pacto. Aqui está o Evangelho segundo Gênesis: ainda que Israel
quebrasse a aliança, Deus sofreria o castigo da morte e daria a eles
a Terra Prometida. De fato, a descendência carnal de Abrão deixou
o Senhor, mas Jesus Cristo morreu, sofrendo a penalidade dessa
quebra, e manteve de pé as promessas divinas.
E o que Abrão precisou fazer? Duas coisas: crer e se
submeter. A fé foi demonstrada quando Abrão preparou o local de
cerimônias e esperou a chegada de Deus. A submissão pode ser
vista no fato de que o patriarca aceitou os termos do Senhor, que
envolviam quatrocentos anos de escravidão antes do cumprimento
da promessa. E, embora essa submissão não tenha sido perfeita,
Abrão perseverou em sua espera e obedeceu, tornando-se o pai de
todos os que crêem, como veremos mais à frente.
Há muito mais que pode ser dito sobre Gênesis 15. Mas, para
a nossa discussão, eu quero enfatizar como Deus foi enfático em
mostrar que a aliança abraâmica era (e é) irrevogável. Ela não pode
cair, porque é incondicional, é um compromisso assumido por Deus
que só pode ser anulado pela morte. E, embora Jesus tenha
morrido, a cruz não é o fim, mas sim o ápice do compromisso que o
Pai Celeste assumiu naquela noite com o nosso Pai Abraão.
II. Dois pactos que você não
conhece
Por isso mesmo, ele é o Mediador da nova aliança, a fim de
que, intervindo a morte para remissão das transgressões que
havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da eterna
herança aqueles que têm sido chamados. (Hebreus 9.15)

Poucas coisas são tão fascinantes quanto a teologia. Por milênios,


mentes brilhantes como as de Agostinho, Tomás de Aquino e até
Isaac Newton têm se dedicado a entender os mistérios da Bíblia e o
caráter de Deus. Por mais que se estude e se debata, sempre há
mais a ser aprendido e discutido. Poucas áreas do conhecimento
podem dizer o mesmo. Uma delas é o futebol.
O futebol é cheio de debates e mistérios. Alguns são clássicos
(perdoem o trocadilho), como se o Palmeiras tem ou não um
Campeonato Mundial (claro que não), ou se o São Paulo já foi
rebaixado em algum campeonato (claro que não), ou se Pelé é
mesmo melhor que Maradona (claro que sim!). Mas um deles é
particularmente interessante: quem é o verdadeiro campeão
brasileiro de 1987: o Flamengo ou o Sport?
Essa foi uma disputa tão controversa que acabou indo parar na
Justiça. O campeão brasileiro de 1987 deveria vir de um
quadrangular entre os campeões e vice-campeões dos Módulos
Verde e Amarelo. O Flamengo venceu o Módulo Verde (também
chamado de Copa União), com os clubes mais difíceis, e recusou-se
a disputar o quadrangular com o campeão e o vice do Módulo
Amarelo, que tinha times mais fracos. O Internacional, vice-
campeão da Copa União, também não jogou. Com isso, Sport e
Guarani, campeão e vice do Módulo Amarelo, acabaram sendo
apontados pela CBF como campeões brasileiros de 1987. Para o
Flamengo, a Copa União (o Módulo Verde) era o verdadeiro
campeonato brasileiro, e o Módulo Amarelo era um outro
campeonato, que não deveria ser considerado. Já para o Sport, a
Copa União era uma etapa preliminar do verdadeiro torneio, o
Campeonato Brasileiro. E aí, quem tem razão?
Uma analogia pode ser feita sobre o debate entre credobatistas
e pedobatistas acerca do batismo infantil. De certa forma, os
credobatistas consideram que os rituais do Antigo Testamento não
cabem mais no Novo Testamento, e a circuncisão não encontra no
batismo um correspondente adequado. Já os pedobatistas
consideram uma unidade maior entre Antigo e Novo Testamentos,
onde a circuncisão é sucedida pelo batismo.
Porém, para entender isso, precisamos conhecer uma nova
forma de dividir a Bíblia. Tradicionalmente, a Bíblia é dividida entre
Antigo e Novo Testamentos. Entretanto, essa não é a única forma
de dividir a história bíblica. Ela também pode ser dividida entre
outros dois grandes pactos: o Pacto das Obras e o Pacto da Graça.
Por que dois pactos?
Ao contrário do que você possa imaginar, o Pacto das Obras
não é um outro nome do Antigo Testamento, e nem o Pacto da
Graça um outro nome do Novo Testamento. O Pacto das Obras é
aquele celebrado com Adão antes da Queda, aquele episódio
relatado em Gênesis 3 quando Adão e Eva cometem o primeiro
pecado humano ao comerem o fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. Este Pacto vai de Gênesis 1 a Gênesis 3. De
Gênesis 4 em diante, a Bíblia conta o desenvolvimento do Pacto da
Graça, anunciado a Adão e Eva após a Queda. Calma, não estou
inventando isso! Na verdade, estou apenas repetindo o que diz o
Capítulo VII da Confissão de Fé de Westminster:

II. O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras;


nesse pacto foi a vida prometida a Adão e nele à sua
posteridade, sob a condição de perfeita obediência pessoal.
III. O homem, tendo-se tornado pela sua queda incapaz de vida
por esse pacto, o Senhor dignou-se fazer um segundo pacto,
geralmente chamado o pacto da graça; nesse pacto ele
livremente oferece aos pecadores a vida e a salvação por Jesus
Cristo, exigindo deles a fé nele para que sejam salvos; e
prometendo dar a todos os que estão ordenados para a vida o
seu Santo Espírito, para dispô-los e habilitá-los a crer.

O que isso significa? Se o pacto da graça é aquele em que a


salvação é obtida por meio de Jesus Cristo, e essa aliança começa
após a Queda, então toda a história bíblica após Gênesis 3 já
estava debaixo desse segundo pacto. As alianças com Noé, Abraão,
Moisés e Davi não são completamente distintas entre si. Não há
uma ruptura entre elas. Deus não fez uma aliança com Abraão
porque a aliança com Noé fracassou e precisava ser substituída. Na
verdade, cada pacto é um desenvolvimento do pacto anterior, como
se um novo estágio da revelação tivesse sido atingido.
A única ruptura que existe é entre antes e depois da Queda. De
fato, antes de Gênesis 3, Deus olhava para a sua criação e tudo era
“muito bom” (Gn 1.31). Homem e mulher estavam nus e não
sentiam vergonha (Gn 2.25). A morte não fazia parte da experiência
humana, desde que Adão e Eva cumprissem o mandamento bíblico
de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn
2.17). Enquanto essa regra era respeitada, o lar da humanidade era
o jardim do Éden (Gn 2.15).
Porém, quando essa ordem foi desobedecida, tudo mudou. A
nudez tornou-se um problema, e Adão e Eva fizeram cintas para se
cobrirem (Gn 3.7). O medo de Deus fez com que ambos se
escondessem dele (Gn 3.8-10). A harmonia do primeiro casal foi
quebrada e Adão acusou Eva por seu pecado (Gn 3.12). As
consequências foram amargas. As dores do parto agora seriam
aumentadas (Gn 3.16). O jardim seria substituído por uma terra
amaldiçoada, que produziria espinheiros a partir daquele momento
(Gn 3.17-18). A morte não seria imediata, mas era certa: “tu és pó a
e ao pó tornarás” (Gn 3.19). Homem e mulher foram expulsos do
Éden e querubins e uma espada de fogo foram colocados para
impedir que eles voltassem (Gn 3:23-24). A humanidade escolheu a
árvore do conhecimento do bem e do mal e, por isso, não poderia
mais ter acesso à árvore da vida.
Não há qualquer quebra de pacto mais traumática do que essa
na Bíblia. Até os dias de Jesus, a história da humanidade realmente
se divide em antes e depois da Queda. Ela alterou tudo: a criação, a
essência humana, os relacionamentos interpessoais e,
principalmente, o nosso relacionamento com Deus. As suas
consequências foram cósmicas e se mantêm até hoje:

Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas


por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a
própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a
liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até
agora. (Romanos 8.20-22)

Nem mesmo o Dilúvio foi tão terrível. Sim, Deus quase eliminou
toda a vida nos dias de Noé, mas em Adão o Senhor amaldiçoou
toda a criação. Tente imaginar qualquer desgraça. Poluição,
terremotos, enchentes, erupções vulcânicas: todos os desastres
naturais podem ser colocados na conta do fruto proibido.
Deficiências físicas, transtornos mentais, enfermidades, acidentes,
mutilações, nada disso acontecia no Éden. Vergonha, explosões de
raiva, agressões físicas e brigas eram algo inimaginável até
sentirmos o gosto do fruto do conhecimento do bem e do mal. Em
resumo, segundo Romanos 3.23, o resultado da Queda é que “todos
pecaram e carecem da glória de Deus”. De um modo ou de outro,
Deus cumpriu a sua promessa. A morte tornou-se a nossa única
certeza, afinal, ela é “o salário do pecado” (Rm 6.23).
“E aos seus descendentes”
Aqui há algo que deve chamar a nossa atenção: as maldições
do Pacto das Obras não alcançaram somente Adão e Eva. Além da
natureza ter sido afetada, todos os descendentes de Adão foram
amaldiçoados por causa do erro dele. A maldição não alcançou
somente o indivíduo Adão, mas sim toda a espécie humana. Tudo o
que estava debaixo da autoridade de Adão foi corrompido pela
Queda.
Um texto crucial para entender isso é Romanos 5.12-21. Nessa
seção de Romanos, Paulo explica que Adão é um tipo de Cristo
Jesus. Um “tipo” é uma figura que representa outra, como se fosse a
sombra de um objeto. O tipo possui traços em comum com aquilo
que ele representa, mas não é idêntico a ele. Adão e Cristo
possuem em comum o fato de que suas ações têm consequências
cósmicas e geracionais. O que Adão fez afetou toda a sua
descendência, da mesma maneira que as ações de Jesus afetam
toda a sua “descendência”.
Mas há diferenças. Adão teve descendentes físicos, Jesus tem
uma descendência espiritual. Adão é o pai de uma humanidade
caída, e Jesus de uma nova humanidade. E, o mais importante:
Adão trouxe morte e pecado para todos os homens, enquanto Jesus
trouxe graça e justificação. Resumindo, em Adão:

- O pecado entrou no mundo (Rm 5.12);


- Como consequência do pecado, a morte entrou no mundo (Rm
5.12);
- Todos pecaram (Rm 5.12);
- Pela ofensa dele, muitos morrem (Rm 5.15);
- Pela ofensa dele, o julgamento para condenação vem sobre a
humanidade (Rm 5.16);
- Por meio de Adão e pela ofensa dele, a morte reinou no mundo
(Rm 5.17);
- Por meio de uma única ofensa dele, o juízo para condenação veio
sobre todos os homens (Rm 5.18);
- Pela desobediência dele, muitos se tornaram pecadores (Rm
5.19).
Aqui, todos nós deveríamos fazer uma pergunta. Se o pecado
original criou uma maldição geracional, por que a salvação teria
consequências apenas individuais? Se, em Adão, todos os seus
descendentes são condenados, a redenção prometida por Deus
seria diferente? Claro que não. Afinal, em Cristo:

- A graça de Deus foi abundante sobre muitos (Rm 5.15);


- Os que recebem a abundância da graça e o dom da vida reinam
por meio dele (Rm 5.17);
- A graça vem sobre todos os homens, para a justificação que dá a
vida (Rm 5.18);
- Muitos se tornam justos por causa da obediência dele (Rm 5.19).

Todo o argumento de Romanos 5 é para ilustrar que a


obediência de Jesus é superior à desobediência de Adão, que o
alcance da redenção em Cristo é maior que o alcance da morte em
Adão. Não há como evitar a pergunta: se os credobatistas estão
corretos, então o pecado de Adão tem uma abrangência maior que
a salvação em Cristo? A resposta seria um “sim”, pelo menos no
aspecto geracional. Afinal, a condenação de Adão é corporativa, e a
salvação de Cristo seria individual. Mas o pedobatista parte de uma
premissa diferente: assim como a condenação é corporativa, a
graça também o é.
Mas, e os desviados?
Esse é o momento em que você pergunta: mas então por que filhos
de crentes se desviam? Isso não depõe contra a ideia de que a
salvação transcende gerações? Não, de modo algum. Afinal, todos
os membros da igreja também são filhos de Adão, mas deixaram de
segui-lo para se tornarem filhos de Deus.
A relação “individualismo vs. corporativismo” é como várias
outras da Bíblia, aparentemente contraditórias. Exemplos não
faltam: como Deus é um, mas são três pessoas? Como a soberania
de Deus pode existir se o homem é livre e responsável por suas
escolhas? Jesus é totalmente Deus e totalmente homem? Em
relação à salvação, a aparente contradição pode ser resolvida da
seguinte maneira: em geral, o pacto assumido pelo cabeça de uma
família afeta toda a sua descendência; porém, se um descendente
quiser sair e fazer um novo pacto, ele é livre para tal.
Era o que acontecia já na época do Antigo Testamento. Veja o
caso de Rute, por exemplo. Rute era de Moabe, e os moabitas
tinham os seus próprios deuses. Na verdade, os moabitas eram tão
inimigos de Israel que Deus proibiu que eles fossem aceitos na
assembleia do Senhor em Deuteronômio 23.3. A proibição iria por
até dez gerações! Mas Rute renegou os deuses de seus pais e
aceitou servir ao Deus de Israel, ao Deus de sua sogra Noemi. Em
Rute 1.16, ela diz à sua sogra: “O teu Deus é o meu Deus”. E Rute
foi tão abençoada por isso que acabou sendo citada na genealogia
do próprio Jesus em Mateus 1.5.
Infelizmente, o oposto também aconteceu. O rei Acaz foi um
dos piores reis da história de Israel, chegando ao ponto de queimar
seus próprios filhos como sacrifício a outros deuses (2Cr 28.3). Mas
Acaz foi filho de um ótimo rei. Seu pai chamava-se Jotão e, segundo
a Bíblia, “dirigia os seus caminhos segundo a vontade do SENHOR,
seu Deus”(2Cr 27.6). Com certeza, Acaz recebeu o sinal da
circuncisão e foi educado como um israelita. Mas ele escolheu
abandonar a aliança que Deus tinha com Israel.
O Novo Testamento não traz nenhuma novidade em relação ao
assunto. Abordaremos mais detidamente esse assunto à frente, mas
também no Novo Testamento os filhos podem herdar algum
benefício dos pais. Um texto que afirma isso claramente é
1Coríntios 7.14:

Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da


esposa, e a esposa incrédula é santificada no convívio do
marido crente. Doutra sorte, os vossos filhos seriam
impuros; porém, agora, são santos.

A promessa de Deus no Novo Testamento também se aplica aos


filhos dos que creem, como Pedro afirma em Atos 2.39:

Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e


para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o
Senhor, nosso Deus, chamar.

Não é uma coincidência o que Paulo e Silas prometem ao carcereiro


em Atos 16.31:

Responderam-lhe: Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e


tua casa.

Isso pode até soar herético, mas a verdade é que não há nenhuma
grande mudança do Antigo para o Novo Testamento neste aspecto.
As promessas de Deus não são apenas para indivíduos isolados,
mas sim para suas famílias. Todavia, o valor do indivíduo também é
reconhecido nas Escrituras. E, se alguém optar por abandonar o
Senhor, ele perderá as bênçãos pactuais. Por outro lado, como diz a
parábola do filho pródigo (Lc 15.11-32), ainda que o filho se desvie
gravemente, ainda há lugar para ele, se houver arrependimento. E,
sendo sincero, a história de Israel no Antigo Testamento nada mais
é do que uma parábola do filho pródigo repetida incontáveis vezes.
III. Um ou dois povos?
E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra,
paz e misericórdia sejam sobre eles e sobre o Israel de Deus.
(Gálatas 6.16)

O esporte tem um poder de união realmente admirável. Durante as


Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, 206 países participaram do
desfile de abertura. É uma representatividade maior que a da
Organização das Nações Unidas (ONU), que tem apenas 193
países membros. No Rio de Janeiro, era possível ver cidadãos de
países em guerra no mesmo ambiente, convivendo pacificamente
um com o outro. Norte-coreanos e sul-coreanos, indianos e
paquistaneses, russos e ucranianos, todos juntos na celebração do
esporte.
Mas o esporte também traz à tona algumas rivalidades locais.
E um bom exemplo disso é o Reino Unido. Como o próprio nome
indica, o Reino Unido é uma reunião de vários reinos, como os da
Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Nas
Olimpíadas, todos eles competem sob a bandeira da Grã-Bretanha
(incluindo os irlandeses do norte). Mas, na Copa do Mundo de
Futebol, é cada “país” por si. Inglaterra, Escócia, País de Gales e
Irlanda do Norte possuem as suas próprias seleções e jogam com
suas bandeiras.
E fica aí um grande nó na cabeça dos estudantes de
Geografia: afinal, a Inglaterra é um país ou não é? O Reino Unido é
uma única nação ou uma confederação de nações? Na verdade,
embora popularmente chamemos Inglaterra e Escócia de países, a
nação que existe é o Reino Unido.
Em relação ao povo de Deus, vivemos um dilema parecido. Ao
longo de todo o Antigo Testamento, vemos que o povo de Deus é o
povo de Israel, os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó. Após o
reino de Salomão, esse povo se divide em dois reinos, mas na
perspectiva divina, continua a ser um único povo a ser salvo.
Entretanto, no Novo Testamento surge o que chamamos de igreja.
E, embora hoje exista milhares de denominações diferentes, ainda
assim consideramos que a igreja é uma só.
A pergunta que fica é: Deus tem um ou dois povos? A pergunta
é importante porque Israel continua a existir nos dias de hoje, por
meio dos judeus. Mas os judeus não acreditam em Jesus como o
Messias, o Salvador, o Filho de Deus. Já a igreja é formada por
pessoas de diferentes etnias e nacionalidades, tendo em comum a
crença em Jesus como o Filho de Deus. A resposta a essa pergunta
tem implicações diretas sobre a questão do batismo infantil.
Duas noivas?
Para entendermos como isso acontece, precisamos primeiro corrigir
um grave erro de leitura bíblica, o de desprezar o Antigo
Testamento. Quando começamos a ler a Bíblia, as igrejas sempre
nos instruem a começar pelo Novo Testamento. Afinal, o Antigo “não
vale mais nos dias de hoje” e, como resultado, ele acaba sendo
visto como um mero registro histórico. Por que lemos a Bíblia dessa
forma? A explicação está em um debate entre duas escolas de
interpretação bíblica: o dispensacionalismo e a já mencionada
Teologia do Pacto (ou aliancismo).
Tanto o dispensacionalismo como o aliancismo reconhecem que
Deus escolheu se relacionar com a humanidade por meio de
alianças ou pactos. As alianças não são exatamente contratos,
porque envolvem um compromisso e uma vinculação muito maior
entre as partes envolvidas. Não se trata de uma relação
simplesmente comercial ou jurídica, pois possui fortes implicações
morais e sociais. O melhor exemplo que temos atualmente é o
casamento. O noivo e a noiva assumem compromissos um com o
outro. Há uma manifestação física desse compromisso: a aliança de
casamento. Há um juramento público e solene de fidelidade e
perpetuidade da união dos noivos. Muitas vezes, uma festa ou
refeição celebra a união. E, no caso de uma quebra da aliança,
haverá consequências ruins dessa ruptura. Divórcios não costumam
ser agradáveis.
De certo modo, o relacionamento entre Deus e o seu povo é
como o de um Noivo e uma Noiva. No Antigo Testamento, quando o
povo de Israel se entregava à idolatria, Deus acusava os israelitas
de adultério. Isso pode ser visto em capítulos dramáticos, como
Ezequiel 16, onde Deus promete julgar a Israel como se julgam as
adúlteras (Ez 16.38). Já no Novo Testamento, a Noiva não é mais
Israel, mas sim a igreja. Em Apocalipse 21, lemos sobre “as bodas
do Cordeiro”, um símbolo do casamento entre Jesus e a igreja. Em
Efésios 5.32, ao comentar sobre o casamento, Paulo nos ensina
que ele aponta para um casamento superior, entre Cristo e a igreja.
Para os dispensacionalistas, é como se Deus tivesse noivado
duas vezes. A primeira Noiva, Israel, adulterou com outros deuses e
recebeu uma carta de divórcio do Senhor (Jeremias 3.8). Deus
então preparou uma segunda Noiva, a igreja. Dentro dessa visão, a
igreja não deve ser confundida com Israel. Para os
dispensacionalistas, uma nova aliança revoga completamente a
anterior.
Já os teólogos do pacto interpretam de forma diferente. Deus não
rejeitou Israel (Rm 11.1-2). A igreja não é uma segunda Noiva. Na
verdade, a igreja é parte daquilo que Paulo chama de “todo o Israel”
(Rm 11.26) ou o “Israel de Deus” (Gl 6.16). A entrada dos gentios
(não judeus) no povo de Deus é apenas o cumprimento e o
desenvolvimento das promessas feitas em alianças anteriores,
desde Adão até o rei Davi. Os gentios não são um novo corpo,
distinto de Israel. O que Jesus fez quando ele morreu na cruz e
ressuscitou? Ele incluiu os gentios que creem dentro de Israel.
Antes eles estavam “separados da comunidade de Israel” (Ef 2.12),
mas agora são “concidadãos dos santos” (Ef 2.13).
As repercussões disso para a vida cristã são enormes. Se os
teólogos do pacto estão corretos, então a igreja é a legítima herdeira
das promessas feitas a Abraão, e não os judeus étnicos ou o Estado
de Israel. Isso muda desde a maneira como interpretamos o fim do
mundo e a suposta necessidade de sempre apoiar Israel em
qualquer assunto, até a decisão se batizamos ou não bebês. É um
debate pouco conhecido, mas mais importante do que outras
discussões, como, por exemplo, entre calvinistas (seguidores das
doutrinas defendidas por João Calvino e adeptos da predestinação)
e arminianos (seguidores das doutrinas de Jacó Armínio e
defensores do livre-arbítrio).
O pai de todos nós
Uma indicação clara de que a igreja é herdeira de Abraão pode
ser vista na carta de Paulo aos Gálatas. Quando Paulo escreveu
essa carta para as igrejas da região da Galácia, ele estava
combatendo uma heresia que ganhava espaço por ali. Os
“judaizantes” pregavam que, para que os gentios fossem salvos, era
necessário que eles fossem circuncidados e guardassem a Lei de
Moisés. Paulo escreveu aos gálatas para alertá-los que isso não era
necessário. O verdadeiro evangelho ensina que a justificação é
apenas pela fé, não pela obediência à Lei de Moisés:

sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da


lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido
em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em
Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém
será justificado. (Gl 2.16)

Mas, além da justificação pela fé, Paulo coloca um outro argumento.


Os verdadeiros israelitas não são os judaizantes, mas sim os que
creem em Jesus. Isso porque “os da fé é que são filhos de Abraão”
(Gl 3.7). Paulo vai além: o chamado de Deus a Abraão em Gênesis
12 já era o prenúncio do evangelho de Cristo e da justificação pela
fé:

Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres


entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei ou pela pregação
da fé? É o caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi
imputado para justiça. Sabei, pois, que os da fé é que são filhos
de Abraão. Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria
pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti,
serão abençoados todos os povos. De modo que os da fé são
abençoados com o crente Abraão. (Gl 3.5-9)

Esse trecho merece uma exposição mais detalhada. Paulo pergunta


se a presença do Espírito Santo e dos milagres nas igrejas da
Galácia era uma consequência das obras da lei ou da pregação da
fé. A resposta é óbvia: a fé era o meio pelo qual o Espírito Santo era
recebido e os milagres aconteciam. Mas, veja só, esse também era
o caso com Abraão! Paulo atribui a justificação de Abraão diante de
Deus à fé e não às obras. O evangelho foi preanunciado a Abraão
no primeiro momento em que Deus dialoga com ele. Em Gênesis
12.3, quando Deus fala a Abraão “em ti, serão abençoados todos os
povos”, ele fala sobre o evangelho e a justificação pela fé daqueles
que não são judeus. E aí Paulo conclui: os da fé são abençoados
com o crente Abraão.
Paulo continua:

Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio


maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo
aquele que for pendurado em madeiro), para que a bênção de
Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo, a fim de que
recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido. (Gl 3.13-14)

Na cruz, Jesus salvou a igreja. Como? Por meio de uma morte


substitutiva. Ele tomou o nosso lugar, e carregou sobre si a culpa de
todos os pecados cometidos por aqueles que creem nele. Ao fazer
isso, Jesus recebeu a maldição que deveria recair sobre todos nós,
descendentes de Adão e pecadores. Mas Cristo não apenas sofre
no nosso lugar. Porque Cristo morreu por nós, ele tornou possível
que Deus nos abençoasse. E, porque ele morreu, até mesmo os
gentios, que não são descendentes carnais de Abraão, recebem a
bênção que foi prometida ao patriarca. E porque os gentios recebem
essa bênção é que a igreja também recebe, pela fé, o Espírito
Santo.
Perceba a ligação que a Bíblia está fazendo. Do ponto de vista
bíblico, a promessa do Espírito Santo já havia sido feita a Abraão. A
vinda do Espírito é um cumprimento da palavra que Deus falou a
Abraão em Gênesis 12, quando ele se dirigiu ao patriarca pela
primeira vez.
Há uma unidade entre o evangelho de Cristo pregado pelos
apóstolos e a promessa feita por Deus a Abraão. Mas muita coisa
aconteceu entre Abraão e Jesus. Abraão viveu por volta do ano
2000 a.C. Cerca de seiscentos anos depois, aproximadamente em
1400 a.C., houve a aliança feita com Israel no monte Sinai, onde o
Senhor entregou a Lei a Moisés. Passados mais quatrocentos anos,
Davi foi levantado como rei de Israel e o Senhor fez uma nova
aliança com ele, dando o governo de Israel à família de Davi e
estabelecendo o Templo de Jerusalém como o local onde o nome de
Deus deveria ser invocado. Esses acréscimos posteriores
invalidaram a promessa feita a Abraão? De modo algum:

E digo isto: uma aliança já anteriormente confirmada por Deus,


a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ab-
rogar, de forma que venha a desfazer a promessa. Porque, se a
herança provém de lei, já não decorre de promessa; mas foi
pela promessa que Deus a concedeu gratuitamente a Abraão.
(Gl 3.17-18)

De que herança fala Paulo? Seria a posse da terra de Canaã, que


foi prometida a Abraão e aos seus descendentes em Gênesis 12.7?
Não. A herança mencionada em Gálatas é a salvação em Jesus
Cristo e a promessa do Espírito Santo: “E, se sois de Cristo,
também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a
promessa” (Gl 3.29). Ou seja, somos todos contados por Deus como
filhos de Abraão, uma ideia que Paulo repetiu em sua carta aos
Romanos:

E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que


teve quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os
que crêem, embora não circuncidados, a fim de que lhes fosse
imputada a justiça, e pai da circuncisão, isto é, daqueles que
não são apenas circuncisos, mas também andam nas pisadas
da fé que teve Abraão, nosso pai, antes de ser circuncidado.
(Rm 4.11-12)
Uma única oliveira
Se a igreja é a legítima herdeira das promessas feitas a Abraão,
então é lógico concluir que, na Bíblia, a igreja é o verdadeiro Israel,
e não os judeus. É importante frisar isso porque o pensamento
evangélico comum é o de considerar o país chamado Israel como
Israel ou os judeus atuais como sendo o Israel bíblico.
O texto de Romanos 11 é um dos que nos ajudam a entender
porque a igreja é Israel. A Carta de Paulo aos Romanos é uma
exposição do evangelho. Lá, Paulo afirma que o justo viverá por fé
(Rm 1.17), e a partir daí ele fundamenta essa afirmação. O apóstolo
prova que todos são pecadores (capítulos 2 e 3), que os verdadeiros
descendentes de Abraão são os que creem (capítulo 4), que a
justificação é por meio da fé em Cristo (capítulo 5), que a graça não
é uma desculpa para pecar (capítulo 6), que há uma luta entre o
velho homem e o novo homem (capítulo 7), mas que a graça de
Cristo é maior que os nossos pecados (capítulo 8). E aí vem uma
pergunta: se o evangelho é tão bom, por que os judeus o
rejeitaram? Não são eles o povo escolhido do Antigo Testamento?
Como acreditar em Jesus se os próprios judeus não creram nele em
grande número? A resposta é dada nos capítulos 9 a 11.
Basicamente, a resposta de Paulo é que Deus não rejeitou a
Israel e que judeus de sangue creram em Jesus. A eleição divina é
a explicação de que porque alguns judeus creem, mas muitos não
(capítulo 9). A rejeição de grande parte dos judeus e a entrada dos
gentios na igreja são o cumprimento das profecias do Antigo
Testamento (capítulo 10). E, no capítulo 11, a Bíblia trata da
situação final de Israel.
É interessante notar que Paulo começa Romanos 11 apontando
para ele mesmo como uma prova de que Deus não rejeitou Israel.
Ele, Paulo, era um israelita da tribo de Benjamim (Rm 11.1). Assim
como Deus preservou sete mil israelitas da idolatria nos dias do
profeta Elias, Deus agora preserva um remanescente do Israel
étnico por meio da graça (Rm 11.5). A salvação desse
remanescente não é pelas obras (Rm 11.6) e é o resultado da
eleição divina (Rm 11.7-9). Na verdade, a transgressão dos
israelitas é um meio usado por Deus para levar a salvação aos
gentios (Rm 11.11-12). Quando, porém, os israelitas forem
restabelecidos, haverá “vida dentre os mortos” (Rm 11.15).
Até aqui, Paulo ainda trabalha com uma separação entre
judeus e não judeus. Mas, do versículo 16 em diante, ele mostra
que todos os que crêem em Jesus estão no mesmo barco: “E, se
forem santas as primícias da massa, igualmente o será a sua
totalidade; se for santa a raiz, também os ramos o serão” (Rm
11.16). As primícias da massa e a raiz são os judeus. A totalidade e
os ramos são os gentios. Mas repare que ocorre com as primícias e
a raiz o mesmo que ocorre com a massa e os ramos: é tudo uma
unidade. Mas o texto prossegue:

não te glories contra os ramos; porém, se te gloriares, sabe que


não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz, a ti. Dirás, pois:
Alguns ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado.
Bem! Pela sua incredulidade, foram quebrados; tu, porém,
mediante a fé, estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme.
(Romanos 11:18-20)

Por causa do termo “enxertado”, muitos pensam que os gentios são


um outro corpo, diferente dos judeus. Mas o entendimento de
enxerto é exatamente o oposto. Sim, enxertar é pegar o ramo de
uma árvore e implantá-lo no tronco de outra. Mas, ao fazer isso, o
que se obtêm é uma unidade. Aquilo que antes estava separado
agora é uma coisa só.

Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, também não te


poupará. Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus:
para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a
bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também
tu serás cortado. Eles também, se não permanecerem na
incredulidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os
enxertar de novo. Pois, se foste cortado da que, por natureza,
era oliveira brava e, contra a natureza, enxertado em boa
oliveira, quanto mais não serão enxertados na sua própria
oliveira aqueles que são ramos naturais. (Romanos 11.21-24)
Há duas oliveiras: a boa e a brava. A boa é Israel, a brava é o resto
da humanidade. Contudo, Deus corta ramos naturais da oliveira
boa. Em outras palavras, Deus retira de Israel os judeus que são
incrédulos. Mas, pela fé, Deus enxerta ramos da oliveira brava na
boa. Ou seja, Deus coloca não judeus na boa oliveira. Tanto judeus
como gentios estão debaixo da bondade e da severidade de Deus.
Se crerem e permanecerem na bondade de Deus, ambos
permanecem na boa oliveira. Se duvidarem e forem incrédulos,
ambos são cortados. Se há arrependimento, ambos podem ser
enxertados.
O nosso grande erro de interpretação é no significado das
oliveiras. A boa oliveira representa aqueles que serão salvos,
aqueles que estão em aliança com Deus, o verdadeiro Israel. Nessa
única oliveira estão tanto judeus como gentios, tanto ramos naturais
como ramos bravos, em uma única planta. A oliveira brava está
condenada ao inferno, assim como os ramos que forem cortados da
boa oliveira. Se entendermos isso, fica claro que a igreja é Israel.
Uma outra lição importante de Romanos 11 é a de que o
verdadeiro critério de salvação é e sempre foi a fé em Deus, não um
apelo ao sangue ou à filiação a algum povo ou entidade. Não
adianta ser um judeu (no Antigo Testamento) ou um cristão (no
Novo Testamento) de boca, exteriormente. Só é realmente parte da
oliveira quem crê, independentemente de qualquer simbolismo ou
filiação exterior.
Para o nosso estudo, há duas lições bastante claras. A primeira é: o
batismo ou qualquer outro ritual não salvam. E a segunda é que a
igreja é parte do Israel de Deus.
IV. Sacramentos
Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome
do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as
coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias
até à consumação do século. (Mateus 28.19-20)

Aniversários são datas que nós geralmente aguardamos com


grande ansiedade. É “o nosso dia”, quando as pessoas se lembram
de nós de forma especial e nos cumprimentam. Alguns chegam até
a nos dar presentes! É dia de festa e de bolo, mas nós sabemos que
nem sempre é assim.
Alguns aniversários são tristes. São dias em que ao invés de
contar as bênçãos, somos tentados a contar fracassos. Dia de olhar
para o que outros fizeram na nossa idade e ruminar rancores e
ressentimentos porque não conseguimos acompanhá-los. E, quanto
mais velhos ficamos, mais certas ausências doem no coração.
Porque cada ano que passa é mais uma pá de terra lançada em
cima de um sonho que não vai se realizar. Naquele dia, a
nonagésima nona pá de terra tinha sido jogada nos sonhos de
Abrão.
Vinte e quatro anos antes, Deus havia aparecido para ele pela
primeira vez. Ele ordenou que Abrão deixasse sua terra e sua
família e fosse para um outro lugar, que ele daria aos seus
descendentes. Deus disse que faria dele uma grande nação, e que
todas as famílias da terra seriam abençoadas nele. Abrão obedeceu
e o Senhor o levou à terra de Canaã. Passaram-se anos, e nada
aconteceu. Em uma noite de desânimo, Deus apareceu e repetiu a
promessa. Abrão estava amargurado, e disse que um de seus
servos seria seu herdeiro. O Senhor lhe mostrou as estrelas e disse
que sua descendência seria tão incontável como elas. Abrão creu.
No dia seguinte, Deus fez uma aliança com o patriarca. Em uma
experiência sobrenatural e aterradora, o Senhor confirmou seu
pacto fazendo um fogo passar pelas metades de um animal,
formalizando uma aliança de acordo com as regras da época. Mas o
filho não veio.
Onze anos depois daquele primeiro encontro, Abrão recebeu
uma proposta inusitada de sua esposa, Sarai. A promessa era a de
que ele teria um filho, mas nada foi dito sobre a mãe biológica.
Então, pensou Sarai, por que Abrão não se deitava com Agar, sua
serva egípcia? Segundo o costume da época, o filho de Agar seria
de Sarai. Abrão consentiu, e daquela relação nasceu Ismael. Mas,
desde então, Deus não havia se manifestado. Nenhuma visão,
nenhuma experiência. Nenhuma palavra de confirmação de que a
promessa estava se cumprindo.
Ocorre que Deus tinha uma surpresa para aquele nonagésimo
nono aniversário. “Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove
anos, apareceu-lhe o SENHOR” (Gn 17.1). Uma vez mais o Senhor
apareceu! E, como em outras vezes, Ele renovou sua promessa:
“Farei uma aliança entre mim e ti e te multiplicarei
extraordinariamente” (Gn 17.2). Dessa vez, porém, havia novidades.
Deus deu um presente a Abrão, um novo nome. Agora ele seria
chamado Abraão, “pai de numerosas nações”. Um novo nome
significa uma nova identidade. Mudar o nome é entrar em um novo
estágio de vida. Algo novo iria começar.
Você acha que parou por aí? Deus tinha mais: “Estabelecerei a
minha aliança entre mim e ti e a tua descendência no decurso das
suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua
descendência” (Gn 17.7). Antes de avançar, respire. Releia e
deguste. Lembra dos capítulos anteriores? Que o evangelho é o
cumprimento da promessa feita a Abraão, segundo Gálatas 3.5-9?
Que Jesus se fez maldição no nosso lugar para que a bênção de
Abraão chegasse aos gentios? Pois bem, é de Gênesis 17.7 que a
Bíblia esta falando. A aliança é entre Abraão e a sua descendência,
o que inclui a igreja. O cerne da aliança é que o Senhor seria o
Deus de Abraão e de sua descendência. Essa aliança, a renovação
dessa promessa, foi o presente de Deus para o nonagésimo nono
aniversário de seu servo Abraão, junto com o seu novo nome.
E no que consiste essa renovação? Gênesis 17:10 explica:
“Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua
descendência: todo macho entre vós será circuncidado”.
Sinais da aliança
O que há de tão importante na circuncisão? A explicação está em
uma característica extra das alianças que não mencionei no primeiro
capítulo: os sinais. As alianças bíblicas são marcadas pela
existência de um sinal exterior e visível, que serve como lembrete
do pacto firmado entre Deus e os homens.
Esses lembretes ainda são usados nos dias de hoje. As
alianças de casamento são o sinal do pacto formado pelo casal.
Quando o marido deixa de usar a aliança, muitos já começam a
fofocar se o casamento está ou não em crise. Quando compramos
uma casa, queremos uma prova concreta e visível da transação: a
escritura do imóvel. A vitória em uma competição esportiva é
concretizada na entrega das medalhas e troféus.
O mesmo acontecia nos tempos bíblicos. O sábado na criação,
o arco-íris nos dias de Noé, o Tabernáculo, as vestimentas
sacerdotais e até as borlas nos cantos das roupas comuns dos
israelitas nos dias de Moisés, tudo isso são sinais de alianças
celebradas entre Deus e os homens. No Novo Testamento, o
Batismo e a Santa Ceia são os sinais da Nova Aliança. E, em
Gênesis 17, a circuncisão é o sinal da aliança abraâmica. A
importância desses símbolos é explicada por Robertson:

A presença dos sinais em muitos dos pactos bíblicos também enfatiza que
as alianças divinas unem as pessoas. O símbolo do arco-íris, o selo da
circuncisão, o sinal do sábado, são todos sinais pactuais que reforçam o
caráter vinculativo da aliança. [...] Assim como o noivo e a noiva trocam os
anéis como uma ‘prova de amor’ de sua ‘constante fidelidade e
permanente amor’, os sinais da aliança simbolizam a permanência do
vínculo entre Deus e o seu povo.8

A Confissão de Fé de Westminster chama esses sinais de


sacramentos:

Os sacramentos são santos sinais e selos do pacto da graça,


imediatamente instituídos por Deus para representar Cristo e seus
benefícios, e confirmar o nosso interesse nele, bem como para fazer uma
diferença visível entre os que pertencem à Igreja e o restante do mundo, e
solenemente obrigá-los ao serviço de Deus em Cristo, segundo a sua
Palavra.9

Atualmente, as sociedades ocidentais parecem não valorizar mais


os símbolos. Muitos casais não usam mais alianças, porque “o
nosso amor não precisa desse sinal”. De modo análogo, há vários
crentes que se recusam a serem batizados porque o que importa é
a fé, não o símbolo. Mas, se símbolos não importassem, não
haveria importância em trocar o Cruzeiro do Sul pelo brasão da
República nos passaportes brasileiros. Por que essa medida foi
tomada no início do governo Bolsonaro, em 2019? Para sinalizar
que o Brasil (o brasão) era mais importante que o Mercosul. Nos
Estados Unidos, o jogador de futebol americano Colin Kaepernick
ficou famoso (e perdeu o emprego) por se ajoelhar enquanto era
tocado o hino dos Estados Unidos antes do início das partidas.
Símbolos importam, especialmente quando são instituídos por
Deus. Eles não são opcionais: são mandamentos. Rejeitar o
símbolo é rejeitar o pacto feito com o Senhor. Por isso, logo após
instituir a circuncisão, o Senhor estabelece: “O incircunciso, que não
for circuncidado na carne do prepúcio, essa vida será eliminada do
seu povo; quebrou a minha aliança” (Gn 17.14).
Voltando a Gênesis 17, não é à toa que a mudança do nome é
acompanhada pela instituição do sinal da circuncisão. Ao receber o
sinal, confirma-se a mudança de identidade. Por isso, quando um
estrangeiro convertia-se ao judaísmo, ele deveria receber o sinal da
circuncisão, assim como um convertido ao cristianismo recebe o
sinal do batismo. Aquele, porém, que não tem o sinal, esse está
excluído de outros benefícios da aliança com Deus, como a
participação na Páscoa: “Porém, se algum estrangeiro se hospedar
contigo e quiser celebrar a Páscoa do SENHOR, seja-lhe
circuncidado todo macho; e, então, se chegará, e a observará, e
será como o natural da terra; mas nenhum incircunciso comerá dela”
(Êx 12.48).
Os limites dos sinais
Rejeitar o sinal ordenado por Deus é um pecado, porque é a
rejeição simbólica do próprio Senhor. Mas isso não significa que o
recebimento do sinal é, por si só, a garantia de que o pacto será
observado. O Antigo Testamento está repleto de exemplos de
circuncisos que se entregaram à idolatria e preferiram sacrificar
seus filhos a Moloque, divindade adorada pelos moabitas, do que
servir ao Senhor. Não à toa há vários versículos, já nos dias de
Moisés, advertiam que a verdadeira circuncisão não era a da carne,
e sim a do coração:

Circuncidai, pois, o vosso coração e não mais endureçais a vossa cerviz.


(Dt 10.16)

O SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua


descendência, para amares o SENHOR, teu Deus, de todo o coração e de
toda a tua alma, para que vivas. (Dt 30.6)
Também os profetas faziam essa mesma advertência:
Circuncidai-vos para o SENHOR, circuncidai o vosso coração, ó homens
de Judá e moradores de Jerusalém, para que o meu furor não saia como
fogo e arda, e não haja quem o apague, por causa da malícia das vossas
obras. (Jr 4.4)

Não há novidade alguma no Novo Testamento quanto ao fato de


que a circuncisão, por si só, não salva ninguém. Isso pode ser dito
de qualquer sinal. Uma aliança no dedo não impede nenhum
adúltero de pular a cerca. Quando Paulo fala em Romanos 2 sobre
a verdadeira circuncisão, ele apenas retoma um ensino do próprio
Antigo Testamento:

Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a


que é somente na carne. Porém, judeu é aquele que o é interiormente, e
circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo
louvor não procede dos homens, mas de Deus. (Rm 2.28-29)

Com o batismo não é diferente! Uma das críticas feitas pelos


credobatistas contra os pedobatistas é a de que o sinal da Nova
Aliança poderia ser aplicado, indevidamente, a pessoas que não
seriam salvas. Sim, isso pode acontecer, até mesmo quando
batizamos um adulto. Em 2019, pelo menos dois casos de apostasia
abalaram o mundo evangélico: de um pastor reformado que
escreveu vários best-sellers cristãos e de um ex-ministro de louvor
de uma igreja conhecida no mundo inteiro pelos seus sucessos
musicais. O credobatismo não garante coisa alguma porque,
independentemente da idade, a aplicação do sinal não é garantia de
salvação.
E aqui a origem da palavra “sacramento” pode ser útil para
entender essa diferença. Originalmente, a palavra latina
sacramentum significava “um voto de obediência militar ao
comandante”.10 O soldado, ao fazer o juramento, assumia um
compromisso. Se ele seria honrado ou não, apenas o calor da
batalha poderia responder. Da mesma forma, o pai judeu, ao
circuncidar seu filho, ou o adulto cristão, ao receber o batismo, estão
assumindo compromissos diante de Deus. Se ele será honrado ou
não, apenas o tempo dirá.
A diferença é que, na circuncisão, o pai é quem assume o
compromisso pelos filhos. Isso ocorre por ordem divina, logo, Deus
aceita que o pai atue como cabeça e representante daqueles que
estão sob a sua responsabilidade. Como já vimos neste livro, a
salvação é toda explicada por esse mecanismo de representação:
Adão agiu como nosso representante na hora de pecar; Jesus é o
nosso representante na hora da salvação. Nos dias de hoje, goste-
se ou não, o presidente da República ou o governador de um
Estado assume compromissos por todos os que estão debaixo de
sua autoridade. O sinal não é ilegítimo apenas porque foi feito por
outra pessoa. Basta apenas que essa pessoa tenha legitimidade
para nos representar diante de Deus. Desse ponto específico, falarei
mais adiante.
Os benefícios dos sinais
Se, por um lado, ser circuncidado ou batizado não garante a
salvação de ninguém, por outro, receber o sinal da aliança com fé e
obediência é algo que traz bênçãos reais e significativas ao fiel.
Essa é uma das diferenças da visão reformada sobre os
sacramentos, quando comparada à visão sustentada pelos batistas.
Segundo a Confissão de Fé de Westminster:

A graça revelada nos sacramentos, ou por meio deles, quando


devidamente usados, não é conferida por qualquer poder neles existente;
nem a eficácia de um sacramento depende da piedade ou intenção de
quem o administra, mas da obra do Espírito e da palavra da instituição, a
qual, juntamente com o preceito que autoriza o uso dele, contém uma
promessa de benefício aos que dignamente o recebem.11

Que benefício é esse? O de ter a fé confirmada pela obediência e


fortalecida pela ação do Espírito Santo. João Calvino explica isso
muito bem, usando a luz do Sol e a voz humana como analogias:

Portanto, desejo que os leitores estejam avisados de que eu atribuo aos


sacramentos o ofício de confirmar e aumentar a fé, não porque eu
considere que eles tenham em si a virtude necessária e perpétua para
fazerem isso, mas porque foram instituídos por Deus para essa finalidade.
De resto, eles produzem eficazmente o esperado efeito quando o Mestre
interno, instruidor do espírito, lhes acrescenta a sua virtude, único poder
capaz de penetrar o coração, sensibilizar nossos afetos e possibilitar a
entrada dos sacramentos em nosso ser interior. Se esta ação do Espírito
de Deus faltar, os sacramentos não poderão oferecer ao nosso espírito
mais que aquilo que a luz do Sol pode oferecer aos cegos, nem mais que
o que uma voz altissonante pode dar a ouvidos surdos.12

Embora não exista qualquer afirmação explícita do Novo


Testamento quanto a este fato, ele pode ser induzido de alguns
textos bíblicos. Quando João Batista batizava, muitos iam até ele
para confessarem seus pecados e receberem o batismo (Mc 1.5).
João enfatizava que o arrependimento deveria ser verdadeiro (Lc
3.10-14), mas indicou que o seu batismo com água apontava para
um batismo maior, o do Espírito Santo, que seria realizado por
Jesus (Lc 3.15-17). Curiosamente, anos depois, Paulo encontrou,
em Éfeso, discípulos de João que ainda não conheciam o Espírito
Santo. Paulo os rebatizou (um sinal de que o batismo de João não é
normativo para os nossos dias, já que precisou ser refeito) em nome
do Senhor Jesus. Quando Paulo impôs as mãos sobre esses
discípulos, o Espírito Santo veio sobre eles (At 19.1-7). A realidade
maior foi materializada quando o sinal foi ministrado da maneira
correta.
O próprio Paulo, quando descrevia em Jerusalém a forma
como ele foi convertido, recordou desta maneira as palavras de
Ananias, o homem enviado por Deus para curá-lo de sua cegueira:
“E agora, por que te demoras? Levanta-te, recebe o batismo e lava
os teus pecados, invocando o nome dele” (At 22.16). No caso de
Paulo, o batismo e a conversão ocorreram praticamente ao mesmo
tempo, e a fala de Ananias sugere que Paulo seria abençoado ao
receber o sacramento batismal.
Há também uma maneira negativa de mostrar que os
sacramentos não são apenas símbolos, mas que há consequências
espirituais para quem deles participa. Na primeira carta aos
coríntios, Paulo corrige vários problemas que aconteciam durante o
culto. Um deles era na ministração da Ceia, o segundo sacramento
da Nova Aliança. Em Corinto, alguns irmãos chegavam a ficar
bêbados com o vinho da Ceia, enquanto outros não tinham nenhum
pão para comer ou vinho para beber. Paulo então declara que há
pessoas sendo mortas na Igreja, porque o Senhor os disciplinava
por estarem participando erroneamente do sacramento:

Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e, assim, coma do pão, e beba


do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe
juízo para si. Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes e
não poucos que dormem. (1Co 11.28-30)

Não há neutralidade quando se trata dos sinais da aliança. Se os


rejeitamos, estamos pecando, pois recusamos aquilo que o Senhor
nos ordenou fazer. Se os recebemos da maneira correta, então
somos abençoados. Mas, se os recebemos de modo inapropriado,
estamos atraindo o juízo de Deus. Trazendo para o batismo, e mais
especificamente para o batismo infantil, se o administramos da
maneira correta, há bênçãos. Por outro lado, se não o
administramos, ou se o fazemos de modo incorreto, também
atraímos condenação.
V. A nova circuncisão
Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no
despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo, tendo
sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente
fostes ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou
dentre os mortos. (Colossenses 2.11-12)

Afinal, somos pessoas diferentes quando temos trinta anos de idade


do que quando tínhamos dezoito? Curiosamente, conheço vários
amigos, alguns até pais de adolescentes, que me respondem que
não. Eles se sentem os mesmos, apesar de suas vidas terem
mudado tanto. Continuam jogando os mesmos jogos, lendo os
mesmos quadrinhos e gostando de fazer as mesmas coisas.
Infelizmente, alguns realmente parecem ter até o mesmo
desenvolvimento emocional de quando eram adolescentes...
Eu acho essa resposta curiosa porque eu não me sinto o
mesmo. Sim, há muita coisa que permanece. Quando eu tinha
dezoito anos, o Playstation era o meu sonho de consumo, e hoje eu
tenho meu Playstation 4. Mas mudanças fundamentais
aconteceram. E eu tenho certeza que isso é verdadeiro na vida de
muitos amigos que me dizem se sentir a mesma pessoa. A
diferença é que elas não dão muita consideração a isso. Mas é
inegável que, quando nos tornamos maduros, as coisas da
juventude também passam. E novas paixões surgem. Se você me
ouvir contando a minha esposa sobre como um aspirador Roomba é
excitante pra mim, você não iria acreditar. De certa maneira, o
Roomba é o novo Playstation pra mim.
Acontece a mesma coisa na História da Salvação. Assim como
algumas coisas são próprias da infância, outras da adolescência e
outras da maturidade, da mesma maneira certas leis e cerimônias
são próprias do Antigo Testamento e outras do Novo Testamento. O
sacrifício de animais foi substituído pelo sacrifício único e irrepetível
de Cristo Jesus. A proibição de comer carne de porco foi substituída
pela proibição de se envolver com as impurezas de caráter desse
mundo. E a circuncisão foi substituída pelo batismo.
A polêmica do século 1
Isso pode ser entendido quando lemos o livro de Atos e as cartas
paulinas. Desde o seu início, a igreja sempre teve uma grande
heresia a ser combatida. No caso do século 1, os hereges da vez
eram os judaizantes. Basicamente, eles eram judeus convertidos ao
cristianismo que exigiam a circuncisão dos gentios para serem
salvos. Em outras palavras, crer em Jesus não era suficiente. Além
da fé em Jesus, era preciso adotar certos costumes da Lei de
Moisés, como a circuncisão, a guarda dos dias santos e as leis
dietéticas dos judeus.
Dentro de um ponto de vista reformado, onde se considera que
o Pacto da Graça é um só e vai desde a Queda até os dias atuais,
inicialmente não parece absurda a ideia de se observar certas
coisas da lei. Contudo, essa é uma leitura superficial da fé
reformada e da unidade do Pacto da Graça. Como uma árvore é
radicalmente diferente da semente que lhe originou, assim acontece
com os diferentes estágios de revelação do Pacto da Graça. O
Antigo Testamento todo é uma preparação gradual e crescente para
as realidades do Novo Testamento.
Observe o exemplo do sacrifício de animais. No Antigo
Testamento, eles eram sacrificados para se obter o perdão dos
pecados. Mas isso era apenas pedagógico, uma parábola para os
tempos da Nova Aliança:

É isto uma parábola para a época presente; e, segundo esta, se oferecem


tanto dons como sacrifícios, embora estes, no tocante à consciência,
sejam ineficazes para aperfeiçoar aquele que presta culto, os quais não
passam de ordenanças da carne, baseadas somente em comidas, e
bebidas, e diversas abluções, impostas até ao tempo oportuno de reforma.
(Hb 9.9-10)

Tudo isso mudou quando Jesus veio ao mundo e fez o verdadeiro


sacrifício, que realmente nos purifica de todo pecado:

Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados,
mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer
dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros,
mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por
todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de
touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os
santificam, quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo,
que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus,
purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus
vivo! (Hb 9.11-14)

Assim como Cristo tornou obsoletos os sacrifícios de animais, ele


também tornou a circuncisão desnecessária. Em Atos 15.1, um
grupo de cristãos judeus foi até a igreja de Antioquia, de Paulo e
Barnabé. Lá eles ensinavam o seguinte: “Se não vos circuncidardes
segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos”. Paulo e
Barnabé foram até Jerusalém para levar a questão aos demais
apóstolos. Contudo, também lá havia fariseus que diziam: “É
necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de
Moisés” (At 15.5). A polêmica estava em todo lugar.
Os apóstolos e presbíteros fizeram então o primeiro concílio da
história da igreja, o Concílio de Jerusalém. As discussões e debates
estão relatados em Atos 15. Uma vez encerradas as deliberações, o
Concílio tomou a seguinte decisão:

Visto sabermos que alguns que saíram de entre nós, sem nenhuma
autorização, vos têm perturbado com palavras, transtornando a vossa
alma, pareceu-nos bem, chegados a pleno acordo, eleger alguns homens
e enviá-los a vós outros com os nossos amados Barnabé e Paulo, homens
que têm exposto a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo.
Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais pessoalmente vos dirão
também estas coisas. Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não
vos impor maior encargo além destas coisas essenciais: que vos
abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da
carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas
fareis bem se vos guardardes. Saúde. (At 15.23-29)

Em outras palavras, a circuncisão não era mais obrigatória. O tempo


dela passou. Mas, assim como os sacrifícios de animais foram
substituídos pelo sacrifício de Jesus, um outro sinal da aliança
substituiria a circuncisão.
A nova circuncisão
A melhor indicação de que há um substituto da circuncisão é a
passagem que abre este capítulo. Em Colossenses 2.11, Paulo fala
da “circuncisão de Cristo”. Vejamos o texto na edição Almeida
Revista e Atualizada:

Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no


despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo, tendo
sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente
fostes ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou
dentre os mortos. (Cl 2.11-12)

O Novo Testamento diz que fomos circuncidados em Cristo. Essa


circuncisão não é física (não por intermédio de mãos), mas consiste
no “despojamento do corpo da carne”. Isso faz sentido, porque a
circuncisão é a remoção do prepúcio do membro viril por meio de
uma cisão circular. É, literalmente, a remoção de um pedaço de
carne, então é apropriado que a circuncisão espiritual signifique o
despojar do corpo da carne, isto é, a remoção da velha natureza
pecaminosa. Até aqui há consenso. O problema é o versículo 12.
Para os pedobatistas, o versículo 12 afirma que essa
circuncisão de Cristo acontece quando somos batizados. No
batismo, simbolicamente, somos sepultados com Jesus, o que é o
enterro de nossa velha natureza. Veja como o mesmo texto é
traduzido na Nova Versão Internacional (NVI):

Nele também vocês foram circuncidados, não com uma circuncisão feita
por mãos humanas, mas com a circuncisão feita por Cristo, que é o
despojar do corpo da carne. Isso aconteceu quando vocês foram
sepultados com ele no batismo, e com ele foram ressuscitados
mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos.

Por que os tradutores da NVI optaram por essa construção frasal? A


Edição Almeida Revista e Atualizada (ARA) segue de modo mais
literal o fraseado original do grego, onde tudo é dito de um fôlego só.
Contudo, o que o original mostra mais claramente é que o batismo é
um mix tanto do sepultamento como da ressurreição. Na verdade, o
batismo simboliza todo o processo de salvação, indo da crucificação
até a ressurreição, como mostra Romanos 6:3-4:

Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo
Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na
morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os
mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de
vida.

Juntando isso ao que diz o versículo 13, fica ainda mais clara a
abrangência de significados do batismo.

Colossenses 2.11-15
ARA NVI
no qual também fostes Nele também vocês foram
circuncidados com a circuncisão circuncidados, não com uma
não feita por mãos no despojar circuncisão feita por mãos
do corpo da carne, a saber, a humanas, mas com a circuncisão
circuncisão de Cristo; tendo feita por Cristo, que é o despojar
sido sepultados com ele no do corpo da carne. Isso
batismo, no qual também fostes aconteceu quando vocês foram
ressuscitados pela fé no poder sepultados com ele no batismo, e
de Deus, que o ressuscitou com ele foram ressuscitados
dentre os mortos; e a vós, mediante a fé no poder de Deus
quando estáveis mortos nos que o ressuscitou dentre os
vossos delitos e na mortos. Quando vocês estavam
incircuncisão da vossa carne, mortos em pecados e na
vos vivificou juntamente com incircuncisão da sua carne,
ele, perdoando-nos todos os Deus os vivificou juntamente com
delitos; e havendo riscado o Cristo. Ele nos perdoou todas as
escrito de dívida que havia transgressões, e cancelou a
contra nós nas suas escrita de dívida, que consistia
ordenanças, o qual nos era em ordenanças, e que nos era
contrário, removeu-o do meio contrária. Ele a removeu,
de nós, cravando-o na cruz; e, pregando-a na cruz, e, tendo
tendo despojado os principados despojado os poderes e as
e potestades, os exibiu autoridades, fez deles um
publicamente e deles triunfou espetáculo público, triunfando
na mesma cruz. sobre eles na cruz.

Reflita comigo. A incircuncisão da nossa carne é equivalente ao


estar mortos nos nossos delitos ou pecados. É o estado natural do
homem sem conhecer a Cristo. Ora, se a incircuncisão significa a
morte espiritual, é lógico pensar que, quando somos espiritualmente
circuncidados em Cristo, nós nos tornamos vivos. Não é lógico dizer
que a circuncisão é apenas um despojamento, como se esse
simples ato não tivesse consequência alguma. Se estamos nos
despojando de nossa natureza pecaminosa (a carne), então
estamos nos livrando do nosso velho eu e da própria morte
espiritual. E, se o batismo abrange a morte, o sepultamento e a
ressurreição, então a circuncisão de Cristo acontece durante o
batismo. Como afirma William Hendriksen: “Como descrição
adicional da circuncisão que os colossenses já haviam recebido, o
apóstolo prossegue: tendo sido sepultados com ele no vosso
batismo, no qual fostes também ressuscitados com ele”.13 Nas
palavras de João Calvino:

O certo é que, se a circuncisão fosse um sinal literal, também o batismo o


seria. Vê-se isso claramente no que o apóstolo Paulo diz em Colossenses
2, onde ele afirma que uma ordenança não é mais espiritual que a outra,
uma vez que em Cristo somos circuncidados, não segundo a circuncisão
feita com as mãos, quando fomos despojados de todo o pecado presente
em nossa carne, a qual é a circuncisão de Cristo. Logo após, para
esclarecer isso, ele diz ‘...tendo sido sepultados, juntamente com ele no
batismo’. Que outra coisa quer dizer essa passagem, senão que o
cumprimento do batismo é o cumprimento da circuncisão?14

O credobatista pode até tentar argumentar que uma coisa não é


idêntica a outra, mas é inegável que a circuncisão de Cristo
acontece no batismo. No mínimo, o batismo é um rito que abarca a
circuncisão e adiciona outras camadas de significado. Entretanto,
não dá pra negar que há uma relação entre os dois eventos.
E isso pode ser visto em outro texto. Em Romanos 4.11-12, a
Bíblia chama o sinal da circuncisão de selo da justiça da fé:
E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve
quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os que crêem,
embora não circuncidados, a fim de que lhes fosse imputada a justiça, e
pai da circuncisão, isto é, daqueles que não são apenas circuncisos, mas
também andam nas pisadas da fé que teve Abraão, nosso pai, antes de
ser circuncidado.

Curiosamente, aqueles que são salvos são selados com o Espírito


Santo:

Mas aquele que nos confirma convosco em Cristo, e nos ungiu, é Deus, o
qual também nos selou e nos deu como penhor o Espírito em nossos
corações. (2Co 1.21-22)
no qual também vós, tendo ouvido a palavra da verdade, o evangelho da
vossa salvação, e tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa (Ef 1.13)
E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual fostes selados para o
dia da redenção. (Ef 4.30)

O batismo físico (nas águas) é tão eficaz como a circuncisão física


(na carne). Ambos podem falhar. Pessoas podem receber o sinal e
nunca terem crido, de verdade, em Cristo Jesus. A circuncisão física
apontava para uma circuncisão maior, a do coração, que é aquela
realizada por Jesus em Colossenses 2.11. Já o batismo nas águas
também aponta para um batismo maior, o do Espírito Santo. E se
temos dúvidas de qual é o batismo que realmente vale, a Bíblia
mesma afirma que há “um só batismo” (Ef 4.5). O selamento do
Espírito Santo acontece no momento em que ele é recebido, a
saber, no momento em que somos batizados no Espírito Santo. E
todos os que são verdadeiramente salvos têm esse batismo, como
está escrito: “Pois em um só Espírito fomos todos nós batizados em
um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos quer livres; e
a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (1Co 12.13).
Se a circuncisão é um selo dado por Deus no Antigo
Testamento aos justificados pela fé, e o batismo aponta para o selo
do Espírito Santo, então temos aqui mais um elemento que inter-
relaciona os dois sinais:

Em terceiro lugar, a interconexão entre o selo da circuncisão e o selo do


Espírito Santo provê a base formal pela qual os correspondentes ritos de
purificação da antiga e da nova aliança se relacionam. O rito de
purificação de uma aliança é substituído pelo rito de purificação da outra.
Essa relação entre circuncisão e batismo encontra um desenvolvimento
específico em Colossenses 2.11, 12.15

Há ainda outras semelhanças entre circuncisão e batismo. Ambos


são ritos de iniciação à fé, de inclusão do fiel em uma aliança com
Deus. Ambos são sinais que tem um significado de limpeza e
purificação, no caso do batismo pelo lavar e da circuncisão pela
remoção da carne. A circuncisão aponta para a cruz, afinal, sangue
é derramado durante o processo, assim como o batismo também
simboliza a morte de Cristo. A circuncisão é um sinal aplicado sobre
o membro viril, dando a entender que toda a descendência do
homem já nasceria condicionada pela aliança feita com Deus.
Seguindo a lógica, o batismo deveria refletir o mesmo:

A razão pela qual o sinal da aliança deve ser aplicado aos infantes antes
que exista qualquer fé da parte deles não é decorrente de uma visão
inferior do batismo ou uma visão mais fraca da necessidade da fé
salvadora. É porque a promessa da aliança de Deus da justificação pela fé
para todos os que crêem sempre foi também para seus descendentes.
Assim como Deus fez o pacto com Abraão e a sua descendência, também
é importante observar que, quando Deus promete circuncidar os corações
de seu povo, Ele também promete circuncidar ‘o coração de seus
descendentes’ (Dt 30.6; cf. Ez 37.25, Is 65.23). Essa é a razão pela qual o
sinal da Nova Aliança em Cristo também deve ser aplicado aos filhos dos
crentes.16

Esse é um aspecto que não pode ser menosprezado. A circuncisão


era um sinal aplicado em um órgão sexual e reprodutor, dado como
garantia de que Deus daria descendência a Abraão. É um sinal que
grita: “Descendentes!”. Se o batismo é a nova circuncisão, como
desvincular esse aspecto familiar? Desde o princípio, Deus sempre
incluiu os filhos na aliança feita com seus pais. Se seguirmos a
posição credobatista, há uma ruptura nesse padrão, e as crianças
ficam de fora da aliança com o Senhor, até que elas peçam para ser
incluídas:

Pela determinação de Deus, as crianças participavam dos benefícios da


aliança e, portanto, recebiam a circuncisão como sinal e selo. Segundo a
Bíblia, a aliança é, evidentemente, um conceito orgânico, e sua realização
segue linhas orgânicas e históricas. Há um povo ou nação de Deus, um
conjunto orgânico tal que só pode constituir-se de famílias. Naturalmente,
esta idéia de nação é muito proeminente no Antigo Testamento, mas o
notável é que ela não desapareceu depois da nação de Israel ter servido
ao seu propósito. Ela foi espiritualizada e, assim, passou para o Novo
Testamento, de modo que o povo de Deus, no Novo Testamento, também
é apresentado como nação, Mt 21.43; Rm 9.25,26 (comp. Oséias 2.23);
2Co 6.16; Tt 2.14; 1Pe 2.9. Durante a antiga dispensação, as crianças
eram consideradas parte integrante de Israel como o povo de Deus.
Estavam presentes quando era renovada a aliança, Dt 29.10-13; Js 8.35;
2 Cr 20.13, tinham um lugar na congregação de Israel e, portanto,
estavam presentes em suas assembleias religiosas, 2Cr 20.13; Jl 2.16.
Em vista de promessas ricas como as de Is 54.13; Jr 21.34; Jl 2.28,
dificilmente esperaríamos que os privilégios de tais crianças fossem
reduzidos na nova dispensação, e, certamente, não procuraríamos sua
exclusão de todo e qualquer lugar na igreja. Jesus e os apóstolos não as
excluíram, Mt 19.14; At 2.39; 1Co 7.14. A referida exclusão por certo
exigiria uma declaração muito explícita a respeito.17
E as diferenças?
Apesar de tantas semelhanças, é claro que o pedobatista não ignora
as diferenças entre a circuncisão e o batismo. Além das diferenças
ritualísticas em si, indo da remoção sanguinolenta para a lavagem
espiritual, a mais marcante é a de que a circuncisão era apenas
para os homens, e o batismo inclui as mulheres. A circuncisão é
sombra, e aponta para Cristo com uma precisão muito menor que o
batismo. A circuncisão não é exigida no Novo Testamento, mas o
batismo foi ordenado por Jesus Cristo, e é obrigatório (a não ser que
circunstâncias extremas o impeçam).
Mas negar a relação com base nessas diferenças é a mesma
coisa que negar a relação entre a lagarta e a borboleta, porque a
última voa e tem asas, enquanto a outra não! Ou entre a larva e a
abelha. Sim, esteticamente, parecem diferentes, mas uma análise
mais cuidadosa mostra que a borboleta veio da lagarta e a abelha
veio da larva. Da mesma maneira, as muitas similaridades entre
batismo e circuncisão, reforçadas pelas vinculações feitas pelo
próprio texto bíblico.
Basicamente, a argumentação necessária para afirmar o
batismo infantil já está dada. Uma vez entendido o que é uma
aliança e o forte caráter incondicional das promessas feitas a
Abraão, e estabelecida a unidade entre as diferentes alianças
contidas no Pacto da Graça, basta mostrar que o batismo é o
substituto da circuncisão para afirmar o pedobatismo. Nos próximos
capítulos, pretendo elaborar alguns pontos que ainda podem ser
objeto de dúvidas e responder a algumas objeções.
VI. Pais e filhos
Por isso, disse o SENHOR a Salomão: Visto que assim
procedeste e não guardaste a minha aliança, nem os meus
estatutos que te mandei, tirarei de ti este reino e o darei a teu
servo. Contudo, não o farei nos teus dias, por amor de Davi, teu
pai; da mão de teu filho o tirarei. Todavia, não tirarei o reino
todo; darei uma tribo a teu filho, por amor de Davi, meu servo, e
por amor de Jerusalém, que escolhi. (1Reis 11.11-13)
É ele quem dá grandes vitórias ao seu rei e usa de benignidade
para com o seu ungido, com Davi e sua posteridade, para
sempre. (Salmo 18.50)

O que é uma família? Antigamente, isso não era motivo para


polêmicas. A família tradicional era formada por um pai homem,
uma mãe mulher e filhos. Às vezes o pai morria, ou algum divórcio
acontecia, mas o conceito comum de família ainda permanecia o
mesmo. Hoje, há uma guerra sobre o que é uma família. Ela pode
ter múltiplos pais e mães, frutos de diferentes casamentos. Os pais
podem ser homens ou mulheres, e o mesmo pode ser dito das
mães. Pode ser que a família tenha apenas mães, no plural, ou que
os filhos sejam substituídos por um cachorro. E, lastimavelmente, é
cada vez maior o número de famílias em que apenas uma mãe tem
que criar os seus filhos.
Apesar de tanta “modernidade”, uma família tradicional ainda
continua sendo importante para o desenvolvimento individual de
crianças. De acordo com o ex-presidente dos EUA Barack Obama,
filhos que crescem apenas com as mães, sem os seus pais, têm
cinco vezes mais chances de viverem na pobreza e cometerem
crimes, nove vezes mais chances de largar a escola e vinte vezes
maior probabilidade de serem presas.18 Em 1960, apenas 5% das
crianças americanas não tinham pais casados com suas mães. Em
2015, o número chegou a 41%.
A sociedade contemporânea não gosta de admitir isso, mas a
família de onde nascemos tem um papel enorme no nosso sucesso.
A grande verdade é que nenhum de nós chega ao mundo fora de
um contexto. E, se alguém nasce em uma casa onde pai e mãe
estão casados, servem a Deus e preparam um patrimônio para
cuidar de seus filhos, essa pessoa tem muito mais vantagens do
que alguém que nasceu em um lar onde o pai largou a mãe.
Goste-se ou não, isso também é verdadeiro no mundo
espiritual. Os pais certos podem livrar os filhos errados de muitas
encrencas na vida.
Reis rebeldes
Ao meu ver, nenhum exemplo disso é mais marcante do que a
dinastia de Davi. Davi reinou sobre Israel entre 1010 a.C. e 970 a.C.
aproximadamente . Seus filhos reinaram sobre a tribo de Judá até a
queda de Jerusalém, em 586 a.C. Em qualquer época do mundo,
uma dinastia durar tanto tempo é um feito difícil de ser igualado.
Mas, será que tanta longevidade aconteceu porque a família de Davi
era extraordinária?
Quem leu os livros de Reis e de Crônicas sabe que nada está
mais longe da verdade. Sim, houve alguns reis excepcionalmente
bons, como Ezequias e Josias. Mas a quantidade de reis que
desobedeceram ao Senhor, entregaram-se à idolatria e trouxeram
ruína para Judá foi maior. E os desvios já começaram com Salomão,
filho de Davi.
Salomão começou muito bem o seu reinado. No famoso
episódio de 1Reis 3, Deus pergunta a Salomão o que ele quer
receber. O rei pede por sabedoria, e Deus resolve dar a ele
sabedoria, riquezas e glória. Ele então se torna um monarca
poderoso, constrói o Templo de Jerusalém, palácios e acumula
riquezas. Infelizmente, ele também acumulou esposas, e muitas
delas eram estrangeiras que adoravam outros deuses:

Sendo já velho, suas mulheres lhe perverteram o coração


para seguir outros deuses; e o seu coração não era de todo
fiel para com o SENHOR, seu Deus, como fora o de Davi,
seu pai. Salomão seguiu a Astarote, deusa dos sidônios, e
a Milcom, abominação dos amonitas. Assim, fez Salomão o
que era mau perante o SENHOR e não perseverou em
seguir ao SENHOR, como Davi, seu pai. (1 Rs 11.4-6)

Salomão foi repreendido pelo seu pecado, mas não se arrependeu.


Então, o Senhor resolveu discipliná-lo. Das doze tribos do reino de
Israel, Deus tiraria dez e as daria a outro rei. Apenas as tribos de
Judá e Benjamim ficariam com o filho de Salomão, afinal. E por que
o rei idólatra ainda teria duas tribos? A resposta é “por amor de
Davi, meu servo”. Por causa da fidelidade do pai, Salomão
continuaria rei. A mesma expressão é repetida outras vezes:

No décimo oitavo ano do rei Jeroboão, filho de Nebate, Abias


começou a reinar sobre Judá. Três anos reinou em Jerusalém.
Era o nome de sua mãe Maaca, filha de Absalão. Andou em
todos os pecados que seu pai havia cometido antes dele; e seu
coração não foi perfeito para com o S , seu Deus, como o
coração de Davi, seu pai. Mas, por amor de Davi, o S ,
seu Deus, lhe deu uma lâmpada em Jerusalém, levantando a
seu filho depois dele e dando estabilidade a Jerusalém. (1 Rs
15.1-4)
Ora, no ano quinto de Jorão, filho de Acabe, rei de Israel,
Jeorão, filho de Jeosafá, rei de Judá, começou a reinar. Tinha
trinta e dois anos quando começou a reinar, e reinou oito anos
em Jerusalém. E andou no caminho dos reis de Israel, como
também fizeram os da casa de Acabe, porque tinha por mulher
a filha de Acabe; e fez o que era mau aos olhos do Senhor.
Todavia o Senhor não quis destruir a Judá, por causa de Davi,
seu servo, porquanto lhe havia prometido que lhe daria uma
lâmpada, a ele e a seus filhos, para sempre. (2 Rs 8.16-19)

Vez após vez, Davi teve descendentes que não andaram em seus
caminhos e faziam o que era mau aos olhos do Senhor. Eles
rejeitaram o Deus de seus pais e seguiram a ídolos. Por essa razão,
acabaram sendo castigados por Deus e, com certeza, vários deles
estão no inferno agora. Contudo, o Senhor nunca descarregou
completamente a sua ira sobre eles. Por quê? Porque eles eram
descendentes de Davi.
Herança espiritual
Até os anos 1960, pais normais sempre desejavam acumular algum
patrimônio para legar a seus filhos. Ter uma herança para passar
adiante não era motivo de vergonha, e sim de orgulho. Bons pais
conseguiam deixar algo para os seus filhos. O que não nos passa
pela cabeça é que existem outras heranças, além da material, que
podemos passar aos nossos descendentes. Uma delas é a herança
espiritual.
Essa herança pode ser vista quando lemos 1Coríntios 7.14:
“Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da esposa, e a
esposa incrédula é santificada no convívio do marido crente. Doutra
sorte, os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos”.
No capítulo 7 de 1Coríntios, Paulo está tratando da questão do
divórcio dentro da Igreja. Ele explica que, no caso de casais em que
apenas um dos cônjuges é cristão, a parte cristã não deve procurar
o divórcio. Entre os motivos apresentados, Paulo fala que o cônjuge
incrédulo é, de alguma maneira, santificado pelo convívio com o
cônjuge cristão. Uma consequência é que os filhos desse casal
também são santos.
Os credobatistas contra-argumentam afirmando que o versículo
implicaria também na possibilidade dos cônjuges incrédulos serem
batizados. Mas há outras questões a serem consideradas. Primeiro,
o texto efetivamente ensina que até mesmo o cônjuge incrédulo é
santificado, mas a Bíblia não iguala santificação a salvação. Em
segundo lugar, o texto mostra uma diferença real entre o filho de um
cristão (santo) e o de pagãos (impuro). Por fim, o cônjuge, ao
contrário do filho, já é adulto e pode manifestar a sua vontade. Ele
não é igual à criança. Embora o cônjuge colha algum benefício
espiritual de seu casamento, ele, espontaneamente, rejeita a graça
oferecida, ao contrário dos filhos, que ainda não podem exercer a
sua fé, e, como em tudo no início da vida, são dependentes de seus
pais. Os credobatistas não enxergam esta diferença.
No que consiste essa santidade dos filhos? Ela se refere ao
lugar que estes filhos ocupam na relação pactual entre Deus e os
homens. A passagem visa resolver uma dificuldade prática, sobre
qual a posição espiritual dos filhos quando somente um dos pais era
cristão. Elas seriam santas ou não? Se as crianças estivessem
excluídas da igreja por não poderem exercer a sua fé, seria
irrelevante tratar desta questão, pois, obviamente, elas estariam na
mesma situação dos filhos dos descrentes.19
Essa diferença pode ser vista na insistência e na misericórdia
divinas, mesmo diante dos erros dos descendentes de seus filhos.
Citando um famoso versículo, “Saberás, pois, que o SENHOR, teu
Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até
mil gerações aos que o amam e cumprem os seus mandamentos”
(Dt 7.9). Mas o mais interessante é ler esse versículo dentro do seu
contexto imediato. Moisés está lembrando ao povo de Israel que
Deus os libertou da escravidão no Egito, porque eles eram filhos de
Abraão, Isaque e Jacó e herdeiros das promessas feitas a eles:
“Não vos teve o SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis
mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos
os povos, mas porque o SENHOR vos amava e, para guardar o
juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão
poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó,
rei do Egito” (Dt 7.7-8).
Na verdade, assim como os filhos de Davi escaparam da
destruição por causa da piedade de seu pai, toda a nação de Israel
escapou do mesmo destino por causa do seu parentesco com
Abraão, Isaque e Jacó. Em Êxodo 32, enquanto Moisés recebia a
Lei no Monte Horebe, o povo de Israel fazia um bezerro de ouro e o
adorava. Deus decidiu então destruir a nação israelita. Por que ele
não o fez? Porque Moisés, atuando como uma sombra de Cristo
Jesus, intercedeu pelo povo, lembrando da aliança feita com
Abraão, Isaque e Jacó: “Lembra-te de Abraão, de Isaque e de Israel,
teus servos, aos quais por ti mesmo tens jurado e lhes disseste:
Multiplicarei a vossa descendência como as estrelas do céu, e toda
esta terra de que tenho falado, dá-la-ei à vossa descendência, para
que a possuam por herança eternamente” (Ex 32.13).
A igreja ainda é beneficiária de todas essas promessas. O
Salmo 18.50 fala dos benefícios à posteridade de Davi. Jesus é o
Filho de Davi, mas também é o “Segundo Adão” e o nosso
representante pactual (Rm 5.12-21). Abraão é o pai espiritual de
todos os que crêem (Rm 4.11-12). Nós fazemos parte das mil
gerações que são depositárias da misericórdia divina.
Sei que isso pode parecer estranho, especialmente para
cristãos que estejam passando por momentos de profunda provação
ou de intensa disciplina, devido a pecados anteriormente cometidos.
Contudo, lembre-se que os filhos de Abraão foram escravos no
Egito por quatrocentos anos. Lembre-se também de tudo que o
próprio Jesus sofreu nesse mundo. Teria a misericórdia de Deus nos
abandonado? Certamente que não! Na verdade, mesmo quando
Deus derramou o pesado juízo da destruição de Jerusalém e do
exílio na Babilônia, no sexto século antes de Cristo, ainda ali Deus
foi misericordioso, preservando um remanescente (Is 1.9; Rm 9.29).
Quando o Senhor manda duras provas e disciplinas, ainda assim é
a misericórdia de Deus prometida aos filhos de Abraão que nos
alcança.
O poder da mãe que ora
Outra objeção que os credobatistas levantam contra o batismo
infantil é o fato de que a cerimônia acontece por iniciativa dos pais.
São eles que assumem um compromisso diante de Deus em nome
dos filhos. Bom, isso já acontecia na circuncisão, mas há uma
história que mostra isso de modo mais espetacular.
Em 1Samuel 1 e 2, lemos sobre Ana. Ela era uma das esposas
de Elcana, mas era estéril. Mesmo sendo a preferida de seu marido,
ela era provocada por Penina, a outra mulher de Elcana, pois
Penina tinha filhos enquanto Ana não os tinha. Isso causava uma
enorme tristeza na vida de Ana. Até que, um dia, ela resolveu fazer
um voto ao Senhor: “E fez um voto, dizendo: SENHOR dos
Exércitos, se benignamente atentares para a aflição da tua serva, e
de mim te lembrares, e da tua serva te não esqueceres, e lhe deres
um filho varão, ao SENHOR o darei por todos os dias da sua vida, e
sobre a sua cabeça não passará navalha” (1Sm 1.11).
Note: Ana fez o voto sozinha. Ela sequer consultou o seu
marido. Ela orou e assumiu, diante de Deus, um compromisso que
dizia respeito ao seu filho, o de que ele seria do Senhor “todos os
dias da sua vida”. Para nós, que vivemos no século 21, quando pais
querem que os filhos escolham até o seu gênero sexual, é chocante
ver uma mãe determinando o curso espiritual de toda a vida de seu
filho. Mais do que isso, o compromisso de não passar navalha na
cabeça era, na verdade, um voto especial de consagração ao
Senhor, o voto de nazireu. O que Deus achou dessa ousadia de
Ana? Ele achou ótimo, pois deu a ela Samuel e ainda lhe
acrescentou três filhos e duas filhas (1Sm 2.21).
A oração de Ana e a vida do profeta Samuel são uma resposta
demolidora para todos os que argumentam que o batismo infantil
não é válido, porque o compromisso foi assumido pelos pais. Ana foi
muito além de circuncidar. Ela fez um voto substancial, com
consequências reais, e que foi aceito por Deus. O poder e a
influência espiritual de uma única mãe (e, por tabela, de um pai)
sobre seus filhos é enorme. Eles têm como determinar o legado
espiritual que desejam que seja transmitido a seus filhos.
E aqui há mais um detalhe que chama a atenção. Samuel era
do Senhor desde o dia em que foi concebido, já que foi dado “todos
os dias de sua vida” e Deus aceitou a oração de Ana. A implicação é
que Samuel já era salvo no ventre de sua mãe. A doutrina
credobatista exige que uma certa idade seja atingida para que a
criança possa ter fé e receber o batismo. Mas, e se a criança nascer
com algum tipo de deficiência intelectual? E se ela morrer ainda no
ventre materno, ou na primeira infância? Os pedobatistas não se
atrevem a tentar descrever que condições devem existir para que a
fé surja ou para que Deus salve alguém. Basta que ele o queira, e
isso pode acontecer a qualquer tempo, até mesmo antes do
nascimento. Afinal, é possível crer em Jesus, reconhecê-lo e ser
cheio do Espírito Santo no ventre da mãe, como aconteceu com
João Batista:

Pois ele será grande diante do Senhor, não beberá vinho nem
bebida forte e será cheio do Espírito Santo, já do ventre
materno. (Lc 1.15)
Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu
no ventre; então, Isabel ficou possuída do Espírito Santo” (Lc
1.41).

Por que isso é possível? Em primeiro lugar, porque Deus é


soberano e não está preso a qualquer limitação humana. E, em
segundo lugar, porque o Senhor vê e recompensa os pais que
permanecem fiéis a ele. Assim como Isabel e Zacarias se
mantiveram fiéis mesmo na esterilidade, também Abraão e Sara
fizeram o mesmo, por exemplo. O Senhor olhou para a fé deles,
para a vida piedosa que viveram, e os recompensou com filhos cuja
salvação estava assegurada desde o início: Isaque no caso de
Abraão e Sara; João no de Zacarias e Isabel.
VII. A promessa
Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja
batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós
outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que
ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus,
chamar. (Atos 2.38-39)

Poucas épocas parecem tão mágicas quanto o início de um


casamento. Após uma longa espera, noivo e noiva finalmente
podem morar juntos, após uma apaixonada lua-de-mel. Aquecidos
pelo calor da paixão, acabam se adaptando um ao outro com mais
facilidade, devido ao encanto inicial. O primeiro ano acaba sendo o
mais fácil, e quando a paixão inicial acaba, aí começam os
problemas do casamento. Certo?
Espero que você esteja tendo uma crise de risos. Quem
trabalha com aconselhamento conjugal sabe que o início dos
casamentos é uma época difícil. No Brasil, em 2010, o número de
cônjuges que se divorciou antes do primeiro ano de casamento foi
de 1.708. Em 2014, o número chegou a 10 mil, um crescimento de
466,8%.20 Apenas no estado de São Paulo, 3% dos casamentos
sequer chegam ao primeiro aniversário. Todo início é crítico.
Começos são difíceis. Há ainda muitas incertezas e ajustes a
serem feitos. O começo da igreja não foi diferente. Após a ascensão
de Jesus aos céus, ele deixou onze apóstolos (que depois voltaram
a ser doze com a escolha de Matias – cf. At 1.26) e uma missão:
testemunhar sobre seu nome em Jerusalém, Judeia e Samaria, até
os confins da terra (Atos 1.8). Quando os gentios entraram na igreja
e foram rejeitados pelo judaísmo, foi preciso organizar uma nova
instituição. Foi preciso desenvolver um culto cristão, desvinculado
das sinagogas e do Templo. Surgiram novos ofícios, como os de
pastores e diáconos, enquanto outros desapareceram, como o de
sacerdote. Ao mesmo tempo, havia uma série de perguntas
teológicas sobre o que ainda deveria ser guardado da Lei de Moisés
e do Antigo Testamento, ao passo que novas Escrituras eram
produzidas pelo Espírito Santo para instruir a nascente igreja.
Por esse motivo, não deveríamos ficar surpresos de o Novo
Testamento não responder, em detalhes, a todas as perguntas que
temos. O Novo Testamento dá todos os princípios gerais e
necessários para guiar a igreja, mas não dá um mapa
pormenorizado. Em se tratando do batismo, o livro de Atos e as
cartas apostólicas registram com detalhes apenas os batismos de
convertidos ao cristianismo e de famílias. Não há nenhuma menção
detalhada descrevendo o batismo de filhos de cristãos, seja em
favor do pedobatismo, seja em favor do credobatismo. Não há
relatos se eles eram batizados por imersão, aspersão ou efusão, se
eles eram batizados na infância ou se havia alguma idade mínima
para o batismo, se o filho pedia o batismo após ser convencido do
cristianismo, ou se o batismo acontecia quando solicitado pelos
pais. Por incrível que pareça, havia questões mais importantes
preocupando os apóstolos e as igrejas, que exigiam um
detalhamento maior.
Porém, como falei acima, há os batismos de famílias. E, uma
vez que o Novo Testamento não dá detalhes sobre a ministração do
batismo de filhos de cristãos em si, precisamos usar os princípios
gerais para entender como entendemos o batismo das famílias e a
possível aplicação do pedobatismo.
A estrutura de Atos
Como Atos é um livro histórico do Novo Testamento, ele certamente
tem algo a dizer sobre o batismo de crianças. Todavia, não se pode
esquecer que Atos é um livro de transições, especialmente entre as
antiga e nova alianças. O livro é uma continuação do Evangelho de
Lucas e é dedicado a Teófilo. Em seu Evangelho, Lucas relatou tudo
o que Jesus começou a fazer e a ensinar (Atos 1.1). Já no livro de
Atos, temos a continuação daquilo que Jesus Cristo continuou a
fazer no mundo, por intermédio do Espírito Santo, usando a Igreja.21
Quando Jesus dá as últimas instruções aos apóstolos, eles
perguntam sobre o tempo da restauração do reino de Israel. Os
apóstolos pensavam em uma restauração do reino físico de Israel.
Jesus responde que não cabia a eles saberem sobre os tempos
determinados pelo Pai (At 1.7), mas os comissiona a serem suas
testemunhas “em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até aos
confins da terra” (At 1.8). Para isso, eles receberiam o Espírito
Santo. Segundo Merida:

No verso 7, os discípulos demonstraram um interesse particular


e um desentendimento sobre a restauração de Israel. Jesus os
direciona para o caráter global do seu Reino e para a parte
deles nessa missão, quando ele os chama a serem
testemunhas. Os discípulos seriam muito limitados em seu
pensamento22.

Pode-se perceber que a compreensão dos apóstolos sobre a


verdadeira natureza da sua missão e do Reino de Deus vai
crescendo à medida que a narrativa de Atos se desenvolve. A
ordem de Jesus envolvia, claramente, a pregação do evangelho a
pessoas de todo o mundo. Pedro, porém, relutou em comer com um
gentio até que uma visão celestial o orientasse a fazê-lo, em Atos
10, quando ele vai à casa de Cornélio e prega a um gentio pela
primeira vez.
Isso tudo mostra como a visão inicial dos apóstolos era limitada
quando se tratava da inclusão dos gentios. Eles ainda trabalhavam
com o judaísmo em suas mentes e demoraram a compreender que
a inclusão dos gentios havia sido profetizada e era o cumprimento
das alianças anteriormente feitas entre Deus e Israel. Robert J. Cara
ensina que um dos propósitos secundários de Atos era “mostrar que
o cristianismo é uma continuação do Israel do Antigo Testamento,
contida dentro do plano redentivo-histórico de Deus”.23 E uma
evidência disso são os sermões pregados pelos apóstolos Pedro e
Paulo, repletos de citações do Antigo Testamento, mostrando que
Jesus não era uma ruptura, mas sim uma continuação da Lei e dos
Profetas:

Os crentes deveriam proclamar a pessoa e a obra do Cristo


ressurreto (Lc 24.44-49) como ensinada por Jesus e predita
pelo Antigo Testamento. Eles deveriam proclamar como Cristo
cumpriu a antiga profecia do esmagamento da cabeça da
serpente, Satanás, providenciando um meio para os pecadores
se reconciliarem com o Pai.24

A ideia de continuidade entre as alianças foi defendida até por


Tiago, considerado o líder do grupo mais judaico da Igreja
Apostólica. Em Atos 15.14-17, Tiago associou a inclusão dos
gentios ao texto de Amós 9.11-12 e à restauração do tabernáculo
caído de Davi, uma clara referência a Israel. Para Tiago, a
conversão dos gentios era o cumprimento da profecia de
restauração do trono de Davi, bem como a sua inclusão no reino
davídico, já que Jesus é o verdadeiro Filho de Davi e Rei de Israel.
Dessa maneira, a estrutura teológica de Atos concorda com
aquilo que já mencionamos nos capítulos anteriores e confirma a
unidade pactual entre o Antigo e o Novo Testamentos. A Nova
Aliança traz a expansão de Israel em Cristo Jesus e inclui desde
Jerusalém até os confins da terra.
A promessa é para seus filhos
Considerando todo esse contexto, vejamos o sermão de Pedro em
Atos 2. Ali, o Espírito Santo havia sido derramado sobre a igreja e
começava o ministério apostólico de testemunhar sobre Jesus em
Jerusalém. Era o Pentecostes, o momento em que Jesus batizou a
igreja com o Espírito Santo, marcando o nascimento da igreja do
Novo Testamento, em um sentido mais estrito.
Pedro começa explicando porque os apóstolos e outros
discípulos estavam falando as verdades de Deus em outras línguas,
e explica que aquele evento é o cumprimento de uma profecia de
Joel, que falava do derramamento (um claro indicativo bíblico de
que a aspersão é o método mais correto para o batismo, já que o
batismo do Espírito é um derramamento de cima para baixo) do
Espírito Santo sobre toda a carne (At 2.14-21). A seguir, Pedro
aponta para Jesus, dizendo que ele foi acreditado pelo Deus vivo
por meio de seus milagres, prodígios e sinais, mas terminou morto
pelos judeus. Entretanto, Jesus ressuscitou e é o verdadeiro Senhor
e Cristo (At 2.15-36).
Temos então uma reação por parte dos ouvintes. Com o
coração apertado, sendo convencidos pelo Espírito de seu pecado,
eles então perguntaram: “Que faremos, irmãos?” (At 2.37). Há uma
tensão nessa pergunta. Ela deve ser entendida como “e agora, já
que cometemos tamanho crime, o que podemos fazer? Estamos
condenados?”. Pedro, então, responde:

Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de


Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o
dom do Espírito Santo Pois para vós outros é a promessa, para
vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para
quantos o Senhor, nosso Deus, chamar. (At 2.38-39)

De que promessa Pedro está falando? Pelo contexto imediato,


Ridderbos afirma que é o Espírito Santo.25 Beeke e Lanning têm um
entendimento um pouco mais amplo: “são as mesmas promessas
feitas a Abraão, a Davi, a Israel e até aos gentios. Ela inclui a
promessa do Espírito Santo e o perdão de pecados mencionado no
versículo anterior”.26
Pedro diz que essa promessa tem alcance universal. Ela é
“para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar”. Ela inclui os ouvintes
de Pedro, seus filhos e todos os que ainda estão longe. Para os
credobatistas, quando Pedro fala “seus filhos”, ele está apenas
sendo exemplificativo. Os filhos estariam na mesma situação
daqueles que estão longe, ou seja, não possuem nenhum tipo de
vantagem em relação aos que nunca ouviram o evangelho:

Claramente o que Pedro quer dizer aqui é que a promessa de


receber o Espírito Santo em seu interior, por meio do
arrependimento e da fé em Cristo, é uma promessa que vale
tanto para seus filhos (desde que eles se arrependam de seus
pecados e confiem em Cristo), como para pessoas de todos os
lugares (desde que elas se arrependam de seus pecados e
creiam em Cristo) e para vocês, isto é, aqueles que ouviram
Pedro pregando no Dia do Pentecoste. Isto não sugere então
que devamos batizar nossas crianças, mas sim que devemos
compartilhar o evangelho com elas, como nós devemos fazer
com todos os que estão distantes.27

Contudo, à luz de todas as passagens bíblicas que vimos até aqui,


de toda a análise teológica do que significam as alianças e da
própria estrutura teológica do livro de Atos, como não pensar que
Pedro está pregando aqui que os filhos dos seus ouvintes também
poderiam ser herdeiros da promessa, contanto que seus pais
cressem? Ao olharmos para o contexto maior, fica claro que a leitura
credobatista está errada. Nas palavras do reformador Henirich
Bullinger (1509-1574):

De novo, antes que alguém pense que essas palavras aplicam-


se apenas ao povo do Novo Testamento, deixe ele ouvir a
Paulo falando em Gálatas: ‘Aqueles que são de Cristo são a
descendência de Abraão’ (Gl 3.29). Novamente, ‘Aqueles que
são herdeiros são a descendência de Abraão’. E ainda,
‘Aqueles que são santos são a semente de Abraão’. Se você
conecta essas sentenças – eles são filhos de Cristo, são
herdeiros e são santos – segue-se, automaticamente, que os
filhos são a semente de Abraão e eles estão na aliança.28

Além das evidências teológicas, há também as evidências histórico-


culturais que indicam a inclusão dos filhos na promessa de Deus. O
sermão de Pedro foi dirigido a judeus. Nem todos eram nascidos em
Israel, muitos nasceram em outros lugares, mas todos eram judeus
e, dentro da cultura judaica, não fazia sentido que os filhos
tomassem uma decisão individual diferente da dos pais:

Estudos da cultura e da religião judaicas mostram que a família


tradicional judaica era uma entidade coesa, de maneira que
nenhum indivíduo poderia ser considerado independente.
Assim, como um indivíduo, o judeu não exercia plenos direitos
individuais na sociedade judaica, por causa da sua filosofia de
‘personalidade corporativa’. É verdade que o membro de uma
família judia não podia ser tratado de modo isolado,
especialmente em matérias de religião.29
Tu e a tua casa
As mesmas considerações feitas para analisar Atos 2.39 se aplicam
aos casos de batismos de famílias relatados em Atos 10 (a casa de
Cornélio), Atos 16.11-15 (a casa de Lídia), Atos 16.25-34 (a casa do
carcereiro) e Atos 18.8 (a casa de Crispo). Nenhum dos textos fala
especificamente de crianças ou emite qualquer comentário sobre a
idade dos ouvintes. Não há como afirmar que todos ali tinham idade
suficiente para compreender e dar um consentimento individual de
aceitação do evangelho e da fé em Jesus. E, se nos casos de
Cornélio e Lídia, a Bíblia fala em uma exposição oral da Palavra, no
caso de Lídia, apenas ela ouve a pregação e crê (At 16.14) e, a
seguir, toda a casa dela é batizada (At 16.15). Apenas no caso de
Crispo lemos que creu ele e toda a sua casa.
Nenhum dos textos de batismo de famílias afirma claramente
qual a posição quanto ao batismo, seja o credobatismo, seja o
pedobatismo. Segundo o teólogo batista George Eldon Ladd, “a
questão do batismo de crianças não pode ser decidida com base
nos dados exegéticos de Atos, mas somente em um nível
teológico”.30 Isso mostra que o credobatismo não é tão literal ou
bíblico como afirma ser, já que a exegese (o estudo do texto bíblico
em seu idioma original) dos casos concretos registrados em Atos
sobre o batismo de filhos de crentes não é conclusivo. Na verdade,
tanto o credobatismo, quanto o pedobatismo só podem estabelecer
sua posição levando em conta a estrutura teológica maior da Bíblia,
provando que o seu ponto de vista se harmoniza com o restante do
ensino bíblico.
Entretanto, ao considerar a cultura judaica na época dos
apóstolos, a harmonia e unidade entre as alianças da Bíblia, a
continuidade das promessas do Antigo Testamento no Novo
Testamento e a mensagem do próprio livro de Atos, a evidência em
favor do pedobatismo é muito maior do que admitem os
credobatistas. Mas há ainda um argumento demográfico que pode
ser feito para que a balança penda ainda mais na direção do
batismo infantil.
É verdade que a Bíblia não descreve a composição das “casas”
batizadas no livro de Atos. Se considerarmos, no entanto, o
desenvolvimento histórico das pirâmides etárias, veremos que,
antes da Revolução Industrial, em todas as sociedades, a base da
pirâmide é larga, ou seja, encontrávamos um grande número de
crianças e adolescentes na composição populacional. Também
podemos inferir altas taxas de natalidade e de mortalidade, bem
como uma baixa expectativa de vida. O desenho das pirâmides só
começou a mudar quando os países desenvolvidos atingiram a
Revolução Industrial.31 Desta forma, é muito provável a existência
de bebês e crianças de colo nas famílias batizadas no Novo
Testamento.
CONCLUSÃO
A igreja do amanhã?
Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo
Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de
Cristo vos revestistes. (Gálatas 3.26-27)
As marcas para conhecer a verdadeira igreja são estas: ela
mantém a pura pregação do evangelho, a pura administração
dos sacramentos como Cristo os instituiu, e o exercício da
disciplina eclesiástica para castigar os pecados. (Confissão de
Fé Belga, Art. 29)

De todos os motivos que provocaram divisões dentro do


protestantismo, o batismo é um dos mais lamentáveis. O batismo é
precisamente o rito de iniciação na igreja cristã, foi ordenado na
Grande Comissão e era para ser um dos sinais de unidade do povo
de Deus. Curiosamente, porém, embora o batismo tenha sido tão
valorizado a ponto de provocar divisões denominacionais, ele é um
dos assuntos sobre os quais menos se prega e menos se escreve.
Na maioria das vezes, ele é ensinado na classe de preparação ao
batismo, e fica nisso mesmo. Sim, nos momentos de batismo, é
normal que os pastores falem alguma coisa sobre o sacramento,
mas isso é feito sem uma reflexão adequada, sem uma pregação
vigorosa que realmente mostre a riqueza espiritual do batismo e a
sua importância para a vida cristã.
Para os reformadores, a correta administração dos
sacramentos era uma das marcas da verdadeira igreja. Era um dos
critérios que deveriam ser observados para julgar se uma igreja era
ou não bíblica. Algo tão importante deveria receber uma atenção
maior por parte dos evangélicos brasileiros.
Este livro é apenas uma pincelada em toda a riqueza que o
batismo tem a nos oferecer, especialmente o batismo infantil. Por
trás daquela cerimônia que prolonga o culto por mais uns quinze
minutos, está a confiança que nós temos do caráter permanente da
aliança de Deus com o seu povo. Esta é a confissão de que a igreja
não é um acidente nos planos de Deus, mas sim a continuação das
profecias do Antigo Testamento. O batismo infantil proclama,
ousadamente, que os cristãos é que são os legítimos herdeiros das
promessas feitas a Abraão e o verdadeiro Israel de Deus.
Mas, o mais importante: o batismo infantil declara que as
crianças, por menores que sejam, são parte da igreja, do corpo de
Cristo e da família de Jesus. Elas não são o amanhã da igreja, são o
hoje. E isso é algo que o credobatista não pode dizer. Se os filhos
dos credobatistas estão na mesma posição que aqueles que nunca
ouviram o evangelho e não podem receber o sinal do batismo, então
esses filhos não são igreja. Eles podem vir a ser, e, no caso deles,
pode-se dizer que são a igreja do amanhã. Mas, de modo algum,
são o hoje da igreja.
O pedobatismo reconhece a legitimidade da criança como filha
de Deus. E considerando a época atual, em que o aborto é cada vez
mais incentivado, em que as crianças são cada vez mais erotizadas,
em que pais abandonam suas famílias e deixam o convívio com
seus filhos, e os casos de violência e abuso infantil se multiplicam, a
mensagem do pedobatismo se torna ainda mais relevante. Ao incluir
as crianças hoje na igreja, o pedobatismo afirma que Deus olha por
elas e vai vingar todo o mal cometido contra elas. Afirma também a
importância da família, pois os pais influenciam espiritualmente os
seus filhos de modo bastante real. Traz exatamente a mensagem
que o mundo de hoje precisa ouvir.
Espero que este não seja o último livro que você vai ler sobre
este assunto. Espero que Deus levante outros escritores para
falarem do batismo infantil e que pastores se animem a pregar sobre
ele em seus púlpitos. E oro para que essa mensagem ganhe força e
encoraje casais crentes a terem filhos, e a educá-los com a certeza
de que seus filhos também foram recebidos pelo Senhor.
OBRAS CITADAS
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Trad. Odayr Olivetti.
Campinas: Luz Para o Caminho, 1990.
CALVINO, João. As Institutas. Vol. III. Trad. Odayr Olivetti. São
Paulo: Cultura Cristã, 2006
COENEN, Lothar e BROWN, Colin. Dicionário Internacional de
Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000.
ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988.
GIBSON, D. Sacramental supersessionism revisited: a response
to Martin Salter on the relationship between circumcision and
baptism. Themelios, [s. l.], v. 37, n. 2, p. 191–208, 2012. Disponível
em: <http://search.ebscohost.com.rts.idm.oclc.org/login.aspx?
direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001989831&site=ehost-live>. Acesso
em: 13 ago. 2019.
HENDRIKSEN, William. Colossenses e Filemom. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1993.
LADD, George Eldon. A Theology of the New Testament. Grand
Rapids: Wm. B. Eerdemans Publishing Co, 1993. Revised edition.
KRUGER, Michael J. (ed.) A Biblical-Theological Introduction to
the New Testament: The Gospel Realized. Wheaton: Crossway,
2016.
MERIDA, Tony. Exalting Jesus in Acts (Christ-Centered
Exposition Commentary). Nashville: B&H Publishing Group, 2017.
OBIJOLE, B. Infant baptism: a critical review.African Ecclesial
Review, 30(5, 1988), p.299-312
RIDDERBOS, Herman. Paul: An Outline of His Theology. Grand
Rapids: Eerdmans, 1997.
ROBERTSON, O. Palmer. The Christ of the Covenants.
Phillipsburg: P&R Publishing, 1980, Kindle ed.
STRAWBRIDGE, Gregg (ed.). The Case for Covenantal Infant
Baptism. Philipsburg: P&R Publishing, 2003.
WRIGHT, David F. (ed.) Baptism: Three Views. Downers Grove:
InterVarsity Press, 2009.
APÊNDICE
Aderindo ao batismo infantil: uma
trajetória incomum
Por Derek Radney32
Muitos me perguntam como me tornei presbiteriano, ou mais
especificamente, como eu aderi ao batismo infantil após anos
argumentando contra. Gostaria de finalmente apresentar a linha de
argumentos que me levaram a batizar bebês. No fim, essa mudança
surgiu quando minha percepção social mudou. Em outras palavras,
minhas suposições acerca de como vejo o mundo, Deus e os outros
foram submetidas a lentas mudanças por vários anos, e começaram
a fazer o credobatismo inimaginável e o pedobatismo carregado de
bom senso.
Algumas poucas qualificações
Antes de mergulharmos no assunto, preciso esclarecer algumas
coisas. Primeiro, eu não trilhei essa jornada sozinho, você também
não deve fazê-lo. A gota d’água que rompeu minha herança batista
caiu quando alguns pastores presbiterianos, meus amigos, me
deixaram com algumas perguntas desafiadoras para levar até meus
caros presbíteros. Meses de luta conjunta como conselho, após
anos de lutas com argumentos tradicionais contra e a favor do
batismo do pacto, finalmente concordamos juntos que estávamos
errados. Mudanças de entendimento teológico como essa não
devem ser feitas de forma isolada por várias razões. Primeiramente,
é comum se ter pontos cegos e ser conduzido a novas convicções
teológicas pelos motivos errados. Amigos podem nos ajudar a
enxergar nossos pontos cegos e motivações que não conseguimos
ver sozinhos. Outra razão é que se você é pastor ou membro de
igreja, sua teologia precisa estar de acordo com o que é praticado
por sua comunidade eclesiástica e oficiais. Essas pessoas são
responsáveis por te supervisionar e te proteger de doutrinas falsas e
perigosas. Viver suas convicções teológicas não pode ser matéria
de foro íntimo.
Em segundo lugar, eu sei que esta apresentação
provavelmente não irá convencer os céticos. Não é essa a intenção.
Estou assumindo várias questões como certas e não estou tentando
defender cada aspecto do argumento. Eu estou simplesmente
tentando mostrar a lógica do que passei a ver na Escritura. Eu não
tenho tempo de construir uma defesa extensa e exaustiva, cheia de
argumentos exegéticos para cada passagem controversa. Ao
contrário, estou te convidando a olhar para essa questão de um
ângulo diferente, na esperança de que os textos bíblicos tenham um
novo sentido sob uma nova perspectiva.
Terceiro, a apresentação que segue conta a história da minha
mudança a partir de uma posição credobatista “reformada”. Por
muitos anos, eu sustentei um entendimento mais reformado da
salvação, dos sacramentos (isto é, sinais e selos do pacto, meios
efetivos de graça, ao invés da perspectiva de um simples memorial)
e do governo da igreja (pluralidade de presbíteros, igrejas
conectadas, não autônomas, o princípio regulador, membresia e
disciplina eclesiástica etc). Então, o que me levou à mudança pode
não ser útil para muitos credobatistas que já não tenham um
entendimento reformado da salvação e da igreja.
O ponto de partida
Para muitos credobatistas, é senso comum, simples e direto que o
batismo só se administra àqueles que são cristãos e deram uma
pública confissão de fé. Há alguns argumentos simples:

1. A palavra batismo (baptízō) significa “imersão”, o que não


deve ser feito com crianças.
2. Os claros exemplos de batismo no Novo Testamento seguem
a conversão, então essa é a única conclusão bíblica possível
a partir desse padrão.
3. Jesus manda que sejamos batizados, então é
responsabilidade de cada um decidir obedecer por meio de
uma identificação pública com Jesus, através do batismo.
4. O batismo representa realidades espirituais trazidas pelo
Espírito Santo, então ele não deve ser administrado aos que
ainda não possuem tal realidade.

De minha parte, esses argumentos, embora coerentes, nunca


basearam minha convicção credobatista. Eles sempre me
pareceram vítimas do biblicismo, que Michael Horton define como “a
tendência de se libertar da teologia das Escrituras limitando sua
normatividade a textos-prova explícitos.”

1. O Novo Pacto é o cumprimento máximo dos pactos


redentivos do Antigo Testamento. Ele é, por isso, tanto
contínuo quanto distinto dos pactos anteriores (esta é uma
posição relativamente nova, mas comum - de forma
crescente - entre o Dispensacionalismo e a Teologia do Pacto
defendida por D. A. Carson, John Piper, Russell Moore, Peter
Gentry, Stephen Wellum, entre outros).
2. O Novo Pacto é uma promessa da presença do Espírito
Santo em todos os membros do pacto e, subsequentemente,
todos conhecem o Senhor pessoalmente.
3. A igreja é composta pelos regenerados, pelos cristãos, e não
deve incluir quem não é cristão. Isso é diferente dos pactos
anteriores, que incluíam os crentes e seus filhos não crentes.
Essa diferença existe porque Israel foi uma nação que
recebeu as bênçãos terrenas, mas o Novo Pacto promete
bênçãos espirituais em Cristo, que somente podem ser
recebidas pela fé.
4. O batismo, como a circuncisão, é o sinal de entrada na
comunidade do pacto, e por isso, deve ser aplicado somente
aos crentes.
5. Nós só podemos considerar alguém crente se ele ou ela
expressar uma confissão pública de fé em Jesus Cristo, e nós
devemos ser rigorosos em examinar uma pessoa antes de
aceitar sua profissão de fé, pois o Novo Pacto é apenas para
os crentes.

Se você comparar as duas listas irá perceber que eu fui


credobatista pela forma como eu entendia que os pactos da Bíblia
se encaixavam e não devido a alguma noção de que um conjunto de
versículos fossem convincentes. Em outras palavras, eu nunca
pensei que essa questão fosse tão simples quanto citar uns poucos
versículos relacionados ao batismo e que agir de forma correta
fosse algo simples. Há muito tempo eu acredito que um
entendimento apropriado acerca do batismo deve surgir de uma
ampla investigação da história bíblica a respeito da natureza pactual
da redenção do povo de Deus.
A Teologia do Pacto tradicional segue estas linhas:

1. Há um pacto da graça percorrendo toda a história da


redenção, começando com o proto evangelho em Gênesis
3.15 e culminando no Novo Pacto em Jesus Cristo.
2. A salvação se dá através do pacto divino da graça,
confirmado e tornado explícito nas promessas de Deus a
Abraão. Para alguém ser filho de Deus deve se tornar um dos
filhos de Abraão.
3. A circuncisão era o sinal do pacto abraâmico, marcando
aqueles que recebiam dessa promessa e selando sua
garantia de agir com providência para aqueles que tivessem
fé nele.
4. O sinal desse pacto era ministrado aos crentes e seus filhos
como sinal da fidelidade de Deus de abençoar todos que
creem nele.
5. O Novo Testamento deixa claro que o pacto abraâmico ainda
é válido no Novo Pacto inaugurado por Jesus Cristo (veja Rm
4 e Gl 3).
6. O sinal do batismo no Novo Pacto, sem sangue, substitui a
circuncisão sangrenta porque Jesus já cumpriu o que o pacto
abraâmico prometeu.
7. O Novo Testamento não revoga a ideia de que o sinal pactual
deveria ser ministrado aos filhos dos crentes, então nós
devemos assumir que o princípio continua no Novo Pacto.
8. O Novo Testamento dá exemplos de batismos de casas
inteiras nas quais quase certamente havia crianças.

Embora eu concordasse com a maioria desses argumentos (e


agora certamente concordo), aqui estava o nó górdio da questão
para mim: a comunidade do Novo Pacto é diferente da comunidade
do Antigo Pacto pelo fato de que o Espírito de Deus foi derramado
sobre todos os seus membros, então, como há continuidade entre
Antigo e Novo na medida em que o Novo cumpre todas as
promessas do Antigo, a comunidade do Novo Pacto não é uma
comunidade mista. Eu rejeitava o batismo infantil porque os
pedobatistas falavam sobre admitir não cristãos (crianças) à
comunidade do pacto pelo batismo, o que parecia completamente
desalinhado da natureza da comunidade do Novo Pacto da forma
que eu entendia.
A teologia do pacto não era inteiramente convincente para mim
acerca do batismo porque não lidava de forma adequada com a
ideia de que não cristãos estavam sendo recebidos na igreja.
Eis como tudo isso mudou.
Um esboço da mudança na minha
mente
Minha jornada rumo ao batismo infantil foi parte da mudança de um
paradigma mais abrangente, tomando lugar em minha teologia de
um paradigma de salvação individual para um entendimento mais
global do trabalho de Deus em Cristo pelo Espírito. O que segue é
uma linha de argumentos que eu não encontrei antes, que vou
expor por meio de vários tópicos com perguntas relacionadas.

1. Repensando a ideia de uma “confissão pública


de fé”
“O que é uma profissão de fé válida ou pública?”

Conforme eu lutei com essa questão, ficou claro que eu tinha


requisitos muito rigorosos e expectativas muito altas, o que elevou o
critério exigido para se entrar na igreja visível para um nível mais
alto que o observado no Novo Testamento. Parece-me que há um
anseio por receber pessoas na igreja no Novo Testamento devido a
uma confiança de que o discipulado e disciplina eclesiástica podem
expor falsos convertidos.
Considere a prontidão dos apóstolos para batizar durante o
Pentecoste, em Atos 2, ou Simão, o Mago, em Atos 8. Os apóstolos
nem sempre acertavam batizando apenas crentes genuínos. Até
mesmo estimados cooperadores de Paulo caíram (1Tm 1.18-20 e
2Tm 4.10, 16). Eu percebi que eu estava com muito medo de errar,
de batizar um descrente. Eu deveria estar mais preocupado em
desencorajar crentes novos/jovens/imaturos não os admitindo à
igreja porque eles eram incapazes de dar uma explicação adulta do
evangelho.
Um artigo de Vern Poythress publicado em seu site33 foi útil
para me ajudar a distinguir entre “rigorismo” e “indiferentismo” (o
problema do lado oposto do espectro).
John Starke (um batista) argumenta34 que nós deveríamos
ansiar por afirmar evidência de fé ao invés de tomar precauções
céticas, permitindo que o processo de discipulado e a disciplina
eclesiástica tratem qualquer fé potencialmente falsa.
“Como nós determinamos se uma pessoa tem ou não fé se eles são
incapazes de proferir uma madura profissão de fé (i.e. os
mentalmente incapazes, os enfermos, aqueles com perda de
memória, as crianças)?”
Nem todos os batistas se incomodam com essa questão pois eles
argumentam (acertadamente) que o batismo não é necessário para
a salvação. Então eles não veem problema em excluir pessoas
nessa categoria da igreja visível.
Eu não era e não sou confortável com esta ideia porque ela
resulta em exclusão da comunidade de fé, a comunidade que serve
como o posto avançado do reino na terra, direcionando as pessoas
para o reino, que são vitais para esse testemunho. O próprio Jesus
aponta as crianças pequenas ao ensinar sobre o reino e nos ordena
sermos como elas.
O requisito padrão para uma confissão pública de fé para o
batismo e a entrada na igreja visível termina por excluir qualquer um
que não seja um adulto saudável, que raciocine e seja mentalmente
capaz.

2. A família como uma comunidade do pacto


Em minha vida de pastor, eu tenho ensinado alguma coisa sobre casamento e
família. Durante anos, eu busquei mostrar aos congregados que a família é uma
comunidade do pacto, isto é, uma comunidade formada por promessas com
responsabilidades e bênçãos específicas. Crianças entram nessa comunidade,
não fazendo promessas, mas pelo nascimento. Elas são responsáveis por viver
de acordo com suas responsabilidades pactuais mesmo que elas não tenham tido
escolha. Ademais, elas recebem as bênçãos do pacto sem nunca ter tomado uma
decisão de se juntar à família.
Eu também comecei a observar que o Novo Testamento tinha
pouco ou nenhum ensinamento sobre educação de filhos. Aquilo
pareceu estranho até eu perceber que os apóstolos assumiram que
a riqueza dos ensinamentos do Antigo Testamento são suficientes
no Novo Testamento. O que se vê da família e da educação de
filhos no Antigo Testamento baseia-se na assunção de que as
crianças são parte da comunidade do pacto de Deus, já estão no
caminho de temer o Senhor, devem ser instruídas ao longo da vida
a continuarem no caminho e são advertidas a não abandonar esse
caminho. Em outras palavras, no Antigo Testamento, os filhos de
crentes são considerados pequenos crentes que devem ser
encorajados, ensinados e discipulados na fé, não pagãos que
devem ser convertidos. Nada no Novo Testamento sugere que essa
ideia deva ser abandonada; com efeito, o Novo Testamento faz
referência e alusão ao Antigo Testamento no que se refere à
educação dos filhos.
“Quer dizer então que existe outra evidência confiável, além da
profissão pública de fé, para considerar alguém cristão?”
Sim, se uma pessoa for nascida em um lar cristão, é correto assumir
que ela já é crente e deve ser nutrida na fé ao invés de
evangelizada.

“Isso não é uma negativa de que crianças nascem pecadoras, hostis


a Deus, sem fé?”

Não. Isso é uma afirmação de que crianças nascem pecadoras, mas


vê a fé como uma confiança que cresce em entendimento. Assim
que uma criança começa a receber o amor e cuidado de seus pais,
ela está exercitando confiança. E quando uma criança confia em
seus pais cristãos que foram colocados por Deus (ou enviados por
ele, podemos dizer) em sua vida, na família do pacto, ela está
confiando no próprio Deus (cf. Mt. 10.40).
Isto não deveria nos surpreender porque o mesmo Deus que
redime é o Deus que criou e sustenta com providência. Deus criou a
família para funcionar de modo que as crianças venham a amar o
que seus pais amam, acreditar no que seus pais acreditam e
esperar pelo que seus pais esperam. Perceba como crianças
geralmente se tornam fãs dos mesmos times que seus pais,
praticam muitos dos mesmos hobbies, curtem as mesmas músicas
e comidas e tendem a partilhar das mesmas crenças religiosas.
Deus fez o mundo para funcionar assim, e a redenção costuma
seguir o mesmo curso.
Agora, claro, isso nem sempre dura, e pode haver toda sorte
de pecado e sofrimento em uma família que leva ao ódio, à
fragmentação ou a um certo nível de desconfiança. Em outras
palavras, nem todos os filhos seguem o caminho dos pais. Isso é
bom para quem é nascido em famílias não cristãs. Eles podem crer
no evangelho e se juntar à família de Deus. E claro, infelizmente,
cristãos nem sempre veem seus filhos permanecer na fé.
Logo, não há garantia de que um filho de crentes irá
permanecer na fé, e por isso, nós nunca temos certeza de que uma
criança concebida por pais cristãos é crente. Mas isso também vale
para aqueles que fazem uma profissão pública de fé como adultos.
Eles também podem desviar em algum momento. Nós nunca
podemos ter certeza, mas podemos tentar ver as evidências
públicas de que uma pessoa é crente.
“A Escritura não ensina que a fé vem de ouvir a Palavra de Deus?
Como uma pessoa pode se tornar crente sem ouvir o evangelho?”
Certamente, a forma corriqueira com que as pessoas de fora da
comunidade do pacto desenvolvem sua fé é pela proclamação do
evangelho, sobre o que eu penso a Escritura fala em locais como
Romanos 10.17. Mas essa não é uma declaração restritiva sobre a
única forma com que a fé em Jesus é trazida pelo Espírito Santo.

“A Escritura ensina que Jesus vai dividir famílias e alerta que ser
nascido em uma família temente a Deus não deveria criar a ideia de
que somos salvos?”

Sim. Mas a razão específica por que Jesus ensina isso é que seus
discípulos devem amá-lo e odiar suas famílias devido ao fato de que
nossas lealdades às nossas famílias são naturalmente tão fortes
que elas podem comprometer a fidelidade a Jesus. Ele está falando
do perigo inerente a essa profunda realidade sociológica de que os
filhos tendem a crescer na fé (seja ela qual for) de seus pais.
E sim, é verdade que nós não deveríamos simplesmente
assumir que somos cristãos só porque nossos parentes são crentes,
sendo que nós pessoalmente não cremos em Jesus e fazemos o
que queremos. Mas veja que a pessoa que professa publicamente
sua fé como adulta e é batizada não deveria assumir que é nascida
de novo se continua impenitente. Em outras palavras, a Bíblia
constantemente alerta contra a presunção quando uma pessoa diz
que conhece a Deus porque pertence à comunidade visível do
pacto, mas permanece longe de Deus no coração e desobediente
em suas ações. A Bíblia não rejeita a ideia de que filhos de crentes
sejam cristãos. Ela alerta a todos que não presumam sobre Deus
quando seus corações estão longe dele.

3. Reconciliando a Teologia do Pacto com a


Teologia do Novo Pacto
Meu problema com a Teologia do Pacto e os presbiterianos sempre
foi a ideia de que eles deixariam não crentes entrarem na
comunidade do pacto. Mas eu aprendi que essa não é a única forma
com que presbiterianos entendem como as coisas funcionam. Há
uma longa história em torno da visão que tenho exposto (veja o livro
The Presbyterian Doctrine of Children in the Covenant, de Lewis
Bevens Schenck), que existiu antes do Reavivamento Americano
alterou a forma como evangélicos pensavam sobre conversão. No
final dos anos 1700 e ao longo dos anos 1800, os evangélicos
adotaram a ideia de que uma pessoa não é cristã até que ele ou ela
viva um momento consciente, quando ele ou ela passa pela
experiência de uma conversão radical.
Conforme conversei com presbiterianos, eu percebi que a
maior parte deles de fato considera seus filhos como pequenos
cristãos. Eles os ensinam a orar, “Pai nosso que estás no céu…”, a
se arrepender de seus pecados, a confiar no perdão de Deus por
meio de Jesus Cristo. De qualquer forma, a maioria dos
presbiterianos hoje encoraja e espera pelo tempo em que seus
filhos venham a um entendimento mais claro da graça e se
apropriem pessoalmente da promessa do evangelho como um
importante marco em sua jornada espiritual (uma espécie de
confirmação que normalmente envolve iniciar a participação na
comunhão). Mas mesmo antes disso, presbiterianos consideram
seus filhos cristãos não confirmados.
Eu costumo pensar que isso é excessivamente escrupuloso.
Como eu já disse, as crianças batizadas não estão em uma posição
muito diferente de qualquer outro adulto batizado. Nós somos todos
não confirmados até que perseveremos. Nós estamos todos
crescendo em nosso entendimento de Deus e da graça. Eu tenho
tido, pessoalmente, vários períodos de ruptura na minha vida que
foram como se eu tivesse aprendido sobre a fé outra vez ou visto
uma enorme ruptura na luta contra um pecado específico. Cada
uma provavelmente seria considerada uma conversão por muitos
batistas, mas eu entendo que esses são momentos dramáticos de
crescimento em entendimento e graça. Eu não sei quando esse
processo começou pra mim porque eu não eu não lembro de um
momento em que eu não cri em Deus e em seu Filho.
O batismo não é garantia de que o batizado é nascido de novo.
Nem significa que o batizado não precisa mais ser chamado ao
arrependimento e à fé no evangelho.
“A Teologia do Pacto e a Teologia do Novo Pacto são diferentes?”
Sim e não. A Teologia do Pacto enfatiza a continuidade dos pactos
bíblicos, em particular, notando que o Novo Pacto é a realização do
pacto abraâmico. Em outras palavras, aqueles que estão em Cristo
se tornam filhos de Abraão, filhos da promessa que foram dados a
ele. Adicionalmente, ele enfatiza a natureza mista da comunidade
do pacto. Existirão tanto crentes quanto não crentes na comunidade
visível até que Cristo volte.
A Teologia do Novo Pacto enfatiza a forma como esse
cumprimento vai além dos pactos do Antigo Testamento. Por
exemplo, ela enfatiza a presença do Espírito Santo em toda a
comunidade ao invés de em figuras ungidas especiais, e ela enfatiza
a composição global dessa comunidade através da inclusão dos
gentios. Todos que têm fé são incluídos na comunidade do pacto,
independentemente da etnia ou nacionalidade, mas apenas por
causa da fé em Cristo.
Essas diferenças parecem enormes, mas eu acredito que elas
são na verdade só uma questão de ênfase. A Teologia do Pacto
está certa em observar que a igreja visível é uma comunidade mista.
Certamente, existem pessoas nela que não conhecem a Deus
pessoalmente. A Teologia do Novo Pacto está certa em apontar à
ideia exposta no Novo Testamento de que aqueles que foram
batizados têm o Espírito e estão em Cristo. Isto é, claro,
considerando a conexão entre as duas, mas sem garantir que
ambas são verdade para cada pessoa, pois até batistas admitem
que existem falsos convertidos na igreja visível. A questão, então,
se põe, “mas nós devemos admitir pessoas que sabemos não
serem cristãs à comunidade?” Ambos concordamos que não. A
diferença é como nós consideramos nossos filhos. Se nós
presumimos que eles são pequenos cristãos pela graça de Deus por
meio da comunidade do pacto da família, que é o meio pelo qual
eles recebem o pacto da graça, então a diferenças entre as duas
desaparece.

“Existe uma conexão entre a circuncisão e o batismo, e se sim,


o batismo substitui a circuncisão?”

Sim. Como a circuncisão serviu como sinal e selo do pacto


abraâmico que marcou de forma visível a comunidade do pacto,
então o batismo também é o sinal e selo do novo pacto, que marca
aqueles que pertencem a Deus como destinatários de suas
promessas. A circuncisão significava a promessa de Deus de
abençoar a descendência de Abraão, de remover a impureza
espiritual do povo de Deus, e de destacar todos aqueles que
quebram o pacto com Deus. O batismo significa nosso enxerto em
Cristo, regeneração, lavagem e perdão de pecado, consagração a
Deus, filiação e nova vida de ressurreição.
Tanto circuncisão quanto batismo significam a promessa de
Deus dada a Abraão, mas finalmente cumprida em Jesus. A
circuncisão era uma sombra. O batismo é um sinal da realidade.
Tanto circuncisão quanto batismo selam o compromisso de Deus de
conceder bênçãos a todos que creem. Ambos expõem a marca do
povo de Deus no mundo. Ambos significam realidades que devem
ser apropriadas pela fé pela comunidade do pacto. A circuncisão
invocou corações circuncidados; o batismo invoca corações
renovados pelo Espírito Santo. Então o batismo substitui a
circuncisão porque significa o cumprimento do que a circuncisão
antecipou.
Ambos devem ser ministrados aos filhos dos crentes,
considerados membros do pacto que já estão no caminho do temor
do Senhor, e ambos chamam a pessoa a viver a realidade pela fé.

4. Fé e formação de identidade: o individualismo


ocidental e a Bíblia
Outro aspecto-chave da minha mudança flui do que tenho aprendido
com Charles Taylor, Robert Putnam, James K. A. Smith, Alastair
Roberts e Tim Keller sobre a formação da identidade pessoal no
Ocidente moderno. Em resumo, eu fui ensinado a pensar sobre
minha identidade como algo que eu pessoalmente deveria descobrir,
escolher, formar e expressar autenticamente. Esses pensadores, de
várias formas, têm mostrado que essa é uma abordagem singular
para a formação de identidades, que difere de quase todas as
outras culturas na história mundial. Em qualquer outro lugar, a
identidade é vastamente determinada por aqueles que vieram antes
de você (família, comunidade e cultura). Ela é atribuída, recebida e
acolhida como um chamado ao pertencimento. Ao invés de olhar pra
dentro e lutar constantemente para jogar fora as expectativas
culturais que ameaçam me impedir de ser eu mesmo, a maioria das
pessoas ao longo da história tem olhado para fora de si mesmas e
buscado se conformar aos seus papeis. Isso faz sentido de cara. As
pessoas tendem a acreditar no que suas famílias acreditam, amar o
que sua cultura ama e imitar a moralidade de sua comunidade.
Não deveria causar surpresa a ninguém que a Bíblia
compartilha da última perspectiva. O individualismo ocidental não
pode ser compreendido na forma como indivíduos são tratados em
relação ao grupo ao qual fazem parte. Essa responsabilidade
corporativa não é absoluta, pois as pessoas podem rejeitar suas
identidades recebidas. Felizmente, aqueles de fora da comunidade
do pacto podem rejeitar suas maneiras anteriores e aderir ao Deus
de Israel. Infelizmente, aqueles que nascem na comunidade do
pacto podem apostatar. Mas a afirmação bíblica é de que as
crianças recebem e vivem inseridas na identidade de seus pais.
Em relação ao batismo, considere como a formação da
identidade do ocidente moderno tem impactado nosso entendimento
do que significa ser cristão. A igreja evangélica tem aderido
largamente um entendimento não bíblico da formação da identidade
ao insistir que uma pessoa criada por uma família cristã não partilha
da identidade cristã e deve ter uma experiência de conversão para
ser considerada cristã de forma confiável. À medida que eu levo em
consideração o perigo do nominalismo e da presunção pecaminosa,
essa preocupação não deveria nos induzir a revirar o padrão bíblico
de que Deus efetiva a redenção por meio de famílias. A salvação
vem para famílias (At 16.31).
Nesse sentido a questão dos batismos de famílias fica clara.
Credobatistas geralmente menosprezam os batismos familiares ou
destacam que em poucos casos é dito que a família toda creu. A
ideia que eles defendem é que a menção a família deve incluir
apenas pessoas crescidas o suficiente para “ouvir e receber a
palavra”, pois assim elas poderiam dar uma pública profissão de fé.
Pedobatistas geralmente contra argumentam que isso é muito
improvável e que alguns dos batismos familiares não fazem menção
de cada pessoa recebendo a palavra. Por isso, deve haver bebês
em algumas dessas famílias que foram batizadas. Esse debate
encara um impasse à medida em que ambos os lados assumem
que bebês não podem ter fé.
Mas quando percebemos que nosso individualismo ocidental
nos tem cegado para a realidade de que a formação da identidade
tem um enorme componente corporativo, o batismo de famílias faz
sentido. A salvação vem para famílias porque a identidade de todos
os membros da família estará vinculada ao cabeça da comunidade.
Não necessariamente em todos os casos com todos os indivíduos
sempre. Mas a ideia reinante das Escrituras é que quando Jesus
vem a uma família, ele transforma cada membro.
A prática de dar nome aos filhos nos dá uma luz aqui. Um pai
(ou mãe) dá nome a seu filho ou filha dando o sobrenome e
definindo a identidade. Então ele nutre e orienta a criança a crescer
nessa identidade. O pai não espera a criança crescer e escolher
pertencer à família antes de dar o sobrenome. Então assim é com o
batismo. Os filhos de crentes são lavados no nome triúno, atribuindo
à crianças uma identidade cristã na qual ela cresce à medida que é
nutrida e educada no caminho.

5. Outras questões relacionadas à questão do


batismo
“A palavra batismo (baptizō) não significa ‘imergir’?”

Sim, geralmente sim. Mas existem exemplos no Novo Testamento


da palavra sendo usada para outras finalidades que não modos de
lavar com água. Em 1Coríntios 10.2, Paulo a usa para descrever a
jornada de Israel pelas águas durante o Êxodo. Em Hebreus 9.10,
essa palavra é usada para descrever vários rituais de lavação. O
batismo com o Espírito Santo (At 1.5; 2.17) foi um derramar do
Espírito. Então ela não significa apenas imergir.

“Não é verdade que os exemplos claros de batismo no Novo


Testamento são posteriores à conversão? E isso não sugere
que essa é a única conclusão bíblica possível de ser definida
como padrão?”

Sim, é verdade que os exemplos claros de batismo no Novo


Testamento são posteriores à conversão, mas isso não deveria nos
surpreender por duas razões. Primeira, o Novo Testamento
(especialmente o livro de Atos) conta a história de crescimento da
igreja em seu movimento de alcançar as pessoas de fora do pacto
da fé. Nós não ouvimos histórias da geração seguinte, mas faz
sentido que esses novos cristãos tenham tratado seus filhos
exatamente como os santos do Antigo Testamento. Em segundo
lugar, o Novo Testamento registra um tempo de transição do Antigo
para o Novo Testamento. Então judeus circuncidados que creram
em Jesus como Messias tiveram que receber o sinal do batismo no
Novo Testamento. Isso significa que havia uma enorme quantidade,
incomum, de batismos como resposta à palavra pregada.
Os exemplos no Novo Testamento não estão prescrevendo o
tempo de todos os batismos. Eles registram a transição do Antigo
para o Novo e nos mostra como aqueles de fora da comunidade do
pacto vieram a se unir a ela. Mas isso de forma alguma substitui a
ideia do Antigo Testamento de que filhos de crentes são parte da
comunidade do pacto e devem receber o sinal pactual do batismo.

“O batismo não é o caminho pelo qual uma pessoa


individualmente se identifica com Jesus, proclamando ao
mundo que ele crê nele?”

Não, isso não é o que se comunica primariamente no batismo. Essa


é uma forma comum de pensar sobre o batismo, mas mal orientada,
que enfatiza a ação do batizado sobre a comunicação e o ato de
Deus por meio do sinal. No batismo (como na mesa do Senhor), é
Deus quem fala primária, primeira e principalmente. Ele significa e
promete. O sujeito do batismo é passivo e é somente em um modo
derivativo que o batismo identifica a pessoa como membro da
família de Deus.
Retornando ao exemplo acima, um pai dá o nome de seu filho.
A crianças é identificada com a família do seu pai, mas não é a
criança que faz essa escolha de identificação. Seu nome é dado por
outro.
Então é um erro quando credobatistas falam sobre o batismo
como uma oportunidade que a pessoa tem de proclamar sua fé
publicamente ou um símbolo da fé dessa pessoa. É Deus quem
proclama no batismo. Ele significa e promete, o que deve ser
encontrado com fé pelo sujeito do batismo e pela comunidade
eclesiástica como um todo.

“Como Jesus nos manda sermos batizados, não é de


responsabilidade de cada pessoa decidir obedecer
publicamente, identificando-se com Jesus pelo batismo?”

Normalmente, quando credobatistas dizem que o batismo é


ordenado por Jesus, eles estão se referindo à Grande Comissão,
em Mateus 28. Mas veja, Jesus está ordenando seus apóstolos (e,
consequentemente, os presbíteros de sua igreja) a batizar como
uma demonstração do fazer discípulos. Estritamente falando, ele
não ordenou que todos os cristãos fossem batizados. Ele ordena
que seus oficiais batizem. Em outras palavras, o batismo é um sinal
e selo dado à igreja para administrá-lo fielmente. Receber a
proclamação do evangelho feita pela igreja é se submeter ao
batismo, mas não é exatamente correto que é um mandamento que
cada indivíduo deva escolher na caminhada.
“Como o batismo demonstra realidades espirituais trazidas pelo
Espírito Santo, não deveria ser ministrado àqueles que não
possuem essa realidade.”
Eu já enfrentei esse argumento de várias formas nas linhas acima.
Primeiramente, nós nunca podemos ter certeza se uma pessoa é
verdadeiramente crente até que ela persevere. Então a questão se
coloca, quão certos devemos estar? O que conta como evidência
confiável de que a pessoa é crente? Como expliquei acima, a
membresia em uma família de crentes nos dá uma evidência
confiável de que a pessoa é crente. Mas essa confiança não pode
jamais ser absoluta, exatamente como no caso de um adulto que faz
uma profissão pública de fé.
Em segundo lugar, a circuncisão também demonstra realidades
espirituais trazidas pelo Espírito Santo, notadamente, um coração
circuncidado. Sim, a circuncisão foi ministrada a crianças muito
embora fosse possível que a criança não era nem se tornaria crente
quando crescesse.
Resumindo tudo
Os autores do Novo Testamento tratam os filhos de crentes como
destinatários das promessas de Deus (At 2.39), “santos” (1Co 7.14),
“no Senhor” (Ef 6.1), e “pequenos que creem em [Jesus]” (Mt 18.5-
6). Em resumo, a suposição prática do Novo Testamento é de que
filhos de crentes, como membros da igreja visível, são cristãos.
O argumento do credobatismo de que o batismo deveria ser
posterior à fé repousa, em grande parte, sobre a premissa de que
bebês não podem ser considerados crentes. Conforme eu comecei
a reconsiderar o que eu havia entendido sobre crianças, formação
de identidade, famílias e natureza pactual da redenção, o batismo
infantil começou a fazer sentido. Os exemplos de batismo e
convocações ao batismo que encontramos no Novo Testamento não
deveriam nos surpreender, pois eles são direcionados àqueles de
fora da comunidade do pacto. Mas esses exemplos não prescrevem
como todas as pessoas deveriam entender o batismo. Como os
santos do Antigo Testamento, nossos filhos deveriam ser
reconhecidos e criados como membros do pacto.
No fim, eu penso que batistas “reformados” que se apegam à
Teologia do Novo Pacto diferem da Teologia do Pacto muito menos
do que parece à primeira vista. Ambas tradições enfatizam
considerações diferentes e se colocam num ponto de impasse
porque ambas tendem a assumir que os filhos de crentes não
podem ser presumidos cristãos. De toda forma, uma leitura mais
consistente do Antigo Testamento e uma olhada mais de perto da
tradição reformada35 mostram que as crianças do pacto devem ser
tratadas como cristãos bebês.
Interessante que isso resolve outro enigma teológico há muito
debatido. O que acontece aos filhos de crentes que morrem na
infância? Quase todos os cristãos querem dizer que eles estão com
o Senhor, mas poucos têm uma razão defensável de por que eles
dizem isso. Agora podemos ver que é apropriado assumir que eles
estão com o Senhor como outros crentes que morrem (Veja a
Confissão de Fé de Westminster, 10.3). Esse não é um motivo para
aderir ao pedobatismo, mas é uma bela consequência dessa
posição.
NOTAS
1 ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988. Volume I, p.45.
2 COENEN, Lothar e BROWN, Colin. Dicionário Internacional de
Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000. Volume
I, p.58.
3 Idem p.58.
4 Ibidem, 59-60.
5 Ibidem.
6 ROBERTSON, O. Palmer. The Christ of the Covenants.
Phillipsburg: P&R Publishing, 1980, Kindle ed, p.19. Traduzido
diretamente do inglês pelo autor.
7 Idem, p.20. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
8 ROBERTSON, p.15. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
9 CFW, Cap.XXVII, Art I.
10 Elwell, Vol. III, p.331.
11 CFW, Cap.XXVII, Art.III.
12 CALVINO, João. As Institutas. Vol. III. Trad. Odayr Olivetti. São
Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.146
13 HENDRIKSEN, William. Colossenses e Filemom. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1993, p.146.
14 Calvino, Vol. III, p.181.
15 Robertson, p.171.
16 GIBSON, D. Sacramental supersessionism revisited: a response
to Martin Salter on the relationship between circumcision and
baptism. Themelios, [s. l.], v. 37, n. 2, p. 191–208, 2012. Disponível
em: <http://search.ebscohost.com.rts.idm.oclc.org/login.aspx?
direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001989831&site=ehost-live>. Acesso
em: 13 ago. 2019. Traduzido do inglês pelo autor.
17 BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Trad. Odayr Olivetti.
Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p.585.
18 “Pais Negros Importam”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FszQelEQ2KY>. Acesso em: 13
de agosto de 2019.
19 Berkhof, p. 52-3.
20 https://exame.abril.com.br/brasil/os-estados-onde-mais-
casamentos-nao-duram-nem-um-ano/. Acesso em 14 de agosto de
2019.
21 MERIDA, Tony. Exalting Jesus in Acts (Christ-Centered
Exposition Commentary). (Nashville: B&H Publishing Group, 2017),
p.6. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
22 Merida, p.10. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
23 Kruger, Michael J. (ed.) A Biblical-Theological Introduction to the
New Testament: The Gospel Realized. (Wheaton: Crossway, 2016),
p. 144. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
24 Merida, p.10. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
25 Ridderbos, Herman. Paul: An Outline of His Theology. (Grand
Rapids: Eerdmans, 1997), p. 398.
26 Strawbridge, Gregg (ed.). The Case for Covenantal Infant
Baptism. (Philipsburg: P&R Publishing, 2003), p.55. Traduzido
diretamente do inglês pelo autor.
27 Wright, David F. (ed.) Baptism: Three Views. (Downers Grove:
InterVarsity Press, 2009), p. 37. Traduzido diretamente do inglês
pelo autor.
28 McCoy, Charles S. e Baker, J. Wayne. Fountainhead of
Federalism: Heinrich Bullinger and the Covenantal Tradition.
(Louisville: John Knox Press, 1991), p. 107. Traduzido diretamente
do inglês pelo autor.
29 OBIJOLE, B. Infant baptism: a critical review. African Ecclesial
Review, 30(5, 1988), p.307. Traduzido diretamente do inglês pelo
autor.
30 LADD, George Eldon. A Theology of the New Testament. (Grand
Rapids: Wm. B. Eerdemans Publishing Co, 1993. Revised edition),
p. 387. Traduzido diretamente do inglês pelo autor.
31 Baseado em .
https://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/demografia-
transicao-demografica-e-crescimento-populacional.htm. Acesso em
14 de agosto de 2019.
32 Derek Radney nasceu na Flórida e foi criado em San Diego e em
Austin. Atualmente, é pastor na Trinity Church of Winston-Salem
(PCA). Bacharel em filosofia pela Wake Forest University, mestre
em divindade pela Trinity Evangelical Divinity School e mestre
em teologia pela Duke Divinity School. Casado com Sally,
possui três filhos.
Tradução de João Guilherme Anjos.
33 Disponível em https://frame-poythress.org/indifferentism-and-
rigorism/ (texto em inglês).
34 Disponível em https://www.thegospelcoalition.org/article/should-
we-baptize-small-children-yes/ (texto em inglês).
35 Cf. https://graceonlinelibrary.org/blog/presumptive-regeneration-
in-the-reformed-tradtion-a-collection-of-quotes/ (texto em inglês).
Table of Contents
1. Sumário
2. PREFÁCIO
3. INTRODUÇÃO
4. I. Pacto de sangue
5. II. Dois pactos que você não conhece
6. III. Um ou dois povos?
7. IV. Sacramentos
8. V. A nova circuncisão
9. VI. Pais e filhos
10. CONCLUSÃO
11. OBRAS CITADAS
12. APÊNDICE
13. NOTAS

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