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RODRIGUES JÚNIOR

ITGRATURN COBON
ENSAI0)

LOURENÇO MARQUES
1953
RODRIGUES JÚNIOR

MTGRATUNA COTON
(ENSAIO)
ENSAIO)

LOURENço MARQUES
1953
-Considerações

Escreverrepresenta sempre uma


intençãoe
é, ao mesmo tempo, uma necessidade. Necessi-
dade é uma exigência forte que traz expressa
uma ansia de comunicação espiritual. O
homem
também sofre fomes desesperadas do espírito
e essa da comunicação é imperativa nele, domi-
na-o totalmente. Escrever é um processo de li.
gação entre o homem de espírito e o homem da
rua, principalmente, aquele homem que vai
abrindo os olhos para a vida e se torna mais
compreensivo a medida que Ihe explicam o que
a própria vida contém de verdadeiramente belo,
de extraordinariamente humano.n 2ai
Para escrever é preciso ter vivido o que se
escreve, ter passado estados de emoção, de des-
lumbramentos de alma,entusiasmos que ficaram
em nós e foram momentos de exaltação, gozo
que há-de arder sempre e não chegará, jámais,
a ser cinza morta. Será chama perpétua, laba-
reda alta. Vive-se a dor,o sofrimento que depura
e engrandece a criatura humana e a torna gi
6 RODRIGUES JUNIOR

gante,quando se escreve. Vive-se o nosso drama


e o drama do próximo. Vive-se o meio
ambiente,
a sua cor, o seu movimento. Os tipos humanos
que nele se agitam, são também elementos que
o artista encontra sempre nas suas caminhadas
à procura de material vivo para a sua obra.
A terra, o céu e o homem de Africa são sempre
novidade para o homem não-africano. E gente
estranha de um país estranho em que o céu é
mais pesado e a terra mais húmidae mais
quente. Nessa terra de feitiço o homem que
nela nasceu, cresceu, viveu e morre, parece ter
metidas mais fundas, do que em qualquer outra
parte do mundo, as raízes do seu ser animal.
A terra é para ele carne e sangue da sua vida.
Ele é como um roble baloiçando as ramagens
ao vento leve: quanto mais se agiganta, mais
penetra a terra de que se alimenta,a terra fofa
em que se entranha em busca de uberdades-a
terra que é sangue moço e será túmulo quandoo
apodrecido os vermes vierem para
o banquete
saciar fomes intermináveis. A terra que alimenta
o homem será a mesma terra que o devorara
um dia. osgoay

se
Para escrever é precis0 ter vivido o que
escreveu. De outra maneira escrever
é reunir
palavras e só palavras, é dizer banalidades
que
LITERATURA COLONIAL

não interessam. Escrever é ter alguma coisa que


contar e já näo cabe em nós. Extravasa como
a água de um tanque quando fica ultrapassada
a sua capacidade. A alma do homem também
extravasa quando está cheia. Esse extravasa-
nento é uma necessidade interior do artista.
O homem quando escreve faz sempre uma con-
fissão e realiza uma obra de arte, no que obra
de arte possa dar-nos de delicadeza do escritor
qLe conta o seu caso ou o caso do seu próximo
-do homem que expõe o seu ponto de vista,
que manifesta desejo de ve-lo enunciado e aceito,
cert de que será contribuição para a salvação
do róprio homem, melhoramento do meio que
caree de quem trabalhe por ele. E confissão,
porqe o homem tem necessidade do outro ho-
mem, de se lhe dirigir, da sua companhia, das
suas alavras, da sua opiniäo de aprovação ou
desapmvação das ideias expostas.

O esritor colonial-como Castro Soromenho


-tem ue embrenhar-se na alma do homem
nela se
negro pira espreitar 0s tesouros que
guardam tem que o observar de perto, viver
com ele,ntrar na sua intimidade, ganhar a sua
confiançae amizade, para o entenderi tem que
entrar na sua corte, nao repudiar certas coisas
RODRIGUES JÚNIOR

que são distinção oferecida ao visitante. Há


coisas que repugnam ao homem branco aceitar
e que para o homem negro são hábitos que a
tradição tem mantido através de séculos. Não
aceitar certos usos do nativo será ofender a suz
bela hospitalidade. Quando ao homem branco
negro 1he apresentar as suas duas ou três mu
lheres, não terá aquele que sentir ofendida a
sua moral. A poligamia na sociedade europea
é uso condenável e punível. Entre o indigena é
indicação de importância do componente socal.
Nao terá o branco que se sentir espantado
quando o negro lhe disser que o direito de
su
cessão nos regulados caberá ao sobrinho e não
ao filho. Será o filho do irmão mais velho (uem
lhe sucederá na posse de títulos e bens. D so-
brinho é para o velho régulo a certeza de que
nas veias do ovo «soberano» correrá o angue
dos seus maiores.
Nos bens legados serão incluídas tamjém as
suas concubinas. O filho, se lhe sucedess,
teria

do seu ai, en-


que aceitar para si as mulheres
tre as quais encontraria a sua própria nae.

drn
valer
O trabalho do escritor colonial, pra
Como elemento de estudo, terá que s
um do-
da
Cumento humano, terá que ser experência

própria vida.
11-Os Materiais

E diferente o indigena do litoral do indigena


das grandes planícies do interior. Diferente é
também o indigena das grandes altitudes. O in-
digena do litoral é vivo, seco, mexido, teimosó.
E malandro e ladrão,por vezes.Vive, geralmente,
da pesca e do trabalho nos portos.
Quando a
idade e a indolência o tomam, faz-se
«patsisi»,
isto é, prefere ser moço-de-fretes, encostado às
esquinas, à espera de que o chamem, a estar
Ocupado em actividade certa. No norte da Pro-
víncia, esse homem do litoral, é mais velhaco.
Atravessado do o ar melifluo,
árabe, herdou-lhe
a argúcia na espreita de uma oportunidade de
fazer dinheiro sem grande esforço. Na Ilha de
Moçambique, o negro vive, na sua maioria, do
trabalho da pesca, vive no ancoradouro à espera
dos passageiros que desembarcam, para lhes le-
var as malas; vive na cidade puxando o
«riquechó».
No trabalho da pesca, do ancoradouro e dos
«riquechós» é o mesm0 homem, tem a mesma
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expressão de malandrim. O
riso velhaco
e as
falas mansas, dão sinal ao íorasteiro do
logo
ho-
mem que tem diante de si. Curioso e
nista, estuda de um golpe o visitante
oportu-
à sua ilha-e explora-o contorme a que chega
sua maior
ou menor boa-fé. E é com habilidade que o faz,
com aquela jeiteira maravilhosa do árabe nas
Suas relações com os homens de
outras raças,
do aventureiro que se metia ao
mar, sem medo
às monções, embarcado nos velhos
caiques que
vinham à costa de Africa
mercadejar com o in-
digena, com o qual se misturou para garantir
depois a sua fixação no litoral, de onde se
pas-
sou ao interior. O preto
do interior-o que vive
nas planícies-é mais sofredor. Trabalha a
terra, vive dela, Se
a não trabalha é
porque
realizou a «iortuna» de
poder comprar a sua
mulher. O negro pode ter mais que uma
mulher
O que é preciso é que cada uma tenha a sua
casa. O homem não precisa de ter casa. Terá a
das suas mulheres.
Serão elas e os filhos que cavarão a «ma-
chamba», Ele venderá a colheita na loja do
monhé». Receberá uma parte em bebida, a ou-
tra em capulanas» e missangas. Emigrara
quando o dinheiro lhe faltar. As mulheres e oS
filhos ficarão na terra,
que os amparará, que os
sustentará. O negro da montanha não é assim
Menos nómada, agarra-se ao chão onde levanta
a sua casa-e só o largará quando, feita a der
LITERATURA COLONIAL 11

ruba, a terra se cansar de produzir. Então


fará novas derrubas no mato
imenso, levan
tará a sua palhota, levará com ele a
mulher,
os filhos e os gados. Permanecerá, nesse
lugar,
Sómente o tempo em que a terra se desentra-
nhar em frutos. Alguns ficam mesmo
presos à
terra pobre, agarrados aos «amuletos", para que
o «Clulcumba» iaça que a senmente
germine vi-
çosa e dê iartura à sua casa. O
negro da mon-
tanha é sólido de corpo e de alma.E mais
rude,
mas é mais são. Hospitaleiro e bonacheir o, ofe
rece, ao que passa no caminho do mato, do seu
milho, da sua bebida e a esteira larga onde o
caminheiro estenderá ocorpo fatigado. Este
negro
nasce, vive e morre na sua montanha fértil, que
palmilha em todas as direcçóes gozando o espec
táculo grandioso da paisagem, as sombras verdes
das florestas, a frescura da água cristalina dos
regatos saltando de pedra em
pedra.
E um mundo novo a vida do litoral, das
grandes planícies ardentes do interior e das
montanhas; é um mundo novo para o homem
branco que chega, feitiço que o prende à terra
africana. Nestes lugares de Africa vive um ho-
mem quase desconhecido para nós. Tem a sua
história, as suas lendas, os seus hábitos e os
seus costumes, que formam a tradição do seu
«clan, o orgulho do homem nacional. Será no
contacto com esse homem, no seu «habitat», que
o escritor colherá os nateriais para as suas
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obras. Não de povos de


se imaginam romances
costumes que não conhecemos, nem eles se es
crevem sem um contacto fntimo, sem a vivencia
do meio bárbaro, curioso, que enche os olhos de
cor e a alma de coisas belas. Não se escreve
sobre a vida do homem do mar, sem ter ido com
ele para a sua faina, sentir o espectáculo gran-
dioso das ondas alterosas, a violência da tem-
pestade contra o cavername das embarcações,
ou gozar a das grandes calmarias, da
delicia

pesca farta, as canções dos homens satisfeitos.


Alan Villiers escreveu a história do «Argus»,
porque viveu o labor intenso do pescador do
bacalhau nos mares gelados da Groenlandia;
experimentou os frios e as tempestades desses
lugares, que são a vida e inferno do próprio
homem nos pequenos «doris» e ficou perdido
foi
na serração
compacta,escutando cheio de ansie-
dade as sirenes dos barcos dando o sinal de
chamamento para bordo, o aviso do fim da faina
desse dia,
ou o alarme de tempestade próxima.
Outros tentaram escrever essas páginas da faina
do bacalhau-e fizeram obra medíocre. E que
Alan Villiers, além de escritor de garra, era
marinheiro, tinha alma de lobo do mar. Os seus
descritivos têm verdade.
O romance de Africa só o
poderá escrever
quem tenha vivido a própria Africa. Nao o podera
discutir quem não viveu essa
vida, quen nao
Bentiu os problemas desse homem
que tambem
LITERATURA COLONIAL 13

tem alma e coração. Só com essa vivência o crí-


tico se aperceberá de certas coisas que lhe chei-
rarão a falso, por desconhecimento completo
delas. E por isso que, em certos jornais, há crí-
ticos especializados em temas africanos, escolhi
dos entre os escritores que viveram em Africa.
2

II-Actividade Estética

Dizia um membro da Assembleia


ilustre

Nacional, com pena de não ter vindo ao Ultra-


mar: «Falta-me a experiência que só o contacto0
directo dá, falta-me, desculpem-me a palavra,a
vivência imediata das
circunstâncias, das reali.
dades e do ambiente.» De facto: a vivência é a
grande lição da vida. A
experiência é a grande
vantagem do homem. Ela lhe dará possibilidades
sólidas de emitir a sua opinião sobre determi-
nados problemas. E no contacto imediato com
esses problemas que se
adquire deles a consciên-
Cia necessária
para os resolver; é no contacto
directo com o indígena que se conhece melhor
o homem africano para se fazer um estudo do
que ele representa como elemento de criação de
riqueza material, de que ele é como elemento
de com as suas preferências,as
razão espiritual,
suas paix es, o seu sentimento de
justiça hu-
mana, a sua noçao de arte verificada através de
objectos que as suas mãos trabalharam primo
rosamente.
LITERATURA COLONIAL 15

Compreendamos os negros», de Manuel Bel


chior, que é senão um livro de grande experiên-
cia da selva africana? Felisberto Ferreirinha-
artista e escritor das coisas de
Africa-longe,
infelizmente, da terra moçambicana,viveu quase
um quarto de século neste continente. A maior
parte desse espaço de tempo passou-o no Niassa,
de onde lhe vieram parar às mãos, anos antes,
esculturas dos negros que viviam na região pla-
náltica e distante dos Macondes. Servindo-se
delas, escreveu então um pequeno ensaio critico
sobre «Estatuária Maconde». Trabalho frouxo,
de pouco interesse, por mais que se tivesse es
forçado o autor por torná-lo vivo.Sentia-se nesse
trabalho a fantasia do escritor, o seu desejo de
penetração psicológica, servindo-se de uns bo
necos que revelavam mais que a presença do
artifice, que eram mais que actividade
do ope
rário. Ele incapaz de atingir a
o reconheceu, me
dida que dá ao esforço do obreiro a noção de
valor real. Não perdera a esperança de poder,
in loco», procurar a explicação de certos porme-
nores encontrados nos demorados estudos feitos
às suas estatuetas de pau preto. Elas diziam-lhe
o suficiente de uma
raça de artistas ignorados,
de uma arte que vinha de longe, perdida na
noite dos tempos, marcando um estádio de bela
actividade estética. Passados
anos, Felisberto
Ferreirinha, embrenhado nos estudos
de histó-
ria e etnografia dos indigenas de Moçambique,
16 RODRIGUES JÜNIOR

abalava para o Niassa. Por lá ficou 15 anos, em


que não se sou be dele-em que ele não disse
nada dos seus trabalhos. Viveu nos Macondes
com os escultores negros, cheio de curiosidade
pela sua vida: andou por
Moma e Montepuez,
desceuao Mogincual, inquiriu, ancioso de des
cobrir-e quando chegou ao sul, trazia óptimos
conhecimentos desses povos negros, cuja preo-
cupação de vida não era só a de alimentar o
fisico e cobrir a pele, não era apenas vida vege

tativa, animal. Era também anseio de vida su-


perior, regalo e gozo do espírito. Entre
os car-
regadores das praias de Mocímboa, descidos do
planalto, encontrou artistas que nas pausas do
trabalho das lanchas se «divertiam»a modelar
a madeira negra, arrancada às suas ilorestas.
O seu estudo «Estatuária Maconde» fora re-
fundido completamente. Surgiu um estudo novo,
arejado, largo, verdadeiro, capaz de interessar
e
ser contribuição valiosa para o conhecimento da
arte indigena. Alargou o artista o horizonte do
seu trabalho-e falou de música e de dança in-
digenas que lhe explicaram certas atitudes dos
seus bonecos.Acerca de uma exposição de arte
gentilicaque realizou em Nampula, falou do
grande número de criações artísticas de inesti-
mável valor, que, no entanto,eram desconheci
das e menosprezadas pelos civilizados. Entre os
espécimes de arte pura encontravam-se as esta
tuetas dos indigenas de Moma, mais primitivas
LITERATURA COLONIAL 17

que as dos Macondes,mas não menos atraentes;


as esculturas animalisticas dos indígenas de
Montepuez, singularmente belas, as esculturas
dos indigenas de Mogincual, mais bárbaras mas
de grande força expressiva; as pinturas decora-
tivas dos indigenas de Unango, feitas sobre
cas
cas de árvore, de curiosa composição e frescura.
Sobre arte e música-porque o interessou tam-
bém o folclore indigena-afirmava que havia
nas canções uma ritmia esquisita a implorar a
interferência genial dos Beethoven e dos Stra-
vinsky para nos ser revelado umn mundo de
vibrações e sentimentos.» E recordava, a propó-
sito, «um admirável trabalho que o documentá-
rio «Moçambique> começou a publicar em Janeiro
de 1946, sobre música dos Chopes, no distrito
de Lourenço Marques, da autoria de Hugh Tra-
cey, que estudou demoradamente em terras de
Zavala e Manjacaze».
No indigena do Sul, que calcurreia o cais de
Lourenço Marques à procura de quem 1he compre
os seus objectos trabalhados em madeira, encon-
trámos um sentido artístico bem pronunciado.
Há nesses bonecos, de que ele faz comércio,
revelações de artista, cuja necessidade de comer
o leva a produzir, às vezes, obra pobre, mas
mesmo assim cheia do espírito do homem que
a trabalhou.
Poucos têm sido os artistas que se hão de-
dicado a essa busca de valores estéticos para se
1S RODRIGUES JÚNIOR

fazer o estudo de uma arte africana,


que está
por escrever. Felisberto Ferreirinha iniciou esse
estudo de história e etnografia dos
Macondes,
principalmente, que tem a virtude de haver
sido a primeira pedra lançada no caminho
da
descoberta de uma arte gentilica
moçambicana.
Outros carrearão mais pedras para realizara
obra que urge se destaque no imenso oásis
das
coisas de arte de Moçam
bique. Mas os que qui-
serem dar a sua contribuição
para esta obra,
hão-de vir com o propósito de «estar>,de
«viver»
a terra africana, «sentir» o seu
periume,«ouvir
o seu chamamento perturbador. Se vierem comn
propósitos diferentes, farão apenas trabalho que
não dirá absolutamentenada dos
problemas da
terra e do seu nativo.
IV-Adaptação

Adaptação e renúncia imediata, para não


hostilizar o meio e ser esmagado. Sentem mais
essa renúncia os que chegam à cidade africana
e têm que sair dela por se haver excedido a sua
capacidade de lotação. A cidade moderna, com
um ou outro traço de um passado distante, não
impressiona
muito ao que desem barca nos seus
cais. E quase a cidade de lá. Não custa muito a

adaptação. Umas pequenas mudanças, apenas,


derivam de um novo processo de tralbalho, de
um clima diferente, de uma alimentação mais
sadia, de uma convivência mais larga. Em
Africa os homens não estão tão separados. A
escala social não é tão pronunciada. E explicá-
vel. A distância da Mãe-Pátria provoca estas
coisas. E ainda bem. Num pais em formação os
homens devem juntar-se todos.
O meio obriga a estas mudanças de hábito.
O homem da cidade é o mesmo. Trouxe de lá o
hábito do café e encontrou-o aqui, onde costuma
ir palrar, ganhar fama. Tem as esquinas onde,
20 RODRIGUES JÚNIOR

amorfo e inútil, se pôe a galantear a mulher


que passa; tem o cinema, a praia. A cidade afri-
cana oferece comodidade,movimento, cor. Oque
nela puder ficar, não sentirá tanto a mudança.
Não terá que renunciar, quase. E se o fizer será
para n o criar atritos à sua volta, será para se
acomodar. O homem da cidade tem uma habi
lidade extraordinária para se acomodar.A cidade
pouca margem dá à iniciativa. Nela está tudo
feito. Se tudo não é bom,
melhora-se, transfor-
ma-se o que não está bem, mas não se cria.
O homem que vive na cidade tem os seus passos
medidos. E posto nela para fazer determinada
coisa-e não fará mais do que isso. E
para
faze-lo não de
precisará iniciativa, nem de inte-
ligência. As coisas na cidade fazem-se
por há-
bito, mais nada. O mal está em
que a cidade
não pode abrigar todos os
que chegam. Porque
esta comodidade fascina.
As únicas portas de
saída
para o homem que «está», são
o cais, onde ficam
adoregresso,
os grandes paquetese os ne-
gros que trabalham a cantar, e a do
mato, onde
ainda a criatura
desesperada pode tentar a sorte.
Quase sempre a porta da cidade que dá
para o
mato fecha-se definitivamente o
para
dela feito excedente, elemento
que parte
que pesaria na
sua orgânica
económica,se teimasse em ficar.
No mato é que o choque é maior. Ai é que o
homem terá que renunciar. A adaptação é uma
necessidade imediata. Não tem outra alterna-
LITERATURA COLONIAL 21

tiva: ou se amolda ao meio e salva-se, ou luta


contra o meio e será esmagado. Mas o homem
prefere viver. Viver mesmo é a sua maior am-
bição. E cede, transige. Evidentemente que ce
der e transigir não é degradar-se. Talvez seja
diminuir-se um pouco. O homem que está no
mato não pode inferiorizar-se. Não pode perder
nenhumas das suas qualidades e virtudes de
elemento civilizador, não pode deixar que os
tesouros da sua alma (o amor do próximo,a suua
crença em Deus, a confiança
em si mesmo), se
percam ou afrouxem.A sua energia
moral quer-se

sempre moça, viva.


Mas o homem cede sempre. Acaba sempre
vai só para o mato,
por ceder. E cede mais que
o
sua palhota, sem
que fica, ao fim do dia, na
o con-
ninguém que lhe diga alguma coisa, que
sole das fadigas, que o trate na doença-que o
olhe com ternura. Ou fica atormentado
no seu
ou se miss-
isolamento, vencido, desamparado,
tão pe-
tura para que a vida não lhe pareça
nosa. Esse incidente representa
um adormeci
mento providencial, um anestésico para o mal
do isolamento e da distancia. Inicia assim o
homem, sem mesmo dar por isso,
uma existên
cia nova, que não
deixa de ter encantamentos.
A novidade foi sempre um remédio milagroso
para as curas da solidäo
e do isolamento. O mal1
é se a «novidade» toca a alma do homem, se as
coisas que foram distracçao, apenas, se trans-
22 RODRIGUES JÚNIOR

em sentimentos. O
drama
formam, mais tarde,
de Zé António da Sehura»
e a tragédia de
foram pequenos
Francisco Diogo da «Motase»,
humanas de momento,
incidentes, necessidades
se transtormaram em gratidão, em senti-
que dos quais é bem
mentos de natureza afectiva,
o homem isolado defender-se.
dificil
E este o drama do homem que emigra- e
vem só, meter-se no interior da Africa, sujeito
a todos os perigos da adaptaçã0, que
é quase
sempre renúncia. E não compreende
esta adapta
o que le e critica
ção o homem da Metrópole,
a obra do escritor africano-que é feita de ex-
periência, às vezes
de sabor bem amargo. O lei-
tor e o crítico metropolitano vêem, no romance
africano, a aventura
e não os problemas que ele
contém,enunciados, apenas, como indicação pre-
ciosa.
V-Os críticos
metropolitanos eo
romance colonial

Sehura» não era bem um romance.Talvez


não fosse mesmo romance. Melhor classificado,
talvez pudesse ser uma crónica de Africa, o
diário de Zé António, a sua vida do mato du
rante umlongo período de tempo em que ali
esteve só. Raul Gomes, na «Seara Nova», dizia,
então, que o resultava «sobretudo como
livro
uma espécie de depoimento cheio de sincero
desassombro». Sim. Era isso. Uma confissão que
teria ofendido a sensibilidade moral de certos
criticos. Era um livro verdadeiro. Disse-se, nessa

altura, que «Sehura» era a primeira tentativa de


romance colonial em que se tratava o caso da
ligação do branco com a negra,
da vida em
comum de duas criaturas cujo estado de civili-
zação era bem diferente. O mesmo critico da
Seara Nova», observando essa posição de Zé
António, através
do desenrolar da «crónica»,
dizia que, «na sua opiniao, a capacidade civili.
zadora do branco não se poderia manter pelo
mero exercicio de «virtudes», porque para a
24 RODRIGUES JÚNIOR

própria existência destas é preciso o sustentá


culo de condições materiais de vida
que permi-
tam a manutenção e a satisfação das necessidades
próprias dos meios civilizados. Desde o es-
que
timulo dessas condições materíais
desapareça, o
individuo passa a ter apenas as necessidades
que o meio lhe pode satisíazer». a
Daí, «queda»
de Zé António e a
«queda», maior, de Francisco
Diogo«0 Branco da Motase»-, de que em
Sehura» já se falava. O caso de «O Branco da
Motase é diferente do de Zé António. «E um
caso de derrota moral e física na
luta vida pela
e, para ele, o no mato e a
refúgio ligação com
uma negra representou a última solução. li- A
gação surgiu aqui como a salvação de um ho-
mem que fora corrido
para fora da civilização
e impedido de disfrutar as suas A
regalias. negra
salva-o da ruína
total, dá-lhe o calor humano
da sua solidariedade anímica
(solidariedade essa
que, para ser compreendida, tem de ser vista
para além de qualquer
desigualdadede raça ou
de condição social)». Raul
Gomes, o crítico da
Seara Nova»,
compreendeu a «Sehura» e aper
cebeu-se do drama de «0 Branco da
Motase,
que nesse livro aflorava,
Realmente, essa soli-
dariedade da Motase tinha de ser
entendida de
um ponto de vista
humano, para se aceitar de
alma aberta. De um ponto de vista religioso, o
mesmo acto teria uma A
significaçäo diferente.
ligação com a negra era um acto imoral, uma
LITERATURA COLONIAL 25

vez que Francisco Diogo tinha a mulher e os


filhos na Metrópole. Mas da solidariedade da
Motase resultou o pão para a mulher e os filhos
do madeireiro-e resultou, também, é verdade,
a desgraça total deles. Mas a culpa não foi nem
da Motase nem do seu branco. A culpa resultou
de um processo de emigração que supõe como
acto inteligente, a colonização à aventura. Tudo,
depois, em «O Branco da Motase», foi circuns-
tancial até à fuga de Francisco Diogo do presi
dio e à «procura» da liberdade que apetece aos
que alguma vez a tiveram cerceada. Não se pode
dizer que não tenha sido humana a atitude da
Motase, em ter proporcionado ao «seu» branco
essa liberdade eem o acompanhar,sujeitando-se
às mesmas dificuldades, às mesmas agruras da
vida. Então, não era já a vaidade da negra
de ter o «seu» branco para se tornar diferente
das que o não tinham mas um sentimento de
natureza afectiva, talvez mesmo piedade por ele,
a razão de haver deliberado segui-lo nessa ül-
tima aventura da vida. Piedade e remorso. Re
morso de não ter evitado a morte de Hussene
Ali, have-lo seguido
e deixado o branco, piedade
pelas suas lágrimas e pelas suas dores morais.
Se foi 1ógica a sua atitude de dedicação a Fran
cisco Diogo, não foi
menos lógico o seu desejo
de ver afastado de si o «seu» homem o negrO

Hussene Ali-que fora sempre um «cão danado».


No fundo, a mesma alma humana, quer seja a
26 RODRIGUES JÚNIOR

de um selvagem,quer seja a de um civilizado. O


reconhecimento do bem e a dedicação, não são
sentimentos no homem pela civili.
despertados
zação e pela cultura, são inerentes à própria na-
tureza psiquica do homem.
Chocaram a certo critico metropolitano de
O Branco da Motase», ignorante do meio am-
biente africano e da psicologia do seu povo
nativo, certas atitudes da Motase e de Hussene
Ali para as não admitir, para as não achar ver-
dadeiras. Assim, dentro do «seu» ponto de vista,
estas figuras do romance resultaram-lhe falsas,
sem nenhum dramatismo. Não o emocionou o
heroismo da Motase, menos ainda lhe despertou
sentimentos humanos, a raiva justa de Hussene
Ali pelo madeireiro Francisco Diogo. Nem a
paisagem conseguiu mexer-lhe a alma e enche-
-la de cor-de uma cor que nunca observara, e
era bem diferente nestes lugares tão distantes
do meio europeu.Só achou o «madeireiro Fran-
cisco Diogo, única figura traçada e viva de
bem
todo o liyro». E como não havia de achá-la bem
traçada e viva, se se tratava de um homem eu-
ropeu, nascido e criado num clima conhecidodo
crítico ? As outras figuras, porque
eram figurasS
de outro paralelo, de outro mundo desconhecido
para o teriam certamente de ser consi-
crítico,
deradás falsas...
Os problemase eram tantos os que aflora
vam em «0 Branco da Motase» não
foram re-
LITERATURA COLONIAL 27

apercebeu deles. E
Não se
feridos pelo critico.
nem podia ter-se apercebido uma vez que não
eram da sua «intimidade», nem eles, talvez, lhe
pudessem interessar muito. O
leitor do romance
colonial também não vê esses problemas. Só
procura na literatura colonial a aventura. Nada
mais.

iwbas
VI-Os escritores e Agência
Geral do Ulramar

O Sr. Dr. António Alberto de Andrade, es-


crevendo no «Diário Popular», de
Lisboa, em 13
de Janeiro do corrente ano, sobre o
«Balanço
Literário Ultramarino», disse
que predominava,
«neste sector da vida
portuguesa, a necessidade
de o Estado intervir na escassa
produção lite
rária, relativa ao nosso Ultramar>. Disse que,
além das Sociedades de Estudo e Círculos de
Cultura, o documentário «Moçambique», «Bole-
tim da Guiné» e a iniciativa valiosa da
Agência
Geral do Ultramar,pouco mais houve que desse
conta dos valores do
espírito espalhados pelo
Império. Refere que «o romance e a poesia s ão
representados, salvo erro, apenas com «O Branco
da Motase», de Rodrigues Júnior, e «Poesia», de
Januário Leite, editadas pela Associação Aca-
démica do Mindelo- que não se encontram no0
mercado metropolitano, Sobre carência ou
exis
tência de uma cultura moçambicana, travou-se
este ano
curiosa polémica entre Rodrigues Jú-
nior, autor de um grosso volume intitulado
LITERATURA COLONIAL 29

«Para umaCultura Moçambicana»,


que encerra
os valores da terra nos vários
géneros literários,
e o Dr. Alexandre Lobato, que emitiu a sua
opi-
tipicamente mo
nião de falta de uma cultura
çambicana, no livrinho «Sobre Cultura Moçam-
bicana.
Esta escasses de produção literária nem diz
absolutamente nada do nível cultural do ultra-
mar, nomeadamente de Moçambique, nem é
indicaçäão de falta de valores nem de que não há
interesse pela cultura. A escassês é sinal de
crise do livro e não de escritores. Por esta ra-

zão, o Concurso de Literatura Colonial, do ano


findo, não se realizou, parece-nos, por falta de
concorrentes. Estiveram presentes dois livros
que foram postos fora do concurso, certamente
por não satisfazerem às condições de admissão:
os livros de polémica, que o Dr.António Alberto
de Andrade considerou curiosa, «Para uma Cul-
tura Moçambicana» e Sobre Cultura Moçam-
bicana.
A escassês, como dizíamos, é, apenas, crise
do livro e não de escritores. Em Moçambique há
autores com à
livros prontos, espera de editor.
e
Não há editores- não há livros publicados.
Infelizmente para a Cultura.
Mesmo dactilogra
fados, nao merece a pena os autores concorrerem
ao Concurso de Literatura Colonial, aberto
anualmente pela Agência Geral do Ultramar.
E não merece a pena porque, dando-se o caso
50 RODRIGUES JUNIOR

bem dificil-de obterem o primeiro prémio, só


o poderiam receber, se fizessem a entrega de dez
exemplares impressos do seu trabalho. De certo
que para receberem um prémio de 7.500$oo não
iriam gastar 15.00o$0o numa edição de I.o00
exemplares do seu livro, sujeitos ainda às con-
tingências da venda na Metrópole e no Ultramar,
com o encargo de pagarem ao livreiro 40 por
cento de comissão. Os livreiros da Metrópole,
onde o autor deixa os seus livros em conta de
Comissäão, na sua grande maioria, não se inte-
ressam pela colocação do livro e tarde ou nunca
arrumam as contas com o autor da obra. in- O
teresse dos livreiros está, apenas, nas suas
edições.
No Ultramar näo há editores. As tipografias
do Ultramar que poderiam imprimir os livros,
levam pelas edições preços proibitivos, o triplo
do que custariam na Metrópole tais trabalhos.
Opanorama é este. Se ele fosse conhecido
do Dr. A. A. Andrade, certamente não teria
dito, a propósito da escasses de obras literárias
em 1952, «que o facto nada tem de anormal,
enquanto as nossas Províncias Ultramarinas não
atingirem o nivel cultural da Metrópole ou qual-
quer coisa que se lhe assemelhe. Esqueceu
o
autor do artigo «Balanço Literário Ultramarino»
o caso de Cabo Verde, a India e Macau. Quanto
a Moçambique, também há um certo desconhe-
cimento do meio, O caso apontado tem, pois, de
LITERATURA COLONIAL 31

facto alguma de anormal: a falta de ajuda


coisa
aos escritores, uma vez que é também bom iní-
cio do nível cultural do meio o número de obras

publicadas. Se näão há interesse dos editores em


facilitarem as publicações, o Estado que inter-
venha, como o sugere o Dr. A. A. Andrade no
seu «Balanço Literário Ultramarino». Que
seja
a Agência Geral do Ultramar, por intermédio
da sua Secção de Propaganda, que procure os
escritores e as suas obras, fazendo um inquérito
da existência de autores de livros ainda não
impressos. Outro tem sido o critério da Agência
Geral do Ultramar, que é o de procurar na Me
trópole quem escreva sobre problemas coloniais,
editando-lhes os livros. Dai resulta aparecerem,
de vez em quando, publicações versando assun-
tos que os autores não conhecem ou conhecem
mal. «Correntes Actuais do Pensamento Colo-
nial» do Dr. Armando Martins, é um desses li-
vros publicados pela A. G. U, referido já, com
largueza, no nosso ensaio «Afirmação de Pre
sença», livro de problemas do ultramar, cuja
discussão foi baseada em pontos de vista que
não estavam certos.
Devia partir-se desta certeza: de que é no
Ultramar, principalmente, gue estão os valores
do espírito, capazes de abordarem os problemas
que interessam verdadeiramente à formação de
uma autêntica consciência colonial.
Falar de problemascoloniais sem ter estado
32 RODRIGUES JÚNIOOR

no Ultramar, em contacto com eles, dar-lhes


solução sem conhecer in loco as maneiras justas
de os resolver, não é contribuir para melhorar
as condições públicas, económicas e sociais que
desses problemas derivam.
Fundadas razões tinha o Sr. Dr. Mário de
Figueiredo, ilustre membro da Assembleia Na-
cional, para demonstrara necessidade de conhe-
cer o Ultramar para conhecer os seus problemas:
Eu, do nosso Ultramar, só conheço, e tenho
disso muita pena, Bolama, onde estive não che-
gou a 24 horas. Dos contactos com a politica,
conheço algumas questões que se põem a res-
peito do Ultramar, de um modo geral, e a res-
peito de cada uma das provincias, em particular.
Conheço, como disse, dos encontros da convi
vência da vida política, os problemas que no
movimento dessa vida se agitam, e compreen-
derão, pois, o embaraço que experimento ao
intervir na discussão de um diploma em relação
ao Ultramar. Falta-me a experiência que só o
contacto directo dá, falta-me, desculpem-me a
palavra, vivência imediata das circunstâncias,
das realidades e do ambiente»

UCE1616
DE TECAD
L
LIOTEQMichel
DOAÇAO LETR

UN
Laban
RAS
UNIMSRS
iDADEDE LISPOA
Faculdade de Letras de Lisboa

LFL151647

Faculdade de Lotras dc L-isboa

ULFL151647

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