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9 7 8 ‑ 9 8 9 ‑ 6 7 1 ‑ 4 2 8 - 4
‑ ii‑
o mundo lido: europa
(volume 4)
PARTE II
coordena çã o c ie n tífic a:
helena ca rva lhão b u e s c u
cristina a lmeida r ib e ir o
ma ria gracie t e s ilva
simã o va le n te
l i sb oa
tinta‑ da‑ china
MMXVIII
www.tintadachina.pt
Título:
Literatura‑Mundo Comparada: Perspectivas em português
II — O Mundo Lido: Europa (Volume 4)
Coordenação Geral:
Helena Carvalhão Buescu
Composição: Tinta‑da‑china
Capa: Tinta‑da‑china
Louis ARAGON
Aureliano 25
Ludovico ARIOSTO
[Que bela sois, senhora! Tanto, tanto], in Colóquio Letras 168-169:
Imagens da poesia europeia – II 28
Jane AUSTEN
«Capítulos 1 e 2», in Orgulho e Preconceito 29
Charles BAUDELAIRE
«O convite à viagem», in As Flores do Mal 34
BERNARD DE VENTADOUR
[Ao ver mover a cotovia], in Colóquio Letras 164: Vozes da poesia europeia – II 36
Giovanni BOCCACCIO
«Dia 5, Novela IX», in Decameron 38
André BRETON
O Amor Louco 43
Charlotte BRONTË
Jane Eyre 46
Emily BRONTË
O Monte dos Vendavais 52
Lord BYRON
«Stanzas for Music», in Horas de Fuga 59
Geoffrey CHAUCER
«O conto da mulher de Bath», in Os Contos da Cantuária 60
Vittoria COLONNA
[Escrevo só p’ra aliviar o mal penoso], in Rime 65
Boris CRISTOV
«Meu cavalito», in O Canto e a Contenda 66
DANTE ALIGHIERI
«Canto V, Inferno», in A Divina Comédia 67
Gustave FLAUBERT
A Educação Sentimental 72
Ugo FOSCOLO
[Os dias inteiros em longo e incerto], in Le Poesie 79
FRANCISCO DE ASSIS
«O cântico do Sol», in Oiro de Vário Tempo e Lugar — De Francisco de Assis a
Louis Aragon 80
J.W. GOETHE
A Paixão do Jovem Werther 81
Luis de GÓNGORA
[Coisas, Celalba, tenho visto estranhas], in Antologia da Poesia Espanhola do
«Siglo de Oro» 86
HADEWIJCH
«Poemas espirituais», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 87
Peter HANDKE
Os Belos Dias de Aranjuez — Um diálogo de Verão 89
Heinrich HEINE
[Com mirtos e rosas, graciosos, galantes], in Rosa do Mundo: 2001 poemas
para o futuro 95
JAUFRÉ RUDEL
[Quando longos são os dias em Maio], in Colóquio Letras 164: Vozes da
poesia europeia – II 96
JOÃO DA CRUZ
[Vivo sem viver em mim], in Coplas da Alma Que Sofre por Ver a Deus 98
Madame de LA FAYETTE
A Princesa de Clèves 101
Else LASKER‑SCHÜLER
«Sulamita», in Baladas Hebraicas 103
Ioan MURE AN
«O telhado», in Cartea Alcool 106
P. MUSTAPÄÄ
«O caçador de aves», in Poesía Nórdica 107
Boris A. NOVAK
«Os nossos pequenos‑almoços», in Treze Poetas Eslovenos 108
NOVALIS
Os Hinos à Noite 109
OVÍDIO
«Narciso e Eco», in Metamorfoses 110
Francesco PETRARCA
[Era o dia em que ao sol descoloriam], in As Rimas de Petrarca 115
[Claras e frescas águas], in As Rimas de Petrarca 116
PLATÃO
O Banquete 119
Salvatore QUASIMODO
«Carta», in Três Momentos da Poesia Europeia: De Safo e Píndaro a Ungaretti
e Salinas 124
Francisco de QUEVEDO
«Amor constante para além da morte», in Antologia Poética 125
Jean de RACINE
«Acto 2», in Fedra 126
Pierre de RONSARD
[Vamos, meu bem, a ver se a rosa], in Alguns Amores de Ronsard 131
Christina ROSSETTI
«Um aniversário», in Poems and Prose 132
Umberto SABA
«A minha mulher», in Poesia (uma antologia de Il Canzionere) 133
William SHAKESPEARE
[Que és um dia de verão não sei se diga], in Os Sonetos de Shakespeare 136
SÓFOCLES
Antígona 137
Torquato TASSO
«Na morte de Margarida Bentivoglio», in Rosa do Mundo: 2001 poemas
para o futuro 144
TERESA DE ÁVILA
[Vivo sem viver em mim], in Antologia da Poesia Espanhola do «Siglo de Oro» 145
Lev TOLSTÓI
«Capítulos 29‑31», in Anna Karénina 147
Miguel de UNAMUNO
«Capítulo VIII», in A Tia Tula 156
Garcilaso de la VEGA
[Enquanto que de rosa e açucena], in Antologia da Poesia Espanhola
do «Siglo de Oro» 160
Endre ADY
«A pedra lançada ao ar», in Antologia da Poesia Húngara 163
Ivo ANDRI
«Capítulo 1», in A Ponte sobre o Drina 164
ANÓNIMO
«Cantar de Mio Cid», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 172
Baldesar CASTIGLIONE
«Capítulos XXIV-XXVIII», in O Livro do Cortesão 173
Rosalía de CASTRO
[Sem ela viver não posso], in Antologia Poética: Cancioneiro rosaliano 179
Hugo CLAUS
«A Mãe», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 182
Joachim DU BELLAY
[Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem], in Poesia de 26 séculos:
De Arquíloco a Nietzsche 184
Umberto ECO
O Nome da Rosa 185
Odisséas ELYTIS
[Língua deram‑me grega], in Louvada Seja (áxion estí) 193
Kazuo ISHIGURO
Os Despojos do Dia 206
James JOYCE
Ulisses 211
Vanda JUKNAITÉ
«O país de vidro», in O País de Vidro: Antologia de ficção contemporânea 215
Halldór LAXNESS
«Capítulo 1. Kólumkilli», in Gente Independente 217
Tito LÍVIO
História de Roma. Ab urbe condita 222
Niccolò MACHIAVELLI
«Capítulo XVIII – De que modo deve ser mantida pelos príncipes
a palavra dada», in O Príncipe 227
Alessandro MANZONI
«Capítulo I», in Os Noivos 230
Hendrik MARSMAN
«Soberano», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 236
Pedrag MATVEJEVIT
Breviário Mediterrâneo 237
Adam MICKIEWICZ
«As estepes de Aquermã», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 239
Eugenio MONTALE
«A história», in Poesia 240
Thomas MORE
«Dos magistrados», in Utopia ou a Melhor Forma de Governo 241
Ioan Es POP
[há quatro gerações…], in Unelte de Dormit 243
Friedrich SCHILLER
«III Acto, cena IV», in Maria Stuart 244
Henryk SIENKIEWICZ
«Capítulo 1», in Quo Vadis? 249
Zadie SMITH
«O singular segundo casamento de Archie Jones», in Dentes Brancos 253
SÓLON
«Eunomia», in Hélade: Antologia da cultura grega 260
Wisława SZYMBORSKA
«O campo da fome sob Jaslo», in Versos Polacos 262
TUCÍDIDES
«A oração imperial de Péricles: elogio dos mortos e do poder democrático»,
in História da Guerra do Peloponeso 264
VERGÍLIO
«Bucólica I», in Bucólicas 271
W.B. YEATS
«A ilha do lago de Innisfree», in Uma Antologia 274
Anna AKHMÁTOVA
[Foi terrível viver naquela casa], in Só o Sangue Cheira a Sangue 277
ANÓNIMO
«O ataque de Grendel», in Beowulf 285
ANÓNIMO
La Chanson de Roland 289
Ludovico ARIOSTO
«Canto XXIII», in Orlando Furioso 292
W.H. AUDEN
[Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas], in Colóquio Letras 165:
Vozes da poesia europeia – III 295
Honoré de BALZAC
«Capítulo 9», in A Prima Bette 297
Thomas BERNHARD
O Sobrinho de Wittgenstein: Uma amizade 300
Georg BÜCHNER
«Cenas 30‑31», in Woyzeck 309
Paul CELAN
«Fuga da morte», in Gedichte 313
Charles DICKENS
«Capítulo XXII», in Oliver Twist 315
Alfred DÖBLIN
«Um punhado de gente em volta do Alex», in Berlim Alexanderplatz:
A história de Franz Biberkopf 318
Fiódor DOSTOIÉVSKI
«Capítulo 6», in Crime e Castigo 321
Marguerite DURAS
Moderato Cantabile 325
George ELIOT
«O último conflito», in O Moinho à Beira do Rio 327
Ugo FOSCOLO
[Não sou quem fui: morreu‑me grande parte], Le Poesie 331
Jean GENET
As Criadas 332
William GOLDING
O Deus das Moscas 334
Graham GREENE
«Capítulo 1», in O Americano Tranquilo 338
Victor HUGO
«Livro Quarto — As boas almas», in Nossa Senhora de Paris 341
Attila JÓZSEF
«Noite de arrabalde», in Antologia da Poesia Húngara 345
Ismail KADARÉ
«Capítulo 1», in A Filha de Agamémnon 348
Imre KERTÉSZ
A Recusa 353
Karl KRAUS
«Acto V, cena 40», in Os Últimos Dias da Humanidade 359
Choderlos de LACLOS
«Cartas XCVI-XCVII», in As Ligações Perigosas 360
LAUTRÉAMONT
«Canto terceiro», in Os Cantos de Maldoror 367
Doris LESSING
A Erva Canta 369
Primo LEVI
Se Isto É Um Homem 373
Antonio MACHADO
[Odiosa mão traçou, oh minha Espanha], in Antologia da Poesia Espanhola
Contemporânea 377
Liliana MIHAILOVA
«O pequeno capote», in Gente Muito Simpática 378
Heiner MÜLLER
«A missão. Recordações de uma revolução», in A Missão
e Outras Peças 382
Herta MÜLLER
Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo 386
George ORWELL
«Capítulo I», in A Quinta dos Animais 388
Boris PASTERNAK
Doutor Jivago 391
Francesco PETRARCA
[Só, pensativo, o ermo descampado], in As Rimas de Petrarca 393
[Quando na erva fresca alvo pé vai], in As Rimas de Petrarca 394
Harold PINTER
«Acto I», in Feliz Aniversário 395
Mihail SADOVEANU
«Um drama na floresta», in Novos Contos Romenos 400
Arthur SCHNITZLER
O Tenente Gustl 403
Walter SCOTT
Ivanhoe 405
W.G. SEBALD
Austerlitz 409
SÉNECA
Medeia 412
William SHAKESPEARE
«Acto V», in Macbeth 415
Aleksandr SOLJENÍTSIN
Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch 418
August STRINDBERG
Menina Júlia: Tragédia em um acto 420
Dylan THOMAS
«A mão ao assinar este papel», in A Mão ao Assinar Este Papel 423
Lev TOLSTÓI
«Capítulos 10 e 11», in Guerra e Paz 424
Tomas TRANSTRÖMER
«Uma noite de Inverno», in Cinco Poetas Suecos (II) 431
Lucian VASILESCU
«Todos os espelhos», in Aproape. Atât de departe. Close. So far away 432
Lope de VEGA
«Fuenteovejuna», in Teatro de Lope de Vega 433
Stefan ZWEIG
O Mundo de Ontem: Recordações de um europeu 435
Rafael ALBERTI
«Balada para os poetas andaluzes de hoje», in Antologia de Poesia Espanhola
Contemporânea 439
Honoré de BALZAC
O Tio Goriot 442
Charles BAUDELAIRE
«Spleen», in As Flores do Mal 450
Simone de BEAUVOIR
O Segundo Sexo — Volume I. Os factos e os mitos 451
Samuel BECKETT
«Acto II», in En attendent godot 455
BERNARDO DE CLARAVAL
[Inclina para Ti, ó Deus], in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 460
Albert CAMUS
«Capítulo quinto», in O Estrangeiro 469
Elias CANETTI
Auto‑de‑Fé 473
Paul CELAN
«Salmo», in Gedichte 487
René CHAR
«Chant du refus — début du ‘partisan’», in Fureur et mystère 488
Paul CLAUDEL
«Cântico da vinha», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De São Francisco de Assis
a Louis Aragon 489
DANTE ALIGHIERI
«Canto XXXIII, Paraíso», in A Divina Comédia 491
Fiódor DOSTOIÉVSKI
«Capítulo 10. Foi ele quem mo disse», in Os Irmãos Karamazov 496
T.S. ELIOT
«The Dry Salvages — IV», in Quatro Quartetos 501
ERASMO
«Capítulo XIII», in Elogio da Loucura 502
ESOPO
«O homicida», in Esopo — Fábulas (Antologia) 504
EURÍPIDES
Medeia 505
Dinu FLAMAND
[já não terás de encher de cera], in Sombras e Falésias 507
Gustave FLAUBERT
Madame Bovary 509
J.W. GOETHE
Fausto 519
Zbigniew HERBERT
«Notícias da cidade sitiada», in Escolhido pelas Estrelas: Antologia poética 524
E.T.A. HOFFMANN
«O homem da areia», in Contos Nocturnos 527
Friedrich HÖLDERLIN
[Quando eu era rapaz], in Sämtliche Werke und Briefe 532
Victor HUGO
«À Villequier», in Les Contemplations 534
Henrik IBSEN
«Acto 3», in Casa de Bonecas 540
Milan JESIH
«Pai nosso», in Treze Poetas Eslovenos 545
James JOYCE
Gente de Dublim 546
Franz KAFKA
A Metamorfose 548
Thomas KINSELLA
«Espelho em Fevereiro», in Estradas Secundárias 553
Barbara KORUN
[Tenho dois animais], in Treze Poetas Eslovenos 554
Karl KRAUS
[Não me perguntem em que andei ocupado], in Os Últimos Dias da Humanidade 555
Jean de LA FONTAINE
«A morte e o desgraçado», in 100 Fábulas de La Fontaine 556
Stanisław LEM
Solaris 557
Giacomo LEOPARDI
«Canto nocturno de um pastor errante da Ásia», in Cantos 562
André MALRAUX
A Condição Humana 566
Thomas MANN
A Montanha Mágica 571
John MILTON
«Paraíso perdido», in Horas de Fuga. Traduções de poesias inglesas e de outras línguas 583
MOLIÈRE
«Acto I, cena 1», in O Misantropo 588
Alfred de MUSSET
«Acto III, cena 3», in Lorenzaccio 593
Cesare PAVESE
[Virá a morte e terá os teus olhos], in Três Momentos da Poesia Europeia:
De Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas 600
Milorad PAVI
«A história de Adão Ruhani», in Dicionário Khazar: Romance‑enciclopédia
em 100 000 palavras 601
Francesco PETRARCA
[Pel’aura em fios de oiro era esparzido], in As Rimas de Petrarca 604
PLATÃO
«29a-30b», in Apologia de Sócrates 605
Jan POTOCKI
«História de Pacheco, o endemoninhado», in Manuscrito Encontrado
em Saragoça 607
Marcel PROUST
À la recherche du temps perdu. La prisonnière 613
Aleksandr PÚCHKIN
[É tempo, meu amigo, o coração cansou‑se], in Poesia de 26 Séculos:
De Arquíloco a Nietzsche 619
Francisco de QUEVEDO
«Representa‑se a brevidade do que se vive e quanto nada parece
o que se viveu», in Antologia Poética 620
Arthur RIMBAUD
«Navio doido», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De São Francisco de Assis a Louis
Aragon 624
Pierre de RONSARD
[Qual no ramo se vê no mês de Maio a rosa], in Oiro de Vário Tempo e Lugar:
De São Francisco de Assis a Louis Aragon 628
Umberto SABA
«A cabra», in Poesia (uma antologia de Il Canzionere) 629
SAFO
[Parece‑me ser igual aos deuses aquele], in Poesia Grega Arcaica 630
Jean‑Paul SARTRE
A Náusea 631
William SHAKESPEARE
«Acto terceiro, cena I», in Hamlet 635
Claude SIMON
O Vento: Tentativa de reconstituição de um retábulo barroco 638
Zlatka TIMENOVA
[O verão fechado], [Uma flecha branca], [Café da manhã] e [Primavera
de novo], in DiVersos Poesia e Tradução 646
Lev TOLSTÓI
«Capítulo VI», in A Morte de Ivan Ilitch 647
Georg TRAKL
«Salmo», in Outono Transfigurado 650
Giuseppe UNGARETTI
«Os Rios», in La Vita di un Uomo: tutte le poesie 652
Lope de VEGA
El Caballero de Olmedo 655
Téophile de VIAU
[Um corvo grasna de mim perto], in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 661
Evelyn WAUGH
Reviver o Passado em Brideshead 662
Oscar WILDE
«Capítulo II», in O Retrato de Dorian Gray 666
Virginia WOOLF
«Capítulo II», in Um Quarto Que Seja Seu 671
W.B. YEATS
«The second coming», in The Collected Poems 676
A primeira vez que Aureliano viu Berenice achou‑a francamente feia. Até lhe
desagradou. Não gostou da maneira como vinha vestida. Um tecido que ele
não teria escolhido, porque possuía ideias próprias acerca de tecidos. Vira
várias mulheres vestidas assim. Isso levou‑o a formular um mau juízo a seu
respeito: porque, ostentando um nome de princesa do Oriente, parecia não
se considerar na obrigação de possuir bom gosto. Tinha, nesse dia, os cabelos
baços, mal‑arranjados. Ora os cabelos curtos exigem cuidados constantes.
Aureliano nem mesmo poderia afirmar se era loura ou morena. Mal a tinha
olhado. Dela só lhe ficara uma impressão vaga e geral de irritante aborreci‑
mento. E a si mesmo perguntava porquê. Era despropositado. Sim, talvez
fosse por ser pequenita, pálida... se acaso se chamasse Joana ou Maria, não
teria voltado a pensar no caso. Mas Berenice... Diabo de superstição. Eis,
afinal, o que o irritava.
Havia um verso de Racine que não lhe saía da cabeça, um verso que fora
a sua obsessão durante a guerra, nas trincheiras, e mais tarde, já desmobiliza‑
do. Um verso que nem mesmo considerava belo, cuja beleza até lhe parecia
duvidosa, inexplicável, mas que o obsidiara e obsidiava ainda:
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
Mr. Bennet foi um dos primeiros a prestar uma visita a Mr. Bingley. Tivera
sempre intenção de o fazer, embora até ao último momento assegurasse a
mulher de que não iria. Na verdade, só nessa noite, depois de desempenhada
a função, teve a esposa conhecimento dela. Eis como lhe foi revelada. Mr.
Bennet, que olhava para a sua segunda filha enquanto ela guarnecia um cha‑
péu, interpelou‑a de repente, dizendo:
— Espero que Mr. Bingley o aprecie, Lizzy.
— Não estamos em posição de saber aquilo que Mr. Bingley aprecia
ou deixa de apreciar — disse a mãe num tom ressentido —, já que não o
visitaremos.
— A mamã está a esquecer‑ se — disse Elizabeth — de que o vamos
encontrar nos saraus e que Mrs. Long nos prometeu apresentá‑lo.
— Não acredito que Mrs. Long faça tal coisa. Ela própria tem duas
sobrinhas. É uma mulher hipócrita e egoísta, tenho a pior impressão dela.
— A minha não é melhor — disse Mr. Bennet —, e folgo em saber que
dispensa os seus préstimos.
Mrs. Bennet não se dignou dar resposta. Incapaz, porém, de se conter,
pôs‑se a ralhar com uma das filhas:
— Não tussas dessa maneira, Kitty, pelo amor de Deus! Tem piedade dos
meus nervos. Estás a fazê‑los em farrapos.
— A Kitty não é capaz de ser discreta a tossir — disse o pai. — Não sabe
escolher o momento oportuno.
— Não tusso por prazer — retorquiu Kitty aborrecida.
— Quando será o teu próximo baile, Lizzy?
— De amanhã a duas semanas.
— Pois, é verdade — exclamou a mãe —, e Mrs. Long só regressa no dia
anterior. O que quer dizer que ela não poderá apresentá‑lo, já que ainda o não
terá conhecido.
— Então, minha cara, será a senhora quem gozará dessa vantagem sobre
a sua amiga, apresentando‑lhe Mr. Bingley.
— É impossível, Mr. Bennet, impossível, visto que eu própria o não
conhecerei. Como é que pode ser tão enervante?
— Respeito os seus pruridos. Um conhecimento de duas semanas é
decerto muito pouco. Não se pode pretender conhecer verdadeiramente
alguém ao fim de apenas quinze dias. Mas se não formos nós a assumir esse
risco, outra pessoa o fará. Mrs. Long e as sobrinhas não deixarão de tentar
a sua sorte. Como tal, e visto que ela o considerará um ato de generosida‑
de, se a senhora renunciar ao seu dever, eu próprio me verei obrigado a
cumpri‑lo.
As raparigas ficaram a olhar para o pai. Mrs. Bennet limitou‑se a dizer:
— Disparates, só disparates!
— Qual poderá ser o significado de tão enfática exclamação? — pergun‑
tou ele. — Acaso considerará a senhora as formas de apresentação, e tudo o
que elas implicam, um disparate? Neste ponto não posso, de forma alguma,
concordar consigo. O que me dizes disto, Mary? Tu que és uma rapariga tão
ponderada, sempre mergulhada em calhamaços e a coligir citações?
Mary procurou a todo o custo encontrar alguma coisa de muito assisado
para dizer, mas não conseguiu acertar com nenhuma.
— Enquanto a Mary ajusta as suas ideias — prosseguiu —, voltemos a
Mr. Bingley.
— Já estou farta de Mr. Bingley — exclamou a mulher.
— Lamento ouvi‑lo. Porque é que não mo disse antes? Se tivesse sabido
de manhã o que sei agora, decerto não o teria visitado. Foi, de facto, uma
infelicidade. Mas visto que a visita já foi feita, não nos podemos agora furtar
ao seu convívio.
O ar de estupefação no rosto das senhoras correspondeu exatamente ao
que Mr. Bennet pretendia — porventura o de Mrs. Bennet mais ainda que os
outros, conquanto, esgotadas as primeiras efusões de alegria, ela passasse a
declarar que nunca duvidara de que ele o fizesse:
— Que bondade a sua, meu caro Mr. Bennet! Tinha a certeza de que aca‑
baria por persuadi‑lo. Sabia que o amor que tem por suas filhas não o deixaria
desprezar um conhecimento como este. Não imagina como fico satisfeita!
E que partida o senhor nos pregou, ter feito a visita esta manhã e não nos ter
dito palavra até agora...
— Bom, Kitty, já podes tossir as vezes que te apetecer — disse Mr. Ben‑
net enquanto saía da sala, cansado dos arroubos da esposa.
— Que excelente pai o vosso, meninas — disse ela, assim que a porta se
fechou. — Não sei como algum dia poderão retribuir a sua bondade. Na ver‑
dade, nem eu mesma. Acreditem‑me que, nesta altura das nossas vidas, não é
que nos agrade muito andar a travar conhecimentos todos os dias... Mas, por
vocês, faríamos qualquer coisa. Lydia, meu amor, embora sejas a mais nova,
é bem possível que Mr. Bingley te convide para dançar no próximo baile.
— Oh, não tenho receio — disse Lydia com ar resoluto. — Posso ser a
mais nova, mas sou também a mais alta.
O resto do serão foi passado em conjeturas sobre quanto tempo Mr.
Bingley levaria para retribuir a visita de Mr. Bennet e a decidir quando o
deveriam convidar para jantar.
Móveis reluzentes,
Polidos plo tempo,
Decorariam a câmara;
As mais raras flores
Fundindo os odores
Ao vago aroma do âmbar,
Riquíssimos tectos,
Profundos espelhos,
O esplendor oriental,
Tudo falaria
Com a alma em surdina
A sua língua natal.
Vê nesses canais
Dormir essas naus
Cujo humor é vagabundo;
É pra saciar
As tuas vontades
Que vêm do fim do mundo.
— Os sóis, já deitando‑se,
Envolvem os campos,
Os canais, toda a cidade,
Com oiro e jacinto;
E o mundo dormindo
Numa quente claridade.
Federigo degli Alberighi ama e não é amado. Consome o seu património gastando em
cortesias, ficando‑lhe apenas um falcão. Um dia, não tendo alternativa, cozinha a ave
para a sua amada quando ela o visita; quando esta descobre o sucedido, muda‑se‑lhe a
disposição, toma‑o por marido e fá‑lo rico.
Tinha acabado de falar Filomena quando a rainha, tendo visto que mais nin‑
guém tinha nada a acrescentar, excepto Dioneo pelo seu privilégio, com ale‑
gria disse:
Toca a mim agora discursar; e eu, caríssimas senhoras, de uma novela
símile em parte à precedente vos falarei com todo o gosto, isto não só para
que conheças quanto poder tem o vosso charme sobre os corações gentis,
mas para que aprendais a ser vós mesmas, quando conveniente, dadoras de
vossas recompensas, sem deixar à Fortuna que vos guie, já que esta não pre‑
meia com critério, mas mais frequentemente sem lógica ou moderação.
Deveis então saber que Coppo di Borghese Domenichi, homem de
grande e reverenda autoridade na nossa cidade, digno de eterna fama por
costumes e virtude muito mais do que por nobreza de sangue, sendo já de
idade avançada, frequentemente se entretinha a falar com os seus vizinhos
das coisas passadas: isto sabia ele fazer melhor, com mais ordem, melhor
memória e ornado falar do que qualquer outro homem. Costumava dizer
que, entre outras suas belezas, na cidade de Florença viveu um jovem chama‑
do Federigo di Messer Filippo Alberighi, em matéria de armas e cortesia mais
apreciado do que qualquer outro mancebo da Toscana. Federigo, tal como
acontece ao mais gentil dos homens, apaixonou‑se por uma gentil mulher
chamada Monna Giovanna, nos seus tempos considerada uma das mais belas
e alegres damas de Florença. De maneira a conquistar o amor desta, o jovem
participava em justas, combatia, fazia festas e dava presentes, gastando todo
o seu património sem contenção; mas Monna Giovanna, não menos fiel a seu
marido do que bela, não fazia caso nem das coisas por ela feitas nem daquele
que as fazia.
Gastando assim Federigo muito mais do que podia e nada adquirindo, como
frequentemente acontece em tais casos as riquezas acabaram, e ele ficou
pobre, nada mais lhe restando do que uma pequena quintinha, de cujas par‑
quíssimas rendas vivia a custo, assim como um seu falcão que era dos me‑
lhores do mundo. De modo que, amando mais do que nunca e não podendo
continuar a ter a vida de burguês que desejava, foi viver para Campi, onde
ficava a sua quinta. Aí, caçando com o seu falcão e sem qualquer tipo de
companhia, pacientemente suportava a sua pobreza.
O rapaz, depois de muitas vezes ouvir estas ofertas, disse: «Minha mãe, se
conseguirdes que eu possa ter o falcão de Federigo, creio que prontamente
me curarei.»
O jovem, feliz com esta perspectiva, no mesmo dia mostrou algumas me‑
lhoras. No dia seguinte Giovanna, com outra dama por companhia, como
se fosse em passeio, deslocou‑se à pequena casa de Federigo, mandando‑o
chamar. Este, sendo que não era um bom período para a caça, há alguns dias
que não o fazia, estando na ocasião num campo seu a vigiar alguns trabalhos;
ouvindo que Monna Giovanna o chamava à porta, muito se maravilhou,
e alegre correu nessa direcção.
Giovanna, vendo‑o vir, com graça feminina foi ao seu encontro e, depois
de Federigo a ter reverencialmente saudado, disse: «Bem‑haja, Federigo!»
E continuou: «Vim para te recompensar pelos danos que sofreste amando
‑me mais do que o conveniente, e a recompensa é esta: é minha intenção
almoçar contigo hoje, junto com esta minha companheira.»
A isto respondeu humildemente Federigo: «Senhora minha, não recor‑
do qualquer dano que tenha recebido por vossa causa, mas sim tanto bem
que, se alguma vez qualquer valor tive, por vossa mercê e pelo amor que vos
tenho tido o alcancei. E estou‑vos ainda mais grato por receber a vossa gene‑
rosa visita hoje, que sou um pobre anfitrião, do que se tivesse acontecido nos
tempos em que tinha ainda por gastar tudo quanto gastei.»
Assim dito, com embaraço a recebeu em sua casa, conduzindo‑a ao
seu jardim, e aí, não encontrando outrem que lhe fizesse companhia, disse:
«Senhora, pois que outro não há, esta boa mulher, esposa deste trabalhador,
vos fará companhia enquanto trato da mesa.»
Federigo, ainda que vivesse em extrema pobreza, não se tinha ainda dado conta
do quanto errara ao gastar como havia feito, até essa manhã, em que nada
encontrando que pudesse dar à mulher por amor da qual tanto tinha já dado
a infinitos homens, compreendeu. Desmesuradamente angustiado maldizia
a sua sorte, correndo como um louco de um lado para o outro, sem encontrar
dinheiro ou o que pudesse empenhar. Sendo a hora tardia e tamanho o desejo
de algo poder oferecer à dama, não querendo mendigar nem de outros nem
do seu trabalhador, deparou‑se Federigo com o seu bom falcão, no seu poleiro
a sorte tenha feito as coisas de modo que não vo‑lo possa dar. Em poucas
palavras vos direi porque é este o caso: assim que me dissestes que vós, por
cortesia, queríeis comigo almoçar, por respeito ao vosso estatuto e ao vosso
valor, pareceu‑me digna coisa que vos honrasse com o melhor repasto que
pudesse encontrar, dentro das minhas escassas possibilidades. Recordei‑me
do falcão que agora me pedis, e julgando‑o de qualidade, digno de vós se me
afigurou. Esta manhã assado o tivestes sobre a tábua, o que me pareceu o
melhor uso que lhe pudesse dar; mas vendo agora que de outro modo o dese‑
jáveis, sinto uma tão grande dor de não me ser possível servir‑vos. Não creio
que possa alguma vez fazer a paz comigo mesmo.
Isto dito, fez com que as penas, os pés e o bico fossem trazidos como pro‑
va da sua sinceridade. Giovanna, tudo vendo e ouvindo, primeiramente
censurou‑o por ter matado um tal falcão para dar de comer a uma mulher;
mas logo, para si mesma, louvou a grandeza de alma de Federigo, que a po‑
breza não tinha podido nem poderia tocar. Assim, sem esperança de ter o
falcão e temendo pela saúde do filho, voltou a casa melancólica, e ao seu
filho. Este, ou por melancolia por não poder ter o falcão, ou talvez que a
doença o levaria de qualquer modo àquele ponto, ao fim de poucos dias,
com grandíssima dor da mãe, passou desta vida.
— Mas olhe que o St. John é um bom homem, Jane — contrapôs a Diana.
— Ele é um bom homem e um grande homem, mas, infelizmente, de
tanto se empenhar em passar à prática os seus ideais elevados, tem tendência
a esquecer‑se dos sentimentos e dos desejos das pessoas humildes. Será por
isso preferível que as pessoas insignificantes lhe saiam do caminho, não vá
ele pisá‑las. Lá vem ele! Vou deixá‑la, Diana! — E, ao vê‑lo entrar no jardim,
apressei‑me escada acima.
Contudo, fui obrigada a vê‑lo uma vez mais à ceia. Durante a refeição,
manteve a mesma compostura de sempre. Eu julgava que o St. John mal se
dignaria a dirigir‑me a palavra e estava segura de que desistira do plano de
se casar comigo, contudo, os acontecimentos sucessivos vieram mostrar‑me
que estava enganada em relação a ambos os aspectos. Falou comigo do modo
habitual, ou, melhor dizendo, naquele que ultimamente era o seu modo habi‑
tual, duma cortesia escrupulosa. Invocara sem dúvida o auxílio do Espírito
Santo para o ajudar a acalmar a fúria que eu despertara nele e estava agora
convencido de que me perdoara uma vez mais.
Como leitura vespertina antes das orações, escolheu o vigésimo primei‑
ro capítulo do Livro do Apocalipse. Era, como sempre, um prazer escutar
as palavras bíblicas saídas dos seus lábios, pois não havia momento em que
a sua voz fosse mais intensa e melodiosa, nem que os seus modos deixassem
transparecer uma simplicidade mais nobre que quando anunciava as profe‑
cias divinas. Nessa noite, a sua voz assumiu um tom ainda mais solene, os
seus modos investiram‑se dum significado ainda mais arrebatado, ali sen‑
tado entre o seu círculo doméstico (com a lua de Maio a brilhar através da
janela, tornando a luz da vela que estava em cima da mesa praticamente dis‑
pensável). Ali sentado, debruçado sobre a grande e velha Bíblia, enquanto
descrevia a visão dum novo céu e duma nova terra nela contida, anunciava
que Deus iria habitar entre os homens, enxugar‑lhes as lágrimas dos olhos e
prometer‑lhes que não haveria mais mortes, nem mágoas, nem prantos, nem
mais sofrimento, porque tudo o que era antigo iria desaparecer.
Estas palavras comoveram‑me duma forma particular sobretudo por‑
que senti, mediante a ligeira e indescritível alteração de tom com que o St.
John as proferiu, que o olhar dele entretanto se dirigia para mim.
— «Aquele que vencer, tudo haverá de herdar, e eu serei o seu Deus, e ele
será o meu filho. Mas» — leu ele numa toada lenta e bem cadenciada — «os
medrosos, os descrentes, etc… irão herdar o lago ardente de fogo e enxofre,
e que é a segunda morte.»
Doravante, fiquei informada do destino que o St. John receava que me
calhasse.
‑guarda que vela pela alma por que é responsável. Todos os homens de talento,
quer sejam homens de sentimento ou não, quer sejam fanáticos, ou aspirantes,
ou déspotas, desde que sejam sinceros, têm os seus momentos sublimes em
que conseguem conquistar e dominar quem está ao seu redor. Eu tinha vene‑
ração pelo St. John, uma veneração tão grande que a impetuosidade dele me
arremessou de imediato para o ponto que havia tanto tempo vinha a evitar.
Senti‑me tentada a baixar os braços, a deixar que a torrente da sua vontade
me projectasse para o vórtice da sua existência e aí perder a minha. Sentia‑me
quase tão encurralada por ele como me sentira, numa ocasião anterior e duma
maneira diferente, por outro. Fui uma tola de ambas as vezes. Ter cedido nessa
altura teria sido um erro de princípio; ceder agora seria um erro de julgamento.
Pelo menos é esta a minha opinião no momento, em que contemplo aquele
instante crítico com a serenidade que o tempo confere: naquela altura, eu não
tinha consciência da loucura que estava prestes a cometer.
Fiquei petrificada sob o toque do meu hierofante. As minhas recusas
foram esquecidas, os meus medos, ultrapassados, os meus combates, parali‑
sados. O Impossível, isto é, o meu casamento com o St. John, começava a ser
cada vez mais provável. Num abrir e fechar de olhos, tudo mudava por com‑
pleto. A Religião chamava‑me, os Anjos acenavam‑me, Deus ordenava‑me,
a minha vida enrolava‑se como um pergaminho, as portas da morte abriam
‑se e mostravam‑me a eternidade que se achava para lá delas. Tinha a sen‑
sação de que, em nome da protecção e da bem‑aventurança, seria capaz de
sacrificar tudo sem hesitar. A sala escura inundava‑se de visões.
— Seria capaz de se decidir agora? — interrogou‑me o missionário.
A pergunta foi feita num tom delicado. Oh, aquela delicadeza! Quão mais
poderosa era que a força! Com a fúria do St. John, eu podia bem; já sob a
sua bondade, eu dava por mim maleável como uma folha. Todavia, tive sem‑
pre a perfeita noção de que, se cedesse naquele momento, ele não perderia a
oportunidade de um dia me vir a fazer arrepender da minha rebelião prévia.
Uma hora de oração solene não seria suficiente para lhe mudar a natureza,
limitava‑se a elevá‑la.
— Eu poderia decidir se tivesse a certeza… — respondi‑lhe — se tivesse
a certeza de que é da vontade de Deus que eu me case consigo, e aceitaria o
seu pedido neste preciso instante… independentemente do que o futuro nos
reservasse!
— As minhas preces foram ouvidas! — exclamou o St. John. Pressionou
a mão com mais firmeza à minha cabeça, como se reivindicasse a minha pes‑
soa; envolveu‑me nos seus braços, quase como se me amasse (digo «quase»,
porque conhecia a diferença, pois sabia o que era ser amada; todavia, e a
— Não gostaria de te matar esta noite, a não ser que me dê para pegar fogo à
casa. Mas isso dependerá da minha fantasia...
Enquanto falava, tirou uma garrafa de quartilho de aguardente do
guarda‑louça e deitou uma porção num copo.
— Não, não beba! — supliquei. — Tenha em conta o que aconteceu, Mr.
Hindley. Tenha ao menos pena deste infeliz menino, se a não tem de si mesmo!
— Qualquer um será melhor para ele do que eu — respondeu‑me.
— Tenha compaixão da sua alma! — continuei, tentando arrancar‑lhe o
copo da mão.
— Nem pensar! Pelo contrário, terei grande prazer em enviá‑la para os
quintos do Inferno, para castigo do seu criador — respondeu‑me o blasfemo.
— Cá vai, à sua feliz danação.
Bebeu o álcool e, impacientemente, mandou‑nos embora, rematando
a ordem com uma série de imprecações tão horrorosas que é impossível
repeti‑las, ou lembrá‑las.
— É uma pena que não se possa matar a si mesmo bebendo — comen‑
tou Heathcliff e, como num eco, rosnou por sua vez uma enfiada de pragas,
quando a porta se fechou. — Está a fazer todo o possível para que isso acon‑
teça, mas a sua constituição é mais forte. Mr. Kenneth diz que apostaria a sua
égua como ele sobreviverá a qualquer homem deste lado de Gimmerton e irá
para a cova como um velho pecador, a não ser que algum feliz acaso, fora do
curso normal das coisas, interfira.
Fui para a cozinha, para embalar o meu cordeirinho até ele adormecer.
Heathcliff foi para o celeiro, segundo pensei — afinal, depois verificou‑se
que não tinha ido mais longe do que o outro lado do escano, onde se atirou
para uma cadeira junto da parede, afastado do lume, e ficou em silêncio.
Eu estava a embalar Hareton no colo e a trautear baixinho uma canção
que começava:
A noite ia alta e os meninos choravam,
Debaixo da terra a mãe ouvia‑os,
quando Miss Cathy, que escutara o alarido do seu quarto, meteu a cabeça
pela abertura da porta e sussurrou:
— Está sozinha, Nelly?
— Estou, menina.
Ela entrou e aproximou‑ se do lar. Eu, supondo que ia dizer alguma
coisa, levantei a cabeça. A expressão do seu rosto parecia transtornada e
ansiosa. Tinha os lábios entreabertos, como se tencionasse realmente
falar, e respirou fundo: mas o ar escapou‑lhe num suspiro, em vez de numa
frase.
Recomecei a cantar, tanto mais que não me tinha esquecido do seu com‑
portamento recente.
— Onde está Heathcliff? — perguntou, interrompendo‑me.
— A tratar do seu trabalho, na cavalariça — foi a minha resposta. Ele não
me contradisse; talvez estivesse a dormitar.
Seguiu‑se outra longa pausa, durante a qual me dei conta de que uma ou
duas lágrimas deslizavam da face de Catherine para as lajes do chão.
«Estará arrependida da sua vergonhosa conduta?», perguntei a mim
mesma. «Seria uma novidade, mas é possível que ela chegue a um ponto em
que isso aconteça. Não a ajudarei!»
Mas não; pouco se preocupava fosse com o que fosse, a não ser com o
que lhe dizia respeito.
— Meu Deus! — exclamou, por fim. — Sinto‑me muito infeliz!
— Que pena — comentei. — E difícil de contentar... Tantos amigos e tão
poucos cuidados, e não consegue ficar satisfeita!
— Nelly, guarda um segredo meu? — perguntou, ajoelhando a meu lado
e levantando para o meu rosto aqueles olhos cativantes com aquela expres‑
são que afugenta o mau génio, mesmo quando uma pessoa tem todo o direito
do mundo de o demonstrar.
— Merece ser guardado? — indaguei, menos carrancuda.
— Merece, e preocupa‑me, e tenho de o deitar cá para fora! Preciso de
saber o que devo fazer. Hoje, Edgar Linton pediu‑me que casasse com ele,
e eu dei‑lhe uma resposta. Antes que lhe diga se foi uma aceitação ou uma
recusa, diga‑me a Nelly qual devia ter sido a resposta.
— Francamente, Miss Catherine, como quer que eu saiba? É certo
que, considerando o papel que representou na presença dele, esta tarde, eu
diria que seria sensato rejeitá‑lo... Visto ter‑lhe feito o pedido depois disso,
só pode ser irremediavelmente estúpido, ou então um idiota temerário.
— Se fala assim, não lhe digo mais nada — declarou irritadamente,
levantando‑se. — Eu aceitei‑o, Nelly. Depressa, diga que fiz mal!
que Heathcliff não tem nenhuma ideia destas coisas... Ele não tem, pois não?
Ele não sabe o que é amar, pois não?
— Não vejo nenhuma razão para que ele não saiba, como a menina sabe
respondi. — E se a menina for a sua escolhida, ele será a criatura mais infe‑
liz que jamais nasceu! Assim que se tornar Mrs. Linton, Heathcliff perde‑
rá amiga, e amor, e tudo! Já pensou como vai suportar a sua separação dele,
e como ele suportará ficar completamente abandonado no mundo? Porque,
Miss Catherine...
— Ele completamente abandonado! Nós separados! — exclamou, num
tom de indignação. — Quem nos separará, diga‑me? Terão o destino de Milo!
Nunca, enquanto eu viver, Ellen, nenhuma criatura mortal o conseguirá. Mais
depressa todos os Linton da face da Terra se derreteriam em nada, do que eu
consentiria em abandonar Heathcliff. Oh, não é isso o que eu pretendo, não é
isso o que eu quero! Nunca seria Mrs. Linton se me fosse pedido um tal preço!
Ele continuará a ser tanto para mim como foi durante toda a vida. Edgar terá
que ignorar a sua antipatia e tolerá‑lo. E assim fará, quando conhecer os meus
verdadeiros sentimentos a respeito dele. Nelly, vejo‑o agora, considera‑me
uma miserável egoísta, mas nunca pensou que, se Heathcliff e eu nos casá‑
ssemos, seríamos mendigos? Ao passo que, se eu casar com Linton, poderei
ajudar Heathcliff a subir, e pô‑lo fora do domínio do meu irmão?
— Com o dinheiro do seu marido, Miss Catherine? — perguntei. — Não
o achará tão maleável como calcula. E, embora eu não possa considerar‑me
juiz, acho que esse é o pior motivo que até agora invocou para ser mulher do
jovem Linton.
— Não é, é o melhor! Os outros foram a satisfação dos meus caprichos;
e pensando em Edgar, também, em satisfazê‑lo. Este é para o bem de alguém
que abrange na sua pessoa os meus sentimentos por Edgar e por mim própria.
Não sei exprimi‑lo, mas certamente vossemecê e toda a gente têm a noção
de que existe, ou deveria existir, uma existência nossa para além de nós. Para
que serviria a minha criação se eu estivesse inteiramente contida aqui? Os
meus grandes tormentos neste mundo têm sido os tormentos de Heathcliff,
e eu observei e senti cada um deles desde o princípio; o meu grande pen‑
samento na vida é ele. Se tudo o mais desaparecesse e ele permanecesse, eu
continuaria a existir; e se tudo o mais permanecesse e ele fosse aniquilado,
o universo transformar‑ se‑ia um imenso desconhecido. Eu não pareceria
uma parte dele. O meu amor por Linton é como a folhagem das florestas.
O tempo há‑de mudá‑lo, tenho perfeita consciência disso, como o Inver‑
no muda as árvores. O meu amor por Heathcliff assemelha‑ se às rochas
eternas que existem por baixo: uma fonte de pouco deleite visível, mas
necessárias. Nelly, eu sou Heathcliff, ele está sempre na minha mente, não como
um prazer, do mesmo modo que eu não sou sempre um prazer para mim mesma,
mas como o meu próprio ser. Por isso, não volte a falar da nossa separação.
É impraticável. E...
Fez uma pausa e ocultou o rosto nas pregas do meu vestido, mas eu
afastei‑a energicamente. Perdera a paciência com a sua insensatez!
— Se algum senso encontro no seu contra‑senso, menina, ele só serve
para me convencer de que ignora os deveres que se assumem no casamento.
Ou então que é uma rapariga perversa e sem princípios. Mas não me inquiete
com mais segredos. Não prometo guardá‑los.
— Guarda este? — perguntou, ansiosamente.
— Não, não prometo — repeti.
Ela ia a insistir, mas a entrada de Joseph pôs fim à nossa conversa. Cathe‑
rine mudou o seu banco para um canto e embalou Hareton, enquanto eu
fazia a ceia.
Feita esta, o criado e eu começámos a discutir quem levaria a comida
a Mr. Hindley, e só resolvemos o assunto quando já estava tudo quase frio.
Concordámos então em que esperaríamos que ele pedisse, se quisesse comer;
receávamos de modo particular comparecer na sua presença depois de ele ter
estado algum tempo sozinho.
— E aquele imprestável inda nom voltou do campo, a esta hora? Que ‘tá
ele a tramar? Tamanho preguiçoso! — perguntou o velho, olhando à volta à
procura de Heathcliff .
— Vou chamá‑lo — respondi. — Tenho a certeza de que está no celeiro.
Fui e chamei‑o, mas não obtive resposta. Quando voltei, segredei a
Catherine que estava certa de que ele ouvira uma boa parte do que me disse‑
ra. E contei‑lhe que o vira sair da cozinha precisamente quando ela se queixa‑
va do comportamento do irmão para com ele.
Como ela mantivesse a mesma atitude, ele deu várias voltas de um lado
para o outro para dissimular a sua manobra; depois, pôs‑se muito perto da
sombrinha, encostada ao banco, e fingiu observar uma chalupa no rio.
Jamais vira um esplendor como o da sua pele morena, como a sedução da
cintura, nem como a delicadeza dos dedos que a luz atravessava. Encarava o
seu cesto de costura com assombro, como uma coisa extraordinária. Quais
eram o seu nome, a sua morada, a sua vida, o seu passado? Desejava conhecer
os móveis do seu quarto, todos os vestidos que usara, as pessoas que frequen‑
tava; e o próprio desejo da posse física desaparecia sob uma ânsia mais pro‑
funda, numa curiosidade dolorosa que não tinha limites.
Uma preta, de lenço na cabeça, surgiu, segurando pela mão uma menina,
já crescida. A criança, de cujos olhos corriam lágrimas, acabava de despertar.
Ela sentou-a nos joelhos. A menina não era sossegadinha, embora dentro em
pouco fizesse sete anos; a mãe já não gostaria dela; perdoavam-lhe demais os
seus caprichos. E Frédéric alegrava-se ao ouvir estas coisas, como se tivesse
feito uma descoberta, uma aquisição.
Julgava‑a de origem andaluza, crioula talvez; tinha trazido consigo das
ilhas aquela preta?
Contudo, um xaile comprido de franjas violetas achava‑ se colocado
atrás das suas costas, sobre o rebordo de cobre. Com certeza muitas vezes,
no meio do mar, durante as tardes húmidas, devia ter‑ se envolvido nele,
coberto os pés, dormido dentro do seu interior! Mas, arrastado pelas franjas,
escorregava a pouco e pouco, ia cair à água. Frédéric deu um salto e apanhou
‑o. Ela disse‑lhe:
— Agradeço‑lhe, senhor.
Os seus olhos encontraram‑se.
— Mulher, estás pronta? — gritou o Sr. Arnoux, aparecendo no anteparo
da escada.
A Menina Marthe correu para ele, e, pendurada no seu pescoço, puxava
‑lhe pelos bigodes. Retiniram os sons de uma harpa, ela quis ver a música;
e em breve o tocador do instrumento, trazido pela preta, entrou na primeira
classe. Arnoux reconheceu‑o como um antigo modelo; tuteou‑o, o que sur‑
preendeu os assistentes. Por fim, o harpista atirou os compridos cabelos para
trás das costas, estendeu os braços e pôs‑se a tocar.
Era uma romança oriental, onde se falava de punhais, flores e estre‑
las. O homem esfarrapado cantava isto com uma voz mordaz; os batimentos
da máquina cortavam a melodia nos momentos menos indicados; dedilhava
com mais força; as cordas vibravam, os sons metálicos pareciam exalar solu‑
ços, e como que o lamento de um amor orgulhoso e vencido. Dos dois lados
Um quarto de hora depois, sentiu vontade de entrar como que por acaso
no pátio das diligências. Torná‑la‑ia a ver, talvez?
«De que serviria?», diz para consigo.
E a americana levou‑o. Os dois cavalos não pertenciam à mãe. Esta tinha
pedido emprestado um ao Sr. Chambrion, o recebedor, para atrelá‑lo ao lado
do seu. Isidore, partido na véspera, descansara em Bray até à noite e dormira
em Montereau, de modo que os animais refrescados trotavam lestamente.
Campos ceifados prolongavam‑se a perder de vista. Duas linhas de árvo‑
res bordejavam a estrada, os montes de pedregulhos sucediam‑se; e, pouco
a pouco, Villeneuve‑ Saint‑ Georges, Ablon, Châtillon, Corbeil e as outras
terras, toda a sua viagem lhe voltou à memória, de um modo tão nítido que
agora distinguia pormenores novos, particularidades mais íntimas; por baixo
do último folho do vestido, o pé dela passava para uma estreita botina de
seda, de cor castanha; o toldo de cotim formava um imenso dossel por sobre
a sua cabeça, e as pequenas glandes rubras da ourela estremeciam ao sabor da
brisa, perpetuamente.
Assemelhava‑se às mulheres dos livros românticos. Ele não teria gosta‑
do de acrescentar fosse o que fosse, de retirar fosse o que fosse à sua pessoa.
O universo acabava de alargar‑se de repente. Ela era o ponto luminoso onde
o conjunto das coisas convergia; e, embalado pelo movimento da carruagem,
as pálpebras semicerradas, o olhar nas nuvens, abandonava‑se a uma alegria
sonhadora e infinda.
Em Bray, não esperou que tivessem dado a aveia, seguiu em frente, pela
estrada fora, sozinho. Arnoux tinha‑lhe chamado «Marie!». Gritou muito
alto «Marie!». A sua voz perdeu‑se no ar.
Uma larga mancha cor de púrpura inflamava o céu a ocidente. Volumo‑
sas medas de trigo, que se erguiam no meio dos restolhos, projectavam som‑
bras gigantescas. Um cão pôs‑se a uivar numa quinta, ao longe. Estremeceu,
tomado de uma inquietude sem causa.
Quando Isidore se lhe reuniu, instalou‑ se no banco para conduzir.
Passara‑lhe o desfalecimento. Estava decidido a introduzir‑se, fosse como
fosse, em casa dos Arnoux, e a dar‑se com eles. A casa devia ser divertida,
Arnoux, aliás, agradava‑lhe; depois, quem sabe? Então, um afluxo de sangue
subiu‑lhe ao rosto: as fontes latejavam‑lhe, fez estalar o chicote, sacudiu as
rédeas, e conduzia os cavalos de tal maneira que o velho cocheiro repetia:
— Devagar! Devagar!, vai estoirá‑los.
Pouco a pouco Frédéric acalmou‑se, e ouviu falar o criado. Estavam à
espera do Senhor com grande impaciência. A Menina Louise chorara por
não a deixarem vir na carruagem.
— E então?
O velhote tinha‑o recebido muito cordialmente, mas sem mostrar as
suas intenções.
A Senhora Moreau suspirou.
«Onde está ela agora?» pensava ele.
A diligência rodava, e, envolta no xaile sem dúvida, ela apoiava ao lençol
do cupé a bela cabeça adormecida.
Subiam para os quartos quando um moço do Cygne de la Croix trouxe um
recado.
— Que temos agora?
— É Deslauriers que precisa de mim — disse ele.
— Ah!, o teu camarada! — comentou a Senhora Moreau com uma risada
de desprezo. — A hora está bem escolhida, não haja dúvida!
Frédéric hesitava. Mas a amizade foi mais forte. Pegou no chapéu.
— Ao menos, não te demores! — disse‑lhe a mãe.
16 de Junho
Porque não te escrevo? Perguntas‑mo e, no entanto, contas‑te entre os
eruditos. Devias adivinhar que me encontro bem e, na verdade... Numa pala‑
vra, fiz um conhecimento que toca de perto a meu coração. E que... ah!, não sei.
Contar‑te, por ordem, como aconteceu ter conhecido uma das criaturas
mais adoráveis que existem, será difícil. Estou contente e feliz, por isso não
sou um relator capaz e objetivo.
Um anjo! Ora! Isso dizem todos da sua eleita, não é verdade? E, contu‑
do, não consigo transmitir‑te como ela é perfeita, o porquê da sua perfeição.
Basta, o certo é que ela cativou todos os meus sentidos.
Tamanha simplicidade em tanto entendimento, tamanha bondade em
tanta firmeza, e a paz de alma na vida real, na atividade.
Tudo isto que estou a dizer sobre ela é um palavreado desagradável, são
abstrações enfadonhas, que nem um só traço do seu ser conseguem descre‑
ver. Uma outra vez — não, não uma outra vez, é agora já que te quero contar
tudo. Se não é agora, não o farei nunca. É que, aqui entre nós, desde que
comecei a escrever, já estive três vezes para largar a pena, mandar pôr a sela
no cavalo e ir dar um passeio. Mas jurei a mim próprio, hoje de manhã cedo,
não sair a cavalo, o que não me impede de ir à janela minuto a minuto para ver
onde o Sol já vai...
Não consegui vencer‑me, tinha mesmo de sair, para a ver. E aqui estou
eu de novo, Wilhelm, vou comer o meu pão com manteiga e escrever‑ te.
A minha alma deleita‑ se ao vê‑la no meio daquelas crianças afáveis e tão
vivas, os seus oito irmãos!
Se continuo assim, estarás no fim tão instruído como ao princípio. Escu‑
ta, então, vouforçar‑me a entrar em pormenores.
Numa das minhas últimas cartas disse‑te que conheci o bailio S... que
me convidou a visitá‑lo no seu retiro, ou melhor, no seu pequeno reino.
Desleixei‑me e talvez nunca lá tivesse ido, não fosse o acaso ter‑me revelado
o tesouro que jaz escondido naquele lugar tranquilo.
1 É‑se forçado a suprimir este passo da carta, para não dar a ninguém razão para certas queixas.
Embora, no fundo, um autor não possa estar muito interessado no juízo isolado de uma rapariga
e de um jovem volúvel. (N. do t.)
1 Também aqui se omitiram os nomes de alguns autores nacionais. Quem partilha a preferência
de Lotte, senti‑lo‑á, por certo, no coração, caso leia este passo; quanto aos outros, não precisam
de o saber. (N. do t.)
I
Por mais tristes que estejam a estação e as avezinhas,
não pode está‑lo o nobre coração.
Mas quem quiser afrontar os trabalhos de Amor
d’Ele só terá de aprender
— doçura e crueza,
alegria e dor —
o que é preciso experimentar para amar.
II
As almas orgulhosas que cresceram na dilecção
e sabem amar sem que nada as acalme,
devem ser em todos os tempos
fortes e ousadas,
sempre prontas a receber
consolo ou aflição
por bem de Amor apenas.
III
Estranhas são as vias do Amor:
e bem o sabe quem as quer seguir:
muitas vezes ele perturba o coração seguro:
quem ama não encontra constância.
Aquele a quem a Caridade
toca no fundo da alma
conhecerá muita hora de desolação.
IV
Ora ardendo, ora frio,
agora tímido e ainda há pouco ousado,
numerosos são os caprichos do Amor.
V
Ora gracioso, ora terrível,
agora próximo e ainda há pouco distante:
para quem o conhece e nele confia
isto mesmo é alegria maior.
Como Amor
num só acto
fere e abraça!
VI
Ora humilhado, ora exaltado,
agora escondido, manifesto ainda há pouco,
para se ser um dia atingido pela dilecção
é preciso arriscar muita aventura —
antes de alcançar
aquele ponto em que se desfruta
da pura essência do Amor.
VII
Ora leve, ora pesado,
sombrio agora e claro ainda há pouco,
na doce paz, na sufocante angústia,
dando e recebendo —
dupla vida,
serve aos espíritos
que se perdem no amor.
O Homem
Quem é que começa?
A Mulher
Tu. Como estava previsto.
O Homem
Sim, estava previsto assim. — A tua primeira vez, com um homem, foi
como?
A Mulher
com uma voz adequada à cena, tal como o homem, mas não demasiado.
Olha ali um bútio, por entre as árvores, como uma flecha. Ou será um
milhafre?
O Homem
Um falcão. Os bútios e os milhafres andam às voltas por cima das árvo‑
res. Os falcões é que atravessam a floresta, ora por cima, ora por baixo
dos ramos, como flechas. Por mais do que uma vez, deparei‑me com um
JOÃO DA CRUZ. [Vivo sem viver em mim], in Coplas da Alma Que Sofre por
Ver a Deus. Tradução de José Bento. [1630] 1982. Lisboa: Assírio & Alvim.
63‑ 67.
E se me alegro, Senhor,
com a esperança de ver‑te,
ao ver que posso perder‑te
redobra então minha dor;
vivendo em tanto pavor
e esperando em tal sofrer,
eu morro por não morrer.
Na primavera, a vi dormindo;
logo a prendi, atada em rosas.
Não as sentiu, no sono fundo.
Quem quer que tu sejas, vem até aqui! Porque troças de mim,
jovem sem par?
Para onde foges quando te busco? Não são, com certeza,
nem o aspecto nem a idade razão para que fujas,
e até as ninfas me amaram!
Prometes-me nem sei que esperança em teu rosto amigo,
Quando eu te estendo os braços, também tu estendes os teus,
Quando rio, tu sorris. E notei algumas vezes tuas lágrimas,
se eu chorava. Respondes também com os teus aos meus sinais
de cabeça. E, quanto posso supor pelo movimento de tua bela boca,
formulas palavras que aos meus ouvidos não chegam.
Hipólito
Amigo, tudo é pronto? Eis que a Rainha vem.
Vai, que para largar se faça o que convém.
Manda dar o sinal, corre, ordena e regressa,
de atroz conversação liberta‑me depressa.
Enone
De um filho vos lembrai que em vós espera. E basta.
Fedra
Pronta partida, diz‑se, agora vos afasta,
Senhor. A vossa dor meu choro juntar venho.
E meu alarme expor quanto ao filho que tenho.
Já não tem pai meu filho e não é longe o dia
em que até minha morte ele inda presencia.
Já inimigos mil atacam sua infância.
Só em vós pode ter na protecção constância.
Mas secreto remorso a minh’alma ora agita.
Creio ter‑vos fechado o ouvido a tal desdita.
Tremo só de pensar que justa ira em vós tem
de nele perseguir uma odiosa mãe.
Hipólito
Senhora, a tal baixeza eu nunca desceria.
És como a coelha
assustada. Dentro da estreita
grade ao ver‑te de pé
se põe direita,
e para ti a orelha
imóvel e comprida
volta que o farelo e as raízes
tu lhe levas, sem isso
se esconderia,
num qualquer recanto escuro.
Quem poderia a comida
retirar‑lhe? Quem o pêlo
que arranca de cima,
para juntá‑lo ao ninho
Tu és como a andorinha
que volta na Primavera.
E no Outono parte;
mas tu não tens essa arte.
O que tu tens da andorinha
é a errância pouco austera;
o que para mim, que me sentia e era
velho, anunciava uma outra Primavera.
Tu és como a previdente
formiga. Dela, quando
ao campo vão
a avó e ao menino que
leva pela mão,
fala como lhe aprouver.
E também na abelha
te reconheço, e em todas
as fêmeas de todos
os serenos animais
que estão perto de Deus;
mas em nenhuma outra mulher.
Coro
É bem claro. Indómita é a descendência, de indómito pai nascida. Não
aprendeu a curvar‑se perante a desgraça.
Creonte
Mas fica sabendo que os espíritos demasiado obstinados são os que mais
depressa sucumbem, e o mais sólido ferro, levado ao rubro e endurecido
pelo fogo, é frequente vê‑lo partir‑se e reduzir‑se a bocados. Sei bem que
com um pequeno freio se subjugam os cavalos fogosos. E não costuma ter
pensamentos altivos quem é escravo daqueles que lhe estão próximos.
Esta soube bem ser insolente, quando tripudiou sobre as leis estabeleci‑
das. E depois de feito isso, comete nova insolência, vangloriando‑se da
sua acção e rindo de a ter praticado. Porém é ela que será um homem e
não eu, se lhe deixo esta vitória impunemente. Pode ela ser nossa sobri‑
nha ou mais próxima de nós pelo sangue do que qualquer outro dos que
vivem no meu lar. Ela, e a que é da mesma origem, não escaparão à pior
das sortes. Porque também a essa eu acuso de ter premeditado igual‑
mente o enterro. (Para um dos seus guardas) Chamai‑a, porque eu vi‑a há
pouco lá dentro em delírio, sem dominar a razão. É que a alma daque‑
les que tramaram o mal na sombra acusa‑os do crime antecipadamente.
Mas o que mais abomino é que quem foi apanhado em flagrante delito,
ainda por cima se vanglorie disso.
Antígona
Intentas algo mais do que prender‑me para me matar?
Creonte
Eu não. Com isso me dou por satisfeito.
Antígona
Então porque hesitas? Assim como das tuas palavras não me vem
nenhum deleite, nem poderá jamais vir, assim também o meu parecer
te é desagradável por natureza. E, contudo, onde podia eu granjear fama
mais ilustre do que dando sepultura ao meu próprio irmão? Todos os que
aqui estão diriam também como aprovam este acto, se o medo lhes não
Ocupada com o futuro e com o papel especial que esperava vir a desempe‑
nhar, Mathilde começou a ter saudades das discussões áridas e metafísicas
que muitas vezes tinha com Julien. Fatigada de tão altos pensamentos, às
vezes também sentia falta dos momentos de felicidade que sentira junto
dele; estas últimas lembranças não apareciam sem remorsos, que em alguns
momentos a atormentavam.
«Mas, se temos uma fraqueza», pensava, «é digno de uma jovem como
eu somente esquecer os seus deveres por um homem de mérito; ninguém
dirá que foram os seus belos bigodes ou a sua graça a montar a cavalo que me
seduziram, mas sim as suas profundas discussões sobre o futuro que espera a
França, as suas ideias sobre a semelhança que os acontecimentos que se vão
abater sobre nós podem ter com a revolução de 1688 na Inglaterra. Fui sedu‑
zida», respondia ela aos seus remorsos, «sou uma mulher fraca, mas ao menos
não fui enganada como uma boneca pelas vantagens exteriores.
«Se houver uma revolução, porque não desempenharia Julien Sorel o
papel de Roland e eu o de Madame Roland? Prefiro esse papel ao de Madame
de Staël: a imoralidade do comportamento será um obstáculo no nosso século.
Decerto não me reprovarão uma segunda fraqueza; eu morreria de vergonha.»
Os devaneios de Mathilde, é verdade, não eram todos assim tão graves
quanto os pensamentos que acabamos de transcrever.
Ela olhava Julien e descobria uma graça encantadora nas suas mais
pequenas acções.
«Sem dúvida», dizia a si mesma, «consegui destruir nele até a menor ideia
que ele faz dos direitos. O ar de infelicidade e de paixão com que o pobre
rapaz me disse aquela frase de amor, há oito dias, é aliás uma prova disso;
é preciso convir que fui muito excêntrica em zangar‑me com uma frase em
que brilhavam tanto respeito, tanta paixão. Não sou a mulher dele? A frase
era muito natural e, devo admitir, muito amável. O Julien ainda me amava
depois de longas conversas nas quais lhe falei apenas, e com muita crueldade,
admito, das veleidades de amor que o tédio da vida que levo me inspirou por
esses jovens da sociedade dos quais ele é tão ciumento. Ah! Se ele soubesse
como são pouco perigosos para mim! Como me parecem, perto dele, estiola‑
dos e copiados uns dos outros!»
Ao fazer estas reflexões, Mathilde riscava com o lápis, ao acaso, uma folha
do seu álbum. Um dos perfis que ela desenhou surpreendeu‑a, maravilhou‑a:
parecia‑se com Julien de uma maneira impressionante. «É a voz do céu! Eis
um dos milagres do amor», exclamou com enlevo: «sem dar‑me conta, fiz o
seu retrato.»
Fugiu para o quarto, onde se encerrou, e, com muita aplicação, procurou
seriamente fazer o retrato de Julien, mas não conseguiu; o perfil traçado ao
acaso continuou a ser o mais parecido. Mathilde ficou encantada, viu nisso
uma prova evidente de grande paixão.
Ela só deixou o álbum muito tarde, quando a marquesa mandou chamá
‑la para irem à ópera italiana. Ela só teve uma ideia, procurar Julien com os
olhos para o fazer ser convidado pela mãe a acompanhá‑las.
Ele não apareceu; as damas só tiveram pessoas vulgares no seu camaro‑
te. Durante todo o primeiro acto, Mathilde sonhou com o homem que ela
amava com os transportes da mais viva paixão; mas, no segundo acto, uma
máxima de amor cantada, cumpre reconhecer, sobre uma melodia digna de
Cimarosa penetrou‑lhe o coração. A heroína da ópera dizia: «Devo ser puni‑
da pelo excesso de adoração que sinto por ele, amo‑o demais!»
Ao ouvir este canto sublime, tudo o que existia no mundo desapareceu
para Mathilde. Falavam‑lhe; ela não respondia; a mãe repreendia‑a, ela mal
conseguia dirigir‑lhe o olhar. O seu êxtase chegou a um estado de exaltação
e de paixão comparável às emoções mais violentas que Julien vinha sentindo
por ela há alguns dias. A cantilena, cheia de uma graça divina, sobre a qual era
cantada a máxima que parecia aplicar‑se de forma tão impressionante à sua
situação, ocupava todos os instantes em que ela não pensava directamente
em Julien. Graças ao seu amor à música, sentiu nessa noite o que a Sr.ª de
Rênal sempre sentia ao pensar em Julien. O amor cerebral certamente tem
mais espírito que o amor verdadeiro, mas tem apenas instantes de entusias‑
mo; ele examina‑se demais, julga‑se a todo o momento; longe de desgarrar o
pensamento, é construído à força de pensamentos.
De regresso a casa, não importa o que dissesse a Sra. de La Mole, Mathil‑
de alegou ter febre e passou uma parte da noite a repetir essa cantilena ao
piano. Ela cantava as palavras da canção que a enfeitiçara:
O resultado daquela noite de loucura foi que ela acreditou ter conseguido
triunfar do seu amor. (Esta página prejudicará de mais de uma maneira o seu
infeliz autor. As almas geladas acusá‑lo‑ão de indecência. Mas ele não come‑
te a injúria, às jovens que brilham nos salões de Paris, de supor que somente
uma delas seja susceptível dos movimentos de loucura que degradam o carác‑
ter de Mathilde. Esta personagem é totalmente imaginária, e até imaginada
fora dos hábitos sociais que entre todos os séculos assegurarão uma posição
tão distinta à civilização do século xix.
Não é de modo nenhum a prudência que falta às jovens que ornaram os
bailes deste Inverno.
Não penso tão‑pouco que se possa acusá‑las de desprezar uma brilhante
fortuna, cavalos, belas terras e tudo que assegura uma posição agradável na
sociedade. Longe de ver apenas o tédio em todas essas vantagens, estas são
geralmente o objecto dos desejos mais constantes, e, se há paixão nos cora‑
ções, é paixão por elas.
Não é tão‑pouco o amor que governa a fortuna dos jovens dotados de
algum talento como Julien; estes apegam‑se de uma forma invencível a um
grupo e, quando o grupo faz fortuna, todas as boas coisas da sociedade cho‑
vem sobre eles. Ai do homem de estudo que não pertence a nenhum grupo,
reprovar‑lhe‑ão até pequenos êxitos muito incertos, e a alta virtude triunfará
roubando‑o. Pois é, senhores, um romance é um espelho que se leva por uma
grande estrada. Ora reflecte a vossos olhos o azul do céu, ora a imundície
do lodaçal da estrada. E o homem que transporta o espelho nas costas será
por vós acusado de ser imoral! O seu espelho mostra a imundície, e acusais
o espelho! Acusai antes o grande caminho onde está o lamaçal, e mais ainda
o inspector de estradas que deixar a água empoçar‑se e o lamaçal formar‑se.
Agora que está bem entendido ser o carácter de Mathilde impossível
no nosso século, não menos prudente que virtuoso, receio irritar menos ao
continuar o relato das loucuras desta jovem encantadora.)
Durante todo o dia seguinte, ela espreitou as ocasiões de poder triun‑
far da sua louca paixão. O seu principal objectivo foi desagradar em tudo a
Julien; mas nenhum dos movimentos dele lhe escapou.
Julien estava demasiado infeliz e sobretudo demasiado agitado para adi‑
vinhar uma manobra de paixão tão complicada, muito menos pôde perceber
o que ela encerrava a seu favor: ele foi a vítima dessa manobra; talvez jamais
a sua infelicidade tenha sido tão excessiva. As suas acções estavam tão pouco
Anna entrou na caleche, sentindo‑se ainda pior do que quando saíra de casa.
O sentimento de ser repudiada e insultada, que tivera no encontro com
Kitty, juntou‑se aos sentimentos anteriores.
— Onde deseja ir? Para casa? — perguntou Piotr.
— Sim, para casa — disse Anna, já sem pensar onde iria.
Como elas olhavam para mim... como para qualquer coisa medonha,
incompreensível e curiosa. O que poderá ele contar ao outro com tanto ardor?
— pensou, olhando para dois transeuntes. — Será possível dizer aos outros o
que sentimos? Quis contar a Dolly, e ainda bem que não contei. Ficaria muito
contente com a minha desgraça! Teria escondido essa alegria, é claro; mas o
seu sentimento principal seria de alegria por eu ter sido castigada pelos pra‑
zeres que ela invejava. Kitty, essa ficaria ainda mais contente. Vejo‑a como se
fosse à transparência! Sabe que a minha amabilidade com o marido foi maior
do que é habitual. E tem ciúmes e odeia‑me. E ainda mais, despreza‑me. Aos
olhos dela, sou uma mulher imoral. Se eu fosse imoral, poderia apaixonar por
mim o marido dela... se quisesse. Aliás, quis. Olha, aquele vai muito contente
consigo próprio — pensou de um senhor gordo, de bochechas vermelhas,
que vinha em sentido contrário, a tomou por uma conhecida e soergueu o
chapéu lustroso sobre a careca lustrosa, mas depois percebeu que se enga‑
nara. — Achou que me conhecia. Mas conhece‑me tão mal como qualquer
outro neste mundo. Eu própria não me conheço. Conheço os meus apetites,
como dizem os franceses. Àqueles apetece‑lhes gelado todo porco. E eles
sabem‑no. Sabem‑no com certeza — pensou, olhando para dois garotos que
fizeram parar um vendedor dos gelados; o vendedor tirou o balde do pescoço
e limpou a cara suada com a ponta da toalha. — Apetece‑nos a todos coisas
saborosas, doces. Não há confeitos, então seja o gelado sujo. À Kitty tam‑
bém: se não for Vrônski, então Lióvin. E tem‑me inveja. E odeia‑me. E todos
nós nos odiamos uns aos outros. Eu odeio Kitty, Kitty a mim. Isto é que é a
verdade. Tiútkin, coiffeur... Je me fais coiffer par Tiútkin... Vou dizer‑lho quan‑
do ele voltar — pensou e sorriu. Mas no mesmo momento lembrou‑se de
Gertrudes, que se instalara em casa de sua irmã desde que esta dera à
luz pela última vez e durante a sua última doença, disse um dia a seu cu-
nhado:
— Olha, vou levantar a minha casa.
O coração de Ramiro pôs‑se a galope.
— Sim — acrescentou —, tenho de vir viver convosco e tratar dos peque‑
nos. Não se pode, além disso, deixar aqui sòzinha essa boa rês de ama.
— Deus te pague, Tula.
— Nada de Tula, já to tenho dito; para ti sou Gertrudes.
— E que diferença há?
— Isso é comigo.
— Olha, Gertrudes…
— Bem, vou ver o que está a ama a fazer.
E vigiava‑a sem descanso. Não a deixava dar o peito ao pequeno diante
do pai, e repreendia‑a pelo pouco recato e muita desenvoltura com que des‑
tapava o seio.
— Não é preciso que mostres isso assim: na criança é em quem tens de
ver se tens ou não leite abundante.
Ramiro sofria e Gertrudes sentia‑o sofrer.
— Pobre Rosa! — dizia continuamente.
— Agora os pobres são as crianças e é neles que tens de pensar…
— Não chega, não. Apenas descanso. Sobretudo de noite a saudade dói
‑me; há noites que as passo em branco.
— Sai depois de jantar, como saías nos últimos tempos de casado, e não
voltes a casa até que tenhas sono. Uma pessoa tem de deitar‑se com sono.
— Mas é que sinto um vazio.
— Vazio, tendo filhos?
— Mas ela é insubstituível…
— Também acho… Embora, vocês, os homens…
— Nunca julguei que a quisesse tanto…
sua mãe. E dado que tenho estes filhos para tratar, já não devo casar‑me. Perdoa‑me,
Ricardo, perdoa‑me por Deus, e repara bem porque faço isto. Custa‑me muito, porque
sei que haveria de chegar a amar‑te e, sobretudo, porque sei quanto me amas e sofrerás
com isto. Sinto na alma causar‑te esta dor; mas tu, que és bom, compreenderás os meus
deveres e os motivos da minha resolução, e encontrarás outra mulher sem as minhas
sagradas obrigações e que te possa fazer mais feliz que eu. Adeus, Ricardo, que sejas
feliz, e faças felizes outros, e tem a certeza de que nunca, nunca te esquecerá a
Gertrudes»
Na maior parte do seu curso, o rio Drina corre através de gargantas aperta‑
das, entre serras abruptas ou profundos desfiladeiros de arribas escarpadas.
Apenas de quando em quando as margens do rio se dilatam em vales abertos
formando, de um ou do outro lado, chãs de terra fértil, ora planas, ora ondu‑
ladas, próprias para cultivo e povoamento. Uma destas planuras começa
aqui, em Višegrad, no lugar onde o Drina irrompe, numa súbita curva, da pro‑
funda e estreita ravina formada pelos rochedos de Butkovo e as montanhas
de Uzavnica. A curva que o Drina aqui faz é excepcionalmente cerrada e as
montanhas de ambos os lados são tão íngremes e tão próximas que parecem
um sólido bloco de pedra de onde o rio jorra, como uma muralha parda. É a
partir daqui que as montanhas se alargam bruscamente num anfiteatro irre‑
gular, cujo diâmetro não ultrapassa uns quinze quilómetros em linha recta.
Nesse lugar onde o Drina se precipita com toda a impetuosidade das
suas águas verdes e espumosas, da massa aparentemente fechada das mon‑
tanhas áridas e negras ergue‑se uma ponte de pedra grande e harmoniosa‑
mente talhada, com onze arcos de vão largo. Da ponte estende‑se, como um
leque, todo o vale ondulante e nele a pequena cidade de Višegrad e as suas
cercanias, com povoações aninhadas nas abas das colinas, cobertas de sea‑
ras, prados e ameixoais, riscada por muros e sebes e salpicada de pequenos
bosques e raros tufos de verdura. Assim, olhando à distância, parece que é
dos arcos amplos daquela ponte branca que brota e se alastra, não só o verde
Drina, mas também essa planura fértil e mansa, com tudo o que nela existe
bem como os céus meridionais por cima.
Na margem direita do rio, a partir da ponte, estende‑se a cidade com a
sua alcaçaria, uma parte pela planura e outra pelas encostas das colinas. No
outro lado da ponte, ao longo da margem esquerda, fica Maluhino Polje, um
bairro espalhado ao longo da estrada rumo a Sarajevo. Assim a ponte, unindo
os dois troços da via para Sarajevo, liga a cidade aos seus arrabaldes.
Na verdade, dizer «liga» é exactamente tão certo como dizer: o sol
nasce de manhã para que nós, os homens, possamos olhar em redor e fazer
Nas Cortes, o conde D. García ataca o Cid e suas filhas repudiadas pelos maridos;
o Cid, tomando a barba, atributo de honra, responde‑lhe que nunca ninguém lhe tocou
XXIV
«Se bem me recordo, parece‑me, senhor Conde, que esta noite vós haveis
repetido que o cortesão deve acompanhar as suas acções, os seus gestos, as
suas maneiras, em suma, todos os seus movimentos, com graça. E parece‑me
que considerais isso como condimento de tudo, sem o qual todas as outras
qualidades e disposições terão pouco valor. Na verdade, creio que cada um
se deixaria facilmente persuadir disso, porque pela força da palavra se pode
dizer que quem é dotado de graça é agradável. Mas porque haveis dito que,
muitas vezes, é um dom da natureza e dos céus, e também que quando não é
verdadeiramente perfeito, pode ser muito aumentado pela aplicação e pelo
trabalho, direi que aqueles que têm a sorte de nascer ricos de um tal te‑
souro, como alguns que vemos, parecem‑me não ter necessidade de outro
mestre, porque o benigno favor do céu os leva, quase sem se darem conta
disso, mais alto do que tinham desejado, tornando‑os não só agradáveis, mas
admiráveis aos olhos de todos. Assim, não penso nisso, porque não está ao
nosso alcance adquiri‑lo por nós mesmos. Mas aqueles que por natureza só
são capazes de se tornar graciosos através do trabalho, indústria e aplicação,
desejo saber por meio de que arte, de que disciplina e de que maneira podem
adquirir esta graça, tanto nos exercícios do corpo, nos quais estimais que
é tão necessária, como em qualquer outra coisa que se faça ou que se diga.
Mas, dado que ao elogiar‑nos por esta qualidade vós haveis gerado uma sede
ardente de a conseguir, sois igualmente obrigado, pela tarefa que a senhora
Emilia vos impôs, a satisfazê‑la, ensinando‑a.»
XXV
e tantas outras coisas que eu não saberia ensinar‑vos, dado que nunca as
aprendi, mas que sei que todos vós as conheceis. Basta que, do mesmo modo
que um bom soldado sabe dizer ao ferreiro de que forma, de que têmpera e
de que bondade devem ser as armas, sem no entanto ser capaz de ensiná‑lo
a fazê‑las, nem a forjá‑las ou temperá‑las, eu saiba dizer‑vos o que deve ser
um perfeito cortesão, sem poder ensinar‑vos como deveis fazer para vir a ser
um. No entanto, para satisfazer ainda, tanto quanto me é possível, a vossa
questão, embora seja quase provérbio que a graça não se aprende, direi que
quem quiser ter graça nos exercícios corporais, supondo em primeiro lugar
que por natureza não seja incapaz, deve começar bem cedo e aprender os
princípios com os melhores mestres. Isto pareceu de importância a Filipe,
rei da Macedónia, como se pode compreender por ter querido que Aristó‑
teles, filósofo tão famoso e talvez o maior que alguma vez houve no mundo,
fosse o mestre dos primeiros elementos das letras do seu filho Alexandre.
De entre os homens que conhecemos hoje, reparai como o senhor Galeazzo
Sanseverino, Estribeiro‑Mor de França, faz bem e com graça todos os exer‑
cícios do corpo; e isso porque, além da natural disposição que tem do seu
corpo, aplicou‑se a aprender com bons mestres e a ter sempre perto de si
homens excelentes, para captar de cada um deles o melhor que deles sabiam.
Porque, tal como para lutar, fazer o volteiro e manejar todas as espécies de
armas, ele sempre teve como guia o nosso sire Pietro Monte, que, como
sabeis, é o verdadeiro e único mestre de toda a força e agilidade adquiridas
pela arte, tanto de montar, de combater nas justas ou de qualquer outra coi‑
sa, porque sempre teve diante dos olhos aqueles que eram conhecidos como
os mais perfeitos nas suas profissões.
XXVI
Assim, quem quiser ser um bom discípulo deve não só fazer bem as coisas,
mas também aplicar‑se totalmente para assemelhar‑se ao seu mestre e, se
possível, transformar‑se nele. E quando já sente tirar proveito, é‑lhe mui‑
to útil ver praticar diversos homens desta profissão e, orientando‑se pelo
bom julgamento que sempre deve ter por guia, andar de um para outro es‑
colhendo em cada um coisas diferentes. E tal como, nos prados, a abelha
anda sempre de flor em flor, também o nosso cortesão deve colher esta graça
daqueles que julgará possuírem‑na, tomando de cada um o que tem de mais
louvável, não fazendo como um dos nossos amigos, que todos vós conheceis,
que julgava assemelhar‑se com o rei Fernando, o Jovem de Aragão, e que se
obstinava a imitá‑lo, apenas no gesto frequente de levantar a cabeça e torcer
um canto da boca, o que era um hábito que o rei tinha contraído durante
uma doença. E há um grande número de pessoas que pensam fazer muito ao
assemelharem‑se a uma personagem importante; e geralmente agarram‑se à
única coisa que é má nele. Mas tendo já reflectido sobre a origem desta graça
e deixando de lado aqueles que a consideram fruto das estrelas, considero
que há uma regra muito universal, que me parece valer mais do que todas as
outras para todas as coisas humanas que se fazem ou que se dizem, a que é
necessário fugir, tanto quanto possível, como um escolho muito acerado e
perigoso, da afectação e, talvez para utilizar uma palavra nova, dar provas
em todas as coisas de uma certa sprezzatura, que esconda a arte e mostre que
o que se faz e diz surgiu sem dificuldade e quase sem pensar nisso. É daí,
creio, que deriva sobretudo a graça, porque cada um sabe a dificuldade das
coisas raras e bem feitas, ainda que a facilidade nelas cause uma grande ad‑
miração; e, pelo contrário, fazer esforços e, como se diz, puxar pelos cabelos,
dá muita desgraça, e faz com que uma coisa, por maior que seja, não mereça
estima. Por isso, pode‑se dizer que a verdadeira arte é a que parece não ser
arte; e, acima de tudo, deve‑se fazer um esforço para a esconder, porque, se
é descoberta, retira totalmente o crédito e faz com que o homem seja pouco
estimado. Recordo‑me de ter lido que alguns antigos oradores de excelência
se esforçavam, entre outros artifícios, por fazer crer a todos que não tinham
nenhum conhecimento das letras; e, dissimulando o seu saber, faziam crer
que os seus discursos eram feitos muito simplesmente, mais pelo que lhes
sugeriam a natureza e a verdade do que pelo estudo e pela arte; ora, se isto
fosse reconhecido, teria originado a dúvida no espírito do povo, que teria
receado ser enganado por eles. Vede, pois, como o facto de mostrar a arte
e um estudo tão prudente retira a graça a qualquer coisa. Qual de vós não
se ri quando sire Pierpaulo dança à sua maneira, com aqueles saltinhos e as
pernas esticadas nas pontas dos pés, sem mover a cabeça, como se todo ele
fosse um tronco de madeira, com tanta atenção que parece ir contando os
passos? Que olho é tão cego que não veja nele a desgraça da afectação, e em
muitos homens e mulheres que estão aqui presentes, a graça desta desenvol‑
tura de gestos (como geralmente se diz para os movimentos do corpo), que
se exprime por uma palavra, por um riso, por um gesto, e que mostra que se
dá importância ao que se faz e que se pensa numa coisa totalmente diferen‑
te, para fazer crer àquele que observa que não saberia nem poderia errar?»
XVII
Nesse momento, sem esperar mais, sire Bernardo Bibbiena disse: «Eis que
o nosso sire Roberto encontrou finalmente alguém que elogia a sua maneira
de dançar, dado que todos os outros parecem não apreciá‑lo; porque se esta
excelência consiste na sprezzatura e em mostrar que não se dá importância
ao que se faz e que se pensa em qualquer outra coisa, sire Roberto não tem
equivalente no mundo a dançar; porque para mostrar bem que pensa noutra
coisa, muitas vezes deixa cair o manto dos ombros e os sapatos dos pés, con‑
tinuando a dançar sem os apanhar.» Então o conde respondeu: «Dado que
quereis que eu fale, falarei também dos nossos defeitos. Não vos dais conta
de que aquilo a que chamais sprezzatura em sire Roberto é verdadeira afec‑
tação? Porque se vê claramente que se esforça com todo o cuidado possível
por mostrar que não pensa no que faz e isso é pensar demasiado; e porque
ela ultrapassa os limites do justo meio, esta sprezzatura é afectada e inconve‑
niente, o que dá um resultado contrário ao que era procurado, isto é, de es‑
conder a arte. Por isso, não considero que o defeito da afectação seja menor
na sprezzatura, que em si é louvável, quando se deixa cair a roupa, do que na
busca da elegância, que em si é igualmente louvável, quando se tem a cabeça
muito direita com receio de estragar o penteado, ou ter no fundo do barrete
um espelho e um pente na manga, e ter sempre atrás um pajem a seguir‑vos
na rua com uma esponja e uma escova. Porque este género de elegância e de‑
senvoltura tendem para o extremo, o que é sempre mau, e contrário à pura e
amável simplicidade, que é tão agradável aos espíritos humanos.
Vede como um cavaleiro tem má graça quando se esforça por ir muito
esticado sobre a sela e, como nós costumamos dizer, à veneziana, em com‑
paração com outro, que parece nem pensar nisso e que monta a cavalo tão
à vontade e seguro como se estivesse a pé. Como o gentil‑homem de armas
agrada mais e recebe mais elogios quando é modesto, quando fala pouco e
pouco se gaba, do que outro que esteja sempre a gabar‑se e que, com as suas
blasfémias e bravatas, parece ameaçar o mundo! Não há nada mais afectado
do que querer parecer galhardo. O mesmo acontece com qualquer exercício,
ou melhor, em tudo o que se possa fazer ou dizer.»
XVIII
tas vezes prefere uma segunda ou uma sétima, que em si é uma dissonância
rude e intolerável. Isto deriva de que continuar nas consonâncias perfeitas
gera a saciedade e demonstra uma harmonia muito afectada, o que se evita
misturando as imperfeitas: de certo modo, faz‑se uma comparação, graças
à qual os nossos ouvidos ficam suspensos, esperam mais avidamente e apre‑
ciam as perfeitas, deleitando‑se por vezes na dissonância da segunda e da
sétima, como de uma coisa não premeditada.» «É nisto, pois», respondeu o
conde, «que a afectação é prejudicial, como noutras coisas. Também se diz
que um provérbio, do tempo de alguns excelentes pintores antigos, referia
que demasiada aplicação era nociva e que Protogene tinha sido censurado
por Apelle por não saber separar‑se do seu quadro». Sire Cesare disse então:
«Parece‑me que o nosso frei Serafino tem o mesmo defeito de não tirar as
mãos da mesa, pelo menos enquanto a carne não for retirada.» O Conde
riu‑se, acrescentando em seguida: «Apelle queria dizer que, na pintura, Pro‑
togene não sabia o que bastava; o que equivalia a censurá‑lo por ser afectado
nas suas obras. Esta virtude contrária à afectação, que nós denominamos
agora desenvoltura, além de ser a verdadeira fonte donde emana a graça,
comporta ainda um outro ornamento, que, ao acompanhar qualquer acção
humana, por mais pequena que seja, não só descobre de imediato o saber
de quem a faz, mas muitas vezes fá‑lo imaginar muito maior do que é na
realidade; porque imprime nos corações dos participantes a opinião de que
aquele que actua tão facilmente sabe muito mais do que aquilo que faz e, se
dedicasse mais estudo e aplicação no que faz, poderia fazê‑lo muito melhor.
E para retomar os mesmos exemplos, consideremos um homem que maneja
as armas: se, para lançar um dardo ou tendo uma espada ou outra arma na
mão, ele assume prontamente e sem pensar nisso uma atitude adequada,
com tal facilidade que parece que o seu corpo e todos os seus membros se
encontram com naturalidade e sem qualquer dificuldade, mesmo que não
faça outra coisa, mostra a cada um que é perfeito nesse exercício. Do mes‑
mo modo, na dança, um único passo, um único movimento do corpo feito
com graça e sem ser forçado, depressa mostra o saber daquele que dança.
Um músico, se ao cantar emite uma única nota que acaba com um suave
acento por um floreado de três ou quatro notas, com tanta facilidade que
parece tê‑lo feito por acaso, esse único ponto permite saber que ele sabe
muito mais do que o que faz. Também na pintura, muitas vezes uma única
linha não trabalhada, uma única pincelada facilmente dada, de tal maneira
que parece que a mão, sem ser guiada por nenhum estudo ou por nenhuma
arte, vá por si mesma ao seu fim segundo a intenção do pintor, demonstra
claramente a excelência do artífice, que depois cada um aprecia segundo
Joachim DU BELLAY. [Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem],
in Poesia de 26 Séculos: De Arquíloco a Nietzsche. Tradução de Jorge de Sena.
[1558] 2001. Porto: Asa. 131.
— Há muito tempo que esperamos esse dia, cidadão, — diz Ned. — Desde
que a pobre velha nos disse que os franceses estavam no mar e desembarca‑
ram em Killala.
— Sim, — diz John Wyse. — Lutámos pelos reais Stuart, que nos rene‑
garam, contra os de Guilherme e eles traíram‑nos. Lembrai‑vos de Limerick
e da pedra quebrada do tratado. Demos o nosso melhor sangue à França e à
Espanha, os patos bravos. Fontenoy, hein? E Sarsfield e O’Donnell, Duque
de Tetuão, em Espanha e Ulisses Browne of Camus que foi marechal‑de
‑campo de Maria Teresa. E o que é que ganhámos com isso?
— Os franceses!, — diz o cidadão. — Caterva de mestres de dança!
Sabeis o que isso é? Nunca valeram um peido podre à Irlanda. Não estão
agora a tentar fazer uma entente cordial com a pérfida Albion na jantarada de
Tay Pay? Incendiários da Europa, é o que eles sempre foram.
— Conspuez les français, — diz Lenehan empalmando a cerveja.
— E quanto aos prussianos e hanoverianos, — diz Joe, — já não tivemos
que chegue desses filhos da puta comedores de salsichas, no trono, desde
Jorge, o Eleitor, por aí abaixo até ao garoto alemão e à flatulenta puta velha
que morreu?
Jesus, tive de me rir com o modo como ele vinha com essa acerca da velha a
piscar o olho, perdida de bêbeda todas as noites no palácio real, a velha Vic, com
a taça de uísque clandestino e o cocheiro a carregar‑lhe com o corpo e ossos, aos
baldões, para a cama e ela a puxar‑lhe pelas patilhas e a cantar‑lhe velhas passa‑
gens de canções sobre Ehren on the Rhine e vem cá que a pinga é mais barata.
— Bem, — diz J.J. — Agora temos Eduardo, o pacífico.
— Conte essa a um pateta, — diz o cidadão. — Tem um sacana de aspec‑
to mais de peixe do que de paz. Edward Guelph‑Wettin!
— E o que é que pensa, —diz Joe — dos da beatéria, os padres e bispos
da Irlanda a arranjar quartos em Maynooth, com as cores de corrida de Sua
Majestade Satânica e a colar cartazes de todos os cavalos que os seus jockeys
montaram. O conde de Dublin, nem mais, nem menos.
Crónicas islandesas contam que em tempos viviam neste país homens vindos
de oeste que deixaram para trás crucifixos, sinos e outros artigos que tais, uti‑
lizados em práticas de feitiçaria. Em fontes latinas estão registados os nomes
daqueles homens que das ilhas a oeste navegaram até cá nos primórdios do
papado. O seu líder chamava‑se Kólumkilli, o irlandês, um conhecido feiti‑
ceiro. Naquela altura a terra na Islândia era extremamente fértil. Mas quan‑
do os noruegueses se instalaram aqui, os feiticeiros do oeste deixaram o país,
e registos antigos dizem que, para se vingar, Kólumkilli amaldiçoou os novos
habitantes, rogando que eles nunca ali gozassem de prosperidade, o que mais
tarde veio a tornar‑se realidade. Muito mais tarde, os noruegueses na Islândia
deixaram a sua fé para se entregarem aos cultos de povos estranhos. Nessa al‑
tura tudo ficou às avessas, os deuses noruegueses eram escarnecidos e outros
deuses e santos foram adoptados, alguns do leste, outros do oeste.
A história conta que naquele tempo ergueram, em honra de Kólumkilli,
uma igreja no vale onde mais tarde ficou a quinta Albogastaðir, uma char‑
neca onde outrora se fixou a residência oficial do governador. Jón Reykda‑
lín, o administrador de Utirauðsmýri, juntou muitos registos sobre esse vale
pantanoso, referindo‑se o último ao abandono da quinta em consequência
das aparições fantasmagóricas no ano de 1750. O próprio administrador fora
testemunha ocular e ouvinte de alguns episódios absurdos que por aí se pas‑
saram, como é relatado no seu conhecido registo sobre o Terror de Albogas‑
taðir. Podia ouvir‑se o fantasma discursar alto dentro do edifício, desde mea‑
dos do þorri até depois do Pentecostes, altura em que as pessoas o iam aban‑
donando; por duas vezes, junto dos ouvidos do administrador, mencionou o
seu nome, além de responder às questões, como relata o administrador, com
«vergonhosos versos em latim e obscenidades embaraçosas».
A história desta quinta, que muito célebre se tornou, remonta aos tem‑
pos longínquos dos dias do administrador Jón e não seria de todo inoportuno
recapitulá‑la para prazer daqueles que possam viajar pela beira dos caminhos
ao longo do rio, onde os séculos estão deitados lado a lado em carreiros verde‑
jantes deixados aleatoriamente pelos cavalos de outrora, e ainda visitar o velho
outeiro da quinta situada na charneca enquanto atravessam o vale.
Perto do fim do episcopado de Dom Guðbrandur, um casal habitava
Albogastaðir, na charneca. Não havia qualquer registo do nome do marido,
mas a mulher chamava‑se Gunnvör ou Guðvör. Dizem que era uma mulher
de grande porte, dada aos saberes antigos e de personalidade múltipla, con‑
trolando até ao extremo todos os passos do seu marido. Ele, por sua vez, era
por todos considerado um grande imbecil.
No início do casamento, o casal não gozava de prosperidade e tinha pou‑
cos caseiros. Diziam as pessoas que, assim que o número de filhos e a pobre‑
za aumentavam, a mulher obrigava o marido a pegar nos recém‑nascidos e a
deixá‑los ao relento. Alguns eram postos nas montanhas debaixo de grandes
calhaus e ainda hoje, no princípio da Primavera, quando a neve das monta‑
nhas começa a derreter, pode ouvir‑se o choro destes bebés. Outros foram
amarrados a pedras e afogados no lago, e em meados do Inverno, quando
há luar, pode ouvir‑se o seu choro vindo do lago, especialmente quando há
geada e antes de temporais.
Reza a história que, à medida que a senhora Gunnvör fora ficando mais
velha, começara a desejar veementemente sangue humano. Apetecia‑lhe
igualmente medula humana. Assim, dizem que ela terá recolhido o sangue
dos próprios filhos, daqueles que tinham sobrevivido, e que o ingerira com
a sua própria boca. Mandou erguer um palanque para bruxaria nas traseiras
da quinta onde, envolta em fogo e fumo, nas noites de Outono cantava para
o diabo de Kólumkilli.
Diz‑se que a certa altura o marido quis fugir para contar a todos os cam‑
poneses as maldades da mulher, mas ela perseguiu‑o e apoderou‑se dele no
cimo do espinhaço de Rauðsmýri, apedrejou‑o até à morte e mutilou os seus
restos corporais. Levou os ossos dele para dentro do seu palanque, mas dei‑
xou a carne e os órgãos internos para os corvos comerem, e fez saber pelo
distrito que o homem tinha morrido enquanto andava pelas montanhas à
procura das ovelhas.
Mas a partir daí a senhora Gunnvör começou a enriquecer, e as pessoas
pensavam que seria graças ao seu vil acordo com Kólumkilli, e depressa se
tornou dona de bons cavalos.
Naquele tempo, os viajantes atravessavam com frequência o distrito,
tanto no Inverno, quando os homens iam para o mar junto do glaciar Jökull,
como na Primavera, quando lá iam doutros distritos para adquirir peixe seco.
Mas com o passar do tempo, os conterrâneos começaram a comentar entre si
E eu embalo‑te, bebé.
Em casa de Gunnvör não pernoita
Ninguém que tenha sangue humano,
Ninguém com medula óssea
E lá lá lá lá.
No rasto corre sangue
E eu embalo‑te, bebé.
Em casa de Gunnvör não pernoita
Ninguém que Deus tem,
Ela partiu a minha costela, a clavícula e o meu pulso
Para se empanturrar.
No rasto corre sangue
E eu embalo‑te, bebé.
Caso acredites no Kólumkilli,
Assim ele dirá:
Medula e sangue, medula e sangue e dódódó.
No rasto corre sangue
E eu embalo‑te, bebé.
tinham pouco descanso uma vez instalada a balbúrdia ao cair da noite. Ela
prosseguia com as suas práticas, atormentando os vivos e os mortos, e assim,
ao anoitecer, podiam ouvir‑se dentro da quinta altos gritos e uivos, como se
um bando de almas agoniadas se lamuriasse no telhado e nas janelas por causa
das suas grandes misérias e pouca paz. Às vezes era como se da terra emanas‑
se um fortíssimo fedor a enxofre, cuja irrupção invadia a quinta, de modo
que as pessoas se sentiam sufocadas enquanto os cães ladravam como se
estivessem enraivecidos. Outras vezes, à noite, Gunnvör cavalgava em cima
do telhado com tanta violência que a madeira estalava, e por fim concluiu
‑se que nenhum edifício seria suficientemente seguro para aguentar os seus
maus tratos e aquelas vergonhosas cavalgadas nocturnas. Pendurava‑se nas
costas dos homens e saltava por cima do gado, esmagava vacas, enlouquecia
mulheres e crianças, assustava idosos e não se rendia nem perante a cruz,
nem com magia. Reza a história que, por fim, pediram ao padre de Rauðs‑
mýri que viesse para esconjurar e que, perante tão admirável sabedoria, ela
fugira para a montanha, rachando‑a no cimo onde agora pode ser avistada
uma fissura. Alguns pensam que ela passou a habitar na montanha, e sendo
assim não é improvável que tenha assumido a forma de um troll. Outros são
da opinião que ela passa muito tempo no lago tendo tomado a forma de uma
espécie de serpente ou monstro aquático, sendo do conhecimento geral que
até hoje ali viveu um monstro, durante várias gerações, que apareceu perante
inúmeras testemunhas sob juramento, até daqueles que são videntes e vêem
os mortos. Alguns dizem que este monstro demoliu por três vezes a quinta
de Albogastaðir, outros afirmam que foi sete vezes, até que nenhum lavrador
foi capaz de permanecer mais tempo ali e a quinta foi votada ao abandono
devido aos frequentes distúrbios provocados por fantasmas que assumiam
várias formas. Durante o tempo do governador Reykdalín foi definitivamen‑
te anexada às terras de Rauðsmýri, primeiro como estábulo para as ovelhas
durante o Inverno — daí provém a mais recente designação de Casas de
Inverno —, mas depois como curral para cordeiros.
Eneias, por seu turno, perante uma guerra tão medonha, a fim de atrair a si a
boa vontade dos Aborígenes, e para que ficassem todos não só sob as mesmas
leis, mas até com o mesmo nome, deu a ambos os povos a designação de Lati‑
nos. E, a partir de então, jamais os Aborígenes foram inferiores aos Troianos
em zelo e em lealdade para com o rei Eneias. Confiando, pois, no estado de
espírito dos dois povos, que cada dia que passava se fundiam cada vez mais
num só, Eneias saiu com as suas tropas para a batalha, apesar de a Etrúria ser
dotada de tão grandes recursos que a reputação do seu nome já enchia não só
as terras mas também o mar ao longo de toda a costa de Itália, desde os Alpes
até ao estreito da Sicília, e muito embora pudesse ter repelido os ataques
na protecção das suas muralhas. A batalha foi então favorável aos Latinos.
De resto, foi esta a última das tarefas como mortal de Eneias. Foi sepultado,
qualquer que seja a forma que o direito divino ou humano permitem chamar,
nas margens do rio Numício. Chamam‑lhe Júpiter Indígete.
Ascânio, o filho de Eneias, não estava ainda em idade de assumir o
poder. Este mesmo poder, porém, permaneceu para ele intacto até à idade
adulta. É que, sob a tutela de uma mulher — tal era a personalidade de Laví‑
nia —, o Estado latino e poder real do avô e do pai mantiveram‑se durante
todo este tempo seguros para o rapaz. Não especularei — quem, na verdade,
poderá afirmar como certo um facto tão antigo? — se este era Ascânio ou
um irmão mais velho, filho de Creúsa, nascido quando a região de Ílio ainda
estava intacta, e que acompanhou o pai na fuga, o mesmo Julo que a gens Júlia
declara autor do seu próprio nome. Este Ascânio, onde quer que tenha nas‑
cido e quem quer que tenha sido a sua mãe — é geralmente aceite que ele é,
sem dúvida, filho de Eneias —, deixou para a mãe, ou madrasta, Lavínio, uma
cidade rica como era então e florescente, pois já tinha uma população dema‑
siado numerosa. No sopé do monte Albano, fundou ele próprio uma nova
cidade, que se chamava, devido à sua configuração geográfica, estendendo
‑se no dorso da montanha, Alba Longa. Entre a fundação de Lavínio e a
implantação da colónia de Alba Longa mediaram cerca de trinta anos. Toda‑
via, o poderio destes cresceu de tal forma que, sobretudo devido àquela der‑
rota total dos Etruscos, nem sequer com a morte de Eneias, nem, mais tarde,
durante a tutela de uma mulher e os inícios rudimentares da governação de
uma criança, Mezêncio ou os Etruscos ou quaisquer outros vizinhos ousa‑
ram levantar armas. O tratado de paz assim estipulava que o rio Álbula, a que
agora chamam Tibre, fosse a fronteira entre Etruscos e Latinos.
Em seguida, reina Sílvio, filho de Ascânio, nascido por qualquer circuns‑
tância fortuita, num bosque. Este gera Eneias Sílvio, e este, mais tarde, Latino
Sílvio. Este último implantou algumas colónias, chamadas de Latinos Priscos.
Posteriormente, o cognome Sílvio manteve‑se para todos aqueles que gover‑
naram Alba. Alba foi filho de Latino, Átis de Alba, Cápis de Átis, Cápeto de
Cápis, Tiberino de Cápeto (o qual, afogando‑se ao atravessar o rio Álbula, deu a
este rio o nome bem conhecido pelas gerações vindouras). Em seguida, Agripa
foi o filho de Tiberino, e depois de Agripa reinou Rómulo Sílvio, recebendo do
pai o poder. Rómulo Sílvio, ferido por um relâmpago, entregou directamente
o poder a Aventino. Este está sepultado naquele monte que agora faz parte da
cidade de Roma, dando‑lhe assim o seu nome. Sucedeu‑lhe no poder Proca,
que teve como filhos Numitor e Amúlio. A Numitor, que era o primogénito,
entregou‑lhe o antigo reino da gens Sílvia. Porém, a força pode mais do que a
vontade do pai ou o respeito pela idade: expulsando o irmão, Amúlio tomou o
poder. E a este crime adicionou outro crime: mandou matar a descendência
masculina do irmão. Quanto a Reia Sílvia, a filha do irmão, sob o pretexto de a
honrar, privou‑a da esperança de ter descendência por meio de uma virgindade
perpétua, ao escolhê‑la para vestal.
Mas a fundação de tão grande cidade e início do mais poderoso império
logo a seguir aos deuses era um dever, segundo julgo, para com o destino.
A vestal foi violentada. E como desse à luz dois gémeos, ou porque estava
convencida disso, ou porque um deus sempre seria um autor menos deson‑
roso para a sua falta, nomeia Marte como pai da sua prole de paternidade
incerta. Todavia, nem os deuses nem os homens a salvaram, nem a ela pró‑
pria nem aos filhos da crueldade do rei. Agrilhoada, a sacerdotisa é enviada
para a prisão. Quanto às crianças, o rei ordena que sejam lançadas ao rio. Ora
aconteceu que, por um acaso da providência divina, o Tibre tinha inundado
as margens e deixado charcos de água estagnada, e já não era mais possível
chegar junto ao curso habitual da correnteza. No entanto, os homens que
levavam os recém‑nascidos ficaram com esperança de que estes se pudessem
afogar, apesar de a água estar imóvel. Deste modo, como que cumprindo as
ordens do rei, no ponto mais próximo da cheia, onde agora se encontra a
figueira Ruminal — dizem que se chamava outrora Romular —, os servidores
Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com inte‑
gridade e não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê‑se pela
experiência do nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles príncipes
que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia,
dar a volta aos cérebros dos homens; e no fim superaram aqueles que se fun‑
daram na sinceridade.
2
Deveis, pois, saber que há dois géneros de combate: um com as leis, outro
com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo das bestas. Mas
porque o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao segundo. Por‑
tanto, é necessário a um príncipe saber bem usar a besta e o homem. Este
aspeto foi ensinado aos príncipes veladamente pelos autores antigos, os
quais descrevem como Aquiles e muitos outros dos antigos príncipes foram
dados a criar ao centauro Quíron, para que os tutelasse sob a sua disciplina.
O que não quer dizer outra coisa — ter por preceptor alguém meio besta e
meio homem — senão que é preciso a um príncipe saber usar uma e outra
natureza: e uma sem a outra não dura.
3
Estando, pois, um príncipe necessitado de saber usar bem a besta, deve
pegar na raposa e no leão: porque o leão não se defende das armadilhas,
a raposa não se defende dos lobos; precisa, pois, de ser raposa para conhe‑
cer as armadilhas e leão para assustar os lobos. Aqueles que se atêm simples‑
mente ao leão não entendem isto. Não pode, portanto, um senhor prudente,
nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se volta contra
ele e se extinguiram os motivos que o fizeram prometer. E, se os homens
fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas, porque eles são ruins
e não a observariam para contigo, tu também não a tens de observar para
com eles; nem faltarão jamais a um príncipe motivos legítimos para mascarar
Dos dois braços que formam o lago de Como, um deles dirige‑se para o Sul,
entre duas cadeias ininterruptas de montanhas, ora sobressaindo ora reen‑
trando, recortando as margens numa sequência de inúmeras baías e golfos.
Quase de repente, aperta‑ se entre um promontório à direita e a costa à
esquerda, formando corrente, como se fosse um rio.
A ponte que neste sítio liga as duas margens e parece marcar o ponto
em que o lago acaba e o Adda começa, para tomar de novo o nome de lago, lá
onde as duas margens, ao afastarem‑se outra vez, permitem que as águas se
estendam e se espraiem em novos golfos e novas baías.
A costa, formada pelos aluviões de três caudalosas correntes, desce para
o lago desde a falda de dois montes contíguos, um chamado San‑Martin, e o
outro, em dialecto lombardo, Resegone, mercê dos numerosos cabeços que
o encimam tão regularmente alinhados, que lhe dão a aparência de uma serra.
Por esta simples indicação não há, pois, ninguém que, à primeira vista, estando
colocado de frente, por exemplo, do lado do Norte das muralhas de Milão, a não
distinga logo, no meio deste vasto e longo panorama, de outros montes de um
nome mais obscuro e de um feitio mais vulgar que compõem aquela cordilheira.
Até uma certa distância, a costa vai‑se elevando em declive uniforme e
suave, tornando‑se depois escarpada e anfractuosa, formando aqui montí‑
culos, além pequenos vales, nuns pontos arrendando‑se em cristais, noutros
erguendo‑se em planaltos, segundo a ossatura das duas montanhas e a acção
contínua das águas. A beira extrema da margem, entrecortada pelas bocas
das torrentes, é quase inteiramente formada de cascalho e grandes calhaus;
o resto cobre‑se de campos e vinhedos, recamado de vilas, de aldeias e casas
de campo; em diversos lugares, surgem arvoredos que sobem pela encosta,
galgando até ao cimo da montanha.
Leco, a mais importante destas vilas e que dá o seu nome ao território,
está situada a pouca distância da ponte, à beira do lago. Às vezes acontece
‑lhe, até, quando ele engrossa, ter uma parte dentro do próprio lago. Hoje,
é já uma terra bastante grande, a crescer para a cidade.
teres, dos esforços postos em acção para a extinguir e da sua larga e tenaz
resistência.
A partir do dia 8 de Abril do ano de 1583, o Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor Dom Carlos de Aragão, príncipe de Castelvetrano, duque de Terra‑
nuova, marquês de Ávila, conde de Burgeto, grande almirante e grande con‑
destável da Sicília, governador de Milão e capitão‑general de Sua Majestade
Católica em Itália, plenamente informado da intolerável miséria em que viveu e
vive ainda esta cidade de Milão, por causa dos bravi e vagabundos, publica contra
eles uma ordem de expulsão.
Declara e especifica deverem ser compreendidos nesta ordem e deverem ser deti‑
dos por serem bravi e vagabundos… todos os que, sendo estrangeiros ou mesmo per‑
tencentes ao país, não têm qualquer profissão, ou, tendo‑a, não a exerçam… mas que,
sem salário ou ainda mediante salário, se põem ao serviço de qualquer cavaleiro ou
fidalgo, oficial, ou mercador… para fazerem costas com ele e auxiliá‑lo, ou então, como
se pode presumir, para armar ciladas a outrem…
Ordena a todos estes indivíduos que abandonem a região no espaço de
seis dias, decreta a pena das galés contra os recalcitrantes e dá a todos os
oficiais da justiça os poderes mais amplos e os mais excepcionalmente ilimi‑
tados para a execução desta ordem.
Mas, no ano seguinte, em 12 de Abril, o dito senhor, notando que esta
cidade está, como sempre esteve, cheia dos ditos bravi que vivem como sempre têm
vivido, sem mudança alguma nos seus hábitos e sem diminuição no seu número, publi‑
ca uma nova ordem mais violenta e mais notável, na qual, entre outras pres‑
crições, determina:
Que todo o indivíduo, quem quer que seja, tanto desta cidade como estrangeiro,
que duas testemunhas declararam ser tido e comummente reputado por bravi e usar
deste nome, ainda quando nenhum delito seja provado da sua culpabilidade, pelo sim‑
ples facto da sua fama de bravi e sem outro indício, possa, pelos ditos juízes e por cada
um deles, ser submetido à corda e à tortura, por maneira de informação, e, ainda que
ele se não confesse culpado de nenhum crime, que seja, apesar disso, enviado para as
galés durante os anteditos três anos, só pela simples fama e pelo seu título de bravi,
como acima ficou dito.
Tudo isso, e o resto que sob silêncio passamos, porque Sua Excelência está resolvi‑
do a querer que todo e qualquer lhe obedeça.
Ao lermos estas palavras tão enérgicas, tão formais e acompanhadas de
tais ordens, emanadas de um tão alto senhor, acode‑nos uma vontade irre‑
primível de acreditar que bastaria a sua ressonância para que todos os bravi
desaparecessem para sempre, porém, o testemunho de um outro senhor não
menos poderoso, nem menos pletórico de títulos, nos força a crer justamente
Para este fim, enviou a Pandolfo e Marco Túlio Malatesti, tipógrafos da real
câmara, a ordem habitual, correcta e aumentada, a fim de que a imprimissem
para total exterminação dos bravi.
Ele avançava
e o espaço era‑lhe fléxil túnica
sobre o fresco corpo.
ele avançava
e o espaço quebrava contra seu passo metálico
e o ar retraía‑se ao seu suspiro abrasante.
ele comia
e a terra traçava suas espirais estridentes
ao longo da noite a encarquilhar‑se:
ele tinha provado.
erguia‑se ele,
átomo e cosmos a um tempo,
e dominava com pulso mineral
sobre o redemoinho dos elementos
o ebúrneo sorriso do moço silencioso.
de ânimo leve aquilo que primeiro lhe vem à boca, obstinando-se depois a
pensar mais como defender as posições que tomou que os interesses do bem
comum, preferindo deitar a perder o interesse público que uma opinião, por
vergonha descabida quanto a uma retractação, e para que não pareça que de
início tinham reflectido pouco, quando, por princípio, se devia ter previsto
que mais vale falar depois de reflectir que fazê-lo de chofre.
não pedia... Tal é o destino maldito dos reis. Os seus ódios desvairam o
mundo e as suas contendas desencadeiam as fúrias... Agora não há entre
nós ninguém. (Approxima‑se d’ella com confiança e fala em tom affectuoso.)
Aqui estamos uma em frente da outra... Agora, falae, irmã. Apontae
as minhas culpas, quero dar‑vos plena satisfação. Ah! porque me não
recebestes quando eu tão vivamente instava por vos ver? Não se teria
chegado a tal extremo e não se teria dado este encontro tão triste, n’um
local tão sombrio.
Izabel — A minha boa estrella livrou‑me de reanimar a serpente no meu
seio. Não accuseis a fatalidade, mas sim o vosso coração mentiroso e a
ambição sem limites da vossa raça. Nada havia entre nós quando vosso
tio, frade orgulhoso e cheio de presumpção que ergue a mão para todas
as coroas, vos infundiu o espírito da contenda e de uma hostilidade con‑
tínua, vos induziu a pegar em armas e apropriar‑vos do meu título real
e a decidir no campo de batalha a morte ou a vida. Que não tramou
elle contra mim? A língua dos sacerdotes, a espada dos povos, as armas
terríveis do fanatismo religioso, aqui, aqui mesmo, dentro do meu tran‑
quillo reino, soprou até n’elle encerrar a chamma da discórdia... Mas
Deus está commigo e esse frade orgulhoso não conseguiu triumphar...
O golpe ameaçou a minha cabeça e é a vossa que cae!
Maria — Entrego‑me nas mãos de Deus… Não abuseis do vosso poder de
modo tão sangrento.
Izabel — Quem m’o há-de impedir? Vosso tio deu exemplo a todos os reis
da terra de como se fazem as pazes com os inimigos. Sirva‑me de lição
a noite de S. Bartholomeu. O que é essa coisa de laços de sangue e de
direito das gentes?... A Igreja quebra todos os laços do dever e santi‑
fica o perjúrio e o regicídio... Eu nada mais faço do que o que os vos‑
sos sacerdotes ensinam. Dizei‑me: quem me responderia por vós se eu,
procedendo com magnanimidade, quebrasse as vossas algemas para
guardar a vossa lealdade? Que castello, que fortaleza há que as chaves
de S. Pedro não abram? Não quero alliar‑me com a raça das serpentes!
Maria — Oh, é uma suspeita terrível!... Sempre me haveis considerado
como inimiga e como estranha. Se, como devia ser, me tivesseis decla‑
rado vossa herdeira, o agradecimento e o amor ter‑vos‑iam assegurado
em mim uma amiga e parente leal.
Izabel — Provada está de mais a vossa amizade, lady Stuart. A vossa casa é
o papado e os frades são vossos irmãos. Declarar‑vos minha herdeira!
Redes traiçoeiras!... Continuando vós a viver, podieis extraviar o meu
povo, sendo como sois uma astuta Armida, pois fazeis cahir em vossos
Coro
XLII. «É por esta razão que me demorei mais a falar da grandeza da nossa
cidade, querendo mostrar‑vos que a nossa luta é diferente da luta dos que não
têm os mesmos valores que nós, e também estabelecer com testemunhos
incontestáveis o elogio destes homens que agora celebro. [2] Na verdade,
grande parte deste já está feito, pois quando fiz o elogio da cidade, as virtu‑
des que a honram são as destes homens e doutros como estes e a fama dos
feitos daqueles mostrou a muitos Helenos que estes não poderiam nunca ser
igualados. Também me parece que ao apontar para a coragem de um guerrei‑
ro se tem de falar do que primeiro foi revelado e agora, por fim, da sua morte
que foi confirmada. [3] E até para os que não agiram com o mesmo valor,
é justo tornar pública a bravura com que combateram por Atenas contra os
seus inimigos. Na realidade, substituindo o mal pelo bem, ajudaram a causa
comum mais do que a prejudicaram com o seu comportamento individual.
[4] Nenhum destes homens, pelo prazer de gozar a riqueza ou na expectati‑
va de escapar à pobreza, se tornou um comodista, como se escapar à morte
pudesse enriquecê‑lo e adiar o sofrimento. Mas tendo tomado o castigo dos
inimigos como bem mais desejável do que isto, e ao mesmo tempo conside‑
rando aquele como o mais glorioso dos perigos, escolheram vingar‑se do ini‑
migo, abandonando os outros interesses, deixando a esperança duma pros‑
Um passeio pelo campo, depois da confissão, a sós, numa tarde tão húmida,
era algo que dava muito que pensar a Petra. Não desejava outra coisa, mas
insistia em opor-se para ver até onde chegava o capricho da patroa. Outras
tinham começado assim.
Desceram pela Rua da Águia. Lá em baixo passava, na perpendicular,
a estrada de Madrid.
— Por aí, não — disse a ama. — Por aqui; vamos à fonte de Mari-Pepa.
— A estas horas não há ninguém por estes sítios, e o chão já há-de estar
seco; mas olhe que ainda lá bate o sol. Ora veja: ali está a fonte.
Petra apontava para uma zona da várzea onde havia uma orla de álamos
que, naquele momento, iluminados pelos raios oblíquos do poente, pareciam
de ouro e prata. O caminho era apertado, mas firme e plano; de um lado e dou‑
tro estendiam-se prados de erva alta e espessa e campos de hortaliça. Hortas e
prados regam-nos as águas da cidade e são mais férteis do que toda a campina;
os prados, de um verde carregado, com cambiantes azulados, quase pretos, pa‑
recem de um veludo muito espesso. Reflectindo os raios do sol no ocaso, quase
deslumbram. Era exactamente assim que brilhavam naquela altura. Ana franzia
os olhos, deliciada, como que a banhar-se na luz depurada pela frescura do solo.
Sebes de madressilva e de amoreira orlavam o caminho, e, de quando
em quando, erguia-se o tronco de um negrilho, robusto e atarracado, enor‑
me cabeçorra como um ás de paus em cuja calvície despontavam meia dúzia
de rebentos, frágeis varetas que a brisa sacudia, fazendo ressoar como casta‑
nholas as folhas solitárias dos extremos.
— Repare, minha senhora, olhe que coisa mais esquisita! Estes ramos
todos só têm uma folha: a mais alta, a da ponta...
Depois desta observação e doutras do mesmo teor, Petra parava para
apanhar florzinhas nas sebes, picava-se nos dedos, ficava com o vestido pre‑
so nas silvas, gritava, ria; ia ganhando certa confiança, ao ver-se sozinha com
a patroa, no meio dos prados, por caminhos de má fama, solitários, que sa‑
biam dela tantas coisas dignas de serem caladas.
ouro. A eloquência era aquilo, era falar assim, fazendo ver o que se dizia.
Entusiasmara-se com o fluxo de palavras doces, novas, repletas de uma ale‑
gria celestial; abrira o coração diante daquele buraco atravessado de tabui‑
nhas. Também ela dissera muitas palavras que nunca usara na vida quando
falava com os outros. Então, o Magistral ficara calado lá dentro; e quando
terminou, a voz do confessionário tremia, ao dizer: «Minha filha, essa histó‑
ria das suas tristezas, dos seus sonhos, das suas apreensões, merece que eu
medite muito bem nela. Vê-se que tem uma alma nobre, e só porque neste
sítio não posso tributar elogios ao penitente é que me abstenho de assina‑
lar onde está o ouro e onde está o lodo... e fazê-la ver que há mais ouro do
que parece. No entanto, você está doente; toda a alma que aqui vem se en‑
contra doente. Não consigo perceber como há quem diga mal da confissão:
aparte o seu carácter de instituição divina, vendo-a apenas como matéria
de utilidade humana, você não compreende, como, aliás, qualquer pessoa
pode compreender, que este hospital das almas é necessário para os doen‑
tes de espírito?» O Magistral referira-se às consultas que havia nos jornais
protestantes para elucidar casos de consciência. «As senhoras protestantes,
que não têm pai espiritual, socorriam-se da imprensa. Não era ridículo?»
O Provisor sorrira com a voz.
E continuara dizendo, em substância, o seguinte: «Ela não devia ir para
ali apenas para pedir absolvição para os pecados; tal como o corpo, a alma
também tem uma terapêutica e uma higiene: o confessor é um médico higie‑
nista; mas, tal como o doente que não toma o remédio ou esconde a doença,
e tal como o homem são que não segue o regime que lhe é prescrito para
conservar a saúde, só fazem mal a si próprios, só se enganam a si mesmos,
também se engana e faz mal a si próprio o pecador que oculta os pecados, ou
não os confessa tal qual são, ou os examina depressa e mal, ou falta ao regi‑
me espiritual que lhe é imposto. Não basta uma conversa para curar a alma,
nem chegar ao confessionário com doenças velhas e maltratadas é querer
realmente curar-se. Aparte todo o preceito religioso, de tudo isto se deduzia
racionalmente a necessidade de uma pessoa se confessar com bastante fre‑
quência. Não se tratava de cumprir uma fórmula; isso não era a verdadeira
confissão. Era preciso escolher o confessor com cuidado, considerá-lo um
verdadeiro pai espiritual, como, com efeito, era; e, fora de todo o sentido
religioso, como irmão mais velho da alma, com quem se aliviam as penas e
a quem se comunicam os desejos, e as esperanças se afirmam e as dúvidas
se desvanecem. Se a religião não ordenasse tudo isso, ordená-lo-ia o senso
comum. A religião é toda ela razão, desde o dogma mais alto ao pormenor
menos importante do rito.» Aquela conformidade da fé e da razão encantava
a Corregedora. Como é que, aos vinte e sete anos, nunca ouvira falar daqui‑
lo? Não se atrevera a perguntar ao Magistral, mas também havia muito bom
tempo para isso.
Um pardal com um grão de trigo no bico pôs-se à frente de Ana e atre‑
veu-se a olhá-la com insolência. A senhora lembrou-se do Arcipreste que
tinha o dom de se parecer com os pássaros.
«Ripamilán era bom homem; mas que maneira de confessar! Uma rotina
que nunca lhe ensinara nada. A não ser o casamento, mais nada conseguira
tirar daquelas confissões. O pobre senhor dizia que sabia de cor os pecados
da Corregedora e passava o tempo a interrompê-la com o seu eterno: ‘—
Bem, bem, adiante: e que mais? Adiante... reza três Pais-Nossos, uma Salve-
Rainha e dá esmolas aos pobres.’ Que homem estranho! Quando é que o
padre Cayetano lhe dissera que ela tinha este temperamento ou aquele? Mas
o Magistral, sim senhor, logo de seguida: dissera-lhe que ela era um tempera‑
mento especial, que tudo isso e muito mais tinha de ter em conta. Era uma
coisa totalmente nova.»
Para além disso, ficara muito lisonjeada ao notar que o padre Fermín lhe
falava como a uma pessoa instruída, como a um homem de letras: citara-lhe
autores, dando por evidente que os conhecia, e, quando usava sem querer
palavras técnicas, abstinha-se de lhas explicar.
«E que elevação! O que era a virtude? O que era a santidade? Isso fora
a parte melhor. A virtude era a beleza da alma, o asseio, o mais fácil para
os espíritos nobres e limpos. Para um preguiçoso inimigo da roupa limpa
e da água, o asseio é um tormento, uma impossibilidade; para uma pessoa
decente (assim dissera ele), uma necessidade das mais imperiosas da vida.
A religião não apresentava a virtude como uma senda árdua senão para os
que vivem escondidos no pecado; mas o homem novo está sempre à espe‑
ra dentro de nós; basta chamá-lo uma vez, para que acuda imediatamente.
A virtude começa com um pequeno esforço, embora contrário ao hábito ad‑
quirido; no dia seguinte, o esforço já é menos custoso e a eficácia maior de‑
vido à velocidade adquirida, devido à inércia do bem, e isso mecânico. Assim o
dissera o senhor padre De Pas. A virtude podia definir-se como o equilíbrio
estável da alma. Além do mais, era uma alegria; um bom dia de sol; lufadas
de ar fresco e perfumado; a alma virtuosa convertia-se numa gaiola onde,
alegres, gorgolejavam os dons do Espírito Santo animando o coração nas
tristezas da vida. A melancolia de que ela se queixava era a nostalgia da virtu‑
de a que chegaria, e pela qual o seu espírito suspirava como por uma pátria.
A virtude era uma questão de arte, de habilidade. Não se conseguia atingir só
com jejum, só com ascetismo; eram meios muito santos, mas havia outros.
não comungaria; ficaria na cama, fingindo uma enxaqueca; de tarde iria fa‑
zer uma reconciliação e, no outro dia, sim, comungaria. Este era o plano me‑
lhor. Sentiu-se alegre como uma criança com a decisão de não comungar na
manhã seguinte; era como um dia feriado. Podia passar a noite a pensar em
religião, em virtude, na generalidade, dentro daquele novo sistema e sem ter
já de se preocupar com a maneira de receber dignamente o Senhor. Era um
adiamento; um alívio. Já não lhe parecia impróprio dar rédea solta à alegria,
a alegria causada unicamente por forças morais e que talvez fosse a alvorada
do esplendoroso dia da virtude.
«Que feliz devia ser o Magistral, imerso na luz da alegria virtuosa, a alma
cheia de pássaros a cantarem-lhe dentro do coração como coros de anjos!
Por isso é que ele tinha aquele eterno sorriso e se passeava com tanto garbo
pelo Espolón no meio de preguiçosos de alma, espíritos mesquinhos e... ve‑
tustenses. E que cor de saúde!
«E Vetusta, Vetusta encerrava aquele tesouro! E como é que o Magistral
ainda não era bispo? Ia-se lá saber! E porque é que ela, embora digna de outro
mundo, não era mais do que a senhora ex-Corregedora de Vetusta? O cenário
era o menos; a variedade, a beleza, estava nas almas. Aquele passarinho não
tem alma e voa com asas de penas, eu, que tenho espírito, hei-de voar com as
asas invisíveis do coração, através da atmosfera pura e radiante da virtude.»
Estremeceu de frio. Voltou à realidade. A sombra já invadira tudo. Por
detrás da cortina de álamos, o Sol escondia entre nuvens pardas e espessas
o último pedaço de lume que lhe ficara para trás como um farrapo de púr‑
pura. A sombra e o frio apareceram repentinamente. Um coro estridente
de rãs despedia-se do sol num charco do prado mais próximo. Parecia um
hino de selvagens pagãos às trevas que se vinham aproximando do Oriente.
A Corregedora lembrou-se das matracas da Semana Santa, quando se apaga
a luz do triângulo misterioso e as cataratas do entusiasmo infantil brotam
com um estrépito horríssono.
— Petra! Petra! — gritou.
Estava sozinha. Onde teria ido a criada?
Um sapo, de cócoras, encarrapitado numa grossa raiz que saía da terra
como uma garra, observava a Corregedora. Tinha-o a um palmo do vestido.
Ana deu um grito, teve medo. Imaginou que o sapo estivera a ouvi-la pensar
e fazia pouco das suas ilusões.
— Petra! Petra!
A criada não respondia. O sapo olhava-a com uma insistência que a eno‑
java e a fazia sentir um pavor bastante tolo.
1 Beowulf.
168
Sente Rolando que a morte se aproxima: pelas orelhas lhe vai saindo o cére‑
bro. Pelos seus pares reza primeiro a Deus para que os chame a si, e depois
por si mesmo ao anjo Gabriel. Pega na trombeta, para que não haja censuras,
e em Durendal, a sua espada, com a outra mão; não pode ir mais longe que o
alcance de uma balestra, em direcção a Espanha vai por um campo lavrado.
No cimo de um pequeno monte, sob duas belas árvores, há quatro blocos
de mármore; na erva verde caiu de costas; ali desfaleceu, porque a morte se
aproxima.
169
Altas são as montanhas e muito altas são as árvores. Há quatro blocos bri‑
lhantes de mármore. Na erva verde, o conde Rolando desfalece. Um sar‑
raceno observa-o todo o caminho, embora se finja morto, embora jaza no
meio dos outros, com o corpo e o rosto manchados de sangue; põe-se em pé
e apressa-se a correr. Belo e forte e de grande bravura, por orgulho comete
fatal loucura: agarra Rolando, o seu corpo, as suas armas, e diz: «Vencido foi
o sobrinho de Carlos! Esta espada levarei para a Arábia.» Ao puxá-la ele, o
conde apercebeu-se de alguma coisa.
170
Sente Rolando que ele a espada lhe tira, abre os olhos e diz-lhe: «Que eu saiba,
não és dos nossos!» Aperta a trombeta que não quer perder, atinge-o no elmo
que era de ouro e pedras preciosas: quebra o aço e o crânio e os ossos, fez
‑lhe saltar da cabeça os dois olhos, fê-lo cair morto a seus pés. Depois, diz
‑lhe: «Vil pagão, como ousaste agarrar-me, sem mais nem menos? Ninguém
o ouvirá dizer que não te tenha por louco. Parti a ponta da minha trombeta,
dela caíram o cristal e o ouro.»
171
Sente Rolando que a vista perdeu, põe-se em pé, reúne todas as forças que
pode; o seu rosto perdeu a cor. Na sua frente viu uma pedra: nela desfere
dez golpes, com tristeza e com raiva; o aço range, não se quebra, nem fende.
«Ah!», diz o conde, «Santa Maria, ajuda-me! Ah! Durendal, tão boa, que infeli‑
cidade a vossa! Porque me perco, já não cuidarei de vós. Tantas vitórias obtive
convosco nos campos de batalha e tantas vastas terras conquistei, que agora
pertencem a Carlos, que tem a barba branca! Que não vos tenha nenhum
homem capaz de fugir à frente de outro! Pertencestes durante muito tempo
a um muito bom vassalo; nunca haverá igual na santa França.»
172
Rolando golpeou o bloco de sardónica: o aço range, não se parte, nem racha.
Quando vê que não pode quebrar a espada, põe-se a lamentá-la de si para si:
«Ah! Durendal, como és clara e brilhante! Contra o sol reluzes e flamejas!
Carlos estava nos vales de Maurienne, quando Deus do céu lhe ordenou, por
intermédio do seu anjo, que te desse a um conde comandante. Cingiu-ma
então o nobre e grande rei. Com ela lhe conquistei o Anjou e a Bretanha, com
ela lhe conquistei o Poitou e o Maine; com ela lhe conquistei a livre Norman‑
dia, com ela lhe conquistei a Provença e a Aquitânia e a Lombardia e toda a
România; com ela lhe conquistei a Baviera e toda a Flandres e a Bulgária e
toda a Polónia, Constantinopla, de que recebeu homenagem, e a Saxónia,
onde reina como senhor absoluto; com ela lhe conquistei a Escócia e a Irlan‑
da, e a Inglaterra, seu domínio privado; com ela conquistei tantos países e
terras que agora pertencem a Carlos, que tem a barba branca. Por esta espada
sinto dor e pesar: antes quero morrer que deixá-la aos pagãos; Deus, nosso
pai, não deixes envergonhar a França!»
173
Rolando golpeou uma pedra cinzenta, arranca dela mais do que eu vos sei
dizer. A espada range, não verga, nem quebra, ressaltou muito alto, em direc‑
ção ao céu. Quando o conde vê que não conseguirá quebrá-la, mui docemen‑
te a lamenta para si próprio: «Ah! Durendal, como és bela e santa! No teu
punho dourado há muitas relíquias: um dente de São Pedro e sangue de São
Basílio e cabelos de monsenhor São Dinis, um pouco das vestes de Santa
Maria. Não é justo que pagãos te empunhem; por cristãos deveis ser servi‑
da. Que não vos tenha nenhum cobarde! Por vós terei conquistado muitas
terras, que agora pertencem a Carlos, que tem a barba pujante; por elas é o
imperador celebrado e poderoso.»
174
Sente Rolando que a morte se apodera dele, que da cabeça lhe desce até ao
coração; para debaixo de um pinheiro foi correndo, na erva verde se deitou,
175
Sente Rolando que o seu tempo se acaba. Voltado para Espanha está, num
monte escarpado; com uma das mãos bateu no peito: «Meu Deus, perante
o teu poder redentor, perdão pelos meus pecados, grandes e pequenos, que
cometi desde a hora em que nasci até este dia em que aqui estou ferido de
morte!» O guante direito estendeu a Deus; anjos do céu descem até ele.
176
O conde Rolando estendeu-se debaixo de um pinheiro, para Espanha voltou
o rosto. Várias coisas lhe vieram à memória: tantas terras que conquistou
como um bravo, a doce França, os homens da sua linhagem, Carlos Magno,
seu senhor, que o criou; não pode impedir-se de chorar e suspirar. Mas não
quer esquecer-se de si próprio; bate a sua culpa, pede perdão a Deus: «Pai
verdadeiro, que nunca mentiste, que São Lázaro ressuscitaste e Daniel dos
leões livraste, livra a minha alma de todos os perigos devidos aos pecados que
em vida cometi!» O guante direito ofereceu a Deus; São Gabriel por sua mão
o recebeu. Deixou pender a cabeça sobre o braço; de mãos postas, chegou
ao seu fim. Deus enviou-lhe o seu anjo Querubim e São Miguel do Perigo do
Mar; com eles veio até ele São Gabriel; a alma do conde levam para o Paraíso.
W.H. AUDEN. [Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas], in
Colóquio Letras 165: Vozes da poesia europeia — III. Tradução de David
Mourão‑Ferreira. [1939] 2003. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
161‑162.
Em 1837, após vinte e sete anos daquela vida, metade dela paga pela famí‑
lia Hulot e pelo tio Fischer, a prima Bette, resignada em ser uma nulidade,
deixava que a tratassem sem contemplações: recusava espontaneamente ir
aos grandes almoços e preferia a intimidade, que lhe permitia ter um certo
ascendente e evitar os tormentos do amor‑próprio. Onde quer que fosse, em
casa do general Hulot, na de Crevel, na do jovem Hulot, na de Rivet, sucessor
dos Pons, que tinham voltado a fazer as pazes com ela, e a viam com simpatia,
na casa da baronesa, parecia estar na sua própria casa.
Onde quer que fosse, sabia domar os criados, com pequenas lembranças
dadas de quando em quando, entretendo‑se sempre a falar um pouco com
eles antes de entrar na sala. A familiaridade com a qual se punha francamente
ao nível dos criados conciliava a sua benevolência subalterna, tão necessária
aos parasitas.
— É uma boa rapariga! — diziam todos.
A sua condescendência, sem limite quando ninguém a solicitava, era,
aliás, como a sua falsa cordialidade, necessária à sua situação.
Vendo‑se à mercê de todos, acabara por compreender a vida; e, queren‑
do agradar a todos, ria com os jovens que simpatizavam com ela por uma
espécie de adulação que sempre os seduz; adivinhava e apoiava os seus dese‑
jos, tornava‑se a intérprete, parecia uma boa confidente porque não tinha o
direito de os repreender. A absoluta discrição dava‑lhe a confiança das pes‑
soas mais velhas porque possuía, como Ninon, qualidade viris.
Em geral, as confidências vão para baixo em vez de irem para cima. Nos
nossos segredos servimo‑nos dos inferiores, muito mais do que dos superio‑
res; estes tornam‑se assim os cúmplices dos nossos pensamentos, assistem às
nossas decisões; e é preciso pensar que Richelieu julgou ter chegado ao topo
quando lhe foi concedido o direito de assistir ao Conselho do rei.
Aquela pobre rapariga parecia, assim, ser escrava de todos, já que todos
a julgavam condenada a um absoluto mutismo. Ela própria se autonomeara
confessora da família.
Só a baronesa, recordando os maus tratos de infância recebidos da prima,
mais forte que ela apesar de ser mais nova, conservava uma certa desconfian‑
ça. De resto, por pudor, teria confiado só a Deus as suas desditas domésticas.
Aqui talvez seja necessário observar que a casa da baronesa conservava
todo o seu esplendor aos olhos da prima Bette, que não reparava, como o
perfumista enriquecido, na miséria escrita em palavras claras nas poltronas
carcomidas, nos cortinados enegrecidos e nas sedas esgarçadas. Aconte‑
ce com os móveis com os quais estamos habituados o mesmo que aconte‑
ce connosco. Observando‑nos todos os dias acabamos por julgar, como o
barão, que mudámos pouco, deixámos de ser novos, enquanto os outros
vêem uma cabeleira a rarear, acentos circunflexos na fronte e gordas almo‑
fadas no abdómen. Aquela casa, aos olhos da prima Bette, continuava ilu‑
minada pelos fogos‑de‑artifício das vitórias imperiais e, por isso, sempre
resplandecente.
Com o tempo, a prima Bette adquiriu manias de solteirona bastante
curiosas.
Assim, por exemplo, em vez de obedecer à moda, queria que esta se
adaptasse aos seus hábitos e se vergasse às suas fantasias retrógradas. Se a
baronesa lhe oferecia um chapéu novo, algum vestido de corte moderno,
imediatamente a prima Bette voltava a refazê‑lo à sua maneira, estragando
‑o e transformando‑o num cruzamento entre a moda Império e os usos da
Lorena. O chapéu de trinta francos transformava‑se num trapo, e o vestido
num farrapo.
Bette tinha, em relação a isto, uma obstinação de mula; só queria agra‑
dar a si própria e achava‑se encantadora assim. E isto, se estava em perfeita
harmonia com a sua personalidade, enquanto a tornava numa solteirona da
cabeça aos pés, tornava‑a tão ridícula que, mesmo com a maior boa vontade,
ninguém a podia convidar nos dias de gala.
O temperamento indócil, caprichoso, independente, a inexplicável sel‑
vajaria daquela rapariga, para a qual o barão arranjara quatro possíveis mari‑
dos (um empregado da sua administração, um major, um fornecedor de víve‑
res e um capitão reformado) e que rejeitara um artesão de passamanaria, que
depois enriqueceu, merecera‑lhe a alcunha de Cabra, com que o barão a cha‑
mava, rindo. Mas essa alcunha não correspondia se não às bizarrias superfi‑
ciais, àqueles aspectos mutáveis que cada um apresenta aos outros na vida
social. Aquela rapariga na qual, após atenta observação, se podia descobrir o
lado feroz da classe camponesa, era sempre a criança que queria arrancar o
nariz à prima e, que, talvez, se se não tivesse tornado razoável, num parado‑
Mas esta pessoa da minha vida não é o centro destas notas que escrevo sobre
o Paul, ainda que ela tenha desempenhado então, quando eu estava interna‑
do no Wilhelminenberg, isolado, segregado e dado como perdido, o papel
mais importante na minha vida, na minha existência, o centro destas notas é
o meu amigo Paul, então internado comigo no Wilhelminenberg e como eu
isolado, segregado e dado como perdido, que eu quero voltar ainda a repre‑
sentar com nitidez no meu espírito através destas notas, destes farrapos de
recordações, que para mim têm neste momento a finalidade de evidencia‑
rem, trazerem à lembrança não só a situação insolúvel do meu amigo, mas
também o meu próprio impasse nessa altura, porque, tal como o Paul tinha
entrado mais uma vez num dos becos sem saída da sua existência, também
eu tinha entrado ou, melhor dizendo, tinha sido impelido para um dos becos
sem saída em que na vida me encontrei. Tal como o Paul, eu tinha mais uma
vez, sou forçado a dizê‑lo, exagerado e, portanto, sobrestimado e, portanto,
explorado a minha existência para além de todos os limites. Tal como o Paul,
eu tinha mais uma vez abusado de mim próprio para além de todas as minhas
possibilidades, abusado de tudo para além de todas as possibilidades com a
brutalidade doentia contra mim e contra tudo o que um dia destruiu o Paul
e que, exactamente como ao Paul, um dia me destruirá também, porque, tal
como o Paul sucumbiu devido à sobrestimação doentia de si próprio e do
mundo, eu hei‑de sucumbir também, mais cedo ou mais tarde, devido à so‑
brestimação doentia de mim próprio e do mundo. Tal como o Paul, eu tinha
nessa altura acordado também numa cama de hospital no Wilhelminenberg
como um produto quase inteiramente destruído dessa sobrestimação do
próprio eu e do mundo, e, de forma perfeitamente lógica, o Paul no hospital
psiquiátrico e eu no de doenças pulmonares, isto é, o Paul no Pavilhão Lu‑
dwig e eu no Pavilhão Hermann. Tal como o Paul, na sua loucura, se esfalfou,
durante anos, mais ou menos quase até à morte, eu esfalfei‑me igualmente
na minha, durante anos mais ou menos até à morte. Tal como o caminho do
Paul teve sempre de terminar, de ser interrompido num hospital psiquiá‑
que se levanta para nos oferecer o seu Grande Livro Sobre a Grande Guerra
— cada palavra com uma maiúscula? E a palavra «oferecer» é decente demais
para um livro daquela natureza. Atirá‑lo à nossa cara, lançá‑lo na nossa cons‑
ciência consternada estaria mais perto da verdade. Talvez seja você a fazê‑lo,
que já foi despojado dos seus haveres, como se diz, mas que foi ainda muito
mais ferido na sua alma, tendo sido evacuado como uma rês e deportado
como um criminoso, bombardeado, metralhado e fuzilado, tendo servido de
objecto de divertimento como uma lata vazia à qual as crianças dão ponta‑
pés, e cem vezes morto, mutilado de boca cerrada e desdentado por golpes
vibrados com uma grande chave de porcas, de modo que você, sentado lá
como Job com as suas chagas… Ou ainda, sentado lá como Franske Wauters,
que em Kassel, na Alemanha, era obrigado a distribuir o correio aos operá‑
rios estrangeiros importados e durante um bombardeamento procurou abri‑
go num cano de esgoto cheio de água imunda e ao sair deste já não encontrou
Kassel… Se tivesse sido comigo e se me tivessem posto uma cadeira debaixo
das pernas trementes, eu, lá sentado, poderia ter visto, num só olhar global,
tudo‑o‑que‑ficou‑da‑cidade‑de‑Kassel... E então, você, lá sentado naquela
cadeira e olhando para tudo‑o‑que‑ficou‑do‑mundo, seria talvez capaz de
escrever o livro para cuja leitura talvez nos faltasse a coragem, ou perante
o qual a nossa reacção seria possivelmente: não o compreendo... porque
costumamos ler palavras coladas umas às outras por meio de letras mortas,
e porque só podemos achar uma coisa bela se tiver ritmo, como se diz, e não
significado.
Porque você escreveria palavras nascidas de suor e lama e cavalos mori‑
bundos num carro de rodas para o ar e blocos residenciais completamente
rasgados pela compressão do ar e sangue. Com aquelas palavras formaria fra‑
ses semelhantes a carris torcidos que começam de um modo completamente
normal, mas, um pouco mais longe, se projectam no ar, como se os comboios
bombardeados pretendessem ir para o céu, caindo, porém, no fim daqueles
carris, novamente na terra. Poderia formar frases semelhantes a braços que
CENA 30
Maria e rapariguinhas à porta de casa. Woyzeck.
Raparigas:
Na festa da Candelária
O Sol brilha e o trigo espiga.
Iam pela estrada fora,
Em procissão, dois a dois.
À frente iam os gaiteiros,
Os rabequistas depois
C’os seus peúgos vermelhos...
Primeira Criança:
Esta não presta.
Segunda Criança: Também nunca gostas de nada!
Crianças Em Alternância:
Um Segundo Grupo de Crianças:
Então porque é que começaste?
Porquê?
Porque sim!
Mas porque sim porquê?
Ela é que vai cantar.
Eu não sei.
Maria, canta‑nos tu!
Maria:
Venham cá, vamos fazer
Uma roda a cirandar,
A história do rei Herodes. Avó, conta tu uma história.
Avó: Era uma vez um menino pobrezinho, que não tinha pai nem mãe, esta‑
va tudo morto e não havia ninguém neste mundo. Tudo morto, e ele andou,
andou, a chorar dia e noite. E como já não havia ninguém no mundo, quis ir
para o céu, e a Lua olhava para ele com tanto carinho, mas depois, quando
lá chegou a Lua era só um bocado de madeira podre. Então foi até ao Sol,
mas quando lá chegou o Sol era só um girassol murcho, e quando chegou às
estrelas eram só uns mosquitos dourados, estavam todas picadas, como os
picanços fazem aos abrunhos, e quando quis voltar à Terra viu que a Terra
era um pote entornado, e ali ficou sozinho, sentado a chorar. E ainda lá está,
a chorar e sozinho.
Woyzeck: Maria!
Maria: (Assustada.) O que é?
Woyzeck: Maria, temos de ir, são horas.
Maria: Ir para onde?
Woyzeck: Eu sei lá!
CENA 31
Maria e Woyzeck.
Não se pode esperar que este sistema de tratamento produzisse uma colhei‑
ta muito luxuriante. O nono aniversário de Oliver Twist encontrou‑o uma
criança pálida, magra, algo diminuta em estatura e decididamente pequena
em diâmetro. Mas a natureza ou a herança genética haviam implantado um
espírito bom e sólido no peito de Oliver. E tinha muito espaço por onde
se expandir, graças à escassa dieta do estabelecimento, sendo talvez a esta
circunstância que havia a agradecer o facto de ter mesmo um nono aniver‑
sário para festejar. Seja como for, era o dia em que fazia nove anos, e estava
a celebrá‑los na carvoeira, na selecta companhia de dois jovens cavalheiros
que, depois de como ele terem apanhado uma valente tareia, tinham sido
lá trancados pelo facto de se terem queixado, alegada e infamemente, de
terem fome. Foi por essa altura que a Sra. Mann, a bondosa dona da casa, foi
inesperadamente surpreendida pelo aparecimento do Sr. Bumble, o bedel,
que tentava abrir a porta de rede do jardim.
— Credo! É o senhor, Sr. Bumble? — disse a Sra. Mann, deitando a cabe‑
ça fora da janela, num bem encenado êxtase de alegria. (Susan, pega no Oli‑
ver e nos outros dois gaiatos, leva‑os lá para cima e lava‑les a cara nunstante!)
— P’o meu rico coração, Sr. Bumble! Que contente qu’eu ‘tou d’o ver aqui.
É que ‘tou mesmo!
Bem, o Sr. Bumble era um homem gordo e colérico, por isso, em vez de
responder de igual modo a esta saudação tão espontânea, deu um safanão ao
portãozinho e depois pregou‑lhe um pontapé como só um bedel é capaz de
pregar.
— Va‑lha‑me Deus, Sr. Bumble! — disse a Sra. Mann, saindo de casa a
correr (pois, por essa altura, os três rapazes já tinham subido) — Veja bem
como é qu’eu me fui esquecer que tinha trancado o portão p’dentro, diriva‑
do aos meus ricos meninos! Entre, entre, Sr. Bumble. Fachavor d’entrar, Sr.
Bumble, entre, entre.
Embora este convite fosse acompanhado de uma vénia capaz de amole‑
cer o coração de um sacristão, em nada amoleceu o bedel.
— A Sra. Mann por acaso pensa que a sua conduta é respeitosa ou decen‑
te — perguntou o Sr. Bumble, agarrando a bengala — deixar os funcionários
da peróquia à espera ó portão, quando a gente vimos tratar d’assuntos da
peróquia, relacionados com os órfãos da peróquia? A Sra. Mann já realizou
que é, a bem dizer, uma delegada da peróquia e uma estipendiária?
— Sr. Bumble, garanto‑le que ‘tava só a dizer a um ou dois dos meus ricos
meninos que gostam tanto do Sr. Bumble, de que era o senhor qu’aí vinha a
chigar — respondeu a Sra. Mann com grande humildade.
O Sr. Bumble tinha os seus dotes oratórios e a sua importância em gran‑
de conta. Tinha demonstrado os primeiros e garantido a segunda. Acalmou.
— Bem, bem, Sra. Mann — respondeu em tom mais calmo — pode ser
que sim, até pode ser que sim. Vá, mostre lá o caminho, Sra. Mann, que eu
venho em trabalho e tenho uma coisa p’ra le dizer.
A Sra. Mann fez entrar o bedel para uma salinha de chão de tijoleira.
Puxou‑lhe uma cadeira e depositou o chapéu de três bicos e a bengala em
cima da mesa em frente dele. O Sr. Bumble limpou da testa o suor gerado
pela caminhada; olhou complacentemente para o chapéu e sorriu. Sim, sor‑
riu. Um bedel é um homem, e o Sr. Bumble sorriu.
— Agora não se amofine com o que eu vou dizer — afirmou a Sra.
Mann com uma doçura cativante — O senhor fez uma longa caminhada a
pé, de contrário eu nem dizia nada, ‘tá a ver? Mas o Sr. Bumble aceita uma
gotinha?
— Nem uma gota. Nem uma gota — disse o Sr. Bumble, abanando a mão
direita de forma digna, mas plácida.
— Ai eu acho que aceita — disse a Sra. Mann, que havia reparado no tom
da recusa e no gesto que a acompanhara. — Só um golinho, com uma pingui‑
nha de água e um nadinha de açúcar.
O Sr. Bumble tossiu.
— Atão, só um golinho — disse a Sra. Mann em tom persuasivo.
— De quê? — perguntou o bedel.
— A bem dizer, é uma coisa que eu tenho sempre em casa para ajuntar
ao Daffy dos meus ricos meninos, benz’os Deus, quando estão doentinhos,
Sr. Bumble — respondeu a Sra. Mann, enquanto abria a porta da cantoneira e
tirava uma garrafa e um copo.
— É gim. Não vou dizer que não, Sr. Bumble. É gim.
— A senhora dá Daffy às crianças? — perguntou o Bumble sem desfitar
os preparativos.
— Benz’os Deus, atão dou pois! Lá caro é — respondeu a ama —, mas eu
sou lá capaz de os ver sofrer na minha frente, Sr. Bumble?
— Pois não — aprovou o Sr. Bumble —, pois não é não. A Sra. Mann é
uma senhora muito humana. (Aqui, ela poisou o copo.) — Assim qu’eu tiver
ópertunidade hei‑de dizer à Junta, Sra. Mann. (Ele puxou o copo para o pé
de si.) — A senhora tem um coração de mãe. (Ele mexeu o gim com água.) —
Bebo à sua saúde, Sra. Mann — e engoliu metade.
— Agora vamos ao trabalho — disse o bedel, puxando de um livrinho de
bolso com a capa em cabedal. — A criança que baptizámos à pressa com o
nome de Oliver Twist faz hoje nove anos.
— Benz’ó Deus! — interpôs a Sra. Mann, inflamando o olho esquerdo
com a ponta do avental.
— E não obstante a gente termos oferecido uma recompensa de dez
libras, que depois subiu para vinte; não obstante os esforços mais superla‑
tivos, e, a bem dizer, mesmo sobrenaturais da parte da peróquia — disse o
Bumble —, nunca se conseguiu descobrir quem é o pai dele, a freguesia da
mãe dele, o nome dela ou a cundição.
A Sra. Mann levantou as mãos em surpresa, mas acrescentou depois de
um momento de reflexão: — Atão, como é que ele tem nome?
O bedel empertigou‑se orgulhosamente e disse — Fui eu que o invintei!
— O senhor, Sr. Bumble?
— Sim, senhora. A gente baptizamos os nossos injeitadinhos por ordem
alfabética. O último foi um S — fui eu que le chamei Swubble. Este era um
T — e a este chamei‑le Twist. O próximo que vier vai ser Unwin, e o outro
Vilkins. Já tenho os nomes todos preparados até ao fim do alfabeto, e outra
volta do alfabeto quando chegarmos ao Z.
— Bem! O senhor é mesmo uma personalidade literária, Sr. Bumble! —
disse a Sra. Mann.
CONCLUSÃO
Dois dias mais tarde, tal como prometido, Effi recebeu e leu as linhas prome‑
tidas: «Alegro‑me, cara senhora, por poder dar‑lhe boas notícias. Tudo correu
de acordo com os nossos desejos; o senhor seu esposo é demasiado cavalheiro
para poder recusar um pedido que lhe foi dirigido por uma dama; mas, ao mes‑
mo tempo (também isto não posso ocultar‑lhe), vi claramente que o seu «sim»
não corresponde àquilo que ele considera sábio e acertado. Mas não vamos
criticar aquilo que nos deve alegrar. Combinámos que a sua Annie virá por
volta do meio‑dia, e que uma boa estrela ilumine o vosso reencontro.»
Effi recebeu estas linhas na segunda ronda do correio, pelo que até à che‑
gada de Annie não faltariam já sequer duas horas. Pouco tempo, mas mesmo
assim demasiado, e durante algum tempo Effi caminhou inquieta pelas duas
divisões, entrando depois na cozinha, onde discutiu com Roswitha todos os
assuntos possíveis: a hera nas paredes da igreja vizinha, que no próximo ano
já teria coberto as janelas, o porteiro, que tinha fechado mal a torneira do gás
(que depois se perdeu no ar), e o petróleo, que ela preferia ir buscar à grande
loja de candeeiros em Unter den Linden em vez da rua Anhalt... discutiram
todos os assuntos possíveis, excepto Annie, porque ela não queria abrir espa‑
ço ao medo que, apesar do bilhete da esposa do ministro, ou talvez por causa
dele, nela vivia.
Chegou então o meio‑dia. Finalmente tocaram à porta, timidamente,
e Roswitha espreitou pelo óculo da porta. Era realmente a Annie. Roswitha
deu um beijo à criança, mas não disse qualquer palavra, e com muito cuidado,
como se estivesse um doente lá em casa, conduziu a criança do corredor para
o quarto interior e depois à porta que se erguia à sua frente.
— Entra, Annie. — E com estas palavras, não querendo incomodar, dei‑
xou a criança sozinha e voltou à cozinha.
Effi estava no outro lado do quarto, de costas para o suporte do espelho,
quando a criança entrou. «Annie!» Mas Annie parou junto à porta encostada,
um pouco envergonhada, mas também intencionalmente, e por isso Effi cor‑
reu para a criança, ergueu‑a e beijou‑a.
— Ah, estou a ver que és muito atenciosa e isso deixa‑me muito satisfei‑
ta. É apenas necessário organizarmo‑nos bem... E agora diz‑me, o que faz o
Rollo?
— O Rollo está muito bem, mas o Papá diz que ele está a ficar muito
preguiçoso; está sempre deitado ao sol.
— Acredito. Ele já era assim quando tu eras pequenina... E agora diz‑me,
Annie, pois só hoje voltámos a ver‑nos, virás visitar‑me mais vezes?
— Oh, claro, se eu puder.
— Podemos ir passear no jardim do Príncipe Albrecht.
— Oh, claro, se eu puder.
— Ou vamos comer gelados no Schilling, gelados de ananás ou de bauni‑
lha, esses foram sempre os meus preferidos.
— Oh, claro, se eu puder.
E com este terceiro «se eu puder» Effi atingiu o seu limite; pôs‑se de pé
de um salto e dirigiu à criança um olhar que parecia arder de indignação.
— Penso que está na hora, Annie; senão, a Johanna vai ficar impaciente.
E tocou a sineta. Roswitha, que já estava na divisão adjacente, entrou
imediatamente.
— Roswitha, acompanha a Annie até à igreja. A Johanna está lá, à espera.
Esperemos que não se tenha constipado. Isso seria triste. Saúda a Johanna
por mim.
As duas saíram. Mas assim que Roswitha fechou a porta exterior, Effi
rasgou o vestido, que parecia ameaçar sufocá‑la, e caiu num riso convulsivo.
Ugo FOSCOLO. [Não sou quem fui: morreu‑me grande parte], Le Poesie.
Tradução inédita de Simão Valente. [1802] 1979. Milão: Garzanti. 25‑26.
Pode berrar à vontade! Pode até soltar o seu último grito, minha Senhora!
(Empurra Clara, que fica agachada a um canto) Até que enfim! Morreu a Se‑
nhora! estendida no mosaico... estrangulada com as luvas de lavar a loiça.
Pode ficar sentada, minha Senhora! Pode tratar‑me por Menina Solange Le‑
mercier... Devia despir esse grotesco vestido preto, minha Senhora. (Imita
a voz da Senhora) Eis‑me condenada a pôr luto pela minha criada. À saída do
cemitério, todas as criadas do bairro desfilavam à minha frente, como se eu
também pertencesse à família. Fartei‑me de apregoar que ela era como se
fosse da família... A morta soube levar a brincadeira até ao fim. Oh minha
Senhora!... sou tanto como a Senhora, ando de cabeça erguida... (Ri) Não,
Senhor Inspector, não... Não lhe direi nada do meu trabalho. Do nosso tra‑
balho a meias. Nada lhe direi da nossa colaboração neste crime... Os vesti‑
dos? Oh! pode ficar com eles, minha Senhora. Eu e a minha irmã tínhamos
os nossos. Os que à noite vestíamos, às escondidas. Mas agora tenho o meu
vestido, e sou tanto como a Senhora. É o trajo vermelho das criminosas.
O Senhor ri‑se? O Senhor sorri? Julga‑me doida. Acha que as criadas devem
ter suficiente bom gosto para não fazerem os gestos reservados à Senhora!
É verdade que me perdoa? é a bondade personificada. Mas eu ganhei uma
grandeza mais selvagem... Até que enfim que a Senhora se dá conta da minha
solidão! Agora estou sozinha. Terrível. Poderia falar‑lhe com crueldade, mas
também posso ser boa, bem criada... A Senhora não tardará a recompor‑se
totalmente do susto. No meio das flores, dos perfumes, dos vestidos. Aquele
vestido branco que levou à noite ao baile da Ópera. Aquele vestido branco
que eu sempre lhe recuso. Rodeada pelas suas jóias, pelos seus amantes. Eu
tenho a minha irmã. Atrevo‑me a falar nela, atrevo‑me, sim Senhora. Pos‑
so atrever‑me a tudo. Que, quem é que me vai obrigar a calar‑me? Quem é
que terá coragem para me dizer «Minha filha»?... Servi. Fiz os gestos que é
preciso fazer para servir. Sorri para a Senhora. Curvei‑me para fazer a cama,
curvei‑me para lavar o chão, curvei‑me para descascar as batatas, para escu‑
tar às portas, para espreitar pela fechadura. Mas agora estou direita. E fir‑
Dezasseis anos antes da época em que se passa este romance, por uma bela
manhã de domingo de Quasímodo, um ser vivo foi depositado, depois da missa,
na Igreja de Nossa Senhora, num leito que havia no adro, do lado esquerdo
defronte da grande imagem de São Cristóvão, para o qual a figura cinzelada em
mármore por António des Essarts estava olhando, de joelhos, desde 1413, até
que resolveram arrancar o santo e o devoto. Era nesse leito que costumavam
expor as crianças abandonadas à caridade pública. Levava‑as dali quem queria.
Diante do leito havia uma bandeja de cobre para as esmolas.
A espécie de ser vivo que jazia sobre aquela tábua, na manhã de Quasí‑
modo do ano de 1467, excitava extraordinariamente a curiosidade de con‑
siderável número de pessoas, aglomeradas em volta. O belo sexo formava a
maior parte dos mirones, composta de velhas.
Na primeira linha, e nas que mais inclinadas estavam sobre o leito, nota-
vam‑se quatro trajando uma espécie de hábito escuro, que denotava perten‑
cerem a alguma congregação religiosa. Não sei porque não há‑de a história
transmitir à posteridade os nomes destas quatro discretas e veneráveis cria‑
turas. Eram: Inês de Herme, Joana de la Tarme, Henriqueta Gualtière, Gau‑
chère de Violette, todas viúvas, pertencentes à Capela de Estêvão Haudry,
tendo saído de suas casas, com permissão das amas, e segundo os estatutos
de Pedro d’Ailly, para ouvirem o sermão.
Contudo, se naquele momento observavam os estatutos de Pedro d’Ai‑
lly, violavam, na verdade com prazer, os de Miguel de Brache e do cardeal de
Pisa, que tão desumanamente lhes prescreviam o silêncio.
— Que é isto, minha irmã? — estranhava Inês a Gauchère, olhando para
a criança exposta, que chorava e se virava no leito, assustada com a vista de
tantas caras.
— Que será de nós — dizia Joana — se é assim que nascem agora as
crianças?
— A respeito de crianças nada entendo — replicou Inês —, mas só olhar
para esta deve ser pecado.
Silvo de comboio.
também ajuda às pulgas para fazer o guarda mudar de opinião. Por fim, a luz
dos olhos começa a ficar fraca, e ele já não sabe se realmente está a ficar mais
escuro à sua volta ou se são os olhos que o enganam. Mas uma coisa é certa:
agora apercebe‑se de um brilho no escuro, uma luz que irrompe da porta da
lei e nunca se apaga. Agora já não tem muito tempo de vida. Antes de morrer,
todas as experiências de todo aquele tempo convergem na sua cabeça para
uma pergunta que até agora não fez ao guarda. Como já não consegue erguer
o corpo hirto, faz‑lhe sinal com a mão. O guarda tem de se curvar muito para
o ouvir, porque a diferença de alturas se acentuou muito, em desfavor do
homem. «O que é que ainda queres saber?», pergunta o guarda. «És mesmo
insaciável.» «Toda a gente aspira a entrar na lei, não é?», diz o homem. «Como
é que se explica então que em todos estes anos ninguém, além de mim, tenha
pedido para entrar?» O guarda percebe que o homem está a dar as últimas e,
para que o ouvido cada vez mais fraco o possa entender, grita‑lhe: «Ninguém
mais podia entrar por aqui, porque esta entrada estava‑te destinada só a ti.
Agora vou fechá‑la.»
Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os meus cumpri‑
mentos e elogios; nem sequer duvido que esteja um pouco aborrecida com o
meu longo silêncio; mas que quer?
Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a uma mulher,
podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmo‑nos sossegadamente
de outra coisa. No entanto agradeço‑lhe pela minha parte e felicito‑a pela
sua. Para a tornar verdadeiramente feliz, concordo até que, desta vez, ultra‑
passou a minha expectativa. Depois disto, vejamos se pela minha parte terei
ao menos correspondido à sua.
Não é de Madame de Tourvel que lhe quero falar; o seu passo lento
desagrada‑lhe. A minha amiga só gosta dos casos arrumados. Aborrecem‑na
as cenas que se vão lentamente desenrolando; e eu nunca tinha apreciado o
prazer que sinto nestas pretensas lentidões.
Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada, sem disso
se aperceber, num caminho que não permite regresso, e cuja ladeira rápida e
perigosa a leva a seguir‑me, mesmo contra vontade e à força. Assustada com
o perigo que corre, gostaria de parar, mas não pode. As cautelas e a habilida‑
de podem tornar‑lhe os passos mais curtos; mas eles suceder‑se‑ão inevita‑
velmente. Às vezes, não ousando fitar o perigo, fecha os olhos e, deixando‑se
guiar, entrega‑se aos meus cuidados. Muitas vezes um novo terror fá‑la redo‑
brar de esforços. Num pavor mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças
para subir penosamente um curto espaço; e em breve um mágico poder a
coloca de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão pretendera
fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem pensar em me censu‑
rar pela queda inevitável, implora‑me que a retarde. As preces fervorosas, as
humildes súplicas, tudo o que os mortais, no seu medo, oferecem à Divin‑
dade, recebo‑o eu dela; e quer a minha amiga que, surdo aos seus pedidos,
e destruindo eu próprio o culto que ela me presta, me sirva, para a aniquilar,
do poder que ela invoca para a amparar! Ah! Deixe‑me ao menos o tempo de
observar estes tocantes combates entre o amor e a virtude!
No fundo do vale, perto dos estábulos, era onde todos os anos arrumavam
as espigas de milho. Primeiro, punham-se chapas metálicas para proteger o
grão das formigas; depois, despejavam-se os sacos de milho em cima desse
metal, indo lentamente formando uma pilha baixa de cereal branco e escor‑
regadio. Ultimamente, era aí que Mary ficava parada, a verificar se os sacos
eram correctamente despejados. Os nativos retiravam os sacos poeirentos
da carroça, segurando-os pelas pontas depois de os carregarem às costas, do‑
brados em dois sob tanto peso. Eram como um tapete transportador huma‑
no. Dois nativos em cima do carro carregavam o pesado saco sobre o dorso
curvado que estivesse à espera. Os homens iam avançando regularmente em
fila, desde a carroça até ao monte de cereal, subindo cambaleantes a escada
a seu lado formada por sacos cheios, para do alto despejarem as espigas em
chuveiro branco sobre o monte já existente. O ar estava irritante e incómo‑
do, devido a minúsculos fragmentos de folhelho. Quando Mary passava a
mão pela face, sentia-a áspera, como serapilheira fina.
Estava parada junto ao monte, que se elevava a seu lado formando uma
grande montanha refulgente recortada sob o céu azul-forte, as costas vol‑
tadas para os bois que esperavam, imóveis e de cabeça baixa, que o carro
ficasse vazio, para seguirem para nova viagem. Mary vigiava os nativos, ao
mesmo tempo que ia pensando na propriedade e balouçando o chicote
preso no pulso, traçando com ele desenhos na terra vermelha. De repen‑
te, notou que um dos criados não estava a trabalhar. Tinha saído da fila e
estava parado, a respiração ofegante, a face reluzente de suor. Mary olhou
para o relógio. Passou um minuto, dois. E o homem continuava parado,
os braços cruzados, imóvel. Mary esperou até o ponteiro do relógio ter
passado o terceiro minuto, com uma indignação sempre crescente por ele
ter a temeridade de se manter parado, quando já devia conhecer a regra
de que ninguém devia exceder a pausa permitida de um minuto. Depois,
ordenou-lhe:
— Volta para o trabalho!
Marinheiro:
O senhor é o cidadão Antoine? Se assim é, está aqui uma carta para si. De um
tal Galloudec. Não tenho culpa se a carta já é antiga e talvez o assunto se tenha
entretanto resolvido. Fomos retidos pelos espanhóis em Cuba, a seguir pelos
ingleses na Trindade, até que o vosso cônsul Bonaparte fez a paz com a Ingla‑
terra. Depois roubaram-me numa rua em Londres, porque estava bêbado, mas
não encontraram a carta. Quanto a esse Galloudec: não envelhecerá. Esticou
num hospital em Cuba, meia prisão, meio hospital. Estava lá com uma feri‑
da infectada, eu com febre. LEVA A CARTA. TEM DE CHEGAR AO SEU
DESTINO, NEM QUE SEJA A ÚLTIMA COISA QUE FAÇAS, TENS DE
FAZÊ-LA POR MIM. Foram as suas últimas palavras. E a morada de um escri‑
tório e o seu nome, se o senhor é este Antoine. Mas o escritório desapareceu e
de si, se Antoine é o seu nome, já ninguém sabe nada, lá onde era o escritório.
Um sujeito que vive numa cave por detrás dos andaimes, mandou-me a uma
escola, onde um Antoine terá trabalhado como professor. Mas aí também nin‑
guém sabia dele. Então uma mulher da limpeza disse-me que o sobrinho dela
o tinha visto aqui. Ele é carroceiro. E descreveu-mo, se é que o senhor é o tal.
Mas quem era afinal aquele homem? Era surpreendente como tinha chega‑
do àquela posição e nela se mantinha um homem sem partido, que ninguém
conhecia, porque sendo originário de Moscovo, ao terminar a universida‑
de partira como professor para a província, durante a guerra estivera algum
tempo prisioneiro, e até recentemente estava desaparecido e era dado como
morto.
O ferroviário progressista Tivérzin, em cuja família Strelnikov fora edu‑
cado desde criança, recomendava‑o e respondia por ele. As pessoas de quem
dependiam nesse tempo as nomeações confiavam nele. Nos tempos do entu‑
siasmo incontrolável e das ideias mais extremas, o espírito revolucionário
de Strelnikov, que também não se detinha diante de nada, distinguia‑se pela
sua autenticidade, por um fanatismo que não imitava ninguém, mas que era
resultante de toda a sua vida, e não acidental.
Strelnikov justificava a confiança que nele depositavam.
A sua folha de serviço do último período incluía as acções de Ust‑Nemda
e Nijni‑Kelmess, o caso dos camponeses de Gubassovo, que opuseram resis‑
tência armada ao destacamento de abastecimento, e o caso do roubo do
comboio alimentar pelo regimento de infantaria 14 na tomada da estação
de Medvéjie. No seu registo figurava também o caso dos soldados razinistas,
que se sublevaram na cidade de Turkatule e de armas nas mãos se passaram
para o lado dos guardas brancos, e o caso do motim militar no porto fluvial
de Tchirkin Us, com a morte do comandante que se mantivera fiel ao poder
soviético.
Em todos esses lugares ele chegava de surpresa, como a neve que cai
sobre a cabeça, julgava, condenava, fazia executar as penas, depressa, severa‑
mente, sem hesitações.
Com as expedições do seu comboio pusera‑se fim à epidemia das deser‑
ções naquela região. A revisão das organizações de recrutamento mudou
tudo. O alistamento no Exército Vermelho decorria com êxito. As comissões
de admissão passaram a trabalhar febrilmente.
Lembra‑te Barbara
Chovia sem parar em Brest nesse dia
E tu caminhavas sorridente
Feliz radiante resplandecente
Sob a chuva
Lembra‑te Barbara
Chovia sem parar em Brest
E eu cruzei‑me contigo na rua de Siam
Tu sorrias
E eu também sorria
Lembra‑te Barbara
Tu que eu não conhecia
Tu que não me conhecias
Lembra‑te
Lembra‑te apesar de tudo desse dia
Não esqueças
Um homem abrigava‑se num portão
E gritou o teu nome
Barbara
E tu correste para ele sob a chuva
Resplandecente radiante feliz
E lançaste‑te nos seus braços
Lembra‑te disso Barbara
E não me leves a mal por te tratar por tu
Trato por tu todos aqueles que se amam
Mesmo que não os conheça
Lembra‑te Barbara
Não esqueças
Essa chuva serena e feliz
No teu rosto feliz
Conta‑se ainda que em certa ocasião deixou crescer uma grande barba para
que sua mulher pudesse elevar‑se até aos seus ouvidos e dar‑lhe alguns con‑
selhos. Ela exortou‑o a imitar os outros, os do vale, quer dizer a misturar‑se
com a multidão, e juntar‑se aos seus divertimentos, a bater‑se, a entrar na
política. Mas, lembrando‑se das palavras sensatas da sua antepassada, Ilie
preferiu abandonar, ao mesmo tempo que a barba, as complicações dos ho‑
mens. Desde então apresenta a cara rapada. Nunca o verão comportar‑se
como os da planície, nem tão‑pouco escutará os conselhos da mulher. Uma
longa barba necessita de muitos cuidados e dum pente. Além disso, quando
se tem uma barba, as corças olham para nós duma maneira singular e não
nos reconhecem. É que Ilie faz parte desses guardas que, sabendo muito
bem «ler» nos lugares que o encarregaram de vigiar, sabem também explicar
o que «leram».
Assim, ultimamente, numa reunião que se realizou no Bosque do Se‑
nhor, eis como ele falou, explicando esses «sinais ocultos» que as pessoas
vulgares não percebem:
— Fiquem sabendo, senhores, que esta manhã estive no Prado dos
Cavalos para ver se descobria vestígios de marta.
Primeiro, é necessário dizer‑vos que todos os carnívoros, desde o bode
bravo e o lince até à marta, estão aqui sob a nossa vigilância. (Digo isto aos
profanos e não aos caçadores.) Os nossos guardas, durante o Inverno, procu‑
ram em especial as martas, cuja pele ao câmbio actual vale cinco mil lei1. Do
tamanho da pele de gato, esta pelezinha é muito preciosa em primeiro lugar
por causa da sua beleza e da sua cor castanho ondeado como um fumo, em
segundo lugar pela macieza da pelagem e pelas suas listas negras. O preço é
muito elevado, porque a captura é difícil. Os nossos homens, para não lhe
estragar a pele, evitam matá‑la a tiro. Assim, vemo‑los colocar na floresta,
nos locais onde se descobrem vestígios da sua passagem, certas armadilhas
1 Moeda da Roménia.
Meu Deus, será que sonhei?... Ele disse mesmo isto? Onde é que ele está? Lá
vai ele... Eu devia era puxar da espada e dar cabo dele... Meu Deus, alguém
terá ouvido alguma coisa? Não, ele falou muito baixinho, ao meu ouvido...
Porque é que não vou ter com ele e não lhe racho a cabeça?... Não, não posso,
não posso... devia‑o ter feito logo na altura... Porque é que não o fiz logo?...
Não pude... ele não largava o punho, e é muito mais forte do que eu... Se
tivesse dito mais uma palavra, partia‑me mesmo a espada... Ainda me devo
dar por muito feliz por ele não ter falado alto! Se alguém ouvisse, então tinha
de me ir matar já a seguir... Se calhar foi um sonho... Porque é que o senhor
ao pé da coluna está a olhar tanto para mim? Será que afinal sempre ouviu
alguma coisa? Vou‑lhe perguntar...Vou quê? — Eu estou mas é doido! Que
figura é que eu ia fazer? — Nota‑se‑me alguma coisa? Devo estar muito páli‑
do. Onde é que está o malandro?... Tenho de o matar!... Fugiu... Já está tudo
tão vazio... Onde é que está o meu casaco? Ah, já o tenho vestido... nem dei
por isso... Quem é que me ajudou?... Ah, aquele ali... tenho de lhe dar cinco
coroas... Pronto!... Mas isto foi mesmo verdade? Alguém realmente falou as‑
sim para mim? Alguém realmente me chamou patife? E eu não dei cabo dele
logo ali? Mas é que não pude... ele tinha um pulso de ferro... ali fiquei como
que pregado ao chão... Não, devo ter perdido o juízo, porque se não com a
outra mão tinha... Mas então ele tirava‑me a espada e partia‑a — e acabava
‑se — acabava‑se tudo! E depois, quando ele se foi embora já era tarde de
mais... era impossível ir a correr atrás dele e espetar‑lhe a espada por trás.
O quê, já estou na rua? Mas como é que eu de lá saí? — Está bem fresco...
ah o vento faz bem... Quem é que está ali adiante? Porque é que estão a olhar
para mim? Se calhar aqueles ouviram alguma coisa... Não, ninguém ouviu
nada, de certeza... bem o sei, olhei à minha volta logo a seguir! Ninguém se
importou comigo, ninguém ouviu nada. Mas ele disse‑o, embora ninguém
ouvisse; disse‑o, sim. E eu ali fiquei e tolerei tal coisa, como se alguém me
tivesse dado uma paulada!... Mas não fui capaz de dizer nem de fazer nada;
não tive outro remédio senão ficar bem quietinho!... é terrível, não se pode
aguentar tal coisa; tenho de o liquidar onde quer que o encontre! Então um
fulano diz‑me isto a mim! Um tipo daqueles, um malandro! E ele conhece
‑me... ele conhece‑me, caramba, ele sabe quem eu sou!... Ele pode ir contar
a qualquer pessoa que me disse aquilo!... Não, não, ele não vai fazer isso, se
não também não tinha falado tão baixo... ele também quis que fosse só eu a
ouvir aquilo? Mas quem me garante que de hoje para amanhã não vá contar à
mulher, à filha, aos amigos do café? — Céus, amanhã vejo‑o outra vez! Quan‑
do eu amanhã for ao café, lá está ele outra vez como nos outros dias a jogar à
bisca com o senhor Schlesinger e com o vendedor de flores artificiais... Não,
não pode ser, não pode ser... Se lhe ponho a vista em cima, dou cabo dele...
Não, não posso fazer isso, logo na altura é que o devia ter feito, logo!... Se
tivesse podido! Vou mas é ao coronel participar a coisa... sim, ao coronel...
O coronel é sempre muito simpático — e eu vou‑lhe dizer: «senhor coronel,
na mais estrita obediência venho participar que ele me segurou no punho
da espada e não o largou; foi o mesmo que estar sem arma...» — O que é que
o coronel vai dizer? — O que vai ele dizer? — Mas aí só há uma resposta:
é demitir‑me, demitir‑me vergonhosamente!...
A desgraçada Rebeca foi conduzida para uma cadeira preta perto da pira.
Viu‑se que estremeceu quando olhou pela primeira vez para aquele sítio
horrível, onde continuavam preparativos para o fim do seu corpo. Fechara
os olhos e, certamente, rezara, pois que os lábios se lhe moviam quase im‑
perceptivelmente. Passado um pouco, abriu os olhos, fixou a pilha, como
que para com ela se familiarizar, e depois, com toda a naturalidade, afastou
a vista de lá.
O Grão‑Mestre já se sentara e, quando todos os cavaleiros da Ordem
se instalaram igualmente, atrás e à sua volta, de acordo com as diversas ca‑
tegorias, um longo e floreado trombetear anunciou ter o tribunal aberto.
Malvoisin, um dos padrinhos do campeão, avançou e colocou a luva da judia,
o símbolo do repto, aos pés do Grão‑Mestre.
— Valoroso senhor e reverendo pai — disse —, eis aqui o bom cavaleiro
Brian de Bois‑ Guilbert, preceptor da Ordem do Templo, que, tendo aceite
este repto que acabo de depor aos pés de Vossa Reverência, se comprome‑
teu a fazer o seu dever combatendo, hoje, para que se prove que a donzela
judia, Rebeca de seu nome, merece a sentença lida em capítulo da mui sa‑
cra Ordem do Templo de Sião, condenando‑a à morte como feiticeira. Está
aqui, repito, para batalhar, com toda a honra e cavalheirismo, caso seja esse
o vosso nobre e santificado desejo.
— Já jurou — perguntou o Grão‑Mestre — em como a causa é justa e
honrosa? Trazei o crucifixo e o Te igitur.
— Senhor e mui reverendo pai — respondeu Malvoisin —, o nosso ir‑
mão aqui presente já prestou essa jura perante o bom cavaleiro Conrade de
Mont‑Fitchet. Aliás, nem necessitaria de o ter feito, uma vez que o seu ad‑
versário é descrente e não pode fazer igual declaração.
A explicação foi considerada satisfatória, com grande alegria para
Albert, fino cavaleiro, que previra a dificuldade, ou talvez a impossibilidade,
de se conseguir que Bois‑ Guilbert fizesse um juramento daqueles, perante a
assembleia, e recorrera àquele subterfúgio.
Macbeth
Içai as nossas bandeiras nas muralhas
Exteriores. Nosso grito é sempre:
«Ei‑los que vêm!» A força do castelo
Zombará deste assédio: que se fiquem
Até que a fome e as febres os consumam.
Não os tivessem reforçado aqueles
Que deviam ser nossos, já os teríamos
Atacado sem medo, cara a cara,
E enxotado daqui.
Grito de mulheres dentro.
Que ruído é este?
Seyton
É grito de mulheres, Majestade.
Sai.
Macbeth
Já quase esqueci o gosto do medo.
Tempo houve em que o meu pulso pararia
De ouvir alguém gritar dentro da noite;
Em que um sinistro conto relatado
Me faria eriçar‑se os meus cabelos
Como se vivos fossem. Mas fartei‑me
De horrores: o terror, já acostumado
Com os meus pensamentos homicidas,
Não me surpreende mais.
Volta Seyton.
Qual foi a causa
Deste grito?
Seyton
A Rainha, Majestade,
É morta.
Macbeth
É morta... Não devia ser agora.
Sempre seria tempo para ouvir‑se
Essas palavras. Amanhã, volvendo
Trás amanhã e trás amanhã de novo,
Vai, a pequenos passos, dia a dia,
Até à última sílaba do tempo
Inscrito. E todos esses nossos ontens
Têm alumiado aos tontos que nós somos
Nosso caminho para o pó da morte.
Breve candeia, apaga‑te! Que a vida
É uma sombra ambulante; um pobre actor
Que gesticula em cena uma hora ou duas,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.
Entra um mensageiro.
Vieste para servir‑te de tua língua:
Depressa, o teu recado.
Mensageiro
Majestade,
Deveria eu contar o que estou certo
Que vi, porém não sei como fazê‑lo.
Macbeth
Vamos, fala!
Mensageiro
Estando eu de sentinela
No alto de uma colina, volvi os olhos
Na direcção de Birnam e eis que vejo
Mover‑se o bosque.
Macbeth
Mentes, miserável!
Mensageiro
Desabe sobre mim a vossa cólera,
Real, meu Senhor, se isto não for verdade.
Podeis vê‑lo a três milhas de distância.
Repito: é um bosque em marcha.
Macbeth
Se não for
Verdade, mandarei que te pendurem
Vivo à árvore mais próxima, onde morras
De fome. Mas se for como disseste,
Não se me dá que a mim faças o mesmo.
Já não posso dar rédeas à confiança,
E entro a desconfiar das profecias
Equívocas do demo, que nos mente
Sob a cor da verdade: «Não receies
Até que Birnam venha a Dunsinane.»
E agora uma floresta vem marchando
Na direcção de Dunsinane. — Às armas!
Às armas, e saiamos! Se é verdade
O que este nos refere, não adianta
Fugir daqui ou aqui quedar. Começo
A me sentir cansado deste sol,
E desejara ver neste momento
Espedaçada a máquina do mundo!
Dai rebate! Ora sus, ao inimigo!
Ventos, soprai! Catástrofe, abatei‑vos!
Ao menos morreremos combatendo.
Saem.
Começava um novo ano, o ano de 51, e nesse ano Chúkhov tinha direito a duas
cartas. A última tinha-a escrito em julho, e a resposta chegara em outubro. Em
Ust-Ijmá tinham outro regulamento: podiam escrever uma vez por mês. Mas
escrever o quê numa carta? Não escrevia com mais frequência do que agora.
Tinha saído de casa em 23 de junho de 1941. No domingo as pessoas que
voltavam da missa, em Polomniá, diziam: Há guerra. Em Polomniá soube-se
no correio, mas em Temgueniovo ninguém antes da guerra tinha rádio. Ago‑
ra escrevem que em cada isbá há um rádio com fios aos berros.
Hoje em dia, escrever é como lançar pedrinhas num denso remoinho.
O que lá cai desaparece sem deixar vestígio. Não vai uma pessoa escrever em
que brigada trabalha, nem como é o chefe da brigada Andrei Prokófievitch Tiú‑
rin. Agora há mais de que falar com o letão Kildigs do que com os familiares.
De lá escrevem duas vezes por ano, e não se consegue perceber que vida
levam. Havia um novo presidente do kolkhoze, o que acontecia todos os anos;
mais de um ano não os deixam no cargo. Aumentaram o kolkhoze, já antes o ti‑
nham aumentado para depois o reduzirem. A alguns que não tinham cumpri‑
do a norma de trabalho reduziram-lhes a parcela para mil e quinhentos metros
quadrados, a outros cortaram-lhas mesmo até rente à casa. A mulher escreve‑
ra também uma vez que saíra uma lei para julgar aqueles que não cumpriam
essa norma, para os meter na prisão, mas parece que essa lei ficara sem efeito.
O que Chúkhov não conseguia de modo nenhum perceber era que,
como a mulher escrevia, depois da guerra nem uma alma viva se tivesse
juntado ao kolkhoze: todos os rapazes e todas as raparigas, cada qual à sua
maneira, conseguiam ir-se embora, ou para a fábrica na cidade, ou para as
turfeiras. Metade dos homens não voltou da guerra, e os que voltaram não
querem saber do kolkhoze: vivem em casa, trabalham fora. Os únicos ho‑
mens do kolkhoze eram Zakhar Vassilitch, o chefe de brigada, e o carpinteiro
Tikhon, de oitenta e quatro anos, que se casara havia pouco e já tinha filhos.
O kolkhoze era mantido pelas mesmas mulheres que nos anos 30, e quando
elas desaparecerem o kolkhoze morre.
Laurência — Permiti que junte a minha voz a este conselho de homens. Se,
como mulher, não tenho voto, é‑me permitido falar. Reconheceis‑me?
Estêvão Santo Deus! Será a minha filha?
João Rojo — Não a conheces? É Laurência.
Laurência — Puseram‑me em tal estado que estou irreconhecível.
Estêvão — Minha filha!
Laurência — Não me chameis vossa filha.
Estêvão — Porquê, luz dos meus olhos?
Laurência — Por muitas razões. E a principal é consentirdes que esses dés‑
potas traidores me roubem sem que me salveis ou vingueis. Não pode‑
rei dizer que essa é a obrigação de Frondoso. Não sou ainda sua mulher.
É sobre vós que recai o dever de me guardar. Só na noite da boda ces‑
sam as responsabilidades do pai para começarem as do marido. Quando
compramos uma jóia, só depois de ela nos ser entregue é que a pomos a
recato dos ladrões. Fernão Gómez levou‑me para sua casa. Fê‑lo dian‑
te dos vossos próprios olhos. E, como cobardes pastores, deixastes a
ovelha entregue ao lobo. Que adagas contra o meu peito! Que palavras!
Que ameaças! Que delitos atrozes! Que abomináveis desatinos supor‑
tei para me constrangerem a entregar minha castidade aos seus torpes
apetites! Os meus cabelos, estas feridas e este sangue não me deixam
mentir. E achais que sois homens dignos, vós, meu pai e meus paren‑
tes! Não se rasgam as vossas entranhas de dor ao ver‑me nesta desgraça.
Não passais de mansas ovelhas. O nome de Fuenteovejuna o diz. Dai
‑me armas, já que sois pedras, bronze, jaspe, tigres... Tigres, não... Estes
são ferozes. Perseguem quem lhes rouba as crias e matam os caçadores
antes que estes fujam para o mar e se arrojem às ondas. Não passais de
assustadas lebres. Bárbaros sereis, não espanhóis. Galinhas! Suportais
que os outros gozem as vossas mulheres. De que vos servem esses es‑
toques que cingis? Ponde rocas à cinta! Por Deus que hei‑de levar as
mulheres desta vila a resgatarem a sua honra e a derramar o sangue dos
Não é bom
ficar na margem
como o cais ou o molusco que calcariamente quer imitar a rocha.
Eugène desceu e encontrou Madame Vauquer ocupada a pôr a mesa com Syl‑
vie. Às primeiras palavras que Rastignac lhe dirigiu, a viúva respondeu no
tom agridoce da comerciante desconfiada que não quer perder o seu dinhei‑
ro nem fazer zangar o freguês.
— Meu caro Monsieur Eugène, sabe tão bem como eu que o Tio Goriot
já não tem um soldo. Dar lençóis a um homem que está prestes a fechar os
olhos, é perdê‑los, tanto mais que pelo menos um terá de ser sacrificado
para o amortalhar... Além disso, o senhor já me deve cento e quarenta e
quatro francos, e se lhes juntar quarenta francos de lençóis e mais algu‑
mas coisitas e a vela que Sylvie lhe vai dar, tudo isso somará, pelo menos,
duzentos francos, que uma pobre viúva como eu não está em condições
de perder... Seja justo, Monsieur Eugène; bem basta o que tenho perdido
desde que há cinco dias o azar se instalou em minha casa... Acredite que
daria de boa vontade dez escudos para que esse pobre homem já se tives‑
se ido embora há dias, como o senhor dizia. Essas coisas incomodam os
pensionistas... Por muito menos, se fosse comigo, já o teria mandado para
o hospital. Enfim, ponha‑ se no meu lugar... O meu estabelecimento está
primeiro que tudo; é a minha vida!
Eugène subiu rapidamente ao quarto do Tio Goriot.
— Bianchon, o dinheiro do relógio?
— Está ali, em cima da mesa. Sobraram trezentos e sessenta e tal fran‑
cos. Paguei tudo o que devíamos com o que me deram por ele. A cautela do
montepio está debaixo do dinheiro.
Rastignac voltou a descer a escada.
— Tome, minha senhora, pague‑se de tudo o que lhe devemos. Mon‑
sieur Goriot já não estará muito tempo em sua casa, e eu...
— Sim, sairá daqui com os pés para a frente, pobre homem... — sus‑
pirou a mulher, contando os duzentos francos com ar meio alegre, meio
melancólico.
— Acabemos com isto! — impacientou‑se Rastignac.
utilizou as últimas forças que lhe restavam para estender as mãos. E quando
encontrou de cada lado da cama as cabeças dos estudantes, agarrou‑as sofre‑
gamente pelos cabelos e ouviram‑no murmurar com voz débil: «Ah, meus
anjos!...» Duas palavras, dois murmúrios acentuados pela alma que se evolou
com eles.
— Pobre homem! — suspirou Sylvie, a quem comovera aquela exclama‑
ção em que se patenteava um sentimento supremo exaltado pela derradeira
vez pela mais horrível e involuntária das mentiras.
O último suspiro daquele pai devia ser de alegria e foi a expressão de toda
a sua vida, pois mais uma vez se enganou a si próprio. Depositaram piedosa‑
mente o Tio Goriot no seu catre e a partir daquele momento a sua fisionomia
conservou vestígios do combate que se travava entre a morte e a vida dentro
de uma máquina que já não possuía essa espécie de consciência cerebral de
que resulta para o ser humano a sensação do prazer e da dor. A destruição era
apenas uma questão de tempo.
— Vai ficar assim umas horas e morrerá sem que ninguém dê por isso,
sem sequer estertorar. O cérebro deve estar completamente invadido... —
murmurou Bianchon.
Neste momento ouviram‑ se na escada passos de uma mulher nova
ofegante.
— Chega demasiado tarde — disse Eugène.
Não era Delphine, mas sim Thérèse, a sua criada de quarto.
— Monsieur Eugène, deu‑se uma cena violenta entre o senhor e a senho‑
ra, por causa do dinheiro que a pobre senhora pedia para o pai. Desmaiou,
veio o médico e teve de ser sangrada. Gritava: «O meu pai está a morrer!
Quero ver o paizinho!» Enfim, gritos de cortar a alma.
— Basta, Thérèse. Não serviria de nada se só viesse agora; Monsieur
Goriot perdeu a consciência.
— Pobre senhor, deve estar muito mal... — murmurou Thérèse.
— Os senhores já não precisam de mim e tenho de ir tratar do meu jan‑
tar, pois são quatro e meia — esquivou‑se Sylvie, que por pouco não chocou
ao cimo da escada com Madame de Restaud.
Foi uma aparição grave e terrível. A condessa olhou o leito de morte,
mal iluminado por uma única vela de sebo, e desfez‑se em lágrimas ao ver o
rosto do pai, em que palpitavam ainda os últimos frémitos da vida. Bianchon
retirou‑se discretamente.
— Não pude vir mais cedo... — disse a condessa a Rastignac.
O estudante acenou afirmativamente com a cabeça, num gesto cheio de
tristeza, e Madame de Restaud pegou na mão do pai e beijou‑a.
— Perdoe‑me, meu pai! Dizia que a minha voz o faria sair da sepultura...
pois então volte por um momento à vida e abençoe a sua filha arrependi‑
da. Escute‑me. Isto é espantoso! A sua bênção é a única coisa que doravante
poderei receber neste mundo. Toda a gente me odeia, só o pai gosta de mim.
Os meus próprios filhos me odiarão... Leve‑me consigo para o amar e tratar.
Já não ouve... que loucura a minha!
Caiu de joelhos e contemplou aquela ruína humana com expressão
delirante.
— A minha infelicidade é completa — prosseguiu, olhando para Eugè‑
ne. — Monsieur de Trailles desapareceu, deixando aqui dívidas enormes,
e soube que me enganava. O meu marido nunca me perdoará, apesar de lhe
ter entregado toda a minha fortuna. Perdi todas as ilusões. Ai de mim, por‑
que atraiçoei o único coração — e apontou para o pai — que me adorava!
Desprezei‑o, repeli‑o, causei‑lhe os maiores sofrimentos... Sou uma infame!
— Ele sabia‑o — declarou Rastignac.
Neste momento, o Tio Goriot abriu os olhos, mas devido a uma convul‑
são. O gesto que revelou a esperança da condessa não foi menos horrível do
que o olhar do moribundo.
— Ter‑me‑ia ouvido?... — perguntou. — Não — respondeu a si própria,
sentando‑se ao pé da cama.
Como Madame de Restaud tivesse manifestado o desejo de velar o
pai, Eugène desceu para comer qualquer coisa. Os pensionistas já estavam
reunidos.
— Então? Parece que vamos ter uma mortoramazinha lá em cima... —
disse‑lhe o pintor.
— Charles — redarguiu‑lhe Eugène —, parece‑me que deveria gracejar
com qualquer coisa menos lúgubre...
— Então já se não pode rir aqui? — volveu‑lhe o pintor. — Que diferença
faz, se Bianchon diz que o pobre homem perdeu a consciência?
— Nesse caso — acrescentou o funcionário do Museu — morrerá como
viveu...
— O meu pai morreu! — gritou a condessa.
Ao ouvirem este grito terrível, Sylvie, Rastignac e Bianchon subiram e
encontraram Madame de Restaud desmaiada. Depois de a fazerem voltar a
si, levaram‑na para o fiacre que a esperava e Eugène confiou‑a aos cuidados
de Thérèse, a quem ordenou que a levasse para casa de Madame de Nucingen.
— Oh, está bem morto!... — anunciou Bianchon quando desceu.
— Vamos, meus senhores, para a mesa — ordenou Madame Vauquer. —
Não deixem arrefecer a sopa...
Venda um adereço, se tanto for preciso, para que o seu pai seja conduzido decentemente
à sua última morada.
FIM
CENA XVII
Segismundo, Clotaldo, Clarim e Dois Criados
Clotaldo
Sim, que há‑de ficar
guardado em prisão tão grave
Clarim que segredos sabe,
p’ra que não possa soar.
Clarim
Por acaso eu solicito
dar morte a meu pai? Eu não.
Atirei eu do balcão
aquele Ícaro miudito?
Sonho ou durmo? Com que fim
me encerram?
Clotaldo
Porque és Clarim.
Clarim
Pois já digo que serei
corneta e me calarei,
que é instrumento ruim.
(Levam‑no e fica só Clotaldo.)
CENA XVIII
Basílio, Clotaldo e Segismundo
Segismundo
Se foi sonho inda o não sei,
e não digo o que sonhei,
mas, Clotaldo, o que vivi.
Despertei e eis que me vi,
oh lisonja enfim tão fera,
num leito que bem pudera,
com seus matizes e cores,
ser aquele que com flores
tece a doce Primavera.
Aí, mil nobres rendidos
a mim o nome atribuíram
de seu príncipe, e serviram
galas, jóias e vestidos.
A calma de meus sentidos
tu volveste em alegria
dizendo‑me que eu seria
rei em Polónia, embora
vivesse antes como agora.
Clotaldo
Boas alvíssaras teria.
Segismundo
Não muito, pois por traidor,
com gesto atrevido e forte,
duas vezes te dava morte.
Clotaldo
Para mim tanto rigor?
Segismundo
De todos era senhor,
e de todos me vingava;
só uma mulher amava…
Que tudo assim sucedeu
e agora, acabou, vejo eu;
só isto está como estava.
(Vai‑se o rei.)
Clotaldo
(À parte.)
O rei foi‑se enternecido
depois de o ter escutado.
(Alto.)
Como tínhamos falado
de uma águia, adormecido,
foi p’lo poder seduzido
teu sonho, mas fora bem
que houvesses honrado quem
com zelos te foi criando,
Segismundo, pois sonhando
não se perde o fazer bem.
(Vai‑se.)
CENA XIX
Segismundo
Segismundo
Verdade é, pois reprimamos
esta fera condição,
esta fúria e ambição,
para um dia que sonhemos.
Aprendamos, pois vivemos
em mundo tão singular,
que o viver é só sonhar;
e ensina‑me a vida mãe
que na sua vida o homem
sonha o que é ’té acordar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com este engano mandando,
ordenando e governando;
e esse aplauso, que recebe
fingido, no vento escreve,
e em cinzas a dura morte
o torna, ó triste sorte!
Mas há quem queira reinar
vendo que há‑de despertar
no triste sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza,
que mais zelos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
«Se quereis que vos expulsem da vossa pátria e vos dispersem pelo mundo, se
quereis ser avaliados, manuseados e comprados como escravos com os quais
ninguém fala e aos quais mal se dá ouvidos quando realizam as suas tarefas,
escravos em cuja alma ninguém lê, que as pessoas têm mas não amam, que
deixam estropiar ou revendem para obter lucros, que utilizam mas não com‑
preendem, nesse caso cruzai os braços e entregai‑vos ao inimigo! Contudo,
se ainda vos resta um coração altivo, uma alma valorosa e um espírito nobre,
erguei‑vos comigo e iniciemos uma Guerra Santa!
Não sobrestimeis a força do inimigo, meu povo! Entre as tuas letras
esmagá‑lo‑ás até que morra! Sejam as tuas linhas as clavas que se abatem
sobre a sua cabeça, as tuas letras os pesos de chumbo que pendem dos seus
pés e as tuas capas as couraças que te protegem dele! Tens mil ardis para o
atrair, mil redes para o envolver, mil raios para o fulminar! Sim, meu povo, tu
que és a força, a grandeza e a sabedoria dos séculos!»
Kien fez uma pausa. Exausto e entusiasmado, dobrou‑se em dois sobre
a escada. As pernas começaram a bambolear‑lhe, ou seria a escada? As armas
que acabava de elogiar executaram uma dança guerreira em frente dos seus
olhos. Correu sangue; como era sangue de livros, sentiu‑se ferido de morte.
Cuidado, não te deixes desmaiar! Cuidado, não percas a consciência! De
repente ergueu‑se um torvelinho de aplausos, como se uma tempestade atra‑
vessasse um bosque de folhas de papel, e de todos os lados chegaram aclama‑
ções de júbilo. Reconheceu algumas vozes pelas palavras que diziam. Era a
sua linguagem, as suas pronúncias, sim, eram eles, os seus fiéis amigos que o
seguiam na Guerra Santa! Um súbito sobressalto fê‑lo endireitar‑se na esca‑
da; saudou várias vezes e, aturdido pela excitação, levou a mão esquerda ao
lado do coração, onde também o não tinha. Os aplausos nunca mais acaba‑
vam. Pareceu absorvê‑los pelos olhos, pelos ouvidos, pelo nariz e pela língua,
por toda a sua pele húmida e vibrante. Nunca se julgara capaz de pronunciar
discursos tão incendiários. Recordou o seu nervosismo antes do discurso,
pois que outra coisa tinha sido aquela desculpa?, e sorriu.
O MESMO SALÃO
Um Nada
fomos, somos e
seremos, abrindo em flor:
rosa-do-Nada, a
rosa-de-Ninguém.
Com
o estilete claro-como-alma,
o estame de céus devastados,
a corola vermelha
da palavra de púrpura que cantámos
sobre, ah, sobre
o espinho.
O poeta regressou para passar longos anos no vazio do pai. Não chameis por
ele, vós todos que o amais. Se vos parece que a asa da andorinha já não tem
um espelho sobre a terra, esquecei essa felicidade. Aquele que transformava
o sofrimento em pão não é visível na sua letargia incandescente.
Ah! Que a beleza e a verdade possam fazer‑vos presentes, e numerosos,
nas salvas da libertação!
Aliocha entrou e informou Ivan Fiódorovitch de que, pouco mais de uma hora
antes, chegara a correr a casa dele Maria Kondratievna e anunciara que Smer‑
diakov pusera termo à vida. «Entro no quarto dele para arrumar o samovar, e
está ele pendurado numa cavilha na parede.» À pergunta de Aliocha se ela já
informara as autoridades, Maria Kondratievna respondeu que não: «Vim direc‑
tamente ter com o senhor, corri a sete pés todo o caminho.» Estava como des‑
vairada, contou Aliocha, tremia toda como uma folha. Quando Aliocha correu
juntamente com ela de volta à isbá, encontrou Smerdiakov ainda pendurado.
Em cima da mesa havia um bilhete: «Elimino a minha vida por minha livre
vontade, para não acusar ninguém.» Aliocha deixou o bilhete no sítio e foi ao
comissário da polícia, declarou a ocorrência, e «de lá vim ter contigo» — con‑
cluiu Aliocha, olhando perscrutadoramente para o rosto de Ivan. Enquanto
falava não desviava os olhos dele e parecia espantado com a expressão de Ivan.
— Irmão! — gritou‑lhe bruscamente. — Acho que estás muito doente!
Olhas para mim e parece que não compreendes o que estou a dizer.
— Ainda bem que vieste — disse Ivan pensativamente, como se não
tivesse ouvido a exclamação gritada de Aliocha. — De resto, já sabia que ele
se tinha enforcado.
— Sabias? Quem te disse?
— Não sei quem. Mas sabia. Saberia mesmo? Sim, foi ele quem mo disse.
Há pouco falou comigo...
Ivan estava especado no meio do quarto, falando sempre da mesma
forma pensativa e com os olhos no chão.
— Ele... quem? — perguntou Aliocha, passando involuntariamente o
olhar em volta.
— Esgueirou‑se.
Ivan levantou a cabeça e sorriu serenamente.
— Teve medo de ti, de ti, meu pombinho. És um «querubim puro».
O Dmítri chama‑te querubim. Querubim... Um grito ribombante dos sera‑
fins rejubilantes! O que é um serafim? Às tantas, toda uma constelação. Mas
— Quem ignora que a primeira é a mais grata e deliciosa idade da vida huma‑
na? Que têm de especial as crianças para que as beijemos, abracemos, acari‑
ciemos, para que até os inimigos se enterneçam com elas, se não o encanto
da loucura? A prudente Natureza concedeu esse dom aos recém‑nascidos
para eles assim recompensarem os trabalhos e os cuidados dos que os edu‑
cam. À infância, que não fala, segue‑se a puerícia que a todos agrada, que
encanta pela candura, que todos solicitamente ajudam de mãos estendidas.
Donde vem esta graça da juventude? Donde, se não de mim, que afasto essas
idades tanto da sabedoria como dos tristes cuidados? Estou a mentir? Vede
então: quando crescem, estudam, adquirem o uso das coisas e a disciplina
da vida, a alacridade languesce, a alegria arrefece, a vivacidade decai. É a
adolescência. À medida que se afasta de mim, o homem vai vivendo com
menos intensidade até que chega à senilidade tão modesta para ele como
importuna para os outros, e que seria insuportável se eu não interviesse em
socorro de tantas misérias.
Tal como, no dizer dos poetas, os deuses protegem com uma metamor‑
fose aqueles que querem salvar da morte, assim eu reconduzo à puerícia os
velhos que estão à beira do túmulo. O vulgo costuma dizer que eles estão na
segunda infância. Não ocultarei o modo por que efectivo essa transforma‑
ção. Conduzo os velhos à fonte da nossa Leté, a que nasce nas ilhas Afortuna‑
das (porque nos Infernos não corre mais que um riacho); faço‑os beber a água
do olvido que dilui pouco a pouco os cuidados e rejuvenesce a alma. Deliram,
ficam tontos, dizem tolices? É isso mesmo; readquirem a infantilidade. Não
é próprio da puerícia a inconsciência e a inconsequência? Haverá pessoas
tão odiosas como esses meninos portentos, que exibem uma sabedoria viril?
Bem diz o adágio vulgar: «Odeio a sabedoria precoce da criança...»
Quem poderia ter por amigo e companheiro um velho que aliasse à
experiência completa da vida o vigor intelectual e o juízo acrimonioso? Mais
vale que o velho delire. Este delírio liberta‑os dos cuidados e das misérias da
vida que atormentam o homem sisudo. Vai bebendo o seu vinho. Não sente
o tédio da vida que uma idade mais robusta suporta. Por vezes regressa às
três letras A.M.O. como o velho de Plauto, e não é infeliz porque é estulto,
agradável aos amigos, e jovial na conversa. Já dizia Homero que da boca de
Nestor fluíam palavras mais doces que o mel, enquanto o discurso de Aquiles
era amargoso; dizia ainda que os velhos reunidos junto dos muros da cidade
proferiam palavras floridas. Pelo que se pode calcular em quanto superam a
própria infância, idade muito feliz e agradável mas que não tem o prazer da
tagarelice.
Acrescei que os velhos adoram as crianças e que estas se afeiçoam a eles,
porque
os deuses comprazem‑se em unir os semelhantes.
Mais ou menos rugas, maior ou menor número de anos, tais são as dife‑
renças entre uns e outros. Mas o cabelo branco, a boca desdentada, o corpo
débil, o gosto pelo leite, a balbúcie, a garrulice, a inépcia, o olvido, a irreflexão
aproximam‑nos. Quanto mais os homens acedem à senilidade, tanto mais
ganham em semelhança com a puerícia; e, por fim, emigram como crianças,
sem o tédio da vida, sem a consciência da morte.
Coro
Ó desgraçado, que não sabes a que ponto chegaram teus males, Jasão! Se
não, não proferirias tais palavras.
Jasão
Que é? Acaso também quer matar‑me, a mim?
Coro
Teus filhos estão mortos pela mão de sua mãe.
Jasão
Ai de mim, que dizes? Como tu me deitaste a perder, mulher!
Coro
Pensa em teus filhos, como seres que já não existem.
Jasão
Onde os matou então? Dentro ou fora de casa?
Coro
Abre essas portas, verás os teus filhos assassinados.
Jasão
Correi já as fechaduras, ó servos, soltai essas trancas, para eu ver a dupla
desgraça, [os que morreram... e aquela a quem eu farei pagar as culpas.]
(Medeia aparece na mechane, em plano mais elevado, carro do Sol, com os cadá‑
veres dos filhos.)
Medeia
Para que abalas e tentas destrancar essas portas, procurando os cadáve‑
res e a mim, autora dessa obra? Cessa esse trabalho. Se precisas de mim,
fala, se quiseres, que com a mão nunca me tocarás. O Sol, pai de meu pai,
me deu este carro como meio de defesa contra mãos inimigas.
Jasão
Ó abominada, ó mais que todas odiosa mulher, para os deuses e para
mim e para toda a raça humana, tu que quiseste enterrar a espada nos
filhos que geraras, e me deitaste a perder, deixando‑me sem descendên‑
cia! E depois de fazer isto, ainda contemplas a luz do Sol e a Terra, tendo
executado a mais ímpia das acções?
Quem dera que morresses! Vejo agora o que então não via, quando de
uma casa e de um país bárbaro te trouxe para um lar helénico, a ti, gran‑
de flagelo, que atraiçoaste o pai e a terra que te criara. O teu génio da
vingança, os deuses o assestaram contra mim. Depois de teres matado
o teu irmão junto do próprio lar, embarcaste na nau de Argos, de bela
proa.
Tais foram os teus princípios. Casando com este homem, e gerando‑me
filhos, às núpcias, ao leito os imolaste. Não há mulher alguma na Gré‑
cia que queira jamais fazer tal, essa às quais eu te dei preferência como
esposa, contraindo uma aliança odiosa e funesta para mim, tu, que és
leoa, não mulher, dotada duma natureza mais selvagem do que a Cila
Tirrénica.
Mas a ti nem mil impropérios seriam capazes de te morder. Tal é o impu‑
dor inato que possuis. Desaparece, desavergonhada assassina de teus
filhos! A mim cabe‑me em sorte lamentar‑me, a mim, que nem goza‑
rei do novo leito nupcial, nem me é dado dizer adeus ainda em vida aos
filhos que gerei e criei, pois que os perdi.
Medeia
Podia alongar‑me muito a refutar os teus argumentos, se o pai Zeus não
soubesse o que de mim sofreste, o que de mim ganhaste. Tu não havias
de gozar uma doce vida, depois de teres desprezado o meu leito, escar‑
necendo de mim. Nem a soberana, nem o que te propôs o casamento,
Creonte, de expulsar‑me incólume desta terra. Depois disto, chama‑me
leoa, se quiseres, chama‑me Cila, a que habita o rochedo tirrénico, que o
teu coração, eu atingi como cumpria.
Jasão
Mas também sofres esta tortura e participas da desgraça.
Medeia
Fica sabendo bem. A dor se esvai, desde que não podes rir‑te de mim.
Jasão
Ó filhos, que mãe perversa vos coube em sorte!
Medeia
Ó filhos, como a loucura paterna vos perdeu!
apenas tu te atas
apertadamente
ao mastro das interdições
já poucos cobiçam
a enormidade
de roubar o sublime
tornaste‑te ridículo
no meio de perigos
inexistentes
fustigas
a sonolência dos sentidos
com um chicote sem estalido
mas permaneces
sob a tirania
da impossibilidade
Quarto de estudo
Fausto e Mefistófeles
mais criança do que nunca, e sabia enfim apreciar a alma tão bela e pura da
angélica Clara. Ninguém, aliás, fazia qualquer alusão ao passado. Quando
Siegmund se despediu, Nathanael disse‑lhe apenas:
— Pelo Céu, irmão, eu encontrava‑me num mau caminho, mas um anjo
trouxe‑me para uma via de luz! E foi a rainha Clara!...
Mas Siegmund não o deixou prosseguir, com receio de que recordações
amargas e implacáveis despertassem nele com demasiada energia.
O dia chegara em que os quatro amigos deviam partir para a sua pequena
propriedade. À hora do meio‑dia, percorriam as ruas da cidade depois de
terem efectuado diversas compras. A alta torre da Câmara Municipal projec‑
tava na praça do mercado a sua sombra gigantesca.
— Ah! — disse Clara —, subamos mais uma vez lá ao alto para ver ao
longe as montanhas!
Logo que dito foi feito: Nathanael e Clara subiram juntos, a mãe regres‑
sou a casa com a criada, e Lothar, por não se sentir com disposição para subir
tantos degraus, quis ficar à espera em baixo. Os dois amantes estavam, por‑
tanto, na mais alta galeria da torre, de braço dado e contemplando as flores‑
tas vaporosas por detrás das quais se desenhavam no horizonte, como uma
cidade de gigantes, os cumes azulados das montanhas.
— Olha para aquela pequena moita lá ao fundo; dir‑se‑ia que avança para
nós — disse Clara.
Nathanael buscou maquinalmente na algibeira lateral; encontrou um
lorgnon de Coppola. Dirigiu‑o para a planície... Clara encontrava‑se à frente
do vidro! Uma tremura convulsiva percorreu‑lhe as veias e o pulso. Pálido
como a morte, encarou Clara fixamente... Mas de súbito os seus olhos, rebo‑
lando nas órbitas, lançaram raios de fogo; berrou horrorosamente, como
um animal feroz, depois saltou até uma altura extrema e gritou com uma
risada penetrante e horrível: «Boneca de madeira, gira!» Então agarrou em
Clara com uma violência formidável e quis atirá‑la para baixo; mas Clara,
na sua angústia mortal e desesperada, agarrou‑se com todas as suas forças
à balaustrada. Lothar ouviu o barulho que aquele furioso fazia, distinguiu
os gritos de angústia de Clara, um horrível pressentimento apoderou‑se‑lhe
do espírito. Voou para o cimo da torre: a porta da segunda escada achava
‑se fechada; Clara soltou um grito de desespero mais dilacerante... quase
louco de furor e de pavor, atirou‑se contra a porta que cedeu por fim. Os
gritos de Clara ficavam cada vez mais fracos. «Socorro! Acudam‑me!» e a voz
perdeu‑se no ar. «Está morta, este furioso matou‑a!», pensou Lothar. A porta
da galeria encontrava‑se igualmente fechada; o desespero deu‑lhe uma força
sobre‑humana, fez saltar a porta dos gonzos! Deus do céu! Clara, levantada
Nora: ... que a nossa união se tornasse num verdadeiro consórcio. Adeus.
(Sai pela porta da entrada.)
Helmer: (Caindo numa cadeira junto da porta e cobrindo a cara com as mãos)
Nora! Nora! (Ergue a cabeça e olha em torno de si) Saiu?... (Com esperança
nascente) O maior dos prodígios !?...
Ela adormecera.
Apoiado num cotovelo, Gabriel observou por breve espaço de tempo
e sem qualquer sombra de ressentimento a respiração agitada da mulher,
por entre os cabelos despenteados e a boca que ela tinha entreaberta. Assim,
Gretta tinha tido na sua vida aquele romance! Um homem morrera por sua
causa! Naquele momento, quase lhe não doía o papel insignificante que ele, seu
marido, desempenhara na vida dela. Via‑a dormir como se ambos nunca tives‑
sem sido marido e mulher. Os seus olhos demoravam‑se curiosamente sobre
o rosto e o cabelo de Gretta e, enquanto ia pensando em como ela teria sido
então, no tempo da sua beleza ainda quase infantil, uma estranha e afectuosa
piedade lhe invadiu a alma. Não lhe agradava reconhecer — nem para consigo
próprio — que o rosto da mulher já não era belo como outrora, mas sabia, no
entanto, que aquele já não era o rosto pelo qual Michael Furey desafiara a morte.
Talvez ela lhe não tivesse contado toda a história. Os olhos de Gabriel
desviaram‑se para a cadeira onde a mulher havia empilhado parte das roupas.
A fita de uma saia pendia, arrastando pelo chão. Uma bota estava direita,
com o cano dobrado, mas a outra jazia de lado. Sentia‑se surpreendido com
o tumulto de emoções que uma hora antes o havia dominado. A que atribuí
‑las? À ceia das tias, ao seu tolo discurso, ao vinho, ao facto de ter dançado,
à paródia que haviam feito no vestíbulo, ao prazer daquele passeio, à neve e
ao longo do rio? Pobre tia Júlia! Também ela não tardaria a converter‑se numa
sombra ao lado da sombra de Patrick Morkan e do seu cavalo. A certa altura,
quando ela cantara «Vestida para o Casamento», achara‑lhe os olhos enco‑
vados e a expressão desfeita. Não tardaria, talvez, que ele se encontrasse de
novo sentado naquela mesma sala de visitas, vestido de preto e de chapéu
alto poisado nos joelhos. As cortinas estariam descidas, e a tia Kate sentar
‑se‑ia ao lado dele, chorando e assoando‑se enquanto lhe contaria como a
tia Júlia morrera. E ele havia de procurar na mente as palavras mais próprias
para a consolar e não encontraria senão expressões desajeitadas e inúteis.
Sim, sim; não tardaria que isso acontecesse.
Deixarei o pensamento
como engodo,
lá longe, lá longe na planície.
Não vão reparar,
com os focinhos a cheirar a eternidade.
Deitar‑me‑ei na relva
ao pé da água mãe
e dormirei.
A lua cobrir‑me‑á.
De manhã
com os primeiros raios de sol
chegarão os dois.
Cansados, suados, com os focinhos a espumar.
Depois
juntos
beberemos água.
nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano
artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses
seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas,
poderás regenerar‑te até às realidades superiores que são divinas, por deci‑
são do teu ânimo.»
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do
homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer. As bes‑
tas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre materno, como
diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos superiores ou desde
o princípio, ou pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem
nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida,
e segundo a maneira de cada um os cultivar assim estes nele crescerão e
darão os seus frutos. Se vegetais, tornar‑se‑á planta. Se sensíveis, será besta.
Se racionais, elevar‑se‑á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de
Deus, e se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no
centro da sua unidade, tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem
do Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas.
Filinto
Que foi? Que tendes vós?
Alceste, sentado
Ora deixai‑me em paz.
Filinto
Mas dizei‑me inda assim que bizarria faz.
Alceste
Deixai‑me, digo eu, sumi‑vos sem detença.
Filinto
Mas seja ouvida a gente ao menos, sem ofensa.
Alceste
Pois nada quero ouvir e quero‑me ofender.
Filinto
Nas vossas brusquidões não vos posso entender;
E amigos mesmo assim, a mim logo vereis…
Lorenzo: Eu, tal como agora me vês, Philippe, já fui honesto. Acreditei na
virtude, na grandeza humana, como um mártir acredita no seu Deus.
Derramei mais lágrimas pela pobre Itália do que Níobe pelas suas filhas.
Philippe: E então, Lorenzo?
Lorenzo: A minha juventude foi pura como ouro. Durante vinte anos de
silêncio, o fogo foi‑se acumulando no meu peito, e devo ser realmente
uma centelha de trovoada, porque numa noite em que estava sentado
nas ruínas do antigo Coliseu, levantei‑me de repente, não sei porquê,
estendi para os céus os braços cobertos de orvalho e jurei que um dos
tiranos da minha pátria morreria às minhas mãos. Eu era um estudante
pacato, e naquele tempo ocupava‑me apenas das artes e das ciências.
É‑me impossível dizer como se formou em mim este estranho desíg‑
nio. Talvez seja o mesmo sentimento que experimentamos quando nos
enamoramos.
Philippe: Sempre confiei em ti, e contudo parece que sonho.
Lorenzo: E eu também. Era feliz, naquele tempo; tinha o coração e as
mãos tranquilos. O meu nome conduzia‑me ao trono, e bastava‑me
deixar o sol nascer e pôr‑ se para ver florescer à minha volta todas as
esperanças humanas. Os homens não me haviam feito nem bem nem
mal, mas eu era bom e, para minha eterna infelicidade, quis ser gran‑
de. Tenho de confessar que se a Providência me impeliu à resolução de
matar um tirano, fosse ele quem fosse, também o orgulho o fez. O que
mais posso dizer‑ te? Todos os Césares do mundo me faziam pensar
em Bruto.
Philippe: O orgulho da virtude é um orgulho nobre. Porque te resguarda‑
rias dele?
Lorenzo: Nunca saberás, a menos que sejas louco, de que natureza é o pen‑
samento que me corroeu. Para compreenderes a exaltação febril que fez
nascer em mim o Lorenzo que te fala, seria preciso que o meu cérebro
e as minhas vísceras ficassem expostos sob um escalpelo. Uma estátua
aqui vedes, a sétima geração falará ainda da noite em que lá entrei, e não
haverá uma que ao ver‑me vomite um moço de lavoura que me rache
ao meio como um cepo podre? O ar que respirais, Philippe, também
eu o respiro. O meu manto de seda colorido arrasta‑se preguiçosamen‑
te pela areia fina das avenidas; não há uma gota de veneno que caia no
meu chocolate. Que digo eu, Philippe? — As mães pobres erguem ver‑
gonhosamente o véu das filhas quando paro na soleira das suas portas;
deixam‑me ver a beleza delas com um sorriso mais vil do que o beijo de
Judas — e eu, enquanto belisco o queixo da pequena, aperto os punhos
de raiva e procuro no bolso quatro ou cinco malvadas moedas de ouro.
Philippe: Que o tentador não despreze o fraco; porquê tentar quando se
duvida?
Lorenzo: Serei eu um Satã? Luz do céu! Ainda me lembro… Teria chorado
com a primeira moça que seduzi, se ela não se tivesse posto a rir. Quando
comecei a representar o meu papel de Bruto moderno, caminhava com
as minhas vestes novas da grande confraria do vício como uma criança
de dez anos com a armadura de um gigante de fábula. Pensava que a cor‑
rupção era um estigma que só os monstros exibiam na testa. Tinha come‑
çado a dizer a toda a gente que os meus vinte anos de virtude eram uma
máscara sufocante. — Oh, Philippe! Foi então que entrei na vida e vi que,
quando eu me aproximava, toda a gente fazia o mesmo que eu. Todas as
máscaras caíam perante o meu olhar. A Humanidade ergueu a sua túnica
e mostrou‑me, como a um discípulo digno dela, a sua monstruosa nudez.
Vi os homens como são, e disse para mim mesmo: para quem trabalho
eu, então? Enquanto percorria as ruas de Florença, com o meu fantas‑
ma a meu lado, olhava à volta, procurava os rostos que me davam alento,
e interrogava‑me: quando tiver desferido o meu golpe, aquele ali tirará
disso algum proveito? Vi os republicanos nos seus gabinetes, entrei nas
lojas, pus‑me à escuta e à espreita. Recolhi os discursos das gentes do
povo, vi o efeito que neles produzia a tirania; bebi, nos banquetes patrió‑
ticos, o vinho que engendra a metáfora e a prosopopeia, engoli entre dois
beijos as lágrimas mais virtuosas. Continuava à espera que a humanida‑
de me deixasse ver no seu rosto algo de honesto. Observava… como um
amante observa a sua noiva enquanto espera o dia das núpcias!...
Philippe: Se nada mais viste do que o mal, lamento‑te, mas não posso acre‑
ditar no que dizes. O mal existe, mas não sem o bem, como a sombra
existe, mas não sem a luz.
Lorenzo: Não queres ver em mim mais do que alguém que despreza os
homens! — Ofendes‑me. Sei perfeitamente que há homens bons, mas
para que servem eles? O que fazem eles? Como agem eles? O que importa
que a consciência esteja viva, se o braço está morto? Há sempre um lado
pelo qual tudo se torna bom: um cão é um amigo fiel — nele podemos ter
o melhor dos servos, mas também podemos ver como ele se rebola com as
suas presas, e que a mesma língua que lambe o dono é a que fareja a carcaça
a uma légua. Tudo o que vejo é que estou perdido e que daí não virá para
os homens mais proveito do que a compreensão que eles me reservarão.
Philippe: Pobre rapaz, partes‑me o coração! Mas se és honesto voltarás a
sê‑lo quando tiveres libertado a tua pátria. É uma alegria para o meu
velho coração pensar que és honesto, Lorenzo. Livrar‑te‑ás então deste
disfarce horrendo que te desfigura e voltarás a ser de um metal tão puro
como as estátuas de bronze de Harmódio e de Aristogíton.
Lorenzo: Philippe, Philippe, fui honesto. A mão que ergueu uma vez o véu
da verdade não pode deixá‑lo voltar a cair — fica imóvel até à morte,
a segurar sempre este véu terrível, e erguendo‑o cada vez mais acima
da cabeça do homem, até que o Anjo do sono eterno lhe cerre os olhos.
Philippe: Todas as doenças se curam, e o vício é também uma doença.
Lorenzo: É tarde demais — habituei‑me ao meu ofício. O vício foi para
mim uma veste, mas agora está‑me colado à pele. Sou realmente um
rufião, e quando escarneço dos meus pares sinto‑me sério como a morte
no meio da alegria. Bruto fez‑se de louco para matar Tarquínio, e o que
me espanta é que não tenha perdido a razão. Serve‑te de mim, Philippe
— é isto o que tenho a dizer‑te. Não trabalhes para a tua pátria.
Philippe: Se acreditasse em ti, parece‑me que o céu se obscureceria para
sempre e que a minha velhice estaria condenada a caminhar às apalpa‑
delas. Pode bem ser verdade que tenhas tomado um caminho perigoso.
Mas porque não poderia eu tomar um outro que me levasse ao mesmo
ponto? A minha intenção é apelar ao povo e agir abertamente.
Lorenzo: Tem cuidado contigo, Philippe; quem te avisa teu amigo é. Esco‑
lhas o caminho que escolheres, terás sempre de te haver com os homens.
Philippe: Acredito na honestidade dos republicanos.
Lorenzo: Fazemos uma aposta. Vou matar Alexandre; uma vez desferido o
meu golpe, se os republicanos se comportarem como devem, ser‑lhes
‑á fácil instaurar uma República, a mais bela que alguma vez floresceu
sobre a Terra. Se tiverem o povo do lado deles, o assunto está resolvido.
Aposto contigo que nem eles nem o povo farão nada. Tudo o que te
peço é que não te envolvas; fala, se quiseres, mas tem cuidado com as
tuas palavras, e ainda mais com as tuas acções. Deixa‑me desferir eu o
golpe — tu tens as mãos puras e eu nada tenho a perder.
«Nasci em Córdova, onde meu pai vivia numa situação mais do que abas‑
tada. Minha mãe morreu há três anos. A princípio, meu pai pareceu chorá
‑la muito, mas, ao fim de alguns meses, durante uma deslocação a Sevilha,
apaixonou‑se por uma jovem viúva, chamada Camille de Tormes. Esta pessoa
não gozava de boa reputação e vários amigos de meu pai tentaram impedir o
seu relacionamento; mas, apesar dos seus esforços, o casamento realizou‑se
dois anos depois da morte de minha mãe. A cerimónia realizou‑se em Sevilha
e, alguns dias depois, meu pai regressou a Córdova com Camille, sua nova
esposa, e uma irmã de Camille, chamada Inesille.
A minha nova madrasta correspondia perfeitamente à má opinião que
tinham dela e começou a vida na nossa casa tentando inspirar‑me amor por
ela. Mas não o conseguiu. No entanto, acabei por me apaixonar pela irmã,
Inesille. A minha paixão tornou‑se tão forte, que fui lançar‑me aos pés de
meu pai, pedindo a mão da sua cunhada.
Meu pai respondeu‑me com bondade, dizendo: «Meu filho, proíbo‑vos
de pensar nesse casamento por três razões. Primeiro: seria indecoroso que
faziam muito sentido. Acabou por confessar que a estalagem era assombrada
por espíritos, que ele e a família iam passar as noites a uma pequena quinta
situada nas margens do rio; acrescentou que, se eu quisesse, me faria uma
cama junto da sua.
Este convite pareceu‑me despropositado; respondi que ele podia ir pas‑
sar a noite onde quisesse, só tinha de me enviar a minha criadagem. Gonza‑
lez obedeceu e retirou‑se, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.
Pouco depois, chegaram os meus criados. Também eles tinham ouvi‑
do falar dos espíritos e tentaram convencer‑me a ir passar a noite na quin‑
ta. Ouvi os seus conselhos de forma bastante rude e ordenei‑lhes que me
fizessem a cama na própria sala onde tinha ceado. Embora de má vontade,
obedeceram, e, quando acabaram, voltaram a suplicar‑me, de lágrimas nos
olhos, que fosse pernoitar na quinta. Seriamente agastado com as suas adver‑
tências, reagi de forma a pô‑los em fuga; e, como não tinha o costume de me
fazer despir pelos meus servos, facilmente passei sem eles para me deitar.
Entretanto, mais solícitos do que eu merecia devido à maneira como os tra‑
tara, tinham deixado, junto da cama, uma vela acesa e outra de reserva, duas
pistolas e alguns livros, cuja leitura poderia ajudar a manter‑me acordado;
a verdade, porém, é que tinha perdido o sono.
Passei algumas horas a ler ou às voltas na cama. Por fim, ouvi o som de um
sino ou de um relógio a bater as badaladas da meia‑noite. Fiquei admirado,
porque não tinha ouvido bater as outras horas. Logo a porta se abriu e vi entrar
a minha madrasta; vinha em camisa de noite, com uma palmatória na mão.
Aproximou‑se de mim, caminhando na ponta dos pés e com um dedo sobre
os lábios, como para me impor silêncio. Pousou a palmatória na mesinha‑de
‑cabeceira, sentou‑se na cama, agarrou uma das minhas mãos e falou‑me nes‑
tes termos:
«Querido Pacheco, chegou o momento em que posso dar‑vos os praze‑
res que vos prometi. Chegámos há uma hora a esta estalagem. O vosso pai foi
pernoitar na quinta; mas, como eu sabia que estáveis aqui, consegui autori‑
zação para vir passar a noite convosco, juntamente com minha irmã Inesille.
Ela está à vossa espera, disposta a nada vos recusar; mas devo informar‑vos
das condições que ponho à vossa felicidade. Vós estais apaixonado por Ine‑
sille, e eu por vós. Não é justo que, de nós três, dois sejam felizes à custa
de um terceiro. Quero que esta noite uma única cama sirva para todos nós.
Vinde!»
Minha madrasta não me deu tempo para responder; agarrou‑me pela
mão e levou‑me, de corredor em corredor, até ficarmos diante de uma porta,
onde se pôs a espreitar pelo buraco da fechadura.
Soube que nesse mesmo dia tinha ocorrido um falecimento que me causou
um grande desgosto, o de Bergotte. É certo que a sua doença já durava há
bastante tempo. Evidentemente, não aquela de que ele tinha sofrido de iní‑
cio, e que era natural. A natureza não parece ser capaz senão de produzir
doenças bastante curtas. Mas a medicina apropriou‑se da arte de as prolon‑
gar. Os remédios, a remissão que eles causam, o mal‑estar que a sua interrup‑
ção faz renascer, compõem um simulacro de doença que o hábito do pacien‑
te acaba por estabilizar, por estilizar, da mesma forma que as crianças conti‑
nuam a ter ataques de tosse muito tempo depois de estarem curadas da tosse
convulsa. Depois os remédios começam a ter menos efeito, aumentam‑se
as doses, acabam por já não fazer bem nenhum mas por fazer mal, devido a
essa indisposição tão prolongada. A natureza não lhes teria oferecido uma
duração tão longa. É uma grande maravilha que a medicina, quase igualando
a natureza, possa forçar alguém a ficar acamado, e a continuar, sob pena de
morte, a usar um medicamento. A partir daí, a doença, artificialmente en‑
xertada, já se enraizou, tornou‑se numa doença secundária mas verdadeira,
com a única diferença de que as doenças naturais se curam, enquanto isso
nunca acontece com as que a medicina cria, porque esta ignora o segredo da
cura.
Havia bastantes anos que Bergotte já não saía de casa. Aliás, ele nunca tinha
gostado da vida de sociedade, ou dela tinha apenas gostado um dia para vir
a desprezá‑la como a tudo o resto, daquele modo particular que era o seu,
ou seja, não por se desprezar algo que não se pode obter, mas tão logo seja
obtido. Ele vivia com tal simplicidade que ninguém suspeitava quão rico ele
era, e se alguém o tivesse sabido ter‑se‑ia ainda enganado, considerando‑o
avarento, quando não havia ninguém no mundo que tivesse sido tão gene‑
roso quanto ele. Era‑o sobretudo com as mulheres, melhor dizendo com jo‑
vens raparigas, que ficavam envergonhadas de receber tanto em troca de tão
pouco. Ele desculpava‑se aos seus próprios olhos porque sabia que nunca
poderia produzir tão bem caso não vivesse na atmosfera de se sentir apaixo‑
nado. O amor ou, mais precisamente, o prazer cravado na carne ajuda o tra‑
balho das letras porque anula os outros prazeres, por exemplo os prazeres da
vida de sociedade, que são os mesmos para toda a gente. E mesmo que este
amor implique desilusões, pelo menos agita também, desse mesmo modo,
a superfície da alma, que sem isso correria o risco de estagnar. O desejo não
é pois inútil ao escritor para poder, em primeiro lugar, afastar‑se dos outros
homens e evitar moldar‑se a eles, e para depois provocar um qualquer movi‑
mento numa máquina espiritual que, depois de certa idade, tem tendência
a imobilizar‑se. Não se chega a ser feliz, mas é possível fazer observações
sobre as razões que, impedindo‑nos de o ser, talvez nos tivessem ficado invi‑
síveis sem esses bruscos acometimentos de decepção. É claro que os sonhos
não são realizáveis, isso já o sabemos; não poderíamos entretanto concebê
‑los sem o desejo, e é útil concebê‑los para os vermos malograr‑se e para que
o seu malogro instrua. Por isso, Bergotte pensava: «Gasto mais dinheiro do
que muitos milionários com estas jovenzinhas, mas os prazeres ou as decep‑
ções que elas me oferecem fazem‑me escrever um livro que me faz ganhar
muito dinheiro.» Economicamente, este raciocínio era absurdo, mas talvez
sentisse algum comprazimento em assim transmutar o ouro em carícias e
as carícias em ouro. Aliás, já vimos, por ocasião da morte da minha avó, que
a sua velhice fatigada amava o repouso. Ora, na vida de sociedade apenas
existe a conversa. Conversa estúpida, sem dúvida, mas que tem o poder de
suprimir as mulheres, que são reduzidas a perguntas e respostas. Fora da
vida de sociedade, as mulheres voltam a ser aquilo que tão repousante é para
o velho fatigado, um objecto de contemplação.
Em todo o caso, agora já não se tratava de nada disso. Lembrei atrás que
Bergotte já não saía de casa, e quando se levantava da cama, durante uma
hora, no seu quarto, fazia‑o todo envolvido em xailes, em mantas, em tudo
aquilo a que alguém recorre no momento de exposição a um grande frio e
de ir apanhar o comboio. Desculpava‑se junto dos raros amigos que deixava
chegar até junto de si e, mostrando as mantas escocesas, os seus coberto‑
res, dizia de forma prazenteira: «Que quer, meu caro, Anaxágoras já o disse:
a vida é uma viagem». E assim ia arrefecendo gradualmente, pequeno plane‑
ta que oferecia uma imagem antecipada dos últimos dias do grande, quan‑
do, da Terra, o calor se for pouco a pouco retirando, seguindo‑se‑lhe a vida.
Então a ressurreição terminará, porque se é nas gerações futuras que bri‑
lham as obras dos homens, em todo o caso homens tem que haver. Mesmo
que algumas espécies animais resistam mais tempo ao frio invasor, e mesmo
supondo que a glória de Bergotte tenha subsistido até lá, ela extinguir‑se
‑á bruscamente para sempre. Não serão os últimos animais que o irão ler,
já que é pouco provável que, como os apóstolos no Pentecostes, venham
a poder compreender a linguagem dos diversos povos humanos sem que a
tenham aprendido.
lhe era agradável, e por isso proibindo‑a de imediato. Fazia‑o várias ve‑
zes com razões fabricadas de forma tão precipitada tendo em vista as ne‑
cessidades da causa que, perante a evidência das objecções materiais que
lhe colocava Bergotte, o médico quezilento acabava por ser obrigado, na
mesma frase, a contradizer‑se a si mesmo, embora por razões diferentes,
apenas para reforçar a proibição. Bergotte voltava a um dos seus primeiros
médicos, homem que se considerava um homem de espírito, sobretudo
perante um dos mestres da pena e que, se Bergotte insinuava: «Parece‑me
no entanto que o doutor X me disse — há tempos, bem entendido — que
isso podia congestionar‑me os rins e o cérebro...», sorria maliciosamente,
levantava o dedo e pronunciava: «Eu disse usar, não disse abusar. É claro
que qualquer remédio, se tomado exageradamente, se torna numa arma de
dois gumes.» Existe no nosso corpo um certo instinto do que nos é salutar,
como no nosso coração o de saber qual o nosso dever moral, e que nenhu‑
ma autorização de um doutor em medicina ou em teologia pode suplantar.
Sabemos que os banhos frios nos fazem mal, apesar de deles gostarmos,
e acabaremos sempre por encontrar um médico que no‑los aconselhe,
e não que impeça que eles nos façam mal. De cada um dos seus médicos
Bergotte tomou aquilo que, por prudência, se tinha proibido a si mesmo
desde há vários anos. Após algumas semanas, as crises de outrora tinham
reaparecido, e as recentes tinham‑se agravado. Tresloucado por um sofri‑
mento de todos os minutos, a que se acrescentava a insónia entrecortada
por breves pesadelos, Bergotte não tornou a chamar nenhum dos médicos
e experimentou com sucesso, mas também com excesso, diferentes narcó‑
ticos, lendo com confiança o prospecto que acompanhava cada um deles,
prospecto que proclamava a necessidade do sono mas insinuava que todos
os produtos que o induzem (excepto o contido naquele frasco, e que nunca
causava intoxicação) eram tóxicos e por essa razão tornavam o remédio
pior do que a doença. Bergotte experimentou‑os a todos. Alguns perten‑
cem a uma outra família que não aquela a que estamos habituados, deriva‑
dos por exemplo do amílio e do etilo. Tomamos sempre o produto novo,
de composição totalmente diferente, com a deliciosa expectativa do des‑
conhecido. O coração bate como num primeiro encontro. Em direcção a
que géneros ignorados de sono, de sonhos, irá o recém‑chegado conduzir
‑nos? Está agora dentro de nós, toma a direcção do nosso pensamento. De
que forma iremos adormecer? E, uma vez adormecidos, por que caminhos
estranhos, sobre que picos, a que precipícios inexplorados o mestre todo
‑poderoso nos conduzirá? Que nova aglomeração de sensações conhece‑
remos nós nesta viagem? Levar‑nos‑á ao mal‑estar? À beatitude? À morte?
espíritas nem os dogmas religiosos são prova de que a alma sobrevive. O que
é entretanto possível dizer é que tudo acontece na nossa vida como se nela
entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não
existe nenhuma razão, nas nossas condições de vida terrena, para que nos
possamos sentir obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser
esmerados, nem para que o artista ateu se considere obrigado a recomeçar
vinte vezes uma obra cuja admiração, por ela suscitada, pouco importará ao
seu corpo comido pelos vermes, como a pequena porção de parede amarela
pintada, com tanta ciência e requinte, por um artista para sempre desconhe‑
cido, identificado apenas pelo nome de Vermeer. Todas estas obrigações que
não têm sanção na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente,
fundado sobre a bondade, o escrúpulo, o sacrifício, um mundo totalmente
diferente deste, e do qual saímos para nascer nesta terra, antes talvez de
a ele tornarmos, para reviver sob o império das leis desconhecidas a que
obedecemos porque trazíamos dentro de nós o seu ensinamento, sem saber
quem no‑las traçou em nós, essas leis de que todo o trabalho profundo da
inteligência nos aproxima e que apenas são invisíveis — e talvez nem mes‑
mo assim! — para os tolos. De modo que a ideia de que Bergotte não estava
morto para sempre não é inverosímil.
Foi enterrado, mas durante todo o velório, nas vitrinas iluminadas, os seus
livros, dispostos em grupos de três, guardavam como anjos de asas abertas e
pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.
SAFO. [Parece‑me ser igual aos deuses aquele], in Poesia Grega Arcaica.
Tradução inédita de José Pedro Serra a partir do grego antigo. 1994. Lisboa:
Universidade de Coimbra. 50‑ 51.
Rei
Doce Gertrudes, deixa-nos também,
Pois mandámos secretamente chamar Hamlet
Para que aqui ele possa, como por acaso,
Enfrentar Ophélia.
O pai dela e eu, legítimos espias,
Ficaremos escondidos, vendo sem sermos vistos,
Para podermos julgar em paz o seu encontro.
E para, por ele, pelos modos dele sabermos
Se é ou não a ansiedade do seu amor
Que assim o faz sofrer.
Rainha
Obedeço.
E quanto a ti, Ophélia, desejo
Que a tua grande beleza seja a doce causa
Do desatino de Hamlet; assim posso esperar
Que as tuas virtudes o tragam ao caminho antigo,
Para honra de ambos.
Ophélia
Senhora, assim desejo.
(A Rainha sai.)
Polónio
Ophélia, passa para aqui. Gracioso Senhor, se vos agrada
Vamos esconder-nos… Lê neste livro.
Rei (à parte)
Ai! é verdade, demasiado verdade!
Como esta frase chicoteia a minha consciência.
A face da rameira embelezada com a arte das pomadas
Não é mais feia, comparada com aquilo que a disfarça,
Do que o meu acto ao lado das pinturas da minha fala!
Oh pesado fardo!
Polónio
Ouço os passos dele, vamos embora, meu senhor.
(Escondem-se os dois atrás do pano de arrás; Ophélia ajoelha-se no genuflexório.)
(Entra Hamlet.)
Hamlet
Ser ou não ser, é isso a questão,
Será mais nobre deixar que o espírito suporte
Os golpes e as setas da fortuna ultrajante
Ou erguer armas contra um mar de angústias
E, não aceitando, pôr-lhes termo? Morrer, dormir,
Dormir e talvez sonhar.
Ai, mas aqui é que está o difícil —
Pois que sonhos surgirão nesse sono da morte
Quando tivermos despido o tumulto mortal?
É isso que nos detém — esta é a suspeita
Que dá tão demorada vida ao sofrimento:
Pois quem suportaria as chicotadas e as troças do tempo,
A injustiça do opressor, os desprezos do orgulhoso,
A angústia do amor desprezado, a demora da lei,
A insolência das autoridades e os desdéns
Que o mérito paciente recebe dos medíocres,
Se, com um punhal, pudesse
Ophélia
Meu bom senhor,
Como haveis passado há tantos dias?
Hamlet
Agradeço humildemente: bem, bem, bem.
Ophélia
Meu senhor, tenho lembranças vossas
Que há muito tempo vos quero devolver.
Peço, recebei-as agora.
Mas não consegui sequer fazê‑lo sorrir. Não me escutava. Tanto como não se
dera sequer ao trabalho de ir até ao tribunal no dia em que era julgado o seu
caso contra o feitor, porque sem dúvida tinha nessa manhã ou nessa tarde
qualquer coisa de mais importante a fazer, como por exemplo ficar sentado
num banco de uma praça ou a fazer de sentinela nos escritórios, na espe‑
rança de que um daqueles funcionários acabasse por fim por se aperceber
da sua presença. A verdade é que ele nem me falou nisso. Talvez aliás o não
soubesse, não se tivesse ralado a perguntar o que se passara, limitando‑se
sem dúvida a ouvir o advogado anunciar‑lhe à tarde (ou abrindo talvez no
dia seguinte de manhã a carta em que o advogado lhe anunciava) que tinham
perdido, e contentando‑se em dizer: «Ah!», ou «Bom!», e metendo depois
a carta no fundo do montão de papéis que enchiam o dossier de cartolina e
esquecendo‑a imediatamente para correr a um novo escritório, de manei‑
ra que foi pelo notário que eu soube os pormenores, a saber, que o feitor
tinha aparecido no momento exacto com vários bilhetes assinados pelo pai
de Montès e, também, provado que lhe eram devidos salários, acumulados
durante anos, e, ainda, exibido um certificado de bons e leais serviços de que
as más‑línguas disseram que ele (o pai de Montès) o tinha sem dúvida escrito
por engano, num momento de confusão mental que o fizera escrever por dis‑
tracção o nome do pai em vez do da filha, o género de trabalho a que ele fazia
alusão processando‑se vulgarmente não nos trilhos das charruas ou curvado
para a terra inesgotável, mas nessa posição horizontal em que o suor e os
hãs são o contrário dos do trabalho, e em que o campo trabalhado se reduz a
esse triângulo sombrio, a esse trilho sempre aberto, sem cessar trabalhado e
nunca preenchido, e nunca fechado. O que é facto é que o feitor (ou, antes, o
bizarro trio, o homem de cara de cadáver terroso, a mulher vestida de preto
e a filha demasiado pintada, assistindo aos debates e às alegações, sentados
ao fundo da sala, impassíveis, sombrios e implacáveis como uma alegoria vin‑
gadora, ultrajada, do direito e da inocência pervertida) tinha ganho, e não só
ganho: obtido uma reparação pelo afastamento que ele próprio teria pedido
O verão fechado
na garagem
olhares frios
Café da manhã
junta ontem
e hoje
Primavera de novo
a erva mais verde
do que os meus olhos
E mais tarde a sua sombra vai tacteando muros frios, envolta em contos de
fadas e lendas de santos.
O Isonzo escorria
Polia-me
Como um seu seixo
Ergui
Os meus poucos ossos
E parti
Como um acrobata
Sobre a água
Enrolei-me
Junto aos meus velhos panos
Sujos de guerra
E como um beduíno
Inclinei-me a receber
O sol.
Ao sair dom Alonso, ponha‑se‑lhe diante uma Sombra, com máscara negra e chapéu,
e a mão no punho da espada.
Alonso
Que é isto? Quem vem lá? Não faz caso de mim. Quem é? Fale. Que um
homem me atemorize, não tendo temido tantos! É dom Rodrigo? Não
diz quem é?
Sombra
Dom Alonso.
Alonso
Como?
Sombra
Dom Alonso.
Alonso
Não pode ser. Outro será, que eu sou dom Alonso Manrique. Se é inven‑
ção, meta mano. (Virou as costas.)
Vai‑se a Sombra.
Segui‑lo parece‑me desatino. Oh, terrível imaginação! Deve ter sido
a minha sombra, mas não; que em forma visível disse que era dom
Alonso. Tudo são coisas que finge a força da tristeza, a imaginação de
um triste. Que me queres, pensamento, que com a minha sombra me
atormentas? Olha que temer sem causa é de gente sem nobreza. Ou
são embustes de Fabia, que pretende persuadir‑me a não ir a Olmedo,
sabendo que é impossível. Diz sempre que me acautele, e sempre que
não ande de noite, sem outra razão a não ser que a inveja me perse‑
gue. Mas já não é possível que dom Rodrigo me inveje, pois hoje ficou
a dever‑me a vida; que esta dívida não permite que um cavaleiro tão
nobre em momento algum a esqueça. Penso antes que há‑de ser para
firmar amizade comigo a partir de hoje em Medina; que a ingratidão,
que sempre se encontra entre vilãos, não vive em sangue bom. Enfim,
é a quinta‑essência de quantas acções vis tem a baixeza humana pagar
mal quem bem recebe.
Sai. Entram dom Rodrigo, dom Fernando, Mendo e Laín.
Rodrigo
Hoje terão fim os meus ciúmes e a vida dele.
Fernando
Finalmente, vindes determinado?
Rodrigo
Não haverá conselho que impeça a sua morte, depois de a palavra me
terem quebrado. Já se percebeu a devoção fingida, já soube que era Tello,
o seu criado, quem lhe ensinava aquele latim que em cartas de romance
foi traduzido. Que honrada senhora recebeu, em Fabia, Dom Pedro em
sua casa! Oh, infeliz donzela! Desculpo a tua inocência, se te abrasa o
fogo infernal dos feitiços dela. Não sabe, embora seja discreta, o que
se passa e assim a honra de ambos atropela. Quantas casas de nobres
cavaleiros infamaram feitiços e terceiros! Fabia, que pode transpor um
monte; Fabia, que pode deter um rio, e sobre os negros ministros de
Aqueronte tem, como sobre vassalos, senhorio; Fabia, que deste mar,
deste horizonte, ao abrasado clima, ao norte frio pode levar um homem
pelo ar, dá‑lhe lições. Pode haver maior donaire?
Fernando
Pela mesma razão, eu não tratava de mais vingança.
Rodrigo
Por Deus, Fernando, seria dos dois clara baixeza!
Fernando
Não a há maior que desprezar amando.
Rodrigo
Se vós podeis, eu não.
Mendo
Senhor, repara que vêm os ecos avisando que alguém vem a cavalo.
Rodrigo
Se vier acompanhado, medo tem.
Fernando
Não acredites nisso, que é moço temerário.
Rodrigo
Todos escondidos, em silêncio. Tu, Mendo, o arcabuz, se for necessário,
terás atrás de uma árvore preparado.
Fernando
Que inconstante é o bem, que louco e vário! Hoje, à vista de um rei,
saiu com brilho, admirado por todos, da praça, e já tão feroz morte o
ameaça!
Escondam‑se e entre dom Alonso.
Alonso
O que jamais senti, que é algum receio ou medo, levo a caminho de
Olmedo. Mas foram tristezas. Da água o manso ruído e o leve movimen‑
to destes ramos com o vento, aumentam mais a minha tristeza. Eu avan‑
ço, e volta atrás o meu confuso pensamento. Leva‑me o amor de meus
pais, e a obediência, embora esta seja uma pequena prova do meu valor.
Reconheço que foi exagero deixar Inés tão cedo... Que escuridão! Tudo
é horror, até que a aurora ponha os dourados pés nos tapetes de Flora.
Ali estão a cantar. Quem será? Será algum lavrador a caminho do traba‑
lho. Parece que está longe. Mas vai‑se aproximando. Mas como? Leva
instrumento, e não é rústico o tom, mas sonoro e suave! Que mal sabe a
música, se está triste o pensamento!
Cantem de longe, nos bastidores, e vá‑se a voz aproximando como se caminhasse.
Que de noite mataram
o cavaleiro,
a gala de Medina,
a flor de Olmedo.
Alonso
Céus! Que escuto? Se avisos vossos são, já que aqui estou, de que me
estais informando? Voltar atrás, como posso? Invenção de Fabia é, que
quer, por rogo de Inés, fazer com que não vá a Olmedo.
A Voz
Sombras avisaram
que não saísse,
e aconselharam
que não partisse
o cavaleiro,
a gala de Medina,
a flor de Olmedo.
Alonso
He, bom homem, o que canta!
Lavrador
Quem me chama?
Alonso
Um homem que vai perdido.
Lavrador
Já vou.
Entra um Lavrador.
Aqui me vedes.
Alonso
(Tudo me espanta.) Onde vais?
Lavrador
Para o trabalho.
Alonso
Quem te deu essa cantiga, que tristemente cantaste?
Lavrador
Lá em Medina, senhor.
Alonso
A mim, costumam chamar‑me o cavaleiro de Olmedo, e eu estou vivo.
Lavrador
Não posso dizer‑vos deste cantar mais história ou ocasião, a não ser que
a uma Fabia o ouvi. Se vos interessa, já cumpri, dizendo‑vos a cantiga.
Voltai para trás. Não passeis deste ribeiro.
Alonso
Na minha nobreza, esse temor seria indigno.
Lavrador
Coragem bem néscia tendes. Voltai, voltai a Medina.
Alonso
Vem tu comigo.
Lavrador
Não posso.
Sai.
Alonso
Quantas sombras finge o medo! Quantos enganos imagina! Ouve, escu‑
ta. Onde foi, que mal sinto os seus passos? Ah, lavrador! Ouve, espera.
«Espera», responde o eco. Morto eu! Mas é uma cantiga que fizeram por
algum homem de Olmedo que os de Medina mataram neste caminho.
A meio dele estou. Que hão‑de dizer, se voltar? Vem gente… Não me
importa; se para lá forem, irei com eles.
Entrem dom Rodrigo e dom Fernando e a sua gente.
Rodrigo
Quem vem lá?
Alonso
Um homem. Não me vês?
Fernando
Pare.
Alonso
Cavaleiros, se acaso a necessidade vos força a passos como estes, daqui a
minha casa pouca distância há; não precisarei de dinheiro que de dia e na
rua dou a quantos vejo que me honram ao pedi‑lo.
Rodrigo
Tire as armas já.
Alonso
Para quê?
Rodrigo
Para as entregar.
Alonso
Sabem quem sou?
Fernando
O de Olmedo, o matador dos touros, que vem, arrogante e nés‑
cio, afrontar os de Medina; o que desonra dom Pedro com infames
alcoviteiros.
Alonso
Se ao menos fôsseis nobres, lá, pois tivestes tanto tempo, me teríeis fala‑
do, e não agora, que regresso sozinho a minha casa. Lá, na grade onde
deixastes a capa ao fugir, teria estado bem, e não em quadrilha a meio da
noite, soberbos. Mas confesso, vilãos, que a estima que vos devo: apesar
de serdes tantos, sois poucos.
Discutem.
Rodrigo
Eu venho matar, não venho para desafios; que então te mataria corpo a
corpo.
A Mendo.
Atira.
Disparem dentro.
Alonso
Traidores sois; mas sem armas de fogo não teríeis podido matar‑me.
Jesus!
Cai.
Fernando
Fizeste‑o bem, Mendo!
Saem dom Rodrigo, dom Fernando e a sua gente.
Alonso
Que pouco crédito dei aos avisos do céu! Enganou‑me o amor‑próprio,
mataram‑me invejas e ciúmes. Ai de mim! Que farei num campo tão
só?
Entra Tello.
Tello
Funda tristeza me deram estes homens que a cavalo vão em fuga para
Medina. Perguntei‑lhes se haviam visto dom Alonso; não responderam.
Mau sinal! Vou a tremer.
Alonso
Meu Deus, piedade! Morro! Vós sabeis que o meu amor foi dirigido a
casamento. Ai, Inés!
Tello
De lastimosas queixas sinto tristes ecos. Vêm daquele lado. Não está
longe do caminho quem as solta. Estou sem pinga de sangue. Acho que o
chapéu pode segurar‑se no ar assente só num cabelo. Ah, fidalgo!
Alonso
Quem é?
Tello
Meu Deus! Porque duvido do que vejo? É o meu senhor. Dom Alonso!
Alonso
Sê bem‑vindo, Tello.
Tello
Como, senhor, se tardei tanto? Como, se chego para te ver feito uma
fera em sangue? Traidores, vilãos, perros; voltai, vinde matar‑me, já que
haveis, infames, matado o mais nobre, o mais valente, o mais galante
cavaleiro que cingiu espada em Castela!
Alonso
Tello, Tello, já não é tempo senão de tratar da alma. Põe‑me depressa no
teu cavalo e leva‑me a ver meus pais.
Tello
Que boas novas lhes levo das festas de Medina! Que dirá aquele nobre
velho? Que fará a tua mãe, e a tua pátria? Vingança, piedosos céus!
Mal entraram viram logo Dorian Gray. Estava sentado ao piano, de costas
para eles, folheando uma partitura das Cenas da Floresta, de Schumann. «Tens
de mas emprestar, Basil», exclamou. «Quero aprendê‑las. São perfeitamente
encantadoras.»
«Isso depende inteiramente da forma como posares hoje para mim,
Dorian.»
«Oh, estou farto e cheio de posar e não quero um retrato de corpo inteiro
da minha pessoa», respondeu o rapaz girando o banco de piano e voltando‑se
para trás de uma forma voluntariosa e petulante. Quando viu Lorde Henry
enrubesceu ligeiramente por um breve momento e levantou‑se. «Desculpa,
Basil, mas não sabia que estavas acompanhado.»
«Apresento‑te Lorde Henry Wotton, Dorian, um velho amigo meu dos
tempos de Oxford. Estava mesmo agora a contar‑lhe que tu és, para mim, um
modelo de capital importância e pronto: tens uma reacção dessas e fica tudo
estragado.»
«Não estragou o prazer que tenho em conhecê‑lo, Sr. Gray», disse Lorde
Henry, dando um passo em frente e estendendo‑lhe a mão. «A minha tia
falou‑me muitas vezes de si. O senhor é um dos seus favoritos e, se não me
engano, também uma das suas vítimas favoritas.»
«Neste momento estou na lista negra de Lady Agatha», respondeu
Dorian com um divertido ar de penitência. «Prometi‑lhe que a acompanhava
a um clube em Whitechapel na terça‑feira passada, mas a verdade é que me
esqueci por completo. Era suposto tocarmos juntos um dueto... três duetos,
aliás. Não sei o que irá dizer‑me. Nem me atrevo a ir visitá‑la, de tão assusta‑
do que estou.»
«Eu encarrego‑me de fazer as pazes entre os dois, não se preocupe.
A minha tia gosta imenso de si. E não me parece que o facto de não ter lá ido
tenha assim tanta importância. Se calhar o público até pensou que se tratava
mesmo de um dueto. Quando a tia Agatha se senta ao piano faz barulho por
duas pessoas.»
«Mas que coisa horrenda que diz da sua tia! Aliás, tão‑pouco é muito
simpática para mim, devo dizer», respondeu Dorian com uma gargalhada.
Lorde Henry olhou para ele. Não havia dúvida: era na verdade muito
bonito, com aqueles seus lábios rubros desenhados numa curva perfeita, os
seus olhos azuis onde se lia a franqueza e o seu cabelo loiro e encaracolado.
Havia algo no seu rosto que nos obrigava a confiar imediatamente nele. Nele
se reflectia todo o candor da juventude, mas também toda a sua apaixonada
pureza. A sensação que dava era a de não se ter deixado macular pelo mundo.
Não era de admirar que Basil Hallward o idolatrasse.
«Tem demasiado encanto para se deixar fascinar pela filantropia, Sr.
Gray... demasiado encanto.» Dito isto, Lorde Henry deixou‑se cair no divã
e abriu a cigarreira.
O pintor estivera entretanto ocupado a misturar as cores da sua paleta
e a preparar os pincéis. Tinha um ar preocupado e, quando ouviu a última
observação de Lorde Henry, olhou para ele de soslaio, hesitou um momento
e depois disse: «Quero acabar este retrato ainda hoje, Henry. Achas muito
mal‑educado da minha parte que te peça para te ires embora?»
Lorde Henry sorriu e olhou para Dorian Gray. «Acha que devo ir, Sr.
Gray?», perguntou.
«Não vá, Lorde Henry, peço‑lho. Estou a ver que o Basil começa a dar
sinais de uma daquelas suas crises de amuo e não o suporto quando fica
amuado. Além disso, quero que me explique por que razão não devo deixar
‑me fascinar pela filantropia.»
«Isso não sei se lhe digo, Sr. Gray. É um assunto tão enfadonho que nos
obrigaria a ter uma conversa muito séria. Mas já que me pediu para ficar, pode
ter a certeza de que não me vou embora. Não te importas, Basil, pois não?
Disseste‑me muitas vezes que gostas que os teus modelos tenham alguém
com quem conversar.»
Hallward mordeu o lábio. «Se Dorian assim o deseja é claro que tens de
ficar. Os caprichos de Dorian são ordens para toda a gente menos para ele.»
Lorde Henry pegou no chapéu e nas luvas. «Apesar da tua insistência,
Basil, receio bem não poder ficar. Prometi encontrar‑me com um sujeito
no Orleans. Adeus, Sr. Gray. Venha visitar‑me uma tarde destas em Curzon
Street. Às cinco horas estou quase sempre em casa. Quando decidir visitar
‑me envie‑me uma mensagem. Teria muita pena se nos desencontrássemos.»
«Basil», exclamou Dorian Gray, «se Lorde Henry Wotton se for embo‑
ra eu também vou. Nunca abres a boca enquanto pintas e é extremamente
aborrecido ficar para aqui neste estado com ar de quem está muito satisfeito.
Pede‑lhe para ficar. Insisto.»
«Fica, Henry, nem que seja para fazer a vontade ao Dorian e a mim tam‑
bém», disse Hallward, olhando fixamente para o seu quadro. «É verdade:
nunca falo enquanto trabalho e tão‑pouco dou atenção a quem fala comigo,
o que deve ser terrivelmente enfadonho para os meus modelos. Peço‑te que
fiques.»
«E o encontro que marquei com o tal homem no Orleans?»
O pintor riu‑se. «Não me parece que, quanto a isso, tenhas qualquer pro‑
blema. Volta a sentar‑te, Henry. E agora, Dorian, sobe lá para o estrado e
não te mexas muito nem dês demasiada atenção ao que te diz Lorde Henry.
É muito má a influência que exerce sobre todos os seus amigos. A única
excepção sou eu.»
Dorian Gray subiu para o estrado com ar de mártir grego, dirigindo um
pequeno trejeito de desagrado a Lorde Henry, por quem se sentia já bastante
atraído. Era diferente de Basil. Faziam um contraste maravilhoso. E além
disso tinha uma voz belíssima. Passado um momento disse‑lhe: «É mesmo
verdade que tem assim tão má influência sobre os outros, Lorde Henry?
O Basil não está a exagerar?»
«Boa influência é coisa que não existe, Sr. Gray. Toda a influência é imo‑
ral — imoral do ponto de vista científico.»
«Porquê?»
«Porque influenciar uma pessoa significa entregar‑lhe a nossa própria
alma. Essa pessoa passa a não ter pensamentos próprios, a não sentir as pai‑
xões que lhe são naturais. As virtudes que possui deixam de ser, para ela,
uma realidade. Os seus pecados — se é que existe essa coisa a que se chama
pecado — são‑lhe transmitidos por outrem. Transforma‑ se assim num
eco da música tocada por outra pessoa, num actor a representar um papel
que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o autodesenvolvimento.
É percebermos completamente qual é a nossa verdadeira natureza. E é para
isso mesmo que cada um de nós está neste mundo. Hoje em dia as pessoas
têm medo de si mesmas. Esqueceram‑se do mais sagrado de todos os deve‑
res — o dever que têm para consigo próprias. Gostam, é claro, de praticar a
caridade — alimentam os que têm fome, vestem os mendigos. Mas as suas
almas, essas, morrem à fome e andam nuas. A nossa raça perdeu a coragem.
Se calhar nunca a tivemos. O terror à sociedade, que é a base de toda a moral,
e o terror a Deus, que é o segredo da religião: são estas as duas coisas que nos
governam. E no entanto...»
«Vira a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian. Lindo menino»,
disse o pintor, mergulhado no trabalho, dando‑se conta de que no rosto do
rapaz aparecera uma expressão que nunca antes vira.
Se não se importarem que vos peça para me seguirem, temos então agora
uma mudança de cenário. As folhas ainda continuavam a cair, mas de
momento, em Londres e não em Oxford; e devo pedir‑vos que imaginem
um quarto, semelhante a tantos outros, com uma janela com vista para os
chapéus das pessoas, camiões, autocarros e outras janelas; na mesa dentro
desse quarto imaginam também uma secretária tendo em cima uma folha de
papel, com as palavras MULHERES E FICÇÃO, escritas a letras garrafais,
e sem mais nada. A inevitável sequência do almoço e jantar em Oxbridge era,
ao que parece, infelizmente, uma visita ao British Museum. Havia que elimi‑
nar tudo o que fosse pessoal e acidental nessas impressões, para desse modo
atingir o fluido puro, o essencial da verdade. Aquela visita a Oxbridge, acom‑
panhada do almoço e do jantar, tinha desencadeado uma onda de perguntas.
Porque é que os homens bebiam vinho e as mulheres água? Porque era um
sexo tão próspero e o outro tão pobre? Qual o efeito da pobreza na ficção?
Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte? — umas per‑
guntas faziam surgir outras. Contudo, eram necessárias respostas e não per‑
guntas; e só havia hipóteses de obter uma resposta consultando os eruditos
e isentos de preconceitos, que se isentaram de conflitos retóricos e demais
confusões, dando a conhecer a sua linha de raciocínio e de pesquisa em livros
que se encontram no British Museum. «Se não for possível encontrar a ver‑
dade nas prateleiras do British Museum», perguntava a mim mesma, pegan‑
do num bloco de notas e num lápis, «onde reside a verdade?».
Assim munida e cheia de confiança e espírito inquiridor, lancei‑me
em busca da senda da verdade. O dia, se bem que não estivesse húmido,
apresentava‑se sombrio, e nas ruas perto do Museu abundavam as peque‑
nas caves cheias de carvão: paravam carroças que depositavam no pavi‑
mento caixotes amarrados com cordas e que continham pressupostamen‑
te todo o guarda‑roupa de qualquer família suíça ou italiana, em busca de
fortuna, refúgio ou outro objectivo desejável, que se encontra nas pensões
de Bloomsbury, durante o Inverno. Ouviam‑se as costumadas vozes roucas
antes de me permitir escrever o que quer que fosse no papel. Depois de fazer
uma selecção perfeitamente arbitrária de cerca de doze volumes, coloquei os
meus pedaços de papel no depositório de pedidos e esperei a minha vez na
bicha, em busca do fluido essencial da verdade.
Interrogava‑ me quanto ao motivo desta estranha discrepância,
enquanto desenhava círculos nos pedaços de papel que o pagador de impos‑
tos inglês fornece para outras finalidades. A julgar por este catálogo, qual a
razão por que as mulheres são muito mais interessantes para os homens do
que os homens são para as mulheres? Parecia‑me um facto bastante curioso
e o meu espírito vagabundeou em meandros imaginativos relativamente
às vidas dos homens, que passaram o seu tempo a escrever livros sobre as
mulheres; se seriam velhos ou novos, casados ou solteiros, de nariz averme‑
lhado ou corcundas — fosse como fosse, era lisonjeira aquela sensação de
se ser objecto das atenções, desde que estas não estivessem meramente ao
cuidado de aleijados e enfermos —, e estes pensamentos frívolos continua‑
ram, até me ver inundada por uma avalanche de livros, que escorregaram
sobre a mesa que tinha à minha frente. Foi nessa altura que começaram os
verdadeiros problemas. O estudante que recebeu um treino de pesquisa
em Oxford possui indubitavelmente um método de orientar a pergunta,
abstraindo‑se de todas as divagações, até encontrar a resposta que procura,
como o pastor encontra a ovelha tresmalhada. O estudante que estava ao
meu lado, por exemplo, e transcrevia diligentemente passagens de um tra‑
tado científico, extraía indubitavelmente de dez em dez minutos, ou cerca
disso, apenas o que era essencial. Tal o indicava os pequenos grunhidos de
satisfação, que de vez em quando emitia. Contudo, se uma pessoa não rece‑
beu, infelizmente, um treino universitário nesse sentido, a pergunta, longe
de receber resposta, escapa‑se de um lado para o outro, como um rebanho
perseguido por uma matilha de lobos. Professores, sociólogos, clérigos,
romancistas, ensaístas, jornalistas, homens sem outras qualificações que
a de não serem mulheres afugentavam a minha simples e única pergunta
— Porque é que as mulheres são pobres? —, transformando‑a em cinquen‑
ta perguntas; essas cinquenta perguntas acabavam por ser apanhadas pela
corrente, e transportadas para longe. Nem uma só página do meu bloco de
notas escapou a uns rabiscos. A fim de vos revelar o meu estado de espírito,
vou ler‑vos alguns, explicando que a página tinha muito simplesmente o
título de MULHERES E POBREZA, em letras garrafais; o que se seguia
era, no entanto, qualquer coisa como:
Alguns selvagens afirmam que não. Outros declaram, pelo contrário, que
são semi‑deusas e adoram‑nas por esse motivo. Alguns eruditos declaram
‑nas de mente mais superficial; outros consideram‑nas capazes de tomada
de consciência mais profunda. Goethe venerou‑as; Mussolini despreza‑as.
Em tudo o que se consultasse, era de chegar à conclusão que os homens
pensavam sobre as mulheres, e faziam‑no de maneira diferente.
Decidi que era impossível desembrulhar toda aquela confusão, e olhei
com inveja para o meu vizinho leitor que tirava as suas notas com perfeita
clareza e método, classificando‑as frequentemente com um A, B, ou um C,
ao passo que o meu bloco abundava em rabiscos ilegíveis e contraditórios.
Era desencorajador; sentia‑me confusa e humilhada. A verdade escapara‑se
‑me por entre os dedos, não deixando uma só gota.
ALDOUS HUXLEY (1894‑1963). Apesar da sua débil visão ou por causa dela,
o pensamento de Aldous Huxley é de uma enorme abrangência. Em 1932 publica
Admirável Mundo Novo, distopia que o inscreve no grupo rarefeito dos autores pro‑
féticos. Se em 1984, de George Orwell, nos deparamos com uma sociedade que é
levada a amar o seu estado antinatural de alienação por via da violência, aqui a socie‑
dade é já tecnologicamente fabricada de modo a viver num estado de permanente
felicidade. Nesta obra que o tornou famoso, Huxley urge‑nos a pensar a realidade
em que vivemos, instando‑nos a não nos deixarmos fascinar com os avanços da tec‑
nologia, que podem ser usados perversamente quando em mãos erradas. «O preço
da liberdade» — diz‑nos — «é a eterna vigilância», num repto de uma arrepiante
actualidade. (Jorge Beleza)
escrita, e o poema heróico‑cómico, The Rape of the Lock (1712‑14). As suas traduções
de Homero viriam a envolvê‑lo numa querela de que resultou outra famosa epopeia,
The Dunciad (1728). An Essay on Man, o seu derradeiro poema sobre a relação do ser
humano com Deus, a Natureza e a sociedade, embora não terminado, constitui um
importante testemunho da perspectiva iluminista que então se afirmava. Os seus
finos epigramas continuam vivos, tanto na sua obra, como nas muitas apropriações
de outros autores. (Adelaide Meira Serras)
ANDRÉ BRETON (Tinchebray, 1896 – Paris, 1966) viu o curso de Medicina inter‑
rompido pela Primeira Guerra Mundial e, servindo como enfermeiro, descobriu a
psicanálise, a que foi buscar algumas das bases do surrealismo, de que foi o mentor e
um dos principais escritores. Empenhado desde muito jovem (e muito por influên‑
cia de Apollinaire) numa redefinição moderna da vida poética, tenderá ao longo de
anos a deixar que a sua escrita e a sua vida se sobreponham e confundam, expostas
ambas ao acaso objectivo que dita os encontros e os sentidos e se impõe, de for‑
ma quase mágica, a qualquer desejo ou projecto individual. É assim em L’Amour fou
(1937), onde só a ternura que Aude, a filha de meses, lhe inspira e que vibra na carta
que, a fechar o livro, lhe endereça parece não ser da ordem do acidental. (Cristina
Almeida Ribeiro)
permanência deles. A sua obra primeiramente reconhecida foi Les nourritures ter‑
restres (1897) e, depois de várias outras, La porte étroite (1909) e a autobiografia inti‑
tulada Si le grain ne meurt (1924). Les faux monneyeurs (1925), obra mais classicamente
enquadrável na categoria «romance», e de que aqui foi escolhido um excerto, é um
texto de composição complexa e sinuosa, que coloca na sua acção central as rela‑
ções entre diversas personagens masculinas, bem como a forma como todas elas, de
uma maneira ou de outra, se interrogam sobre o que pode ser uma escrita literária
moderna. (Helena Carvalhão Buescu)
viria a escrever, em 1987, «Errand», um texto inspirado nas últimas horas da vida do
autor russo. Através da fortuna crítica obtida pelas suas últimas peças, A Gaivota
(1896), Tio Vânia (1897), As Três Irmãs (1901) e O Ginjal (1904), Tchékhov tornou‑se
ainda um dos dramaturgos mais lidos e representados durante todo o século xx.
Enquanto a sua obra breve lida mais activamente, na esteira de Fiódor Dostoiévski,
com as camadas mais desfavorecidas da população russa, as suas peças são ambien‑
tadas no meio de uma burguesia decadente, tematizando o ennui finissecular e a
vida não vivida. (José Bértolo)
ANTONIN ARTAUD (Marselha 1896 – Ivry‑sur‑ Seine, 1948), cujo nome anda ge‑
ralmente associado a O Teatro e o Seu Duplo (1938) e ao conceito de «teatro da cruel‑
dade», foi poeta, dramaturgo, encenador, actor, estando ainda ligado ao cinema, ao
desenho e à pintura. Filho de pai francês e mãe grega, Antoine‑Marie‑Joseph Ar‑
taud, de seu verdadeiro nome, terá chegado a Paris em 1920, integrando por algum
tempo o grupo de André Breton. Co‑fundador do Teatro Alfred Jarry (1935), viaja
pelo México e pela Irlanda (1937‑38), seguindo‑se quase uma década de internamen‑
tos em hospícios. Descoberto por acaso entre as páginas de um velho exemplar de
La révolution surréaliste, segundo informação do tradutor, o poema prima pela vio‑
lência das diatribes contra tudo o que signifique ruptura entre vida e arte. (Maria
Graciete Silva)
ARISTÓTELES (384 – 322 a.C.). Tal como grande parte das suas obras, também
a Poética é resultado de um contexto escolar, tendo sido revista e alterada, pelo
que não é possível datar a versão final. Representa uma reflexão filosófica sobre
um âmbito da acção humana — a mimesis — entendida como natural e geradora
de conhecimento. Aristóteles procurou aplicar um modelo teórico que permitisse
enquadrar a poiesis do ponto de vista conceptual (contra Platão, Rep. 3, 10). Entre os
vários contributos para a história da literatura, cumpre destacar três: a poesia como
uma forma de mimesis (1‑4), à semelhança de outras artes (música, dança e pintura);
a importância da história da poesia para a identificação e interpretação da poesia
(4‑ 5); a definição do conceito de género (1‑3). A intenção inicial seria examinar os
três géneros: épica, tragédia e comédia. A perda do livro 2, dedicado à comédia,
e o facto de a épica ser integrada na abordagem da tragédia, deixa‑nos um tratado
dedicado sobretudo à tragédia. Apesar da influência exercida no Renascimento e
gerações seguintes, a recepção deste tratado na Antiguidade parece ter sido limita‑
da. (Ália Rodrigues e Maria do Céu Fialho)
digo da Beleza), 1922, Nem én kiáltok (Não Sou Eu Que Grito), 1925, ou Nagyon fáj (Dói
muito), 1936— dão‑nos variações temáticas e formais que dele fazem o mais influen‑
te poeta húngaro. (Ernesto Rodrigues)
roso, num percurso as mais das vezes ziguezagueante, em contraste com o trajecto
rectilíneo por que optam outros, condicionados pela razão. Forjando a subordinação
do discurso às emoções, o poeta fá‑lo oscilar de uma a outra, nunca enjeitando contra‑
dições ditadas por diferentes estados de humor, nem o imprevisto de notas de ironia
como a que encerra «Ao ver morrer a cotovia». (Cristina Almeida Ribeiro)
BORIS VIAN (Ville d’Avray, 1920 – Paris, 1959) foi um autor, cantor e músico fran‑
cês cuja produção textual é multifacetada: poesia, romance, crítica jornalística, tea‑
tro, entre outras valências. Um elemento transversal a toda a sua obra é o seu ca‑
rácter cáustico e satírico, pondo em evidência as hipocrisias e pecadilhos da classe
média‑alta francesa ou procurando chocar a sensibilidade burguesa. Em romances
como A Espuma dos Dias (1947) e O Outono em Pequim (1947), Vian mostra‑se como
herdeiro do surrealismo dos anos 30, combinando o uso do absurdo e do fantástico
de autores como Breton com o pessimismo existencialista do pós‑guerra à maneira
de Sartre. Paralelamente, enquanto músico e cantor, sobretudo de jazz e chanson
française, Boris Vian tornou‑se num símbolo da boémia parisiense do seu período.
(Simão Valente)
BRAM STOKER (Dublin, 1847 – Londres, 1912) foi um romancista, poeta e contis‑
ta irlandês, famoso sobretudo pela autoria do romance gótico Drácula (1897), para
cuja escrita passou vários anos a investigar folclore europeu e narrativas mitológi‑
cas de vampiros. Drácula é um romance epistolar composto por cartas, registos de
diário, telegramas, recortes de jornais e diários de bordo. O enredo desenrola‑se
através da montagem de textos que respondem às regras de cada um destes géne‑
ros, produzindo assim um efeito de realismo que contribuiu para tornar até hoje a
«história de vampiros» num popular subgénero romanesco e cinematográfico e num
imenso êxito comercial da indústria da cultura. (João Ferreira Duarte)
Gestapo em retaliação pela morte do escravo judeu deste às mãos de outro oficial
da Gestapo, «protector» de Schulz. Grande parte da sua produção literária desapa‑
rece durante a Segunda Guerra Mundial, tendo chegado até nós alguma correspon‑
dência, fragmentos, a recolha de contos Lojas de Canela (1934) e o romance Sanatório
sob a Clepsidra (1937). É na primeira destas duas obras que é publicado o seu texto
mais conhecido, «A Rua dos Crocodilos», uma representação alucinatória do impac‑
to da modernidade nas cidades europeias. (Simão Valente)
CAMILO JOSÉ CELA (1916‑2002), escritor, editor e jornalista galego, foi Prémio
Nobel da Literatura em 1989. A sua obra multifacetada vai da poesia a várias mo‑
dalidades da ficção narrativa, da crónica aos livros de viagens, do guião cinemato‑
gráfico ao dicionário. Polémico e controverso, incorporou o lado provocatório das
vanguardas numa vertente de denúncia impiedosa próxima da crítica social de cariz
realista, vertida em linguagem crua e desprovida de concepções humanitárias, sen‑
do o romance La familia de Pascual Duarte (1942) considerado matriz do tremendismo
(corrente característica da narrativa do primeiro pós‑guerra espanhol). La colmena
(1951) conseguiu o paradoxo de ser obra de um escritor franquista, ele próprio cen‑
sor, proibida pela censura franquista e só autorizada oficialmente em Espanha em
1963. (Fátima Freitas Morna)
sugerindo talvez uma origem no Sul da Alemanha, e motivos cristãos mais óbvios
do que, por exemplo, na Edda Poética. Apesar disso, mantém‑se o tema da demanda
heróica, incluindo um dragão, e o ciclo de vingança destrutivo que inclui o ouro do
Reno. (Hélio Pires)
«CANTAR DE MIO CID» (c. 1207), único poema épico da Idade Média hispânica,
anda associado ao nome de Per Abbat, para uns apenas copista, para outros autor
do cantar na versão que dele conserva o seu também único testemunho integral (um
manuscrito datado da primeira metade do século xiv), consagradora de um herói
cujo canto passou decerto por muitas vozes antes de ter registo escrito. A gesta
exalta as façanhas de Rodrigo Díaz de Vivar (c.1043‑1099), cavaleiro castelhano que
se bate, tanto no plano militar como no plano político, em defesa da própria honra,
ora enfrentando inimigos muçulmanos, ora esgrimindo argumentos com adversá‑
rios internos. Ao fazê‑lo, restaura a relação com o rei e contribui de forma decisiva
para o alargamento do reino e a consolidação do poder do monarca. (Cristina Al‑
meida Ribeiro)
CARLO GOLDONI (1707‑1793) escreve a sua primeira peça aos 12 anos. Frequen‑
ta o colégio de jesuítas em Perúgia, onde descobre as comédias de Aristófanes, Me‑
nandro e Maquiavel. A sua vida de estudante de Direito em Pavia não o afasta da
leitura de comédias e começa a colaborar com vários teatros, fixando‑se em Veneza
em 1734. A tradição da comédia de intriga (a soggetto) em que se baseava o teatro
italiano está patente em Il Servitore di Due Padroni (1745) e será o alvo da reforma
empreendida por Goldoni. O texto é escrito por completo, é composto por falas
que não possibilitam improvisação e por personagens sem máscaras e fantasias que
se afirmam como caracteres complexos cuja transformação o espectador irá des‑
cobrindo, ou melhor, irá reconhecendo através de acções «verosímeis» idênticas às
CEES NOOTEBOOM (Haia, 1933) é conhecido pelos seus romances, novelas, li‑
vros de viagens e poesia. Na juventude frequentou diversos internatos católicos,
aos quais atribui o seu amor pela leitura e cultura clássica. Desde cedo viajou pelo
mundo, encontrando-se nos lugares certos em momentos fulcrais. Em 1956 esta‑
va em Budapeste, em Maio de 1968 em Paris e em Novembro de 1989 em Berlim.
Reside em Amesterdão, Berlim e Espanha, país que elegeu como a sua pátria do
coração. A sua escrita caracteriza-se pela leveza poética aliada a um grande conhe‑
cimento da filosofia, literatura, história e história de arte. Diversas das suas obras
foram traduzidas para português: A História Seguinte (1993), Máscara de Neve (1995),
Rituais (2000), O (Des)caminho de Santiago (2003). Também os seus poemas figuram
em várias colectâneas de poesia publicadas em Portugal. (Patrícia Couto)
CESARE PAVESE (Santo Stefano Belbo, 1908 — Turim, 1950) é um dos grandes
poetas e ficcionistas italianos do século xx. Licenciado em Letras com uma tese so‑
bre Walt Whitman, destacam‑se ainda as suas traduções de autores de língua ingle‑
sa como Dickens, Joyce ou Faulkner. Preso em 1935, sob a acusação de actividades
antifascistas, dá início ao seu diário O Ofício de Viver e publica no ano seguinte a sua
primeira obra poética, Trabalhar Cansa. Romance de chegada a múltiplos títulos,
A Lua e as Fogueiras, justamente célebre, corrobora a centralidade do vivido, na sua
dialéctica entre memória e esquecimento, presente também nos textos escolhidos.
De amor e morte se trata no poema epónimo do seu último livro de poesia, aqui
representado, dedicado a Constance Dowling, a jovem actriz americana conhecida
em Roma em 1949, com publicação póstuma. (Maria Graciete Silva)
«LA CHANSON DE ROLAND» (c. 1080) é a mais antiga canção de gesta france‑
sa, datando a sua versão mais conhecida, a do manuscrito de Oxford, dos finais do
século xi e assinada por um Turold, que opiniões críticas divergentes têm interpre‑
tado como nome de copista e como nome de autor. Mas, mesmo neste caso, aten‑
dendo até ao tempo que medeia entre os acontecimentos na origem da gesta (778) e
este registo escrito, o texto conhecido tem atrás de si uma longa tradição oral, que
decerto contribuiu para a mitificação do massacre de Roncevaux e dos seus pro‑
tagonistas. Considere‑se ou não Rolando o seu herói, o canto épico, com o relato
pontuado por episódios líricos e dramáticos, tem na morte do sobrinho de Carlos
Magno um momento de grande valor simbólico e não menor intensidade poética.
(Cristina Almeida Ribeiro)
(Isabel Fernandes)
CHATEAUBRIAND (1768-1848) foi um poeta e romancista romântico francês,
tendo ainda escrito drama e ensaio. A sua obra-prima foi o texto de memórias co‑
nhecido como Mémoires d’Outre-Tombe, onde se manifestam os traços maiores da sua
obra anterior. Tendo tido uma vida de grandes viagens e muita perturbação política,
a sua obra reflecte um conjunto de características de grande alcance romântico:
a melancolia, a tendência para uma fraternidade com a natureza, o exotismo, a re‑
flexão religiosa. Estas características fundem-se diferentemente em obras como
Le génie du christianisme, Atala e René, sendo desta última obra que é retirado o
capítulo apresentado. Nele encontramos um herói assombrado pela solidão, sau‑
dade e melancolia, que apenas em exílio consegue falar do tabu que toda a vida o
acompanhara: o amor de carácter incestuoso entre ele e a sua irmã Amélie. (Helena
Carvalhão Buescu)
CHRÉTIEN DE TROYES (século xii), de cuja vida se conhece apenas, pelas de‑
dicatórias que lhes faz, a ligação a patronos como Marie de Champagne e Philippe
d’Alsace, é autor seguro de algumas composições líricas e de cinco romances ar‑
turianos, que, diversamente estruturados, constituem belas demonstrações de ars
narrandi e deixam perceber que não por acaso reivindica Chrétien, em especial no
prólogo de Érec et Énide, uma autoridade fundada na capacidade de organizar e dar
sentido a materiais previamente existentes. Perceval, apesar de se encontrar incom‑
pleto (devido, presume‑se, à morte do poeta) ou talvez por isso mesmo, foi desses
romances o que teve maior repercussão imediata em continuações e traduções.
Nele, o cortejo do graal é um episódio de capital importância, tanto pelo que sig‑
nifica, enquanto falha, no percurso iniciático do imaturo protagonista, como pelos
desenvolvimentos que o seu potencial simbólico encontrará, com a cristianização,
em todo o ciclo do graal. (Cristina Almeida Ribeiro)
CÍCERO (Arpino, 106 a.C. – 43 a.C.) Foi morto pelos sicários de Marco Antó‑
nio, contra quem escrevera as Filípicas. Homo nouus, isto é, sem antepassados com
carreira política, dividiu a sua vida entre o otium do estudo, da produção de textos
filosóficos e de teoria retórica e o negotium da intervenção pública, quer como ora‑
dor forense, quer como político que chegou ao cume do poder, sendo cônsul em 63
a.C., ano em que Catilina conspirou para tomar o Estado. Cícero criou muitas das
palavras que ainda hoje usamos, no seu esforço por criar terminologia latina para
as ideias gregas. O seu latim foi o modelo que a Europa do Renascimento recupe‑
rou, para obviar à variedade e aos barbarismos do latim medieval, e na sequência
da disputa entre ciceronianos e erasmistas é a sua forma de escrever que vai servir
DANIEL DEFOE (c. 1660‑1731), escritor e jornalista inglês, famoso pelo seu ro‑
mance Robinson Crusoe (1719), a que pertence o excerto apresentado. Autor prolífico,
com cerca de 300 obras publicadas (entre livros, panfletos e revistas), narra fre‑
quentemente os percursos problemáticos de personagens solitárias e em situações
de crise (como em Robinson Crusoe, Moll Flanders ou A Journal of the Plague Year).
Considerado por muitos como o primeiro romance inglês e constituindo uma das
mais famosas narrativas de viagens, Robinson Crusoe evidencia‑se como romance de
descoberta, de encontro com o Outro e de reflexão sobre processos civilizacionais
heterogéneos. (Patrícia Infante da Câmara)
DANTE ALIGHIERI (1265‑1321). Não basta dizer que compôs, c. 1293, Vita Nova;
que, pouco depois, preparou um pequeno cancioneiro celebrando o amor por uma
«donna pietra»; que no início do século xiv concebeu três tratados, cada um com
seu centro temático (filosofia, no Convivio; língua e poética, no De Vulgari Eloquen‑
tia; política, em Monarchia); que redigiu algumas epístolas; que construiu, desde
c. 1304 até perto do fim da vida, a Commedia, a que chamou também «poema sacro»
(Par., XXV, 1). Neste conjunto, importa detectar relações e observar como se tece
um exigente sentido de unidade e de totalidade: o autor assim o reclama, ao cultivar
formas de convergência e ao fazer sobressair engenhosos processos de palinódia.
Repare‑se, por exemplo, no que significa, em pleno discurso de uma Francesca da
Rimini condenada ao Inferno (V, 100), o nítido eco de um verso da Vita Nova (XX,
1). Florentino de nascimento, Dante pagou cara a acção cívica e política; a sua ima‑
gem, porém, nunca deixou de a sublimar. «Exul immeritus», assinou em cartas; na
Commedia, onde inscreveu o nome (Purg., XXX, 55) e moldou pela palavra o carác‑
ter de «tetragono ai colpi di ventura» (Par., XVII, 24), atribuiu, a si próprio, lugar
na «beata corte» do Paradiso que tão espectacularmente deu a ver. (Isabel Almeida)
DYLAN THOMAS (Swansea, 1914 – Nova Iorque, 1953) foi um poeta galês reco‑
nhecido não só pela sua poesia, mas também pela colectânea de narrativas autobio‑
gráficas intitulada (por referência a James Joyce) Portrait of the Artist as a Young Dog
(1940) e pelo drama radiofónico Under Milk Wood (1954). A publicação de Eighteen
Poems (1934) e Twenty‑Five Poems (1936) (que incluía os muito populares «The hand
that signed the paper», «And death shall have no dominion») consagrou a reputação
de Thomas enquanto poeta «difícil» e «obscuro», na realidade representante de uma
espécie de segundo modernismo inglês, tal como o seu contemporâneo Malcolm
Lowry (1909‑1957), em cuja poesia a palavra, a sonoridade e a imagem são postas em
primeiro plano muitas vezes em detrimento da lógica gramatical e da referenciali‑
dade. Tal «obscuridade», bem como as leituras de poemas para a BBC, contribuíram
para a sua popularidade e para a construção do poeta enquanto figura de culto neo
‑romântica, marcada por comportamentos ditos anti‑sociais. (João Ferreira Duarte)
E.T.A. HOFFMANN (Königsberg, 1776 – Berlim, 1822), de seu nome Ernst Theo‑
dor Amadeus, foi um expoente do romantismo alemão, notabilizando‑se em par‑
ticular em contos de pendor fantástico no estilo da literatura gótica. O impacto
cultural das suas obras estendeu‑se para além da literatura, tendo tido particular
importância no âmbito da ópera, com Os Contos de Hoffmann, de Jacques Offenbach,
em que se adapta uma variedade de histórias do autor alemão. De particular popu‑
laridade até aos nossos dias é o bailado O Quebra‑Nozes, de Tchaikovsky, inspirado
no conto epónimo de Hoffmann. O conto que transcrevemos, «O homem da areia»
(1817), parte da história infantil alemã do Sandmann, uma figura sinistra que rouba
os olhos das crianças que se recusam a dormir quando os pais mandam. Freud utiliza
este conto, já no século xx, para formar a sua teoria do trauma. (Simão Valente)
«EDDA». Existem duas fontes principais para a compilação conhecida pelo título
onomástico Edda: a Edda em Verso, ou poética, colecção anónima de poemas da tra‑
dição oral em nórdico antigo, e coligidas num manuscrito do século xiii; e a Edda
em Prosa, da autoria de Snorri Sturluson, um historiador, poeta e político islandês
que viveu na primeira metade do século xiii. Em conjunto, estas duas obras cons‑
tituem a grande fonte de conhecimento da mitologia nórdica, desde a cosmogonia
do início do mundo (Gylfaginning) até ao seu final escatológico (Ragnarök) por um
dilúvio, seguido do renascimento de um novo mundo. O texto que aqui apresenta‑
mos pertence à primeira parte, e descreve a criação mitológica do mundo. (Helena
Carvalhão Buescu)
EDITH SÖDERGRAN (1892-1923) foi uma poeta finlandesa de língua sueca. Nas‑
cida em São Petersburgo durante a ocupação russa do Grã‑Ducado da Finlândia
(1809‑1917), cresceu na região da Carélia, zona de confluência de diversas comu‑
nidades. Tendo estudado e escrito em alemão, é fortemente influenciada pelas
EDUARD VILDE (Pudivere, 1865 – Tallinn, 1933) foi um autor realista estónio,
comparável a Émile Zola ou Eça de Queirós no seu projecto de representar as con‑
dições de vida e dramas privados da sociedade do seu tempo. À semelhança ainda
de Eça, Vilde constituiu‑se como um modernizador da literatura do seu país, procu‑
rando alinhá‑lo com as tendências europeias. Conflitos com as autoridades russas
— sendo que durante grande parte da sua vida a Estónia fazia parte do Império
Russo — obrigaram a períodos no exílio na Finlândia, França e Suíça, o que veio
a influenciar a europeização da sua escrita. A obra aqui representada, O Leiteiro de
Mäeküla (1916), é ilustrativa dos conflitos entre a nobreza etnicamente alemã e a
população estónia frequentemente dramatizados pelo autor. (Simão Valente)
the Portuguese (1850), traduzida para várias línguas, incluindo a portuguesa. (Ana
Luísa Amaral)
ELSE LASKER‑ SCHÜLER (Elberfeld, 1869 – Jerusalém, 1945) é uma poeta judia
alemã com uma linguagem de grande poder encantatório. Acompanha, em Berlim,
nas primeiras décadas do século xx, o surto do movimento expressionista mais ori‑
ginal, na revista Der Sturm, a partir de 1910, e relaciona‑se com os mais importantes
poetas dessa geração — mas transcende‑a. A sua poesia tem um perfil único, de exo‑
tismo, fantasia sem limites, visões de um «Oriente de Deus» que não tem paralelos
na época. O «cisne negro de Israel», como lhe chamou um contemporâneo, deixou
de publicar em 1925, e a ascensão de Hitler ao poder obrigou‑a a fugir para a Suíça e,
mais tarde, para a Palestina. Viveu em Jerusalém com grandes dificuldades e publi‑
cou o último livro de poemas, Mein Blaues Klavier [O Meu Piano Azul] em 1943. Está
sepultada no Monte das Oliveiras. (João Barrento)
ÉMILE ZOLA (Paris, 1840‑1902), trabalhador infatigável que cultivou múltiplos gé‑
neros literários e se dedicou também à crítica de artes, teatro e literatura, deve a no‑
toriedade sobretudo aos seus romances, palco por excelência do projecto estético e
ideológico que traçou e que deu suporte ao naturalismo. Romance social e parte inte‑
grante da série dos Rougon‑Macquart, Germinal é considerado também um romance da
revolta, que, protagonizada por Lantier, alastra à comunidade mineira, enfim capaz
de assumir perante si própria a indignidade das condições de trabalho a que é sujeita
e de lutar contra ela. O primeiro capítulo lança as bases do enfrentamento que há
‑de dominar a trama: Lantier, recém‑chegado e sem alternativas, vive de forma tensa,
e ainda à distância, a descoberta do Voreux. (Cristina Almeida Ribeiro)
EMILIA PARDO BAZÁN (La Coruña, 1851 – Madrid, 1921) foi uma escritora talen‑
tosa e firme nas suas convicções. O seu nome anda ligado à difusão do naturalismo,
envolta em acesa polémica, e às questões de género, a nível da crítica e da criação
literária. Pioneira no exercício de cargos tradicionalmente vedados às mulheres, viu,
no entanto, recusado o seu ingresso na Real Academia Espanhola, já então condessa
de Pardo Bazán. Romancista de mérito, como ilustram Los Pazos de Ulloa (1886), e não
menor contista, destaca‑se o seu papel na consagração do género, cultivado com mes‑
tria em mais de seiscentos títulos. Confirma‑o, no caso vertente, o regresso ao mito
de Don Juan em prol de uma justiça poética que tem na Beatita o mais surpreendente
dos trunfos, fazendo jus à improbabilidade do título. (Maria Graciete Silva)
EMILY BRONTË (1818-1848) foi uma das grandes escritoras inglesas do século
xix. Pertencia a uma família de quatro irmãos, todos eles com ambições literárias,
sendo a mais conhecida de entre eles a sua irmã Charlotte. Além de poesia, Emily
Bronte foi a autora de um dos mais notáveis e complexos romances oitocentistas,
um drama familiar estendido por duas gerações e vários triângulos amorosos, que
giram em torno das personagens de Catherine e de Heathcliff (Wuthering Heights).
A paixão amorosa aparentemente impossível entre eles é objecto de várias inter‑
pretações, sendo uma delas o reconhecimento tácito da possibilidade de incesto.
Um outro conjunto de interpretações analisa a tessitura e ruína da família burguesa,
entre violências, paixões e segredos inexplicáveis. Aliás, a ideia de inexplicabilidade
das relações humanas governa toda a vida, até se aplacar na segunda geração. Uma
outra visão sublinha a leitura pós-colonial do romance, atribuindo à entrada do «es‑
curo» Heathcliff no seio da família britânica o valor de ameaça que um império
no seu auge começa a reconhecer. O excerto escolhido alimenta e intensifica a di‑
mensão inexplicável da relação entre as personagens decisivas no romance. (Helena
Carvalhão Buescu)
ESOPO. Nada se sabe ao certo sobre ele. J.S. Rusten comenta que ele é tão lendário
como Homero. Alusões encontradas em Hesíodo e Arquíloco, os autores que mais
cedo o nomeiam, ajudam a colocar as datas da sua vida algures entre o século vii
a.C. e o século vi, na Grécia pré‑clássica. Esopo pode ter sido oriundo de Samos,
da Frígia ou da Lídia. Uma biografia que terá sido produzida já durante o Império
Romano identifica‑o como escravo e colige uma série de anedotas picarescas acerca
da sua vida. A Esopo é atribuído um corpus de Fábulas, que, no entanto, é coligido
tardiamente, em Alexandria, por Demétrio de Falero. A versão que nos chegou, po‑
rém, data da Antiguidade tardia. O que nós chamamos Fábulas (do latim, fabulae) e
os antigos gregos chamavam mythoi ou logoi, termos usados nas próprias fábulas, são
algumas breves linhas de prosa, povoadas de personagens‑tipo e animais, com uma
estrutura narrativa simples e um propósito moral evidente, frequentemente para
efeito cómico. (Tatiana Faia)
ÉSQUILO (c. 525 a.C. – c. 456 a.C.). Dramaturgo ateniense, a sua vida abarca dois
dos momentos fundamentais para a hegemonia da Atenas clássica — a derrota dos
persas em Maratona (onde Ésquilo combateu como soldado) e a ascensão de Péri‑
cles ao governo da cidade, o que marca a idade de ouro da cultura ateniense. Um dos
principais dramaturgos do teatro clássico, Ésquilo morre na Sicília cerca de 456 a.C.
É dele a única trilogia que nos chegou completa do período clássico, a Oresteia, e
esta é também a última que ele terá encenado em Atenas, em 458 a.C.. As Euménides
marca a absolvição de Orestes e o encerramento de um ciclo ancestral de violência.
A psicologia dos laços que unem marido e mulher, mulher e amante, pais e filhos,
irmão e irmã, é tensamente escrutinada ao longo das três peças. Clitemnestra con‑
tinuará a ser uma das mais singulares criações da história do teatro. (Tatiana Faia)
EVELYN WAUGH (Londres, 1903 – Combe Florey, 1966) é um autor inglês cuja
obra pode ser dividida em dois períodos: antes da Segunda Guerra Mundial, com
romances como Declínio e Queda (1928) e Corpos Vis (1930), a prosa de Waugh é de
pendor decididamente satírico, consagrando‑se a estudos das contradições e excen‑
tricidades da aristocracia britânica. Após a sua conversão ao catolicismo, contudo,
Waugh aborda com mais frequência questões morais e de fé, sendo essa caracte‑
rística um aspecto fundamental do seu texto mais conhecido, Reviver o Passado em
Brideshead (1945). Apesar dessa inflexão, Waugh não abandona de todo o seu pen‑
dor humorístico, reaparecendo em O Ente Amado (1948) e As Desventuras do Senhor
Pinfold (1957). Proeminente na obra de Waugh é também a cidade de Oxford, onde
viveu e estudou. (Simão Valente)
Cantos, foi escrita e publicada ao longo de mais de 50 anos, entre 1917 e 1969. Depois
de alguns anos em Paris (1920‑24) fixou‑se em Itália, onde passou grande parte da
sua vida. (Gualter Cunha)
FERNANDO DE ROJAS (c. 1475‑1541) nasceu em data incerta, situável nos princí‑
pios da década de 70 do século xv, numa família de judeus conversos estabelecida na
região de Toledo. Foi bacharel em Leis e, por mais de uma vez, alcaide de Talavera.
Nas letras espanholas, ficou conhecido como autor da Tragicomedia de Calixto y Meli‑
bea, vulgarmente referida como La Celestina, dado o protagonismo que nela assume
a alcoviteira assim chamada, magnífica representante de um tipo social com presen‑
ça frequente na ficção narrativa e dramática ibérica ao longo de todo o século xvi.
O fragmento escolhido mostra a Celestina em acção, insinuando‑se junto da jovem
a quem deve convencer do valor do pretendente ao serviço de quem a visita e fazen‑
do com que ela abra progressivamente a guarda e acabe por se lhe render. (Cristina
Almeida Ribeiro)
FRANCIS PONGE (1899-1988) foi um poeta e ensaísta francês que marcou algu‑
mas das direcções mais importantes da poesia do século xx. É sobretudo conhecido
pelo uso inovador que faz do poema em prosa, nomeadamente pelo facto de este
se ocupar da materialidade das coisas, da sua tessitura, e por isso da transfiguração
do aparentemente antipoético em matéria da poesia ela mesma. Uma das suas obras
mais conhecidas intitula-se Le Parti pris des choses (1942), e nela encontramos já, in
nuce, toda a sua poética. Esta faz-se a partir de uma minuciosa atenção e descrição
de cada objecto particular e circunstancial do mundo – um sabão, uma laranja, uma
pedra. No poema que reproduzimos, o carácter transitivo do humano exige, para ser
pensado, o objecto sem o qual é o próprio sujeito que não existe. É esta, também,
a força (a metamorfose) da linguagem poética. (Helena Carvalhão Buescu)
êxito em 1489. Apelando à memória colectiva, a «Balada das damas do tempo anti‑
go», primeira composição de forma fixa inserida no Testament e também primeira
peça do tríptico aí dedicado ao ubi sunt, mantém com o topos uma relação algo am‑
bígua, porque um elenco de personagens heterogéneo permite matizar a evocação
melancólica, evidente no refrão, com o sorriso ou o riso suscitados por algumas
alusões. (Cristina Almeida Ribeiro)
e a géneros, o amor, de vária natureza, permanece como tema privilegiado. Num dos
sonetos antologiados proclama‑se a presença impressiva e indelével da amada na
própria alma como condição e origem da palavra poética; no outro, variação sobre
o carpe diem, pinta‑se‑lhe, em palavras serenas, o retrato da fugaz beleza. (Cristina
Almeida Ribeiro)
GEORG BÜCHNER (1813‑1837). Sendo por certo um dos grandes autores de lín‑
gua alemã, Büchner não obteve em vida o reconhecimento da sua obra. Nasceu em
Darmstadt, na Alemanha, mas as actividades revolucionárias, muito impulsionadas
pelos tempos conturbados, obrigam‑no a procurar abrigo em Estrasburgo, onde
fundou a Sociedade para os Direitos do Homem, e mais tarde em Zurique. Shakes‑
peare e os românticos alemães inspiraram uma obra singular, ao mesmo tempo trá‑
gica e cómica, vigorosa e elegíaca, como está patente em A Morte de Danton (1835) e
Leonce e Lena (1836). Só a partir do final do século xix, no dealbar do naturalismo e
do expressionismo, a modernidade de Büchner pôde entusiasmar escritores e en‑
cenadores, tendo então início um intenso processo de recepção criativa. O drama
‑fragmento Woyzeck (1836‑1837), dá expressão ao seu tempo, encenando a pobreza e
a perda de dignidade, o desamparo e a solidão já anteriormente retratados na narra‑
tiva Lenz. (Luísa Afonso Soares)
que o levou a Inglaterra, França, Itália e Países Baixos. Foi também juiz e senador
em Nuremberga, cidade onde sempre viveu. A sua poesia é típica do período bar‑
roco, composta em linguagem de artifícios retóricos e elaborada imagética. Tam‑
bém muito lidos na época foram os seus diálogos, peças didácticas reproduzindo
conversas entre mulheres com propósito edificante, tendo cultivado igualmente a
poesia pastoril, influenciado pelo drama pastoril da época e por Sir Philip Sidney.
Harsdoerffer distinguiu‑se ainda como tradutor de obras em francês, italiano e es‑
panhol. (Fernanda Gil Costa)
GIACOMO LEOPARDI (Recanati, 1798 – Nápoles, 1837) é o maior poeta lírico
da Itália do século xix, podendo a sua obra ser colocada lado a lado com a de Keats,
Baudelaire e Hölderlin. A sua experiência poética nasce de uma situação cultural
complexa que, acolhendo os momentos mais intensos da sensibilidade romântica,
ao mesmo tempo recusa as propostas de soluções mais fáceis. Retomando os princí‑
pios da filosofia materialista do século xviii, recolhe desta uma concepção descon‑
pessoano tardio, está por fazer e daria, por certo, resultados interessantes para uma
perspectivação das poéticas europeias do século xx.» (João Barrento)
GÜNTER GRASS (Danzig, 1927 – Lübeck, 2015), nascido na actual Gda sk, Po‑
lónia, será provavelmente o autor de língua alemã mais reconhecido internacional‑
mente pela sua obra literária publicada na Alemanha do pós‑guerra. Artista plástico
de formação, foi na pele de romancista que se notabilizou como a figura central
(e sempre polémica) de uma «consciência histórica alemã». Fez parte do famoso
grupo literário Gruppe 47, no seio do qual apresentou o seu romance O Tambor de
Lata (1959), a primeira parte das três obras que, com O Gato e o Rato (1961) e O Cão
de Hitler (1963), perfazem a sua «trilogia de Danzig». Grass foi galardoado com o
Prémio Nobel da Literatura em 1999. Em 2006 foi alvo de duras críticas aquando
da publicação da sua autobiografia Descascando a Cebola, em que revela ter integrado
as Waffen SS aos 17 anos. (Joana Moura)
Esslin dedica‑lhe um capítulo em The Theatre of the Absurd, 1961). O tom enigmático
e elíptico — pinteresco — das suas «comédias de ameaça» dialoga criticamente com
a história política do século xx, com as suas utopias e as suas falências. (Rui Pina
Coelho)
HEINRICH VON KLEIST (1777‑1811) pode ser considerado um dos autores mais
originais e intemporais da literatura alemã. Distinguiu‑se sobretudo na narrativa
curta e no drama e foi praticamente ignorado pelos seus contemporâneos, embora
tenha conhecido Goethe e Schiller em Weimar e Goethe tenha chegado a encenar,
no Teatro da Corte de Weimar, sem sucesso, uma das suas peças. É também con‑
temporâneo dos autores do primeiro romantismo alemão, com os quais não mante‑
ve relações, tendo ficado célebre o seu suicídio combinado, em 1811, com a amiga,
Henriette Vogel. Foi fortemente influenciado por Kant (que refere nas suas cartas),
sobretudo pela ideia de que a observação modifica a percepção dos fenómenos,
predominando nas suas narrativas situações catastróficas e eticamente comple‑
xas, representando por vezes classes sociais que se tornarão frequentes, mais tarde,
na época do realismo. O Anfitrião, no drama, Michael Kohlhaas e A Marquesa de O...
(1810), na narrativa, são exemplos de uma obra curta, original, solitária e inclassifi‑
cável, mas de um brilho ainda intenso. (Fernanda Gil da Costa)
HENRIK IBSEN (Skien, 1828 – Oslo, 1906) é um dos nomes maiores da tradição
dramática realista, em grande medida fundando o teatro moderno. Nascido na No‑
ruega, à altura território governado pela Dinamarca, escreveu sobretudo em dina‑
marquês, evoluindo ao longo da sua carreira para uma linguagem mais próxima da‑
quela do seu país nativo. Afastando‑se da herança romântica de uma prática teatral
moralizante, Ibsen procura retratar as vicissitudes da vida familiar burguesa, os re‑
ceios e indignidades que ocorrem em privado. Duas das suas obras mais importan‑
tes estão incluídas nesta antologia, Casa de Bonecas (1879), retratando as dificuldades
de realização pessoal encontradas pelas mulheres no século xix. (Simão Valente)
depois de viver mais de uma década no país para onde se expatriou devido a proble‑
mas familiares, a seguir a uma longa viagem, com aspirações espirituais, ao Oriente.
A relação aberta com formas alternativas de espiritualidade, que se seguiu à rigidez
de uma educação religiosa tradicional, marca indelevelmente a obra do autor de
Siddhartha (1922), romance directamente inspirado por uma viagem à Índia, no qual
se revela preponderante o interesse do escritor pela teosofia e pelo Budismo. Esta
atracção pelo que transcende ou desafia os limites do humano influenciará ainda
outra das suas obras mais célebres: O Lobo das Estepes (1927). Hesse foi galardoado
com o Prémio Nobel da Literatura em 1946. (Amândio Reis)
HERTA MÜLLER (1953‑) foi Prémio Nobel da Literatura em 2009. Nasceu na al‑
deia de Ni chidorf (Roménia), no seio de uma minoria de língua alemã, na região do
Banat. A sua obra, novelística, poética, ensaística, ressuma a dura atmosfera do pós
‑guerra e do regime totalitário do ditador Ceau escu, onde imperam a repressão, o
controlo, o silêncio e o medo. A sua escrita é simultaneamente biográfica e universal
e começa a projectar‑se internacionalmente sobretudo depois de se ter exilado em
Berlim, em 1987 — biográfica, pelo pano de fundo pessoal e familiar (os campos de
trabalho soviéticos, o meio rural romeno, as visitas e interrogatórios da Securitate,
o colaboracionismo dos alemães do Banat); universal, pelo carácter muitas vezes
parabólico, pelo rompimento de fronteiras entre o real e o fantástico, pela constru‑
ção fragmentária ou elíptica e pela coexistência multicultural e multilinguística, de
que, no conjunto das mais de duas dezenas de obras publicadas, Atemschaukel (2009,
Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo) é o mais acabado exemplo. (Fernanda Gil Costa)
que constitui o seu opus magnum, da Comédie Humaine — um longo fresco social e
psicológico da sociedade pós‑napoleónica, na primeira metade do século xix. Criou
personagens inesquecíveis, muitas das quais dão título ao romance que protagoni‑
zam, como Le père Goriot, Eugénie Grandet ou La cousine Bette. A sua densa e complexa
análise psicológica permite reencontrar personagens inseridas numa complexa teia
social e de afectos, expondo com destreza os fundamentos e os desvios da sociedade
burguesa, o núcleo familiar sobre que assenta, e os valores do capitalismo emergen‑
te. Balzac é ainda um mestre na análise da materialidade do mundo que o século xix
ostenta, dando origem a descrições que são uma característica maior do seu estilo.
(Helena Carvalhão Buescu)
HORÁCIO (65 a.C. – 8 a.C.). Considerado por muitos como o maior poeta líri‑
co de Roma, Quinto Horácio Flaco escreveu as Odes, Sátiras, Epodos e Epístolas. De
entre as Epístolas salienta‑se, pela sua importância na produção teatral europeia, a
Epistula ad Pisones, mais conhecida por Arte Poética, designação que já encontramos
em Quintiliano, em que veicula conceitos aristotélicos de unidade dinâmica e de
verosimilhança, mas a que junta um desejo de perfeição formal que vem da tradição
alexandrina, num tom prescritivo. A sua poética teatral tornou‑se cânone inevitável
a partir do Renascimento, moldando formalmente a tragédia europeia, que seguiu
escrupulosamente os seus preceitos. A elaboração, o requinte aristocrático, o epi‑
curismo confessado das suas odes, filosofia de vida cristalizada em fórmulas como
o célebre carpe diem ou o encómio da aurea mediocritas, deram‑lhe um renome e uma
influência que haviam de perdurar na república das letras. (Luís Cerqueira)
IOAN ES. POP (1958) é natural da região romena de Maramureş. Durante seis anos
estudou na aldeia de Ieud (Maramureş), ponto de partida do seu primeiro volume
de poesia. Desde o ano de 1989, Pop vive em Bucareste, onde trabalha como jorna‑
lista e editor. Em 1994, fez a sua estreia literária com o volume Ieudul fără ieşire («O
Ieud sem Saída»), seguido depois por Porcec em 1996, Pantelimon 113 bis, em 2000, e
a antologia Podul («A Ponte»), em 2000. Publicou igualmente os volumes de poe‑
sia Rugăciunea de antracit («A Prece de Antracite»), Confort 2 îmbunătăţit («Conforto
2 Melhorado», em colaboração com o poeta Lucian Vasilescu), Unelte de dormit
(«Utensílios de Dormir») ou Căderea-n sus a corpurilor grele («A Queda para Cima dos
Corpos Pesados»). (Corneliu Popa)
IRIS MURDOCH (Dublin, 1919 – Oxford, 1999) foi uma escritora e filósofa
anglo‑irlandesa, particularmente reconhecida pela precisão e finura dos estu‑
dos psicológicos das personagens dos seus romances. Professora de Filosofia na
Universidade de Oxford, com trabalho especificamente na área da moral, afir‑
mou-se contudo pela literatura de ficção junto do grande público, tendo tido
grande sucesso desde a sua primeira publicação, Sob a Rede (1964). Consagra-se
com O Mar, O Mar (1978), romance vencedor do Prémio Booker, o mais importan‑
te do Reino Unido. Transcrevemos aqui um excerto de Os Olhos da Aranha (1956),
romance cuja personagem principal, Mischa Fox, é vista como uma representa‑
ção do escritor Elias Canetti, igualmente representado nesta antologia. (Simão
Valente)
ITALO CALVINO (Santiago de las Vegas, 1883 – Siena, 1985) cresceu entre a Ligú‑
ria e Turim, capital do Piemonte e importante centro cultural italiano. É nessa ci‑
dade que amadurece intelectual e politicamente, participando na resistência à ocu‑
pação nazi e, na sequência da guerra, trabalhando para a editora Einaudi, ainda hoje
uma das mais importantes em Itália. Mantém ao longo da sua obra um interesse em
usos do fantástico com implicações existenciais, algo que se manifesta na trilogia
O Visconde Cortado ao Meio (1952), O Barão Trepador (1957) e O Cavaleiro Inexistente
(1959). Na recta final da sua carreira, Calvino produz obras marcadas pelo experi‑
mentalismo formal pós‑moderno, do qual são exemplo As Cidades Invisíveis (1972) e
Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979). (Simão Valente)
IVAN TURGUÉNIEV (Oryol, 1818 – Bougival, 1883). Embora seja hoje conside‑
rado um dos maiores nomes da literatura realista na Rússia do século xix, não foi
popular junto dos seus pares, entre os quais Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói, devi‑
do ao seu manifesto interesse pela arte, pela cultura, e pelas estruturas políticas da
Europa Ocidental e Central. Viveu em Baden‑Baden e em Paris, onde desenvolveu
uma amizade com autores como Gustave Flaubert. Não obstante, a sua obra lida
com a Rússia do seu tempo, notavelmente Pais e Filhos (1862), escrito segundo os
pressupostos realistas promovidos pelo influente crítico Vissarion Belínski. A so‑
fisticação do trabalho de Turguéniev com a focalização e o ponto de vista, desen‑
volvido em Primeiro Amor (1860), suscitou o interesse particular de vários autores
precursores do modernismo literário, tais como Joseph Conrad ou Henry James,
que lhe dedicou cinco ensaios. (José Bértolo)
IVO ANDRI (1892-1975) foi um poeta e autor de origem bósnia, laureado com
o Prémio Nobel da Literatura em 1961. Tendo nascido sob a ocupação austríaca da
Bósnia, Andrić viu suceder-se ao poder austríaco um reino jugoslavo que culminaria
na formação da República Socialista e Federal da Jugoslávia. Preso por suspeita de
envolvimento no assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, ainda
que as poucas provas apresentadas não fortalecessem a acusação, o autor viria mais
tarde a ocupar cargos de cerimónia na estrutura social jugoslava. A sua obra reflecte
um conhecimento profundo do meio em que cresceu, com uma aguda consciência
da sempre pendente indiferença perante o outro. (Francisco Marques)
lelo, tem também uma linha de romances autobiográficos. Kross trabalhou também
como tradutor, sobretudo do russo, inglês e francês. É comparável a Thomas Mann
na sua estética e ambição polifónica. O Louco do Czar, do qual reproduzimos um ex‑
certo, é um exemplo da veia de romance histórico do autor, tendo lugar no reinado
do czar Alexandre I. (Simão Valente)
JACQUES PRÉVERT (1900‑1977) foi um poeta francês que marcou uma tradição
da poesia novecentista, tendo ainda colaborado como letrista e escritor de guiões
para o cinema e o teatro. As suas obras, sobretudo Paroles (1946) e Spectacle (1951),
dão conta de uma poesia baseada no diálogo, ditada pelo reconhecimento de que a
linguagem familiar e quotidiana contém um conjunto de possibilidades de lingua‑
gem poética, que Prévert explora em particular através de jogos de palavras, de si‑
nestesias e do uso de listas caóticas (e, por isso, surpreendentes). (Helena Carvalhão
Buescu)
romance fantástico, gótico, picaresco e filosófico, foi traduzido para várias línguas
europeias, sendo muito apreciado pela crítica contemporânea. (Teresa Fernandes
Swiatkiewicz)
JAROSLAV HAŠEK (Praga, 1883 – Lipnice nas Sázavou, 1923). Na obra deste autor
checo, e na literatura europeia do século xx, o romance picaresco O Bom Soldado
Švejk (1921‑1923) é um ponto alto da sátira a figuras de autoridade, especificamen‑
te no âmbito militar. Desde cedo Hašek demonstrou o inconformismo que viria a
caracterizar a personagem principal do seu romance, participando em actividades
anarquistas e lutando contra o domínio austro‑húngaro da sua Boémia nativa. Não
obstante, participa — a tal forçado — na Primeira Guerra Mundial, no Exército
austríaco, uma experiência que viria a fornecer grande parte do material de O Bom
Soldado Švejk, cujo protagonista procura reiteradamente subverter o nacionalismo
e militarismo da sua sociedade, deparando‑se com personagens pomposas que uma
e outra vez são expostas ao ridículo pelas suas acções. (Simão Valente)
imediatamente traduzida para uma audiência europeia, com Robert Musil, Rainer
Maria Rilke, Sigmund Freud e Arnold Schönberg entre os seus admiradores. Niels
Lyhne (1880) é o seu romance mais conhecido. Com o seu debate sobre o ateísmo e a
posição do homem solitário e alienado num mundo materialista, o romance é bem
filho do seu tempo, mas o seu estilo capaz de descrever uma complexidade emocio‑
nal fluida, com nuances perceptíveis finamente pormenorizadas, pertence também
ao modernismo novecentista. (Svend Erik Larsen)
JOÃO DA CRUZ (Fontiveros, 1542 – Úbeda, 1591), nascido Juan de Yepes, perten‑
cia a uma família de conversos e optou pela vida religiosa aos 21 anos de idade. He‑
sitante quanto à ordem em que devia professar, um encontro com Teresa de Ávila
aproxima‑o do Carmelo Descalço e leva‑o a fundar em Duruelo o primeiro conven‑
to masculino da reforma teresiana (1568). Toma então o nome de Juan de la Cruz e
inicia intensa actividade em defesa da causa comum, que lhe valeu várias prisões.
Num desses períodos de cativeiro, compôs de memória boa parte do Cântico Espiri‑
tual, uma das grandes peças do corpus poético que faz dele o maior místico espanhol.
Canonizado em 1726, foi elevado a Doutor da Igreja em 1926. As «Coplas da alma
que sofre por ver a Deus» glosam versos glosados também por Teresa de Ávila. (Cris‑
tina Almeida Ribeiro)
JOHN KEATS (Londres, 1795 – Roma, 1821). «Here lies one whose name was writ
in water» («Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito na água») é o epitáfio que se pode
ler no túmulo, no cemitério protestante em Roma, deste poeta inglês cuja obra viria
a ser reconhecida, sobretudo, depois da sua morte precoce. A par de Lord Byron e
Percy Bysshe Shelley, John Keats é um poeta fundamental do romantismo inglês.
«Hyperion», «Ode a um rouxinol» e «Ode a uma urna grega» são exemplares da sua
obra que conjuga a busca pela perfeição na poesia com as temáticas da natureza e da
exaltação das complexas emoções humanas. (Miriam de Sousa)
JULIAN TUWIM (Łódź, 1894 – Zakopane, 1953) é um poeta polaco de origem ju‑
daica. A sua escrita é de âmbito experimental, alinhada com o modernismo europeu
do início do século xx e frequentemente assumindo uma personagem satírica. É de
particular relevo a sua produção de escrita para crianças, como é o caso do poema
aqui representado, «Os óculos», um clássico da literatura infantil europeia. (Simão
Valente)
especialmente viva quanto aos seus encontros com as populações indígenas, senti‑
das como diferença radical. A dupla perda, do seu país natal e da sua vida em África,
transforma‑se assim num processo identitário. (Svend Erik Larsen)
KNUT HAMSUN (Lom, 1859 – Grimstad, 1952) foi um autor norueguês, vencedor
do Prémio Nobel da Literatura em 1920. Em reacção ao realismo e naturalismo vi‑
gentes no final do século xix na literatura europeia, Hamsun foi um dos pioneiros
da procura de uma representação literária não do real ou de condições sociais, mas
sim dos processos mentais do ser humano. Em larga medida antecipou técnicas de
escrita modernistas mais comummente associadas às décadas de 10 e 20 do século
xx, especificamente o fluxo de consciência de James Joyce ou Virginia Woolf. A sua
obra mais traduzida é Fome (1890), cujo protagonista deambula por uma metrópole
moderna, alienado do que o rodeia pela sua extrema pobreza. Se por um lado, a nível
temático, é uma continuação de Crime e Castigo de Dostoiévski, por outro prefigura
as obras de Kafka e Schulz. (Simão Valente)
LEOPOLDO ALAS «CLARÍN» (Zamora, 1852 – Oviedo, 1901) foi um dos mais in‑
fluentes escritores espanhóis do final do século xix. Jurista de formação, professor
LOUIS PAUL BOON (Aalst, 1912 – Erembodegem, 1979), nascido na Flandres, es‑
creveu poesia, romances e crónicas. Foi também crítico literário e pintor. Durante
a Segunda Guerra Mundial foi mobilizado, preso pelos alemães e deportado para
perto de Hanôver, onde permaneceu quatro meses. Apreciado pela sua prosa re‑
novadora, descreveu as suas experiências durante a guerra em Mijn Kleine Oorlog
(«A Minha Pequena Guerra», 1947), livro composto por mais de 30 crónicas em tor‑
no de diversas personagens. As suas obras mais conhecidas são De Kapellekensbaan
(«O Caminho de Kapelleken», 1953) e Menuet («Minueto», 1955). Em 1992, o filme
Daens, de Stijn Coninx, baseado no romance Pieter Daens sobre a luta do proletaria‑
do de Aalst, liderado por Daens, sacerdote católico, e tendo como pano de fundo a
questão linguística, foi nomeado para o Oscar de melhor filme estrangeiro. (Patrícia
Couto)
LUCRÉCIO (94 a.C. – 51/50 a.C.). São escassas as informações que temos sobre a
vida do autor e contraditórias entre si. Lucrécio escreveu o De Rerum Natura, o poe‑
ma filosófico‑didáctico mais extenso e mais importante que a Antiguidade nos le‑
gou. Lucrécio anuncia aos Romanos, com fervor de apóstolo da salvação, a doutrina
de Epicuro (342‑271 a.C.), de que a sua obra é a exposição mais completa que chegou
até nós. O materialismo e o atomismo têm fonte grega, em Leucipo, Demócrito e
Epicuro, mas os textos são escassos e fragmentários, daí a importância deste legado
romano. (Luís Cerqueira)
autora negou fazer parte, tal como recusou ser chamada feminista. O minimalismo
de Duras estabelece frequentemente uma triangulação entre os topoi desejo, loucu‑
ra e silêncio, como é o caso de Moderato Cantabile, onde encontramos os eixos rele‑
vantes da obra durasiana: o diálogo como dispositivo narrativo; a relação amorosa
impossível e o desejo erótico não concretizado; e a morte. A novela expõe o carácter
irresolúvel do encontro amoroso atravessado pela degeneração das suas instâncias
comunicativas, sentimentais e violentas, reflectindo ao mesmo tempo sobre a pró‑
pria representação literária enquanto lugar privilegiado de questionamento políti‑
co, ético e poiético. (Rafael Esteves Martins)
MICHEL BUTOR (1926‑2016), autor de uma obra ecléctica (romance, ensaio, poe‑
sia, teatro, ópera), fez parte dos «novos romancistas» dos anos 50 e com La modifica‑
tion (1957) deu um contributo decisivo para a notoriedade do movimento. No início
do romance, o protagonista apanha o comboio Paris‑Roma para ir ter com a sua
amante romana, decidido a levá‑la para Paris e abandonar a mulher. Compartimen‑
to e duração da viagem conferem unidade espácio‑temporal à narrativa iniciática
que explica por que razão, no final, Delmont volta para a família, deixando Cecília
em Roma. O relato na segunda pessoa do plural propicia que o sujeito conte a al‑
guém algo ainda não verbalizado, que ele próprio desconhece. Romance da tomada
de consciência desse sujeito, actualiza a ideia da escrita como instrumento que não
representa a realidade, antes a revela no que tem de mais profundo e menos imedia‑
to. (Eugénia Leal)
ca, que podemos aliás encontrar no seu romance mais conhecido, A Insustentável
Leveza do Ser (1983), mas que na sua obra mais recente, como A Imortalidade (1990),
se torna mais densa e nuclear. O que é o acaso? Como se tece uma vida? Quais as
fragilidades que formam as relações entre os humanos? Eis algumas das questões de
Kundera. (Helena Carvalhão Buescu)
MOLIÈRE (Paris, 1622-1673), de seu nome Jean-Baptiste Poquelin, foi um dos dra‑
maturgos mais importantes da sua época, sendo continuamente encenado até hoje.
A sua ligação ao teatro expressou-se também como encenador e actor. Distinguiu-
se por uma forma de comédia complexa, que faz entrar, na dramaturgia francesa,
as personagens e o mundo de uma burguesia ridícula, em detrimento da inspiração
mitológica e clássica. Estas comédias têm ainda uma densa componente trágica,
pelo retrato de uma série de «paixões» que obcecam os protagonistas: a misantropia
(Le misanthrope), a ascensão social (Le bourgeois gentilhomme), a hipocondria (Le ma‑
lade imaginaire), a obsessão sexual (Don Juan ou le festin de pierre), a avareza (L’avare)
e muitas outras. No excerto escolhido, encontramos uma das cenas que caracteriza
o burguês arrivista, que resolve ter lições e julga descobrir as maiores platitudes
(como «falar em prosa»), que o deixam muito orgulhoso. Molière retrata, nas suas
comédias, uma sociedade em que o Ancien Régime se aproxima do seu final, e as
ODYSSÉAS ELYTIS (Heraklion, 1911 – Atenas, 1995) nasceu numa família abas‑
tada, de apelido Alepoudhelis, que em 1914 trocou Creta por Atenas, onde Elytis
frequentou Direito. Pertencente à Geração de 30, tal como Seféris, estreou‑se
como poeta na revista Néa Grámmata, num quadro de renovação das letras gregas.
OSCAR WILDE (Dublin, 1854 – Paris, 1900) é um dos mais conhecidos escritores
irlandeses, notabilizando‑se numa variedade de géneros literários, incluindo teatro,
romance e poesia, combinando a sátira dos costumes da alta sociedade e um uso
da linguagem para efeitos humorísticos com teorização estética. Conhecendo um
grande sucesso ainda em vida, com peças como Uma Mulher sem Importância (1893)
ou A Importância de se Chamar Ernesto (1895), Wilde, que era homossexual, foi pro‑
tagonista de um escândalo que resultou na sua condenação a dois anos de trabalhos
forçados por atentado à moral, devido às leis vigentes no período a proibir a prática
de actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O seu romance O Retrato de Dorian
Gray (1890) denuncia os vícios escondidos pelas classes altas britânicas sob a justifi‑
cação de práticas artísticas. (Simão Valente)
PAUL CELAN (pseudónimo de Paul Antschel, Czernowitz, 1920– Paris, 1970) nas‑
ceu numa cidade da Roménia, que viria a ser ocupada pelas tropas russas em 1940
e pelos alemães em 1942. Após ter sobrevivido ao Holocausto, mudou‑se para Paris
em 1948, onde viria a cometer suicídio em 1970. A experiência da Shoah marcou de
forma trágica e indelével a sua produção poética. De Mohn und Gedächtnis (1952) a
Litchzwang (1970), esta é uma poesia que se afirma no limite do dizível. Numa arte
poética que combina magistralmente uma opacidade elíptica e uma poética do en‑
contro, a obra celaniana sonda a aporia entre trauma e representação, oferecendo
uma resposta ao dictum adorniano da impossibilidade da lírica após Auschwitz. Se o
poema «Fuga da morte» constitui um testemunho trágico de representar a barbárie
e a desumanização, já «Salmo» ensaia, através de uma oração negativa, um diálogo
impossível com a transcendência. (Ricardo Gil Soeiro)
PERCY BYSSHE SHELLEY (Sussex, 1792 – Livorno, 1822). Poeta romântico in‑
glês que, juntamente com Lord Byron e John Keats, se consagrou como um dos
grandes autores do romantismo na literatura. A sua vida foi marcada pela inquietu‑
de, pela rebeldia e pela devoção aos ideais românticos. O poeta teve um fim trágico,
falecendo afogado num acidente de barco, antes de cumprir 30 anos, quando estava
em Itália. As obras «Prometheus unbound», «The cency» e «Hymn to intellectual
beauty» são cristalizações da estética romântica. (Miriam de Sousa)
PIER PAOLO PASOLINI (Bolonha, 1922 – Ostia, 1975) foi um dos mais represen‑
tativos e polivalentes intelectuais da Itália do pós-guerra, um período de crescimen‑
to económico e sangrentas lutas políticas, culminando na década de 70, os chama‑
dos «anos de chumbo». Católico, comunista e homossexual, a vida e obra de Pasolini
foram um caso de constante empenho político e social através de várias formas de
arte: cinema, poesia, teatro, romance. Foi assassinado nos arredores de Roma, num
crime até hoje não completamente esclarecido. O poema aqui transcrito, «A bala‑
da das mães», é retirado do seu livro Poesia in Forma di Rosa (1964), uma obra que
reflecte a desilusão do autor face aos excessos do capitalismo e às contradições do
comunismo na sociedade italiana dos anos 50 e 60. (Simão Valente)
PLATÃO nasceu em Atenas em 427 a.C., oriundo de uma família aristocrática. Vida
e obra foram muito marcadas pelos acontecimentos políticos ocorridos no final do
século v e início do iv, nomeadamente, a vitória de Esparta, em condições humi‑
lhantes para Atenas, em 404, e a condenação de Sócrates, de quem foi o principal
discípulo, pelo tribunal dos Heliastas em 399, acusado de corromper a juventude e
de descrer nos deuses da cidade. A questão da morte do homem justo às mãos da
cidade injusta é um tema que atravessa o seu pensamento. Depois de uma primeira
viagem que o levou ao Egipto e à Sicília (390‑388), Platão fundou a Academia, a es‑
cola platónica, associação que persistiu até à época de Justiniano (529) e onde pôde
desenvolver o seu magistério. Independentemente da questão referente ao ensino
esotérico e exotérico, bem como a problemas relativos à autenticidade de alguns
textos (é o caso, por exemplo, das Cartas), Platão deixou‑nos uma vasta obra, consti‑
tuída por inúmeros diálogos, cuja influência literária e filosófica nunca se extinguiu.
(José Pedro Serra)
PRIMO LEVI (Turim, 1919‑1987). Apesar de oriundo de uma família judia, só com
a ascensão da ideologia anti‑semita tomou consciência de si como judeu. Em 1943,
aderiu ao Partito d’Azione e foi detido. Em Fevereiro de 1944 foi deportado para
Auschwitz. Doutorado em Química, conseguiu trabalhar no laboratório de Mo‑
nowitz. A escarlatina salvou‑o da marcha da morte. Na sequência da libertação do
campo, em Janeiro de 1945, empreendeu a viagem de volta a Itália, onde chegou em
Outubro do mesmo ano. O testemunho da experiência concentracionária é veicula‑
do principalmente através de três obras: Se questo è un uomo (Isto É Um Homem, 1947),
retrato dos meses passados em Auschwitz; La tregua (A Trégua, 1963), relato do pé‑
riplo de regresso a Itália, e I sommersi e i salvati (Os Que Sucumbem e os Que se Salvam,
1986), reflexão acerca da condição do homem no lager. (Fátima Fernandes da Silva)
RENÉ CHAR (1907-1988) foi um dos maiores poetas franceses do século xx.
Publicou numerosas recolhas poéticas, depois da sua estreia, em 1928, com Les clo‑
ches sur le coeur, e de várias colaborações com os surrealistas franceses. A partir dos
anos 30, a sua poesia lírica, sem perder uma condição sintáctica e semanticamente
complexa, que caracterizará sempre o seu dizer poético, torna-se progressivamen‑
interesse pela ténue fronteira entre o bem e o mal, a tal ponto que a expressão ingle‑
sa «Jekyll and Hyde» passou a designar uma personalidade de duas faces, uma boa e
outra má. É esse interesse pelo mal que, desde as últimas décadas do século xx, tem
atraído um olhar renovado sobre a obra de Stevenson. (Teresa Casal)
SAFO (c. 617 a.C. – c. 570 a.C.). Nome cimeiro da poesia grega arcaica — constava
do cânone alexandrino de nove poetas líricos —, a biografia de Safo mantém con‑
tornos indecisos e foi objecto de efabulações. O seu nascimento, na ilha de Lesbos,
provavelmente em Mitilene, ocorreu entre 617 e 612 a.C. e é muito provável que a
sua morte tenha ocorrido entre 570 e 560 a.C. Oriunda de uma família aristocrata,
Safo, na sequência dos conflitos políticos que então se viviam na ilha, foi exilada
para a Sicília, de onde regressou entre 586 e 585. É aí, em Lesbos, que as suas rela‑
ções com companheiras e amigas se tornam famosas. A enciclopédia bizantina Suda
(século x) acusa‑a de um «amor vergonhoso», dando a entender que as relações com
as suas companheiras, para além do aspecto literário, incluíam uma componente se‑
SAMUEL BECKETT (1906‑1989). Mais espirituoso do que na maior parte das ve‑
zes se lembra, À Espera de Godot é peça central num período definidor na obra deste
autor, iniciado em 1946, quando o irlandês passa a escrever sistematicamente em
francês e se afasta em definitivo da opressiva influência de Joyce. É Godot, o ciclista
francês dos anos 40, de primeiro nome Roger, ou o Godeau de Balzac, por quem
Mercadet espera para resolver impasses financeiros? As múltiplas leituras a que a
peça deu origem ilustram a amplitude de abordagens de que a obra de Beckett foi
alvo. A obra esquiva‑se e Vladimir e Estragon tanto são herdeiros dos desajeitados
pares do vaudeville como variações das almas que purgam na Divina Comédia. A mes‑
ma dinâmica de pares continua em Dias Felizes. (Raquel Morais)
modo como a poesia surge da relação entre solo e memória, história pessoal e co‑
lectiva, esse primeiro poema aponta já para as «preocupações» (1980) da escrita de
Heaney, que culminarão na metáfora da «cadeia humana» que intitula a sua última
obra, Human Chain (2010). A responsabilidade ante as múltiplas histórias e tradi‑
ções herdadas agudiza‑se com a eclosão de conflitos sectários na Irlanda do Norte
(1968‑1998), que marca o volume North (1975). Distinguido com o Prémio Nobel da
Literatura em 1995, Heaney alia preocupações éticas e estéticas, sendo sensível à
pressão sentida pelos poetas na Irlanda do Norte para conciliarem «responsabilida‑
de social e liberdade criativa». (Teresa Casal)
SÉNECA (4-1 a.C. – 65 d.C) nasceu em Córdova, de onde era oriunda a família, e
suicidou‑se abrindo as veias numa banheira. Seu pai, Séneca, o Retor, escreveu uma
antologia de controvérsias e suasórias e seu sobrinho Lucano escreveu uma epopeia
sobre a guerra civil. Filósofo estóico, produziu textos em que expõe esta filosofia,
como o De Ira, o De Clementia, o De Uita Beata, o De Beneficiis, mas também tem uma
vasta produção teatral, que serve de veículo às ideias estóicas. Preservam‑se nove
tragédias, todas de tema mitológico. Interessou‑se também por questões científi‑
cas, escrevendo Naturales Quaestiones. Foi nomeado perceptor de Nero em 49 por
Agripina e terá sido conivente nos assassinatos de Britânico e da própria Agripina,
mais não fosse pelo seu silêncio, acabando por ser vítima da sua relação com o po‑
der. Foi muito estimado pelos Padres da Igreja, que viam no seu pensamento uma
proximidade com o cristianismo. (Luís Cerqueira)
SÓFOCLES (c. 495 a.C.), dramaturgo ateniense que, ao longo dos seus cerca de 90
anos, compôs mais de 120 peças (deste corpus apenas sete sobrevivem), arrebatando
SÓLON (638 a.C.?– 558 a.C.). Considerado um dos Sete Sábios da antiga Grécia e
um dos grandes legisladores de Atenas, juntamente com Drácon e Péricles, Sólon é
conhecido pelas reformas políticas que levou a cabo na cidade de Palas Atena, nomea‑
damente as que dizem respeito à abolição da escravidão por dívidas e à nova organi‑
zação censitária. Vivendo numa época em que os conflitos intestinos grassavam pelas
cidades gregas, Sólon procurou um equilíbrio social que evitasse o advento da tirania,
o que, por fim, não conseguiu impedir. Politicamente, as suas elegias — composições
constituídas por dísticos, um hexâmetro dactílico e um pentâmetro dactílico — re‑
flectem as suas preocupações políticas e éticas. Quanto à sua concepção da «euno‑
mia», a lei justa ou a boa lei, ela representa um significativo momento entre as ante‑
riores concepções de Hesíodo e as futuras reflexões de Ésquilo. (José Pedro Serra)
STÉPHANE MALLARMÉ (1842‑1891). «O mundo existe para ser incluído num li‑
vro», afirmou numa entrevista em 1891. E tudo, da matéria prosaica do «jornalismo»
(Crise de vers) às «artes» (Divagations, 1897), ou mesmo a «moda» (La dernière mode,
1874), foi matéria do seu trabalho de rarefacção do real pela escrita. Inscrevendo
‑se já num segundo momento do simbolismo pós‑verlainiano, para ele, na poesia,
tratava‑se não de «nomear» (imitar) mas de «sugerir». Escritor raro, na obra escrita e
publicada (Album de vers et de prose, 1888), Mallarmé concebeu um projecto de «livro»
(performático) total (Le livre de Mallarmé, 1957) que, em certa medida, constitui a
aura espectral do túmulo do seu filho (Pour un tombeau d’Anatole, 1861). Com Igitur e
Un coup de dés jamais n’abolira le hasard introduziu a modernidade (Apollinaire) a uma
concepção espacial de poesia. (Fernando Guerreiro)
TED HUGHES (West Yorkshire, 1930– Londres, 1988). Um dos mais importantes
poetas ingleses da segunda metade do século xx, escreveu também ficção, teatro e
livros para a infância, traduziu autores clássicos e organizou antologias fundamen‑
tais de outros poetas como Emily Dickinson, S.T. Coleridge ou Sylvia Plath, com
quem foi casado entre 1956 e 1963 (data do suicídio de Plath) e com quem teria dois
filhos, Frieda e Nicholas. De resto, a ele se deve a organização da poesia completa
de Plath, embora a sua relação com a poeta norte‑americana tenha sido objecto de
controvérsia. Desde a publicação, em 1957, de The Hawk in the Rain, o seu primeiro
livro de poemas, Ted Hughes seria consistentemente aclamado pela crítica, tendo
recebido vários prémios e distinções, como a Ordem de Mérito ou a Ordem do
Império Britânico. Foi nomeado poeta laureado em 1984, distinção que manteria
até à morte. (Ana Luísa Amaral)
TERESA DE ÁVILA (Ávila, 1515 – Alba de Tormes, 1582) nasceu numa família de
comerciantes de ascendência conversa e foi desde jovem marcada por uma sede de
verdade que alimentou os seus exercícios espirituais e a preparou para o ingresso
na vida monástica. A sua força interior revela‑se em 1562, quase 30 anos após ter
THÉOPHILE DE VIAU (Clairac, 1590 – Chantilly, 1626) teve uma vida breve e
aventurosa, marcada pela itinerância (numa companhia de teatro, 1611‑1613), pelo
exílio (1619‑1620), por uma condenação à morte executada em efígie (1623) e pela
prisão (1623‑1625), que se seguiu a uma frustrada tentativa de fuga para Inglaterra e
a que, encontrando‑se ele já muito debilitado, a intervenção do duque de Montmo‑
rency viria a pôr termo. Aclamado por uns, sensíveis ao seu génio, e perseguido por
outros, por razões políticas ou sob a acusação de libertinagem, foi poeta de corte e
dramaturgo e é hoje reconhecido como um dos grandes nomes do barroco francês.
Ilustrativa desta pertença, é, na fantasmagoria que dela emerge, a ode aqui repro‑
duzida, onde se multiplicam, num turbilhão, as imagens de um mundo às avessas.
(Cristina Almeida Ribeiro)
(1982) ou no texto dramático Minetti (1976). Toda a sua obra é uma crítica mordaz
ao conservadorismo da sociedade austríaca, sendo a sua escrita caracterizada pela
radicalidade de uma linguagem aparentemente trivial, assim como pelo pessimismo
obsessivo e louco dos seus protagonistas, como bem ilustra o excerto de O Sobrinho
de Wittgenstein: Uma amizade (1982) aqui apresentado. (Joana Moura)
THOMAS KINSELLA (Dublin, 1928). Poeta, tradutor, editor e professor, fez a ins‑
trução básica em gaélico e estudou Ciências e Letras na University College Dublin.
Autor prolixo, entre Another September (1958), a obra que lhe trouxe reconhecimen‑
to na Irlanda e no Reino Unido, e Late Poems (2013), Kinsella publicou mais de 30
volumes de poesia. Se a lírica inicial tinha ecos de W. H. Auden na sua elegância
formal, o interesse pelos modernistas americanos propiciou uma inflexão na sua
escrita, mais experimental a partir de Nightwalker and Other Poems (1968). Kinsella
fundou a editora Peppercanister Press, sendo também conhecido pelas suas tradu‑
ções do gaélico irlandês, designadamente The Táin (1969) e a antologia An Duanaire
1600‑1900: Poems of the dispossessed (1981). (Teresa Casal)
ciedade ideal. Com efeito, a palavra «utopia» é cunhada por More para dar nome à sua
ilha, vindo a partir de então a adquirir o significado que conhecemos. (Simão Valente)
TORQUATO TASSO (Sorrento, 1544– Roma, 1595), formado, num percurso iti‑
nerante, em várias cortes de Itália, cultivou desde cedo a poesia de tema cavalei‑
resco, emulando em parte o exemplo de seu pai, Bernardo Tasso, autor do Amadigi.
A ambição de Torquato Tasso, porém, era construir uma epopeia. Il Goffredo (título
original da obra que veio a ser publicada, em 1581, como Gerusalemme Liberata), um
«picciol mondo», surgiu como prodigiosa coincidentia oppositorum e suscitou contro‑
vérsia. Tasso, atento ao êxito do género romanzo, fez entrar na narrativa da primei‑
ra cruzada, junto com a racionalíssima personagem do chefe Goffredo, uma densa
intriga amorosa e, com ela, toda a instabilidade e maravilha das paixões. Sinais dos
tempos: o poeta que, acometido de demência ou «melancolia», sofreu a prisão en‑
tre 1579‑1586, quando de novo livre sujeitou a Gerusalemme Liberata a uma severa
autocensura ditada por escrúpulos religiosos e espirituais. Nascia assim, fruto de
pública e atormentada contrição, temendo a heresia e o pecado, a Gerusalemme Con‑
quistata (1593). (Isabel Almeida)
TUCÍDIDES (460 a.C. – 400 a.C.) foi um historiador e general ateniense cuja
obra magna é o relato da guerra entre Atenas e Esparta, conhecida como Guerra
do Peloponeso. A sua História da Guerra do Peloponeso é reconhecida como uma das
primeiras obras do género, distanciando‑se de Heródoto na forma como conce‑
be a História enquanto registo de uma agência humana, livre de preceitos divinos.
O excerto escolhido narra o discurso imperial de Péricles perante os atenienses,
onde justifica a relevância do sistema democrático da cidade. (Francisco Marques)
UGO FOSCOLO (Zante, 1778 – Londres, 1827). A vida deste autor é representativa
do cosmopolitismo do século xviii europeu: filho de pai veneziano e mãe grega,
Foscolo nasce na ilha de Zante, actualmente grega mas à altura parte da República
Veneziana. Fervoroso partidário da unificação de Itália, que só viria a ter lugar em
1861, Foscolo participa nas guerras napoleónicas chegando a combater do lado do
Exército imperial, visto pelo autor como potencial libertador da península italiana,
à altura dividida entre os domínios austríaco, papal e espanhol. É a sua actividade
política que o conduz ao estatuto de exilado no Reino Unido, onde viria a morrer.
A sua obra é de cariz nacionalista, romântico, sem, contudo, se afastar dos ideais
neoclássicos, deixando espaço a reflexões sobre as experiências de amor e exílio.
(Simão Valente)
UMBERTO ECO (Alessandria, 1932 – Milão, 2016) é um dos escritores italianos mais
conhecidos do grande público. Com um percurso que conjuga uma notável carreira
académica com a actividade literária, para além da intervenção cívica e o jornalismo,
Eco é um dos responsáveis pelo desenvolvimento da semiótica, a disciplina que estu‑
da sistemas de criação de significado para além da linguagem articulada, aquilo que
no âmbito da disciplina em causa se chama o signo. No campo estritamente literário,
a sua obra maior é sem dúvida O Nome da Rosa (1980), romance em que o autor faz uso
de uma narrativa policial para explorar o acto interpretativo, ou seja: como e em que
condições o indivíduo produz o seu significado a partir da leitura de um texto — ou
da análise dos traços deixados por um criminoso. (Simão Valente)
«VAGAMUNDO», que aqui traduz «The wanderer», é uma das mais inspiradas
composições líricas escritas em anglo-saxónico, dialecto literário do inglês antigo.
De data e autoria incerta, encontra-se registado num manuscrito de finais do século
x, denominado O Livro de Exeter (The Exeter Book). O cerne do poema, composi‑
ção lírica de tom elegíaco, é constituído por um conjunto de tópicos, resultado da
interpenetração de elementos pagãos e cristãos: a recordação nostálgica do passa‑
do; a lembrança de alegres festins e dos companheiros e parentes, apartados pela
distância ou pela morte e evocados através do motivo do ubi sunt?; a consciência
da privação de bens materiais; a amargura do afastamento do lar; o queixume dolo‑
roso pelo exílio que obriga a vaguear por terras e mares; enfim, a saudade da alegria
de outrora, em conflito com o presente de mágoa, ausência e solidão. (Júlia Dias
Ferreira e João Almeida Flor)
VANDA JUKNAITË (Papiliai, 1949) é uma escritora multifacetada, que alia à acti‑
vidade literária (como ficcionista, dramaturga e ensaísta) uma intervenção sustenta‑
da, com tradução editorial, junto de crianças com deficiência ou sujeitas a qualquer
forma de marginalização. Licenciada pela Universidade de Vilnius, tornou‑se, em
1975, docente da mesma universidade, vindo, em 2008, a ser distinguida com o Pré‑
mio Nacional da Lituânia para a Arte e a Cultura. A maternidade, tema central da
sua obra, adquire aspectos tocantes em O País de Vidro, novela publicada em 1995,
retomada aqui a partir de uma antologia da ficção lituana contemporânea. Metáfora
de um país imaginado, o excerto projecta no vínculo materno, em todas as suas im‑
plicações, fantasmas e esperanças da independência reconquistada em 1990. (Maria
Graciete Silva)
VERGÍLIO (70 a.C. – 19 a.C.), cujo nome foi corrompido em Virgílio, nasceu em
Mântua. Poeta ligado ao círculo de Augusto, exaltou na sua obra a grandeza de Roma
e o projecto de reconstrução nacional que o princeps pretendia levar a cabo, após a
sangria da Guerra Civil, com a batalha de Ácio. Escreveu três obras maiores: as
dez Bucólicas (ou Éclogas), poemas breves de ambiente campestre, imitando o grego
Teócrito, que havia criado o género; os quatro livros das Geórgicas, poesia didáctica
sobre o cultivo dos campos, a criação de gado e a apicultura; a Eneida, poema épico
sobre os errares de Eneias e as guerras deste em Itália, que miticamente explicam a
origem de Roma. O impacto de Vergílio na cultura europeia só é comparável ao da
Bíblia. É o clássico da Europa. (Luís Cerqueira)
VITTORIA COLONNA (Marino, 1492 – Roma, 1547) é uma das mais notáveis
escritoras de sonetos do Renascimento italiano. Originária da alta nobreza napo‑
litana, Colonna dedicou‑se à escrita de poesia de temática amorosa e religiosa, de
feição petrarquizante, num período em que frequentemente as mulheres eram re‑
legadas para uma posição secundária na produção literária. Simultaneamente, a sua
posição social permitiu que Colonna organizasse em seu torno, na ilha de Ischia, ao
largo de Nápoles, uma corte pela qual passaram escritores como Sannazzaro, Arios‑
to ou Castiglione. Foi, contudo, com Miguel Ângelo que Colonna veio ao longo
da vida a estabelecer uma profunda amizade, da qual é testemunha a longa corres‑
pondência entre os dois. Grande parte da sua poesia provém precisamente dessas
cartas. (Simão Valente)
VOLTAIRE (1694‑1778), de seu nome François‑Marie Arouet, foi um dos mais no‑
táveis representantes do Século das Luzes, cultivou todos os géneros, mas foram os
seus contos que melhor resistiram ao tempo, impondo‑se pelo humor e pela ironia
da crítica às instituições, à moral e à ignorância. Nesse contexto se inscrevem os
capítulos 5‑ 6 de Cândido, ou o Optimismo, obra onde o autor, através de Cândido, que
aceitava sem discussão quanto lhe diziam, e de Pangloss, que defendia «a razão sufi‑
ciente do melhor dos mundos possíveis», demonstra a ineficácia de uma harmonia
pré‑estabelecida. Visando libertar o leitor de preconceitos que tornam a vida into‑
lerável, o filósofo fez do romance arma contra a estupidez, sublinhando o ridículo
de situações como a decisão tomada pelos sábios da Universidade de Coimbra para
prevenir novos terramotos. (Eugénia Leal)
W.B. YEATS (1865‑1939). Um dos maiores poetas em língua inglesa do século xx,
era oriundo da minoria protestante anglo‑irlandesa que, desde o século xvii, de‑
tinha o poder político, económico, social e cultural na Irlanda. Nome cimeiro do
renascimento literário irlandês, Yeats defendeu e arriscou‑se a idealizar a cultura
irlandesa, e a sua obra poética e dramatúrgica sofreu a influência tanto do seu in‑
teresse por mitos e lendas celtas, como pelo teatro Noh japonês, o misticismo e o
ocultismo. Um dos fundadores do Teatro Nacional Irlandês, ou Teatro Abbey, que
visava estimular a criação de um repertório irlandês, o processo violento que con‑
duziu à independência da Irlanda, envolvendo conflitos armados e a partição da
ilha, levou Yeats a questionar‑se, sobretudo nos últimos poemas, sobre os eventuais
excessos de uma visão heróica e sacrificial da causa nacionalista. Senador no recém
‑criado Estado Livre Irlandês (1922), Yeats foi distinguido com o Prémio Nobel da
Literatura em 1923. (Teresa Casal)
W.H. AUDEN (York, 1907 – Viena, 1973), iniciais de Wystan Hugh, foi um poeta
modernista britânico, tomando proeminência no panorama literário internacio‑
nal na década de 30, influenciado por W.B. Yeats e T.S. Eliot. Educado em escolas
privadas e na Universidade de Oxford, Austen insurgiu‑se contra o sistema a que
pertencia com textos de pendor político em que traçava os impactos na consciência
individual causados pelas crises que assolavam a Europa e o mundo. Emigrou para
os Estados Unidos em 1939, adquirindo a cidadania norte‑americana, juntamente
com o romancista Chistopher Isherwood, com quem teria uma relação amorosa
durante o resto da sua vida. Auden é hoje conhecido por poemas como «Funeral
Blues» (1936) e «1 September 1939» (1939), mas a «Canção» (1939) que transcrevemos
é representativa de toda a sua obra. (Simão Valente)
narrativas orais tradicionais da Escócia, de que são exemplo obras como a colec‑
tânea de baladas Minstrelsy of the Scottish Border (1802‑1803), o poema The Lay of
the Last Minstrel (1805), ou de The Lady of the Lake (1810). Foi a poesia que fez de
Scott o escritor mais famoso da sua época. Todavia, foi sobretudo com a criação do
romance histórico que exerceu notável influência na literatura europeia. Por ser a
narrativa considerada um modo literário menor, começa por publicar os primeiros
romances anonimamente. Entre os seus romances mais famosos contam‑se Waverly
(1814), Guy Mannering (1815), Rob Roy (1817), Old Mortality (1816), The Heart of Mi‑
dlothian (1818), The Bride of Lammermoor (1819) ou Ivanhoe (1820). (Alexandra Assis
Rosa)
WILLIAM BLAKE (Londres, 1757‑1827) foi um poeta e artista visual inglês, notó‑
rio pelas suas obras concebidas numa totalidade que combina o texto poético com
o design gráfico. Com efeito, Blake, impressor e tipógrafo de profissão, desenvolveu
novas técnicas de gravura, nomeadamente a água‑forte em relevo com a utilização
de ácidos para corroer a matriz, permitindo uma aplicação da cor sobre o papel
mais matizada do que anteriormente. A sua poesia é de cariz fortemente fantástico,
tendo criado todo um panteão de seres sobrenaturais em obras como The Four Zoas
(1797‑1827) e Jerusalem (1804‑1820), frequentemente como alegorias para criticar
e refrear as piores características da revolução industrial. O seu poema «O tigre»
(1794), aqui transcrito, é exemplo da sua estética mística. (Simão Valente)
ZADIE SMITH (Londres, 1975) é filha de mãe jamaicana e pai inglês. Cronista
singular da contemporaneidade, foi considerada pela revista Granta, em 2003, uma
das 20 melhores romancistas da sua geração. O seu primeiro romance, White Teeth
(2000), distinguido com vários prémios, entre eles o Guardian First Book Award,
apresenta a multiculturalidade londrina, com grande abrangência temática (identi‑
dade, questões raciais e de género, ética e ciência). Também os romances The Auto‑
graph Man (2002), On Beauty (2005), NW (2012) e Swing Time (2016) foram premia‑
dos. É, ainda, autora de ensaios (Changing My Mind, 2009) e de contos, publicados
regularmente, por exemplo, na revista New Yorker. Defensora da necessidade de re‑
lações humanas com sentido numa época marcada pela histeria e superficialidade,
a sua ficção realista experimental e de cariz ético tem vindo a dar crescente atenção
à desigualdade social. (Teresa Cid)
ZORAN IVKOVI (Belgrado, 1948). Escritor e ensaísta, com uma obra acadé‑
mica e literária destacada nas áreas da literatura fantástica e de ficção científica.
A Biblioteca recebeu, em 2003, o prémio World Fantasy Award. «A biblioteca noc‑
turna» é um dos seis contos da obra premiada, que abordam a relação com a leitu‑
ra e a escrita no domínio do fantástico. O Livro (1999), O Escritor‑Fantasma (2009)
e O Grande Manuscrito (2012) são algumas das suas obras traduzidas para português.
(Miriam de Sousa)
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