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Helena Carvalhão Buescu é professora cate­

A mais ambiciosa Maria Graciete Silva é professora auxiliar apo­


drática de Literatura Comparada na Universidade das antologias em português sentada desde 2013, ano em que cessou funções
de Lisboa. É professora ou investigadora visitante
de prestigiadas universidades na Europa, EUA e
reúne textos literários de todo como docente do Departamento de Estudos Por­
tugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Huma­
Brasil. Tem mais de uma centena de ensaios publi­ o mundo em sete volumes. nas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora
cados e é autora de dezenas de livros, sendo o mais do Centro de Estudos Comparatistas, integra os
recente Experiência do Incomum e Boa Vizinhança. Depois dos primeiros livros dedicados à literatura escrita projectos ECHO: Poesia e Poetas do Cancionei­
Literatura Comparada e Literatura­‑Mundo (2013). originalmente em português, a antologia Literatura­‑Mundo ro Geral e Literatura­‑Mundo Comparada, ten­
Foi fundadora e directora do Centro de Estudos Comparada avança para a segunda parte — «O Mundo Lido: do coordenado, com Helena Carvalhão Buescu,
Comparatistas (Universidade de Lisboa) e perten­ Europa». Abarcando tradições literárias europeias muito di­ a participação do Centro no projecto europeu
ce ao conselho do Institute of World Literature. versas, que contribuem para os cânones mundiais da litera­ ELiCa: University and School for a European Lite­
É membro da Academia Europaea e membro­ tura, estes dois volumes incluem autores como Dostoiévski, rary Canon (2010­‑2012). É autora de ensaios e arti­
‑correspondente da Academia das Ciências de Lis­ gos diversos na área da literatura, e co­‑organizou,
Proust, Joyce, Cervantes, Woolf, Aristóteles, Yeats, Shakes­
boa. Foi distinguida com o Prémio Ensaio APE/ com Cristina Almeida Ribeiro e Helena Carvalhão
peare, Beauvoir, Baudelaire, Beckett, Pirandello, Tolstói,
Portugal Telecom. Buescu, a antologia Um Cânone Literário para a Eu‑
Shelley, Kafka, Goethe ou Szymborska, e textos fundado­ ropa (2012).
Cristina Almeida Ribeiro é professora catedrá­ res como A Bíblia ou a Ilíada, incluindo várias traduções até
tica da Faculdade de Letras da Universidade de Lis­ agora inéditas. Simão Valente é professor auxiliar convidado na
boa, no Departamento de Literaturas Românicas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
onde se dedica ao ensino de Estudos Franceses e «A segunda parte enceta o alargamento do projecto a um onde ensina Literatura Comparada. Doutorou­‑se
Hispânicos. É investigadora do Centro de Estudos conjunto de textos de literatura‑mundo traduzidos para em Línguas Medievais e Modernas na Universida­
Comparatistas, onde coordena o Grupo MORPHE português, neste caso relativos à Europa. Reconhece‑se, de de Oxford, onde foi leitor de português e co­
e dirige o projecto ECHO: Poesia e Poetas do Can­ assim, a importância da tradução na mundialização das li­ ‑director do Centro Camões. Anteriormente, obte­
cioneiro Geral. As suas principais áreas de interesse teraturas em português, o que pressupõe um imprescindí­ ve mestrados em Literatura Francesa e Comparada,
são a poesia tardo­‑medieval e as teorias e práticas vel diálogo com a primeira parte (e com a terceira, de outro pela Universidade de Estrasburgo, e em Estudos
da narrativa breve, a que respeitam as suas mais modo) que potencie a compreensão do contributo decisi­ Italianos, Ciências da Linguagem e Culturas Lite­
recentes publicações. É, desde 2015, colaboradora vo da Literatura‑Mundo Comparada: Perspectivas em Português rárias Europeias, pela Universidade de Bolonha.
do Grupo de Investigação e­‑LITE — Ediciones y para a construção de uma Europa não etnocêntrica. É, pois, É investigador no Centro de Estudos Comparatis­
Estudios de Literatura Española (UVigo) e, desde tas da Universidade de Lisboa, e está a preparar um
da articulação produtiva entre unidade e diversidade que se
2016, académica correspondente da Real Academia livro sobre a criação do cânone literário português.
faz este livro.»
Española.
—Da Introdução

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literatura­‑ mundo comparada:
perspectivas em português

‑­ ii­‑
o mundo lido: europa
(volume 4)

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literatura­‑ mundo c o mpar ada
p ersp ectiva s em po r t u g u ê s

coor dena çã o gera l: helena c ar val h ão b u e s c u

PARTE II

coordena çã o c ie n tífic a:
helena ca rva lhão b u e s c u
cristina a lmeida r ib e ir o
ma ria gracie t e s ilva
simã o va le n te

l i sb oa
tinta­‑ da­‑ china
MMXVIII

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Parceiros institucionais: Apoios:

Este trabalho é financiado


por fundos nacionais através da FCT —
Fundação para a Ciência e a Tecnologia,
I.P., no âmbito do projeto
UID/ELT/0509/2013

Este volume reproduz


© 2018, Centro de Estudos Comparatistas
os textos fixados nas edições
da Universidade de Lisboa
consultadas, e identificadas
e Edições tinta­‑da­‑china, Lda.
junto a cada texto.
Rua Francisco Ferrer, 6 A | 1500­‑461 Lisboa
21 726 90 28/29 | info@tintadachina.pt

www.tintadachina.pt

Título:
Literatura­‑Mundo Comparada: Perspectivas em português
II — O Mundo Lido: Europa (Volume 4)

Coordenação Geral:
Helena Carvalhão Buescu

Coordenação Científica de II — O Mundo Lido: Europa:


Helena Carvalhão Buescu, Cristina Almeida Ribeiro,
Maria Graciete Silva, Simão Valente

Coordenação Executiva de II — O mundo lido: Europa


Amândio Reis, Ariadne Nunes, Arijana Medvedec, Bruno Mourato, Camila Seixas e Sousa,
Cheila Sousa, Francisco Carlos Marques, Gonçalo Cordeiro, Inês Forjaz de Lacerda, Joana Moura,
João Gabriel, Miriam de Sousa, Patrícia Infante da Câmara, Rafael Esteves Martins

Composição: Tinta­‑da­‑china
Capa: Tinta­‑da­‑china

1.ª edição: Maio de 2018

isbn 978­‑989­‑ 671­‑428­‑4


Depósito Legal n.º 439097/18

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PARTE II
O MUNDO LIDO: E URO PA
( VOLU M E 4)

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ÍN DICE GERAL

(6) AMOR E EXPERIÊNCIA

Louis ARAGON
Aureliano 25

Ludovico ARIOSTO
[Que bela sois, senhora! Tanto, tanto], in Colóquio Letras 168-169:­
Imagens da poesia europeia ­– II 28

Jane AUSTEN
«Capítulos 1 e 2», in Orgulho e Preconceito 29

Charles BAUDELAIRE
«O convite à viagem», in As Flores do Mal 34

BERNARD DE VENTADOUR
[Ao ver mover a cotovia], in Colóquio Letras 164: Vozes da poesia europeia – II 36

Giovanni BOCCACCIO
«Dia 5, Novela IX», in Decameron 38

André BRETON
O Amor Louco 43

Charlotte BRONTË
Jane Eyre 46

Emily BRONTË
O Monte dos Vendavais 52

Lord BYRON
«Stanzas for Music», in Horas de Fuga 59

Geoffrey CHAUCER
«O conto da mulher de Bath», in Os Contos da Cantuária 60

Vittoria COLONNA
[Escrevo só p’ra aliviar o mal penoso], in Rime 65

Boris CRISTOV
«Meu cavalito», in O Canto e a Contenda 66

DANTE ALIGHIERI
«Canto V, Inferno», in A Divina Comédia 67

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Robert DESNOS
[Assim como a mão no instante da morte…], in Rosa do Mundo: 2001 poemas para
o futuro 71

Gustave FLAUBERT
A Educação Sentimental 72

Ugo FOSCOLO
[Os dias inteiros em longo e incerto], in Le Poesie 79

FRANCISCO DE ASSIS
«O cântico do Sol», in Oiro de Vário Tempo e Lugar — De Francisco de Assis a
Louis Aragon 80

J.W. GOETHE
A Paixão do Jovem Werther 81

Luis de GÓNGORA
[Coisas, Celalba, tenho visto estranhas], in Antologia da Poesia Espanhola do
«Siglo de Oro» 86

HADEWIJCH
«Poemas espirituais», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 87

Peter HANDKE
Os Belos Dias de Aranjuez — Um diálogo de Verão 89

Georg Philipp HARSDÖRFFER


«Dizei lá o que é o amor?», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 94

Heinrich HEINE
[Com mirtos e rosas, graciosos, galantes], in Rosa do Mundo: 2001 poemas
para o futuro 95

JAUFRÉ RUDEL
[Quando longos são os dias em Maio], in Colóquio Letras 164: Vozes da
poesia europeia – II 96

JOÃO DA CRUZ
[Vivo sem viver em mim], in Coplas da Alma Que Sofre por Ver a Deus 98

Friedrich Gottlieb KLOPSTOCK


«As rosas em cadeias», in Poesia de 26 Séculos: De Arquíloco a Nietzsche 100

Madame de LA FAYETTE
A Princesa de Clèves 101

Else LASKER­‑SCHÜLER
«Sulamita», in Baladas Hebraicas 103

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Tahir MUJI I
«viagem até­‑ao­‑fim», in Luna Lusitana 104

Ioan MURE AN
«O telhado», in Cartea Alcool 106

P. MUSTAPÄÄ
«O caçador de aves», in Poesía Nórdica 107

Boris A. NOVAK
«Os nossos pequenos­‑almoços», in Treze Poetas Eslovenos 108

NOVALIS
Os Hinos à Noite 109

OVÍDIO
«Narciso e Eco», in Metamorfoses 110

Francesco PETRARCA
[Era o dia em que ao sol descoloriam], in As Rimas de Petrarca 115
[Claras e frescas águas], in As Rimas de Petrarca 116

PLATÃO
O Banquete 119

Salvatore QUASIMODO
«Carta», in Três Momentos da Poesia Europeia: De Safo e Píndaro a Ungaretti
e Salinas 124

Francisco de QUEVEDO
«Amor constante para além da morte», in Antologia Poética 125

Jean de RACINE
«Acto 2», in Fedra 126

Pierre de RONSARD
[Vamos, meu bem, a ver se a rosa], in Alguns Amores de Ronsard 131

Christina ROSSETTI
«Um aniversário», in Poems and Prose 132

Umberto SABA
«A minha mulher», in Poesia (uma antologia de Il Canzionere) 133

William SHAKESPEARE
[Que és um dia de verão não sei se diga], in Os Sonetos de Shakespeare 136

SÓFOCLES
Antígona 137

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STENDHAL
«Capítulo XIX. A ópera cómica», in O Vermelho e o Negro 139

Torquato TASSO
«Na morte de Margarida Bentivoglio», in Rosa do Mundo: 2001 poemas
para o futuro 144

TERESA DE ÁVILA
[Vivo sem viver em mim], in Antologia da Poesia Espanhola do «Siglo de Oro» 145

Lev TOLSTÓI
«Capítulos 29­‑31», in Anna Karénina 147

Miguel de UNAMUNO
«Capítulo VIII», in A Tia Tula 156

Garcilaso de la VEGA
[Enquanto que de rosa e açucena], in Antologia da Poesia Espanhola
do «Siglo de Oro» 160

(7) HISTÓRIA E IDENTIDADE

Endre ADY
«A pedra lançada ao ar», in Antologia da Poesia Húngara 163

Ivo ANDRI
«Capítulo 1», in A Ponte sobre o Drina 164

ANÓNIMO
«Cantar de Mio Cid», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 172

Baldesar CASTIGLIONE
«Capítulos XXIV-XXVIII», in O Livro do Cortesão 173

Rosalía de CASTRO
[Sem ela viver não posso], in Antologia Poética: Cancioneiro rosaliano 179

Hugo CLAUS
«A Mãe», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 182

Joachim DU BELLAY
[Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem], in Poesia de 26 séculos:
De Arquíloco a Nietzsche 184

Umberto ECO
O Nome da Rosa 185

Odisséas ELYTIS
[Língua deram­‑me grega], in Louvada Seja (áxion estí) 193

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Günter GRASS
«A tribuna», in O Tambor de Lata 194

Kazuo ISHIGURO
Os Despojos do Dia 206

James JOYCE
Ulisses 211

Vanda JUKNAITÉ
«O país de vidro», in O País de Vidro: Antologia de ficção contemporânea 215

Halldór LAXNESS
«Capítulo 1. Kólumkilli», in Gente Independente 217

Tito LÍVIO
História de Roma. Ab urbe condita 222

Niccolò MACHIAVELLI
«Capítulo XVIII – De que modo deve ser mantida pelos príncipes
a palavra dada», in O Príncipe 227

Alessandro MANZONI
«Capítulo I», in Os Noivos 230

Hendrik MARSMAN
«Soberano», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 236

Pedrag MATVEJEVIT
Breviário Mediterrâneo 237

Adam MICKIEWICZ
«As estepes de Aquermã», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 239

Eugenio MONTALE
«A história», in Poesia 240

Thomas MORE
«Dos magistrados», in Utopia ou a Melhor Forma de Governo 241

Ioan Es POP
[há quatro gerações…], in Unelte de Dormit 243

Friedrich SCHILLER
«III Acto, cena IV», in Maria Stuart 244

Henryk SIENKIEWICZ
«Capítulo 1», in Quo Vadis? 249

Zadie SMITH
«O singular segundo casamento de Archie Jones», in Dentes Brancos 253

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SÓFOCLES
«Elogio de Atenas», in Édipo em Colono 258

SÓLON
«Eunomia», in Hélade: Antologia da cultura grega 260

Wisława SZYMBORSKA
«O campo da fome sob Jaslo», in Versos Polacos 262

TUCÍDIDES
«A oração imperial de Péricles: elogio dos mortos e do poder democrático»,
in História da Guerra do Peloponeso 264

VERGÍLIO
«Bucólica I», in Bucólicas 271

W.B. YEATS
«A ilha do lago de Innisfree», in Uma Antologia 274

(8) CONFLITO E VIOLÊNCIA

Anna AKHMÁTOVA
[Foi terrível viver naquela casa], in Só o Sangue Cheira a Sangue 277

Leopoldo ALAS «CLARÍN»


A Corregedora 278

ANÓNIMO
«O ataque de Grendel», in Beowulf 285

ANÓNIMO
La Chanson de Roland 289

Ludovico ARIOSTO
«Canto XXIII», in Orlando Furioso 292

W.H. AUDEN
[Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas], in Colóquio Letras 165:
Vozes da poesia europeia – III 295

Honoré de BALZAC
«Capítulo 9», in A Prima Bette 297

Thomas BERNHARD
O Sobrinho de Wittgenstein: Uma amizade 300

Louis Paul BOON


A Minha Pequena Guerra 303

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Bertolt BRECHT
Ti Coragem e os Seus Filhos. Crónica da Guerra dos Trinta Anos, in Teatro I 305

Georg BÜCHNER
«Cenas 30­‑31», in Woyzeck 309

Bartolomé de las CASAS


Brevíssima Relação da Destruição das Índias 311

Paul CELAN
«Fuga da morte», in Gedichte 313

Charles DICKENS
«Capítulo XXII», in Oliver Twist 315

Alfred DÖBLIN
«Um punhado de gente em volta do Alex», in Berlim Alexanderplatz:
A história de Franz Biberkopf 318

Fiódor DOSTOIÉVSKI
«Capítulo 6», in Crime e Castigo 321

Marguerite DURAS
Moderato Cantabile 325

George ELIOT
«O último conflito», in O Moinho à Beira do Rio 327

Heinrich Theodor FONTANE


«Capítulo XXXIII», in Effi Briest 328

Ugo FOSCOLO
[Não sou quem fui: morreu­‑me grande parte], Le Poesie 331

Jean GENET
As Criadas 332

William GOLDING
O Deus das Moscas 334

Graham GREENE
«Capítulo 1», in O Americano Tranquilo 338

Victor HUGO
«Livro Quarto — As boas almas», in Nossa Senhora de Paris 341

Attila JÓZSEF
«Noite de arrabalde», in Antologia da Poesia Húngara 345

Ismail KADARÉ
«Capítulo 1», in A Filha de Agamémnon 348

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Franz KAFKA
«À porta da lei», in Parábolas e Fragmentos 351

Imre KERTÉSZ
A Recusa 353

Heinrich von KLEIST


Michael Kohlhaas, o Rebelde 357

Karl KRAUS
«Acto V, cena 40», in Os Últimos Dias da Humanidade 359

Choderlos de LACLOS
«Cartas XCVI-XCVII», in As Ligações Perigosas 360

LAUTRÉAMONT
«Canto terceiro», in Os Cantos de Maldoror 367

Doris LESSING
A Erva Canta 369

Primo LEVI
Se Isto É Um Homem 373

Antonio MACHADO
[Odiosa mão traçou, oh minha Espanha], in Antologia da Poesia Espanhola
Contemporânea 377

Liliana MIHAILOVA
«O pequeno capote», in Gente Muito Simpática 378

Heiner MÜLLER
«A missão. Recordações de uma revolução», in A Missão
e Outras Peças 382

Herta MÜLLER
Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo 386

George ORWELL
«Capítulo I», in A Quinta dos Animais 388

Boris PASTERNAK
Doutor Jivago 391

Francesco PETRARCA
[Só, pensativo, o ermo descampado], in As Rimas de Petrarca 393
[Quando na erva fresca alvo pé vai], in As Rimas de Petrarca 394

Harold PINTER
«Acto I», in Feliz Aniversário 395

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Jacques PRÉVERT
«Barbara», in Palavras=Paroles 398

Mihail SADOVEANU
«Um drama na floresta», in Novos Contos Romenos 400

Arthur SCHNITZLER
O Tenente Gustl 403

Walter SCOTT
Ivanhoe 405

W.G. SEBALD
Austerlitz 409

SÉNECA
Medeia 412

William SHAKESPEARE
«Acto V», in Macbeth 415

Aleksandr SOLJENÍTSIN
Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch 418

August STRINDBERG
Menina Júlia: Tragédia em um acto 420

Dylan THOMAS
«A mão ao assinar este papel», in A Mão ao Assinar Este Papel 423

Lev TOLSTÓI
«Capítulos 10 e 11», in Guerra e Paz 424

Tomas TRANSTRÖMER
«Uma noite de Inverno», in Cinco Poetas Suecos (II) 431

Lucian VASILESCU
«Todos os espelhos», in Aproape. Atât de departe. Close. So far away 432

Lope de VEGA
«Fuenteovejuna», in Teatro de Lope de Vega 433

Stefan ZWEIG
O Mundo de Ontem: Recordações de um europeu 435

(9) LITERATURA E CONDIÇÃO HUMANA

Rafael ALBERTI
«Balada para os poetas andaluzes de hoje», in Antologia de Poesia Espanhola
Contemporânea 439

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Vicente ALEIXANDRE
«Na praça», in Antologia de Poesia Espanhola Contemporânea 440

Honoré de BALZAC
O Tio Goriot 442

Charles BAUDELAIRE
«Spleen», in As Flores do Mal 450

Simone de BEAUVOIR
O Segundo Sexo — Volume I. Os factos e os mitos 451

Samuel BECKETT
«Acto II», in En attendent godot 455

BERNARDO DE CLARAVAL
[Inclina para Ti, ó Deus], in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 460

Elizabeth Barrett BROWNING


«Substituição», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De São Francisco de Assis
a Louis Aragon 461

Pedro CALDERÓN DE LA BARCA


«Acto III, Cenas XVII­‑XIX», in A Vida É Sonho 462

Albert CAMUS
«Capítulo quinto», in O Estrangeiro 469

Elias CANETTI
Auto­‑de­‑Fé 473

Ion Luca CARAGIALE


«Segundo Acto», in A Carta Perdida: Peça em quatro actos 478

Camilo José CELA


«Capítulo sexto», in A Colmeia 482

Paul CELAN
«Salmo», in Gedichte 487

René CHAR
«Chant du refus — début du ‘partisan’», in Fureur et mystère 488

Paul CLAUDEL
«Cântico da vinha», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De São Francisco de Assis
a Louis Aragon 489

DANTE ALIGHIERI
«Canto XXXIII, Paraíso», in A Divina Comédia 491

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John DONNE
[Não te orgulhes, ó Morte, em te haverem chamado], in Colóquio­‑Letras
168-169: Imagens da poesia europeia –­ II 495

Fiódor DOSTOIÉVSKI
«Capítulo 10. Foi ele quem mo disse», in Os Irmãos Karamazov 496

T.S. ELIOT
«The Dry Salvages — IV», in Quatro Quartetos 501

ERASMO
«Capítulo XIII», in Elogio da Loucura 502

ESOPO
«O homicida», in Esopo — Fábulas (Antologia) 504

EURÍPIDES
Medeia 505

Dinu FLAMAND
[já não terás de encher de cera], in Sombras e Falésias 507

Gustave FLAUBERT
Madame Bovary 509

J.W. GOETHE
Fausto 519

Zbigniew HERBERT
«Notícias da cidade sitiada», in Escolhido pelas Estrelas: Antologia poética 524

E.T.A. HOFFMANN
«O homem da areia», in Contos Nocturnos 527

Friedrich HÖLDERLIN
[Quando eu era rapaz], in Sämtliche Werke und Briefe 532

Victor HUGO
«À Villequier», in Les Contemplations 534

Henrik IBSEN
«Acto 3», in Casa de Bonecas 540

Milan JESIH
«Pai nosso», in Treze Poetas Eslovenos 545

James JOYCE
Gente de Dublim 546

Franz KAFKA
A Metamorfose 548

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Konstantinos KAVAFIS
«Esperando os bárbaros», in 145 Poemas 551

Thomas KINSELLA
«Espelho em Fevereiro», in Estradas Secundárias 553

Barbara KORUN
[Tenho dois animais], in Treze Poetas Eslovenos 554

Karl KRAUS
[Não me perguntem em que andei ocupado], in Os Últimos Dias da Humanidade 555

Jean de LA FONTAINE
«A morte e o desgraçado», in 100 Fábulas de La Fontaine 556

Stanisław LEM
Solaris 557

Giacomo LEOPARDI
«Canto nocturno de um pastor errante da Ásia», in Cantos 562

Carl Johan LOHMAN


«Sobre o Tempo», in Colóquio Letras 164: Imagens da poesia europeia – II 565

André MALRAUX
A Condição Humana 566

Thomas MANN
A Montanha Mágica 571

John MILTON
«Paraíso perdido», in Horas de Fuga. Traduções de poesias inglesas e de outras línguas 583

Pico della MIRANDOLA


Discurso sobre a Dignidade do Homem 586

MOLIÈRE
«Acto I, cena 1», in O Misantropo 588

Alfred de MUSSET
«Acto III, cena 3», in Lorenzaccio 593

Cesare PAVESE
[Virá a morte e terá os teus olhos], in Três Momentos da Poesia Europeia:
De Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas 600

Milorad PAVI
«A história de Adão Ruhani», in Dicionário Khazar: Romance­‑enciclopédia
em 100 000 palavras 601

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Sándor PET FI
[Sorte, dá­‑me espaço…], in Antologia da Poesia Húngara 603

Francesco PETRARCA
[Pel’aura em fios de oiro era esparzido], in As Rimas de Petrarca 604

PLATÃO
«29a-30b», in Apologia de Sócrates 605

Jan POTOCKI
«História de Pacheco, o endemoninhado», in Manuscrito Encontrado
em Saragoça 607

Marcel PROUST
À la recherche du temps perdu. La prisonnière 613

Aleksandr PÚCHKIN
[É tempo, meu amigo, o coração cansou­‑se], in Poesia de 26 Séculos:
De Arquíloco a Nietzsche 619

Francisco de QUEVEDO
«Representa­‑se a brevidade do que se vive e quanto nada parece
o que se viveu», in Antologia Poética 620

Rainer Maria RILKE


«A primeira elegia», in Poemas; As elegias de Duíno; Sonetos a Orfeu 621

Arthur RIMBAUD
«Navio doido», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De São Francisco de Assis a Louis
Aragon 624

Pierre de RONSARD
[Qual no ramo se vê no mês de Maio a rosa], in Oiro de Vário Tempo e Lugar:
De São Francisco de Assis a Louis Aragon 628

Umberto SABA
«A cabra», in Poesia (uma antologia de Il Canzionere) 629

SAFO
[Parece­‑me ser igual aos deuses aquele], in Poesia Grega Arcaica 630

Jean­‑Paul SARTRE
A Náusea 631

William SHAKESPEARE
«Acto terceiro, cena I», in Hamlet 635

Claude SIMON
O Vento: Tentativa de reconstituição de um retábulo barroco 638

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Edith SÖDERGRAN
«A Lua», in Poesia Nórdica 642

Robert Louis STEVENSON


O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde e Outros Contos 643

Zlatka TIMENOVA
[O verão fechado], [Uma flecha branca], [Café da manhã] e [Primavera
de novo], in DiVersos Poesia e Tradução 646

Lev TOLSTÓI
«Capítulo VI», in A Morte de Ivan Ilitch 647

Georg TRAKL
«Salmo», in Outono Transfigurado 650

Giuseppe UNGARETTI
«Os Rios», in La Vita di un Uomo: tutte le poesie 652

Lope de VEGA
El Caballero de Olmedo 655

Téophile de VIAU
[Um corvo grasna de mim perto], in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro 661

Evelyn WAUGH
Reviver o Passado em Brideshead 662

Oscar WILDE
«Capítulo II», in O Retrato de Dorian Gray 666

Virginia WOOLF
«Capítulo II», in Um Quarto Que Seja Seu 671

W.B. YEATS
«The second coming», in The Collected Poems 676

Notas críticas 679

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(6 )
AM OR E E XPERI ÊN C I A

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louis aragon

Louis ARAGON. Aureliano. Tradução de Maria José Marinho. [1944] 1972.


Lisboa: Arcádia. 7­‑ 9.

Texto sujeito a Direitos de Autor

A primeira vez que Aureliano viu Berenice achou­‑a francamente feia. Até lhe
desagradou. Não gostou da maneira como vinha vestida. Um tecido que ele
não teria escolhido, porque possuía ideias próprias acerca de tecidos. Vira
várias mulheres vestidas assim. Isso levou­‑o a formular um mau juízo a seu
respeito: porque, ostentando um nome de princesa do Oriente, parecia não
se considerar na obrigação de possuir bom gosto. Tinha, nesse dia, os cabelos
baços, mal­‑arranjados. Ora os cabelos curtos exigem cuidados constantes.
Aureliano nem mesmo poderia afirmar se era loura ou morena. Mal a tinha
olhado. Dela só lhe ficara uma impressão vaga e geral de irritante aborreci‑
mento. E a si mesmo perguntava porquê. Era despropositado. Sim, talvez
fosse por ser pequenita, pálida... se acaso se chamasse Joana ou Maria, não
teria voltado a pensar no caso. Mas Berenice... Diabo de superstição. Eis,
afinal, o que o irritava.
Havia um verso de Racine que não lhe saía da cabeça, um verso que fora
a sua obsessão durante a guerra, nas trincheiras, e mais tarde, já desmobiliza‑
do. Um verso que nem mesmo considerava belo, cuja beleza até lhe parecia
duvidosa, inexplicável, mas que o obsidiara e obsidiava ainda:

Longo tempo fiquei errando em Cesareia...

Geralmente, os versos e ele... Este, porém, impunha­‑se­‑lhe insistente. Por‑


quê? Era o que não conseguia explicar. Contudo, independentemente da
história de Berenice... a outra, a verdadeira... Aliás, só se recordava desse
romance, dessa lengalenga, nas suas linhas gerais. Morena, era­‑o, a Berenice
da tragédia. Cesareia, fica do lado de Antioquia, de Beirute. Território sob
mandato. Era até demasiado morena. Braceletes por todos os lados, mon‑
tes de caracolinhos, de véus. Cesareia... belo nome para uma cidade. Ou
para uma mulher. Em todo o caso, um belo nome. Cesareia... Longo tempo
fiquei... bem, estou a ficar gágá. Impossível recordar­‑se: como se chamava
o tipo que dizia isso, uma espécie de pobre­‑diabo, arruinado, melancólico,

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28 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ludovico ARIOSTO. [Que bela sois, senhora! Tanto, tanto], in Colóquio


Letras 168­‑169: Imagens da poesia europeia –­ II. Tradução de David Mourão­
‑Ferreira. [1546] 2004. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 15.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Que bela sois, senhora! Tanto, tanto,


que por mim nunca vi cousa mais bela!
Contemplo a fronte e penso que uma estrela
a meu caminho dá seu brilho santo.

Contemplo a boca e pairo no encanto


do sorriso tão doce que é só dela;
olho o cabelo de ouro e vejo aquela
rede que amor me impôs com terno canto.

É de terso alabastro o colo, o peito,


os braços mais as mãos, e finalmente
quanto de vós se vê ou se adivinha.

E embora seja tudo assim perfeito,


permiti que vos diga ousadamente:
mais perfeita era a fé que em vós eu tinha.

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jane austen 29

Jane AUSTEN. «Capítulos 1 e 2», in Orgulho e Preconceito. Tradução de José


Miguel Silva. [1813] 2014. Lisboa: Presença. 7­‑12.

CAPÍTULO 1

É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro em


posse de fortuna necessita de uma esposa.
Por pouco que se conheça das inclinações e dos sentimentos de tal
homem quando ele chega a um lugar, esta verdade está de tal modo enraizada
nos espíritos dos seus novos vizinhos que logo ele é considerado como legíti‑
ma propriedade de alguma de suas filhas.
— Meu caro Mr. Bennet — disse­‑lhe um dia a esposa — sabe que Nether‑
field Park foi finalmente alugada?
Mr. Bennet respondeu que não sabia de nada.
— Mas a verdade é que foi — retorquiu ela. — Mrs. Long acabou de sair
daqui e contou­‑me tudo.
Mr. Bennet não respondeu.
— Não quer saber quem é que a alugou? — perguntou a mulher,
impaciente.
— A senhora está desejosa de mo dizer, e eu não tenho nenhuma objeção
a ouvi­‑lo.
Isso bastou­‑lhe como convite.
— Pois é bom que saiba que Mrs. Long me contou que Netherfield foi
alugada a um rapaz de grande fortuna do Norte de Inglaterra; que ele veio
na segunda­‑feira, numa sege de quatro cavalos, para visitar a propriedade e
ficou tão encantado com o que viu, que chegou logo a acordo com Mr. Mor‑
ris; e, mais ainda, que ele se vai instalar na casa antes do S. Miguel e que no
final da próxima semana já devem chegar alguns criados.
— Como é que ele se chama?
— Bingley.
— E é solteiro ou casado?
— Oh, solteiro, meu caro, é evidente!... Solteiro e com uma enorme for‑
tuna: quatro ou cinco mil libras de renda por ano. Que oportunidade para as
nossas meninas!…
— Como assim? Não vejo em que isso as possa afetar.

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30 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Meu querido Mr. Bennet — respondeu­‑lhe a mulher —, às vezes é tão


enfadonho!... Já devia ter percebido que eu estou a pensar casá­‑lo com uma
delas.
— É esse o plano dele ao instalar­‑se aqui?
— Plano?! Que tolice! Como pode dizer tal coisa? Seja como for, é muito
provável que ele se apaixone por uma delas e, por isso, o senhor deve ir visitá­
‑lo assim que ele chegar.
— Não vejo razão para o fazer. Pode a senhora ir com as raparigas, ou
então enviá­‑las sozinhas, o que provavelmente será ainda melhor, já que,
sendo tão bonita como qualquer delas, Mr. Bingley poderia preferi­‑la.
— Lisonjeia­‑me, meu caro. É verdade que já tive os meus dias, mas hoje
não alimento essas ilusões. Quando uma mulher é mãe de cinco filhas cresci‑
das, deve abster­‑se de pensar na sua própria beleza.
— Em tais casos, ela não costuma ter muita beleza sobre a qual pensar.
— Seja como for, meu caro, é imprescindível que faça uma visita a Mr.
Bingley assim que ele estiver instalado.
— Não prometerei tal coisa.
— Lembre­‑ se de suas filhas... Pense só em como uma delas poderia
ficar bem colocada. Sir William e Lady Lucas estão decididos a ir e olhe que
apenas por essa razão, pois sabe que não têm o costume de visitar recém­
‑chegados. É absolutamente necessário que vá, insisto, caso contrário nós
ficaremos impedidas de o fazer.
— Exagera, seguramente, nos seus escrúpulos. Estou certo de que Mr.
Bingley ficará encantado com a sua visita, e eu mesmo lhe enviarei umas breves
linhas por seu intermédio asseverando­‑lhe de que tem desde já o meu pleno
consentimento para casar com aquela de nossas filhas que ele bem entender.
Terei, no entanto, de incluir umas palavras em abono da minha Lizzy.
— Só espero que não faça uma coisa dessas. A Lizzy não é nem um boca‑
dinho melhor que as irmãs. Mais ainda: não chega aos pés da Jane em beleza e
não tem nem de perto a graça da Lydia. Mas o senhor está sempre a favorecê­‑la.
— Nenhuma delas tem muito que a recomende — respondeu o marido.
— São tolas e ignorantes como qualquer outra rapariga. Mas a Lizzy parece­
‑me um tanto mais esperta que as irmãs.
— Mr. Bennet, como pode falar assim de suas próprias filhas? O senhor
sente prazer em aborrecer­‑me. Não tem qualquer compaixão pelos meus
pobres nervos.
— Engana­‑se, minha cara. Tenho o maior respeito pelos seus nervos.
Somos velhos amigos. Nestes últimos vinte anos, tem sido sempre com a
maior consideração que a tenho ouvido falar sobre eles.

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jane austen 31

— Ah, o senhor não sabe o quanto eu sofro!...


— Mas faço votos para que se restabeleça e viva o suficiente para ver
muitos rapazes com quatro mil libras anuais instalarem­‑se na vizinhança.
— Mesmo que venham vinte deles, isso de nada nos servirá, já que o
senhor se recusa a visitá­‑los.
— Acredite no que lhe digo, minha cara: quando cá estiverem vinte,
visitá­‑los­‑ei a todos.
Mr. Bennet era uma mistura tão curiosa de vivacidade e de sarcasmo,
de reserva e de capricho, que uma experiência de vinte e três anos de vida
em comum não tinha bastado para que a esposa lhe decifrasse o caráter. Já
a natureza de Mrs. Bennet era bem menos difícil de penetrar. Tratava­‑ se
de uma mulher de escasso entendimento, pouca cultura e temperamento
inconstante. Quando se sentia contrariada, imaginava­‑ se vítima dos ner‑
vos. A principal tarefa da sua vida era casar as filhas; o seu consolo, visitas e
mexericos.

CAPÍTULO 2

Mr. Bennet foi um dos primeiros a prestar uma visita a Mr. Bingley. Tivera
sempre intenção de o fazer, embora até ao último momento assegurasse a
mulher de que não iria. Na verdade, só nessa noite, depois de desempenhada
a função, teve a esposa conhecimento dela. Eis como lhe foi revelada. Mr.
Bennet, que olhava para a sua segunda filha enquanto ela guarnecia um cha‑
péu, interpelou­‑a de repente, dizendo:
— Espero que Mr. Bingley o aprecie, Lizzy.
— Não estamos em posição de saber aquilo que Mr. Bingley aprecia
ou deixa de apreciar — disse a mãe num tom ressentido —, já que não o
visitaremos.
— A mamã está a esquecer­‑ se — disse Elizabeth — de que o vamos
encontrar nos saraus e que Mrs. Long nos prometeu apresentá­‑lo.
— Não acredito que Mrs. Long faça tal coisa. Ela própria tem duas
sobrinhas. É uma mulher hipócrita e egoísta, tenho a pior impressão dela.
— A minha não é melhor — disse Mr. Bennet —, e folgo em saber que
dispensa os seus préstimos.
Mrs. Bennet não se dignou dar resposta. Incapaz, porém, de se conter,
pôs­‑se a ralhar com uma das filhas:
— Não tussas dessa maneira, Kitty, pelo amor de Deus! Tem piedade dos
meus nervos. Estás a fazê­‑los em farrapos.

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32 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— A Kitty não é capaz de ser discreta a tossir — disse o pai. — Não sabe
escolher o momento oportuno.
— Não tusso por prazer — retorquiu Kitty aborrecida.
— Quando será o teu próximo baile, Lizzy?
— De amanhã a duas semanas.
— Pois, é verdade — exclamou a mãe —, e Mrs. Long só regressa no dia
anterior. O que quer dizer que ela não poderá apresentá­‑lo, já que ainda o não
terá conhecido.
— Então, minha cara, será a senhora quem gozará dessa vantagem sobre
a sua amiga, apresentando­‑lhe Mr. Bingley.
— É impossível, Mr. Bennet, impossível, visto que eu própria o não
conhecerei. Como é que pode ser tão enervante?
— Respeito os seus pruridos. Um conhecimento de duas semanas é
decerto muito pouco. Não se pode pretender conhecer verdadeiramente
alguém ao fim de apenas quinze dias. Mas se não formos nós a assumir esse
risco, outra pessoa o fará. Mrs. Long e as sobrinhas não deixarão de tentar
a sua sorte. Como tal, e visto que ela o considerará um ato de generosida‑
de, se a senhora renunciar ao seu dever, eu próprio me verei obrigado a
cumpri­‑lo.
As raparigas ficaram a olhar para o pai. Mrs. Bennet limitou­‑se a dizer:
— Disparates, só disparates!
— Qual poderá ser o significado de tão enfática exclamação? — pergun‑
tou ele. — Acaso considerará a senhora as formas de apresentação, e tudo o
que elas implicam, um disparate? Neste ponto não posso, de forma alguma,
concordar consigo. O que me dizes disto, Mary? Tu que és uma rapariga tão
ponderada, sempre mergulhada em calhamaços e a coligir citações?
Mary procurou a todo o custo encontrar alguma coisa de muito assisado
para dizer, mas não conseguiu acertar com nenhuma.
— Enquanto a Mary ajusta as suas ideias — prosseguiu —, voltemos a
Mr. Bingley.
— Já estou farta de Mr. Bingley — exclamou a mulher.
— Lamento ouvi­‑lo. Porque é que não mo disse antes? Se tivesse sabido
de manhã o que sei agora, decerto não o teria visitado. Foi, de facto, uma
infelicidade. Mas visto que a visita já foi feita, não nos podemos agora furtar
ao seu convívio.
O ar de estupefação no rosto das senhoras correspondeu exatamente ao
que Mr. Bennet pretendia — porventura o de Mrs. Bennet mais ainda que os
outros, conquanto, esgotadas as primeiras efusões de alegria, ela passasse a
declarar que nunca duvidara de que ele o fizesse:

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jane austen 33

— Que bondade a sua, meu caro Mr. Bennet! Tinha a certeza de que aca‑
baria por persuadi­‑lo. Sabia que o amor que tem por suas filhas não o deixaria
desprezar um conhecimento como este. Não imagina como fico satisfeita!
E que partida o senhor nos pregou, ter feito a visita esta manhã e não nos ter
dito palavra até agora...
— Bom, Kitty, já podes tossir as vezes que te apetecer — disse Mr. Ben‑
net enquanto saía da sala, cansado dos arroubos da esposa.
— Que excelente pai o vosso, meninas — disse ela, assim que a porta se
fechou. — Não sei como algum dia poderão retribuir a sua bondade. Na ver‑
dade, nem eu mesma. Acreditem­‑me que, nesta altura das nossas vidas, não é
que nos agrade muito andar a travar conhecimentos todos os dias... Mas, por
vocês, faríamos qualquer coisa. Lydia, meu amor, embora sejas a mais nova,
é bem possível que Mr. Bingley te convide para dançar no próximo baile.
— Oh, não tenho receio — disse Lydia com ar resoluto. — Posso ser a
mais nova, mas sou também a mais alta.
O resto do serão foi passado em conjeturas sobre quanto tempo Mr.
Bingley levaria para retribuir a visita de Mr. Bennet e a decidir quando o
deveriam convidar para jantar.

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34 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Charles BAUDELAIRE. «O convite à viagem», in As Flores do Mal.


Tradução de Fernando Pinto do Amaral. [1857] 1992. Lisboa: Assírio &
Alvim. 151­‑153.

Irmã, filha, escuta,


Pensa na doçura
De irmos pra lá viver, sim!
Amar à vontade,
Amar e morrer
Nessa terra igual a ti!
Os húmidos sóis
Dos nevoentos céus
Têm pra mim os encantos
Assim misteriosos
Dos teus falsos olhos,
Entre as lágrimas brilhando.

Lá tudo é beleza e luxo,


É ordem, calma e volúpia.

Móveis reluzentes,
Polidos plo tempo,
Decorariam a câmara;
As mais raras flores
Fundindo os odores
Ao vago aroma do âmbar,
Riquíssimos tectos,
Profundos espelhos,
O esplendor oriental,
Tudo falaria
Com a alma em surdina
A sua língua natal.

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charles baudelaire 35

Lá tudo é beleza e luxo,


É ordem, calma e volúpia.

Vê nesses canais
Dormir essas naus
Cujo humor é vagabundo;
É pra saciar
As tuas vontades
Que vêm do fim do mundo.
— Os sóis, já deitando­‑se,
Envolvem os campos,
Os canais, toda a cidade,
Com oiro e jacinto;
E o mundo dormindo
Numa quente claridade.

Lá tudo é beleza e luxo.


É ordem, calma e volúpia.

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36 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

BERNARD DE VENTADOUR. [Ao ver mover a cotovia], in Colóquio


Letras 164: Vozes da poesia europeia — II. Tradução de David Mourão­
‑Ferreira. [século xii] 2003. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 33­‑34.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Ao ver mover a cotovia


de encontro ao Sol as suas asas,
ora a pairar, como esquecida,
ora em doçura abandonada,
ai! vejo então que a alegria,
mesmo sem qu’rer, logo a invejo;
e só por estranha maravilha
é que não morro de desejo!

Tanto de amor cuidei saber


E quase nada sei que sei!
Sei que não ’stá no meu poder
deixar de amar quem não terei.
Ela, que tem meu coração
e todo eu e todo o mundo,
tudo me rouba sem razão:
tudo — a não ser amor tão fundo.

Já nem me posso pertencer,


nem me comando mesmo nada,
se em seu olhar deixei de ter
a luz do ’spelho que me agrada.
’Spelho, que assim que me espelhaste,
suspiros deste a meu retrato,
e me perdeste, e destroçaste,
como a Narciso, em seu regato...

Já das mulher’s eu desespero,


nelas não mais confiarei;
e se as servi agora quero

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38 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Giovanni BOCCACCIO. «Dia 5, Novela IX», in Decameron. Tradução


inédita de Simão Valente. [1492]. Milão: Mondadori. 488­‑494.

Federigo degli Alberighi ama e não é amado. Consome o seu património gastando em
cortesias, ficando­‑lhe apenas um falcão. Um dia, não tendo alternativa, cozinha a ave
para a sua amada quando ela o visita; quando esta descobre o sucedido, muda­‑se­‑lhe a
disposição, toma­‑o por marido e fá­‑lo rico.

Tinha acabado de falar Filomena quando a rainha, tendo visto que mais nin‑
guém tinha nada a acrescentar, excepto Dioneo pelo seu privilégio, com ale‑
gria disse:
Toca a mim agora discursar; e eu, caríssimas senhoras, de uma novela
símile em parte à precedente vos falarei com todo o gosto, isto não só para
que conheças quanto poder tem o vosso charme sobre os corações gentis,
mas para que aprendais a ser vós mesmas, quando conveniente, dadoras de
vossas recompensas, sem deixar à Fortuna que vos guie, já que esta não pre‑
meia com critério, mas mais frequentemente sem lógica ou moderação.
Deveis então saber que Coppo di Borghese Domenichi, homem de
grande e reverenda autoridade na nossa cidade, digno de eterna fama por
costumes e virtude muito mais do que por nobreza de sangue, sendo já de
idade avançada, frequentemente se entretinha a falar com os seus vizinhos
das coisas passadas: isto sabia ele fazer melhor, com mais ordem, melhor
memória e ornado falar do que qualquer outro homem. Costumava dizer
que, entre outras suas belezas, na cidade de Florença viveu um jovem chama‑
do Federigo di Messer Filippo Alberighi, em matéria de armas e cortesia mais
apreciado do que qualquer outro mancebo da Toscana. Federigo, tal como
acontece ao mais gentil dos homens, apaixonou­‑se por uma gentil mulher
chamada Monna Giovanna, nos seus tempos considerada uma das mais belas
e alegres damas de Florença. De maneira a conquistar o amor desta, o jovem
participava em justas, combatia, fazia festas e dava presentes, gastando todo
o seu património sem contenção; mas Monna Giovanna, não menos fiel a seu
marido do que bela, não fazia caso nem das coisas por ela feitas nem daquele
que as fazia.

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giovanni boccaccio 39

Gastando assim Federigo muito mais do que podia e nada adquirindo, como
frequentemente acontece em tais casos as riquezas acabaram, e ele ficou
pobre, nada mais lhe restando do que uma pequena quintinha, de cujas par‑
quíssimas rendas vivia a custo, assim como um seu falcão que era dos me‑
lhores do mundo. De modo que, amando mais do que nunca e não podendo
continuar a ter a vida de burguês que desejava, foi viver para Campi, onde
ficava a sua quinta. Aí, caçando com o seu falcão e sem qualquer tipo de
companhia, pacientemente suportava a sua pobreza.

Ora o dia veio em que, estando já Federigo assim na miséria, o marido de


Monna Giovanna adoeceu, e vendo a morte a aproximar­‑se fez um testa‑
mento. O homem era riquíssimo, e fez seus herdeiros o seu filho já crescidi‑
nho e, caso este morresse sem mais herdeiros, Monna Giovanna, que muito
amara. E assim morreu. Giovanna, já viúva, como é uso entre as mulheres da
Toscana passava os verões no campo, indo com o seu filho a uma quinta que
possuía bastante próxima daquela de Federigo. Veio assim a suceder que o
seu filho travou conhecimento com Federigo, interessando­‑se cada vez mais
por aves e cães de caça. Tendo muitas vezes visto o falcão de Federigo voar,
o rapaz ficou fortemente impressionado com o animal, desejando possuir a
ave sem que contudo tivesse a coragem de o pedir ao dono, constatando o
quanto o falcão lhe era caro. Neste ponto estava a situação, quando vem a
dar­‑se o acaso de o rapaz adoecer. A mãe, muito condoída, que outros filhos
não tinha e àquele único amava tanto quanto se pode, passava os dias junto
dele, confortando­‑o, e perguntando­‑lhe o que desejaria, instando­‑o a que
lho dissesse, porque, se fosse possível de obter, ela tudo faria para que ele o
tivesse.

O rapaz, depois de muitas vezes ouvir estas ofertas, disse: «Minha mãe, se
conseguirdes que eu possa ter o falcão de Federigo, creio que prontamente
me curarei.»

A mulher, ouvindo estas palavras, meditou sobre o seu significado, pensan‑


do no que devesse fazer. Ela sabia que Federigo longamente a tinha amado, e
que nunca da sua parte tinha merecido sequer um olhar, assim que Giovanna
se perguntava: «Como poderei eu mandar alguém, ou ir pessoalmente, pedir
este falcão que não só é, pelo que ouço dizer, o melhor que alguma vez voou
no mundo, como também a fonte de sustento de Federigo? Como poderei
ser egoísta ao ponto de querer tirar o único prazer que resta a um pobre
cavalheiro?»

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40 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Paralisada por estes pensamentos, estando contudo certíssima de obter o


falcão se o pedisse, sem saber o que dizer ou fazer, não respondia ao filho.
No fim venceu o amor que tinha pelo rapaz, decidindo Monna Giovanna
agradar­‑lhe sem temer as consequências, não enviando outros para fazer o
pedido mas indo ela em pessoa pedir o falcão. Por fim respondeu­‑lhe: «Meu
filho, coragem e pensa na tua cura. Prometo­‑te que amanhã de manhã a pri‑
meira coisa que farei será ir buscar o falcão para to dar.»

O jovem, feliz com esta perspectiva, no mesmo dia mostrou algumas me‑
lhoras. No dia seguinte Giovanna, com outra dama por companhia, como
se fosse em passeio, deslocou­‑se à pequena casa de Federigo, mandando­‑o
chamar. Este, sendo que não era um bom período para a caça, há alguns dias
que não o fazia, estando na ocasião num campo seu a vigiar alguns trabalhos;
ouvindo que Monna Giovanna o chamava à porta, muito se maravilhou,
e alegre correu nessa direcção.
Giovanna, vendo­‑o vir, com graça feminina foi ao seu encontro e, depois
de Federigo a ter reverencialmente saudado, disse: «Bem­‑haja, Federigo!»
E continuou: «Vim para te recompensar pelos danos que sofreste amando­
‑me mais do que o conveniente, e a recompensa é esta: é minha intenção
almoçar contigo hoje, junto com esta minha companheira.»
A isto respondeu humildemente Federigo: «Senhora minha, não recor‑
do qualquer dano que tenha recebido por vossa causa, mas sim tanto bem
que, se alguma vez qualquer valor tive, por vossa mercê e pelo amor que vos
tenho tido o alcancei. E estou­‑vos ainda mais grato por receber a vossa gene‑
rosa visita hoje, que sou um pobre anfitrião, do que se tivesse acontecido nos
tempos em que tinha ainda por gastar tudo quanto gastei.»
Assim dito, com embaraço a recebeu em sua casa, conduzindo­‑a ao
seu jardim, e aí, não encontrando outrem que lhe fizesse companhia, disse:
«Senhora, pois que outro não há, esta boa mulher, esposa deste trabalhador,
vos fará companhia enquanto trato da mesa.»

Federigo, ainda que vivesse em extrema pobreza, não se tinha ainda dado conta
do quanto errara ao gastar como havia feito, até essa manhã, em que nada
encontrando que pudesse dar à mulher por amor da qual tanto tinha já dado
a infinitos homens, compreendeu. Desmesuradamente angustiado maldizia
a sua sorte, correndo como um louco de um lado para o outro, sem encontrar
dinheiro ou o que pudesse empenhar. Sendo a hora tardia e tamanho o desejo
de algo poder oferecer à dama, não querendo mendigar nem de outros nem
do seu trabalhador, deparou­‑se Federigo com o seu bom falcão, no seu poleiro

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giovanni boccaccio 41

numa salinha. Sem outra solução, depois de o examinar e de o achar farto de


carnes, pensou poder ter ali um prato digno de uma dama como Monna Gio‑
vanna. Sem mais pensar, torceu­‑lhe o pescoço e deu­‑o a uma sua serva para que
o preparasse e assasse no espeto com todo o cuidado. A mesa foi posta com
algumas toalhas branquíssimas que ainda tinha e, de semblante tranquilo, vol‑
tou à dama no seu jardim, anunciando que o almoço estava pronto.
Giovanna e a sua amiga levantaram­‑se para logo se sentarem à mesa, e,
sem saberem o que comiam, juntamente com Federigo, que as servia aten‑
ciosamente, comeram o falcão. A refeição acabada, e depois de agradável
conversação com Federigo, parecendo a Giovanna ter chegado a altura certa
de dizer o que ali a levava, com toda a cortesia começou assim a dizer a Fede‑
rigo: «Federigo, recordando­‑te tu da tua vida no passado e da minha fidelida‑
de a meu marido, que terás talvez julgado ser dureza e crueldade, não duvido
que te maravilharás da minha presunção quando ouvires o assunto que aqui
me trouxe; mas se tivesses tido filhos, ou se os tivesses, poderias conhecer a
força do amor que os pais lhes têm. Creio bem que em parte, então, me per‑
doarias. Não os tens; e eu que tenho um só, não posso fugir às leis de todas as
mães; a essas forças devo obedecer, sendo assim imperativo, de uma forma
que vai contra a minha vontade, conveniência ou dever, pedir­‑te algo que
bem sei o quão caro te é, sobretudo por nenhum outro prazer, alegria ou con‑
solação te ter deixado a tua extrema miséria. O que te peço é o teu falcão, do
qual o meu filho se enamorou a tal ponto, que, se não lho levar, temo que se
agrave a enfermidade de que padece, e que assim eu o venha a perder. E por
isto te peço que mo ofereças, não pelo amor que me tens, pelo qual nada me
deves, mas pela tua nobreza de alma, a qual se mostrou mais generosa do que
qualquer outro, assim que por esta oferenda eu possa dizer de ter salvo o meu
filho, e que isto para sempre to deva.

Federigo, ouvindo o que a dama pedia e compreendendo que não a podia


servir, dado que já lhe tinha dado o seu falcão por almoço, começou perante
ela a chorar, antes mesmo de responder qualquer palavra. Pensou Giovanna
primeiramente que este choro se devesse à dor de separar­‑se do seu falcão,
e estava para dizer que afinal não o queria; mas, calando­‑se, esperou depois
das lágrimas a resposta de Federigo, que assim lhe disse: «Senhora, desde que
a Deus aprouve que a vós desse o meu amor muitas vezes tive a sorte a mim
contrária, o que muito me doeu; mas todas essas vezes nada foram em con‑
fronto ao que a fortuna hoje me faz. Nunca mais poderei fazer a paz com ela,
pensando que vós viestes aqui à minha pobre casa, onde, quando era rica,
não vos dignastes a vir, e que de mim um pequeno presente quereis, e que

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a sorte tenha feito as coisas de modo que não vo­‑lo possa dar. Em poucas
palavras vos direi porque é este o caso: assim que me dissestes que vós, por
cortesia, queríeis comigo almoçar, por respeito ao vosso estatuto e ao vosso
valor, pareceu­‑me digna coisa que vos honrasse com o melhor repasto que
pudesse encontrar, dentro das minhas escassas possibilidades. Recordei­‑me
do falcão que agora me pedis, e julgando­‑o de qualidade, digno de vós se me
afigurou. Esta manhã assado o tivestes sobre a tábua, o que me pareceu o
melhor uso que lhe pudesse dar; mas vendo agora que de outro modo o dese‑
jáveis, sinto uma tão grande dor de não me ser possível servir­‑vos. Não creio
que possa alguma vez fazer a paz comigo mesmo.

Isto dito, fez com que as penas, os pés e o bico fossem trazidos como pro‑
va da sua sinceridade. Giovanna, tudo vendo e ouvindo, primeiramente
censurou­‑o por ter matado um tal falcão para dar de comer a uma mulher;
mas logo, para si mesma, louvou a grandeza de alma de Federigo, que a po‑
breza não tinha podido nem poderia tocar. Assim, sem esperança de ter o
falcão e temendo pela saúde do filho, voltou a casa melancólica, e ao seu
filho. Este, ou por melancolia por não poder ter o falcão, ou talvez que a
doença o levaria de qualquer modo àquele ponto, ao fim de poucos dias,
com grandíssima dor da mãe, passou desta vida.

Monna Giovanna, ainda que cheia de lágrimas e de amargura, tendo ficado


riquíssima e sendo ainda jovem, mais do que uma vez se viu instada pelos seus
irmãos a casar­‑se de novo. Ainda que tal não querendo, mas vendo­‑se pres‑
sionada, recordou­‑se do valor de Federigo e da sua magnificência final: o ter
matado um tão precioso falcão para a honrar. E disse assim aos seus irmãos:
«Por minha vontade, se estivésseis de acordo, ficaria como estou; mas se que‑
reis que tome marido, então não pode ser outro que Federigo degli Alberighi.»
A isto os irmãos, troçando dela, disseram: Tola, que é isto que dizes? Como
o queres tu a ele que não tem um tostão furado?»
A isto ela respondeu: «Meus irmãos, eu sei bem que é como dizeis, mas eu
antes quero um homem a quem falte riqueza do que ter riqueza a que falte um
homem.»
Os irmãos, ouvindo as suas palavras e conhecendo Federigo há muito
tempo, ainda que ele fosse pobre, visto que Giovanna o queria, ofereceram­
‑lhe a ela e às suas riquezas. Ele, encontrando­‑se casado com uma tal mulher,
que tanto tinha amado, para além disso riquíssima, terminou os seus anos
em felicidade conjugal, tendo­‑se tornado um melhor administrador do seu
património.

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andré breton 43

André BRETON. O Amor Louco. Tradução de Luiza Neto Jorge. [1937]


1971. Lisboa: Estampa. 149­‑158.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Querida Écusette de Noireuil

Na Primavera de 1952, tereis vós dezasseis anos e sereis provavelmente ten‑


tada a desfolhar este livro, cujo título, apraz­‑me acreditá­‑lo, vos chegará
eufonicamente levado pelo vento que verga os espinheiros... Não haverá
sonho, esperança ou ilusão que, assim o espero, não dance noite e dia, à
luz dos anéis do vosso cabelo — mas eu, decerto, já não poderei presenciá­
‑lo, eu que, se a tal aspirasse, seria apenas para vos ver. Os misteriosos e
magníficos cavaleiros haverão de passar, ao crepúsculo, à rédea solta, con‑
tornando os instáveis rios. Oculta por véus diáfanos de um verde de água,
há­‑de, sob as altas abóbadas, perpassar, no seu andar de sonâmbula, uma
jovem, e sozinha extinguir uma chama votiva. Mas os espíritos dos jun‑
cos, e os minúsculos gatos que fingem dormir dentro dos anéis, e o ele‑
gante revólver­‑brinquedo perfurado pela palavra «Baile», impedir­‑vos­‑ão
de encarar essas cenas pelo seu lado trágico. Seja qual for o destino, nunca
demasiado belo, que — como sabê­‑lo? — vos esteja reservado, sentireis
gosto em viver e em tudo esperar do amor. Aconteça o que acontecer, daqui
até tomardes conhecimento desta carta — pelos vistos, só acontece o que
se não espera —, apraz­‑me pensar que já nessa altura estareis apta a assumir
os eternos poderes da mulher, os únicos perante os quais acaso já me incli‑
nei. Quer tenhais acabado de fechar a tampa da carteira sobre um universo
azul­‑asa de corvo repleto de fantasias, quer deixado, como um vulto solar,
o vosso perfil impresso — à excepção de uma flor presa ao peito — sobre o
muro de uma fábrica — estou longe de ter uma ideia precisa sobre o vosso
futuro —, seja­‑me lícito crer que estas palavras: «O amor louco», se verão
um dia a sós com a vossa vertigem.
Não cumprirão elas a sua promessa, pois mais não fazem do que
esclarecer­‑vos o mistério da vossa vinda ao mundo. Julguei, durante bastante
tempo, que não havia pior loucura do que a de se dar vida a um ser. Ou pelo
menos detestava aqueles que ma haviam dado a mim. É provável que, uma
vez por outra, também vós me detesteis. Foi precisamente por essa razão
que decidi hoje ver­‑vos com a idade de dezasseis anos, hoje, que ainda vos é

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Charlotte BRONTË. Jane Eyre. Tradução de Alice Rocha. [1847] 2011.


Lisboa: Presença. 545­‑ 551.

— Ele é um rapaz bem­‑parecido.


— E eu sou apagada, como bem vê, Diana. Não combinamos um com o
outro.
— Apagada!? A Jane? Nem por sombras. Pelo contrário, é bonita e bon‑
dosa de mais para ser assada viva em Calcutá. — E, uma vez mais, pediu­‑me
encarecidamente que desistisse da ideia de acompanhar o irmão.
— E não tenho outro remédio — salientei eu —, pois ainda agora,
quando lhe reiterei a proposta de me pôr ao serviço dele como coadjutora,
mostrou­‑se escandalizado com a minha falta de decência. Creio que consi‑
derou uma incorrecção da minha parte propor­‑me para o acompanhar sem
sermos casados… Como se eu desde sempre não tivesse esperado encontrar
nele um irmão e agora não o considerasse como tal.
— E o que a leva a afirmar que ele não lhe tem amor, Jane?
— Devia ouvir o que ele tem a dizer sobre o assunto. Já me explicou
vezes sem conta que não é a si próprio que deseja casar, mas antes ao seu
cargo. Fez­‑me ver que nasci para o trabalho… e não para o amor; o que, não
tenho dúvida, deve corresponder à verdade. Mas, na minha opinião, se não
nasci para o amor, então também não nasci para o casamento. Não seria
estranho, Diana, acorrentar­‑me para o resto da vida a um homem que não vê
em mim mais nada para além de uma ferramenta útil?
— Insuportável… contranatura… completamente descabido!
— E ainda para mais — continuei eu —, embora neste momento eu sinta
pelo St. John apenas um amor filial, se me obrigasse a casar com ele, e tendo
em conta que é um homem tão talentoso e que com tanta frequência deixa
transparecer uma certa grandeza heróica no olhar, no porte e na maneira
como fala, seria quase inevitável que eu acabasse por desenvolver por ele
uma espécie de amor estranho e torturante. Nesse caso, a minha desdita não
conheceria fim. Ele haveria de fazer tudo ao seu alcance para que eu não o
amasse e, se eu me atrevesse a dar­‑lhe mostras desse sentimento, far­‑me­‑ia de
imediato ver que era algo de supérfluo, que ele não me exigia e que, ademais,
considerava inconveniente. Sei bem que sim.

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charlotte brontë 47

— Mas olhe que o St. John é um bom homem, Jane — contrapôs a Diana.
— Ele é um bom homem e um grande homem, mas, infelizmente, de
tanto se empenhar em passar à prática os seus ideais elevados, tem tendência
a esquecer­‑se dos sentimentos e dos desejos das pessoas humildes. Será por
isso preferível que as pessoas insignificantes lhe saiam do caminho, não vá
ele pisá­‑las. Lá vem ele! Vou deixá­‑la, Diana! — E, ao vê­‑lo entrar no jardim,
apressei­‑me escada acima.
Contudo, fui obrigada a vê­‑lo uma vez mais à ceia. Durante a refeição,
manteve a mesma compostura de sempre. Eu julgava que o St. John mal se
dignaria a dirigir­‑me a palavra e estava segura de que desistira do plano de
se casar comigo, contudo, os acontecimentos sucessivos vieram mostrar­‑me
que estava enganada em relação a ambos os aspectos. Falou comigo do modo
habitual, ou, melhor dizendo, naquele que ultimamente era o seu modo habi‑
tual, duma cortesia escrupulosa. Invocara sem dúvida o auxílio do Espírito
Santo para o ajudar a acalmar a fúria que eu despertara nele e estava agora
convencido de que me perdoara uma vez mais.
Como leitura vespertina antes das orações, escolheu o vigésimo primei‑
ro capítulo do Livro do Apocalipse. Era, como sempre, um prazer escutar
as palavras bíblicas saídas dos seus lábios, pois não havia momento em que
a sua voz fosse mais intensa e melodiosa, nem que os seus modos deixassem
transparecer uma simplicidade mais nobre que quando anunciava as profe‑
cias divinas. Nessa noite, a sua voz assumiu um tom ainda mais solene, os
seus modos investiram­‑se dum significado ainda mais arrebatado, ali sen‑
tado entre o seu círculo doméstico (com a lua de Maio a brilhar através da
janela, tornando a luz da vela que estava em cima da mesa praticamente dis‑
pensável). Ali sentado, debruçado sobre a grande e velha Bíblia, enquanto
descrevia a visão dum novo céu e duma nova terra nela contida, anunciava
que Deus iria habitar entre os homens, enxugar­‑lhes as lágrimas dos olhos e
prometer­‑lhes que não haveria mais mortes, nem mágoas, nem prantos, nem
mais sofrimento, porque tudo o que era antigo iria desaparecer.
Estas palavras comoveram­‑me duma forma particular sobretudo por‑
que senti, mediante a ligeira e indescritível alteração de tom com que o St.
John as proferiu, que o olhar dele entretanto se dirigia para mim.
— «Aquele que vencer, tudo haverá de herdar, e eu serei o seu Deus, e ele
será o meu filho. Mas» — leu ele numa toada lenta e bem cadenciada — «os
medrosos, os descrentes, etc… irão herdar o lago ardente de fogo e enxofre,
e que é a segunda morte.»
Doravante, fiquei informada do destino que o St. John receava que me
calhasse.

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48 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Um triunfo calmo, contido, misturado com um fervor ardente, assina‑


lou a enunciação dos últimos versos magníficos daquele capítulo. O leitor
acreditava que o seu nome já estava escrito no livro da vida do Cordeiro e
ansiava pelo momento em que seria acolhido na cidade à qual os reis da terra
levam a sua honra e prestígio, que dispensa a presença do sol e da lua, porque
já conta com a glória de Deus para a iluminar, e o Cordeiro é essa mesma luz.
Na oração que seguiu à leitura do capítulo, o St. John concentrou todas
as suas energias, fez despertar todo o seu entusiasmo austero. Mergulhou em
profunda circunspecção, debatendo­‑se com Deus e decidido à vitória. Supli‑
cou força para os fracos de coração, orientação para os que se tinham perdi‑
do do rebanho, o regresso, mesmo no derradeiro momento, daqueles a quem
as tentações do mundo e da carne vinham a afastar do caminho justo. Pediu,
rogou, implorou a dádiva dum tição que se tira do fogo. O fervor vem sempre
acompanhado duma solenidade profunda. A princípio, quando comecei a
ouvir aquela oração, dei por mim admirada, depois, à medida que prosseguia
e se intensificava, fui­‑me deixando comover e, finalmente, dei por mim ins‑
pirada dum temor respeitoso. O St. John acreditava tão piamente na gran‑
diosidade e na excelência do seu propósito que quem o ouvia defendê­‑lo era
irremediavelmente levado a acreditar nele também.
Uma vez a oração terminada, eu, a Diana e a Mary pedimos licença para
nos retirarmos. Ele tinha a partida marcada para o dia seguinte, logo pela
manhã. Depois de se despedirem dele com um beijo, as irmãs abandonaram
a sala (acatando, julgo eu, uma sugestão que lhes foi murmurada). Eu estendi­
‑lhe a mão e desejei­‑lhe uma boa viagem.
— Obrigado, Jane. Tal como disse, regressarei de Cambridge dentro de
duas semanas e, por conseguinte, poderá consagrar todo esse tempo à refle‑
xão. Se eu desse ouvidos ao orgulho humano, não lhe tornaria a falar em casa‑
mento, mas eu ouço apenas o meu dever e não perco de vista o meu principal
objectivo… agir sempre em prol da glória divina. O meu Senhor foi paciente
na sua dor, e eu serei também. Não posso abandoná­‑la à perdição dum vaso
da ira: arrependa­‑se, decida­‑se enquanto ainda é tempo. Não se esqueça de
que nos é pedido que trabalhemos enquanto é dia, de que «quando for de
noite, nenhum homem poderá trabalhar». Lembre­‑se do que aconteceu a
Dives, que foi rico nesta vida. Deus deu­‑lhe a força necessária para optar pela
parte melhor de si que ninguém lhe poderá roubar!
Ao proferir estas últimas palavras, o St. John pousou­‑me a mão na cabeça.
Expressara­‑se em tom sincero, com brandura. O seu olhar não se assemelhava
de todo ao dum amante que contempla o ser amado, mas antes ao dum pas‑
tor que chama uma sua ovelha tresmalhada, ou melhor ainda, ao dum anjo­‑da­

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charlotte brontë 49

‑guarda que vela pela alma por que é responsável. Todos os homens de talento,
quer sejam homens de sentimento ou não, quer sejam fanáticos, ou aspirantes,
ou déspotas, desde que sejam sinceros, têm os seus momentos sublimes em
que conseguem conquistar e dominar quem está ao seu redor. Eu tinha vene‑
ração pelo St. John, uma veneração tão grande que a impetuosidade dele me
arremessou de imediato para o ponto que havia tanto tempo vinha a evitar.
Senti­‑me tentada a baixar os braços, a deixar que a torrente da sua vontade
me projectasse para o vórtice da sua existência e aí perder a minha. Sentia­‑me
quase tão encurralada por ele como me sentira, numa ocasião anterior e duma
maneira diferente, por outro. Fui uma tola de ambas as vezes. Ter cedido nessa
altura teria sido um erro de princípio; ceder agora seria um erro de julgamento.
Pelo menos é esta a minha opinião no momento, em que contemplo aquele
instante crítico com a serenidade que o tempo confere: naquela altura, eu não
tinha consciência da loucura que estava prestes a cometer.
Fiquei petrificada sob o toque do meu hierofante. As minhas recusas
foram esquecidas, os meus medos, ultrapassados, os meus combates, parali‑
sados. O Impossível, isto é, o meu casamento com o St. John, começava a ser
cada vez mais provável. Num abrir e fechar de olhos, tudo mudava por com‑
pleto. A Religião chamava­‑me, os Anjos acenavam­‑me, Deus ordenava­‑me,
a minha vida enrolava­‑se como um pergaminho, as portas da morte abriam­
‑se e mostravam­‑me a eternidade que se achava para lá delas. Tinha a sen‑
sação de que, em nome da protecção e da bem­‑aventurança, seria capaz de
sacrificar tudo sem hesitar. A sala escura inundava­‑se de visões.
— Seria capaz de se decidir agora? — interrogou­‑me o missionário.
A pergunta foi feita num tom delicado. Oh, aquela delicadeza! Quão mais
poderosa era que a força! Com a fúria do St. John, eu podia bem; já sob a
sua bondade, eu dava por mim maleável como uma folha. Todavia, tive sem‑
pre a perfeita noção de que, se cedesse naquele momento, ele não perderia a
oportunidade de um dia me vir a fazer arrepender da minha rebelião prévia.
Uma hora de oração solene não seria suficiente para lhe mudar a natureza,
limitava­‑se a elevá­‑la.
— Eu poderia decidir se tivesse a certeza… — respondi­‑lhe — se tivesse
a certeza de que é da vontade de Deus que eu me case consigo, e aceitaria o
seu pedido neste preciso instante… independentemente do que o futuro nos
reservasse!
— As minhas preces foram ouvidas! — exclamou o St. John. Pressionou
a mão com mais firmeza à minha cabeça, como se reivindicasse a minha pes‑
soa; envolveu­‑me nos seus braços, quase como se me amasse (digo «quase»,
porque conhecia a diferença, pois sabia o que era ser amada; todavia, e a

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exemplo dele, eu já pusera o amor fora de questão e pensava unicamente no


dever). Debati­‑me com a minha falta de visão interior, diante da qual ainda
passavam algumas nuvens. Desejava sincera, profunda e ardentemente fazer
o que era correcto, e mais nada. «Mostra­‑me, mostra­‑me o caminho!», supli‑
quei eu ao Céu. Nunca na vida me sentira enlevada àquele ponto e se o que se
seguiu foi resultado desse mesmo enlevo, deixo ao critério do leitor.
A casa estava em silêncio absoluto, pois creio que, à excepção do St. John
e de mim própria, todos já se tinham recolhido. A única vela acesa ameaçava
extinguir­‑se, e a sala estava inundada de luar. Eu sentia o coração alvoroçado
e ouvia­‑o a latejar. De repente, foi arrebatado por uma sensação indescri‑
tível que depressa se propagou à minha cabeça e membros. Não se tratou
dum choque eléctrico, mas foi deveras forte, estranho e assustador, e tomou
conta dos meus sentidos como se até aí tivessem estado presos dum torpor
profundo, do qual eram então chamados e obrigados a despertar. Ficaram na
expectativa: os olhos e os ouvidos puseram­‑se à espera enquanto a carne me
tremia nos ossos.
— O que foi que ouviu? O que foi que viu? — interpelou­‑me o St. John.
Eu não via nada, mas ouvia uma voz algures a gritar: «Jane! Jane! Jane!», e nada
mais.
— Ó meu Deus! O que é isto? — ofeguei.
Mais valia ter dito: «Onde é que está?», pois não me parecia provir da
sala, nem tão­‑pouco da casa ou do jardim. Não me chegou através do ar, nem
por baixo da terra, nem por cima da minha cabeça. Eu ouvira­‑a… onde ou
donde, nunca haveria de descobrir! E era a voz dum ser humano, uma voz
conhecida, amada, que guardava na minha memória… a voz de Edward Fair‑
fax Rochester, que me falava num tom de desgosto e mágoa… desvairada,
estranha, urgente.
— Já vou! — gritei eu. — Espere por mim! Oh, eu vou! — Lancei­‑me
em direcção à porta e espreitei para o corredor: estava escuro. Corri para o
jardim: estava deserto.
— Onde é que está!? — exclamei.
Os montes para lá de Marsh Glen devolveram­‑me uma resposta débil:
«Onde é que está!?» Deixei­‑me ficar à escuta. O vento assobiava baixinho
por entre os abetos. À minha volta, não via senão a solidão da charneca e o
silêncio da noite.
— Basta de superstições! — declarei, à medida que esse espectro asso‑
mava, negro contra negro, junto ao teixo do portão. — Isto não é ilusão nem
bruxaria tua. Isto é obra da natureza. Ela foi instigada e não obrou nenhum
milagre… apenas o seu melhor.

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charlotte brontë 51

Afastei­‑me do St. John, que seria capaz de me impedir e de vir em minha


perseguição. Chegara o momento de exercer o meu predomínio. Os meus
poderes estavam em jogo, e em força. Disse­‑lhe que se abstivesse de pergun‑
tas ou comentários. Queria que ele me deixasse em paz; queria, e precisa‑
va, de ficar sozinha. O St. John não hesitou em obedecer. Onde há energia
suficiente para comandar, a obediência nunca falha. Subi ao meu quarto,
tranquei­‑me lá dentro, deixei­‑me cair de joelhos e rezei à minha maneira…
uma maneira diferente da do St. John, mas nem por isso menos eficaz. Tive a
sensação de chegar junto dum Espírito Poderoso, e a minha alma prostrou­‑se
de gratidão aos Seus pés. Quando, depois da oração de graças, me levantei,
tomei uma decisão e fui deitar­‑me, cheia de coragem e bem esclarecida…
ansiosa pelo raiar dum novo dia.

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Emily BRONTË. O Monte dos Vendavais. Tradução de Fernanda Pinto


Rodrigues. [1847] 2009. Lisboa: Presença. 75-82.

— Não gostaria de te matar esta noite, a não ser que me dê para pegar fogo à
casa. Mas isso dependerá da minha fantasia...
Enquanto falava, tirou uma garrafa de quartilho de aguardente do
guarda­‑louça e deitou uma porção num copo.
— Não, não beba! — supliquei. — Tenha em conta o que aconteceu, Mr.
Hindley. Tenha ao menos pena deste infeliz menino, se a não tem de si mesmo!
— Qualquer um será melhor para ele do que eu — respondeu­‑me.
— Tenha compaixão da sua alma! — continuei, tentando arrancar­‑lhe o
copo da mão.
— Nem pensar! Pelo contrário, terei grande prazer em enviá­‑la para os
quintos do Inferno, para castigo do seu criador — respondeu­‑me o blasfemo.
— Cá vai, à sua feliz danação.
Bebeu o álcool e, impacientemente, mandou­‑nos embora, rematando
a ordem com uma série de imprecações tão horrorosas que é impossível
repeti­‑las, ou lembrá­‑las.
— É uma pena que não se possa matar a si mesmo bebendo — comen‑
tou Heathcliff e, como num eco, rosnou por sua vez uma enfiada de pragas,
quando a porta se fechou. — Está a fazer todo o possível para que isso acon‑
teça, mas a sua constituição é mais forte. Mr. Kenneth diz que apostaria a sua
égua como ele sobreviverá a qualquer homem deste lado de Gimmerton e irá
para a cova como um velho pecador, a não ser que algum feliz acaso, fora do
curso normal das coisas, interfira.
Fui para a cozinha, para embalar o meu cordeirinho até ele adormecer.
Heathcliff foi para o celeiro, segundo pensei — afinal, depois verificou­‑se
que não tinha ido mais longe do que o outro lado do escano, onde se atirou
para uma cadeira junto da parede, afastado do lume, e ficou em silêncio.
Eu estava a embalar Hareton no colo e a trautear baixinho uma canção
que começava:
A noite ia alta e os meninos choravam,
Debaixo da terra a mãe ouvia­‑os,

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emily brontë 53

quando Miss Cathy, que escutara o alarido do seu quarto, meteu a cabeça
pela abertura da porta e sussurrou:
— Está sozinha, Nelly?
— Estou, menina.
Ela entrou e aproximou­‑ se do lar. Eu, supondo que ia dizer alguma
coisa, levantei a cabeça. A expressão do seu rosto parecia transtornada e
ansiosa. Tinha os lábios entreabertos, como se tencionasse realmente
falar, e respirou fundo: mas o ar escapou­‑lhe num suspiro, em vez de numa
frase.
Recomecei a cantar, tanto mais que não me tinha esquecido do seu com‑
portamento recente.
— Onde está Heathcliff? — perguntou, interrompendo­‑me.
— A tratar do seu trabalho, na cavalariça — foi a minha resposta. Ele não
me contradisse; talvez estivesse a dormitar.
Seguiu­‑se outra longa pausa, durante a qual me dei conta de que uma ou
duas lágrimas deslizavam da face de Catherine para as lajes do chão.
«Estará arrependida da sua vergonhosa conduta?», perguntei a mim
mesma. «Seria uma novidade, mas é possível que ela chegue a um ponto em
que isso aconteça. Não a ajudarei!»
Mas não; pouco se preocupava fosse com o que fosse, a não ser com o
que lhe dizia respeito.
— Meu Deus! — exclamou, por fim. — Sinto­‑me muito infeliz!
— Que pena — comentei. — E difícil de contentar... Tantos amigos e tão
poucos cuidados, e não consegue ficar satisfeita!
— Nelly, guarda um segredo meu? — perguntou, ajoelhando a meu lado
e levantando para o meu rosto aqueles olhos cativantes com aquela expres‑
são que afugenta o mau génio, mesmo quando uma pessoa tem todo o direito
do mundo de o demonstrar.
— Merece ser guardado? — indaguei, menos carrancuda.
— Merece, e preocupa­‑me, e tenho de o deitar cá para fora! Preciso de
saber o que devo fazer. Hoje, Edgar Linton pediu­‑me que casasse com ele,
e eu dei­‑lhe uma resposta. Antes que lhe diga se foi uma aceitação ou uma
recusa, diga­‑me a Nelly qual devia ter sido a resposta.
— Francamente, Miss Catherine, como quer que eu saiba? É certo
que, considerando o papel que representou na presença dele, esta tarde, eu
diria que seria sensato rejeitá­‑lo... Visto ter­‑lhe feito o pedido depois disso,
só pode ser irremediavelmente estúpido, ou então um idiota temerário.
— Se fala assim, não lhe digo mais nada — declarou irritadamente,
levantando­‑se. — Eu aceitei­‑o, Nelly. Depressa, diga que fiz mal!

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54 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Aceitou­‑o? Nesse caso, de que serve discutir o assunto? Comprome‑


teu a sua palavra, não pode voltar atrás.
— Mas diga se eu devia tê­‑lo feito, diga! — insistiu, em tom zangado,
esfregando as mãos uma na outra e franzindo a testa.
— Há muitas coisas a considerar, antes de ser possível responder a essa
pergunta de maneira apropriada — declarei, sentenciosamente. — Antes de
mais nada, ama Mr. Edgar?
— Quem pode deixar de o amar? Claro que amo.
Submeti­‑a, então, ao seguinte catecismo, a que não faltava acerto, vindo
de uma rapariga de vinte e dois anos:
— Porque é que o ama, Miss Cathy?
— Que disparate, amo­‑o: isso basta.
— De modo algum; deve dizer porquê.
— Bem, porque é bonito, e é agradável estar com ele.
— Mau — foi o meu comentário.
— E porque é jovem e alegre.
— Mantenho o mau.
— E porque ele me ama.
— Indiferente, nesse ponto.
— E será rico, e eu gostarei de ser a mulher mais importante das redon‑
dezas, e sentirei orgulho de ter tal marido.
— Pior que tudo! E, agora, quer dizer­‑me como o ama?
— Como toda a gente ama. É tola, Nelly.
— Não, não sou. Responda.
— Amo o chão que ele pisa, e o ar que respira, e tudo aquilo em que toca,
e cada palavra que ele diz... Amo todas as suas feições, e todos os seus actos,
e a ele todo e completamente. Pronto, aí tem!
— E porquê?
— Não… está a troçar, isso é de péssimo gosto! Para mim não se trata de
nenhuma brincadeira! — protestou, com ar zangado, e voltando o rosto para
o lume.
— Longe de mim estar a troçar, Miss Catherine. A menina ama Mr. Edgar
porque ele é bonito, e jovem, e alegre, e rico, e a ama. O último pormenor, no
entanto, não vale nada: amá­‑lo­‑ia sem isso, provavelmente, e, com isso, pode‑
ria não o amar, a não ser que ele possuísse os primeiros quatro atractivos.
— Não, pode ter a certeza que não… Só teria pena dele… detestá­‑lo­‑ia,
talvez, se fosse feio, e um rústico.
— Mas há no mundo vários outros jovens bonitos e ricos, possivelmen‑
te, até, mais bonitos e mais ricos do que ele é... O que a impediria de os amar?

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emily brontë 55

— Se os há, estão fora do meu caminho. Não vi nenhum como Edgar.


— Pode ver alguns. E ele não será sempre jovem e bonito, e poderá não
ser sempre rico.
— Agora é. E a mim só me interessa o presente. Gostava que falasse
racionalmente.
— Bem, isso arruma a questão: se só lhe interessa o presente, case com
Mr. Linton.
— Não preciso da sua permissão; casarei com ele. Mas ainda não me
disse se estou certa.
— Perfeitamente certa! Se é certo as pessoas casarem só pelo presente.
E agora conte­‑nos o que é que a torna infeliz. Seu irmão ficará satisfeito...
o velho casal, a senhora e o cavalheiro, não se oporão, penso; trocará uma casa
desorganizada e desconfortável por outra rica e respeitável; e ama Edgar, que
a ama a si. Parece tudo normal e fácil. Onde está o obstáculo?
— Aqui e aqui! — respondeu Catherine, batendo com uma mão na testa
e com a outra no peito. — Seja lá onde for que a alma vive: na minha alma e no
meu coração, tenho a certeza de que estou errada!
— Isso é muito estranho! Não compreendo.
— É o meu segredo; mas eu explico­‑lhe, se não troçar de mim. Não sei
fazê­‑lo claramente, mas posso dar­‑lhe uma impressão do que sinto.
Voltou a sentar­‑se junto de mim; a sua expressão tornou­‑se mais triste e
mais grave, e as suas mãos, que tinha apertadas uma na outra, tremiam.
— Nelly, nunca tem sonhos estranhos? — perguntou, inesperadamente,
passados alguns momentos de reflexão.
— Sim, de vez em quando.
— Eu também. Ao longo da minha vida tenho tido sonhos que fica‑
ram sempre comigo, e mudaram as minhas ideias. Atravessaram­‑ me,
percorreram­‑me toda, como o vinho faz à água, e alteraram a cor da minha
mente. E este… vou contá­‑lo, mas veja lá, não sorria de nenhuma parte dele.
— Oh, não conte, Miss Catherine! — exclamei. — Somos suficiente‑
mente tristonhos sem precisarmos de invocar fantasmas e visões para nos
deixarem perplexos. Vamos, vamos, seja alegre, e como é! Repare no peque‑
no Hareton: ele não está a sonhar nada de medonho. Como sorri docemente,
enquanto dorme!
— Sim, e como o pai dele pragueja docemente na sua solidão! Suponho
que se lembra dele, quando era assim como esse, uma coisinha rechonchu‑
da… quase tão pequenino e inocente. No entanto, Nelly, vou obrigá­‑la a
escutar. Não demora, e eu esta noite não sou capaz de estar alegre.
— Não quero ouvir, não quero! — repeti, apressadamente.

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56 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Eu era supersticiosa a respeito de sonhos, nesse tempo — e continuo a


ser. E no aspecto de Catherine havia uma melancolia fora do habitual, que
me fazia temer alguma coisa a partir da qual eu pudesse elaborar uma profe‑
cia, e prever uma catástrofe pavorosa.
Ficou aborrecida, mas não insistiu. Pegando aparentemente noutro
assunto, recomeçou, pouco depois:
— Se eu estivesse no céu, Nelly, sentir­‑me­‑ia terrivelmente desgraçada.
— Porque não está em condições de ir para lá — respondi. — Todos os
pecadores se sentiriam desgraçados no céu.
— Mas não é por causa disso. Uma vez sonhei que estava lá.
— Já lhe disse que não quero escutar os seus sonhos, Miss Catherine!
Vou deitar­‑me — interrompi­‑a de novo.
Riu­‑se e segurou­‑me, pois eu fizera menção de me levantar.
— Não é nada disso — afirmou. — Ia apenas dizer que o céu não parecia
ser a minha casa, e eu despedaçava o coração a chorar, para regressar à Terra.
Os anjos estavam tão zangados que me atiraram cá para baixo, para o meio
do urzal do cimo do Monte dos Vendavais, onde acordei a soluçar de ale‑
gria. Isso serve para explicar o meu segredo, assim como o resto. Tenho tanto
direito de casar com Edgar Linton como de estar no céu, e se o homem mal‑
vado que ali está não tivesse feito Heathcliff descer tão baixo, nem me teria
passado pela cabeça tal coisa. Agora degradar­‑me­‑ia casar com Heathcliff;
por isso, ele nunca saberá como o amo, e amo­‑o, não por ele ser bonito, Nelly,
mas porque ele é mais eu própria do que eu sou. Seja do que for que as nos‑
sas almas são feitas, a dele e a minha são iguais, e a de Linton é tão diferente
como um raio de luar é diferente do relâmpago, ou a geada do fogo.
Antes de este discurso terminar, dei­‑me conta da presença de Heathcliff.
Apercebendo­‑me de um ligeiro movimento, virei a cabeça e vi­‑o levantar­‑se
do banco e esgueirar­‑se para fora, silenciosamente. Escutara até ouvir Cathe‑
rine dizer que a degradaria casar com ele, e depois não ficara para ouvir mais.
As costas do escano impediram a minha companheira, que estava senta‑
da no chão, de ter consciência da presença ou partida dele. Mas eu estremeci
e pedi­‑lhe que se calasse.
— Porquê? — perguntou, olhando nervosamente em redor.
— Joseph vem aí — respondi, pois acabava de ouvir, muito oportuna‑
mente, o barulho das rodas da sua carroça a subir o caminho —, e Heathcliff
entrará com ele. Não garanto que ele não estivesse à porta, há instantes.
— Oh, não me poderia ouvir, da porta! — afirmou ela. — Dê­‑me o
menino enquanto prepara a ceia, e quando estiver pronta convide­‑me para
cear consigo. Quero distrair a minha consciência pesada e convencer­‑me de

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emily brontë 57

que Heathcliff não tem nenhuma ideia destas coisas... Ele não tem, pois não?
Ele não sabe o que é amar, pois não?
— Não vejo nenhuma razão para que ele não saiba, como a menina sabe
respondi. — E se a menina for a sua escolhida, ele será a criatura mais infe‑
liz que jamais nasceu! Assim que se tornar Mrs. Linton, Heathcliff perde‑
rá amiga, e amor, e tudo! Já pensou como vai suportar a sua separação dele,
e como ele suportará ficar completamente abandonado no mundo? Porque,
Miss Catherine...
— Ele completamente abandonado! Nós separados! — exclamou, num
tom de indignação. — Quem nos separará, diga­‑me? Terão o destino de Milo!
Nunca, enquanto eu viver, Ellen, nenhuma criatura mortal o conseguirá. Mais
depressa todos os Linton da face da Terra se derreteriam em nada, do que eu
consentiria em abandonar Heathcliff. Oh, não é isso o que eu pretendo, não é
isso o que eu quero! Nunca seria Mrs. Linton se me fosse pedido um tal preço!
Ele continuará a ser tanto para mim como foi durante toda a vida. Edgar terá
que ignorar a sua antipatia e tolerá­‑lo. E assim fará, quando conhecer os meus
verdadeiros sentimentos a respeito dele. Nelly, vejo­‑o agora, considera­‑me
uma miserável egoísta, mas nunca pensou que, se Heathcliff e eu nos casá‑
ssemos, seríamos mendigos? Ao passo que, se eu casar com Linton, poderei
ajudar Heathcliff a subir, e pô­‑lo fora do domínio do meu irmão?
— Com o dinheiro do seu marido, Miss Catherine? — perguntei. — Não
o achará tão maleável como calcula. E, embora eu não possa considerar­‑me
juiz, acho que esse é o pior motivo que até agora invocou para ser mulher do
jovem Linton.
— Não é, é o melhor! Os outros foram a satisfação dos meus caprichos;
e pensando em Edgar, também, em satisfazê­‑lo. Este é para o bem de alguém
que abrange na sua pessoa os meus sentimentos por Edgar e por mim própria.
Não sei exprimi­‑lo, mas certamente vossemecê e toda a gente têm a noção
de que existe, ou deveria existir, uma existência nossa para além de nós. Para
que serviria a minha criação se eu estivesse inteiramente contida aqui? Os
meus grandes tormentos neste mundo têm sido os tormentos de Heathcliff,
e eu observei e senti cada um deles desde o princípio; o meu grande pen‑
samento na vida é ele. Se tudo o mais desaparecesse e ele permanecesse, eu
continuaria a existir; e se tudo o mais permanecesse e ele fosse aniquilado,
o universo transformar­‑ se­‑ia um imenso desconhecido. Eu não pareceria
uma parte dele. O meu amor por Linton é como a folhagem das florestas.
O tempo há­‑de mudá­‑lo, tenho perfeita consciência disso, como o Inver‑
no muda as árvores. O meu amor por Heathcliff assemelha­‑ se às rochas
eternas que existem por baixo: uma fonte de pouco deleite visível, mas

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58 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

necessárias. Nelly, eu sou Heathcliff, ele está sempre na minha mente, não como
um prazer, do mesmo modo que eu não sou sempre um prazer para mim mesma,
mas como o meu próprio ser. Por isso, não volte a falar da nossa separação.
É impraticável. E...
Fez uma pausa e ocultou o rosto nas pregas do meu vestido, mas eu
afastei­‑a energicamente. Perdera a paciência com a sua insensatez!
— Se algum senso encontro no seu contra­‑senso, menina, ele só serve
para me convencer de que ignora os deveres que se assumem no casamento.
Ou então que é uma rapariga perversa e sem princípios. Mas não me inquiete
com mais segredos. Não prometo guardá­‑los.
— Guarda este? — perguntou, ansiosamente.
— Não, não prometo — repeti.
Ela ia a insistir, mas a entrada de Joseph pôs fim à nossa conversa. Cathe‑
rine mudou o seu banco para um canto e embalou Hareton, enquanto eu
fazia a ceia.
Feita esta, o criado e eu começámos a discutir quem levaria a comida
a Mr. Hindley, e só resolvemos o assunto quando já estava tudo quase frio.
Concordámos então em que esperaríamos que ele pedisse, se quisesse comer;
receávamos de modo particular comparecer na sua presença depois de ele ter
estado algum tempo sozinho.
— E aquele imprestável inda nom voltou do campo, a esta hora? Que ‘tá
ele a tramar? Tamanho preguiçoso! — perguntou o velho, olhando à volta à
procura de Heathcliff .
— Vou chamá­‑lo — respondi. — Tenho a certeza de que está no celeiro.
Fui e chamei­‑o, mas não obtive resposta. Quando voltei, segredei a
Catherine que estava certa de que ele ouvira uma boa parte do que me disse‑
ra. E contei­‑lhe que o vira sair da cozinha precisamente quando ela se queixa‑
va do comportamento do irmão para com ele.

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lord byron 59

Lord BYRON. «Stanzas for Music», in Horas de Fuga. Tradução de Luiz


Cardim. [1815] 2003. Porto: Asa. 54.

Muita mulher tem beleza,


nenhuma a tua magia;
e a tua voz tal riqueza,
que nem a da melodia
por sobre as águas do mar:
quando, num encantamento,
sonhando adormece o vento
e a onda pára um momento
e desfalece, a brilhar...

E a lua no céu fiando


a sua teia, a sorrir;
e o mar brandamente arfando
qual criancinha a dormir:
assim, dentro da minha alma,
eu me inclino, ao encontrar­‑te,
me suspendo, a escutar­‑te,
me curvo, para adorar­‑te:
com funda emoção, mas calma.

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60 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Geoffrey CHAUCER. «O conto da mulher de Bath», in Os Contos da


Cantuária. Tradução de Olívio Caeiro. [1476] 1980. Porto: Brasília. 195­‑208.

«Nos velhos tempos do bom rei Artur,


Que os ingleses recordam com louvor,
Seres mágicos viviam nestas terras.
A rainha das fadas mai­‑las damas
Dançavam, quanta vez, nos verdes prados,
Segundo a lenda antiga, que é dos livros.
Mas isso já lá vão centenas de anos
E hoje em dia não há quem veja as fadas,
Pois as preces e a santa caridade
Dos mendicantes e outros santos frades,
Que enxameiam por montes e valados,
Como a poeira à luz dum raio de sol,
Abençoando alcovas e cozinhas,
Cidades, velhos burgos e altas torres,
Lugarejos, celeiros, vacarias —
— Acabaram co’as fadas e os duendes.
Onde outrora era um gnomo que passava,
Vê­‑se agora passar o mendicante,
Ao romper d’alva ou ao cair da noite,
E lá vai entoando o repertório,
Enquanto cobra a esmola em seus limites.
Agora andam as damas à vontade;
Entre arbustos ou sob o arvoredo,
De espíritos só resta o bom do frade
E deste nada têm que temer.
Pois este rei Artur tinha na corte
Um jovem cavaleiro alto e robusto,
Que um dia, ao vir do rio, em seu cavalo,
Avistou ali perto uma donzela
Caminhando sozinha e sem amparo,

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geoffrey chaucer 61

E logo, por mais que esta protestasse,


À força lhe roubou a virgindade.
Tal clamor levantou a violação
E tanto se apelou p’rò rei Artur,
Que à morte o cavaleiro foi condenado,
Conforme era de lei naqueles tempos.
A rainha, porém, e outras damas
Rogaram tanto a graça do monarca,
Que este deu à rainha decidir
Sobre a morte ou perdão do condenado.
A rainha desfez­‑se em gratidão
E um dia mandou vir o cavaleiro,
A quem assim exprimiu sua vontade:
‘A vossa sorte é ‘inda tão precária,
Que não tendes a vida em segurança;
Sereis livre, porém, se me disserdes
Que coisa é que as mulheres mais ambicionam.
Escolhei entre o carrasco e uma resposta.
Se não ma podeis dar neste momento,
Ainda vos concedo que partais
Durante um ano e dia a procurar
A resposta acertada em tal assunto.
E haveis de garantir­‑me, antes de mais,
Que aqui vos entregais dentro do prazo’.
Suspirou de tristeza o cavaleiro,
Mas paciência!, a sentença estava dada,
E decidiu por fim pôr­‑se a caminho
E regressar passado o ano e dia
Co’a resposta que Deus lhe mandaria.
Fez pois as despedidas e partiu.
Bateu a cada porta, em todo o lado
Onde houvesse uma esp’rança de saber
Que coisa é que as mulheres mais adoravam.
Mas em vão se esforçou. Por mais que andasse,
Não chegou a lugar onde encontrasse
Duas almas da mesma opinião.
Para alguns, as mulheres queriam riquezas,
Diziam outros, vénias ou folguedos,
Ou bons vestidos, ou prazer na cama,

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62 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ou enviuvar e logo haver marido,


Ou então, se as quiserem regaladas,
É trazê­‑las contentes e aduladas.
Lá isso é uma verdade, estou de acordo:
Adulando é que os homens nos conquistam;
De atenções e gentilezas todas gostam,
Desde as damas mais nobres às vilãs.
Outros achavam que o que mais estimamos
É ser livre e fazer nossa vontade,
Sem que ninguém por faltas nos censure
E até nos gabem os dotes e as virtudes.
Na verdade, não sei duma mulher
Que, achada em mau caminho, não se volte
Contra aquele que as verdades lhe disser.
Experimentai e vereis se assim não é,
Pois a mais pecadora, lá no íntimo,
Quer passar por santinha em boca alheia.
Alguns diziam ser do nosso agrado
Passarmos por constantes e discretas,
Capazes de manter opinião
E guardar os segredos que nos digam.
Mas que grande mentira aí disseram!
Tolice! Uma mulher guardar segredo!
Lembrai­‑vos do rei Midas; eis a história:
Conta Ovídio, entre muitas outras coisas,
Que a Midas, sob a longa cabeleira,
Nascera um grande par de orelhas de asno,
Deformidade horrenda, que zeloso
Ocultava da vista dos mortais.
Apenas a mulher tinha o segredo.
Ele adorava­‑a, e nela confiando,
Pediu­‑lhe que a ninguém desse a saber
O defeito que tanto o desfeava.
Por nada deste mundo, ela jurou,
Faria tal infâmia, tal pecado,
Que além duma má fama p’rò marido,
Seria nela própria uma vergonha.
E contudo sentiu que ia morrer
Se guardasse o segredo eternamente;

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geoffrey chaucer 63

Parecia que lhe inchava o coração


Co’a força das palavras que lá tinha.
Sem poder com ninguém desabafar,
Correu até um pântano ali perto.
Quando chegou já vinha a transbordar!
E assim como a cegonha com o bico
Na água mergulhado faz balões,
Assim disse ela às águas em segredo:
‘Que o vosso marulhar não me atraiçoe!
Sabei o que não disse ‘inda a ninguém:
As orelhas do meu homem são de burro.
Que alívio! O coração já despejou!
Morria, se tivesse isto cá dentro’.
Como vêdes, as mulheres não se contêm
Sem deitar os segredos cá p’ra fora.
Se quereis saber o resto desta história,
Basta­‑vos ler Ovídio e sabereis.
Pois este cavaleiro da minha história,
Ao ver que não chegava à conclusão
Da coisa que as mulheres mais adoravam,
Sentiu no peito uma tristeza enorme.
Mas tomou rumo a casa, sem demora,
Que o dia do regresso era chegado.
Montado tristemente em seu cavalo,
Passava junto à orla da floresta,
Quando viu a dançar, alegre, um grupo
De vinte e quatro damas, talvez mais.
Ansioso, logo delas se acercou,
Na esperança da resposta que buscava;
Mas, mal chegado ali, eis que a festança
Nos ares desapareceu, sem deixar rasto.
Não ficara viv’alma, salvo apenas
Uma velha sentada sobre a relva,
Tão feia que até custa acreditar.
Ergueu­‑se a velha e disse ao cavaleiro:
‘Meu Senhor, estais perdido nesta senda;
Por vossa fé, dizei­‑me o que buscais!
Talvez seja melhor se assim fizerdes,
Pois sabe muita coisa a gente velha’.

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64 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

‘Velhota’, respondeu o cavaleiro,


‘Perdido ficarei, se não descubro,
Que coisa é mais do gosto das mulheres.
Dizei­‑mo vós e eu bem vos pagarei’.
Diz a velha: ‘Jurai na minha mão
Que fareis uma coisa que eu vos peça,
Se essa coisa estiver ao vosso alcance,
E tereis a resposta antes da noite’.
‘Por minha fé’, disse ele, ‘estou de acordo!’
‘Então’, tornou a velha, ‘eu vos prometo
Que a vossa vida é salva, pois aposto
Que a rainha é da minha opinião.
E mostrai­‑me da corte a mais ufana,
Adornada de coifa ou de mantilha,
Que diga não ao que eu vos ensinar.
Partamos pois daqui sem mais tardança’.
Então fez­‑lhe ao ouvido a confidência
E pediu­‑lhe que nada receasse.
Recebidos na corte, o cavaleiro
Veio declarar que o prazo era cumprido
E a resposta pedida estava pronta.
Nobres matronas e gentis donzelas,
Viúvas com experiência e com saber,
E a rainha no trono a presidir,
Ali se reuniram p’ra julgar.»

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vittoria colonna 65

Vittoria COLONNA. [Escrevo só p’ra aliviar o mal penoso], in Rime.


Tradução inédita de Daniela Di Pasquale. [1552] 1982. Roma­‑Bari:
Giuseppe Laterza & Figli. 3.

Escrevo só p’ra aliviar o mal penoso


pelas luzes raras ao coração dado,
não para adir lume ao meu Sol amado,
ao claro espírito e ao corpo honroso.

Justa causa provoca o ser queixoso;


dói­‑me tolherem sua glória estes lábios;
que outra trompa e ditos mais sábios
roubem à morte o nome dadivoso.

A pura fé, o ardor, a intensa pena


perdoem­‑me todos, pois o grave pranto
é tal que tempo nem razão o frena.

Amargo lagrimar, não doce canto;


turvos suspiros e não voz serena;
o estilo não, mas a dor me honra tanto.

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66 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Boris CRISTOV. «Meu cavalito», in O Canto e a Contenda. Tradução de


Vítor Tiago. [1977] 1989. Lisboa: Escritor. 9.

Já vivemos felizes, meu leal cavalito,


mas a vida é fugaz, apenas dura um grito.
Temos que separar­‑nos, não há outra possibilidade,
teus olhos perderam o fulgor e teus cascos vivacidade.

As crinas ao vento levavas tua alma a galope,


e eu, coração de dois pés, seguia­‑te…
A noite encontrava­‑nos dormindo na erva,
fugidos dos homens, esquecidos de Deus.

Mas de novo com seu corno­‑corneta o vento chamava


e nossos corpos não conheciam látego, nem freio.
Beijo a tua malha negra… Beijo a tua malha branca.
Como podes tu deixar­‑me, meu leal cavalito?

Se tos pudesse dar, dos meus anos te daria.


Mas dar­‑te­‑ei guizos, serás todo um sino.
Toma este, redondo, vê o seu coração azul.
Até o meu relógio te dou, só para que te não vás.

Mas partes. Repicam os teus cascos nunca ferrados.


Perdoa­‑me, peço­‑te, ímpar cavalito meu!
Com que furor tua crina se agitará ao vento
e fulgirá sobre a guilhotina como um sol.

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dante alighieri 67

DANTE ALIGHIERI. Excerto de «Canto V, Inferno», in A Divina


Comédia. Tradução de Vasco Graça-Moura. 2006. Lisboa: Bertrand. 63-69.

Texto sujeito a Direitos de Autor

[Círculo segundo. Luxuriosos. Minos à entrada do círculo. Famosos


pecadores carnais, Francesca da Rimini e Paolo Malatesta.]

Assim baixei do círculo primeiro


ao segundo, que área menor cingia
3 mas tanto mais em dor punge certeiro.
Minos lá era horrível que rangia:
a examinar as culpas logo à entrada;
6 conforme julga e manda, a cauda o estria.
Digo que a alma à desventura nada,
ante ele surge e toda se confessa;
9 sabedor dos pecados a degrada
e a um lugar no inferno a arremessa;
tantas voltas da cauda em si gravitam
12 quantos graus mais abaixo a endereça.
Diante dele há muitas que se agitam,
as que vão a juízo por seu vício;
15 dizem e escutam e se precipitam.
«Ó tu que vens ao doloroso hospício»,
Minos me disse, porque ali me via,
18 deixando o acto de tão alto ofício,
«quem entra, veja como e de quem fia,
não te engane a largura desse entrar!...»
21 «Porque gritas assim?» disse o meu guia,
«Não estorves o seu fatal andar:
assim se quer lá onde mais se pode
24 o que se quer, e assaz de perguntar.»
Agora o som dolente já me acode
fazendo-se sentir; eis-me descido
27 lá onde muito pranto me sacode.
Vim a lugar da luz emudecido,
que muge como o mar no temporal
30 se é de contrários ventos combatido.

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robert desnos 71

Robert DESNOS. [Assim como a mão no instante da morte…], in Rosa


do Mundo: 2001 poemas para o futuro. Tradução de Filipe Jarro. [1930] 2001.
Lisboa: Assírio & Alvim. 1405.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Assim como a mão no instante da morte e do naufrágio se ergue como os


raios do pôr do sol, assim de toda a parte jorra o teu olhar.
Já não é tempo, já não é talvez tempo de me ver,
Mas a folha que cai e a roda que gira dir­‑te­‑ão que nada é perpétuo sobre a
terra.
Salvo o amor,
E disso me quero convencer.
Dos navios de salvamento pintados com avermelhadas cores,
Das trovoadas que fogem,
Uma valsa antiga que arrastam o tempo e o vento durante os longos espaços
do céu.
Paisagens.
Eu, não quero outras senão o abraço a que aspiro,
E que morra o canto do galo.
Como a mão que no instante da morte se crispa, o meu coração se aperta.
Nunca chorei desde que te conheço.
Amo de mais o meu amor para chorar.
Chorarás sobre a minha campa,
Ou eu sobre a tua
Não será tarde de mais.
E mentirei. Direi que foste minha amante
Ou na verdade tudo é tão inútil,
Tu e eu, morreremos em breve.

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72 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Gustave FLAUBERT. A Educação Sentimental. Tradução de João Costa.


[1869] 1975. Porto: Círculo de Leitores. 7­‑15.

À parte alguns burgueses na primeira classe, eram operários, gente de lojas


com as mulheres e as crianças. Como então havia o hábito de se vestir sordi‑
damente em viagem quase todos usavam velhos barretes gregos ou chapéus
distingidos, fatos escuros coçados pelo roçar nas secretárias, ou sobrecasa‑
cas que abriam a cápsula dos botões por terem servido demais na loja; aqui e
além, um ou outro colete de xaile permitia ver uma camisa de pano­‑patente,
maculada de café; alfinetes de crisócalo estavam espetados em gravatas ras‑
gadas; presilhas cosidas seguravam chinelos de ourelo; dois ou três malan‑
drins que se apoiavam em bengalas de bambu com castão de coiro lançavam
olhares oblíquos, e pais de família abriam olhos enormes, fazendo perguntas.
Conversavam de pé, ou então sentados nas bagagens; outros dormiam nos
cantos; vários comiam. A coberta achava­‑se suja com cascas de noz, pontas
de charuto, cascas de pêras, detritos de charcutaria trazida em papel; três
marceneiros, de blusa, estacionavam em frente da cantina; um tocador de
harpa, esfarrapado, descansava, apoiado ao seu instrumento; ouvia­‑se de vez
em quando o barulho do carvão de terra na fornalha, um som de voz, uma
risada; e o comandante, na passarela, caminhava de um tambor para outro,
sem parar. Frédéric, para tornar ao seu lugar, empurrou o gradeamento da
primeira classe, incomodou dois caçadores com os seus cães.
Foi como que uma aparição:
Estava sentada, no meio do banco, completamente só; ou pelo menos ele
não avistou ninguém no deslumbramento que os seus olhos lhe enviaram. Ao
mesmo tempo que passava, ela levantou a cabeça; ele curvou involuntariamen‑
te os ombros; e quando se colocou mais longe, do mesmo lado, fitou­‑a.
Tinha um largo chapéu de palha, com fitas cor­de rosa que palpitavam ao
vento, atrás dela. Os bandós negros, contornando a ponta das suas grandes
sobrancelhas, desciam muito baixo e pareciam comprimir amorosamente o
oval do rosto. O vestido de musselina clara, salpicado de bolinhas verdes,
espalhava­‑se em pregas numerosas. Encontrava­‑se a bordar qualquer coisa;
e o nariz direito, o queixo, toda a sua pessoa se recortava no fundo azul.

O Mundo lido Europa-Tomo IV_PAG.indd 72 18/04/12 16:23


gustave flaubert 73

Como ela mantivesse a mesma atitude, ele deu várias voltas de um lado
para o outro para dissimular a sua manobra; depois, pôs­‑se muito perto da
sombrinha, encostada ao banco, e fingiu observar uma chalupa no rio.
Jamais vira um esplendor como o da sua pele morena, como a sedução da
cintura, nem como a delicadeza dos dedos que a luz atravessava. Encarava o
seu cesto de costura com assombro, como uma coisa extraordinária. Quais
eram o seu nome, a sua morada, a sua vida, o seu passado? Desejava conhecer
os móveis do seu quarto, todos os vestidos que usara, as pessoas que frequen‑
tava; e o próprio desejo da posse física desaparecia sob uma ânsia mais pro‑
funda, numa curiosidade dolorosa que não tinha limites.
Uma preta, de lenço na cabeça, surgiu, segurando pela mão uma menina,
já crescida. A criança, de cujos olhos corriam lágrimas, acabava de despertar.
Ela sentou-a nos joelhos. A menina não era sossegadinha, embora dentro em
pouco fizesse sete anos; a mãe já não gostaria dela; perdoavam-lhe demais os
seus caprichos. E Frédéric alegrava-se ao ouvir estas coisas, como se tivesse
feito uma descoberta, uma aquisição.
Julgava­‑a de origem andaluza, crioula talvez; tinha trazido consigo das
ilhas aquela preta?
Contudo, um xaile comprido de franjas violetas achava­‑ se colocado
atrás das suas costas, sobre o rebordo de cobre. Com certeza muitas vezes,
no meio do mar, durante as tardes húmidas, devia ter­‑ se envolvido nele,
coberto os pés, dormido dentro do seu interior! Mas, arrastado pelas franjas,
escorregava a pouco e pouco, ia cair à água. Frédéric deu um salto e apanhou­
‑o. Ela disse­‑lhe:
— Agradeço­‑lhe, senhor.
Os seus olhos encontraram­‑se.
— Mulher, estás pronta? — gritou o Sr. Arnoux, aparecendo no anteparo
da escada.
A Menina Marthe correu para ele, e, pendurada no seu pescoço, puxava­
‑lhe pelos bigodes. Retiniram os sons de uma harpa, ela quis ver a música;
e em breve o tocador do instrumento, trazido pela preta, entrou na primeira
classe. Arnoux reconheceu­‑o como um antigo modelo; tuteou­‑o, o que sur‑
preendeu os assistentes. Por fim, o harpista atirou os compridos cabelos para
trás das costas, estendeu os braços e pôs­‑se a tocar.
Era uma romança oriental, onde se falava de punhais, flores e estre‑
las. O homem esfarrapado cantava isto com uma voz mordaz; os batimentos
da máquina cortavam a melodia nos momentos menos indicados; dedilhava
com mais força; as cordas vibravam, os sons metálicos pareciam exalar solu‑
ços, e como que o lamento de um amor orgulhoso e vencido. Dos dois lados

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do rio, arvoredos inclinavam­‑se até à borda da água; passava uma corrente de


ar fresco; a Senhora Arnoux olhava para longe, de um modo vago. Quando a
música parou, mexeu várias vezes as pálpebras, como se saísse de um sonho.
O harpista aproximou­‑se deles, humildemente. Enquanto Arnoux pro‑
curava troco, Frédéric estendeu para o boné a sua mão fechada, e, abrindo­‑a
com pudor, aí depositou um luís de oiro. Não fora a vaidade que o levara a dar
esta esmola diante dela, mas um pensamento de bênção a que a associava, um
impulso de coração quase religioso.
Arnoux, indicando­‑lhe o caminho, convidou­‑o cordialmente a descer.
Frédéric afirmou que acabava de almoçar: pelo contrário, morria de fome;
e já nem um cêntimo possuía no fundo da bolsa.
Em seguida, pensou que tinha tanto direito como outro qualquer a estar
no salão.
Em torno das mesas redondas, burgueses comiam, um criado de café
circulava; o Senhor e a Senhora Arnoux encontravam­‑se no fundo, à direita;
ele sentou­‑se na comprida banqueta de veludo, tendo apanhado um jornal
que aí se achava.
Deviam, em Montereau, tomar a diligência de Châlons. A sua viagem à
Suíça duraria um mês. A Senhora Arnoux censurou o marido pela sua fraque‑
za em relação à filha. Ele murmurou­‑lhe ao ouvido uma graciosidade, sem
dúvida, porque ela sorriu. Depois, ele deslocou­‑se para fechar atrás do seu
pescoço o cortinado da janela.
O tecto, baixo e todo branco, espalhava uma luz crua. Frédéric, em fren‑
te, distinguia­‑lhe a sombra das pestanas. Ela molhava os lábios no copo, par‑
tia um pouco de côdea entre os dedos; o medalhão de lápis­‑lazúli, ligado por
uma corrente de oiro ao pulso, tilintava de vez em quando de encontro ao
prato. Os que ali se encontravam, porém, não pareciam notá­‑la.
Algumas vezes, pelas escotilhas, via­‑se deslizar o flanco de uma barca que
acostava ao navio para tomar ou largar viajantes. As pessoas sentadas à mesa
debruçavam­‑se para as aberturas e diziam o nome das terras ribeirinhas.
Arnoux queixava­‑se da cozinha: espantou­‑se consideravelmente perante
a conta, e fê­‑la abater. Depois, levou o jovem para a proa do barco para bebe‑
rem grogues. Mas Frédéric depressa regressou ao toldo, para onde a Senhora
Arnoux voltara. Estava a ler um volume fininho de capa cinzenta. Os dois can‑
tos da boca erguiam­‑se por momentos, e um brilho de prazer iluminava­‑lhe
a fronte. Sentiu ciúmes de quem tinha inventado aquelas coisas com que ela
parecia ocupada. Quanto mais a contemplava, mais sentia cavarem­‑se entre
ambos abismos. Pensava que teria de deixá­‑la dali a pouco, irrevogavelmente,
sem lhe ter arrancado uma palavra, sem sequer lhe deixar uma lembrança!

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gustave flaubert 75

Uma planície estendia­‑se à direita; à esquerda uma ervagem ia doce‑


mente alcançar uma colina, onde se vislumbravam vinhedos, nogueiras, um
moinho na verdura, e pequenas veredas mais além, formando ziguezagues na
rocha branca que tocava na borda do céu. Que felicidade subir lado a lado, o
braço em redor da cintura dela, enquanto o vestido varresse as folhas amare‑
lecidas, escutando a sua voz, sob o deslumbramento dos seus olhos! O barco
podia parar, apenas tinham que descer; e esta coisa tão simples não era, toda‑
via, mais fácil do que agitar o Sol!
Um pouco mais longe, descobre­‑se um castelo, de telhado pontiagudo,
com torrinhas quadradas. Um canteiro de flores estendia­‑se em frente da sua
fachada; e avenidas mergulhavam, como abóbadas negras, debaixo das altas
tílias. Ele imaginou­‑a a passar à beira das carpas. Neste momento, uma dama
jovem e um homem novo apareceram na escadaria exterior, entre os caixotes
de laranjeiras. Depois tudo desapareceu.
A menina brincava à volta dele. Frédéric quis beijá­‑la. Ela escondeu­‑se
atrás da criada; a mãe ralhou­‑lhe por não ser amável para com o cavalheiro
que lhe tinha salvo o xaile. Era uma abertura indirecta?
«Vai enfim falar­‑me?», perguntava de si para si.
O tempo urgia. Como obter um convite para ir a casa dos Arnoux?
E não imaginou nada melhor do que fazer­‑lhe notar a cor do Outono,
acrescentando:
— E está a chegar o Inverno, a estação dos bailes e dos jantares!
Mas Arnoux achava­‑se completamente ocupado com as suas bagagens.
A costa de Surville apareceu, as duas pontes aproximavam­‑se, costearam
uma cordoaria, a seguir uma fila de casas baixas; havia, depois, marmitas de
alcatrão, bocados de madeira; e garotos corriam pela areia, fazendo rodas.
Frédéric reconheceu um homem com um colete de mangas, gritou­‑lhe:
— Despacha­‑te!
Estavam a chegar. Procurou penosamente Arnoux no meio da multidão
dos passageiros e o outro respondeu apertando­‑lhe a mão:
— Tive muito prazer, caro senhor!
Quando se viu no cais, Frédéric voltou­‑se. Ela estava próxima do leme,
de pé. Ele enviou­‑lhe um olhar em que tentara pôr toda a sua alma; como se
nada tivesse feito, ela permaneceu imóvel. Depois, sem dar atenção aos cum‑
primentos do criado:
— Porque não tiveste o cuidado de trazer a carruagem até aqui?
O homem desculpava­‑se.
— Que desajeitado! Dá­‑me dinheiro!
E foi comer a uma estalagem.

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76 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Um quarto de hora depois, sentiu vontade de entrar como que por acaso
no pátio das diligências. Torná­‑la­‑ia a ver, talvez?
«De que serviria?», diz para consigo.
E a americana levou­‑o. Os dois cavalos não pertenciam à mãe. Esta tinha
pedido emprestado um ao Sr. Chambrion, o recebedor, para atrelá­‑lo ao lado
do seu. Isidore, partido na véspera, descansara em Bray até à noite e dormira
em Montereau, de modo que os animais refrescados trotavam lestamente.
Campos ceifados prolongavam­‑se a perder de vista. Duas linhas de árvo‑
res bordejavam a estrada, os montes de pedregulhos sucediam­‑se; e, pouco
a pouco, Villeneuve­‑ Saint­‑ Georges, Ablon, Châtillon, Corbeil e as outras
terras, toda a sua viagem lhe voltou à memória, de um modo tão nítido que
agora distinguia pormenores novos, particularidades mais íntimas; por baixo
do último folho do vestido, o pé dela passava para uma estreita botina de
seda, de cor castanha; o toldo de cotim formava um imenso dossel por sobre
a sua cabeça, e as pequenas glandes rubras da ourela estremeciam ao sabor da
brisa, perpetuamente.
Assemelhava­‑se às mulheres dos livros românticos. Ele não teria gosta‑
do de acrescentar fosse o que fosse, de retirar fosse o que fosse à sua pessoa.
O universo acabava de alargar­‑se de repente. Ela era o ponto luminoso onde
o conjunto das coisas convergia; e, embalado pelo movimento da carruagem,
as pálpebras semicerradas, o olhar nas nuvens, abandonava­‑se a uma alegria
sonhadora e infinda.
Em Bray, não esperou que tivessem dado a aveia, seguiu em frente, pela
estrada fora, sozinho. Arnoux tinha­‑lhe chamado «Marie!». Gritou muito
alto «Marie!». A sua voz perdeu­‑se no ar.
Uma larga mancha cor de púrpura inflamava o céu a ocidente. Volumo‑
sas medas de trigo, que se erguiam no meio dos restolhos, projectavam som‑
bras gigantescas. Um cão pôs­‑se a uivar numa quinta, ao longe. Estremeceu,
tomado de uma inquietude sem causa.
Quando Isidore se lhe reuniu, instalou­‑ se no banco para conduzir.
Passara­‑lhe o desfalecimento. Estava decidido a introduzir­‑se, fosse como
fosse, em casa dos Arnoux, e a dar­‑se com eles. A casa devia ser divertida,
Arnoux, aliás, agradava­‑lhe; depois, quem sabe? Então, um afluxo de sangue
subiu­‑lhe ao rosto: as fontes latejavam­‑lhe, fez estalar o chicote, sacudiu as
rédeas, e conduzia os cavalos de tal maneira que o velho cocheiro repetia:
— Devagar! Devagar!, vai estoirá­‑los.
Pouco a pouco Frédéric acalmou­‑se, e ouviu falar o criado. Estavam à
espera do Senhor com grande impaciência. A Menina Louise chorara por
não a deixarem vir na carruagem.

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gustave flaubert 77

— Quem é essa Menina Louise?


— A miúda do Sr. Roque, não se lembra?
— Ah!, já me esquecia! — replicou Frédéric, desprendidamente.
Contudo, os dois cavalos já não podiam mais. Ambos coxeavam; e davam
nove horas em Saint­‑Laurent quando chegou ao largo de Armes, em frente
da casa da mãe. Esta casa, espaçosa, com um jardim que dava para o campo,
aumentava a consideração da Senhora Moreau, a pessoa mais respeitada da
terra.
Era oriunda de uma antiga família de fidalgos, agora já extinta. O mari‑
do, um plebeu que os pais lhe tinham obrigado a desposar, morrera de um
golpe de espada, estava ela grávida, deixando­‑lhe uma fortuna comprome‑
tida. Recebia três vezes por semana e dava de vez em quando um belo jan‑
tar. Mas o número das velas era calculado antecipadamente, e aguardava
impacientemente as suas rendas. Este constrangimento, dissimulado como
um vício, tornava­‑a séria. Todavia, a sua virtude exercia­‑se sem exibições de
aparato, sem aspereza. Os seus mínimos actos de caridade pareciam grandes
esmolas. Consultavam­‑na sobre a escolha dos criados, a educação das meni‑
nas, a arte da doçaria, e Monsenhor visitava­‑a nos seus passeios episcopais.
A Senhora Moreau nutria uma desmedida ambição pelo filho. Não gos‑
tava de ouvir censurar o Governo, por uma espécie de prudência antecipa‑
da. Primeiro, ele necessitaria de protecções; depois, graças aos seus meios,
tornar­‑se­‑ia conselheiro de Estado, embaixador, ministro. Os seus triunfos
no colégio de Sens legitimavam este orgulho; obtivera o prémio de honra.
Quando ele entrou no salão, todos se levantaram com grande ruído,
beijaram­‑no; e com as poltronas e as cadeiras formaram um largo semicírcu‑
lo em redor da chaminé. O Sr. Gamblin pediu­‑lhe imediatamente a sua opi‑
nião acerca da Senhora Lafarge. Este processo, o furor da época, não deixou
de provocar uma discussão violenta; a Senhora Moreau pôs­‑lhe termo, ape‑
sar da mágoa do Sr. Gamblin; julgava­‑a ele útil para o jovem, na sua qualidade
de futuro jurisconsulto, e saiu do salão, amuado.
Nada era para surpreender num amigo do tio Roque! A propósito do tio
Roque, falou­‑se do Sr. Dambreuse, que acabava de adquirir o domínio da
Fortelle. Mas o Perceptor puxara Frédéric à parte, para saber o que ele pensa‑
va da última obra do Sr. Guizot. Todos desejavam conhecer as suas coisas; e a
Senhora Benoît soube fazê­‑lo informando­‑se do tio. Como passava esse bom
parente? Deixara de dar notícias. Não tinha um primo afastado na América?
A cozinheira anunciou que a sopa do Senhor estava servida. Retiraram­
‑se, por discrição. Depois, assim que ficaram sós, na sala, a mãe disse­‑lhe, em
voz baixa:

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78 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— E então?
O velhote tinha­‑o recebido muito cordialmente, mas sem mostrar as
suas intenções.
A Senhora Moreau suspirou.
«Onde está ela agora?» pensava ele.
A diligência rodava, e, envolta no xaile sem dúvida, ela apoiava ao lençol
do cupé a bela cabeça adormecida.
Subiam para os quartos quando um moço do Cygne de la Croix trouxe um
recado.
— Que temos agora?
— É Deslauriers que precisa de mim — disse ele.
— Ah!, o teu camarada! — comentou a Senhora Moreau com uma risada
de desprezo. — A hora está bem escolhida, não haja dúvida!
Frédéric hesitava. Mas a amizade foi mais forte. Pegou no chapéu.
— Ao menos, não te demores! — disse­‑lhe a mãe.

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ugo foscolo 79

Ugo FOSCOLO. [Os dias inteiros em longo e incerto], in Le Poesie.


Tradução inédita de Simão Valente. [1802] 1979. Milão: Garzanti. 30.

Os dias inteiros em longo e incerto


sono gemo! Mas depois, quando a escura
Noite os Astros ao céu chama, e a lua
E o frio ar de mudas sombras é coberto;

Onde rústico é o campo mais deserto


Aí lento vagabundo, e uma a uma
Toco as feridas onde má fortuna,
amor, e mundo me deixaram o coração aberto

Cansado me apoio ao verde pino,


E logo prostrado, na costa lá onde
Bate a maré, com esperanças deliro.

Mas por ti as mortais iras e o destino


Esquecendo, a ti, senhora, suspiro:
Luz dos meus olhos, quem te esconde?

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80 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

FRANCISCO DE ASSIS. «O cântico do Sol», in Oiro de Vário Tempo­


e Lugar — De Francisco de Assis a Louis Aragon. Versões por A. Herculano
Carvalho. [1224] 2002. Porto: Asa. 81.

Altíssimo, omnipotente, bom senhor,


é tua a glória, as honras, o louvor,
abençoado sejas.
Só a ti, ó altíssimo, convêm
e nenhum homem há digno de te invocar.

Louvado sejas, meu senhor,


com todos os teus seres,
em especial o senhor irmão sol,
o qual faz o dia e alumia por si próprio.
E que é belo e radiante com grande esplendor.
De ti, altíssimo, a nós dá testemunho.

Louvado sejas, meu senhor,


pela irmã lua e plas estrelas;
formaste­‑las no céu
límpidas, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu senhor, pelo irmão vento


e pelo ar, as nuvens, por todo e qualquer tempo
com o qual, às criaturas, dás sustentamento.
Louvado sejas, meu senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde e preciosa e casta.

Louvado sejas, meu senhor, pelo irmão fogo,


o qual nos ilumina pela noite;
e que é belo e jucundo e tão robusto e forte.

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j.w. goethe 81

J.W. GOETHE. A Paixão do Jovem Werther. Tradução de Teresa Seruya.


[1774] 2014. Lisboa: 11 x 17. 38‑44.

16 de Junho
Porque não te escrevo? Perguntas­‑mo e, no entanto, contas­‑te entre os
eruditos. Devias adivinhar que me encontro bem e, na verdade... Numa pala‑
vra, fiz um conhecimento que toca de perto a meu coração. E que... ah!, não sei.
Contar­‑te, por ordem, como aconteceu ter conhecido uma das criaturas
mais adoráveis que existem, será difícil. Estou contente e feliz, por isso não
sou um relator capaz e objetivo.
Um anjo! Ora! Isso dizem todos da sua eleita, não é verdade? E, contu‑
do, não consigo transmitir­‑te como ela é perfeita, o porquê da sua perfeição.
Basta, o certo é que ela cativou todos os meus sentidos.
Tamanha simplicidade em tanto entendimento, tamanha bondade em
tanta firmeza, e a paz de alma na vida real, na atividade.
Tudo isto que estou a dizer sobre ela é um palavreado desagradável, são
abstrações enfadonhas, que nem um só traço do seu ser conseguem descre‑
ver. Uma outra vez — não, não uma outra vez, é agora já que te quero contar
tudo. Se não é agora, não o farei nunca. É que, aqui entre nós, desde que
comecei a escrever, já estive três vezes para largar a pena, mandar pôr a sela
no cavalo e ir dar um passeio. Mas jurei a mim próprio, hoje de manhã cedo,
não sair a cavalo, o que não me impede de ir à janela minuto a minuto para ver
onde o Sol já vai...
Não consegui vencer­‑me, tinha mesmo de sair, para a ver. E aqui estou
eu de novo, Wilhelm, vou comer o meu pão com manteiga e escrever­‑ te.
A minha alma deleita­‑ se ao vê­‑la no meio daquelas crianças afáveis e tão
vivas, os seus oito irmãos!
Se continuo assim, estarás no fim tão instruído como ao princípio. Escu‑
ta, então, vou­forçar‑me a entrar em pormenores.
Numa das minhas últimas cartas disse­‑te que conheci o bailio S... que
me convidou a visitá­‑lo no seu retiro, ou melhor, no seu pequeno reino.
Desleixei­‑me e talvez nunca lá tivesse ido, não fosse o acaso ter­‑me revelado
o tesouro que jaz escondido naquele lugar tranquilo.

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82 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Os nossos jovens tinham organizado um baile no campo, ao qual de boa


vontade acedi ir. Ofereci­‑me para ser o par de uma jovem de cá, bondosa,
bonita, mas insignificante, e combinou­‑se que eu tomaria um coche e pas‑
saria a buscar o meu par e a tia para irmos à festa e, no caminho, levaríamos
também a Charlotte S... «Vai conhecer uma bela mulher», disse a minha dama
ao atravessarmos o bosque extenso e desbravado em direcção ao pavilhão
de caça. «Tome cuidado», replicou a tia, «não vá apaixonar­‑se por ela!» «Que
quer dizer com isso?», perguntei eu. «É que ela está comprometida com um
homem de bem que partiu de viagem para pôr os negócios em ordem devi‑
do à morte do pai, e ainda para se candidatar a uma pensão considerável.» A
notícia deixou­‑me bastante indiferente.
Ainda o Sol demoraria um quarto de hora até à montanha quando che‑
gámos ao portão da casa. Estava muito abafado e as senhoras mostravam­
‑se preocupadas com a trovoada que se adensava no horizonte em pequenas
nuvens ameaçadoras, de um cinzento leitoso. Tentei iludir os seus receios
com pretensos conhecimentos meteorológicos, embora eu próprio come‑
çasse a pressentir que o nosso divertimento ia sofrer um rude golpe.
Ao apear­‑me do coche, uma criada, que se chegara ao portão, pediu­‑nos
que esperássemos um momento, que a menina Lottinha vinha já. Atravessei
o pátio até à casa, sólida e bem construída, e, depois de subir a escadaria e
entrar, deparei com o espetáculo mais encantador que alguma vez vi. Na sale‑
ta, seis crianças, entre os onze e os dois anos, amontoavam­‑se à volta de uma
rapariga de bonita figura, estatura média, com um vestido branco simples, de
laços vermelho­‑pálidos nas mangas e no peito. Tinha na mão um grande pão
de centeio que repartia pelos miúdos na proporção da sua idade e apetite,
entregando um naco a cada um com grande afabilidade; eles lá iam dizendo o
seu «Obrigado!» sem sombra de convencionalismo, enquanto mantinham as
mãozitas estendidas no ar, antes sequer de o pão estar cortado, e, ao verem­‑se
com o seu quinhão, iam­‑se embora satisfeitos, a saltitar, ou, de acordo com
um temperamento mais brando, dirigiam­‑se com toda a calma para o portão,
a fim de observar aqueles estranhos e ver o coche em que a sua Lotte ia partir.
«Peço perdão», disse ela, «por lhe ter dado o trabalho de subir e fazer esperar
as senhoras. Enquanto me vestia e orientava as tarefas caseiras para a minha
ausência, esqueci­‑me de dar o pão da noite às minhas crianças, e elas não
querem que seja mais ninguém a cortá­‑lo senão eu.» Fiz um gesto de cortesia
insignificante, pois toda a minha alma estava concentrada na sua figura, no
tom, nas suas maneiras, e mal tinha tido tempo de me recompor da surpresa
quando ela foi ao quarto buscar as luvas e o leque. Os pequenos olhavam­
‑me de lado e à distância, e dirigi­‑me então ao mais novo, uma criança com

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j.w. goethe 83

feições a irradiar felicidade. Recuou, assustado, no momento em que Lotte


vinha a sair e lhe disse: «Louis, cumprimenta este senhor, que é teu primo!»
Foi o que o rapazinho fez muito candidamente e não pude deixar de o beijar
com gosto, apesar do nariz sujo. «Primo?», disse eu, enquanto lhe estendia a
mão a ela, «julga­‑me digno da felicidade de ser aparentado consigo?» «Ah, mas
o nosso parentesco é muito afastado», disse ela com um sorriso algo frívolo.
«Tenho tantos primos que seria uma pena se o senhor fosse o pior deles.» Ao
sair incumbiu Sophie, a irmã mais velha a seguir a ela, uma menina de cerca
de onze anos, de olhar pelas crianças e de saudar o pai, quando regressasse a
casa do passeio a cavalo. Aos mais novos disse­‑lhes que obedecessem à irmã
Sophie como a ela própria, o que eles prometeram expressamente. Um deles,
uma garota loirinha mais espevitada, de cerca de seis anos, disse: «Mas não és
tu, Lottinha, e nós gostamos mais de ti.» Os dois rapazes mais velhos tinham
entretanto trepado para a parte de trás do coche e, a meu pedido, tiveram
licença de ali nos acompanhar até ao bosque, se prometessem não se traqui‑
nar e segurar­‑se bem.
Mal tínhamos acabado de nos instalar, já as senhoras se tinham cumpri‑
mentado, feito os seus comentários sobre os vestidos e, principalmente, sobre
os chapéus, passado em revista, como é devido, os convidados esperados,
quando Lotte mandou parar o cocheiro e sair os irmãos. Mais uma vez os garo‑
tos queriam beijar­‑lhe a mão, o que o mais velho fez com a ternura própria dos
quinze anos, o outro com grande impetuosidade e despreocupação. Mandou­
‑os de novo cumprimentar­‑nos e continuámos o caminho.
A tia indagou se ela já tinha acabado o livro que lhe havia enviado recen‑
temente. «Não», disse Lotte, «não me agrada, vou­‑lho devolver. O anterior
também não era melhor.» Admirei­‑me ao dar comigo a perguntar de que
livros se tratava, ao que ela respondeu:1 Achei um grande carácter em tudo
o que dizia, a cada palavra via novos encantos, novas irradiações do espírito
brotar das suas feições, que pareciam desabrochar pouco a pouco à satisfa‑
ção de sentir como eu a compreendia.
«Quando eu era mais nova», disse ela, «nada me prendia tanto como os
romances. Só Deus sabe como me sentia feliz quando conseguia, ao domin‑
go, sentar­‑me num cantinho e partilhar de todo o coração das alegrias e infor‑
túnios duma Miss Jenny. Não nego que o género ainda tem para mim algum
encanto. Porém, como raramente tenho acesso a um livro, quando o alcanço
tem de ser bem a meu gosto. E o autor que prefiro é aquele em que reencontro

1 É­‑se forçado a suprimir este passo da carta, para não dar a ninguém razão para certas queixas.
Embora, no fundo, um autor não possa estar muito interessado no juízo isolado de uma rapariga
e de um jovem volúvel. (N. do t.)

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84 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

o meu mundo, em que as coisas acontecem como se comigo fossem e em que


a história se me torna tão interessante e comovente como a minha própria
vida doméstica que, não sendo certamente nenhum paraíso, é, no seu con‑
junto, fonte de inefável ventura.»
Esforcei­‑me por esconder a minha emoção ao escutar tais palavras. Mas
não o consegui por muito tempo pois, ao ouvi­‑la falar, de passagem, do vigá‑
rio de Wakefield, de…1 com tanta verdade, fiquei fora de mim e disse­‑lhe
tudo o que devia; só mais tarde me apercebi, quando Lotte estendeu a con‑
versa aos demais, que tinham estado ali todo o tempo, de olhos arregalados,
como se nem estivessem ali. A tia, então, fitou­‑me por mais de uma vez com
ar zombeteiro, o que, aliás, pouco me incomodou.
A conversa recaiu sobre o prazer da dança. «Seja esta paixão defeito ou
não», disse Lotte, «confesso­‑lhe francamente que não conheço nada superior
à dança. Quando tenho alguma coisa que me atormenta, sento­‑me ao piano,
mesmo desafinado, ensaio uma contradança e tudo se recompõe.»
Como me deleitei naqueles olhos pretos durante a conversa. Conhe-
cendo­‑me podes imaginar como os seus lábios vivos e o rosto fresco e bem­
‑disposto me seduziram a alma, acontecendo muitas vezes nem ouvir as pala‑
vras com que ela se exprimia, tão mergulhado estava no sentido maravilhoso
do seu discurso. Numa palavra, quando parámos diante da casa onde se rea‑
lizava o baile, desci do coche como um sonâmbulo e, envolto no crepúsculo,
perdi­‑me de tal maneira em sonhos que mal me dei conta da música que des‑
cia até nós da sala iluminada.
Os dois senhores Audran e um certo N.N. (não há quem fixe tanto
nome!) eram os pares da tia e de Lotte, pelo que nos foram receber à porti‑
nhola, tendo logo tomado conta das suas damas. Por mim, conduzi a minha
para cima.
Rodopiámos em minuetes à volta uns dos outros; uma após outra, con‑
videi as senhoras, e as mais insuportáveis eram precisamente as que não con‑
seguiam resolver­‑se a estender a mão para pôr um fim à dança. Lotte e o par
tinham iniciado uma contradança inglesa. Imaginas a minha alegria ao vê­‑la
entrar na figura connosco. Se visses como dança! É que o faz de alma e cora‑
ção, despreocupada e sem pretensões, todo o corpo uma harmonia, como
se aquilo, na verdade, fosse tudo, como se não pensasse em mais nada, nada
mais sentisse. E é certo que, naquele instante, tudo o resto desaparece peran‑
te ela.

1 Também aqui se omitiram os nomes de alguns autores nacionais. Quem partilha a preferência
de Lotte, senti­‑lo­‑á, por certo, no coração, caso leia este passo; quanto aos outros, não precisam
de o saber. (N. do t.)

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j.w. goethe 85

Convidei­‑a para a segunda contradança; concedeu­‑me a terceira e, com


a sinceridade mais gentil deste mundo, assegurou­‑me que adorava dançar à
alemã. «Aqui é costume», continuou ela, «os pares já feitos permanecerem
juntos na alemanda, e o meu par dança mal, pelo que ainda me agradece se o
dispensar do trabalho. A sua dama, Werther, também não tem grande jeito,
nem gosta, e eu reparei, na inglesa, que o senhor dança bem; se quer agora
dançar comigo na alemanda, é melhor ir pedi­‑lo ao meu cavalheiro, que eu,
pelo meu lado, irei falar à sua dama.» Aceitei a proposta e combinámos que o
seu par, entretanto, se ocuparia do meu.
Começada a dança, deleitámo­‑nos alguns momentos a entrelaçar os
braços das mais variadas maneiras. Com que encanto, com que leveza ela
se movimentava! Passámos então à valsa, rolando como esferas à volta uns
dos outros mas, como são poucos os que sabem os passos, houve, ao princí‑
pio, alguma confusão. Nós, porém, fomos mais espertos, esperámos que eles
esgotassem o seu entusiasmo e, quando os mais desajeitados já tinham aban‑
donado o estrado, regressámos à cena e resistimos corajosamente, secunda‑
dos apenas por um par, Audran e a sua dama. Nunca me senti tão ágil. Já nem
era um ser humano. Ter nos braços a mais gentil das criaturas, esvoaçar em
roda com ela, rápido como o relâmpago, de tal modo que tudo à volta se des‑
vanecia, e — Wilhelm, para ser sincero, jurei a mim próprio que a rapariga
que eu amasse, que eu pretendesse, não dançaria a valsa com nenhum outro
além de mim, nem que eu, por isso, me arruinasse. Sei que me compreendes!
Depois caminhámos à volta da sala para recobrar alento. Então ela quis
sentar­‑se e as laranjas que eu pusera de lado, as únicas que haviam sobrado,
surtiram um excelente efeito, mas cada gomo que ela, por cortesia, distribuía
à companheira do lado, era como uma punhalada no meu coração.
À terceira dança inglesa éramos o segundo par. Quando já tínhamos
dançado toda a fila e eu me achava suspenso, sabe Deus com que enlevo,
do braço e dos olhos dela, revelando, com a maior sinceridade, o mais puro
e franco prazer, encontrámo­‑nos face a face com uma senhora que me cha‑
mara a atenção pela expressão gentil do seu rosto já não muito jovem. Olha,
sorridente, para Lotte, levanta um dedo ameaçador e, em tom significativo,
pronuncia, de passagem, o nome Albert por duas vezes.

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86 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Luis de GÓNGORA. [Coisas, Celalba, tenho visto estranhas], in Antologia


da Poesia Espanhola do «Siglo de Oro», Volume 2. Tradução de José Bento.
[1596] 1996. Lisboa: Assírio & Alvim. 50.

Coisas, Celalba, tenho visto estranhas:


rasgar­‑se nuvens, desfrear­‑se ventos,
altas torres beijar seus fundamentos
e a terra vomitar suas entranhas;
duras pontes quebrar, qual tenras canas;
regatos raros, rios violentos,
mal vadeados pelos pensamentos
e travados pior pelas montanhas;
nos dias de Noé, gentes subidas
nos mais altos pinheiros levantados,
nas robustas faias mais crescidas.
Pastores, cães, choupanas, muitos gados
vi sobre as águas, já sem forma e vidas,
e nada temi mais que meus cuidados.

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hadewijch 87

HADEWIJCH. «Poemas espirituais», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para


o futuro. Tradução de João Barrento. [século xiii] 2001. Lisboa: Assírio &
Alvim. 700­‑ 701.

I
Por mais tristes que estejam a estação e as avezinhas,
não pode está­‑lo o nobre coração.
Mas quem quiser afrontar os trabalhos de Amor
d’Ele só terá de aprender
— doçura e crueza,
alegria e dor —
o que é preciso experimentar para amar.

II
As almas orgulhosas que cresceram na dilecção
e sabem amar sem que nada as acalme,
devem ser em todos os tempos
fortes e ousadas,
sempre prontas a receber
consolo ou aflição
por bem de Amor apenas.

III
Estranhas são as vias do Amor:
e bem o sabe quem as quer seguir:
muitas vezes ele perturba o coração seguro:
quem ama não encontra constância.
Aquele a quem a Caridade
toca no fundo da alma
conhecerá muita hora de desolação.

IV
Ora ardendo, ora frio,
agora tímido e ainda há pouco ousado,
numerosos são os caprichos do Amor.

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88 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Mas a toda a hora ele nos lembra


a nossa imensa dívida
para com o seu alto poder,
que nos atrai e só a Ele nos destina.

V
Ora gracioso, ora terrível,
agora próximo e ainda há pouco distante:
para quem o conhece e nele confia
isto mesmo é alegria maior.
Como Amor
num só acto
fere e abraça!

VI
Ora humilhado, ora exaltado,
agora escondido, manifesto ainda há pouco,
para se ser um dia atingido pela dilecção
é preciso arriscar muita aventura —
antes de alcançar
aquele ponto em que se desfruta
da pura essência do Amor.

VII
Ora leve, ora pesado,
sombrio agora e claro ainda há pouco,
na doce paz, na sufocante angústia,
dando e recebendo —
dupla vida,
serve aos espíritos
que se perdem no amor.

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peter handke 89

Peter HANDKE. Os Belos Dias de Aranjuez — Um diálogo de Verão. Tradução


de Maria Manuel Viana. [2012] 2014. Lisboa: Sistema Solar. 7­‑13.

Texto sujeito a Direitos de Autor

E, de novo, um Verão. De novo, um belo dia de Verão. Um jardim. Um terraço. Uma


mulher e um homem, debaixo das árvores invisíveis, apenas audíveis, com um suave
vento de Verão que, de vez em quando, marca o ritmo da cena. Uma mesa de jardim
muito grande, vazia, entre a mulher e o homem. Sentam­‑se longe um do outro, ambos
vestidos com roupa de Verão, clara a da mulher, mais escura a do homem, como que
fora do tempo. Eles próprios fora do tempo e fora de toda e qualquer actualidade e
fora, também, de todo e qualquer enquadramento histórico e social — o que não sig‑
nifica que estejam fora da realidade — quem sabe se não será ao contrário? Já vere‑
mos (e ouviremos). E, para começar, um e outro, sem se olharem, escutam longamente
o sussurro das folhas invisíveis agitadas pelo vento de Verão, sentados sob um céu
que imaginamos grande, atravessado, esporadicamente, pelos gritos das andorinhas.
É como se, a cada sussurro das árvores, correspondesse uma hora ou um dia inteiro.

O Homem
Quem é que começa?

A Mulher
Tu. Como estava previsto.

O Homem
Sim, estava previsto assim. — A tua primeira vez, com um homem, foi
como?

A Mulher
com uma voz adequada à cena, tal como o homem, mas não demasiado.
Olha ali um bútio, por entre as árvores, como uma flecha. Ou será um
milhafre?

O Homem
Um falcão. Os bútios e os milhafres andam às voltas por cima das árvo‑
res. Os falcões é que atravessam a floresta, ora por cima, ora por baixo
dos ramos, como flechas. Por mais do que uma vez, deparei­‑me com um

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94 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Georg Philipp HARSDÖRFFER. «Dizei lá o que é o amor?», in Rosa do


Mundo: 2001 poemas para o futuro. Tradução de João Barrento. [século xvii]
2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 940.

Corações juntos     e unidos. Um ve-


neno mais que doce.   Dor que faz bem aos
sentidos. Se­ta que acerta e adormece. Obra que
ao mundo traz gente. Moço fo­goso e atrevido. Um
jogo que afinal mente. Chama e braseiro de Cupi-
do. Fardo leve de levar. Menino amável galan-
te. Tristeza que dá prazer. Corda que prende o
amante. Ser cego, sombrio, sinistro. Noite
de gozo e grandeza. Livro já lido e revis-
to. Fausto de fugaz beleza. Feira de
comprar remorsos. Des­razão in-
teligen­te. Estrada de muitos
cansaços. Fo­go que
arde eterna­-
men­‑
te.

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heinrich heine 95

Heinrich HEINE. [Com mirtos e rosas, graciosos, galantes], in Rosa do


Mundo: 2001 poemas para o futuro. Tradução de João Barrento. [1817-21] 2001.
Lisboa: Assírio & Alvim. 1039­‑1040.

Com mirtos e rosas, graciosos, galantes,


Odor de ciprestes e ouros reluzentes,
Quero como um caixão este livro ornar
E as minhas canções nele enterrar.

Pudesse eu também enterrar o amor!


Na campa do amor cresce a flor da paz,
Aí ela se abre, colhemo­‑la lá;
P’ra mim, só na campa ela florirá.

São estes os cantos que outrora, em torrente,


Qual lava do Etna vinham de rompante
Brotando a galope do fundo da alma,
Chispando faíscas, e nada os acalma.

Agora estão mudos, dos mortos irmãos,


Agora olham frios, das névoas irmãos.
Mas já os anima o antigo ardor,
Se sobre eles paira a força do amor.

E presságios enchem o meu coração,


Cai amor­‑orvalho na minha canção;
Este livro há­‑de à tua mão chegar,
Na terra distante onde estás, amor.

E desfaz­‑se então do canto o feitiço,


E olham­‑te as letras num brilho mortiço;
Fitam, implorando, o teu belo olhar,
E sussurram tristes, suspirando amor.

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96 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

JAUFRÉ RUDEL. [Quando longos são os dias em Maio], in Colóquio Letras


164: Vozes da poesia europeia — II. Tradução de David Mourão­‑Ferreira.
[século xii] 2003. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 29‑30.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Quando longos são os dias em Maio,


que doce o cantar das aves de longe!
Eu de as escutar nunca me distraio
senão ao pensar neste amor de longe...
Sob esse desejo caminho, curvado;
e a meu coração nem mesmo as flores
dif ’rentes me são do Inverno gelado!

Consinta o Senhor ao menos um dia


que eu veja de perto meu amor de longe!
Agora, porém, por cada alegria,
padeço a dobrar: meu amor ’stá longe...
Ah! Se em peregrino fosse eu transformado,
talvez de seus olhos contemplado fosse,
com a minha capa, com o meu cajado...

E triste e alegre então voltaria,


depois de vos ver, meu amor de longe!
Só resta saber se chega esse dia,
pois vosso país do meu fica longe...
Ai tanto caminho, ai tanta pegada!
(Para os descobrir não sou adivinho...)
Mas que tudo seja como a Deus agrada.

Não posso de amor outro bem esperar:


só o que vier desse amor de longe...!
Pois não há ninguém que se lhe compare
em nenhum lugar, nem perto nem longe.
Contra os infiéis irei eu lutar
(ela é tão bela, tão franca, tão pura...),
para de longe podê­‑la saudar.

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98 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

JOÃO DA CRUZ. [Vivo sem viver em mim], in Coplas da Alma Que Sofre por
Ver a Deus. Tradução de José Bento. [1630] 1982. Lisboa: Assírio & Alvim.
63­‑ 67.

Vivo sem viver em mim


e tanto espero ao viver,
que morro por não morrer.

Em mim, eu não vivo já,


e sem Deus viver não sei.
Sem ele e sem mim fiquei:
esta vida, que será?
Mil mortes se me fará,
pois espero o meu viver,
morrendo por não morrer.

A vida que agora sigo


é privação de viver;
é um contínuo morrer
até que viva contigo.
Ouve, meu Deus, o que digo:
a vida não me é prazer,
que morro por não morrer.

Estando ausente de ti,


que vida consigo ter,
senão morte padecer,
a maior que jamais vi?
Que pena tenho de mim,
se persisto em me manter,
que morro por não morrer.

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joão da cruz 99

O peixe que sai da água


já de alívio não carece,
que na morte que padece
a morte lhe finda a mágoa.
Qual a morte que parece
este penoso viver,
se mais vida é mais morrer?

Quando penso sossegar


ao ver-te no Sacramento,
aviva o meu sentimento
o não te poder gozar;
tudo aumenta o meu penar,
por não ser livre em te ver
e morro por não morrer.

E se me alegro, Senhor,
com a esperança de ver­‑te,
ao ver que posso perder­‑te
redobra então minha dor;
vivendo em tanto pavor
e esperando em tal sofrer,
eu morro por não morrer.

Arranca­‑me desta morte,


ó meu Deus, e dá­‑me a vida;
não ma tenhas impedida
com este laço tão forte;
olha o que peno em tal sorte;
meu mal é tão de atender,
que morro por não morrer.

Choro a minha morte já


e lamento a minha vida
enquanto ela assim detida
por meus pecados está.
Oh meu Deus!, quando será
que poderei eu dizer:
vivo já por não morrer?

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100 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Friedrich Gottlieb KLOPSTOCK. «As rosas em cadeias», in Poesia de 26


Séculos: De Arquíloco a Nietzsche. Tradução de Jorge de Sena. [1753] 2001.
Porto: Asa. 193.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Na primavera, a vi dormindo;
logo a prendi, atada em rosas.
Não as sentiu, no sono fundo.

Fitei­‑a bem, pende­‑me a vida


por este olhar, da sua vida!
Assim senti, mas não sabia.

Só num murmúrio, falei sem fala,


e sacudi­‑lhe os róseos laços.
E ela acordou, do fundo sono.

Fitou­‑me bem, pende­‑lhe a vida,


por este olhar, da minha vida.
E à nossa volta, é o Paraíso.

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madame de la fayette 101

Madame de LA FAYETTE. A Princesa de Clèves. Tradução de Pedro Tamen.


[1678] 2013. Lisboa: Dom Quixote. 87­‑ 90.

Texto sujeito a Direitos de Autor

A Madame delfina pediu ao senhor de Clèves um pequeno retrato que este


possuía da mulher, para o comparar com aquele que estavam a acabar; toda a
gente exprimiu a sua opinião sobre um e outro, e a senhora de Clèves ordenou
ao pintor que corrigisse qualquer coisa no chapéu do retrato que acabavam de
trazer. O pintor, para lhe obedecer, tirou o retrato da caixa em que se encon‑
trava e, depois de fazer o seu trabalho, voltou a colocá­‑lo em cima da mesa.
Havia muito tempo que o senhor de Nemours desejava ter o retrato da
senhora de Clèves. Quando viu o que pertencia ao senhor de Clèves não pôde
resistir ao desejo de o furtar a um marido que julgava ternamente amado;
e pensou que, no meio de tantas pessoas que se encontravam naquele lugar,
seria tão suspeito como qualquer outro.
A Madame delfina estava sentada em cima da cama e falava em voz baixa
com a senhora de Clèves, que estava de pé à sua frente. A senhora de Clèves
viu, por um dos cortinados que estava só parcialmente fechado, o senhor de
Nemours, encostado à mesa situada aos pés da cama; e viu que, sem virar a
cabeça, ele pegava habilmente em algo que estava em cima da mesa. Não lhe
custou adivinhar que se tratava do seu retrato e ficou tão perturbada que a
Madame delfina notou que ela não estava a dar­‑lhe ouvidos e perguntou­‑lhe
em voz alta para onde é que estava a olhar. Ao ouvir estas palavras, o senhor
de Nemours voltou­‑se; deparou com os olhos da senhora de Clèves, que esta‑
vam ainda postos nele, e pensou que não era impossível que ela tivesse visto
o que ele acabava de fazer.
A senhora de Clèves não estava pouco embaraçada. A razão dizia­‑lhe
que pedisse o seu retrato; mas se o pedisse publicamente mostraria a toda a
gente os sentimentos que o fidalgo nutria por ela, e se o pedisse em particu‑
lar isto quase seria obrigá­‑lo a falar­‑lhe da sua paixão. Por fim, achou que o
melhor era deixá­‑lo ficar com ele, e bem contente ficou por lhe conceder um
favor que lhe podia fazer sem que ele soubesse sequer que lho fazia. O senhor
de Nemours, que observava o embaraço dela, e que quase lhe adivinhava a
causa, aproximou­‑se e disse­‑lhe muito baixinho:

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else lasker­‑schüler 103

Else LASKER­‑ SCHÜLER. «Sulamita», in Baladas Hebraicas. Tradução de


João Barrento. [1901] 2002. Lisboa: Assírio & Alvim. 85.

Ah, aprendi na tua doce boca


A conhecer a felicidade, tanta!
Sinto já os lábios de Gabriel
A queimar­‑me o coração...
E a nuvem da noite vem beber
O meu profundo sonho de cedro.
Ah, a tua vida, como me acena!
E eu desvaneço­‑me
Com a dor do coração em flor
E um vento leva­‑me pelo espaço
Sideral, por tempo
E eternidade,
E o fogo da minha alma apaga­‑se nas cores da tarde
De Jerusalém.

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104 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Tahir MUJI I . «viagem até­‑ao­‑fim», in Luna Lusitana. Tradução de Tanja


Tarbuk. 2010. Zagrebe: Litteris. 78­‑ 79.

Texto sujeito a Direitos de Autor

tão tristonho e um pouco usado


parecia
aquele lento ocioso e cansativamente desinteressado
comboio
enquanto arquejava e se arrastava pelo vento desgrenhada pelas gotas
das ondas orvalhada
viscosa
aaguda
como se de algum modo não lhe apetecesse outra vez
passar por remake mal feito de conhecida cenografia
em que outrora nasceu a aventura excitante concebida na
paixão
pura
/da tua fuga ao Álvaro marido
Que não aceitava facilmente o adultério/
e
/da minha necessidade doentia de roubar
o já roubado e arquivá­‑lo nos lugares secretos que nem eu depois
consigo encontrar
como se eu mesmo fosse o águas pirata ou pelo menos
o zé santos o pequeno gatuno
de alguma estação de província/ e
o comboio
voltamos a esse desistente e envergonhado comboio
que de olhos baixos cheios de culpa cristã tentou
como o homem marcado sem dar nas vistas e sem o seu famoso
natural apito penetrante passar pela nossa tão caprichosa
e lasciva
aguda
ficou atrás dele só o alívio e a relaxação

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106 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ioan MURE AN. «O telhado», in Cartea Alcool. Tradução inédita de


Corneliu Popa. [s.d.] 2017. Bistrita: Editura Charmidas. 56.

O que tinha para dizer, disse­‑to na devida altura:


que o telhado da casa está partido,
e à noite vejo as estrelas da minha almofada,
e quando chove, chove também nos nossos pratos,
e quando está sol, faz sol também nos nossos pratos.
Vai consertar o telhado, vai consertar o telhado! pedi­‑te.
E agora o vento arrancou­‑o,
e quando o céu está preto a nossa casa está preta também,
e quando o céu está encarnado, a nossa casa encarnada está,
e já não temos um cá dentro só nosso,
e já não temos um lá fora só nosso.

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p. mustapää 107

P. MUSTAPÄÄ. «O caçador de aves», in Poesía Nórdica. Tradução inédita


de Francisco C. Marques a partir da versão em castelhano de Francisco
J. Ruiz. [1952] 2017. Madrid: Libros del Inombrable. 62.

Texto sujeito a Direitos de Autor

E aí em cima, sobre o teu cabelo,


onde os pássaros não temem,
o de saturadas asas cantava ao vento transparente.
Ar, espaço — o que deixaste — uma presença contigo
e a luz. Então chegou o caçador de aves,
atravessando o campo ao encontro das suas armadilhas,
e parou, e todos pararam
e com os delicados dedos
sentiram o chilrear na penugem.

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108 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Boris A. NOVAK. «Os nossos pequenos­‑almoços», in Treze Poetas Eslovenos.


Tradução de Mateja Rozman. [2006] 2008. Lisboa: Roma Editora. 92.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Depois da comum respiração nocturna surge


o momento da separação dos nossos corpos
que devem passar sós através do dia crescente.
Na hora que se ergue entre nós

no espaço entre o nosso e o estranho transformámos


a cama quente e amarrotada pelo amor
numa mesa oscilante com bolos
e pãezinhos quentes. O teu corpo milagroso

torna­‑se uma tábua de queijinhos franceses,


manteiga e doce de alperce,
e o meu ventre é um prato para croissants.

Sorvemos café de chávenas


sem fundo. E falamos sem parar,
o nosso enigma desvelado.

O tempo está parado. O tempo não existe. Todo o mundo arde.

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novalis 109

NOVALIS. Os Hinos à Noite. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão.


[1800] 1998. Lisboa: Assírio & Alvim. 25­‑27.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Outrora, quando vertia amargas lágrimas, quando, diluída na dor, a minha


esperança se desfez e eu me encontrava sozinho sobre o estéril montícu‑
lo que encerra em negro e estreito espaço a imagem da minha vida — só,
como jamais alguém esteve, impelido por um medo indizível — inerme, tão
somente com um único pensamento ainda, o da carência. — Quando olhava
em meu redor em busca de auxílio, sem que pudesse avançar nem recuar,
preso por uma saudade infinita a essa vida extinta e fugidia: — eis que da
distância azulada — dos altos cumes da minha antiga bem­‑aventurança, veio
um frémito de crepúsculo — e de súbito romperam­‑se os vínculos do nasci‑
mento — a cadeia da Luz. Para longe de mim se voltou o curso do esplendor
terreno e, com ele, o meu luto — e também a melancolia fluiu para um novo
mundo, infundamentado — e tu, exaltação nocturna, torpor do Céu, vieste
sobre mim — todo o lugar se elevou no ar mansamente; e sobre o lugar pai‑
rou o meu espírito, desvinculado, de novo nascituro. Em nuvem de poeira
se converteu o montículo de terra — e através das nuvens vi a fisionomia
gloriosa da Amada. Nos seus olhos repousava a Eternidade — prendi­‑lhe as
mãos, e as lágrimas eram um laço cintilante, irrompível. Milénios perpassa‑
ram a caminho dos longes como intempéries. Suspenso do seu colo, chorei
lágrimas de deleite pela nova vida. — Foi esse o primeiro e único sonho — e
somente desde então tenho uma fé eterna e imutável, no Céu da Noite, na
sua luz, a Amada.

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110 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

OVÍDIO. «Narciso e Eco», in Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas


Dias. [8 d.C.] 2006. Lisboa: Vega. 145-154.

Famosíssimo em todas as cidades da Aónia, Tirésias


dava respostas infalíveis ao povo que o consultava.
A azulada Liríope foi quem primeiro comprovou a fidelidade
dos oráculos dele. O Cefiso envolveu-a, um dia, em sua sinuosa
corrente e violou-a em suas águas. De seu ventre cheio, a belíssima
ninfa deu à luz uma criança, que já então podia ser amada,
a quem chamou Narciso. Consultado sobre se este veria os longos dias
de uma velhice avançada, respondeu o profético adivinho:
«Se ele se não conhecer.» Por muito tempo pareceu sem sentido
o oráculo do adivinho. Comprovam-no o desenlace, os acontecimentos,
o tipo de morte e a estranheza de sua loucura.
De facto, o filho de Cefiso tinha somado mais um aos seus quinze anos
e poderia considerar-se tanto uma criança como um jovem.
Muitos jovens, muitas donzelas o desejaram.
Mas (havia tão áspera soberba em tão aprazível beleza)
jovem nenhum, nenhuma donzela lhe tocou o coração.

Viu-o, quando encaminhava para as redes os ansiosos veados,


a ninfa retumbante, a que aprendeu a responder a quem fala
e a não ser ela a falar primeiro, Eco, a que repete o som.
Eco ainda tinha corpo, não era só voz! E, contudo, loquaz,
não fazia da boca um uso diferente daquele que hoje faz,
de modo que podia repetir as últimas de muitas palavras.
Fora Juno quem isto fizera, porque quando, às vezes, teria podido
surpreender no monte as ninfas deitadas com Júpiter, sabedora disso,
retinha ela a deusa com longa conversa enquanto as ninfas fugiam.
A filha de Saturno, sabedora disso, diz-lhe:
«Ser-te-á reduzida a faculdade dessa língua pela qual fui enganada,
e muito reduzido o uso da tua voz.»

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ovídio 111

E com os factos confirma as ameaças. Eco, entretanto,


repete o final da frase e devolve as palavras ouvidas.

Ora, tendo visto Narciso a deambular por regiões isoladas,


foi tomada de amores por ele e, furtivamente, segue-lhe os passos.
E quanto mais o segue, mais próxima está da chama em que arde,
exactamente como o inextinguível enxofre que reveste a extremidade
das tochas é incendiado pela proximidade da chama.
Oh! Quantas vezes desejou aproximar-se com palavras ternas
e usar de carinhosas súplicas! Impede-lho a natureza,
e nem lhe consente que tome a iniciativa.
Mas está disponível, isso lhe permite, para esperar os sons,
aos quais devolve as próprias palavras.

Ora aconteceu que o jovem, afastado do grupo fiel de seus companheiros,


havia gritado: «Ei! Está aí alguém?!» E, «alguém», respondera Eco.
Estupefacto, faz rodar a vista para todos os lados e grita a plenos pulmões
«Vem!» E ela chama a quem a chama. Volta-se ele e, de novo,
porque ninguém vinha, grita: «Porque foges de mim?!»
E recebeu de volta as palavras que pronunciou.
Insiste e, iludido pela imagem da voz que responde, exclama:
«Vem cá! Encontremo-nos!» Eco, que jamais teria respondido,
fosse a que som fosse, com maior agrado, repetiu: «Encontremo-nos!»

Secundando ela as próprias palavras, sai da floresta e avança,


disposta a abraçar o cobiçado colo. Ele foge. E diz, ao fugir:
«Retira as mãos deste aperto! Antes morrer que seres senhora de mim!»
Ela repetiu apenas: «que seres senhora de mim».
Desprezada, oculta-se nas florestas e, envergonhada, cobre a face
com folhagem e, desde então, vive em solitários antros.
Mas seu amor mantém-se, e cresce até com a dor da recusa.
E as preocupações, que lhe tiram o sono, mirram-lhe o infeliz corpo,
a magreza enruga-lhe a pele, e todo o humor do corpo se evola no ar.
Apenas lhe restam a voz e os ossos. E a voz mantém-se.
Dizem que os ossos assumiram a forma de pedras.
Oculta-se nas florestas a partir daí, e não é vista em monte nenhum.
Toda a gente a ouve. É som o que nela vive.

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112 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Assim zombara ele desta, zombara assim de outras ninfas


nas águas ou nos montes nascidas, como havia zombado
de muitos jovens. Um dia, alguém, despeitado, dissera, erguendo ao céu
as mãos: «Oxalá ame ele assim! Assim não alcance ele a quem ame!»
A Ramnúsia deu o seu assentimento a estas justas súplicas.

Havia uma fonte, límpida e prateada, de águas transparentes,


em que nem pastores, nem as cabras que eles apascentam
na serra, ou outros animais haviam tocado; a que nem ave alguma
ou alguma fera, ou ramo caído de árvore haviam turbado. Em redor
havia erva que a proximidade da água alimentava, e uma floresta
que não deixará aquecer o lugar por sol nenhum.

O jovem, cansado pelo entusiasmo da caça e pelo calor,


atraído pela beleza do lugar e pela fonte, descansou aí.
Ao procurar saciar uma sede, brota nele uma outra sede.
Enquanto bebe, arrebatado pela imagem da beleza que avista,
ama uma ilusão sem corpo. Crê ser corpo o que apenas é água.
Extasia-se ante si mesmo e fica imóvel, de rosto imóvel também,
fica hirto como uma estátua de mármore de Paros.
Estendido no chão, contempla dois astros, que são os seus olhos;
contempla os cabelos, dignos de Baco e dignos de Apolo;
contempla as faces, virginais ainda, o colo de marfim, a graça da boca
e o rubor misturado a nívea brancura. Admira tudo o que o torna a ele
digno de admiração. Sem o saber, a si se deseja; é aquele que ama,
e é ele o amado. Ao cortejar, a si se corteja. Arde no fogo que acende.
Quantos beijos inúteis deu na fonte que lhe mentia!
Quantas vezes, para abraçar seu pescoço, que via no meio das águas,
mergulhou os braços, sem neles se encontrar! Não sabe o que vê,
mas o que vê consome-o! E a mesma ilusão que engana seus olhos,
excita-os.

Ingénuo! Porque buscas em vão agarrar uma fugitiva imagem?!


O que desejas não existe! O que amas, retirando-te, perdê-lo-ás!
Essa sombra que vês é o reflexo da tua imagem! Nada tem de seu!
Contigo chega e contigo está. Partiria contigo, se tu partir pudesses!
Nem a preocupação de Ceres, nem a necessidade de repouso
o podem afastar dali. Estendido na erva, à sombra, contempla,
com olhar insaciável, a enganosa imagem, e morre vítima

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ovídio 113

de seus próprios olhos. Soerguendo-se um pouco,


estendendo os braços às florestas que o rodeiam, desabafa:
«Será, florestas, que alguém amou com tão cruel sofrimento?
Com certeza o sabeis, pois fostes para muitos refúgio oportuno!
Tendo vossas vidas atravessado tantos séculos, recordais-vos,
nesse longo curso, de alguém que se haja consumido assim?
Encanta-me e vejo-o, mas o que vejo e me encanta
não o consigo encontrar!
Tal é o desvario que enreda a quem ama! E para maior penar,
não é o vasto mar que nos separa, nem um longo caminho,
nem montanhas, nem muralhas de portas fechadas.
Somos impedidos por um pouco de água!
Ele deseja o meu abraço, pois sempre que eu levo meus beijos
às límpidas águas, sempre ele se esforça por trazer até mim sua boca!
Parece poder ser tocado.
É mínimo o que se interpõe entre quem se ama!

Quem quer que tu sejas, vem até aqui! Porque troças de mim,
jovem sem par?
Para onde foges quando te busco? Não são, com certeza,
nem o aspecto nem a idade razão para que fujas,
e até as ninfas me amaram!
Prometes-me nem sei que esperança em teu rosto amigo,
Quando eu te estendo os braços, também tu estendes os teus,
Quando rio, tu sorris. E notei algumas vezes tuas lágrimas,
se eu chorava. Respondes também com os teus aos meus sinais
de cabeça. E, quanto posso supor pelo movimento de tua bela boca,
formulas palavras que aos meus ouvidos não chegam.

Esse sou eu! Apercebi-me disso e nem a minha imagem me engana!


Abraso-me de amor por mim! Atiço e sofro o efeito das chamas!
Que hei-de eu fazer? Requestar ou ser requestado?
Que hei-de esperar?
Em mim está o que cobiço. A riqueza me empobrece.
Oh! Pudesse eu separar-me de meu corpo! Estranho desejo
de quem ama, querer eu que o objecto do meu amor esteja longe!
A dor já me rouba as forças, e não me resta muito tempo de vida.
Sucumbo na flor da idade. A morte não me é pesada,
ela alivia-me as dores.

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114 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Gostaria que aquele a quem amo tivesse mais longa vida.


Agora, cordialmente unidos, morreremos ambos numa vida só.»

Com estas palavras, quase louco, voltou a olhar a mesma imagem.


Com as lágrimas perturbou as águas e a imagem desvaneceu-se
na ondulação do lago. Ao vê-la afastar-se, gritou:
«Para onde vais!? Espera! Não me deixes, cruel, a mim que te amo!
Possa eu ao menos olhar o que tocar não posso e assim alimente
minha triste loucura!»
E, entre lágrimas, rasga sua veste de cima a baixo e fere
o peito desnudado com mãos cor de mármore.
Ferido, o peito adquire um rubor rosado, como acontece às maçãs
que, estando claras de um lado, adquirem, do outro, uma rubra cor;
ou como acontece nos cachos às uvas em maturação,
que apresentam uma cor de púrpura. Ao ver na água,
novamente calma, esta situação, não resistiu mais, mas,
como costumam a dourada cera derreter em lume brando
e o orvalho da manhã ao calor do Sol, assim se funde ele,
gasto pelo amor, e lentamente é consumido por um fogo oculto.
Já nem existe cor, mistura de branco e rubro, nem ânimo,
nem forças, nem os encantos que admirava há pouco.
Nem se mantém o corpo que Eco amara outrora.
Mas esta, ao vê-lo, irada e ressentida embora, compadeceu-se dele
e sempre que o infeliz jovem gritava «ai!» com a voz em eco,
ela respondia «ai!». E quando, com as mãos, ele feria seus braços,
ela devolvia o mesmo som dos golpes.
Foram estas as últimas palavras ao voltar a olhar a fonte:
«Oh! Jovem amado em vão!» A encosta devolveu as palavras todas.
E, dizendo ele «adeus!» também Eco respondeu: «Adeus!»
Ele deixou cair na erva verde a cabeça cansada.
A morte fechou os olhos que admiravam a beleza do dono.
E ainda depois de ser recebido na mansão infernal se contemplava
na água do Estígio. Choraram-no as Náiades, suas irmãs,
que, cortando o cabelo, o ofertaram ao irmão.
Choraram-no as Dríades. Eco repercute o choro.

Preparavam já as tochas que se agitam no ar, o féretro e a pira,


mas em parte alguma se encontrava o corpo. No lugar do corpo,
encontraram uma flor amarela com pétalas brancas em volta do centro.

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francesco petrarca 115

Francesco PETRARCA. [Era o dia em que ao sol descoloriam], in


As Rimas de Petrarca. Tradução de Vasco Graça­‑Moura. [1336] 2003. Lisboa:
Bertrand. 45.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Era o dia em que ao sol descoloriam


raios por luto a seu Factor prestado,
quando eu fui preso, Dama, descuidado,
que vossos belos olhos me prendiam.

Nem reparos ao tempo me advertiam


contra os golpes de Amor, e eu tinha andado,
seguro e sem suspeita: e meus ais brado
que nessa dor comum então se ouviam.

Desarmado de todo achou­‑me Amor


e os olhos abrem via ao coração,
que são saída ao pranto e a seu passar.

Mas creio não ser honra a seu favor


ferir­‑me a setas nessa condição
e a vós, armada, o arco não mostrar.

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116 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Francesco PETRARCA. [Claras e frescas águas], in As Rimas de Petrarca.


Tradução de Vasco Graça­‑Moura. [1336] 2003. Lisboa: Bertrand. 365­‑369.

Texto sujeito a Direitos de Autor

essa que eu sem par creio já pousou;


troncos gentis (com mágoas
a suspirar relembro­‑os)
onde ela os belos flancos apoiou;
erva e flor que tocou
gracioso o seu manto
e angelical regaço;
santo ar, sereno espaço
onde Amor com seus olhos me feriu tanto;
juntos ouvi qual gema
esta dolente fala minha extrema.

Se assim é meu destino


(e o céu nisso convém)
que Amor meus olhos feche e em pranto imbua,
por graça este mofino
corpo me cubra alguém
e torne a alma a seu albergue nua.
A morte menos crua
seja de tal conforto
‘spero no turvo passo;
que meu esprito lasso
nunca achar pode algum mais calmo porto,
nem mais tranquilo fosso
iam exaustos ter a carne e o osso.

Nalgum tempo talvez


ao sítio costumado
a fera bela e mansa retroceda,
e onde ao guiar­‑me fez

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platão 119

PLATÃO. O Banquete. Tradução de Maria Teresa Schiappa Azevedo.


[século iv a.C.] 1991. Lisboa: Edições 70. 189c­‑193d; 201d­‑212c.

Para ser franco, Erixímaco — começou Aristófanes —, tenho em vista falar


num estilo bem diverso do teu e do de Pausânias. Efectivamente, dá­‑me ideia
de que as pessoas não pressentem, nem de longe, qual seja o poder do Amor!
Porque, se fosse esse o caso, não deixariam de lhe consagrar os templos e os
altares mais sumptuosos e de lhe oferecer os sacrifícios de maior valia... Ora
nada disto se passa hoje, nenhuma destas homenagens lhe é prestada, embo‑
ra ele as mereça mais do que ninguém. É ele, de verdade, o deus mais amigo
dos homens, aquele que os previne e cura dos males que, uma vez debelados,
já não são obstáculo à suprema felicidade da espécie humana! Vou, pois, ten‑
tar iniciar­‑vos no mistério do seu poder, e vocês serão os mestres que hão­‑de,
por seu turno, transmiti­‑lo a outros...
Antes de mais, importa que fiquem a conhecer a natureza humana e
as suas mutações. Pois a nossa antiga natureza não era tal como hoje e sim
diversa. Para começar, os seres humanos encontravam­‑se repartidos em três
géneros e não apenas em dois — macho e fêmea — como agora: além destes,
havia um terceiro que partilhava das características de ambos, género hoje
desaparecido, mas de que conservamos ainda o nome. Era ele o andrógino,
que constituía então um género distinto, embora reunisse, tanto na forma
como no nome, as características do macho e da fêmea; hoje, contudo, não
passa de um nome lançado ao descrédito...
Em segundo lugar, a forma de cada ser humano era inteira e globular, com
as costas e os flancos arredondados. Tinham quatro mãos e igual número de
pernas; sobre o pescoço redondo, duas faces, igualzinhas uma à outra; uma
única cabeça onde assentavam as faces, colocadas em sentido oposto; quatro
orelhas; órgãos genitais em número de dois; e tudo o mais que a partir daqui
possa imaginar­‑se. Caminhavam erectos, como agora, mas nos dois sentidos
em que o desejassem. Porém, quando os assaltava o desejo de correr a toda
a brida, faziam­‑no às cambalhotas, projectando as pernas para o ar, como os
equilibristas, até regressarem à posição vertical. E assim, apoiados nos seus
membros, que eram então oito, se deslocavam velozmente em círculo.

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120 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Quanto à origem destes três géneros, com tais características, ei­‑la:


o macho foi inicialmente um rebento do Sol; a fêmea, da Terra; e da Lua,
a espécie que reunia as características dos outros dois, dado que também a Lua
partilha da natureza do Sol e da Terra. Daí o facto de serem globulares, tanto
eles como a sua marcha — devido à semelhança com os seus progenitores.
Ora estes seres eram dotados de uma terrível força e resistência e, além
disso, de uma imensa ambição, pelo que começaram a conspirar contra os
deuses. O que Homero conta de Oto e Efialto se conta também a respeito
deles, isto é, que tentaram escalar o céu na intenção de atacar os deuses.
Então Zeus e as demais divindades puseram­‑se a deliberar o que haviam
de fazer deles e viam­‑se em sérios apuros: suprimir a raça e fulminá­‑la com
o raio, como tinham feito aos Gigantes, nem pensar (isso era suprimir tam‑
bém as homenagens e os sacrifícios que lhes advinham dos humanos…); mas
tolerar por mais tempo a sua insolência — também não! Depois de muito
matutar, Zeus, por fim, lá se decide: «Parece­‑me», anunciou, «que arranjei
processo de continuar a haver homens e acabar de vez com a sua arrogân‑
cia: é enfraquecê­‑los. Agora mesmo vou dividi­‑los ao meio um por um; deste
modo, não só hão­‑de ficar mais fracos como também sairemos beneficiados,
graças ao aumento de número. Por enquanto, podem caminhar erectos sobre
as duas pernas; porém, se virmos que mesmo assim persistem na arrogância
e se recusam a dar­‑nos tréguas, então», declarou, «volto a dividi­‑los ao meio e
passam a andar só sobre uma perna… ao pé­‑coxinho!»
Dito e feito. Pôs­‑se a cortar os homens às metades, exactamente como
se cortam sorvas para as pôr em conserva [ou como se faz aos ovos com
um cabelo]. À medida que os ia cortando, encarregava Apolo de lhes virar
o rosto e a metade do pescoço para a superfície amputada, na ideia de que
os homens se tornariam mais humildes com o espectáculo da sua própria
amputação diante dos olhos. E ordenou ainda que os sarasse das restantes
feridas. Apolo tratava, pois, de lhes virar o rosto, e repuxando a pele de todos
os lados para a parte agora designada por ventre, apertava­‑a com toda a força,
à maneira de bolsas providas de cordões, em volta de uma única abertura que
deixou mesmo no meio do ventre — justamente o que hoje chamamos umbi‑
go. Alisou­‑lhes ainda numerosas rugas que ficaram e modelou­‑lhes o peito
com um instrumento do género dos que usam os cordoeiros para aplanar as
rugas do coiro em volta da forma. Todavia, deixou­‑lhes umas tantas, mesmo
na região do ventre e do umbigo, como lembrança do seu antigo estado.
Ora, quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada meta‑
de, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; e estendendo as mãos
em volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam do que a fundir­‑se

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platão 121

num só ser! Começaram, assim, a sucumbir à fome e à inacção geral, porque


se recusavam a fazer fosse o que fosse uma sem a outra; e sempre que uma das
metades morria, a que ficava procurava ao acaso outra sobrevivente a que
juntar­‑se, fosse a metade de um ser completamente feminino (o que agora
chamamos uma mulher) fosse a de um ser masculino. Deste modo, a raça ia
desaparecendo…
Compadecendo­‑se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e muda­
‑lhes para diante os órgãos genitais — até aí, efectivamente, era na parte
exterior que se encontravam, processando­‑se as funções de gerar e dar à luz,
não de uns para outros, mas por intermédio da terra, à semelhança do que
acontece com as cigarras. Ao mudar­‑lhes, pois, os órgãos genitais para dian‑
te, Zeus determinou que a geração humana passasse também a efectuar­‑se de
uns para outros, mediante tais órgãos — na fêmea, por intermédio do macho.
E eis o que tinha em vista: se acaso o acoplamento se desse entre homem e
mulher, o resultado seria procriarem e perpetuarem a espécie; se entre dois
varões, haveria pelo menos a plenitude da união e, uma vez apaziguado o
desejo, poderiam voltar às suas tarefas e interessar­‑se por outros aspectos
da vida. Dessa época longínqua data, sem dúvida alguma, a implantação do
amor entre os homens — o amor que restabelece o nosso estado original e
procura fazer de dois um só, curando assim a natureza humana.
Cada um de nós não passa, pois, de uma téssera humana, divididos, como
estamos, em metades, à semelhança dos linguados; e é a sua própria metade,
ou téssera, que cada um infatigavelmente procura. Em consequência, todos
os homens que resultam do corte de um ser misto (o mesmo que em tempos
era chamado andrógino) só gostam de mulheres. É deste género que descen‑
de a maior parte dos adúlteros, bem como todas as mulheres que gostam de
homens — sem esquecer as adúlteras! Por outro lado, todas as mulheres que
resultam do corte de um ser feminino não ligam praticamente aos homens
e voltam­‑se de preferência para as mulheres: e aí estão as «comadrinhas» a
ilustrar a descendência do género… Finalmente, todos os que resultam do
corte de um ser masculino só andam atrás de homens, e mesmo de peque‑
nos, como pequenas postas que são de um ser viril, revelam o seu fraco por
homens e comprazem­‑se em estarem deitados a seu lado, abraçados a eles…
E eis justamente os adolescentes e os rapazes de maior valor, os que pos‑
suem, cem por cento, uma natureza viril! Há quem diga que não, que não
passam de uns desavergonhados, mas é má­‑língua: se fazem o que fazem, não
é por falta de vergonha mas porque a sua ousadia, a sua coragem e virilidade
os impele a afeiçoarem­‑se ao que lhes é semelhante. E eis uma boa prova: ao
atingirem a maturidade, só os indivíduos desta têmpera se revelam homens

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122 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

para a política… Entretanto, uma vez chegados à idade viril, dedicam­‑se a


amar os jovens e, com respeito a casamento e a filhos, o interesse que mani‑
festam deve­‑se apenas a uma imposição da norma e não a uma tendência
natural porque, por si, facilmente se remediariam solteiros, vivendo na com‑
panhia uns dos outros. Em suma, um indivíduo desta espécie vem a dar um
amante ou um amigo de homens, afeiçoado, como é sempre, ao que tem a
mesma origem que ele.
Ora bem, sempre que um amante (um amante em sentido lato e não ape‑
nas o amante de jovens!) encontra essa mesma metade que lhe pertence, eis
que de súbito os assalta uma estranha impressão de amizade, de parentesco,
de amor, enfim; e a tal ponto que já não aceitam, por assim dizer, separarem­
‑se um instante que seja! Esses são justamente os que permanecem juntos
durante toda a sua vida — muito embora não soubessem sequer dizer­‑vos
o que esperam, em concreto, um do outro… Não passa decerto pela cabeça
de ninguém que seja meramente a união dos sentidos a causa do seu afã e do
prazer que sentem em estar juntos; visivelmente, é a alma de cada um que
aspira a algo mais, algo que ela não sabe exprimir mas que adivinha e deixa
discretamente insinuar­‑se…
Imaginemos, por exemplo, que Hefesto chegava junto deles com os
seus utensílios e, ao vê­‑los deitados no mesmo leito, perguntava: «Que é que
vocês, criaturas, pretendem um do outro?» E, perante o embaraço deles, vol‑
tava a perguntar: «Não será a isto que vocês aspiram — a identificarem­‑se o
mais possível um ao outro, de forma a não mais se separarem noite e dia? Se é
essa a vossa aspiração, estou disposto a fundir­‑vos e soldar­‑vos numa só peça,
de tal modo que, em vez de dois, passem a ser um só. E assim vos será dado
ter uma única vida enquanto viverem, como se fossem uma só pessoa; e como
uma só pessoa hão­‑de continuar lá no Hades, depois de morrerem, levados
por uma única morte! Mas vejam lá se é a isto que vocês aspiram e se este
destino vos apraz…» Perante uma tal promessa, estamos certos de que não
haveria uma pessoa sequer capaz de a recusar ou de exprimir outro desejo!
Bem pelo contrário, toda a gente ficaria convicta de ter escutado, nem mais
nem menos, o seu anseio de sempre: reunir­‑se e fundir­‑se no ser amado, por
tal forma que ambos passassem a ser uma só pessoa. E qual a origem deste
anseio? Precisamente, como vimos, o facto de que a nossa primitiva natureza
assim era e nós constituíamos então um todo. Ora, é essa a aspiração ao todo,
essa busca incessante, que tem o nome de amor.
Se antes, como digo, éramos um só, agora, devido aos nossos erros,
estamos reduzidos pelo deus à dispersão, tal qual os Arcádios o foram pelos
Lacedemónios; e se não mostrarmos comedimento para com os deuses, é

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platão 123

de recear que sejamos de novo divididos e fiquemos por aí girando, exacta‑


mente como essas figuras esculpidas nos baixos­‑relevos das estrelas, serra‑
das segundo a linha do nariz, à maneira de simples contra­‑senhas… Eis, pois,
o motivo por que cada homem deve incitar plenamente os outros à vene‑
ração pelos deuses, se desejamos, por um lado, escapar a esse perigo e, por
outro, obter os benefícios a que o amor nos conduz, no seu papel de guia e
general. Que ninguém lhe desobedeça (todo aquele que desobedece aos deu‑
ses aborrece…), pois só vivendo em amizade e boa harmonia com os deuses
lograremos descobrir o favorito que nos é próprio — coisa que hoje em dia
raros conseguem! E não se ponha Erixímaco a troçar das minhas palavras,
com esses ares de entendido, a supor que é de Ágaton e de Pausânias que
estou a falar: até porque bem pode dar­‑se o caso de pertencerem eles a esse
número e possuírem ambos uma natureza viril… Mas não, o que afirmo tem
antes a ver com a humanidade inteira, homens e mulheres! A nossa espécie
só pode alcançar a felicidade quando cada um realizar em plenitude as suas
aspirações amorosas e encontrar o favorito que lhe é próprio, de modo a res‑
taurar a nossa primitiva natureza. E se este é o supremo bem, necessariamen‑
te o que há de melhor no mundo actual é o que dele mais se aproxima, quero
dizer: acertar com um favorito talhado ao nosso feitio. E eis por que, ao cele‑
brar um deus, será de toda a justiça celebrarmos o Amor: não só é ele quem,
no presente, nos concede os maiores benefícios como alimenta, quanto ao
futuro, as nossas esperanças mais caras. Se mostrarmos reverência para com
os deuses, ele nos dará a cura aos nossos males, restaurando a nossa primitiva
natureza. E assim seremos de facto felizes e bem­‑aventurados!

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124 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Salvatore QUASIMODO. «Carta», in Três Momentos da Poesia Europeia: De


Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas. Tradução de Albano Martins. [1949]
2012. Porto: Afrontamento. 100.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Este silêncio parado nas estradas,


este vento indolente, que ora desliza
baixo entre as folhas mortas ou se eleva
para as cores das bandeiras estrangeiras,
talvez a ânsia de dizer­‑te uma palavra
antes que o céu volte a fechar­‑se outra vez
sobre outro dia, talvez a inércia,
o nosso mal mais vil... A vida
não está neste tremendo, escuro, bater
do coração, não é piedade,
apenas um jogo do sangue onde a morte
está em flor. Ó minha doce gazela,
lembro­‑te aquele gerânio aceso
sobre um muro crivado de metralha.
Ou já nem a morte consola
mais os vivos, a morte por amor?

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francisco de quevedo 125

Francisco de QUEVEDO. «Amor constante para além da morte», in


Antologia Poética. Tradução de José Bento. [1648] 2002. Lisboa: Assírio &
Alvim. 117.

Meus olhos cerrar pode a derradeira


sombra que me levar o branco dia;
e desatar minha alma poderia
hora ao seu anseio lisonjeira;

mas não, dessa outra parte, na ribeira


deixara a lembrança, onde ela ardia;
vogar sabe meu lume na água fria
e perder o respeito à lei certeira.

Alma a que todo um deus prisão tem sido,


veias que a tanto fogo humor têm dado,
medulas que na glória têm ardido,

seu corpo deixará, não seu cuidado;


hão­‑de ser cinza, sim, mas com sentido;
pó hão­‑de ser, mas pó enamorado.

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126 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Jean de RACINE. Excerto de «Acto 2», in Fedra. Tradução de Vasco Graça-


Moura. [1677] 2005. Lisboa: Bertrand. 79­‑ 91.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Hipólito
Amigo, tudo é pronto? Eis que a Rainha vem.
Vai, que para largar se faça o que convém.
Manda dar o sinal, corre, ordena e regressa,
de atroz conversação liberta­‑me depressa.

C EN A V: Fedra, Hi pó li to, Eno ne

Fedra, para Enone.


Ei­‑lo. A meu coração o sangue reflui já.
Ao vê­‑lo me esqueci do que me trouxe cá.

Enone
De um filho vos lembrai que em vós espera. E basta.

Fedra
Pronta partida, diz­‑se, agora vos afasta,
Senhor. A vossa dor meu choro juntar venho.
E meu alarme expor quanto ao filho que tenho.
Já não tem pai meu filho e não é longe o dia
em que até minha morte ele inda presencia.
Já inimigos mil atacam sua infância.
Só em vós pode ter na protecção constância.
Mas secreto remorso a minh’alma ora agita.
Creio ter­‑vos fechado o ouvido a tal desdita.
Tremo só de pensar que justa ira em vós tem
de nele perseguir uma odiosa mãe.

Hipólito
Senhora, a tal baixeza eu nunca desceria.

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pierre de ronsard 131

Pierre de RONSARD. [Vamos, meu bem, a ver se a rosa], in Alguns Amores


de Ronsard. Tradução de Vasco Graça­‑Moura. [1552] 2003. Lisboa: Bertrand.
137.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Vamos, meu bem, a ver se a rosa


que esta manhã, ao sol, airosa,
a sua roupa abriu vermelha,
não perde em hora vespertina
pregas da veste purpurina
e a tez que à vossa se assemelha.

Ai, vede como em pouco espaço


ela deixou, ai, triste passo,
toda a beleza fenecer.
Ah, que madrasta é a Natura
pois flor assim mais já não dura
que entre manhã e anoitecer.

Pois se me credes, vós, meu bem,


enquanto a idade em flor vos tem
nessas primícias de verdura,
colhei, colhei a mocidade
que como à flor a velhice há­‑de
turvar a vossa formosura.

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132 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Christina ROSSETTI. «Um aniversário», in Poems and Prose. Tradução


inédita de Simão Valente. [1862] 2008. Oxford: Oxford University Press.
77­‑ 78.

O meu coração é como um pássaro que canta,


Cujo ninho fica na verdura regada.
O meu coração é como uma macieira,
Cujos ramos curvam com fruta pesada.
O meu coração é como uma concha de arco­‑íris
Que rema num mar sem rumor;
O meu coração está mais feliz do que tudo isto
Porque veio a mim o meu amor.

Levantem­‑me um estrado de seda e penas;


Com púrpura e veiro aos molhos
Decorem­‑no com pombas e romãs
E pavões de centenas de olhos;
Revistam­‑no de ouro e uvas de prata,
Flores de lis, flores de alecrim;
Porque o aniversário da minha vida
Chegou, o meu amor veio a mim.

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umberto saba 133

Umberto SABA. «A minha mulher», in Poesia (Uma antologia de Il


Canzionere). Tradução de José Manuel de Vasconcelos. [1911] 2010. Lisboa:
Assírio & Alvim. 43­‑49.

Tu és como uma jovem,


branca franganota.
Eriçam­‑se­‑lhe ao vento
as penas, o pescoço inclina
para beber, e na terra esgaravata;
mas, ao andar, tem o teu lento
passo de rainha,
e desfila pela erva
vaidosa e soberba.
É melhor do que o macho.
É como são todas
as fêmeas de todos
os serenos animais
que se aproximam de Deus.
Assim se o olhar, se os juízos meus
me não enganam, entre elas tens tuas iguais,
e em nenhuma outra mulher.
Quando a noite vier
ensonar as galinhitas,
imitem vozes que parece que imitas,
dulcíssimas, em que às vezes com teus ais
de males te lamentas, e sem que o queiras
a tua voz tem a suave e triste
música das capoeiras.

Tu és como uma grávida


bezerra;
ainda livre e sem
corpulência, antes dengosa;
que, se a afagas, o pescoço

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134 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

volta, onde de um rosa


suave tem a carne.
Se a encontras e a mugir
a ouves, tão grande é esse som
lamentoso, que a erva
arrancas, para lha dares como um dom.
É assim que o meu dom
te ofereço quando estás triste.

Tu és como uma esguia


cadela, que sempre tanta
doçura tem nos olhos,
e no coração bravor.
A teus pés uma santa
parece num fervor
indomável arder,
para assim te proteger
como o seu Deus e Senhor.
Quando em casa ou pela rua
te persegue, a quem apenas tente
aproximar­‑se, o dente
branquíssimo mostra.
E o seu amor sofre
com ciúme.

És como a coelha
assustada. Dentro da estreita
grade ao ver­‑te de pé
se põe direita,
e para ti a orelha
imóvel e comprida
volta que o farelo e as raízes
tu lhe levas, sem isso
se esconderia,
num qualquer recanto escuro.
Quem poderia a comida
retirar­‑lhe? Quem o pêlo
que arranca de cima,
para juntá­‑lo ao ninho

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umberto saba 135

onde depois vai parir?


Quem dor te fará jamais sentir?

Tu és como a andorinha
que volta na Primavera.
E no Outono parte;
mas tu não tens essa arte.
O que tu tens da andorinha
é a errância pouco austera;
o que para mim, que me sentia e era
velho, anunciava uma outra Primavera.

Tu és como a previdente
formiga. Dela, quando
ao campo vão
a avó e ao menino que
leva pela mão,
fala como lhe aprouver.
E também na abelha
te reconheço, e em todas
as fêmeas de todos
os serenos animais
que estão perto de Deus;
mas em nenhuma outra mulher.

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136 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

William SHAKESPEARE. [Que és um dia de verão não sei se diga], in


Os Sonetos de Shakespeare. Tradução de Vasco­‑ Graça Moura. [1609] 2002.
Lisboa: Bertrand. 47.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Que és um dia de verão não sei se diga.


És mais suave e tens mais formosura:
vento agreste botões frágeis fustiga
em Maio e um verão a prazo pouco dura.

O olho do céu vezes sem conta abrasa,


outras a tez dourada lhe escurece,
todo o belo do belo se desfasa,
p0r caso ou pelo curso a que obedece

da Natura; mas teu eterno verão


nem murcha, nem te tira teus pertences,
nem a morte te torna assombração

quando o tempo em eternas linhas vences:


enquanto alguém respire ou possa ver
e viva isto e a ti faça viver.

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sófocles 137

SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.


[c. 440 a.C.] 2008. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 68­‑ 71.

Coro
É bem claro. Indómita é a descendência, de indómito pai nascida. Não
aprendeu a curvar­‑se perante a desgraça.
Creonte
Mas fica sabendo que os espíritos demasiado obstinados são os que mais
depressa sucumbem, e o mais sólido ferro, levado ao rubro e endurecido
pelo fogo, é frequente vê­‑lo partir­‑se e reduzir­‑se a bocados. Sei bem que
com um pequeno freio se subjugam os cavalos fogosos. E não costuma ter
pensamentos altivos quem é escravo daqueles que lhe estão próximos.
Esta soube bem ser insolente, quando tripudiou sobre as leis estabeleci‑
das. E depois de feito isso, comete nova insolência, vangloriando­‑se da
sua acção e rindo de a ter praticado. Porém é ela que será um homem e
não eu, se lhe deixo esta vitória impunemente. Pode ela ser nossa sobri‑
nha ou mais próxima de nós pelo sangue do que qualquer outro dos que
vivem no meu lar. Ela, e a que é da mesma origem, não escaparão à pior
das sortes. Porque também a essa eu acuso de ter premeditado igual‑
mente o enterro. (Para um dos seus guardas) Chamai­‑a, porque eu vi­‑a há
pouco lá dentro em delírio, sem dominar a razão. É que a alma daque‑
les que tramaram o mal na sombra acusa­‑os do crime antecipadamente.
Mas o que mais abomino é que quem foi apanhado em flagrante delito,
ainda por cima se vanglorie disso.
Antígona
Intentas algo mais do que prender­‑me para me matar?
Creonte
Eu não. Com isso me dou por satisfeito.
Antígona
Então porque hesitas? Assim como das tuas palavras não me vem
nenhum deleite, nem poderá jamais vir, assim também o meu parecer
te é desagradável por natureza. E, contudo, onde podia eu granjear fama
mais ilustre do que dando sepultura ao meu próprio irmão? Todos os que
aqui estão diriam também como aprovam este acto, se o medo lhes não

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138 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

travasse a língua. Mas é que a realeza, entre muitos outros privilégios,


goza o de fazer e dizer o que lhe apraz.
Creonte
Dos filhos de Cadmo, és a única a encarar os factos dessa maneira.
Antígona
Estes também, mas refreiam a boca na tua presença.
Creonte
E tu não tens vergonha de pensares de maneira diversa?
Antígona
Não é opróbrio prestar honras aos que nasceram das mesmas entranhas.
Creonte
Com que então não era do mesmo sangue o que morreu no campo
adverso?
Antígona
Do mesmo sangue, e filho da mesma mãe e do mesmo pai.
Creonte
Nesse caso, como podes prestar­‑lhe um tributo ímpio aos olhos do
outro?
Antígona
Não será esse o testemunho do falecido.
Creonte
Mas sim, já que o honras do mesmo modo que ao ímpio.
Antígona
Não foi um escravo que morreu; foi um irmão.
Creonte
... Que ia assaltar esta terra; o outro tomou armas por ela.
Antígona
Hades deseja, contudo, que o ritual seja o mesmo.
Creonte
Mas ao honesto não compete o mesmo que ao malvado.
Antígona
Quem sabe se debaixo da terra isso não é exacto.
Creonte
O inimigo jamais se tornará amigo, nem mesmo depois de morto.
Antígona
Não nasci para odiar mas sim para amar.

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stendhal 139

STENDHAL. Excerto de «Capítulo XIX. A ópera cómica», in O Vermelho


e o Negro. Tradução de Rui Santana Brito e Hélder Guégués. [1830] 2018.
Lisboa: Guerra & Paz. 369­‑373.

O how this spring of love resembleth


The uncertain glory of an April day,
Which now shows all the beauty of the sun
And by and by a cloud takes all away!
—Shakespeare

Ocupada com o futuro e com o papel especial que esperava vir a desempe‑
nhar, Mathilde começou a ter saudades das discussões áridas e metafísicas
que muitas vezes tinha com Julien. Fatigada de tão altos pensamentos, às
vezes também sentia falta dos momentos de felicidade que sentira junto
dele; estas últimas lembranças não apareciam sem remorsos, que em alguns
momentos a atormentavam.
«Mas, se temos uma fraqueza», pensava, «é digno de uma jovem como
eu somente esquecer os seus deveres por um homem de mérito; ninguém
dirá que foram os seus belos bigodes ou a sua graça a montar a cavalo que me
seduziram, mas sim as suas profundas discussões sobre o futuro que espera a
França, as suas ideias sobre a semelhança que os acontecimentos que se vão
abater sobre nós podem ter com a revolução de 1688 na Inglaterra. Fui sedu‑
zida», respondia ela aos seus remorsos, «sou uma mulher fraca, mas ao menos
não fui enganada como uma boneca pelas vantagens exteriores.
«Se houver uma revolução, porque não desempenharia Julien Sorel o
papel de Roland e eu o de Madame Roland? Prefiro esse papel ao de Madame
de Staël: a imoralidade do comportamento será um obstáculo no nosso século.
Decerto não me reprovarão uma segunda fraqueza; eu morreria de vergonha.»
Os devaneios de Mathilde, é verdade, não eram todos assim tão graves
quanto os pensamentos que acabamos de transcrever.
Ela olhava Julien e descobria uma graça encantadora nas suas mais
pequenas acções.
«Sem dúvida», dizia a si mesma, «consegui destruir nele até a menor ideia
que ele faz dos direitos. O ar de infelicidade e de paixão com que o pobre
rapaz me disse aquela frase de amor, há oito dias, é aliás uma prova disso;
é preciso convir que fui muito excêntrica em zangar­‑me com uma frase em
que brilhavam tanto respeito, tanta paixão. Não sou a mulher dele? A frase

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140 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

era muito natural e, devo admitir, muito amável. O Julien ainda me amava
depois de longas conversas nas quais lhe falei apenas, e com muita crueldade,
admito, das veleidades de amor que o tédio da vida que levo me inspirou por
esses jovens da sociedade dos quais ele é tão ciumento. Ah! Se ele soubesse
como são pouco perigosos para mim! Como me parecem, perto dele, estiola‑
dos e copiados uns dos outros!»
Ao fazer estas reflexões, Mathilde riscava com o lápis, ao acaso, uma folha
do seu álbum. Um dos perfis que ela desenhou surpreendeu­‑a, maravilhou­‑a:
parecia­‑se com Julien de uma maneira impressionante. «É a voz do céu! Eis
um dos milagres do amor», exclamou com enlevo: «sem dar­‑me conta, fiz o
seu retrato.»
Fugiu para o quarto, onde se encerrou, e, com muita aplicação, procurou
seriamente fazer o retrato de Julien, mas não conseguiu; o perfil traçado ao
acaso continuou a ser o mais parecido. Mathilde ficou encantada, viu nisso
uma prova evidente de grande paixão.
Ela só deixou o álbum muito tarde, quando a marquesa mandou chamá­
‑la para irem à ópera italiana. Ela só teve uma ideia, procurar Julien com os
olhos para o fazer ser convidado pela mãe a acompanhá­‑las.
Ele não apareceu; as damas só tiveram pessoas vulgares no seu camaro‑
te. Durante todo o primeiro acto, Mathilde sonhou com o homem que ela
amava com os transportes da mais viva paixão; mas, no segundo acto, uma
máxima de amor cantada, cumpre reconhecer, sobre uma melodia digna de
Cimarosa penetrou­‑lhe o coração. A heroína da ópera dizia: «Devo ser puni‑
da pelo excesso de adoração que sinto por ele, amo­‑o demais!»
Ao ouvir este canto sublime, tudo o que existia no mundo desapareceu
para Mathilde. Falavam­‑lhe; ela não respondia; a mãe repreendia­‑a, ela mal
conseguia dirigir­‑lhe o olhar. O seu êxtase chegou a um estado de exaltação
e de paixão comparável às emoções mais violentas que Julien vinha sentindo
por ela há alguns dias. A cantilena, cheia de uma graça divina, sobre a qual era
cantada a máxima que parecia aplicar­‑se de forma tão impressionante à sua
situação, ocupava todos os instantes em que ela não pensava directamente
em Julien. Graças ao seu amor à música, sentiu nessa noite o que a Sr.ª de
Rênal sempre sentia ao pensar em Julien. O amor cerebral certamente tem
mais espírito que o amor verdadeiro, mas tem apenas instantes de entusias‑
mo; ele examina­‑se demais, julga­‑se a todo o momento; longe de desgarrar o
pensamento, é construído à força de pensamentos.
De regresso a casa, não importa o que dissesse a Sra. de La Mole, Mathil‑
de alegou ter febre e passou uma parte da noite a repetir essa cantilena ao
piano. Ela cantava as palavras da canção que a enfeitiçara:

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stendhal 141

Devo punirmi, devo punirmi,


Se troppo amai, etc.

O resultado daquela noite de loucura foi que ela acreditou ter conseguido
triunfar do seu amor. (Esta página prejudicará de mais de uma maneira o seu
infeliz autor. As almas geladas acusá­‑lo­‑ão de indecência. Mas ele não come‑
te a injúria, às jovens que brilham nos salões de Paris, de supor que somente
uma delas seja susceptível dos movimentos de loucura que degradam o carác‑
ter de Mathilde. Esta personagem é totalmente imaginária, e até imaginada
fora dos hábitos sociais que entre todos os séculos assegurarão uma posição
tão distinta à civilização do século xix.
Não é de modo nenhum a prudência que falta às jovens que ornaram os
bailes deste Inverno.
Não penso tão­‑pouco que se possa acusá­‑las de desprezar uma brilhante
fortuna, cavalos, belas terras e tudo que assegura uma posição agradável na
sociedade. Longe de ver apenas o tédio em todas essas vantagens, estas são
geralmente o objecto dos desejos mais constantes, e, se há paixão nos cora‑
ções, é paixão por elas.
Não é tão­‑pouco o amor que governa a fortuna dos jovens dotados de
algum talento como Julien; estes apegam­‑se de uma forma invencível a um
grupo e, quando o grupo faz fortuna, todas as boas coisas da sociedade cho‑
vem sobre eles. Ai do homem de estudo que não pertence a nenhum grupo,
reprovar­‑lhe­‑ão até pequenos êxitos muito incertos, e a alta virtude triunfará
roubando­‑o. Pois é, senhores, um romance é um espelho que se leva por uma
grande estrada. Ora reflecte a vossos olhos o azul do céu, ora a imundície
do lodaçal da estrada. E o homem que transporta o espelho nas costas será
por vós acusado de ser imoral! O seu espelho mostra a imundície, e acusais
o espelho! Acusai antes o grande caminho onde está o lamaçal, e mais ainda
o inspector de estradas que deixar a água empoçar­‑se e o lamaçal formar­‑se.
Agora que está bem entendido ser o carácter de Mathilde impossível
no nosso século, não menos prudente que virtuoso, receio irritar menos ao
continuar o relato das loucuras desta jovem encantadora.)
Durante todo o dia seguinte, ela espreitou as ocasiões de poder triun‑
far da sua louca paixão. O seu principal objectivo foi desagradar em tudo a
Julien; mas nenhum dos movimentos dele lhe escapou.
Julien estava demasiado infeliz e sobretudo demasiado agitado para adi‑
vinhar uma manobra de paixão tão complicada, muito menos pôde perceber
o que ela encerrava a seu favor: ele foi a vítima dessa manobra; talvez jamais
a sua infelicidade tenha sido tão excessiva. As suas acções estavam tão pouco

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142 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

sob a direcção do seu espírito, que, se um filósofo mal­‑humorado lhe disses‑


se: «Aproveite rapidamente as disposições que lhe forem favoráveis; nesse
tipo de amor cerebral que vemos em Paris, a mesma maneira de ser não pode
durar mais de dois dias», ele não o teria compreendido. Mas, ainda que esti‑
vesse exaltado, Julien tinha honra. Compreendeu que o seu primeiro dever
era a discrição. Pedir conselho, contar o seu suplício ao primeiro que apare‑
cesse teria sido uma felicidade comparável à do desgraçado que, atravessan‑
do um deserto ardente, recebe do céu uma gota de água gelada. Ele percebeu
o perigo, temeu responder por uma torrente de lágrimas ao indiscreto que o
interrogasse, e encerrou­‑se no seu quarto.
Viu Mathilde passear um longo tempo no jardim; quando, por fim, ela se
foi embora, ele desceu até lá; aproximou­‑se de uma roseira onde ela colhera
uma flor.
A noite estava escura, ele pôde entregar­‑se a toda a sua infelicidade sem
o perigo de ser visto. Era evidente para ele que a menina de La Mole amava
um daqueles jovens oficiais com quem acabara de conversar tão alegremen‑
te. Ela amara­‑o, mas descobrira o seu pouco mérito.
«E, de facto, tenho­‑o bem pouco!», dizia para consigo Julien com plena
convicção; «afinal de contas, sou uma criatura vulgar, muito enfadonha para
os outros, muito insuportável para mim mesmo.» Estava mortalmente abor‑
recido com todas as suas boas qualidades, com todas as coisas que amara com
entusiasmo; e, nesse estado de imaginação invertida, quis julgar a vida com a
sua imaginação. Este é o erro de um homem superior.
Várias vezes a ideia do suicídio lhe ocorreu; essa imagem era cheia de
encantos, era como um repouso delicioso; era o copo de água gelada ofere‑
cido ao miserável que, no deserto, morre de sede e de calor. «A minha morte
aumentará o desprezo que ela tem por mim!», exclamou. «Que lembrança
vou deixar!»
Caído neste último abismo da infelicidade, um ser humano não tem
outro recurso senão a coragem. Julien não teve génio suficiente para dizer a
si mesmo: é preciso ousar; mas, ao olhar a janela do quarto de Mathilde, viu
através das persianas que ela apagava a luz: imaginou aquele quarto encan‑
tador que vira só uma vez na vida. A sua imaginação não ia mais longe. Soou
uma hora; ouvir o som do relógio e dizer: vou subir com a escada, foi questão
de um instante.
Foi o lampejo do génio, as boas razões apresentaram­‑ se em profu‑
são. «Posso ser mais infeliz?», pensou. Correu até à escada, o jardineiro
acorrentara­‑a. Com o auxílio da lingueta de uma das suas pistolas, que que‑
brou, Julien, animado nesse momento de uma força sobre­‑humana, torceu

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stendhal 143

um dos anéis da corrente que retinha a escada; em poucos minutos apoderou­


‑se dela e encostou­‑a contra a janela de Mathilde.
«Ela vai zangar­‑se, esmagar­‑me com desprezos, mas que importa? Dou­
‑lhe um beijo, um último beijo, subo até ao meu quarto e mato­‑me... os meus
lábios tocarão a sua face antes de morrer!»
Voava ao subir a escada. Bate à persiana; alguns instantes depois, Mathil‑
de ouve­‑o, ela quer abrir a persiana, a escada impede­‑a: Julien agarra­‑ se
ao gancho de ferro destinado a manter a persiana aberta e, com o risco de
precipitar­‑se para sempre, dá um violento empurrão na escada, deslocando­‑a
um pouco. Mathilde consegue abrir a persiana.
Ele lança­‑se no quarto mais morto que vivo:
— Então és tu! — diz ela, precipitando­‑se­‑lhe nos braços.

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144 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Torquato TASSO. «Na morte de Margarida Bentivoglio», in Rosa do Mundo:


2001 poemas para o futuro. Tradução de Jorge de Sena. [1585] 2001 . Lisboa:
Assírio & Alvim. 903.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Não é isto um morrer,


imortal Margarida,
mas um passar mais cedo a uma outra vida;
nem dessa ignota via
dor te descore ou prema,
mas só piedade na partida extrema.
De nós penosa e pia,
de ti feliz, segura,
te despedes do mundo, ó alma pura.

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teresa de ávila 145

TERESA DE ÁVILA. [Vivo sem viver em mim], in Antologia da Poesia


Espanhola do «Siglo de Oro», Volume 1. Tradução de José Bento. [século xvi]
1993. Lisboa: Assírio & Alvim. 123­‑124.

Vivo sem viver em mim


e tão alta vida espero,
que morro por não morrer.

Vivo já fora de mim,


depois que morro de amor,
porque vivo no Senhor,
que me quis só para si.
Meu coração lhe ofereci
pondo nele este dizer:
Que morro por não morrer.

Esta divina prisão


do amor em que hoje vivo,
tornou Deus o meu cativo
e livre meu coração.
E causa em mim tal paixão
Deus meu prisioneiro ver,
que morro por não morrer.

Ai, que longa é esta vida!,


que duros estes desterros!,
esta prisão, estes ferros
em que a alma está metida!
Só esperar a saída
causa em mim tanto sofrer,
que morro por não morrer.

Ai, que vida tão amarga,


sem se gozar o Senhor!,

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146 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

porque, se é doce o amor,


não é a esperança larga.
Tire­‑me Deus esta carga,
pesada a mais não poder,
que morro por não morrer.

Somente com a confiança


vivo de que hei­‑de morrer,
porque, morrendo, o viver
me assegura minha esp’rança.
Oh morte que a vida alcança,
não tardes em me aparecer,
que morro por não morrer.

Olha que o amor é forte:


vida, não sejas molesta;
pra ganhar­‑te só te resta
perder­‑te, sem que me importe.
Venha já a doce morte,
venha já ela a correr,
que morro por não morrer.

A vida no alto cativa,


que é a vida verdadeira,
até que esta não nos queira,
não se goza estando viva.
Não me sejas, morte, esquiva;
só pla morte hei­‑de viver,
que morro por não morrer.

Como, vida, presenteá­‑lo,


o meu Deus que vive em mim,
se não perdendo­‑te a ti,
pra melhor poder gozá­‑lo?
Quero, morrendo, alcançá­‑lo,
pois só dele é meu querer:
que morro por não morrer.

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lev tolstói 147

Lev TOLSTÓI. «Capítulos 29­‑31», in Anna Karénina. Tradução de Nina


Guerra e Filipe Guerra. [1873­‑ 77] 2014. Lisboa: Presença. 737­‑ 745.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Anna entrou na caleche, sentindo­‑se ainda pior do que quando saíra de casa.
O sentimento de ser repudiada e insultada, que tivera no encontro com
Kitty, juntou­‑se aos sentimentos anteriores.
— Onde deseja ir? Para casa? — perguntou Piotr.
— Sim, para casa — disse Anna, já sem pensar onde iria.
Como elas olhavam para mim... como para qualquer coisa medonha,
incompreensível e curiosa. O que poderá ele contar ao outro com tanto ardor?
— pensou, olhando para dois transeuntes. — Será possível dizer aos outros o
que sentimos? Quis contar a Dolly, e ainda bem que não contei. Ficaria muito
contente com a minha desgraça! Teria escondido essa alegria, é claro; mas o
seu sentimento principal seria de alegria por eu ter sido castigada pelos pra‑
zeres que ela invejava. Kitty, essa ficaria ainda mais contente. Vejo­‑a como se
fosse à transparência! Sabe que a minha amabilidade com o marido foi maior
do que é habitual. E tem ciúmes e odeia­‑me. E ainda mais, despreza­‑me. Aos
olhos dela, sou uma mulher imoral. Se eu fosse imoral, poderia apaixonar por
mim o marido dela... se quisesse. Aliás, quis. Olha, aquele vai muito contente
consigo próprio — pensou de um senhor gordo, de bochechas vermelhas,
que vinha em sentido contrário, a tomou por uma conhecida e soergueu o
chapéu lustroso sobre a careca lustrosa, mas depois percebeu que se enga‑
nara. — Achou que me conhecia. Mas conhece­‑me tão mal como qualquer
outro neste mundo. Eu própria não me conheço. Conheço os meus apetites,
como dizem os franceses. Àqueles apetece­‑lhes gelado todo porco. E eles
sabem­‑no. Sabem­‑no com certeza — pensou, olhando para dois garotos que
fizeram parar um vendedor dos gelados; o vendedor tirou o balde do pescoço
e limpou a cara suada com a ponta da toalha. — Apetece­‑nos a todos coisas
saborosas, doces. Não há confeitos, então seja o gelado sujo. À Kitty tam‑
bém: se não for Vrônski, então Lióvin. E tem­‑me inveja. E odeia­‑me. E todos
nós nos odiamos uns aos outros. Eu odeio Kitty, Kitty a mim. Isto é que é a
verdade. Tiútkin, coiffeur... Je me fais coiffer par Tiútkin... Vou dizer­‑lho quan‑
do ele voltar — pensou e sorriu. Mas no mesmo momento lembrou­‑se de

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156 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Miguel de UNAMUNO. «Capítulo VIII», in A Tia Tula. Tradução de Ruy


de Oliveira Soares e G. Martins de Oliveira. [1921] 1971. Lisboa: Verbo. 45­
‑49.

Gertrudes, que se instalara em casa de sua irmã desde que esta dera à
luz pela última vez e durante a sua última doença, disse um dia a seu cu-
nhado:
— Olha, vou levantar a minha casa.
O coração de Ramiro pôs­‑se a galope.
— Sim — acrescentou —, tenho de vir viver convosco e tratar dos peque‑
nos. Não se pode, além disso, deixar aqui sòzinha essa boa rês de ama.
— Deus te pague, Tula.
— Nada de Tula, já to tenho dito; para ti sou Gertrudes.
— E que diferença há?
— Isso é comigo.
— Olha, Gertrudes…
— Bem, vou ver o que está a ama a fazer.
E vigiava­‑a sem descanso. Não a deixava dar o peito ao pequeno diante
do pai, e repreendia­‑a pelo pouco recato e muita desenvoltura com que des‑
tapava o seio.
— Não é preciso que mostres isso assim: na criança é em quem tens de
ver se tens ou não leite abundante.
Ramiro sofria e Gertrudes sentia­‑o sofrer.
— Pobre Rosa! — dizia continuamente.
— Agora os pobres são as crianças e é neles que tens de pensar…
— Não chega, não. Apenas descanso. Sobretudo de noite a saudade dói­
‑me; há noites que as passo em branco.
— Sai depois de jantar, como saías nos últimos tempos de casado, e não
voltes a casa até que tenhas sono. Uma pessoa tem de deitar­‑se com sono.
— Mas é que sinto um vazio.
— Vazio, tendo filhos?
— Mas ela é insubstituível…
— Também acho… Embora, vocês, os homens…
— Nunca julguei que a quisesse tanto…

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miguel de unamuno 157

— Passa­‑ se isso com todos. Assim se passou comigo quando morreu


meu tio e assim se passou com minha irmã, com a tua Rosa. Até ela morrer
também não sabia quanto lhe queria. Sei­‑o agora que trato dos seus filhos,
dos vossos filhos. E então amamos os mortos nos vivos.
— E não, por acaso, aos vivos nos mortos?...
— Não filosofemos.
E todas as manhãs, depois de Ramiro se ter levantado, ia ao quarto do
cunhado e abria de par em par as portas da varanda, dizendo para si mesma:
«Para que saia o cheiro a homem.» Evitava depois encontrar­‑se a sós com o
cunhado, levando sempre uma criança com ela.
Sentada no cadeirão em que a defunta se costumava sentar, contempla‑
va os brinquedos dos pequenos.
— É que sou rapaz e tu não és mais que rapariga — ouviu dizer um dia,
com sua voz de falsete, Ramirinho à irmãzinha.
— Ramirinho, Ramirinho — disse­‑lhe a tia —, que é isso? Já começas a
ser bruto, a ser homem?
Um dia Ramiro chamou a cunhada e disse­‑lhe:
— Descobri o teu segredo, Gertrudes.
— Que segredo?
— O que há entre ti e o Ricardo, meu primo.
— Pois bem, sim, é verdade; empenhou­‑se, aborreceu­‑me, não me dei‑
xava em paz, e acabei por ter pena dele.
— E tanto segredo faziam…
— E para quê anunciá­‑lo?
— E sei mais.
— Que é que sabes?
— Que o puseste a andar.
— Também é verdade.
— Ele mesmo me mostrou a tua carta.
— Como? Não o julgava capaz disso. Bem fiz em deixá­‑lo: até que enfim!
Com efeito, Ramiro vira uma carta da cunhada para Ricardo, que dizia
assim:

«Meu caro Ricardo:


Não calculas que dias tão maus estou passando desde que a pobre Rosa morreu.
Estes últimos foram terríveis e não cessei de pedir à Virgem Santíssima e a seu Filho
que me dessem forças para ver claro em meu futuro. Não podes imaginar a mágoa com
que to digo, mas o que há entre nós não pode continuar; não posso calar­‑me. Minha
irmã não pára de pedir­‑me do outro mundo que não abandone os seus filhos e faça de

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158 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

sua mãe. E dado que tenho estes filhos para tratar, já não devo casar­‑me. Perdoa­‑me,
Ricardo, perdoa­‑me por Deus, e repara bem porque faço isto. Custa­‑me muito, porque
sei que haveria de chegar a amar­‑te e, sobretudo, porque sei quanto me amas e sofrerás
com isto. Sinto na alma causar­‑te esta dor; mas tu, que és bom, compreenderás os meus
deveres e os motivos da minha resolução, e encontrarás outra mulher sem as minhas
sagradas obrigações e que te possa fazer mais feliz que eu. Adeus, Ricardo, que sejas
feliz, e faças felizes outros, e tem a certeza de que nunca, nunca te esquecerá a
Gertrudes»

— E agora — acrescentou Ramiro — ­ , apesar disto, Ricardo quer ver­‑te.


— E eu estou escondida, por acaso?
— Não, mas…
— Diz­‑lhe que venha a nossa casa quando quiser ver­‑me.
— Nossa casa, Gertrudes, nossa…
— Nossa, sim, e de nossos filhos.
— Se tu quisesses…
— Não falemos disso! — e levantou­‑se.
Ricardo apresentou­‑se no dia seguinte.
— Mas, por Deus, Tula.
— Não falemos mais disso, Ricardo, que é coisa arrumada.
— Mas, por Deus — e quebrou­‑se­‑lhe a voz.
— Sê homem, Ricardo; sê forte!
— Mas é que já têm pai…
— Não chega; não têm mãe…, isto é, têm­‑na, sim.
— Ele pode voltar a casar­‑se.
— Voltar a casar­‑se ele? Nesse caso, as crianças iriam comigo… Prometi
à sua mãe, no seu leito de morte, que não teriam madrasta.
— E se viesses a sê­‑lo, Tula?
— Eu, como?
— Sim; casando­‑te com Ramiro.
— Isso nunca!
— Pois só assim consigo explicar isso.
— Isso nunca, já te disse, não me exporia a que uns meus, quero dizer, do
meu ventre, pudessem tirar o carinho que tenho a esses. E mais filhos, mais?
Isso nunca. Chegam estes para os criar bem.
— Mas não vais convencer ninguém, Tula, que vieste viver aqui por isso.
— Não tenciono convencer ninguém de nada. E quanto a ti, basta que
to diga.
Separaram­‑se para sempre.

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miguel de unamuno 159

— E então? — perguntou­‑lhe Ramiro a seguir.


— Acabámos; não podia ser de outra forma.
— E ficaste livre…
— Livre estava, livre estou, livre penso morrer.
— Gertrudes…, Gertrudes… — e a sua voz tremia suplicando.
— Despedi­‑me dele porque estou comprometida, já to disse, com teus
filhos, com os filhos de Rosa…
— E teus…, não dizes assim?
— E meus, sim!
— Mas se quisesses…
— Não insistas; já te disse que não tenciono casar, nem contigo, nem
com ninguém.
— Com ninguém? — e abriu­‑se­‑lhe o peito.
— Sim, com ninguém.
— E como não foste para freira?
— Não gosto que mandem em mim.
— Mas no convento em que entrasses serias a abadessa, a superiora.
— Ainda gosto menos de mandar. Ramirinho!
A criança acorreu ao chamamento, e pegando nele, disse­‑lhe: «Vamos
brincar às escondidas!»
— Mas Tula…
— Já te disse — e para dizer isto acercou­‑se, tendo pegado na mão da
criança, e disse­‑lho ao ouvido — que não me trates por Tula, e muito menos
em frente das crianças. Eles sim, mas tu não. E respeita os pequenos.
— Em que é que lhes falto ao respeito?
— Em deixar assim a descoberto, diante deles, os teus instintos…
— Mas se não compreendem…
— As crianças compreendem tudo; mais que nós. E não esquecem nada.
E se agora não compreendem, compreendê­‑lo­‑ão amanhã. Cada uma destas
coisas que uma criança vê ou ouve é uma semente na sua alma, que depois
cresce e dá fruto. E chega!

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160 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Garcilaso de la VEGA. [Enquanto que de rosa e açucena], in Antologia da


Poesia Espanhola do «Siglo de Oro», Volume 1. Tradução de José Bento. [1543]
1993. Lisboa: Assírio & Alvim. 69.

Enquanto que de rosa e açucena


se revela o matiz no vosso gesto,
e que o vosso olhar ardente, honesto,
o coração inflama e o serena;

e enquanto esse cabelo, que na plena


veia de ouro se escolheu, em voo lesto
no alvo colo, formoso e manifesto,
o vento move, esparge e desordena:

colhei da vossa alegre primavera


o doce fruto, antes que o tempo irado
cubra de neve o deslumbrante cume.

Fará murchar a rosa o ar gelado,


tudo a idade irá mudar, severa,
pra não fazer mudança em seu costume.

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(7 )
HIST ÓR IA E ID EN T I DA D E

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endre ady 163

Endre ADY. «A pedra lançada ao ar», in Antologia da Poesia Húngara.


Tradução de Ernesto Rodrigues. [1909] 2002. Lisboa: Âncora. 132.

Pedra lançada ao ar, na tua terra


caindo, pequeno país, regressa
sempre a casa teu filho.

Visita torres em série, longe,


tem vertigens, entristece, no pó onde
fora nascido cai.

Desejoso de partir, não consegue


fugir ao sentir húngaro, ou leve
ou já de novo aceso.

Sou todo teu no meu grande rancor,


grande infiel nos cuidados de amor,
aflitivamente húngaro.

Pedra lançada ao ar, triste sem qu’rer,


pequeno país, tenho teu parecer
de maneira exemplar.

E, ai!, é sempre vã qualquer ideia:


cem vezes que me lances, voltarei
cem vezes, afinal.

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164 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ivo ANDRI . «Capítulo 1», in A Ponte sobre o Drina. Tradução de Lúcia


Stankovic e Dejan Stankovic. [1962] 2010. Lisboa: Cavalo de Ferro. 5­‑15.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Na maior parte do seu curso, o rio Drina corre através de gargantas aperta‑
das, entre serras abruptas ou profundos desfiladeiros de arribas escarpadas.
Apenas de quando em quando as margens do rio se dilatam em vales abertos
formando, de um ou do outro lado, chãs de terra fértil, ora planas, ora ondu‑
ladas, próprias para cultivo e povoamento. Uma destas planuras começa
aqui, em Višegrad, no lugar onde o Drina irrompe, numa súbita curva, da pro‑
funda e estreita ravina formada pelos rochedos de Butkovo e as montanhas
de Uzavnica. A curva que o Drina aqui faz é excepcionalmente cerrada e as
montanhas de ambos os lados são tão íngremes e tão próximas que parecem
um sólido bloco de pedra de onde o rio jorra, como uma muralha parda. É a
partir daqui que as montanhas se alargam bruscamente num anfiteatro irre‑
gular, cujo diâmetro não ultrapassa uns quinze quilómetros em linha recta.
Nesse lugar onde o Drina se precipita com toda a impetuosidade das
suas águas verdes e espumosas, da massa aparentemente fechada das mon‑
tanhas áridas e negras ergue­‑se uma ponte de pedra grande e harmoniosa‑
mente talhada, com onze arcos de vão largo. Da ponte estende­‑se, como um
leque, todo o vale ondulante e nele a pequena cidade de Višegrad e as suas
cercanias, com povoações aninhadas nas abas das colinas, cobertas de sea‑
ras, prados e ameixoais, riscada por muros e sebes e salpicada de pequenos
bosques e raros tufos de verdura. Assim, olhando à distância, parece que é
dos arcos amplos daquela ponte branca que brota e se alastra, não só o verde
Drina, mas também essa planura fértil e mansa, com tudo o que nela existe
bem como os céus meridionais por cima.
Na margem direita do rio, a partir da ponte, estende­‑se a cidade com a
sua alcaçaria, uma parte pela planura e outra pelas encostas das colinas. No
outro lado da ponte, ao longo da margem esquerda, fica Maluhino Polje, um
bairro espalhado ao longo da estrada rumo a Sarajevo. Assim a ponte, unindo
os dois troços da via para Sarajevo, liga a cidade aos seus arrabaldes.
Na verdade, dizer «liga» é exactamente tão certo como dizer: o sol
nasce de manhã para que nós, os homens, possamos olhar em redor e fazer

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172 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

ANÓNIMO. «Cantar de Mio Cid», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o


futuro. Tradução de José Bento. [c. 1500] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim.
672­‑ 673.

Nas Cortes, o conde D. García ataca o Cid e suas filhas repudiadas pelos maridos;­
o Cid, tomando a barba, atributo de honra, responde­‑lhe que nunca ninguém lhe tocou

O conde D. García, levantando­‑se exclama:


— «Atendei­‑me vós, rei, o melhor de toda a Espanha!
Acostumou­‑se o Cid a vir às Cortes anunciadas.
Deixou­‑a crescer bem e longa tem a barba,
a uns medo lhes dá e a outros espanta.
Os infantes de Carrión são de estirpe bem alta,
não deviam querer suas filhas nem para amásias.
Quem pôde ter­‑lhas dado para esposas respeitadas?
Usaram seu direito quando as abandonaram.
Tudo o que diz o Cid pra nós não vale nada.»
Então o Campeador levou a mão à barba:
— «Louvado seja Deus que em céus e terra manda!
Se ela é assim longa, com cuidado foi tratada.
Que tendes vós, ó conde, pra censurar minha barba?
Pois desde que nasceu com cuidado foi tratada,
que até hoje ninguém se atreveu a puxá­‑la,
nem nunca ma arrancou filho de mouro ou cristã,
como eu a vós, ó conde, no castelo de Cabra,
quando Cabra tomei e a vós por vossa barba.
Nem sequer um rapazola deixou de beliscá­‑la:
o que vos arranquei falta inda em vossa cara.»

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baldesar castiglione 173

Baldesar CASTIGLIONE. «Capítulos XXIV-XXVIII», in O Livro do


Cortesão. Tradução de Carlos Aboim de Brito. [1528] 2008. Porto: Campo
das Letras. 39­‑46.

XXIV

«Se bem me recordo, parece­‑me, senhor Conde, que esta noite vós haveis
repetido que o cortesão deve acompanhar as suas acções, os seus gestos, as
suas maneiras, em suma, todos os seus movimentos, com graça. E parece­‑me
que considerais isso como condimento de tudo, sem o qual todas as outras
qualidades e disposições terão pouco valor. Na verdade, creio que cada um
se deixaria facilmente persuadir disso, porque pela força da palavra se pode
dizer que quem é dotado de graça é agradável. Mas porque haveis dito que,
muitas vezes, é um dom da natureza e dos céus, e também que quando não é
verdadeiramente perfeito, pode ser muito aumentado pela aplicação e pelo
trabalho, direi que aqueles que têm a sorte de nascer ricos de um tal te‑
souro, como alguns que vemos, parecem­‑me não ter necessidade de outro
mestre, porque o benigno favor do céu os leva, quase sem se darem conta
disso, mais alto do que tinham desejado, tornando­‑os não só agradáveis, mas
admiráveis aos olhos de todos. Assim, não penso nisso, porque não está ao
nosso alcance adquiri­‑lo por nós mesmos. Mas aqueles que por natureza só
são capazes de se tornar graciosos através do trabalho, indústria e aplicação,
desejo saber por meio de que arte, de que disciplina e de que maneira podem
adquirir esta graça, tanto nos exercícios do corpo, nos quais estimais que
é tão necessária, como em qualquer outra coisa que se faça ou que se diga.
Mas, dado que ao elogiar­‑nos por esta qualidade vós haveis gerado uma sede
ardente de a conseguir, sois igualmente obrigado, pela tarefa que a senhora
Emilia vos impôs, a satisfazê­‑la, ensinando­‑a.»

XXV

«Não sou obrigado», disse o Conde, «a ensinar­‑vos o modo de adquirir a gra‑


ça, ou qualquer outra coisa, mas apenas a mostrar­‑vos o que deve ser um
perfeito cortesão. E evitarei o empenho de vos ensinar esta perfeição, tanto
mais que acabei de dizer que o cortesão deve saber lutar e fazer o volteio

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174 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

e tantas outras coisas que eu não saberia ensinar­‑vos, dado que nunca as
aprendi, mas que sei que todos vós as conheceis. Basta que, do mesmo modo
que um bom soldado sabe dizer ao ferreiro de que forma, de que têmpera e
de que bondade devem ser as armas, sem no entanto ser capaz de ensiná­‑lo
a fazê­‑las, nem a forjá­‑las ou temperá­‑las, eu saiba dizer­‑vos o que deve ser
um perfeito cortesão, sem poder ensinar­‑vos como deveis fazer para vir a ser
um. No entanto, para satisfazer ainda, tanto quanto me é possível, a vossa
questão, embora seja quase provérbio que a graça não se aprende, direi que
quem quiser ter graça nos exercícios corporais, supondo em primeiro lugar
que por natureza não seja incapaz, deve começar bem cedo e aprender os
princípios com os melhores mestres. Isto pareceu de importância a Filipe,
rei da Macedónia, como se pode compreender por ter querido que Aristó‑
teles, filósofo tão famoso e talvez o maior que alguma vez houve no mundo,
fosse o mestre dos primeiros elementos das letras do seu filho Alexandre.
De entre os homens que conhecemos hoje, reparai como o senhor Galeazzo
Sanseverino, Estribeiro­‑Mor de França, faz bem e com graça todos os exer‑
cícios do corpo; e isso porque, além da natural disposição que tem do seu
corpo, aplicou­‑se a aprender com bons mestres e a ter sempre perto de si
homens excelentes, para captar de cada um deles o melhor que deles sabiam.
Porque, tal como para lutar, fazer o volteiro e manejar todas as espécies de
armas, ele sempre teve como guia o nosso sire Pietro Monte, que, como
sabeis, é o verdadeiro e único mestre de toda a força e agilidade adquiridas
pela arte, tanto de montar, de combater nas justas ou de qualquer outra coi‑
sa, porque sempre teve diante dos olhos aqueles que eram conhecidos como
os mais perfeitos nas suas profissões.

XXVI

Assim, quem quiser ser um bom discípulo deve não só fazer bem as coisas,
mas também aplicar­‑se totalmente para assemelhar­‑se ao seu mestre e, se
possível, transformar­‑se nele. E quando já sente tirar proveito, é­‑lhe mui‑
to útil ver praticar diversos homens desta profissão e, orientando­‑se pelo
bom julgamento que sempre deve ter por guia, andar de um para outro es‑
colhendo em cada um coisas diferentes. E tal como, nos prados, a abelha
anda sempre de flor em flor, também o nosso cortesão deve colher esta graça
daqueles que julgará possuírem­‑na, tomando de cada um o que tem de mais
louvável, não fazendo como um dos nossos amigos, que todos vós conheceis,
que julgava assemelhar­‑se com o rei Fernando, o Jovem de Aragão, e que se
obstinava a imitá­‑lo, apenas no gesto frequente de levantar a cabeça e torcer

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baldesar castiglione 175

um canto da boca, o que era um hábito que o rei tinha contraído durante
uma doença. E há um grande número de pessoas que pensam fazer muito ao
assemelharem­‑se a uma personagem importante; e geralmente agarram­‑se à
única coisa que é má nele. Mas tendo já reflectido sobre a origem desta graça
e deixando de lado aqueles que a consideram fruto das estrelas, considero
que há uma regra muito universal, que me parece valer mais do que todas as
outras para todas as coisas humanas que se fazem ou que se dizem, a que é
necessário fugir, tanto quanto possível, como um escolho muito acerado e
perigoso, da afectação e, talvez para utilizar uma palavra nova, dar provas
em todas as coisas de uma certa sprezzatura, que esconda a arte e mostre que
o que se faz e diz surgiu sem dificuldade e quase sem pensar nisso. É daí,
creio, que deriva sobretudo a graça, porque cada um sabe a dificuldade das
coisas raras e bem feitas, ainda que a facilidade nelas cause uma grande ad‑
miração; e, pelo contrário, fazer esforços e, como se diz, puxar pelos cabelos,
dá muita desgraça, e faz com que uma coisa, por maior que seja, não mereça
estima. Por isso, pode­‑se dizer que a verdadeira arte é a que parece não ser
arte; e, acima de tudo, deve­‑se fazer um esforço para a esconder, porque, se
é descoberta, retira totalmente o crédito e faz com que o homem seja pouco
estimado. Recordo­‑me de ter lido que alguns antigos oradores de excelência
se esforçavam, entre outros artifícios, por fazer crer a todos que não tinham
nenhum conhecimento das letras; e, dissimulando o seu saber, faziam crer
que os seus discursos eram feitos muito simplesmente, mais pelo que lhes
sugeriam a natureza e a verdade do que pelo estudo e pela arte; ora, se isto
fosse reconhecido, teria originado a dúvida no espírito do povo, que teria
receado ser enganado por eles. Vede, pois, como o facto de mostrar a arte
e um estudo tão prudente retira a graça a qualquer coisa. Qual de vós não
se ri quando sire Pierpaulo dança à sua maneira, com aqueles saltinhos e as
pernas esticadas nas pontas dos pés, sem mover a cabeça, como se todo ele
fosse um tronco de madeira, com tanta atenção que parece ir contando os
passos? Que olho é tão cego que não veja nele a desgraça da afectação, e em
muitos homens e mulheres que estão aqui presentes, a graça desta desenvol‑
tura de gestos (como geralmente se diz para os movimentos do corpo), que
se exprime por uma palavra, por um riso, por um gesto, e que mostra que se
dá importância ao que se faz e que se pensa numa coisa totalmente diferen‑
te, para fazer crer àquele que observa que não saberia nem poderia errar?»

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176 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

XVII

Nesse momento, sem esperar mais, sire Bernardo Bibbiena disse: «Eis que
o nosso sire Roberto encontrou finalmente alguém que elogia a sua maneira
de dançar, dado que todos os outros parecem não apreciá­‑lo; porque se esta
excelência consiste na sprezzatura e em mostrar que não se dá importância
ao que se faz e que se pensa em qualquer outra coisa, sire Roberto não tem
equivalente no mundo a dançar; porque para mostrar bem que pensa noutra
coisa, muitas vezes deixa cair o manto dos ombros e os sapatos dos pés, con‑
tinuando a dançar sem os apanhar.» Então o conde respondeu: «Dado que
quereis que eu fale, falarei também dos nossos defeitos. Não vos dais conta
de que aquilo a que chamais sprezzatura em sire Roberto é verdadeira afec‑
tação? Porque se vê claramente que se esforça com todo o cuidado possível
por mostrar que não pensa no que faz e isso é pensar demasiado; e porque
ela ultrapassa os limites do justo meio, esta sprezzatura é afectada e inconve‑
niente, o que dá um resultado contrário ao que era procurado, isto é, de es‑
conder a arte. Por isso, não considero que o defeito da afectação seja menor
na sprezzatura, que em si é louvável, quando se deixa cair a roupa, do que na
busca da elegância, que em si é igualmente louvável, quando se tem a cabeça
muito direita com receio de estragar o penteado, ou ter no fundo do barrete
um espelho e um pente na manga, e ter sempre atrás um pajem a seguir­‑vos
na rua com uma esponja e uma escova. Porque este género de elegância e de‑
senvoltura tendem para o extremo, o que é sempre mau, e contrário à pura e
amável simplicidade, que é tão agradável aos espíritos humanos.
Vede como um cavaleiro tem má graça quando se esforça por ir muito
esticado sobre a sela e, como nós costumamos dizer, à veneziana, em com‑
paração com outro, que parece nem pensar nisso e que monta a cavalo tão
à vontade e seguro como se estivesse a pé. Como o gentil­‑homem de armas
agrada mais e recebe mais elogios quando é modesto, quando fala pouco e
pouco se gaba, do que outro que esteja sempre a gabar­‑se e que, com as suas
blasfémias e bravatas, parece ameaçar o mundo! Não há nada mais afectado
do que querer parecer galhardo. O mesmo acontece com qualquer exercício,
ou melhor, em tudo o que se possa fazer ou dizer.»

XVIII

Então o senhor Magnífico disse: «Isto verifica­‑se também na música, na


qual é falta grave fazer duas consonâncias perfeitas uma a seguir à outra,
de tal modo que o próprio sentimento do nosso ouvido se aborrece e mui‑

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baldesar castiglione 177

tas vezes prefere uma segunda ou uma sétima, que em si é uma dissonância
rude e intolerável. Isto deriva de que continuar nas consonâncias perfeitas
gera a saciedade e demonstra uma harmonia muito afectada, o que se evita
misturando as imperfeitas: de certo modo, faz­‑se uma comparação, graças
à qual os nossos ouvidos ficam suspensos, esperam mais avidamente e apre‑
ciam as perfeitas, deleitando­‑se por vezes na dissonância da segunda e da
sétima, como de uma coisa não premeditada.» «É nisto, pois», respondeu o
conde, «que a afectação é prejudicial, como noutras coisas. Também se diz
que um provérbio, do tempo de alguns excelentes pintores antigos, referia
que demasiada aplicação era nociva e que Protogene tinha sido censurado
por Apelle por não saber separar­‑se do seu quadro». Sire Cesare disse então:
«Parece­‑me que o nosso frei Serafino tem o mesmo defeito de não tirar as
mãos da mesa, pelo menos enquanto a carne não for retirada.» O Conde
riu­‑se, acrescentando em seguida: «Apelle queria dizer que, na pintura, Pro‑
togene não sabia o que bastava; o que equivalia a censurá­‑lo por ser afectado
nas suas obras. Esta virtude contrária à afectação, que nós denominamos
agora desenvoltura, além de ser a verdadeira fonte donde emana a graça,
comporta ainda um outro ornamento, que, ao acompanhar qualquer acção
humana, por mais pequena que seja, não só descobre de imediato o saber
de quem a faz, mas muitas vezes fá­‑lo imaginar muito maior do que é na
realidade; porque imprime nos corações dos participantes a opinião de que
aquele que actua tão facilmente sabe muito mais do que aquilo que faz e, se
dedicasse mais estudo e aplicação no que faz, poderia fazê­‑lo muito melhor.
E para retomar os mesmos exemplos, consideremos um homem que maneja
as armas: se, para lançar um dardo ou tendo uma espada ou outra arma na
mão, ele assume prontamente e sem pensar nisso uma atitude adequada,
com tal facilidade que parece que o seu corpo e todos os seus membros se
encontram com naturalidade e sem qualquer dificuldade, mesmo que não
faça outra coisa, mostra a cada um que é perfeito nesse exercício. Do mes‑
mo modo, na dança, um único passo, um único movimento do corpo feito
com graça e sem ser forçado, depressa mostra o saber daquele que dança.
Um músico, se ao cantar emite uma única nota que acaba com um suave
acento por um floreado de três ou quatro notas, com tanta facilidade que
parece tê­‑lo feito por acaso, esse único ponto permite saber que ele sabe
muito mais do que o que faz. Também na pintura, muitas vezes uma única
linha não trabalhada, uma única pincelada facilmente dada, de tal maneira
que parece que a mão, sem ser guiada por nenhum estudo ou por nenhuma
arte, vá por si mesma ao seu fim segundo a intenção do pintor, demonstra
claramente a excelência do artífice, que depois cada um aprecia segundo

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178 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

o seu próprio juízo. O mesmo acontece quase em todas as outras coisas.


Assim, o nosso cortesão será considerado excelente e terá graça em todas as
coisas, principalmente ao falar, se fugir da afectação, erro em que incorrem
muitos e, certamente mais do que os outros alguns dos nossos lombardos,
que, quando estão um ano fora de casa, ao regressarem começam a falar ro‑
mano, por vezes espanhol ou francês, e sabe Deus como! Tudo isso provém
de um desejo muito grande de mostrar que se sabe muito; e deste modo, o
homem procura e aplica­‑se a adquirir um defeito muito odioso. E certamen‑
te não seria para mim um pequeno trabalho se nestes discursos que fazemos
eu quisesse servir­‑me daquelas antigas palavras toscanas que já estão fora de
uso entre os toscanos de hoje; e com tudo isso creio que todos se ririam de
mim.»

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rosalía de castro 179

Rosalía de CASTRO. [Sem ela viver não posso], in Antologia Poética:


Cancioneiro rosaliano. Tradução de Ernesto Guerra da Cal. [1862] 1985.
Lisboa: Guimarães. 24­‑27.

«Airinhos, airinhos, aires,


airinhos da minha terra;
airinhos, airinhos, aires,
airinhos, levai­‑me a ela.»
(Cantiga tradicional)

Sem ela viver não posso,


nem contente estar sem ela,
que para onde quer que eu vá
cobre­‑me uma sombra espessa.
Cobre­‑me uma espessa nuvem
e tão prenhe de tormentas,
tão de soidades prenhe
que a minha vida envenena.
Levai­‑me, levai­‑me, «airinhos»,
como uma folhinha seca,
que seca também me pôs
esta quentura que queima.
Ai! se não me levais já,
«airinhos» da minha terra;
se não me levais, «airinhos»,
talvez já não me conheçam.
Que esta febre que me come,
vai­‑me consumindo lenta,
e do meu coraçãozinho
traiçoeira se alimenta

Fui noutro tempo encarnada


como da cor da cereja;
hoje sou descolorida
como os círios das igrejas,
qual se uma bruxa chuchona
todo o meu sangue bebera.

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180 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Vou­‑me ficando murchinha


como uma rosa que inverna.
Vou­‑me sem forças ficando,
vou­‑me ficando morena,
como uma mourinha moura,
filha de ralé agarena.

Levai­‑me, levai­‑me, «airinhos»,


levai­‑me aonde me esperam
uma mãe que por mim chora,
um pai que sem mim ofega,
um irmão por quem daria
o sangue das minhas veias,
e um amorinho a quem a alma
e a vida lhe prometera.
Que se não me levais já,
ai! morrerei de tristeza,
sozinha aqui em terra estranha,
onde estranha me nomeiam,
onde tudo quanto vejo
tudo me diz: estrangeira!

Ai, minha pobre casinha!


Ai, minha vaca vermelha!
Anhos que balis nos montes,
pombas que arrulhais nas eiras;
moços que gritais bailando,
redobre das castanhetas,
xas­‑corras­‑xás das conchinhas,
xurre­‑xurre das pandeiras,
tambor do tamborileiro,
gaitinha, gaita galega:
já não me alegrais dizendo:
— Moinheira! moinheira!
Ai quem fosse passarinho
de leves asas ligeiras!
Com que pressa voaria
e tolinha de tão leda,
para cantar à alvorada

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rosalía de castro 181

nos campos da minha terra!


Partiria agora mesmo,
como se fosse uma frecha
sem medo às sombras da noite,
sem medo da noite negra.
E que chovera ou ventasse,
e que ventasse ou chovera,
voaria e voaria
até que alcançasse a vê­‑la.
Mas eu não sou passarinho
e irei morrendo de pena,
já em lágrimas convertida,
já em suspirinhos desfeita.
Doces galeguinhos ares,
«quitadoirinhos» de penas,
encantadores das águas,
amantes das arvoredas,
música das verdes canas
do milho das nossas veigas;
alegres companheirinhos,
run­‑run de todas as festas,
levai­‑me nas vossas asas
como uma folhinha seca.
Não permitais que aqui morra,
«airinhos» da minha terra,
que penso que mesmo morta
hei­‑de suspirar por ela.
Que ainda penso, «airinhos aires»,
que depois que morta seja,
e ali pelo campo­‑santo,
onde enterrada me tenham,
passeis na calada noite
fremindo entre a folha seca,
ou murmurando medrosos
por entre as brancas caveiras;
mesmo depois de mortinha
«airinhos» da minha terra
hei­‑de vos berrar: «Airinhos,
airinhos, levai­‑me a ela!»

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182 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Hugo CLAUS. «A Mãe», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro.


Tradução de Fernando Venâncio. [1955] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim.
1686­‑1687.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Eu não existo, não existo senão no teu chão.


Quando tu gritaste e a tua pele tremeu
Ganharam lume os meus ossos.

(Minha mãe, prisioneira na sua pele,


Muda ao sabor dos anos.

O seu olhar é límpido, escapa à deriva


Dos anos ao fixar­‑me e ao chamar­‑me
Seu ditoso filho.

Ela não era uma cama de pedra, uma febre animal,


As suas articulações eram jovens gatos,

Mas a minha pele mantém­‑se para ela imperdoável


E ficam imóveis as cigarras na minha voz.

«Cresceste, deixaste­‑me para trás», diz ela lavando


Com vagar os pés a meu pai, e fica calada
Como uma mulher sem boca.)

Quando a tua pele gritou, ganharam lume os meus ossos.


Tu pousaste­‑me, jamais poderei retransformar essa imagem,
Eu era o hóspede convidado mas que matava.

E hoje, mais tarde, fiz­‑me virilmente estranho a ti.


Tu vês­‑me aproximar, pensas contigo: «Ele é
O Verão, ele faz a minha carne e aguenta
Os cães em mim vivos.»

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184 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Joachim DU BELLAY. [Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem],
in Poesia de 26 Séculos: De Arquíloco a Nietzsche. Tradução de Jorge de Sena.
[1558] 2001. Porto: Asa. 131.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem,


Ou como o que buscou e conquistou o Tosão,
E prenhe regressou, de ciência e de razão,
A viver entre os seus o mais desta passagem.

Ai quando reverei da minha aldeia a imagem,


Seus lares fumegando, e qual será a estação
Em que verei de novo essa pobre mansão
Que para mim val’ mais que torre de menagem?

Mais me praz de avós meus este solar tranquilo,


Que de palácio em Roma o audacioso estilo,
Mais do que o duro mármore uma ardósia fina,

Mais o meu Loire gaulês que o Tibre tão latino,


Mais o menor Liré que o Monte Palatino,
E mais que o ar marinho a doçura angevina.

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umberto eco 185

Umberto ECO. O Nome da Rosa. Tradução de Maria Celeste Pinto. [1980]


2002. Porto: Público. 441-448.

Texto sujeito a Direitos de Autor

— […] Ouvi­‑te esta manhã no scriptorium interrogar Bêncio sobre a Coena


Cypriani. Estavas pertíssimo da verdade. Não sei como descobriste o segre‑
do do espelho, mas quando soube pelo Abade que lhe tinhas referido o finis
Africae tinha a certeza que em breve chegarias. Por isso te esperava. E agora
que queres?
— Quero ver — disse Guilherme — o último manuscrito do volume
encadernado que reúne um texto árabe, um sírio e uma interpretação ou trans‑
crição da Coena Cypriani. Quero ver aquela cópia em grego, feita provavel‑
mente por um árabe, ou por um espanhol, que tu encontraste quando, ajudan‑
te de Paulo de Rimini, obtiveste que te mandassem ao teu país para recolher
os mais belos manuscritos do Apocalipse de Leão e Castela, um espólio que
te tornou famoso e estimado aqui na abadia e te fez obter o posto de biblio‑
tecário, quando respeitava a Alinardo, dez anos mais velho que tu. Quero ver
aquela cópia grega escrita em papel de pano, que então era muito rara, e que
se fabricava precisamente em Silos, perto de Burgos, tua pátria. Quero ver o
livro que tu tiraste de lá, depois de o teres lido, porque não querias que outros
o lessem, e que escondeste aqui, protegendo­‑o de modo avisado, e que não
destruíste, porque um homem como tu não destrói um livro, mas guarda­‑o
somente e provê a que ninguém lhe toque. Quero ver o segundo livro da Poética
de Aristóteles, aquele que todos consideravam perdido ou jamais escrito, e do
qual tu guardas talvez a única cópia.
— Que magnífico bibliotecário terias sido, Guilherme — disse Jorge,
com um tom simultaneamente de admiração e de mágoa. — Então sabes
mesmo tudo. Vem, creio que há um escabelo desse lado da mesa. Senta­‑te, eis
o teu prémio.
Guilherme sentou­‑se e poisou a candeia, que eu lhe tinha passado, ilumi‑
nando de baixo o rosto de Jorge. O velho pegou num volume que tinha diante
de si e passou­‑lho. Eu reconheci a encadernação, era aquele que tinha aberto
no hospital, julgando­‑o um manuscrito árabe.
— Lê, então, desfolha, Guilherme — disse Jorge. — Ganhaste.

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odisséas elytis 193

Odisséas ELYTIS. [Língua deram­‑me grega], in Louvada Seja (áxion estí).


Tradução de Manuel Resende. [1959] 2004. Lisboa: Assírio & Alvim. 30­‑31.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Língua deram­‑me grega,


a casa pobre nas praias de Homero.
Minha língua, meu único cuidado nas praias de Homero.
Ali pargos e percas,
verbos vergastados pelo vento,
verdes correntes através do azul,
quando vi acender­‑se nas minhas entranhas,
esponjas, medusas,
com as primeiras palavras das Sereias,
conchas rosadas com os primeiros negros frémitos.
Meu único cuidado, minha língua, com os primeiros negros frémitos.
Ali romãs, marmelos,
Deuses morenos, tios e primos
Vertendo o azeite nas enormes talhas
E brisas do barranco exalando perfumes
De vime e lentisco,
De esparto e de gengibre
Com os primeiros gorjeios dos pardais,
Doces salmodias com os primeiros «Glória a Ti».
Meu único cuidado, minha língua, com os primeiros «Glória a Ti»!
Ali louros e palmas,
incensórios e incenso
benzendo combates e mosquetes.
No chão coberto de mantas de parras
fumos de cordeiro assado, ovos que se entrechocam
e «Cristo ressuscitou»
com as primeiras salvas dos gregos.
Amores secretos com as primeiras palavras do Hino.
Único cuidado, minha língua, com as primeiras palavras do Hino!

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194 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Günter GRASS. «A tribuna», in O Tambor de Lata. Tradução de Helena


Topa. [1959] 2000. Lisboa: Dom Quixote. 131­‑140.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Ao estilhaçar as janelas da sala de fumo do nosso Teatro Municipal, procu‑


rei e encontrei pela primeira vez a arte cénica. Apesar das solicitações de
Markus, a mamã deve ter notado nessa tarde os elos que me prendiam ao
teatro porque, no Natal seguinte, comprou quatro bilhetes: para ela, para
Stephan e Marga Bronski e também para Óscar e, no último domingo do
Advento, levou­‑nos aos três à mágica do Natal. Sentámo­‑nos na primeira fila
do balcão de segunda, de lado. O lustre, suspenso sobre a plateia, brilhava
com todo o esplendor. Senti­‑me, assim, feliz por não o ter destruído.
O público era quase todo constituído por crianças. Pelo menos no balcão,
em que havia mais crianças do que mães, pois na plateia (o lugar das pessoas
abastadas), a relação crianças­‑mães achava­‑se equilibrada. Por que razão as
crianças não podem ficar tranquilamente sentadas nas suas cadeiras? Marga
Bronski, que ficara entre mim e o bem­‑comportado Stephan, escorregou pela
cadeira basculante, quis reocupar a posição correcta, por um pouco ficava
imobilizada no fundo da cadeira. Mas, comparada com a miudagem que nos
rodeava, portou­‑se muito bem, embora para isso tivessem contribuído as gulo‑
seimas com que a mamã lhe enchia a boca. Mas acabou por adormecer, fati‑
gada pelo combate com a cadeira. Tínhamos de acordá­‑la nos finais dos actos
para dar palmas, coisa em que ela se aplicava com ardor.
Contava­‑se a história do Polegarzinho, o que me apaixonou logo desde o
primeiro momento e é fácil de ver porquê. A encenação era feita com muita
habilidade, o Polegarzinho nunca aparecia e nós apenas lhe ouvíamos a voz.
Escondido nas orelhas de um cavalo, fora vendido pelo pai a dois vagabun‑
dos, meteu­‑se depois num esconderijo de ratos, depois na casca dum caracol.
Juntou­‑se com ladrões, escondeu­‑se no feno e foi parar com o feno à barriga
duma vaca. A vaca foi morta porque falava com a voz do Polegarzinho. Mas o
bucho da vaca já estava preparado para ser fumado quando um lobo o comeu.
Polegarzinho guiou o lobo até à despensa do pai e começou a fazer uma gran‑
de algazarra quando o lobo se preparava para roubar tudo. O final era como
no conto: o pai matava o lobo e a mãe abria com uma tesoira a barriga do

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206 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Kazuo ISHIGURO. Os Despojos do Dia. Tradução de Fernanda Pinto


Rodrigues. [1989] 1991. Lisboa: Gradiva. 99­‑103.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Parece existir toda uma dimensão inerente à questão «o que é um ‘grande’


mordomo?», que até aqui não considerei devidamente. É, devo confessar,
uma experiência assaz perturbadora dar conta disso a respeito de um assunto
tão caro ao meu coração, particularmente um assunto em que tenho pensado
tanto ao longo dos anos. No entanto, afigura­‑se­‑me agora que talvez tenha
sido antes um pouco precipitado ao rejeitar certos aspectos dos critérios da
Sociedade Hayes para admissão de candidatos. Não tenho desejo algum,
permitam­‑me esclarecer desde já, de desdizer qualquer das minhas ideias
sobre «dignidade» e sua ligação crucial com «grandeza». Mas tenho pensado
um pouco mais naquela outra declaração da Sociedade Hayes — nomeada‑
mente o reconhecimento de que é condição prévia para a entrada na sociedade
que «o requerente esteja ligado a uma família distinta». Continuo conven‑
cido, não menos do que antes, de que isto representa uma amostra de pre‑
tensiosismo leviano da parte da Sociedade. Ocorre­‑me, todavia, que talvez
aquilo que contesto seja, especificamente, o entendimento ultrapassado do
que é uma «família distinta», mais do que o princípio geral expresso. Na ver‑
dade, agora que penso melhor no assunto, creio que pode muito bem ser cor‑
recto dizer que é condição prévia de grandeza estar «ligado a uma família dis‑
tinta», desde que, evidentemente, neste contexto se considere ter a palavra
«distinta» um significado mais profundo do que o entendido pela Sociedade
Hayes.
Efectivamente, uma comparação entre o que poderia interpretar como
«uma família distinta» e o que a Sociedade Hayes entendia por esse termo
demonstra vivamente, suponho, a diferença fundamental entre os valores da
nossa geração de mordomos e os da geração anterior. Quando digo isto, não
estou, meramente, a chamar a atenção para o facto de a nossa geração ter
tido uma atitude menos snob quanto à questão de saber se os patrões eram
de boas famílias ou apenas «negociantes». O que estou a tentar dizer — e não
penso que seja um comentário injusto — é que fomos uma geração muito
mais idealista. Enquanto os nossos antepassados se poderão ter preocupado

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james joyce 211

James JOYCE. Ulisses. Tradução de João Palma­‑Ferreira. [1922] 1989.


Lisboa: Livros do Brasil. 366­‑369.

— Há muito tempo que esperamos esse dia, cidadão, — diz Ned. — Desde
que a pobre velha nos disse que os franceses estavam no mar e desembarca‑
ram em Killala.
— Sim, — diz John Wyse. — Lutámos pelos reais Stuart, que nos rene‑
garam, contra os de Guilherme e eles traíram­‑nos. Lembrai­‑vos de Limerick
e da pedra quebrada do tratado. Demos o nosso melhor sangue à França e à
Espanha, os patos bravos. Fontenoy, hein? E Sarsfield e O’Donnell, Duque
de Tetuão, em Espanha e Ulisses Browne of Camus que foi marechal­‑de­
‑campo de Maria Teresa. E o que é que ganhámos com isso?
— Os franceses!, — diz o cidadão. — Caterva de mestres de dança!
Sabeis o que isso é? Nunca valeram um peido podre à Irlanda. Não estão
agora a tentar fazer uma entente cordial com a pérfida Albion na jantarada de
Tay Pay? Incendiários da Europa, é o que eles sempre foram.
— Conspuez les français, — diz Lenehan empalmando a cerveja.
— E quanto aos prussianos e hanoverianos, — diz Joe, — já não tivemos
que chegue desses filhos da puta comedores de salsichas, no trono, desde
Jorge, o Eleitor, por aí abaixo até ao garoto alemão e à flatulenta puta velha
que morreu?
Jesus, tive de me rir com o modo como ele vinha com essa acerca da velha a
piscar o olho, perdida de bêbeda todas as noites no palácio real, a velha Vic, com
a taça de uísque clandestino e o cocheiro a carregar­‑lhe com o corpo e ossos, aos
baldões, para a cama e ela a puxar­‑lhe pelas patilhas e a cantar­‑lhe velhas passa‑
gens de canções sobre Ehren on the Rhine e vem cá que a pinga é mais barata.
— Bem, — diz J.J. — Agora temos Eduardo, o pacífico.
— Conte essa a um pateta, — diz o cidadão. — Tem um sacana de aspec‑
to mais de peixe do que de paz. Edward Guelph­‑Wettin!
— E o que é que pensa, —diz Joe — dos da beatéria, os padres e bispos
da Irlanda a arranjar quartos em Maynooth, com as cores de corrida de Sua
Majestade Satânica e a colar cartazes de todos os cavalos que os seus jockeys
montaram. O conde de Dublin, nem mais, nem menos.

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212 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Deviam ter colado todas as mulheres que ele montou. — diz o


pequeno Alf.
E diz J. J.:
— Considerações de espaço influenciaram as decisões de reverências.
— Vai outra, cidadão? — diz Joe.
— Sim, senhor, — diz ele. — Vai.
— E tu? — diz Joe.
— Obrigado, Joe, — digo eu. — Que te faça bom proveito.
— Repete essa dose, — diz Joe.
Bloom falava que se desunhava com John Wyse, bastante excitado, com
as trombas cordeburroquandofoge e os velhos olhos de ameixa às voltas.
— Perseguição, — diz ele. — toda a história do mundo está cheia dela.
Perpetuando o ódio nacional entre as nações.
— Mas você sabe o que é que significa uma nação? — diz John Wyse.
— Sim, — diz Bloom.
— O que é? — diz John Wyse.
— Uma nação? — diz Bloom. — Uma nação é a mesma gente que vive no
mesmo lugar.
— Por Deus, então, — diz Ned, a rir —, se é assim, eu sou uma nação
porque há cinco anos que vivo no mesmo lugar.
Assim, é claro, toda a gente começou a rir de Bloom e, diz ele, a tentar
safar­‑se:
— Ou que também vivem em sítios diferentes.
— Isso cobre o meu caso, — diz Joe.
— Qual é a sua nação, se me permite perguntar? — diz o cidadão.
— A Irlanda, — diz Bloom. — Nasci aqui. Irlanda.
O cidadão não retorquiu e só pigarreou e, caramba, escarrou uma ostra
da costa Vermelha que foi direitinha ao canto da sala.
— Vamos a isso, Joe, — diz ele, tirando o lenço para se limpar.
— Aqui estamos, cidadão, — diz Joe. —Agarre com a mão direita e repi‑
ta comigo as seguintes palavras.
O antigo sudário irlandês, ciosamente conservado e intrincadamente bor‑
dado, atribuído a Salomão de Droma e a Manus Tomaltach og MacDonogh,
autores do Livro de Ballymote, foi então cuidadosamente exibido e motivou
prolongada admiração. Não é necessário demorarmo­‑nos na lendária beleza
dos cantos, o acúmen da arte, onde distintamente se pode discernir cada um dos
quatro evangelistas apresentando a cada um dos quatro mestres o seu símbolo
evangélico, um cetro de carvalho fóssil, um puma norte­‑americano (de longe
um mais nobre rei dos animais do que o artigo britânico, diga­‑se de passagem),

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james joyce 213

um vitelo de Kerry e uma águia dourada de Carrantuchill. As cenas representa‑


das no campo emunctório, mostrando as nossas antigas colinas e recintos for‑
tificados e cromelechs e dólmenes e sedes de sabedoria e pedras de maldição,
são tão maravilhosamente belas e os pigmentos tão delicados como quando os
iluministas de Sligo deram livre curso à sua fantasia artística há muito, muito
tempo, na época dos Barmecides. Glendalough, os amorosos lagos de Killarney,
as ruínas de Clonmacnois, a Abadia de Cong, Glen Inagh e os Doze Alfinetes.
O olho da Irlanda, as Verdes Colinas de Tallaght, Croagh Patrick, a refinaria de
cerveja dos senhores Arthur Guinness, Filho e Companhia (Limitada), as mar‑
gens de Lough Neach, o vale de Ovoca, a torre de Isolda, o obelisco de Mapas,
o hospital de Sir Patrick Dun, o cabo Clear, o estreito vale de Aherlow, o caste‑
lo de Lynch, a casa Scotch, a Union Workhouse de Rathdown, em Loughlins‑
town, a prisão de Tullamore, as cascatas de Castleconnel, Kilballymacshonakill,
a cruz de Monasterboice, o Hotel Jury, o Purgatório de S. Patrick, o Salto do
Salmão, o refeitório do colégio de Maynooth, a caverna de Curley, os três locais
de nascimento do primeiro duque de Wellington, o rochedo de Cashel, a tur‑
feira de Allen, o Armazém de Henry Street, a gruta de Fingal — todas estas
cenas comovedoras que aí continuam para nós, ainda mais embelezadas pelas
águas da tristeza que sobre elas passaram e pelas ricas incrustações do tempo.
— Venham daí as bebidas, — digo eu. — Qual é a de cada um?
— Esse é meu, — diz Joe — como disse o diabo ao polícia morto.
— E eu também pertenço a uma raça, — diz Bloom — que é odiada e
perseguida. E agora. Neste mesmo momento. Neste mesmo instante.
Caramba, quase que queimava os dedos com a ponta do velho charuto.
— Roubada, — diz ele. — Saqueada. Insultada. Perseguida. Tirando­‑nos
o que por direito nos pertence. Neste mesmo momento, — diz ele, erguendo
o punho — vendidos em leilão em Marrocos como escravos ou gado.
— Está a falar da nova Jerusalém? — diz o cidadão.
— Estou a falar de injustiça, — diz Bloom.
— Certo, — diz John Wyse. — Então que se oponham com força, como
homens.
Esta é uma boa gravura de almanaque para ti. Alvo para uma bala dum­
‑dum. O velho rosto oleoso em pé junto da boca de um canhão. Caramba, era
melhor a enfeitar o cabo de uma vassoura, ai isso é que era, só lhe faltava um
avental de nurse. E nisto entra em colapso, subitamente, todo retorcido às
avessas, mole como um trapo molhado.
— Mas não serve para nada, — diz ele. — Força, ódio, história, tudo isso.
Não é vida para homens e mulheres, insulto e ódio. E toda a gente sabe que
isso é exactamente o oposto daquilo que é realmente a vida.

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214 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— O quê? — diz Alf.


— Amor, — diz Bloom. — Isto é, o oposto do ódio. Agora tenho de ir,
— diz para John Wyse. — Vou ali por um instante ao tribunal a ver se Mar‑
tin anda por lá. Se ele vier aqui, diga­‑lhe que volto num segundo. É só um
momento.
Quem é que te retém? E lá vai disparado como um raio gordurento.
— Um novo apóstolo para o gentio — diz o cidadão. — Amor universal.
— Bem, — diz John Wyse. — Não é isso que nos dizem? Ama o teu
próximo.
— Aquele gajo? — diz o cidadão. — Explora o teu próximo é que é o lema
dele. Amor, uma ova! É um belo exemplo de Romeu e Julieta.
O amor ama para amar o amor. A enfermeira ama o novo farmacêutico.
O guarda 14 A ama Mary Kelly. Gerty MacDowell ama o rapaz da bicicle‑
ta. M.B. ama um belo cavalheiro. Li Chi Han ama beijocar Cha Pu Chow.
Jumbo, o elefante, ama Alice, a elefanta. O velho Senhor Verschoyle com
a sua trombeta acústica ama a velha Senhora Verschoyle com o olho torto.
O homem do impermeável castanho ama a senhora que morreu. Sua Majes‑
tade, o Rei, ama Sua Majestade, a Rainha. A Senhora Norman W. Tupper ama
o oficial Taylor. Tu amas uma determinada pessoa. E essa pessoa ama outra
pessoa porque toda a gente ama alguém mas Deus ama toda a gente.
— Bem, Joe, — digo eu — à tua boa saúde e alegria. Mais força, cidadão.
— Hurrah! — diz Joe.
— A bênção de Deus e de Maria e de Patrick para vós, — diz o cidadão.

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vanda juknaité 215

Vanda JUKNAITÉ. «O país de vidro», in O País de Vidro: Antologia de ficção


contemporânea. Tradução de J. Espadeiro Martins. [1995] 2004. Lisboa:
Cavalo de Ferro. 85­‑ 87.

Foi a voz do marido que a despertou. Acordou sobressaltada. Eram 3 horas


da manhã. Os carros passavam na auto­‑estrada. Passavam a grande velocida‑
de, com todos os faróis acesos; até o chão junto à auto­‑estrada estremecia.
A mulher foi para o quarto das crianças, onde o ruído dos motores chegava
mais abafado. O homem vestiu­‑se apressadamente para se dirigir à Câmara.
Convidavam as pessoas para irem a Vilnius.
A mulher foi procurar umas meias de lã, depois começou a preparar
algumas sanduíches com aquilo que encontrou: havia um bocado de queijo,
um bocado de chouriço. Vestiram­‑se os dois rapidamente e em silêncio.
— Se puderes, liga.
— Se tiver possibilidade.
— Compreendo.
Depois de ter preparado tudo e de ter posto tudo em cima da mesa, a
mulher disse de repente:
— Come.
— Já não tenho tempo.
— Não demora nada.
Deitou um pouco de água quente do fervedouro no chá, para arrefecer.
O menino, tendo despertado, desceu e foi sentar­‑se, com os cotovelos na
mesa, e a cabeça apoiada nas mãos. A mulher pôs também diante dele um
pires e uma chávena. O menino rodou a colher, fazendo­‑a tilintar nos bordos
da chávena.
— É a guerra, não é?
O homem encolheu os ombros.
— Impossível.
— Talvez seja assim que começa, de uma forma estúpida.
Calaram­‑se por um momento.
— Como está o bebé?
— Por agora, a situação mantém­‑se estável. Não está a perder peso, mas
também não cresce.

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216 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

O homem levantou­‑se e, depois de se ter despedido, fechou a porta atrás


dele. De repente, a mulher lembrou­‑se dos bombons. Alcançou o homem no
alpendre, com as mãos cheias de bombons. Ele voltou­‑se, admirado e aborrecido.
— Para que é isso?
— De certeza vais ter de ficar ao frio. Quando se trinca qualquer coisa,
isso aquece­‑nos.
— Bom, mete­‑os aqui — e abriu uma bolsa da mochila.
Alguns flocos de neve, duros, caíram dentro da mochila juntamente com
os bombons.
O menino pediu que fizessem um sítio para patinar. A mulher dirigiu­‑se
para a sebe, juntamente com o garoto. Cada um deles pegou numa enxada e
numa pequena pá e começaram a retirar a neve de cima da camada de gelo.
À beira do lago, o gelo não tinha uma espessura sempre igual; nalguns sítios,
uma bolha de ar, semelhante a um olho, separava do solo uma fina camada.
A mulher pousou a enxada. Ajoelhou­‑se, depois deitou­‑se em cima do gelo.
Através da bolha de ar, podiam ver­‑se pedaços de gelo cristalinos e pontiagu‑
dos. Chamou o menino:
— Anda cá ver!
O garoto agachou­‑se ao pé dela.
— Deita­‑te ao comprido.
O garoto deitou­‑se. A mulher mostrou­‑lhe com o dedo a abertura no
gelo.
— Olha.
O garoto aproximou­‑se rastejando.
— Estás a ver alguma coisa?
Ele não respondeu.
— Estás a ver alguma coisa?
— Sim, mamã — disse o menino em voz baixa.
— O que é que estás a ver?
— Estou a ver um país.
O sol rompeu a bruma e iluminou o local. Os bordos do lago estavam
libertos da camada de neve. Os raios de sol atravessaram o gelo.
— Que país? — murmurou a mulher.
— Um país de vidro…
— Bom, vamos para dentro.
— Mais um pouco.
— Vais ficar com frio.
O menino levantou­‑se e, durante mais algum tempo, ficaram sentados
na neve, em silêncio.

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halldór laxness 217

Halldór LAXNESS. «Capítulo 1. Kólumkilli», in Gente Independente.


Tradução de Gudlaug Rún Margeirsdóttir. [1934] 2007. Lisboa: Cavalo de
Ferro. 9­‑14.

Crónicas islandesas contam que em tempos viviam neste país homens vindos
de oeste que deixaram para trás crucifixos, sinos e outros artigos que tais, uti‑
lizados em práticas de feitiçaria. Em fontes latinas estão registados os nomes
daqueles homens que das ilhas a oeste navegaram até cá nos primórdios do
papado. O seu líder chamava­‑se Kólumkilli, o irlandês, um conhecido feiti‑
ceiro. Naquela altura a terra na Islândia era extremamente fértil. Mas quan‑
do os noruegueses se instalaram aqui, os feiticeiros do oeste deixaram o país,
e registos antigos dizem que, para se vingar, Kólumkilli amaldiçoou os novos
habitantes, rogando que eles nunca ali gozassem de prosperidade, o que mais
tarde veio a tornar­‑se realidade. Muito mais tarde, os noruegueses na Islândia
deixaram a sua fé para se entregarem aos cultos de povos estranhos. Nessa al‑
tura tudo ficou às avessas, os deuses noruegueses eram escarnecidos e outros
deuses e santos foram adoptados, alguns do leste, outros do oeste.
A história conta que naquele tempo ergueram, em honra de Kólumkilli,
uma igreja no vale onde mais tarde ficou a quinta Albogastaðir, uma char‑
neca onde outrora se fixou a residência oficial do governador. Jón Reykda‑
lín, o administrador de Utirauðsmýri, juntou muitos registos sobre esse vale
pantanoso, referindo­‑se o último ao abandono da quinta em consequência
das aparições fantasmagóricas no ano de 1750. O próprio administrador fora
testemunha ocular e ouvinte de alguns episódios absurdos que por aí se pas‑
saram, como é relatado no seu conhecido registo sobre o Terror de Albogas‑
taðir. Podia ouvir­‑se o fantasma discursar alto dentro do edifício, desde mea‑
dos do þorri até depois do Pentecostes, altura em que as pessoas o iam aban‑
donando; por duas vezes, junto dos ouvidos do administrador, mencionou o
seu nome, além de responder às questões, como relata o administrador, com
«vergonhosos versos em latim e obscenidades embaraçosas».
A história desta quinta, que muito célebre se tornou, remonta aos tem‑
pos longínquos dos dias do administrador Jón e não seria de todo inoportuno
recapitulá­‑la para prazer daqueles que possam viajar pela beira dos caminhos

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ao longo do rio, onde os séculos estão deitados lado a lado em carreiros verde‑
jantes deixados aleatoriamente pelos cavalos de outrora, e ainda visitar o velho
outeiro da quinta situada na charneca enquanto atravessam o vale.
Perto do fim do episcopado de Dom Guðbrandur, um casal habitava
Albogastaðir, na charneca. Não havia qualquer registo do nome do marido,
mas a mulher chamava­‑se Gunnvör ou Guðvör. Dizem que era uma mulher
de grande porte, dada aos saberes antigos e de personalidade múltipla, con‑
trolando até ao extremo todos os passos do seu marido. Ele, por sua vez, era
por todos considerado um grande imbecil.
No início do casamento, o casal não gozava de prosperidade e tinha pou‑
cos caseiros. Diziam as pessoas que, assim que o número de filhos e a pobre‑
za aumentavam, a mulher obrigava o marido a pegar nos recém­‑nascidos e a
deixá­‑los ao relento. Alguns eram postos nas montanhas debaixo de grandes
calhaus e ainda hoje, no princípio da Primavera, quando a neve das monta‑
nhas começa a derreter, pode ouvir­‑se o choro destes bebés. Outros foram
amarrados a pedras e afogados no lago, e em meados do Inverno, quando
há luar, pode ouvir­‑se o seu choro vindo do lago, especialmente quando há
geada e antes de temporais.
Reza a história que, à medida que a senhora Gunnvör fora ficando mais
velha, começara a desejar veementemente sangue humano. Apetecia­‑lhe
igualmente medula humana. Assim, dizem que ela terá recolhido o sangue
dos próprios filhos, daqueles que tinham sobrevivido, e que o ingerira com
a sua própria boca. Mandou erguer um palanque para bruxaria nas traseiras
da quinta onde, envolta em fogo e fumo, nas noites de Outono cantava para
o diabo de Kólumkilli.
Diz­‑se que a certa altura o marido quis fugir para contar a todos os cam‑
poneses as maldades da mulher, mas ela perseguiu­‑o e apoderou­‑se dele no
cimo do espinhaço de Rauðsmýri, apedrejou­‑o até à morte e mutilou os seus
restos corporais. Levou os ossos dele para dentro do seu palanque, mas dei‑
xou a carne e os órgãos internos para os corvos comerem, e fez saber pelo
distrito que o homem tinha morrido enquanto andava pelas montanhas à
procura das ovelhas.
Mas a partir daí a senhora Gunnvör começou a enriquecer, e as pessoas
pensavam que seria graças ao seu vil acordo com Kólumkilli, e depressa se
tornou dona de bons cavalos.
Naquele tempo, os viajantes atravessavam com frequência o distrito,
tanto no Inverno, quando os homens iam para o mar junto do glaciar Jökull,
como na Primavera, quando lá iam doutros distritos para adquirir peixe seco.
Mas com o passar do tempo, os conterrâneos começaram a comentar entre si

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halldór laxness 219

que a simpatia de Gunnvör para com os viajantes não aumentava na mesma


medida que o seu número de cavalos. E embora fosse uma mulher que, con‑
forme se praticava naquele tempo, ia regularmente à igreja, era mencionado
nos Anuários que nem com tempo límpido no próprio Domingo de Pente‑
costes ela via o sol após a missa na igreja de Rauðsmýri.
Dito isto, começavam agora a surgir rumores sobre o destino do seu
marido e ainda acerca de ela matar homens, uns por dinheiro, outros por
causa do sangue e da medula, mas também por andar no seu cavalo pelas
montanhas a perseguir outros. Acontece que em Albogastaðir existe um lago
estagnado no lado sul do vale, não muito longe da quinta, chamado Ígulvatn,
um nome que ainda hoje se mantém. A mulher costumava, no decorrer da
noite, matar os convidados atacando­‑os com uma espada curta enquanto
dormiam. Em seguida mordia­‑lhes a garganta e cortava­‑lhes os braços e as
pernas, cujos ossos serviam para fazer brinquedos para ela e para o infame
Kólumkilli. Perseguia outros pela charneca e depois atacava­‑os com a sua
espada, e a imponente lâmina brilhava enquanto ela punha fim à vida des‑
tes homens. Possuía forças iguais às de muitos homens, além de ter o apoio
do Diabo para a execução dessas tarefas. Ainda é possível ver coágulos de
sangue na neve ao cimo do espinhaço, especialmente quando se aproxima
o Natal. Mas as carnes putrefactas acarretava­‑as ela vale adentro, atava­‑as a
uma pedra e afundava­‑as no lago. Depois apoderava­‑se da bagagem dos seus
convidados, vestimentas, cavalos e dinheiro, caso houvesse algum. Os filhos
dela enlouqueceram todos e no cimo do telhado ladravam como cães, ou
ficavam sentados à entrada com ar de imbecis e sorrisos cretinos, mordendo
os homens; o demónio tirara­‑lhes a fala humana e o bom senso. É por isso
que ainda hoje no distrito, nos dois extremos da charneca, se cantam à noite
para as crianças estes versos:

Em casa de Gunnvör não pernoita


Ninguém bem trajado,
Em Igultjörn ela os afoga
E lá lá lá lá.
No rasto corre sangue e
Eu embalo­‑te, bebé.
Em casa de Gunnvör não pernoita
Ninguém que tenha cavalo,
Belo é o cintilar da sua espada
E ao ataque.
No rasto corre sangue

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220 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

E eu embalo­‑te, bebé.
Em casa de Gunnvör não pernoita
Ninguém que tenha sangue humano,
Ninguém com medula óssea
E lá lá lá lá.
No rasto corre sangue
E eu embalo­‑te, bebé.
Em casa de Gunnvör não pernoita
Ninguém que Deus tem,
Ela partiu a minha costela, a clavícula e o meu pulso
Para se empanturrar.
No rasto corre sangue
E eu embalo­‑te, bebé.
Caso acredites no Kólumkilli,
Assim ele dirá:
Medula e sangue, medula e sangue e dódódó.
No rasto corre sangue
E eu embalo­‑te, bebé.

Aconteceu que, por fim, se descobriram as maldades da senhora Gunnvör,


que tinha então causado a morte de muitos homens, mulheres e crianças,
além de que cantava à noite para o vil Kólumkilli. Foi julgada e condenada na
Assembleia Distrital, os seus ossos partidos no portal da entrada do cemité‑
rio circunstante à igreja de Rauðsmýri no Domingo de Trindade. Ainda lhe
amputaram os membros superiores e inferiores e por fim a sua cabeça foi
cortada. No entanto, enfrentou bem a morte, rogando estranhas pragas aos
homens. Juntaram o corpo, a cabeça e os membros dela e meteram tudo den‑
tro dum saco de couro, que arrastaram até ao cimo do espinhaço a leste de
Albogastaðir e enterraram­‑no no pico. Ainda nos nossos dias se pode ver o
seu dólmen, verdejante a toda a volta, ao qual ultimamente chamam o dól‑
men da Gunna. Dizem que se um viajante, ao passar pelo espinhaço, atirar
nessa primeira ocasião uma pedra em direcção ao dólmen se livrará de aza‑
res, e alguns cada vez que passam por ali atiram pedras a este dólmen procu‑
rando obter protecção e paz de espírito.
Mas apesar de a senhora Gunnvör ter sido irrequieta durante a sua vida
mundana, a sua infame conduta acabou realmente por ser superada após
o seu enterro; descansava pouco na sua sepultura e muitas vezes aparecia
nos seus antigos aposentos. Reanimava alguns daqueles homens que tinha
morto, além de mulheres e crianças, e as pessoas que viviam em Albogastaðir

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halldór laxness 221

tinham pouco descanso uma vez instalada a balbúrdia ao cair da noite. Ela
prosseguia com as suas práticas, atormentando os vivos e os mortos, e assim,
ao anoitecer, podiam ouvir­‑se dentro da quinta altos gritos e uivos, como se
um bando de almas agoniadas se lamuriasse no telhado e nas janelas por causa
das suas grandes misérias e pouca paz. Às vezes era como se da terra emanas‑
se um fortíssimo fedor a enxofre, cuja irrupção invadia a quinta, de modo
que as pessoas se sentiam sufocadas enquanto os cães ladravam como se
estivessem enraivecidos. Outras vezes, à noite, Gunnvör cavalgava em cima
do telhado com tanta violência que a madeira estalava, e por fim concluiu­
‑se que nenhum edifício seria suficientemente seguro para aguentar os seus
maus tratos e aquelas vergonhosas cavalgadas nocturnas. Pendurava­‑se nas
costas dos homens e saltava por cima do gado, esmagava vacas, enlouquecia
mulheres e crianças, assustava idosos e não se rendia nem perante a cruz,
nem com magia. Reza a história que, por fim, pediram ao padre de Rauðs‑
mýri que viesse para esconjurar e que, perante tão admirável sabedoria, ela
fugira para a montanha, rachando­‑a no cimo onde agora pode ser avistada
uma fissura. Alguns pensam que ela passou a habitar na montanha, e sendo
assim não é improvável que tenha assumido a forma de um troll. Outros são
da opinião que ela passa muito tempo no lago tendo tomado a forma de uma
espécie de serpente ou monstro aquático, sendo do conhecimento geral que
até hoje ali viveu um monstro, durante várias gerações, que apareceu perante
inúmeras testemunhas sob juramento, até daqueles que são videntes e vêem
os mortos. Alguns dizem que este monstro demoliu por três vezes a quinta
de Albogastaðir, outros afirmam que foi sete vezes, até que nenhum lavrador
foi capaz de permanecer mais tempo ali e a quinta foi votada ao abandono
devido aos frequentes distúrbios provocados por fantasmas que assumiam
várias formas. Durante o tempo do governador Reykdalín foi definitivamen‑
te anexada às terras de Rauðsmýri, primeiro como estábulo para as ovelhas
durante o Inverno — daí provém a mais recente designação de Casas de
Inverno —, mas depois como curral para cordeiros.

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222 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Tito LÍVIO. História de Roma. Ab urbe condita, Livro I. Tradução de Paulo


Farmhouse Alberto. [século i a.C.] 1999. Mem Martins: Inquérito. 37­‑ 53.

Eneias, por seu turno, perante uma guerra tão medonha, a fim de atrair a si a
boa vontade dos Aborígenes, e para que ficassem todos não só sob as mesmas
leis, mas até com o mesmo nome, deu a ambos os povos a designação de Lati‑
nos. E, a partir de então, jamais os Aborígenes foram inferiores aos Troianos
em zelo e em lealdade para com o rei Eneias. Confiando, pois, no estado de
espírito dos dois povos, que cada dia que passava se fundiam cada vez mais
num só, Eneias saiu com as suas tropas para a batalha, apesar de a Etrúria ser
dotada de tão grandes recursos que a reputação do seu nome já enchia não só
as terras mas também o mar ao longo de toda a costa de Itália, desde os Alpes
até ao estreito da Sicília, e muito embora pudesse ter repelido os ataques
na protecção das suas muralhas. A batalha foi então favorável aos Latinos.
De resto, foi esta a última das tarefas como mortal de Eneias. Foi sepultado,
qualquer que seja a forma que o direito divino ou humano permitem chamar,
nas margens do rio Numício. Chamam­‑lhe Júpiter Indígete.
Ascânio, o filho de Eneias, não estava ainda em idade de assumir o
poder. Este mesmo poder, porém, permaneceu para ele intacto até à idade
adulta. É que, sob a tutela de uma mulher — tal era a personalidade de Laví‑
nia —, o Estado latino e poder real do avô e do pai mantiveram­‑se durante
todo este tempo seguros para o rapaz. Não especularei — quem, na verdade,
poderá afirmar como certo um facto tão antigo? — se este era Ascânio ou
um irmão mais velho, filho de Creúsa, nascido quando a região de Ílio ainda
estava intacta, e que acompanhou o pai na fuga, o mesmo Julo que a gens Júlia
declara autor do seu próprio nome. Este Ascânio, onde quer que tenha nas‑
cido e quem quer que tenha sido a sua mãe — é geralmente aceite que ele é,
sem dúvida, filho de Eneias —, deixou para a mãe, ou madrasta, Lavínio, uma
cidade rica como era então e florescente, pois já tinha uma população dema‑
siado numerosa. No sopé do monte Albano, fundou ele próprio uma nova
cidade, que se chamava, devido à sua configuração geográfica, estendendo­
‑se no dorso da montanha, Alba Longa. Entre a fundação de Lavínio e a
implantação da colónia de Alba Longa mediaram cerca de trinta anos. Toda‑

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tito lívio 223

via, o poderio destes cresceu de tal forma que, sobretudo devido àquela der‑
rota total dos Etruscos, nem sequer com a morte de Eneias, nem, mais tarde,
durante a tutela de uma mulher e os inícios rudimentares da governação de
uma criança, Mezêncio ou os Etruscos ou quaisquer outros vizinhos ousa‑
ram levantar armas. O tratado de paz assim estipulava que o rio Álbula, a que
agora chamam Tibre, fosse a fronteira entre Etruscos e Latinos.
Em seguida, reina Sílvio, filho de Ascânio, nascido por qualquer circuns‑
tância fortuita, num bosque. Este gera Eneias Sílvio, e este, mais tarde, Latino
Sílvio. Este último implantou algumas colónias, chamadas de Latinos Priscos.
Posteriormente, o cognome Sílvio manteve­‑se para todos aqueles que gover‑
naram Alba. Alba foi filho de Latino, Átis de Alba, Cápis de Átis, Cápeto de
Cápis, Tiberino de Cápeto (o qual, afogando­‑se ao atravessar o rio Álbula, deu a
este rio o nome bem conhecido pelas gerações vindouras). Em seguida, Agripa
foi o filho de Tiberino, e depois de Agripa reinou Rómulo Sílvio, recebendo do
pai o poder. Rómulo Sílvio, ferido por um relâmpago, entregou directamente
o poder a Aventino. Este está sepultado naquele monte que agora faz parte da
cidade de Roma, dando­‑lhe assim o seu nome. Sucedeu­‑lhe no poder Proca,
que teve como filhos Numitor e Amúlio. A Numitor, que era o primogénito,
entregou­‑lhe o antigo reino da gens Sílvia. Porém, a força pode mais do que a
vontade do pai ou o respeito pela idade: expulsando o irmão, Amúlio tomou o
poder. E a este crime adicionou outro crime: mandou matar a descendência
masculina do irmão. Quanto a Reia Sílvia, a filha do irmão, sob o pretexto de a
honrar, privou­‑a da esperança de ter descendência por meio de uma virgindade
perpétua, ao escolhê­‑la para vestal.
Mas a fundação de tão grande cidade e início do mais poderoso império
logo a seguir aos deuses era um dever, segundo julgo, para com o destino.
A vestal foi violentada. E como desse à luz dois gémeos, ou porque estava
convencida disso, ou porque um deus sempre seria um autor menos deson‑
roso para a sua falta, nomeia Marte como pai da sua prole de paternidade
incerta. Todavia, nem os deuses nem os homens a salvaram, nem a ela pró‑
pria nem aos filhos da crueldade do rei. Agrilhoada, a sacerdotisa é enviada
para a prisão. Quanto às crianças, o rei ordena que sejam lançadas ao rio. Ora
aconteceu que, por um acaso da providência divina, o Tibre tinha inundado
as margens e deixado charcos de água estagnada, e já não era mais possível
chegar junto ao curso habitual da correnteza. No entanto, os homens que
levavam os recém­‑nascidos ficaram com esperança de que estes se pudessem
afogar, apesar de a água estar imóvel. Deste modo, como que cumprindo as
ordens do rei, no ponto mais próximo da cheia, onde agora se encontra a
figueira Ruminal — dizem que se chamava outrora Romular —, os servidores

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expõem as crianças. Naquele tempo, estes locais eram imensas vastidões


desertas.
A tradição sustenta que, quando a superfície da água pouco profunda
depôs a seco o cesto flutuante em que estavam os recém­‑nascidos, uma loba,
levada pela sua sede, desceu dos montes que se erguiam em redor e desviou
o seu caminho em direcção ao choro das crianças. Os úberos distendidos
ofereceu aos recém­‑nascidos de uma forma tão dócil que um pastor do reba‑
nho do rei — dizem que o seu nome era Fáustulo — a encontrou lambendo
as crianças com a língua. Levou­‑as, então, para o seu casebre e confiou­‑as
a Larência, sua esposa, para as criar. Há quem julgue que Larência era uma
prostituta, pelo que era chamada entre os pastores de «loba»: isto é o que
teria dado azo a esta fábula extraordinária.
Assim foram nados e criados. E mal atingiram a adolescência, percorriam
os desfiladeiros caçando, sem, no entanto, negligenciarem os afazeres na quin‑
ta ou os rebanhos. Fortalecendo deste modo o corpo e o espírito, eles não só
afrontavam feras, mas inclusivamente atacavam salteadores carregados do
produto dos seus assaltos, e repartiam com os outros pastores o que arrebata‑
vam àqueles. E com estes partilhavam as suas ocupações sérias e as suas brinca‑
deiras, enquanto o seu grupo de jovens crescia com o correr dos dias.
Diz­‑se que já naquele tempo se realizava este mesmo festival das Luper‑
cais no monte Palatino, e que este era então chamado de Palâncio, a partir
do nome Palanteu, uma cidade da Arcádia, só mais tarde sendo designado de
monte Palatino. Foi aí, segundo dizem, que Evandro, oriundo daquela estir‑
pe de Arcádios que há muitas gerações terá ocupado aqueles locais, instituiu
esta cerimónia que trouxe da Arcádia. Nela, jovens competiam em corridas
nus, com brincadeiras licenciosas, em honra de Pã Liceu a quem mais tarde
os Romanos chamaram Ínuo. Estavam, então, totalmente absortos nestes
jogos, e uma vez que o festival era sobejamente conhecido, quando alguns
salteadores, enfurecidos pela perda do produto dos seus assaltos, montaram
uma emboscada. Como Rómulo se tivesse defendido vigorosamente, captu‑
raram Remo e entregaram­‑no ao rei Amúlio, apresentando queixa contra ele
por sua própria iniciativa. A acusação principal era a de que aqueles teriam
movido ataques contra as terras de Numitor e que as teriam saqueado, como
costumam fazer os inimigos, com um bando de jovens que teriam reunido.
Por estas razões, Remo é entregue a Numitor para ser punido.
Já desde o início, Fáustulo tivera a suspeita de que eram crianças de
estirpe real as que criara em sua casa, pois tinha conhecimento de que meni‑
nos de tenra idade tinham sido expostos por ordem do rei, e a data em que
ele próprio tinha recolhido as crianças coincidia precisamente com a daque‑

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tito lívio 225

le acontecimento. Não quisera, porém, revelar este facto prematuramente,


a menos que a isso fosse forçado por uma ocasião oportuna ou pela necessi‑
dade. A necessidade foi o que chegou primeiro. Impelido pelo medo, reve‑
lou assim aquele facto a Rómulo. Por um acaso, também Numitor, tendo em
seu poder Remo e ouvindo dizer que eram irmãos gémeos, fora tocado pela
recordação dos netos, considerando a idade deles e o seu carácter de modo
algum próprio de um homem em condição servil. Recolhendo informações,
chegou à mesma conclusão, a ponto de pouco faltar para vir a reconhecer
Remo. Assim, de todos os lados, a conspiração é tecida em torno do rei. Não
com o seu grupo de jovens — pois as suas forças não eram iguais para um
combate aberto —, mas com outros pastores que receberam ordens para
num determinado momento se dirigirem para o palácio por um outro trajec‑
to, Rómulo ataca o rei. Remo, por seu turno, acorre em seu auxílio com um
grupo de homens que reunira em casa de Numitor. E é desta forma que o rei
Amúlio é trucidado.
No início do tumulto, Numitor tinha­‑se posto a gritar que os inimigos
invadiam a cidade e que atacavam o palácio real. Deste modo, afastou a milí‑
cia Albana para ocupar a cidadela e defendê­‑la com as armas. E quando viu
os jovens, depois de perpetrado o assassínio, a dirigirem­‑se para junto de si a
fim de o felicitar, convoca de imediato uma assembleia e revela os crimes do
irmão de que foi vítima, a origem dos netos, como teriam sido gerados, cria‑
dos, reconhecidos. Em seguida, anuncia a morte do tirano e assume­‑se como
responsável por ela. E quando os jovens, atravessando a assembleia com o
seu bando, saudaram o seu avô como rei, uma só voz de consentimento par‑
tiu de todos e confirmou o título e a autoridade do novo rei.
Entregue desta forma o Estado Albano a Numitor, apossou­‑se de Rómu‑
lo e de Remo o desejo de fundar uma cidade naqueles precisos locais onde
tinham sido expostos e criados. Com efeito, a população Albana e Latina era
excessivamente grande. A este número tinha­‑se somado também o dos pas‑
tores, e tudo isto suscitava facilmente a expectativa de que Alba seria peque‑
na, de que Lavínio seria pequeno em comparação com a cidade que haveria
de ser fundada. Mais tarde, a estes desígnios interpôs­‑se um mal ancestral,
a ambição pelo poder. E daqui nasceu um combate desonroso a partir de um
princípio bastante inofensivo. Visto que eram gémeos e que o respeito pela
idade não podia estabelecer qualquer distinção, para que fossem os deuses
tutelares daqueles locais a escolherem por meio de augúrios quem daria o
nome à nova cidade, quem, uma vez fundada, deteria o poder, Rómulo
ocupa o Palatino, Remo o Aventino como locais augurais para observarem
os augúrios.

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226 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Conta­‑se que Remo foi o primeiro a quem se revelou um augúrio, seis


abutres. E já este fora anunciado quando o dobro daquele número de aves se
mostrou a Rómulo. Ambos foram aclamados como rei, cada um pelos seus
próprios seguidores. Aqueles reclamavam o poder real pelo facto de o augúrio
se ter manifestado primeiro, estes pelo número de aves. Então, envolveram­
‑se numa altercação e, no auge da cólera, descambam na matança. Foi aí, no
meio do tumulto, que Remo foi ferido e morreu. A tradição mais divulgada
é uma segundo a qual Remo teria saltado sobre os novos muros para escar‑
necer do irmão. Como consequência teria sido morto por Rómulo em cóle‑
ra, que, invectivando­‑o, teria ainda acrescentado: «Assim sucederá a quem
quer que venha a saltar sobre estas minhas muralhas!». Deste modo, Rómulo
apoderou­‑se sozinho do poder, e a cidade, acabada de fundar, foi designada
pelo nome do fundador.
Primeiro que tudo, fortificou o Palatino onde ele próprio fora criado.
Prescreve também cerimónias aos outros deuses seguindo o rito albano, mas
usando o grego para Hércules, tal como tinha sido instruído por Evandro.

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niccolò machiavelli 227

Niccolò MACHIAVELLI. «Capítulo XVIII – De que modo deve ser mantida


pelos príncipes a palavra dada», in O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio.
[1532] 2008. Lisboa: Círculo de Leitores / Temas e Debates. 195­‑198.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com inte‑
gridade e não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê­‑se pela
experiência do nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles príncipes
que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia,
dar a volta aos cérebros dos homens; e no fim superaram aqueles que se fun‑
daram na sinceridade.

2
Deveis, pois, saber que há dois géneros de combate: um com as leis, outro
com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo das bestas. Mas
porque o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao segundo. Por‑
tanto, é necessário a um príncipe saber bem usar a besta e o homem. Este
aspeto foi ensinado aos príncipes veladamente pelos autores antigos, os
quais descrevem como Aquiles e muitos outros dos antigos príncipes foram
dados a criar ao centauro Quíron, para que os tutelasse sob a sua disciplina.
O que não quer dizer outra coisa — ter por preceptor alguém meio besta e
meio homem — senão que é preciso a um príncipe saber usar uma e outra
natureza: e uma sem a outra não dura.

3
Estando, pois, um príncipe necessitado de saber usar bem a besta, deve
pegar na raposa e no leão: porque o leão não se defende das armadilhas,
a raposa não se defende dos lobos; precisa, pois, de ser raposa para conhe‑
cer as armadilhas e leão para assustar os lobos. Aqueles que se atêm simples‑
mente ao leão não entendem isto. Não pode, portanto, um senhor prudente,
nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se volta contra
ele e se extinguiram os motivos que o fizeram prometer. E, se os homens
fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas, porque eles são ruins
e não a observariam para contigo, tu também não a tens de observar para
com eles; nem faltarão jamais a um príncipe motivos legítimos para mascarar

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230 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Alessandro MANZONI. «Capítulo I», in Os Noivos. Tradução de José


Dentinho. [1827] 1985. Lisboa: Inquérito. 11­‑16.

Dos dois braços que formam o lago de Como, um deles dirige­‑se para o Sul,
entre duas cadeias ininterruptas de montanhas, ora sobressaindo ora reen‑
trando, recortando as margens numa sequência de inúmeras baías e golfos.
Quase de repente, aperta­‑ se entre um promontório à direita e a costa à
esquerda, formando corrente, como se fosse um rio.
A ponte que neste sítio liga as duas margens e parece marcar o ponto
em que o lago acaba e o Adda começa, para tomar de novo o nome de lago, lá
onde as duas margens, ao afastarem­‑se outra vez, permitem que as águas se
estendam e se espraiem em novos golfos e novas baías.
A costa, formada pelos aluviões de três caudalosas correntes, desce para
o lago desde a falda de dois montes contíguos, um chamado San­‑Martin, e o
outro, em dialecto lombardo, Resegone, mercê dos numerosos cabeços que
o encimam tão regularmente alinhados, que lhe dão a aparência de uma serra.
Por esta simples indicação não há, pois, ninguém que, à primeira vista, estando
colocado de frente, por exemplo, do lado do Norte das muralhas de Milão, a não
distinga logo, no meio deste vasto e longo panorama, de outros montes de um
nome mais obscuro e de um feitio mais vulgar que compõem aquela cordilheira.
Até uma certa distância, a costa vai­‑se elevando em declive uniforme e
suave, tornando­‑se depois escarpada e anfractuosa, formando aqui montí‑
culos, além pequenos vales, nuns pontos arrendando­‑se em cristais, noutros
erguendo­‑se em planaltos, segundo a ossatura das duas montanhas e a acção
contínua das águas. A beira extrema da margem, entrecortada pelas bocas
das torrentes, é quase inteiramente formada de cascalho e grandes calhaus;
o resto cobre­‑se de campos e vinhedos, recamado de vilas, de aldeias e casas
de campo; em diversos lugares, surgem arvoredos que sobem pela encosta,
galgando até ao cimo da montanha.
Leco, a mais importante destas vilas e que dá o seu nome ao território,
está situada a pouca distância da ponte, à beira do lago. Às vezes acontece­
‑lhe, até, quando ele engrossa, ter uma parte dentro do próprio lago. Hoje,
é já uma terra bastante grande, a crescer para a cidade.

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alessandro manzoni 231

No tempo em que se passaram os acontecimentos que vamos narrar,


essa povoação, já considerável, era ao mesmo tempo uma praça forte e, por
isso mesmo, tinha a honra de dar alojamento ao comandante e a vantagem de
possuir uma guarnição permanente de soldados espanhóis, que se devotavam
a ensinar as meninas e as senhoras da terra a serem modestas, e lá de tempos
a tempos iam dando suas palmadinhas carinhosas no ombro de algum pai ou
marido. No Outono, não se esqueciam nunca de se espalhar pelos vinhedos
e de proceder à «limpeza» das uvas, aliviando assim os camponeses das can‑
seiras da vindima.
Entre estas duas terras, entre os montes e a praia e entre colina e colina,
serpenteando pelo meio de pequenos vales interpostos, corriam e correm
ainda hoje caminhos e veredas, mais ou menos escarpados ou planos, alguns
dos quais tão apertados e fundos entre dois muros que o viajante, ao levan‑
tar os olhos, apenas descobre o céu e algum cume de montanha. A elevação
do terreno permite, às vezes, que os olhos descubram perspectivas mais ou
menos extensas, mas sempre variadas e ricas, conforme sobressaem ou se
escondem os diferentes pontos e objectos daqueles amenos contornos. De
um lado, é a planura azul do lago, estendendo­‑se pelas margens, cortada de
istmos, promontórios e graciosas paisagens, que a água reflecte de pernas
para o ar. Do outro lado, o braço do rio, que, mal sai dos arcos da ponte,
se alarga de novo num pequeno lago, apertando­‑se depois e prolongando­‑se
coleante e luminoso por entre os montes que o acompanham, até à dobra
do horizonte. No alto, rochedos sobranceiros uns aos outros, debruçados
no dorso da montanha, a prumo sobre a cabeça do observador; em baixo, as
faldas cultivadas, os povoados, a ponte; na frente, a margem oposta do lago,
e, subindo, o olhar dá de chapa com o monte que a rodeia.
No dia 7 de Novembro do ano de 1628, ao cair da tarde, Dom Abún‑
dio, pároco de uma daquelas aldeias que o manuscrito não menciona, voltava
tranquilamente para casa, por um daqueles atalhos, de regresso do seu pas‑
seio. Vinha lendo serenamente o seu breviário. Umas vezes por outras, entre
um salmo e outro salmo, fechava o livro sobre o indicador da mão direita,
que lá deixava de propósito para servir de marca, e, de mãos atrás das costas,
prosseguia seu caminho, atirando para o muro, ora aqui ora acolá, a curtos
pontapés, os calhaus que atravancavam o atalho.
Depois, erguia a cabeça e, passeando maquinalmente o olhar até ao hori‑
zonte, fixava­‑o em qualquer ponto da montanha, donde as últimas clarida‑
des do sol­‑poente, esfuziando pelas quebradas da serra oposta, projectavam
a espaços, nas pontas dos rochedos, faixas de púrpura, largas e desiguais.
Em seguida, tornando a abrir o breviário e a murmurar outros versículos,

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232 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

contornou o cotovelo da vereda, parou onde era costume e levantou os olhos


do livro para olhar em frente, como era seu costume também.
Depois deste cotovelo, o atalho seguia a direito, uns sessenta passos
talvez, para logo se dividir em dois: um, que se estendia à direita, seguia na
direcção da serra, passando pelo eremitério; outro, o da esquerda, pelo con‑
trário, descia o vale até chegar a uma das torrentes. Desta banda, a parede
exterior do atalho à laia de parapeito, dava pela cintura do viajante. As pare‑
des interiores das duas veredas, em vez de se juntarem em bico iam fechar
uma capelinha, sobre a qual se viam pintadas umas figuras esguias, serpen‑
teantes, que terminavam em ponta, e as quais, no pensamento do artista e
aos olhos dos habitantes da vizinhança, queriam figurar labaredas. Alter‑
nando com estas labaredas, havia outras figuras, impossíveis de descrever,
que tinham a pretensão ainda maior de representar as almas do Purgatório.
Labaredas e Purgatório tinham a cor do tijolo, sobre um fundo acinzentado,
com certas degradações em vários pontos. Uma vez dobrada a curva, o páro‑
co, erguendo os olhos para a capela, conforme era seu costume, descobriu
qualquer coisa que não esperava nem desejava ver. Quase no entroncamen‑
to dos dois atalhos, estavam dois homens em frente um do outro: um deles,
escarranchado na parede mais baixa, deixava pender uma das pernas para o
lado de fora e, pondo a outra para a parte de dentro, apoiava o pé no atalho;
o companheiro estava de pé, encostado ao lado interior do muro, de braços
cruzados sobre o peito. O traje, a atitude, e o que do lugar onde o páro‑
co havia parado se podia depreender das suas figuras, não deixava a menor
dúvida acerca da sua condição: em volta da cabeça uma rede verde, que, em
larga dobra, lhes cobria a testa com uma borla, que lhes caía em cima do
ombro esquerdo. Da testa saía­‑lhes, por baixo da rede, um tufo de cabelos;
bigodes fartos e grandes, retorcidos nas pontas; gibão apertado ao corpo
por um cinturão lustroso de coiro, de cujos grampos se dependuravam duas
pistolas, e, à laia de berloque, adornando­‑lhes o peito, um pequeno polvo‑
rinho de chifre, cheio de pólvora. Do lado direito das calças, largas e tufa‑
das, havia um bolso, donde sobressaía o cabo de um cutelo, e do outro lado
pendurava­‑se um espadalhão de largas guardas vasadas, feitas de lâminas de
latão em forma de cifrões, limadas e cintilantes. Era só olhar para eles e logo
se ficava a saber que se tratava de indivíduos da conhecida espécie dos bravi,
isto é, atrevidos e valentões.
Esta espécie de indivíduos, que hoje não existe, estava nesse tempo
muito florescente na Lombardia e era já muito antiga. Para os que dela não
façam qualquer ideia, eis aqui alguns fragmentos de documentos autênticos,
os quais poderão dar­‑lhes uma noção suficiente dos seus principais carac‑

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alessandro manzoni 233

teres, dos esforços postos em acção para a extinguir e da sua larga e tenaz
resistência.
A partir do dia 8 de Abril do ano de 1583, o Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor Dom Carlos de Aragão, príncipe de Castelvetrano, duque de Terra‑
nuova, marquês de Ávila, conde de Burgeto, grande almirante e grande con‑
destável da Sicília, governador de Milão e capitão­‑general de Sua Majestade
Católica em Itália, plenamente informado da intolerável miséria em que viveu e
vive ainda esta cidade de Milão, por causa dos bravi e vagabundos, publica contra
eles uma ordem de expulsão.
Declara e especifica deverem ser compreendidos nesta ordem e deverem ser deti‑
dos por serem bravi e vagabundos… todos os que, sendo estrangeiros ou mesmo per‑
tencentes ao país, não têm qualquer profissão, ou, tendo­‑a, não a exerçam… mas que,
sem salário ou ainda mediante salário, se põem ao serviço de qualquer cavaleiro ou
fidalgo, oficial, ou mercador… para fazerem costas com ele e auxiliá­‑lo, ou então, como
se pode presumir, para armar ciladas a outrem…
Ordena a todos estes indivíduos que abandonem a região no espaço de
seis dias, decreta a pena das galés contra os recalcitrantes e dá a todos os
oficiais da justiça os poderes mais amplos e os mais excepcionalmente ilimi‑
tados para a execução desta ordem.
Mas, no ano seguinte, em 12 de Abril, o dito senhor, notando que esta
cidade está, como sempre esteve, cheia dos ditos bravi que vivem como sempre têm
vivido, sem mudança alguma nos seus hábitos e sem diminuição no seu número, publi‑
ca uma nova ordem mais violenta e mais notável, na qual, entre outras pres‑
crições, determina:
Que todo o indivíduo, quem quer que seja, tanto desta cidade como estrangeiro,
que duas testemunhas declararam ser tido e comummente reputado por bravi e usar
deste nome, ainda quando nenhum delito seja provado da sua culpabilidade, pelo sim‑
ples facto da sua fama de bravi e sem outro indício, possa, pelos ditos juízes e por cada
um deles, ser submetido à corda e à tortura, por maneira de informação, e, ainda que
ele se não confesse culpado de nenhum crime, que seja, apesar disso, enviado para as
galés durante os anteditos três anos, só pela simples fama e pelo seu título de bravi,
como acima ficou dito.
Tudo isso, e o resto que sob silêncio passamos, porque Sua Excelência está resolvi‑
do a querer que todo e qualquer lhe obedeça.
Ao lermos estas palavras tão enérgicas, tão formais e acompanhadas de
tais ordens, emanadas de um tão alto senhor, acode­‑nos uma vontade irre‑
primível de acreditar que bastaria a sua ressonância para que todos os bravi
desaparecessem para sempre, porém, o testemunho de um outro senhor não
menos poderoso, nem menos pletórico de títulos, nos força a crer justamente

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234 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

o contrário. E este é o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Juan Fernandez


de Velasco, condestável de Castela, camareiro­‑mor de Sua Majestade, duque
de Vila de Frias, conde Haro e de Castelnovo, senhor da Casa de Velasco e da
dos sete Infantes de Lira, governador do Estado de Milão, etc., etc., etc.!!!
A 5 de Junho do ano de 1593, plenamente informado, também, de quanto
prejuízo e de quanta ruína são capazes os bravi e vagabundos, e da influência
detestável que esta classe de gente exerce sobre o bem público, com des‑
prezo da injustiça… ordena­‑lhes de novo repetindo pouco mais ou menos as
mesmas ameaças e as mesmas prescrições que o seu predecessor.
Tempos depois, a 23 de Maio do ano de 1598, informado, com grande pesar
seu, de que… cada dia que passava ia crescendo nesta cidade e neste Estado o número
destes indivíduos bravi e vagabundos, e de que não há que esperar deles senão embosca‑
das, que não deixam de empreender, tanto de dia como de noite, ferimentos, homicídios,
roubos e todas as outras espécies de crimes, aos quais se entregam com tanto maior
audácia quanto estes ditos bravi se fiam no apoio dos seus chefes e fautores… prescre‑
ve de novo os mesmos remédios, forçando a dose, tal como é de uso praticar
contra as doenças rebeldes.
Que cada um, portanto, conclui ele, se livre, em absoluto, de transgredir seja
qual for das disposições do presente edital, porque, em vez de experimentar a clemência
de Sua Excelência, experimentará o seu rigor e cólera… por haver resolvido e bem
determinado que este aviso seja peremptório e último.
Tal não foi, porém, a opinião do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Dom Pedro Henriques de Azevedo, conde de Fuentes, capitão e governador
do Estado de Milão, tal não foi a sua opinião, e por boas razões. Plenamen‑
te informado das desgraças que promovem nesta cidade e Estado os bravi
que nela abundam em tão grande número… e decidido a extirpar, radicalmente, esta
semente tão perniciosa, a 16 de Dezembro de 1600 faz afixar um novo edital
repleto de medidas severas, com a firme determinação de que elas sejam inteira‑
mente executadas, com o último dos rigores e sem esperança de remissão.
É de acreditar, todavia, que as disposições do aviso não se aplicaram com
aquela boa vontade que sabia pôr em acção para servir intrigas e suscitar ini‑
migos ao seu grande inimigo Henrique IV; pois que, neste ponto, a história
dá fé de como ele chegou, efectivamente, a armar contra esse rei o duque da
Sabóia, a quem fez perder mais de uma cidade, e de como levou a conspirar o
duque de Biron, a quem fez perder a cabeça.
Mas pelo que respeita a esta semente tão preciosa dos bravi, é coisa certa
que ela continuava a germinar ainda em 22 de Setembro do ano de 1612, data
em que o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Juan de Mendoza, mar‑
quês de Hinojosa, fidalgo, etc… governador…, pensou a sério em extirpá­‑la.

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alessandro manzoni 235

Para este fim, enviou a Pandolfo e Marco Túlio Malatesti, tipógrafos da real
câmara, a ordem habitual, correcta e aumentada, a fim de que a imprimissem
para total exterminação dos bravi.

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236 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Hendrik MARSMAN. «Soberano», in Rosa do Mundo: 2001 poemas para o


futuro. Tradução de Fernando Venâncio. 2001. Lisboa: Assírio & Alvim.
1401.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Ele avançava
e o espaço era­‑lhe fléxil túnica
sobre o fresco corpo.

os lisos ares explodiam em salpicos


e estrelas vermelhas fumegavam todo o esplendor
na noite vacilante.

ele avançava
e o espaço quebrava contra seu passo metálico
e o ar retraía­‑se ao seu suspiro abrasante.

a vida era esparsos flocos de odor violeta.

ele comia
e a terra traçava suas espirais estridentes
ao longo da noite a encarquilhar­‑se:
ele tinha provado.

erguia­‑se ele,
átomo e cosmos a um tempo,
e dominava com pulso mineral
sobre o redemoinho dos elementos
o ebúrneo sorriso do moço silencioso.

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predrag matvejevit 237

Predrag MATVEJEVIT . Breviário Mediterrâneo. Tradução de Pedro


Tamen a partir do francês. [1987] 1994. Lisboa: Quetzal. 116­‑117.

Texto sujeito a Direitos de Autor

As nações confrontaram­‑se em terra. No mar são as marinhas que travam


os combates: batalhas entre eleitos. Elas representam talvez o capítulo mais
cruel da história do Mediterrâneo. Julgavam alguns que elas decidiam da
sorte dos países e dos mares, e não exclusivamente dos interesses do Estado
e da ambição dos respectivos soberanos: daí, talvez, a ligação entre certas
batalhas e os dramas que as evocam. Também elas se podem classificar em
alguns grupos, de um modo menos convencional que o habitual: conforme o
que se afundou nas profundidades do mar ou sobrenadou à superfície, con‑
soante o que caiu no esquecimento ou ficou gravado nas memórias. A histó‑
ria mostrou­‑se solícita para com elas; traçou os respectivos nomes em letras
maiúsculas. A recordação da batalha que pôs frente a frente Gregos e Persas
perto de Salamina sobreviveu à queda da velha Hélade. Os Persas, afirmam
os historiadores gregos, julgavam poder dominar o mar e forçá­‑lo a obede‑
cer chicoteando­‑o, o que mostra como nem todas as experiências de um mar
se podem aplicar a outro. Os Romanos travavam contra os Cartagineses vio‑
lentas batalhas, tanto em terra como no mar: as suas guerras marítimas não
acarretaram, como aos respectivos comandantes dos combates terrestres,
qualquer celebridade aos seus capitães navais. A batalha entre os piratas do
Neretva e os galeões venezianos, perto do cabo de Mika, foi importante
para o Adriático: os habitantes do Neretva seriam verdadeiramente pira‑
tas, ou terão sido assim chamados pelos vencedores? A batalha de Lepanto,
a mais colossal do Renascimento, viu enfrentarem­‑se a Santa Liga, que arvo‑
rava o pavilhão papal, e os Turcos com o seu crescente de lua, a Cristandade
e o Islão; foi decisiva para a Europa e para a Ásia Menor. Os historiadores
sublinham habitualmente os nomes de D. João de Áustria ou do otomano
Ali­‑Pacha e os de almirantes como Doria ou Barbagio, Horuk ou Khayr al­
‑Dîn, dito o Barbaruiva. Contudo, para a literatura é mais importante notar
que um escritor espanhol, depois prisioneiro dos piratas no Norte de Áfri‑
ca, lá perdeu um braço: se não fosse isso, a sua narrativa sobre o infortunado
cavaleiro da Mancha não teria visto a luz. A batalha de Lepanto parece rugir

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adam mickiewicz 239

Adam MICKIEWICZ. «As estepes de Aquermã», in Rosa do Mundo: 2001


poemas para o futuro. Tradução de Marcelo Paiva de Sousa. [1826] 2001.
Lisboa: Assírio & Alvim. 1041­‑1042.

No vão do mar seco aponto a proa com afã,


A carroça é um barquinho no verde e balança;
Entre as ondas dos prados e as flores avança,
Fugindo do coral das ilhas de bujã.

A noite cai, nenhures caminho ou kurhã;


Estrelas, guias do barco, a vista não alcança;
Longe um brilho de nuvem? Uma aurora mansa?
É o brilho do Dniestr, lume aceso de Aquermã.

Sus! — que silêncio! — ouço o curso de um voo lento


De cegonha que olho de águia não reclama;
Escuto onde a borboleta adeja no vento,

Onde o peito nu da serpente toca a grama.


Tanta calma! — e tanto o ouvido apresto atento
Que ouvira a Lituânia. — Eia, ninguém chama.

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240 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Eugenio MONTALE. Excerto de «A história», in Poesia. Tradução de José


Manuel de Vasconcelos. [1971] 2004. Lisboa: Assírio e Alvim. 239.

Texto sujeito a Direitos de Autor

A história não se desenrola


como uma cadeia
de anéis ininterrupta.
Em todo o caso
muitos anéis não prendem.
A história não contém
o antes e o depois,
nada que nela ronrone
a lume brando.
A história não é produzida
por quem a pensa nem
por quem a ignora. A história
não anda para a frente, obstina­‑se,
detesta o pouco a pouco, não progride
nem regride, muda de linha
e a sua direcção
não consta dos horários.
A história não justifica
e não deplora,
a história não é intrínseca
porque está fora.
A história não ministra
carícias ou golpes de chicote.

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thomas more 241

Thomas MORE. «Dos magistrados», in Utopia ou a Melhor Forma de


Governo. Tradução de José V. de Pina Martins. [1516] 2015. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 499-501.

Cada trinta famílias elege, todos os anos, um representante que designam


na sua primitiva língua por sifogranto e em língua mais recente filarco. A cada
dez sifograntos, com as suas famílias, preside um traníboro na língua de anti‑
gamente, hoje chamado protofilarco. Finalmente, todos os sifograntos, que são
duzentos, depois de jurarem que escolherão aquele que considerem mais
útil, em votos secretos elegem como príncipe um de entre quatro que o povo
tiver designado.
De facto, cada um dos quatro bairros da cidade escolhe um represen‑
tante para fazer parte do Senado. O cargo de príncipe é vitalício, e não pode
ser destituído senão em caso de haver suspeita de propender para a tirania.
Os traníboros ficam sujeitos a eleição anual, mas não são substituídos senão
por motivo sério. Os restantes magistrados todos são anuais.
Cada três dias, e mesmo mais frequentemente se o assunto assim o exi‑
gir, os traníboros reúnem-se em conselho com o príncipe. Deliberam sobre
matérias de interesse público, decidem de questões privadas (se alguma hou‑
ver); elas são tão poucas que o fazem em pouco tempo. No Senado assistem
sempre dois sifograntos, cada dia diferentes, e está acautelado que nada seja
sufragado senão o que é de interesse público e que além disso não se toma
decisão final sem terem passado três dias sobre a sua discussão no Senado.
Tomar decisões relativas a interesses públicos fora do Senado ou fora
das Assembleias do Povo é considerado crime capital. Diz-se que tal lei foi
instituída para não se cair na tentação de alterar a forma de governação, por
conspiração do príncipe e dos traníboros que levasse a instituírem a tirania
que serviria para oprimir o povo. Por isso mesmo, tudo o que é considera‑
do de maior importância é levado às assembleias dos sifograntos, os quais o
comunicam primeiro às famílias que representam e depois o debatem entre
eles e só de seguida transmitem a sua deliberação ao Senado. Entretanto,
o assunto é levado ao conselho de toda a ilha. Mais ainda, o Senado tem
também por regra nada discutir no próprio dia em que o assunto é proposto,
mas diferi-lo para a reunião seguinte, para não acontecer que alguém debite

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242 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

de ânimo leve aquilo que primeiro lhe vem à boca, obstinando-se depois a
pensar mais como defender as posições que tomou que os interesses do bem
comum, preferindo deitar a perder o interesse público que uma opinião, por
vergonha descabida quanto a uma retractação, e para que não pareça que de
início tinham reflectido pouco, quando, por princípio, se devia ter previsto
que mais vale falar depois de reflectir que fazê-lo de chofre.

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ioan es pop 243

Ioan Es POP. [há quatro gerações…], in Unelte de Dormit. Tradução inédita


de Corneliu Popa. [2011] 2017. Bucareste: Cartea Româneasc . 53-54.

há quatro gerações que nas traseiras da nossa casa corre


um riacho de sangue escuro.
há anos e anos que o meu pai o cobre com palha e folhas
para que os vizinhos não o vejam.
e o pai dele também o cobria com palha e folhas
e talvez chegue a minha vez de o esconder em breve,
porque não convém que os vizinhos saibam o que ali corre.

na primavera fingimos também que aramos e semeamos


para parecer que somos iguais aos outros.
no outono fingimos que fazemos a colheita
para nos parecermos com os outros, para não se aperceberem,
mas de facto apenas ficamos à espera,
espreitamos quem é que se segue, um de nós
seguir­‑se­‑á certamente.

passamos o dia a odiar aquele que tiver escapado,


embora quem escape só escapa até uma próxima vez.
entretanto, no leito corre um fiozinho de
sangue escuro, cobrimo­‑lo há anos e anos com palhas e folhas,
não convém que os vizinhos saibam o que ali corre,
temos de parecer que somos iguais aos outros.

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244 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Friedrich SCHILLER. «III Acto, cena IV», in Maria Stuart. Versão de


Garibaldi Falcão. [1800] 1925. Lisboa: Guimarães. 83­‑ 90.

(Os mesmos, Izabel e o conde de Leicester)

Izabel (dirigindo­‑se a Leicester) — Como se chama este castello?


Leicester — De Fotheringay.
Izabel (para Talbot) — Mande a minha escolta para Londres... O povo
aglomera­‑se tumultuosamente no meu caminho. Vimos procurar um
pouco de descanso n’este tranquillo parque. (Talbot despede a escolta.
Izabel fita os olhos em Maria e continua, dirigindo­‑se a Paulet): Muito me
quer o meu bom povo. As provas de satisfação que me tem dado não
teem limites. Só se adora assim os deuses, não os humanos.
Maria (que continua sem forças, mas encostada ao braço de Anna Kennedy, ergue a
cabeça e o seu olhar encontra o de Izabel. Treme de terror e lança­‑se nos braços
de Anna) — Meu Deus! As suas feições dizem­‑me que não tem coração!
Izabel — Quem é esta mulher? (Silêncio geral).
Leicester — Rainha, estaes em Fotheringay.
Izabel (finge-se surprehendida e fita em Leicester um olhar sinistro) — Quem foi
que fez isto? Lord Leicester!
Leicester — O que está feito está feito, rainha, e já que o céu guiou os vos‑
sos passos até aqui, deixae triumphar a magnanimidade e a clemência.
Shrewsbury — Cedei às supplicas, nobre lady, volvei o olhar para essa des‑
venturada que cae de joelhos na vossa presença. (Maria tenta approximar­
‑se de Izabel, mas detém­‑se a meio do caminho. As suas feições revelam o vivo
combate travado no seu coração.)
Izabel — Como, milords?!... Quem foi que me falou n’uma mulher submis‑
sa? Encontro uma orgulhosa, a quem o infortúnio não poude domar.
Maria — Seja! Quero soffrer tudo… Para longe, altivez immoderada das almas
nobres. Quero esquecer o que sou e o que tenho soffrido, quero deitar­
‑me aos pés da que me lançou n’esta ignomínia. (Volta­‑se para a rainha)­
O céu decidiu em vosso favor, irmã. A vossa fronte está coroada pela victo‑
ria. Adoro a divindade que tanto vos elevou! (Cae de joelhos aos pés de Izabel)
Sêde, porém, magnânima, não me deixeis cheia de opprobrio, estendei­‑me
a vossa régia mão para me tirar do profundo abysmo em que cahi.

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friedrich schiller 245

Izabel (recuando) — Estaes no vosso lugar, lady Maria. Agradecida estou à


benevolência de Deus por eu não estar a vossos pés como vós estaes aos
meus.
Maria (com affecto cada vez mais accentuado) — Pensae na mudança das coisas
humanas. Existem deuses que castigam a arrogância; respeitae, temei
esses deuses terríveis que me arrojam a vossos pés… em nome d’esses
estranhos testemunhos, respeitae­‑vos a vós propria em mim; não insul‑
teis o sangue dos Tudor, que circula pelas minhas veias e pelas vossas…
Deus do céu!... Não sejaes insensível, não sejaes inaccessível como
esses escolhos do mar aos quaes o náufrago procura acolher­‑se... Todo
o meu ser, a minha vida, a minha sorte, dependem das minhas palavras
e da força das minhas lágrimas... dilate­‑se­‑me o coração para eu com‑
mover o vosso… Se olhaes para mim com esse olhar de gelo, o coração
confrange­‑se­‑me tremendo, detém­‑se a torrente das minhas lágrimas...
e um frio de terror encadeia todas as minhas supplicas.
Izabel (fria e severa) — Que tem a dizer­‑me, lady Stuart? Quiz falar­‑me...
Esqueci­‑me de que sou uma rainha gravemente offendida, para cum‑
prir um dever fraternal e dar­‑vos a consolação de me ver. Não resisti a
esse impulso de magnanimidade e exponho­‑me a uma justa censura por
me haver rebaixado a tanto... porque sabeis muito bem que quizestes a
minha morte.
Maria — Por onde hei de começar e como porei a prudência nas minhas
palavras para commover o vosso coração e não vos offender? Meu
Deus, dá força às minhas palavras e tira­‑lhes tudo o que possa ferir...
Não posso falar de mim sem vos accusar tristemente e é isso o que não
quero. Haveis procedido, tratando­‑se de mim, d’um modo que não é
justo, porque sou rainha como vós, e vós tendes­‑me tido prisioneira.
Apresentei­‑me a vós supplicante e vós, desprezando as santas leis da
hospitalidade e do direito das gentes, encerrastes­‑me n’um calabouço.
Os meus amigos, os que me rodearam na infância, foram­‑me arreba‑
tados cruelmente e eu fui entregue a um isolamento incomprehen‑
sivel. Obrigaram­‑me a comparecer perante um tribunal offensivo...
Mas, basta... Cobra um olvido eterno quanto de cruel tenho soffrido!
Olhae! A tudo isso quero chamar fatalidade... não sois culpada d’isso,
nem eu igualmente o sou! O espírito do mal sahiu do fundo do abys‑
mo para acender nos nossos corações o ódio que nos separou desde a
nossa infância... Esse ódio cresceu em nós, homens perversos atiçaram
a chamma fatal. Outros que exercitavam o seu zelo na senda da insen‑
satez e do extravio puzeram o punhal e a espada na mão cujo auxílio se

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não pedia... Tal é o destino maldito dos reis. Os seus ódios desvairam o
mundo e as suas contendas desencadeiam as fúrias... Agora não há entre
nós ninguém. (Approxima­‑se d’ella com confiança e fala em tom affectuoso.)
Aqui estamos uma em frente da outra... Agora, falae, irmã. Apontae
as minhas culpas, quero dar­‑vos plena satisfação. Ah! porque me não
recebestes quando eu tão vivamente instava por vos ver? Não se teria
chegado a tal extremo e não se teria dado este encontro tão triste, n’um
local tão sombrio.
Izabel — A minha boa estrella livrou­‑me de reanimar a serpente no meu
seio. Não accuseis a fatalidade, mas sim o vosso coração mentiroso e a
ambição sem limites da vossa raça. Nada havia entre nós quando vosso
tio, frade orgulhoso e cheio de presumpção que ergue a mão para todas
as coroas, vos infundiu o espírito da contenda e de uma hostilidade con‑
tínua, vos induziu a pegar em armas e apropriar­‑vos do meu título real
e a decidir no campo de batalha a morte ou a vida. Que não tramou
elle contra mim? A língua dos sacerdotes, a espada dos povos, as armas
terríveis do fanatismo religioso, aqui, aqui mesmo, dentro do meu tran‑
quillo reino, soprou até n’elle encerrar a chamma da discórdia... Mas
Deus está commigo e esse frade orgulhoso não conseguiu triumphar...
O golpe ameaçou a minha cabeça e é a vossa que cae!
Maria — Entrego­‑me nas mãos de Deus… Não abuseis do vosso poder de
modo tão sangrento.
Izabel — Quem m’o há-de impedir? Vosso tio deu exemplo a todos os reis
da terra de como se fazem as pazes com os inimigos. Sirva­‑me de lição
a noite de S. Bartholomeu. O que é essa coisa de laços de sangue e de
direito das gentes?... A Igreja quebra todos os laços do dever e santi‑
fica o perjúrio e o regicídio... Eu nada mais faço do que o que os vos‑
sos sacerdotes ensinam. Dizei­‑me: quem me responderia por vós se eu,
procedendo com magnanimidade, quebrasse as vossas algemas para
guardar a vossa lealdade? Que castello, que fortaleza há que as chaves
de S. Pedro não abram? Não quero alliar­‑me com a raça das serpentes!
Maria — Oh, é uma suspeita terrível!... Sempre me haveis considerado
como inimiga e como estranha. Se, como devia ser, me tivesseis decla‑
rado vossa herdeira, o agradecimento e o amor ter­‑vos­‑iam assegurado
em mim uma amiga e parente leal.
Izabel — Provada está de mais a vossa amizade, lady Stuart. A vossa casa é
o papado e os frades são vossos irmãos. Declarar­‑vos minha herdeira!
Redes traiçoeiras!... Continuando vós a viver, podieis extraviar o meu
povo, sendo como sois uma astuta Armida, pois fazeis cahir em vossos

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laços impuros a mocidade dos meus reinos; todos os olhares se teriam


voltado para o sol nascente e eu...
Maria — Reinae em paz! Renuncio a todas as pretensões a este reino. Ai! As
azas do meu espírito paralysaram, nada de grande me attrahe. Haveis
conseguido tudo, não sou mais que a sombra de Maria. A miséria do
cárcere quebrou a ousadia do meu génio... Fizeste­‑me recorrer ao maior
extremo, haveis­‑me feito murchar no vigor da minha florescência...
Conclui, irmã… Pronunciae a palavra pela qual reinastes aqui... para
insultar cruelmente a vossa victima... Pronunciae essa palavra. Dizei­
‑me «Estaes livre, Maria! Sentistes já todo o peso do meu poder, apren‑
dei agora a respeitar a minha magnanimidade!» Dizei­‑o e receberei
como um presente da vossa mão a vida e a liberdade. Uma palavra e
viveremos como se nada tivesse acontecido. Aguardo essa palavra... Ai!
não me façaes esperar muito tempo! Ai de vós se com ella não pondes
termo a tudo, porque se vos não separae de mim como uma divindade
gloriosa e benfeitora… irmã! não só por toda esta ilha, mas por todas as
terras que o mundo circunda, não quizera eu apparecer a vossos olhos
tal como vós apparecereis aos meus.
Izabel — Por fim, confessaes­‑vos vencida?... Renunciaes aos vossos pla‑
nos? Já não há assassino algum em campo? Já não há aventureiro algum
que queira arriscar pela vossa desditosa causa qualquer cavalheiresca
façanha? Tudo acabou já, lady Maria... Já não seduzis ninguém. Não há
quem tenha vaidade em ser o vosso quarto marido, porque fazeis mor‑
rer os vossos amantes, como morrer fazeis os vossos esposos!
Maria (sem poder conter­‑se) — Irmã! Deus meu, dae­‑me moderação!
Izabel (olhando­‑a durante algum tempo com orgulhoso desprezo) — São estes
os encantos, lord Leicester, que nenhum homem contempla impune‑
mente e com os quaes nenhuma outra mulher se atreve a comparar os
seus?... Ora! Essa glória conseguiu­‑se facilmente. Para que essa belleza
seja igual para todos, preciso é que a todos pertença!
Maria — É de mais!
Izabel (com um sorriso sarcástico) — Mostrae o rosto verdadeiro, porque até
agora só vimos a máscara.
Maria (ardendo em cólera, mas com nobre dignidade) — Fui culpada como
mulher, como jovem... O poder extraviou­‑me… mas não me escondi,
porque na minha real franqueza repelli as falsas apparencias. O que do
peior fiz, o mundo sabe­‑o, e eu posso dizer que sou melhor do que o
conceito que de mim tenham podido formar. Ai de vós se alguma mão
vos descobrisse arrancando essa capa de virtude que a vossa hypocrisia

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pôz sobre a desenfreada lascívia dos vossos gozos secretos!... A virtude!


Não a haveis herdado de vossa mãe, porque o mundo sabe que espécie
de virtude foi a que fez subir ao cadafalso a Anna Bolena.
Shrewsbury (interpondo­‑se entre as duas rainhas) — Deus do céu! A tanto che‑
gámos? É isso moderação e submissão, lady Maria?
Maria — Moderação!... Supportei tudo quanto se podia supportar. Para
longe a resignação de cordeiro! Voa para o céu, paciência abatida. Que‑
bra os laços que te prendem e sahe do teu ninho, furor demasiadamente
contido, e tu, que dás à serpente raivosa o olhar que mata, põe na minha
língua o dardo envenenado!...
Shrewsbury — Oh! Está desvairada! Perdoae a essa insensata cujo coração
está cheio de cólera.
(Izabel, muda de ira, lança a Maria olhares furibundos.)
Leicester (tentando arrastar Izabel) — Não escuteis essa furiosa... Saiamos
d’este desgraçado local!
Maria — O throno de Inglaterra está profanado por uma bastarda... e o
nobre povo da Gran Bretanha enganado por uma astuta comediante…
Se reinasse a justiça, rojar­‑vos­‑hieis no pó na minha presença, porque
sou vossa rainha! (Izabel afasta­‑se com rapidez, seguida pelos lordes, muito
agitados.)

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Henryk SIENKIEWICZ. Excerto de «Capítulo 1», in Quo Vadis? Tradução


de Daniel Augusto Gonçalves. [1896] 2013. Porto: Civilização. 7­‑ 9; 14-15.

Era quase meio­‑dia quando Petrónio acordou. Sentiu­‑se como de costume


muito fatigado, tanto mais que passara a noite anterior num dos banquetes
de Nero. Havia muito tempo já que não se sentia bem de saúde e os momen‑
tos de despertar estavam a tornar­‑se cada vez mais dolorosos; mas de todas as
vezes o banho matinal e a massagem regular de tal modo lhe estimulavam a
circulação lenta e lhe restauravam as forças que ao sair do oleotechium (a últi‑
ma estação do balneário) era um homem de olhos brilhantes e dotado com
um ar de graça com que nem mesmo o próprio Otão jamais poderia rivalizar.
Em suma, era merecido o seu cognome de «Árbitro da Moda».
Nessa manhã, portanto, que se seguiu ao banquete (onde com Nero,
Lucano e Séneca discutira a questão da mulher ter ou não ter alma)
encontrava­‑se deitado sobre um estrado de massagem, coberto com um len‑
çol de níveo bisso egípcio. Dois musculosos balneatores massajavam­‑lhe os
músculos com mãos embebidas em óleo, e Petrónio esperava de olhos cerra‑
dos que o calor do laconicum juntando­‑se ao das mãos dos massagistas acabas‑
se por penetrar­‑lhe no corpo banindo o cansaço.
Por fim ergueu as pálpebras. Primeiro perguntou como estava o tempo;
depois disso indagou a respeito de umas pedras preciosas que o joalheiro
Idomeneu tinha prometido trazer para ele examinar. Responderam­‑lhe que
o tempo estava lindo e que soprava uma ligeira brisa do lado dos Montes
Albanos; quanto ao joalheiro, ainda não tinha aparecido. Tendo cerrado de
novo os olhos, estava prestes a ser transportado para o tepidarium quando,
erguendo uma cortina, o nomenclator anunciou a presença de Marco Vinício.
Petrónio ordenou que introduzissem o visitante no tepidarium e que o
levassem para lá. Vinício era filho de uma das irmãs mais velhas de Petrónio
— uma dama que se casara com Marco Vinício, que fora cônsul no tempo
do imperador Tibério. Presentemente o jovem Vinício servia na expedição
de Corbulão contra os Partos, mas a conclusão de um armistício trouxera­‑o
de volta a Roma. Petrónio sentia um certo afeto pelo rapaz, visto o sobri‑
nho ser um belo atleta que, mesmo nos seus momentos mais devassos, sabia

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conservar­‑se dentro dos limites da estética — uma qualidade que Petrónio


prezava acima de tudo.
— Salve, Petrónio! — exclamou o jovem. — Que todos os deuses te pro‑
piciem os seus favores, mas muito especialmente Esculápio e Cípris.
— Bem­‑vindo a Roma! — respondeu Petrónio, libertando as mãos das
dobras da fina túnica que o envolvia. — Que o teu repouso seja doce depois
da guerra. Que há de novo pela Arménia? E durante a tua estadia na Ásia não
terás porventura ido até à Bitínia?
Embora fosse agora célebre pelos seus gostos efeminados e amor do
prazer, Petrónio tinha sido outrora governador da Bitínia, e um governador
simultaneamente firme e justo; por isso sempre recordava esse período com
satisfação, porque mostrara aquilo em que ele se poderia ter tornado se lhe
desse na fantasia esforçar­‑se nesse sentido.
—Sim; estive uma vez em Heracleia a fim de organizar reforços para
Corbulão — respondeu Vinício.
— Heracleia? Ah, foi aí que eu conheci uma donzela de Colquis por
quem de bom grado trocaria todas as divorciadas de Roma sem mesmo exce‑
tuar Popeia. Mas tudo isso são águas passadas. Conta­‑me antes o que se está
a passar na fronteira da Pártia; embora eu não considere nada interessantes
esses Vologesos, Tiridates e Tigranos... esses bárbaros que o jovem Arulano
teima em afirmar que lá na terra deles andam com as mãos no chão, só imi‑
tando os homens quando se encontram na nossa presença. Mesmo assim
fala­‑se muito deles em Roma; sem dúvida porque é perigoso falar de outra
coisa qualquer.
— Mas se não fosse Corbulão, essas guerras teriam terminado mal.
— Corbulão? Por Baco, mas ele é um verdadeiro deus da guerra, um
genuíno filho de Marte, um grande general, um homem ao mesmo tempo
valente, leal e imbecil. Gosto dele, e para isso contribui não pouco o facto de
ele meter medo a Nero.
— Corbulão não é um imbecil.
— Talvez não. Mas, como muito bem diz Pirro, a imbecilidade vale tanto
como a sabedoria e em nada se diferencia dela.
Vinício começou então a falar da guerra, mas Petrónio limitou­‑ se a
fechar os olhos; vendo isso o jovem mudou de assunto e interrogou o tio a
respeito da sua saúde.
Este novo tema fez Petrónio abrir de novo os olhos.
A sua saúde? Não ia lá muito bem; embora não tivesse ainda atingido
o ponto a que chegara o jovem Sisena, cujos sentidos estavam de tal modo
embotados que uma manhã perguntara quando se encontrava no banho:

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«Estou ou não estou sentado?» Mas de qualquer maneira Petrónio estava


longe de se sentir bem. Vinício fora muito amável ao recomendá­‑lo à prote‑
ção de Esculápio e de Vénus, mas pelo que lhe tocava ele (Petrónio) não tinha
fé em Esculápio. Por exemplo, alguém sabia de quem era filho Esculápio: de
Arsínia ou de Corónia? Ora quando uma pessoa tem dúvidas a respeito da
sua própria mãe, que se há de dizer a respeito do pai? Na verdade, naqueles
tempos, quem poderia ter a certeza de ser filho de seu pai?
Aqui Petrónio sorriu, antes de prosseguir:
— Há dois anos mandei a Epidauro três dúzias de melros vivos e uma
taça. Disse para comigo: «Mesmo que isso não me faça bem, não me fará
nenhum mal. E se no mundo ainda há pessoas que sacrifiquem aos deu‑
ses, creio que todas devem raciocinar como eu... excetuados os cocheiros
da Porta Capena.» E falando ainda de Esculápio, recorri a uns discípulos de
Esculápio para tratar uns incómodos de bexiga. Isso foi ainda no ano passa‑
do, e, embora recorressem a várias incubações, percebi que eram todos eles
uns charlatães. Todavia o mundo assenta na mentira e a própria vida é parte
dela. Até a alma é uma ilusão. Um homem tem de ser bastante atilado para
saber distinguir as ilusões agradáveis daquelas que o não são.
[7-9]

— Sim, já não quero mais saber do que a cidade me poderá proporcionar.


Já não desejo mulheres, nem ouro, nem bronzes de Corinto, nem âmbar,
nem madrepérolas, nem vinho, nem festins. Desejo apenas Lígia. Petrónio,
a minha alma estende os braços para ela como, no mosaico do teu tepidarium,
o Sono estende os seus braços para Pasítea. Anseio por ela de dia e de noite.
— Se ela é uma escrava, compra­‑a.
— Mas ela não é uma escrava.
— Então que é ela? Uma das libertas de Pláucio?
— Não. Nunca tendo sido escrava, não pode ser uma liberta.
— Então o que é?
— Não sei. Possivelmente filha de um rei.
— Estás a despertar­‑me a curiosidade, Vinício.
— A história conta­‑se em poucas palavras. É possível que tenhas ouvido
falar de Vânio, rei dos Suevos, que tendo sido expulso do seu país viveu durante
uns tempos em Roma onde se tornou conhecido pelas suas proezas aos dados
e também pela sua perícia a conduzir um carro? Bem, Druso repô­‑lo no trono
e Vânio governou o país com mérito e empreendeu algumas expedições afor‑
tunadas; mais tarde, porém, habituou­‑se a esfolar não só os vizinhos mas tam‑
bém os seus próprios súbditos; resultou daí que os seus sobrinhos Varígio e

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252 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Sídon (filhos de Vibílio, rei dos Hermúnduros) planearam secretamente um


esquema para fazê­‑lo ir de novo tentar a sua sorte aos dados.
— Ah, lembro­‑me disso. Foi no tempo de Cláudio, história recente,
portanto.
— Sim. Eclodiu a guerra, e Vânio pediu ajuda aos láziges, enquanto os
seus sobrinhos levantavam os Lígios. Estes últimos, que têm um grande
fraco pelo saque e tinham ouvido falar da grande riqueza de Vânio, mobiliza‑
ram massas tão numerosas que Cláudio começou a temer pelas nossas pró‑
prias fronteiras; e tanto que, embora sempre detestasse imiscuir­‑se nas que‑
relas entre bárbaros, enviou ordens a Atélio Hister, comandante da Legião
do Danúbio, para se manter atento à evolução da luta e para não permitir em
caso algum que a paz romana fosse perturbada. Visto isso, Hister exigiu dos
Lígios a promessa de que não violariam as nossas fronteiras; eles não só pro‑
meteram como garantiram a sua palavra oferecendo reféns, entre os quais se
contavam a mulher e a filha do seu chefe (como provavelmente sabes, quan‑
do em expedição esses bárbaros levam consigo todas as suas mulheres). Lígia
é a filha desse chefe.
— Como soubeste tudo isso?
— Contou­‑me o Aulo Pláucio; e na verdade os Lígios honraram a
sua promessa de não atravessar as nossas fronteiras. Esses bárbaros surgem
como um furacão e desaparecem do mesmo modo; e assim desapareceram
esses Lígios, de cabeças adornadas com cornos de auroque. Embora tives‑
sem derrotado os Suevos de Vânio e os láziges, o seu rei caíra na batalha;
portanto retiraram­‑se com o produto do saque enquanto os reféns ficavam
nas mãos de Hister. Pouco depois a mãe também morreu, e, para se livrar do
encargo da rapariga, Hister enviou­‑a a Pompónio, governador­‑geral da Ger‑
mânia; no fim da guerra com os Catos, Pompónio regressou a Roma onde
Cláudio, como sabes, lhe concedeu a honra de um triunfo. Nesse dia festivo
a jovem caminhou atrás do carro do conquistador; mas como os reféns não
podiam continuar a ser tratados como cativos, e Pompónio não soubesse que
fazer da rapariga, enviou­‑a a sua irmã, Pompónia Grecina, mulher de Pláu‑
cio. Na casa dos Aulos, uma casa onde tudo é virtuoso, desde o senhor e a
senhora até à própria criação, ela criou­‑se para meu mal tão virtuosa como a
própria Grecina e tão bela que, comparada com ela, a própria Popeia parece‑
ria um fruto outoniço posto ao lado de uma maçã do Jardim das Hespérides.
— E depois?
— Só te posso repetir que desde o momento em que vi a luz do Sol brin‑
car através do seu corpo me apaixonei por ela.
[14-15]

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zadie smith 253

Zadie SMITH. «O singular segundo casamento de Archie Jones», in Dentes


Brancos. Tradução de Manuel Cintra. [2000] 2002. Lisboa: Dom Quixote.
17-20.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Era de manhã cedo, e ia já o século adiantado, em Cricklewood Broadway.


Às 6.27 horas de 1 de Janeiro de 1975, Alfred Archibald Jones estava vestido
de bombazina e sentado num Cavalier Musketeer cheio de fumo, de cara
tombada no volante, na esperança de que não seria julgado com demasiada
severidade. Estava deitado para a frente como uma cruz prostrada, queixo
descaído, braços abertos para cada lado como se fosse um anjo caído; em
cada punho tinha, amarrotadas, as medalhas do serviço militar (esquerdo)
e a licença de casamento (direito), pois decidira levar os seus erros consigo.
Uma luzinha verde piscou-lhe no olho, a assinalar uma curva para a direita
que tinha decidido nunca fazer. Estava resignado. Estava preparado. Atirara
uma moeda ao ar e ia cumprir firmemente as suas instruções. Era um suicí‑
dio decidido. Na verdade, era uma decisão de Ano Novo.
Mas mesmo quando a respiração se tornou espasmódica e as luzes
esmoreceram, Archie teve a noção de que Cricklewood Broadway ia pa‑
recer uma escolha estranha. Estranha para a primeira pessoa que através
da janela visse a sua cabeça caída, estranha para os polícias que fizessem
o relatório, para o jornalista local que fosse chamado para escrever cin‑
quenta palavras, para o primeiro parente que as lesse. Encaixada entre um
gigantesco complexo de cinemas de betão, de um lado, e um cruzamento
enorme, do outro, Cricklewood não era nenhuma espécie de lugar. Não
era lugar onde um homem viesse morrer. Era lugar onde passar a caminho
de outros, por via da A41. Mas Archie Jones não queria morrer num bos‑
que agradável e distante qualquer, ou no alto de um penhasco bordado de
urzes delicadas. Do ponto de vista de Archie, as pessoas do campo deviam
morrer no campo, e as da cidade deviam morrer na cidade. Apenas mais
limpas. Na morte como tinha sido em vida e tudo isso. Fazia sentido que Ar‑
chie morresse naquela rua de cidade suja onde fora parar, vivendo só com a
idade de quarenta e sete anos, num apartamento de um só quarto por cima
de uma loja de batatas fritas fechada. Não era do estilo de fazer planos

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258 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

SÓFOCLES. «Elogio de Atenas», in Édipo em Colono, in Rosa do Mundo: 2001


poemas para o futuro. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
[401 a.C.] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 435­‑436.

Coro

Chegaste, estrangeiro, da terra ao lugar mais excelente,


a esta região de belos cavalos,
Colono fulgente,
onde tanta vez o rouxinol mavioso
modula seus gorjeios,
no fundo dos vales verdejantes,
— esse habitante das negras heras,
e da floresta divina impenetrável,
de frutos mil, ao sol inacessível,
e a recato dos ventos todos invernais.
Onde Diónisos, com báquico ardor,
vagueia em companhia das deusas que o criaram.

Sob o rocio do céu, floresce


sempre, em todos os dias, o narciso
de belos cachos,
das grandes Deusas grinalda vetusta,
e o dourado açafrão.
Do Cefiso as nascentes indefesas,
das suas águas errantes, não decrescem,
mas sempre, dia a dia, acorrem a fertilizar a planura
da vasta terra, com límpida linfa.
Não a aborrecem os coros das Musas,
nem Afrodite, de rédeas douradas.

Algo existe aqui, que não consta que germine


na terra da Ásia, nem na grande ilha dórica de Pélops,
rebento que não foi pela mão semeado, mas espontâneo,

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sófocles 259

que infunde terror aos inimigos,


nesta terra mais que todas florescente:
a oliveira de glaucas folhas, árvore criadora.
A ela, nem o jovem nem o ancião a destruirá,
com mão assoladora: pois Zeus Mório
e Atena de olhos garços
a defendem, com olhar sempre vigilante.

Mas outro louvor mais potente tenho ainda a proclamar


sobre esta metrópole, dádiva de um deus excelso, glória máxima da terra:
os seus belos cavalos, belos poldros e navios.
Ó filho de Cronos, Poséidon soberano,
tu nos elevaste a esta glória,
tu que nestas ruas primeiro fabricaste
o freio domador dos cavalos! E os belos remos, ajustados
às mãos, agitam à maravilha a superfície
do mar, na esteira
do tropel infinito das Nereidas.

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260 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

SÓLON. «Eunomia», in Hélade: Antologia da cultura grega. Tradução de


Maria Helena da Rocha Pereira. [século vii-vi a.C.] 2003. Porto: Asa. 134­
‑135.

A nossa cidade jamais perecerá, por vontade de Zeus


e querer dos deuses imortais, bem­‑aventurados.
Sobre ela estende os braços, magnânima e vigilante,
Palas Atena, filha de um pai ilustre.
Mas querem destruir a grande urbe, com os desvarios,
cedendo às riquezas, os próprios cidadãos,
e dos chefes do povo o espírito injusto, a quem está destinado
sofrer muitas dores pela sua grande insolência.
Pois não sabem refrear os seus excessos, nem pôr ordem
nos bens presentes na paz do banquete.
...............................................................................................
Enriquecem arrastados por acções injustas.
....................................................................................................
Sem poupar as posses dos santuários ou do povo,
roubaram a saque, cada um para seu lado;
não guardam os alicerces veneráveis da justiça,
que, em silêncio, conhece o presente e o passado,
e, com o tempo, vem a exercer vingança.
É esta a ferida inevitável que já surge em toda a cidade,
que se precipita, veloz, na desgraça da escravatura,
que desperta a revolta civil e a guerra adormecida,
que perdeu a amável vida de tantos.
Em breve uma cidade muito estimada é arruinada pelos inimigos
nas conspirações caras aos malvados.
São estes os males que se agitam no povo.
E muitos dos indigentes demandam a terra alheia,
vendidos e atados com cadeias ignominiosas.
.......................................................................................................
E assim, a desgraça pública entra em casa a cada um.

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sólon 261

E as portas do pátio não podem detê­‑la.


Mas salta a elevada fortaleza, e acha quanto quer,
ainda que se fuja para o recesso do tálamo.
Manda­‑me o meu coração que ensine aos Atenienses estas coisas:
como a Desordem causa muitas desgraças ao Estado,
e a Boa Ordem apresenta tudo bem arranjado e disposto,
e muitas vezes põe grilhetas aos injustos.
Aplaca as asperezas, faz cessar a saciedade, enfraquece a insolência,
faz murchar as flores nascidas da desgraça,
endireita a justiça tortuosa e abranda os actos
insolentes, termina com os dissídios,
cessa a cólera da terrível discórdia, e, sob o seu influxo,
todos os actos humanos são sensatos e prudentes.

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262 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Wisława SZYMBORSKA. «O campo da fome sob Jaslo», in Versos Polacos.


Tradução de Maria Teresa Bação, Filipa Menezes, Maria Clara Correia,
Carlos Santos Pereira e Henryk Siewierski. [1962] 1985. Lisboa: Faculdade
de Letras. 37.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Escreve­‑o. Escreve. Com tinta normal


Sobre uma vulgar folha de papel: Não lhes deram de comer.
Eles morreram todos de fome. Todos. Quantos?
É uma grande pradaria. Quanta erva
Coube a cada um? Escreve: Não sei.
A História arredonda os esqueletos ao zero.
Mil e um são apenas mil.
Esse um é como se não existisse:
Um feto imaginário, um berço vazio,
Uma cartilha aberta para ninguém,
Ar que ri, que grita, que cresce,
A escada para o vazio que desce correndo para o jardim,
O lugar de ninguém numa fila.

Estamos nessa pradaria onde tudo se fez corpo.


E ela cala­‑se como uma testemunha comprada.
Ensolarada. Verde. Ali perto, uma floresta
Para mascar, para beber por baixo da casca
Uma dose de vista para mais um dia,
Até que fiquemos cegos. Lá no alto, um pássaro
Que passava pelos lábios a sombra
Das asas nutritivas. As mandíbulas abriam­‑se,
Os dentes batiam uns contra os outros.

De noite uma foice brilhava nos céus


E ceifava pães sonhados.
As mãos dos ícones enegrecidos voavam
Com cálices vazios nos dedos.
Sobre o espeto de arame farpado
Um homem baloiçava.

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264 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

TUCÍDIDES. «A oração imperial de Péricles: elogio dos mortos e do


poder democrático», in História da Guerra do Peloponeso. Tradução de
Rosado Fernandes e Maria Gabriela Palma. [século i a.C.] 2010. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 198­‑208.

XXXIV. Durante este mesmo Inverno, os Atenienses, seguindo o exemplo


dos seus antepassados, celebraram da seguinte maneira funerais públicos em
honra dos que primeiro morreram nesta guerra: [2] durante três dias, as ossa‑
das dos mortos ficam expostas numa tenda construída para o efeito e cada
um trazia aos seus mortos a oferta que queria. [3] Quando o cortejo fúnebre
se realizou, carros levaram os caixões de cipreste, um para cada tribo. Os
ossos são colocados no caixão de cada tribo; uma carreta fúnebre é deixa‑
da sem nada dentro e adornada em honra dos desaparecidos, cujos corpos
não tenham sido encontrados para fazer o funeral. [4] Qualquer pessoa pode
tomar parte no cortejo, quer seja cidadão quer seja estrangeiro. Também pre‑
sentes, e fazendo as suas lamentações, estão as mulheres da família dos mor‑
tos. [5] Os caixões são colocados no sepulcro público, que fica no subúrbio
mais bonito da cidade, e aí enterram sempre todos os que morrem nas guer‑
ras, excepto os que morreram em Maratona, porque julgaram que o heroís‑
mo destes era extraordinário, e assim sepultaram­‑nos onde tinham morri‑
do. [6] Quando os restos mortais dos guerreiros são enterrados, um cidadão
escolhido pelo Estado, e considerado pelo povo como o primeiro em judi‑
ciosa prudência e visão, profere a oração fúnebre apropriada. Depois disto,
todos se retiram. [7] É assim que os Atenienses enterram os seus mortos.
E durante a guerra, sempre que a ocasião se proporcionava, usaram este cos‑
tume. [8] Consequentemente, para o elogio fúnebre destes primeiros solda‑
dos foi escolhido Péricles, filho de Xantipo. E quando o momento apropria‑
do chegou, ele avançou do túmulo para uma plataforma mais alta, construí‑
da de tal maneira que pudesse ser ouvido pela maioria da multidão, e falou
assim:
XXXV. «Muitos dos que falaram aqui antes de mim elogiaram quem
acrescentou este discurso ao costume desta cerimónia como se honrar com
palavras os que morreram em combate pudesse de alguma maneira igualar
o seu heroísmo. No que me toca, julgo suficiente que homens que se distin‑
guiram por actos sejam homenageados por actos tais como os que acabámos

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de presenciar, o funeral preparado pelo Estado, ainda que as virtudes de tais


homens não dependam, para serem justamente apreciadas, dum único fac‑
tor, os dotes oratórios, bons ou maus, dum só homem. [2] É de facto difícil
falar com moderação sobre tudo isto no momento em que ainda é complica‑
do verificar com exactidão o que é verdade. Porque o homem que conhece
os factos e os escuta com simpatia pode mesmo assim pensar que eles não
foram descritos com a grandeza que ele desejava ou sabia que eles mereciam.
E o que os não conhece, sempre que ouvir qualquer coisa que ultrapassa as
suas capacidades naturais, por inveja, vai pensar que é tudo um exagero. De
facto, elogios feitos por outros só são aceitáveis até ao ponto em que cada
um pensa que pode fazer o que ouve dizer que foi feito. Porém aquilo que
ultrapassa esta circunstância, provoca inveja e incredulidade. [3] Mas uma
vez que isto foi aprovado pelos antigos como um acto nobre, também eu,
obedecendo a este costume, tenho de tentar satisfazer o melhor que puder
os desejos e as expectativas de cada um de vós.
XXXVI. «Vou falar primeiro dos nossos antepassados, pois é justo e
apropriado que em ocasião como a presente lhes seja dada a distinção desta
memória. Na verdade, até hoje, em sucessivas gerações, eles viveram sem‑
pre nestas terras e graças ao seu esforço legaram­‑nas livres à posteridade.
[2] E se aqueles merecem louvor, mais ainda os nossos pais que ganharam,
não sem dificuldade, para além daquilo que tinham recebido, o império
que agora temos e que eles nos legaram como herança. [3] E a maior parte
deste império, nós próprios que estamos no vigor da vida, aumentámos e
também preparámos a cidade por todos os meios para ser completamente
auto­‑suficiente quer para tempos de guerra quer para tempos de paz. [4]
Contudo, não quero, nem vou falar de feitos militares conhecidos de todos
nós que nos deram o que temos hoje, nem tão­‑pouco vou lembrar como nós
ou os nossos pais corajosamente confrontámos agressões inimigas, fossem
elas de origem bárbara ou helénica. Mas antes de fazer o elogio dos mortos,
vou descrever que princípios de acção nos trouxeram à presente situação e
com que instituições políticas e com que costumes nos tornámos um grande
império, porque penso que este é o tema adequado ao momento presente e
que o povo aqui reunido, de cidadãos e de estrangeiros, pode escutar com
proveito.
XXXVII. «Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior
às leis dos nossos vizinhos mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por
eles. E chama­‑se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses
não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que
respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais; no que respeita

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a prestígio pessoal, quando alguém se distingue em alguma coisa, não é pre‑


ferido para honras públicas mais por posição de classe do que por mérito;
por outro lado, no que respeita a falta de riqueza pessoal, o cidadão que
tem aptidão para servir a cidade nunca, por causa da sua condição humilde,
é impedido de alcançar a dignidade merecida. [2] Governamos a coisa públi‑
ca em liberdade e nos negócios de cada dia não agimos com desconfiança
nem reagimos violentamente contra um vizinho se ele segue as suas prefe‑
rências, nem tão­‑pouco o olhamos com antipatia que não fere, mas magoa.
[3] Mas enquanto na vida privada convivemos com tolerância, sem nos sen‑
tirmos ofendidos, na vida pública não desrespeitamos as leis mais por medo,
porque obedecemos sempre a quem tem o poder e também às leis, sobretu‑
do as que foram promulgadas para ajudar aqueles que são vítimas de injustiça
e também as que, embora não sendo escritas, trazem desonra que é por todos
reconhecida.
XXXVIII. «Para além disto, nós proporcionamos muitas formas para o
espírito se repousar dos trabalhos do dia­‑a­‑dia, com jogos e sacrifícios duran‑
te todo o ano e com edifícios particulares elegantes; o prazer que vem de os
contemplar mantém os sofrimentos à distância. [2] Também, em virtude da
grandeza da nossa cidade, todos os produtos de todo o mundo entram aqui e
o resultado é que gozamos com o mesmo prazer produtos gerados por nós ou
por povos de outras terras.
XXXIX. «E se falarmos das práticas de guerra, também nestas somos
diferentes dos nossos adversários. Abrimos a nossa cidade a todo o mundo
e não existem, como em Esparta, medidas para manter os estrangeiros fora
da cidade, nem impedimos ninguém de aprender ou ver aquilo que, porque
não foi escondido, pode ajudar qualquer dos nossos inimigos que o veja; não
confiamos mais em preparativos e estratagemas do que na coragem que exis‑
te em cada um de nós, quando chamados a agir. Também no que respeita
a educação, enquanto desde crianças, eles por meio de dolorosa disciplina,
procuram tornar­‑se homens de coragem, nós, que levamos uma vida equi‑
librada, estamos não menos prontos a enfrentar os mesmos perigos. E aqui
está a prova. [2] Quando os Lacedemónios invadem o nosso território fazem­
‑no com a ajuda de todos os seus aliados, e nós, ao atacarmos em território
alheio, vizinhos que estão a defender as suas casas, sem dificuldade saímos
vencedores. [3] Até hoje nenhum dos nossos inimigos se pôde confrontar ao
mesmo tempo com todas as nossas forças, porque nós escolhemos desen‑
volver a nossa marinha e também porque, por terra, enviamos tropas nossas
para muitos locais diferentes. Mas eles, se travam batalha com um pequeno
contingente das nossas forças e dominam uns poucos de nós, gabam­‑se de

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tucídides 267

ter desbaratado a totalidade das nossas forças, e se somos nós os vencedores,


dizem que estavam em situação de inferioridade em relação a todos nós. [4]
Se é mais por facilidade de temperamento do que por trabalho árduo e não
tanto pela obrigação de obedecer às leis, como pela nossa maneira de ser,
que podemos ser corajosos, é mais vantajoso para nós não nos preocupar‑
mos com desgraças que podem vir a acontecer porque, quando estas aconte‑
cem, mostramos não ser mais covardes do que aqueles que se sentem sempre
angustiados pelo medo. Assim a nossa cidade é digna de admiração por todas
estas características e também por muitas outras.
XL. «Na verdade, nós cultivamos a beleza com simplicidade e o saber
sem fraqueza. Riqueza nós usamos mais como oportunidade para agir do
que como assunto para nos gabarmos. Para nós, admitir a pobreza não é ver‑
gonhoso, mas não tentar escapar a ela pelo trabalho, já é. [2] Entre nós é pos‑
sível que uns cidadãos tenham tanto interesse pelos negócios privados como
pelos públicos e que outros, embora mais virados para os seus próprios negó‑
cios, mantenham não menos interesse pelos assuntos públicos. De facto, nós
somos o único povo que pensa que um cidadão que não participa na vida
pública não é apolítico mas sim inútil no que diz respeito aos interesses da
cidade. E também somos os únicos que não só escolhemos mas verdadeira‑
mente reflectimos sobre os negócios do Estado e não somos de opinião de
que estas reflexões são prejudiciais a uma intervenção em qualquer acção,
sim, porque o mal vem de não se ter feito um plano antes de se entrar em
acção. [3] Na verdade, temos isto de diferente em relação a outros povos; por
um lado, somos resolutos, por outro, reflectimos naquilo que vamos tentar
fazer, enquanto outros homens têm a coragem que a ignorância lhes traz, e a
hesitação é causada pela reflexão. Mas aqueles que são julgados como os mais
fortes na sua alma são justamente os que conhecem com maior segurança
o que é perigoso e o que é agradável e por isso mesmo não voltam as costas
aos perigos. [4] Também no que diz respeito a fazer bem, somos o oposto de
outros homens, pois não é recebendo favores, mas sim concedendo­‑os que
nós arranjamos amigos. Na verdade, quem concede o favor está sempre em
posição superior, pois que o favor concedido num acto de benfeitoria ajuda
aquele a quem é concedido; mas o que o recebe está em posição inferior,
sabendo que quando o retribuir, não é como um favor, mas sim como paga‑
mento de uma dívida. [5] Somos também os únicos que prestamos ajuda não
com a ideia de obter vantagens para nós mas pela crença que temos na nossa
visão de liberdade.
XLI. «Em resumo, eu digo que não só a nossa cidade serve de exemplo a
toda a Hélade, mas também, na minha opinião, cada um de nós, Atenienses,

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como indivíduo, na maioria dos casos, é exemplo do cidadão que cuida de


si próprio com brandura e habilidade. [2] E que isto não é presunção minha
inventada para esta ocasião, mas sim a pura verdade dos factos, é provado
pelo poder da nossa cidade adquirido como consequência desta forma de
estar. [3] De facto, Atenas é a única cidade que, posta à prova, é melhor do
que a fama que tem e é também a única que nem dá aos inimigos que a ata‑
cam razão para se sentirem humilhados por causa do que sofreram às nos‑
sas mãos, nem, a quem lhe paga tributo, motivo para a criticarem como não
sendo ela merecedora. [4] Porque somos poderosos, e disto temos dado mui‑
tas provas, seremos olhados com admiração não só pelas gentes de hoje, mas
também pelas gerações vindouras. E não precisamos de um Homero para
nos elogiar, nem de qualquer outro poeta, cuja poesia encantará no momen‑
to em que é escrita, mas será desmentida pela verdade dos factos, pois forçá‑
mos todo o mar e toda a terra a conceder acesso à nossa bravura e por todo
o lado deixámos monumentos que para sempre conservarão a memória dos
nossos feitos, bons e maus. [5] É pois esta a cidade pela qual estes homens
combateram e morreram, julgando que era seu dever não deixar que ela fosse
conquistada pelo inimigo; é justo também que os sobreviventes estejam
prontos também a sacrificar­‑se por ela.

XLII. «É por esta razão que me demorei mais a falar da grandeza da nossa
cidade, querendo mostrar­‑vos que a nossa luta é diferente da luta dos que não
têm os mesmos valores que nós, e também estabelecer com testemunhos
incontestáveis o elogio destes homens que agora celebro. [2] Na verdade,
grande parte deste já está feito, pois quando fiz o elogio da cidade, as virtu‑
des que a honram são as destes homens e doutros como estes e a fama dos
feitos daqueles mostrou a muitos Helenos que estes não poderiam nunca ser
igualados. Também me parece que ao apontar para a coragem de um guerrei‑
ro se tem de falar do que primeiro foi revelado e agora, por fim, da sua morte
que foi confirmada. [3] E até para os que não agiram com o mesmo valor,
é justo tornar pública a bravura com que combateram por Atenas contra os
seus inimigos. Na realidade, substituindo o mal pelo bem, ajudaram a causa
comum mais do que a prejudicaram com o seu comportamento individual.
[4] Nenhum destes homens, pelo prazer de gozar a riqueza ou na expectati‑
va de escapar à pobreza, se tornou um comodista, como se escapar à morte
pudesse enriquecê­‑lo e adiar o sofrimento. Mas tendo tomado o castigo dos
inimigos como bem mais desejável do que isto, e ao mesmo tempo conside‑
rando aquele como o mais glorioso dos perigos, escolheram vingar­‑se do ini‑
migo, abandonando os outros interesses, deixando a esperança duma pros‑

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peridade incerta para o futuro, mas confiando em si próprios para a tarefa


que os enfrentava. E assim, quando o momento de combate chegou, decidi‑
ram que era melhor defenderem­‑se e sofrerem do que fugir para se conserva‑
rem vivos; escaparam assim à desonra de tal decisão e aguentaram o ataque
com o seu próprio corpo; portanto, mais no auge da sua glória do que do seu
medo, foi assim que deixaram este mundo.
XLIII. «Estes homens morreram de maneira que honra a nossa cidade.
E vós que estais vivos, muito embora por certo pedindo aos deuses um fim
mais favorável, deveis enfrentar o inimigo com a mesma coragem, mas sem dar
atenção aos benefícios que já conheceis, sobre os quais alguém pode fazer­‑vos
um longo discurso enaltecendo a honra de defender a cidade dos inimigos; vós
deveis sim contemplá­‑la em cada dia na grandeza do seu poder e tornar­‑vos
seus amantes. E quando compreenderdes bem essa grandeza, considerai que
homens corajosos, sabedores dos seus deveres, conscientes do sentimento de
honra em acção, fizeram estas coisas para si próprios e, apesar da probabilida‑
de de insucesso, decidiram que a cidade não merecia ser privada da sua cora‑
gem e assim concederam­‑lhe, servindo­‑a, a melhor oferta que podiam dar­‑lhe.
[2] Na realidade, ao sacrificar as suas vidas pela causa comum, eles obtiveram
a admiração que nunca morre e o mais ilustre de todos os túmulos, não aquele
em que os seus corpos jazem sepultados, mas sim aquele em que a glória deles
fica guardada como memorial para em cada oportunidade ser celebrada com
palavras ou emulada em acções. [3] O mundo inteiro é de verdade o túmulo
dos homens famosos, e não é só o epitáfio gravado nas pedras tumulares na
pátria onde nasceram, mas também a memória não escrita que em terras que
não são as suas comemora mais a sua coragem do que as suas acções. [4] E vós
que seguistes o seu exemplo, e decidistes que felicidade é liberdade e liberdade
é coragem, não hesiteis perante os perigos da guerra. [5] Na verdade, os des‑
graçados não podem dar a sua vida de maneira mais digna, eles que não têm
nada de bem a esperar, mas o mesmo não pode dizer­‑se daqueles para quem,
no tempo que ainda têm para viver, existe sempre a possibilidade de mudança
de fortuna, ou daqueles que, se falharem nisto, sofrerão consequências muito
sérias. [6] Para um homem de carácter, adversidade com covardia é mais dolo‑
rosa do que a morte, que chega de repente sem ser prevista, quando ainda se
tem vigor e uma esperança em comum.
XLIV. «Por esta razão, não são pêsames mas sim palavras de conforto
que vou dirigir aos pais destes homens aqui presentes, pois sabem que passa‑
ram muitas vicissitudes. Boa sorte é daqueles homens que, como estes, têm
um fim glorioso, muito embora isto vos cause tristeza, e também que tenham
sido felizes na vida e tenham um fim condigno dela. [2] No entanto, eu sei

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que é difícil convencer­‑vos disto, quando muitas vezes os sucessos de outros,


com que em tempos vos alegrastes, vos lembrarem a sua memória, porque o
sofrimento existe não por causa do que a pessoa foi privada de experimentar,
mas sim por causa do que lhe foi tirado e que já tinha experimentado. [3]
Aqueles que estão ainda em idade de ter mais filhos devem tê­‑los; na verda‑
de, os filhos que nascerem daqui para o futuro serão para vós motivo para
não vos lembrardes tanto dos que já partiram, e para a nossa cidade trarão
duplo benefício: não a deixam despovoada e asseguram a sua estabilidade.
De facto, só são imparciais e justos os pareceres dos homens que os dão,
tendo entregado à causa comum os seus próprios filhos. [4] Quanto a vós,
que já sois de mais idade, considerai como ganho a maior parte da vida que já
vivestes e em que éreis felizes e, como o resto do tempo que vos resta vai ser
breve, aliviai o vosso sofrimento por meio da fama destes. Na realidade, só
o culto da honra não envelhece e não são riquezas, como dizem alguns, mas
sim honra que dá prazer quando se chega à idade.
XLV. «Para vós, filhos ou irmãos destes homens que estais aqui presen‑
tes, eu vejo que o conflito é grande uma vez que o costume é louvar quem já
não vive; ainda que com dificuldade vos mostreis superiores em coragem,
não sereis nunca apreciados como iguais mas sim até como um pouco infe‑
riores. A verdade é que os vivos são objecto de inveja por parte dos seus rivais,
enquanto os que foram afastados do nosso caminho gozam de apreço indis‑
cutível. [2] Se me é permitido recordar também a virtude feminina, como
a das mulheres que acabaram de ficar viúvas, vou dar­‑lhes com brevidade o
seguinte conselho: grande será a vossa glória se não ficar abaixo das qualida‑
des que a natureza vos deu e se o vosso bom nome não se prestar a ser falado
entre os homens em louvor ou em má­‑língua.
XLVI. «Obedecendo ao nosso costume, proferi as palavras que achei
apropriadas a esta ocasião e, com os nossos actos estes homens, cujo funeral
agora fazemos, já foram celebrados; também os filhos deles a nossa cidade
vai manter com fundos públicos até chegarem à maior idade, concedendo
assim aos mortos e aos seus sobreviventes como prémio destas lutas uma
coroa benéfica para todos. Na verdade, onde as recompensas da coragem são
as melhores, aí existem os melhores cidadãos. [2] E agora, assim que cada um
de nós concluir as suas lamentações, podeis regressar às vossas casas.»

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VERGÍLIO. «Bucólica I», in Bucólicas. Tradução de Maria Isabel Rebelo
Gonçalves. [século i a.C.] 1996. Lisboa: Verbo. 27­‑29.

A «Bucólica I» evoca os malefícios da guerra civil.


Dois pastores conversam sobre a sua vida; Melibeu lamenta­‑se, porque
todas as suas terras foram confiscadas e entregues a veteranos do exército;
Títiro encontrou em Roma um jovem protector e pode, por isso, desfrutar
em paz os prazeres da vida pastoril, cantar a sua amada e gozar a fresca som‑
bra das árvores.

Melibeu — Ó Títiro, deitado sob a copa de uma faia frondosa, ensaias um


poema silvestre numa flauta singela. Nós deixamos as fronteiras e os
queridos campos da pátria. Somos expulsos da nossa terra. Tu, Títiro,
à sombra, tranquilo, ensinas os bosques a cantar a formosa Amarílis.
Títiro — Foi um deus, Melibeu, quem nos concedeu estes lazeres. Sim,
para mim ele será sempre um deus: tenros cordeiros dos nossos redis
banharão muitas vezes com sangue o seu altar. Como vês, permitiu que
as minhas vacas possam andar por aí e que eu próprio possa ensaiar o
que quiser com a minha flauta rústica.
Melibeu — Não te invejo, espanto­‑me sobretudo. Há tanto tempo que só
anda confusão por todos estes campos. Inquieto, vou conduzindo as
minhas cabrinhas. Até esta levo a custo, Títiro. Há pouco, entre densas
aveleiras, esforçando­‑se sobre uma pedra dura, deixou aqui dois cabri‑
tinhos, esperança do rebanho. Se não fosse fraco de cabeça, lembrar­
‑me­‑ia de que muitas vezes anunciaram este mal os carvalhos atingidos
pelos raios do céu. Mas diz­‑me, Títiro, quem é este teu deus.
Títiro — Melibeu, eu julgava, pobre tolo, que a cidade a que chamam Roma
era semelhante a esta nossa, para onde nós, pastores, costumamos mui‑
tas vezes encaminhar os tenros cordeiros. Sabia que os cachorros eram
semelhantes aos cães e às mães os cabritos. Por isso, costumava compa‑
rar as coisas grandes com as pequenas. Na verdade, porém, Roma ergue
tanto a cabeça acima das outras cidades quanto os ciprestes acima dos
flexíveis viburnos.

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Melibeu — E qual foi o grande motivo de veres Roma?


Títiro — A liberdade, que no entanto só tarde me olhou, já meio desinte‑
ressado, quando a barba caía mais branca ao ser cortada. Mas olhou­
‑me, apesar de tudo, e veio tempo depois, desde que Amarílis nos tem
e Galateia se afastou. Confesso que enquanto Galateia me tinha não
havia esperança de liberdade, nem qualquer cuidado com o pecúlio.
Embora saíssem muitas vítimas dos meus cercados e eu moldasse quei‑
jo gordo para a cidade ingrata, nunca voltava para casa com a mão direi‑
ta carregada de dinheiro.
Melibeu — Perguntava a mim próprio, Amarílis, porque invocavas, tão
triste, os deuses e para quem é que deixavas os frutos pendurados nas
árvores. Títiro estava longe. Até os pinheiros, até as fontes, até estes
arvoredos, Títiro, te chamavam.
Títiro — Que podia fazer? Não conseguia sair da escravidão, nem conhe‑
cer noutros lugares deuses assim propícios. Mas em Roma, Melibeu,
eu vi aquele jovem para quem os nossos altares fumegam doze dias, ao
longo do ano. Aqui, a rogos meus, foi quem primeiro me deu esta res‑
posta: «Apascentai os bois como antes, rapazes, e criai touros.»
Melibeu — Velho com sorte! Os campos, portanto, continuarão teus.
E para ti são bastante grandes, apesar de a pedra nua e um pântano com
junco limoso cobrirem as pastagens. As ovelhas prenhes não se deixa‑
rão tentar por pastagens estranhas, nem sofrerão contágios perigosos
do rebanho vizinho. Velho com sorte! Aqui, entre rios conhecidos e
fontes sagradas, gozarás a frescura da sombra. Aqui, com suave mur‑
múrio, convidar­‑te­‑á ao sono o cercado junto do carreiro vizinho, onde
sempre as flores de salgueiro são libadas por abelhas do Hibla. Daqui,
debaixo de um alto penedo, cantará para os ares o desfolhador e, entre‑
tanto, nem os roucos pombos, teus encantos, nem a rola deixarão de
gemer do alto do ulmeiro.
Títiro — Antes que o rosto dele se apague no nosso coração, os veados
ligeiros pastarão no céu, as ondas deixarão nas praias peixes reluzentes
e, saindo ambos das suas fronteiras, o exilado parto beberá o Árar e a
Germânia o Tigre!
Melibeu — E nós iremos daqui, uns para os Africanos sequiosos, outros
para a Cítia, e viremos para o Oxo que arrasta greda ou para os Britanos,
tão separados de todo o mundo. Ah! Depois de quanto tempo, depois
de quantos anos, voltarei a ver a minha pátria, o tecto da minha choupa‑
na coberto de colmo e as searas, meu reino? Possuirá estes meus alquei‑
ves, tão cuidados, algum soldado ímpio? Possuirá algum bárbaro estas

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vergílio 273

searas? Ah! para onde a discórdia civil conduziu os infelizes cidadãos!


Foi para esta gente que semeámos os nossos campos?
Enxerta agora as tuas pereiras, Melibeu, alinha as videiras!
Vai, rebanho tão feliz noutros tempos; ide, minhas cabrinhas! Depois
disto, estendido em verde gruta, não voltarei a ver­‑vos ao longe, empo‑
leiradas nos penedos com silvas. Não cantarei mais poemas. Comigo a
apascentar­‑vos, cabrinhas, não voltareis a colher o codesso em flor ou os
amargos salgueiros!
Títiro — Poderias, entretanto, passar esta noite comigo, sobre verde
folhagem. Tenho frutos maduros, castanhas macias e muito queijo fres‑
co. E, ao longe, já fumegam os telhados das quintas e as sombras caem,
cada vez maiores, do alto dos montes.

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W.B. YEATS. «A ilha do lago de Innisfree», in Uma Antologia. Tradução de
João Agostinho Baptista. [1890] 1996. Lisboa: Assírio & Alvim. 13.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Sim, partirei já, partirei para Innisfree,


E aí uma pequena cabana edificarei, uma cabana de argila e canas:
Plantarei nove renques de feijão e haverá uma colmeia,
E solitário entre o rumor das abelhas viverei.
E alguma paz desfrutarei, porque como lenta gota é a paz,
Desprendendo­‑se dos véus da manhã até ao lugar onde o grilo canta;
Eis a meia­‑noite de esplendor, o meio­‑dia de fulgurante púrpura,
E uma plenitude de asas cantantes ao entardecer.
Ergo­‑me e vou, parto com a noite, parto com o dia,
Oiço as águas do lago, o seu murmúrio junto à costa;
Seja pelos caminhos, seja pelas sombrias ruas,
Oiço esse murmúrio no mais fundo do coração.

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(8 )
C ONFL IT O E V I O L ÊN C I A

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Anna AKHMÁTOVA. [Foi terrível viver naquela casa], in Só o Sangue


Cheira a Sangue. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. [1921] 2000.
Lisboa: Assírio & Alvim. 23.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Foi terrível viver naquela casa.


Nem a rutilância patriarcal
da lareira, nem o berço do meu filho,
nem o sermos jovens, nem o segredo
de tantos projectos, nem o vinho,
nos podia amainar aquele medo.
Assim, aprendi a brincar com ele
e deixava a minha gota de vinho,
meus pedacinhos de pão, para aquele
que arranhava à porta pelas noites
como um cão, espreitava pela janela
baixa, e nós tentávamos não ver
o que se passava atrás dos espelhos,
que passos de chumbo faziam gemer,
como clemência implorada,
aqueles degraus escuros e velhos.
Dizias, na cara o sorrir dorido:
«A quem levam eles pela escada?»

Diz — agora estás lá onde tudo se sabe —:

Que mais viveu, além de nós, naquela casa?

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Leopoldo ALAS «CLARÍN». A Corregedora. Tradução de Joana Morais


Varela. [1884-1885] 1988. Lisboa: Contexto. 162-167.

Um passeio pelo campo, depois da confissão, a sós, numa tarde tão húmida,
era algo que dava muito que pensar a Petra. Não desejava outra coisa, mas
insistia em opor-se para ver até onde chegava o capricho da patroa. Outras
tinham começado assim.
Desceram pela Rua da Águia. Lá em baixo passava, na perpendicular,
a estrada de Madrid.
— Por aí, não — disse a ama. — Por aqui; vamos à fonte de Mari-Pepa.
— A estas horas não há ninguém por estes sítios, e o chão já há-de estar
seco; mas olhe que ainda lá bate o sol. Ora veja: ali está a fonte.
Petra apontava para uma zona da várzea onde havia uma orla de álamos
que, naquele momento, iluminados pelos raios oblíquos do poente, pareciam
de ouro e prata. O caminho era apertado, mas firme e plano; de um lado e dou‑
tro estendiam-se prados de erva alta e espessa e campos de hortaliça. Hortas e
prados regam-nos as águas da cidade e são mais férteis do que toda a campina;
os prados, de um verde carregado, com cambiantes azulados, quase pretos, pa‑
recem de um veludo muito espesso. Reflectindo os raios do sol no ocaso, quase
deslumbram. Era exactamente assim que brilhavam naquela altura. Ana franzia
os olhos, deliciada, como que a banhar-se na luz depurada pela frescura do solo.
Sebes de madressilva e de amoreira orlavam o caminho, e, de quando
em quando, erguia-se o tronco de um negrilho, robusto e atarracado, enor‑
me cabeçorra como um ás de paus em cuja calvície despontavam meia dúzia
de rebentos, frágeis varetas que a brisa sacudia, fazendo ressoar como casta‑
nholas as folhas solitárias dos extremos.
— Repare, minha senhora, olhe que coisa mais esquisita! Estes ramos
todos só têm uma folha: a mais alta, a da ponta...
Depois desta observação e doutras do mesmo teor, Petra parava para
apanhar florzinhas nas sebes, picava-se nos dedos, ficava com o vestido pre‑
so nas silvas, gritava, ria; ia ganhando certa confiança, ao ver-se sozinha com
a patroa, no meio dos prados, por caminhos de má fama, solitários, que sa‑
biam dela tantas coisas dignas de serem caladas.

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leopoldo alas «clarín» 279

Petra não se fiava na repentina devoção da Corregedora.


«Mais de uma hora de confissão! A carinha a modos que iluminada
quando se levantou depois da absolvição... e agora este passeio ao campo...
e a rir... e a permitir-lhe certas liberdades... Não, não me fio; o melhor é
esperar.»
A criada de Ana era amiga de levar cálculos e fantasias às últimas con‑
sequências. Já via ao longe gorjetas chorudas, em moedas de ouro. Mas o
rumo religioso que o caso estava tomar — para ela, era um dado adquirido
que alguma coisa haveria — trazia complicações que constituíam novidade
para a própria Petra, que vira o que ela e Deus e aqueles e outros caminhos
solitários sabiam.
Chegaram à fonte de Mari-Pepa. Ficava à sombra de robustos casta‑
nheiros, que tinham a casca crivada de cicatrizes, umas, em forma de ini‑
ciais, e outras, desenhando nomes completos. A orla de álamos que se via
ao longe servia como que de muralha para tornar o lugar mais escondido e
dar-lhe sombra, à hora do pôr-do-sol; a leste levantava-se uma lomba que
abrigava o aprazível retiro formado pela natureza em torno da nascente.
Embora situada num baixio, via-se dali uma paisagem magnífica, porque,
para ocidente, outras ondas do terreno que se assemelhavam a um marulho
de verdura deixavam alcançar os mais longínquos confins, e ao longe, mer‑
gulhado na neblina, o Corfín, uma serra que escondia as cristas nas nuvens
e caía a pique sobre vales ocultos atrás das colinas e montes mais próximos.
O sol obliquava o ambiente em que parecia flutuar um pó luminoso, por
detrás do qual aparecia o Corfín com uma cor violácea.
Ana sentou-se nas raízes descobertas de um castanheiro que dava som‑
bra à fonte. Contemplava as encostas da montanha iluminada como que por
fogos-de-bengala, e, quase entre sonhos, ouvia ali mesmo ao lado o murmú‑
rio discreto da nascente e da corrente que dela se precipitava para ir refres‑
car os prados. De ramo para ramo saltavam pardais e tentilhões, sempre de
bico aberto, mas nunca chegando a cantar decentemente, distraídos com
qualquer coisa, travessos, a chilrear em vão. De vez em quando, caíam fo‑
lhas secas dos ramos para a fonte; flutuavam às voltas, numa lenta marcha
e, aproximando-se da estreita abertura por onde a água saía, começavam a
deslizar rapidamente em linha recta e precipitavam-se na corrente, onde a
superfície lisa se convertia em ondulada prata. Uma alvéola (em Vetusta, la‑
vadeira) debicava no chão e brincava aos pés de Ana, sem medo nenhum, fia‑
da na agilidade das asas; dava voltas e voltas, varria o pó com a cauda, apro‑
ximava-se da água, bebia, chegava de um salto à sebe, escondia-se por um
momento entre os ramos mais baixos da amoreira, e, por pura curiosidade,

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280 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

voltava a aparecer, sempre alegre, sempre pespineta; quedou-se imóvel por


um momento, como que a decidir-se; e, de repente, assustada, só por medo,
sem o menor motivo, foi-se embora, com um voo rápido e direito ao princí‑
pio, ondulante e pausado depois, perdendo-se na atmosfera que o sol oblí‑
quo tingia de púrpura. Ana seguiu o voo da lavadeira com os olhos enquanto
pôde.
«Estes bichinhos», pensou, «sentem, amam e até são capazes de reflec‑
tir... de repente, este passarinho teve uma ideia; cansou-se da sombra e foi
à procura de luz, de calor, de espaço. Feliz dele! É tão natural cansarmo-
nos!» Ela própria, a Corregedora, se encontrava bem cansada da sombra em
que vivera toda a vida. Seria algo de novo, algo digno de ser amado o que o
Magistral lhe prometera? Quando lhe dissera que tivera tendências místicas
na adolescência mas que, depois, as tias e as amigas de Vetusta a tinham
feito desprezar aquela vã piedade, que respondera o Magistral? Bem se lem‑
brava; ainda tinha a zumbir nos ouvidos a voz doce que saía aos pedaços,
como que por uma peneira, pelos quadradinhos da grade do confessionário.
Dissera-lhe, com umas palavras muito eloquentes, que ela não conseguiria
repetir à letra, qualquer coisa como: «Minha filha: nem aqueles seus desejos
de procurar Deus antes de o conhecer eram de uma devoção acrisolada, nem
o desdém com que depois foram maltratados tiveram chisquinha de pru‑
dência.» Fora mesmo assim, chisquinha, tinha a certeza. Percebia agora que
a eloquência do Magistral no confessionário não era como a que usava no
púlpito. No confessionário, aproveitava os termos familiares que tão bem
dizem certas coisas que ela nunca vira nos livros cheios de retórica. E tinha-
lhe feito uma comparação: «Se você, minha filha, estivesse a tomar banho
num rio e, ao nadar, ao revolver a água, na brincadeira, como se costuma
fazer, achasse uma pepita de ouro na areia, uma pepita pequeníssima que
nem sequer valesse uma peseta — ficava logo a pensar que estava milionária?
Ficava a pensar que essa descoberta a ia tornar rica? Que o rio ia passar a
arrastar milhares de moedas de cinco duros com a carinha do rei e que tudo
isso era para si? Claro que não; era completamente absurdo. Mas, só por
causa disso, ia deitar a pepita fora com desdém, continuar a brincar na água,
a dar aos braços e a fazer a corrente saltar quando lhe batesse com os pés,
sem nunca mais pensar naquele poucochinho de ouro que tinha encontrado
na areia?»
Estava muito bem comparado, sim senhor. Ela vira-se com o seu fato
de tomar banho, sem mangas, esbracejando no rio, à sombra de avelaneiras
e nogueiras, e na margem estava o Magistral com o roquete branquíssimo,
de joelhos, pedindo-lhe, de mãos postas, que não deitasse fora a pepita de

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leopoldo alas «clarín» 281

ouro. A eloquência era aquilo, era falar assim, fazendo ver o que se dizia.
Entusiasmara-se com o fluxo de palavras doces, novas, repletas de uma ale‑
gria celestial; abrira o coração diante daquele buraco atravessado de tabui‑
nhas. Também ela dissera muitas palavras que nunca usara na vida quando
falava com os outros. Então, o Magistral ficara calado lá dentro; e quando
terminou, a voz do confessionário tremia, ao dizer: «Minha filha, essa histó‑
ria das suas tristezas, dos seus sonhos, das suas apreensões, merece que eu
medite muito bem nela. Vê-se que tem uma alma nobre, e só porque neste
sítio não posso tributar elogios ao penitente é que me abstenho de assina‑
lar onde está o ouro e onde está o lodo... e fazê-la ver que há mais ouro do
que parece. No entanto, você está doente; toda a alma que aqui vem se en‑
contra doente. Não consigo perceber como há quem diga mal da confissão:
aparte o seu carácter de instituição divina, vendo-a apenas como matéria
de utilidade humana, você não compreende, como, aliás, qualquer pessoa
pode compreender, que este hospital das almas é necessário para os doen‑
tes de espírito?» O Magistral referira-se às consultas que havia nos jornais
protestantes para elucidar casos de consciência. «As senhoras protestantes,
que não têm pai espiritual, socorriam-se da imprensa. Não era ridículo?»
O Provisor sorrira com a voz.
E continuara dizendo, em substância, o seguinte: «Ela não devia ir para
ali apenas para pedir absolvição para os pecados; tal como o corpo, a alma
também tem uma terapêutica e uma higiene: o confessor é um médico higie‑
nista; mas, tal como o doente que não toma o remédio ou esconde a doença,
e tal como o homem são que não segue o regime que lhe é prescrito para
conservar a saúde, só fazem mal a si próprios, só se enganam a si mesmos,
também se engana e faz mal a si próprio o pecador que oculta os pecados, ou
não os confessa tal qual são, ou os examina depressa e mal, ou falta ao regi‑
me espiritual que lhe é imposto. Não basta uma conversa para curar a alma,
nem chegar ao confessionário com doenças velhas e maltratadas é querer
realmente curar-se. Aparte todo o preceito religioso, de tudo isto se deduzia
racionalmente a necessidade de uma pessoa se confessar com bastante fre‑
quência. Não se tratava de cumprir uma fórmula; isso não era a verdadeira
confissão. Era preciso escolher o confessor com cuidado, considerá-lo um
verdadeiro pai espiritual, como, com efeito, era; e, fora de todo o sentido
religioso, como irmão mais velho da alma, com quem se aliviam as penas e
a quem se comunicam os desejos, e as esperanças se afirmam e as dúvidas
se desvanecem. Se a religião não ordenasse tudo isso, ordená-lo-ia o senso
comum. A religião é toda ela razão, desde o dogma mais alto ao pormenor
menos importante do rito.» Aquela conformidade da fé e da razão encantava

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282 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

a Corregedora. Como é que, aos vinte e sete anos, nunca ouvira falar daqui‑
lo? Não se atrevera a perguntar ao Magistral, mas também havia muito bom
tempo para isso.
Um pardal com um grão de trigo no bico pôs-se à frente de Ana e atre‑
veu-se a olhá-la com insolência. A senhora lembrou-se do Arcipreste que
tinha o dom de se parecer com os pássaros.
«Ripamilán era bom homem; mas que maneira de confessar! Uma rotina
que nunca lhe ensinara nada. A não ser o casamento, mais nada conseguira
tirar daquelas confissões. O pobre senhor dizia que sabia de cor os pecados
da Corregedora e passava o tempo a interrompê-la com o seu eterno: ‘—
Bem, bem, adiante: e que mais? Adiante... reza três Pais-Nossos, uma Salve-
Rainha e dá esmolas aos pobres.’ Que homem estranho! Quando é que o
padre Cayetano lhe dissera que ela tinha este temperamento ou aquele? Mas
o Magistral, sim senhor, logo de seguida: dissera-lhe que ela era um tempera‑
mento especial, que tudo isso e muito mais tinha de ter em conta. Era uma
coisa totalmente nova.»
Para além disso, ficara muito lisonjeada ao notar que o padre Fermín lhe
falava como a uma pessoa instruída, como a um homem de letras: citara-lhe
autores, dando por evidente que os conhecia, e, quando usava sem querer
palavras técnicas, abstinha-se de lhas explicar.
«E que elevação! O que era a virtude? O que era a santidade? Isso fora
a parte melhor. A virtude era a beleza da alma, o asseio, o mais fácil para
os espíritos nobres e limpos. Para um preguiçoso inimigo da roupa limpa
e da água, o asseio é um tormento, uma impossibilidade; para uma pessoa
decente (assim dissera ele), uma necessidade das mais imperiosas da vida.
A religião não apresentava a virtude como uma senda árdua senão para os
que vivem escondidos no pecado; mas o homem novo está sempre à espe‑
ra dentro de nós; basta chamá-lo uma vez, para que acuda imediatamente.
A virtude começa com um pequeno esforço, embora contrário ao hábito ad‑
quirido; no dia seguinte, o esforço já é menos custoso e a eficácia maior de‑
vido à velocidade adquirida, devido à inércia do bem, e isso mecânico. Assim o
dissera o senhor padre De Pas. A virtude podia definir-se como o equilíbrio
estável da alma. Além do mais, era uma alegria; um bom dia de sol; lufadas
de ar fresco e perfumado; a alma virtuosa convertia-se numa gaiola onde,
alegres, gorgolejavam os dons do Espírito Santo animando o coração nas
tristezas da vida. A melancolia de que ela se queixava era a nostalgia da virtu‑
de a que chegaria, e pela qual o seu espírito suspirava como por uma pátria.
A virtude era uma questão de arte, de habilidade. Não se conseguia atingir só
com jejum, só com ascetismo; eram meios muito santos, mas havia outros.

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leopoldo alas «clarín» 283

Também na vida buliçosa das nossas cidades se pode aspirar à perfeição.»


(Nesse momento, a Corregedora imaginara aquela Vetusta que lhe parecia
tão pequena, tão monótona e triste como uma Babilónia.) Ela, que tinha lido
Santo Agostinho, não se lembrava de que o santo bispo gostava da música
religiosa não pelo deleite dos sentidos, mas porque lhe elevava a alma? Pois o
mesmo acontecia com todas as artes, com a contemplação da natureza, com
a leitura de obras históricas e filosóficas, que, sendo puras, podiam elevar a
alma e pô-la no diapasão da santidade, em uníssono com a virtude. Porque
não? Ah! E depois, quando se chegava mais acima, à segurança em si pró‑
prio, quando já não se temia a tentação, a não ser com um temor prudente,
muitos dos espectáculos que antes eram perigosos tornavam-se edificantes.
Assim, por exemplo, a leitura de livros proibidos, um veneno para os débeis,
era purga para os fortes. Ao que alcança certo grau de fortaleza, a presença
do mal, de certa maneira, também edifica, por contraste.» O Magistral não
dissera se ele próprio era tão forte como isso, mas ela supunha que sim. De
qualquer maneira, a virtude e a piedade eram coisas bem diferentes do que
lhe tinham ensinado as tias e a devoção vulgar (assim a tratou no íntimo) que
aprendera como uma rotina. Sim, a verdadeira religião era definitivamente
muito mais parecida com os seus sonhos de adolescente, com as visões do
monte do Loreto do que com a sonsa e estúpida disciplina que lhe tinham
ensinado como piedade séria e verdadeira. — E quantas mais lições lhe pro‑
metera o Magistral para o dia seguinte! Quantas coisas novas ia ficar a saber
e a sentir! E que felicidade ter uma alma irmã, irmã mais velha, a quem podia
falar de tais assuntos, sem dúvida, os mais interessantes, os mais elevados!
Da questão pessoal, isto é, dos pecados de Ana, pouco se falara; o Magistral
punha-se logo a generalizar. «Não tinha dados; primeiro precisava de conhe‑
cer a mulher.»
Ao recordar-se disso, Ana sentiu grandes escrúpulos. Dera-lhe a absol‑
vição e ela não lhe dissera nada da inclinação por Álvaro! «Sim, inclinação.
Agora que considerava vencido o impulso pecaminoso, queria olhá-lo bem
de frente. Era uma inclinação. Nada de disfarçar as faltas. Falara, sem preci‑
sar nada, de maus pensamentos, mas parecia-lhe indecoroso e injusto para
consigo mesma, e até grosseiro, personificar as tentações, dizer que se tra‑
tava de um único homem com estas e estas características e indicar os pe‑
rigos que havia. Mas deveria tê-lo dito? Talvez. Mas não teria sido pôr o dr.
Victor na berlinda sem quê nem para quê, posto que ela lhe era fiel de facto
e de vontade e o seria eternamente? De qualquer forma, sempre devia ter
especificado melhor essa parte da confissão. Estaria bem absolvida? Poderia
comungar tranquilamente no dia seguinte? Isso não, de maneira nenhuma;

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não comungaria; ficaria na cama, fingindo uma enxaqueca; de tarde iria fa‑
zer uma reconciliação e, no outro dia, sim, comungaria. Este era o plano me‑
lhor. Sentiu-se alegre como uma criança com a decisão de não comungar na
manhã seguinte; era como um dia feriado. Podia passar a noite a pensar em
religião, em virtude, na generalidade, dentro daquele novo sistema e sem ter
já de se preocupar com a maneira de receber dignamente o Senhor. Era um
adiamento; um alívio. Já não lhe parecia impróprio dar rédea solta à alegria,
a alegria causada unicamente por forças morais e que talvez fosse a alvorada
do esplendoroso dia da virtude.
«Que feliz devia ser o Magistral, imerso na luz da alegria virtuosa, a alma
cheia de pássaros a cantarem-lhe dentro do coração como coros de anjos!
Por isso é que ele tinha aquele eterno sorriso e se passeava com tanto garbo
pelo Espolón no meio de preguiçosos de alma, espíritos mesquinhos e... ve‑
tustenses. E que cor de saúde!
«E Vetusta, Vetusta encerrava aquele tesouro! E como é que o Magistral
ainda não era bispo? Ia-se lá saber! E porque é que ela, embora digna de outro
mundo, não era mais do que a senhora ex-Corregedora de Vetusta? O cenário
era o menos; a variedade, a beleza, estava nas almas. Aquele passarinho não
tem alma e voa com asas de penas, eu, que tenho espírito, hei-de voar com as
asas invisíveis do coração, através da atmosfera pura e radiante da virtude.»
Estremeceu de frio. Voltou à realidade. A sombra já invadira tudo. Por
detrás da cortina de álamos, o Sol escondia entre nuvens pardas e espessas
o último pedaço de lume que lhe ficara para trás como um farrapo de púr‑
pura. A sombra e o frio apareceram repentinamente. Um coro estridente
de rãs despedia-se do sol num charco do prado mais próximo. Parecia um
hino de selvagens pagãos às trevas que se vinham aproximando do Oriente.
A Corregedora lembrou-se das matracas da Semana Santa, quando se apaga
a luz do triângulo misterioso e as cataratas do entusiasmo infantil brotam
com um estrépito horríssono.
— Petra! Petra! — gritou.
Estava sozinha. Onde teria ido a criada?
Um sapo, de cócoras, encarrapitado numa grossa raiz que saía da terra
como uma garra, observava a Corregedora. Tinha-o a um palmo do vestido.
Ana deu um grito, teve medo. Imaginou que o sapo estivera a ouvi-la pensar
e fazia pouco das suas ilusões.
— Petra! Petra!
A criada não respondia. O sapo olhava-a com uma insistência que a eno‑
java e a fazia sentir um pavor bastante tolo.

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anónimo 285

ANÓNIMO. «O ataque de Grendel», in Beowulf. An edition. Tradução


inédita de Angélica Varandas e Luísa Azuaga a partir da versão do inglês
antigo de Bruce Mitchell e Fred C. Robinson. [c. 1000] 1998. Oxford:
Blackwell. 71-75.

Então, do pântano, por penhascos enevoados,


chegou Grendel, carregando a ira de Deus.
Tencionava o terrível devastador da raça humana
a alguém armar cilada no ilustre salão.
Caminhou sob as nuvens até ao lugar que muito claramente conhecia,
salão do vinho, salão dourado dos homens,
revestido com folhas de ouro. Não era esta a primeira vez
que ele procurava a casa de Hrothgar.
Nos dias da sua vida, nunca, nem antes nem depois,
sorte tão adversa, tais defensores ele encontrara.
Chegou então ao salão este homem caminhante,
privado de alegrias. A porta abriu-se de repente,
sólida, de ferrolhos forjados no fogo, assim que as suas mãos nela tocaram;
intentando o mal, em toda a sua raiva, escancarou então
a boca do salão. De seguida, súbito,
avançou o inimigo pelo pavimento adornado.
Caminhava irado; nos olhos brilhava
uma luz horrenda que nem fogo.
Viu no salão muitos guerreiros dormindo,
parentes, todos juntos,
jovens heróis do mesmo clã. Então o seu espírito exultou:
tencionava o terrível adversário, antes que chegasse o dia,
ceifar a vida dos corpos
de cada um. Esperava-o, pensava,
um lauto festim. Não foi, porém, esse o seu destino.
Nunca mais se saciou com a raça dos homens
depois daquela noite. O poderoso parente de Hygelac1
observava como o cruel devastador,

1 Beowulf.

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286 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

com um ataque repentino, planeava prosseguir.


Não era intenção do adversário refrear-se,
antes, prontamente, à primeira, agarrou num guerreiro que dormia e,
sem contemplações, rasgou-o ferozmente em pedaços.
Quebrou-lhe as junções dos ossos, das veias bebeu-lhe o sangue,
voraz, às golfadas, em pecado; em breve, tinha
devorado o homem todo, já sem vida,
pés e mãos. Avançando, aproximou-se,
e procurou agarrar com suas mãos o intrépido guerreiro
em descanso, indo de encontro a ele,
inimigo, com a palma da mão estendida; ele, rápido, se apercebeu
das malévolas intenções e apertou-lhe o braço.
No mesmo instante, compreende o mestre dos crimes
que jamais encontrara na terra
no mundo todo, noutro homem,
uma mão tão forte; sentiu-se
aterrado; no peito crescia-lhe
um medo enorme, desmedido; devia fugir dali.
Nele só havia o desejo de escapar; queria fugir para um esconderijo,
voltar ao tumulto dos diabos. Esta era uma situação que ele na vida jamais
enfrentara.
Lembrou-se, então, o bom homem, o parente de Hygelac,
do seu discurso proferido ao entardecer; levantou-se firme
e segurou-o com força; os dedos estalavam.
O gigante tentava afastar-se, o nobre avançava mais um passo.
Cogitava o famoso infame em como conseguir escapar
para o mais longe que pudesse e daí, de seguida,
fugir para o seu esconderijo no pântano; sentia os seus dedos
nas mãos poderosas do inimigo. Fora uma amarga viagem
a que o terrível saqueador empreendera até Heorot.
O esplêndido salão ressoava. Grassou o terror nos guerreiros,
em todos os dinamarqueses, habitantes da cidadela,
nos mais bravos, em cada um deles. Enraivecidos estavam ambos,
os ferozes guardiões do salão. O salão ecoou.
Então foi verdadeiramente admirável que o salão do vinho
tenha resistido ao ardor da luta, que não tenha desabado
a maravilhosa morada; mas era tão firme,
dentro e fora, com barras de ferro
reforçadas com perícia. Aí, pelo chão espalhados,

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anónimo 287

muitos bancos de hidromel, como ouvi dizer,


adornados com ouro, aí lutavam os inimigos.
Nunca antes imaginaram os mais sábios dos Scyldings
que, alguma vez, um homem
a ele, esplendoroso, de empenas adornadas com chifres,
o pudesse derrubar, ou, com manha, destruir,
a não ser quando o abraço do fogo o engoliu e lançou nas chamas.
O rugido elevou-se assustador. Um temor terrível tomou conta
de todo e qualquer um dos dinamarqueses do Norte.
Vindo do salão, ouviram um plangor,
um horrendo cântico proferido pelo adversário de Deus,
deplorando a sua derrota, lamentando a sua dor,
prisioneiro do Inferno. Segurou-o com firmeza
aquele que era o mais forte dos homens
nos dias desta vida.
O defensor dos guerreiros estava decidido
a não deixar vivo o visitante voraz.
Não acreditava que, nos dias da sua vida, a qualquer pessoa
ele trouxesse algum proveito. Acorreram os guerreiros de Beowulf
brandindo repetidamente as suas espadas ancestrais,
desejavam do príncipe e senhor, líder lendário,
defender a vida, se possível lhes fosse.
Não sabiam, porém, quando se juntaram à refrega,
os ousados homens de batalha,
que, se tentassem decepar e procurar a alma do semeador de crimes,
na terra, das espadas de guerra
nem o melhor ferro era capaz de o atingir,
pois ele tinha lançado um feitiço sobre as espadas vitoriosas,
sobre todos os seus gumes. Não obstante, a sua morte,
naquele dia desta vida,
tinha de acontecer, desgraçadamente, e a estranha criatura,
sob o poder dos inimigos, ia partir para longe.
Então, descobriu aquele que a muitos previamente
tremendas injustiças e tanta violência causara
contra a raça dos homens – ele, hostil a Deus –
que o seu corpo já não lhe obedecia,
antes o destemido parente de Hygelac
o tinha nas mãos; cada um odiado pelo outro
enquanto vivos. Sentiu dores em todo o corpo

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288 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

o terrível adversário; no ombro havia


uma ferida profunda. Rasgaram-se os tendões,
romperam-se as junções dos ossos. A Beowulf foi
concedida a glória da batalha. Grendel teve de fugir,
ferido de morte, para debaixo das escarpas do pântano,
em desdita, procurando a sua morada. Sabia claramente
que chegara o fim da sua vida,
o fim dos seus dias.

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anónimo 289

ANÓNIMO. La Chanson de Roland. Tradução inédita de Cristina Almeida


Ribeiro. [c. 1080] 1990. Paris: Librairie Générale Française. 172-181.

168
Sente Rolando que a morte se aproxima: pelas orelhas lhe vai saindo o cére‑
bro. Pelos seus pares reza primeiro a Deus para que os chame a si, e depois
por si mesmo ao anjo Gabriel. Pega na trombeta, para que não haja censuras,
e em Durendal, a sua espada, com a outra mão; não pode ir mais longe que o
alcance de uma balestra, em direcção a Espanha vai por um campo lavrado.
No cimo de um pequeno monte, sob duas belas árvores, há quatro blocos
de mármore; na erva verde caiu de costas; ali desfaleceu, por­que a morte se
aproxima.

169
Altas são as montanhas e muito altas são as árvores. Há quatro blocos bri‑
lhantes de mármore. Na erva verde, o conde Rolando desfalece. Um sar‑
raceno observa-o todo o caminho, embora se finja morto, embora jaza no
meio dos outros, com o corpo e o rosto manchados de sangue; põe-se em pé
e apressa-se a correr. Belo e forte e de grande bravura, por orgulho comete
fatal loucura: agarra Rolando, o seu corpo, as suas armas, e diz: «Vencido foi
o sobrinho de Carlos! Esta espada levarei para a Arábia.» Ao puxá-la ele, o
conde apercebeu-se de alguma coisa.

170
Sente Rolando que ele a espada lhe tira, abre os olhos e diz-lhe: «Que eu saiba,
não és dos nossos!» Aperta a trombeta que não quer perder, atinge-o no elmo
que era de ouro e pedras preciosas: quebra o aço e o crânio e os ossos, fez­
‑lhe saltar da cabeça os dois olhos, fê-lo cair morto a seus pés. Depois, diz­
‑lhe: «Vil pagão, como ousaste agarrar-me, sem mais nem menos? Ninguém
o ouvirá dizer que não te tenha por louco. Parti a ponta da minha trombeta,
dela caíram o cristal e o ouro.»

171
Sente Rolando que a vista perdeu, põe-se em pé, reúne todas as forças que
pode; o seu rosto perdeu a cor. Na sua frente viu uma pedra: nela desfere
dez golpes, com tristeza e com raiva; o aço range, não se quebra, nem fende.

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290 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

«Ah!», diz o conde, «Santa Maria, ajuda-me! Ah! Durendal, tão boa, que infeli‑
cidade a vossa! Porque me perco, já não cuidarei de vós. Tantas vitórias obtive
convosco nos campos de batalha e tantas vastas terras conquistei, que agora
pertencem a Carlos, que tem a barba branca! Que não vos tenha nenhum
homem capaz de fugir à frente de outro! Pertencestes durante muito tempo
a um muito bom vassalo; nunca haverá igual na santa França.»

172
Rolando golpeou o bloco de sardónica: o aço range, não se parte, nem racha.
Quando vê que não pode quebrar a espada, põe-se a lamentá-la de si para si:
«Ah! Durendal, como és clara e brilhante! Contra o sol reluzes e flamejas!
Carlos estava nos vales de Maurienne, quando Deus do céu lhe ordenou, por
intermédio do seu anjo, que te desse a um conde comandante. Cingiu-ma
então o nobre e grande rei. Com ela lhe conquistei o Anjou e a Bretanha, com
ela lhe conquistei o Poitou e o Maine; com ela lhe conquistei a livre Norman‑
dia, com ela lhe conquistei a Provença e a Aquitânia e a Lombardia e toda a
România; com ela lhe conquistei a Baviera e toda a Flandres e a Bulgária e
toda a Polónia, Constantinopla, de que recebeu homenagem, e a Saxónia,
onde reina como senhor absoluto; com ela lhe conquistei a Escócia e a Irlan‑
da, e a Inglaterra, seu domínio privado; com ela conquistei tantos países e
terras que agora pertencem a Carlos, que tem a barba branca. Por esta espada
sinto dor e pesar: antes quero morrer que deixá-la aos pagãos; Deus, nosso
pai, não deixes envergonhar a França!»

173
Rolando golpeou uma pedra cinzenta, arranca dela mais do que eu vos sei
dizer. A espada range, não verga, nem quebra, ressaltou muito alto, em direc‑
ção ao céu. Quando o conde vê que não conseguirá quebrá-la, mui docemen‑
te a lamenta para si próprio: «Ah! Durendal, como és bela e santa! No teu
punho dourado há muitas relíquias: um dente de São Pedro e sangue de São
Basílio e cabelos de monsenhor São Dinis, um pouco das vestes de Santa
Maria. Não é justo que pagãos te empunhem; por cristãos deveis ser servi‑
da. Que não vos tenha nenhum cobarde! Por vós terei conquistado muitas
terras, que agora pertencem a Carlos, que tem a barba pujante; por elas é o
imperador celebrado e poderoso.»

174
Sente Rolando que a morte se apodera dele, que da cabeça lhe desce até ao
coração; para debaixo de um pinheiro foi correndo, na erva verde se deitou,

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anónimo 291

com a face contra a terra, debaixo de si põe a espada e a trombeta. Virou a


cabeça para os pagãos: fê-lo porque quer verdadeiramente que Carlos diga,
e toda a sua gente, que o nobre conde morreu como conquistador. Bate a sua
culpa com pequenos golpes repetidos, pelos seus pecados oferece o guante
a Deus.

175
Sente Rolando que o seu tempo se acaba. Voltado para Espanha está, num
monte escarpado; com uma das mãos bateu no peito: «Meu Deus, perante
o teu poder redentor, perdão pelos meus pecados, grandes e pequenos, que
cometi desde a hora em que nasci até este dia em que aqui estou ferido de
morte!» O guante direito estendeu a Deus; anjos do céu descem até ele.

176
O conde Rolando estendeu-se debaixo de um pinheiro, para Espanha voltou
o rosto. Várias coisas lhe vieram à memória: tantas terras que conquistou
como um bravo, a doce França, os homens da sua linhagem, Carlos Magno,
seu senhor, que o criou; não pode impedir-se de chorar e suspirar. Mas não
quer esquecer-se de si próprio; bate a sua culpa, pede perdão a Deus: «Pai
verdadeiro, que nunca mentiste, que São Lázaro ressuscitaste e Daniel dos
leões livraste, livra a minha alma de todos os perigos devidos aos pecados que
em vida cometi!» O guante direito ofereceu a Deus; São Gabriel por sua mão
o recebeu. Deixou pender a cabeça sobre o braço; de mãos postas, chegou
ao seu fim. Deus enviou-lhe o seu anjo Querubim e São Miguel do Perigo do
Mar; com eles veio até ele São Gabriel; a alma do conde levam para o Paraíso.

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292 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ludovico ARIOSTO. Excerto de «Canto XXIII», in Orlando Furioso.


Tradução de Margarida Periquito. [1512] 2008. Lisboa: Cavalo de Ferro.
381­‑382.

No meio da acre angústia lhe ocorreu


que, nesse mesmo leito em que jazia,
a ingrata dama com o amante seu,
sempre que queriam, ali se estendia.
Não menos tal colchão aborreceu,
nem dele se eleva com menor fobia,
que da erva aldeão que se deitara
para dormir, e com a cobra depara.

Aquele leito, a casa e o pastor,


em tanto ódio os teve de imediato
que, sem esperar da Lua ou do alvor
do novo dia poder ter ornato,
armas toma e corcel, e para o frescor
do bosque sai, onde é mais denso o mato;
quando vê que se encontra em solidão,
com gritos, urros, à dor dá vazão.

Com choros e gritos se manifesta;


de noite ou de dia não se dá paz.
Vilas, burgos evita; na floresta,
sobre o chão duro a descoberto jaz.
Causa­‑lhe espanto que tenha na testa
uma nascente de água tão vivaz,
e como é capaz de suspirar tanto;
e consigo mesmo a si diz no pranto:

— Não são lágrimas já, este licor


que dos meus olhos verto em quantidade.
Não acompanharam elas a dor:

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ludovico ariosto 293

acabaram, ia a dor em metade.


O fogo ora impele o vital humor,
que pela via dos olhos escapar há­‑de;
é ele que verto, e simultaneamente
à dor e à vida dará fim urgente.

Estes, que indício dão do meu tormento,


suspiros não são, que não são assim.
Tréguas têm eles; o meu lamento,
em meu peito, nunca tem ínterim.
Amor que me queima faz este vento,
quando bate as asas dentro de mim.
Com milagre, Amor, meu coração
em fogo tens, sem dar consumação?

O que no rosto pareço não sou:


o que Orlando era, morto é, sob a terra;
sua dama ingratíssima o matou;
atraiçoando­‑o, declarou­‑lhe a guerra.
Sou seu espírito, que dele se soltou,
que atormentado neste inferno erra,
para a sua sombra, que sozinha avança,
ser exemplo a quem no Amor põe esperança. —

Toda a noite do bosque houve horizonte;


e, quando despontou a diurna flama,
levou­‑o o seu destino àquela fonte
onde Medoro esculpiu o epigrama.
Ver a sua injúria escrita no monte
tanto o irou que nele não ficou grama
que não fosse ódio, raiva, ira assanhada;
mais não esperou: desembainhou a espada.

Cortou inscrito, pedra, e até ao céu


fez subir voando cada fragmento.
Pobre gruta e árvores que pareceu
terem de Angélica e Medoro assento!
Ficaram de modo a sombra ou aléu
não mais darem a pastor ou armento;

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294 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

e a fonte, que fora tão clara e pura,


contra tanta ira não foi segura;

ramo, pedra, terra, tronco arrancou,


nem parou de atirar para a onda funda;
de alto a baixo tanto a água turvou
que nunca mais foi nem clara nem munda.
Cansado enfim, o suor o encharcou;
resposta não dando a força iracunda
ao desdém, ódio fundo e acesa ira,
por terra cai, e olhando o céu suspira.

Cansado e angustiado ao fim cai na erva,


Fixa os olhos no céu e não se move.
Sem comer nem dormir, tal se conserva
Até que o Sol três vezes se renove.
De crescer não parou a dor proterva,
Que por fim todo o tino lhe remove.
Ao quarto dia, pelo furor movido,
de chapas e malhas ficou despido.

Aqui fica o elmo, além fica o escudo,


longe os arneses, mais longe a couraça;
as suas armas, em conclusão, tudo
aqui e acolá o bosque devassa.
Rasgou os panos, e mostra desnudo
o ventre, o peito e as costas onde passa;
começa a grande ânsia, e tão horrenda
que outra maior que esta se não desvenda.

De tanta raiva e furor foi tomado


que fica ofuscado todo o seu senso.
De empunhar a espada está deslembrado,
pois coisas espantosas faria, penso.
Mas nem dela, nem de serra ou machado
necessitava o seu vigor imenso.

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w.h. auden 295

W.H. AUDEN. [Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas], in
Colóquio Letras 165: Vozes da poesia europeia — III. Tradução de David
Mourão­‑Ferreira. [1939] 2003. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
161­‑162.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas;


Umas vivem em mansões, outras em tugúrios;
Não há contudo lugar para nós, meu amor, não há contudo lugar para nós.

Outrora uma pátria e pensávamos que isso era justo.


Olha o mapa, e ali a encontrarás;
Não mais podemos lá voltar, meu amor, não mais podemos lá voltar.

O cônsul deu um murro na mesa e disse:


«Se não têm passaporte, estão oficialmente mortos.»
Mas nós ainda estamos vivos, meu amor, mas nós ainda estamos vivos.

Aí em baixo, no adro da igreja, ergue­‑se um velho teixo;


Em cada primavera floresce de novo;
Velhos passaportes não podem fazê­‑lo, meu amor, velhos passaportes não
podem fazê­‑lo.

Fui a uma repartição; ofereceram­‑me uma cadeira;


Disseram­‑me polidamente para voltar no próximo ano;
Mas aonde iremos hoje, meu amor, mas aonde iremos hoje?

Fomos a um comício público; o orador levantou­‑se e disse:


«Se os deixarmos aqui ficar, hão­‑de roubar­‑nos o pão de cada dia»;
Estava a falar de ti e de mim, meu amor, estava a falar de ti e de mim.

Ouvimos um clamor que nem trovão retumbando no céu;


Era Hitler berrando através da Europa: «Eles têm de morrer!»
Oh, nós estávamos no seu pensamento, meu amor, nós estávamos no seu
pensamento.

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honoré de balzac 297

Honoré de BALZAC. Excerto de «Capítulo 9», in A Prima Bette. Tradução


de Sílvia Matos e Lemos. [1846] 2000. Mem Martins: Europa­‑América.
37-39.

Em 1837, após vinte e sete anos daquela vida, metade dela paga pela famí‑
lia Hulot e pelo tio Fischer, a prima Bette, resignada em ser uma nulidade,
deixava que a tratassem sem contemplações: recusava espontaneamente ir
aos grandes almoços e preferia a intimidade, que lhe permitia ter um certo
ascendente e evitar os tormentos do amor­‑próprio. Onde quer que fosse, em
casa do general Hulot, na de Crevel, na do jovem Hulot, na de Rivet, sucessor
dos Pons, que tinham voltado a fazer as pazes com ela, e a viam com simpatia,
na casa da baronesa, parecia estar na sua própria casa.
Onde quer que fosse, sabia domar os criados, com pequenas lembranças
dadas de quando em quando, entretendo­‑se sempre a falar um pouco com
eles antes de entrar na sala. A familiaridade com a qual se punha francamente
ao nível dos criados conciliava a sua benevolência subalterna, tão necessária
aos parasitas.
— É uma boa rapariga! — diziam todos.
A sua condescendência, sem limite quando ninguém a solicitava, era,
aliás, como a sua falsa cordialidade, necessária à sua situação.
Vendo­‑se à mercê de todos, acabara por compreender a vida; e, queren‑
do agradar a todos, ria com os jovens que simpatizavam com ela por uma
espécie de adulação que sempre os seduz; adivinhava e apoiava os seus dese‑
jos, tornava­‑se a intérprete, parecia uma boa confidente porque não tinha o
direito de os repreender. A absoluta discrição dava­‑lhe a confiança das pes‑
soas mais velhas porque possuía, como Ninon, qualidade viris.
Em geral, as confidências vão para baixo em vez de irem para cima. Nos
nossos segredos servimo­‑nos dos inferiores, muito mais do que dos superio‑
res; estes tornam­‑se assim os cúmplices dos nossos pensamentos, assistem às
nossas decisões; e é preciso pensar que Richelieu julgou ter chegado ao topo
quando lhe foi concedido o direito de assistir ao Conselho do rei.
Aquela pobre rapariga parecia, assim, ser escrava de todos, já que todos
a julgavam condenada a um absoluto mutismo. Ela própria se autonomeara

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298 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

confessora da família.
Só a baronesa, recordando os maus tratos de infância recebidos da prima,
mais forte que ela apesar de ser mais nova, conservava uma certa desconfian‑
ça. De resto, por pudor, teria confiado só a Deus as suas desditas domésticas.
Aqui talvez seja necessário observar que a casa da baronesa conservava
todo o seu esplendor aos olhos da prima Bette, que não reparava, como o
perfumista enriquecido, na miséria escrita em palavras claras nas poltronas
carcomidas, nos cortinados enegrecidos e nas sedas esgarçadas. Aconte‑
ce com os móveis com os quais estamos habituados o mesmo que aconte‑
ce connosco. Observando­‑nos todos os dias acabamos por julgar, como o
barão, que mudámos pouco, deixámos de ser novos, enquanto os outros
vêem uma cabeleira a rarear, acentos circunflexos na fronte e gordas almo‑
fadas no abdómen. Aquela casa, aos olhos da prima Bette, continuava ilu‑
minada pelos fogos­‑de­‑artifício das vitórias imperiais e, por isso, sempre
resplandecente.
Com o tempo, a prima Bette adquiriu manias de solteirona bastante
curiosas.
Assim, por exemplo, em vez de obedecer à moda, queria que esta se
adaptasse aos seus hábitos e se vergasse às suas fantasias retrógradas. Se a
baronesa lhe oferecia um chapéu novo, algum vestido de corte moderno,
imediatamente a prima Bette voltava a refazê­‑lo à sua maneira, estragando­
‑o e transformando­‑o num cruzamento entre a moda Império e os usos da
Lorena. O chapéu de trinta francos transformava­‑se num trapo, e o vestido
num farrapo.
Bette tinha, em relação a isto, uma obstinação de mula; só queria agra‑
dar a si própria e achava­‑se encantadora assim. E isto, se estava em perfeita
harmonia com a sua personalidade, enquanto a tornava numa solteirona da
cabeça aos pés, tornava­‑a tão ridícula que, mesmo com a maior boa vontade,
ninguém a podia convidar nos dias de gala.
O temperamento indócil, caprichoso, independente, a inexplicável sel‑
vajaria daquela rapariga, para a qual o barão arranjara quatro possíveis mari‑
dos (um empregado da sua administração, um major, um fornecedor de víve‑
res e um capitão reformado) e que rejeitara um artesão de passamanaria, que
depois enriqueceu, merecera­‑lhe a alcunha de Cabra, com que o barão a cha‑
mava, rindo. Mas essa alcunha não correspondia se não às bizarrias superfi‑
ciais, àqueles aspectos mutáveis que cada um apresenta aos outros na vida
social. Aquela rapariga na qual, após atenta observação, se podia descobrir o
lado feroz da classe camponesa, era sempre a criança que queria arrancar o
nariz à prima e, que, talvez, se se não tivesse tornado razoável, num parado‑

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honoré de balzac 299

xismo de ciúmes a teria matado. Só o conhecimento das leis e das sociedades


tinham domado aquela rapidez instintiva com que a gente do campo, como
os selvagens, passa do sentimento à acção.
Talvez este aspecto constitua a diferença que separa o homem primitivo
do homem civilizado. O selvagem só tem sentimentos, o homem civiliza‑
do sentimentos e ideias. Nos selvagens, o cérebro recebe, por assim dizer,
poucas impressões; pertence completamente ao sentimento que o invade,
enquanto, no homem civilizado, as ideias descem ao coração e o transfor‑
mam: o homem civilizado vota­‑ se a inúmeros interesses, a sentimentos
diversos, enquanto que o selvagem reconhece uma única ideia de cada vez.
Eis a causa da momentânea superioridade de uma criança sobre os pais, que
cessa assim que o desejo é apagado; enquanto que no homem próximo à
natureza aquela causa é contínua.
A prima Bette, a selvagem lorena, de natureza traiçoeira, pertencia exac‑
tamente àquela categoria de temperamentos, mais comuns do que se pensa
no povo e que podem explicar os comportamentos durante as revoluções.
No momento em que esta história começa, se a prima Bette tivesse dei‑
xado que a vestissem à moda, se, tal como as parisienses, se tivesse habituado
a seguir cada nova moda, teria sido apresentável e aceitável; mas era dura
como um pedaço de madeira. Ora, sem graça, a mulher em Paris não existe.
Por isso a cabeleira negra, os belos olhos duros, os traços severos do rosto,
a coloração enxuta de calabresa que faziam da prima Bette uma figura giot‑
tesca da qual uma verdadeira parisiense teria sabido tirar partido, e principal‑
mente a sua estranha indumentária, davam­‑lhe um aspecto bastante extraor‑
dinário de modo a fazê­‑la parecer­‑se, por vezes, com um daqueles macaqui‑
nhos vestidos de mulher que são levados por aí pelos pequenos saboianos.
Mas como Bette era conhecida pelas famílias que frequentava, liga‑
das por vínculos de parentesco, porque limitava àquele círculo a sua vida
em sociedade e gostava de ficar em sua própria casa, as suas bizarrias já não
espantavam ninguém, e fora do seu círculo desapareciam no imenso movi‑
mento das ruas parisienses, onde só se olha para as mulheres bonitas.

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300 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Thomas BERNHARD. O Sobrinho de Wittgenstein: Uma amizade. Tradução


de José A. Palma Caetano. [1982] 2000. Lisboa: Assírio & Alvim. 33­‑36.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Mas esta pessoa da minha vida não é o centro destas notas que escrevo sobre
o Paul, ainda que ela tenha desempenhado então, quando eu estava interna‑
do no Wilhelminenberg, isolado, segregado e dado como perdido, o papel
mais importante na minha vida, na minha existência, o centro destas notas é
o meu amigo Paul, então internado comigo no Wilhelminenberg e como eu
isolado, segregado e dado como perdido, que eu quero voltar ainda a repre‑
sentar com nitidez no meu espírito através destas notas, destes farrapos de
recordações, que para mim têm neste momento a finalidade de evidencia‑
rem, trazerem à lembrança não só a situação insolúvel do meu amigo, mas
também o meu próprio impasse nessa altura, porque, tal como o Paul tinha
entrado mais uma vez num dos becos sem saída da sua existência, também
eu tinha entrado ou, melhor dizendo, tinha sido impelido para um dos becos
sem saída em que na vida me encontrei. Tal como o Paul, eu tinha mais uma
vez, sou forçado a dizê­‑lo, exagerado e, portanto, sobrestimado e, portanto,
explorado a minha existência para além de todos os limites. Tal como o Paul,
eu tinha mais uma vez abusado de mim próprio para além de todas as minhas
possibilidades, abusado de tudo para além de todas as possibilidades com a
brutalidade doentia contra mim e contra tudo o que um dia destruiu o Paul
e que, exactamente como ao Paul, um dia me destruirá também, porque, tal
como o Paul sucumbiu devido à sobrestimação doentia de si próprio e do
mundo, eu hei­‑de sucumbir também, mais cedo ou mais tarde, devido à so‑
brestimação doentia de mim próprio e do mundo. Tal como o Paul, eu tinha
nessa altura acordado também numa cama de hospital no Wilhelminenberg
como um produto quase inteiramente destruído dessa sobrestimação do
próprio eu e do mundo, e, de forma perfeitamente lógica, o Paul no hospital
psiquiátrico e eu no de doenças pulmonares, isto é, o Paul no Pavilhão Lu‑
dwig e eu no Pavilhão Hermann. Tal como o Paul, na sua loucura, se esfalfou,
durante anos, mais ou menos quase até à morte, eu esfalfei­‑me igualmente
na minha, durante anos mais ou menos até à morte. Tal como o caminho do
Paul teve sempre de terminar, de ser interrompido num hospital psiquiá‑

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louis paul boon 303

Louis Paul BOON. A Minha Pequena Guerra. Tradução de Júlio Marten


Willem de Jong. [1946] 1979. Lisboa: Dom Quixote. 15­‑18.

Texto sujeito a Direitos de Autor

que se levanta para nos oferecer o seu Grande Livro Sobre a Grande Guerra
— cada palavra com uma maiúscula? E a palavra «oferecer» é decente demais
para um livro daquela natureza. Atirá­‑lo à nossa cara, lançá­‑lo na nossa cons‑
ciência consternada estaria mais perto da verdade. Talvez seja você a fazê­‑lo,
que já foi despojado dos seus haveres, como se diz, mas que foi ainda muito
mais ferido na sua alma, tendo sido evacuado como uma rês e deportado
como um criminoso, bombardeado, metralhado e fuzilado, tendo servido de
objecto de divertimento como uma lata vazia à qual as crianças dão ponta‑
pés, e cem vezes morto, mutilado de boca cerrada e desdentado por golpes
vibrados com uma grande chave de porcas, de modo que você, sentado lá
como Job com as suas chagas… Ou ainda, sentado lá como Franske Wauters,
que em Kassel, na Alemanha, era obrigado a distribuir o correio aos operá‑
rios estrangeiros importados e durante um bombardeamento procurou abri‑
go num cano de esgoto cheio de água imunda e ao sair deste já não encontrou
Kassel… Se tivesse sido comigo e se me tivessem posto uma cadeira debaixo
das pernas trementes, eu, lá sentado, poderia ter visto, num só olhar global,
tudo­‑o­‑que­‑ficou­‑da­‑cidade­‑de­‑Kassel... E então, você, lá sentado naquela
cadeira e olhando para tudo­‑o­‑que­‑ficou­‑do­‑mundo, seria talvez capaz de
escrever o livro para cuja leitura talvez nos faltasse a coragem, ou perante
o qual a nossa reacção seria possivelmente: não o compreendo... porque
costumamos ler palavras coladas umas às outras por meio de letras mortas,
e porque só podemos achar uma coisa bela se tiver ritmo, como se diz, e não
significado.
Porque você escreveria palavras nascidas de suor e lama e cavalos mori‑
bundos num carro de rodas para o ar e blocos residenciais completamente
rasgados pela compressão do ar e sangue. Com aquelas palavras formaria fra‑
ses semelhantes a carris torcidos que começam de um modo completamente
normal, mas, um pouco mais longe, se projectam no ar, como se os comboios
bombardeados pretendessem ir para o céu, caindo, porém, no fim daqueles
carris, novamente na terra. Poderia formar frases semelhantes a braços que

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bertolt brecht 305

Bertolt BRECHT. Ti Coragem e os Seus Filhos. Crónica da Guerra dos Trinta


Anos, in Teatro I. Tradução de Ilse Losa. [1941] 1963. Lisboa: Portugália.
9-13.

Texto sujeito a Direitos de Autor

recrutas para a campanha da Polónia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida por


Ti Coragem, perde um filho.

ESTRADA PERTO DA CIDADE


Um sargento e um engajador, cheios de frio.

Engajador: Como há-de a gente recrutar aqui uma companhia? Podes


crer, sargento, às vezes só me apetece suicidar-me. Tenho de apresen‑
tar ao marechal-de-campo, até ao dia doze, quatro pelotões, mas as
pessoas deste sítio são tão manhosas que passo as noites sem pregar
olho. Às vezes lá consigo apanhar um tipo. Faço vista grossa, sem me
importar se tem varizes ou peito de galinha; prego-lhe uma bebedeira,
ele assina, e é só pagar a pinga, mas nessa altura ele diz que tem de ir
lá fora. Corro atrás dele, porque me palpita qualquer coisa de mau: é,
claro, o tipo esgueirou-se como piolho por costura. Não sabem o que
é palavra de homem, não têm sentido da honra, não têm lealdade, nem
fé. Foi nesta terra que perdi a minha confiança nos homens, sargento.
Sargento: Não há dúvida, vê-se bem que por aqui não tem passado a guer‑
ra há muito tempo. Donde queres tu que venha a moral, pergunto eu?
A paz é coisa que não passa de desleixo, só a guerra põe tudo na ordem.
A Humanidade aumenta a torto e a direito. Desperdiçam-se homens e
gado, como se nada fosse. Cada um mete no bucho o que pode, um naco
de queijo no pão e depois uma fatia de toucinho por cima do queijo.
Quantos homens novos e quantos cavalos há por aí na cidade, isso é que
ninguém sabe, nunca os contaram. Já estive em sítios onde, há setenta
anos, se não faz a guerra, e as pessoas nem sequer tinham nome, não se
conheciam a si próprias. Só onde há guerra há listas como deve ser e
registos; metem-se as botas em fardos, e o trigo em sacos, contam-se
os homens e o gado bem contadinhos, e depois porque é sabido: sem
ordem não pode haver guerra.

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georg büchner 309

Georg BÜCHNER. «Cenas 30­‑31», in Woyzeck. Tradução de João Barrento.


[1879] 2010. Vila Nova de Famalicão: Húmus. 122­‑124.

CENA 30
Maria e rapariguinhas à porta de casa. Woyzeck.

Raparigas:
Na festa da Candelária
O Sol brilha e o trigo espiga.
Iam pela estrada fora,
Em procissão, dois a dois.
À frente iam os gaiteiros,
Os rabequistas depois
C’os seus peúgos vermelhos...
Primeira Criança:
Esta não presta.
Segunda Criança: Também nunca gostas de nada!

Crianças Em Alternância:
Um Segundo Grupo de Crianças:
Então porque é que começaste?
Porquê?
Porque sim!
Mas porque sim porquê?
Ela é que vai cantar.
Eu não sei.
Maria, canta­‑nos tu!
Maria:
Venham cá, vamos fazer
Uma roda a cirandar,
A história do rei Herodes. Avó, conta tu uma história.

Avó: Era uma vez um menino pobrezinho, que não tinha pai nem mãe, esta‑
va tudo morto e não havia ninguém neste mundo. Tudo morto, e ele andou,
andou, a chorar dia e noite. E como já não havia ninguém no mundo, quis ir
para o céu, e a Lua olhava para ele com tanto carinho, mas depois, quando

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310 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

lá chegou a Lua era só um bocado de madeira podre. Então foi até ao Sol,
mas quando lá chegou o Sol era só um girassol murcho, e quando chegou às
estrelas eram só uns mosquitos dourados, estavam todas picadas, como os
picanços fazem aos abrunhos, e quando quis voltar à Terra viu que a Terra
era um pote entornado, e ali ficou sozinho, sentado a chorar. E ainda lá está,
a chorar e sozinho.
Woyzeck: Maria!
Maria: (Assustada.) O que é?
Woyzeck: Maria, temos de ir, são horas.
Maria: Ir para onde?
Woyzeck: Eu sei lá!

CENA 31
Maria e Woyzeck.

Maria: O caminho da vila é para ali, não é? Está tão escuro.


Woyzeck: Fica mais um bocado. Senta­‑te.
Maria: Tenho de ir andando.
Woyzeck: Não ias chegar muito longe.
Maria: O que é que tens, que estás tão esquisito?
Woyzeck: Sabes há quanto tempo isto dura, Maria?
Maria: Faz dois anos pelo Pentecostes.
Woyzeck: E sabes quanto tempo ainda vai durar?
Maria: Tenho de ir. Já começa a cair o orvalho da noite.
Woyzeck: Tens frio? Mas estás tão quente, tens os lábios a escaldar. (Quen‑
te, hálito quente de puta. E no entanto trocava o céu por mais um beijo
dela.) Curioso, quando ficamos frios deixamos de ter frio. Não vais ter frio
com o orvalho da manhã.
Maria: O que é que estás para aí a dizer?
Woyzeck: Nada. (Silêncio.)
Maria: Olha a Lua, tão vermelha!
Woyzeck: Como uma lâmina de sangue.
Maria: O que é que vais fazer, Franz? Estás tão pálido. Franz, pára. Pelo
amor de Deus, socorro, so...
Woyzeck: Toma esta e mais esta! Nunca mais morres? Toma! Toma! Ainda
estrebucha. Ainda não? Ainda não? Nem assim? (Desfere­‑lhe mais um golpe.)­
E agora estás morta? Morta! Morta! (Vem gente. Ele foge.)

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bartolomé de las casas 311

Bartolomé de las CASAS. Brevíssima Relação da Destruição das Índias.


Tradução de Júlio Henriques. [1552] 1997. Lisboa: Antígona. 41­‑43.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Descobriram­‑se as Índias no ano de mil quatrocentos e noventa e dois. No


ano seguinte foram elas povoadas por cristãos espanhóis, de forma que há
quarenta e nove anos para elas foram grande cópia de espanhóis, e a primei‑
ra terra aonde entraram a fim de a povoarem foi a grande e fertilíssima ilha
Espanhola, que tem seiscentas léguas em redor. Outras há, grandes e infini‑
tas em redor dela, e todas eram, e assim as vimos, as mais povoadas e cheias
de gentes naturais, índios dali, do que pode ser terra povoada no mundo.
A Terra Firme, que desta ilha está o mais perto duzentas e cinquenta léguas,
poucas mais, tem de costa do mar mais de dez mil léguas descobertas, e todos
os dias mais se descobrem, todas elas cheias de gentes como colmeia, de tal
jeito que até ao ano de quarenta e um se descobriu que parece ter posto Deus
naquelas terras toda a multidão ou a maior quantidade de toda a linhagem
humana.
Todas estas universais e infinitas gentes a toto género as criou Deus as
mais simples, sem maldades nem fingimentos, obedientíssimas, fidelíssimas
aos seus naturais senhores e aos cristãos a quem servem; as mais humildes, as
mais pacientes, as mais pacíficas e quedas, sem desordens nem tumultos, nem
bulhentas, nem querelosas, sem rancores, sem ódios, sem desejar vinganças,
que no mundo há. São deste jeito as gentes mais delicadas, fracas e ternas em
compleição e que menos podem sofrer trabalhos, e que mais facilmente mor‑
rem de qualquer enfermidade, que nem filhos de príncipes e senhores entre
nós, criados em regalos e delicada vida, mais delicados não são do que eles,
ainda que sejam dos que entre eles são da linhagem de lavradores. São tam‑
bém gentes paupérrimas e as que menos possuem ou querem possuir bens
temporais, e por via disso não são soberbas, nem ambiciosas nem cobiçosas.
O seu comer é tal que o dos santos padres no deserto não parece ter sido
mais austero nem menos deleitoso ou pobre. Suas vestimentas comummen‑
te são de coiro, cobertas as vergonhas, e quando muito cobrem­‑se com uma
manta de algodão, coisa de vara e meia ou duas varas quadradas de tecido.
Seus leitos são por cima duma esteira, e quando muito dormem numas sortes

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paul celan 313

Paul CELAN. «Fuga da morte», in Gedichte. Tradução inédita de João


Barrento. [1948] 1975. Frankfurt a Main: Suhrkamp. 41-42.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Leite negro da alvorada bebemo-lo ao crepúsculo


bebemo-lo a meio do dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos uma vala nas brisas do ar, aí há espaço para todos
Mora um homem na casa, brinca com serpentes, escreve
escreve ao cair da noite para a Alemanha os teus cabelos de ouro Margarete
escreve-o e vem até à porta e as estrelas brilham assobia a chamar as matilhas
assobia e vêem os seus Judeus manda abrir uma vala na terra
dá-nos ordem de tocar para que comece a dança

Leite negro da alvorada bebemos-te à noite


bebemos-te pela manhã e a meio do dia bebemos-te ao crepúsculo
bebemos e bebemos
Mora um homem na casa, brinca com serpentes, escreve
escreve ao cair da noite para a Alemanha os teus cabelos de ouro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos uma vala nas brisas do ar, aí há
espaço para todos

E o homem ordena: cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês


também cantem e toquem
leva a mão ao ferro que tem à cintura volteia-o no ar tem olhos azuis
enterrem mais as pás vocês aí e vocês também toquem
toquem para que comece a dança

Leite negro da alvorada bebemos-te de noite


bebemos-te pela manhã e a meio do dia bebemos-te ao crepúsculo
bebemos e bebemos
Mora um homem na casa os teus cabelos de ouro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes

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charles dickens 315

Charles DICKENS. Excerto de «Capítulo XXII», in Oliver Twist. Tradução


inédita de Alexandra Assis Rosa. [1838] 2017. Oxford: Oxford University
Press. 5­‑ 7.

Não se pode esperar que este sistema de tratamento produzisse uma colhei‑
ta muito luxuriante. O nono aniversário de Oliver Twist encontrou­‑o uma
criança pálida, magra, algo diminuta em estatura e decididamente pequena
em diâmetro. Mas a natureza ou a herança genética haviam implantado um
espírito bom e sólido no peito de Oliver. E tinha muito espaço por onde
se expandir, graças à escassa dieta do estabelecimento, sendo talvez a esta
circunstância que havia a agradecer o facto de ter mesmo um nono aniver‑
sário para festejar. Seja como for, era o dia em que fazia nove anos, e estava
a celebrá­‑los na carvoeira, na selecta companhia de dois jovens cavalheiros
que, depois de como ele terem apanhado uma valente tareia, tinham sido
lá trancados pelo facto de se terem queixado, alegada e infamemente, de
terem fome. Foi por essa altura que a Sra. Mann, a bondosa dona da casa, foi
inesperadamente surpreendida pelo aparecimento do Sr. Bumble, o bedel,
que tentava abrir a porta de rede do jardim.
— Credo! É o senhor, Sr. Bumble? — disse a Sra. Mann, deitando a cabe‑
ça fora da janela, num bem encenado êxtase de alegria. (Susan, pega no Oli‑
ver e nos outros dois gaiatos, leva­‑os lá para cima e lava­‑les a cara nunstante!)
— P’o meu rico coração, Sr. Bumble! Que contente qu’eu ‘tou d’o ver aqui.
É que ‘tou mesmo!
Bem, o Sr. Bumble era um homem gordo e colérico, por isso, em vez de
responder de igual modo a esta saudação tão espontânea, deu um safanão ao
portãozinho e depois pregou­‑lhe um pontapé como só um bedel é capaz de
pregar.
— Va­‑lha­‑me Deus, Sr. Bumble! — disse a Sra. Mann, saindo de casa a
correr (pois, por essa altura, os três rapazes já tinham subido) — Veja bem
como é qu’eu me fui esquecer que tinha trancado o portão p’dentro, diriva‑
do aos meus ricos meninos! Entre, entre, Sr. Bumble. Fachavor d’entrar, Sr.
Bumble, entre, entre.
Embora este convite fosse acompanhado de uma vénia capaz de amole‑
cer o coração de um sacristão, em nada amoleceu o bedel.

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316 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— A Sra. Mann por acaso pensa que a sua conduta é respeitosa ou decen‑
te — perguntou o Sr. Bumble, agarrando a bengala — deixar os funcionários
da peróquia à espera ó portão, quando a gente vimos tratar d’assuntos da
peróquia, relacionados com os órfãos da peróquia? A Sra. Mann já realizou
que é, a bem dizer, uma delegada da peróquia e uma estipendiária?
— Sr. Bumble, garanto­‑le que ‘tava só a dizer a um ou dois dos meus ricos
meninos que gostam tanto do Sr. Bumble, de que era o senhor qu’aí vinha a
chigar — respondeu a Sra. Mann com grande humildade.
O Sr. Bumble tinha os seus dotes oratórios e a sua importância em gran‑
de conta. Tinha demonstrado os primeiros e garantido a segunda. Acalmou.
— Bem, bem, Sra. Mann — respondeu em tom mais calmo — pode ser
que sim, até pode ser que sim. Vá, mostre lá o caminho, Sra. Mann, que eu
venho em trabalho e tenho uma coisa p’ra le dizer.
A Sra. Mann fez entrar o bedel para uma salinha de chão de tijoleira.
Puxou­‑lhe uma cadeira e depositou o chapéu de três bicos e a bengala em
cima da mesa em frente dele. O Sr. Bumble limpou da testa o suor gerado
pela caminhada; olhou complacentemente para o chapéu e sorriu. Sim, sor‑
riu. Um bedel é um homem, e o Sr. Bumble sorriu.
— Agora não se amofine com o que eu vou dizer — afirmou a Sra.
Mann com uma doçura cativante — O senhor fez uma longa caminhada a
pé, de contrário eu nem dizia nada, ‘tá a ver? Mas o Sr. Bumble aceita uma
gotinha?
— Nem uma gota. Nem uma gota — disse o Sr. Bumble, abanando a mão
direita de forma digna, mas plácida.
— Ai eu acho que aceita — disse a Sra. Mann, que havia reparado no tom
da recusa e no gesto que a acompanhara. — Só um golinho, com uma pingui‑
nha de água e um nadinha de açúcar.
O Sr. Bumble tossiu.
— Atão, só um golinho — disse a Sra. Mann em tom persuasivo.
— De quê? — perguntou o bedel.
— A bem dizer, é uma coisa que eu tenho sempre em casa para ajuntar
ao Daffy dos meus ricos meninos, benz’os Deus, quando estão doentinhos,
Sr. Bumble — respondeu a Sra. Mann, enquanto abria a porta da cantoneira e
tirava uma garrafa e um copo.
— É gim. Não vou dizer que não, Sr. Bumble. É gim.
— A senhora dá Daffy às crianças? — perguntou o Bumble sem desfitar
os preparativos.
— Benz’os Deus, atão dou pois! Lá caro é — respondeu a ama —, mas eu
sou lá capaz de os ver sofrer na minha frente, Sr. Bumble?

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charles dickens 317

— Pois não — aprovou o Sr. Bumble —, pois não é não. A Sra. Mann é
uma senhora muito humana. (Aqui, ela poisou o copo.) — Assim qu’eu tiver
ópertunidade hei­‑de dizer à Junta, Sra. Mann. (Ele puxou o copo para o pé
de si.) — A senhora tem um coração de mãe. (Ele mexeu o gim com água.) —
Bebo à sua saúde, Sra. Mann — e engoliu metade.
— Agora vamos ao trabalho — disse o bedel, puxando de um livrinho de
bolso com a capa em cabedal. — A criança que baptizámos à pressa com o
nome de Oliver Twist faz hoje nove anos.
— Benz’ó Deus! — interpôs a Sra. Mann, inflamando o olho esquerdo
com a ponta do avental.
— E não obstante a gente termos oferecido uma recompensa de dez
libras, que depois subiu para vinte; não obstante os esforços mais superla‑
tivos, e, a bem dizer, mesmo sobrenaturais da parte da peróquia — disse o
Bumble —, nunca se conseguiu descobrir quem é o pai dele, a freguesia da
mãe dele, o nome dela ou a cundição.
A Sra. Mann levantou as mãos em surpresa, mas acrescentou depois de
um momento de reflexão: — Atão, como é que ele tem nome?
O bedel empertigou­‑se orgulhosamente e disse — Fui eu que o invintei!
— O senhor, Sr. Bumble?
— Sim, senhora. A gente baptizamos os nossos injeitadinhos por ordem
alfabética. O último foi um S — fui eu que le chamei Swubble. Este era um
T — e a este chamei­‑le Twist. O próximo que vier vai ser Unwin, e o outro
Vilkins. Já tenho os nomes todos preparados até ao fim do alfabeto, e outra
volta do alfabeto quando chegarmos ao Z.
— Bem! O senhor é mesmo uma personalidade literária, Sr. Bumble! —
disse a Sra. Mann.

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318 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Alfred DÖBLIN. «Um punhado de gente em volta do Alex», in Berlim


Alexanderplatz: A história de Franz Biberkopf. Tradução de Sara Seruya e
Teresa Seruya. [1929] 1992. Alfragide: Dom Quixote. 127­‑129.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Em Alexanderplatz estão a arrancar o pavimento para o metropolitano. As


pessoas andam em cima de tábuas. Os eléctricos vão pela praça, subindo
a Alexanderstraße, passam pela Münzstraße e vão ter ao Rosenthaler Tor.
À direita e à esquerda ficam ruas. Nas ruas há prédios atrás de prédios. Es‑
tão cheios de gente da cave ao sótão. Em baixo são as lojas.
Tabernas, comes e bebes, venda de fruta e legumes, especiarias e mer‑
cearias finas, empresa de transportes, decoração e pintura, fabricantes
de confecções para senhora, farinhas e moagens, garagem de automóveis,
sociedade de materiais anti­‑incêndio: a vantagem da pequena bomba extin‑
tora está na construção simples, fácil manuseamento, peso reduzido, dimen‑
são reduzida. — Concidadãos alemães, nunca um povo foi tão ignominiosa‑
mente ludibriado, nunca uma nação foi tão ignominiosa, tão injustamente
traída como o povo alemão. Ainda se lembram como o Scheidemann a 9 de
Novembro de 1918 nos prometia paz, liberdade e pão, do peitoril da janela
do Reichstag? E como foi cumprida essa promessa! — Equipamento para
canalizações, companhia de limpeza de janelas, sono é medicamento, cama­
‑paraíso Steiner. — Livraria, a biblioteca do homem moderno, as nossas edi‑
ções completas de poetas e pensadores eminentes compõem a biblioteca
do homem moderno. São os grandes representantes da vida intelectual da
Europa. A Lei de Protecção ao Inquilinato é um farrapo de papel. As rendas
não param de subir. A classe média activa é atirada para o meio da rua e deste
modo estrangulada, o oficial de diligências tem colheita farta. Exigimos cré‑
ditos públicos até 15 000 marcos para o pequeno comércio e indústria, ime‑
diata interdição de toda e qualquer penhora para pequenos comerciantes e
industriais. — Partir para a sua hora de provação bem preparada é desejo
e dever de toda a mulher. O pensar e o sentir da futura mãe giram inteira‑
mente em torno do inascido. Daí que a escolha da bebida adequada para a
futura mãe se revista de especial importância. A genuína Engelhardt, cerveja
de malte caramelo, possui, como poucas bebidas, as qualidades de paladar
agradável, valor nutritivo, assimilabilidade, efeito refrescante. — Acautela

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fiódor dostoiévski 321

Fiódor DOSTOIÉVSKI. Excerto de «Capítulo 6», in Crime e Castigo.


Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. [1866] 2006. Lisboa: Presença.
256­‑259.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O popular, desta vez, ergueu os olhos e espetou em Raskólnikov um olhar


sinistro e sombrio.
— Assassino! — pronunciou de chofre, baixinho mas com uma voz clara
e explícita...
Raskólnikov continuava a andar ao lado dele. As pernas estavam a ficar­
‑lhe muito moles, as costas geladas, o coração deixou de bater­‑lhe por um
instante, mas logo recomeçou como se o soltasse uma mola. Assim caminha‑
ram mais uns cem passos, juntos e calados.
O homem não olhava para ele.
— Mas, o que está... o que... quem é assassino? — murmurou Raskól‑
nikov quase imperceptivelmente.
— Tu, tu és assassino — pronunciou o outro, de modo ainda mais distinto
e grave, sorrindo como que num triunfo de ódio, voltando a cravar o olhar
no rosto pálido de olhos mortificados de Raskólnikov. Aproximavam­‑se do
cruzamento. O popular virou para a rua da esquerda e seguiu sem voltar a
cabeça. Raskólnikov ficou parado a olhar­‑lhe demoradamente para as costas.
Viu­‑o andar ainda mais uns cinquenta passos, voltar a cabeça e olhar para
ele, imóvel no mesmo lugar. Era impossível distinguir, mas pareceu a Raskól‑
nikov que o homem esboçou de novo um sorriso frio, de ódio e triunfo.
A passo lento e fraco, com os joelhos a tremerem e um frio horrível
dentro dele, Raskólnikov voltou para o seu cubículo. Tirou o boné, pô­‑lo
em cima da mesa e deixou­‑se ficar uns dez minutos parado, imóvel. Depois
estendeu­‑se sem forças no divã, doentiamente, com um gemido fraco, os
olhos fechados. Ficou assim uma boa meia hora.
Não pensava em nada. Só uns pensamentos vagos ou farrapos de pensa‑
mentos, umas imagens sem ordem nem nexo o afloravam — caras que vira
ainda na infância ou apenas uma vez, num algures longínquo, e de que nunca
se lembraria; o campanário da igreja de V...; o bilhar de uma taberna e um
oficial ao lado do bilhar, o cheiro dos charutos numa tabacaria de cave, uma
tasca, umas escadas traseiras, completamente escuras e sujas de despejos e

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marguerite duras 325

Marguerite DURAS. Moderato Cantabile. Tradução de Flora Larsson e Ana


Paula Laborinho. [1958] 2002. Algés: Difel. 14­‑15.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Retomou a sonatina como lhe pediam. O ruído surdo da multidão continua‑


va a ampliar­‑se, tornava­‑se agora tão forte, mesmo a esta altura do prédio,
que a música era abafada.
— Essa clave de si bemol, não te esqueças — disse a senhora —, sem isso
estaria perfeito, vês?
A sonatina desenvolveu­‑se, cresceu, atingiu o seu último acorde uma
vez mais. E a hora chegou ao fim. A senhora declarou a lição por esse dia
terminada.
— Vai sofrer muito com esta criança, Senhora Desbaresdes — disse ela
—, sou eu que lhe digo.
— Já sofro, ele devora­‑me.
Anne Desbaresdes baixou a cabeça, os olhos fecharam­‑se no doloroso
sorriso de um parto sem fim. Em baixo, alguns gritos, apelos agora perceptí‑
veis indicaram a consumação de um acontecimento desconhecido.
— Amanhã já a saberemos melhor — disse a senhora.
A criança correu para a janela.
— Estão a chegar carros — disse.

A multidão obstruía o café de um lado e de outro da entrada, aumentava


ainda, mas mais escassamente, com a aluvião das ruas vizinhas, era muito
maior do que se teria podido prever. A cidade tinha­‑ se multiplicado. As
pessoas afastaram­‑se, alguém que vinha correndo comprimiu­‑se contra os
outros para dar passagem a um furgão negro. Três homens desceram e entra‑
ram no café.
— A polícia — disse alguém.
Anne Desbaresdes informou­‑se.
— Alguém foi morto. Uma mulher.
Deixou o filho diante da entrada da Menina Giraud, alcançou o gros‑
so da multidão diante do café, insinuou­‑se e atingiu a última fila das pessoas
que, ao longo dos vidros abertos, imobilizadas pelo espectáculo, olhavam.

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george eliot 327

George ELIOT. Excerto de «O último conflito», in O Moinho à Beira do


Rio, Volume II. Tradução de Maria José Navarro de Oliveira. [1866] 1978.
Lisboa: Europa­‑América. 307‑308.

CONCLUSÃO

A natureza repara os estragos feitos pelas grandes catástrofes — repara­‑os


com o sol e o trabalho dos homens. A desolação causada pela cheia poucos
vestígios deixava de si na face da terra depois de cinco anos. Esse Outono
já foi fértil em espigas de ouro, que cresciam em messe rica, pelo meio das
sebes distantes; os cais e armazéns na margem do Floss estavam de novo em
actividade, cheios de vozearia preocupada e em perfeita azáfama, na carga e
descarga esperançosa de mercadorias.
Todos os homens e mulheres que entraram nesta história viviam ainda,
menos aqueles a cujo fim assistimos.
A natureza repara os estragos — mas nem todos. As árvores arrancadas
não voltam a criar raízes; as colinas desbastadas e esburacadas ficam como
estão: se nova vegetação cresce, as árvores já não são as mesmas e as colinas
sob a vegetação verde conservam as marcas do passado. Para os olhos que
viveram nesse passado não há reparação completa.
Reconstruiu­‑se o Moinho Dorlcote e o cemitério de Dorlcote — onde
se encontrava a sepultura de tijolo do pai que conhecemos, depois da cheia,
apareceu com a pedra tombada sobre ela — voltou a ter relva, asseio e
quietude.
Junto dessa sepultura de tijolo construíram um túmulo, pouco tempo
depois da cheia, para dois corpos que se encontraram abraçados; em várias
alturas desencontradas, dois homens o visitavam — lá estava sepultada, para
todo o sempre, a sua maior alegria e a sua maior tristeza.
Um deles visitava o túmulo na companhia duma cara bonita e meiga. —
Oh!, mas isso só anos mais tarde aconteceu.
O outro ia sempre só. A grande companhia encontrava­‑a ele entre as
árvores das Red Deeps, onde a alegria sepultada parecia ainda pairar como
espírito que as viesse também visitar.
O túmulo tinha os nomes de Tom e Maggie Tulliver e por baixo estava
escrito:
Nem a morte os separou

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328 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Heinrich Theodor FONTANE. Excerto de «Capítulo XXXIII», in Effi


Briest. Tradução de Pedro Miguel Dias. [1896] 2005. Algés: Difel. 261­‑263.

Dois dias mais tarde, tal como prometido, Effi recebeu e leu as linhas prome‑
tidas: «Alegro­‑me, cara senhora, por poder dar­‑lhe boas notícias. Tudo correu
de acordo com os nossos desejos; o senhor seu esposo é demasiado cavalheiro
para poder recusar um pedido que lhe foi dirigido por uma dama; mas, ao mes‑
mo tempo (também isto não posso ocultar­‑lhe), vi claramente que o seu «sim»
não corresponde àquilo que ele considera sábio e acertado. Mas não vamos
criticar aquilo que nos deve alegrar. Combinámos que a sua Annie virá por
volta do meio­‑dia, e que uma boa estrela ilumine o vosso reencontro.»
Effi recebeu estas linhas na segunda ronda do correio, pelo que até à che‑
gada de Annie não faltariam já sequer duas horas. Pouco tempo, mas mesmo
assim demasiado, e durante algum tempo Effi caminhou inquieta pelas duas
divisões, entrando depois na cozinha, onde discutiu com Roswitha todos os
assuntos possíveis: a hera nas paredes da igreja vizinha, que no próximo ano
já teria coberto as janelas, o porteiro, que tinha fechado mal a torneira do gás
(que depois se perdeu no ar), e o petróleo, que ela preferia ir buscar à grande
loja de candeeiros em Unter den Linden em vez da rua Anhalt... discutiram
todos os assuntos possíveis, excepto Annie, porque ela não queria abrir espa‑
ço ao medo que, apesar do bilhete da esposa do ministro, ou talvez por causa
dele, nela vivia.
Chegou então o meio­‑dia. Finalmente tocaram à porta, timidamente,
e Roswitha espreitou pelo óculo da porta. Era realmente a Annie. Roswitha
deu um beijo à criança, mas não disse qualquer palavra, e com muito cuidado,
como se estivesse um doente lá em casa, conduziu a criança do corredor para
o quarto interior e depois à porta que se erguia à sua frente.
— Entra, Annie. — E com estas palavras, não querendo incomodar, dei‑
xou a criança sozinha e voltou à cozinha.
Effi estava no outro lado do quarto, de costas para o suporte do espelho,
quando a criança entrou. «Annie!» Mas Annie parou junto à porta encostada,
um pouco envergonhada, mas também intencionalmente, e por isso Effi cor‑
reu para a criança, ergueu­‑a e beijou­‑a.

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heinrich theodor fontane 329

— Annie, minha doce filha, como estou contente. Anda, conta­‑me. —


E dizendo isto agarrou Annie pela mão e dirigiu­‑se ao sofá para se sentar.
Annie ficou muito direita e, enquanto continuava a olhar timidamente para
a mãe, agarrou a ponta caída da toalha da mesa.
— Sabes, Annie, que eu te vi uma vez?
— Sim, eu também te vi.
— E agora conta­‑me tudo. Estás tão crescida! E tens aqui a cicatriz;
a Roswitha falou­‑me dela. Sempre foste muito agitada e animada nas tuas
brincadeiras. Nisso és parecida com a tua Mamã, ela também era assim. E na
escola? Imagino que tu continues a ser a melhor, pareces ser uma aluna exem‑
plar, que traz sempre as melhores notas para casa. Também ouvi dizer que a
senhora von Wedelstädt te elogiou. Isso é bom; eu também era ambiciosa,
mas não tive uma escola tão boa. A Mitologia foi sempre a minha melhor
matéria. No que é que tu és melhor?
— Não sei.
— Oh, claro que sabes. Nós sabemos essas coisas. Em que tens as melho‑
res notas?
— Em Religião.
— Bem sabes, isso eu já sabia. Sim, isso é óptimo; eu não era muito boa
nisso, mas também deve ter sido por causa das aulas. Nós tínhamos um
estagiário.
— Nós também tivemos um estagiário.
— E ele foi embora?
Annie afirmou com um aceno.
— Porque é que ele foi embora?
— Não sei. Agora temos novamente o pregador.
— De quem vocês todos gostam muito.
— Sim. Dois da primeira classe também querem passar para a nossa.
— Ah, estou a perceber; isso é bom. E o que faz a Johanna?
— A Johanna acompanhou­‑me até à porta de casa...
— E porque não a trouxeste contigo?
— Ela disse que preferia ficar lá em baixo e esperar naquela igreja em
frente.
— E tu vais encontrar­‑te lá com ela?
— Sim.
— Então esperemos que ela não fique impaciente. Há um pequeno jar‑
dim, e as janelas estão quase cobertas pela hera, como se fosse uma igreja
antiga.
— Mas eu não queria deixá­‑la à espera.

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330 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Ah, estou a ver que és muito atenciosa e isso deixa­‑me muito satisfei‑
ta. É apenas necessário organizarmo­‑nos bem... E agora diz­‑me, o que faz o
Rollo?
— O Rollo está muito bem, mas o Papá diz que ele está a ficar muito
preguiçoso; está sempre deitado ao sol.
— Acredito. Ele já era assim quando tu eras pequenina... E agora diz­‑me,
Annie, pois só hoje voltámos a ver­‑nos, virás visitar­‑me mais vezes?
— Oh, claro, se eu puder.
— Podemos ir passear no jardim do Príncipe Albrecht.
— Oh, claro, se eu puder.
— Ou vamos comer gelados no Schilling, gelados de ananás ou de bauni‑
lha, esses foram sempre os meus preferidos.
— Oh, claro, se eu puder.
E com este terceiro «se eu puder» Effi atingiu o seu limite; pôs­‑se de pé
de um salto e dirigiu à criança um olhar que parecia arder de indignação.
— Penso que está na hora, Annie; senão, a Johanna vai ficar impaciente.
E tocou a sineta. Roswitha, que já estava na divisão adjacente, entrou
imediatamente.
— Roswitha, acompanha a Annie até à igreja. A Johanna está lá, à espera.
Esperemos que não se tenha constipado. Isso seria triste. Saúda a Johanna
por mim.
As duas saíram. Mas assim que Roswitha fechou a porta exterior, Effi
rasgou o vestido, que parecia ameaçar sufocá­‑la, e caiu num riso convulsivo.

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ugo foscolo 331

Ugo FOSCOLO. [Não sou quem fui: morreu­‑me grande parte], Le Poesie.
Tradução inédita de Simão Valente. [1802] 1979. Milão: Garzanti. 25­‑26.

Não sou quem fui: morreu­‑me grande parte.


Este que caminha é langor e pranto.
Secou o mirto, os louros que estandarte
Eram minha esperança, meu juvenil canto.

Porque desde o dia que a ímpia licença e Marte


Me vestiram com o seu sanguíneo manto
Cega é a mente, apagado o coração, e arte
O homicídio: arte, orgulho: sem espanto.

Ao ponto que se de morrer tenho ensejo,


Veda o caminho a tal cruel porte
A glória. O amor a meu filho é pejo.

Sou meu escravo, e de outros, e da sorte


Conheço o melhor e o pior desejo:
A ela invoco, mas não para mim, a morte.

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332 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Jean GENET. As Criadas. Tradução de Luiza Neto Jorge. [1947] 1972.


Lisboa: Presença. 115­‑118.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Pode berrar à vontade! Pode até soltar o seu último grito, minha Senhora!
(Empurra Clara, que fica agachada a um canto) Até que enfim! Morreu a Se‑
nhora! estendida no mosaico... estrangulada com as luvas de lavar a loiça.
Pode ficar sentada, minha Senhora! Pode tratar­‑me por Menina Solange Le‑
mercier... Devia despir esse grotesco vestido preto, minha Senhora. (Imita
a voz da Senhora) Eis­‑me condenada a pôr luto pela minha criada. À saída do
cemitério, todas as criadas do bairro desfilavam à minha frente, como se eu
também pertencesse à família. Fartei­‑me de apregoar que ela era como se
fosse da família... A morta soube levar a brincadeira até ao fim. Oh minha
Senhora!... sou tanto como a Senhora, ando de cabeça erguida... (Ri) Não,
Senhor Inspector, não... Não lhe direi nada do meu trabalho. Do nosso tra‑
balho a meias. Nada lhe direi da nossa colaboração neste crime... Os vesti‑
dos? Oh! pode ficar com eles, minha Senhora. Eu e a minha irmã tínhamos
os nossos. Os que à noite vestíamos, às escondidas. Mas agora tenho o meu
vestido, e sou tanto como a Senhora. É o trajo vermelho das criminosas.
O Senhor ri­‑se? O Senhor sorri? Julga­‑me doida. Acha que as criadas devem
ter suficiente bom gosto para não fazerem os gestos reservados à Senhora!
É verdade que me perdoa? é a bondade personificada. Mas eu ganhei uma
grandeza mais selvagem... Até que enfim que a Senhora se dá conta da minha
solidão! Agora estou sozinha. Terrível. Poderia falar­‑lhe com crueldade, mas
também posso ser boa, bem criada... A Senhora não tardará a recompor­‑se
totalmente do susto. No meio das flores, dos perfumes, dos vestidos. Aquele
vestido branco que levou à noite ao baile da Ópera. Aquele vestido branco
que eu sempre lhe recuso. Rodeada pelas suas jóias, pelos seus amantes. Eu
tenho a minha irmã. Atrevo­‑me a falar nela, atrevo­‑me, sim Senhora. Pos‑
so atrever­‑me a tudo. Que, quem é que me vai obrigar a calar­‑me? Quem é
que terá coragem para me dizer «Minha filha»?... Servi. Fiz os gestos que é
preciso fazer para servir. Sorri para a Senhora. Curvei­‑me para fazer a cama,
curvei­‑me para lavar o chão, curvei­‑me para descascar as batatas, para escu‑
tar às portas, para espreitar pela fechadura. Mas agora estou direita. E fir‑

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334 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

William GOLDING. O Deus das Moscas. Tradução de Luís de Sousa


Rebelo. [1954] 2002. Porto: Público. 163­‑166.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Neste instante, os rapazes que cozinhavam ao pé da fogueira içam subita‑


mente um grosso tassalho de carne e correm com ele em direcção à relva.
Embatem no Bucha que, ao queimar­‑se, solta um berro e dança. Imediata‑
mente, Rafael e a turba dos rapazes sentem­‑se unidos e aliviados por uma
tempestade de gargalhadas. O Bucha era mais uma vez o centro de irrisão
social, de modo que todos se sentiam galhofeiros e normais.
Jack ergue­‑se e acena com a lança:
— Dêem­‑lhes carne.
Os rapazes que tinham o espeto oferecem um naco suculento a Rafael e
outro ao Bucha. Eles aceitam a dádiva com água na boca. E quedam­‑se ali de
pé, a comer, sob um céu acobreado e tonitruante que vibrava com a aproxi‑
mação da tempestade.
Jack acena de novo com a lança:
— Comeram todos tanto quanto queriam?
Sobrava ainda comida, rechinando nos espetos de pau, atassalhada em
salvas de verdura. Traído pelo estômago, o Bucha atira um osso esburgado
para a praia e abaixa­‑se à espera de mais.
Jack fala de novo, com impaciência:
— Comeram todos tanto quanto queriam?
O tom da sua voz insinuava um aviso, dado com o orgulho de proprie‑
tário, e os rapazes comiam apressadamente enquanto era tempo. Vendo
que não havia qualquer probabilidade imediata de uma pausa, Jack ergue­
‑se do cepo que lhe servia de trono e ciranda até à orla do relvão. Olha, por
detrás da sua máscara pintada, para Rafael e o Bucha. Eles afastam­‑se, por
seu turno, indo para a areia, e Rafael contempla a fogueira enquanto come.
Repara, sem compreender, como as chamas eram agora visíveis contra a
luz búcia. A noite descia, não com uma beleza calma mas com a ameaça de
violência.
Jack pede:
— Dêem­‑me de beber.

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338 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Graham GREENE. «Capítulo 1», in O Americano Tranquilo. Tradução de P.J.


de Morais. [1955] 2003. Lisboa: Ulisseia. 61­‑ 64.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Vista do campanário da catedral a batalha era simplesmente pitoresca, um


cliché semelhante àqueles aspectos da guerra dos bóeres publicados numa
velha Illustrated London News. Um avião lançava víveres, em pára­‑quedas,
a um posto isolado no calcaire, essas estranhas montanhas da fronteira do
Aname gastas pelo tempo, fazendo lembrar pilhas de pedra­‑pomes. E por‑
que voltava sempre ao mesmo local para descer, era como se não se movesse,
e o pára­‑quedas parecia imóvel, a meio caminho do solo. Da planície subiam
continuamente as detonações dos morteiros, com o fumo tão sólido como
a pedra, e no mercado as labaredas brilhavam palidamente à luz do sol. As
minúsculas figuras dos pára­‑quedistas deslocavam­‑se numa só fila ao longo
dos canais, mas a esta altitude pareciam imóveis. O próprio padre sentado a
um canto da torre mudou de posição enquanto lia o breviário. Àquela distân‑
cia a guerra parecia muito arrumada e muito limpa.
Eu viera de Nam Dinh numa barcaça antes do amanhecer. Não podía‑
mos atracar na estação naval porque estava cortada pelo inimigo, que cerca‑
va completamente a cidade num raio de trezentos metros, e o barco entrou
pelo lado da praça toda em fogo. Éramos um alvo fácil à luz das chamas; por
uma razão ou por outra ninguém disparou sobre nós. Estava tudo quieto,
exceptuando o estalar e o crepitar das bancadas a arder. Da margem do rio
chegava­‑me o ruído de uma sentinela senegalesa mudando de posição.
Conhecera Phat Diem antes do ataque — a estreita e longa rua com ban‑
cadas de madeira, interrompida de cinquenta em cinquenta metros por um
canal, por uma igreja, por uma ponte. De noite era exclusivamente iluminada
por velas ou por pequenas lamparinas de óleo (em Phat Diem só existia luz
eléctrica nos alojamentos dos oficiais franceses) e noite e dia a rua estava api‑
nhada e barulhenta. A seu modo, de uma maneira estranha e medieval, sob
a protecção e à sombra do bispo príncipe, tem sido a cidade com mais vida
de todo o país. Quando atraquei e me dirigi ao quartel dos oficiais, era a mais
morta. Destroços, vidros partidos, cheiro de tinta e estuque queimados,
a longa rua deserta até perder de vista, lembrava uma artéria de Londres, de

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victor hugo 341

Victor HUGO. Excerto de «Livro Quarto — As boas almas», in Nossa


Senhora de Paris. Tradução de M. Correia. [1831] 1977. Lisboa: Amigos do
Livro. 147­‑151.

Dezasseis anos antes da época em que se passa este romance, por uma bela
manhã de domingo de Quasímodo, um ser vivo foi depositado, depois da missa,
na Igreja de Nossa Senhora, num leito que havia no adro, do lado esquerdo
defronte da grande imagem de São Cristóvão, para o qual a figura cinzelada em
mármore por António des Essarts estava olhando, de joelhos, desde 1413, até
que resolveram arrancar o santo e o devoto. Era nesse leito que costumavam
expor as crianças abandonadas à caridade pública. Levava­‑as dali quem queria.
Diante do leito havia uma bandeja de cobre para as esmolas.
A espécie de ser vivo que jazia sobre aquela tábua, na manhã de Quasí‑
modo do ano de 1467, excitava extraordinariamente a curiosidade de con‑
siderável número de pessoas, aglomeradas em volta. O belo sexo formava a
maior parte dos mirones, composta de velhas.
Na primeira linha, e nas que mais inclinadas estavam sobre o leito, nota-
vam­‑se quatro trajando uma espécie de hábito escuro, que denotava perten‑
cerem a alguma congregação religiosa. Não sei porque não há­‑de a história
transmitir à posteridade os nomes destas quatro discretas e veneráveis cria‑
turas. Eram: Inês de Herme, Joana de la Tarme, Henriqueta Gualtière, Gau‑
chère de Violette, todas viúvas, pertencentes à Capela de Estêvão Haudry,
tendo saído de suas casas, com permissão das amas, e segundo os estatutos
de Pedro d’Ailly, para ouvirem o sermão.
Contudo, se naquele momento observavam os estatutos de Pedro d’Ai‑
lly, violavam, na verdade com prazer, os de Miguel de Brache e do cardeal de
Pisa, que tão desumanamente lhes prescreviam o silêncio.
— Que é isto, minha irmã? — estranhava Inês a Gauchère, olhando para
a criança exposta, que chorava e se virava no leito, assustada com a vista de
tantas caras.
— Que será de nós — dizia Joana — se é assim que nascem agora as
crianças?
— A respeito de crianças nada entendo — replicou Inês —, mas só olhar
para esta deve ser pecado.

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342 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Não é uma criança, Inês.


— É um macaco disforme — definia Gauchère.
— É um ser sobrenatural — replicava Henriqueta Gaultière.
— Então — tornou Inês — é o terceiro desde o domingo de Loetare; por‑
que não há ainda oito dias que vimos o milagre do escarnecedor dos romeiros
divinamente castigado por Nossa Senhora d’Aubervilliers, e era já o segundo
milagre naquele mês.
— É um verdadeiro monstro de maldição este enjeitado — asseverou Joana.
— Os seus gritos são capazes de ensurdecer um chantre — continuava
Gauchère. — Cala­‑te, gritador!
— E pensar que é o senhor de Reims que envia esta enormidade ao
senhor de Paris! — estranhou Gaultière juntando as mãos.
— Parece­‑me — sugeriu Inês de Herme — que é um bruto, um animal,
o produto de um judeu com uma porca, finalmente alguma coisa que não é
cristã e que se impõe atirar para a água ou para o lume.
— Espero — respondia Gualtière — que não seja recolhido por ninguém.
— Ah! meu Deus — exclamou Inês —, pobres das amas­‑de­‑leite, da Casa
dos Expostos, ao pé da rua que desce para o rio, próximo do senhor bispo, se
lhes levassem este monstrengo para criar! Eu antes preferia dar de mamar a
um vampiro.
— Como é ingénua esta pobre Herme! — tornou Joana. — Não vê, irmã,
que este monstrozinho tem pelo menos quatro anos, e lhe apeteceria mais
um pedaço de carne assada no espeto do que o seu peito?
Com efeito, não era um recém­‑nascido aquele monstrozinho. Teríamos
grande dificuldade em qualificá­‑lo de outro modo. Compunha uma pequena
massa muito angulosa e muito irrequieta, metida num saco de algodão mar‑
cado com o sinal de Guilherme Chartier, então bispo de Paris, e com uma
cabeça imensa. A cabeça era realmente disforme; via­‑se nela grande quanti‑
dade de cabelos ruivos, um olho, uma boca e uns dentes que pareciam querer
morder. O corpo agitava­‑se no saco, com grande admiração da multidão, que
aumentava e se renovava incessantemente.
Aloísia de Gondelaurier, senhora rica e nobre, que levava pela mão uma
linda menina, dos seus seis anos, e na cabeça comprido véu preso à coifa
por alfinete de ouro, parou, ao passar por diante do leito, e contemplou por
momentos a mísera criatura, enquanto a encantadora menina, Flor­‑de­‑Lis de
Gondelaurier, vestida de seda e veludo, soletrava apontando com o dedinho
para o letreiro pregado no leito: «Crianças expostas.»
— Na verdade — disse a senhora, com repugnância —, julgava que só se
depositavam aqui crianças.

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victor hugo 343

Voltou costas, lançando na bandeja um florim de prata, que soou entre


as pequenas moedas de três dinheiros, e fez abrir muito os olhos às devotas
da Capela de Estêvão Haudry.
Pouco depois, o circunspecto e sábio Roberto Mistricolle, protonotário
de el­‑rei, passou com um enorme missal debaixo de um braço e levando pelo
outro sua mulher (Guillemette la Mairesse), de sorte que tinha de um e de
outro lado dois reguladores, um espiritual e outro temporal.
— Criança exposta! — disse, depois de haver examinado o objecto acha‑
do provavelmente na margem do caudaloso rio Phlégéto.
— Apenas se lhe vê um olho — observou Guillemette — e no outro uma
verruga.
— Não é uma verruga — emendou Roberto Mistricolle —, é um ovo,
que tem dentro outro demónio como ele, o qual ainda encerra outro ovo
mais pequeno que contém outro demónio, e assim por diante.
— Como sabe isso? — perguntou Guillemette la Mairesse.
— Sei­‑o muito bem — respondeu o protonotário.
— Senhor protonotário — disse Gauchère —, que prognostica a esta
criança?
— As maiores desgraças — respondeu Mistricolle.
— Ah! meu Deus! — exclamou uma velha do auditório — Por isso houve,
no ano passado, grande peste; diz­‑se também que os ingleses vão desembar‑
car em Harefleu.
— Talvez isso obste a que a rainha venha a Paris no mês de Setembro —
replicou uma outra —, e os géneros estão já tão caros!
— Eu entendo — opinou Joana de la Tarme — que seria melhor para os
habitantes de Paris, que este magicozinho fosse deitado antes sobre um feixe
de lenha do que em cima de uma tábua.
— Um feixe de lenha bem aceso! — acrescentou a velha.
— Seria o mais prudente — concordou Mistricolle.
Havia alguns momentos que um padre ainda novo ouvia o juízo e as opi‑
niões, tanto das veneráveis viúvas como do protonotário. Tinha aparência
respeitável, testa e olhar profundos. Desviou silenciosamente a multidão,
olhou para o magicozinho, e estendeu a mão sobre ele. Era tempo: já todas as
devotas se lambiam com o belo feixe de lenha bem aceso.
— Adopto esta criança — disse o eclesiástico.
Envolveu­‑a na batina e levou­‑a: todos o seguiram com os olhos co-
léricos.
Um instante depois viram­‑no desaparecer pela porta vermelha, que da
igreja vai ter ao claustro.

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344 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Depois de passada a primeira surpresa, Joana de la Tarme falou ao ouvi‑


do de Gaultière:
— Bem lhe tinha eu dito, minha irmã, que este padre, Cláudio Frollo,
é feiticeiro.

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attila józsef 345

Attila JÓZSEF. «Noite de arrabalde», in Antologia da Poesia Húngara.


Tradução de Ernesto Rodrigues. [1932] 2002. Lisboa: Âncora. 206­‑208.

Do saguão a luz enrola


sua rede devagarinho,
como água em fundo de cova,
caiu nas trevas a cozinha.

Silêncio — quase, a escova d’aço


se ergue e arrasta, indolente;
por cima, do muro um pedaço
pensa se cai ou fica assente.

Em farrapos oleosos a noite


no céu pára e suspira;
senta­‑se à beira da cidade.
Vacilante, p’la praça retira;
acende um canto de luz, que arde.

Quais montões de ruínas, assim


estão as fábricas,
mas inda
nelas se faz a escuridão mais densa,
a peanha do silêncio.

Plos vidros das fábricas têxteis


o luar em feixes
desce,
da lua a terna luz é o fio
nos teares
e enquanto o trabalho pára, até de manhã,
sombrias as máquinas tecem
sonhos desfeitos das tecelãs.

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346 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

E mais além, qual cemitério arqueado,


fábricas de aço, cimento, parafusos.
Criptas familiares em ecos.
Segredo de lúgubre ressurreição
conservam estas fábricas.
Um gato raspa na paliçada
e o guarda­‑nocturno supersticioso
vê fogos­‑fátuos, rápidos sinais luminosos ¬
os dínamos, rosto de insecto,
iluminam friamente.

Silvo de comboio.

A humidade busca na penumbra,


nos ramos da árvore caída,
e faz mais pesado
o pó da estrada.

Na estrada, um guarda, um operário balbuciante.


Com panfletos um camarada
se precipita.
Fareja em frente como cão
e como o gato ouve para trás;
em cada candeeiro, um desvio.

A boca da taberna vomita uma luz podre,


charcos devolvem suas janelas;
dentro, sufocando, a lâmpada oscila,
vela sozinho um jornaleiro.
Dormita o taberneiro, ronca,
range os dentes aquele contra a parede,
gradual ascende sua tristeza;
chora. Aclama a revolução.

Como esfriado metal, rígidas


são as águas que estalam.
Qual cão errante, o vento vai,
sua grande língua pendente água
toca e absorve a água.

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attila józsef 347

Como jangadas, mudas nadam


enxergas na corrente da noite.

O armazém é barca encalhada,


canoa de ferro a fundição,
e sonha bebés encarnados
o fundidor, em formas de metal.

Tudo é pesado, tudo húmido.


Dos países da miséria
o mofo desenha a carta.
E acolá nos áridos prados,
sobre a erva arrancada, trapos
e papel. Se subisse! Move­‑se,
sem força pra partir...

Imagem do teu vento pegajoso e húmido


é o flutuar dos lençóis sujos,
oh, noite!
Pendes da noite, como da corda
percal desfiado e da vida
a tristeza, oh, noite!
Noite dos pobres! Sê meu carvão,
faz fumo aqui no meu coração,
funde em mim o ferro, bigornas
de pé, que não se despedaça,
martelo que vibra no trabalho,
— lâmina deslizante prà vitória,
oh, noite!

A noite é grave, noite pesada.


Vou também eu dormir, meus irmãos.
Não entre dor na alma de cada.
Não morda verme o corpo, não.

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348 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ismail KADARÉ. «Capítulo 1», in A Filha de Agamémnon. Tradução de


Isabel St. Aubyn. [2003] 2008. Lisboa: Dom Quixote. 15­‑18.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Do exterior vinha a música festiva da rua, o bruaá dos basbaques e o som


surdo dos seus passos, esse sussurro especial que só é produzido pelas multi‑
dões que se dirigem para o local de partida de um desfile.
Talvez pela décima vez, afastei sub­‑repticiamente a cortina da janela e
deparei com a mesma visão: o lento marulho do fluxo humano convergindo
para o centro da cidade. Em destaque, como no ano passado, pairavam carta‑
zes, ramos de flores, retratos dos membros do Comité Político. Estes, acima
daquela agitação de cabeças e mãos, exibiam expressões ainda mais crispa‑
das. Às vezes, em consequência de um movimento desajeitado de quem os
empunhava, os rostos pintados pareciam lançar olhares desconfiados, amea‑
çadores. Todavia, mesmo quando eram obrigados a cruzar­‑se, não pareciam
reconhecer­‑se.
Larguei a cortina e apercebi­‑me de que ainda apertava o convite na mão.
Era a primeira vez que tinha direito a um convite para a tribuna do Primeiro
de Maio e, como no momento em que me fora entregue, continuava a não
acreditar que vinha endereçado em meu nome. O vice­‑secretário do Partido
mostrara­‑se igualmente estupefacto. Não seria justo afirmar que só a inveja
transparecia da sua atitude. Também denotava espanto. Em certa medida,
explicável. Eu não fazia parte dos que se exibiam nos órgãos directivos e rece‑
biam convites para as tribunas nos dias de festa. E se, como vim a saber mais
tarde, o próprio vice­‑secretário propusera o meu nome quando o Comité de
Zona do Partido pedira outras propostas de candidaturas diferentes das que
recebia todos os anos, essa atitude em nada atenuara a sua surpresa. Embora
tivesse dado o meu nome, decerto nunca acreditara que a nova lista fosse
aprovada. É o que nos pedem todos os anos, devia ele ter pensado, mas, no
fim, os convidados são sempre os mesmos.
Os meus parabéns, os meus parabéns, murmurara ele remetendo­‑me o
convite, mas, no último instante, o seu olhar, para além da inveja e da estupe‑
facção, parecera­‑me querer exprimir outra coisa. Algo que se adivinhava no
seu sorriso, como se fosse gerado por este e, no entanto, tivesse uma nature‑

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franz kafka 351

Franz KAFKA. «À porta da lei», in Parábolas e Fragmentos. Tradução de João


Barrento. [1925] 2004. Lisboa: Assírio & Alvim. 55-57.

À porta da lei está um guarda. Um homem do campo aproxima­‑se do guarda


e pede para entrar na lei. Mas o guarda diz que agora não lhe pode dar auto‑
rização para entrar. O homem pensa um pouco e depois pergunta se poderá
entrar mais tarde. «É possível», diz o guarda, «mas agora não.» Como a porta
de entrada na lei está aberta, como sempre, e o guarda se afasta um pouco,
o homem curva­‑se para poder olhar lá para dentro. Ao reparar nisso, o guar‑
da ri e diz: «Se estás assim tão curioso, tenta entrar, apesar de eu to proibir.
Mas nota bem: eu sou poderoso. E sou apenas o mais humilde dos guardas.
Mas de sala em sala há outros guardas, cada um mais poderoso do que o ante‑
rior. Nem eu próprio já consigo suportar a vista do terceiro.» O homem do
campo não esperava encontrar tais dificuldades; pensava que a lei deve ser
sempre acessível a todos, mas ao olhar agora melhor para o guarda, com o
seu casaco de peles, o grande nariz adunco, a barba negra à tártaro, com‑
prida e fina, decide que é melhor esperar até ter autorização para entrar.
O guarda dá­‑lhe um banquinho e deixa que ele se sente ao lado da porta.
O homem fica ali sentado dias e anos. Tenta muitas vezes que o deixem
entrar e cansa o guarda com os seus pedidos. O guarda faz­‑lhe frequente‑
mente pequenos interrogatórios, perguntas sobre a sua terra e muitas outras
coisas, mas pergunta só por perguntar, como fazem os grandes senhores, e
por fim diz­‑lhe sempre que ainda o não pode deixar entrar. O homem, que
trouxe muita coisa consigo para a viagem, recorre a tudo, por mais valioso
que seja, para subornar o guarda. Este aceita, na verdade, tudo o que ele lhe
dá, mas vai logo dizendo: «Só aceito para tu não ficares com a impressão de
ter perdido alguma oportunidade.» Durante aqueles muitos anos, o homem
observa o guarda quase ininterruptamente. Esquece os outros guardas,
e este primeiro parece­‑lhe ser o único obstáculo à entrada na lei. Amaldiçoa
este infeliz acaso, nos primeiros anos sem contemplações e alto e bom som,
mas mais tarde, à medida que vai ficando velho, já só resmunga com os seus
botões. Começa a ficar com tiques infantis e, como em todos aqueles anos de
observação do guarda também viu que ele tinha pulgas na gola de pele, pede

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352 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

também ajuda às pulgas para fazer o guarda mudar de opinião. Por fim, a luz
dos olhos começa a ficar fraca, e ele já não sabe se realmente está a ficar mais
escuro à sua volta ou se são os olhos que o enganam. Mas uma coisa é certa:
agora apercebe­‑se de um brilho no escuro, uma luz que irrompe da porta da
lei e nunca se apaga. Agora já não tem muito tempo de vida. Antes de morrer,
todas as experiências de todo aquele tempo convergem na sua cabeça para
uma pergunta que até agora não fez ao guarda. Como já não consegue erguer
o corpo hirto, faz­‑lhe sinal com a mão. O guarda tem de se curvar muito para
o ouvir, porque a diferença de alturas se acentuou muito, em desfavor do
homem. «O que é que ainda queres saber?», pergunta o guarda. «És mesmo
insaciável.» «Toda a gente aspira a entrar na lei, não é?», diz o homem. «Como
é que se explica então que em todos estes anos ninguém, além de mim, tenha
pedido para entrar?» O guarda percebe que o homem está a dar as últimas e,
para que o ouvido cada vez mais fraco o possa entender, grita­‑lhe: «Ninguém
mais podia entrar por aqui, porque esta entrada estava­‑te destinada só a ti.
Agora vou fechá­‑la.»

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imre kertész 353

Imre KERTÉSZ. A Recusa. Tradução de Ernesto Rodrigues. [1988] 2003.


Lisboa: Presença. 21­‑24.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O velho estava sentado diante da escrivaninha e lia.


«Agosto de 1973.
O que aconteceu, aconteceu: agora, já nada posso fazer. Não posso
mudar o meu passado, nem o futuro, que dele decorre, implacavelmente,
e que ainda não conheço...»
— Santo Deus! — disse, em voz alta, o velho.
«... Erro sem fim pelos caminhos estreitos do meu presente, tal como no
meu passado ou no tempo que ainda está para vir.
Como cheguei a este ponto, não sei. Desperdicei a minha infância, sim‑
plesmente. Há, decerto, explicações psicológicas profundas no facto de eu
ter sido um mau aluno no colégio. («Nem sequer tens a desculpa de ser estú‑
pido, porque tens juízo» — repetia muitas vezes o meu pai.) Mais tarde, aos
catorze anos e meio, na sequência de um conjunto de circunstâncias infinita‑
mente estúpidas, fixei durante cerca de meia hora o cano de uma metralha‑
dora apontado contra mim. Descrever estas circunstâncias em linguagem
normal, digamos, é impossível. É bastante dizer que me encontrava no pátio
estreito de uma caserna de guardas, no meio de uma multidão que suava de
medo e exalava não se sabe que restos de pensamento, e o único traço geral
que eu partilhava com esta gente é que éramos todos judeus. Era uma noite de
Verão límpida e perfumada, e, lá no cimo, brilhava a lua cheia. O ar enchia­‑se
de um zumbido surdo e regular: as unidades da Royal Air Force, que tinham,
provavelmente, descolado das suas bases na Itália e voavam para destinos
desconhecidos; e, se, por acaso, lançassem uma bomba sobre a caserna ou as
redondezas, arriscávamo­‑nos a ser massacrados — digamos assim — pelos
guardas. Quanto às correlações impossíveis e razões idiotas que teriam moti‑
vado este acto, eu considerava­‑as, na época — e também depois —, perfei‑
tamente secundárias. A metralhadora repousava num suporte semelhante a
um tripé de câmara de filmar. Atrás, num meio estrado, um guarda de bigode
em gancho fechava os olhos, objectivamente. Uma peça ridícula em forma
de funil estava presa à ponta do cano, igual ao moinho de papoila da minha

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heinrich von kleist 357

Heinrich von KLEIST. Michael Kohlhaas, o Rebelde. Tradução de Egito


Gonçalves. [1810] 2004. Lisboa: Antígona. 7­‑10.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Nos meados do século dezasseis, vivia nas margens do Havel um negociante de


cavalos chamado Michael Kohlhaas, filho de um mestre­‑escola, um dos homens
mais correctos e ao mesmo tempo mais terríveis do seu tempo. Este homem
pouco vulgar teria podido ser considerado, até aos trinta anos, como um modelo
de bom cidadão. Possuía uma quinta numa aldeia que ainda hoje usa o seu nome
e ali vivia tranquilamente ganhando a vida com a sua profissão; crescera no temor
de Deus e educava os filhos que a mulher lhe dava no respeito pela lealdade e
pelo trabalho; nenhum dos seus vizinhos tinha que dizer da sua generosidade e
honestidade. Resumindo: o mundo decerto viria a abençoar­‑lhe a memória se
não tivesse acontecido ele exagerar numa das suas virtudes: o sentimento inato
da injustiça transformou­‑o num salteador e num assassino.
Cavalgava um dia com um grupo de lustrosos e bem nutridos potros,
que pretendia vender do lado de lá da fronteira, e entretinha­‑se a pensar no
destino que daria ao dinheiro que esperava ganhar na transacção: uma parte,
como bom comerciante, em novos negócios; outra parte, porém, em pra‑
zeres imediatos. Assim chegou ao Elba, encontrando, junto de um majesto‑
so castelo em território saxão, a estrada impedida por meio de um tronco.
Parou a cavalhada, no preciso momento em que a chuva começava a cair com
inclemência, e chamou o guarda que assomou à janela da guarita com cara de
poucos amigos. O negociante disse­‑lhe para abrir a passagem.
— Que novidade é esta? — perguntou­‑lhe quando o homem saiu da casa,
passado um bom tempo de espera.
— Privilégio soberano, concedido ao barão Venscelau von Tronka — res‑
pondeu o guarda enquanto abria.
— Ah, o senhor chama­‑ se Venscelau! — comentou Kohlhaas, obser‑
vando o castelo, cujas torres brilhantes dominavam a paisagem. — Então o
velho fidalgo morreu?
— Morreu de repente — respondeu o guarda, abrindo a entrada.
— Que pena! — replicou Kohlhaas. — Era um homem correcto que gos‑
tava da companhia das pessoas e ajudava­‑as no que podia. Uma vez mandou

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heinrich von kleist 359

Karl KRAUS. Excerto de «Acto V, cena 40», in Os Últimos Dias da


Humanidade. Tradução de António Sousa Ribeiro. [1915] 2003. Lisboa:
Antígona. 343-344.

Uma travessa. Debaixo de um portal, um Soldado com duas medalhas ao peito.­


A boina tapa­‑lhe grande parte da cara. Ao lado, a filha pequena, que o guiou e se bai‑
xa agora para apanhar do passeio uma beata que lhe mete no bolso. No pátio da casa,
um inválido com um realejo.

O Soldado: Agora já chega. (Tira um cachimbo do bolso e a rapariga enche­‑o com


o tabaco das beatas.)
Um Tenente: (Que passou, vira­‑se, em tom ríspido.) Mas você é cego ou quê?
O Soldado: Sou.
O Tenente: O quê?… Ah, bom…
(Afasta­‑se. O Soldado, guiado pela criança, segue na direcção contrária. O realejo toca
a marcha «Vivam os Habsburgos».)
(Muda a cena.)

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360 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Choderlos de LACLOS. «Cartas XCVI-XCVII», in As Ligações Perigosas.


Tradução de João Pedro de Andrade e Alfredo Amorim. [1782] 1980.
Lisboa: Círculo de Leitores. 218­‑226.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os meus cumpri‑
mentos e elogios; nem sequer duvido que esteja um pouco aborrecida com o
meu longo silêncio; mas que quer?
Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a uma mulher,
podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmo­‑nos sossegadamente
de outra coisa. No entanto agradeço­‑lhe pela minha parte e felicito­‑a pela
sua. Para a tornar verdadeiramente feliz, concordo até que, desta vez, ultra‑
passou a minha expectativa. Depois disto, vejamos se pela minha parte terei
ao menos correspondido à sua.
Não é de Madame de Tourvel que lhe quero falar; o seu passo lento
desagrada­‑lhe. A minha amiga só gosta dos casos arrumados. Aborrecem­‑na
as cenas que se vão lentamente desenrolando; e eu nunca tinha apreciado o
prazer que sinto nestas pretensas lentidões.
Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada, sem disso
se aperceber, num caminho que não permite regresso, e cuja ladeira rápida e
perigosa a leva a seguir­‑me, mesmo contra vontade e à força. Assustada com
o perigo que corre, gostaria de parar, mas não pode. As cautelas e a habilida‑
de podem tornar­‑lhe os passos mais curtos; mas eles suceder­‑se­‑ão inevita‑
velmente. Às vezes, não ousando fitar o perigo, fecha os olhos e, deixando­‑se
guiar, entrega­‑se aos meus cuidados. Muitas vezes um novo terror fá­‑la redo‑
brar de esforços. Num pavor mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças
para subir penosamente um curto espaço; e em breve um mágico poder a
coloca de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão pretendera
fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem pensar em me censu‑
rar pela queda inevitável, implora­‑me que a retarde. As preces fervorosas, as
humildes súplicas, tudo o que os mortais, no seu medo, oferecem à Divin‑
dade, recebo­‑o eu dela; e quer a minha amiga que, surdo aos seus pedidos,
e destruindo eu próprio o culto que ela me presta, me sirva, para a aniquilar,
do poder que ela invoca para a amparar! Ah! Deixe­‑me ao menos o tempo de
observar estes tocantes combates entre o amor e a virtude!

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lautréamont 367

LAUTRÉAMONT. «Canto terceiro», in Os Cantos de Maldoror. Tradução


de Pedro Tamen. [1869] 2004. Lisboa: Fenda. 89­‑ 91.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Recordemos os nomes desses seres imaginários com natureza de anjos, que


a minha pena durante o segundo canto retirou de um cérebro que brilhava
num clarão que deles emanava. Eles morrem à nascença, como as faúlhas que
a nossa vista a custo segue ao apagarem­‑se rapidamente no papel queimado.
Léman!... Lohengrin!... Lombano!... Holzer!... houve um momento em que
aparecestes, cobertos das insígnias da juventude, no meu horizonte encan‑
tado; mas deixei­‑vos recair no caos, como uma cápsula de mergulhador. Não
saireis mais de lá. Basta­‑me ter guardado a vossa recordação; deveis ceder
o lugar a outras substâncias, talvez não tão belas, geradas pelo transbordar
tempestuoso de um amor que resolveu não saciar a sua sede junto da raça
humana. Amor esfomeado, que a si mesmo se devoraria se não procurasse
o seu alimento nas ficções celestes: criando, com o tempo, uma pirâmide de
serafins, mais numerosos que os insectos que formigam numa gota de água,
ele os enlaçará numa elipse que à sua volta fará rodopiar. Entretanto, o viajan‑
te, parado a contemplar uma catarata, se erguer os olhos verá ao longe um ser
humano, arrastado para o subterrâneo do inferno por uma grinalda de camé‑
lias vivas! Mas... silêncio! a imagem flutuante do quinto ideal desenha­‑se len‑
tamente, como as dobras indecisas de uma aurora boreal, no plano vaporoso
da minha inteligência, e toma cada vez mais uma consistência determina‑
da... O Mário e eu íamos ao longo do areal. Os nossos cavalos, de pescoço
tenso, cortavam as membranas do espaço e arrancavam faíscas aos seixos da
praia. A nortada que nos açoitava em pleno rosto engolfava­‑se­‑nos nas capas
e fazia­‑nos adejar atrás os cabelos de nossas cabeças gémeas. A gaivota, com
seus gritos e movimentos de asas, tentava em vão avisar­‑nos da proximidade
possível da tempestade, e exclamava: «Aonde vão eles, neste louco galope?»
Nós não fazíamos nada; mergulhados em devaneios, deixávamo­‑nos levar
nas asas daquela corrida furiosa; o pescador, ao ver­‑nos passar rápidos como
o albatroz, e julgando ver, fugindo à sua frente, os dois irmãos misteriosos, nome
que lhes tinham posto por andarem sempre juntos, apressava­‑ se a fazer
o sinal da cruz e escondia­‑se, com o seu cão imobilizado, debaixo de uma

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doris lessing 369

Doris LESSING. Excerto de A Erva Canta. Tradução de Inês Busse. [1950]


1990. Mem Martins: Europa­‑América. 118­‑121.

Texto sujeito a Direitos de Autor

No fundo do vale, perto dos estábulos, era onde todos os anos arrumavam
as espigas de milho. Primeiro, punham-se chapas metálicas para proteger o
grão das formigas; depois, despejavam-se os sacos de milho em cima desse
metal, indo lentamente formando uma pilha baixa de cereal branco e escor‑
regadio. Ultimamente, era aí que Mary ficava parada, a verificar se os sacos
eram correctamente despejados. Os nativos retiravam os sacos poeirentos
da carroça, segurando-os pelas pontas depois de os carregarem às costas, do‑
brados em dois sob tanto peso. Eram como um tapete transportador huma‑
no. Dois nativos em cima do carro carregavam o pesado saco sobre o dorso
curvado que estivesse à espera. Os homens iam avançando regularmente em
fila, desde a carroça até ao monte de cereal, subindo cambaleantes a escada
a seu lado formada por sacos cheios, para do alto despejarem as espigas em
chuveiro branco sobre o monte já existente. O ar estava irritante e incómo‑
do, devido a minúsculos fragmentos de folhelho. Quando Mary passava a
mão pela face, sentia-a áspera, como serapilheira fina.
Estava parada junto ao monte, que se elevava a seu lado formando uma
grande montanha refulgente recortada sob o céu azul-forte, as costas vol‑
tadas para os bois que esperavam, imóveis e de cabeça baixa, que o carro
ficasse vazio, para seguirem para nova viagem. Mary vigiava os nativos, ao
mesmo tempo que ia pensando na propriedade e balouçando o chicote
preso no pulso, traçando com ele desenhos na terra vermelha. De repen‑
te, notou que um dos criados não estava a trabalhar. Tinha saído da fila e
estava parado, a respiração ofegante, a face reluzente de suor. Mary olhou
para o relógio. Passou um minuto, dois. E o homem continuava parado,
os braços cruzados, imóvel. Mary esperou até o ponteiro do relógio ter
passado o terceiro minuto, com uma indignação sempre crescente por ele
ter a temeridade de se manter parado, quando já devia conhecer a regra
de que ninguém devia exceder a pausa permitida de um minuto. Depois,
ordenou-lhe:
— Volta para o trabalho!

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primo levi 373

Primo LEVI. Se Isto É Um Homem. Tradução de Simonetta Cabrita Neto.


[1947] 2002. Porto: Público. 61­‑ 64.

Texto sujeito a Direitos de Autor

No Inverno as noites são longas, e para o sono é­‑nos concedido um intervalo


de tempo considerável.
O barulho dos Block apaga­‑se devagar; há mais de uma hora que acabou
a distribuição do rancho da noite, e só alguns teimosos persistem em raspar
o fundo já limpo da marmita, voltando­‑a minuciosamente debaixo da lâmpa‑
da, com as sobrancelhas franzidas pela atenção. O engenheiro Kardos vai de
cama em cama medicar os pés feridos e os calos supurados: é o seu negócio;
não há quem não renuncie facilmente a uma fatia de pão, para que lhe aliviem
o tormento das chagas pútridas, que sangram a cada passo durante todo o
dia, e deste modo, honestamente, o engenheiro Kardos encontrou uma solu‑
ção para o problema da sua sobrevivência.
Da pequena porta das traseiras, às escondidas e olhando em redor com
cuidado, entrou o contador de histórias. Sentou­‑ se na cama de Wachs‑
mann, e imediatamente se reuniu à sua volta uma pequena multidão aten‑
ta e silenciosa. Canta uma infindável rapsódia ídixe, sempre a mesma, em
quadras rimadas, de uma melancolia resignada e penetrante (ou talvez
assim me lembre dela por a ter ouvido naquela altura e naquele lugar?); das
poucas palavras que entendo, deve tratar­‑se de uma canção de sua autoria,
onde incluiu toda a vida do Lager, nos mais pequenos pormenores. Alguém
é generoso, e compensa o contador de histórias com uma pitada de tabaco
ou um pouco de linha de coser; outros escutam com atenção, mas não lhe
dão nada.
Ecoa ainda o aviso repentino para a última operação do dia: Wer hat kapu‑
tt die Schuhe? — (quem tem os sapatos rotos?), e imediatamente se desen‑
cadeia o barulho dos quarenta ou cinquenta aspirantes à troca, os quais se
apressam para o Tagesraum com fúria desesperada, sabendo bem que só os
primeiros dez, na melhor das hipóteses, serão satisfeitos.
Depois cai o silêncio. A luz apaga­‑se uma primeira vez, durante poucos
segundos, avisando os costureiros para que guardem as preciosíssimas agu‑
lha e linha; a seguir toca ao longe o sino, é então que toma lugar o guarda

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antonio machado 377

Antonio MACHADO. [Odiosa mão traçou, oh minha Espanha], in


Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea. Tradução de José Bento. [1938]
1985. Lisboa: Assírio & Alvim. 86.

Odiosa mão traçou, oh minha Espanha


— vasta lira, ante o mar, entre dois mares —,
zonas de guerra, cristas militares,
em planícies, outeiros e montanha.

Manes do ódio e da cobardia


cortam a lenha de teus azinhais
pisam bagos de ouro em teus lagares,
moem o trigo que o teu solo cria.

Outra vez – outra vez! – oh triste Espanha,


quanto se afoga em vento, em mar se banha
joguete de traição, quanto se encerra

nos templos de Deus mancha o olvido,


quanto acrisola o íntimo da terra
oferece-se à ambição, – tudo vendido!

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378 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Liliana MIHAILOVA. «O pequeno capote», in Gente Muito Simpática.


Tradução de Petar Petrov. [1984] 1991. Lisboa: Escritor. 73-77.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Ontem telefonaram-me outra vez a respeito do capote. Sou novata e sinto


que alguém do museu distrital se quer aproveitar disso. Alguém com uma voz
grossa e segura que, já pela segunda vez, me tenta convencer de que sendo
de um guerrilheiro desconhecido, tanto faz em que museu ficará o primeiro
capote com o peito trespassado. Não posso dá-lo. Primeiro tenho de ver a
mulher… Faz três meses que estou nesta cidade e todos os dias a espero.
De manhã, vêm sempre crianças ao museu. Pelo soalho reluzente fica o
rasto dos seus passos — nota-se como as fiz passar pelas montras, como as fiz
deter em frente ao pedestal com a metralhadora e como um rapaz passou para
a frente, para vê-la de perto. Os passos do professor notam-se sempre ao lado,
manchas grandes e alongadas, que a mulher da limpeza apagará depois com
mais dificuldade do que as pegadas delicadas das crianças.
Mais tarde talvez me acostume, mas agora, depois de cada grupo, as
minhas faces ardem e na minha cabeça não resta nem uma data, nem um
nome, como se os tivesse aprendido para os recitar só uma vez. Tento falar
calmamente, em frente de cada espingarda em frente de cada fotografia de
guerrilheiro, mas sinto a voz trémula e as crianças entreolham-se. Só à saída,
quando o professor quer despedir-se de mim, só então compreendo que,
durante todo o tempo, estive com as mãos agarradas ao peito.
— Ouve o que te vou dizer — sem abrir os olhos sei que é a mulher da
limpeza, vinda para apagar as minhas pegadas. — Ivanov, o que estava antes
de ti, contava tudo em dez minutos e pronto…
Diz-mo depois de cada grupo e já descobri que a sua voz monótona me
acalma, sorrio e sinto como as datas e os nomes voltam à minha memória.
São meus. Desde que vim para esta cidade, procurei-os no meio de folhas
amarelas, que se partiam ao serem tocadas, recolhi-os de mães que me ofe‑
reciam doce de cerejas e não tinham lágrimas, contavam-me acerca dos fi‑
lhos com voz apagada e cantante, como se estivessem a compor versos de
cuja melodia não conseguiam recordar-se.
Só não consegui saber nada sobre o capotezinho de estudante.

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382 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Heiner MÜLLER. Excerto de «A missão. Recordações de uma revolução»,


in A Missão e Outras Peças. Tradução de Anabela Mendes. [1979] 1982.
Lisboa: Apáginastantas. 55-59.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Galloudec a Antoine. Escrevo esta carta no meu leito de morte. Escrevo


em meu nome e em nome do cidadão Sasportas, que foi enforcado em Port
Royal. Participo-lhe que tivemos de recusar a missão que a Convenção nos
confiou por seu intermédio, uma vez que a não pudemos cumprir. Talvez
outros a executem melhor. De Debuisson não voltará a ouvir falar. Ele está
bem. É sempre assim. Os traidores passam bem, enquanto os povos se es‑
vaem em sangue. O mundo é assim, e isso não está certo. Queira desculpar a
minha letra. Eles amputaram-me uma perna e estou a escrever-lhe cheio de
febre. Espero que esta carta o vá encontrar de boa saúde e despeço-me com
saudações republicanas.

Marinheiro. Antoine. Mulher.

Marinheiro:
O senhor é o cidadão Antoine? Se assim é, está aqui uma carta para si. De um
tal Galloudec. Não tenho culpa se a carta já é antiga e talvez o assunto se tenha
entretanto resolvido. Fomos retidos pelos espanhóis em Cuba, a seguir pelos
ingleses na Trindade, até que o vosso cônsul Bonaparte fez a paz com a Ingla‑
terra. Depois roubaram-me numa rua em Londres, porque estava bêbado, mas
não encontraram a carta. Quanto a esse Galloudec: não envelhecerá. Esticou
num hospital em Cuba, meia prisão, meio hospital. Estava lá com uma feri‑
da infectada, eu com febre. LEVA A CARTA. TEM DE CHEGAR AO SEU
DESTINO, NEM QUE SEJA A ÚLTIMA COISA QUE FAÇAS, TENS DE
FAZÊ-LA POR MIM. Foram as suas últimas palavras. E a morada de um escri‑
tório e o seu nome, se o senhor é este Antoine. Mas o escritório desapareceu e
de si, se Antoine é o seu nome, já ninguém sabe nada, lá onde era o escritório.
Um sujeito que vive numa cave por detrás dos andaimes, mandou-me a uma
escola, onde um Antoine terá trabalhado como professor. Mas aí também nin‑
guém sabia dele. Então uma mulher da limpeza disse-me que o sobrinho dela
o tinha visto aqui. Ele é carroceiro. E descreveu-mo, se é que o senhor é o tal.

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386 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Herta MÜLLER. Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo. Tradução de Aires


Graça. [2009] 2010. Lisboa: Dom Quixote. 11­‑13.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Tudo o que eu tenho trago comigo.


Ou: Tudo o que é meu trago em mim.
Trouxe tudo o que tinha. Mas não era meu. Ou era alheio à serventia
para que fora criado ou era de outra pessoa. A mala de pele de porco era um
caixotinho de grafonola. O guarda­‑pó era do pai. O sobretudo citadino com
a gola debruada a veludo era do avô. As calças de fole, do meu tio Edwin. As
polainas de couro, do vizinho, o sr. Carp. As luvas verdes de lã, da minha titi
Fini. Só o cachecol de seda cor de vinho e o nécessaire eram meus, presentes
do último Natal.
Ainda havia guerra em Janeiro de 1945. Com medo de que eu tivesse de
partir para a terra dos russos no meio do Inverno, quem sabe para onde, todos
me queriam dar qualquer coisa que talvez tivesse alguma serventia, quando
já não houvesse outro remédio. Porque já não havia remédio neste mundo.
Porque eu estava irrevogavelmente na lista dos russos, todos me deram qual‑
quer coisa e outros pensaram com os seus botões. E eu aceitei e pensei com
os meus dezassete anos que esta partida chega no tempo certo. Era melhor
que não fosse na lista dos russos, mas se as coisas não correrem muito mal,
até é bom para mim. Eu queria partir, fugir ao dedo molesto da cidade peque‑
na, onde todas as pedras tinham olhos. Em vez de medo, sentia uma secreta
impaciência. E a consciência pesada, porque a lista de que os meus parentes
desesperavam era para mim uma situação aceitável. Eles temiam que algo me
acontecesse em terra estranha. Eu queria ir para um lugar que nada soubesse
de mim.
Já algo me tinha acontecido. Algo de proibido. Foi estranho, sujo, desa‑
vergonhado e belo. Passou­‑se no Parque dos Amieiros, bem ao fundo, para
lá do outeiro de erva rasa. No caminho de volta, fui até ao meio do parque,
ao pavilhão redondo, onde as orquestras tocam nos feriados. Fiquei algum
tempo sentado lá dentro. A luz trespassava a madeira finamente esculpida.
Vi o medo dos círculos, quadrados e trapézios vazios, ligados por trepadei‑
ras brancas com garras. Tinha o desenho dos meus desatinos e o desenho

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388 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

George ORWELL. Excerto de «Capítulo I», in A Quinta dos Animais.


Tradução de Paulo Faria. [1945] 2008. Lisboa: Antígona. 19­‑23.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Todos os animais estavam agora presentes à excepção de Moisés, o corvo


domesticado, que dormia num poleiro junto à porta das traseiras do solar.
Quando o Major viu que todos se tinham instalado confortavelmente e
aguardavam, cheios de atenção, pigarreou e disse assim:
— Camaradas, já sabem que, a noite passada, tive um sonho muito estra‑
nho. Mas do sonho irei falar lá mais para a frente. Primeiro quero dizer­‑vos
outra coisa. Irei seguramente deixar­‑vos dentro de pouco tempo, camara‑
das, alguns meses, se tanto, e, antes de morrer, sinto que tenho obrigação de
vos transmitir a sabedoria que adquiri. Tive uma vida longa e pude meditar
muito nas coisas, ali sozinho, deitado na minha baia, e acho que não será pre‑
sunção minha afirmar que compreendo a natureza da nossa existência neste
mundo tão bem ou melhor do que qualquer outro animal hoje vivo. É sobre
isto que vos desejo falar.
«Pois bem, camaradas, de que é feita esta nossa vida? Deixemo­‑nos de
rodeios, levamos vidas infelizes, trabalhosas e breves. Nascemos, dão­‑nos
comida suficiente apenas para não morrermos de inanição, e aqueles de
entre nós capazes de trabalhar vêem­‑se obrigados a consumir todas as suas
energias numa labuta penosa; por fim, mal deixamos de ser úteis, trucidam­
‑nos com a mais hedionda das crueldades. Nenhum animal de Inglaterra
sabe o que é ser feliz ou sequer ter descanso depois de completar o primeiro
ano de vida. Nenhum animal de Inglaterra é livre. A vida dos animais é feita
de infelicidade e escravidão: eis a verdade nua e crua.
«Mas será que devemos resignar­‑nos, pois é esta a ordem natural das
coisas? Dar­‑se­‑á o caso de esta nossa terra ser tão pobre que não consegue
proporcionar uma vida condigna aos que nela habitam? Não, camaradas,
mil vezes não! O solo inglês é fértil, o clima é bom, esta terra podia alimen‑
tar à farta o triplo ou o quádruplo dos animais que hoje aqui vivem. Só esta
nossa herdade podia sustentar uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de
ovelhas — e todos a viver com um grau de conforto e dignidade que, neste
momento, quase nem conseguimos conceber. Então porque é que continua‑

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boris pasternak 391

Boris PASTERNAK. Doutor Jivago. Tradução de António Pescada. [1957]


2008. Lisboa: Sextante. 250­‑251.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Mas quem era afinal aquele homem? Era surpreendente como tinha chega‑
do àquela posição e nela se mantinha um homem sem partido, que ninguém
conhecia, porque sendo originário de Moscovo, ao terminar a universida‑
de partira como professor para a província, durante a guerra estivera algum
tempo prisioneiro, e até recentemente estava desaparecido e era dado como
morto.
O ferroviário progressista Tivérzin, em cuja família Strelnikov fora edu‑
cado desde criança, recomendava­‑o e respondia por ele. As pessoas de quem
dependiam nesse tempo as nomeações confiavam nele. Nos tempos do entu‑
siasmo incontrolável e das ideias mais extremas, o espírito revolucionário
de Strelnikov, que também não se detinha diante de nada, distinguia­‑se pela
sua autenticidade, por um fanatismo que não imitava ninguém, mas que era
resultante de toda a sua vida, e não acidental.
Strelnikov justificava a confiança que nele depositavam.
A sua folha de serviço do último período incluía as acções de Ust­‑Nemda
e Nijni­‑Kelmess, o caso dos camponeses de Gubassovo, que opuseram resis‑
tência armada ao destacamento de abastecimento, e o caso do roubo do
comboio alimentar pelo regimento de infantaria 14 na tomada da estação
de Medvéjie. No seu registo figurava também o caso dos soldados razinistas,
que se sublevaram na cidade de Turkatule e de armas nas mãos se passaram
para o lado dos guardas brancos, e o caso do motim militar no porto fluvial
de Tchirkin Us, com a morte do comandante que se mantivera fiel ao poder
soviético.
Em todos esses lugares ele chegava de surpresa, como a neve que cai
sobre a cabeça, julgava, condenava, fazia executar as penas, depressa, severa‑
mente, sem hesitações.
Com as expedições do seu comboio pusera­‑se fim à epidemia das deser‑
ções naquela região. A revisão das organizações de recrutamento mudou
tudo. O alistamento no Exército Vermelho decorria com êxito. As comissões
de admissão passaram a trabalhar febrilmente.

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francesco petrarca 393

Francesco PETRARCA. [Só, pensativo, o ermo descampado], in As Rimas


de Petrarca. Tradução de Vasco Graça­‑Moura. [1336] 2003. Lisboa: Bertrand.
133.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Só, pensativo, o ermo descampado


vou medindo com passo tardo e lento,
e olhos desvio a evitar atento
vestígio humano no areal marcado.

Outro escudo não tenho contra olhado


da gente em manifesto entendimento;
pois na extinta alegria em que me alento
se lê por fora o meu dentro inflamado;

e montes, prados, creio, e a folhagem


da selva e rios, sabem qual a têmp’ra
da vida que eu aos outros não revele.

Porém áspera via ou tão selvagem,


não sei buscar que Amor não venha sempre a
discorrer já comigo e eu com ele.

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394 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Francesco PETRARCA. [Quando na erva fresca alvo pé vai], in As Rimas


de Petrarca. Tradução de Vasco Graça­‑Moura. [1336] 2003. Lisboa: Bertrand.
471.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Quando na erva fresca alvo pé vai


e doce passo honestamente move,
virtude que abra as flores e as renove
dir­‑se­‑ia que das ternas plantas sai.

Amor, que os corações ledos atrai,


nem noutro lado a sua força prove,
de olhos belos prazer tão quente chove,
que outro bem ou manjar não me distrai.

E com andar e olhar de doce gosto


cada dito dulcíssimo se afoite
e o porte manso, humilde e bem composto.

E em quatro chamas, tais, juntas, se acoite


este mor fogo em que ardo e vivo posto,
tal como ao sol um pássaro da noite.

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harold pinter 395

Harold PINTER. Excerto de «Acto I», in Feliz Aniversário. Tradução de


Artur Ramos e Jaime Salazar Sampaio. [1975] 1967. Prelo. 53­‑ 57.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Stanley – Quem é que entrou?


Meg – Aqueles dois senhores.
Stanley – Quais senhores?
Meg – Os que estavam para vir. Fui agora mesmo mostrar­‑lhes o quarto.
Ficaram encantados.
Stanley – Então sempre vieram...
Meg – São muito simpáticos, Stan.
Stanley – Porque é que não chegaram ontem à noite?
Meg – Acharam as camas óptimas.
Stanley – Quem são eles?
Meg – (Sentando­‑se) São muito simpáticos, Stan.
Stanley – Eu perguntei quem são.
Meg – Já lhe disse, aqueles dois senhores.
Stanley – Nunca julguei que eles viessem.

Levanta­‑se e dirige­‑se para a janela.

Meg – Mas vieram. Já cá estavam quando eu vim das compras.


Stanley – O que é que eles querem?
Meg – Querem cá ficar.
Stanley – Por quanto tempo?
Meg – Não disseram.
Stanley – (Voltando­‑se) Mas porquê aqui e não noutro sítio qualquer?
Meg – Esta casa vem no guia.
Stanley – (Descendo) Como é que eles se chamam? Diga lá os nomes deles.
Meg – Não me lembro, Stanley...
Stanley – Mas eles disseram­‑lhe, não foi? Ou não lhe disseram?
Meg – Disseram, mas...
Stanley – Então quem são eles? Vá lá. Veja se se lembra.

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398 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Jacques PRÉVERT. «Barbara», in Palavras=Paroles. Tradução de Manuela


Torres. [1949] 2007. Lisboa: Sextante. 309­‑311.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Lembra­‑te Barbara
Chovia sem parar em Brest nesse dia
E tu caminhavas sorridente
Feliz radiante resplandecente
Sob a chuva
Lembra­‑te Barbara
Chovia sem parar em Brest
E eu cruzei­‑me contigo na rua de Siam
Tu sorrias
E eu também sorria
Lembra­‑te Barbara
Tu que eu não conhecia
Tu que não me conhecias
Lembra­‑te
Lembra­‑te apesar de tudo desse dia
Não esqueças
Um homem abrigava­‑se num portão
E gritou o teu nome
Barbara
E tu correste para ele sob a chuva
Resplandecente radiante feliz
E lançaste­‑te nos seus braços
Lembra­‑te disso Barbara
E não me leves a mal por te tratar por tu
Trato por tu todos aqueles que se amam
Mesmo que não os conheça
Lembra­‑te Barbara
Não esqueças
Essa chuva serena e feliz
No teu rosto feliz

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400 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Mihail SADOVEANU. Excerto de «Um drama na floresta», in Novos Contos


Romenos. Tradução de Victor Buescu. [1937] 1946. Lisboa: Portugália. 198­
‑202.

Conta­‑se ainda que em certa ocasião deixou crescer uma grande barba para
que sua mulher pudesse elevar­‑se até aos seus ouvidos e dar­‑lhe alguns con‑
selhos. Ela exortou­‑o a imitar os outros, os do vale, quer dizer a misturar­‑se
com a multidão, e juntar­‑se aos seus divertimentos, a bater­‑se, a entrar na
política. Mas, lembrando­‑se das palavras sensatas da sua antepassada, Ilie
preferiu abandonar, ao mesmo tempo que a barba, as complicações dos ho‑
mens. Desde então apresenta a cara rapada. Nunca o verão comportar­‑se
como os da planície, nem tão­‑pouco escutará os conselhos da mulher. Uma
longa barba necessita de muitos cuidados e dum pente. Além disso, quando
se tem uma barba, as corças olham para nós duma maneira singular e não
nos reconhecem. É que Ilie faz parte desses guardas que, sabendo muito
bem «ler» nos lugares que o encarregaram de vigiar, sabem também explicar
o que «leram».
Assim, ultimamente, numa reunião que se realizou no Bosque do Se‑
nhor, eis como ele falou, explicando esses «sinais ocultos» que as pessoas
vulgares não percebem:
— Fiquem sabendo, senhores, que esta manhã estive no Prado dos
Cavalos para ver se descobria vestígios de marta.
Primeiro, é necessário dizer­‑vos que todos os carnívoros, desde o bode
bravo e o lince até à marta, estão aqui sob a nossa vigilância. (Digo isto aos
profanos e não aos caçadores.) Os nossos guardas, durante o Inverno, procu‑
ram em especial as martas, cuja pele ao câmbio actual vale cinco mil lei1. Do
tamanho da pele de gato, esta pelezinha é muito preciosa em primeiro lugar
por causa da sua beleza e da sua cor castanho ondeado como um fumo, em
segundo lugar pela macieza da pelagem e pelas suas listas negras. O preço é
muito elevado, porque a captura é difícil. Os nossos homens, para não lhe
estragar a pele, evitam matá­‑la a tiro. Assim, vemo­‑los colocar na floresta,
nos locais onde se descobrem vestígios da sua passagem, certas armadilhas

1 Moeda da Roménia.

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mihail sadoveanu 401

simples e engenhosas: não armadilhas de ferro, mas de madeira. Para um


bicho daquele tamanho, o dispositivo é muito amplo, porque os animaizi‑
nhos não notam senão as armadilhas pequenas. Armam­‑se pois para elas
grandes ratoeiras semelhantes às que construíam, há um milhar de anos, os
caçadores. Já naqueles tempos, a pele da marta era das mais caras. Só os
reis a usavam. E os voivodas da Transilvânia ou da Moldávia procuravam­‑na
e proibiam o seu uso, para que as suas ilustres pessoas fossem as únicas a
adornar­‑se com elas. No fundo dessa armadilha, os caçadores colocam um
esquilo ou um gaio na extremidade duma estreita alavanca, sobre a qual a
presa é forçada a avançar para apanhar a isca. Logo que esteja ao seu alcance,
mal ela toca num pêlo ou numa pena, esta construção cai e, rápido como um
relâmpago, um bocado de madeira bate no animal, o suficiente para o matar.
O caçador encontra a marta nos cimos, por entre os bosques, onde a raposa
não a pode atingir, nem os mochos avistá­‑la.
Pois bem, como lhes dizia, esta manhã galguei os declives do Prado dos
Cavalos à procura de vestígios de martas. A noite passada nevou ligeiramen‑
te, como se tivesse caído um pouco de açúcar em pó. Ao dirigir­‑me para o
meu sector de vigilância parava, de tempos a tempos como deve ser, para
me entregar a investigações. De repente, ao deter­‑me à beira dum bosque,
avistei duas corças.
Pastavam aqui e ali por entre estilhaços de madeira, tufos de escorcio‑
neira selvagem. Depois avançaram para a clareira, desenterrando da neve
alguns framboeseiros. Em seguida, cavaram o solo com os cascos, enterra‑
ram o focinho e, levantando a cabeça, aspiraram a plenos pulmões o ar leve
da madrugada.
O sol ainda não tinha nascido. O céu estava sereno, a floresta imóvel.
Tudo parecia mergulhado numa tranquilidade absoluta. E eu não me mexia
do meu lugar, desejoso de seguir simplesmente com o olhar essas corças,
ver o que elas queriam, o que faziam. Foi só um pouco mais tarde que com‑
preendi porque devia ali ficar.
Enquanto permanecia no meio desse quadro branco e calmo, com os
olhos fitos nas corças e o espírito ausente, o meu coração pôs­‑se subita‑
mente a bater. As corças devem ter pressentido qualquer coisa; sim, qual‑
quer coisa, mas eu não via o que poderia ser. Uma delas, depois de um
salto para o lado, precipitou­‑se para o cimo da montanha, em direcção aos
pinhais. A outra escapou­‑se para o vale, ainda mais amedrontada do que a
primeira.
Elevando­‑me para melhor ver, sobre esta montada natural com que
Deus me fadou, nada avistei senão a fuga precipitada das corças em

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402 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

debandada, mas nem um urso, nem um lobo... Se houvesse algum, ter­‑se­


‑ia mostrado e tê­‑lo­‑ia visto!... Contudo, era forçoso que houvesse qualquer
coisa. Não há medo sem motivo.

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arthur schnitzler 403

Arthur SCHNITZLER. O Tenente Gustl. Tradução de Ana Maria Bernardo.


[1901] 1988. Lisboa: Difel. 22­‑25.

Meu Deus, será que sonhei?... Ele disse mesmo isto? Onde é que ele está? Lá
vai ele... Eu devia era puxar da espada e dar cabo dele... Meu Deus, alguém
terá ouvido alguma coisa? Não, ele falou muito baixinho, ao meu ouvido...
Porque é que não vou ter com ele e não lhe racho a cabeça?... Não, não posso,
não posso... devia­‑o ter feito logo na altura... Porque é que não o fiz logo?...
Não pude... ele não largava o punho, e é muito mais forte do que eu... Se
tivesse dito mais uma palavra, partia­‑me mesmo a espada... Ainda me devo
dar por muito feliz por ele não ter falado alto! Se alguém ouvisse, então tinha
de me ir matar já a seguir... Se calhar foi um sonho... Porque é que o senhor
ao pé da coluna está a olhar tanto para mim? Será que afinal sempre ouviu
alguma coisa? Vou­‑lhe perguntar...Vou quê? — Eu estou mas é doido! Que
figura é que eu ia fazer? — Nota­‑se­‑me alguma coisa? Devo estar muito páli‑
do. Onde é que está o malandro?... Tenho de o matar!... Fugiu... Já está tudo
tão vazio... Onde é que está o meu casaco? Ah, já o tenho vestido... nem dei
por isso... Quem é que me ajudou?... Ah, aquele ali... tenho de lhe dar cinco
coroas... Pronto!... Mas isto foi mesmo verdade? Alguém realmente falou as‑
sim para mim? Alguém realmente me chamou patife? E eu não dei cabo dele
logo ali? Mas é que não pude... ele tinha um pulso de ferro... ali fiquei como
que pregado ao chão... Não, devo ter perdido o juízo, porque se não com a
outra mão tinha... Mas então ele tirava­‑me a espada e partia­‑a — e acabava­
‑se — acabava­‑se tudo! E depois, quando ele se foi embora já era tarde de
mais... era impossível ir a correr atrás dele e espetar­‑lhe a espada por trás.
O quê, já estou na rua? Mas como é que eu de lá saí? — Está bem fresco...
ah o vento faz bem... Quem é que está ali adiante? Porque é que estão a olhar
para mim? Se calhar aqueles ouviram alguma coisa... Não, ninguém ouviu
nada, de certeza... bem o sei, olhei à minha volta logo a seguir! Ninguém se
importou comigo, ninguém ouviu nada. Mas ele disse­‑o, embora ninguém
ouvisse; disse­‑o, sim. E eu ali fiquei e tolerei tal coisa, como se alguém me
tivesse dado uma paulada!... Mas não fui capaz de dizer nem de fazer nada;
não tive outro remédio senão ficar bem quietinho!... é terrível, não se pode

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404 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

aguentar tal coisa; tenho de o liquidar onde quer que o encontre! Então um
fulano diz­‑me isto a mim! Um tipo daqueles, um malandro! E ele conhece­
‑me... ele conhece­‑me, caramba, ele sabe quem eu sou!... Ele pode ir contar
a qualquer pessoa que me disse aquilo!... Não, não, ele não vai fazer isso, se
não também não tinha falado tão baixo... ele também quis que fosse só eu a
ouvir aquilo? Mas quem me garante que de hoje para amanhã não vá contar à
mulher, à filha, aos amigos do café? — Céus, amanhã vejo­‑o outra vez! Quan‑
do eu amanhã for ao café, lá está ele outra vez como nos outros dias a jogar à
bisca com o senhor Schlesinger e com o vendedor de flores artificiais... Não,
não pode ser, não pode ser... Se lhe ponho a vista em cima, dou cabo dele...
Não, não posso fazer isso, logo na altura é que o devia ter feito, logo!... Se
tivesse podido! Vou mas é ao coronel participar a coisa... sim, ao coronel...
O coronel é sempre muito simpático — e eu vou­‑lhe dizer: «senhor coronel,
na mais estrita obediência venho participar que ele me segurou no punho
da espada e não o largou; foi o mesmo que estar sem arma...» — O que é que
o coronel vai dizer? — O que vai ele dizer? — Mas aí só há uma resposta:
é demitir­‑me, demitir­‑me vergonhosamente!...

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walter scott 405

Walter SCOTT. Ivanhoe. Tradução de Ricardo Iglésias. [1819] 1985. Lisboa:


Europa-América. 419-422.

A desgraçada Rebeca foi conduzida para uma cadeira preta perto da pira.
Viu­‑se que estremeceu quando olhou pela primeira vez para aquele sítio
horrível, onde continuavam preparativos para o fim do seu corpo. Fechara
os olhos e, certamente, rezara, pois que os lábios se lhe moviam quase im‑
perceptivelmente. Passado um pouco, abriu os olhos, fixou a pilha, como
que para com ela se familiarizar, e depois, com toda a naturalidade, afastou
a vista de lá.
O Grão­‑Mestre já se sentara e, quando todos os cavaleiros da Ordem
se instalaram igualmente, atrás e à sua volta, de acordo com as diversas ca‑
tegorias, um longo e floreado trombetear anunciou ter o tribunal aberto.
Malvoisin, um dos padrinhos do campeão, avançou e colocou a luva da judia,
o símbolo do repto, aos pés do Grão­‑Mestre.
— Valoroso senhor e reverendo pai — disse —, eis aqui o bom cavaleiro
Brian de Bois­‑ Guilbert, preceptor da Ordem do Templo, que, tendo aceite
este repto que acabo de depor aos pés de Vossa Reverência, se comprome‑
teu a fazer o seu dever combatendo, hoje, para que se prove que a donzela
judia, Rebeca de seu nome, merece a sentença lida em capítulo da mui sa‑
cra Ordem do Templo de Sião, condenando­‑a à morte como feiticeira. Está
aqui, repito, para batalhar, com toda a honra e cavalheirismo, caso seja esse
o vosso nobre e santificado desejo.
— Já jurou — perguntou o Grão­‑Mestre — em como a causa é justa e
honrosa? Trazei o crucifixo e o Te igitur.
— Senhor e mui reverendo pai — respondeu Malvoisin —, o nosso ir‑
mão aqui presente já prestou essa jura perante o bom cavaleiro Conrade de
Mont­‑Fitchet. Aliás, nem necessitaria de o ter feito, uma vez que o seu ad‑
versário é descrente e não pode fazer igual declaração.
A explicação foi considerada satisfatória, com grande alegria para
Albert, fino cavaleiro, que previra a dificuldade, ou talvez a impossibilidade,
de se conseguir que Bois­‑ Guilbert fizesse um juramento daqueles, perante a
assembleia, e recorrera àquele subterfúgio.

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406 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

O Grão­‑Mestre, aceite a justificação de Albert de Malvoisin, mandou


que um arauto cumprisse os seus deveres. Novamente soaram trombetas e
um arauto proclamou bem alto:
— Oyez, oyez, oyez! Eis aqui o cavaleiro, Sr. Brian de Bois­‑ Guilbert, pron‑
to a competir com qualquer cavaleiro livre de nascimento que deseje defen‑
der a causa da judia Rebeca como campeão, a quem será dada igualdade de
sol e de vento no campo e tudo o mais que um combate leal possa exigir.
As trombetas fizeram­‑se ouvir mais outra vez, seguindo­‑se­‑lhes um ab‑
soluto silêncio.
— Não se apresenta qualquer campeão para a apelante — comentou o
Grão­‑Mestre. — Arauto, vai e pergunta­‑lhe se espera alguém para defender
a sua causa.
O arauto obedeceu e Bois­‑ Guilbert, virando, de súbito, a sua montada,
trotou também para lá, contrariando os conselhos de Malvoisin e Mont­
‑Fitchet.
— É isto compatível com os regulamentos? — interrogou Malvoisin,
olhando para o Grão­‑Mestre.
— É, sim — informou Beaumanoir —, pois neste apelo ao Juízo Divino
não se pode proibir que os adversários se comuniquem para que a peleja
melhor possa ser travada.
Entretanto, o arauto dirigia­‑se a Rebeca nos seguintes termos:
— Donzela. O honorável e reverendo Grão­‑Mestre manda­‑te pergun‑
tar se tens campeão para por ti, neste dia, lutar, ou se te reconheces culpada
e merecedora da sentença.
— Dizei ao Grão­‑Mestre — replicou Rebeca — que insisto na minha
inocência e que reconhecer o crime corresponderia a tornar­‑me culpada da
minha própria morte. Dizei­‑lhe ainda que lhe rogo atrase tanto quanto pos‑
sível o torneio para se ver se Deus, sempre a última esperança dos homens,
me manda um salvador.
O arauto retirou­‑se para transmitir estas palavras.
— Deus nos livre — exclamou Lucas de Beaumanoir — de permitir que
judeu ou pagão nos acuse de injustiça. Esperaremos, até que a sombra cubra
o campo de nascente a poente, a ver se alguém aparece a ajudar aquela infe‑
liz. Quando o dia acabar, ela que se prepare para com ele morrer.
Esta decisão foi comunicada a Rebeca, que, primeiro, baixou a cabeça
em assentimento e, a seguir, cruzou os braços, voltou os olhos para o alto,
como que esperando que de lá viesse o que da terra não parecia vir. Foi du‑
rante essa pausa que a voz de Bois­‑ Guilbert lhe soou aos ouvidos. Fora em
sopro, mas assustou­‑a mais do que o que o arauto lhe informara.

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walter scott 407

— Rebeca — fizera o Templário —, ouves­‑me?


— Contigo nada quero, homem cruel e sem coração — foi a resposta da
pobre menina.
— Está bem. Mas será que me entendes? — insistiu o cavaleiro. —
O som da minha própria voz é horrível para mim mesmo. Desconheço o
chão que piso, porque o piso e o que me trouxe para aqui. Esta liça... essa
cadeira... aquelas achas... Sei que são... para o que são, mas parecem­‑me ir‑
reais... espectáculo medonho que me apavora os sentidos com visões mais
tremendas, todavia, mas em que não acredito.
— A minha mente e sentidos estão lúcidos — respondeu Rebeca —,
ambos me dizem serem aquelas achas destinadas a acabar com o meu corpo
para que, num momento horrível de dor, possa passar para lugar melhor.
— Sonhos, Rebeca, sonhos — disse o Templário. — Visões sem nexo,
rejeitadas até pelos vossos mais doutos saduceus. Escuta­‑me — propôs com
animação: — há melhores possibilidades para ti do que aquelas que aqueles
idiotas e aquele caquéctico imaginam. Monta, atrás de mim, no meu corcel
Zamor, que nunca deixou o amo ficar mal. Ganhei­‑o em combate singular
com o sultão de Trebizonda... Monta, digo­‑te, e em coisa de uma hora os
nossos perseguidores terão ficado muito para trás e um mundo novo se re‑
velará perante nós, de prazer para ti, uma nova carreira e fama para mim.
Rio­‑me do que comentarem e disserem e não me importo que apaguem o
nome de Bois­‑Guilbert da sua lista de escravos monásticos. Com sangue
lavarei toda e qualquer nódoa que me ponham.
— Some­‑te, tentador! — gritou Rebeca. — Nem nesta última extre‑
midade conseguirás que me afaste um nada sequer donde estou, ainda que
de inimigos rodeada, pois tu és, certamente e ainda, o meu pior inimigo...
Some­‑te, em nome de Deus!
Albert de Malvoisin, preocupado com a demora, chegou­ ‑se,
interrompendo­‑os.
— A rapariga reconheceu­‑se culpada? — indagou. — Ou teima na sua
inocência?
— A sua resolução é inabalável — disse Bois­‑ Guilbert.
— Anda, então — recomendou Malvoisin —, e ocupa o teu lugar, aguar‑
dando. As trevas crescem. Vem, bravo Bois­‑ Guilbert. Vem, ó esperança da
nossa ordem, que em breve encabeçarás. — Ao falar colocara uma mão na
brida do cavalo, puxando­‑a com firme gentileza, para que voltasse ao seu
posto.
— Eh! falso vilão! — zangou­‑se Brian. — Que fazem as tuas mãos nas
minhas rédeas? — Libertando­‑se dele, seguiu para o topo da liça.

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408 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Ainda subsiste ânimo dentro dele — observou Malvoisin em apar‑


te para Mont­‑Fitchet —, mas, como o fogo­‑greguês, queima quem dele se
abeira.
Os juízes já aguardavam, na liça, há duas horas, o aparecimento dum
lidador.
— Há bons motivos — opinou frei Tuck —, pois ela é uma judia. Porém,
segundo a minha ordem, não está bem que alguém tão jovem e tão bela mor‑
ra sem que ninguém alce um dedo em sua defesa. Fosse ela dez vezes mais
bruxa, mas um niquinho cristã, que eu levantaria o meu varapau para o dei‑
xar tombar sobre o casco daquele altaneiro templário, e as coisas não fica‑
vam como estão...
Era contudo opinião geral que ninguém tomaria posição por uma feiti‑
ceira judia. Os cavaleiros, instigados por Malvoisin, principiavam, portanto,
a murmurar que chegara a altura de se executar a sentença. Foi então que se
avistou um cavaleiro, a galope, na planície, dirigindo­‑se para ali. Centos de
vozes bradaram: «Um campeão! Um campeão!», e, pondo de parte todos os
preconceitos, aclamaram­‑no quando entrou na liça. Vendo melhor, poucas
garantias oferecia, porém. O cavalo, estafado por muitas milhas de correria,
quase caía sob o peso do cavaleiro, e este, embora impávido, quase se não
aguentava na sela, por fraqueza, cansaço, ou ambas as coisas.
Ao arauto que lhe perguntara o nome, o título e o propósito, o cavaleiro
desconhecido respondera pronta e arrojadamente:
— Sou um cavaleiro nobre e honesto que aqui venho sustentar com a
minha lança e espada a justa causa de Rebeca, filha de Isaac de Iorque, de‑
monstrando a injustiça e a falsidade da sentença que lhe impuseram. Para
tal, desafio o Sr. Brian de Bois­‑ Guilbert, que considero um traidor, um as‑
sassino e um mentiroso. Neste campo, em corpo­‑a­‑corpo, com o auxílio de
Deus, de Nossa Senhora e de S. Jorge, o provarei!
— O desconhecido terá de provar — interveio Malvoisin — que é de
facto cavaleiro e de boa linhagem. O Templo não envia os seus campeões
contra gente sem nome.
— O meu nome é mais conhecido — respondeu o cavaleiro, retirando o
elmo — e a minha linhagem mais pura do que a tua, Malvoisin. Sou Wilfred
de Ivanhoe.

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w.g. sebald 409

W.G. SEBALD. Austerlitz. Tradução de Telma Costa. [2001] 2004. Lisboa:


Teorema. 126­‑131.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Naquela manhã de domingo achei­‑me do lado de dentro do taipal, de fren‑


te para a entrada da chamada Ladies Waiting Room de cuja existência nesta
parte da estação não tivera até aí qualquer noção. O homem do turbante já
não se via em lado algum. Nos andaimes também não havia ninguém. He‑
sitei em transpor a porta de vaivém, mas assim que pus a mão no puxador
de latão logo atravessei uma cortina de feltro pendurada do lado de dentro
para evitar as correntes de ar, entrando numa ampla sala, visivelmente sem
uso há vários anos, como um actor, disse Austerlitz, que entra em cena e no
momento da entrada se apercebe de que esqueceu completa e irremedia‑
velmente não apenas o que tinha aprendido de cor como o papel já muitas
vezes representado. Podem ter passado minutos, ou horas, enquanto eu,
sem poder mexer­‑me do sítio, me deixei ficar naquela sala que me parecia
ter um pé­‑direito fabuloso, olhos virados para cima, para a claridade de um
cinzento­‑gelo lunar que vinha do fenestral corrido ao longo do tecto abo‑
badado e pairava acima de mim como uma rede ou um tecido ralo com bo‑
cados em franja. Embora esta luz fosse muito clara lá em cima, uma espécie
de poeira cintilante, por assim dizer, ao baixar parecia ser absorvida pelas
paredes e pelas regiões inferiores da sala, adicionar­‑se à penumbra e correr
em estrias negras, um pouco como água da chuva descendo pelos troncos
lisos das bétulas ou por uma fachada de betão desmoldado. Por vezes, quan‑
do lá fora, sobre a cidade, a cortina de nuvens se rasgava, entravam feixes
de raios isolados na sala de espera, mas quase sempre se extinguiam a meio
caminho. Outros raios de luz seguiam trajectórias curiosas, contra as leis da
física, desviavam­‑se da linha recta e contorciam­‑se em espirais e remoinhos
antes de serem absorvidos pelas sombras vacilantes. Em menos de um pis‑
car de olhos vi abismos escancarar­‑se, filas de pilares e colunatas a perder de
vista, abóbadas e arcos de alvenaria suportando andares e andares, escadas
de pedra e escadarias que puxavam o olhar cada vez mais para cima, pontões
e pontes levadiças que ligavam os mais profundos abismos, sobre as quais
se amontoavam minúsculas figuras, prisioneiros, pensei eu, disse Austerlitz,

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412 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

SÉNECA. Medeia. Tradução de Ana Alexandra Alves de Sousa. [50 d.C.]


2011. Coimbra: Faculdade de Letras / Centro de Estudos Clássicos e
Humanísticos da Universidade de Coimbra. 94­‑ 97.

Texto sujeito a Direitos de Autor

[…] Procura uma forma de o castigares


que não seja comum e toca a preparar­‑te a ti própria para o seguinte:
renega a justiça em absoluto e bane o pudor para bem longe;
de pouco vale a vingança que mãos impolutas perpetram.
Entrega­‑te à ira, desperta desse torpor
e, selvática, das profundezas do teu coração exaure
por completo os antigos impulsos. Todo o mar que cometeste até hoje
chame­‑se piedade. Vamos! Há­‑de ficar a saber­‑se
como tiveram pouco valor e um cunho vulgar os delitos
que por ele cometi. A minha angústia andou a treinar­‑se
com eles. Que feito grandioso podiam ter ousado mãos
inexperientes? Que podia a loucura de uma rapariga?
Agora sou Medeia. Os danos fizeram crescer o meu talento.
É um comprazimento, é um comprazimento ter arrancado a cabeça ao meu
irmão,
é um comprazimento ter cortado os seus membros e ter privado o meu pai
do seu tesouro secreto, é um comprazimento ter apetrechado as filhas
para a destruição do pai. Procura novo alvo, angústia.
Disporás de uma dextra nada inexperiente para qualquer
crime. Qual é, pois, o teu objectivo, ira? Ou que armas
apontas ao pérfido inimigo? Não sei que crueldade
o meu espírito decidiu secretamente, que não ousa ainda
confessar a si próprio. Insensata, tive demasiada pressa:
quem dera que o meu inimigo tivesse da amante
alguns filhos! Mas tudo o que dele concebeste
é descendência de Creúsa. Pareceu­‑me bem um castigo
deste género, e com justa razão me pareceu bem; devo preparar o meu
último crime
com um espírito corajoso: filhos, que outrora fostes meus,
sede castigados pelos crimes de vosso pai.

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William SHAKESPEARE. «Acto 5, cena V», in Macbeth. Tradução de
Manuel Bandeira. [1606] 1972. Lisboa: Presença. 179­‑183.

Em Dunsinane, no interior do Castelo


Entram, precedidos de tambores e bandeiras, Macbeth, Seyton e soldados.

Macbeth
Içai as nossas bandeiras nas muralhas
Exteriores. Nosso grito é sempre:
«Ei­‑los que vêm!» A força do castelo
Zombará deste assédio: que se fiquem
Até que a fome e as febres os consumam.
Não os tivessem reforçado aqueles
Que deviam ser nossos, já os teríamos
Atacado sem medo, cara a cara,
E enxotado daqui.
Grito de mulheres dentro.
Que ruído é este?

Seyton
É grito de mulheres, Majestade.
Sai.

Macbeth
Já quase esqueci o gosto do medo.
Tempo houve em que o meu pulso pararia
De ouvir alguém gritar dentro da noite;
Em que um sinistro conto relatado
Me faria eriçar­‑se os meus cabelos
Como se vivos fossem. Mas fartei­‑me
De horrores: o terror, já acostumado
Com os meus pensamentos homicidas,
Não me surpreende mais.
Volta Seyton.
Qual foi a causa
Deste grito?

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416 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Seyton
A Rainha, Majestade,
É morta.

Macbeth
É morta... Não devia ser agora.
Sempre seria tempo para ouvir­‑se
Essas palavras. Amanhã, volvendo
Trás amanhã e trás amanhã de novo,
Vai, a pequenos passos, dia a dia,
Até à última sílaba do tempo
Inscrito. E todos esses nossos ontens
Têm alumiado aos tontos que nós somos
Nosso caminho para o pó da morte.
Breve candeia, apaga­‑te! Que a vida
É uma sombra ambulante; um pobre actor
Que gesticula em cena uma hora ou duas,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.
Entra um mensageiro.
Vieste para servir­‑te de tua língua:
Depressa, o teu recado.

Mensageiro
Majestade,
Deveria eu contar o que estou certo
Que vi, porém não sei como fazê­‑lo.

Macbeth
Vamos, fala!

Mensageiro
Estando eu de sentinela
No alto de uma colina, volvi os olhos
Na direcção de Birnam e eis que vejo
Mover­‑se o bosque.

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william shakespeare 417

Macbeth
Mentes, miserável!

Mensageiro
Desabe sobre mim a vossa cólera,
Real, meu Senhor, se isto não for verdade.
Podeis vê­‑lo a três milhas de distância.
Repito: é um bosque em marcha.

Macbeth
Se não for
Verdade, mandarei que te pendurem
Vivo à árvore mais próxima, onde morras
De fome. Mas se for como disseste,
Não se me dá que a mim faças o mesmo.
Já não posso dar rédeas à confiança,
E entro a desconfiar das profecias
Equívocas do demo, que nos mente
Sob a cor da verdade: «Não receies
Até que Birnam venha a Dunsinane.»
E agora uma floresta vem marchando
Na direcção de Dunsinane. — Às armas!
Às armas, e saiamos! Se é verdade
O que este nos refere, não adianta
Fugir daqui ou aqui quedar. Começo
A me sentir cansado deste sol,
E desejara ver neste momento
Espedaçada a máquina do mundo!
Dai rebate! Ora sus, ao inimigo!
Ventos, soprai! Catástrofe, abatei­‑vos!
Ao menos morreremos combatendo.
Saem.

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418 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Aleksandr SOLJENÍTSIN. Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch. Tradução


de António Pescada. [1962] 2012. Lisboa: Sextante. 41-44.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Começava um novo ano, o ano de 51, e nesse ano Chúkhov tinha direito a duas
cartas. A última tinha-a escrito em julho, e a resposta chegara em outubro. Em
Ust-Ijmá tinham outro regulamento: podiam escrever uma vez por mês. Mas
escrever o quê numa carta? Não escrevia com mais frequência do que agora.
Tinha saído de casa em 23 de junho de 1941. No domingo as pessoas que
voltavam da missa, em Polomniá, diziam: Há guerra. Em Polomniá soube-se
no correio, mas em Temgueniovo ninguém antes da guerra tinha rádio. Ago‑
ra escrevem que em cada isbá há um rádio com fios aos berros.
Hoje em dia, escrever é como lançar pedrinhas num denso remoinho.
O que lá cai desaparece sem deixar vestígio. Não vai uma pessoa escrever em
que brigada trabalha, nem como é o chefe da brigada Andrei Prokófievitch Tiú‑
rin. Agora há mais de que falar com o letão Kildigs do que com os familiares.
De lá escrevem duas vezes por ano, e não se consegue perceber que vida
levam. Havia um novo presidente do kolkhoze, o que acontecia todos os anos;
mais de um ano não os deixam no cargo. Aumentaram o kolkhoze, já antes o ti‑
nham aumentado para depois o reduzirem. A alguns que não tinham cumpri‑
do a norma de trabalho reduziram-lhes a parcela para mil e quinhentos metros
quadrados, a outros cortaram-lhas mesmo até rente à casa. A mulher escreve‑
ra também uma vez que saíra uma lei para julgar aqueles que não cumpriam
essa norma, para os meter na prisão, mas parece que essa lei ficara sem efeito.
O que Chúkhov não conseguia de modo nenhum perceber era que,
como a mulher escrevia, depois da guerra nem uma alma viva se tivesse
juntado ao kolkhoze: todos os rapazes e todas as raparigas, cada qual à sua
maneira, conseguiam ir-se embora, ou para a fábrica na cidade, ou para as
turfeiras. Metade dos homens não voltou da guerra, e os que voltaram não
querem saber do kolkhoze: vivem em casa, trabalham fora. Os únicos ho‑
mens do kolkhoze eram Zakhar Vassilitch, o chefe de brigada, e o carpinteiro
Tikhon, de oitenta e quatro anos, que se casara havia pouco e já tinha filhos.
O kolkhoze era mantido pelas mesmas mulheres que nos anos 30, e quando
elas desaparecerem o kolkhoze morre.

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420 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

August STRINDBERG. Menina Júlia: Tragédia em um acto. Tradução de


Augusto Sobral. [1889] 2008. Lisboa: Quimera. 32­‑37.

Texto sujeito a Direitos de Autor

João Não pode ser. Não pode ser, mesmo.


Júlia Não percebo o que isso quer dizer. Estará por acaso a supor que...
João Eu não estou, mas estão os outros.
Júlia O quê? Que eu estou apaixonada pelo criado?
João Não quero armar­‑me em convencido, mas às vezes as coisas aconte‑
cem, e é sabido que para estes rústicos não há nada sagrado.
Júlia Tomo nota: é um aristocrata.
João Sim, sou.
Júlia E eu estou a descer a este mundo.
João Não desça. Siga o meu conselho. Nunca ninguém irá acreditar que
desce de livre vontade. Todos dirão que vem a cair.
Júlia Tenho melhor opinião acerca das pessoas que você. Vamos experi‑
mentar. Vamos lá.

Olha­‑o fixamente nos olhos.

João É uma pessoa muito estranha, sabe.


Júlia Talvez seja, mas você também é. E, vendo bem, tudo é estranho:
a vida, os seres humanos, tudo. Tudo é um lixo que cai sobre a super‑
fície da água, até mergulhar, mais fundo, mais fundo. Há um sonho
que eu tenho muitas vezes. Eu estou em cima de uma coluna e não
sei como descer. Quando olho para baixo sinto tonturas; tenho de
descer, mas tenho medo de saltar. Não posso ali estar, sinto que vou
cair, mas não caio. Não há uma pausa. Não haverá paz para mim até
eu descer e chegar ao chão. Mas ao tocar o chão, eu quero mesmo é
ficar debaixo do chão... Alguma vez sentiu isto?
João Não. No meu sonho eu estou deitado debaixo de uma grande árvore
numa floresta sombria. Quero subir até ao topo e ver a paisagem a
brilhar iluminada pelo sol, e roubar os ovos de oiro do ninho lá mais
no alto. Começo a trepar, a trepar, mas o tronco é muito largo e liso,

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dylan thomas 423

Dylan THOMAS. «A mão ao assinar este papel», in A Mão ao Assinar Este


Papel. Tradução de Fernando Guimarães. [1936] 1998. Lisboa: Assírio &
Alvim. 37.

Texto sujeito a Direitos de Autor

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;


cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.

A mão soberana chega até um ombro descaído


e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,


e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam


a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.

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424 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Lev TOLSTÓI. «Capítulos 10 e 11», in Guerra e Paz. Tradução de Nina


Guerra e Filipe Guerra. [1867] 2005. Lisboa: Presença. 46­‑ 53.

Texto sujeito a Direitos de Autor

A 8 de Setembro entrou no barracão dos presos um oficial muito importan‑


te, a julgar pelo respeito com que os guardas o receberam. Este oficial, pelos
vistos do estado­‑maior, com uma lista nas mãos, fez a chamada de todos os
russos, mencionando Pierre como celui qui n’avoue pas son nom. Depois, passan‑
do um olhar indiferente e preguiçoso pelos presos, deu ordem ao oficial do
corpo da guarda para os vestir decentemente antes de os levar ao marechal.
Uma hora depois chegou uma companhia de soldados, e Pierre, juntamente
com os outros treze, foi levado para o Campo Dévitchie. Depois da chuva, o
dia estava ensolarado e claro, o ar extraordinariamente limpo. O fumo já não
se estendia pelo chão fora, como no dia em que Pierre tinha sido levado do
corpo da guarda para o Aterro Zúbovski; o fumo agora erguia­‑se em colunas no
ar puro. Não se via em lado nenhum o fogo dos incêndios, apenas colunas de
fumo se erguiam em toda a parte, e tudo o que Pierre podia ver de Moscovo era
cinzas. Por todo o lado, espaços desertos com fogões e chaminés no meio e, de
vez em quando, as paredes queimadas dos prédios de pedra. Pierre observava
as ruínas e não reconhecia os quarteirões familiares da cidade. Nalguns lugares
viam­‑se igrejas que se tinham salvado. O Kremlin, intacto, branco, avistava­‑se
de longe com as suas torres e o campanário de Ivan, o Grande. Perto, brilha‑
va alegremente a cúpula do Mosteiro Novodévitchi, donde chegava o badalar
sonoro dos sinos. Este som lembrou a Pierre que era domingo e festa do nasci‑
mento da mãe de Deus. Mas parecia não haver ninguém para celebrar a festa:
por todo o lado, apenas as ruínas dos incêndios e, do povo russo, apenas umas
pessoas esfarrapadas, fugidias e assustadas que se escondiam dos franceses.
O ninho russo tinha sido destruído, exterminado e, por trás da des‑
truição desta ordem de vida russa, Pierre sentia inconscientemente que no
ninho saqueado se estabelecia uma ordem nova, diferente, mas firme —
francesa. Sentia­‑o pelo aspecto dos soldados que, animados e alegres, em
filas regulares, o escoltavam e aos outros criminosos; sentia­‑o pelo ar de um
importante funcionário francês que se cruzou com ele numa caleche puxada
por dois cavalos e conduzida por um soldado. Sentia­‑o pelos sons alegres da

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tomas tranströmer 431

Tomas TRANSTRÖMER. «Uma noite de Inverno», in Cinco Poetas­


Suecos (II). Tradução de Silva Duarte. [1962] 1981. Barcelos: Companhia
Editora do Minho. [s.p.].

Texto sujeito a Direitos de Autor

A tormenta emboca a casa


e sopra para entoar.
Durmo inquieto, volto­‑me, leio
sonolento o texto da tormenta.

Mas os olhos do menino são grandes nas trevas


e a tormenta é para o menino que ruge.
Ambos gostam das luzes a balançar.
Ambos estão a meio caminho da fala.

A tormenta tem mãos infantis e asas.


Vai a caravana desenfreada para a Lapónia.
E a casa sente a sua constelação de pregos
que sustenta as paredes.

A noite está calma sobre o nosso telhado


(onde todos os passos extintos
repousam como folhas caídas num tanque)
mas lá fora é a noite agreste!

Pelo mundo vai uma mais forte tormenta.


A nossa alma emboca
e sopra para entoar. Receamos
que soprando nos deixe a tormenta vazios.

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Lucian VASILESCU. «Todos os espelhos», in Aproape. Atât de departe. Close.
So far away. Tradução inédita de Anca Vaidesegan. [2009] 2017. Bucareste:
Integral /Vinea. 32.

todos os espelhos em que me espelhava,


até por acaso, estavam emoldurados
em altares pendurados.
sou eu.
eu sou um deus misericordioso
e o todo­‑poderoso: vou deitar em cima do mundo
desgraça e assolação. os pecadores hei­‑de redimir,
todos os fiéis de bolhas hei­‑de­cobrir.
ensinar­‑lhes­‑ei tudo quanto sei, tudo, sobre o sofrimento,
sobre indignidade e humildade.
depois, espelhar­‑me­‑ei nas montras, nas águas dos lagos, nos balcões,
pelos bares, nas colheres,
no sol a brilhar, no arco­‑íris, no mar.
estarei em todo o lugar.
sou eu.
eu sou deus o bom pai.
em catedrais de betão adorado,
em hinos com luzes de neón glorificado.
estou a viver uma morte de puro prazer:
a gente cai de joelhos à minha frente,
beijando a minha boca.
ando a semear fraqueza e dor, o par vencedor.
eu sou deus em cima deste horror.

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Lope de VEGA. «Fuenteovejuna», in Teatro de Lope de Vega. Tradução de
Natália Correia. [1618] 1967. Porto: Livraria Civilização. 317-319.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Laurência — Permiti que junte a minha voz a este conselho de homens. Se,
como mulher, não tenho voto, é­‑me permitido falar. Reconheceis­‑me?
Estêvão Santo Deus! Será a minha filha?
João Rojo — Não a conheces? É Laurência.
Laurência — Puseram­‑me em tal estado que estou irreconhecível.
Estêvão — Minha filha!
Laurência — Não me chameis vossa filha.
Estêvão — Porquê, luz dos meus olhos?
Laurência — Por muitas razões. E a principal é consentirdes que esses dés‑
potas traidores me roubem sem que me salveis ou vingueis. Não pode‑
rei dizer que essa é a obrigação de Frondoso. Não sou ainda sua mulher.
É sobre vós que recai o dever de me guardar. Só na noite da boda ces‑
sam as responsabilidades do pai para começarem as do marido. Quando
compramos uma jóia, só depois de ela nos ser entregue é que a pomos a
recato dos ladrões. Fernão Gómez levou­‑me para sua casa. Fê­‑lo dian‑
te dos vossos próprios olhos. E, como cobardes pastores, deixastes a
ovelha entregue ao lobo. Que adagas contra o meu peito! Que palavras!
Que ameaças! Que delitos atrozes! Que abomináveis desatinos supor‑
tei para me constrangerem a entregar minha castidade aos seus torpes
apetites! Os meus cabelos, estas feridas e este sangue não me deixam
mentir. E achais que sois homens dignos, vós, meu pai e meus paren‑
tes! Não se rasgam as vossas entranhas de dor ao ver­‑me nesta desgraça.
Não passais de mansas ovelhas. O nome de Fuenteovejuna o diz. Dai­
‑me armas, já que sois pedras, bronze, jaspe, tigres... Tigres, não... Estes
são ferozes. Perseguem quem lhes rouba as crias e matam os caçadores
antes que estes fujam para o mar e se arrojem às ondas. Não passais de
assustadas lebres. Bárbaros sereis, não espanhóis. Galinhas! Suportais
que os outros gozem as vossas mulheres. De que vos servem esses es‑
toques que cingis? Ponde rocas à cinta! Por Deus que hei­‑de levar as
mulheres desta vila a resgatarem a sua honra e a derramar o sangue dos

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stefan zweig 435

Stefan ZWEIG. O Mundo de Ontem: Recordações de um europeu. Tradução de


Gabriela Fragoso. [1942] 2005. Lisboa: Assírio & Alvim. 445­‑447.

Aqueles dias em que diariamente se ouviam os gritos lancinantes da pátria


pedindo ajuda, em que se sabia que amigos íntimos eram levados, torturados
e humilhados, e em que se tremia por não se poder ajudar quem se amava,
contam­‑se entre os mais terríveis de toda a minha vida. E não me envergonho
de dizer — de tal modo a nossa época conseguiu perverter os corações —, que
não me sobressaltei, não me lamentei ao receber a notícia da morte da minha
velha mãe que tínhamos deixado em Viena; pelo contrário, senti até uma espé‑
cie de alívio por sabê­‑la agora a salvo de todo o sofrimento, de todos os perigos.
Com oitenta e quatro anos, quase completamente surda, morava num apar‑
tamento na nossa casa de família, e portanto, apesar das novas «leis arianas»,
não podia por enquanto ser desalojada, e nós tínhamos alimentado a esperança
de, daí a algum tempo, conseguir trazê­‑la de alguma maneira para fora do país.
Uma das primeiras medidas tomadas em Viena começou por atingi­‑la dura‑
mente. Com os seus oitenta e quatro anos, já fraca das pernas, estava habi‑
tuada, sempre que dava o seu pequeno passeio diário, a descansar num banco
da Ringstraße ou do Parque, após ter caminhado cinco ou dez minutos com
dificuldade. Não havia ainda oito dias que Hitler era o dono da cidade e já se
tomava a bestial decisão de proibir que os judeus se sentassem num banco —
uma daquelas proibições claramente pensadas para satisfação exclusiva dos
desígnios sádicos de atormentar pelo prazer de atormentar. Espoliar judeus
tinha, ainda assim, uma certa lógica, e fazia sentido, pois com o produto da
pilhagem das fábricas, dos recheios das casas, das mansões, e com os empregos
que ficavam vagos era possível alimentar os correligionários e recompensar os
velhos acólitos; afinal, a colecção de quadros de Göring deve o seu esplendor
essencialmente a esta prática exercida em tão larga escala. Mas negar a uma
senhora de idade ou a um velho extenuado o direito a sentar­‑se alguns minutos
num banco para recuperar o fôlego, tal havia de ser apanágio do século xx e do
homem a quem milhões adoravam como sendo o maior da sua época.
Felizmente, a minha mãe foi poupada a ter de viver mais tempo este
tipo de brutalidades e de humilhações. Faleceu poucos meses depois da

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436 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

ocupação de Viena e não posso deixar de referir aqui um episódio relaciona‑


do com a sua morte; são precisamente tais detalhes que me parece deverem
ficar registados para uma geração vindoura que, necessariamente, conside‑
rará impossível este tipo de coisas. Certa manhã, a senhora de oitenta e qua‑
tro anos perdeu de repente os sentidos. O médico que foi chamado disse
logo que ela dificilmente sobreviveria àquela noite e mandou vir uma vela‑
dora, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, para ficar junto da
moribunda. Acontece que, nem o meu irmão, nem eu, os seus únicos filhos,
estávamos lá e, como é bem de ver, também não podíamos lá ir, porque o
próprio regresso ao leito de morte de uma mãe teria sido considerado crime
pelos representantes da cultura alemã. Por isso, um primo nosso assumiu
a tarefa de passar a noite lá em casa, para que pelo menos um membro da
família estivesse presente na hora da morte. Este nosso primo era, na altura,
um homem de sessenta anos, ele próprio também já não tinha muita saúde
e, de facto, morreu passado um ano. Quando se preparava para armar a cama
no quarto ao lado, com o intuito de aí passar a noite, apareceu a veladora
— em sua honra seja dito que bastante envergonhada — e declarou que,
segundo as novas leis nacional­‑socialistas, não lhe era infelizmente possível
passar a noite à cabeceira da doente. E que, sendo o meu primo judeu, e ela
mulher abaixo dos cinquenta, não tinha autorização de passar uma noite sob
o mesmo tecto, ainda que fosse à cabeceira de uma moribunda — de acordo
com a mentalidade de Streicher, o primeiro pensamento de um judeu seria
atentar contra a pureza da raça. Claro que aquela determinação a embara‑
çava terrivelmente, continuou ela, mas via­‑se forçada a submeter­‑se à lei.
Assim, para que a veladora pudesse ficar junto à minha mãe que expirava, o
meu primo viu­‑se obrigado a deixar a nossa casa nessa mesma noite; talvez
agora se compreenda a razão por que considerei ser para ela uma ventura
não ter de viver mais tempo no meio de tal gente.

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(9 )
L I TE R AT U R A E CON D I Ç Ã O H UMA N A

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rafael alberti 439

Rafael ALBERTI. «Balada para os poetas andaluzes de hoje», in Antologia


de Poesia Espanhola Contemporânea. Tradução de José Bento. [1953] 1985.
Lisboa: Assírio & Alvim. 281.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Que cantam os poetas andaluzes de agora?


Que olham os poetas andaluzes de agora?
Que sentem os poetas andaluzes de agora?

Cantam com voz de homem, — mas onde estão os homens?


Com olhos de homem olham, — mas onde estão os homens?
Com peito de homem sentem, — mas onde estão os homens?

Cantam e quando cantam parece que estão sós.


Olham e quando olham parece que estão sós.
Sentem e quando sentem parece que estão sós.

Será que a Andaluzia está já sem ninguém?


Nos montes andaluzes não haverá ninguém?
Nos mares e campos andaluzes não haverá ninguém?

Não haverá já quem responda à voz do poeta?


Quem olhe o coração sem muros do poeta?
Tantas coisas morreram que não há mais que o poeta?

Cantai alto. Ouvireis que ouvem mais ouvidos.


Olhai alto. Vereis que olham outros olhos.
Pulsai alto. Sabereis que palpita um outro sangue.

Não é mais fundo o poeta em seu subsolo escuro


encerrado. Seu canto ascende mais profundo
quando, aberto, no ar, é de todos os homens.

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440 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Vicente ALEIXANDRE. «Na praça», in Antologia de Poesia Espanhola


Contemporânea. Tradução de José Bento. [1954] 1985. Lisboa: Assírio &
Alvim. 188­‑190.

Texto sujeito a Direitos de Autor

É belo, belamente humilde e confiante, vivificador e profundo,


sentirmo­‑nos sob o sol, entre os outros, impelidos,
levados, conduzidos, misturados, rumorosamente arrastados.

Não é bom
ficar na margem
como o cais ou o molusco que calcariamente quer imitar a rocha.

Mas é puro e sereno nivelarmo­‑nos na alegria


de fluir e perder­‑nos,
encontrando­‑nos no movimento com que o grande coração dos homens
palpita disperso.

Como esse que aí vive, ignoro em que andar,


e vi­‑o descer umas escadas
penetrar corajosamente entre a multidão e perder­‑se.
A grande massa passava. Mas era reconhecível o diminuto coração afluído.
Ali, quem o reconheceria? Ali com esperança, com resolução ou com fé,
com temeroso denodo,
com silenciosa humildade, ali ele também
passava.

Era uma grande praça aberta, e cheirava a existência.


Um cheiro a enorme sol descoberto e a vento ondulando­‑o,
um vento enorme que passava a mão sobre as cabeças,
sua mão enorme que tocava as frontes unidas e as reconfortava.

E era o serpear que se movia


como um único ser, não sei se desamparado, não sei se poderoso,
mas existente e perceptível, mas fecundador da terra.

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442 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Honoré de BALZAC. O Tio Goriot. Tradução de Adelino dos Santos


Rodrigues. [1835] 1973. Lisboa: Minerva. 305­‑316.

Eugène desceu e encontrou Madame Vauquer ocupada a pôr a mesa com Syl‑
vie. Às primeiras palavras que Rastignac lhe dirigiu, a viúva respondeu no
tom agridoce da comerciante desconfiada que não quer perder o seu dinhei‑
ro nem fazer zangar o freguês.
— Meu caro Monsieur Eugène, sabe tão bem como eu que o Tio Goriot
já não tem um soldo. Dar lençóis a um homem que está prestes a fechar os
olhos, é perdê­‑los, tanto mais que pelo menos um terá de ser sacrificado
para o amortalhar... Além disso, o senhor já me deve cento e quarenta e
quatro francos, e se lhes juntar quarenta francos de lençóis e mais algu‑
mas coisitas e a vela que Sylvie lhe vai dar, tudo isso somará, pelo menos,
duzentos francos, que uma pobre viúva como eu não está em condições
de perder... Seja justo, Monsieur Eugène; bem basta o que tenho perdido
desde que há cinco dias o azar se instalou em minha casa... Acredite que
daria de boa vontade dez escudos para que esse pobre homem já se tives‑
se ido embora há dias, como o senhor dizia. Essas coisas incomodam os
pensionistas... Por muito menos, se fosse comigo, já o teria mandado para
o hospital. Enfim, ponha­‑ se no meu lugar... O meu estabelecimento está
primeiro que tudo; é a minha vida!
Eugène subiu rapidamente ao quarto do Tio Goriot.
— Bianchon, o dinheiro do relógio?
— Está ali, em cima da mesa. Sobraram trezentos e sessenta e tal fran‑
cos. Paguei tudo o que devíamos com o que me deram por ele. A cautela do
montepio está debaixo do dinheiro.
Rastignac voltou a descer a escada.
— Tome, minha senhora, pague­‑se de tudo o que lhe devemos. Mon‑
sieur Goriot já não estará muito tempo em sua casa, e eu...
— Sim, sairá daqui com os pés para a frente, pobre homem... — sus‑
pirou a mulher, contando os duzentos francos com ar meio alegre, meio
melancólico.
— Acabemos com isto! — impacientou­‑se Rastignac.

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honoré de balzac 443

— Sylvie, dê os lençóis e vá ajudar os senhores lá acima. Não se esque‑


ça da Sylvie... — acrescentou Madame Vauquer ao ouvido de Eugène. — Há
duas noites que não dorme...
Assim que Eugène virou costas, a velha correu ao encontro da cozinheira.
— Leve os lençóis tirados do número sete. Os mortos não são de cerimó‑
nias... — disse­‑lhe ao ouvido.
Eugène, que já subira alguns degraus da escada, não ouviu as palavras da
velha hospedeira.
— Vamos — disse­‑lhe Bianchon —, a camisa. Mantém­‑no direito.
Eugène colocou­‑se à cabeceira da cama e segurou o moribundo, a quem
Bianchon despiu a camisa. O pobre homem esboçou um gesto, como se qui‑
sesse esconder qualquer coisa no peito, e soltou gritos plangentes e inarticu‑
lados, como os animais quando exteriorizam uma grande dor.
— Oh, oh! — exclamou Bianchon. — Quer uma trancinha de cabelos
e um medalhão que lhe tirámos há bocado para lhe pôr as moxas. Pobre
homem! Temos de lha restituir. Está em cima da chaminé.
Eugène foi buscar uma trança de cabelos louros­‑cendrados, que decerto
tinham pertencido a Madame Goriot, e leu de um lado do medalhão Anasta‑
sie e do outro Delphine — imagens do coração do pobre pai que no seu cora‑
ção sempre tinham repousado. As madeixas contidas no medalhão eram tão
finas que deviam ter sido cortadas na primeira infância das filhas. Assim que
o medalhão lhe pousou no peito, o velhote soltou um hã prolongado, com o
qual exteriorizou uma satisfação confrangedora. Era um dos últimos lampe‑
jos da sua sensibilidade, que dir­‑se­‑ia refluir ao centro desconhecido donde
partem e para onde se dirigem as nossas simpatias. Seguidamente, o seu
rosto convulso adquiriu uma expressão de alegria mórbida. Impressionados
por aquela terrível explosão de uma firmeza de sentimentos que sobrevivia à
memória, os dois estudantes deixaram cair algumas lágrimas comovidas em
cima do moribundo, que soltou um grito agudo, de prazer:
— Nasie! Fifine!
— Ainda vive... — murmurou Bianchon.
— Para que lhe serve já a vida? — observou Sylvie.
— Para sofrer — respondeu Rastignac.
Depois de fazer ao companheiro sinal para que o imitasse, Bianchon
ajoelhou­‑se para passar os braços por debaixo das pernas do doente, enquan‑
to Rastignac fazia o mesmo do outro lado da cama, a fim de lhe passar as
mãos por debaixo das costas. Entretanto, Sylvie preparava­‑se para retirar os
lençóis assim que o moribundo fosse levantado, a fim de os substituir pelos
que trazia. Iludido, sem dúvida, pelas lágrimas dos dois rapazes, Goriot

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utilizou as últimas forças que lhe restavam para estender as mãos. E quando
encontrou de cada lado da cama as cabeças dos estudantes, agarrou­‑as sofre‑
gamente pelos cabelos e ouviram­‑no murmurar com voz débil: «Ah, meus
anjos!...» Duas palavras, dois murmúrios acentuados pela alma que se evolou
com eles.
— Pobre homem! — suspirou Sylvie, a quem comovera aquela exclama‑
ção em que se patenteava um sentimento supremo exaltado pela derradeira
vez pela mais horrível e involuntária das mentiras.
O último suspiro daquele pai devia ser de alegria e foi a expressão de toda
a sua vida, pois mais uma vez se enganou a si próprio. Depositaram piedosa‑
mente o Tio Goriot no seu catre e a partir daquele momento a sua fisionomia
conservou vestígios do combate que se travava entre a morte e a vida dentro
de uma máquina que já não possuía essa espécie de consciência cerebral de
que resulta para o ser humano a sensação do prazer e da dor. A destruição era
apenas uma questão de tempo.
— Vai ficar assim umas horas e morrerá sem que ninguém dê por isso,
sem sequer estertorar. O cérebro deve estar completamente invadido... —
murmurou Bianchon.
Neste momento ouviram­‑ se na escada passos de uma mulher nova
ofegante.
— Chega demasiado tarde — disse Eugène.
Não era Delphine, mas sim Thérèse, a sua criada de quarto.
— Monsieur Eugène, deu­‑se uma cena violenta entre o senhor e a senho‑
ra, por causa do dinheiro que a pobre senhora pedia para o pai. Desmaiou,
veio o médico e teve de ser sangrada. Gritava: «O meu pai está a morrer!
Quero ver o paizinho!» Enfim, gritos de cortar a alma.
— Basta, Thérèse. Não serviria de nada se só viesse agora; Monsieur
Goriot perdeu a consciência.
— Pobre senhor, deve estar muito mal... — murmurou Thérèse.
— Os senhores já não precisam de mim e tenho de ir tratar do meu jan‑
tar, pois são quatro e meia — esquivou­‑se Sylvie, que por pouco não chocou
ao cimo da escada com Madame de Restaud.
Foi uma aparição grave e terrível. A condessa olhou o leito de morte,
mal iluminado por uma única vela de sebo, e desfez­‑se em lágrimas ao ver o
rosto do pai, em que palpitavam ainda os últimos frémitos da vida. Bianchon
retirou­‑se discretamente.
— Não pude vir mais cedo... — disse a condessa a Rastignac.
O estudante acenou afirmativamente com a cabeça, num gesto cheio de
tristeza, e Madame de Restaud pegou na mão do pai e beijou­‑a.

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honoré de balzac 445

— Perdoe­‑me, meu pai! Dizia que a minha voz o faria sair da sepultura...
pois então volte por um momento à vida e abençoe a sua filha arrependi‑
da. Escute­‑me. Isto é espantoso! A sua bênção é a única coisa que doravante
poderei receber neste mundo. Toda a gente me odeia, só o pai gosta de mim.
Os meus próprios filhos me odiarão... Leve­‑me consigo para o amar e tratar.
Já não ouve... que loucura a minha!
Caiu de joelhos e contemplou aquela ruína humana com expressão
delirante.
— A minha infelicidade é completa — prosseguiu, olhando para Eugè‑
ne. — Monsieur de Trailles desapareceu, deixando aqui dívidas enormes,
e soube que me enganava. O meu marido nunca me perdoará, apesar de lhe
ter entregado toda a minha fortuna. Perdi todas as ilusões. Ai de mim, por‑
que atraiçoei o único coração — e apontou para o pai — que me adorava!
Desprezei­‑o, repeli­‑o, causei­‑lhe os maiores sofrimentos... Sou uma infame!
— Ele sabia­‑o — declarou Rastignac.
Neste momento, o Tio Goriot abriu os olhos, mas devido a uma convul‑
são. O gesto que revelou a esperança da condessa não foi menos horrível do
que o olhar do moribundo.
— Ter­‑me­‑ia ouvido?... — perguntou. — Não — respondeu a si própria,
sentando­‑se ao pé da cama.
Como Madame de Restaud tivesse manifestado o desejo de velar o
pai, Eugène desceu para comer qualquer coisa. Os pensionistas já estavam
reunidos.
— Então? Parece que vamos ter uma mortoramazinha lá em cima... —
disse­‑lhe o pintor.
— Charles — redarguiu­‑lhe Eugène —, parece­‑me que deveria gracejar
com qualquer coisa menos lúgubre...
— Então já se não pode rir aqui? — volveu­‑lhe o pintor. — Que diferença
faz, se Bianchon diz que o pobre homem perdeu a consciência?
— Nesse caso — acrescentou o funcionário do Museu — morrerá como
viveu...
— O meu pai morreu! — gritou a condessa.
Ao ouvirem este grito terrível, Sylvie, Rastignac e Bianchon subiram e
encontraram Madame de Restaud desmaiada. Depois de a fazerem voltar a
si, levaram­‑na para o fiacre que a esperava e Eugène confiou­‑a aos cuidados
de Thérèse, a quem ordenou que a levasse para casa de Madame de Nucingen.
— Oh, está bem morto!... — anunciou Bianchon quando desceu.
— Vamos, meus senhores, para a mesa — ordenou Madame Vauquer. —
Não deixem arrefecer a sopa...

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446 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Os dois estudantes sentaram­‑se ao lado um do outro.


— Que é preciso fazer agora? — perguntou Eugène a Bianchon.
— Fechei­‑lhe os olhos e arranjei­‑o convenientemente. Resta­‑nos ir
declarar o óbito, e, depois de o médico da Mairie o confirmar, amortalhar o
cadáver e enterrá­‑lo. Que mais queres que se lhe faça?
— Nunca mais cheirará o pão, assim... — disse um pensionista, imitan‑
do as caretas do pobre homem.
— Irra, meus senhores! —protestou o funcionário do Museu. — Dei‑
xem o Tio Goriot em paz! Há uma hora que se não cansam de no­‑lo impingir
de todas as maneiras e feitios! Um dos privilégios da boa cidade de Paris é a
de se poder cá nascer, viver e morrer sem que ninguém se preocupe connos‑
co. Aproveitemos, pois, as vantagens da civilização. Hoje devem ter morrido
umas sessenta pessoas; querem compadecer­‑se de todas as hecatombes pari‑
sienses?... Se o Tio Goriot esticou, tanto melhor para ele! Se o adoravam, vão
velá­‑lo e deixem­‑nos comer tranquilamente.
— Oh, sim — concordou a viúva —, foi melhor para ele ter morrido!
Parece que o pobre teve muitos desgostos durante a vida...
Foi esta a única oração fúnebre de um ente que, para Eugène, represen‑
tava a Paternidade. Depois, os quinze pensionistas puseram­‑se a conver‑
sar como habitualmente. Quando Eugène e Bianchon acabaram de comer,
o ruído dos garfos e das colheres, os risos provocados pela conversa, as diver‑
sas expressões daquelas caras glutonas e indiferentes, a sua despreocupa‑
ção, enfim — tudo isso os gelou de horror. Saíram para irem procurar um
padre que velasse e orasse durante a noite junto do morto, mas tiveram de
limitar as honras fúnebres a prestar ao pobre homem ao pouco dinheiro de
que podiam dispor. Por volta das nove horas da noite, o corpo foi colocado
em câmara ardente no meio de duas velas, naquele quarto quase vazio, e um
padre sentou­‑se junto dele. Antes de se deitar, Rastignac — que previamente
perguntara ao sacerdote o preço do serviço religioso e do funeral — escreveu
umas palavras ao barão de Nucingen e ao conde de Restaud, pedindo­‑lhes
que mandassem alguém satisfazer as despesas do enterro. Mandou entre‑
gar as cartas por Christophe e depois deitou­‑se e adormeceu prostrado de
fadiga.
No dia seguinte de manhã, Bianchon e Rastignac viram­‑se obrigados a
ir pessoalmente participar o óbito, que foi verificado cerca do meio­‑dia. Pas‑
sadas duas horas, como nenhum dos genros tivesse mandado dinheiro e nin‑
guém se tivesse apresentado em seu nome para tratar do funeral, Rastignac
viu­‑se forçado a pagar as despesas do padre. Sylvie, por seu turno, pediu dez
francos para amortalhar o pobre homem... Depois disto, Eugène e Bianchon

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honoré de balzac 447

calcularam que, se os parentes do morto se não quisessem meter em nada,


mal teriam com que pagar as despesas e, à cautela, o estudante de Medicina
encarregou­‑se pessoalmente de meter o cadáver num caixão de pobre que
mandou vir do hospital, onde o arranjou mais barato.
— Prega uma partida a esses patifes — disse a Eugène. — Compra um
talhão por cinco anos, no Père­‑Lachaise, e encomenda um funeral de tercei‑
ra classe à igreja e à agência funerária. Se os genros e as filhas se recusarem
a reembolsar­‑te, manda gravar na sepultura: «Aqui jaz Monsieur Goriot, pai
da condessa de Restaud e da baronesa de Nucingen, sepultado a expensas de
dois estudantes.» Eugène só seguiu o conselho do amigo depois de ir infru‑
tiferamente a casa dos Nucingens e dos Restauds, onde, aliás, não passou da
porta, pois ambos os porteiros tinham recebido ordens rigorosas.
— O senhor e a senhora — disseram­‑lhe — não recebem ninguém.
Morreu­‑lhes o pai e estão mergulhados na mais profunda dor.
Eugène já possuía suficiente experiência da sociedade parisiense para
saber que não devia insistir; no entanto, sentiu o coração singularmente
oprimido quando se viu na impossibilidade de chegar junto de Delphine.
Escreveu­‑lhe, por isso, o seguinte bilhete, no cubículo do porteiro:

Venda um adereço, se tanto for preciso, para que o seu pai seja conduzido decentemente
à sua última morada.

Fechou o bilhete num sobrescrito e pediu ao porteiro do barão que o mandas‑


se entregar à senhora por intermédio de Thérèse; mas o porteiro entregou­‑o
ao barão, que o atirou ao lume.
Depois de tomar todas as suas disposições, Eugène regressou à pen‑
são familiar por volta das três horas e não pôde reter uma lágrima quando
viu junto da porta de serviço o caixão coberto apenas com um pano preto
e colocado em cima de duas cadeiras, na rua deserta. Num recipiente de
cobre prateado, cheio de água benta, encontrava­‑se mergulhado um mísero
hissope em que ninguém ainda tocara, e a porta nem sequer estava coberta
de negro. Era a morte dos pobres, sem fausto, sem acompanhamento, sem
amigos e sem parentes. Bianchon, obrigado a ficar no hospital, escrevera
algumas palavras a Rastignac para lhe dar conta do que combinara na igreja.
O interno dizia­‑lhe que uma missa custava caríssimo, que por isso teriam de
se contentar com o serviço menos dispendioso das vésperas e que manda‑
ra Christophe entregar um bilhete à agência funerária. Quando acabava de
ler os gatafunhos de Bianchon, Eugène viu nas mãos de Madame Vauquer o
medalhão de aro de ouro que continha os cabelos das duas filhas.

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448 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Como se atreveu a tirar­‑lhe isso? — perguntou.


— Ora essa! Então havia de ser enterrado com ele? — respondeu Sylvie.
— É de ouro!...
— E que tem que seja de ouro? — redarguiu Eugène, com indignação. —
Ao menos, que leve com ele a única coisa capaz de representar as filhas.
Quando a carreta chegou, Eugène mandou colocar nela o caixão,
despregou­‑o e colocou religiosamente no peito do pobre homem aquela
recordação dos tempos em que Delphine e Anastasie eram jovens, virgens
e puras e não raciocinavam, como ele dissera nos seus gritos de agonizante.
Rastignac e Christophe acompanharam sozinhos, com dois gatos­‑pingados,
a carreta que levou o pobre homem a Santo Estêvão do Monte, uma igreja
pouco distante da Rua Nova de Santa Genoveva. Chegado ali, o corpo foi
levado para uma capela baixa e escura, em torno da qual o estudante procu‑
rou em vão as duas filhas do Tio Goriot ou os maridos. Ficou, pois, sozinho
com Christophe, que se julgava no dever de prestar as últimas homenagens
a um homem que lhe dera a ganhar algumas boas gorjetas. Enquanto espera‑
vam os dois padres, o menino de coro e o sacristão, Rastignac apertou a mão
a Christophe, sem poder pronunciar uma palavra.
— Sim, Monsieur Eugène — disse Christophe —, era um homem bom e
honesto, que nunca teve uma palavra mais alta do que outra, que não prejudi‑
cava ninguém e que nunca fez mal a quem quer que fosse.
Os dois padres, o menino de coro e o sacristão chegaram e deram tudo
o que se pode ter por setenta francos numa época em que a religião é pouco
rica para rezar de graça. Os sacerdotes cantaram um salmo, o Libera me e o De
profundis. O serviço durou vinte minutos. Havia apenas uma carruagem de
funeral, para um padre e um menino de coro, que acederam a levar com eles
Eugène e Christophe.
— Como não há acompanhamento — disse o padre —, podemos ir mais
depressa, para não nos atrasarmos, pois já são cinco e meia.
Contudo, no momento em que o caixão foi colocado na carreta, apa‑
receram duas carruagens brasonadas, mas vazias, uma do conde de Res‑
taud e outra do barão de Nucingen, as quais seguiram o féretro até ao Père­
‑Lachaise. Às seis horas, o corpo do Tio Goriot desceu à cova, em redor da
qual se encontravam os criados das filhas, que desapareceram mal o padre
acabou de rezar a curta oração devida ao pobre homem em troca do dinhei‑
ro do estudante. Quando os dois coveiros acabaram de cobrir o caixão com
algumas pazadas de terra, endireitaram­‑se e um deles, dirigindo­‑se a Rastig‑
nac, pediu­‑lhe a gratificação. Eugène vasculhou as algibeiras e, como nada
encontrou, viu­‑se obrigado a pedir vinte soldos emprestados a Christophe.

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honoré de balzac 449

Este pormenor, tão insignificante em si mesmo, causou a Rastignac profunda


tristeza. Anoitecia e o crepúsculo húmido irritava os nervos. Olhou a campa
e sepultou nela a sua derradeira lágrima de rapaz, lágrima provocada pelas
santas emoções de um coração puro, uma dessas lágrimas que da terra onde
caem sobem aos Céus. Cruzou os braços, contemplou as nuvens e, quando o
viu assim, Christophe deixou­‑o.
Rastignac ficou só, deu alguns passos em direcção ao cimo do cemitério
e viu Paris espraiada sinuosamente ao longo das duas margens do Sena, onde
as luzes começavam a brilhar. Os seus olhos fixaram­‑se quase avidamente
entre a coluna da Praça Vandoma e a cúpula dos Inválidos. Era ali que vivia a
alta sociedade em que quisera penetrar... Deitou àquela colmeia zumbidora
um olhar que dir­‑se­‑ia sugar­‑lhe antecipadamente o mel e proferiu estas pala‑
vras grandiosas:
— Agora nós dois!
E como primeiro gesto do desafio que lançava à Sociedade, Rastignac
foi jantar a casa de Madame de Nucingen.

Saché, Setembro de 1834.

FIM

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450 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Charles BAUDELAIRE. «Spleen», in As Flores do Mal. Tradução de


Fernando Pinto do Amaral. [1857] 1992. Lisboa: Assírio & Alvim. 193.

Pluviôse, irritado com toda a cidade,


Da sua urna, em caudais, verte um frio tenebroso
Sobre aquele cemitério e seus moradores pálidos
E traz mortalidade aos arredores brumosos.

No mosaico, o meu gato, em busca de conchego,


Vai agitando o corpo tão magro e sarnento;
Vagueia pla goteira a alma de um poeta
Com a sua triste voz de fantasma friorento.

Lamenta­‑se o moscardo, e a lenha, que fumega,


Acompanha em falsete o relógio engripado,
Enquanto num concerto de sujos perfumes,

Como herança fatal de uma hidrópica velha,


O valete de copas e a dama de espadas
Falam sinistramente dos amores defuntos.

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simone de beauvoir 451

Simone de BEAUVOIR. O Segundo Sexo — Volume I. Os factos e os mitos.


Tradução de Sérgio Milliet. [1949] 2009. Lisboa: Quetzal. 11­‑16.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Hesitei muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritan‑


te, principalmente para as mulheres. E não é novo. A querela do feminismo
fez correr rios de tinta e está agora mais ou menos encerrada. Não toque‑
mos mais nisso... No entanto, ainda se fala dela. E não parece que as volu‑
mosas tolices lançadas neste último século tenham realmente esclarecido a
questão. Aliás, haverá um problema? E qual é ele? Haverá mesmo mulheres?
Sem dúvida, a teoria do eterno feminino ainda tem adeptos; diz­‑se: «Até na
Rússia elas permanecem mulheres.» Mas outras pessoas igualmente bem
informadas — e por vezes as mesmas — suspiram: «A mulher está a perder­‑se,
a mulher já está perdida. Já não se sabe se ainda existem mulheres, se exis‑
tirão sempre, se devemos ou não desejar que existam, que lugar ocupam no
mundo ou deveriam ocupar.» «Onde estão as mulheres?», indagava há pouco
uma revista intermitente. Mas antes de mais que é uma mulher? «Tota mulier
in utero: é uma matriz», diz alguém. Entretanto, falando de certas mulheres,
os conhecedores decretam: «Não são mulheres», embora tenham um útero
como as outras. Toda a gente reconhece que há fêmeas na espécie humana;
constituem, hoje, como outrora, mais ou menos metade da humanidade;
e contudo dizem­‑nos que a feminilidade «corre perigo»; e exortam­‑nas:
«Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornem­‑se mulheres.» Todo o ser
humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre­
‑lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade.
Será esta segregada pelos ovários? Ou estará cristalizada no fundo de um céu
platónico? Bastará um saiote de folhos para fazê­‑la descer à terra? Embora
certas mulheres se esforcem por encarná­‑lo zelosamente, o modelo nunca foi
registado. Descreveram­‑na de bom grado em termos vagos e mirabolantes
que parecem tirados do vocabulário das videntes. No tempo de São Tomás,
ela apresentava­‑se como uma essência tão precisamente definida quanto a
virtude dormitiva da papoila. Mas o conceptualismo perdeu terreno: as ciên‑
cias biológicas e sociais já não acreditam na existência de entidades imuta‑
velmente fixas, que definiriam determinados caracteres como os da mulher,

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samuel beckett 455

Samuel BECKETT. Excerto de «Acto II», in En attendent Godot. Tradução


inédita de Helena Carvalhão Buescu. 1952. Paris: Les Éditions de Minuit.
83-90.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Vladimir Também tu deves estar contente, lá no fundo, reconhece-o.


Estragon Contente porquê?
Vladimir Por me teres reencontrado.
Estragon E tu achas que estou?
Vladimir Diz que sim, mesmo que não seja verdade.
Estragon O que é que eu digo?
Vladimir Diz: «Eu estou contente.»
Estragon Eu estou contente.
Vladimir Também eu.
Estragon Também eu.
Vladimir Nós estamos contentes.
Estragon Nós estamos contentes. (Silêncio.) E o que é que fazemos,
agora que estamos contentes?
Vladimir Esperamos pelo Godot.
Estragon Pois claro.
Silêncio.
Vladimir Desde ontem houve mudanças por aqui.
Estragon E se ele não vier?
Vladimir (após um momento de incompreensão) Logo se vê. (Pausa.) Eu disse
que desde ontem houve mudanças por aqui.
Estragon Tudo está a escorrer.
Vladimir Repara-me na árvore.
Estragon Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo pus.
Vladimir A árvore, repara na árvore, já te disse.
Estragon olha para a árvore.
Estragon Não estava ali ontem?
Vladimir É claro que estava. Não te lembras? Por pouco não nos íamos
enforcando nela. (Reflecte.) Sim, é verdade (destacando as­
palavras) que-nos-íamos-enforcando-nela. Mas tu não
quiseste. Não te lembras?

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460 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

BERNARDO DE CLARAVAL. [Inclina para Ti, ó Deus], in Rosa do


Mundo: 2001 poemas para o futuro. Tradução de José Tolentino Mendonça.
[século xii] 2001. Lisboa: Assírio & Alvim. 649­‑ 650.

Inclina para Ti, ó Deus


aquele pouco que quiseste eu fosse.

De minha pobre existência suplico


toma os anos
que me restam.

Quanto aos anos que se perderam


experimento humilhação e desgosto,
não desprezes meu pranto.

Em mim não há senão


o desejo da Tua sabedoria
meu coração é agora
minha única oferta.

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elizabeth barrett browning 461

Elizabeth Barrett BROWNING. «Substituição», in Oiro de Vário Tempo e


Lugar: De São Francisco de Assis a Louis Aragon. Versões de A. Herculano de
Carvalho. [1816] 2002. Porto: Asa. 41.

Se uma adorada voz, que fora em vossa vida


Suavidade e som, de repente se esvai,
E se logo um silêncio impenetrável cai,
Qual súbito mal­‑estar ou dor desconhecida —

Que esperança há? Que auxílio? E que música, ouvida,


O silêncio destrói? Nem da amizade o ai —
Nem da razão subtil a conta; não se vai
Ao som de violino ou de frauta gemida;

Nem canções de poeta e nem, de rouxinóis,


A voz, que vai subindo através dos ciprestes
Até à clara lua; e medo lhe não causa

Das esferas, o canto — ou dos anjos, nos sóis,


A voz que sobe a Deus; ó não, nenhuma destas!
Fala só tu, ó Cristo, e preenche esta pausa.

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462 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Pedro CALDERÓN DE LA BARCA. «Acto III, Cenas XVII­‑XIX»,


in A Vida É Sonho. Tradução de Manuel Gusmão. [1635] 1973. Lisboa:
Estampa — Seara Nova. 123­‑131.

(Prisão do príncipe na torre.)

CENA XVII
Segismundo, Clotaldo, Clarim e Dois Criados

(Segismundo, como no princípio, vestido de peles e acorrentado, está por


terra. Ao pé dele estão Clotaldo, dois criados e Clarim.)
Clotaldo
Aqui o deveis deixar,
onde hoje sua soberba acaba
onde nasceu.
Um Criado
Como estava,
a cadeia volto a atar.
Clarim
Não te deixes despertar,
Segismundo, pois é forte
perder que, mudada a sorte,
vejas tua glória fingida,
sendo uma sombra da vida
e apenas chama de morte.
Clotaldo
A quem sabe discorrer
assim, é bom se mantenha
algum lugar onde tenha
muito tempo p’ra o fazer.
(Aos criados.)
Este é quem deveis prender
e nesse quarto encerrar.
(E aponta para o quarto contíguo.)
Clarim
A mim?

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pedro calderón de la barca 463

Clotaldo
Sim, que há­‑de ficar
guardado em prisão tão grave
Clarim que segredos sabe,
p’ra que não possa soar.
Clarim
Por acaso eu solicito
dar morte a meu pai? Eu não.
Atirei eu do balcão
aquele Ícaro miudito?
Sonho ou durmo? Com que fim
me encerram?
Clotaldo
Porque és Clarim.
Clarim
Pois já digo que serei
corneta e me calarei,
que é instrumento ruim.
(Levam­‑no e fica só Clotaldo.)

CENA XVIII
Basílio, Clotaldo e Segismundo

(Entra Basílio embuçado.)


Basílio
Clotaldo.
Clotaldo
Senhor, assim
chega Vossa Majestade?
Basílio
Co’a néscia curiosidade
de ver como está, eu vim
a Segismundo, ai de mim!
Por ele aqui fui trazido.
Clotaldo
Veja­‑o ali reduzido
a seu miserando estado.
Basílio
Ai, príncipe amargurado

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464 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

e em triste signo nascido!


Vai tu despertá­‑lo, já,
que força e vigor perdeu
com o ópio que bebeu.
Clotaldo
Inquieto, senhor, está,
e falando.
Basílio
Que sonhará
agora? Ouçamos o que é.
Segismundo
(Em sonhos.)
Piedoso príncipe é
o que castiga tiranos.
Clotaldo mato com danos,
meu pai beijará meu pé.
Clotaldo
Com a morte me ameaça.
Basílio
E a mim com rigor e ofensa.
Clotaldo
Em tirar­‑me a vida pensa.
Basílio
Ter­‑me humilde, a seus pés, traça.
Segismundo
(Em sonhos.)
Saia à grandiosa praça
do grande teatro do mundo
este valor sem segundo:
p’ra minha vingança ser,
vejam a seu pai vencer
o príncipe Segismundo.
(Acorda.)
Mas ai de mim! Onde estou?
Basílio
(A Clotaldo.)
Pois a mim não me há­‑de ver.
Já sabes que hás­‑de fazer.

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pedro calderón de la barca 465

Para ali escutá­‑lo vou.


(Retira­‑se.)
Segismundo
Sou eu porventura? Sou
o que preso, acorrentado,
chego a ver­‑me neste estado?
Não sois vós, minha mortalha,
ó torre? Que Deus me valha,
quantas coisas hei sonhado!
Clotaldo
(À parte.)
A mim me cabe chegar
e dissimular agora.
(Alto.)
É já de acordar a hora?
Segismundo
Sim, hora é já de acordar.
Clotaldo
Todo o dia tens de ficar
dormindo? Desde que em seu
lento voo, a águia, eu
com meu olhar persegui,
e ficaste tu aqui,
nunca acordaste?
Segismundo
Mas eu
não estou bem acordado;
pois agora estou pensando
que continuo sonhando,
e não ’stou muito enganado;
pois se foi tudo sonhado
o que vi seguro e certo,
o que ora vejo é incerto;
e não espanta que, vencido,
veja estando adormecido,
e sonhe estando desperto.
Clotaldo
Diz­‑me o que sonhaste aqui.

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466 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Segismundo
Se foi sonho inda o não sei,
e não digo o que sonhei,
mas, Clotaldo, o que vivi.
Despertei e eis que me vi,
oh lisonja enfim tão fera,
num leito que bem pudera,
com seus matizes e cores,
ser aquele que com flores
tece a doce Primavera.
Aí, mil nobres rendidos
a mim o nome atribuíram
de seu príncipe, e serviram
galas, jóias e vestidos.
A calma de meus sentidos
tu volveste em alegria
dizendo­‑me que eu seria
rei em Polónia, embora
vivesse antes como agora.
Clotaldo
Boas alvíssaras teria.
Segismundo
Não muito, pois por traidor,
com gesto atrevido e forte,
duas vezes te dava morte.
Clotaldo
Para mim tanto rigor?
Segismundo
De todos era senhor,
e de todos me vingava;
só uma mulher amava…
Que tudo assim sucedeu
e agora, acabou, vejo eu;
só isto está como estava.
(Vai­‑se o rei.)
Clotaldo
(À parte.)
O rei foi­‑se enternecido
depois de o ter escutado.

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pedro calderón de la barca 467

(Alto.)
Como tínhamos falado
de uma águia, adormecido,
foi p’lo poder seduzido
teu sonho, mas fora bem
que houvesses honrado quem
com zelos te foi criando,
Segismundo, pois sonhando
não se perde o fazer bem.
(Vai­‑se.)

CENA XIX
Segismundo

Segismundo
Verdade é, pois reprimamos
esta fera condição,
esta fúria e ambição,
para um dia que sonhemos.
Aprendamos, pois vivemos
em mundo tão singular,
que o viver é só sonhar;
e ensina­‑me a vida mãe
que na sua vida o homem
sonha o que é ’té acordar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com este engano mandando,
ordenando e governando;
e esse aplauso, que recebe
fingido, no vento escreve,
e em cinzas a dura morte
o torna, ó triste sorte!
Mas há quem queira reinar
vendo que há­‑de despertar
no triste sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza,
que mais zelos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;

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468 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

sonha o que adquire grandeza,


sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende,
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
e porém ninguém o entende.
Eu sonho que estou aqui
destes ferros carregado,
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção,
e o maior bem pouco é;
pois que a vida sonho é,
e os sonhos, sonhos são.

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albert camus 469

Albert CAMUS. «Capítulo quinto», in O Estrangeiro. Tradução de António


Quadros. [1942] 1976. Lisboa: Círculo de Leitores. 85­‑ 91.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Raimundo telefonou­‑me para o escritório. Disse­‑me que um amigo dele, a


quem falara de mim, me convidava para passar o domingo numa casa que
tinha perto de Argel. Respondi que gostaria de ir, mas que já combinara pas‑
sar o domingo com uma amiga. Raimundo declarou imediatamente que tam‑
bém a convidava. A mulher do amigo ficaria, até, muito contente por não ser
a única no meio de um grupo de homens.
Quis desligar imediatamente, pois sei que o patrão não gosta que este‑
jamos ao telefone. Mas Raimundo pediu­‑me que esperasse e disse que me
poderia ter transmitido o convite à noite, mas queria avisar­‑me de outra
coisa. Fora seguido durante todo o dia por um grupo de árabes entre os quais
estava o irmão da sua antiga amante. «Se os vires esta noite perto da nossa
casa, avisa­‑me.» Respondi que estava combinado.
Pouco depois, o patrão mandou­‑me chamar e fiquei aborrecido por‑
que pensei que me ia dizer para telefonar menos e trabalhar mais. Não era
nada disso. Declarou que me ia falar num projecto ainda muito vago. Que‑
ria apenas saber a minha opinião sobre o assunto. Tencionava instalar um
escritório em Paris para tratar directamente com as grandes companhias
e perguntou­‑me se eu estava disposto a ir para lá. Poderia assim viver em
Paris e viajar durante parte do ano. «Você ainda é novo e creio que essa
vida lhe agradaria.» Disse que sim, mas que no fundo me era indiferente.
Perguntou­‑me depois se eu não gostava de uma mudança de vida. Respondi
que nunca se muda de vida, que em todos os casos, todas as vidas se equiva‑
liam e que a minha, aqui, não me desagradava. Mostrou um ar desconten‑
te, disse que eu respondia sempre à margem das questões, e que não tinha
ambição, o que para os negócios era desastroso. Voltei para o meu trabalho.
Teria preferido não o descontentar, mas não via razão nenhuma para modi‑
ficar a minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante,
alimentara muitas ambições desse género. Mas quando abandonei os estu‑
dos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira
importância.

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elias canetti 473

Elias CANETTI. Auto­‑de­‑Fé. Tradução de Luís de Almeida Campos. [1935]


2011. Lisboa: Cavalo de Ferro. 100­‑104.

Texto sujeito a Direitos de Autor

«Se quereis que vos expulsem da vossa pátria e vos dispersem pelo mundo, se
quereis ser avaliados, manuseados e comprados como escravos com os quais
ninguém fala e aos quais mal se dá ouvidos quando realizam as suas tarefas,
escravos em cuja alma ninguém lê, que as pessoas têm mas não amam, que
deixam estropiar ou revendem para obter lucros, que utilizam mas não com‑
preendem, nesse caso cruzai os braços e entregai­‑vos ao inimigo! Contudo,
se ainda vos resta um coração altivo, uma alma valorosa e um espírito nobre,
erguei­‑vos comigo e iniciemos uma Guerra Santa!
Não sobrestimeis a força do inimigo, meu povo! Entre as tuas letras
esmagá­‑lo­‑ás até que morra! Sejam as tuas linhas as clavas que se abatem
sobre a sua cabeça, as tuas letras os pesos de chumbo que pendem dos seus
pés e as tuas capas as couraças que te protegem dele! Tens mil ardis para o
atrair, mil redes para o envolver, mil raios para o fulminar! Sim, meu povo, tu
que és a força, a grandeza e a sabedoria dos séculos!»
Kien fez uma pausa. Exausto e entusiasmado, dobrou­‑se em dois sobre
a escada. As pernas começaram a bambolear­‑lhe, ou seria a escada? As armas
que acabava de elogiar executaram uma dança guerreira em frente dos seus
olhos. Correu sangue; como era sangue de livros, sentiu­‑se ferido de morte.
Cuidado, não te deixes desmaiar! Cuidado, não percas a consciência! De
repente ergueu­‑se um torvelinho de aplausos, como se uma tempestade atra‑
vessasse um bosque de folhas de papel, e de todos os lados chegaram aclama‑
ções de júbilo. Reconheceu algumas vozes pelas palavras que diziam. Era a
sua linguagem, as suas pronúncias, sim, eram eles, os seus fiéis amigos que o
seguiam na Guerra Santa! Um súbito sobressalto fê­‑lo endireitar­‑se na esca‑
da; saudou várias vezes e, aturdido pela excitação, levou a mão esquerda ao
lado do coração, onde também o não tinha. Os aplausos nunca mais acaba‑
vam. Pareceu absorvê­‑los pelos olhos, pelos ouvidos, pelo nariz e pela língua,
por toda a sua pele húmida e vibrante. Nunca se julgara capaz de pronunciar
discursos tão incendiários. Recordou o seu nervosismo antes do discurso,
pois que outra coisa tinha sido aquela desculpa?, e sorriu.

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478 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ion Luca CARAGIALE. «Segundo acto», in A Carta Perdida: Peça em quatro


actos. Tradução de Egito Gonçalves. [1894] 1964. Lisboa: Prelo. 37­‑43.

O MESMO SALÃO

Trahanacke, Farfuridi e Branzovenesco, sentados à volta de uma mesa redonda, estu‑


dam as listas eleitorais; cada um deles tem um lápis de cor na mão.

Branzovenesco: Sessenta nove ao vermelho... Onze ao azul... para eles.


Farfuridi: Doze.
Trahanacke: Um momentinho de paciência... um, dois, cinco... sete...
dez... onze...
Farfuridi: Doze…
Trahanacke: Com o Zenacke Siripeano.
Branzovenesco: Esse já não tem direito a voto depois que casou a filha.
Deu­‑lhe ou não deu os imóveis em dote? Então, se votar, vai direito para
a prisão, excelência.
Trahanacke: Um momentinho de paciência... Se pudéssemos levá­‑lo a
votar connosco?
Farfuridi: Ah! Isso muda tudo, excelência... Fazê­‑lo votar connosco é fácil;
ele tem o processo com a Junta na próxima semana... Mas votar connos‑
co, como? Como?
Branzovenesco: Isso também eu pergunto! Votar connosco, como?
Trahanacke: Como? Essa agora! Votar connosco é votar connosco. Parece­
‑me simples.
Branzovenesco: O senhor não compreende por meias palavras, senhor
Zacarias? Quero dizer «nós», o nosso partido, por quem vai votar, por
quem votamos? Ainda não sabemos.
Trahanacke: Perdão, um momentinho de...
Farfuridi: A verdade é que não sabemos.
Trahanacke: Perdão, um momentinho...
Farfuridi: E até irei mais longe e direi, como já disse ao meu amigo Bran‑
zovenesco: tenho medo de uma traição...
Trahanacke: Essa agora! De uma traição?
Trahanacke: Isso mesmo. É a razão por que hoje, quando nos chegaram
aos ouvidos certas coisas...

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ion luca caragiale 479

Farfuridi: Certas coisas...


Trahanacke: Certas coisas?
Branzovenesco: Corria o boato de certas coisas...
Farfuridi: Não há dúvida, corria o boato de certas coisas...
Trahanacke: Corria o boato de certas coisas?
Farfuridi: Sim. E se há traição, quero dizer, se o interesse do partido o
exige, seja!
Branzovenesco: Mas que pelo menos nos seja dado conhecimento — a nós
também. (Trahanacke tenta interrompê­‑los, mas não consegue.)
Farfuridi: Porque eu disse sempre, tal como os nossos antepassados: um
Mircea, o Velho, um Vlad, o Empalador. Amo a traição, senhor Zacarias,
mas...
Trahanacke: Perdão, um momentinho de...
Branzovenesco: Qual paciência, senhor Zacarias! Já não há tempo para
isso. É ou não é esta noite a reunião?
Farfuridi: São ou não são amanhã as eleições?
Trahanacke: Claro, mas...
Farfuridi: Então, por quem votamos?
Branzovenesco: Sim, por quem votamos?
Trahanacke: Um momentinho de paciência... Por quem temos votado até
agora?
Branzovenesco: Não compreendo.
Farfuridi: Eu também não.
Trahanacke: Perdão: expliquemo­‑nos um momentinho...
Farfuridi: Expliquemo­‑ nos, sim, expliquemo­‑ nos. É isso o que nós
pedimos.
Trahanacke: Os senhores quem são? Vadios? Não... Agitadores? Não...
Subversivos? Também não... Os senhores, quero dizer, nós, somos cida‑
dãos, meus caros, gente honrada. Sobretudo nós os três, nós, somos os
pilares do poder: proprietários, membros da Comissão Permanente, da
Comissão Eleitoral, da Comissão Escolar, da Comissão para a Estátua
de Trajano, da Comissão Agrícola, etc. Nós votamos pelo candidato que
o partido inteiro lança para a mesa... porque do partido inteiro depende
o bem do país, depende o nosso próprio bem, o bem de todos nós...
Branzovenesco: Uma grande verdade...
Farfuridi: Uma grande verdade, mas...
Trahanacke: Então, vejamos! O nome do candidato pode ser o meu,
o seu, ou o seu, conforme o exijam os interesses do partido. Vamos sabê­
‑lo de um momento para o outro... O Governador deve estar a chegar:

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480 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

não estamos nós à espera que ele regresse do telégrafo? E o telégrafo


não funciona, hem?... Funciona... Não faz mesmo outra coisa... Que
havia de fazer se não fosse isso? Talvez que a esta hora, enquanto con‑
versamos, o nome já tenha vindo... pelo fio, excelência... Sim, pelo fio,
podem acaso duvidá­‑lo?
Farfuridi: Tudo isso, tal como no­‑lo apresenta, parece muito bonito,
senhor Zacarias, mas nós... nós temos medo de ser traídos.
Branzovenesco: Não por si, claro.
Farfuridi: Claro, não por si.
Trahanacke: Então por quem?
Farfuridi: Por quem, por quem? Sabe muito bem por quem...
Trahanacke: Pela saúde da Zoé, se eu sei.
Branzovenesco: Permita­‑me que lhe diga, excelência: o senhor faz­‑se ino‑
cente de mais.
Farfuridi: Vejamos, excelência: se puséssemos as cartas na mesa?
Trahanacke: Vamos lá, meu caro. Estou de acordo. Vejamos então.
Farfuridi: Eu disse já que tenho medo de estarmos a ser traídos... Não foi?
Branzovenesco: Não foi?
Trahanacke: Sim. E então?
Farfuridi: Ora, aí está! Temos medo desse amigo.
Trahanacke: Qual amigo?
Branzovenesco: Qual amigo, qual amigo? Sabe muito bem...
Trahanacke: Pela saúde da Zoé, se eu sei.
Farfuridi: Está a ser outra vez ingénuo...
Trahanacke: Dou a minha palavra.
Farfuridi: Qual amigo há­‑de ser?... Fanica.
Trahanacke (surpreso): O quê?
Branzovenesco: Sim!... Do Governador.
Trahanacke (franzindo os sobrolhos): Mas como?...
Farfuridi (rápido): Nós tememos... bem... que ele esteja feito com o
Catzavenco.
Trahanacke (surpreso e já indignado): Com o Catzavenco?
Farfuridi: Com esse farsante...
Branzovenesco: Com esse niilista...
Trahanacke (dominando com dificuldade a sua indignação): Com o Catzaven‑
co? Traição? Fanica, traidor? Bravo! Essa é bem boa; que mais terei de
ouvir? Diabos me levem se esperava semelhante coisa. Essa agora; isso
é o cúmulo!
Farfuridi: É que nós...

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ion luca caragiale 481

Branzovenesco: O que queremos dizer é...


Trahanacke (indignando­‑se em crescendo): Um momentinho de paciência,
excelências. Não permito a ninguém, fixem isto de uma vez para sem‑
pre, a ninguém, que suspeite do Fanica seja do que for, muito menos
disso. Para mim, excelências, que isto fique bem assente, que alguém
venha a suspeitar de minha mulher, a Zoé...
Branzovenesco: A senhora Zoé, excelência...
Farfuridi: Aqui há um equívoco, senhor Zacarias. Nós não...
Trahanacke (cada vez mais indignado): Um momentinho de paciência... eu
dizia para mim: que alguém venha a suspeitar de minha mulher ou do meu
amigo Fanica, dá tudo no mesmo... Eu não conheço o Fanica de ontem, nem
mesmo de anteontem; há oito anos que nos visitamos; isso já vem de seis
meses depois do meu segundo casamento. Desde há oito anos que vivemos
como irmãos e nem por um minuto eu encontrei nesse homem o menor
traço de falta de carácter. Julgam os senhores que ele teria ficado aqui e re‑
nunciado ao cargo que lhe ofereceram em Bucareste, se não tivéssemos in‑
sistido, a Zoé e eu... até foi a Zoé, sobretudo, quem insistiu...
Farfuridi: Isso compreende­‑se. As damas têm mais ambição...
Trahanacke (ainda mais indignado): Um momentinho de paciência... Qual
ambição? Uma vez que ele era nosso amigo — era o interesse do partido.
Quem poderia aqui substituí­‑lo como Governador?
Farfuridi: Podia­‑se ter encontrado, talvez...

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482 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Camilo José CELA. Excerto de «Capítulo sexto», in A Colmeia. Tradução de


Victor Filipe. [1950] 1991. Lisboa: Dom Quixote. 207­‑211.

Texto sujeito a Direitos de Autor

No prédio, a azáfama mais próxima soa, amorosamente, dentro da cabeça


de Martín. D. Jesusa, a madrugadora D. Jesusa que, depois de comer durante
a sesta, para compensar dispõe do trabalho das assistentes, velhas rameiras
em declive, umas; amorosas, meigas mães de família as restantes. D. Jesusa
tem de manhã sete assistentes. As suas duas criadas dormem até à hora do
almoço, até às duas da tarde, numa cama qualquer, num leito misterioso que
antes ficara livre, quem sabe se como um túmulo, deixando prisioneiro entre
os ferros da cabeceira todo um mar de angústia, guardando entre a crina do
seu colchão o aulido do jovem esposo que pela primeira vez, sem se aperce‑
ber, enganou a sua mulher, que era uma rapariga encantadora, com qualquer
mastronça cheia de borbulhas e de feridas como uma mula: a sua mulher que
o esperava levantada, como todas as noites, fazendo meia junto ao fogo da
braseira, embalando o menino com o pé, lendo uma novela de amor, pensan‑
do difíceis, complexas estratégias económicas que, com um pouco de sorte,
podiam levá­‑la a comprar umas meias.
D. Jesusa, que é a ordem em pessoa, reparte o trabalho entre as suas
assistentes. Em casa de D. Jesusa lava­‑se a roupa da cama todos os dias; cada
cama tem dois jogos completos, que, às vezes, quando algum cliente lhe faz
um rasgão, inclusivamente de propósito, pois há de tudo, são cosidos com
todo o cuidado. Agora não há roupa de cama; encontram­‑se lençóis e pano
para almofadas no Rastro, mas a preços impossíveis.
D. Jesusa tem cinco lavadeiras e duas engomadeiras desde as oito da
manhã até à uma da tarde. Ganham três pesetas cada uma, mas o trabalho
não as mata. As engomadeiras têm as mãos mais finas e põem brilhantina
no cabelo. São de saúde delicada e prematuramente envelhecidas. Ambas
entraram para a vida, quase crianças, e nenhuma delas soube poupar. Agora
sofrem as consequências. Cantam como as cigarras, enquanto trabalham,
e bebem sem conta, como os sargentos de Cavalaria.
Uma chama­‑se Margarita. É filha de um homem que em vida fazia caixo‑
tes na Estação das Delícias. Aos quinze anos teve um namorado que se cha‑

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paul celan 487

Paul CELAN. «Salmo», in Gedichte. Tradução inédita de João Barrento.


[1966] 1975. Frankfurt: Suhrkamp. 225.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Ninguém voltará a amassar o nosso corpo em terra e barro,


ninguém irá exorcizar o nosso pó.
Ninguém.

Louvado seja o teu nome, Ninguém.


Por amor de ti iremos
abrir em flor.
Ao teu
encontro.

Um Nada
fomos, somos e
seremos, abrindo em flor:
rosa-do-Nada, a
rosa-de-Ninguém.

Com
o estilete claro-como-alma,
o estame de céus devastados,
a corola vermelha
da palavra de púrpura que cantámos
sobre, ah, sobre
o espinho.

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488 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

René CHAR «Chant du refus — début du ‘partisan’», in Fureur et mystère.


Tradução inédita de Helena Carvalhão Buescu. [1948] 1962. Paris:
Gallimard. 48.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O poeta regressou para passar longos anos no vazio do pai. Não chameis por
ele, vós todos que o amais. Se vos parece que a asa da andorinha já não tem
um espelho sobre a terra, esquecei essa felicidade. Aquele que transformava
o sofrimento em pão não é visível na sua letargia incandescente.
Ah! Que a beleza e a verdade possam fazer­‑vos presentes, e numerosos,
nas salvas da libertação!

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paul claudel 489

Paul CLAUDEL. «Cântico da vinha», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De


São Francisco de Assis a Louis Aragon. Versões de A. Herculano de Carvalho.
[1912] 2002. Porto: Asa. 48­‑49.

Texto sujeito a Direitos de Autor

— Ah, se o homem não quer apanhar o cacho,


Ah, se não quer aspirar­‑lhe o aroma e abraçar ardentemente o
próprio flanco da terra dos avós que lhe abre a veia liberal,
Ah, se ele insiste em fazer de juiz,
Ah, se faz gosto em conservar seu pequeno juízo e a razão e não
se entrega ao fogo que de todos os lados nele crepita e que
vai em labaredas e centelhas,
Dando luz e calor a tudo,
Então não devia plantar no canto mais querido do sol, entre pedras
escaldantes, continuando o sol por tantas raízes
profundas e obstinadas,
A vinha, filha do dilúvio e sinal misterioso da nossa salvação!
Ah, se ele despreza o cacho, não devia plantar a vinha, e quem
despreza o cálice não devia plantar a alegria!
Então, quem inventou pôr o sol em nosso copo, como se fosse
água, que tudo sabe juntar,
Espremendo esse cacho que o sorveu tantos meses?
Então, quem inventou deitar fogo a nosso copo, o próprio fogo e esse
amarelo­‑e­‑rubro que se remexe no forno com um gancho de ferro
E a brasa do tição paciente?
Foi um deus, sem dúvida, e não um homem que inventou juntar,
como em nosso próprio sangue,
O fogo à água!
Um deus, declaro­‑vos, e não um homem, que inventou o manter
juntos num copo
O calor do sol, a cor da rosa, o gosto do sangue e a tentação da água
que se bebe!
E quem nos deu na mesma taça a beber,
Para libertar nossa alma, ao mesmo tempo a água que dissolve e o
fogo que devora!

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dante alighieri 491

DANTE ALIGHIERI. «Canto XXXIII, Paraíso», in A Divina Comédia.


Tradução de Vasco Graça-Moura. [1472] 2006. Lisboa: Bertrand. 881­‑ 887.

Texto sujeito a Direitos de Autor

«Virgem e mãe, que és filha de teu filho,


humilde e alta mais que criatura,
3 de eterno querer termo fixo e brilho,
aquela és que a humanal natura
tanto nobilitaste, que o factor
6 não desdenhou fazer de si feitura.
No ventre teu reacendeu­‑se amor
e em paz eterna fez que germinasse
9 a seu calor assim tão bela flor.
Aqui nos és meridiana face
de caridade, e lá, entre os mortais,
12 és de esperança a fonte mais vivace.
Dona, és tão grande e tanto sobressais,
que quem a ti por graça não recorre,
15 sua ânsia quer voar sem asas tais.
Benignidade em ti não só socorre
quem pede, e quantas vezes na verdade
18 liberalmente antes da prece acorre,
Em ti misericórdia, em ti piedade,
em ti magnificência, em ti se aduna
21 quanto em criatura exista de bondade.
Ora este que da ínfima lacuna
do universo viu nesta altitude
24 cada vida espritual como se auna,
te suplica, por graça, de virtude
tanto, que com os olhos se elevara
27 mais alto até à última saúde.
E eu peço, e por meu ver não me incendiara
mais do que pelo seu, que não esqueças

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john donne 495

John DONNE. [Não te orgulhes, ó Morte, em te haverem chamado], in


Colóquio­‑Letras 168-169: Imagens da poesia europeia —II. Tradução de David
Mourão-Ferreira. [1633] 2004. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
255­‑256.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Não te orgulhes, ó Morte, em te haverem chamado


terrível e poderosa: eu sei que assim não és.
Mesmo os que pensas tu que tens calcado aos pés
não morrem; nem por ti serei assassinado.

Do repouso o retrato em que és representada


aquém é do prazer, se colocado a par;
e os melhor’s que mais cedo a ti te vão buscar
só os ossos te dão, mas libertam as almas.

De infelizes e reis, da Fortuna és escrava;


teus companheiros são venenos, guerras, pestes...
Filtros, melhor que tu, para dormir nos servem.
Porque de orgulho então te mostras tão inchada?

Desperta-nos o Eterno após adormecer;


e a morte há-de passar: tu, Morte, hás-de morrer.

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496 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Fiódor DOSTOIÉVSKI. «Capítulo 10. Foi ele quem mo disse», in Os


Irmãos Karamazov. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. [1880] 2002.
Lisboa: Presença. 378­‑383.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Aliocha entrou e informou Ivan Fiódorovitch de que, pouco mais de uma hora
antes, chegara a correr a casa dele Maria Kondratievna e anunciara que Smer‑
diakov pusera termo à vida. «Entro no quarto dele para arrumar o samovar, e
está ele pendurado numa cavilha na parede.» À pergunta de Aliocha se ela já
informara as autoridades, Maria Kondratievna respondeu que não: «Vim direc‑
tamente ter com o senhor, corri a sete pés todo o caminho.» Estava como des‑
vairada, contou Aliocha, tremia toda como uma folha. Quando Aliocha correu
juntamente com ela de volta à isbá, encontrou Smerdiakov ainda pendurado.
Em cima da mesa havia um bilhete: «Elimino a minha vida por minha livre
vontade, para não acusar ninguém.» Aliocha deixou o bilhete no sítio e foi ao
comissário da polícia, declarou a ocorrência, e «de lá vim ter contigo» — con‑
cluiu Aliocha, olhando perscrutadoramente para o rosto de Ivan. Enquanto
falava não desviava os olhos dele e parecia espantado com a expressão de Ivan.
— Irmão! — gritou­‑lhe bruscamente. — Acho que estás muito doente!
Olhas para mim e parece que não compreendes o que estou a dizer.
— Ainda bem que vieste — disse Ivan pensativamente, como se não
tivesse ouvido a exclamação gritada de Aliocha. — De resto, já sabia que ele
se tinha enforcado.
— Sabias? Quem te disse?
— Não sei quem. Mas sabia. Saberia mesmo? Sim, foi ele quem mo disse.
Há pouco falou comigo...
Ivan estava especado no meio do quarto, falando sempre da mesma
forma pensativa e com os olhos no chão.
— Ele... quem? — perguntou Aliocha, passando involuntariamente o
olhar em volta.
— Esgueirou­‑se.
Ivan levantou a cabeça e sorriu serenamente.
— Teve medo de ti, de ti, meu pombinho. És um «querubim puro».
O Dmítri chama­‑te querubim. Querubim... Um grito ribombante dos sera‑
fins rejubilantes! O que é um serafim? Às tantas, toda uma constelação. Mas

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t.s. eliot 501

T.S. ELIOT. «The Dry Salvages — IV», in Quatro Quartetos. Tradução de


Maria Amélia Neto. [1943] 1970. Lisboa: Ática. 59­‑ 60.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Senhora, cujo santuário se ergue no promontório,


Rogai por todos os que andam no mar, por aqueles
Cuja vida está ligada à pesca, e
Por aqueles que se ocupam de qualquer tráfico lícito
E por aqueles que os dirigem.

Repeti também uma prece pelas


Mulheres que viram os filhos ou os maridos
Partir e não voltar:
Figlia del tuo figlio,
Rainha do Céu.

Rogai também pelos que andavam no mar e


Terminaram na areia a sua viagem, nos lábios do mar
Ou na escura garganta que os não devolverá
Ou onde quer que os não possa alcançar o angelus perpétuo.

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502 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

ERASMO. «Capítulo XIII», in Elogio da Loucura. Tradução de Álvaro


Ribeiro. [1511] 1982. Lisboa: Guimarães. 23­‑26.

— Quem ignora que a primeira é a mais grata e deliciosa idade da vida huma‑
na? Que têm de especial as crianças para que as beijemos, abracemos, acari‑
ciemos, para que até os inimigos se enterneçam com elas, se não o encanto
da loucura? A prudente Natureza concedeu esse dom aos recém­‑nascidos
para eles assim recompensarem os trabalhos e os cuidados dos que os edu‑
cam. À infância, que não fala, segue­‑se a puerícia que a todos agrada, que
encanta pela candura, que todos solicitamente ajudam de mãos estendidas.
Donde vem esta graça da juventude? Donde, se não de mim, que afasto essas
idades tanto da sabedoria como dos tristes cuidados? Estou a mentir? Vede
então: quando crescem, estudam, adquirem o uso das coisas e a disciplina
da vida, a alacridade languesce, a alegria arrefece, a vivacidade decai. É a
adolescência. À medida que se afasta de mim, o homem vai vivendo com
menos intensidade até que chega à senilidade tão modesta para ele como
importuna para os outros, e que seria insuportável se eu não interviesse em
socorro de tantas misérias.
Tal como, no dizer dos poetas, os deuses protegem com uma metamor‑
fose aqueles que querem salvar da morte, assim eu reconduzo à puerícia os
velhos que estão à beira do túmulo. O vulgo costuma dizer que eles estão na
segunda infância. Não ocultarei o modo por que efectivo essa transforma‑
ção. Conduzo os velhos à fonte da nossa Leté, a que nasce nas ilhas Afortuna‑
das (porque nos Infernos não corre mais que um riacho); faço­‑os beber a água
do olvido que dilui pouco a pouco os cuidados e rejuvenesce a alma. Deliram,
ficam tontos, dizem tolices? É isso mesmo; readquirem a infantilidade. Não
é próprio da puerícia a inconsciência e a inconsequência? Haverá pessoas
tão odiosas como esses meninos portentos, que exibem uma sabedoria viril?
Bem diz o adágio vulgar: «Odeio a sabedoria precoce da criança...»
Quem poderia ter por amigo e companheiro um velho que aliasse à
experiência completa da vida o vigor intelectual e o juízo acrimonioso? Mais
vale que o velho delire. Este delírio liberta­‑os dos cuidados e das misérias da
vida que atormentam o homem sisudo. Vai bebendo o seu vinho. Não sente

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erasmo 503

o tédio da vida que uma idade mais robusta suporta. Por vezes regressa às
três letras A.M.O. como o velho de Plauto, e não é infeliz porque é estulto,
agradável aos amigos, e jovial na conversa. Já dizia Homero que da boca de
Nestor fluíam palavras mais doces que o mel, enquanto o discurso de Aquiles
era amargoso; dizia ainda que os velhos reunidos junto dos muros da cidade
proferiam palavras floridas. Pelo que se pode calcular em quanto superam a
própria infância, idade muito feliz e agradável mas que não tem o prazer da
tagarelice.
Acrescei que os velhos adoram as crianças e que estas se afeiçoam a eles,
porque
os deuses comprazem­‑se em unir os semelhantes.
Mais ou menos rugas, maior ou menor número de anos, tais são as dife‑
renças entre uns e outros. Mas o cabelo branco, a boca desdentada, o corpo
débil, o gosto pelo leite, a balbúcie, a garrulice, a inépcia, o olvido, a irreflexão
aproximam­‑nos. Quanto mais os homens acedem à senilidade, tanto mais
ganham em semelhança com a puerícia; e, por fim, emigram como crianças,
sem o tédio da vida, sem a consciência da morte.

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504 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

ESOPO. «O homicida», in Esopo — Fábulas (Antologia). Tradução de


Custódio Magueijo. [século vi a.C.] 2002. Lisboa: Edição do autor­
‑organizador. 146.

Certo indivíduo que tinha assassinado um homem era perseguido pelos


familiares deste. Tendo chegado ao Rio Nilo, como tivesse topado com um
lobo, subiu, apavorado, a uma árvore, junto da margem e ali se escondeu.
Então, como visse um dragão subindo na sua direcção, atirou­‑se ao rio; mas,
uma vez no rio, um crocodilo devorou­‑o.
A história mostra que nem o elemento da terra, nem o do ar, nem o da
água são seguros para os homens malditos dos deuses.

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eurípides 505

EURÍPIDES. Medeia. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.


[431 a.C.] 2008. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 100­‑107.

Coro
Ó desgraçado, que não sabes a que ponto chegaram teus males, Jasão! Se
não, não proferirias tais palavras.
Jasão
Que é? Acaso também quer matar­‑me, a mim?
Coro
Teus filhos estão mortos pela mão de sua mãe.
Jasão
Ai de mim, que dizes? Como tu me deitaste a perder, mulher!
Coro
Pensa em teus filhos, como seres que já não existem.
Jasão
Onde os matou então? Dentro ou fora de casa?
Coro
Abre essas portas, verás os teus filhos assassinados.
Jasão
Correi já as fechaduras, ó servos, soltai essas trancas, para eu ver a dupla
desgraça, [os que morreram... e aquela a quem eu farei pagar as culpas.]
(Medeia aparece na mechane, em plano mais elevado, carro do Sol, com os cadá‑
veres dos filhos.)
Medeia
Para que abalas e tentas destrancar essas portas, procurando os cadáve‑
res e a mim, autora dessa obra? Cessa esse trabalho. Se precisas de mim,
fala, se quiseres, que com a mão nunca me tocarás. O Sol, pai de meu pai,
me deu este carro como meio de defesa contra mãos inimigas.
Jasão
Ó abominada, ó mais que todas odiosa mulher, para os deuses e para
mim e para toda a raça humana, tu que quiseste enterrar a espada nos
filhos que geraras, e me deitaste a perder, deixando­‑me sem descendên‑
cia! E depois de fazer isto, ainda contemplas a luz do Sol e a Terra, tendo
executado a mais ímpia das acções?

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506 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Quem dera que morresses! Vejo agora o que então não via, quando de
uma casa e de um país bárbaro te trouxe para um lar helénico, a ti, gran‑
de flagelo, que atraiçoaste o pai e a terra que te criara. O teu génio da
vingança, os deuses o assestaram contra mim. Depois de teres matado
o teu irmão junto do próprio lar, embarcaste na nau de Argos, de bela
proa.
Tais foram os teus princípios. Casando com este homem, e gerando­‑me
filhos, às núpcias, ao leito os imolaste. Não há mulher alguma na Gré‑
cia que queira jamais fazer tal, essa às quais eu te dei preferência como
esposa, contraindo uma aliança odiosa e funesta para mim, tu, que és
leoa, não mulher, dotada duma natureza mais selvagem do que a Cila
Tirrénica.
Mas a ti nem mil impropérios seriam capazes de te morder. Tal é o impu‑
dor inato que possuis. Desaparece, desavergonhada assassina de teus
filhos! A mim cabe­‑me em sorte lamentar­‑me, a mim, que nem goza‑
rei do novo leito nupcial, nem me é dado dizer adeus ainda em vida aos
filhos que gerei e criei, pois que os perdi.
Medeia
Podia alongar­‑me muito a refutar os teus argumentos, se o pai Zeus não
soubesse o que de mim sofreste, o que de mim ganhaste. Tu não havias
de gozar uma doce vida, depois de teres desprezado o meu leito, escar‑
necendo de mim. Nem a soberana, nem o que te propôs o casamento,
Creonte, de expulsar­‑me incólume desta terra. Depois disto, chama­‑me
leoa, se quiseres, chama­‑me Cila, a que habita o rochedo tirrénico, que o
teu coração, eu atingi como cumpria.
Jasão
Mas também sofres esta tortura e participas da desgraça.
Medeia
Fica sabendo bem. A dor se esvai, desde que não podes rir­‑te de mim.
Jasão
Ó filhos, que mãe perversa vos coube em sorte!
Medeia
Ó filhos, como a loucura paterna vos perdeu!

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dinu flamand 507

Dinu FLAMAND. [já não terás de encher de cera], in Sombras e Falésias.


Tradução de Corneliu Popa. [2010] 2017. Lisboa: Guerra & Paz. 51­‑ 52.

já não terás de encher de cera


os ouvidos dos teus seguidores
Ulisses

surdos já eles estão


ao perigo da beleza

os cantos das sereias


já só para ti
levantam espuma

apenas tu te atas
apertadamente
ao mastro das interdições

há muito que não embatem navios


nas rochas emotivas

já poucos cobiçam
a enormidade
de roubar o sublime

tornaste­‑te ridículo
no meio de perigos
inexistentes

fustigas
a sonolência dos sentidos
com um chicote sem estalido

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508 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

mas permaneces
sob a tirania
da impossibilidade

com o trirreme do coração


na palma da mão
sobre o vazio

teu único modo de viver

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gustave flaubert 509

Gustave FLAUBERT. Madame Bovary. Tradução de Hélder Guégués.


[1857] 2016. Lisboa: Guerra & Paz. 306­‑316.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Entrou no corredor para onde dava a porta do laboratório. Na parede estava


pendurada uma chave com a etiqueta cafarnaum.
— Justin! — chamou o boticário, que já se impacientava.
— Vamos subir!
Ele seguiu­‑a.
A chave girou na fechadura e ela foi direita à terceira prateleira, tal a
exactidão com que a memória a guiava; agarrou no frasco azul, arrancou­‑lhe
a tampa, meteu­‑lhe a mão e, retirando­‑a cheia de um pó branco, pôs­‑se a
comê­‑lo directamente.
— Pare! — exclamou o rapaz, agarrando­‑se a ela.
— Cala­‑te! Pode vir alguém...
Justin desesperava­‑se, queria gritar.
— Não contes nada, senão recairia tudo sobre o teu patrão!
Depois voltou, subitamente calma, e quase com a serenidade de ter
cumprido um dever.

Quando Charles, transtornado pela notícia da penhora, regressara a casa,


Emma acabava de sair. Gritou, chorou, desmaiou, mas ela não apareceu.
Onde poderia estar? Mandou Félicité a casa de Homais, a casa de Tuva‑
che, a Lheureux, ao Leão de Ouro, a toda a parte, e, nas intermitências
da sua angústia, via a reputação arrasada, a fortuna perdida, o futuro de
Berthe destruído! Por que motivo?... Nem uma palavra! Esperou até às seis
horas da tarde. Por fim, não podendo conter­‑se mais, e imaginando que ela
tivesse partido para Ruão, foi até à estrada principal, andou meia légua, não
encontrou ninguém, esperou ainda um bocado e depois voltou. Emma já
tinha regressado.
— Que aconteceu?... Porquê?... Explica­‑me!...
Ela sentou­‑se à escrivaninha e escreveu uma carta que fechou com todo
o vagar, acrescentando­‑lhe a data do dia e a hora. Depois disse em tom so‑
lene:

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j.w. goethe 519

J.W. GOETHE. Fausto. Tradução de Agostinho d’Ornellas, revista por


Paulo Quintela. [1829] 2005. Porto: Asa. 105­‑109.

Quarto de estudo
Fausto e Mefistófeles

Fausto: Batem? Entrai! — Quem vem atormentar­‑me?


Mefistófeles: Sou eu.
Fausto: Entrai!
Mefistófeles. Hás­‑de o dizer três vezes.
Fausto: Pois outra vez, entrai!
Mefistófeles: Assim agradas­‑me!
Havemos de entender­‑nos, tenho esp’rança.
1555 Para curar­‑te da melancolia,
Aqui me tens vestido à cavaleira,
De carmesim com passamanes de oiro,
De pluma no chapéu, manto de seda
E ao lado pendente a aguda espada —
1560 Um conselho te dou, sem mais preâmbulos:
Que vás ataviar­‑te deste modo,
E livre venhas ver qual seja a vida.
Fausto: Seja qual for o trajo, sempre as penas
Hei­‑de sentir deste viver mesquinho.
1565 Para brincar somente, sou mui velho;
Para não desejar, mui moço ainda.
Em que me pode contentar o mundo?
Priva­‑te! Priva­‑te! — eis a lenda eterna
Que aos ouvidos de todos triste soa,
1570 Que toda a nossa vida, em voz roufenha,
Cada hora repete. Com a aurora
Horrorizado acordo; amargo pranto
Sobre o dia derramo, que em seu curso
Nem um desejo poderá fartar­‑me,
1575 Nem um sequer; que o pressentimento
De futuro prazer turva invejoso,
E até o criar de minha activa mente
Há­‑de empecer, da vida coas misérias!

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520 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Quando à noite no leito vou lançar­‑me,


1580 Novo sofrer me punge: não me é dado
Tranquilo repousar; sonhos tremendos,
Aterrando­‑me, o sono me angustiam.
A divindade que meu peito habita,
De meu ser agitar pode o mais fundo;
1585 Mas, minhas forças todas dominando,
Do mundo externo nada mover pode.
É­‑me assim crudelíssima a existência,
A vida um peso, a morte suspirada.
Mefistófeles: A morte poucas vezes é bem­‑vinda...
1590 Fausto: Ditoso aquele a quem no ardor da lide
Os louros da vitória em sangue tinge,
O que depois da valsa doudejante
É nos braços da amante arrebatado!
Tivera eu, ante o grandioso espírito,
1595 Transportado de amor, caído exânime!
Mefistófeles: Nessa noite houve alguém que certo líquido
Escuro não bebeu...
Fausto: A espionagem
Parece ser teu gosto favorito.
Mefistófeles: Sem ser omnisciente, sei bastante.
1600 Fausto: Da tormenta mental tão temerosa
Se doce, amigo som veio salvar­‑me;
Se suaves memórias acordando,
Inda crenças da infância me iludiram;
Maldigo agora o que seduz a alma
1605 Com ilusões, engodos que fascinam;
O que neste antro triste e tenebroso,
Com ardilosa força a traz cativa!
Maldita seja a opinião subida
Que de si mesma forma a mente cega!
1610 Malditas essas falsas aparências
Que aos sentidos mentem, esses sonhos
De glórias vãs e de imortal nomeada!
Malditos sejam bens com que a fortuna
Nos afaga a avareza, as terras pingues,
1615 O arado que as sulca, a mão que o guia!
Afeições de família, esposa, prole,

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j.w. goethe 521

Sede malditos! Sê maldito, Mammon,


Que a empresas audazes nos incites
Com teus tesouros vis, e em ricas salas
1620 Fofos coxins para a indolência aprestas!
Suco fervente de purpúreos cachos,
Gosto sumo de amor, sede malditos!
Maldita seja a esp’rança! A fé maldita!
E mil vezes maldita a paciência!
Coro de Espíritos, invisível
1625 Ai! Ai!
Destruíste
O mundo tão belo,
Com mão atrevida;
Lá cai derrocado!
1630 Em terra um semideus o tem prostrado!
Nós tristes levamos
Ao nada os destroços,
Saudosos choramos
Perdida beleza.
1635 Mortal poderoso,
Fá­ ‑la reviver!
No peito orgulhoso
De novo nascer!
Carreira da vida
1640 Enceta de novo,
Com alto pensar!
Eternas canções
Te vão celebrar.
Mefistófeles: Dos mínimos meus
1645 As vozes escutas,
Chamando­ ‑te à vida
Aos gozos, às lutas!
Da solidão que gela
Em ti sangue e vigor,
1650 Do mundo ao vasto espaço
Te chamam com ardor.
Deixa de te entreter com tua mágoa
Que te rói as entranhas qual abutre!
Na pior companhia ao menos sentes

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522 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

1655 Que és homem como os mais. E não te digo


Com isto, que no vulgo vás sumir­‑te.
Não sou eu nenhum grande, mas se queres
Junto comigo percorrer o mundo,
A teu dispor me tens; desde já pronto
1660 Companheiro sou teu, e, se convenho,
Também serei criado, humilde fâmulo.
Fausto: Que te hei­‑de eu tornar em paga disso?
Mefistófeles: Tempo temos sobejo de tratá­‑lo.
Fausto: Nada! não quero! O demo é um egoísta
1665 Que por amor de Deus não faz serviços
A outrem. Dize o que por paga exiges!
Com tomar tal criado é mister tento.
Mefistófeles: Obrigo­‑me a servir­‑te cá na terra,
A teu menor aceno obedecendo,
1670 Se, quando no outro mundo nos toparmos,
O mesmo me fizeres.
Fausto: Pouca monta
O outro mundo tem pra mim; se este
For um dia ruínas, muito embora
Venha outro depois! É desta terra
1675 Que brotam meus prazeres, minhas penas
Este sol alumia. Quando deles
A separar­‑me chegue, então suceda
Seja o que for! E nem saber me importa
Se há ódio ou amor na outra vida,
1680 Nem se existe lá nessas esferas
Região superior ao fundo abismo.
Mefistófeles: Pensando assim, bem podes arriscar­‑te.
Façamos o contrato! Com delícia
De meu poder verás as maravilhas:
1685 Dar­‑te­‑ei o que homem nenhum viu.
Fausto: Que me hás­‑de tu dar, pobre diabo?
A mente humana e seu imenso anelo
Acaso compr’ender podem teus pares?
Manjares tens que não saciam, ouro
1690 Que nos corre das mãos, qual vivo azougue,
Jogo a que se não ganha? Tens mulheres
Que sobre o peito meu, com meigos olhos,

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j.w. goethe 523

A outrem se prometem? Tens da glória


O divino prazer, vão meteoro
1695 Que rápido se esvai? Mostra­‑me frutos
Que antes de colhidos se corrompam,
Plantas que nova folha sempre vistam!
Mefistófeles: Não me aterra a incumbência, posso dar­‑te
Também desses tesouros. Mas, amigo,
1700 O tempo alfim lá chega em que somente
Algum prazer gozar em paz queremos.
Fausto: Se jamais repousar eu sossegado
Em leito de indolência, morra logo!
Se com lisonjas tanto me iludires
1705 Que chegue a estar comigo satisfeito,
Se com deleites logras seduzir­‑me,
Seja esse o meu dia derradeiro!
A aposta of ’reço!
Mefistófeles: Topo!

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524 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Zbigniew HERBERT. «Notícias da cidade sitiada», in Escolhido pelas


Estrelas: Antologia poética. Tradução de Jorge Sousa Braga. [1983] 2009.
Lisboa: Assírio & Alvim. 112­‑114.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Demasiado velho para pegar em armas e lutar como os outros —


generosamente atribuíram­‑me o papel subalterno de cronista
recordo — não sei para quem — a história do cerco

tenho de ser preciso mas desconheço quando a invasão começou


há duzentos anos em Dezembro no Outono ontem ao alvorecer
aqui toda a gente está a perder o sentido do tempo

ficamos com a cidade e o acesso à cidade


conservamos ainda as ruínas dos templos fantasmas de jardins de casas
se tivéssemos perdido as ruínas teríamos ficado sem nada

escrevo como posso ao ritmo das semanas intermináveis


segunda­‑feira: as lojas estão vazias um rato é agora uma moeda em circulação
terça­‑feira: o presidente da câmara foi assassinado por desconhecidos
quarta­‑feira: negociações do armistício os inimigos detiveram os nossos
enviados
não sabemos aonde estão sendo guardados isto é torturados
quinta­‑feira: depois de uma reunião tempestuosa a maioria
votou contra a moção dos comerciantes de especiarias de rendição
incondicional
sexta­‑feira: declarou­‑se a peste
sábado: o suicídio de N.N. o resistente mais destacado
sábado: sem água repelimos o ataque na porta oriental a Porta da Aliança
eu sei que tudo isto é monótono que ninguém se importa

evito comentários controlo as emoções descrevo os factos


dizem que os factos são valorizados apenas nos mercados estrangeiros
mas com um certo orgulho desejo transmitir ao mundo
graças à guerra criamos uma nova espécie de crianças

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e.t.a. hoffmann 527

E.T.A. HOFFMANN. «O homem da areia», in Contos Nocturnos. Tradução


de João Costa. [1816] 2005. Lisboa: Guimarães. 48­‑ 54.

Nestas duas vozes, que sibilavam e mugiam ao mesmo tempo, Nathanael


reconheceu as de Spallanzani e do horrendo Coppelius. Precipitou­‑se no
quarto, invadido por uma angústia indefinível. O professor segurava pelos
ombros e o italiano Coppola pelos pés um corpo de mulher que disputavam
um ao outro, arrancando­‑o e dando­‑lhe safanões com um furor sem igual.
Nathanael deu um salto para trás, atingido por um horror inexprimível...
naquela mulher tinha reconhecido Olimpia! Arrebatado por uma cólera
furibunda, ia defender a sua bem­‑amada contra aqueles homens enfureci‑
dos mas, no mesmo instante, Coppola, dando com uma força de gigante
um puxão terrível, obrigou o professor a ceder e aplicou­‑lhe com a própria
mulher uma pancada tão violenta na cabeça que ele vacilou e caiu para trás
em cima de uma mesa coberta de frascos, de retortas, de garrafas e de tubos
de vidro. Todo o laboratório se quebrou em mil pedaços. Então Coppola
colocou Olimpia às costas e, rindo às gargalhadas de uma maneira abomi‑
nável, pôs­‑se a descer a correr a escada de maneira que os pés pendentes da
miserável forma humana se chocavam e ecoavam como pedaços de madeira
contra os degraus.
Nathanael estava petrificado. Tinha visto tudo claramente: o rosto de
Olimpia, pálido como a morte, era de cera e desprovido de olhos: negras cavi‑
dades ocupavam o lugar. Não passava de uma boneca inanimada. Spallanzani
rebolava­‑se por terra, os estilhaços de vidro tinham­‑lhe cortado e lacerado
a cabeça, os braços, o peito: o sangue escorria­‑lhe em borbotões, como um
repuxo de água. Mas reunindo as forças gritou:
— Corre atrás dele! Apanha­‑o! De que estás à espera? Coppelius! Coppe‑
lius! Ladrão infame! O meu melhor autómato, fruto de vinte anos de traba‑
lho, o preço da minha vida e do meu sangue... As engrenagens, o movimento,
a palavra, tudo me pertence. Os olhos... sim, roubei­‑te os olhos! Condenado!
Belzebu, corre atrás dele! Traz­‑me Olimpia. Toma, aqui tens os olhos!
Nathanael viu então dois olhos sangrentos que jaziam por terra e o fita‑
vam fixamente: Spallanzani apanhou­‑os com a mão válida e atirou­‑lhos de

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528 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

tal maneira que foram atingi­‑lo no peito. De súbito, a loucura imprimiu em


Nathanael as suas garras ardentes e apossou­‑se de todo o seu ser quebrando
as molas do juízo e do pensamento. «Uh! Uh! Uh!, Círculo de fogo, gira, gira!
Vamos, alegre, boneca de madeira, uh! Linda bonequinha, gira, gira, gira!» Ao
mesmo tempo, atirou­‑se ao professor e apertou­‑lhe a garganta; tê­‑lo­‑ia estran‑
gulado mas o barulho atraíra muita gente: chegaram junto deles, contiveram o
furioso Nathanael e salvaram assim o professor, que foi imediatamente tratado
dos ferimentos. Siegmund, embora fosse vigoroso, não chegou para dominar
aquele furibundo que não parava de gritar com uma voz horrível: «Gira, bone‑
ca de madeira, gira!», ao mesmo tempo que batia à sua volta com os punhos
cerrados. Por fim, graças aos esforços conjugados de várias pessoas, lograram
dominá­‑lo, derrubando­‑o ou manietando­‑o. Os seus gritos expiraram pouco a
pouco numa espécie de rugido bestial, e foi transportado para o hospital dos
loucos, agitado por convulsões frenéticas pavorosas.
Antes de continuar a contar­‑te, leitor benévolo, o resto das aventuras do
infeliz Nathanael, posso garantir­‑te, para o caso de te interessares um pouco
pelo hábil mecânico e fabricante de autómatos, Spallanzani, que depressa
ficou curado completamente dos seus ferimentos. Teve, porém, que abando‑
nar a Universidade porque a história de Nathanael fizera uma enorme sen‑
sação e fora reprovado unanimemente, como um embuste dos mais incon‑
venientes, o facto de ter introduzido em sociedades razoáveis (Olimpia
aparecera em vários círculos com sucesso) uma boneca de pau à guisa de ser
vivo. Legistas até chegaram a ver nisso uma fraude muito subtil, tanto mais
condenável, diziam eles, quanto tinha sido urdida contra a massa do público,
e tão habilmente combinada que ninguém desconfiara exceptuando alguns
estudantes muito judiciosos. É verdade que agora não faltava quem fingisse
ter suspeitado da coisa, e cada qual citava em apoio das suas pretensões mui‑
tas e muitas circunstâncias que lhe haviam parecido suspeitas. Apesar disso
não adiantavam nada de conclusivo.
Assim, por exemplo, que suspeita teriam podido conceber por Olimpia,
a crer em certo frequentador habitual dos salões, haver, contrariamente a
todos os costumes, espirrado mais vezes do que bocejado? O primeiro fenó‑
meno, dizia o nosso elegante, resultava do movimento oculto das engrena‑
gens que, ao engatarem­‑se de novo por si próprias, produziam, de facto, com
os mesmos intervalos, um estalido sensível, etc., etc. O professor de poesia e
de eloquência tomou uma pitada de rapé, voltou a fechar a caixa, tossiu com
ostentação, e disse com um ar solene:
«Respeitáveis cavalheiros e damas, não estais a ver o fulcro da história?
O todo é uma alegoria, uma metáfora ampliada. Compreendeis­‑me? Sapienti

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e.t.a. hoffmann 529

sat!» Mas um grande número de respeitáveis cavalheiros não se mostrou de


modo nenhum satisfeito com a explicação: a história do autómato causara
neles uma profunda impressão, e estabeleceu­‑se de facto uma secreta e ter‑
rível desconfiança relativamente às figuras humanas. Para adquirir a convic‑
ção segura de não se ter apaixonado por uma boneca de madeira, mais de um
amante exigiu à amante que cantasse e dançasse um pouco fora da medida,
que tricotasse ou bordasse, e mesmo que brincasse com o cãozinho, enquan‑
to escutava a leitura, e por aí fora; mas sobretudo que ela não se contentasse
em escutar, e que falasse também algumas vezes de maneira a deixar entrever
nas suas palavras o que pensava e sentia. Este género de provas apertou um
certo número de laços amorosos que se tornaram ainda mais agradáveis, ao
passo que outros se desfizeram aos poucos. «Realmente não se pode respon‑
der!», repetia­‑se de todos os lados. Nos círculos, nos chás, bocejou­‑se de um
modo incrível, e abstiveram­‑se de espirrar, a fim de escapar a qualquer sus‑
peita. Spallanzani, tal como se disse mais acima, foi obrigado a partir para se
subtrair a uma instrução criminal acerca desta introdução fraudulenta de um
autómato na sociedade humana.
Coppola tinha igualmente desaparecido.
Nathanael acordou como de um sonho pesado e terrível; abriu os olhos e
sentiu uma impressão de felicidade inefável penetrá­‑lo com um suave e divi‑
no calor. Encontrava­‑se em casa dos pais, deitado no seu quarto, em cima da
cama; viu Clara debruçada para ele e, ali próximo, a mãe e Lothar.
— Enfim, enfim, ó meu bem­‑amado Nathanael, eis­‑te curado de uma
grave doença! Agora foste­‑me devolvido! — assim falava Clara na efusão do
seu coração, e apertou Nathanael nos braços.
Lágrimas de enlevo e de emoção, límpidas e ardentes, escaparam­‑se dos
olhos de Nathanael; depois, após um profundo suspiro, disse:
— Minha Clara! — Siegmund, que permanecera fielmente junto do
amigo doente, entrou. Nathanael estendeu­‑lhe a mão: — Meu bom irmão,
afinal não me abandonaste!
Todos os vestígios de desvario tinham desaparecido, e Nathanael
depressa recuperou as forças, graças aos ternos cuidados da mãe, da noiva e
dos seus dois amigos.
Neste entrementes, a felicidade tinha voltado à casa, porque um velho
tio avarento, do qual ninguém na família esperava fosse o que fosse, havia ao
morrer deixado à mãe, além de um capital muito considerável, uma pequena
propriedade agradavelmente situada não muito longe da cidade. Era aí que
Nathanael pensava fixar­‑se com a mãe, Lothar e a sua Clara, que estava deve‑
ras resolvido desta vez a desposar. Nathanael tinha­‑se tornado mais meigo,

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530 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

mais criança do que nunca, e sabia enfim apreciar a alma tão bela e pura da
angélica Clara. Ninguém, aliás, fazia qualquer alusão ao passado. Quando
Siegmund se despediu, Nathanael disse­‑lhe apenas:
— Pelo Céu, irmão, eu encontrava­‑me num mau caminho, mas um anjo
trouxe­‑me para uma via de luz! E foi a rainha Clara!...
Mas Siegmund não o deixou prosseguir, com receio de que recordações
amargas e implacáveis despertassem nele com demasiada energia.
O dia chegara em que os quatro amigos deviam partir para a sua pequena
propriedade. À hora do meio­‑dia, percorriam as ruas da cidade depois de
terem efectuado diversas compras. A alta torre da Câmara Municipal projec‑
tava na praça do mercado a sua sombra gigantesca.
— Ah! — disse Clara —, subamos mais uma vez lá ao alto para ver ao
longe as montanhas!
Logo que dito foi feito: Nathanael e Clara subiram juntos, a mãe regres‑
sou a casa com a criada, e Lothar, por não se sentir com disposição para subir
tantos degraus, quis ficar à espera em baixo. Os dois amantes estavam, por‑
tanto, na mais alta galeria da torre, de braço dado e contemplando as flores‑
tas vaporosas por detrás das quais se desenhavam no horizonte, como uma
cidade de gigantes, os cumes azulados das montanhas.
— Olha para aquela pequena moita lá ao fundo; dir­‑se­‑ia que avança para
nós — disse Clara.
Nathanael buscou maquinalmente na algibeira lateral; encontrou um
lorgnon de Coppola. Dirigiu­‑o para a planície... Clara encontrava­‑se à frente
do vidro! Uma tremura convulsiva percorreu­‑lhe as veias e o pulso. Pálido
como a morte, encarou Clara fixamente... Mas de súbito os seus olhos, rebo‑
lando nas órbitas, lançaram raios de fogo; berrou horrorosamente, como
um animal feroz, depois saltou até uma altura extrema e gritou com uma
risada penetrante e horrível: «Boneca de madeira, gira!» Então agarrou em
Clara com uma violência formidável e quis atirá­‑la para baixo; mas Clara,
na sua angústia mortal e desesperada, agarrou­‑se com todas as suas forças
à balaustrada. Lothar ouviu o barulho que aquele furioso fazia, distinguiu
os gritos de angústia de Clara, um horrível pressentimento apoderou­‑se­‑lhe
do espírito. Voou para o cimo da torre: a porta da segunda escada achava­
‑se fechada; Clara soltou um grito de desespero mais dilacerante... quase
louco de furor e de pavor, atirou­‑se contra a porta que cedeu por fim. Os
gritos de Clara ficavam cada vez mais fracos. «Socorro! Acudam­‑me!» e a voz
perdeu­‑se no ar. «Está morta, este furioso matou­‑a!», pensou Lothar. A porta
da galeria encontrava­‑se igualmente fechada; o desespero deu­‑lhe uma força
sobre­‑humana, fez saltar a porta dos gonzos! Deus do céu! Clara, levantada

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e.t.a. hoffmann 531

pelo furioso Nathanael, estava suspensa no ar fora da balaustrada, e já só se


prendia com uma das mãos a uma barra de ferro. Rápido como o relâmpa‑
go, Lothar agarrou a irmã, puxou­‑a para a plataforma e assentou ao mesmo
tempo o punho fechado na cara do frenético que, largando a presa, recuou a
cambalear.
Lothar desceu precipitadamente, trazendo nos braços a irmã desfale‑
cida; estava salva. Contudo, Nathanael percorria desaustinadamente toda a
galeria e dava saltos prodigiosos ao mesmo tempo que gritava: «Círculo de
fogo, gira! Círculo de fogo, gira!» A multidão acorreu ao ouvir estes gritos
selvagens; no meio dela erguia­‑se, como um colosso, o advogado Coppelius,
que acabara de chegar à cidade e se tinha dirigido para o mercado. Quiseram
subir à torre para apanharem o furibundo. Coppelius desatou a rir enquanto
dizia: «Ah! Ah!, esperem, que ele descerá sozinho.» E olhou para o ar como
toda a gente. Viram Nathanael parar subitamente, como petrificado; depois
inclinou­‑se, avistou Coppelius, e gritando numa voz estridente: «Ah! Que
belos olhos, belli occhi!» saltou por cima da balaustrada.
Quando Nathanael caiu no pavimento, a cabeça desfeita, Coppelius
tinha desaparecido na multidão.
Pretende­‑se que, vários anos mais tarde, numa região afastada, viram
Clara sentada à porta de uma linda casa de campo ao lado de um homem sim‑
pático, de mãos dadas, com dois rapazes joviais a brincar à sua frente. Pode‑
ria concluir­‑se que Clara encontrara enfim a felicidade doméstica e tranquila
que convinha ao seu carácter alegre e vivo, felicidade que Nathanael, com o
seu coração ulcerado, jamais teria podido proporcionar­‑lhe.

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532 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Friedrich HÖLDERLIN. [Quando eu era rapaz], in Sämtliche Werke und


Briefe, Volume I. Tradução inédita de João Barrento. [1798] 1992. Munique:
Carl Hanser. 167­‑168.

Quando eu era rapaz,


Um deus muitas vezes me salvava
Do tumulto e da vergasta dos homens,
E eu brincava, tranquilo e feliz,
Com as flores do bosque,
E as brisas do céu
Brincavam comigo.

E tal como tu alegras


O coração das plantas
Quando para ti estendem
Os delicados braços,

Assim também, Hélio, pai!,


Me alegraste a alma e,
Como Endimião, sagrada Lua,
Fui teu favorito!

Oh, deuses fiéis, todos


Vós, e amáveis!
Se soubésseis
Como vos amava este meu coração!

Então, é verdade, ainda vos não chamava


Pelos vossos nomes, nem vós
A mim me nomeáveis, como fazem os humanos,
Julgando que assim se conhecem.

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friedrich hölderlin 533

Mas eu a vós conhecia­‑vos melhor


Do que jamais conheci os humanos,
Compreendia o silêncio do éter,
As palavras dos homens nunca as entendi.

A mim, criou­‑me o murmúrio


Harmonioso das árvores do bosque
E fui aprendendo a amar
No meio das flores.

E nos braços dos deuses me fiz grande.

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534 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Victor HUGO. «À Villequier», in Les Contemplations. Tradução inédita de


Helena Carvalhão Buescu. [1856]. 1967. Paris: Gallimard. 658-662.

Agora que Paris, seus passeios e mármores,


Sua bruma e telhados estão longe de mim,
Agora que estou sob os ramos das árvores,
E que posso pensar na beleza dos céus;

Agora que do luto que me a alma ensombrou


Saio, pálido e vencedor,
E sinto enfim a paz da grande natureza
Entrando no meu coração;

Agora que posso, sentado ao pé das ondas,


Na emoção do soberbo e tranquilo horizonte,
Examinar em mim as verdades profundas
E contemplar as flores que crescem no campo;

Agora, ó meu Deus!, que com escura calma


Posso enfim
Olhar eu mesmo a pedra onde sei que na sombra
Ela dorme para sempre;

Agora que, na emoção do espectác’lo divino,


Planícies, florestas, rochedos, vales, rio argentino,
Vendo o quão pequeno sou e vendo os Vossos milagres,
Recobro a minha razão diante da imensidade;

Venho a vós, Senhor, pai em quem acreditar;


Trago-vos, apaziguados,
Pedaços de um coração cheio da vossa glória,
Que vós haveis quebrado;

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victor hugo 535

Venho a vós, Senhor!, confessando que sois


Bom, clemente, indulgente e doce, ó vivo Deus!
Aceito que só vós sabeis o que fazeis,
Que o homem é um junco que o vento faz tremer;

Digo que o túmulo que os seus mortos fecha


Abre o firmamento;
Que o que aqui em baixo tomamos como termo
É apenas o início;

Aceito de joelhos que só vós, pai augusto,


Possuís o infinito, o real, o absoluto;
Aceito que foi bom, aceito que foi justo
O meu coração sangrando: Deus assim o quis!

Já não resisto a tudo aquilo que me vem


Da vossa vontade.
A alma de luto em luto, o homem de bordo em bordo
Desliza pr’a eternidade.

Vemos sempre tão-só um lado das coisas;


O outro mergulha na noite do escuro mistério.
O homem suporta o jugo sem dele saber as causas.
Tudo o que vê é curto, inútil e fugaz.

Vós fazeis sempre girar a solidão


Em redor de todos os seus passos.
Vós não quisestes que ele aqui em baixo tivesse
Nem certeza, nem alegria!

Sempre que um bem possui, a sorte lho retira.


Nada lhe foi dado, nos seus fugazes dias,
P’ra poder construir uma morada, e dizer:
É esta a minha casa, o meu campo, os meus amores!

Pouco tempo pode ver o que os seus olhos permitem;


E sem amparo envelhece.
Se tudo isto é, é porque assim tem de ser;
E eu aceito, eu aceito!

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536 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

O mundo é escuro, meu Deus! A perene harmonia


Compõe-se das lágrimas como dos cantos;
O homem é só um átomo nesta sombra infinita,
Noite em que sobem os bons, em que caem os maus.

Bem sei que tendes muito mais a fazer


Do que nos lamentar a todos,
E que uma criança morrendo, desespero da mãe,
Não vos importa, a vós!

Bem sei que o fruto cai ao vento que o sacode,


Que o pássaro perde a pena e a flor o perfume;
Que a criação é uma enorme roda
Que não pode mover-se sem esmagar alguém.

Os meses, os dias, as marés, os olhos a chorar,


Passam debaixo do azul do céu;
Tem a erva de crescer e as crianças de morrer;
Bem o sei, ó Deus meu!

Nos vossos céus, p’ra lá da esfera das nuvens,


No fundo do cerúleo imóvel e dormente,
Fareis talvez desconhecidas coisas
Em que a dor do homem entra como elemento.

Talvez seja útil ao vosso intento ilimitado


Que os ternos seres
Partam, levados pelo escuro turbilhão
Dos negros sucessos.

Nossos destinos tenebrosos sujeitam-se a leis


Que nada desconcerta nem nada comove.
Vós não podeis haver súbitas clemências
Que perturbem o mundo, Deus, espírito tranquilo!

Suplico-vos, ó Deus, que contempleis minh’alma,


E que considereis
Que, qual criança humilde ou doce mulher,
Eu vos venho adorar!

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victor hugo 537

Considerai ainda que eu, desde a aurora,


Trabalhei, combati, pensei, andei, lutei,
Explicando a natureza ao homem que a ignora,
Esclarecendo cada coisa na vossa claridade.

Que, tendo enfrentado a cólera e o ódio,


Cumpri aqui em baixo o que devia,
Que não podia esperar por esta paga,
Que não podia

Prever que, sobre a minha cabeça inclinada,


Também vós pousaríeis um braço triunfante,
E que, vós que víeis o meu pouco de alegria,
Tão depressa me levaríeis esta filha!

Uma alma assim ferida está sujeita ao lamento,


E como eu blasfemei,
Vos atirei meus gritos como criança atira
Uma pedra ao mar!

Considerai, meu Deus, que se duvida ao sofrer,


Que o olhar que demais chora logo cega,
Que um ser que o seu luto esconde no abismo escuro,
Quando não mais vos vê, não mais vos contempla.

E que não pode ser que o homem, vencido


P’las suas aflições,
Tenha presente no esp’rito a escura serenidade
Das constelações!

Hoje, eu que fui fraco como é uma mãe,


Curvo-me aos vossos pés perante os vossos céus abertos.
Sinto-me iluminado na minha dor amarga
Por um melhor olhar lançado ao universo.

Senhor, reconheço que o homem delira


Se ousa murmurar;
Cesso de acusar, cesso de maldizer,
Mas deixai-me chorar!

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538 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ah, deixai que as lágrimas corram dos meus olhos,


Pois foi para tal que criastes os homens!
Deixai-me debruçar sobre esta pedra fria,
E dizer ao meu anjo: Sentes tu que eu estou aqui?

Deixai que lhe fale, inclinado sobre os seus despojos,


À tardinha, quando tudo emudece,
Como se, na noite reabrindo o olhar celeste,
Esse anjo me escutasse!

Ah, ao deitar ao passado o olhar ansioso,


Sem que nada aqui em baixo me possa consolar,
Contemplo sem cessar esse momento da vida
Em que a vi abrir as asas e voar!

Verei esse instante até que eu mesmo morra,


O instante, lágrimas supérfluas!,
Em que gritei: a filha que ‘té agora tinha,
Olhai, já não a tenho mais!

Não vos irriteis que agora assim me sinta,


Ó meu Deus! Que esta ferida sangra desde então!
A angústia na minh’alma é sempre a mais forte,
O meu coração submete-se, mas não se resigna.

Não vos irriteis! Frontes que o luto reclama,


Mortais sujeitos às lágrimas,
Não podemos subtrair a nossa alma
A estas tão grandes dores.

É que os filhos que temos, deles precisamos,


Senhor, quando na vida vimos, uma certa manhã,
Entre as fadigas, tristezas e misérias
E na sombra que o destino faz cair sobre nós,

Surgir uma criança, rosto querido e sagrado,


Pequeno ser alegre,
Tão belo, que julgamos abrir-se à sua entrada
Uma porta dos céus;

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victor hugo 539

Quando em dezasseis anos vimos nesse outro nós-mesmos


Crescer a graça amável e a doce razão,
Quando reconhecemos que essa criança amada
É fonte do dia na alma e no lar que nos são,

Que só esta a alegria aqui em baixo persiste


De tudo o que sonhámos,
Considerai que é mesmo uma coisa bem triste
Ver como ela se vai.

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540 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Henrik IBSEN. Excerto de «Acto 3», in Casa de Bonecas. Tradução de Emília


de Araújo Pereira. [1879] 1916. Lisboa: Guimarães. 158-169.

Helmer: Nora! Nora!


Nora: Quero-me retirar já. Por esta noite ficarei em casa de Cristina…
Helmer: Tu desvairas! Não tens o direito de fugir. Proíbo-to.
Nora: Doravante nada me podes proibir. Levo tudo que me pertence. De ti
nada quero guardar, nem agora, nem nunca.
Helmer: Que significa essa loucura?
Nora: Amanhã parto para a terra onde nasci... Lá encontrarei mais facil‑
mente, modo de vida.
Helmer: Como és cega, pobre criatura sem experiência!
Nora: Tentarei alcançá-la, Torvaldo.
Helmer: Abandonar o teu lar, teu marido, teus filhos! Não pensas no que
dirão?
Nora: Não posso pensar nisso. Sei unicamente que, para mim, é isso
indispensável.
Helmer: Ah! é revoltante! Trairás assim os teus deveres mais sagrados?
Nora: Que consideras tu meus deveres mais sagrados?
Helmer: Será necessário dizer-to? Não serão os teus deveres para com o teu
marido e os teus filhos?
Nora: Tenho outros tão sagrados como esses.
Helmer: Não tens. Quais poderiam ser?
Nora: Os meus deveres para comigo mesma.
Helmer: Antes de mais nada és esposa e mãe.
Nora: Já não creio em tal. Creio que antes de mais nada sou uma criatura
humana, com tanto direito como tu... ou pelo menos que devo procurar
sê-lo... Sei que a maioria dos homens te dará razão, Torvaldo, e que essas
ideias estão impressas nos livros. Eu, porém, já não posso pensar pelo
que dizem os homens nem pelo que se imprime nos livros. Preciso eu
própria formar o meu critério e adquirir a noção de tudo.
Helmer: Quê? Acaso não terás a noção do teu lugar na família? Não tens
nesse ponto um guia infalível? Não tens a religião?
Nora: Ai, Torvaldo! A religião, não sei bem ao certo o que ela é.

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henrik ibsen 541

Helmer: Não sabes?


Nora: Dela só conheço o que me ensinou o cura Hansen ao preparar-me
para a confirmação. A religião, é isto, é aquilo… Quando me encontrar
só e livre examinarei esse assunto, como os demais. Verei se o cura fala‑
va verdade ou, pelo menos, se o que disse era verdadeiro em relação a
mim.
Helmer: Ah! isto é inaudito da parte de uma mulher! Mas se a religião te não
pode guiar, deixa-me sequer sondar a tua consciência. Que, suponho,
possuis ao menos o senso moral. Ou és desprovida dele? Responde.
Nora: Vês, Torvaldo; custa-me a responder. Não sei. Confundo-me em
tudo isso. Só uma coisa sei: é que as minhas ideias divergem inteiramen‑
te das tuas. Também fiquei sabendo que as leis não são o que eu julgava,
mas de que essas leis são justas é que ninguém me poderá convencer.
Então uma mulher não teria o direito de evitar um desgosto a seu velho
pai moribundo ou de salvar a vida do marido! Isto não pode ser.
Helmer: Falas como uma criança: nada entendes da sociedade de que fazes
parte.
Nora: Não, nada entendo. Mas quero chegar a entender e certificar-me de
qual de nós tem razão: se a sociedade, se eu.
Helmer: Estás doente, Nora, tens febre: quase me convenço de que não
estás em ti.
Nora: Sinto-me esta noite mais lúcida e mais senhora de mim do que nunca.
Helmer: E é com essa firmeza e em perfeita lucidez que abandonas o teu
marido e os teus filhos?
Nora: É.
Helmer: Isto só tem uma explicação possível.
Nora: Qual?
Helmer: Já me não amas?
Nora: Exacto; é esse, de facto, o motivo essencial.
Helmer: Nora!... E é assim que o dizes!
Nora: E custa-me tanto, Torvaldo! Porque tu sempre foste bom para mim.
Mas nada posso contra isto: já te não amo.
Helmer: (Esforçando-se por se dominar) Disso também estás perfeitamente
convencida, não é verdade?
Nora: Absolutamente, e é por essa razão que não quero permanecer mais
tempo aqui.
Helmer: E podes explicar-me como perdi o teu amor?
Nora: Sem dúvida. Foi esta noite, quando não vi realizar-se o prodígio espe‑
rado. Vi então que não eras o homem que eu imaginava.

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542 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Helmer: Explica-te: não te entendo.


Nora: Durante oito anos esperei pacientemente. Eu bem sabia que os pro‑
dígios se não realizam todos os dias. Enfim, chegou esta hora de angús‑
tia. Então pensava com certeza: vai-se realizar o prodígio. Enquanto a
carta de Krogstad estava na caixa, nem por um instante pensei que te
pudesses curvar às condições desse homem. Acreditava firmemente
que lhe dirias: vamos, publique tudo...
Helmer: Muito bem... quando eu tivesse lançado a minha mulher na vergo‑
nha e no opróbrio.
Nora: Quando isso sucedesse, eu estava plenamente convencida de que
aparecias tu a tomar a responsabilidade de tudo e a dizer: sou eu o
culpado.
Helmer: Nora!
Nora: Vais dizer que eu não aceitaria o teu sacrifício. É claro. Mas que signi‑
ficaria a minha afirmação ao lado da tua? Pois bem! eis o prodígio que eu
esperava com terror. E para evitar isso é que eu queria morrer.
Helmer: Considerar-me-ia feliz, Nora, em trabalhar por ti dia e noite. Tudo
suportaria, cuidados e privações; mas não há ninguém que ofereça a sua
honra pelo ente que ama.
Nora: Milhares de mulheres o têm feito.
Helmer: Oh!, pensas e falas como uma criança.
Nora: Admitamos. Tu, porém, não falas como homem a quem me seja possí‑
vel imitar. Uma vez tranquilizado, não sobre o perigo que me ameaçava,
mas sobre o que tu próprio corrias… tudo esqueceste. Eu tornei a ser a
tua avezinha cantora, a tua boneca que estavas pronto a trazer nos braços
como dantes, com tanto mais precauções quanto a havias reconhecido
mais frágil. (Erguendo-se) Ouve, Torvaldo; nesse momento, pareceu-me
ter vivido oito anos nesta casa com um estranho, e que tivera três filhos...
Ah! nem posso pensar em tal… Sinto desejos de me rasgar em mil pedaços.
Helmer: (Surdamente) Ai de mim, bem o vejo, bem o reconheço. Cavou-se
entre nós um abismo; mas, diz-me, Nora, se o não poderemos transpor.
Nora: Tal como agora sou não posso ser tua mulher.
Helmer: Terei a força de me transformar.
Nora: Talvez… se te tirarem a tua boneca.
Helmer: Separar-me... separar-me de ti! Não, Nora, não posso aceitar esta
ideia!
Nora: (Dirigindo-se para a porta da direita) Maior razão para terminarmos...
(Sai e torna a entrar com a capa, o chapéu e uma maleta de viagem que depõe
sobre uma cadeira ao pé da mesa.)

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henrik ibsen 543

Helmer: Ainda, não, Nora, ainda não! Espera até amanhã!


Nora: (Pondo a capa) Não posso passar a noite sob o tecto de um estranho.
Helmer: Mas não poderemos viver juntos como irmão e irmã?
Nora: (Prendendo o chapéu) Bem sabes que isso duraria pouco. (Pondo o xaile
pelos ombros) Adeus, Torvaldo. Não quero ver as crianças. Sei que estão
em melhores mãos que as minhas. Assim como sou por enquanto… não
posso ser para eles uma mãe.
Helmer: Mas um dia, Nora... um dia?
Nora: Como responder-te?... Não sei o que será de mim.
Helmer: És, no entanto, minha mulher, apesar de tudo.
Nora: Ouve, Torvaldo. Quando uma mulher deixa o domicílio conjugal,
como hoje o faço, as leis — segundo oiço dizer — desligam o marido de
todo o compromisso para com ela. Em todo o caso eu sei que te deixo
livre. É inútil conservares-te ligado, assim como eu também o não fico.
Inteira liberdade de parte a parte. Olha, aqui tens o teu anel: restitui­
‑me o meu.
Helmer: Também o anel?
Nora: Também.
Helmer: Aqui o tens.
Nora: Obrigada. Agora tudo acabou. Deixo ali as chaves. Quanto ao gover‑
no da casa, a ama está ao facto de tudo... melhor do que eu. Amanhã,
depois de eu partir, Cristina virá emalar tudo quanto eu trouxe quando
para aqui vim. Desejo que me expeçam essa mala.
Helmer: Acabou-se tudo! Não queres pensar mais em mim, Nora?
Nora: Pensarei muitas vezes em ti, é claro, e nos meus filhos, e na casa.
Helmer: Posso-te escrever, Nora?
Nora: Não! Nunca. Proíbo-to.
Helmer: Oh! mas decerto te posso enviar...
Nora: Nada, nada.
Helmer: Auxiliar-te, se necessitares...
Nora: Não, já te disse. Nada aceito de um estranho.
Helmer: Nora... nunca passarei de um estranho para ti?
Nora: (Segurando a maleta) Ah! Torvaldo, para isso seria preciso o maior dos
prodígios!
Helmer: Que prodígio? Diz.
Nora: Seria preciso transformarmo-nos os dois a tal ponto… Ai! Torvaldo!…
Já não creio em prodígios!
Helmer: Eu, porém, quero crer neles. Diz. Devíamos transformar-nos a tal
ponto que...?

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544 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Nora: ... que a nossa união se tornasse num verdadeiro consórcio. Adeus.
(Sai pela porta da entrada.)
Helmer: (Caindo numa cadeira junto da porta e cobrindo a cara com as mãos)
Nora! Nora! (Ergue a cabeça e olha em torno de si) Saiu?... (Com esperança
nascente) O maior dos prodígios !?...

(Ouve-se o ruído da porta do prédio a fechar-se)

FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ACTO

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milan jesih 545

Milan JESIH. «Pai nosso», in Treze Poetas Eslovenos. Tradução de Mateja


Rozman. [1980] 2008. Lisboa: Roma Editora. 85.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Se alguma vez calhar, peço­‑te, meu Deus,


que por favor me transformes em neve na tundra.
Deixa­‑me cair no Inverno
e dá­‑me com mil olhos a cegueira

para nunca pressentir ao longe o sul:


sem cheiro, sabor, vontade e memória,
cria­‑me, meu Deus, e que haja silêncio
e nele cristais imóveis e aguçados.

Confunde­‑me a totalidade da metade humana,


confunde­‑me a imperfeição da totalidade.
Por isso, atende­‑me, se és o Deus da Justiça —

nada mais faças para que no excesso de mudanças


e promessas e ameaças só procure
o meu medo e a minha esperança.

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546 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

James JOYCE. Gente de Dublim. Tradução de Virgínia Motta. [1914] 1981.


Lisboa: Livros do Brasil. 271­‑273.

Ela adormecera.
Apoiado num cotovelo, Gabriel observou por breve espaço de tempo
e sem qualquer sombra de ressentimento a respiração agitada da mulher,
por entre os cabelos despenteados e a boca que ela tinha entreaberta. Assim,
Gretta tinha tido na sua vida aquele romance! Um homem morrera por sua
causa! Naquele momento, quase lhe não doía o papel insignificante que ele, seu
marido, desempenhara na vida dela. Via­‑a dormir como se ambos nunca tives‑
sem sido marido e mulher. Os seus olhos demoravam­‑se curiosamente sobre
o rosto e o cabelo de Gretta e, enquanto ia pensando em como ela teria sido
então, no tempo da sua beleza ainda quase infantil, uma estranha e afectuosa
piedade lhe invadiu a alma. Não lhe agradava reconhecer — nem para consigo
próprio — que o rosto da mulher já não era belo como outrora, mas sabia, no
entanto, que aquele já não era o rosto pelo qual Michael Furey desafiara a morte.
Talvez ela lhe não tivesse contado toda a história. Os olhos de Gabriel
desviaram­‑se para a cadeira onde a mulher havia empilhado parte das roupas.
A fita de uma saia pendia, arrastando pelo chão. Uma bota estava direita,
com o cano dobrado, mas a outra jazia de lado. Sentia­‑se surpreendido com
o tumulto de emoções que uma hora antes o havia dominado. A que atribuí­
‑las? À ceia das tias, ao seu tolo discurso, ao vinho, ao facto de ter dançado,
à paródia que haviam feito no vestíbulo, ao prazer daquele passeio, à neve e
ao longo do rio? Pobre tia Júlia! Também ela não tardaria a converter­‑se numa
sombra ao lado da sombra de Patrick Morkan e do seu cavalo. A certa altura,
quando ela cantara «Vestida para o Casamento», achara­‑lhe os olhos enco‑
vados e a expressão desfeita. Não tardaria, talvez, que ele se encontrasse de
novo sentado naquela mesma sala de visitas, vestido de preto e de chapéu
alto poisado nos joelhos. As cortinas estariam descidas, e a tia Kate sentar­
‑se­‑ia ao lado dele, chorando e assoando­‑se enquanto lhe contaria como a
tia Júlia morrera. E ele havia de procurar na mente as palavras mais próprias
para a consolar e não encontraria senão expressões desajeitadas e inúteis.
Sim, sim; não tardaria que isso acontecesse.

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james joyce 547

A atmosfera do quarto gelara­‑lhe os ombros. Estendeu­‑se cautelosa‑


mente debaixo dos lençóis e deitou­‑se ao lado da mulher. A pouco e pouco,
uns atrás dos outros, todos teriam de se converter em sombras. Mais valia
passar corajosamente para esse outro mundo, em plena glória de uma paixão
qualquer, do que ir declinando e murchando desconsoladamente ao peso dos
anos. Pensou em como aquela que a seu lado dormia fechara durante tantos
anos no seu coração aquela imagem dos olhos do namorado quando ele lhe
dissera que não tinha desejo de viver.
Lágrimas abundantes arrasaram os olhos de Gabriel. Nunca ele senti‑
ra nada de semelhante por qualquer mulher, mas sabia que um sentimento
assim devia ser amor. As lágrimas acumularam­‑se­‑lhe mais abundantes ainda
nos olhos e imaginou que na semiobscuridade via o vulto de um rapaz novo,
de pé, debaixo de uma árvore gotejante. Outros rondavam por ali perto.
A sua alma aproximava­‑se daquela região habitada pelos inumeráveis hóspe‑
des da morte. Tinha a noção, ainda que a não conseguisse apreender total‑
mente, da existência bruxuleante e instável dessas sombras. A sua própria
identidade ia­‑se dissolvendo num mundo cinzento e impalpável: o próprio
mundo sólido, que esses mortos haviam em tempos construído e em que
haviam vivido, parecia ir­‑se dissolvendo e consumindo a pouco e pouco.
Umas pancadinhas leves na vidraça fizeram­‑no voltar para a janela.
Recomeçara a nevar. Pôs­‑se a observar sonolentamente os flocos prateados
e escuros que caíam obliquamente contra o candeeiro. Chegara o momento
de começar viagem para o ocidente. Sim, os jornais tinham razão: a neve era
geral em toda a Irlanda. Caía em toda a parte: na sombria planície central; nos
montes escalvados; tombava com leveza no Bog of Allen e, ainda mais para o
ocidente, caía de mansinho nas ondas sombrias e revoltas do Shannon. Tom‑
bava ainda em todos os cantos do solitário cemitério do monte onde Michael
Furey jazia enterrado. Empilhava­‑se espessamente nas cruzes torcidas e nas
lápides funerárias; nas grades pontiagudas do portão e nos espinhos estéreis.
A sua alma desfalecia lentamente à medida que ouvia a neve caindo frouxa‑
mente no universo, caindo frouxamente, como a descida do fim supremo
sobre todos os vivos e todos os mortos.

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548 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Franz KAFKA. A Metamorfose. Tradução de João Barrento. [1915] 2003.


Vila Nova de Famalicão: Quasi. 77­‑ 81.

Precisamente nesse serão — Gregor não se lembrava de o ter ouvido durante


todo este tempo — o violino soou na cozinha. Os hóspedes já tinham acaba‑
do de cear, o do meio tinha pegado num jornal, deu a cada um dos outros uma
folha, e agora os três liam, recostados e a fumar. Quando o violino começou
a tocar, ficaram de ouvido à escuta, levantaram­‑se e foram em bicos de pés
até à porta da saleta de entrada, onde ficaram encostados uns aos outros.
Da cozinha devem tê­‑los ouvido, porque o pai perguntou: «A música inco‑
moda os senhores? Podemos parar imediatamente.» «Pelo contrário», disse
o senhor do meio. «A menina não gostaria de vir tocar para a sala? É muito
mais cómodo e agradável.» «Mas, com certeza», disse o pai, como se fosse
ele quem tocava violino. Os senhores regressaram à sala e ficaram à espera.
Pouco depois entrou o pai com a estante de música, a mãe com as partituras
e a irmã com o violino. A irmã preparou calmamente tudo para começar a
tocar; os pais, que nunca tinham alugado quartos e por isso se excediam nas
suas gentilezas para com os hóspedes, nem ousaram sentar­‑se nas cadeiras do
costume. O pai ficou encostado à porta, a mão direita entre dois botões do
casaco abotoado da farda; a mãe, no entanto, aceitou a oferta de uma cadeira
que um dos senhores lhe fez, e sentou­‑se, deixando a cadeira no lugar onde o
senhor a colocara, num canto um pouco à parte.
A irmã começou a tocar, e o pai e a mãe seguiam­‑lhe atentamente os
movimentos das mãos, cada um do seu canto. Gregor, atraído pela música,
tinha­‑se chegado um pouco mais à porta e estava já com a cabeça dentro
da sala. Não se admirava muito de, nos últimos tempos, não levar muito em
conta a presença dos outros; antes, essa precaução era aquilo de que mais
se orgulhava. E afinal agora é que tinha razões mais fortes para se esconder,
porque, devido ao pó que cobria todo o seu quarto e se levantava ao mais
leve movimento, ele próprio estava coberto de poeira, as costas e os flancos
cheios de fios, cabelos, restos de comida. A sua indiferença em relação a tudo
era agora muito maior, e já nem se preocupava, como antes, em se deitar de
costas várias vezes ao dia para se esfregar no tapete. E, apesar do seu estado,

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franz kafka 549

não teve receio de se aventurar pelo chão impecavelmente limpo da sala de


estar.
Mas também ninguém lhe prestou atenção. Toda a família estava presa
à música do violino, ao contrário dos hóspedes, que a princípio, de mãos nos
bolsos, se tinham colocado muito perto da estante, em cima das notas, de
modo a poderem lê­‑las, o que certamente devia perturbar a irmã, e se retira‑
ram pouco depois, de cabeça baixa e fazendo alguns comentários a meia­‑voz,
para junto da janela, onde ficaram, sob os olhares preocupados do pai. Pare‑
cia mais que evidente que deviam ter ficado decepcionados na sua expecta‑
tiva de ouvir uma bela música ou de se distraírem um bocado, estavam far‑
tos do espectáculo e só por delicadeza deixavam que lhes perturbassem o
sossego. Em especial o modo como sopravam pela boca e pelo nariz o fumo
dos charutos era sinal de grande nervosismo. E afinal a irmã tocava tão bem,
com o rosto inclinado, os olhos atentos e tristes a seguir as linhas das notas.
Gregor avançou mais um bocado, a rastejar, e deixou­‑se ficar com a cabeça
encostada ao chão, para que o seu olhar encontrasse o da irmã. Seria ele um
bicho, quando a música o tocava assim? Era como se ali se lhe abrisse o cami‑
nho para um alimento desconhecido. Estava decidido a avançar até junto da
irmã, a puxar­‑lhe pela saia para lhe dar a entender que ela devia ir com o violi‑
no para o seu quarto, porque ninguém ali dava, como ele, valor à sua música.
Não queria deixá­‑la sair mais do quarto, pelo menos enquanto ele vivesse.
Pela primeira vez a sua forma assustadora havia de lhe servir para alguma
coisa: pensou que se iria postar em todas as portas do seu quarto e ameaçar,
assanhado, qualquer agressor. Mas a irmã não devia ficar com ele à força,
tinha de ser de livre vontade. Iria sentar­‑se no canapé a seu lado, aproximar
o ouvido para ele lhe contar como tinha tomado a firme decisão de a mandar
estudar no Conservatório e que, se não fosse a desgraça que entretanto acon‑
tecera, tencionava comunicá­‑lo a todos pelo Natal — o Natal já tinha passa‑
do, de certeza —, sem se preocupar minimamente com as reacções. Depois
desta confissão, a irmã ia desfazer­‑ se em lágrimas de comoção, e Gregor
erguer­‑se­‑ia até à altura do seu ombro e dar­‑lhe­‑ia um beijo no pescoço, que
ela agora, desde que trabalhava, tinha sempre livre, sem fita nem golas altas.
«Senhor Samsa!», exclamou o senhor do meio, apontando com o indica‑
dor, sem mais uma palavra, para Gregor, que avançava lentamente. O violino
calou­‑se, o senhor do meio sorria, abanando a cabeça, para os seus amigos
e depois voltou a olhar para Gregor. O pai achou por bem, em vez de enxo‑
tar Gregor, começar por tranquilizar os senhores hóspedes, apesar de estes
não estarem propriamente nervosos e de Gregor os parecer divertir mais do
que a música do violino. Correu para junto deles e tentou, de braços abertos,

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550 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

empurrá­‑los para o seu quarto, tapando­‑lhes ao mesmo tempo com o corpo


a vista de Gregor. Agora é que eles ficaram um pouco irritados, mas não se
percebia bem se devido ao comportamento do pai ou por só agora se aperce‑
berem de que, sem o seu conhecimento, tinham um vizinho de quarto como
Gregor. Exigiam explicações ao pai, levantavam também eles os braços,
cofiavam as barbas, inquietos, e lá foram recuando lentamente até ao seu
quarto. Entretanto, a irmã, que ficara meio perdida com a interrupção da
música, recuperou e, depois de um intervalo de espera em que ficara de vio‑
lino e arco nas mãos pendentes, a olhar para as notas como se ainda tocasse,
voltou a si de repente, pôs o instrumento no colo da mãe, que continuava
sentada na sua cadeira, respirando com grande dificuldade, e correu para a
sala ao lado, da qual já se aproximavam os senhores hóspedes, pressionados
pelo pai. Podia ver­‑se como, nas mãos hábeis da irmã, cobertores e almofa‑
das das camas voavam e eram colocados nos seus lugares. Ainda antes de os
hóspedes chegarem já ela tinha as camas prontas e se esgueirava do quarto.
O pai parecia estar de novo sob o efeito da sua casmurrice, a ponto de perder
o respeito que, apesar de tudo, devia aos seus hóspedes. Empurrava­‑os sem
dar tréguas, até que, já à porta do quarto, o senhor do meio bateu o pé no
chão com força fazendo parar o pai. «Para vossa informação», disse, de mão
levantada e procurando com o olhar também a mãe e a irmã, «ficam a saber
que, dada a situação verdadeiramente repugnante que se vive nesta família»
— e, dizendo isto, cuspiu secamente no chão —, «a partir deste momento
deixo de ser vosso hóspede. E naturalmente que não pagarei um centavo
pelos dias que aqui vivi; pelo contrário, vou pensar muito bem se não exigirei
uma qualquer indemnização, o que não me será muito difícil de conseguir».
Ficou calado, olhando em frente, à espera de qualquer reacção. E, de facto,
vieram logo a seguir as palavras dos dois amigos: «Também nós deixamos o
quarto imediatamente.» Ao que o primeiro agarrou na maçaneta da porta e a
fechou com estrondo.

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Konstantinos KAVAFIS. «Esperando os bárbaros», in 145 Poemas. Tradução


de Manuel Resende. [1904] 2017. Porto: Flop. 345.

— Mas que esperamos nós aqui n’Ágora reunidos?

É que os bárbaros hoje vão chegar!

— Mas porque reina no Senado tamanha apatia?


Por que razão os senadores já não fazem mais leis?

É que os bárbaros hoje vão chegar.


Que leis hão­‑de fazer os senadores?
Os bárbaros que vêm, que as façam eles.

— Mas porque tão cedo se ergueu hoje o nosso imperador,


E se sentou na magna porta da cidade à espera,
Oficial, no trono, co’a coroa na cabeça?

É que os bárbaros hoje vão chegar.


O nosso imperador espera receber
O chefe. E certamente preparou
Um pergaminho para lhe dar, onde
Inscreveu vários títulos e nomes.

— Porque é que os nossos dois bons cônsules e os dois pretores


trouxeram hoje à rua as togas vermelhas bordadas?
Porque passeiam com pulseiras ricas de ametistas,
e porque trazem os anéis refulgentes de esmeraldas,
por que razão empunham hoje bastões preciosos
com tão finos ornatos de ouro e prata cravejados?

É que os bárbaros hoje vão chegar.


E tais coisas os deixam deslumbrados.

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552 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

— Porque não vêm como é costume os grandes oradores


Soltar seu verbo desfraldar a sua eloquência?

É que os bárbaros hoje vão chegar


E aborrecem arengas, belas frases.

— Porque de súbito se instala tal inquietude


Tal comoção (Mas como os rostos ficaram tão graves)
E num repente se esvaziam as ruas, as praças,
E toda a gente volta para casa pensativa?

Caiu a noite, os bárbaros não vêm.


E chegaram pessoas da fronteira
E disseram que bárbaros não há.

Agora que será de nós sem esses bárbaros?


Essa gente talvez fosse uma solução.

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thomas kinsella 553

Thomas KINSELLA. «Espelho em Fevereiro», in Estradas Secundárias.


Tradução de Hugo Pinto Santos [1963]. 2013. Lisboa: Artefacto. 33.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O dia amanhece com um aroma de orvalho e chuva,


De terras revolvidas, escuras árvores, um ar seco no quarto.
Debaixo do candeeiro intermitente, por vestir — as minhas ideias
A cismar indolentes numa qualquer fantasia — ­ ,
Enxugo o queixo barbeado, paro, observo,
Tomado pela escuridão de um olhar exausto,
O seco vinco descendente da boca.

Uma vez mais, parece ser tempo de aprender,


Neste incansável, arruinado, local de crescimento
A que temporariamente regresso.
Agora, visível ao espelho da minha alma,
Percebo que olhei pela última vez a juventude,
E pouco mais; porque não são de uma só libra
Os que chegam à idade de Cristo.

Por baixo da minha janela, despertam as árvores,


Podadas rentes para melhor medrarem, erguem­‑se delapidadas,
Vítimas de uma rude necessidade.
E como pode não se retrair a carne, palmo
A palmo cada vez mais mutilada? Num lento desagrado,
Dobro a toalha com a elegância de que sou capaz,
Não jovem, não renovável, mas homem.

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554 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Barbara KORUN. [Tenho dois animais], in Treze Poetas Eslovenos. Tradução


de Mateja Rozman. [1999] 2008. Lisboa: Roma Editora. 119.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Tenho dois animais.


Um vermelho e outro azul.
Quando o azul bebe, o vermelho
corre.
E vice­‑versa.
Nunca consigo apanhá­‑los,
distendida entre o que corre e o que descansa.

Deixarei o pensamento
como engodo,
lá longe, lá longe na planície.
Não vão reparar,
com os focinhos a cheirar a eternidade.
Deitar­‑me­‑ei na relva
ao pé da água mãe
e dormirei.
A lua cobrir­‑me­‑á.

De manhã
com os primeiros raios de sol
chegarão os dois.
Cansados, suados, com os focinhos a espumar.
Depois
juntos
beberemos água.

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karl kraus 555

Karl KRAUS. [Não me perguntem em que andei ocupado], in Os Últimos


Dias da Humanidade (programa de sala). Tradução de António Sousa
Ribeiro. [1918] 2016. Porto: Teatro Nacional de São João. 45.

Não me perguntem em que andei ocupado.


Mantenho a mudez;
e não digo os porquês.
Reina o silêncio num mundo destroçado.
Faltou ao verbo alento;
a fala é já sem tento.
E sonha­‑se com um sol que ria sem cessar.
Tudo fica pra trás;
Depois — tanto faz.
A palavra morreu, com esse mundo a acordar.

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556 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Jean de LA FONTAINE. «A morte e o desgraçado», in 100 Fábulas de La


Fontaine. Tradução de Gomes Leal. [1668] 2005. Porto: Campo das Letras. 36.

Chamava um desgraçado, a toda a hora,


Em seu socorro a Morte.
— Vem, ó Morte! — gritava — e, sem demora,
Ceifa­‑me a rude sorte!

Quis a Morte fazer­‑lhe um bom serviço,


E à porta lhe bateu.
Entrou­‑lhe em casa, sem se dar por isso,
E disse­‑lhe: — Sou eu!

— Que vejo! — grita ele — ó monstro horrendo!


Espectro de pavor! Foge de mim!
Nunca pensei — clamou todo tremendo —
Que fosses feia assim!

Ora, Mecenas foi um homem douto,


Que disse: — Tornem­‑me antes impotente,
Tolhido, manco, tendo só um coto,
Gotoso — mas que eu viva longamente!

Nós dizemos o mesmo à Omnipotente.

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stanisław lem 557

Stanisław LEM. Solaris. Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz. [1961]


2018. Lisboa: Antígona. 29­‑42.

Texto sujeito a Direitos de Autor

A descoberta de Solaris ocorrera quase cem anos antes do meu nascimen‑


to. (…) Quando andava na escola, Solaris — devido a factos posteriormente
conhecidos — era comummente considerado um planeta dotado de vida,
só que povoado por um único habitante… [o oceano]. Na realidade, nem
todos concordavam que o oceano fosse «uma criatura», já para não falar de o
considerar «um ser racional». (…)
As primeiras tentativas de contacto realizaram­‑se por intermédio de
aparelhos electrónicos especiais que transformavam os estímulos enviados
em ambas as direcções. O oceano tomava parte activa na construção des‑
ses aparelhos. Mas tudo isso acontecia às cegas. O que significava «tomava
parte»? O oceano modificava certos elementos dos aparelhos que nele eram
submersos, o que conduzia à alteração do ritmo das descargas e fazia com que
os aparelhos registassem um turbilhão de sinais que mais pareciam fragmen‑
tos de uma actividade gigantesca que escapava a qualquer análise. Mas que
significava tudo isso? Talvez fossem apenas dados sobre o estado momentâ‑
neo de estimulação do oceano? Talvez fossem impulsos que despertavam as
formações gigantes do oceano, algures a milhares de milhas de distância dos
investigadores? Talvez os aparelhos electrónicos tivessem registado a mani‑
festação impenetrável do reflexo das verdades eternas daquele oceano? Tal‑
vez o oceano nos tivesse cedido as suas obras­‑primas? Quem poderia saber,
se era impossível obter duas vezes a mesma reacção a um mesmo estímulo?
Umas vezes, a resposta era dada com uma explosão de impulsos que quase
rebentava com os aparelhos e, outras vezes, com um silêncio absoluto. Tam‑
bém era impossível obter a repetição de qualquer manifestação já observada.
Continuávamos a crer que estávamos a um passo de decifrar aquela massa
crescente de registos, tanto mais que para o efeito tinham sido construídos
cérebros electrónicos com grande capacidade de processamento da infor‑
mação como nenhum problema o exigira até então. Com efeito, obtiveram­
‑se certos resultados. O oceano — fonte de impulsos eléctricos, magnéti‑
cos, gravitacionais — exprimia­‑se numa espécie de linguagem matemática;

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562 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Giacomo LEOPARDI. «Canto nocturno de um pastor errante da Ásia», in


Cantos. Tradução de Albano Martins. [1835] 2006. Porto: Asa. 66­‑ 73.

Que fazes tu no céu, ó lua, diz­‑me, o que fazes,


Silenciosa lua?
Ergues­‑te à noite e caminhas,
Contemplando os desertos; em seguida repousas.
Não estás cansada ainda
De percorrer os mesmos eternos caminhos?
Não te enfadaste ainda, ainda te apetece
Olhar estes vales?
Com a tua vida se parece
A vida do pastor.
Ergue­‑se aos primeiros alvores;
Conduz o rebanho pela planície e vê
Rebanhos, fontes e ervas;
Depois, cansado, deita­‑se, quando a noite chega:
Mais nada espera.
Diz­‑me, ó lua: de que serve
A sua vida ao pastor,
A vós a vossa vida? Diz­‑me: onde leva
Esta minha errância breve,
O teu curso imortal?

Velhinho branco, enfermo,


Seminu e descalço,
Um fardo pesadíssimo nos ombros,
Por montanhas e vales,
Por rochas afiadas, e dunas, e sarças,
Ao vento, à tempestade, quando a hora
Queima e quando em seguida gela,
Corre, corre, fica ofegante,
Transpõe torrentes e pântanos,
Cai, levanta­‑se, cada vez se apressa mais,

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giacomo leopardi 563

Sem trégua ou descanso,


Lacerado, a sangrar; alcança, enfim,
A meta onde o caminho
E esforço tamanho o conduziam:
Abismo horrendo, imenso,
Onde, ao precipitar­‑se, tudo esquece.
Lua virgem, tal
É a vida dos mortais.

Nasce o homem com dificuldade


E é um risco de morte o nascimento.
Sofre penas e aflições
Desde a primeira hora; e também ao princípio
A mãe e o pai
De haver nascido a consolá­‑lo começam.
À medida que vai crescendo,
Um e outro o amparam e sempre, assim,
Por acções e palavras,
Procuram dar­‑lhe alento
E conforto pela humana condição:
Tarefa mais grata
Não têm os pais para com os filhos.
Mas porquê trazer à luz,
Porquê manter vivo
Quem depois é preciso da vida consolar?
Se a vida é desventura,
Porque a suportamos nós?
Imaculada lua, tal
É a condição dos mortais.
Mas tu mortal não és
E talvez o meu dizer pouco te importe.

Contudo, ó solitária, eterna viajeira,


Tu, que és tão pensativa, entenderás talvez
Este viver terreno,
A nossa dor, nossos suspiros o que são,
E que é esta morte, esta suprema
Palidez do semblante,
Desaparecer do mundo e faltar

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564 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Às habituais, amadas companhias.


Tu por certo conheces
O porquê das coisas, sabes
A finalidade da manhã, da noite,
Da marcha silenciosa, infinita, do tempo.
Tu sabes, certamente, a que doce amor seu
A primavera sofri,
A quem aproveitam os ardores, o que persegue
O inverno com seus gelos.
Mil coisas sabes tu e mil descobres
Que são ocultas ao simples pastor.
Muitas vezes, quando te vejo
Assim muda sobre a planície deserta
Que em seu círculo distante com o céu confina;
Ou conduzindo o meu rebanho
Me segues passo a passo,
E quando as estrelas vejo arder no céu,
Digo entre mim, pensando:
Para quê tantas luzes?
O que faz o espaço infinito e o profundo
Céu sereno? Que significa esta
Solidão imensa? E eu que sou?
Assim comigo falo: e da morada
Imensa e majestosa
E sua família inumerável,
Depois de tanto esforço, tantas voltas
De cada objecto celeste, cada terrena coisa,
Girando sem descanso,
Para voltar sempre ao ponto de partida,
Utilidade alguma, fim algum
Consigo adivinhar. Mas tu, por certo,
Ó jovem imortal, tu sabes tudo.
O que eu sei e sinto
É que dos eternos ciclos,
Da minha frágil existência,
Algum bem ou alegria virá
Talvez para outros: para mim, a vida é um mal.

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carl johan lohman 565

Carl Johan LOHMAN. «Sobre o Tempo», in Colóquio Letras 164: Imagens


da poesia europeia — II. Tradução de David Mourão­‑Ferreira. [século xviii]
2003. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 280­‑281.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O Tempo? Uma ampulheta que se perde em si própria.


Um mar tumultuoso cujas vagas se empurram
umas por sobre as outras, tal e qual como as horas...
Ou um olhar que nasce num túmulo e que morre
tão­‑só por ter nascido... Melhor dizendo: um sopro
que se esvai num suspiro... Por uma estrada, um coche
que por montes e vales, de espinhos e de rosas,
noite e dia nos leva no encalço da Morte.

Porque o Tempo nos rapta com suas asas rápidas.


De repente se esquecem as coroas de flores
que tece a juventude... Já maduros os frutos
exigem ser colhidos com caroços e tudo.
Nas têmporas nos surgem cabelos cor de cinza:
são agora a coroa que assinala a velhice.
Assim nos vai o Tempo dia a dia expulsando,
sem nós sabermos como, sem nós sabermos quando.

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566 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

André MALRAUX. A Condição Humana. Tradução de Jorge de Sena. [1933]


1973. Lisboa: Livros do Brasil. 21­‑25.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O russo comia confeitozinhos, um a um, sem deixar de olhar Tchen; e Tchen,


de repente, compreendeu a gulodice. Agora que matara, tinha o direito de
lhe apetecer fosse o que fosse. O direito. Mesmo que fosse pueril. Estendeu a
mão sem cerimónia. Katow julgou que ele queria ir­‑se embora e apertou­‑lha.
Tchen levantou­‑se. Também talvez calhasse bem: nada mais tinha a fazer ali;
Kyo estava prevenido, cabia­‑lhe agir. E ele, Tchen, sabia o que queria agora
fazer. Foi até à porta, mas voltou:
— Dá­‑me os confeitos.
Katow deu­‑lhe o saco. Tchen quis dividir o conteúdo, não havia papel.
Encheu a mão, comeu dela com a boca, e saiu.
— Não devia ter sido fácil — disse Katow.
Refugiado na Suíça de 1905 a 1912, data do seu regresso clandestino à
Rússia, falava francês sem qualquer sotaque russo, mas engolindo algumas
vogais, como se quisesse compensar assim a necessidade de articular rigo‑
rosamente quando falava chinês. Quase debaixo da lâmpada agora, o seu
rosto estava pouco iluminado. Kyo preferia isso: a expressão de ingenuidade
irónica que os olhinhos e sobretudo o nariz arrebitado (pardal sonso, dizia
Hemmelrich) davam ao rosto de Katow, era tanto mais viva quanto se opu‑
nha bastante às suas próprias feições, e muitas vezes o incomodava.
— Acabemos — disse. — Tens os discos, Lu?
Lu­‑Yu­‑ Shuen, todo sorrisos e como que pronto para mil respeitosas
vénias, dispôs em dois gramofones os dois discos examinados por Katow. Era
preciso pô­‑los em movimento ao mesmo tempo.
— Um, dois, três — contou Kyo.
O assobio do primeiro disco cobriu o segundo; de repente, parou...
ouviu­‑se: enviar... depois recomeçou. Outra palavra: trinta. Novo assobio.
Depois: homens. Assobio.
— Perfeito — disse Kyo. Deteve o movimento, e repôs em andamento o
primeiro disco, sozinho: assobio, silêncio, assobio. Alto. Bom. Etiqueta dos
discos de refugo.

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thomas mann 571

Thomas MANN. A Montanha Mágica. Tradução de Gilda Lopes


Encarnação. [1924] 2009. Alfragide: Dom Quixote. 274­‑285.

Texto sujeito a Direitos de Autor

— Está também à espera de correspondência, senhor engenheiro?


Só uma pessoa falava daquela maneira, e era uma pessoa incómoda. Hans
Castorp assustou­‑se e voltou­‑se para o senhor Settembrini, que se tinha colo‑
cado à sua frente, sorrindo. Era aquele sorriso fino e humanístico com que
outrora saudara o recém­‑chegado junto ao banco, ao pé do regato, e, tal como
aí sucedera, Hans Castorp voltou a sentir­‑se envergonhado ao vê­‑lo sorrir.
Não obstante ter tentado repetidas vezes, em sonhos, expulsar o «tocador de
realejo», porque «a sua presença incomodava», a verdade é que a vigília é mais
generosa do que o sonho. O sorriso do italiano não só lhe trouxe vergonha
e sobriedade como o fez sentir­‑se grato porque lhe supria uma necessidade.
Respondeu:
— Correspondência, senhor Settembrini? Olhe que não sou nenhum
embaixador! Talvez tenha chegado um bilhete­‑postal para um de nós. O meu
primo está a tratar do assunto.
— Eu já recebi a minha parca correspondência das mãos daquele diabo
coxo — disse Settembrini, levando a mão à algibeira do seu inevitável casaco
de lã. — Coisas interessantes, coisas de alcance literário e social, não há como
negá­‑lo. Trata­‑se de uma obra enciclopédica, promovida por um instituto
humanitário, que me dá agora a honra de nela colaborar... Numa palavra: um
belo trabalho. — Settembrini interrompeu­‑se. — Mas diga­‑me, como vão as
suas coisas? — perguntou. — Há novidades? O processo de aclimatação tem,
por exemplo, prosperado? No fundo, o senhor também não está assim há
tanto tempo entre nós que a pergunta já não se justifique.
— Agradeço­‑lhe a pergunta, senhor Settembrini. Continuo a ter as
minhas dificuldades. Mas é bem possível que as conserve até ao último dia.
Há quem nunca se adapte, foi o que o meu primo me disse logo à chegada.
Mas habituamo­‑nos a não nos conseguirmos habituar.
— Um caso intrincado — riu­‑ se o italiano. — Uma forma curiosa de
adaptação. Mas é claro que a juventude está predisposta para tudo. Não se
habitua, mas vai lançando as suas raízes.

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john milton 583

John MILTON. Excerto de «Paraíso perdido», in Horas de Fuga. Traduções


de poesias inglesas e de outras línguas. Tradução de Luiz Cardim. [1667] 2004.
Porto: Asa. 43­‑45.

ALOC UÇÃO DE SATÃ AO SO L

«Ó tu que lá do azul, o teu domínio,


de glória portentosa coroado,
és como o Deus do mundo ora nascido,
na presença de quem os astros velam
as apoucadas frontes: eu te invoco,
mas não com voz amiga, e por ti brado,
ó Sol — para dizer­‑te quanto odeio
teus raios, a lembrar­‑me de que estado
caí, quão luminoso eu fui no empíreo;
enquanto o orgulho e a ambição nefanda
me não perderam, tendo armado a guerra
nos céus, contra o seu Rei incomparável.
Ah, e porquê? Bem melhor jus tivera
de mim, que ele criou tal como eu fui
na mansão resplendente: o seu amor
a ninguém rejeitava, e o seu serviço
para ninguém, tampouco, era pesado.
Que menos que prestar­‑lhe mil louvores,
bem fácil recompensa, e dar­‑lhe graças?
E quão devidas! Todo o bem, no entanto,
em mim só provou mal; assim erguido,
malquis da sujeição; imaginei
subir, dum passo, ao alcandor supremo;
e saldar num momento o longo encargo
da gratidão sem fim, tão opressiva,
que sempre paga, e sempre é devedora.
Olvidei quanto ainda recebia;
e não compreendi que um peito grato
só deve sem dever com ir pagando,
preso e livre a um tempo — qual o fardo?

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584 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Ah, tivera o seu génio poderoso


feito de mim um anjo subalterno,
seria então feliz: já meu desvairo
esta ambição ruim não me trouxera.
Feliz? Mas se uma outra potestade,
em vez de mim, a tanto se atrevesse:
não podia arrastar­‑me nas cortes?
E todavia outros poderes excelsos
não caíram, ficando inabaláveis
a toda a tentação, interna ou externa.
Eras livre, também, de resistir?
Assim eras. A quem, portanto, acusas,
se o amor do Céu a todos igualava?
Maldito pois o amor, se tanto dele
como do ódio, vem desgraça eterna.
Não, maldito só tu que livremente
Escolheste o destino que deploravas.
Ah, mísero de mim! Onde abrigar­‑me
Da cólera infinita, e desespero?
Adonde vá, é inferno; eu próprio, inferno;
e no mais fundo abismo, um novo abismo
inda mais fundo, e pronto a devorar­‑me,
perante o qual o meu inferno é glória.
Oh, abranda por fim! Não há lugar
para arrependimento, e para graça?
Só pela submissão: a qual palavra
este desdém me prende, e a vergonha
entre os esp’ritos lá do abismo, a quem
com promessa melhor eu seduzi:
a de vencer o próprio Omnipotente.
Ai de mim! Que nem eles fantasiam
por que preço paguei minha jactância;
a que tormentos íntimos sucumbo.
E quando sobre o trono me veneram,
com meu diadema e com meu ceptro erguido,
mais baixo caio, mais — supremo apenas
na miséria: eis o fruto da ambição.
Quando mesmo, porém, me arrependera,
e piedade obtivera, quão depressa,

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john milton 585

com sentir­‑me elevado, tornariam


os altos pensamentos: quão depressa
renegaria as juras, mal submisso!
Os votos feitos sob a dor são vãos.
Nunca nasce uma trégua verdadeira
onde um ódio mortal tão fundo fere;
recairia logo em pior crime
e em castigo pior; pagava caro
um curto alívio com dobradas penas.
Sabe­‑o quem me puniu: tão longe, assim,
de dar­‑me a paz, como eu de suplicá­‑la.
Toda a esp’rança perdida, vede, agora,
vede em nosso lugar, postos no exílio,
o seu novo deleite, a raça humana,
para a qual destinou um mundo novo.
Assim, adeus esp’rança; e adeus, temor;
adeus remorso; o Bem, ei­‑lo perdido.
Mal, sê tu o meu Bem; por ti, ao menos,
divido o império com o Rei dos Céus,
por ti — e talvez eu lhe leve a palma:
sabê­‑lo­‑ão em breve o mundo e o homem.»

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586 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Pico della MIRANDOLA. Discurso sobre a Dignidade do Homem. Tradução


de Maria de Lurdes Sirgado Ganho. [1496] 2006. Lisboa: Edições 70. 55­‑ 59.

Já o Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana


sabedoria este lugar do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da
divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com inteligências, avivado
os globos etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão de animais
de toda a espécie as partes vis e fermentantes do mundo inferior. Mas, consu‑
mada a obra, o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender
a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua gran‑
deza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pen‑
sou por último criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum
sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algum para
oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares de todo o mundo resta‑
ra algum no qual se sentasse este contemplador do universo. Tudo estava já
ocupado, tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos ínfimos
graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar, como se
fosse inábil, na sua última obra, não era próprio da sua sapiência permanecer
incerta numa obra necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu
benéfico amor que, quem estava destinado a louvar nos outros a liberalidade
divina, fosse constrangido a lamentá­‑la em si mesmo.
Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquele a quem nada de
especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha
sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra
de natureza indefinida e, colocando­‑o no meio do mundo, falou­‑lhe deste
modo: «Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto
que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e
possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente dese‑
jares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida
dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário,
não constrangido por nenhuma limitação, determiná­‑la­‑ás para ti, segundo o
teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei­‑te no meio do mundo para
que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste

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pico della mirandola 587

nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano
artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses
seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas,
poderás regenerar­‑te até às realidades superiores que são divinas, por deci‑
são do teu ânimo.»
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do
homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer. As bes‑
tas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre materno, como
diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos superiores ou desde
o princípio, ou pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem
nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida,
e segundo a maneira de cada um os cultivar assim estes nele crescerão e
darão os seus frutos. Se vegetais, tornar­‑se­‑á planta. Se sensíveis, será besta.
Se racionais, elevar­‑se­‑á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de
Deus, e se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no
centro da sua unidade, tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem
do Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas.

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588 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

MOLIÈRE. Excerto de «Acto I, cena 1», in O Misantropo. Tradução de


Vasco Graça-Moura. [1666] 2007. Lisboa: Bertrand. 17­‑29.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Filinto
Que foi? Que tendes vós?

Alceste, sentado
Ora deixai­‑me em paz.

Filinto
Mas dizei­‑me inda assim que bizarria faz.

Alceste
Deixai­‑me, digo eu, sumi­‑vos sem detença.

Filinto
Mas seja ouvida a gente ao menos, sem ofensa.

Alceste
Pois nada quero ouvir e quero­‑me ofender.

Filinto
Nas vossas brusquidões não vos posso entender;
E amigos mesmo assim, a mim logo vereis…

Alceste, levantando­‑se bruscamente


Vosso amigo, eu? Riscai tal coisa dos papéis,
Bem que de o ser há pouco eu profissão fizesse.
Mas depois do que em vós vejo que transparece,
Vos declaro de vez que nunca o serei mais
E não quero lugar em peitos desleais.

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alfred de musset 593

Alfred de MUSSET. Excerto de «Acto III, cena 3», in Lorenzaccio. Tradução


inédita de Rita Correia. [1834] 1978. Paris: Gallimard. 220­‑244.

Lorenzo: Eu, tal como agora me vês, Philippe, já fui honesto. Acreditei na
virtude, na grandeza humana, como um mártir acredita no seu Deus.
Derramei mais lágrimas pela pobre Itália do que Níobe pelas suas filhas.
Philippe: E então, Lorenzo?
Lorenzo: A minha juventude foi pura como ouro. Durante vinte anos de
silêncio, o fogo foi­‑se acumulando no meu peito, e devo ser realmente
uma centelha de trovoada, porque numa noite em que estava sentado
nas ruínas do antigo Coliseu, levantei­‑me de repente, não sei porquê,
estendi para os céus os braços cobertos de orvalho e jurei que um dos
tiranos da minha pátria morreria às minhas mãos. Eu era um estudante
pacato, e naquele tempo ocupava­‑me apenas das artes e das ciências.
É­‑me impossível dizer como se formou em mim este estranho desíg‑
nio. Talvez seja o mesmo sentimento que experimentamos quando nos
enamoramos.
Philippe: Sempre confiei em ti, e contudo parece que sonho.
Lorenzo: E eu também. Era feliz, naquele tempo; tinha o coração e as
mãos tranquilos. O meu nome conduzia­‑me ao trono, e bastava­‑me
deixar o sol nascer e pôr­‑ se para ver florescer à minha volta todas as
esperanças humanas. Os homens não me haviam feito nem bem nem
mal, mas eu era bom e, para minha eterna infelicidade, quis ser gran‑
de. Tenho de confessar que se a Providência me impeliu à resolução de
matar um tirano, fosse ele quem fosse, também o orgulho o fez. O que
mais posso dizer­‑ te? Todos os Césares do mundo me faziam pensar
em Bruto.
Philippe: O orgulho da virtude é um orgulho nobre. Porque te resguarda‑
rias dele?
Lorenzo: Nunca saberás, a menos que sejas louco, de que natureza é o pen‑
samento que me corroeu. Para compreenderes a exaltação febril que fez
nascer em mim o Lorenzo que te fala, seria preciso que o meu cérebro
e as minhas vísceras ficassem expostos sob um escalpelo. Uma estátua

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594 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

que descesse do seu pedestal para caminhar entre os homens, na praça


pública, seria talvez semelhante ao que eu fui no dia em que comecei a
viver com esta ideia: é preciso que eu seja um Bruto.
Philippe: Espantas­‑me cada vez mais.
Lorenzo: Primeiro quis matar Clemente VII. Não consegui fazê­‑lo porque
me baniram de Roma antes de tempo. Recomecei a minha obra com
Alexandre. Queria agir sozinho, sem auxílio de homem algum. Traba‑
lhava para a humanidade, mas o meu orgulho permanecia solitário no
meio de todos os meus sonhos filantrópicos. Era pois necessário ence‑
tar um combate singular e astuto com o meu inimigo. Eu não queria
levantar as massas nem conquistar a glória palavrosa de um paralítico
como Cícero. Queria chegar ao homem, encontrar­‑me corpo a corpo
com a tirania viva, matá­‑la, levar depois a minha espada ensanguentada
à tribuna, e deixar o fumo do sangue de Alexandre chegar ao nariz dos
demagogos para lhes reanimar os cérebros pomposos.
Philippe: Que vontade de ferro, amigo! Que vontade de ferro!
Lorenzo: Tratando­‑se de Alexandre, a tarefa que me impunha era árdua.
Florença estava, como hoje, ébria de vinho e sangue. O Imperador e
o Papa tinham feito um duque de um aprendiz de açougueiro. Para
agradar a meu primo era preciso chegar a ele levado pelas lágrimas das
famílias; para ser seu amigo e ganhar a sua confiança era preciso beijar,
nos seus lábios grossos, as sobras das orgias. Eu era puro como um lírio,
e todavia não recuei perante esta tarefa. Não falemos daquilo em que
me tornei por causa disso. Deves perceber o que sofri, e há feridas que
não podemos descobrir impunemente. Tornei­‑me depravado, cobarde,
objecto de vergonha e opróbrio… Mas o que importa? — Não é disso
que se trata.
Philippe: Baixas a cabeça, os teus olhos estão húmidos.
Lorenzo: Não, não estou a corar; as máscaras de gesso não têm rubor ao
serviço da vergonha. O que fiz está feito. Quero que saibas apenas
que fui bem­‑ sucedido no meu propósito. Alexandre virá em breve a
um lugar de onde não sairá pelo seu pé. Estou no fim da minha pena, e
podes estar certo, Philippe, de que o búfalo selvagem, quando o boieiro
o abate no prado, não está rodeado de mais redes e laços do que aqueles
que estendi ao meu bastardo. Aquele coração, a que um exército não
chegaria num ano, está agora nu debaixo da minha mão; basta­‑me dei‑
xar cair o meu estilete, e ele entrará. Tudo será feito. Percebes agora o
que me está a acontecer, e aquilo de que quero prevenir­‑te?
Philippe: És o nosso Bruto, se falas verdade.

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alfred de musset 595

Lorenzo: Julguei­‑me um Bruto, meu pobre Philippe. Lembrei­‑me do caja‑


do de ouro coberto de casca. Agora conheço os homens e aconselho­‑te
a não te misturares com eles.
Philippe: Porquê?
Lorenzo: Ah! Vivestes sozinho, Philippe. Como um farol resplandecen‑
te, ficastes imóvel à beira do oceano dos homens, e contemplastes nas
águas o reflexo da vossa própria luz. Do fundo da vossa solidão, achá‑
veis o oceano magnífico sob o dossel esplêndido dos céus. Não fazíeis
contas a cada onda, não lançáveis a sonda; estáveis cheio de confiança
na obra de Deus. Mas eu, durante esse tempo, mergulhei, submergi­‑me
neste mar tempestuoso da vida, percorri as suas profundezas, dentro da
minha redoma de vidro — enquanto vós admiráveis a superfície, eu vi
os destroços dos naufrágios, as ossadas e os Leviatãs.
Philippe: A tua tristeza parte­‑me o coração.
Lorenzo: É porque vos vejo igual ao que eu era, e prestes a fazer o que fiz,
que vos falo desta maneira. Não desprezo de todo os homens; o erro
dos livros e dos historiadores é mostrarem­‑no­‑los diferentes do que são.
A vida é como uma cidade — podemos permanecer nela cinquenta ou
sessenta anos sem vermos mais do que avenidas e palácios, mas para
isso é preciso não entrarmos nas casas de jogo e não nos determos, no
regresso a casa, nas janelas dos bairros mal­‑afamados. Eis o que penso,
Philippe. — Se a questão é salvar os teus filhos, digo­‑te que fiques sos‑
segado; é a melhor maneira de tos devolverem depois de um peque‑
no sermão. Se a questão é tentar qualquer coisa em prol dos homens,
aconselho­‑te a cortar os braços, pois não demorarás muito a aperceber­
‑te de que és o único a tê­‑los.
Philippe: Imagino que o papel que representas te tenha dado semelhantes
ideias. Se bem te percebo, tomaste um caminho horrível para um desti‑
no sublime, e crês que tudo se parece com o que viste.
Lorenzo: Despertei dos meus sonhos, só isso. E estou a avisar­‑te do perigo
de sonhar. Conheço a vida, e podes ter a certeza de que é um antro de
sujidade. Se respeitas alguma coisa no mundo, não metas lá as mãos.
Philippe: Pára! Não partas, como se de uma cana se tratasse, o cajado da
minha velhice. Acredito em tudo o que chamas sonhos; acredito na vir‑
tude, no pudor e na liberdade.
Lorenzo: E não ando eu na rua — eu, Lorenzaccio? E porventura me ati‑
ram lama as crianças? Não estão os leitos das raparigas ainda mornos
do meu suor? E, quando eu passo, porventura os pais lançam mão das
suas facas e vassouras para me atacar? No fundo das dez mil casas que

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596 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

aqui vedes, a sétima geração falará ainda da noite em que lá entrei, e não
haverá uma que ao ver­‑me vomite um moço de lavoura que me rache
ao meio como um cepo podre? O ar que respirais, Philippe, também
eu o respiro. O meu manto de seda colorido arrasta­‑se preguiçosamen‑
te pela areia fina das avenidas; não há uma gota de veneno que caia no
meu chocolate. Que digo eu, Philippe? — As mães pobres erguem ver‑
gonhosamente o véu das filhas quando paro na soleira das suas portas;
deixam­‑me ver a beleza delas com um sorriso mais vil do que o beijo de
Judas — e eu, enquanto belisco o queixo da pequena, aperto os punhos
de raiva e procuro no bolso quatro ou cinco malvadas moedas de ouro.
Philippe: Que o tentador não despreze o fraco; porquê tentar quando se
duvida?
Lorenzo: Serei eu um Satã? Luz do céu! Ainda me lembro… Teria chorado
com a primeira moça que seduzi, se ela não se tivesse posto a rir. Quando
comecei a representar o meu papel de Bruto moderno, caminhava com
as minhas vestes novas da grande confraria do vício como uma criança
de dez anos com a armadura de um gigante de fábula. Pensava que a cor‑
rupção era um estigma que só os monstros exibiam na testa. Tinha come‑
çado a dizer a toda a gente que os meus vinte anos de virtude eram uma
máscara sufocante. — Oh, Philippe! Foi então que entrei na vida e vi que,
quando eu me aproximava, toda a gente fazia o mesmo que eu. Todas as
máscaras caíam perante o meu olhar. A Humanidade ergueu a sua túnica
e mostrou­‑me, como a um discípulo digno dela, a sua monstruosa nudez.
Vi os homens como são, e disse para mim mesmo: para quem trabalho
eu, então? Enquanto percorria as ruas de Florença, com o meu fantas‑
ma a meu lado, olhava à volta, procurava os rostos que me davam alento,
e interrogava­‑me: quando tiver desferido o meu golpe, aquele ali tirará
disso algum proveito? Vi os republicanos nos seus gabinetes, entrei nas
lojas, pus­‑me à escuta e à espreita. Recolhi os discursos das gentes do
povo, vi o efeito que neles produzia a tirania; bebi, nos banquetes patrió‑
ticos, o vinho que engendra a metáfora e a prosopopeia, engoli entre dois
beijos as lágrimas mais virtuosas. Continuava à espera que a humanida‑
de me deixasse ver no seu rosto algo de honesto. Observava… como um
amante observa a sua noiva enquanto espera o dia das núpcias!...
Philippe: Se nada mais viste do que o mal, lamento­‑te, mas não posso acre‑
ditar no que dizes. O mal existe, mas não sem o bem, como a sombra
existe, mas não sem a luz.
Lorenzo: Não queres ver em mim mais do que alguém que despreza os
homens! — Ofendes­‑me. Sei perfeitamente que há homens bons, mas

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alfred de musset 597

para que servem eles? O que fazem eles? Como agem eles? O que importa
que a consciência esteja viva, se o braço está morto? Há sempre um lado
pelo qual tudo se torna bom: um cão é um amigo fiel — nele podemos ter
o melhor dos servos, mas também podemos ver como ele se rebola com as
suas presas, e que a mesma língua que lambe o dono é a que fareja a carcaça
a uma légua. Tudo o que vejo é que estou perdido e que daí não virá para
os homens mais proveito do que a compreensão que eles me reservarão.
Philippe: Pobre rapaz, partes­‑me o coração! Mas se és honesto voltarás a
sê­‑lo quando tiveres libertado a tua pátria. É uma alegria para o meu
velho coração pensar que és honesto, Lorenzo. Livrar­‑te­‑ás então deste
disfarce horrendo que te desfigura e voltarás a ser de um metal tão puro
como as estátuas de bronze de Harmódio e de Aristogíton.
Lorenzo: Philippe, Philippe, fui honesto. A mão que ergueu uma vez o véu
da verdade não pode deixá­‑lo voltar a cair — fica imóvel até à morte,
a segurar sempre este véu terrível, e erguendo­‑o cada vez mais acima
da cabeça do homem, até que o Anjo do sono eterno lhe cerre os olhos.
Philippe: Todas as doenças se curam, e o vício é também uma doença.
Lorenzo: É tarde demais — habituei­‑me ao meu ofício. O vício foi para
mim uma veste, mas agora está­‑me colado à pele. Sou realmente um
rufião, e quando escarneço dos meus pares sinto­‑me sério como a morte
no meio da alegria. Bruto fez­‑se de louco para matar Tarquínio, e o que
me espanta é que não tenha perdido a razão. Serve­‑te de mim, Philippe
— é isto o que tenho a dizer­‑te. Não trabalhes para a tua pátria.
Philippe: Se acreditasse em ti, parece­‑me que o céu se obscureceria para
sempre e que a minha velhice estaria condenada a caminhar às apalpa‑
delas. Pode bem ser verdade que tenhas tomado um caminho perigoso.
Mas porque não poderia eu tomar um outro que me levasse ao mesmo
ponto? A minha intenção é apelar ao povo e agir abertamente.
Lorenzo: Tem cuidado contigo, Philippe; quem te avisa teu amigo é. Esco‑
lhas o caminho que escolheres, terás sempre de te haver com os homens.
Philippe: Acredito na honestidade dos republicanos.
Lorenzo: Fazemos uma aposta. Vou matar Alexandre; uma vez desferido o
meu golpe, se os republicanos se comportarem como devem, ser­‑lhes­
‑á fácil instaurar uma República, a mais bela que alguma vez floresceu
sobre a Terra. Se tiverem o povo do lado deles, o assunto está resolvido.
Aposto contigo que nem eles nem o povo farão nada. Tudo o que te
peço é que não te envolvas; fala, se quiseres, mas tem cuidado com as
tuas palavras, e ainda mais com as tuas acções. Deixa­‑me desferir eu o
golpe — tu tens as mãos puras e eu nada tenho a perder.

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598 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Philippe: Fá­‑lo, e verás.


Lorenzo: Seja! Mas lembra­‑te disto. Estás a ver, nesta casinha, esta famí‑
lia reunida à mesa? Não diríamos que são humanos? Têm um corpo,
e uma alma neste corpo. Contudo, se me apetecesse entrar em casa
deles, sozinho, nos preparos em que me encontro, e apunhalar­‑lhes o
primogénito no meio deles, nem uma faca se ergueria contra mim.
Philippe: Causas­‑me horror. Como pode o coração permanecer grande,
com mãos como as tuas?
Lorenzo: Anda, voltemos ao teu palácio e procuremos libertar os teus
filhos.
Philippe: Mas porque matarás tu o duque, se pensas dessa maneira?
Lorenzo: Porquê? Perguntas­‑me isso?
Philippe: Se achas que é um assassínio inútil à tua Pátria, porque o cometes?
Lorenzo: Perguntas­‑me isso assim? Olha bem para mim. Já fui belo, tran‑
quilo, virtuoso.
Philippe: Que abismo! Que abismo, o que me abres!
Lorenzo: Perguntas­‑me porque mato Alexandre? Queres então que me
envenene, ou que me atire ao Arno? Queres que eu seja um espectro e
que ao bater neste esqueleto… (Bate no peito) dele não saia um som? Se
sou a sombra de mim mesmo, queres então que arranque o único fio
que ainda hoje une o meu coração a algumas fibras do meu coração de
outrora? Imaginas que este homicídio é tudo o que me resta da minha
virtude? Imaginas que há dez anos me arrasto num rochedo escarpado
e que esta morte é o único tufo de erva onde consegui fincar as unhas?
Pensas então que porque já não tenho vergonha também já não tenho
orgulho, e queres que deixe morrer em silêncio o enigma da minha vida?
Sim, é certo que se pudesse regressar à virtude, se a minha aprendiza‑
gem do vício pudesse desvanecer­‑se, talvez poupasse este boieiro. Mas
eu gosto do vinho, do jogo e das raparigas, entendes isso? Se há alguma
coisa em mim que admires, tu que me falas, é o meu assassínio que estás
a admirar, talvez precisamente porque não o cometerias. Os republi‑
canos cobrem­‑me de lama e infâmia há demasiado tempo, percebes?
As orelhas ardem­‑me e a execração dos homens envenena o pão que
como há demasiado tempo. Estou farto de me ver vaiado por cobardes
sem nome que me cobrem de injúrias para se eximirem a cobrir­‑me de
pancada, como deviam. Estou farto de ouvir bradar aos sete ventos a
garrulice humana; é preciso que o mundo conheça um pouco de quem
sou, e de quem ele é. Graças a Deus, talvez seja amanhã que mato Ale‑
xandre; porei termo a tudo dentro de dois dias. Os que andam à minha

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alfred de musset 599

volta com olhos vesgos, como se à volta de uma curiosidade monstruo‑


sa trazida da América, poderão fazer o gosto às goelas e despejá­‑las.
Compreendam­‑me ou não os homens, ajam ou não ajam, terei dito tudo
o que tenho a dizer. Vou dar­‑lhes com que gastar tinta, já que não os faço
limpar as espadas, e a humanidade conservará na face a marca de sangue
deixada pelo golpe da minha espada. Que me chamem o que quiserem,
Bruto ou Eróstrato, só não me agrada que me esqueçam. Tenho a vida
inteira na ponta da minha adaga, e quer a Providência me volte ou não
as costas ao ouvir­‑me bater à porta, apostarei a natureza humana num
jogo de cara ou coroa sobre o túmulo de Alexandre. Dentro de dois dias,
os homens apresentar­‑se­‑ão ao tribunal da minha vontade.
Philippe: Tudo isso me espanta, e em tudo o que me disseste há coisas que
me causam pena e outras que me causam prazer. Mas Pierre e Thomas
estão na prisão, e em relação a isso não conseguiria depositar a minha
confiança em ninguém além de mim. A minha cólera tenta em vão mor‑
der o freio; tenho as entranhas demasiado agitadas. Podes ter razão,
mas tenho de agir. Vou reunir os meus parentes.
Lorenzo: Como queiras. Mas tem cuidado contigo. Guarda­‑me este segre‑
do, mesmo dos teus amigos; é tudo o que te peço. (Saem.)

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600 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Cesare PAVESE. [Virá a morte e terá os teus olhos], in Três Momentos da


Poesia Europeia: De Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas. Tradução de Albano
Martins. [1950] 2012. Porto: Afrontamento. 116­‑117.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Virá a morte e terá os teus olhos


— esta morte que me acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito mudo, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sobre ti mesma no espelho
te inclinas. Ó minha esperança,
nesse dia saberemos nós também
que tu és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver surgir no espelho
um rosto morto, como
escutar uns lábios fechados.
Mudos, desceremos no abismo.

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milorad pavi 601

Milorad PAVI . «A história de Adão Ruhani», in Dicionário Khazar:


Romance­‑enciclopédia em 100 000 palavras. Versão feminina. Tradução de
Herbert Daniel. [1984] 1991. Lisboa: Círculo de Leitores. 172­‑173.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Se todos os sonhos humanos fossem reunidos, obter­‑se­‑ia um homem gigan‑


tesco, do tamanho de um continente. E este não seria um ser humano qual‑
quer, mas Adão Ruhani, Adão celeste, o ancestral angélico do homem de
quem falam os imãs. Este Adão­‑antes­‑de­‑Adão era, no começo, o terceiro
espírito na ordem do mundo. Mas preocupou­‑se tanto consigo mesmo que
se perdeu; e quando, após tal vertigem, voltou a si, lançou ao inferno os com‑
panheiros dos seus próprios erros, Íblis e Arimã, e voltou ao céu. Mas ali,
em vez de voltar a ser o terceiro, tornou­‑se apenas o décimo espírito, pois
entretanto sete querubins celestes haviam subido a escala acima dele. Adão,
o precursor, ficou então para trás: esses sete graus na escala são a medida
do seu atraso sobre si mesmo, e foi deste modo que o tempo nasceu. Por‑
que o tempo é apenas a parte da eternidade que atrasa. Este Adão angélico,
ou pré­‑Adão, que foi homem e mulher simultaneamente, este terceiro anjo
que se tornou décimo, procura eternamente alcançar­‑se de novo. Por instan‑
tes, consegue, mas volta sempre a cair, de maneira que até hoje continua a
vaguear entre o décimo e o segundo grau da escala do espírito.
Os sonhos nascem nessa parte da natureza humana que nos vem deste
Adão precursor, o anjo celeste, pois ele pensava exactamente como nós
sonhamos. Era rápido como só o somos nos sonhos ou, mais exactamen‑
te, os nossos sonhos são tecidos com a sua velocidade angélica. E ele fala‑
va como nós falamos em sonhos, sem tempo presente nem tempo passado,
só no futuro. Como nós, nos sonhos, não podia matar nem fecundar. Por
tudo isso, os caçadores de sonhos mergulham nos sonhos e sestas alheios
e deles extraem pequenas parcelas do corpo de Adão, o precursor. Reúnem
essas parcelas num todo a que chamam de dicionário khazar, sendo o objec‑
tivo final reunir todos esses livros para recriar na terra o imenso corpo do
Adão Ruhani. Se seguimos o nosso ancestral angélico no momento em que
sobe a escala celeste, aproximamo­‑nos de Deus. Se temos a infelicidade de o
seguir no momento em que desce, afastamo­‑nos de Deus. Mas não podemos
saber nem num caso nem no outro. Entregamo­‑nos ao destino, sempre na

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sándor petfi 603

Sándor PET FI. [Sorte, dá­‑me espaço…], in Antologia da Poesia Húngara.


Tradução de Ernesto Rodrigues. [1846] 2002. Lisboa: Âncora. 86.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Sorte, dá­‑me espaço, para que possa


algo fazer pela humanidade.
Não quede em cinzas, sem utilidade,
esta chama nobre, que me remoça.

Trago no coração chama, celeste


chama, que as gotas do sangue aquece;
suas batidas tornaram­‑se prece
p’la felicidade do mundo — este.

Oh, pudesse dizê­‑lo, não só com


palavras vazias, mas também obras.
Fosse embora prémio, num novo Gólgota,
uma nova cruz, pelo meu acto bom.

Morrer pela humanidade! Ah,


que feliz seria, que bela morte!
Mais bela e feliz do que a tão forte
embriaguez de uma vida vã.

Diz­‑me, sorte, oh, diz­‑me, que meu fado


é morrer assim, qual santo — e eu faço
madeiro, à custa deste meu braço,
sobre o qual hei­‑de ser crucificado.

Peste, 24­‑30 de Abril de 1846

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604 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Francesco PETRARCA. [Pel’aura em fios de oiro era esparzido], in


As Rimas de Petrarca. Tradução de Vasco Graça­‑Moura. [c. 1336] 2003.
Lisboa: Bertrand. 279.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Pel’aura em fios de oiro era esparzido


cabelo em doces nós que ela encrespava;
e um lume desmedido se ateava
dos belos olhos de onde vai fugido;

e o rosto em piedade colorido,


não sei se seria ou falsa, eu o julgava:
eu, que no peito isco de amor guardava,
se de súbito ardi, que espanto havido?

Não era o seu andar coisa mortal,


mas de angélica forma; e o seu dizer
não como voz humana se escutara:

um ‘spirito celeste, um sol a arder,


foi o que vi; e se não fosse tal,
mais frouxo arco chaga assim não sara.

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platão 605

PLATÃO. «29a-30b», in Apologia de Sócrates. Tradução de Manuel de


Oliveira Pulquério. [século iv a.C.] 2017. Lisboa: Edições 70.

Seria bem estranho e legitimamente me poderiam trazer a este tribunal com


a acusação de não acreditar nos deuses, uma vez que desobedecera ao orácu‑
lo por medo de morte, julgando ser sábio não o sendo. Efectivamente, temer
a morte, Atenienses, não é mais do que julgar ser sábio, sem o ser, porque é
imaginar que se sabe o que se não sabe. É que ninguém sabe o que é a morte
nem se, por acaso, ela será para o homem o maior dos bens. Mas temem­‑na
como se soubessem com segurança que é o maior dos males. Não será esta
ignorância mais censurável, julgar que se sabe o que se não sabe? Quanto a
mim, Atenienses, é talvez neste ponto que eu me distingo da maioria das pes‑
soas; e, se pretendesse ser mais sábio do que outros em alguma coisa, seria
nisto, que, não sabendo exactamente o que se passa nos domínios de Hades,
não tenho a pretensão de o saber. Mas que é mau e vergonhoso cometer a
injustiça e desobedecer a um superior, seja deus ou homem, eis o que eu sei
de ciência certa. Jamais, pois, transigirei com o mal que sei que é mal, por
recear ou para evitar coisas que não sei se, porventura, são boas. Deste modo,
admitamos que, neste momento, me absolvíeis, rejeitando a tese de Ânito,
segundo a qual ou eu nunca devia ter comparecido neste tribunal ou, uma vez
que compareci, não poderei deixar de ser condenado à morte, pela simples
razão de que, se eu fosse absolvido, os vossos filhos se arruinariam totalmen‑
te, ao pôr em prática as doutrinas de Sócrates. Se, apesar de tudo isto, me
dissésseis: «Sócrates, não daremos crédito às acusações de Ânito, mas só te
absolvemos com uma condição, a de não mais te entregares a este género de
pesquisa e de renunciares à filosofia. Se fores apanhado nestas actividades,
morrerás»; se isto que acabo de dizer fosse a condição que me impusésseis
para me absolver dir­‑vos­‑ia: «Atenienses, tenho por vós consideração e afec‑
to, mas antes quero obedecer ao deus do que a vós e, enquanto tiver um sopro
de vida, enquanto me restar um pouco de energia, não deixarei de filosofar
e de vos advertir e aconselhar, a qualquer de vós que eu encontre. Dir­‑vos­
‑ei, segundo o meu costume: ‘Meu caro amigo, és Ateniense, natural de uma
cidade que é a maior e a mais afamada pela sabedoria e pelo poder, e não te

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606 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

envergonhas de só curares de riquezas e dos meios de as aumentares o mais


que puderes, de só pensares em glória e honras, sem a mínima preocupação
com o que há em ti de racional, com a verdade e com a maneira de tornar a
tua alma o melhor possível?’
E, se algum de vós me replicar que com tudo isto se preocupa, não o
largarei imediatamente, não me irei logo embora, mas interrogá­‑lo­‑ei, anali‑
sarei e refutarei as suas opiniões e, se chegar à conclusão de que não possui a
virtude, embora o afirme, censurá­‑lo­‑ei de ter em tão pouca conta as coisas
mais preciosas e prezar tanto as mais desprezíveis. Assim farei com todos os
que encontrar, novos ou velhos, estrangeiros ou cidadãos, mas mais ainda
convosco, cidadãos, que estais mais perto de mim pelo sangue. São ordens
que recebi do deus, podeis estar certos; e creio que nunca nada mais foi mais
útil à cidade do que o meu ministério ao serviço do deus.
Efectivamente, nas minhas idas e vindas pela cidade, não faço outra coisa
senão persuadir­‑vos, novos e velhos, a que não vos preocupeis mais, nem
tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para a
tornardes o melhor possível, dizendo­‑vos que não é das riquezas que nasce a
virtude, mas que é da virtude que provêm as riquezas e todos os outros bens,
tanto públicos como particulares. Se é com estas palavras que corrompo os
jovens, é porque elas devem ser prejudiciais; mas, se alguém afirma que não é
isto o que eu digo, não fala verdade. Em face disto, dir­‑vos­‑ei mais, Atenien‑
ses, tanto faz que acrediteis em Ânito como não, podeis absolver­‑me ou não
me absolver, mas a minha atitude no futuro não será modificada, nem que eu
tenha de sofrer mil vezes a morte.»

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jan potocki 607

Jan POTOCKI. «História de Pacheco, o endemoninhado», in Manuscrito


Encontrado em Saragoça. Tradução de José Espadeiro Martins. [1847] 2010.
Lisboa: Cavalo de Ferro. 35­‑40.

A horrenda criatura não pronunciou uma única palavra: foi acocorar­‑se a um


canto, onde permaneceu imóvel como uma estátua, com o seu único olho
fixo na cruz que segurava numa das mãos. Quando acabei de cear, perguntei
ao ermitão quem era o homem. Respondeu:
«Meu filho, este homem é um possesso que eu exorcizo; a sua história ter‑
rível mostra o poder fatal que o anjo das trevas usurpa nesta região desgraçada.
A sua narrativa pode ser útil à vossa salvação, vou ordenar­‑lhe que vo­‑la conte.»
Voltando­‑se então para o possesso, intimou­‑o: «Pacheco, Pacheco, em
nome do teu Redentor, ordeno­‑te que contes a tua história.»
Pacheco deu um urro assustador e começou nestes termos:

HISTÓRIA DE PACHECO, O ENDEMONINHADO

«Nasci em Córdova, onde meu pai vivia numa situação mais do que abas‑
tada. Minha mãe morreu há três anos. A princípio, meu pai pareceu chorá­
‑la muito, mas, ao fim de alguns meses, durante uma deslocação a Sevilha,
apaixonou­‑se por uma jovem viúva, chamada Camille de Tormes. Esta pessoa
não gozava de boa reputação e vários amigos de meu pai tentaram impedir o
seu relacionamento; mas, apesar dos seus esforços, o casamento realizou­‑se
dois anos depois da morte de minha mãe. A cerimónia realizou­‑se em Sevilha
e, alguns dias depois, meu pai regressou a Córdova com Camille, sua nova
esposa, e uma irmã de Camille, chamada Inesille.
A minha nova madrasta correspondia perfeitamente à má opinião que
tinham dela e começou a vida na nossa casa tentando inspirar­‑me amor por
ela. Mas não o conseguiu. No entanto, acabei por me apaixonar pela irmã,
Inesille. A minha paixão tornou­‑se tão forte, que fui lançar­‑me aos pés de
meu pai, pedindo a mão da sua cunhada.
Meu pai respondeu­‑me com bondade, dizendo: «Meu filho, proíbo­‑vos
de pensar nesse casamento por três razões. Primeiro: seria indecoroso que

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608 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

vos tornásseis, de alguma forma, cunhado de vosso pai. Segundo: os câno‑


nes sagrados da Igreja não aprovam este género de casamentos. Terceiro: não
quero que vos caseis com Inesille.»
Depois de me apresentar estas três razões, meu pai voltou­‑me as costas
e retirou­‑se.
Quanto a mim, fechei­‑me no quarto, dando largas ao meu desespero.
A minha madrasta, informada imediatamente por meu pai sobre o que se
tinha passado, veio ter comigo, dizendo­‑me para não me afligir; que, já que
não podia ser marido de Inesille, podia ser seu cortejo, isto é, seu amante,
e que ela tomava o caso a peito. Ao mesmo tempo, declarou­‑se apaixonada
por mim, sublinhando o sacrifício que fazia cedendo­‑me à irmã. Dei de
bom grado ouvidos às suas palavras, que lisonjeavam a minha paixão; mas
Inesille era tão modesta que me parecia impossível levá­‑la a corresponder
ao meu amor.
Por aquela altura, meu pai resolveu fazer uma viagem a Madrid, com o
objectivo de lutar pelo cargo de corregidor de Córdova, levando com ele a
mulher e a cunhada. A sua ausência prolongou­‑se por dois meses, tempo que
me pareceu infinito devido ao afastamento de Inesille.
Quando estava quase decorrido esse tempo, recebi uma carta de meu
pai, em que me ordenava que fosse ao seu encontro, esperando por ele na
Venta Quemada, à entrada da Serra Morena. Algumas semanas antes, não
teria sido fácil aceitar a ordem de atravessar a Serra Morena; mas os dois
irmãos de Zoto acabavam justamente de ser enforcados. O bando fora dis‑
perso e os caminhos agora passavam por ser seguros.
Por conseguinte, parti de Córdova por volta das dez horas da manhã e
fui pernoitar em Andujar, na estalagem de um dos estalajadeiros mais taga‑
relas que existem na Andaluzia. Encomendei uma ceia abundante: comi uma
parte e guardei o resto para a viagem.
No dia seguinte, comi em Los Alcornoques o que tinha reservado na
véspera e cheguei nessa mesma noite à Venta Quemada. Não encontrei o
meu pai; mas, como na sua carta me ordenava que esperasse por ele, resol‑
vi esperar, tanto mais que se tratava de uma estalagem espaçosa e cómoda.
O estalajadeiro que a dirigia era nessa altura um tal Gonzalez de Múrcia, bom
homem mas gabarola, que não deixou de me prometer uma ceia digna de um
grande de Espanha. Enquanto se ocupava a prepará­‑la, fui dar um passeio até
às margens do Guadalquivir; quando voltei, deparei com uma refeição que,
efectivamente, não era má de todo.
Quando acabei de comer, pedi a Gonzalez que me fizesse a cama. Repa‑
rei que o homem ficou perturbado, pronunciando algumas palavras que não

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jan potocki 609

faziam muito sentido. Acabou por confessar que a estalagem era assombrada
por espíritos, que ele e a família iam passar as noites a uma pequena quinta
situada nas margens do rio; acrescentou que, se eu quisesse, me faria uma
cama junto da sua.
Este convite pareceu­‑me despropositado; respondi que ele podia ir pas‑
sar a noite onde quisesse, só tinha de me enviar a minha criadagem. Gonza‑
lez obedeceu e retirou­‑se, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.
Pouco depois, chegaram os meus criados. Também eles tinham ouvi‑
do falar dos espíritos e tentaram convencer­‑me a ir passar a noite na quin‑
ta. Ouvi os seus conselhos de forma bastante rude e ordenei­‑lhes que me
fizessem a cama na própria sala onde tinha ceado. Embora de má vontade,
obedeceram, e, quando acabaram, voltaram a suplicar­‑me, de lágrimas nos
olhos, que fosse pernoitar na quinta. Seriamente agastado com as suas adver‑
tências, reagi de forma a pô­‑los em fuga; e, como não tinha o costume de me
fazer despir pelos meus servos, facilmente passei sem eles para me deitar.
Entretanto, mais solícitos do que eu merecia devido à maneira como os tra‑
tara, tinham deixado, junto da cama, uma vela acesa e outra de reserva, duas
pistolas e alguns livros, cuja leitura poderia ajudar a manter­‑me acordado;
a verdade, porém, é que tinha perdido o sono.
Passei algumas horas a ler ou às voltas na cama. Por fim, ouvi o som de um
sino ou de um relógio a bater as badaladas da meia­‑noite. Fiquei admirado,
porque não tinha ouvido bater as outras horas. Logo a porta se abriu e vi entrar
a minha madrasta; vinha em camisa de noite, com uma palmatória na mão.
Aproximou­‑se de mim, caminhando na ponta dos pés e com um dedo sobre
os lábios, como para me impor silêncio. Pousou a palmatória na mesinha­‑de­
‑cabeceira, sentou­‑se na cama, agarrou uma das minhas mãos e falou­‑me nes‑
tes termos:
«Querido Pacheco, chegou o momento em que posso dar­‑vos os praze‑
res que vos prometi. Chegámos há uma hora a esta estalagem. O vosso pai foi
pernoitar na quinta; mas, como eu sabia que estáveis aqui, consegui autori‑
zação para vir passar a noite convosco, juntamente com minha irmã Inesille.
Ela está à vossa espera, disposta a nada vos recusar; mas devo informar­‑vos
das condições que ponho à vossa felicidade. Vós estais apaixonado por Ine‑
sille, e eu por vós. Não é justo que, de nós três, dois sejam felizes à custa
de um terceiro. Quero que esta noite uma única cama sirva para todos nós.
Vinde!»
Minha madrasta não me deu tempo para responder; agarrou­‑me pela
mão e levou­‑me, de corredor em corredor, até ficarmos diante de uma porta,
onde se pôs a espreitar pelo buraco da fechadura.

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610 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Depois de espreitar por alguns instantes, disse: «Está tudo em ordem,


vede por vós mesmo.»
Fui ocupar o seu lugar junto da fechadura e vi efectivamente Inesille na
cama; mas como estava longe da modéstia que sempre lhe tinha conhecido!
A expressão do olhar, a respiração entrecortada, o rosto enrubescido, a sua
atitude, tudo revelava que esperava um amante.
Camille, depois de me deixar observar à minha vontade, disse: «Querido
Pacheco, ficai junto desta porta; quando for altura, virei avisar­‑vos.»
Entrou e eu voltei a fixar os meus olhos na fechadura: assisti a cenas que
tenho dificuldade em descrever. Camille começou por se despir completa‑
mente, meteu­‑ se na cama com a irmã e disse­‑lhe: «Pobre Inesille! Queres
mesmo ter um amante? Pobre criança, não imaginas o mal que ele te fará!
Primeiro, vai derrubar­‑te e apertar­‑te, depois vai esmagar­‑te e dilacerar­‑te.»
Quando achou que a sua aluna estava bem instruída, Camille veio abrir­
‑me a porta, levou­‑me até à cama da irmã e deitou­‑se connosco.
Que mais poderei dizer daquela noite fatal? Esgotei as delícias e os cri‑
mes. Durante muito tempo lutei contra o sono e contra a natureza, para pro‑
longar o mais possível os meus prazeres infernais. Por fim, adormeci; acor‑
dei no dia seguinte debaixo da forca dos irmãos Zoto, deitado entre os seus
cadáveres nojentos.»
Neste ponto, o ermitão interrompeu o endemoninhado para me dizer:
«Pois bem, meu filho, que vos parece? Acho que ficaríeis bem assustado, ao
acordar deitado entre dois enforcados.»
Respondi: «Padre, estais a ofender­‑me! Um cavalheiro nunca tem medo,
e menos ainda quando tem a honra de ser capitão dos Guardas Valões.»
«Mas, meu filho», replicou o ermitão, «alguma vez ouvistes dizer que
alguém tivesse uma aventura deste género?»
Hesitei por momentos, após o que respondi: «Padre, se esta aventura
aconteceu ao senhor Pacheco, pode muito bem ter acontecido a outros;
poderei avaliar melhor se lhe ordenardes que continue a sua história.»
O ermitão voltou­‑se para o possesso, dizendo­‑lhe: «Pacheco, Pacheco!
Em nome do teu Redentor, ordeno que continues a tua história.»
Pacheco lançou um urro assustador e continuou nestes termos:
«Estava meio morto quando me afastei da forca. Arrastei­‑ me, sem
saber para onde. Por fim, encontrei alguns viajantes que se compadece‑
ram de mim e me levaram para a Venta Quemada. Encontrei o estalaja‑
deiro e os meus criados, todos eles compadecidos de mim. Perguntei se
meu pai tinha pernoitado na quinta: responderam que não tinha chegado
ninguém.

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jan potocki 611

Não consegui ficar por mais tempo na Venta; retomei o caminho de


Andujar, onde cheguei depois do pôr­‑do­‑sol.
A estalagem estava cheia, pelo que me fizeram uma cama na cozinha.
Deitei­‑me, mas não consegui adormecer, pois não conseguia afastar do meu
espírito os horrores da noite precedente.
Tinha deixado uma vela acesa em cima da lareira da cozinha: brusca‑
mente, a vela apagou­‑se e senti logo um arrepio mortal, que me gelou o san‑
gue nas veias.
Puxaram­‑me pelo cobertor, ao mesmo tempo que ouvia uma vozinha
dizendo: «Sou Camille, a tua madrasta; tenho frio, coraçãozinho; arranja­‑me
lugar debaixo do teu cobertor.»
Depois, outra vozinha disse: «Eu sou Inesille. Deixa­‑me entrar na tua
cama. Tenho frio. Muito frio.»
Uma mão gélida agarrou­‑me o queixo. Reuni todas as minhas forças e
gritei: «Retira­‑te, Satanás!»
Então as vozinhas disseram: «Porque nos expulsas? Tu és nosso marido!
Temos frio. Vamos fazer lume.»
Com efeito, logo se levantou um clarão na lareira da cozinha. A clarida‑
de aumentou e deparei não com Inesille e Camille, mas com os dois irmãos
Zoto, enforcados na chaminé.
Esta visão deixou­‑me fora de mim. Saltei da cama, atirei­‑me pela jane‑
la e pus­‑me a correr pelos campos. Por um momento, julguei ter escapado
a tantos horrores; mas, voltando­‑me para trás, vi que era perseguido pelos
dois enforcados. Recomecei a correr, deixando­‑os para trás. A minha alegria,
porém, foi de curta duração. Aqueles seres detestáveis começaram a rodar
sobre as mãos e sobre os pés e rapidamente me alcançaram. Continuei ainda
a correr, mas as forças abandonaram­‑me.
Senti que um dos enforcados me filava pelo tornozelo do pé esquerdo.
Tentei desenvencilhar­‑me, mas o outro cortou­‑me o caminho. Apareceu­
‑me pela frente, com os olhos esbugalhados e deitando de fora uma língua
vermelha como um ferro em brasa. Pedi clemência, mas em vão. Com uma
das mãos agarrou­‑me pela garganta, com a outra arrancou­‑me o olho que me
falta. Depois, mergulhou a sua língua escaldante na órbita vazia e sorveu­‑me
o cérebro, fazendo­‑me rugir de dor.
O outro enforcado fez questão de me deitar também as garras. Come‑
çou por me fazer cócegas na planta do pé, por onde me segurava. Depois,
o monstro arrancou­‑lhe a pele, separou todos os nervos, pondo­‑os a desco‑
berto e brincando com eles como se fossem um instrumento de cordas; mas,
como eu não produzia um som que lhe agradasse, mergulhou o seu esporão

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612 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

no meu jarrete, beliscou os tendões e começou a torcê­‑los, como se costuma


fazer para afinar as cordas de uma harpa. Por fim, começou a dedilhar sobre a
minha perna, como se fosse um saltério. Ouvi o seu riso diabólico, enquanto
a dor me arrancava urros assustadores; os rugidos infernais faziam coro com
eles. Quando consegui ouvir o ranger de dentes dos condenados, tive a sen‑
sação de que cada uma das minhas fibras estava a ser por eles triturada. Por
fim, perdi a consciência.
No dia seguinte, uns pastores encontraram­‑me no campo e trouxeram­
‑me para este ermitério. Confessei os meus pecados e aos pés da cruz encon‑
trei algum alívio para os meus sofrimentos.»
Aqui, o endemoninhado lançou um uivo assustador e calou­‑se.
Então, o ermitão tomou a palavra e disse­‑me: «Meu jovem, bem vedes
o poder de Satanás: orai e chorai. Mas já é tarde, temos de nos separar. Não
sugiro que pernoiteis na minha cela, pois durante a noite Pacheco lança gri‑
tos que certamente vos incomodariam. Ide deitar­‑vos na capela. Aí estareis
sob a protecção da cruz, que triunfa sobre os demónios.»
Respondi ao ermitão que dormiria onde ele quisesse. Levámos para a
capela uma cama de lona. Deitei­‑me e o eremita desejou­‑me boa noite.
Assim que fiquei sozinho, a narrativa de Pacheco acudiu­‑me ao espíri‑
to. Apercebia­‑me de grandes semelhanças com as minhas próprias aventu‑
ras; ainda eu reflectia nisso, quando ouvi bater a meia­‑noite. Ignorava se era
o ermitão que tocava o sino ou se tinha de me haver com almas do outro
mundo. Nisto, ouvi arranhar na porta. Levantei­‑me e perguntei: «Quem está
aí?»
Respondeu­‑ me uma voz débil: «Temos frio, abri, somos as vossas
mulherzinhas!»
«Sim, sim, malditos enforcados», respondi eu, «voltai para a vossa forca e
deixai­‑me dormir.»
Então, a voz voltou a falar: «Troças de nós, porque estás numa capela,
anda cá para fora.»
«É para já», respondi imediatamente.
Fui buscar a minha espada, disposto a sair, mas a porta estava trancada.
Informei os espíritos, que não me deram resposta. Fui deitar­‑me e dormi até
ser dia.

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marcel proust 613

Marcel PROUST. À la recherche du temps perdu. La prisonnière. Tradução


inédita de Helena Carvalhão Buescu a partir da edição de Jean-Yves Tádié.
[1913] 1987. Paris: Gallimard. 687­‑ 693.

Soube que nesse mesmo dia tinha ocorrido um falecimento que me causou
um grande desgosto, o de Bergotte. É certo que a sua doença já durava há
bastante tempo. Evidentemente, não aquela de que ele tinha sofrido de iní‑
cio, e que era natural. A natureza não parece ser capaz senão de produzir
doenças bastante curtas. Mas a medicina apropriou­‑se da arte de as prolon‑
gar. Os remédios, a remissão que eles causam, o mal­‑estar que a sua interrup‑
ção faz renascer, compõem um simulacro de doença que o hábito do pacien‑
te acaba por estabilizar, por estilizar, da mesma forma que as crianças conti‑
nuam a ter ataques de tosse muito tempo depois de estarem curadas da tosse
convulsa. Depois os remédios começam a ter menos efeito, aumentam­‑se
as doses, acabam por já não fazer bem nenhum mas por fazer mal, devido a
essa indisposição tão prolongada. A natureza não lhes teria oferecido uma
duração tão longa. É uma grande maravilha que a medicina, quase igualando
a natureza, possa forçar alguém a ficar acamado, e a continuar, sob pena de
morte, a usar um medicamento. A partir daí, a doença, artificialmente en‑
xertada, já se enraizou, tornou­‑se numa doença secundária mas verdadeira,
com a única diferença de que as doenças naturais se curam, enquanto isso
nunca acontece com as que a medicina cria, porque esta ignora o segredo da
cura.

Havia bastantes anos que Bergotte já não saía de casa. Aliás, ele nunca tinha
gostado da vida de sociedade, ou dela tinha apenas gostado um dia para vir
a desprezá­‑la como a tudo o resto, daquele modo particular que era o seu,
ou seja, não por se desprezar algo que não se pode obter, mas tão logo seja
obtido. Ele vivia com tal simplicidade que ninguém suspeitava quão rico ele
era, e se alguém o tivesse sabido ter­‑se­‑ia ainda enganado, considerando­‑o
avarento, quando não havia ninguém no mundo que tivesse sido tão gene‑
roso quanto ele. Era­‑o sobretudo com as mulheres, melhor dizendo com jo‑
vens raparigas, que ficavam envergonhadas de receber tanto em troca de tão
pouco. Ele desculpava­‑se aos seus próprios olhos porque sabia que nunca

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poderia produzir tão bem caso não vivesse na atmosfera de se sentir apaixo‑
nado. O amor ou, mais precisamente, o prazer cravado na carne ajuda o tra‑
balho das letras porque anula os outros prazeres, por exemplo os prazeres da
vida de sociedade, que são os mesmos para toda a gente. E mesmo que este
amor implique desilusões, pelo menos agita também, desse mesmo modo,
a superfície da alma, que sem isso correria o risco de estagnar. O desejo não
é pois inútil ao escritor para poder, em primeiro lugar, afastar­‑se dos outros
homens e evitar moldar­‑se a eles, e para depois provocar um qualquer movi‑
mento numa máquina espiritual que, depois de certa idade, tem tendência
a imobilizar­‑se. Não se chega a ser feliz, mas é possível fazer observações
sobre as razões que, impedindo­‑nos de o ser, talvez nos tivessem ficado invi‑
síveis sem esses bruscos acometimentos de decepção. É claro que os sonhos
não são realizáveis, isso já o sabemos; não poderíamos entretanto concebê­
‑los sem o desejo, e é útil concebê­‑los para os vermos malograr­‑se e para que
o seu malogro instrua. Por isso, Bergotte pensava: «Gasto mais dinheiro do
que muitos milionários com estas jovenzinhas, mas os prazeres ou as decep‑
ções que elas me oferecem fazem­‑me escrever um livro que me faz ganhar
muito dinheiro.» Economicamente, este raciocínio era absurdo, mas talvez
sentisse algum comprazimento em assim transmutar o ouro em carícias e
as carícias em ouro. Aliás, já vimos, por ocasião da morte da minha avó, que
a sua velhice fatigada amava o repouso. Ora, na vida de sociedade apenas
existe a conversa. Conversa estúpida, sem dúvida, mas que tem o poder de
suprimir as mulheres, que são reduzidas a perguntas e respostas. Fora da
vida de sociedade, as mulheres voltam a ser aquilo que tão repousante é para
o velho fatigado, um objecto de contemplação.

Em todo o caso, agora já não se tratava de nada disso. Lembrei atrás que
Bergotte já não saía de casa, e quando se levantava da cama, durante uma
hora, no seu quarto, fazia­‑o todo envolvido em xailes, em mantas, em tudo
aquilo a que alguém recorre no momento de exposição a um grande frio e
de ir apanhar o comboio. Desculpava­‑se junto dos raros amigos que deixava
chegar até junto de si e, mostrando as mantas escocesas, os seus coberto‑
res, dizia de forma prazenteira: «Que quer, meu caro, Anaxágoras já o disse:
a vida é uma viagem». E assim ia arrefecendo gradualmente, pequeno plane‑
ta que oferecia uma imagem antecipada dos últimos dias do grande, quan‑
do, da Terra, o calor se for pouco a pouco retirando, seguindo­‑se­‑lhe a vida.
Então a ressurreição terminará, porque se é nas gerações futuras que bri‑
lham as obras dos homens, em todo o caso homens tem que haver. Mesmo
que algumas espécies animais resistam mais tempo ao frio invasor, e mesmo

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marcel proust 615

supondo que a glória de Bergotte tenha subsistido até lá, ela extinguir­‑se­
‑á bruscamente para sempre. Não serão os últimos animais que o irão ler,
já que é pouco provável que, como os apóstolos no Pentecostes, venham
a poder compreender a linguagem dos diversos povos humanos sem que a
tenham aprendido.

Nos meses que antecederam a sua morte, Bergotte sofria de insónias e,


o que é pior, assim que adormecia, de pesadelos que, caso acordasse,
o levavam a evitar readormecer. Durante muito tempo tinha amado os so‑
nhos, mesmo os sonhos maus, porque graças a eles, graças à contradição
que apresentam face à realidade que existe diante de nós no estado de vigí‑
lia, eles nos transmitem, pelo menos desde o acordar, a sensação profunda
de que dormimos. Mas os pesadelos de Bergotte não eram assim. Dantes,
quando falava de pesadelos, referia­‑se a coisas desagradáveis que se passa‑
vam no seu cérebro. Agora, era como se, vindos de fora de si mesmo, ele
se apercebesse de uma mão munida de um esfregão molhado que, roçado
pelo seu rosto por uma mulher maldosa, se esforçava por o acordar, de
cócegas intoleráveis sobre as ancas, e da raiva — apenas porque Bergotte
tinha murmurado no seu sono que ele guiava mal — de um cocheiro louco
furioso que se lançava sobre o escritor e lhe mordia os dedos, lhos serra‑
va. Por fim, assim que no seu sono a obscuridade era suficiente, a nature‑
za fazia uma espécie de ensaio geral do ataque de apoplexia que acabaria
por o levar: Bergotte entrava de carruagem pelo portão do novo palacete
dos Swann, queria descer. Uma fulminante vertigem cravava­‑o ao banco,
o porteiro tentava ajudá­‑lo a descer, e ele continuava sentado, sem conse‑
guir erguer­‑se ou mover as pernas. Tentava agarrar­‑se ao pilar de pedra que
estava diante de si, mas não conseguia encontrar nele apoio suficiente para
se levantar. Consultou vários médicos que, lisonjeados por ele os chamar,
viram nas suas virtudes de trabalhador incansável (havia vinte anos que ele
nada tinha feito), na sua fadiga extrema, a causa dos seus episódios de mal­
‑estar. Aconselharam­‑no a não ler fosse o que fosse que o pudesse aterrar
(mas ele não lia nada), a aproveitar melhor o sol «indispensável à vida» (ele
devia os alguns anos de melhoras relativas tão­‑só à sua clausura em casa),
a alimentar­‑se melhor (o que o fez emagrecer e lhe alimentou sobretudo
os pesadelos). Sendo um dos seus médicos alguém dotado de espírito de
contradição e quezília, assim que Bergotte o via quando os outros não es‑
tavam presentes e, para não o ofender, lhe apresentava como suas algumas
ideias que os outros lhe tinham sugerido, esse médico logo o contradizia,
julgando que Bergotte procurava que ele lhe receitasse alguma coisa que

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lhe era agradável, e por isso proibindo­‑a de imediato. Fazia­‑o várias ve‑
zes com razões fabricadas de forma tão precipitada tendo em vista as ne‑
cessidades da causa que, perante a evidência das objecções materiais que
lhe colocava Bergotte, o médico quezilento acabava por ser obrigado, na
mesma frase, a contradizer­‑se a si mesmo, embora por razões diferentes,
apenas para reforçar a proibição. Bergotte voltava a um dos seus primeiros
médicos, homem que se considerava um homem de espírito, sobretudo
perante um dos mestres da pena e que, se Bergotte insinuava: «Parece­‑me
no entanto que o doutor X me disse — há tempos, bem entendido — que
isso podia congestionar­‑me os rins e o cérebro...», sorria maliciosamente,
levantava o dedo e pronunciava: «Eu disse usar, não disse abusar. É claro
que qualquer remédio, se tomado exageradamente, se torna numa arma de
dois gumes.» Existe no nosso corpo um certo instinto do que nos é salutar,
como no nosso coração o de saber qual o nosso dever moral, e que nenhu‑
ma autorização de um doutor em medicina ou em teologia pode suplantar.
Sabemos que os banhos frios nos fazem mal, apesar de deles gostarmos,
e acabaremos sempre por encontrar um médico que no­‑los aconselhe,
e não que impeça que eles nos façam mal. De cada um dos seus médicos
Bergotte tomou aquilo que, por prudência, se tinha proibido a si mesmo
desde há vários anos. Após algumas semanas, as crises de outrora tinham
reaparecido, e as recentes tinham­‑se agravado. Tresloucado por um sofri‑
mento de todos os minutos, a que se acrescentava a insónia entrecortada
por breves pesadelos, Bergotte não tornou a chamar nenhum dos médicos
e experimentou com sucesso, mas também com excesso, diferentes narcó‑
ticos, lendo com confiança o prospecto que acompanhava cada um deles,
prospecto que proclamava a necessidade do sono mas insinuava que todos
os produtos que o induzem (excepto o contido naquele frasco, e que nunca
causava intoxicação) eram tóxicos e por essa razão tornavam o remédio
pior do que a doença. Bergotte experimentou­‑os a todos. Alguns perten‑
cem a uma outra família que não aquela a que estamos habituados, deriva‑
dos por exemplo do amílio e do etilo. Tomamos sempre o produto novo,
de composição totalmente diferente, com a deliciosa expectativa do des‑
conhecido. O coração bate como num primeiro encontro. Em direcção a
que géneros ignorados de sono, de sonhos, irá o recém­‑chegado conduzir­
‑nos? Está agora dentro de nós, toma a direcção do nosso pensamento. De
que forma iremos adormecer? E, uma vez adormecidos, por que caminhos
estranhos, sobre que picos, a que precipícios inexplorados o mestre todo­
‑poderoso nos conduzirá? Que nova aglomeração de sensações conhece‑
remos nós nesta viagem? Levar­‑nos­‑á ao mal­‑estar? À beatitude? À morte?

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marcel proust 617

A de Bergotte ocorreu na véspera desse dia [de que falamos], quando


assim se tinha confiado a um desses amigos (amigo? inimigo?) demasiado
poderoso.

Morreu nas seguintes circunstâncias: uma crise de uremia bastante ligeira


tinha levado a que lhe fosse prescrito repouso. Mas, tendo um crítico escrito
que na Vista de Delft, de Vermeer (emprestado pelo museu de Haia para uma
exposição holandesa), quadro que ele adorava e acreditava conhecer mui‑
to bem, uma pequena porção de parede amarela (de que se não recordava)
estava pintada de forma tão bela que poderia considerar­‑se, caso se olhasse
apenas para ela, como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza
sem igual, Bergotte comeu umas batatas, saiu e foi à exposição. Logo aos
primeiros degraus que teve de transpor foi acometido de tonturas. Passou
diante de vários quadros e sentiu a impressão da secura e da inutilidade de
uma arte tão factícia, que não se podia comparar às correntes de ar e ao sol
de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira­‑mar. Chegou enfim
diante do Vermeer, de que se recordava como sendo mais resplandecente,
mais diferente de tudo aquilo que conhecia, mas no qual, graças ao artigo do
crítico, reparou pela primeira vez numas pequenas figuras de azul, na areia
que era afinal cor­‑de­‑rosa, e finalmente na preciosa matéria da pequeníssima
porção de parede amarela. As suas tonturas aumentavam; como uma criança
que segue com atenção a borboleta amarela que quer apanhar, o seu olhar
não se desviava da preciosa pequena porção de parede amarela. «É assim que
eu devia ter escrito», dizia ele. «Os meus últimos livros são demasiado secos,
devia ter aplicado várias camadas de cor, tornando a minha frase preciosa
em si mesma, como este pequeno fragmento de parede amarela.» Entretan‑
to, a gravidade das suas tonturas não lhe escapava. Numa balança celeste
aparecia­‑lhe, num dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha
a pequena porção de parede tão bem pintada de amarelo. Sentia que impru‑
dentemente tinha trocado a primeira pela segunda. «Apesar de tudo», disse
para si mesmo, «não queria ser para os jornais da tarde o pequeno evento
social desta exposição». E repetia de si para si: «Pequena porção de parede
amarela com um alpendre, pequena porção de parede amarela.» Entretanto,
deixou­‑se cair num sofá circular; de forma igualmente inesperada, deixou de
pensar que a sua vida estava em jogo e, regressando ao optimismo, disse de si
para si: «Trata­‑se de uma simples indigestão provocada pelas batatas mal co‑
zidas, isto não é nada.» Uma nova crise se abateu sobre ele e fê­‑lo cair do sofá
para o chão, e todos os visitantes e guardas acorreram. Estava morto. Morto
para sempre? Quem poderá afirmá­‑lo? É verdade que nem as experiências

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618 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

espíritas nem os dogmas religiosos são prova de que a alma sobrevive. O que
é entretanto possível dizer é que tudo acontece na nossa vida como se nela
entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não
existe nenhuma razão, nas nossas condições de vida terrena, para que nos
possamos sentir obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser
esmerados, nem para que o artista ateu se considere obrigado a recomeçar
vinte vezes uma obra cuja admiração, por ela suscitada, pouco importará ao
seu corpo comido pelos vermes, como a pequena porção de parede amarela
pintada, com tanta ciência e requinte, por um artista para sempre desconhe‑
cido, identificado apenas pelo nome de Vermeer. Todas estas obrigações que
não têm sanção na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente,
fundado sobre a bondade, o escrúpulo, o sacrifício, um mundo totalmente
diferente deste, e do qual saímos para nascer nesta terra, antes talvez de
a ele tornarmos, para reviver sob o império das leis desconhecidas a que
obedecemos porque trazíamos dentro de nós o seu ensinamento, sem saber
quem no­‑las traçou em nós, essas leis de que todo o trabalho profundo da
inteligência nos aproxima e que apenas são invisíveis — e talvez nem mes‑
mo assim! — para os tolos. De modo que a ideia de que Bergotte não estava
morto para sempre não é inverosímil.

Foi enterrado, mas durante todo o velório, nas vitrinas iluminadas, os seus
livros, dispostos em grupos de três, guardavam como anjos de asas abertas e
pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.

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aleksandr púchkin 619

Aleksandr PÚCHKIN. [É tempo, meu amigo, o coração cansou­‑se],


in Poesia de 26 Séculos: De Arquíloco a Nietzsche. Tradução de Jorge de Sena.
[1834] 2001. Porto: Asa. 229­‑230.

Texto sujeito a Direitos de Autor

É tempo, meu amigo, o coração cansou­‑se...


Cada hora voa, e é como se ela fosse
um farrapo daquilo que pensamos vivo.
Tardará muito a morte? Ah, tudo é fugitivo.

Felicidade não, mas paz e liberdade


é quanto espera quem só ainda sonha que há­‑de
fugir — cansado escravo —, antes da noite escura,
a repousar nos longes da mais clara altura.

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620 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Francisco de QUEVEDO. «Representa­‑se a brevidade do que se vive e


quanto nada parece o que se viveu», in Antologia Poética. Tradução de José
Bento. [1648] 2002. Lisboa: Assírio & Alvim. 33.

«Ah desta vida!»... Ninguém me responde?


Venha valer­‑me já o que vivi!
Morde a Fortuna os anos, eu senti;
minha loucura as Horas bem me esconde.

Que, sem poder saber como nem onde,


a saúde e idade partir vi!
A vida falta, sou co’o que vivi,
infortúnio não há que não me ronde.

Ontem foi­‑se; amanhã vem apressado;


hoje parte, sem parar num assunto:
sou um foi, um será e um é cansado.

No hoje, no amanhã, no ontem junto


mortalha e fraldas, sendo assim forçado
a sucessões presentes de defunto.

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rainer maria rilke 621

Rainer Maria RILKE. «A primeira elegia», in Poemas; As elegias de Duíno;


Sonetos a Orfeu. Tradução de Paulo Quintela. [1923] 2003. Porto: Asa. 171­
‑173.

Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as ordens


dos anjos? e mesmo que um me apertasse
de repente contra o coração: eu morreria da sua
existência mais forte. Pois o belo não é senão
o começo do terrível, que nós mal podemos ainda suportar,
e admiramo­‑lo tanto porque, impassível, desdenha
destruir­‑nos. Todo o anjo é terrível.
E assim eu me reprimo e engulo o chamamento
dum soluçar escuro. Ai! de quem poderíamos
nós então valer­‑nos? Nem de anjos, nem de homens,
e os bichos perspicazes reparam já
que nós não estamos muito confiados em casa
neste mundo explicado. Resta­‑nos talvez
qualquer árvore na encosta, que de novo a vejamos
diariamente; resta­‑nos a estrada de ontem
e a fidelidade amimada dum costume,
que gostou de estar connosco, e por isso ficou e se não foi.
Oh! e a Noite, a Noite, quando o vento cheio de espaço dos mundos
nos desgasta a face —, a quem não restaria ela, a ansiada,
a das desilusões suaves, que a cada coração solitário
espera penosa. É mais leve aos amantes?
Ai! eles apenas tapam um com o outro a sua sorte.
Pois não o sabes ainda? Arroja dos bravos o vácuo
para os espaços que respiramos; talvez as aves
sintam o ar alargado com um voo mais íntimo.

Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas


esperavam de ti que as sentisses. Levantava­‑se
uma onda no passado e aproximava­‑se, ou,

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622 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

ao passares pela janela aberta,


um violino entregava­‑se. Tudo isto era missão.
Mas cumpriste­‑a tu? não estavas tu sempre
distraído ainda de expectativa, como se tudo to anunciasse
uma Amada? (Onde queres tu abrigá­‑la,
se os grandes pensamentos estranhos em ti
entram e saem e muitas vezes pernoitam.)

Se, porém, a saudade te assalta, canta as Amantes; longe


ainda de ser imortal bastante o seu sentimento célebre,
Canta aquelas — quase as invejas! — abandonadas que tu
achavas tanto mais amorosas que as satisfeitas. Recomeça
sempre de novo o inacessível louvor;
pensa: o herói dura, mesmo a queda lhe foi
só um pretexto para ser: seu supremo nascer.
Mas as amantes recolhe­‑as a Natureza cansada
de novo em si, como se não houvesse duas vezes as forças
para cumprir tal obra. Celebraste já bastante
a Gaspara Stampa, para que qualquer donzela
a quem fugiu o amado, ao exemplo sublimado
desta amante, sinta: Oh fosse eu como ela?
Pois não hão­‑de finalmente estas antiquíssimas dores
tornar­‑se­‑nos mais férteis? não é tempo que, amando,
nos libertemos do amado e, trementes, vençamos a prova?:
como a seta vence a corda, para, concentrada ao saltar,
se superar a si própria. Pois nenhures há parar.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como somente outrora
santos ouviam, de tal forma que o apelo imenso
os erguia do solo; eles, porém, impossíveis,
continuavam de joelhos e nem o atendiam:
de tal maneira ouviam. Não que tu, nem de longe, suportasses
a voz de Deus. Mas ouve o hálito,
a mensagem ininterrupta, que se forma de silêncio.
Um rumor rola agora daqueles mortos jovens para ti.
Onde quer que entrasses, nas igrejas de Roma e Nápoles,
não ouviste o seu fado dirigir­‑se­‑te, tranquilo?
Ou era uma inscrição que se te impunha, sublime,
como há pouco a lápide do Santa Maria Formosa.
Que querem eles de mim? Que afaste baixinho

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rainer maria rilke 623

O véu de injustiça que, por vezes, impede um pouco


movimento puro de seus espíritos.

É estranho, decerto, não morar mais a Terra,


não mais praticar actos apenas adquiridos,
às rosas, e a outras coisas tão prometedoras,
não mais dar o sentido dum futuro humano;
aquilo que fomos em mãos infinitamente tímidas
não mais ser, e abandonar até o próprio nome
como um brinquedo partido.
Estranho, não continuar a desejar os desejos. Estranho,
ver voar solto pelo espaço o que estava
em relação. E o estar­‑morto é custoso,
e há tanto a recuperar, até gradualmente se sentir
um pouco de Eternidade. — Mas os vivos cometem
todos o erro de distinguir de mais.
Os anjos (diz­‑se) não sabem muitas vezes se andam
entre vivos ou entre mortos. A corrente eterna
arrasta pelos dois reinos todas as idades
sempre consigo, e em ambos as domina com sua voz potente.

Afinal já nos não precisam, os de morte precoce;


suavemente nos vamos desacostumando do que é terreno, como
nos alheamos
brandamente dos seios maternos. Mas nós, que precisamos
tão grandes mistérios, para quem do luto tantas vezes
nasce progresso feliz —: poderíamos nós ser sem eles?
Será vã a lenda de que outrora, ao chorar Linos,
música primordial ousada repassou o torpor árido?,
de tal forma que só no espaço assustado, de que de repente partiu
um jovem quase divino, é que o vácuo entrou nessa vibração
que agora nos arrasta e consola e ajuda.

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624 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Arthur RIMBAUD. «Navio doido», in Oiro de Vário Tempo e Lugar: De São


Francisco de Assis a Louis Aragon. Versões de A. Herculano de Carvalho.
[1871] 2002. Porto: Asa. 245­‑248.

Como descia já dos Rios impassíveis,


Eu não me senti mais guiar plos sirgadores;
Deles fizeram alvo os índios irascíveis,
Depois de os atar nus aos postes de mil cores.

Eu era indiferente a qualquer equipagem,


Portadora de trigo ou de algodão inglês,
Quando meus sirgadores se calaram na margem
Os Rios me deixaram entrar no mar, de vez.

Dentro do marulhar furioso das vagas,


Eu, que mais surdo fui que cérebros de infantes,
Corria agora. E as Penínsulas desligadas
Nunca deram baldões, tombos mais triunfantes.

O vendaval sagrou minhas alvas marítimas.


Mais leve que uma rolha andei nos vagalhões.
A quem chamam fatais balanceiros de vítimas,
Dez noites, sem pensar no olho vão dos faróis,

Mais doce que a criança as ácidas maçãs,


No meu casco de pinho entrou essa água estreme
E das nódoas de vinho e vómitos infames
Me lavou, dispersando a fateixa e o leme.

E depois, eu sem fim banhei­‑me no poema


Desse mar a ferver de astros e latescente,
Sorvendo o verde­‑azul onde bóia, suprema,
Lívida a aparição de um cadáver silente.

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arthur rimbaud 625

Onde, tingindo em fúria as cérulas espiras


e ritmos lentos sob esse rútilo alvor,
Mais fortes do que álcool, maiores que vossas liras,
Fermentam as amargas sardas do amor.

Sei o céu a estoirar de relâmpagos, trombas,


Sei as ressacas, a torrente, o entardecer,
A aurora a delirar como um bando de pombas,
E vi alguma vez o que o homem julgou ver.

Eu vi o baixo sol constelado de horrores


Inteiriçar o mar com fuzis de ametista,
Semelhante, do drama antigo, a esses actores,
Rolando a onda a espuma, em tremuras, na crista.

Sonhei com a noite verde e as neves deslumbradas,


Beijos vindo ao olhar dos mares, de quando em quando,
Toda a circulação de seivas invioladas
E o nascer de oiro e azul de fósforos cantando.

Segui, meses a fio, igual a vacarias


Histéricas, o mar batendo a rocha, insano,
Sem me lembrar que os pés doirados das Marias
Dobrassem a cerviz do asmático oceano.

Bati — ficai sabendo — em Flóridas incríveis,


Onde há olhos em flor de panteras, em frontes
De homens, em arco­‑íris tensos e flexíveis,
Sob a fímbria do mar, em glaucos mastodontes.

A fermentar eu vi pântanos, como pias,


Onde apodrece à luz todo um Leviatã,
Desabamentos de água em meio de calmarias
E o longe cascatando em fúrias de Titã.

Glaciares, sóis de prata, onda em luz, nuvens rubras,


Naufrágios de pavor sob golfos castanhos,
Onde imensos «pitons» devorados de pulgas
Caem de árvores más com aromas estranhos.

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626 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Às crianças quisera mostrar essas douradas


Da onda azul, peixes de sol, peixes cantantes.
Tive espumas de flores benzendo­‑me as largadas
E uma brisa sem par deu­‑me asas por instantes.

Mártir cansado então das zonas e dos pólos


O mar, que a soluçar me abanava na aguada,
Erguia as torvas flores amarelas dos polvos
E eu ficava­‑me assim qual mulher ajoelhada,

Península embalando, a meu bordo, as querelas


E o lixo dos gargéus clamadores, de áureo olhar,
Quando, a vogar, via através das cordas velhas
Um náufrago descer, dormente, a recuar...

Pois eu, perdida nau das baías nas tranças,


Que o furacão deitou para um éter de mágoa,
Eu, de quem Monitores e veleiros das Hansas
Não teriam pescado a carcaça ébria de água,

Livre, fumante, envolto em névoas violetas,


Eu, que rasgava o céu rutilando, qual muro
Que tenha, gulodice ideal dos bons poetas,
Áureos líquenes de sol e moncos de céu puro,

Que corria, a fulgir de eléctricas faíscas,


Tábua doida a escoltar, de hipocampos, cardumes,
Vendo Julho a fazer desabar em taliscas
Os céus de ultramarino em crateras de lumes,

Que trémulo senti gemer a tantas léguas


O cio do Mostrengo e dos Maelstroms refeitos,
De marasmos de anil fiandeiro sem tréguas,
Pla Europa eu suspirei, de antigos parapeitos.

Eu vi siderais arquipélagos e as ilhas


Que os delirantes céus abrem ao vogador:
É nas noites sem fundo em que a dormir te exilas,
Milhão de aves de luz, ó futuro Vigor?

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arthur rimbaud 627

Deveras, chorei muito! A aurora é fatigante,


Todo o luar é atroz e todo o sol amargo.
O acre amor me encheu de torpor embriagante.
Oh, que a quilha me estoire! Que eu me deite ao mar largo!

Da Europa, eu só desejo água de um tanque, mansa,


Escura e fria, onde ao crepúsculo em desmaio,
Assentado, um petiz, cheio de tristeza, lança
Um barco frágil como a borboleta em Maio.

Não posso mais, banhado em tais langores, ó vagas,


Disputar seu caminho aos batéis de algodões,
O orgulho trespassar das bandeiras e flâmulas,
Nem nadar sob a vista horrível dos pontões.

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628 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Pierre de RONSARD. [Qual no ramo se vê no mês de Maio a rosa], in Oiro


de Vário Tempo e Lugar: De São Francisco de Assis a Louis Aragon. Versões de
A. Herculano de Carvalho. [1560] 2002. Porto: Asa. 250.

Qual no ramo se vê no mês de Maio a rosa,


Na bela mocidade e na primeira flor,
Fazer ciúme ao céu com sua viva cor,
Quando a rega a manhã no despertar, chorosa:

Na sua folha, a graça, aonde o amor repousa,


Perfumando os jardins e as árvores de olor:
Mas, ferida ou de chuva ou de excessivo ardor,
Folha a folha se vai, murchando lastimosa.

Assim naquela nova e primeira frescura,


Enchendo terra e céu com tua formosura,
A Parca te matou e, cinza, tu repousas.

Aceita, por adeus, meus prantos e clamores,


Este vaso com leite, este cesto com flores,
Para ser, vivo e morto, o teu corpo de rosas.

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umberto saba 629

Umberto SABA. «A cabra», in Poesia (uma antologia de Il Canzionere).


Tradução de José Manuel de Vasconcelos. [1910] 2010. Lisboa: Assírio &
Alvim. 55.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Falei a uma cabra.


Estava sozinha no prado, amarrada.
De erva satisfeita, molhada
pela chuva, balava.

Aquele monótono balido era fraterno


da minha dor. E eu respondi, primeiro
por brincadeira, depois porque o sofrer é eterno,
tem uma voz e não várias.
Essa voz eu sentia
gemer numa cabra solitária.

Numa cabra com traços semitas


sentia as queixas de todos os outros males,
de todas as outras vidas.

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630 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

SAFO. [Parece­‑me ser igual aos deuses aquele], in Poesia Grega Arcaica.
Tradução inédita de José Pedro Serra a partir do grego antigo. 1994. Lisboa:
Universidade de Coimbra. 50­‑ 51.

Parece­‑me ser igual aos deuses aquele


homem que frente a ti
está sentado e escuta de perto
a tua doce voz

e o teu riso que desperta em mim o desejo, e o meu


coração estremece no peito.
Quando te vejo por um breve instante, parece então
que a fala me escapa,

a língua quebrou­‑se em silêncio, um subtil


fogo corre de imediato debaixo da pele,
os meus olhos nada vêem, zumbem
os meus ouvidos;

cobre­‑me um suor frio, um tremor


invade­‑me toda, fico mais verde do que a erva
e parece­‑me que por pouco
não morro.

Tudo se deve ousar, quando […]

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jean­‑paul sartre 631

Jean­‑Paul SARTRE. A Náusea. Tradução de António Coimbra Martins.


[1938] 2011. Mem Martins: Europa­‑América. 133­‑136.

Texto sujeito a Direitos de Autor

«Não é esse o motivo porque escrevo.»


No mesmo instante, a cara do Autodidacta transforma­‑se: dir­‑se­‑ia que
farejou o inimigo. Nunca lhe tinha visto esta expressão. Qualquer coisa acaba
de morrer entre nós. Fingindo­‑se surpreendido, pergunta:
«Mas... se não sou indiscreto, então porque é que escreve?»
«Bem... não sei: por nada, por escrever.»
Não lhe custa esboçar um sorriso: pensa que me desconcertou:
«O senhor escreveria se estivesse numa ilha deserta? Não é sempre para
ser lido que se escreve?»
Foi por hábito que ele deu à sua frase uma entoação interrogativa. Na
realidade, tratava­‑se duma afirmação. O seu verniz de doçura e de timidez
foi estalando: mal o reconheço. As suas feições deixam transparecer uma
pesada obstinação: é um muro de suficiência. Ainda não me refiz da minha
admiração, já o ouço dizer:
«Que me respondam: escrevo para certa categoria social, para um grupo
de amigos. Muito bem. Talvez o senhor escreva para a posteridade... Mas,
queira ou não queira, para alguém escreve.»
Espera uma resposta. Como ela não vem, sorri discretamente.
«Talvez o senhor seja um misantropo?»
Eu sei o que este falacioso esforço de conciliação dissimula. É pouco, afi‑
nal, o que me pedem: simplesmente que aceite um rótulo. Mas é uma cilada:
se consinto, o Autodidacta triunfa, e sou imediatamente contornado, reivindi‑
cado, ultrapassado, porque o humanismo toma à sua conta, e funde na mesma
massa, todas as atitudes humanas. Se nos opomos a ele de frente, caímos no seu
jogo; ele tira forças do que lhe é adverso. Existe uma raça de pessoas teimosas
e curtas de vista, de salteadores, que perde com ele a cada jogada: o humanis‑
mo digere todas as violências, os piores excessos dessa gente, fá­‑los numa linfa
branca e espumosa. Digeriu o anti­‑intelectualismo, o maniqueísmo, o mis-
ticismo, o pessimismo, o anarquismo, o egotismo; correntes que já só apare‑
cem como etapas, como pensamentos incompletos que só nele encontram a

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william shakespeare 635

William SHAKESPEARE. «Acto terceiro, cena I», in Hamlet. Tradução de


Sophia de Mello Breyner Andresen. [1609] 2015. Lisboa: Assírio & Alvim.
194-201.

(Saem Rosencrantz e Guildenstern.)

Rei
Doce Gertrudes, deixa-nos também,
Pois mandámos secretamente chamar Hamlet
Para que aqui ele possa, como por acaso,
Enfrentar Ophélia.
O pai dela e eu, legítimos espias,
Ficaremos escondidos, vendo sem sermos vistos,
Para podermos julgar em paz o seu encontro.
E para, por ele, pelos modos dele sabermos
Se é ou não a ansiedade do seu amor
Que assim o faz sofrer.

Rainha
Obedeço.
E quanto a ti, Ophélia, desejo
Que a tua grande beleza seja a doce causa
Do desatino de Hamlet; assim posso esperar
Que as tuas virtudes o tragam ao caminho antigo,
Para honra de ambos.

Ophélia
Senhora, assim desejo.

(A Rainha sai.)

Polónio
Ophélia, passa para aqui. Gracioso Senhor, se vos agrada
Vamos esconder-nos… Lê neste livro.

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636 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

(Tira um livro da prateleira.)


Essa aparência de leitura há-de enfeitar
A tua solidão; há um ponto em que muita vez somos censuráveis,
Pois está mais do que provado que nós, com cara devota
E atitude piedosa, podemos cobrir com máscaras de açúcar
O próprio diabo.

Rei (à parte)
Ai! é verdade, demasiado verdade!
Como esta frase chicoteia a minha consciência.
A face da rameira embelezada com a arte das pomadas
Não é mais feia, comparada com aquilo que a disfarça,
Do que o meu acto ao lado das pinturas da minha fala!
Oh pesado fardo!

Polónio
Ouço os passos dele, vamos embora, meu senhor.
(Escondem-se os dois atrás do pano de arrás; Ophélia ajoelha-se no genuflexório.)

(Entra Hamlet.)

Hamlet
Ser ou não ser, é isso a questão,
Será mais nobre deixar que o espírito suporte
Os golpes e as setas da fortuna ultrajante
Ou erguer armas contra um mar de angústias
E, não aceitando, pôr-lhes termo? Morrer, dormir,
Dormir e talvez sonhar.
Ai, mas aqui é que está o difícil —
Pois que sonhos surgirão nesse sono da morte
Quando tivermos despido o tumulto mortal?
É isso que nos detém — esta é a suspeita
Que dá tão demorada vida ao sofrimento:
Pois quem suportaria as chicotadas e as troças do tempo,
A injustiça do opressor, os desprezos do orgulhoso,
A angústia do amor desprezado, a demora da lei,
A insolência das autoridades e os desdéns
Que o mérito paciente recebe dos medíocres,
Se, com um punhal, pudesse

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william shakespeare 637

Criar ele próprio a sua paz. Quem quereria


Levar os fardos e gemer e suar sob uma vida exausta?
Mas o terror de alguma coisa que está depois da morte
— País desconhecido de cujas fronteiras
Nenhum viajante regressa — perturba o nosso desejo
E leva-nos a suportar o mal que temos
E a não voar para males dos quais nada sabemos.
Assim a consciência faz de nós covardes,
E assim o primitivo brilho da vontade
Desmaia sob a pálida cor do pensamento.
Empreendimentos de grande alcance e grande peso
Torcem por causa disto o seu caminho
E perdem o nome de acção. Silêncio agora!
A doce Ophélia! Ninfa, nas tuas orações
Lembrados sejam meus pecados todos.

Ophélia
Meu bom senhor,
Como haveis passado há tantos dias?

Hamlet
Agradeço humildemente: bem, bem, bem.

Ophélia
Meu senhor, tenho lembranças vossas
Que há muito tempo vos quero devolver.
Peço, recebei-as agora.

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638 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Claude SIMON. O Vento: Tentativa de reconstituição de um retábulo barroco.


Tradução de Mário Cesariny de Vasconcelos. [1957] 1963. Lisboa:
Portugália. 268­‑273.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Mas não consegui sequer fazê­‑lo sorrir. Não me escutava. Tanto como não se
dera sequer ao trabalho de ir até ao tribunal no dia em que era julgado o seu
caso contra o feitor, porque sem dúvida tinha nessa manhã ou nessa tarde
qualquer coisa de mais importante a fazer, como por exemplo ficar sentado
num banco de uma praça ou a fazer de sentinela nos escritórios, na espe‑
rança de que um daqueles funcionários acabasse por fim por se aperceber
da sua presença. A verdade é que ele nem me falou nisso. Talvez aliás o não
soubesse, não se tivesse ralado a perguntar o que se passara, limitando­‑se
sem dúvida a ouvir o advogado anunciar­‑lhe à tarde (ou abrindo talvez no
dia seguinte de manhã a carta em que o advogado lhe anunciava) que tinham
perdido, e contentando­‑se em dizer: «Ah!», ou «Bom!», e metendo depois
a carta no fundo do montão de papéis que enchiam o dossier de cartolina e
esquecendo­‑a imediatamente para correr a um novo escritório, de manei‑
ra que foi pelo notário que eu soube os pormenores, a saber, que o feitor
tinha aparecido no momento exacto com vários bilhetes assinados pelo pai
de Montès e, também, provado que lhe eram devidos salários, acumulados
durante anos, e, ainda, exibido um certificado de bons e leais serviços de que
as más­‑línguas disseram que ele (o pai de Montès) o tinha sem dúvida escrito
por engano, num momento de confusão mental que o fizera escrever por dis‑
tracção o nome do pai em vez do da filha, o género de trabalho a que ele fazia
alusão processando­‑se vulgarmente não nos trilhos das charruas ou curvado
para a terra inesgotável, mas nessa posição horizontal em que o suor e os
hãs são o contrário dos do trabalho, e em que o campo trabalhado se reduz a
esse triângulo sombrio, a esse trilho sempre aberto, sem cessar trabalhado e
nunca preenchido, e nunca fechado. O que é facto é que o feitor (ou, antes, o
bizarro trio, o homem de cara de cadáver terroso, a mulher vestida de preto
e a filha demasiado pintada, assistindo aos debates e às alegações, sentados
ao fundo da sala, impassíveis, sombrios e implacáveis como uma alegoria vin‑
gadora, ultrajada, do direito e da inocência pervertida) tinha ganho, e não só
ganho: obtido uma reparação pelo afastamento que ele próprio teria pedido

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642 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Edith SÖDERGRAN. «A lua», in Poesia Nórdica. Tradução inédita de


Francisco C. Marques a partir da tradução castelhana de Francisco J. Ruiz.
[1925] 2017. Madrid: Libros del Innombrable. 31.

Que maravilhosa é toda a morte


e que indescritível:
uma folha morta e um homem morto
e o disco lunar.
E todas as flores sabem um segredo
e o bosque guarda­‑o,
e é que, afinal, a órbita da lua em torno da terra
é a rota da morte.
E a lua tece a sua maravilhosa tela,
aquela amada pelas flores,
e a lua tece a sua rede fantástica
em torno de tudo o que vive.
E a foice da lua ceifa as flores
nas noites de final de outono,
e todas as flores esperam o beijo da lua
com infinito desejo.

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robert louis stevenson 643

Robert Louis STEVENSON. O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde


e Outros Contos. Tradução de Jorge Pereirinha Pires. [1886] 2007. Lisboa:
Assírio & Alvim. 195­‑198.

Andava eu despreocupadamente pelo pátio após o pequeno­‑almoço, beben‑


do com prazer a frescura do ar, quando fui novamente tomado por aquelas
indescritíveis sensações que anunciavam a transformação; e só tive tempo
de chegar ao abrigo do meu gabinete, antes de estar outra vez a enfurecer e a
gelar com as paixões de Hyde. Foi precisa nessa ocasião uma dose dupla para
que eu voltasse a mim mesmo; mas infelizmente, seis horas depois, enquanto
eu me sentava tristemente junto ao lume, as dores voltaram, e a droga teve
de ser readministrada. Em suma, desse dia em diante parecia que somente
com um grande esforço, como na ginástica, e somente debaixo da estimula‑
ção imediata da droga, era eu capaz de usar o semblante de Jekyll. A todas as
horas do dia e noite eu era tomado do estremecimento premonitório; acima
de tudo, se eu dormisse, ou mesmo se dormitasse por um instante na minha
cadeira, era sempre como Hyde que eu acordava. Sob a tensão desse destino
que agora pendia continuamente sobre mim, e dada a insónia a que eu agora
me condenara, para além até do que eu julgara possível ao homem, tornei­‑me,
na minha própria pessoa, uma criatura comida e esvaziada pela febre, langui‑
damente enfraquecida tanto no corpo como na mente, e ocupada por um só
pensamento: o horror ao meu outro eu. Mas quando eu dormia, ou quando
a virtude da medicina se desgastava, eu saltava quase sem transição (já que
as dores da transformação se tornavam menos marcantes a cada dia) para a
possessão de uma fantasia repleta de imagens de terror, de uma alma que fer‑
via com ódios sem causa, e de um corpo que não parecia ser forte o bastante
para conter as furiosas energias da vida. Os poderes de Hyde pareciam haver
crescido com o adoecimento de Jekyll. E certamente que o ódio que agora os
dividia era igual em cada lado. Com Jekyll, era uma coisa de instinto vital. Ele
vira agora toda a deformidade daquela criatura que com ele partilhava alguns
dos fenómenos da consciência, e que era seu co­‑herdeiro até à morte: e para
além desses laços de comunidade, que constituíam a maior parte do seu des‑
gosto, ele pensava em Hyde, dada a sua energia de vida, como em algo não
apenas infernal mas inorgânico. Era isso o mais chocante; que o limo do poço

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644 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

parecesse murmurar gritos e vozes; que o pó amorfo gesticulasse e pecasse;


que aquilo que estava morto, e não tinha forma, usurpasse os ofícios da vida.
E ainda isto, que aquele horror insurgente estivesse mais pegado a ele do que
uma esposa, mais do que um olho; que estivesse encarcerado na sua carne,
onde ele o ouvia resmungar e o sentia lutar por nascer; e que a cada hora de
fraqueza, e na confidência do sono, prevalecesse contra ele, e o despojasse da
vida. O ódio de Hyde por Jekyll era de uma ordem diferente. O seu terror do
patíbulo levava­‑o continuamente a cometer suicídio temporário, e a regres‑
sar à sua estação subordinada como parte e não como pessoa; mas ele abomi‑
nava a necessidade, abominava o desânimo em que Jekyll havia caído agora,
e ressentia­‑se do desagrado com que ele próprio era olhado. Daí as partidas
e as macaquices que ele me pregava, escrevendo com o meu próprio punho
blasfémias nas páginas dos meus livros, queimando as cartas e destruindo o
retrato de meu pai. E na verdade, se não fosse pelo medo que tinha da morte,
há muito que ele se teria arruinado de modo a envolver­‑me na ruína. Mas
o amor que tem pela vida é maravilhoso; vou mais longe: eu, que adoeço e
gelo só de pensar nele, quando recordo a abjecção e a paixão desta ligação,
e sabendo como ele teme o meu poder de o eliminar pelo suicídio, acho no
meu coração piedade por ele.
É inútil prolongar esta descrição, e infelizmente não me sobra o tempo
para tal. Ninguém alguma vez sofreu tais tormentos, e isso basta; e contudo,
mesmo a esses o hábito trouxe — não, não o alívio — mas uma certa insen‑
sibilidade da alma, uma certa aquiescência do desespero; e a minha punição
poderia haver durado anos, se não fosse a última calamidade que agora suce‑
deu, e que finalmente me separou do meu próprio rosto e natureza. A minha
provisão do sal, que nunca fora renovada desde a data da primeira experiên‑
cia, começou a escassear. Mandei vir nova remessa, e misturei a beberagem;
seguiu­‑se a ebulição, e a primeira mudança de cor, não a segunda; bebi­‑a e não
teve qualquer eficácia. Você há­‑de saber por Poole como eu mandei rebus‑
car Londres; foi em vão; e estou agora convencido de que a minha primeira
remessa era impura, e que fora essa impureza desconhecida que emprestara
eficácia à beberagem.
Passou cerca de uma semana, e termino agora esta declaração sob a
influência do último lote dos pós antigos. A menos que haja um milagre,
é portanto esta a última vez que Henry Jekyll pode pensar os seus próprios
pensamentos ou ver o seu próprio rosto (agora tão tristemente alterado!) no
espelho. Não deverei demorar­‑me muito a concluir o meu escrito; pois se a
minha narrativa escapou até agora à destruição, foi por uma combinação de
grande prudência e muita boa sorte. Se os estertores da mudança me domina‑

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robert louis stevenson 645

rem enquanto a escrevo, Hyde rasgá­‑la­‑á em bocados; mas se já tiver passado


algum tempo após eu a haver posto de lado, o maravilhoso egoísmo dele e o
modo como se circunscreve ao momento salvá­‑la­‑ão provavelmente uma vez
mais da acção do seu rancor simiesco. E na verdade o fado que agora se fecha
sobre nós dois já o mudou e o esmagou. Daqui a uma meia hora, quando eu
de novo e para todo o sempre me tornar naquela personalidade odiosa, sei
bem como hei­‑de ficar sentado a tremer e a chorar na minha cadeira, ou con‑
tinuar, com o mais tenso e receoso êxtase auditivo, a andar de um lado para o
outro nesta sala (o meu último refúgio terreno) e a prestar ouvidos a todos os
sons de ameaça. Irá Hyde morrer no cadafalso? Ou achará ele a coragem de
se libertar a si mesmo no momento derradeiro? Só Deus sabe; a mim não me
importa; esta é a verdadeira hora da minha morte, e o que se segue concerne
um outro que não eu mesmo. E é pois aqui, ao pousar a pena e selar minha
confissão, que eu ponho termo à vida daquele infeliz Henry Jekyll.

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Zlatka TIMENOVA. [O verão fechado], [Uma flecha branca], [Café
da manhã] e [Primavera de novo], in DiVersos Poesia e Tradução, n.º 23.
Autotradução a partir do búlgaro. 2016. Lisboa: Sempre­‑em­‑pé. 146.

Texto sujeito a Direitos de Autor

O verão fechado
na garagem
olhares frios

Uma flecha branca


nas costas da nuvem
morte em branco

Café da manhã
junta ontem
e hoje

Primavera de novo
a erva mais verde
do que os meus olhos

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lev tolstói 647

Lev TOLSTÓI. «Capítulo VI», in A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Vasco


Teles de Meneses. [1886] 2015. Lisboa: Alêtheia. 67­‑ 71.

Ivan Ilitch via que estava a morrer, e vivia em constante desespero.


No fundo da sua alma sabia que estava a morrer, mas não só não estava
acostumado a isso como simplesmente não compreendia, não podia com‑
preender de modo algum.
Aquele exemplo de silogismo que tinha aprendido na lógica de Kizevet‑
ter: Caio é homem, os homens são mortais, portanto Caio é mortal, pareceu­
‑lhe em toda a sua vida justo apenas em relação a Caio, mas de modo algum
em relação a si próprio. Aquele era o homem Caio, o homem em geral, e isso
era perfeitamente justo; mas ele não era Caio e não era o homem em geral,
sempre tinha sido um ser completamente separado de todos os outros; ele
era Vânia com o papá e a mamã, com Mítia e Volódi com os brinquedos,
o cocheiro, a ama, depois com Kátenka, com todas as alegrias, tristezas e
encantos da infância, da adolescência, da juventude. Pois o que saberia Caio
daquele cheiro das tiras de couro da bola de que Vânia tanto gostava? Bei‑
jaria Caio assim a mão da sua mãe e ouviria assim o murmúrio da seda dos
folhos do vestido dela? Ter­‑se­‑ia ele revoltado assim na escola por causa dos
pastéis? Teria Caio amado assim? Caio seria capaz de presidir como ele a um
julgamento?
E Caio era de facto mortal e era justo que morresse, mas para mim,
Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e emoções, para mim isso
é outra coisa. E não é possível que eu tenha que morrer. Isso seria demasiado
horrível.
Tal era o seu sentimento.
«Se eu tivesse que morrer como Caio, saberia isso, uma voz interior havia
de mo dizer, mas nada disso aconteceu em mim; e eu e todos os meus amigos
compreendíamos que eu era muito diferente de Caio. E agora aí está! — dizia
para si mesmo. — Não pode ser. Não pode ser, mas é. Como é isto? Como
compreender isto?»
Não conseguia compreender e esforçava­‑se por afastar aquele pensa‑
mento como falso, injusto, doentio e substituí­‑lo por outros pensamentos,

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648 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

correctos e saudáveis. Mas aquele pensamento não era apenas um pensa‑


mento, era como que uma realidade, voltava e erguia­‑se à sua frente.
E invocava sucessivamente outros pensamentos para substituir esse, na
esperança de neles encontrar algum apoio. Tentava voltar ao anterior curso
de pensamentos que antes ocultavam para ele o pensamento sobre a morte.
Mas, coisa estranha, tudo aquilo que dantes encerrava, escondia e eliminava
a consciência da morte, já não produzia agora esse efeito. Ivan Ilitch passava
agora a maior parte do seu tempo nessas tentativas de restabelecer a ante‑
rior corrente de sentimentos que encobria a morte. Ora dizia a si mesmo:
«Entrego­‑me ao trabalho, pois era dele que eu vivia.» E ia para o tribunal
expulsando de si todas as dúvidas; estabelecia conversa com os colegas e
sentava­‑se distraidamente como era seu costume, percorrendo a multidão
com o olhar meditabundo e apoiando­‑se com as duas mãos emaciadas nos
braços do cadeirão de carvalho, inclinando­‑se como de costume para um
colega, agitando os papéis, trocando murmúrios e depois, erguendo subita‑
mente os olhos e endireitando­‑se no assento, proferia certas palavras e dava
início ao processo. Mas no meio de tudo isso a dor no flanco, completamen‑
te alheia à fase de andamento do processo, começava de repente o seu pro‑
cesso corrosivo. Ivan Ilitch espiava­‑a, procurava afastar dela o pensamento,
mas ela continuava, vinha colocar­‑se mesmo à sua frente e olhava­‑o, e ele
ficava petrificado, o lume extinguia­‑se nos seus olhos e de novo começava a
perguntar­‑se: «Será possível que só ela esteja certa?» E os colegas e subordina‑
dos viam com surpresa e com mágoa que ele, um juiz tão brilhante e subtil, se
confundia e cometia erros. Sacudia­‑se, tentava recompor­‑se, de um modo ou
de outro conseguia levar a sessão até ao fim e regressava a casa com a sombria
consciência de que a sua actividade judicial não podia como antes ocultar
dele aquilo que ele queria ocultar; que com a actividade judicial não podia
livrar­‑se dela. E o pior de tudo era que ela atraía para si a atenção dele não
para que ele fizesse alguma coisa, mas apenas para que a olhasse a direito nos
olhos e, sem nada fazer, se atormentasse de um modo inexprimível.
E, para se livrar desse estado, Ivan Ilitch procurava conforto, outros
biombos, e apareciam outros biombos que pareciam defendê­‑lo durante
algum tempo, mas que de imediato se desfaziam ou antes se tornavam trans‑
parentes, como se ela penetrasse em tudo e nada a pudesse encobrir.
Nos últimos tempos acontecia­‑lhe entrar no salão por ele decorado —
aquele salão onde caíra, pelo qual (como lhe era amargamente ridículo pen‑
sar) sacrificara a sua vida, porque sabia que a sua doença começara com aque‑
la equimose —, entrava e via que na mesa envernizada havia um arranhão
feito por qualquer objecto. Procurava a causa e encontrava­‑a na guarnição

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lev tolstói 649

de bronze do álbum, entortada na ponta. Pegava no álbum, muito caro, por


ele organizado com amor, irritava­‑se contra o desleixo da filha e dos amigos
— porque o álbum estava roto e as fotografias viradas ao contrário. Punha­‑o
cuidadosamente em ordem, voltava a endireitar a guarnição.
Depois ocorria­‑lhe a ideia de mudar todo aquele établissement com os
álbuns noutro canto da sala, perto das flores. Chamava o criado: a filha ou a
mulher vinham ajudá­‑lo; não estavam de acordo, contradiziam­‑no, ele discu‑
tia, zangava­‑se; mas tudo estava bem, porque então não se lembrava dela, ela
não estava visível.
Mas então, quando ele próprio fazia a mudança, a mulher dizia: «Deixa,
o pessoal faz isso, ainda te magoas de novo», e de repente ela relampejava
através do biombo, ele via­‑a. Ela relampejava, ele ainda esperava que ela
desaparecesse, mas involuntariamente prestava atenção ao flanco — ali con‑
tinuava a mesma coisa, continuava a doer e ele já não podia esquecer, e ela
olhava claramente para ele por detrás das flores. Para quê tudo aquilo?
«É mesmo verdade que aqui, nesta cortina, perdi a minha vida. Será pos‑
sível? Que coisa tão horrível e tão estúpida! Isto não pode ser! Não pode ser,
mas é.»
Ia para o escritório, deitava­‑se e voltava a ficar sozinho com ela. De olhos
nos olhos com ela, e não podia fazer nada com ela. Só olhar para ela e gelar.

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650 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Georg TRAKL. «Salmo», in Outono Transfigurado. Tradução de João


Barrento. [1920] 1991. Lisboa: Assírio & Alvim. 45­‑47.

Dedicado a Karl Kraus

Há uma luz que o vento apagou.


Há uma taberna no campo, de onde à tarde sai um bêbado.
Há um vinhedo queimado e negro com covas cheias de aranhas.
Há uma sala que caiaram a leite.
Morreu o louco. Há uma ilha do mar do sul
Para receber o deus do sol. Rufam os tambores.
Os homens executam danças guerreiras.
As mulheres dão às ancas cingidas de trepadeiras e flores de fogo,
Quando o mar canta. Oh, o nosso paraíso perdido.

As ninfas deixaram as florestas douradas.


Enterra­‑se o forasteiro. Depois começa a cair uma chuva cintilante,
Aparece o filho de Pã sob a forma de um trabalhador da terra
Que passa o meio­‑dia a dormir no asfalto em brasa.
Há rapariguinhas num pátio, com vestidinhos cheios de uma pobreza que
trespassa o coração!
Há quartos cheios de acordes e sonatas.
Há sombras que se abraçam frente a um espelho cego.
Às janelas do hospital aquecem­‑se os convalescentes.
Um paquete entra o canal trazendo sangrentas epidemias.

A estranha irmã volta a aparecer nos maus sonhos de alguém.


Brinca tranquila nas avelaneiras com as estrelas dele.
O estudante, talvez um sósia, olha­‑a longamente da janela.
Atrás dele está o seu irmão morto, ou então desce a velha escada de caracol.
No escuro dos castanheiros empalidece a figura do jovem noviço.
O jardim está imerso no entardecer. No claustro esvoaçam os morcegos.
Os filhos do porteiro deixam de brincar e buscam o oiro do céu.
Acordes finais de um quarteto. A pequena cega atravessa a alameda a
tremer,

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georg trakl 651

E mais tarde a sua sombra vai tacteando muros frios, envolta em contos de
fadas e lendas de santos.

Há um barco vazio que ao cair da noite vai descendo o canal negro.


Na obscuridade do velho asilo há ruínas humanas em decadência.
Os órfãos mortos jazem junto aos muros do jardim.
De quartos cinzentos saem anjos com asas sujas de excrementos.
Gotejam­‑lhes vermes das asas amareladas.
A praça da igreja está sombria e mergulhada no silêncio, como nos dias da
infância.
Sobre solas de prata deslizam vidas passadas
E as sombras dos condenados descem às águas soluçantes.
No túmulo, o mago branco brinca com as suas serpentes.

Em silêncio, abrem­‑se sobre o Calvário os olhos dourados de Deus.

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652 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Giuseppe UNGARETTI. «Os Rios», in La Vita di un Uomo: tutte le poesie.


Tradução inédita de Simão Valente. [1931] 2005. Milão: Mondadori. 43­‑45.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Amparo-me a esta árvore mutilada


Abandonado nesta dolina
Que tem o langor
De um circo
Antes ou depois do espectáculo
E vejo
A passagem tranquila
Das nuvens sob a lua

Esta manhã estendi-me


Numa urna de água
E como uma relíquia
Repousei

O Isonzo escorria
Polia-me
Como um seu seixo
Ergui
Os meus poucos ossos
E parti
Como um acrobata
Sobre a água

Enrolei-me
Junto aos meus velhos panos
Sujos de guerra
E como um beduíno
Inclinei-me a receber
O sol.

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lope de vega 655

Lope de VEGA. Excerto de El Caballero de Olmedo. Tradução inédita de


Cristina Almeida Ribeiro a partir da edição de Francisco Rico. [1641] 1992.
Madrid: Cátedra. 193­‑202.

Ao sair dom Alonso, ponha­‑se­‑lhe diante uma Sombra, com máscara negra e chapéu,
e a mão no punho da espada.

Alonso
Que é isto? Quem vem lá? Não faz caso de mim. Quem é? Fale. Que um
homem me atemorize, não tendo temido tantos! É dom Rodrigo? Não
diz quem é?
Sombra
Dom Alonso.
Alonso
Como?
Sombra
Dom Alonso.
Alonso
Não pode ser. Outro será, que eu sou dom Alonso Manrique. Se é inven‑
ção, meta mano. (Virou as costas.)
Vai­‑se a Sombra.
Segui­‑lo parece­‑me desatino. Oh, terrível imaginação! Deve ter sido
a minha sombra, mas não; que em forma visível disse que era dom
Alonso. Tudo são coisas que finge a força da tristeza, a imaginação de
um triste. Que me queres, pensamento, que com a minha sombra me
atormentas? Olha que temer sem causa é de gente sem nobreza. Ou
são embustes de Fabia, que pretende persuadir­‑me a não ir a Olmedo,
sabendo que é impossível. Diz sempre que me acautele, e sempre que
não ande de noite, sem outra razão a não ser que a inveja me perse‑
gue. Mas já não é possível que dom Rodrigo me inveje, pois hoje ficou
a dever­‑me a vida; que esta dívida não permite que um cavaleiro tão
nobre em momento algum a esqueça. Penso antes que há­‑de ser para
firmar amizade comigo a partir de hoje em Medina; que a ingratidão,
que sempre se encontra entre vilãos, não vive em sangue bom. Enfim,
é a quinta­‑essência de quantas acções vis tem a baixeza humana pagar
mal quem bem recebe.
Sai. Entram dom Rodrigo, dom Fernando, Mendo e Laín.

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656 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Rodrigo
Hoje terão fim os meus ciúmes e a vida dele.
Fernando
Finalmente, vindes determinado?
Rodrigo
Não haverá conselho que impeça a sua morte, depois de a palavra me
terem quebrado. Já se percebeu a devoção fingida, já soube que era Tello,
o seu criado, quem lhe ensinava aquele latim que em cartas de romance
foi traduzido. Que honrada senhora recebeu, em Fabia, Dom Pedro em
sua casa! Oh, infeliz donzela! Desculpo a tua inocência, se te abrasa o
fogo infernal dos feitiços dela. Não sabe, embora seja discreta, o que
se passa e assim a honra de ambos atropela. Quantas casas de nobres
cavaleiros infamaram feitiços e terceiros! Fabia, que pode transpor um
monte; Fabia, que pode deter um rio, e sobre os negros ministros de
Aqueronte tem, como sobre vassalos, senhorio; Fabia, que deste mar,
deste horizonte, ao abrasado clima, ao norte frio pode levar um homem
pelo ar, dá­‑lhe lições. Pode haver maior donaire?
Fernando
Pela mesma razão, eu não tratava de mais vingança.
Rodrigo
Por Deus, Fernando, seria dos dois clara baixeza!
Fernando
Não a há maior que desprezar amando.
Rodrigo
Se vós podeis, eu não.
Mendo
Senhor, repara que vêm os ecos avisando que alguém vem a cavalo.
Rodrigo
Se vier acompanhado, medo tem.
Fernando
Não acredites nisso, que é moço temerário.
Rodrigo
Todos escondidos, em silêncio. Tu, Mendo, o arcabuz, se for necessário,
terás atrás de uma árvore preparado.
Fernando
Que inconstante é o bem, que louco e vário! Hoje, à vista de um rei,
saiu com brilho, admirado por todos, da praça, e já tão feroz morte o
ameaça!
Escondam­‑se e entre dom Alonso.

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lope de vega 657

Alonso
O que jamais senti, que é algum receio ou medo, levo a caminho de
Olmedo. Mas foram tristezas. Da água o manso ruído e o leve movimen‑
to destes ramos com o vento, aumentam mais a minha tristeza. Eu avan‑
ço, e volta atrás o meu confuso pensamento. Leva­‑me o amor de meus
pais, e a obediência, embora esta seja uma pequena prova do meu valor.
Reconheço que foi exagero deixar Inés tão cedo... Que escuridão! Tudo
é horror, até que a aurora ponha os dourados pés nos tapetes de Flora.
Ali estão a cantar. Quem será? Será algum lavrador a caminho do traba‑
lho. Parece que está longe. Mas vai­‑se aproximando. Mas como? Leva
instrumento, e não é rústico o tom, mas sonoro e suave! Que mal sabe a
música, se está triste o pensamento!
Cantem de longe, nos bastidores, e vá­‑se a voz aproximando como se caminhasse.
Que de noite mataram
o cavaleiro,
a gala de Medina,
a flor de Olmedo.
Alonso
Céus! Que escuto? Se avisos vossos são, já que aqui estou, de que me
estais informando? Voltar atrás, como posso? Invenção de Fabia é, que
quer, por rogo de Inés, fazer com que não vá a Olmedo.
A Voz
Sombras avisaram
que não saísse,
e aconselharam
que não partisse
o cavaleiro,
a gala de Medina,
a flor de Olmedo.
Alonso
He, bom homem, o que canta!
Lavrador
Quem me chama?
Alonso
Um homem que vai perdido.
Lavrador
Já vou.
Entra um Lavrador.
Aqui me vedes.

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658 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Alonso
(Tudo me espanta.) Onde vais?
Lavrador
Para o trabalho.
Alonso
Quem te deu essa cantiga, que tristemente cantaste?
Lavrador
Lá em Medina, senhor.
Alonso
A mim, costumam chamar­‑me o cavaleiro de Olmedo, e eu estou vivo.
Lavrador
Não posso dizer­‑vos deste cantar mais história ou ocasião, a não ser que
a uma Fabia o ouvi. Se vos interessa, já cumpri, dizendo­‑vos a cantiga.
Voltai para trás. Não passeis deste ribeiro.
Alonso
Na minha nobreza, esse temor seria indigno.
Lavrador
Coragem bem néscia tendes. Voltai, voltai a Medina.
Alonso
Vem tu comigo.
Lavrador
Não posso.
Sai.
Alonso
Quantas sombras finge o medo! Quantos enganos imagina! Ouve, escu‑
ta. Onde foi, que mal sinto os seus passos? Ah, lavrador! Ouve, espera.
«Espera», responde o eco. Morto eu! Mas é uma cantiga que fizeram por
algum homem de Olmedo que os de Medina mataram neste caminho.
A meio dele estou. Que hão­‑de dizer, se voltar? Vem gente… Não me
importa; se para lá forem, irei com eles.
Entrem dom Rodrigo e dom Fernando e a sua gente.
Rodrigo
Quem vem lá?
Alonso
Um homem. Não me vês?
Fernando
Pare.
Alonso
Cavaleiros, se acaso a necessidade vos força a passos como estes, daqui a

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lope de vega 659

minha casa pouca distância há; não precisarei de dinheiro que de dia e na
rua dou a quantos vejo que me honram ao pedi­‑lo.
Rodrigo
Tire as armas já.
Alonso
Para quê?
Rodrigo
Para as entregar.
Alonso
Sabem quem sou?
Fernando
O de Olmedo, o matador dos touros, que vem, arrogante e nés‑
cio, afrontar os de Medina; o que desonra dom Pedro com infames
alcoviteiros.
Alonso
Se ao menos fôsseis nobres, lá, pois tivestes tanto tempo, me teríeis fala‑
do, e não agora, que regresso sozinho a minha casa. Lá, na grade onde
deixastes a capa ao fugir, teria estado bem, e não em quadrilha a meio da
noite, soberbos. Mas confesso, vilãos, que a estima que vos devo: apesar
de serdes tantos, sois poucos.
Discutem.
Rodrigo
Eu venho matar, não venho para desafios; que então te mataria corpo a
corpo.
A Mendo.
Atira.
Disparem dentro.
Alonso
Traidores sois; mas sem armas de fogo não teríeis podido matar­‑me.
Jesus!
Cai.
Fernando
Fizeste­‑o bem, Mendo!
Saem dom Rodrigo, dom Fernando e a sua gente.
Alonso
Que pouco crédito dei aos avisos do céu! Enganou­‑me o amor­‑próprio,
mataram­‑me invejas e ciúmes. Ai de mim! Que farei num campo tão
só?
Entra Tello.

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660 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Tello
Funda tristeza me deram estes homens que a cavalo vão em fuga para
Medina. Perguntei­‑lhes se haviam visto dom Alonso; não responderam.
Mau sinal! Vou a tremer.
Alonso
Meu Deus, piedade! Morro! Vós sabeis que o meu amor foi dirigido a
casamento. Ai, Inés!
Tello
De lastimosas queixas sinto tristes ecos. Vêm daquele lado. Não está
longe do caminho quem as solta. Estou sem pinga de sangue. Acho que o
chapéu pode segurar­‑se no ar assente só num cabelo. Ah, fidalgo!
Alonso
Quem é?
Tello
Meu Deus! Porque duvido do que vejo? É o meu senhor. Dom Alonso!
Alonso
Sê bem­‑vindo, Tello.
Tello
Como, senhor, se tardei tanto? Como, se chego para te ver feito uma
fera em sangue? Traidores, vilãos, perros; voltai, vinde matar­‑me, já que
haveis, infames, matado o mais nobre, o mais valente, o mais galante
cavaleiro que cingiu espada em Castela!
Alonso
Tello, Tello, já não é tempo senão de tratar da alma. Põe­‑me depressa no
teu cavalo e leva­‑me a ver meus pais.
Tello
Que boas novas lhes levo das festas de Medina! Que dirá aquele nobre
velho? Que fará a tua mãe, e a tua pátria? Vingança, piedosos céus!

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téophile de viau 661

Téophile de VIAU. [Um corvo grasna de mim perto], in Rosa do Mundo:


2001 poemas para o futuro. Tradução de Filipe Jarro. [1621] 2001. Lisboa:
Assírio & Alvim. 926­‑ 927.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Um corvo grasna de mim perto,


Uma sombra turva o meu olhar,
Atravessam­‑se ao meu passar
Duas raposas e dois furões;
O meu cavalo perde o pé,
O meu lacaio cai banzé;
Sinto rebentar os trovões;
Um espírito atrás de mim clama;
Ouço Caronte que me chama,
Vejo o centro da terra aberto.

Este rio sobe desde o chão;


O sangue desta rocha corre;
No alto de uma velha torre

Uma cobra desfaz um falcão;


Um boi trepa a um campanário;
Uma víbora monta um canário;
O lume arde dentro do mar;
O Sol tornou­‑se negro breu;
Vejo a lua a cair do céu;
Esta árvore saiu do lugar.

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662 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Evelyn WAUGH. Reviver o Passado em Brideshead. Tradução de José


Agostinho Baptista. [1945] 1992. Lisboa. Círculo de Leitores. 267­‑275.

Texto sujeito a Direitos de Autor

Assim, até meados de Julho, Lorde Marchmain continuou a morrer, des-


gastando­‑se na luta pela vida. Então, uma vez que não havia qualquer razão
para crer numa mudança imediata, Cordelia foi a Londres visitar a sua orga‑
nização feminina para a futura «Emergência». Nesse dia, Lorde Marchmain
piorou subitamente. Ficou silencioso e imóvel, a respirar com dificuldade;
apenas os olhos abertos, que, por vezes, olhavam à volta do quarto, davam
sinais de consciência.
— É o fim? — perguntou Julia.
— É impossível afirmar — respondeu o médico. — Quando morrer será
provavelmente assim. Pode recuperar deste ataque. A única coisa a fazer é
não perturbá­‑lo. O mínimo choque será fatal.
— Vou buscar o padre Mackay — disse ela. Não fiquei surpreendido.
Lera isso no seu pensamento durante todo o Verão. Quando saiu, eu disse ao
médico:
— Temos de impedir este disparate.
— Eu trato do corpo — disse ele. — Não é da minha conta discutir se
as pessoas estão melhor vivas ou mortas, ou o que lhes acontece depois da
morte. Apenas tento mantê­‑las vivas.
— Mas acabou de dizer que qualquer choque o poderia matar. O que
poderia ser pior para um homem que teme a morte, como é o caso, do que
trazer­‑lhe um padre… um padre que recusou quando tinha forças?
— Acho que pode matá­‑lo.
— E não proíbe?
— Não tenho autoridade para impedir seja o que for. Só posso dar a
minha opinião.
— Cara, o que pensa?
— Não quero que sofra. Por agora é só isso que podemos desejar; que ele
morra sem saber. Mas gostaria, mesmo assim, de ter cá o padre.
— Vai tentar com que Julia o mantenha afastado... até ao fim? Depois
disso já não lhe pode fazer mal.

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666 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Oscar WILDE. Excerto de «Capítulo II», in O Retrato de Dorian Gray.


Tradução de Rui Santana Brito. [1890] 2016. Lisboa: Guerra & Paz. 26­‑31.

Mal entraram viram logo Dorian Gray. Estava sentado ao piano, de costas
para eles, folheando uma partitura das Cenas da Floresta, de Schumann. «Tens
de mas emprestar, Basil», exclamou. «Quero aprendê­‑las. São perfeitamente
encantadoras.»
«Isso depende inteiramente da forma como posares hoje para mim,
Dorian.»
«Oh, estou farto e cheio de posar e não quero um retrato de corpo inteiro
da minha pessoa», respondeu o rapaz girando o banco de piano e voltando­‑se
para trás de uma forma voluntariosa e petulante. Quando viu Lorde Henry
enrubesceu ligeiramente por um breve momento e levantou­‑se. «Desculpa,
Basil, mas não sabia que estavas acompanhado.»
«Apresento­‑te Lorde Henry Wotton, Dorian, um velho amigo meu dos
tempos de Oxford. Estava mesmo agora a contar­‑lhe que tu és, para mim, um
modelo de capital importância e pronto: tens uma reacção dessas e fica tudo
estragado.»
«Não estragou o prazer que tenho em conhecê­‑lo, Sr. Gray», disse Lorde
Henry, dando um passo em frente e estendendo­‑lhe a mão. «A minha tia
falou­‑me muitas vezes de si. O senhor é um dos seus favoritos e, se não me
engano, também uma das suas vítimas favoritas.»
«Neste momento estou na lista negra de Lady Agatha», respondeu
Dorian com um divertido ar de penitência. «Prometi­‑lhe que a acompanhava
a um clube em Whitechapel na terça­‑feira passada, mas a verdade é que me
esqueci por completo. Era suposto tocarmos juntos um dueto... três duetos,
aliás. Não sei o que irá dizer­‑me. Nem me atrevo a ir visitá­‑la, de tão assusta‑
do que estou.»
«Eu encarrego­‑me de fazer as pazes entre os dois, não se preocupe.
A minha tia gosta imenso de si. E não me parece que o facto de não ter lá ido
tenha assim tanta importância. Se calhar o público até pensou que se tratava
mesmo de um dueto. Quando a tia Agatha se senta ao piano faz barulho por
duas pessoas.»

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oscar wilde 667

«Mas que coisa horrenda que diz da sua tia! Aliás, tão­‑pouco é muito
simpática para mim, devo dizer», respondeu Dorian com uma gargalhada.
Lorde Henry olhou para ele. Não havia dúvida: era na verdade muito
bonito, com aqueles seus lábios rubros desenhados numa curva perfeita, os
seus olhos azuis onde se lia a franqueza e o seu cabelo loiro e encaracolado.
Havia algo no seu rosto que nos obrigava a confiar imediatamente nele. Nele
se reflectia todo o candor da juventude, mas também toda a sua apaixonada
pureza. A sensação que dava era a de não se ter deixado macular pelo mundo.
Não era de admirar que Basil Hallward o idolatrasse.
«Tem demasiado encanto para se deixar fascinar pela filantropia, Sr.
Gray... demasiado encanto.» Dito isto, Lorde Henry deixou­‑se cair no divã
e abriu a cigarreira.
O pintor estivera entretanto ocupado a misturar as cores da sua paleta
e a preparar os pincéis. Tinha um ar preocupado e, quando ouviu a última
observação de Lorde Henry, olhou para ele de soslaio, hesitou um momento
e depois disse: «Quero acabar este retrato ainda hoje, Henry. Achas muito
mal­‑educado da minha parte que te peça para te ires embora?»
Lorde Henry sorriu e olhou para Dorian Gray. «Acha que devo ir, Sr.
Gray?», perguntou.
«Não vá, Lorde Henry, peço­‑lho. Estou a ver que o Basil começa a dar
sinais de uma daquelas suas crises de amuo e não o suporto quando fica
amuado. Além disso, quero que me explique por que razão não devo deixar­
‑me fascinar pela filantropia.»
«Isso não sei se lhe digo, Sr. Gray. É um assunto tão enfadonho que nos
obrigaria a ter uma conversa muito séria. Mas já que me pediu para ficar, pode
ter a certeza de que não me vou embora. Não te importas, Basil, pois não?
Disseste­‑me muitas vezes que gostas que os teus modelos tenham alguém
com quem conversar.»
Hallward mordeu o lábio. «Se Dorian assim o deseja é claro que tens de
ficar. Os caprichos de Dorian são ordens para toda a gente menos para ele.»
Lorde Henry pegou no chapéu e nas luvas. «Apesar da tua insistência,
Basil, receio bem não poder ficar. Prometi encontrar­‑me com um sujeito
no Orleans. Adeus, Sr. Gray. Venha visitar­‑me uma tarde destas em Curzon
Street. Às cinco horas estou quase sempre em casa. Quando decidir visitar­
‑me envie­‑me uma mensagem. Teria muita pena se nos desencontrássemos.»
«Basil», exclamou Dorian Gray, «se Lorde Henry Wotton se for embo‑
ra eu também vou. Nunca abres a boca enquanto pintas e é extremamente
aborrecido ficar para aqui neste estado com ar de quem está muito satisfeito.
Pede­‑lhe para ficar. Insisto.»

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668 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

«Fica, Henry, nem que seja para fazer a vontade ao Dorian e a mim tam‑
bém», disse Hallward, olhando fixamente para o seu quadro. «É verdade:
nunca falo enquanto trabalho e tão­‑pouco dou atenção a quem fala comigo,
o que deve ser terrivelmente enfadonho para os meus modelos. Peço­‑te que
fiques.»
«E o encontro que marquei com o tal homem no Orleans?»
O pintor riu­‑se. «Não me parece que, quanto a isso, tenhas qualquer pro‑
blema. Volta a sentar­‑te, Henry. E agora, Dorian, sobe lá para o estrado e
não te mexas muito nem dês demasiada atenção ao que te diz Lorde Henry.
É muito má a influência que exerce sobre todos os seus amigos. A única
excepção sou eu.»
Dorian Gray subiu para o estrado com ar de mártir grego, dirigindo um
pequeno trejeito de desagrado a Lorde Henry, por quem se sentia já bastante
atraído. Era diferente de Basil. Faziam um contraste maravilhoso. E além
disso tinha uma voz belíssima. Passado um momento disse­‑lhe: «É mesmo
verdade que tem assim tão má influência sobre os outros, Lorde Henry?
O Basil não está a exagerar?»
«Boa influência é coisa que não existe, Sr. Gray. Toda a influência é imo‑
ral — imoral do ponto de vista científico.»
«Porquê?»
«Porque influenciar uma pessoa significa entregar­‑lhe a nossa própria
alma. Essa pessoa passa a não ter pensamentos próprios, a não sentir as pai‑
xões que lhe são naturais. As virtudes que possui deixam de ser, para ela,
uma realidade. Os seus pecados — se é que existe essa coisa a que se chama
pecado — são­‑lhe transmitidos por outrem. Transforma­‑ se assim num
eco da música tocada por outra pessoa, num actor a representar um papel
que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o autodesenvolvimento.
É percebermos completamente qual é a nossa verdadeira natureza. E é para
isso mesmo que cada um de nós está neste mundo. Hoje em dia as pessoas
têm medo de si mesmas. Esqueceram­‑se do mais sagrado de todos os deve‑
res — o dever que têm para consigo próprias. Gostam, é claro, de praticar a
caridade — alimentam os que têm fome, vestem os mendigos. Mas as suas
almas, essas, morrem à fome e andam nuas. A nossa raça perdeu a coragem.
Se calhar nunca a tivemos. O terror à sociedade, que é a base de toda a moral,
e o terror a Deus, que é o segredo da religião: são estas as duas coisas que nos
governam. E no entanto...»
«Vira a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian. Lindo menino»,
disse o pintor, mergulhado no trabalho, dando­‑se conta de que no rosto do
rapaz aparecera uma expressão que nunca antes vira.

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oscar wilde 669

«E no entanto», continuou Lorde Henry na sua voz baixa, repleta de


musicalidade, e com aquele gracioso movimento de mão que lhe era tão
característico e que já remontava aos anos que passara em Eton. «Na minha
opinião, se um homem decidisse viver plenamente a sua vida, se quisesse
exprimir completamente tudo aquilo que sentia, dar forma a tudo o que pen‑
sava, transformar todo o sonho em realidade — acho que o mundo ganharia
uma frescura tão grande, uma tão intensa alegria, que nos levaria a esquecer
todos os males do medievalismo, acabando por regressar ao ideal helénico
— a algo ainda melhor, mais rico que o ideal helénico, muito provavelmente.
Mas mesmo o mais corajoso de todos os homens tem medo de si próprio.
A mutilação do selvagem sobrevive, de maneira trágica, no espírito de sacri‑
fício que nos ensombra a vida. Somos castigados pelas nossas recusas. Todos
os impulsos que procuramos sufocar ficam­‑nos latentes no espírito, como
veneno. O corpo peca uma vez e, uma vez que o faz, nunca mais volta a pen‑
sar nele porque o acto é uma forma de purificação. Fica apenas a memória de
um prazer ou o luxo de um remorso. A única forma de nos livrarmos de uma
tentação é ceder a essa tentação. Se lhe resistimos, a alma fica­‑nos doente de
nostalgia pelos prazeres a que se recusou, de desejo por aquilo que as suas leis
monstruosas impuseram como sinónimo de monstruosidade e ilegalidade.
Muitas vezes se disse já que os grandes prazeres deste mundo se passam a
nível do cérebro. E é também no cérebro, e só nele, que se materializam os
grandes prazeres do mundo. O próprio Sr. Gray, com essa sua juventude em
flor, esse seu candor tão típico da adolescência, também já teve paixões que
o deixaram estarrecido de medo, pensamentos que o aterrorizaram, sonhos,
quer acordado quer a dormir, cuja simples recordação bastaria para o fazer
corar de vergonha...»
«Basta!», exclamou Dorian Gray, arquejante. «Basta! Já estou a ficar des‑
norteado. Não sei que dizer. Sei que há uma resposta adequada para o que
me dizeis, mas não consigo encontrá­‑la. Parem de falar. Deixem­‑me pensar.
Permitam­‑me que não pense, ou antes, que procure não pensar.»
Deixou­‑se ali ficar durante cerca de dez minutos, sem se mexer, com os
lábios entreabertos e um olhar de uma luminosidade estranha. Tinha a vaga
consciência de que, no mais íntimo do seu ser, começava a sentir o efeito de
uma influência até aí desconhecida. Essa influência, porém, parecia derivar
de si próprio, não de qualquer outra pessoa. As poucas palavras que o amigo
de Basil lhe dissera — palavras ditas ao acaso, sem dúvida, imbuídas de um
intencional paradoxo — tinham­‑lhe tocado numa qualquer corda sensível
onde ninguém conseguira ainda tocar, mas que sentia agora vibrar e palpitar
em pulsações de estranha intensidade.

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670 literatura-mundo ii: o mundo lido: europa (vol. 4)

Era o mesmo tipo de perturbação que a música lhe causara. A música


perturbara­‑o muitas vezes. Mas a música não era uma coisa coerente. Não
nos abria um mundo novo: criava­‑nos, antes, um novo caos, Palavras! Nada
mais que palavras! E como eram terríveis, essas palavras! Como eram explí‑
citas, vigorosas e cruéis! Era impossível fugir­‑lhes. E, no entanto, como era
grande a subtileza da magia que continham! Pareciam capazes de conferir
uma forma plástica a coisas sem qualquer forma, de ter uma música própria,
tão doce como a de um violoncelo ou a de uma flauta. Nada mais que pala‑
vras! Haverá algo de mais real que a palavra?

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Virginia WOOLF. Excerto de «Capítulo II», in Um Quarto Que Seja Seu.


Tradução de Maria Emília Ferros Moura. [1929] 1996. Lisboa: Vega. 39­‑45.

Se não se importarem que vos peça para me seguirem, temos então agora
uma mudança de cenário. As folhas ainda continuavam a cair, mas de
momento, em Londres e não em Oxford; e devo pedir­‑vos que imaginem
um quarto, semelhante a tantos outros, com uma janela com vista para os
chapéus das pessoas, camiões, autocarros e outras janelas; na mesa dentro
desse quarto imaginam também uma secretária tendo em cima uma folha de
papel, com as palavras MULHERES E FICÇÃO, escritas a letras garrafais,
e sem mais nada. A inevitável sequência do almoço e jantar em Oxbridge era,
ao que parece, infelizmente, uma visita ao British Museum. Havia que elimi‑
nar tudo o que fosse pessoal e acidental nessas impressões, para desse modo
atingir o fluido puro, o essencial da verdade. Aquela visita a Oxbridge, acom‑
panhada do almoço e do jantar, tinha desencadeado uma onda de perguntas.
Porque é que os homens bebiam vinho e as mulheres água? Porque era um
sexo tão próspero e o outro tão pobre? Qual o efeito da pobreza na ficção?
Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte? — umas per‑
guntas faziam surgir outras. Contudo, eram necessárias respostas e não per‑
guntas; e só havia hipóteses de obter uma resposta consultando os eruditos
e isentos de preconceitos, que se isentaram de conflitos retóricos e demais
confusões, dando a conhecer a sua linha de raciocínio e de pesquisa em livros
que se encontram no British Museum. «Se não for possível encontrar a ver‑
dade nas prateleiras do British Museum», perguntava a mim mesma, pegan‑
do num bloco de notas e num lápis, «onde reside a verdade?».
Assim munida e cheia de confiança e espírito inquiridor, lancei­‑me
em busca da senda da verdade. O dia, se bem que não estivesse húmido,
apresentava­‑se sombrio, e nas ruas perto do Museu abundavam as peque‑
nas caves cheias de carvão: paravam carroças que depositavam no pavi‑
mento caixotes amarrados com cordas e que continham pressupostamen‑
te todo o guarda­‑roupa de qualquer família suíça ou italiana, em busca de
fortuna, refúgio ou outro objectivo desejável, que se encontra nas pensões
de Bloomsbury, durante o Inverno. Ouviam­‑se as costumadas vozes roucas

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dos homens que apregoavam plantas transportadas em carrinhos de mão.


Alguns gritavam; outros cantavam. Londres assemelhava­‑se a uma oficina.
Londres assemelhava­‑se a uma máquina. Éramos todos atirados para a fren‑
te, com a finalidade de moldar qualquer padrão. O British Museum consti‑
tuía outra secção da fábrica. As portas giratórias rodaram; e ficava­‑se sob a
vasta abóbada, como se nada mais fôssemos do que um pensamento naquela
imensa cabeça calva, circundada por uma cinta de nomes famosos. O pri‑
meiro passo era rumo ao balcão, onde se ia buscar um papel; abria­‑se um
volume do catálogo, e..... as cinco reticências indicam os cinco minutos de
espanto, surpresa e encantamento. Fazem uma ideia de quantos livros foram
escritos por mulheres no espaço de um ano? Fazem ideia de quantos foram
escritos por homens? Têm consciência de que são provavelmente o animal
mais discutido em todo o universo? Ali estava eu, com um bloco de notas
e um lápis, na disposição de passar a manhã a ler, e pensando que no fim da
manhã já teria transferido a verdade para o meu bloco de notas. «Para enfren‑
tar o que se me depara, necessitaria de ser simultaneamente uma manada
de elefantes e um emaranhado de aranhas», pensei, fazendo uma desespe‑
rada referência aos animais com reputação de maior tempo de vida e maior
número de olhos. «Precisaria de garras de aço e bico de bronze para penetrar
naquela selva.» — «Como descobrirei os grãos de verdade contidos em todo
este aglomerado de papel?», interroguei­‑me, ao mesmo tempo que começava
a percorrer desesperadamente a longa lista de obras com a vista. Os próprios
títulos davam­‑me que pensar. O sexo e a sua natureza poderia perfeitamente
atrair a atenção de médicos e biólogos; mas era um facto surpreendente e
difícil de explicar o de que o sexo — ou seja, a mulher — atrai igualmente
simpáticos ensaístas, imaginativos romancistas, jovens formados; homens
sem formatura universitária; homens aparentemente sem outras qualifi‑
cações, que a de não serem mulheres. Alguns destes livros eram à primeira
vista frívolos e superficiais; muitos, por outro lado, eram graves e proféticos,
moralistas e exortatórios. A simples leitura dos títulos sugeria inúmeros pro‑
fessores, bem como uma série de clérigos subindo ao púlpito, expressando­
‑se com eloquência sobre este único tema e excedendo em muito a hora que,
geralmente, lhes era concedida para o versar. Tratava­‑se de um fenómeno
extremamente estranho; e, ao que parece — nesta altura consultei a letra M
—, notava­‑se uma limitação ao sexo masculino. As mulheres não escrevem
livros sobre os homens — um facto que não pude deixar de notar com alívio,
pois se tivesse de ler em primeiro lugar tudo o que os homens escreveram
sobre as mulheres e depois tudo o que as mulheres tivessem escrito sobre
os homens, o aloés, que floresce de cem em cem anos, floresceria duas vezes

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antes de me permitir escrever o que quer que fosse no papel. Depois de fazer
uma selecção perfeitamente arbitrária de cerca de doze volumes, coloquei os
meus pedaços de papel no depositório de pedidos e esperei a minha vez na
bicha, em busca do fluido essencial da verdade.
Interrogava­‑ me quanto ao motivo desta estranha discrepância,
enquanto desenhava círculos nos pedaços de papel que o pagador de impos‑
tos inglês fornece para outras finalidades. A julgar por este catálogo, qual a
razão por que as mulheres são muito mais interessantes para os homens do
que os homens são para as mulheres? Parecia­‑me um facto bastante curioso
e o meu espírito vagabundeou em meandros imaginativos relativamente
às vidas dos homens, que passaram o seu tempo a escrever livros sobre as
mulheres; se seriam velhos ou novos, casados ou solteiros, de nariz averme‑
lhado ou corcundas — fosse como fosse, era lisonjeira aquela sensação de
se ser objecto das atenções, desde que estas não estivessem meramente ao
cuidado de aleijados e enfermos —, e estes pensamentos frívolos continua‑
ram, até me ver inundada por uma avalanche de livros, que escorregaram
sobre a mesa que tinha à minha frente. Foi nessa altura que começaram os
verdadeiros problemas. O estudante que recebeu um treino de pesquisa
em Oxford possui indubitavelmente um método de orientar a pergunta,
abstraindo­‑se de todas as divagações, até encontrar a resposta que procura,
como o pastor encontra a ovelha tresmalhada. O estudante que estava ao
meu lado, por exemplo, e transcrevia diligentemente passagens de um tra‑
tado científico, extraía indubitavelmente de dez em dez minutos, ou cerca
disso, apenas o que era essencial. Tal o indicava os pequenos grunhidos de
satisfação, que de vez em quando emitia. Contudo, se uma pessoa não rece‑
beu, infelizmente, um treino universitário nesse sentido, a pergunta, longe
de receber resposta, escapa­‑se de um lado para o outro, como um rebanho
perseguido por uma matilha de lobos. Professores, sociólogos, clérigos,
romancistas, ensaístas, jornalistas, homens sem outras qualificações que
a de não serem mulheres afugentavam a minha simples e única pergunta
— Porque é que as mulheres são pobres? —, transformando­‑a em cinquen‑
ta perguntas; essas cinquenta perguntas acabavam por ser apanhadas pela
corrente, e transportadas para longe. Nem uma só página do meu bloco de
notas escapou a uns rabiscos. A fim de vos revelar o meu estado de espírito,
vou ler­‑vos alguns, explicando que a página tinha muito simplesmente o
título de MULHERES E POBREZA, em letras garrafais; o que se seguia
era, no entanto, qualquer coisa como:

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Situação na Idade Média das,


Hábitos nas Ilhas Fidgi das,
Veneradas como deuses pelos,
De mais fraca moral que,
Idealismo das,
Maior consciência das,
Habitantes das Ilhas do Mar do Sul, idade da puberdade
Entre,
Oferecidas em sacrifício a,
Pequeno tamanho do cérebro das,
Subconsciente mais profundo das,
Menos pilosidade no corpo das,
Inferioridade mental, moral e física das,
Amor pelos filhos das,
Maior longevidade das,
Musculatura mais fraca das,
Força afectiva das,
Vaidade das,
Educação superior das
A opinião de Shakespeare sobre as,
A opinião de Lorde Birkenhead sobre as,
A opinião do Deão Inge sobre as,
A opinião de La Bruyère sobre as,
A opinião do Dr. Johnson sobre as,
A opinião de Mr. Oscar Browning sobre as,

Nesta altura respirei fundo e acrescentei à margem: Porque é que Samuel


Butler afirma: «Os homens inteligentes nunca expressam o que pensam das
mulheres»? Ao que parece, os homens inteligentes não se expressam sobre
qualquer outra coisa. Continuei, no entanto, recostada na cadeira a contem‑
plar a vasta cúpula, em que eu era apenas um único mas agora confuso pen‑
samento no que se refere a infelizmente homens inteligentes nunca terem a
mesma opinião acerca das mulheres. Eis o que afirma Pope:
A maior parte das mulheres não tem personalidade.
E é a seguinte a opinião de La Bruyère:
Les femmes sont extrêmes; elles sont meilleures ou pires que les hommes…
em franca contradição com os argutos comentadores da sua época. São ca‑
pazes ou não de receber educação? Napoleão defendia o segundo ponto de
vista. O Dr. Johnson achava­‑as perfeitamente capazes. Têm alma ou não?

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Alguns selvagens afirmam que não. Outros declaram, pelo contrário, que
são semi­‑deusas e adoram­‑nas por esse motivo. Alguns eruditos declaram­
‑nas de mente mais superficial; outros consideram­‑nas capazes de tomada
de consciência mais profunda. Goethe venerou­‑as; Mussolini despreza­‑as.
Em tudo o que se consultasse, era de chegar à conclusão que os homens
pensavam sobre as mulheres, e faziam­‑no de maneira diferente.
Decidi que era impossível desembrulhar toda aquela confusão, e olhei
com inveja para o meu vizinho leitor que tirava as suas notas com perfeita
clareza e método, classificando­‑as frequentemente com um A, B, ou um C,
ao passo que o meu bloco abundava em rabiscos ilegíveis e contraditórios.
Era desencorajador; sentia­‑me confusa e humilhada. A verdade escapara­‑se­
‑me por entre os dedos, não deixando uma só gota.

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W.B. YEATS. «The second coming», in The Collected Poems. Tradução


inédita de Simão Valente. [1919] 1983. Nova Iorque: Simon and Schuster.
186.

Girando e girando no círculo em expansão


O falcão não ouve o falcoeiro;
Tudo se desmorona. O centro cede.
A anarquia vulgar liberta­‑se no mundo
A maré de sangue rubro liberta­‑se,
A cerimónia da inocência é por todo o lado afogada;
Aos melhores falta toda a convicção, mas os piores
Estão cheios de apaixonada intensidade.

É certo, uma revelação está próxima;


É certo, o regresso do Messias está próximo;
O Regresso do Messias! A estas palavras
Uma vasta imagem do espírito do mundo
perturba­‑me a visão: nas areias do deserto
Uma forma leonina e cabeça humana,
Um olhar vazio e cruel como o sol,
Move as lentas coxas, à sua volta voam
Sombras furiosas de pássaros do deserto
E a escuridão cai de novo. Mas agora sei
Que vinte séculos de sono de pedra
Roçaram o pesadelo pelo berço que balança,
E que imunda besta, sua hora enfim chegada
Se arrasta até Belém para nascer?

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NOTAS CRÍTICAS

ADAM MICKIEWICZ (1798­‑1855), nobre polaco nascido na Bielorrússia e forma‑


do na Lituânia, país imortalizado nos versos da sua epopeia nacional em 12 cantos,
O Senhor Tadeu: «Lituânia, Pátria minha, tu és como a saúde.» Poeta, dramaturgo,
mestre em filosofia, activista político e religioso, jornalista, tradutor, militar e pro‑
fessor no Collège de France. Considerado o maior poeta do romantismo polaco é,
juntamente com J. Słowacki e Z. Krasiński, um dos três bardos eslavos. Viveu numa
época em que a Polónia se encontrava subjugada pela Rússia, Prússia e Áustria
(1772-1918) e as suas actividades patrióticas valeram­‑lhe a deportação para a Rússia,
onde escreveu Konrad Wallenrod, epopeia da história da Prússia e da Lituânia. Na sua
obra, destacam­‑se ainda a Ode à Juventude (1820), exortação à luta pela liberdade, as
Baladas (1822), textos poéticos de inspiração regional, popular e moral, e o drama
em quatro partes Dziady (1823­‑1860), inspirado num ritual eslavo e báltico. (Teresa
Fernandes Swiatkiewicz)

AGOSTINHO DE HIPONA (354­‑430). Embora conhecido como sendo de Hi‑


pona, cidade da actual Tunísia, de que foi bispo a partir de 396, Aurelius Augusti‑
nus, ou Santo Agostinho, nasceu em Tagaste, também na Tunísia. O seu percurso
intelectual foi marcado inicialmente pela leitura dos diálogos filosóficos de Cíce‑
ro, mormente do Hortensius, hoje perdido. Mas a sua inquietação interior leva­‑o a
aderir primeiro ao maniqueísmo e posteriormente ao neoplatonismo. Aos 33 anos,
sendo professor de retórica em Milão, uma das quatro capitais do Império Roma‑
no, recebeu o baptismo das mãos de Ambrósio, bispo desta cidade. As Confissões,
primeira autobiografia da literatura latina cristã, escritas cerca de 400, relatam o
que foi a sua vida até 387 e, de uma forma particularmente dramática, o combate
interior que o levou à ruptura com o passado. Escreveu uma obra extensíssima que
marcou para sempre a cultura cristã. São sem dúvida obras de valor universal para
todos os tempos o De Doctrina Christiana, a Cidade de Deus, a Trindade e as Confissões.
(Arnaldo Espírito Santo)

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ALBERT CAMUS (1913-1960) foi um escritor francês nascido na Argélia. Além de


romancista, foi um dramaturgo e filósofo densamente implicado em discussões éti‑
cas e morais, que explora quer no ensaio quer na sua obra literária, como por exem‑
plo A Peste, A Queda ou O Estrangeiro. Recebeu o Prémio Nobel em 1957. Foi ainda
um jornalista reconhecido como exemplo da resistência ao poder nazi em França.
A sua obra, uma das mais fortes no pensamento existencialista, no quadro do ro‑
mance-problemático, encontra no excerto escolhido, de O Estrangeiro, um exemplo
emblemático. Nele, o protagonista, Mersault, encontra brevemente várias outras
personagens, tendo com elas breves diálogos que o desenham como um protagonis‑
ta opaco, para os outros e para si próprio. A falta de sentido e, por isso mesmo, a in‑
teira liberdade de qualquer dos seus actos são aqui apresentadas sem comentários.
(Helena Carvalhão Buescu)

ALDOUS HUXLEY (1894­‑1963). Apesar da sua débil visão ou por causa dela,
o pensamento de Aldous Huxley é de uma enorme abrangência. Em 1932 publica
Admirável Mundo Novo, distopia que o inscreve no grupo rarefeito dos autores pro‑
féticos. Se em 1984, de George Orwell, nos deparamos com uma sociedade que é
levada a amar o seu estado antinatural de alienação por via da violência, aqui a socie‑
dade é já tecnologicamente fabricada de modo a viver num estado de permanente
felicidade. Nesta obra que o tornou famoso, Huxley urge­‑nos a pensar a realidade
em que vivemos, instando­‑nos a não nos deixarmos fascinar com os avanços da tec‑
nologia, que podem ser usados perversamente quando em mãos erradas. «O preço
da liberdade» — diz­‑nos — «é a eterna vigilância», num repto de uma arrepiante
actualidade. (Jorge Beleza)

ALEKSANDR PÚCHKIN (Moscovo, 1799 – São Petersburgo, 1837), o «sol da poe‑


sia russa», como ficou conhecido, frequentou o liceu de Tsárskoe Seló, para os filhos
da nobreza, e cedo concitou ódios decorrentes dos seus ideais revolucionários e
porventura não alheios ao duelo que pôs fim à sua vida. Nada que lhe ensombrasse,
porém, o talento numa grande variedade de géneros — da poesia lírica ao drama,
ao romance ou à narrativa breve, aqui representada pela 1.ª Parte de um dos Contos
de Bélkin («O tiro») — ou lhe prejudicasse a fama de grande renovador das letras
russas. Poema e conto podem, por exemplo, ser lidos à luz do binómio vida/morte,
contrapondo­‑se, neste caso, a reflexão elegíaca sobre a condição humana presente
no poema à carnavalização dos seus limites no motivo da vingança que atravessa o
conto. (Maria Graciete Silva)

ALEKSANDR SOLJENÍTSIN (Kislovodsk, 1918 – Moscovo, 2008) estudou Física


e Matemática na Universidade de Rostov e combateu os alemães na Segunda Guer‑

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notas críticas 681

ra Mundial. Preso pela primeira vez em 1945, conheceu os campos de concentração


de Estaline, sendo expulso da União Soviética em 1974, onde regressou após 20 anos
de exílio. Distinguido em 1970 com o Prémio Nobel da Literatura, destacam­‑se,
para além da obra escolhida, O Pavilhão de Cancerosos ou O Arquipélago Gulag. Si‑
tuado em 1951, o décimo ano de prisão de Ivan Deníssovitch Chúkhov, o excerto
destaca­‑se por essa forma extrema de violência que é o isolamento do protagonista,
só interrompido por uma ou outra carta da mulher, que lhe fala de um mundo já de
todo desconhecido, de que a pintura de tapetes é sinédoque que, ainda assim, o faz
descobrir­‑se vivo. (Maria Graciete Silva)

ALESSANDRO MANZONI (Milão, 1785-1873) é um dos autores mais importan‑


tes da literatura italiana do século xix. A sua vida e obra estão indelevelmente liga‑
das ao risorgimento, o movimento cultural e político que conduziu à unificação de
Itália em 1861. Depois de uma infância e juventude cosmopolitas, entre Londres e
Paris, Manzoni regressa a Milão onde se dedica à escrita de teatro e poesia patrió‑
ticos, culminando esse trabalho com a sua obra mais importante, Os Noivos (1827),
romance histórico que alia uma trama amorosa com conflitos políticos no Ducado
de Milão no século xvi, então sob o domínio da coroa espanhola. À semelhança de
várias das óperas de Verdi (I Lombardi alla Prima Crociata, 1841; Nabucco, 1842; Les
Vêpres Siciliennes, 1851), o romance de Manzoni é uma alegoria da luta pela indepen‑
dência italiana. (Simão Valente)

ALEXANDER VON HUMBOLDT (1769-1859) foi um dos autores que, no final


do século xviii e primeira metade do século xix, mais contribuíram para uma filo‑
sofia da natureza e para uma literatura que nela encontra, por meio da representa‑
ção da paisagem, moldada através das viagens de exploração, dos seus escritos de
geógrafo, e das suas reflexões, uma ideia de «cosmos» como entidade simultanea‑
mente física e humana. Justamente, a sua obra intitulada Kosmos foi publicada, em
cinco volumes, o último dos quais póstumo, a partir de 1845, concebida como uma
súmula científica do conhecimento da natureza pelo homem, conhecimento a que
Humboldt acrescentava o sentimento dessa mesma natureza. Por esta razão, foi um
dos cientistas cujo trabalho mais imediato interesse despertou junto dos círculos
literários da primeira metade do século xix. (Helena Carvalhão Buescu)

ALEXANDER POPE (1688­‑1744) foi um poeta e dramaturgo inglês do período au‑


gustano. Católico, não pôde ingressar na universidade, mas teve uma educação rica,
propiciada por sacerdotes e pela sua sede de aprender. Politicamente, a sua afinida‑
de era com os conservadores, tendo pertencido ao Scriblerus Club com Arburhtnot
e Swift. Da vasta poética, destacam­‑se An Essay on Criticism (1711), sobre a arte da

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escrita, e o poema herói­co‑cómico, The Rape of the Lock (1712­‑14). As suas traduções
de Homero viriam a envolvê­‑lo numa querela de que resultou outra famosa epopeia,
The Dunciad (1728). An Essay on Man, o seu derradeiro poema sobre a relação do ser
humano com Deus, a Natureza e a sociedade, embora não terminado, constitui um
importante testemunho da perspectiva iluminista que então se afirmava. Os seus
finos epigramas continuam vivos, tanto na sua obra, como nas muitas apropriações
de outros autores. (Adelaide Meira Serras)

ALFRED DÖBLIN (1878-1957), médico (neurologista e psiquiatra) e escritor, vi‑


veu os momentos decisivos do século xx alemão, da Primeira Guerra Mundial à
fundação da República Federal da Alemanha, chegando a participar em movimen‑
tos revolucionários nos primórdios da República de Weimar (1918-1933), período
que acompanhou com empenho crítico, ao mesmo tempo que consolidava a sua
fama de escritor. Tendo começado com prosa expressionista (Die Ermordung einer
Butterblume, 1903-1911), e vivendo e trabalhando em Berlim, onde abriu consultório
num bairro operário, a cidade foi palco e tema de vários dos seus romances, dos
quais se destaca sem dúvida Berlim Alexanderplatz: A história de Franz Biberkopf (1929,
tradução portuguesa 1992). Neste que é o grande contributo alemão para o romance
modernista, Döblin recorre ao seu saber sobre a mente humana para traçar o per‑
curso de vida do anti-herói Franz Biberkopf que, num diálogo com a tradição alemã
do romance de formação, mas ao invés deste, vai de erro em erro até à tragédia final,
numa interpretação da condição humana no atribulado século xx que, no entanto,
abre a porta a alguma redenção. (Teresa Seruya)

ALFRED DE MUSSET (1810-1847) foi um poeta, romancista e dramaturgo francês


que encarnou na sua obra (e na sua vida) tumultos e perturbações sentimentais que
o romantismo cristalizou. O seu romance mais conhecido é La Confession d’un enfant
du siècle (1836), cuja dimensão autobiográfica muitos dos desencantados escritores
da primeira metade do século xix reconheceram – como, na sua recolha poética
Les Nuits (1835-37), a intensidade da paixão amorosa. Para o teatro escreveu vários
textos, como On ne badine pas avec l’amour (1834), mas é Lorenzaccio (1833), uma peça
considerada irrepresentável pelas exigências técnicas que a particularizam (subiu
à cena pela primeira vez no final do século, com Sarah Bernardt), que melhor ma‑
nifesta a forma como o passado histórico (neste caso o século xvi) serve a Musset
para dar conta dos tumultos políticos e pessoais do seu próprio século. O anti-herói,
impossível na modernidade, que Lorenzaccio é, torna-se, assim, o emblema do que
deixa de ser, sem explicação. (Helena Carvalhão Buescu)

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notas críticas 683

ALFRED TENNYSON (Lincolnshire, 1809 – Sussex, 1892) destacou­‑se como um


dos maiores poetas da Inglaterra vitoriana. Com grande domínio sobre a métrica e a
versificação, Tennyson fez confluir na sua obra tradições poéticas diversas e até he‑
terogéneas, da mitologia clássica, patente em «Ulisses» (1842), poema no qual reen‑
contramos o herói homérico em idade avançada, frustrado agora com a sua própria
ânsia de voltar a partir em viagem, às lendas arturianas, que haviam inspirado tam‑
bém boa parte da poesia romântica da primeira metade do século xix, visíveis em
composições como, entre outras, «A Senhora de Shalott» (1833). A atracção do poeta
por motivos medievais e românticos tornou­‑o uma das maiores influências na poe‑
sia e na pintura produzidas pelos membros da Irmandade Pré­‑Rafaelita. Tennyson
foi poeta laureado entre 1850 e 1892. (Amândio Reis)

ÁLVAR NÚÑEZ CABEZA DE VACA (Jérez de la Frontera, 1490 – Sevilha, 1559),


oriundo de uma família nobre, mas empobrecida, participou, em 1527, numa mal­su‑
cedida expedição à Florida, de que viria a ser um dos quatro sobreviventes. Relato de
viagem redigido por uma espécie de dever moral de quem, tendo fracassado na missão
de conquista, se sente compelido a dar notícia do que viu, Naufragios (1542) — que na
edição de 1555 surgiriam pela primeira vez acrescidos de Comentarios — regista a expe‑
riência norte­‑americana do autor nos nove anos que se seguiram ao desastre da expe‑
dição capitaneada por Pánfilo de Narváez, durante os quais conheceu inúmeras prova‑
ções e percorreu a pé milhares de quilómetros, por lugares ignotos e sempre em con‑
tacto com as populações autóctones, cujos costumes anota. (Cristina Almeida Ribeiro)

ANDRÉ BRETON (Tinchebray, 1896 – Paris, 1966) viu o curso de Medicina inter‑
rompido pela Primeira Guerra Mundial e, servindo como enfermeiro, descobriu a
psicanálise, a que foi buscar algumas das bases do surrealismo, de que foi o mentor e
um dos principais escritores. Empenhado desde muito jovem (e muito por influên‑
cia de Apollinaire) numa redefinição moderna da vida poética, tenderá ao longo de
anos a deixar que a sua escrita e a sua vida se sobreponham e confundam, expostas
ambas ao acaso objectivo que dita os encontros e os sentidos e se impõe, de for‑
ma quase mágica, a qualquer desejo ou projecto individual. É assim em L’Amour fou
(1937), onde só a ternura que Aude, a filha de meses, lhe inspira e que vibra na carta
que, a fechar o livro, lhe endereça parece não ser da ordem do acidental. (Cristina
Almeida Ribeiro)

ANDRÉ GIDE (1869­‑1951). Escritor francês, ficcionista, dramaturgo e ensaís‑


ta, ganhou, em 1947, o Prémio Nobel da Literatura. Desde o início a sua figura e
a sua obra foram controversas, manifestando a sua determinação em confrontar
puritanismos de vária ordem (sexuais e políticos) e a revolta contra a capacidade de

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permanência deles. A sua obra primeiramente reconhecida foi Les nourritures ter‑
restres (1897) e, depois de várias outras, La porte étroite (1909) e a autobiografia inti‑
tulada Si le grain ne meurt (1924). Les faux monneyeurs (1925), obra mais classicamente
enquadrável na categoria «romance», e de que aqui foi escolhido um excerto, é um
texto de composição complexa e sinuosa, que coloca na sua acção central as rela‑
ções entre diversas personagens masculinas, bem como a forma como todas elas, de
uma maneira ou de outra, se interrogam sobre o que pode ser uma escrita literária
moderna. (Helena Carvalhão Buescu)

ANDRÉ MALRAUX (1901-1976) foi um dos principais autores franceses do século


xx, sendo reconhecido quer pela produção romanesca do período entre guerras, em
que se destacam os romances La condition humaine (1933) e L’Espoir (1937), quer pelos
posteriores ensaios de história e crítica de arte, reunidos nomeadamente no volume
Les Voix du silence (1951). Figura empenhada no meio intelectual e político europeu
durante décadas, Malraux desempenhou as funções de ministro da Cultura de Fran‑
ça entre 1959 e 1969. A sua obra testemunha uma atenção particular aos conflitos
sociais e políticos do seu tempo, como sejam as revoltas na China dos anos 1920
ou a Guerra Civil Espanhola, em conjugação com uma reflexão metafísica basea‑
da numa profunda confiança nas potencialidades da experiência artística. (Ângela
Fernandes)

ANNA AKHMÁTOVA (1889-1966) é o pseudónimo de Anna Andreevna Go‑


renko, uma das maiores vozes da poesia russa. Foi casada com Nikolai Gumiliov, co­
‑fundador do movimento acmeísta, ao qual a autora pertenceu, que consistiu numa
reacção poética e imagética ao exagero místico e desenraizante do simbolismo,
e em cujo manifesto se postulou o gosto pelo verso simples e claro. Influenciada
por Púchkin, no uso do léxico vernacular, bem como na sátira à sociedade russa,
a poesia de Akhmátova não repousou somente num movimento que, ao contrário
do futurismo, privilegiava uma relação com o passado literário. Gumiliov foi fuzi‑
lado em 1921 pelo regime soviético e é desse ano que data este poema do ciclo no
qual a autora revisitou o género elegíaco. O poema dirige­‑se a Gumiliov através de
uma justaposição anafórica de tempos que relembram a casa onde o casal viveu,
reflectindo sobre a situação política russa, a nostalgia e a memória. (Rafael Esteves
Martins)

ANTON TCHÉKHOV (Taganrog, 1860 – Badenweiller, 1904) é um autor russo.


Médico de profissão, foi um dos contistas mais prolíficos da segunda metade do
século xix, influenciando determinantemente a narrativa breve moderna, e em par‑
ticular autores como James Joyce, Katherine Mansfield ou Raymond Carver, o qual

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notas críticas 685

viria a escrever, em 1987, «Errand», um texto inspirado nas últimas horas da vida do
autor russo. Através da fortuna crítica obtida pelas suas últimas peças, A Gaivota
(1896), Tio Vânia (1897), As Três Irmãs (1901) e O Ginjal (1904), Tchékhov tornou­‑se
ainda um dos dramaturgos mais lidos e representados durante todo o século xx.
Enquanto a sua obra breve lida mais activamente, na esteira de Fiódor Dostoiévski,
com as camadas mais desfavorecidas da população russa, as suas peças são ambien‑
tadas no meio de uma burguesia decadente, tematizando o ennui finissecular e a
vida não vivida. (José Bértolo)

ANTONIN ARTAUD (Marselha 1896 – Ivry­‑sur­‑ Seine, 1948), cujo nome anda ge‑
ralmente associado a O Teatro e o Seu Duplo (1938) e ao conceito de «teatro da cruel‑
dade», foi poeta, dramaturgo, encenador, actor, estando ainda ligado ao cinema, ao
desenho e à pintura. Filho de pai francês e mãe grega, Antoine­‑Marie­‑Joseph Ar‑
taud, de seu verdadeiro nome, terá chegado a Paris em 1920, integrando por algum
tempo o grupo de André Breton. Co­‑fundador do Teatro Alfred Jarry (1935), viaja
pelo México e pela Irlanda (1937­‑38), seguindo­‑se quase uma década de internamen‑
tos em hospícios. Descoberto por acaso entre as páginas de um velho exemplar de
La révolution surréaliste, segundo informação do tradutor, o poema prima pela vio‑
lência das diatribes contra tudo o que signifique ruptura entre vida e arte. (Maria
Graciete Silva)

ANTONIO MACHADO (Sevilha, 1875 – Colliure, 1939) foi um importante poeta


espanhol do início do século xx, habitualmente incluído na chamada Geração de
98. A sua estreia poética, com o volume Soledades (1903), revelava a herança simbo‑
lista, que viria a evoluir para um lirismo mais próximo dos temas sociais, e da ela‑
boração do romanceiro tradicional, com a publicação de Campos de Castilla (1912).
Colaborou com o seu irmão, Manuel Machado, na composição de peças de teatro,
em especial de ambiente andaluz, de que se destaca La Lola se va a los puertos (1929).
Cultivou uma poesia de pendor intimista e filosófico, a que se juntou o empenha‑
mento político, nomeadamente após o início da Guerra Civil; veio a falecer durante
a sua fuga para França, em 1939. (Ângela Fernandes)

ANTONIO TABUCCHI (Pisa, 1943 – Lisboa, 2012) será provavelmente um dos


autores italianos mais conhecidos do público português. Na sua carreira académica
foi um dos mais insignes lusitanistas da sua geração, tendo tido um papel decisivo
na divulgação da obra de Fernando Pessoa além­‑fronteiras nos anos 80 e 90, quer
como investigador quer como tradutor. A sua produção literária encontra­‑se igual‑
mente ligada a Portugal, em particular os seus romances Afirma Pereira (1994) e A
Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro (1997). Tabucchi frequentemente combina nas

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suas obras um enquadramento histórico em que explora o contexto político com


indagações existenciais, como é o caso de O Tempo Envelhece Depressa (2009), obra
da qual transcrevemos o nosso excerto. (Simão Valente)

APULEIO (Madauros, c. 125 d.C.) Tendo nascido na actual Argélia, estudou em


Cartago e posteriormente em Atenas. Considerava­‑se a si próprio um filósofo pla‑
tónico, escrevendo vários textos filosóficos e dedicando­‑se à oratória de aparato,
tratando qualquer assunto com elegância e musicalidade e desenvolvendo activida‑
de como conferencista itinerante. A sua obra mais conhecida é O Burro de Ouro, cujo
título original é Metamorfoses, em 11 livros. O protagonista, Lúcio, é transformado
em burro pelas feiticeiras da Tessália, por engano, passando a maior parte da obra,
de carácter divertido e brejeiro, sob esta forma asinina. Uma das secções, a novela
de Amor e Psique, é um dos passos mais famosos, tendo circulado autonomamente.
No último livro, Lúcio recupera a forma humana, por intervenção da deusa Ísis,
comendo rosas, torna­‑se devoto da deusa e dirige­‑se a Roma para ser iniciado nos
seus mistérios. Juntamente com o Satyricon de Petrónio, representa o essencial do
romance latino, género considerado inferior pelos literatos da Antiguidade, mas
que era apreciado pelo público. (Luís Cerqueira)

ARISTÓTELES (384 – 322 a.C.). Tal como grande parte das suas obras, também
a Poética é resultado de um contexto escolar, tendo sido revista e alterada, pelo
que não é possível datar a versão final. Representa uma reflexão filosófica sobre
um âmbito da acção humana — a mimesis — entendida como natural e geradora
de conhecimento. Aristóteles procurou aplicar um modelo teórico que permitisse
enquadrar a poiesis do ponto de vista conceptual (contra Platão, Rep. 3, 10). Entre os
vários contributos para a história da literatura, cumpre destacar três: a poesia como
uma forma de mimesis (1­‑4), à semelhança de outras artes (música, dança e pintura);
a importância da história da poesia para a identificação e interpretação da poesia
(4­‑ 5); a definição do conceito de género (1­‑3). A intenção inicial seria examinar os
três géneros: épica, tragédia e comédia. A perda do livro 2, dedicado à comédia,
e o facto de a épica ser integrada na abordagem da tragédia, deixa­‑nos um tratado
dedicado sobretudo à tragédia. Apesar da influência exercida no Renascimento e
gerações seguintes, a recepção deste tratado na Antiguidade parece ter sido limita‑
da. (Ália Rodrigues e Maria do Céu Fialho)

ARTHUR RIMBAUD (1854­‑1891). Em 1871, escreveu «É preciso fazer­‑se vidente».


E foi­‑o, desenvolvendo uma poética da «alteridade» (Manuel Gusmão) que, pela du‑
pla transfiguração dos sentidos e da linguagem, liberta a poesia das contingências
da rima e da retórica, impondo um novo tipo de imagem e de discurso. Se a carga

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notas críticas 687

prosódica da sua poesia inicial se «arejou» e «simplificou» depois em composições


cujos novos acordes (ímpares) parecem provir de ritmos mais elementares e essen‑
ciais, os textos de Une saison en Enfer (1873) e das Illuminations (1886) deram corpo
a uma forma livre de pensamento escrito em que a velha distinção entre prosa e
poesia deixou de fazer sentido. «É preciso ser­‑se absolutamente moderno», também
afirmou, e, mais uma vez, cumpriu esse desígnio conduzindo o «Bateau Ivre» da sua
vida e poesia a continentes e experiências que extraíram de si qualquer ilusão quan‑
to à literatura. (Fernando Guerreiro)

ARTHUR SCHNITZLER (Viena, 1862-1931), de quem se conhecem as afinida‑


des com Freud, foi médico como o pai, prestigiado clínico de ascendência judaica.
Analista sagaz da Viena finissecular, integrou, com Hofmannsthal, a tertúlia literá‑
ria do café Griensteidl (Jung Wien) e foi um dos últimos grandes autores do Império
Austro-Húngaro, não tendo chegado a ver os seus textos proibidos pelo nazismo.
Dramaturgo e ficcionista, a sua obra oscila entre o grotesco de A Cacatua Verde
(1903) e a novidade do monólogo interior de O Tenente Gustl (1900) e Menina Else
(1924). Bem representativo da ironia que perpassa e modaliza o dilema vivido pelo
protagonista, o excerto de O Tenente Gustl constitui um bom exemplo das marcas e
dos efeitos da corrente de consciência. (Maria Graciete Silva)

ARTUR LUNDKVIST (1906­‑1991). Autor sueco, introdutor do modernismo no


seu país, filiando a sua própria poesia no movimento surrealista. A sua orientação
estética e política era internacional, e nas décadas de 20 e 30 estabeleceu contac‑
tos com as vanguardas e os movimentos comunistas em França e Espanha. Depois
da Segunda Guerra Mundial, viajou também por outros continentes. Traduziu do
francês e do espanhol, e foi ele mesmo traduzido globalmente. Entre 1969 e 1986
desempenhou as funções de secretário do Prémio Nobel de Literatura. A sua enor‑
me obra atravessa todos os géneros literários, acrescentando­‑lhes experimentações
literárias como os «afolirismos», pequenos textos situáveis entre o poema em prosa
e o breve ensaio crítico, mas de forma de tal modo breve que se podem considerar
sobretudo como exemplos da natureza aberta da poesia. (Svend Erik Larsen)

ATTILA JÓZSEF (1905­‑1937) é filho da emergência proletária de Budapeste (Kül‑


városi éj ­— Noite de Arrabalde, 1932), cuja miséria descreve. Vagueia entre Viena e
Paris, donde traz o verso livre expressionista, já surrealista e anarquizante; conviva
de Tzara e Éluard, lê Hegel, Marx e Freud. Expulso da universidade, do amor e do
Partido Comunista, humilhado e faminto, qual imagem de nação desvalida entre
duas guerras perdidas, suicida­‑se sob um comboio. Poesia política de uma solidão
estreme, apesar de instantes luminosos, os seus livros — como Szépség koldusa (Men‑

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digo da Beleza), 1922, Nem én kiáltok (Não Sou Eu Que Grito), 1925, ou Nagyon fáj (Dói
muito), 1936— dão­‑nos variações temáticas e formais que dele fazem o mais influen‑
te poeta húngaro. (Ernesto Rodrigues)

AUGUST STRINDBERG (Estocolmo, 1849­‑1912) foi um escritor sueco particular‑


mente reconhecido internacionalmente pela sua escrita para o teatro, âmbito no qual
produziu alguns dos textos mais revolucionários do século xix. Em grande medida su‑
cessor de Ibsen, Strindberg foi ainda mais longe do que o autor norueguês na sua que‑
bra com convenções até então vigentes, nalguns passos chegando a empregar técnicas
que só mais tarde terão expressão plena com o expressionismo de Frank Wedekind
ou o surrealismo de Alfred Jarry. A obra que aqui reproduzimos é Menina Júlia, um
exemplo do naturalismo dramático por excelência: enredo simples, motivações pas‑
sionais, ênfase na caracterização psicológica de personagens cujas acções são ditadas
pela pressão do meio e pela hereditariedade. (Simão Valente)

BALDESAR CASTIGLIONE (Mântua, 1474­– Toledo, 1529), aristocrata, prático na


arte da diplomacia e da vida palaciana, desempenhou funções de Núncio Apostóli‑
co junto de Carlos V, a partir de 1524, i.e., num período marcado por tensas relações
(recorde­‑se o saque de Roma — 1527) entre o papa e o imperador. Na obra de Casti‑
glione contam­‑se quase 2000 cartas em língua vulgar, diversas composições poéticas,
em latim ou em vernáculo, um prólogo à comédia Calandria, de Bibbiena (1513), e o
celebérrimo Libro del Cortegiano, cuja redacção, iniciada c. 1513, só terminaria c. 1524.
Segundo o autor, imprimir o texto, em 1528, tornou­‑se necessário para disciplinar uma
difusão que ameaçava escapar ao seu controlo. Muito conhecido, na Europa, por su‑
cessivas edições e por traduções como a de Juan Boscán, Il libro del Cortegiano é um
diálogo que se desenrola na corte de Urbino, em 1506, e que representa um jogo áuli‑
co: serão após serão, em roda da duquesa Elisabetta Gonzaga, damas e gentis­‑homens
cultivam a definição de modelos e procuram «formar con parole un perfetto cortegia‑
no» e uma «donna di pallazzo». Com nítida melancolia, logo na dedicatória dirigida a
D. Miguel da Silva, Castiglione advertiu o seu leitor: daquela Urbino, já ceifada pela
morte, apenas a memória mítica restava. (Isabel Almeida)

BARBARA KORUN (Liubliana, 1963) é poeta, professora e dramaturga. Licenciou­


‑se em Língua Eslovena e em Literatura Comparada na Faculdade de Letras de Liu‑
bliana. Evolui de uma subjectividade intimista para um engajamento sócio­‑ético
sem que a linguagem poética se submeta a uma retórica activista. A sua paixão pelo
teatro levou­‑a a concluir que os pontos de vista poético e dramático são radicalmen‑
te diferentes. O olhar da dramaturgia está focado na situação em que as pessoas se
encontram condicionadas pelas emoções ou circunstâncias. Por seu lado, o olhar

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notas críticas 689

poético é derramado, absolutamente penetrante, subtil, estático. Interessa­‑se por


ambos os olhares e também pela interacção entre um e o outro. Destaca­‑se uma te‑
mática erótica muito mais ampla do que a perspectiva erótica tradicional: o sujeito
lírico vive o erotismo também na língua e no contacto com a palavra. Foi agraciada
com o Prémio Veronika. (Mateja Rozman)

BARTOLOMÉ DE LAS CASAS (1484­‑1566) foi um frade dominicano espanhol


que chegou a ser bispo de Chiapas, mundialmente conhecido por denunciar a
violência da colonização espanhola na América, em participar as matanças e o
consequente despovoamento dos territórios. A sua obra mais popular é Brevís‑
sima Relação da Destruição das Índias, impressa em 1552. Dirigida ao futuro Filipe
II, apresenta um panorama de horror e crueldades perpetrados pelos europeus
sobre os ameríndios, em que os primeiros são apresentados como ambiciosos,
invejosos, maus, injustos, pecadores e traidores e os segundos como inocentes,
ingénuos, humildes, pacíficos, simples, obedientes e ternos. Surge assim o «mito
do bom selvagem», desenvolvido posteriormente por outros autores, em especial
Rousseau. O frade sustenta também que os indígenas são frágeis e não suportam
doenças ou trabalhos duros, o que muitos vêem como um incentivo à escravatura
de africanos. (Isabel Araújo Branco)

«BEOWULF», poema escrito em inglês antigo, sobrevive num único manuscrito


copiado cerca do ano 1000 (Ms Cotton Vittelius a.xv), mas terá circulado oral‑
mente a partir do século vii. A acção decorre na antiga Escandinávia e centra-se na
luta de Beowulf com três criaturas, entre as quais Grendel, o habitante dos pânta‑
nos, que, durante a noite, ataca repetidamente o salão Heorot. É o combate entre
Beowulf e Grendel que aqui se apresenta. A obra reflecte sobre o ciclo de vida de
um herói e do seu povo e sobre a conduta ideal de reis e guerreiros, denunciando a
guerra e a traição. Revela como a história do mundo e do homem se inscreve num
tempo cósmico, desde a criação até à destruição de heróis, sociedades, civilizações
e eras, discorrendo sobre a omnipresença do destino que acaba na inevitável morte.
Os monstros que Beowulf enfrenta ao longo da vida simbolizam as forças do caos
e da violência causadas por agentes externos e pelo mal escondido no coração dos
homens. Possui, pois, o poema um tom elegíaco que parece sobrepor-se ao seu cariz
épico. (Angélica Varandas e Luísa Azuaga)

BERNARD DE VENTADOUR (século xii), activo em meados do século, é um tro‑


vador sobre cuja vida nada de seguro se conhece, mas cuja obra se distingue, mais do
que pelo número elevado de peças que a constituem (45) — boa parte das quais acom‑
panhada da respectiva melodia (20) —, pelo modo como nela se constrói o canto amo‑

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roso, num percurso as mais das vezes ziguezagueante, em contraste com o trajecto
rectilíneo por que optam outros, condicionados pela razão. Forjando a subordinação
do discurso às emoções, o poeta fá­‑lo oscilar de uma a outra, nunca enjeitando contra‑
dições ditadas por diferentes estados de humor, nem o imprevisto de notas de ironia
como a que encerra «Ao ver morrer a cotovia». (Cristina Almeida Ribeiro)

BERNARDO DE CLARAVAL (Dijon, 1090 – Mosteiro de Claraval, 1153) nasceu no


seio de uma família nobre da Borgonha, ingressou aos nove anos de idade na Escola
Canónica de Châtillon­‑sur­‑ Seine e aos 22 na Abadia de Cister, donde sairia em 1115
para fundar, no Vale de Langres, nova abadia cisterciense, a que ficaria ligado até ao
final da vida. Foi figura influente na Europa do seu tempo, tanto no plano religioso
como no político: impulsionou o culto de Maria, redigiu a Regra dos Templários, foi o
mentor da segunda cruzada. Canonizado em 1174, é Doutor da Igreja desde 1830. De‑
fendeu a austeridade e pureza monásticas, entregou­‑se com igual entusiasmo à oração
e ao trabalho manual e deixou um importante conjunto de escritos doutrinários e de
exaltação e entrega a um Deus de amor. (Cristina Almeida Ribeiro)

BERTOLT BRECHT (1898-1956). Figura incontornável na história do teatro do


século xx, a produção escrita de Brecht intensifica­‑se nos anos 1920 e várias pe‑
ças sobem aos palcos em Munique, Leipzig e Berlim. Inicia a sua reflexão sobre o
«teatro épico», o seu principal contributo para o teatro moderno. Com ele, Brecht
opõe­‑se ao teatro de matriz aristotélica, por este produzir um efeito de identifica‑
ção com a ficção em cena que anularia qualquer exercício crítico da parte do espec‑
tador. Escreveu numerosos textos para teatro, como A Mãe (1930), Terror e Miséria
no III Reich (1935), ou O Círculo de Giz Caucasiano (1945). Mas uma se destaca pelo
sucesso que obteve até hoje: A Ópera dos Três Vinténs (1928.) A crítica à sociedade
onde o dinheiro e o crime imperam estava já presente na ópera original de John Gay,
mas Brecht vai utilizar os signos teatrais, a sátira e a paródia para colocar o público
perante um espectáculo que expõe a realidade e os valores burgueses sem rodeios.
(Maria João Brilhante)

«BÍBLIA». Monumento de insuperável relevo religioso, histórico, jurídico, cultural


e literário, é uma referência fundamental da civilização ocidental, que com a poesia
grega de Homero epitomiza as formas essenciais de representação da realidade e
da experiência humana a ocidente. Significando etimologicamente «os livros», as
suas várias designações atestam uma centralidade absoluta: o livro, o livro dos li‑
vros, a sagrada escritura ou simplesmente as escrituras. Corpus textual a que dife‑
rentes tradições religiosas reconhecem inspiração divina, a Bíblia consubstancia na
sua aparente singularidade uma pluralidade de livros constitutivos de um cânone

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notas críticas 691

variável (o judaísmo circunscreve­‑o à Bíblia hebraica, Tanakh; o cristianismo abre­


‑o à Bíblia grega, dispondo­‑o em Antigo e Novo Testamentos; os textos à margem
são considerados pseudepígrafos, apócrifos ou deuterocanónicos). A Bíblia é o livro
mais difundido e traduzido de que há registo, sendo ainda o «grande código da arte»
(Blake), fonte inesgotável de inspiração artística e paradigma da própria ideia de
livro. (Gonçalo Cordeiro)

BLAISE CENDRARS (pseudónimo de Frédéric­‑Louis Sauser, La Chaux­‑de­‑Fonds,


1887 – Paris, 1961) é um dos nomes marcantes do modernismo e das vanguardas do
seu tempo. Cosmopolita e audaz, correu mundo e combateu na Primeira Guerra
Mundial. Cultivou diferentes géneros (da poesia ao romance e à reportagem), dia‑
logando com o cinema e as artes plásticas. Oswald de Andrade dedica­‑lhe Pau Brasil
e o seu nome anda, entre nós, associado ao Portugal Futurista e à tradução d’A Selva,
de Ferreira de Castro. Prosa do Transiberiano, em colaboração com Sonia Delaunay,
materializa no poema longo a vertigem do novo e da máquina, impressivo caudal
de atmosferas, memórias e ecos por vezes sarcástico. Assim é Paris, encruzilhada
mítico­‑simbólica, na sua associação a «Jehanne de France», a jovem prostituta de
Montmartre. (Maria Graciete Silva)

BORIS A. NOVAK (Belgrado, 1953) é poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor, pro‑


fessor, teórico literário e editor. Doutorou­‑se em Literatura Comparada na Facul‑
dade de Letras de Liubliana. Trabalhou como dramaturgo e editor. Foi presiden‑
te do PEN Clube da Eslovénia e vice­‑presidente do PEN Clube Internacional.
Actualmente é professor universitário na Faculdade de Letras de Liubliana. Tem
realizado uma busca da coincidência e associação entre a sonoridade e o signifi‑
cado das palavras. Com formas poéticas clássicas (soneto, balada, elegia, etc.) e
com uma opção por conteúdos preservados em mitos, histórias e poemas, revela
uma tendência esteticista. É tradutor do francês e escreve peças de teatro e poesia
infantil. Entre outros, recebeu o Prémio Sovre e o prémio da Fundação Prešeren.
(Mateja Rozman)

BORIS CRISTOV (1945). Estudou Filologia búlgara na Universidade de Veliko Tar‑


novo. Trabalhou como professor e jornalista. Escreve poesia e prosa. As suas obras
são estudadas nas escolas. Tem vários prémios nacionais. É traduzido em várias lín‑
guas, tais como: inglês, italiano, alemão, russo, sérvio. A sua poesia caracteriza­‑se
pela busca da plenitude da existência; pelo sentimento trágico do limite do conhe‑
cimento da verdade; pela impossibilidade de atingir a essência das coisas. (Zlatka
Timenova)

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BORIS PASTERNAK (Moscovo, 1890 – Peredelkino, 1960) cresceu num ambien‑


te afecto às artes e às letras, tendo trocado a música pela filosofia, depois de, ao
que tudo indica, ter querido ser compositor, corroborando a vocação artística da
família. Poeta consagrado, de início muito próximo das vanguardas europeias, con‑
cluiu em 1955 o seu romance Doutor Jivago, publicado em Itália (1957) muito antes
da edição russa (1988), que pôs termo a décadas de proibição. Centrado na figura
emblemática de Strelnikov, em clave rememorativa, o excerto inscreve­‑se na con‑
jugação das narrativas passional e política, no quadro de um triângulo amoroso de
que Lara é protagonista. Agraciado com o Nobel da Literatura em 1958, destaca­‑se
ainda a sua faceta de tradutor de clássicos como as tragédias de Shakespeare ou o
Fausto de Goethe. (Maria Graciete Silva)

BORIS VIAN (Ville d’Avray, 1920 – Paris, 1959) foi um autor, cantor e músico fran‑
cês cuja produção textual é multifacetada: poesia, romance, crítica jornalística, tea‑
tro, entre outras valências. Um elemento transversal a toda a sua obra é o seu ca‑
rácter cáustico e satírico, pondo em evidência as hipocrisias e pecadilhos da classe
média­‑alta francesa ou procurando chocar a sensibilidade burguesa. Em romances
como A Espuma dos Dias (1947) e O Outono em Pequim (1947), Vian mostra­‑se como
herdeiro do surrealismo dos anos 30, combinando o uso do absurdo e do fantástico
de autores como Breton com o pessimismo existencialista do pós­‑guerra à maneira
de Sartre. Paralelamente, enquanto músico e cantor, sobretudo de jazz e chanson
française, Boris Vian tornou­‑se num símbolo da boémia parisiense do seu período.
(Simão Valente)

BRAM STOKER (Dublin, 1847 – Londres, 1912) foi um romancista, poeta e contis‑
ta irlandês, famoso sobretudo pela autoria do romance gótico Drácula (1897), para
cuja escrita passou vários anos a investigar folclore europeu e narrativas mitológi‑
cas de vampiros. Drácula é um romance epistolar composto por cartas, registos de
diário, telegramas, recortes de jornais e diários de bordo. O enredo desenrola­‑se
através da montagem de textos que respondem às regras de cada um destes géne‑
ros, produzindo assim um efeito de realismo que contribuiu para tornar até hoje a
«história de vampiros» num popular subgénero romanesco e cinematográfico e num
imenso êxito comercial da indústria da cultura. (João Ferreira Duarte)

BRUNO SCHULZ (Drohobych, 1892-1942) foi um escritor e artista plástico po‑


laco, indelevelmente associado à sua cidade natal, actualmente situada na Ucrânia
Ocidental e aquando do nascimento do autor parte do Império Austro­‑Húngaro.
De família judaica, morre durante a ocupação nazi, assassinado por um oficial da

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notas críticas 693

Gestapo em retaliação pela morte do escravo judeu deste às mãos de outro oficial
da Gestapo, «protector» de Schulz. Grande parte da sua produção literária desapa‑
rece durante a Segunda Guerra Mundial, tendo chegado até nós alguma correspon‑
dência, fragmentos, a recolha de contos Lojas de Canela (1934) e o romance Sanatório
sob a Clepsidra (1937). É na primeira destas duas obras que é publicado o seu texto
mais conhecido, «A Rua dos Crocodilos», uma representação alucinatória do impac‑
to da modernidade nas cidades europeias. (Simão Valente)

C.F. RAMUZ (1878­‑1947). A experiência da dupla pertença — como autor de língua


francesa exógeno — eleva Ramuz ao protótipo do autor francófono, reconhecido
por Paris, mas enraizado na realidade histórica, geográfica, ideológica e linguística
romanda. Em Ramuz, a experiência identitária solda­‑se no cultivo de um estilo que
rejeita particularismos regionais e se quer universal. Ao celebrar a possibilidade da
beleza sobre a terra, o romance La Beauté sur la terre (1927) tematiza, por antinomia,
a problemática da imperfeição do mundo (que medos ancestrais sublimam ou agu‑
dizam na mitologia da montanha) e da solidão (vivida sob formas de a­‑sociabilidade
ou geradoras de violência). Visando uma formulação narrativa adequada, Ramuz re‑
configura com particular acuidade as categorias do género romanesco, consagrando
especial atenção à expressão da oralidade. (Maria Hermínia Laurel)

CAMILO JOSÉ CELA (1916­‑2002), escritor, editor e jornalista galego, foi Prémio
Nobel da Literatura em 1989. A sua obra multifacetada vai da poesia a várias mo‑
dalidades da ficção narrativa, da crónica aos livros de viagens, do guião cinemato‑
gráfico ao dicionário. Polémico e controverso, incorporou o lado provocatório das
vanguardas numa vertente de denúncia impiedosa próxima da crítica social de cariz
realista, vertida em linguagem crua e desprovida de concepções humanitárias, sen‑
do o romance La familia de Pascual Duarte (1942) considerado matriz do tremendismo
(corrente característica da narrativa do primeiro pós­‑guerra espanhol). La colmena
(1951) conseguiu o paradoxo de ser obra de um escritor franquista, ele próprio cen‑
sor, proibida pela censura franquista e só autorizada oficialmente em Espanha em
1963. (Fátima Freitas Morna)

«A CANÇÃO DOS NIBELUNGOS » é uma versão alemã de um conjunto de len‑


das medievais baseadas em personagens e acontecimentos verídicos da idade da
migração ou «invasões bárbaras» do século v. Por exemplo, burgúndios e hunos, in‑
cluindo Átila, figuram na narrativa. Mas o enfabulamento é profundo, tendo a his‑
tória sido trabalhada ao longo de centenas de anos e de forma diversa em diferentes
locais, originando versões díspares que têm mais de lendário do que de histórico.
No caso de A Canção dos Nibelungos, há uma ligação clara à cidade alemã de Worms,

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sugerindo talvez uma origem no Sul da Alemanha, e motivos cristãos mais óbvios
do que, por exemplo, na Edda Poética. Apesar disso, mantém­‑se o tema da demanda
heróica, incluindo um dragão, e o ciclo de vingança destrutivo que inclui o ouro do
Reno. (Hélio Pires)

«CANTAR DE MIO CID» (c. 1207), único poema épico da Idade Média hispânica,
anda associado ao nome de Per Abbat, para uns apenas copista, para outros autor
do cantar na versão que dele conserva o seu também único testemunho integral (um
manuscrito datado da primeira metade do século xiv), consagradora de um herói
cujo canto passou decerto por muitas vozes antes de ter registo escrito. A gesta
exalta as façanhas de Rodrigo Díaz de Vivar (c.1043­‑1099), cavaleiro castelhano que
se bate, tanto no plano militar como no plano político, em defesa da própria honra,
ora enfrentando inimigos muçulmanos, ora esgrimindo argumentos com adversá‑
rios internos. Ao fazê­‑lo, restaura a relação com o rei e contribui de forma decisiva
para o alargamento do reino e a consolidação do poder do monarca. (Cristina Al‑
meida Ribeiro)

CARL JOHAN LOHMAN (Estocolmo, 1694 — Tierp, 1759), filho de um imigran‑


te alemão, estudou em Uppsala e, já pastor, participou na desastrosa expedição no‑
rueguesa de 1718, durante a qual ganhou, como pregador, a admiração de Carlos XII.
Compôs versos de natureza religiosa e poesia de circunstância, ora associada a mo‑
mentos festivos, ora a acontecimentos infaustos. Não por acaso são de casamento e
funeral os poemas editados em 2007 num volume com introdução de Tranströmer,
que já em 1954 chamara a atenção para a qualidade da sua poesia, contribuindo para
a sua redescoberta. Como notou David Mourão-Ferreira, concentram-se na obra
de Lohman os grandes temas barrocos, entre os quais a fugacidade do tempo, que,
numa singular sucessão de metáforas, trata com mestria nos versos aqui reproduzi‑
dos. (Cristina Almeida Ribeiro)

CARLO GOLDONI (1707­‑1793) escreve a sua primeira peça aos 12 anos. Frequen‑
ta o colégio de jesuítas em Perúgia, onde descobre as comédias de Aristófanes, Me‑
nandro e Maquiavel. A sua vida de estudante de Direito em Pavia não o afasta da
leitura de comédias e começa a colaborar com vários teatros, fixando­‑se em Veneza
em 1734. A tradição da comédia de intriga (a soggetto) em que se baseava o teatro
italiano está patente em Il Servitore di Due Padroni (1745) e será o alvo da reforma
empreendida por Goldoni. O texto é escrito por completo, é composto por falas
que não possibilitam improvisação e por personagens sem máscaras e fantasias que
se afirmam como caracteres complexos cuja transformação o espectador irá des‑
cobrindo, ou melhor, irá reconhecendo através de acções «verosímeis» idênticas às

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da vida quotidiana de uma nova sociedade burguesa, como é o caso do texto em


apreço, La Locandiera (1751), a peça goldoniana mais vezes representada em Portugal
desde 1756. (Maria João Brilhante)

CEES NOOTEBOOM (Haia, 1933) é conhecido pelos seus romances, novelas, li‑
vros de viagens e poesia. Na juventude frequentou diversos internatos católicos,
aos quais atribui o seu amor pela leitura e cultura clássica. Desde cedo viajou pelo
mundo, encontrando-se nos lugares certos em momentos fulcrais. Em 1956 esta‑
va em Budapeste, em Maio de 1968 em Paris e em Novembro de 1989 em Berlim.
Reside em Amesterdão, Berlim e Espanha, país que elegeu como a sua pátria do
coração. A sua escrita caracteriza-se pela leveza poética aliada a um grande conhe‑
cimento da filosofia, literatura, história e história de arte. Diversas das suas obras
foram traduzidas para português: A História Seguinte (1993), Máscara de Neve (1995),
Rituais (2000), O (Des)caminho de Santiago (2003). Também os seus poemas figuram
em várias colectâneas de poesia publicadas em Portugal. (Patrícia Couto)

CESARE PAVESE (Santo Stefano Belbo, 1908 — Turim, 1950) é um dos grandes
poetas e ficcionistas italianos do século xx. Licenciado em Letras com uma tese so‑
bre Walt Whitman, destacam­‑se ainda as suas traduções de autores de língua ingle‑
sa como Dickens, Joyce ou Faulkner. Preso em 1935, sob a acusação de actividades
antifascistas, dá início ao seu diário O Ofício de Viver e publica no ano seguinte a sua
primeira obra poética, Trabalhar Cansa. Romance de chegada a múltiplos títulos,
A Lua e as Fogueiras, justamente célebre, corrobora a centralidade do vivido, na sua
dialéctica entre memória e esquecimento, presente também nos textos escolhidos.
De amor e morte se trata no poema epónimo do seu último livro de poesia, aqui
representado, dedicado a Constance Dowling, a jovem actriz americana conhecida
em Roma em 1949, com publicação póstuma. (Maria Graciete Silva)

«LA CHANSON DE ROLAND» (c. 1080) é a mais antiga canção de gesta france‑
sa, datando a sua versão mais conhecida, a do manuscrito de Oxford, dos finais do
século xi e assinada por um Turold, que opiniões críticas divergentes têm interpre‑
tado como nome de copista e como nome de autor. Mas, mesmo neste caso, aten‑
dendo até ao tempo que medeia entre os acontecimentos na origem da gesta (778) e
este registo escrito, o texto conhecido tem atrás de si uma longa tradição oral, que
decerto contribuiu para a mitificação do massacre de Roncevaux e dos seus pro‑
tagonistas. Considere­‑se ou não Rolando o seu herói, o canto épico, com o relato
pontuado por episódios líricos e dramáticos, tem na morte do sobrinho de Carlos
Magno um momento de grande valor simbólico e não menor intensidade poética.
(Cristina Almeida Ribeiro)

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CHARLES BAUDELAIRE (1821­‑1867) foi um dos grandes poetas franceses do sé‑


culo xix, tendo ainda deixado uma significativa obra de crítica de arte. Em certo
sentido, Baudelaire funda a poesia moderna com a sua obra Les fleurs du mal (1857),
constitutiva de tradições como a da flânerie (deambulação), do espaço urbano como
emaranhado de tempos, classes, espaços e personagens totalmente incompatíveis,
da erupção dos «males» que se constituem como matéria poética (o funeral, as ve‑
lhas desdentadas, o dândi, os estaleiros da reconstrução de Paris), tudo isto coberto
pela figura de um Poeta que simultaneamente pertence ao que descreve e dele se
distingue. Estilisticamente, e como precursor do simbolismo, conjuga a materiali‑
dade do mundo com a dimensão do imaginário, para sempre perdido ou inatingível:
«là­‑bas, tout n’est que luxe, calme et volupté». (Helena Carvalhão Buescu)

CHARLES DICKENS (1812­‑1870) foi um jornalista, escritor e editor britânico,


por muitos considerado o maior romancista vitoriano. Estreou­‑se com a publicação
de contos e ensaios em periódicos, mas foi a obra Os Cadernos de Pickwick (1836­‑1837)
que lhe trouxe a fama nacional e internacional, publicando depois disso vários ro‑
mances, primeiro através de folhetins mensais ou semanais de grande sucesso e só
depois em volume. Entre os seus romances mais famosos contam­‑se Oliver Twist
(1837­‑1839), David Copperfield (1850) e Hard Times (1854), protagonizados por crian‑
ças e alegadamente inspirados na sua própria infância infeliz. A sua obra destaca­‑se
quer por ter criado algumas das personagens romanescas mais memoráveis, quer
pela crítica social e denúncia das dificuldades da vida das classes sociais mais bai‑
xas, quer pelo discurso caracterizador e individualizante das suas personagens, quer
ainda pela ironia, o humor, o sentimentalismo e a sátira social que as atravessam.
(Alexandra Assis Rosa)

CHARLOTTE BRONTË (1816­‑1855) foi a terceira de seis irmãos duma família do


Yorkshire cedo marcada pela tragédia: a morte precoce da mãe e das irmãs mais
velhas. Vivendo isoladas no presbitério de Haworth, as crianças, Charlotte, Patri‑
ck Branwell, Emily e Anne, entregavam­‑se a jogos imaginativos envolvendo reinos
exóticos e aventuras protagonizadas por personagens arrebatadas que se materia‑
lizavam em poemas registados em livros minúsculos. Ganharam aí o gosto pela es‑
crita que daria azo à publicação, sob pseudónimo, dos romances de estreia das três
irmãs, com destaque para o de Charlotte, Jane Eyre (1847). Após uma estadia em
Bruxelas, no Pensionnat Héger, e um caso de amor não correspondido, Charlotte
regressa a Inglaterra onde acabará por casar. Morre precocemente, grávida, não sem
antes ter publicado outros três romances: Shirley, Vilette e The Professor. A poesia das
três irmãs fora, entretanto, dada à estampa em volume conjunto, no ano de 1846.

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(Isabel Fernandes)
CHATEAUBRIAND (1768-1848) foi um poeta e romancista romântico francês,
tendo ainda escrito drama e ensaio. A sua obra-prima foi o texto de memórias co‑
nhecido como Mémoires d’Outre-Tombe, onde se manifestam os traços maiores da sua
obra anterior. Tendo tido uma vida de grandes viagens e muita perturbação política,
a sua obra reflecte um conjunto de características de grande alcance romântico:
a melancolia, a tendência para uma fraternidade com a natureza, o exotismo, a re‑
flexão religiosa. Estas características fundem-se diferentemente em obras como
Le génie du christianisme, Atala e René, sendo desta última obra que é retirado o
capítulo apresentado. Nele encontramos um herói assombrado pela solidão, sau‑
dade e melancolia, que apenas em exílio consegue falar do tabu que toda a vida o
acompanhara: o amor de carácter incestuoso entre ele e a sua irmã Amélie. (Helena
Carvalhão Buescu)

CHODERLOS DE LACLOS (1741­‑1803) foi militar de carreira para garantir a sua


ascensão social, mas o desinteresse pela vida castrense acordou nele o prazer da es‑
crita. Cultor de quase todos os géneros, celebrizou­‑se com As Ligações Perigosas (1782),
que, considerado então um romance escandaloso (perda da inocência de Cecília de
Volanges, recém­‑saída do convento; adultério da «esposa virtuosa» Madame de Tour‑
vel), ficou como uma das obras­‑primas do século xviii, sobretudo por recorrer a um
discurso narrativo que sugere mais do que nomeia. O relato da sedução metódica le‑
vada a cabo por Valmont, incentivado pela marquesa de Merteuil, não faz a apologia
da libertinagem. Destaca­‑se no texto a defesa de uma educação feminina adequada;
e a escolha do género epistolar, pela sua natureza intimista, revela a sensibilidade do
escritor para contornar o anátema de obra licenciosa. (Eugénia Leal)

CHRÉTIEN DE TROYES (século xii), de cuja vida se conhece apenas, pelas de‑
dicatórias que lhes faz, a ligação a patronos como Marie de Champagne e Philippe
d’Alsace, é autor seguro de algumas composições líricas e de cinco romances ar‑
turianos, que, diversamente estruturados, constituem belas demonstrações de ars
narrandi e deixam perceber que não por acaso reivindica Chrétien, em especial no
prólogo de Érec et Énide, uma autoridade fundada na capacidade de organizar e dar
sentido a materiais previamente existentes. Perceval, apesar de se encontrar incom‑
pleto (devido, presume­‑se, à morte do poeta) ou talvez por isso mesmo, foi desses
romances o que teve maior repercussão imediata em continuações e traduções.
Nele, o cortejo do graal é um episódio de capital importância, tanto pelo que sig‑
nifica, enquanto falha, no percurso iniciático do imaturo protagonista, como pelos
desenvolvimentos que o seu potencial simbólico encontrará, com a cristianização,
em todo o ciclo do graal. (Cristina Almeida Ribeiro)

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CHRISTINA ROSSETTI (1830­‑1894) nasceu numa família dotada. O pai, Gabriele,


imigrante italiano, e os três irmãos, William Michael, Dante Gabriel e Maria, todos se
dedicaram à escrita. Dante Alighieri, o espírito tutelar da família, temperou o anglo­
‑catolicismo que pesou sobretudo na educação das raparigas. Christina demonstrou
precoce talento, embora a sombra dos irmãos e a sua condição feminina lhe dificultas‑
sem a aceitação na escola pré­‑rafaelita fundada por William e Gabriel, com seus ideais
de intensidade plástica, espiritualidade e pura arte. Contribuiu, porém, para a revista
do movimento, The Germ, sob pseudónimo. Entre os seus textos mais célebres conta­
‑se o poema longo «O mercado dos duendes», onde se exploram relações de sorori‑
dade, sexualidade feminina e senso vs. sensualidade, sendo este pendor igualmente
pronunciado em «Um aniversário», que exalta a exuberância da natureza e das aspira‑
ções do sujeito poético. Já outros poemas, como «Canção» ou «Recorda», atestam o
virtuosismo formal da poeta bem como um interesse pela morbidez como subversão
de convenções da ordem terrena. (Margarida Vale de Gato)

CHRISTOPHER MARLOWE (1564­‑1593). Foi dramaturgo, poeta e tradutor, sen‑


do responsável pela introdução do «blank verse» (pentâmetro jâmbico não rimado)
na estrutura formal do drama isabelino, estrutura essa também usada por William
Shakespeare. Estudou em Cambridge, mas, a partir de 1587, estabeleceu­‑se em Lon‑
dres. Aí, numa carreira literária que durou pouco mais de seis anos, traduziu dois
poemas do latim e escreveu as seguintes peças: Dido Queen of Carthage, Tamburlaine
the Great, Doctor Faustus (a sua obra mais famosa), Edward II e The Jew of Malta.
À excepção das duas primeiras, as suas peças foram publicadas postumamente, tal
como o poema inacabado «Hero and Leander». Ao seu temperamento desordeiro
somaram­‑se, entretanto, acusações de ateísmo e blasfémia, sendo certo que em
Maio de 1593 recebeu um mandado de prisão, que não chegou a concretizar­‑se devi‑
do a ter sido assassinado no final desse mês no contexto de uma briga. (Maria Isabel
Barbudo)

CÍCERO (Arpino, 106 a.C. – 43 a.C.) Foi morto pelos sicários de Marco Antó‑
nio, contra quem escrevera as Filípicas. Homo nouus, isto é, sem antepassados com
carreira política, dividiu a sua vida entre o otium do estudo, da produção de textos
filosóficos e de teoria retórica e o negotium da intervenção pública, quer como ora‑
dor forense, quer como político que chegou ao cume do poder, sendo cônsul em 63
a.C., ano em que Catilina conspirou para tomar o Estado. Cícero criou muitas das
palavras que ainda hoje usamos, no seu esforço por criar terminologia latina para
as ideias gregas. O seu latim foi o modelo que a Europa do Renascimento recupe‑
rou, para obviar à variedade e aos barbarismos do latim medieval, e na sequência
da disputa entre ciceronianos e erasmistas é a sua forma de escrever que vai servir

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de norma para o latim em prosa na Europa. É um dos autores mais influentes no


pensamento e na literatura ocidentais. (Luís Cerqueira)

CLAUDE SIMON (Antananarivo, 1913 – Paris, 2005), que, antes de se dedicar à


literatura, fez estudos de pintura, teve na juventude outras experiências marcantes,
associadas, quer às viagens que fez por vários países da Europa, da União Soviética à
Espanha republicana, quer à guerra em que combateu e foi feito prisioneiro. Tendo
conseguido evadir­‑se, volta a casa e começa a escrever contra o sem­‑sentido do que
vivera, publicando o seu primeiro romance em 1945. Elemento destacado do nou‑
veau roman nos anos 60, foi, em 1985, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.
Se em O Vento (1957) parece ainda ecoar a perplexidade face ao absurdo, que convoca
o retábulo barroco, em obras posteriores a escrita, visando produzir sentido e não
exprimir uma significação, viverá apenas do jogo, da aventura das palavras. (Cristina
Almeida Ribeiro)

CLAUDIO MAGRIS (1939), romancista, ensaísta, germanista, nasceu em Trieste,


Itália, num cadilho de culturas — italiana, germano­‑austríaca, eslovena, judaica e
grega. Essa pluralidade de culturas determinará a sua obra e a sua visão ampla do
mundo. Também a Literatura, «a Historiografia da Humanidade», que ensina desde
cedo, definem a sua sensibilidade, o seu amor à verdade e à ética (Alfabetos. Ensaios de
literatura, 2013). Cidadão activo e empenhado nas questões da vida pública, escreve
regularmente na imprensa italiana. No conjunto da sua obra destaca­‑se sem dúvida
Danúbio (1986), um relato de viagens e de memórias, individuais e históricas, que
tem início na nascente do rio, no Sul da Alemanha, e termina na sua foz, no Mar
Negro, Roménia. É uma viagem, real e metafórica, através da «Mitteleuropa», esse
«crisol de povos e culturas», dizimado na Segunda Guerra Mundial e com ele a cul‑
tura judaica que floresceu nas margens do Danúbio. (Luísa Afonso Soares)

CZESŁAW MIŁOSZ (1911-2004), polaco nascido na Lituânia, poeta, romancista,


ensaísta, historiador da literatura e tradutor. Prémio Nobel da Literatura em 1980.
Juntamente com os poetas T. Różewicz, Z. Herbert e W. Szymborska, pertence à
ínclita geração dos poetas polacos do pós­‑guerra, que ajustou contas com a Histó‑
ria e a crise de valores daí decorrente. Foi adido cultural da Polónia no estrangeiro
durante o regime comunista e, em 1951, exilou­‑se nos Estados Unidos, sendo os seus
livros boicotados na Polónia. A sua obra poética de cariz existencial, intelectual,
filosófico e moral parte da percepção de que a sobrevivência à guerra empossa o
poeta da missão de reconstruir, na literatura, os valores éticos e estéticos — Salva‑
ção (1945). O conjunto de ensaios A Mente Cativa (1953) e o romance A Tomada do
Poder (1953) são as obras em prosa mais conhecidas por constituírem uma análise

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do modus operandi da propaganda comunista na Polónia. Traduzido para 45 línguas.


(Teresa Fernandes Swiatkiewicz)

D.H. LAWRENCE (Nottinghamshire, 1885 – Vence, 1930). Primeiramente atacado


pela representação arrojada de certos aspectos da sociedade inglesa do século xx
e, num contexto mais universal, da natureza humana, em particular no que toca à
esfera amorosa e erótica, Lawrence foi alvo de uma reapreciação crítica que veio a
colocar a sua obra nos patamares mais altos do romance inglês. O carácter agita‑
dor da sua prosa confirmou­‑se quando, 30 anos após a sua morte, a versão integral
de O Amante de Lady Chatterley (1960) mereceu à Penguin um processo judicial por
obscenidade, do qual a editora saiu ilibada. É também sob o signo da liberdade e da
representação honesta, mas controversa, da sexualidade que Lawrence explora a re‑
lação entre os dois casais que figuram em Mulheres Apaixonadas (1920), uma sequela
do seu romance anterior, O Arco­‑Íris (1915). (Amândio Reis)

DANIEL DEFOE (c. 1660­‑1731), escritor e jornalista inglês, famoso pelo seu ro‑
mance Robinson Crusoe (1719), a que pertence o excerto apresentado. Autor prolífico,
com cerca de 300 obras publicadas (entre livros, panfletos e revistas), narra fre‑
quentemente os percursos problemáticos de personagens solitárias e em situações
de crise (como em Robinson Crusoe, Moll Flanders ou A Journal of the Plague Year).
Considerado por muitos como o primeiro romance inglês e constituindo uma das
mais famosas narrativas de viagens, Robinson Crusoe evidencia­‑se como romance de
descoberta, de encontro com o Outro e de reflexão sobre processos civilizacionais
heterogéneos. (Patrícia Infante da Câmara)

DANTE ALIGHIERI (1265­‑1321). Não basta dizer que compôs, c. 1293, Vita Nova;
que, pouco depois, preparou um pequeno cancioneiro celebrando o amor por uma
«donna pietra»; que no início do século xiv concebeu três tratados, cada um com
seu centro temático (filosofia, no Convivio; língua e poética, no De Vulgari Eloquen‑
tia; política, em Monarchia); que redigiu algumas epístolas; que construiu, desde
c. 1304 até perto do fim da vida, a Commedia, a que chamou também «poema sacro»
(Par., XXV, 1). Neste conjunto, importa detectar relações e observar como se tece
um exigente sentido de unidade e de totalidade: o autor assim o reclama, ao cultivar
formas de convergência e ao fazer sobressair engenhosos processos de palinódia.
Repare­‑se, por exemplo, no que significa, em pleno discurso de uma Francesca da
Rimini condenada ao Inferno (V, 100), o nítido eco de um verso da Vita Nova (XX,
1). Florentino de nascimento, Dante pagou cara a acção cívica e política; a sua ima‑
gem, porém, nunca deixou de a sublimar. «Exul immeritus», assinou em cartas; na
Commedia, onde inscreveu o nome (Purg., XXX, 55) e moldou pela palavra o carác‑

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notas críticas 701

ter de «tetragono ai colpi di ventura» (Par., XVII, 24), atribuiu, a si próprio, lugar
na «beata corte» do Paradiso que tão espectacularmente deu a ver. (Isabel Almeida)

DARIO FO (Varese, 1926 – Milão, 2016) foi um dramaturgo italiano, vencedor do


Prémio Nobel da Literatura em 1997. A concepção de teatro em Fo, contudo, vai
muito além da escrita, recuperando tradições performativas italianas e europeias
com grande recurso à improvisação, como as dos jograis medievais — veja­‑se a tru‑
pe no filme O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman. De maior alcance, contudo, é a
influência da commedia dell’arte, tradição barroca italiana em que o uso de acrobacias
e pantomima — ou seja, do corpo do actor — tem um papel central na produção
de significado. A paixão de Fo por formas teatrais antigas está evidenciada tam‑
bém nos seus romances, especificamente em A Filha do Papa (2014), uma biografia
ficcional de Lucrécia Bórgia em que o teatro renascentista tem papel de destaque.
(Simão Valente)

DENIS DIDEROT (1713-1784), importante escritor das Luzes francesas, para as


quais contribuiu decididamente pela edição, com o matemático D’Alembert, entre
1751 e 1772, da Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences et des Métiers. No plano
literário, abordou grande diversidade de géneros e registos, do conto ao romance e
ao teatro. Partindo de uma concepção quase «naturalista» de mimese como «verru‑
ga», desenvolveu um modelo de romance dialógico de que La religieuse e Jacques le
fataliste são bons exemplos. Não menos importantes para a sua obra são o diálogo
filosófico (Le rêve de D’Alembert) e a reflexão sobre o teatro, abordando a teoria do
drama (Entretiens sur Le Fils Naturel) e do actor (Paradoxe sur le comédien). Os seus
Salons encontram­‑se na origem do ensaio estético moderno de que Baudelaire, na
segunda metade do século xix, foi o continuador. (Fernando Guerreiro)

DEZSŐ KOSZTOLÁNYI (1885­‑1936). A poesia­‑quotidiano do primeiro presiden‑


te do PEN Clube húngaro está «no ritmo trepidante dos comboios, nos reflexos da
luz eléctrica, nas melodias escondidas no ruído das grandes cidades» (Gy. Lukács,
1907); próxima, ainda, de Esti Kornél (1933), narrando — ou nonchalant e com um
traço de emoção, ou cínico e desencantado — agruras de Europa intelectual. Freud
inspira os romances — Néro, a véres költő (Nero, o Poeta Sanguinário), 1922: o insucesso
artístico traumatiza quem se faz assassino; Aranysárkány (O Papagaio Dourado), 1924:
dor e fugacidade envolvem um destino, até ao suicídio; Pacsirta (Cotovia), 1924, ou
como uma jovem feia, sem marido, envelhece junto dos pais e os tiraniza; em Édes
Anna (Doce Ana), 1926, uma criada fiel indiferente à sorte mata os patrões. (Ernesto
Rodrigues)

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DINU FLAMAND (1947) é um dos grandes poetas romenos da contemporaneida‑


de. Foi desde cedo um intelectual empenhado, como escritor, jornalista e tradutor,
na denúncia da ditadura romena, tendo-se exilado em Paris nos anos 80. Os vários
livros de poesia que escreve caracterizam-se por uma intensa presença humana e
material (Migratia pietrelor, Frigul intermediar), e por uma densidade do tempo que
se manifesta através da melancolia e da nostalgia. Trata-se de um «tempo perdido»
que só a poesia pode resgatar, transformando o incomunicável em palavra escrita e
lida. É também esse o papel do resgate da variedade das tradições poéticas na sua
obra, trazendo para o presente da leitura a memória do que antes foi escrito. Várias
das suas obras estão traduzidas em diversas línguas, e em português saiu em 2017 o
volume intitulado Sombras e Falésias. (Helena Carvalhão Buescu)

DORIS LESSING (1919­‑2013). Romancista, contista, ensaísta. Escritora do mun‑


do, cronista dos tempos, compulsiva contadora de histórias. Em seis décadas de
trabalho, evita fórmulas, esquiva­‑se a pensamento alinhado, (sub)verte géneros di‑
tos menores, desafia estruturas ditas estáveis. Questiona divisões binárias: pessoal
e político, corpo e mente, masculino e feminino. Raça, classe, impérios e seus des‑
pojos, relacionamento entre a consciência colectiva e o indivíduo atravessam­‑lhe a
obra e caracterizam o seu (nosso) desassossego. Explorando desde cedo caminhos
(então) novos para uma escrita mais íntegra e inteira, ousa interpelar o corpo femi‑
nino. Provocadora. Plural. Dos trabalhos ficcionais e/ou autobiográficos, destaque
para The Memoirs of a Survivor (1974), Under my Skin (1994) e Alfred and Emily (2008).
Neste se despede da escrita; de certo modo, também da vida. The Golden Notebook
(1962), interpelação do escrever e do viver na contemporânea idade, monumento
metaficcional e pós­‑moderno, é exemplo maior. (Luísa Maria Flora)

DYLAN THOMAS (Swansea, 1914 – Nova Iorque, 1953) foi um poeta galês reco‑
nhecido não só pela sua poesia, mas também pela colectânea de narrativas autobio‑
gráficas intitulada (por referência a James Joyce) Portrait of the Artist as a Young Dog
(1940) e pelo drama radiofónico Under Milk Wood (1954). A publicação de Eighteen
Poems (1934) e Twenty­‑Five Poems (1936) (que incluía os muito populares «The hand
that signed the paper», «And death shall have no dominion») consagrou a reputação
de Thomas enquanto poeta «difícil» e «obscuro», na realidade representante de uma
espécie de segundo modernismo inglês, tal como o seu contemporâneo Malcolm
Lowry (1909­‑1957), em cuja poesia a palavra, a sonoridade e a imagem são postas em
primeiro plano muitas vezes em detrimento da lógica gramatical e da referenciali‑
dade. Tal «obscuridade», bem como as leituras de poemas para a BBC, contribuíram
para a sua popularidade e para a construção do poeta enquanto figura de culto neo­
‑romântica, marcada por comportamentos ditos anti­‑sociais. (João Ferreira Duarte)

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notas críticas 703

E.M. FORSTER (Middlesex, 1879 – Warwickshire, 1979) é um autor inglês reco‑


nhecido sobretudo no domínio do romance, com obras como Howards End (1910)
ou Passagem para a Índia (1924). Em Maurice (1971), publicado postumamente dado
o seu teor polémico, Forster explora a descoberta da sexualidade de um jovem aris‑
tocrata inglês, oferecendo da homossexualidade uma visão positiva que desafia as
convenções do seu próprio tempo. Noutra das suas obras mais bem­‑amadas, Um
Quarto com Vista (1908), o escritor tece uma crítica, por vezes humorística, às futili‑
dades e aos costumes excessivamente conservadores da alta­‑sociedade inglesa, des‑
locada para o contexto europeu, a partir de uma viagem da protagonista a Floren‑
ça. A obra de Foster estendeu­‑se ao conto, ao drama, ao libreto, e, inclusivamente,
à crítica literária. (Amândio Reis)

E.T.A. HOFFMANN (Königsberg, 1776 – Berlim, 1822), de seu nome Ernst Theo‑
dor Amadeus, foi um expoente do romantismo alemão, notabilizando­‑se em par‑
ticular em contos de pendor fantástico no estilo da literatura gótica. O impacto
cultural das suas obras estendeu­‑se para além da literatura, tendo tido particular
importância no âmbito da ópera, com Os Contos de Hoffmann, de Jacques Offenbach,
em que se adapta uma variedade de histórias do autor alemão. De particular popu‑
laridade até aos nossos dias é o bailado O Quebra­‑Nozes, de Tchaikovsky, inspirado
no conto epónimo de Hoffmann. O conto que transcrevemos, «O homem da areia»
(1817), parte da história infantil alemã do Sandmann, uma figura sinistra que rouba
os olhos das crianças que se recusam a dormir quando os pais mandam. Freud utiliza
este conto, já no século xx, para formar a sua teoria do trauma. (Simão Valente)

«EDDA». Existem duas fontes principais para a compilação conhecida pelo título
onomástico Edda: a Edda em Verso, ou poética, colecção anónima de poemas da tra‑
dição oral em nórdico antigo, e coligidas num manuscrito do século xiii; e a Edda
em Prosa, da autoria de Snorri Sturluson, um historiador, poeta e político islandês
que viveu na primeira metade do século xiii. Em conjunto, estas duas obras cons‑
tituem a grande fonte de conhecimento da mitologia nórdica, desde a cosmogonia
do início do mundo (Gylfaginning) até ao seu final escatológico (Ragnarök) por um
dilúvio, seguido do renascimento de um novo mundo. O texto que aqui apresenta‑
mos pertence à primeira parte, e descreve a criação mitológica do mundo. (Helena
Carvalhão Buescu)

EDITH SÖDERGRAN (1892-1923) foi uma poeta finlandesa de língua sueca. Nas‑
cida em São Petersburgo durante a ocupação russa do Grã­‑Ducado da Finlândia
(1809­‑1917), cresceu na região da Carélia, zona de confluência de diversas comu‑
nidades. Tendo estudado e escrito em alemão, é fortemente influenciada pelas

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vanguardas europeias, como o simbolismo francês ou o futurismo russo. É conside‑


rada uma figura essencial do modernismo na literatura em sueco e na Finlândia. Os
poemas aqui apresentados reflectem traços destas influências, para além de uma
voz poética consciente da sua condição utópica. (Francisco Marques)

EDUARD VILDE (Pudivere, 1865 – Tallinn, 1933) foi um autor realista estónio,
comparável a Émile Zola ou Eça de Queirós no seu projecto de representar as con‑
dições de vida e dramas privados da sociedade do seu tempo. À semelhança ainda
de Eça, Vilde constituiu­‑se como um modernizador da literatura do seu país, procu‑
rando alinhá­‑lo com as tendências europeias. Conflitos com as autoridades russas
— sendo que durante grande parte da sua vida a Estónia fazia parte do Império
Russo — obrigaram a períodos no exílio na Finlândia, França e Suíça, o que veio
a influenciar a europeização da sua escrita. A obra aqui representada, O Leiteiro de
Mäeküla (1916), é ilustrativa dos conflitos entre a nobreza etnicamente alemã e a
população estónia frequentemente dramatizados pelo autor. (Simão Valente)

ELIAS CANETTI (1905­‑1994) nasceu na Bulgária, numa família de judeus sefardi‑


tas. Passou a infância entre a Bulgária, a Inglaterra, e a Suíça, acabando por se insta‑
lar em Viena, depois da morte do pai, em 1912. Em 1938, foi viver para Londres. Na
década de 80, mudou­‑se para Zurique. À diversidade de locais onde viveu, juntou
o domínio de várias línguas: o dialecto espanhol falado pelos judeus sefarditas, búl‑
garo, alemão (língua em que os pais falavam), inglês e francês. Escreveu em alemão.
Venceu o Prémio Nobel da Literatura em 1981. Auto­‑de­‑Fé é o seu único romance.
O romance descreve a queda de Kien, um filólogo e sinólogo incapaz de estabelecer
relações humanas, a partir do momento em que decide casar­‑se com a sua empre‑
gada, Therese. As obsessões de cada uma das personagens (livros, dinheiro e sexo,
xadrez) dominam o livro. (Ariadne Nunes)

ELIZABETH BARRETT BROWNING (Durham, 1806 – Florença, 1861). Uma


das mais importantes poetas inglesas do período vitoriano, Elizabeth Barrett
Browning é com justeza considerada a «mãe» da poesia de língua inglesa escrita
por mulheres, ela que uma vez escreveu, lamentando­‑se da ausência de uma tra‑
dição literária no feminino: «olho à minha volta à procura de avós e não encontro
nenhuma». Vivendo quase reclusa até aos 40 anos em casa de seu pai, Elizabeth
Barrett, com obra já divulgada, travaria conhecimento com o poeta inglês Robert
Browning, tendo com ele casado, clandestinamente, em 1846. Apaixonada pela
política italiana, mudar­‑se­‑ia com Robert para Florença, onde o filho de ambos
nasceria, em 1849. Para além de várias colectâneas de poemas e da longa narrativa
em verso Aurora Leigh (1856), a sua obra mais conhecida e admirada é Sonnets from

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notas críticas 705

the Portuguese (1850), traduzida para várias línguas, incluindo a portuguesa. (Ana
Luísa Amaral)

ELSE LASKER­‑ SCHÜLER (Elberfeld, 1869 – Jerusalém, 1945) é uma poeta judia
alemã com uma linguagem de grande poder encantatório. Acompanha, em Berlim,
nas primeiras décadas do século xx, o surto do movimento expressionista mais ori‑
ginal, na revista Der Sturm, a partir de 1910, e relaciona­‑se com os mais importantes
poetas dessa geração — mas transcende­‑a. A sua poesia tem um perfil único, de exo‑
tismo, fantasia sem limites, visões de um «Oriente de Deus» que não tem paralelos
na época. O «cisne negro de Israel», como lhe chamou um contemporâneo, deixou
de publicar em 1925, e a ascensão de Hitler ao poder obrigou­‑a a fugir para a Suíça e,
mais tarde, para a Palestina. Viveu em Jerusalém com grandes dificuldades e publi‑
cou o último livro de poemas, Mein Blaues Klavier [O Meu Piano Azul] em 1943. Está
sepultada no Monte das Oliveiras. (João Barrento)

ÉMILE ZOLA (Paris, 1840­‑1902), trabalhador infatigável que cultivou múltiplos gé‑
neros literários e se dedicou também à crítica de artes, teatro e literatura, deve a no‑
toriedade sobretudo aos seus romances, palco por excelência do projecto estético e
ideológico que traçou e que deu suporte ao naturalismo. Romance social e parte inte‑
grante da série dos Rougon­‑Macquart, Germinal é considerado também um romance da
revolta, que, protagonizada por Lantier, alastra à comunidade mineira, enfim capaz
de assumir perante si própria a indignidade das condições de trabalho a que é sujeita
e de lutar contra ela. O primeiro capítulo lança as bases do enfrentamento que há­
‑de dominar a trama: Lantier, recém­‑chegado e sem alternativas, vive de forma tensa,
e ainda à distância, a descoberta do Voreux. (Cristina Almeida Ribeiro)

EMILIA PARDO BAZÁN (La Coruña, 1851 – Madrid, 1921) foi uma escritora talen‑
tosa e firme nas suas convicções. O seu nome anda ligado à difusão do naturalismo,
envolta em acesa polémica, e às questões de género, a nível da crítica e da criação
literária. Pioneira no exercício de cargos tradicionalmente vedados às mulheres, viu,
no entanto, recusado o seu ingresso na Real Academia Espanhola, já então condessa
de Pardo Bazán. Romancista de mérito, como ilustram Los Pazos de Ulloa (1886), e não
menor contista, destaca­‑se o seu papel na consagração do género, cultivado com mes‑
tria em mais de seiscentos títulos. Confirma­‑o, no caso vertente, o regresso ao mito
de Don Juan em prol de uma justiça poética que tem na Beatita o mais surpreendente
dos trunfos, fazendo jus à improbabilidade do título. (Maria Graciete Silva)

EMILY BRONTË (1818-1848) foi uma das grandes escritoras inglesas do século
xix. Pertencia a uma família de quatro irmãos, todos eles com ambições literárias,

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sendo a mais conhecida de entre eles a sua irmã Charlotte. Além de poesia, Emily
Bronte foi a autora de um dos mais notáveis e complexos romances oitocentistas,
um drama familiar estendido por duas gerações e vários triângulos amorosos, que
giram em torno das personagens de Catherine e de Heathcliff (Wuthering Heights).
A paixão amorosa aparentemente impossível entre eles é objecto de várias inter‑
pretações, sendo uma delas o reconhecimento tácito da possibilidade de incesto.
Um outro conjunto de interpretações analisa a tessitura e ruína da família burguesa,
entre violências, paixões e segredos inexplicáveis. Aliás, a ideia de inexplicabilidade
das relações humanas governa toda a vida, até se aplacar na segunda geração. Uma
outra visão sublinha a leitura pós-colonial do romance, atribuindo à entrada do «es‑
curo» Heathcliff no seio da família britânica o valor de ameaça que um império
no seu auge começa a reconhecer. O excerto escolhido alimenta e intensifica a di‑
mensão inexplicável da relação entre as personagens decisivas no romance. (Helena
Carvalhão Buescu)

ENDRE ADY (1877­‑1919) bebeu no simbolismo parisiense, antes de lançar a im‑


portante revista literária Nyugat (Ocidente, 1908­‑1941). Jornalista, conjuga, desde Új
versek (Poemas Novos, 1906), experiências além­‑fronteiras, soltura formal e mitologia
pátria, criando uma hungaridade biblicamente apoiada. Seguem­‑se os títulos dos
seus livros mais traduzidos: Vér és arany (Sangue e Ouro, 1907) e Az Illés szekéren (No
Carro de Elias, 1908). Nos últimos, deflagram anúncios e descrições da Primeira
Guerra Mundial: A halottak élén (À Cabeça dos Mortos, 1918) e Az utolsó hajók (Os Últi‑
mos Navios, 1923). A inspiração de Léda (anagrama de Adél, casada, cinco anos mais
nova) torna mais atribulada a sua vida pessoal. (Ernesto Rodrigues)

ERASMO (1466­‑1536) foi um humanista e teólogo católico renascentista dos Países


Baixos. Influente tradutor do grego e do latim, produziu uma vasta obra lida por
todo o continente europeu. Tendo privado com os maiores nomes da época, como
Thomas More, Damião de Góis e Albrecht Dürer, Erasmo marcará a história da
Reforma com as suas fábulas e críticas, tanto a Lutero e ao seu movimento, quanto à
Igreja Católica. Da vasta lista, escolheu­‑se um excerto de Elogio da Loucura, obra de
1509, pela primeira vez publicada em 1511, onde o autor tece uma paródia em torno
das fortes superstições e da corrupção da Igreja de Roma. (Francisco Marques)

ESOPO. Nada se sabe ao certo sobre ele. J.S. Rusten comenta que ele é tão lendário
como Homero. Alusões encontradas em Hesíodo e Arquíloco, os autores que mais
cedo o nomeiam, ajudam a colocar as datas da sua vida algures entre o século vii
a.C. e o século vi, na Grécia pré­‑clássica. Esopo pode ter sido oriundo de Samos,
da Frígia ou da Lídia. Uma biografia que terá sido produzida já durante o Império

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notas críticas 707

Romano identifica­‑o como escravo e colige uma série de anedotas picarescas acerca
da sua vida. A Esopo é atribuído um corpus de Fábulas, que, no entanto, é coligido
tardiamente, em Alexandria, por Demétrio de Falero. A versão que nos chegou, po‑
rém, data da Antiguidade tardia. O que nós chamamos Fábulas (do latim, fabulae) e
os antigos gregos chamavam mythoi ou logoi, termos usados nas próprias fábulas, são
algumas breves linhas de prosa, povoadas de personagens­‑tipo e animais, com uma
estrutura narrativa simples e um propósito moral evidente, frequentemente para
efeito cómico. (Tatiana Faia)

ÉSQUILO (c. 525 a.C. ­– c. 456 a.C.). Dramaturgo ateniense, a sua vida abarca dois
dos momentos fundamentais para a hegemonia da Atenas clássica — a derrota dos
persas em Maratona (onde Ésquilo combateu como soldado) e a ascensão de Péri‑
cles ao governo da cidade, o que marca a idade de ouro da cultura ateniense. Um dos
principais dramaturgos do teatro clássico, Ésquilo morre na Sicília cerca de 456 a.C.
É dele a única trilogia que nos chegou completa do período clássico, a Oresteia, e
esta é também a última que ele terá encenado em Atenas, em 458 a.C.. As Euménides
marca a absolvição de Orestes e o encerramento de um ciclo ancestral de violência.
A psicologia dos laços que unem marido e mulher, mulher e amante, pais e filhos,
irmão e irmã, é tensamente escrutinada ao longo das três peças. Clitemnestra con‑
tinuará a ser uma das mais singulares criações da história do teatro. (Tatiana Faia)

EUGÈNE IONESCO (1909­‑1994) foi um dramaturgo francês de origem rome‑


na, que teve uma grande influência nos movimentos da vanguarda modernista, so‑
bretudo a partir da sua «peça em um acto» La Cantatrice Chauve (1949), em que os
principais temas da sua dramaturgia já se manifestam: a dificuldade (se não mesmo
impossibilidade) de comunicar, o carácter antilógico da linguagem humana e da for‑
ma como separa, mais do que une, os humanos, bem assim o modo como a solidão
pessoal é, na realidade, uma condição da existência que nada pode remir. Alguns dos
seus textos dramáticos mais conhecidos são La Leçon (1951) e ainda Le Roi se meurt
(1961). Em toda a sua obra se sente o peso do surrealismo, na concepção de pessoas
e sociedades em que, na verdade, pesa o absurdo da vida e a incapacidade da cons‑
trução dos seus sentidos. (Helena Carvalhão Buescu)

EUGENIO MONTALE (Génova, 1896 — Milão, 1981) é um dos maiores nomes


da poesia italiana do século xx, tendo vencido o Prémio Nobel da Literatura em
1975. Desde a publicação do seu primeiro livro, Ossos de Sépia (1925), a obra de Mon‑
tale mantém características relativamente constantes: do ponto de vista temáti‑
co, a alienação do sujeito em relação ao mundo que o rodeia, num prolongamento
moderno do exílio romântico. No que diz respeito ao estilo, a poesia de Montale

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frequentemente utiliza termos ou construções sintácticas complexas, aproximando­


‑o do hermetismo italiano dos anos 30. No explorar as suas relações sentimentais
com três mulheres, sob nomes de código, a escritora Drusilla Tanzi (Mosca), a aca‑
démica norte­‑americana Irma Brandeis (Clizia), e a poeta Maria Luisa Spaziani
(Volpe), Montale aprofunda a sua temática principal. (Simão Valente)

EURÍPIDES (c. 480). De todos os tragediógrafos da época clássica, é dele o corpus


mais extenso que temos conservado: 19 peças, das cerca de 90 que terá compos‑
to. Entre as suas principais tragédias contam­‑se Medeia, As Bacantes, As Troianas e
Helena. Dos três principais tragediógrafos, é o único do qual se conservam tam‑
bém dramas satíricos. J. Gould cita o retrato que dele faz Aristófanes em As Rãs,
como um intelectual iconoclasta, interessado em explorar o lado mais negro e
perturbador da realidade. Talvez em nenhuma das peças de Eurípides isto seja tão
visível como em Medeia. Das muitas explorações da psicologia de personagens fe‑
mininas que os dramas de Eurípides encerram, nenhuma é tão perturbadora, pun‑
gente ou provocadora como Medeia. Prestes a ser abandonada por Jasão, e relega‑
da com os filhos para um estatuto de suplicante, dilacerada de dor, num crescendo
de manipulação e raiva, Medeia suplanta Jasão e mata os filhos. (Tatiana Faia)

EVELYN WAUGH (Londres, 1903 – Combe Florey, 1966) é um autor inglês cuja
obra pode ser dividida em dois períodos: antes da Segunda Guerra Mundial, com
romances como Declínio e Queda (1928) e Corpos Vis (1930), a prosa de Waugh é de
pendor decididamente satírico, consagrando­‑se a estudos das contradições e excen‑
tricidades da aristocracia britânica. Após a sua conversão ao catolicismo, contudo,
Waugh aborda com mais frequência questões morais e de fé, sendo essa caracte‑
rística um aspecto fundamental do seu texto mais conhecido, Reviver o Passado em
Brideshead (1945). Apesar dessa inflexão, Waugh não abandona de todo o seu pen‑
dor humorístico, reaparecendo em O Ente Amado (1948) e As Desventuras do Senhor
Pinfold (1957). Proeminente na obra de Waugh é também a cidade de Oxford, onde
viveu e estudou. (Simão Valente)

EZRA POUND (1885­‑1972), poeta, ensaísta e tradutor norte­‑americano, estudou


línguas românicas antes de partir para a Europa em 1908. Entre 1909 e 1920 viveu
em Londres, tendo sido muito activo na participação em publicações e em grupos
literários que lançaram o movimento modernista em Inglaterra e nos EUA. De‑
fendia uma poesia precisa, austera e directa. A sequência Hugh Selwyn Mauberley
(1920), uma «despedida de Londres», constitui a sua grande memória poética desse
período. Foi influente na promoção das obras de T.S. Eliot e de James Joyce. Tradu‑
ziu poesia latina, provençal e chinesa antiga. A sua mais ambiciosa obra poética, The

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notas críticas 709

Cantos, foi escrita e publicada ao longo de mais de 50 anos, entre 1917 e 1969. Depois
de alguns anos em Paris (1920­‑24) fixou­‑se em Itália, onde passou grande parte da
sua vida. (Gualter Cunha)

FEDERICO GARCÍA LORCA (Fuente Vaqueros, 1898 – Viznar, 1936), nascido


numa família abastada de Granada, fez estudos musicais e de Direito e na Residen‑
cia de Estudiantes (Madrid) criou laços com outros intervenientes na vida cultural e
artística espanhola (1919­‑1928). Poeta e dramaturgo da Geração de 27, era também
republicano e morreu fuzilado, vítima do fascismo e da guerra. Dinamizou o grupo
universitário de teatro itinerante A Barraca, proporcionando novas experiências
culturais à população do interior, cuja vida e tradições ele próprio não ignorava,
como mostram o seu teatro (pense­‑se em La casa de Bernarda Alba, 1936) e a sua
poesia. Narrativa, estrutura, refrão, metro, ritmo fazem de «Romance sonâmbulo»,
de Romancero gitano, um bom exemplo da apropriação da tradição oral pelo poeta.
(Cristina Almeida Ribeiro)

FEDRO é um poeta latino, que se dedica ao género da fábula, na tradição sobre‑


tudo do poeta grego Esopo, cuja filiação ele reconhece. Viveu e escreveu no século
i d.C., tendo começado por ser escravo, depois libertado. A Fedro podem ser recon‑
duzidas, através de diversas fontes, cerca de 200 fábulas, todas elas apresentando as
características mais visíveis do género: uma brevíssima história normalmente pro‑
tagonizada por animais, cujo carácter analógico com os humanos e as suas acções
constitui o núcleo principal da sua constituição; o carácter pedagógico e várias ve‑
zes satírico que a fábula propõe; e, em consequência, o carácter sentencioso e moral
das suas linhas finais. Fedro é reconhecido por outros fabulistas, em particular La
Fontaine, como um autor de particular relevância. (Helena Carvalhão Buescu)

FERNANDO DE ROJAS (c. 1475­‑1541) nasceu em data incerta, situável nos princí‑
pios da década de 70 do século xv, numa família de judeus conversos estabelecida na
região de Toledo. Foi bacharel em Leis e, por mais de uma vez, alcaide de Talavera.
Nas letras espanholas, ficou conhecido como autor da Tragicomedia de Calixto y Meli‑
bea, vulgarmente referida como La Celestina, dado o protagonismo que nela assume
a alcoviteira assim chamada, magnífica representante de um tipo social com presen‑
ça frequente na ficção narrativa e dramática ibérica ao longo de todo o século xvi.
O fragmento escolhido mostra a Celestina em acção, insinuando­‑se junto da jovem
a quem deve convencer do valor do pretendente ao serviço de quem a visita e fazen‑
do com que ela abra progressivamente a guarda e acabe por se lhe render. (Cristina
Almeida Ribeiro)

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FIÓDOR DOSTOIÉVSKI (1821-1881) foi um dos maiores romancistas, contistas e


novelistas russos. A sua obra ficcional revela as extraordinárias qualidades de efabu‑
lação, reflexão filosófica e política, e capacidade de criação de personagens fortes,
não apenas através da acção e da intriga romanesca, mas também (e às vezes sobre‑
tudo) da diversidade da sua interacção discursiva (aquilo a que Bakhtin viria a cha‑
mar, mais tarde, dialogismo) e dos mecanismos psicológicos, frequentemente caó‑
ticos, que manifestam. A sua obra não reflecte apenas as profundas perturbações
do indivíduo e da sociedade na Rússia do século xix – mas, partindo desse hori‑
zonte, dedica-se a explorar, num registo sempre problematizante, os limites éticos,
religiosos e humanos da própria humanidade. Temas como a inocência e a culpa,
a compaixão, a (im)possibilidade do perdão, as diferentes formas que a miséria hu‑
mana toma, ou o mal injustificável, articulam toda a sua obra, tornando-a uma densa
pesquisa sobre as controversas compatibilidades entre a luz e as sombras da men‑
te e da vida dos humanos. Algumas das suas obras mais importantes são: O Idiota
(1869), Crime e Castigo (1866), Os Possessos ou Os Demónios (1872), Os Irmãos Karamazov
(1880) e Cadernos do Subterrâneo (1864). Em todas elas, assim como na novela Noites
Brancas, encontramos entrelaçados os temas atrás referidos, combinados com uma
poderosa reflexão sobre o lugar e a natureza da literatura e da arte na formação da‑
quilo que constitui o homem. Dostoiévski é muitas vezes considerado o primeiro
escritor existencialista. Na verdade, a sua ficção não se afasta das grandes questões
filosóficas que o século xx desenvolverá. A sua influência sobre a filosofia, a arte e
o pensamento posteriores é, a todos os títulos, notável. (Helena Carvalhão Buescu)

FRANCESCO PETRARCA (1304­‑1374). Em 1341, foi coroado no Capitólio, em


Roma. Os louros galardoaram então uma carreira de homem de letras — melhor,
de humanista atento aos clássicos, em cujo renascimento se aplicava, descobrindo
textos e cultivando a sua imitatio. A grande consagração de Petrarca, porém, seria
póstuma e ficaria a dever­‑se a uma obra concebida mais tarde, em língua vernácula:
os Rerum Vulgarium Fragmenta (ou Canzoniere). É preciso ler as Confessiones de San‑
to Agostinho para compreender a dramática tensão que anima os Rerum Vulgarium
Fragmenta, no conflito de profano e sagrado, imanente e transcendente. Entre a filo‑
sófica palinódia do soneto I e o remorso devoto apregoado na canção última («Ver‑
gine bella»), desenrola­‑se uma sinuosa cadeia onde há tempo e lugar para o dissídio
que opõe desejo e razão, para a voluptas dolendi, para o luto pela perda da amada Lau‑
ra e para o esboço do que prometia ser (não tivesse Petrarca querido demarcar­‑se
de Dante e da sua influência) um caminho de perfeição espiritual. (Isabel Almeida)

FRANCIS PONGE (1899-1988) foi um poeta e ensaísta francês que marcou algu‑
mas das direcções mais importantes da poesia do século xx. É sobretudo conhecido

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notas críticas 711

pelo uso inovador que faz do poema em prosa, nomeadamente pelo facto de este
se ocupar da materialidade das coisas, da sua tessitura, e por isso da transfiguração
do aparentemente antipoético em matéria da poesia ela mesma. Uma das suas obras
mais conhecidas intitula-se Le Parti pris des choses (1942), e nela encontramos já, in
nuce, toda a sua poética. Esta faz-se a partir de uma minuciosa atenção e descrição
de cada objecto particular e circunstancial do mundo – um sabão, uma laranja, uma
pedra. No poema que reproduzimos, o carácter transitivo do humano exige, para ser
pensado, o objecto sem o qual é o próprio sujeito que não existe. É esta, também,
a força (a metamorfose) da linguagem poética. (Helena Carvalhão Buescu)

FRANCISCO DE ASSIS (1102­‑1226), fundador da ordem dos Franciscanos, aban‑


donou uma vida de riqueza material, renunciando ao mundo, para devotar­‑se à
imitação do exemplo de Cristo. Numa época de cultura monástica, o santo ita‑
liano consagrou­‑se à missionação itinerante e à busca da comunhão harmoniosa
com o divino por meio do contacto directo com a natureza e suas manifestações,
inserindo­‑se na linhagem de um ascetismo místico. É disso representativo «Elogio
ao sol», onde se convoca a animização ontológica dos elementos naturais para a en‑
toação universal de um cântico de louvor ao Criador, o grande Pai. Em forma de
prece, o poema reconhece a fraternidade universal de todas as coisas, irmanando
seres e criaturas, para dar testemunho das maravilhas da criação e resgatar a bonda‑
de do mundo. (Gonçalo Cordeiro)

FRANCISCO DE QUEVEDO (1580­‑1645), homem de corte, para nela medrar


arrimou­‑se ao duque de Osuna, o que lhe valeu benefícios (estada em Itália, mis‑
sões diplomáticas, hábito de Santiago) mas também o exílio e a prisão (1621­‑1622).
Polígrafo, igualmente atento a temas sérios e burlescos, é um dos nomes maiores
do siglo de oro espanhol, autor de um vasto elenco de obras que vão do romance pi‑
caresco aos escritos de natureza política, filosófica, ascética, passando pela poesia
lírica e pela fantasia alegórica. Próximos na alusão à morte, os sonetos em apreço
inscrevem­‑se, porém, em distintas linhas temáticas caras ao barroco, correspon‑
dendo um à reflexão, entre religiosa e metafísica, sobre o carácter contingente e
efémero da existência humana, discorrendo o outro sobre a perenidade do amor.
(Cristina Almeida Ribeiro)

FRANÇOIS VILLON (1431­‑1463), adoptado por um professor de Direito Canóni‑


co que lhe proporcionou formação universitária, optou por uma vida deambulante
e agitada, que o levou a cortes onde exibiu os dotes de poeta (Blois, Moulins), mas
que também o fez transpor os limites da marginalidade. Banido de Paris a 5 de Janei‑
ro de 1463, desconhece­‑se­‑lhe o destino, não a obra poética, impressa com grande

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êxito em 1489. Apelando à memória colectiva, a «Balada das damas do tempo anti‑
go», primeira composição de forma fixa inserida no Testament e também primeira
peça do tríptico aí dedicado ao ubi sunt, mantém com o topos uma relação algo am‑
bígua, porque um elenco de personagens heterogéneo permite matizar a evocação
melancólica, evidente no refrão, com o sorriso ou o riso suscitados por algumas
alusões. (Cristina Almeida Ribeiro)

FRANZ KAFKA (1883­‑1924) é um dos autores mais influentes da literatura univer‑


sal. Cultivando um estilo inconfundível, o conjunto da obra kafkiana — composta,
na sua maioria, por livros incompletos ou publicados postumamente — explora o
sentimento de absurdo que pontua a ambiguidade ontológica do ser humano, cin‑
dido entre a dimensão individual e a dimensão universal, entre o trágico e o cómico,
entre a ausência de sentido e o reino da racionalidade e da lógica. Da nudez da sua
prosa desprende­‑se uma estranheza inquietante que confere às suas narrativas uma
implacável lucidez. De Der Prozess (O Processo, 1925) a Das Schloß (O Castelo, 1926),
passando pelas Erzählungen, Kafka procurou tactear não só o desenraizamento da
condição humana num mundo hostil e a sua progressiva desumanização (emble‑
maticamente representada pela personagem Gregor Samsa de Die Verwandlung­
(A Metamofose, 1912) —, mas também a impotência face à tentacular burocracia do
moderno estado de direito. (Ricardo Gil Soeiro)

FRIEDRICH GOTTLIEB KLOPSTOCK (1724­‑1803) foi um dos mais impor‑


tantes autores do século xviii alemão pela influência que teve na tendência pie‑
tista da orientação protestante (tornando sensível e individualista a relação entre
o homem e Deus) e também em movimentos como o Sturm und Drang e autores
como Goethe, que alude a um dos seus poemas mais conhecidos numa cena muito
célebre de Os Sofrimentos do Jovem Werther. Na época ficou essencialmente famoso
pela obra O Messias (1749­‑1771), influenciada por Paradise Lost, de Milton. Pelo uso
do hexâmetro sem rima n’O Messias e do verso livre e tom sentimental nas suas
Odes sobre a natureza, encarada em renovada proximidade com o humano, Klop‑
stock iniciou a ruptura com a tradição barroca e arcádica e a descoberta de uma
nova linguagem sensível e sentimental, original e expressiva, tendo contribuído
decisivamente para o aparecimento da literatura pré­‑romântica e romântica na
Alemanha. (Fernanda Gil Costa)

FRIEDRICH HÖLDERLIN (1770­‑1843) é considerado um dos expoentes má‑


ximos da poesia universal e uma das figuras cimeiras do romantismo alemão, in‑
fluenciando decisivamente a filosofia de Hegel e de Schelling. Figura­‑charneira
porque contemporâneo dos pré­‑românticos do Sturm und Drang e dos classicistas

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notas críticas 713

de Weimar, a precisão da sua linguagem, aliada à intensidade do seu lirismo, tor‑


nam a poesia de Hölderlin um dos momentos mais altos da poesia do Ocidente. Na
sua busca de uma unidade primordial, o poeta alemão deter­‑se­‑á sobre a angústia
que resulta do crepúsculo dos deuses e que concita a célebre interrogação que asso‑
ma na elegia Brod und Wein: «Para que servem os poetas em tempo de indigência?»
A sua produção poética abarca géneros como elegias, odes e hinos, incluindo ainda
os denominados Späteste Gedichte, escritos entre 1807 e 1843, no chamado período
da Umnachtung na torre de Tübingen. (Ricardo Gil Soeiro)

FRIEDRICH SCHILLER (1759­‑1805), médico de formação, historiador e filósofo,


dramaturgo e poeta, ambicionava ser o «Shakespeare alemão», como confessou por
carta a um amigo. A sua visão da luta entre as forças da emoção e da razão contri‑
buiu para resolver as mesmas, sem as dissolver, num equilíbrio estético defendido
nos seus ensaios filosóficos e presente no «impulso lúdico», que providenciaria a um
(re)equilíbrio entre os impulsos formal e sensível (Sobre a Educação Estética do Ser
Humano numa Série de Cartas, 1795). As figuras dos seus dramas revelam assim uma
tensão osmótica, numa dinâmica de atracção e repulsa, que revela a complexida‑
de antropológica da sua formação de «médico­‑filósofo». Isso mesmo se observa na
cena central de Maria Stuart (III/4), em que a protagonista ora se aproxima, ora se
afasta da sua opositora, Isabel de Inglaterra. (Teresa R. Cadete)

GARCI RODRÍGUEZ DE MONTALVO (1450­‑1504), regedor de Medina del


Campo e autor de Las sergas de Esplandián, cujo herói é filho de Amadís e Oriana,
é lembrado sobretudo como responsável pela única versão integral conhecida de
Amadís de Gaula (Saragoça, 1508), na qual se crê ter trabalhado entre 1480 e 1495,
refundindo e ampliando materiais de que há notícia certa desde meados do século
xiv. Com as suas aventuras entremeadas de glosas moralizantes, Amadís de Gaula é
obra­‑charneira na história dos livros de cavalaria ibéricos, cuja tradição medieval,
arturiana, encerra ao mesmo tempo que abre novas sendas para o género, de que se
torna modelo no século xvi. O episódio da Penha Pobre, que Cervantes parodiará
no seu Quixote, ilustra alguns dos traços que fazem da obra um marco na tradição.
(Cristina Almeida Ribeiro)

GARCILASO DE LA VEGA (Toledo, 1501 – Nice, 1536), descendente de linhagens


ilustres que se haviam notabilizado nas armas e nas letras, vai também ele abraçar
essas duas actividades, numa vida breve, mas cheia, onde couberam aventuras, via‑
gens, exílios e, sobretudo, encontros: o de uma musa inspiradora, o de um amigo
como Boscán, o dos poetas italianos que o levariam a revolucionar a poesia espa‑
nhola. Na sua obra, subordinada a critérios inteiramente novos no tocante a metros

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e a géneros, o amor, de vária natureza, permanece como tema privilegiado. Num dos
sonetos antologiados proclama­‑se a presença impressiva e indelével da amada na
própria alma como condição e origem da palavra poética; no outro, variação sobre
o carpe diem, pinta­‑se­‑lhe, em palavras serenas, o retrato da fugaz beleza. (Cristina
Almeida Ribeiro)

GEOFFREY CHAUCER (1343-1400) é o mais prestigiado autor medieval inglês e


tem em Os Contos de Cantuária (The Canterbury Tales), escritos entre cerca de 1387 e
a sua morte, a sua obra-prima. Aí se narra a viagem de um grupo de peregrinos, que
encarnam tipos sociais característicos do século xiv (cavaleiro, escudeiro, monge,
frade, mulher de Bath, entre outros), e que, indo até Cantuária para venerarem o
santo mártir Thomas Becket, contam histórias uns aos outros. Chaucer inova a par‑
tir da tradição que também critica e, recuperando fórmulas estereotipadas e sub‑
vertendo modelos, adopta técnicas narrativas, em particular a ironia e a multiplica‑
ção de estilos e de pontos de vista, que lhe permitem discorrer de forma distanciada
sobre a complexa realidade do seu tempo, sobre o seu próprio estatuto enquanto
artista e sobre a natureza da sua arte poética. É por isso aclamado como precursor
do monólogo dramático, cujo expoente máximo viria a ser Robert Browning (1812-
1889), mas sobretudo como precursor de muita da poesia contemporânea e do pró‑
prio romance moderno. (Angélica Varandas)

GEORG BÜCHNER (1813­‑1837). Sendo por certo um dos grandes autores de lín‑
gua alemã, Büchner não obteve em vida o reconhecimento da sua obra. Nasceu em
Darmstadt, na Alemanha, mas as actividades revolucionárias, muito impulsionadas
pelos tempos conturbados, obrigam­‑no a procurar abrigo em Estrasburgo, onde
fundou a Sociedade para os Direitos do Homem, e mais tarde em Zurique. Shakes‑
peare e os românticos alemães inspiraram uma obra singular, ao mesmo tempo trá‑
gica e cómica, vigorosa e elegíaca, como está patente em A Morte de Danton (1835) e
Leonce e Lena (1836). Só a partir do final do século xix, no dealbar do naturalismo e
do expressionismo, a modernidade de Büchner pôde entusiasmar escritores e en‑
cenadores, tendo então início um intenso processo de recepção criativa. O drama­
‑fragmento Woyzeck (1836­‑1837), dá expressão ao seu tempo, encenando a pobreza e
a perda de dignidade, o desamparo e a solidão já anteriormente retratados na narra‑
tiva Lenz. (Luísa Afonso Soares)

GEORG PHILIPP HARSDÖRFFER (ou Harsdoerffer, 1607­‑1658) é um dos poe‑


tas mais conhecidos do período barroco alemão. Como muitos autores e poetas da
época, pertenceu a uma sociedade literária chamada Ordem das Flores de Peignitz,
tendo diversificado a sua vasta cultura livresca através de uma «viagem de educação»

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notas críticas 715

que o levou a Inglaterra, França, Itália e Países Baixos. Foi também juiz e senador
em Nuremberga, cidade onde sempre viveu. A sua poesia é típica do período bar‑
roco, composta em linguagem de artifícios retóricos e elaborada imagética. Tam‑
bém muito lidos na época foram os seus diálogos, peças didácticas reproduzindo
conversas entre mulheres com propósito edificante, tendo cultivado igualmente a
poesia pastoril, influenciado pelo drama pastoril da época e por Sir Philip Sidney.
Harsdoerffer distinguiu­‑se ainda como tradutor de obras em francês, italiano e es‑
panhol. (Fernanda Gil Costa)

GEORG TRAKL (1887­‑1914). Poeta austríaco, nasceu em Salzburgo e morreu na


frente leste da Primeira Guerra Mundial, num hospital de Cracóvia. Com uma exis‑
tência agitada e nos últimos anos fortemente amargurada, Trakl foi o «poeta mal‑
dito» do expressionismo austríaco, formado em Hölderlin e Rimbaud, Baudelaire
e Dostoiévski. Com uma sensualidade exacerbada, viciado em drogas e com um
sentido profundo e heterodoxo da espiritualidade, a sua poesia é atravessada pelos
sentimentos do medo do mundo, da melancolia e do convívio com uma realidade
demoníaca, mas sobretudo por um lirismo raro entre os poetas desta geração. Tudo
aí se transfigura em projecções simbólicas, nos «correlativos objectivos» de uma si‑
tuação existencial e civilizacional de crepúsculo, decadência e morte. Por isso Else
Lasker­‑ Schüler pôde escrever, no poema que dedica à sua morte: «O coração do
poeta, um castelo seguro, / Os seus poemas: teses cantantes». (João Barrento)

GEORGE BERNARD SHAW (1856­‑1950). Nasceu em Dublin e iniciou a carreira


como romancista, crítico musical e de teatro em Londres, tornando­‑se membro da
Fabian Society, um grupo de inspiração socialista. Os cinco romances que escreveu
foram rejeitados pelas editoras, e as primeiras peças rejeitadas pelos encenadores.
Tal facto levou­‑o a decidir publicar as peças, em 1898, num volume intitulado Plays
Pleasant and Unpleasant. Daí em diante aprofundou o carácter racional e dialéctico
num conjunto de peças designadas como «discussion plays» ou «plays of ideas», onde
se destacam Man and Superman (1903) e Back to Methuselah (1921). O êxito comercial
viria em 1914, com a encenação da comédia Pygmalion, em que abordou a moral
burguesa e a estratificação social. Adaptada ao cinema em 1938, Shaw recebeu um
Oscar pela melhor adaptação. Em 1923 recebera já o Prémio Nobel da Literatura
pela peça Saint Joan. A obra completa foi publicada em 36 volumes entre 1930 e
1950, ano da sua morte. (Maria Isabel Barbudo)

GEORGE ELIOT (pseudónimo de Mary Anne Evans, Nuneaton, 1819 – Chelsea,


1880) escreveu vários dos romances centrais da literatura inglesa do século xix, en‑
tre os quais Adam Bede (1859), O Moinho sobre o Floss (1860), e Middlemarch (1871­‑ 72).

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A autora escolheu escrever sob um pseudónimo masculino receando a reputação


que mulheres escritoras do seu tempo tinham na escrita de literatura romântica
de pouca qualidade. A obra de Eliot caracteriza­‑se pelo seu realismo psicológico,
articulando os pontos de vista das suas personagens de maneira a salientar aquilo
que as individualiza. Em simultâneo, é também uma forte característica dos seus
romances a representação das dificuldades práticas e económicas das classes mais
baixas da sociedade inglesa. (Simão Valente)

GEORGE ORWELL (Mohitari, 1903 – Londres, 1950) é um romancista, ensaísta e


jornalista inglês cuja obra, nos anos 30 e 40 do século xx, revelava uma perspectiva
crítica, polémica e substancialmente de esquerda sobre a sociedade inglesa e a po‑
lítica internacional. É bem conhecida a sua participação como repórter na Guerra
Civil de Espanha através da obra Homenagem à Catalunha (1938), onde são óbvias as
suas simpatias pelos anarquistas e trotskistas catalães. As suas obras mais famosas
são, contudo, a alegoria satírica O Triunfo dos Porcos (Animal Farm) (1945) e a narrati‑
va distópica 1984, ambos ficcionalizando uma visão antitotalitária do mundo e uma
crítica radical do estalinismo na União Soviética, tendo sido por isso largamente
instrumentalizadas pelo Ocidente durante a Guerra Fria. O termo «orwelliano» aca‑
bou por entrar para o vocabulário comum para descrever a manipulação da história
e da linguagem pelo poder estabelecido. (João Ferreira Duarte)

GERRIT KOMRIJ (1944-2012), poeta, dramaturgo, crítico, tradutor e temido po‑


lemista neerlandês, fixou-se em Portugal em 1984, com o seu companheiro, tendo
aqui residido até ao fim da vida. Iniciou-se nas letras em 1968 com a antologia poé‑
tica Maagdenburgse Halve Bollen («Hemisférios de Magdeburgo»). Em 1979, publicou
a primeira edição da antologia de poesia neerlandesa que se tornou paradigmática,
e entre 2000 e 2004 foi-lhe atribuído pelo Governo o título de poeta laureado dos
Países Baixos. Escreveu o libreto para a ópera de António Chagas Melodias Estranhas
(2001), sobre a amizade entre Damião de Góis e Erasmo de Roterdão. No romance
semiautobiográfico Atrás-dos-Montes (1997) e nas antologias de contos Um Almoço
de Negócios em Sintra (1999) e Vila Pouca (2009), retrata a sua vida em Portugal. Em
2005, publicou uma antologia de poemas intitulada Contrabando. (Patrícia Couto)

GIACOMO LEOPARDI (Recanati, 1798 –­­ Nápoles, 1837) é o maior poeta lírico
da Itália do século xix, podendo a sua obra ser colocada lado a lado com a de Keats,
Baudelaire e Hölderlin. A sua experiência poética nasce de uma situação cultural
complexa que, acolhendo os momentos mais intensos da sensibilidade romântica,
ao mesmo tempo recusa as propostas de soluções mais fáceis. Retomando os princí‑
pios da filosofia materialista do século xviii, recolhe desta uma concepção descon‑

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notas críticas 717

solada, privada de ilusões e esperanças. O seu canto é simultaneamente desolado


e rico de vitalidade, amargo e estimulante, pessimista e revolucionário. A sua obra
maior é a recolha de poesia Cantos (1835), sendo também de particular interesse a sua
prosa em Operette Morali (1824). (Simão Valente)

GIÁNNIS RITSOS (Monemvasia, 1909 – Atenas, 1990) publicou em vida mais de


cem livros. Membro do partido comunista grego desde 1931, juntou­‑se à resistên‑
cia para combater as forças do Eixo. Tomando depois o partido dos comunistas na
guerra civil, esteve preso entre 1948 e 1950 e de novo em 1967 e 1970, com a ascen‑
são dos coronéis ao poder. Vencedor de vários prestigiados prémios europeus, a sua
poesia, agudamente sensível a tudo o que a rodeia, misteriosa, caracterizada por
atmosferas surreais, intimamente ligada à paisagem e à cultura milenar da Grécia,
é um dos mais fortes e comoventes testemunhos produzidos na Europa do século
xx da resiliência da beleza e da bondade em face das mais extremas condições. En‑
tre as obras principais contam­‑se Diários de Exílio, A Quarta Dimensão, Romiossini e
Repetições, Testemunhos, Parênteses. (Tatiana Faia)

GIÓRGOS SEFÉRIS (1900-1971) é o primeiro autor grego a ter vencido o Prémio


Nobel da Literatura (em 1963). Nascido perto de Esmirna, hoje Izmir, em 1900,
a família mudou-se para Atenas em 1914. Seguindo as pegadas do pai, advogado de
profissão, Seféris estudou direito na Sorbonne. Ao longo da sua carreira, exerceu
funções de diplomata na Albânia, em Inglaterra, no Egipto, na Turquia e em Itália.
A ocupação da Grécia pelas forças do Eixo em 1941 forçou-o ao exílio. Na declaração
oficial da Academia Sueca, aquando da atribuição do Nobel, lê-se: «Seferis’s poetic
production is not large, but because of the uniqueness of its thought and style and
the beauty of its language, it has become a lasting symbol of all that is indestructi‑
ble in the Hellenic affirmation of life.» A força da poesia de Seféris é algo que surge
como consequência de uma tensão entre a Grécia clássica e a Grécia contemporâ‑
nea, o passado mítico e a escala humana do presente. Talvez em nenhumas outras
obras isto seja tão visível como em Mitistorema, Gimnopedia e Esboços para Um Verão.
(Tatiana Faia)

GIOVANNI BOCCACCIO (Florença, 1313 – Certaldo, 1375) é um dos principais


autores do Renascimento. Discípulo de Dante e Petrarca, forma com estes dois
últimos o centro do cânone literário italiano. Filho de um banqueiro florentino,
Boccaccio teve uma carreira profissional entre a banca e o direito, antes de se dedi‑
car por completo à literatura. A sua obra principal é sem dúvida o Decameron (1353),
uma colectânea de cem novelas em prosa, contadas por dez jovens que se refugiam
fora da cidade de Florença quando a peste grassa na cidade. Fugindo às fórmulas

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de diálogo da Idade Média, Boccaccio procura representar fielmente a realidade,


com uma linguagem vivaz e temas que vão do obsceno ao moralizante. É ainda de
salientar o seu De Mulieribus Claris (Mulheres de Armas, 1374), a primeira colectânea
de biografias de mulheres ilustres da literatura ocidental, seguindo o modelo das
Vidas Paralelas de Plutarco. (Simão Valente)

GIUSEPPE UNGARETTI (Alexandria, 1888 – Milão, 1970) é um dos nomes maio‑


res da poesia italiana do século xx, comparável a Montale e Quasimodo, e, como
eles, um autor que participou no ermetismo, movimento literário caracterizado por
uma utilização codificada e hermética, como o próprio nome indica, da linguagem.
Nascido no Egipto, a vida de Ungaretti será marcada pelas viagens e pelas longas
estadias fora do território italiano, notavelmente os oito anos de permanência no
Brasil, em São Paulo, onde leccionou literatura italiana na universidade. O texto
aqui transcrito, «Os rios», é uma das suas obras emblemáticas: enquanto soldado
na Primeira Guerra Mundial, Ungaretti recorda os rios das cidades e regiões que
marcaram a sua experiência do mundo. (Simão Valente)

GONZALO TORRENTE BALLESTER (El Ferrol, 1910 – Salamanca, 1999) é um


dos grandes ficcionistas espanhóis do século xx. Pertencente à Geração de 36, foi
também professor, dramaturgo e ensaísta, com actividade crítica na imprensa pe‑
riódica. Célebre pela sua capacidade de efabulação, bem patente no excerto de Don
Juan, foi Prémio Cervantes em 1985, entre outras distinções que marcaram a sua
carreira. Pode, no caso vertente, falar­‑se de uma jogada cénica em dois andamentos,
em que à irrupção de Leporello pelo quarto do narrador do relato­‑matriz se segue
uma não menos histriónica visita a um Don Juan proverbialmente ausente. O jogo
de espelhos salda­‑se por uma teia de equívocos, a pretexto de uma insólita dívida de
gratidão ao jornalista anónimo que tem esse papel de narrador, pela agudeza do seu
retrato de Don Juan. (Maria Graciete Silva)

GOTTFRIED BENN (1886­‑1956), poeta expressionista alemão e médico de doen‑


ças venéreas, é autor de uma obra marcada por um niilismo de raiz nietzschiana e
uma visão patológica do mundo. Atraído, em 1933, pelas promessas de renovação
e revolução do nacional­‑socialismo, a breve trecho se afastou e, afirmando a sua
incompatibilidade com o regime, escolhe a via de uma «forma aristocrática de emi‑
gração interior». As suas obras seriam proibidas a partir de 1938 e só voltaram a ser
publicadas em 1949. De Benn diria a poeta judia alemã Else Lasker­‑ Schüler: «Gott‑
fried Benn é o Kokoschka da poesia. Cada um dos seus versos é uma dentada de leo‑
pardo, um salto de fera. Os ossos são o lápis com que ele desperta a palavra.» E Vasco
Graça­‑Moura: «A exploração das relações em que Benn será, passe a expressão, um

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notas críticas 719

pessoano tardio, está por fazer e daria, por certo, resultados interessantes para uma
perspectivação das poéticas europeias do século xx.» (João Barrento)

GRAHAM GREENE (Hertfordshire, 1904 – Vevey, 1991). Antes de se tornar um


romancista aclamado, dedicou­‑se ao jornalismo. O autor nunca abandonou total‑
mente a escrita jornalística, que terá influenciado a dimensão inquiridora da sua
ficção, atenta aos problemas e às transformações do mundo contemporâneo. A pre‑
dilecção pela trama política e por questões de moral atravessa a obra do escritor bri‑
tânico, dividida entre uma vertente mais literária, em títulos como O Poder e a Glória
(1940) e O Fim da Aventura (1951), e uma mais ligeira, associada ao género do thriller
e à espionagem, em O Agente Secreto (1939) ou O Americano Tranquilo (1955). Esta se‑
gunda faceta da obra de Greene manifestou­‑se ainda numa colaboração com o ci‑
nema noir, através do guião para O Terceiro Homem (1949, real. Carol Reed), escrito
pelo próprio a partir de uma novela sua publicada posteriormente. (Amândio Reis)

GUILLAUME APOLLINAIRE (1880-1918) foi um dos grandes poetas franceses


da primeira década do século xx, responsável por uma série de inovações estilísti‑
cas, métricas e temáticas (colectânea Alcools, 1918) que, associadas ao seu grande co‑
nhecimento das tradições poéticas anteriores, o tornam num dos nomes cimeiros
do modernismo europeu. Ao lado de poemas de uma simplicidade de enorme efeito
hermenêutico, como o escolhido («Le pont Mirabeau»), Apollinaire avançou com
inovações formais que viriam a transformar a poesia do século xx, como os famosos
Caligrammes (1918), poemas que fazem convergir as dimensões verbal e pictórica
num único texto, revolucionando assim a suposta necessidade da linearidade do
verso e desta forma contribuindo para a importância das vanguardas modernistas.
Foi ele que também cunhou, com André Breton, o conceito de surrealismo, assim
manifestando a profunda dinâmica literária e invenção verbal com que estava com‑
prometido. (Helena Carvalhão Buescu)

GUILLAUME DE POITIERS (1071­‑1127) é o mais antigo trovador conhecido. As


suas canções — os primeiros poemas líricos numa língua moderna — revelam uma
poética já configurada na dupla vertente que a constitui: o código amoroso cortês e
a elaborada estrutura versificatória e musical. A par da lírica cortês que, sob o mo‑
delo da relação de vassalagem, enaltece a submissão à dama­‑suserana e o desejo in‑
satisfeito, o corpus de 11 canções de Guillaume de Poitiers que nos chegou inclui um
conjunto de poemas de temática obscena, que exaltam o amor físico e a sexualidade
em termos muito crus. De tom cortês, a canção cujo texto é aqui reproduzido, sem
deixar de exaltar o corpo desejado da amada e a paixão sensual, canta o «perfeito»
amor e o sofrimento, metaforizado pela morte. (Margarida Madureira)

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GÜNTER GRASS (Danzig, 1927 – Lübeck, 2015), nascido na actual Gda sk, Po‑
lónia, será provavelmente o autor de língua alemã mais reconhecido internacional‑
mente pela sua obra literária publicada na Alemanha do pós­‑guerra. Artista plástico
de formação, foi na pele de romancista que se notabilizou como a figura central
(e sempre polémica) de uma «consciência histórica alemã». Fez parte do famoso
grupo literário Gruppe 47, no seio do qual apresentou o seu romance O Tambor de
Lata (1959), a primeira parte das três obras que, com O Gato e o Rato (1961) e O Cão
de Hitler (1963), perfazem a sua «trilogia de Danzig». Grass foi galardoado com o
Prémio Nobel da Literatura em 1999. Em 2006 foi alvo de duras críticas aquando
da publicação da sua autobiografia Descascando a Cebola, em que revela ter integrado
as Waffen SS aos 17 anos. (Joana Moura)

GUSTAVE FLAUBERT (1821­‑1880). Escritor francês, foi um dos maiores ficcio‑


nistas do século xix. Considerado como mestre do realismo, a sua capacidade fi‑
gurativa, literária e inventiva marca toda a prosa subsequente. O seu romance de
estreia, Madame Bovary (1857), imediatamente revelou a força do seu estilo minu‑
cioso, a procura incessante da frase perfeita, a análise psicológica circunstanciada
de personagens que, no seu geral, se encontram todas contaminadas por preconcei‑
tos, desejos ilusórios, ambições mesquinhas, e nas quais dificilmente encontramos
reais valores éticos e morais. Este romance, considerado um dos exemplos maiores
do romance de adultério (feminino, bem entendido), conjuga­‑se com obras de dis‑
tinto e, no entanto, sempre perfeccionista alcance, como o fantástico Salambô; ou
o magnífico fresco amoroso e político condensado em Éducation sentimentale; ou a
sua obra póstuma Bouvard et Pécuchet, soberba enciclopédia sobre a mediocridade
da sociedade e do homem modernos. (Helena Carvalhão Buescu)

GUY DE MAUPASSANT (1850­‑1893) teve desde cedo aspirações literárias, mas


viu­‑se obrigado à vida de funcionário público até conseguir trabalho regular nos
jornais e poder dedicar­‑se de forma permanente à criação literária (1882). Escritor
realista, atraído pelo fantástico e obcecado pela ideia da morte, foi discípulo de
Flaubert e cultivou vários géneros, entre os quais o romance, mas é sobretudo como
contista — autor de contes, relatos de matriz oral, e de nouvelles, relatos de índole
literária — que se distingue. O preâmbulo do conto «Aparição» cria a ilusão de uma
narrativa­‑quadro realista, a que afinal se não voltará, e assegura a transição para o re‑
lato autobiográfico de um episódio de natureza fantástica, manifestamente traumá‑
tico, a que uma personagem nele mencionada dará voz. (Cristina Almeida Ribeiro)

HADEWIJCH, de quem pouco sabemos, é considerada a primeira poeta feminina


da literatura de língua neerlandesa. Ao contrário do que era habitual, escreveu em

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notas críticas 721

vernáculo, o que permitiu situá-la na região de Antuérpia, em meados do século


xiii. Há indícios de que terá sido beguina — mulher leiga que praticava uma vida as‑
cética dedicada ao cuidado dos necessitados, sem vínculo a qualquer ordem religio‑
sa. A sua obra compõe-se por visões, cartas e cantigas e revela-nos uma mulher eru‑
dita, familiarizada com textos místicos em latim, bem como com cantigas de amigo
provençais. Nas visões descreve a sua evolução espiritual, enquanto nas cantigas
se reflecte a influência da lírica trovadoresca provençal, sendo também, em alguns
casos, adaptações de textos litúrgicos. Nas cartas, em prosa ou rima, Hadewijch
pretende prestar conselhos de índole espiritual. (Patrícia Couto)

HALLDÓR LAXNESS (Reiquejavique, 1902­‑1998) é o mais importante autor da


literatura islandesa do século xx, tendo vencido o Prémio Nobel da Literatura em
1955. A sua obra é marcada por várias fases, sendo de particular relevo aquela in‑
fluenciada pela sua conversão ao catolicismo, em 1923, mas sobretudo a vincada pela
sua aproximação a ideias socialistas após uma estadia nos Estados Unidos da Amé‑
rica entre 1927 e 1929. É na sequência desse período que escreve Gente Independente
(1934­‑1935), o seu romance mais traduzido, em que narra as dificuldades da vida de
camponeses islandeses sujeitos a uma natureza inclemente e a um sistema económi‑
co em choque com as suas tradições. (Simão Valente)

HANS CHRISTIAN ANDERSEN (1805­‑1876). Autor dinamarquês com uma re‑


putação global pelos contos de fadas que escreve a partir de 1835, sendo «A princesa
e a ervilha» um dos primeiros. Trabalhou diversos géneros: romances, poemas, dra‑
mas, autobiografia e, enquanto viajante incansável, várias narrativas de viagem pela
Europa e Médio Oriente, tendo sido autor muito traduzido. Ao fazer sair o conto
de fadas para fora do quarto das crianças, transformou­‑o numa forma experimen‑
tal também dirigida aos adultos, por meio de subentendidos, narradores ambíguos,
experimentações discursivas e metafóricas, mantendo ao mesmo tempo uma au‑
diência infantil. Integrou as inovações tecnológicas do seu tempo no seu universo
imaginário, bem como, com frequência, uma crítica social e moral. A plasticidade
do seu trabalho com a forma do conto antecipa a prosa do modernismo literário.
(Svend Erik Larsen)

HAROLD PINTER (Londres, 1930­‑2008) é uma das vozes mais influentes da


dramaturgia britânica da segunda metade do século xx, tendo recebido o Prémio
Nobel da Literatura em 2005. A sua primeira peça longa — The Birthday Party (es‑
treada em 1958) — é recebida de forma muito singular. Por um lado, beneficia do
interesse geral pela nova dramaturgia kitchen sink dos angry young men; por outro,
é vista como herdeira das cosmogonias filosofantes de Beckett ou Ionesco (Martin

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Esslin dedica­‑lhe um capítulo em The Theatre of the Absurd, 1961). O tom enigmático
e elíptico — pinteresco — das suas «comédias de ameaça» dialoga criticamente com
a história política do século xx, com as suas utopias e as suas falências. (Rui Pina
Coelho)

HARRY MARTINSON (Jämshög, 1904 – Estocolmo, 1978) foi um autor sueco


vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1974. Depois de uma infância atribu‑
lada numa sucessão de orfanatos, Martinson transcorre a sua primeira juventude
como marinheiro, navegando à volta do globo e regressando à Suécia, onde viveu
anos em extrema pobreza. Estas experiências vieram a fornecer o material para a
sua obra literária, dividida em duas fases: num primeiro momento, a presença do
mar e das viagens a sítios longínquos, bem como o impacto de tais viagens na cons‑
ciência do sujeito; num segundo momento, Martinson revisita o que significa ser
criança, e a percepção do mundo e dos outros seres por parte de quem o é. Transcre‑
vemos um poema da sua primeira fase, «Ventos alísios», o qual acrescenta à viagem
marítima uma dimensão histórica. (Simão Valente)

HEINER MÜLLER (1929-1995) foi um dramaturgo, encenador, poeta e ensaísta


alemão. Figura marcante do teatro de expressão alemã, a sua influência levou­‑o a as‑
sumir a direcção da Berliner Ensemble em 1992. Inicialmente acolhido e galardoado
pelo Estado da República Democrática Alemã, verá em 1961 peças suas censuradas
pela mesma RDA. Do outro lado do muro, crescia a circulação e o entusiasmo pela
sua obra. As suas peças, de cariz fragmentário e com um imaginário propositada‑
mente pesado e enigmático, representam o apogeu do teatro alemão desde Bertolt
Brecht. A Missão transporta o leitor e/ou espectador para uma reflexão sobre a his‑
tória da violência através de um discurso que ameaça a qualquer momento pender
para a anarquia. (Francisco Marques)

HEINRICH HEINE (1797­‑1856) é um autor alemão pertencente a uma geração que


procurou emancipar­‑se da herança clássico­‑romântica. Ideias — O Livro de Le Grand
é um belo e complexo texto narrativo, publicado nos Quadros de Viagem I (1827). A nar‑
rativa de uma rejeição amorosa e o diálogo com Madame enquadram uma sequência
autobiográfica que narra o momento histórico da entrada das tropas napoleónicas
em Düsseldorf e a subsequente transferência do poder, recordada por uma criança.
A uma inicial atmosfera fúnebre, projectada num sonho semelhante a um perverso
conto de fadas, segue­‑se uma celebração colectiva. Ao constatar a proximidade entre
o sublime e ridículo, o narrador revela um entendimento da existência e da circulari‑
dade da História, com repercussões no plano estético. Tal visão surge, neste excerto,
nos efeitos risíveis do episódio da mudança de regime. (Fernanda Mota Alves)

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notas críticas 723

HEINRICH VON KLEIST (1777­‑1811) pode ser considerado um dos autores mais
originais e intemporais da literatura alemã. Distinguiu­‑se sobretudo na narrativa
curta e no drama e foi praticamente ignorado pelos seus contemporâneos, embora
tenha conhecido Goethe e Schiller em Weimar e Goethe tenha chegado a encenar,
no Teatro da Corte de Weimar, sem sucesso, uma das suas peças. É também con‑
temporâneo dos autores do primeiro romantismo alemão, com os quais não mante‑
ve relações, tendo ficado célebre o seu suicídio combinado, em 1811, com a amiga,
Henriette Vogel. Foi fortemente influenciado por Kant (que refere nas suas cartas),
sobretudo pela ideia de que a observação modifica a percepção dos fenómenos,
predominando nas suas narrativas situações catastróficas e eticamente comple‑
xas, representando por vezes classes sociais que se tornarão frequentes, mais tarde,
na época do realismo. O Anfitrião, no drama, Michael Kohlhaas e A Marquesa de O...
(1810), na narrativa, são exemplos de uma obra curta, original, solitária e inclassifi‑
cável, mas de um brilho ainda intenso. (Fernanda Gil da Costa)

HENDRIK MARSMAN (1899-1940), poeta, tradutor e crítico, é considerado o


maior representante do expressionismo e vitalismo neerlandês. O seu primeiro li‑
vro, intitulado Verzen («Versos», 1923), de capa vermelha, marcou um momento úni‑
co na literatura neerlandesa graças, desde logo, à sua tipografia ousada, mas, em
especial, à visão cósmica proposta e à metafórica efervescente. Em 1939 publicou
Tempel en Kruis («Templo e Cruz»), onde o poeta, numa longa odisseia repleta de mo‑
tivos clássicos, empreende uma demanda dos valores universais. Ao longo da vida,
passou muito tempo no estrangeiro, nomeadamente com o escritor Albert Vigoleis
Thelen. Por seu intermédio traduziu São Jerónimo, São Paulo e Aforismos, de Teixeira
de Pascoaes. Com a intenção de se refugiar em Portugal, obteve um visto assina‑
do pelo cônsul Aristides de Sousa Mendes. No entanto, embarcou com destino a
Inglaterra, tendo morrido quando o navio foi torpedeado por um submarino ale‑
mão. (Patrícia Couto)

HENRI MICHAUX (1899-1984) foi um escritor, poeta e pintor belga naturalizado


francês. A leitura da obra de Lautréamont levou-o a interessar-se pela literatura.
A obra de Michaux é tão diversa que não se encaixa em nenhuma filiação literária.
Expatriado do mundo e alienado de si próprio, viajando por países estrangeiros ou
imaginários, cultivou um estilo mágico, irreal. Explorador do inconsciente, chegou
a experimentar alucinogénios numa tentativa de alcançar uma liberdade mais pura.
Das viagens pelo mundo resultaram obras como Equador e Um Bárbaro na Ásia. Das
explorações para o interior testemunha Miserable miracle (1972). Em 1938 publicou a
sua obra mais conhecida, Um Certo Plume, colectânea de narrativas em prosa ou em
poesia em torno de uma personagem chamada Plume. (Patrícia Couto)

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HENRIK IBSEN (Skien, 1828 – Oslo, 1906) é um dos nomes maiores da tradição
dramática realista, em grande medida fundando o teatro moderno. Nascido na No‑
ruega, à altura território governado pela Dinamarca, escreveu sobretudo em dina‑
marquês, evoluindo ao longo da sua carreira para uma linguagem mais próxima da‑
quela do seu país nativo. Afastando­‑se da herança romântica de uma prática teatral
moralizante, Ibsen procura retratar as vicissitudes da vida familiar burguesa, os re‑
ceios e indignidades que ocorrem em privado. Duas das suas obras mais importan‑
tes estão incluídas nesta antologia, Casa de Bonecas (1879), retratando as dificuldades
de realização pessoal encontradas pelas mulheres no século xix. (Simão Valente)

HENRYK SIENKIEWICZ (1846­‑1916), nobre polaco, romancista, contista, jor‑


nalista e tradutor. Prémio Nobel da Literatura em 1905. Participou na Insurreição
de Novembro (1830­‑1831) contra a Rússia, que subjugava a Polónia. Viveu na Améri‑
ca do Norte e viajou pela Europa. A sua obra cedo conquistou o aplauso dos leitores
e dos críticos. Os contos, influenciados pelo naturalismo francês, revelam a sensibi‑
lidade do escritor face a situações do seu tempo, enquanto os romances (a trilogia A
Fogo e Ferro, O Dilúvio e O senhor Wołodyjowski) versam acontecimentos da gloriosa
história da Polónia com vista a «reconfortar os corações», lembrando as lições de
patriotismo de uma nação outrora soberana. O romance histórico Quo Vadis? (1896)
trouxe­‑lhe a aclamação na Europa e no mundo, sendo traduzido para 57 línguas. Ao
receber o Prémio Nobel, Sienkiewicz declarou que a distinção era particularmente
valiosa para um filho da Polónia, país declarado morto que, naquele prémio, dava
prova de vida. (Teresa Fernandes Swiatkiewicz)

HERMANN BROCH (1886­‑1951) foi um romancista e ensaísta austríaco, unani‑


memente considerado um dos maiores vultos do modernismo europeu. Procurando
estar à altura dos preceitos teóricos do romance poli­‑histórico e gnosiológico que
ele próprio preconizou, os seus romances polimorfos espelham uma busca pelo ab‑
soluto e pela unidade. Tanto a trilogia Die Schlafwandler (Os Sonâmbulos, 1930­‑1932),
como o romance Die Schuldlosen (1951), reflectem formalmente essa desagregação
e essa perda de unidade, já que ambos os projectos mesclam diferentes géneros,
vozes e épocas, ilustrando a perda da totalidade que caracteriza a época moderna.
H. Arendt apelidará Broch de um poeta «à sua própria revelia». Será esta tensão
biográfica e ontológica que se plasmará em matéria literária no seu magnum opus em
torno da morte de Virgílio: Der Tod des Vergil (1945), cuja versão inicial, «O regresso
de Virgílio», aqui se reproduz. (Ricardo Gil Soeiro)

HERMANN HESSE (Calw, 1877 – Montagnola, 1962), nascido no reino de


Württemberg, no antigo Império Alemão, obteve a nacionalidade suíça em 1923,

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notas críticas 725

depois de viver mais de uma década no país para onde se expatriou devido a proble‑
mas familiares, a seguir a uma longa viagem, com aspirações espirituais, ao Oriente.
A relação aberta com formas alternativas de espiritualidade, que se seguiu à rigidez
de uma educação religiosa tradicional, marca indelevelmente a obra do autor de
Siddhartha (1922), romance directamente inspirado por uma viagem à Índia, no qual
se revela preponderante o interesse do escritor pela teosofia e pelo Budismo. Esta
atracção pelo que transcende ou desafia os limites do humano influenciará ainda
outra das suas obras mais célebres: O Lobo das Estepes (1927). Hesse foi galardoado
com o Prémio Nobel da Literatura em 1946. (Amândio Reis)

HERTA MÜLLER (1953­‑) foi Prémio Nobel da Literatura em 2009. Nasceu na al‑
deia de Ni chidorf (Roménia), no seio de uma minoria de língua alemã, na região do
Banat. A sua obra, novelística, poética, ensaística, ressuma a dura atmosfera do pós­
‑guerra e do regime totalitário do ditador Ceau escu, onde imperam a repressão, o
controlo, o silêncio e o medo. A sua escrita é simultaneamente biográfica e universal
e começa a projectar­‑se internacionalmente sobretudo depois de se ter exilado em
Berlim, em 1987 — biográfica, pelo pano de fundo pessoal e familiar (os campos de
trabalho soviéticos, o meio rural romeno, as visitas e interrogatórios da Securitate,
o colaboracionismo dos alemães do Banat); universal, pelo carácter muitas vezes
parabólico, pelo rompimento de fronteiras entre o real e o fantástico, pela constru‑
ção fragmentária ou elíptica e pela coexistência multicultural e multilinguística, de
que, no conjunto das mais de duas dezenas de obras publicadas, Atemschaukel (2009,
Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo) é o mais acabado exemplo. (Fernanda Gil Costa)

HOMERO. A existência de Homero, presumível autor da Ilíada e da Odisseia, é ain‑


da hoje questão controversa e insolúvel. Uma coisa é certa, depois dos trabalhos de
Milman Parry (1902­‑1935), é indiscutível que os poemas homéricos foram objecto
de uma longa tradição oral antes de passarem a escrito, porventura a partir do sécu‑
lo viii a.C. e até à fixação do texto na época de Pisístrato, no século vi a.C. De qual‑
quer modo, «Homero», considerado o educador da Grécia, marcou profundamente
toda a cultura grega e consequentemente a cultura ocidental. A Ilíada, o poema da
cólera de Aquiles, é expressão primeira do espírito heróico, moldado na consciência
da brevidade da vida, e a Odisseia, o poema do regresso de Ulisses da guerra de Tróia,
é a obra fundadora da literatura de viagem, prefigurando as declinações da «nostal‑
gia» que a literatura futura forjará. (José Pedro Serra)

HONORÉ DE BALZAC (1799­‑1850) foi um dos grandes mestres do romantismo


e realismo franceses. Portentoso autor de uma prolífica obra narrativa, publicou
cerca de 95 títulos (romances, contos e novelas), organizando­‑os em torno da ideia,

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que constitui o seu opus magnum, da Comédie Humaine — um longo fresco social e
psicológico da sociedade pós­‑napoleónica, na primeira metade do século xix. Criou
personagens inesquecíveis, muitas das quais dão título ao romance que protagoni‑
zam, como Le père Goriot, Eugénie Grandet ou La cousine Bette. A sua densa e complexa
análise psicológica permite reencontrar personagens inseridas numa complexa teia
social e de afectos, expondo com destreza os fundamentos e os desvios da sociedade
burguesa, o núcleo familiar sobre que assenta, e os valores do capitalismo emergen‑
te. Balzac é ainda um mestre na análise da materialidade do mundo que o século xix
ostenta, dando origem a descrições que são uma característica maior do seu estilo.
(Helena Carvalhão Buescu)

HORÁCIO (65 a.C. – 8 a.C.). Considerado por muitos como o maior poeta líri‑
co de Roma, Quinto Horácio Flaco escreveu as Odes, Sátiras, Epodos e Epístolas. De
entre as Epístolas salienta­‑se, pela sua importância na produção teatral europeia, a
Epistula ad Pisones, mais conhecida por Arte Poética, designação que já encontramos
em Quintiliano, em que veicula conceitos aristotélicos de unidade dinâmica e de
verosimilhança, mas a que junta um desejo de perfeição formal que vem da tradição
alexandrina, num tom prescritivo. A sua poética teatral tornou­‑se cânone inevitável
a partir do Renascimento, moldando formalmente a tragédia europeia, que seguiu
escrupulosamente os seus preceitos. A elaboração, o requinte aristocrático, o epi‑
curismo confessado das suas odes, filosofia de vida cristalizada em fórmulas como
o célebre carpe diem ou o encómio da aurea mediocritas, deram­‑lhe um renome e uma
influência que haviam de perdurar na república das letras. (Luís Cerqueira)

HUGO CLAUS (1929-2008), poeta, dramaturgo, pintor e cineasta flamengo, foi o


mais galardoado autor das letras neerlandesas. Ao longo da sua carreira escreveu mi‑
lhares de poemas, dezenas de peças teatrais e mais de 20 romances. Estreou-se com
A Caça aos Patos, romance escrito aos 21 anos. Na época, porém, considerava-se so‑
bretudo artista plástico e foi viver para Paris, onde dividiu a casa com o pintor Karel
Appel e se juntou ao grupo CoBrA. Como poeta, integrou o grupo experimental
Vijftigers (Geração de Cinquenta). Em 1983, publicou a sua obra-prima, O Desgosto
da Bélgica, romance cuja acção se desenrola numa provinciana e preconceituosa vila
flamenga e relata a ocupação pelos alemães em 1940, entendida por muitos como
uma libertação. O livro quebra o tabu ao narrar o colaboracionismo. Controverso
até à morte e sofrendo de Alzheimer, recorreu à eutanásia. (Patrícia Couto)

IAN MCEWAN (1948­) é autor de contos e de romances, de libretos de ópera e de


argumentos cinematográficos. Ganha primeiro visibilidade, na década de 70, com
narrativas curtas que, em tons sombrios ou mesmo sórdidos, distanciadas expõem

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notas críticas 727

perturbações emocionais ignoradas pela indiferença social. A obra vasta interpela


a nossa condição, reitera interrogações éticas, questiona seduções do racionalismo
e da ciência num mundo secular. Através da liberdade imaginativa da ficção, e de
algum experimentalismo, procede a uma cartografia da contemporaneidade. E ao
eclodir do irracional na racionalidade (mais ou menos) polida do quotidiano vai res‑
pondendo que a literatura é, ainda, um modo privilegiado de investigar, porventura
compreender, quem somos enquanto seres humanos. Traduzido em mais de 30 lín‑
guas, tem recebido respeito crítico a par de sucesso comercial. Por um desses pas‑
ses de mágica que, ainda, às vezes surpreendem, Atonement (2001), uma obra maior,
é também a mais reconhecida. (Luísa Maria Flora)

IMRE KERTÉSZ (1929­‑2016). Jornalista, operário, dramaturgo, tradutor do ale‑


mão, diarista, ensaísta, Kertész foi o primeiro Nobel da Literatura (2002) da Hún‑
gria. Identificado com o herói de Sem Destino (Sorstalanság, 1975; também filme,
2005), Köves György, é deportado em 1944 com a família judia para Auschwitz e
transferido para Buchenwald. O momento da prisão volta em A Recusa (A kudarc,
1988; a recusa de Sem Destino nas editoras oficiais, após dez anos de escrita), uma
prosa obsessiva com parágrafos que se repetem e dezenas de frases entre parên‑
tesis, sucedendo­‑se. A sua trilogia decisiva sobre o Holocausto fecha com Kaddish
para Uma Criança Que não Vai Nascer (Kaddis a meg nem született gyermekért, 1990), um
futuro em negativo, que é outra recusa — além do comunismo, do capitalismo, da
judeidade. (Ernesto Rodrigues)

IOAN ES. POP (1958) é natural da região romena de Maramureş. Durante seis anos
estudou na aldeia de Ieud (Maramureş), ponto de partida do seu primeiro volume
de poesia. Desde o ano de 1989, Pop vive em Bucareste, onde trabalha como jorna‑
lista e editor. Em 1994, fez a sua estreia literária com o volume Ieudul fără ieşire («O
Ieud sem Saída»), seguido depois por Porcec em 1996, Pantelimon 113 bis, em 2000, e
a antologia Podul («A Ponte»), em 2000. Publicou igualmente os volumes de poe‑
sia Rugăciunea de antracit («A Prece de Antracite»), Confort 2 îmbunătăţit («Conforto
2 Melhorado», em colaboração com o poeta Lucian Vasilescu), Unelte de dormit
(«Utensílios de Dormir») ou Căderea-n sus a corpurilor grele («A Queda para Cima dos
Corpos Pesados»). (Corneliu Popa)

IOAN MURE AN (1958) é um poeta romeno contemporâneo, membro do Cená‑


culo Echinox de Cluj, construído em torno de Marian Papahagi. Fez também parte
do Cenáculo Saeculum. Actualmente é editor­‑chefe da revista Verso, de Cluj, e o
seu volume de poesia, O Livro Álcool, é «posto em cena» e «cantado» pela actriz Ada
Milea no palco do Teatro Notarra de Bucareste. (Roxana Ciolaneanu)

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ION LUCA CARAGIALE (1852­‑1912) é um dos quatro grandes clássicos da litera‑


tura romena, juntamente com Mihai Eminescu, Ioan Slavici e Ion Creang. É espe‑
cialmente conhecido pela sua obra dramatúrgica, mas também pelas suas novelas
fantásticas. Depois do escândalo sobre o drama Năpasta — em que foi injustamente
acusado de plágio (a história da literatura registou o famoso processo Caragiale­­
‑Caion), Caragiale escolheu exilar­‑se voluntariamente em Berlim, onde ficou até à
morte. (Roxana Ciolaneanu)

IRIS MURDOCH (Dublin, 1919 – Oxford, 1999) foi uma escritora e filósofa
anglo­‑irlandesa, particularmente reconhecida pela precisão e finura dos estu‑
dos psicológicos das personagens dos seus romances. Professora de Filosofia na
Universidade de Oxford, com trabalho especificamente na área da moral, afir‑
mou-se contudo pela literatura de ficção junto do grande público, tendo tido
grande sucesso desde a sua primeira publicação, Sob a Rede (1964). Consagra-se
com O Mar, O Mar (1978), romance vencedor do Prémio Booker, o mais importan‑
te do Reino Unido. Transcrevemos aqui um excerto de Os Olhos da Aranha (1956),
romance cuja personagem principal, Mischa Fox, é vista como uma representa‑
ção do escritor Elias Canetti, igualmente representado nesta antologia. (Simão
Valente)

ISMAIL KADARÉ (Gjirokastër, 1936) é o escritor albanês mais lido e traduzido


internacionalmente, tendo obtido vários dos principais prémios literários, entre
os quais o Man Booker International (2005), o Príncipe das Astúrias (2009) e Je‑
rusalém (2011). A sua obra é um retrato da vida num Estado totalitário, especifica‑
mente a Albânia comunista de Enver Hoxha, onde o autor viveu e trabalhou toda
a sua vida, contrabandeando a sua obra via França para o resto do mundo. Tal foi
o caso do texto aqui incluído, A Filha de Agamémnon, obra escrita em 1985 e pu‑
blicada em 2003, em que se narra a história de um jornalista não completamente
alinhado com o regime, sem, contudo, se lhe opor abertamente, a partir do mo‑
mento em que acaba a sua relação amorosa com a filha do ditador, por iniciativa
desta. (Simão Valente)

ITALO CALVINO (Santiago de las Vegas, 1883 – Siena, 1985) cresceu entre a Ligú‑
ria e Turim, capital do Piemonte e importante centro cultural italiano. É nessa ci‑
dade que amadurece intelectual e politicamente, participando na resistência à ocu‑
pação nazi e, na sequência da guerra, trabalhando para a editora Einaudi, ainda hoje
uma das mais importantes em Itália. Mantém ao longo da sua obra um interesse em
usos do fantástico com implicações existenciais, algo que se manifesta na trilogia
O Visconde Cortado ao Meio (1952), O Barão Trepador (1957) e O Cavaleiro Inexistente

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notas críticas 729

(1959). Na recta final da sua carreira, Calvino produz obras marcadas pelo experi‑
mentalismo formal pós­‑moderno, do qual são exemplo As Cidades Invisíveis (1972) e
Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979). (Simão Valente)

IVAN TURGUÉNIEV (Oryol, 1818 – Bougival, 1883). Embora seja hoje conside‑
rado um dos maiores nomes da literatura realista na Rússia do século xix, não foi
popular junto dos seus pares, entre os quais Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói, devi‑
do ao seu manifesto interesse pela arte, pela cultura, e pelas estruturas políticas da
Europa Ocidental e Central. Viveu em Baden­‑Baden e em Paris, onde desenvolveu
uma amizade com autores como Gustave Flaubert. Não obstante, a sua obra lida
com a Rússia do seu tempo, notavelmente Pais e Filhos (1862), escrito segundo os
pressupostos realistas promovidos pelo influente crítico Vissarion Belínski. A so‑
fisticação do trabalho de Turguéniev com a focalização e o ponto de vista, desen‑
volvido em Primeiro Amor (1860), suscitou o interesse particular de vários autores
precursores do modernismo literário, tais como Joseph Conrad ou Henry James,
que lhe dedicou cinco ensaios. (José Bértolo)

IVO ANDRI (1892-1975) foi um poeta e autor de origem bósnia, laureado com
o Prémio Nobel da Literatura em 1961. Tendo nascido sob a ocupação austríaca da
Bósnia, Andrić viu suceder-se ao poder austríaco um reino jugoslavo que culminaria
na formação da República Socialista e Federal da Jugoslávia. Preso por suspeita de
envolvimento no assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, ainda
que as poucas provas apresentadas não fortalecessem a acusação, o autor viria mais
tarde a ocupar cargos de cerimónia na estrutura social jugoslava. A sua obra reflecte
um conhecimento profundo do meio em que cresceu, com uma aguda consciência
da sempre pendente indiferença perante o outro. (Francisco Marques)

J.J. SLAUERHOFF (1898-1936) publicou enquanto estudante os seus primeiros


poemas, que revelam fortes afinidades com poetas «malditos» como Baudelaire,
Rimbaud, Verlaine, Hölderlin, Poe ou Rilke. Em 1923, começou a trabalhar como
médico de bordo e conhece Lisboa, Moçambique e Macau. Em 1927, publicou
um livro de poesia, Oost-Azië («Extremo Oriente»), que inclui poemas dedicados a
Macau. Encontramos recordações das visitas a Portugal na coletânea Soleares (1933),
que contém uma secção intitulada «Saudade». Tal como fez de Lisboa e Macau pro‑
jecções do seu mal-estar, transformou também a figura de Camões, transpondo
para ela as suas próprias obsessões. De todos os poetas, Camões é a personagem
mais recorrente na obra de Slauerhoff. Em 1932, publicou Het Verboden Rijk («O
Reino Proibido»), onde uma das personagens principais é baseada na figura do
poeta quinhentista, que volta a surgir no conto «Laatste Verschijning van Camoës»

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(«Última aparição de Camões», 1935). Recentemente, o disco Cristina Branco Canta


Slauerhoff foi um sucesso nos Países Baixos, no qual poemas de Slauerhoff foram tra‑
duzidos para português por Mila Vidal Paletti e adaptados para fado por Custódio
Castelo. (Patrícia Couto)

J.R.R. TOLKIEN (Bloemfontein, 1892 – Bournemouth, 1973) é mais conhecido


pela sua obra ficcional, em particular O Hobbit (1937) e a trilogia O Senhor dos Anéis
(1954). Mas Tolkien foi, em primeiro lugar, um filólogo e um professor universitário
cujo interesse em línguas o levou a enveredar pelo estudo de obras medievais que se
encontram na génese da mitologia que pretendeu oferecer a Inglaterra e de que esta
carecia. Acreditando que os mitos são histórias reais, bem como no poder da pala‑
vra, Tolkien cruza múltiplas tradições para criar, ou subcriar, um mundo secundário
«verdadeiro», dotado de raças, lugares, línguas diversas com estruturas linguísticas
diferentes, eras e genealogias. Além das obras que integram o legendarium da Terra-
Média, Tolkien escreveu ainda ensaios linguísticos, poemas em inglês e em línguas
por ele inventadas, e histórias para os filhos, algumas delas ilustradas pela sua pró‑
pria mão. Pelo seu contributo para a consubstanciação do fantástico, Tolkien é um
precursor da fantasia moderna. (Angélica Varandas)

J. W. GOETHE (1749­‑1832) é o poeta nacional alemão e um dos escritores euro‑


peus mais universalizados. É autor de algumas das obras mais lidas, traduzidas e
imitadas, como Os Sofrimentos do Jovem Werther, um dos primeiros e maiores bestseller
europeus, e de Fausto (Partes I e II), que a partir da versão goethiana se tornou num
símbolo da ambiguidade humana, do homem europeu e suas conquistas e ideia de
progresso, e uma inspiração para todas as artes, incluindo o cinema. Goethe foi
também um poeta multifacetado, um viajante (a sua Viagem a Itália é hoje ainda
um livro apaixonante), um político bem­‑sucedido (primeiro­‑ministro do ducado de
Sachsen­‑Weimar de 1775 até à sua morte) e um estudioso incansável das ciências na‑
turais e das principais teorias e descobertas científicas do seu tempo. A diversidade
da sua obra e a sua permanente aspiração de modernidade explicarão porventura o
facto de ele ter sido considerado simultaneamente um expoente do neoclassicismo
e um precursor do romantismo europeu. (Fernanda Gil Costa)

JAAN KROSS (Talin, 1920-2007) é o mais importante autor da literatura estónia,


tendo alcançado um estatuto de verdadeiro símbolo nacional. Experimentou os ri‑
gores da ocupação nazi, sendo feito prisioneiro em 1944, e do domínio soviético,
passando oito anos num gulag. A sua obra literária consiste sobretudo em poesia e
romance, frequentemente de âmbito histórico, recuperando o passado medieval e
barroco da Estónia em fábulas que criticam e interrogam o seu presente. Em para‑

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notas críticas 731

lelo, tem também uma linha de romances autobiográficos. Kross trabalhou também
como tradutor, sobretudo do russo, inglês e francês. É comparável a Thomas Mann
na sua estética e ambição polifónica. O Louco do Czar, do qual reproduzimos um ex‑
certo, é um exemplo da veia de romance histórico do autor, tendo lugar no reinado
do czar Alexandre I. (Simão Valente)

JACQUES PRÉVERT (1900­‑1977) foi um poeta francês que marcou uma tradição
da poesia novecentista, tendo ainda colaborado como letrista e escritor de guiões
para o cinema e o teatro. As suas obras, sobretudo Paroles (1946) e Spectacle (1951),
dão conta de uma poesia baseada no diálogo, ditada pelo reconhecimento de que a
linguagem familiar e quotidiana contém um conjunto de possibilidades de lingua‑
gem poética, que Prévert explora em particular através de jogos de palavras, de si‑
nestesias e do uso de listas caóticas (e, por isso, surpreendentes). (Helena Carvalhão
Buescu)

JAMES JOYCE (1882­‑1941), autor de Música de Câmara (1907), Exilados (1918),


Dublinenses (1914) e Retrato do Artista Quando Jovem (1916), é um influente escritor
modernista, conhecido sobretudo pela prosa inovadora de Ulisses (1922) e Finnegans
Wake (1939). Optando pelo exílio desde 1904, será a partir de Trieste, Pula, Paris
e Zurique que Joyce escreverá sobre Dublin com o intuito de dar aos seus conci‑
dadãos «um espelho bem polido» que lhes permitisse tomar consciência da «para‑
lisia» imposta à Irlanda colonial pelos três poderes que a dominavam: o Império
Britânico, a Igreja Católica e o nacionalismo irlandês, vendo Joyce nos dois últimos
não uma alternativa ao colonialismo inglês, mas versões restritivas da identidade
irlandesa, reduzida à sua matriz celta e católica e negligenciando as heranças con‑
tinentais que também o atraíam, de Homero a Dante e Ibsen. É essa aliança entre
cosmopolitismo e um «escrupuloso» realismo que caracterizam a inovação estilísti‑
ca de Joyce. (Teresa Casal)

JAN POTOCKI (1761-1815), nobre polaco, romancista e dramaturgo, que escre‑


veu em francês. Viajante, político, historiador, etnógrafo, arqueólogo e estudioso
da antiguidade eslava. Estudou na Suíça e em França, tendo levado para a Polónia o
espírito do iluminismo francês. Em Varsóvia, foi deputado do parlamento e fundou
uma tipografia (1788­‑1792), onde imprimia escritos de carácter jornalístico. Foi um
dos primeiros aeronautas polacos, tendo levantado voo num balão, em 1790. Sofria
de melancolia, o que o levou ao suicídio. É sobretudo conhecido como autor do
romance, Manuscrit trouvé à Saragosse (1803­‑1815). A tradução para polaco de 1847,
intitulada Rękopis znaleziony w Saragossie, foi a primeira versão integral publicada,
já que a versão original e integral francesa só viria a lume em 1958. Considerado um

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romance fantástico, gótico, picaresco e filosófico, foi traduzido para várias línguas
europeias, sendo muito apreciado pela crítica contemporânea. (Teresa Fernandes
Swiatkiewicz)

JANE AUSTEN (1775­‑1817) nasceu em Steventon, Inglaterra. Educada maioritaria‑


mente em casa, teve no entanto acesso a uma formação invulgarmente rica para
uma mulher do seu tempo, facilitada pelo pai, reverendo da Igreja Anglicana que
recebia pupilos em regime de internato. Dotada de um aguçado espírito crítico,
começa desde cedo a escrever pequenos textos, modulados por, e frequentemente
parodiando, formas literárias populares à época (Juvenilia, 1786­‑1793). Quanto aos
seis romances que a definem como figura incontornável do romance inglês, publi‑
cará o primeiro, Sense & Sensibility, em 1811, seguindo­‑se mais três até 1815, sendo
publicados postumamente pela família outros dois. Romancista da domesticidade
e do quotidiano da gentry inglesa à qual pertencia, falecerá cedo, mas o seu nome
perdurará não apenas pela mestria enquanto romancista, mas também como par‑
te integrante da cultura popular que dela fez um ícone transmedial. (Ana Daniela
Coelho)

JAROSLAV HAŠEK (Praga, 1883 – Lipnice nas Sázavou, 1923). Na obra deste autor
checo, e na literatura europeia do século xx, o romance picaresco O Bom Soldado
Švejk (1921­‑1923) é um ponto alto da sátira a figuras de autoridade, especificamen‑
te no âmbito militar. Desde cedo Hašek demonstrou o inconformismo que viria a
caracterizar a personagem principal do seu romance, participando em actividades
anarquistas e lutando contra o domínio austro­‑húngaro da sua Boémia nativa. Não
obstante, participa — a tal forçado — na Primeira Guerra Mundial, no Exército
austríaco, uma experiência que viria a fornecer grande parte do material de O Bom
Soldado Švejk, cujo protagonista procura reiteradamente subverter o nacionalismo
e militarismo da sua sociedade, deparando­‑se com personagens pomposas que uma
e outra vez são expostas ao ridículo pelas suas acções. (Simão Valente)

JAUFRÉ RUDEL (século xii), activo em meados do século, é um trovador de bio‑


grafia tão incerta quanto mitificada, de quem se diz ter sido senhor de Blaye, parti‑
cipante na segunda cruzada e apaixonado pela condessa de Tripoli, em cujos braços
terá morrido, dando novo sentido à morte de amor. O exercício mitográfico inicia‑
do com a vida que os cancioneiros registam assenta na coesão de um breve corpus
poético, integralmente organizado em torno de um amor de longe que incessante‑
mente se perfila no horizonte do desejo. Avulta no conjunto a canso «Quando longos
são os dias em Maio», pontuada pela repetição encantatória do longe que só no plano
imaginário ou onírico parece poder tornar­‑se perto. (Cristina Almeida Ribeiro)

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notas críticas 733

JAVIER MARÍAS (Madrid, 1951) é um dos escritores espanhóis mais conhecidos e


traduzidos das últimas décadas, em especial desde a publicação do romance Corazón
tan blanco (1992). Foi tradutor literário, e colabora regularmente com a imprensa,
tendo publicado diversos volumes reunindo artigos e crónicas. A obra narrativa de
Javier Marías é constituída principalmente por romances, caracterizando­‑se o seu
discurso pelo jogo irónico com a autoficção, o ensaio histórico, a análise psicológica
e a reflexão metafísica. Exemplo maior deste modelo narrativo é o romance, em três
volumes, Tu rostro mañana (2002­‑2007), em que, face à memória da Guerra Civil e
do franquismo, se exploram os temas da confiança, da traição e da responsabilidade
moral dos indivíduos. (Ângela Fernandes)

JEAN GENET (Paris, 1910­‑1986) escreveu teatro e romance, contando­‑se entre


os grandes nomes da dramaturgia francesa e, ainda hoje, entre os mais representa‑
dos. Abandonado pela mãe, grande parte da sua existência decorreu em instituições
assistenciais e em prisões como a de Fresnes, onde compôs O Condenado à Morte
(1942). Seguiram­‑se vários romances autobiográficos, considerados licenciosos,
e com As Criadas (1947) enceta­‑se um ciclo dedicado ao teatro, em que se salientam,
ainda, peças como A Varanda (1956) ou Os Negros (1959), representadas em Portugal.
Em As Criadas, Claire e Solange, duas irmãs, multiplicam­‑se em jogos de representa‑
ção que atingem o seu clímax de violência e alucinação no solilóquio final da segun‑
da, seleccionado para este volume, corroborando a ironia trágica do todo. (Maria
Graciete Silva)

JEAN DE LA FONTAINE (Château­‑Thierry, 1621 ­– Paris, 1695) é, no essencial,


um poeta do seu tempo, com formação jurídica e experiência mundana adquirida
nos salões de mecenas como Fouquet e Madame de La Sablière, após uma breve
passagem pela Congregação do Oratório. Partidário dos Antigos, na sua oposição
aos Modernos, com intensa actividade junto dos círculos literários parisienses, foi
eleito para a Academia Francesa em 1683. Poeta galante e autor de obras devotas,
contista licencioso e comediógrafo, são, no entanto, as Fábulas que, geração após
geração, o mantêm vivo na memória colectiva. Publicadas em 12 volumes, entre
1668 e 1694, nelas se cumpre o desígnio de ensinar deleitando, em verso e subver‑
tendo o lugar da moralidade, como, no caso de «A raposa e as uvas», sugere o diálogo
com Esopo e Fedro. (Maria Graciete Silva)

JEAN RACINE (1639­‑1699). Considerado o maior tragediógrafo francês, Racine


publicou os seus mais importantes textos dramáticos entre 1664 (Andromaque) e
1691 (Athalie). De formação jansenista, o movimento que durante o século xvii de‑
fende e pratica um catolicismo de austeridade moral, e próximo pois de escritores

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como Mme. de La Fayette e La Rochefoucauld, Racine escolheu como protagonis‑


tas dos seus textos grandes figuras da tradição greco­‑latina e judaico­‑cristã (Phèdre,
Britanicus, Athalie, Bérénice), em torno das quais se situam problemas de escolhas
morais, políticas e passionais. Justamente, a moral torna­‑se paixão e política em
Racine, pelo que os erros dos protagonistas são invariavelmente inultrapassáveis.
Em Phèdre, o problema não reside no facto de Fedra ser ou não viúva, mas no facto
de que, independentemente disso, amou com culpa irremível o seu enteado Hyppo‑
lite. Do mesmo modo, em Andromaque, o jogo das paixões, do amor à indiferença
ou ao ódio, atravessa todas as personagens, dando da condição humana uma visão
pessimista. (Helena Carvalhão Buescu)

JEAN­‑JACQUES ROUSSEAU (Genebra, 1712 – Ermenonville, 1778). Apaixona‑


do pela música, por passeios a pé e por botânica, Rousseau é um ser de excessos
e de contrariedades, um ser de pathos. Destoando do espírito iluminista que o ro‑
deia, é dotado de um «coração sensível», característica que será a causa de todas as
desgraças da sua vida (cf. Confissões). No campo da filosofia política deixa­‑nos um
importante legado, resultante do seu interesse pelo estudo da natureza humana.
A sua visão da experiência social e política ganha forma n’O Contrato Social, escrito
em 1762. A sua última caminhada, num parque de Ermenonville, é feita em 1778.
Figura detestada por uns e aclamada por outros, Rousseau levou uma vida marcada
por contradições, à semelhança, dir­‑se­‑ia, de todas as vidas. (Camila Seixas e Sousa)

JEAN­‑PAUL SARTRE (Paris, 1905-1980) é, para além de qualquer controvérsia,


uma figura ímpar da cultura europeia do século xx e do pensamento existencialista,
que alia a actividade literária e filosófica (como romancista, dramaturgo e ensaísta)
à acção política. Entrou, em 1924, na Escola Normal Superior, concluindo, em 1929,
a agregação em Filosofia, juntamente com Simone de Beauvoir, sua companheira
de vida e de grandes causas, como a igualdade de género, seguindo­‑se a nomeação
como professor liceal no Havre, em 1931. A Náusea (1938), que o consagrou como
autor de ficção, apresenta­‑se como diário íntimo de um protagonista solitário, Ro‑
quentin, que, no extracto, se confronta com o Autodidacta, encenação de um siste‑
ma de pensamento inconciliável com um primado da existência assente na liberda‑
de de escolha. (Maria Graciete Silva)

JENS PETER JACOBSEN (1847­‑1885), autor dinamarquês e viajante europeu, di‑


vidia o seu tempo entre a ciência biológica, como botanista e tradutor de Charles
Darwin, e as suas criações literárias. Depois de um primeiro ataque de tuberculo‑
se, que se revelaria mortal, consagrou toda a sua vida à literatura. Dois romances,
uma colecção de novelas e poemas, foi tudo quanto escreveu, mas a sua obra foi

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notas críticas 735

imediatamente traduzida para uma audiência europeia, com Robert Musil, Rainer
Maria Rilke, Sigmund Freud e Arnold Schönberg entre os seus admiradores. Niels
Lyhne (1880) é o seu romance mais conhecido. Com o seu debate sobre o ateísmo e a
posição do homem solitário e alienado num mundo materialista, o romance é bem
filho do seu tempo, mas o seu estilo capaz de descrever uma complexidade emocio‑
nal fluida, com nuances perceptíveis finamente pormenorizadas, pertence também
ao modernismo novecentista. (Svend Erik Larsen)

JOACHIM DU BELLAY (1522-1560) foi um poeta renascentista, membro ilustre


do grupo de poetas conhecido como La Pléiade (que incluía, entre outros, Pierre
de Ronsard). Começou por publicar um manifesto a favor da nobreza dos usos lite‑
rários da língua francesa, Défense et illustration de la langue française (1549). Sendo um
poeta dedicado à causa nacional, e em particular à sua terra natal, Liré, foi enviado
a Roma como emissário junto da corte papal, e aí confirmou, em recolhas poste‑
riores como Les regrets ou Les antiquités de Rome, ambos de 1558, a sua permanente
ligação afectiva ao seu «país natal». Este soneto, escrito em alexandrinos (também
uma novidade da Pléiade), é considerado uma obra-prima da poesia francesa. Nele,
Du Bellay amplifica o contraste entre Roma e o Liré, a arquitectura romana e a na‑
tureza francesa, a masculinidade romana e a feminilidade de França, para concluir
que é no seu país que encontra os laços que importam. (Helena Carvalhão Buescu)

JOÃO DA CRUZ (Fontiveros, 1542 – Úbeda, 1591), nascido Juan de Yepes, perten‑
cia a uma família de conversos e optou pela vida religiosa aos 21 anos de idade. He‑
sitante quanto à ordem em que devia professar, um encontro com Teresa de Ávila
aproxima­‑o do Carmelo Descalço e leva­‑o a fundar em Duruelo o primeiro conven‑
to masculino da reforma teresiana (1568). Toma então o nome de Juan de la Cruz e
inicia intensa actividade em defesa da causa comum, que lhe valeu várias prisões.
Num desses períodos de cativeiro, compôs de memória boa parte do Cântico Espiri‑
tual, uma das grandes peças do corpus poético que faz dele o maior místico espanhol.
Canonizado em 1726, foi elevado a Doutor da Igreja em 1926. As «Coplas da alma
que sofre por ver a Deus» glosam versos glosados também por Teresa de Ávila. (Cris‑
tina Almeida Ribeiro)

JOHN DONNE (Londres, 1572­‑1631), nascido numa família católica e convertido


ao anglicanismo, de que se tornou sacerdote em 1615, foi viajante, soldado, parla‑
mentar e, sempre, um espírito inquieto. Iniciou muito cedo a actividade literária e,
apesar de os seus poemas, com poucas excepções, só terem sido publicados postu‑
mamente, em 1633, a sua poesia circulou manuscrita e foi lida em grupos restritos.
A aversão às convenções ideológicas e ao equilíbrio clássico da poesia isabelina fez

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dele o primeiro dos poetas metafísicos, designação inicialmente pejorativa e iróni‑


ca, reinvestida positivamente quando enfim se deu o devido valor ao arrojo das ima‑
gens, dos ritmos, da sintaxe e às subtilezas do pensamento, que o soneto sacro «Não
te orgulhes, ó Morte…», escrito no final da vida, ilustra. (Cristina Almeida Ribeiro)

JOHN KEATS (Londres, 1795 – Roma, 1821). «Here lies one whose name was writ
in water» («Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito na água») é o epitáfio que se pode
ler no túmulo, no cemitério protestante em Roma, deste poeta inglês cuja obra viria
a ser reconhecida, sobretudo, depois da sua morte precoce. A par de Lord Byron e
Percy Bysshe Shelley, John Keats é um poeta fundamental do romantismo inglês.
«Hyperion», «Ode a um rouxinol» e «Ode a uma urna grega» são exemplares da sua
obra que conjuga a busca pela perfeição na poesia com as temáticas da natureza e da
exaltação das complexas emoções humanas. (Miriam de Sousa)

JOHN MILTON (Londres, 1608­‑1674), autor de Paradise Lost, pertence ao cânone


dos poetas épicos europeus. Educado em Cambridge, desde cedo Milton alimen‑
tou a ambição de se tornar poeta. Em 1651, o poeta cega completamente e Andrew
Marvell torna­‑se então seu secretário. Com a restauração da monarquia em 1660,
Milton é preso. A sua defesa terá argumentado que ele era à data um ancião e por
isso inofensivo. Milton retirar­‑se­‑ia da vida pública e em 1667 é publicado o seu
opus magnum, a épica em verso branco Paradise Lost, a que se segue Paradise Regained
(1671). É o poema de 1667 que viria a ter uma influência decisiva no cânone da litera‑
tura mundial, antecipando o romantismo. À data casado com a sua terceira esposa,
Elizabeth Mishull, Milton faleceu em 1674. (Tatiana Faia)

JORGE GUILLÉN (1893­‑1944). Poeta espanhol da Geração de 27, foi também um


notável crítico literário. Exerceu o seu labor entre Espanha e os Estados Unidos,
tendo ensinado em ambos os países. Poeta de escritas e reescritas, publicou Cántico
em 1928, e reeditou­‑o depois mais três vezes, em cada uma revendo e depurando o
verso e a frase poética, ao mesmo tempo que acrescentava poemas. Almejava à ideia
de poesia pura, aquela em que a palavra atingisse o seu rigor mais perfeito. É ainda
importante na sua obra a ideia de homenagem (Homenaje. Reunión de vidas, 1967),
pela qual reconhece a existência dos seus maiores, aqueles que com ele falam e com
ele reflectem sobre aquilo em que consiste a criação poética. (Helena Carvalhão
Buescu)

JOSEPH CONRAD (1857­‑1924), polaco de origem, é caso singular na literatura in‑


glesa. O pai, aristocrata e nacionalista, envolveu­‑se na resistência ao ocupante rus‑
so, tendo sido preso e deportado. Órfão precocemente e ávido de conhecimentos

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notas críticas 737

e aventuras, Conrad opta pela marinha. Tal experiência reflecte­‑se em romances e


contos (O Negro do «Narciso», Coração das Trevas, Lord Jim, etc.), que lhe trouxeram
alguma aceitação, tributária dum género então em voga — o romance de aventuras.
Torna­‑se cidadão britânico em 1894, passando a dedicar­‑se só à escrita. A agudeza
conceptual, a inegável modernidade dos textos e um iniludível pessimismo con‑
fundiriam, porém, o público e a crítica, dificultando­‑lhe a carreira, tendência só
contrariada na última década de vida. Quer escreva sobre aventuras em locais exó‑
ticos, quer sobre temas políticos (Nostromo, O Agente Secreto, Sob os Olhos do Ocidente),
o seu olhar perspicaz e desencantado centra­‑se na essência da condição humana e
sua compatibilidade com compromissos éticos. (Isabel Fernandes)

JULIAN TUWIM (Łódź, 1894 – Zakopane, 1953) é um poeta polaco de origem ju‑
daica. A sua escrita é de âmbito experimental, alinhada com o modernismo europeu
do início do século xx e frequentemente assumindo uma personagem satírica. É de
particular relevo a sua produção de escrita para crianças, como é o caso do poema
aqui representado, «Os óculos», um clássico da literatura infantil europeia. (Simão
Valente)

«KALEVALA» é simultaneamente o primeiro cancioneiro popular em língua fin‑


landesa, fruto de recolhas por Ellias Lönnrot no Norte da Finlândia ao longo dos
anos 20 do século xix, e uma construção de engenho poético do próprio. Consi‑
derado o épico nacional finlandês, o texto, na sua unidade escrita, surge no quadro
do romantismo, em particular no da corrente nacionalista finlandesa, sendo ainda
hoje o texto cimeiro da literatura em finlandês e o seu texto mais traduzido. Tem
duas publicações, a do chamado Velho Kalevala em 1835 e a definitiva, revisitada, ao
nível da narrativa, em 1849. No excerto representado, deparamo­‑nos com a trágica
história de Aino, que, pela sua liberdade, recusou o amor do herói Vainaimonen
obrigando­‑a ao exílio. A sua resistência e morte influenciarão o imaginário literário
e artístico finlandês durante o modernismo. (Francisco Marques)

KAREN BLIXEN (1885­‑1962). Autora dinamarquesa. Escrevendo em inglês sob o


pseudónimo de Isak Dinesen, teve um sucesso internacional imediato com Seven
Gothic Tales (Contos Góticos, 1934) e o romance Out of Africa (África Minha, 1937), pu‑
blicado em Nova Iorque e depois adaptado ao cinema (1985). Apesar de inspirado
na sua própria vida no Quénia entre 1913 e 1931, sobre a sua plantação de café que
acabou por fracassar, o romance é sobretudo uma interpretação da existência hu‑
mana à margem da vida colectiva. A personagem­‑narradora é estrangeira para dina‑
marqueses, colonizadores ingleses e povos locais. Por um lado, alienada, mas, por
outro, e também por isso, empenhada na busca de uma identidade, a sua narração é

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especialmente viva quanto aos seus encontros com as populações indígenas, senti‑
das como diferença radical. A dupla perda, do seu país natal e da sua vida em África,
transforma­‑se assim num processo identitário. (Svend Erik Larsen)

KARL KRAUS (1874­‑1936). Publicado, na versão definitiva, em 1922, o drama


Os Últimos Dias da Humanidade, gigantesca montagem satírica sobre a Primeira
Guerra Mundial, constitui a sua obra maior. A partir de uma feroz crítica antibeli‑
cista, a obra encena o panorama de uma sociedade em desagregação que sobrevive
no paroxismo de uma cultura da violência. A cena escolhida (cena 40 do V Acto)
ilustra como que em mise en abîme o ethos satírico que subjaz a toda a composição,
permitindo, com a máxima economia de meios, mostrar em pleno a verdade pro‑
funda da guerra. O poema «Não me perguntem» foi publicado em Outubro de 1933.
O impacto da tomada do poder por parte dos nazis na Alemanha traduz­‑se aqui na
afirmação da necessidade de um silêncio que, todavia, resulta profundamente elo‑
quente. (António Sousa Ribeiro)

KAZUO ISHIGURO (Nagasaki, 1954) é um autor britânico de origem japonesa,


vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2017. Filho de pais japoneses, cresce
no Reino Unido, mantendo uma ligação ténue com o país de origem da família. Nas
suas primeiras obras, o Japão figura como uma procura de um passado perdido, algo
que vai caracterizar o seu romance mais notável, Os Despojos do Dia (1989), onde é
contada a história de um mordomo inglês de meia­‑idade que revisita as escolhas que
fez ao longo da sua vida, especialmente aquelas que conduziram a oportunidades
perdidas. Nas suas obras mais recentes, Nunca Me Deixes (2005) e O Gigante Enter‑
rado (2015), Ishiguro explora as potencialidades do género distópico e da fantasia
histórica para articular alegorias que nos permitam compreender a contemporanei‑
dade. (Simão Valente)

KNUT HAMSUN (Lom, 1859 – Grimstad, 1952) foi um autor norueguês, vencedor
do Prémio Nobel da Literatura em 1920. Em reacção ao realismo e naturalismo vi‑
gentes no final do século xix na literatura europeia, Hamsun foi um dos pioneiros
da procura de uma representação literária não do real ou de condições sociais, mas
sim dos processos mentais do ser humano. Em larga medida antecipou técnicas de
escrita modernistas mais comummente associadas às décadas de 10 e 20 do século
xx, especificamente o fluxo de consciência de James Joyce ou Virginia Woolf. A sua
obra mais traduzida é Fome (1890), cujo protagonista deambula por uma metrópole
moderna, alienado do que o rodeia pela sua extrema pobreza. Se por um lado, a nível
temático, é uma continuação de Crime e Castigo de Dostoiévski, por outro prefigura
as obras de Kafka e Schulz. (Simão Valente)

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notas críticas 739

KONSTANTINOS KAVÁFIS (1863­‑1933), indiscutivelmente o mais importante


poeta grego moderno, nasceu e morreu em Alexandria, exactamente no mesmo dia,
com 70 anos de intervalo. A maior parte da sua vida profissional foi passada como
empregado de escritório num departamento do governo egípcio. Em vida, Kaváfis
autorizou a publicação de apenas 154 poemas. Desses, o primeiro que menciona Ale‑
xandria é «E o deus abandona António». Este poema pode ser lido como uma espécie
de epítome de toda a sua obra: Alexandria como personagem, um pendor filosófico
tingido por tons estóicos, a antiguidade como presente, uma sensualidade latente que
encontraria a sua expressão mais perfeita nos poemas de tema homoerótico. Outros
poemas paradigmáticos incluem «Ítaca» e «À espera dos bárbaros». (Tatiana Faia)

LAURENCE STERNE (1713­‑1768) é autor de Sermões (1760 e 1766), Uma Viagem


Sentimental por França e Itália (1768) e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (1759­‑1767).
Estas duas últimas obras contribuíram decisivamente para o desenvolvimento das
técnicas de ficcionalidade narrativa no romance em língua inglesa setecentista,
tornando­‑se modelos quer do romance sentimental e da narrativa de viagens, quer
do romance metaficcional. Através da personagem de um narrador­‑escritor auto‑
biográfico — que interrompe reiteradamente a história da sua vida com a história
de escrever e publicar a história da sua vida —, Tristram Shandy incorpora as condi‑
ções materiais e sociais da produção literária na sua ficção. Esta auto­‑reflexividade
irónica e paródica foi usada por Sterne para ampliar a capacidade de referência do
romance e, ao mesmo tempo, para pôr a nu os mecanismos da ficcionalidade e as
práticas de escrita e leitura de que dependem. (Manuel Portela)

LAUTRÉAMONT (Conde de), pseudónimo literário daquele que — possivel‑


mente Isidore Ducasse (1846­‑1870) — assinou Les chants de Maldoror (1869), obra
marcante para as modernidades (em particular, o surrealismo) que se lhe seguiram.
Volume a que se deve acrescentar as Poésies (1870), já assinadas por Isidore Ducasse
(talvez o pseudónimo civil do que usou também o nome de Lautréamont). Os Cantos
constituem uma obra paródica e paradoxal, polilógica e polifónica, que compila e
refaz toda a literatura anterior (em particular o romantismo e, neste, Victor Hugo).
A sua noção de «imagem», enquanto justaposição de dois termos, o mais antitéticos
e incongruentes possível entre si («belo como o encontro fortuito sobre uma mesa
de dissecação de uma máquina de coser e de um chapéu de chuva»), marcou toda a
posteridade e mesmo, para lá da literatura, as artes plásticas (desenho, banda dese‑
nhada e cinema). (Fernando Guerreiro)

LEOPOLDO ALAS «CLARÍN» (Zamora, 1852 – Oviedo, 1901) foi um dos mais in‑
fluentes escritores espanhóis do final do século xix. Jurista de formação, professor

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de Direito na Universidade de Oviedo, e colunista assíduo da imprensa desde mui‑


to jovem, escolheu o pseudónimo musical «clarim» para assinar a sua colaboração
no periódico El solfeo a partir de 1875, vindo a usar este nome em toda a sua obra
literária. Autor de argutos artigos críticos e de numerosos relatos breves, foi com a
publicação do longo romance La regenta (A Corregedora) (1884­‑1885) que se afirmou
como romancista de feição realista e naturalista, tratando criticamente os princi‑
pais temas sociais, políticos e morais do seu tempo. (Ângela Fernandes)

LEV TOLSTÓI (1828­‑1910). Romancista, novelista e filósofo russo, que ombreia


com Dostoiévski como um dos maiores nomes da literatura russa do século xix. En‑
tre os seus grandes monumentos literários devem referir­‑se os três títulos com ex‑
certos aqui representados: Guerra e Paz (1866), Ana Karénina (1877) e A Morte de Ivan
Ilitch (1886). Eles não são apenas das maiores obras do realismo oitocentista. Cada
um deles representa, a seu modo, as profundezas da ansiedade e da esperança huma‑
nas: quer na intensidade do sentimento amoroso, até quando escolhe aniquilar­‑se
fisicamente (Ana Karénina); quer na experiência bélica napoleónica que, ecoando o
tom e o espírito épico, acaba por fazer interrogar o sentido da vida e o paradoxo da
morte (Guerra e Paz); quer na sua pungente narrativa post mortem de Ivan Ilitch, e das
interrogações que o assolam durante a sua doença e agonia; em todos estes soberbos
romances Tolstói manifesta como o texto literário, através das histórias que conta,
das situações descritas, dos episódios narrados e das personagens que segue (só em
Ana Karénina são várias centenas, de todos os estratos e tipos individuais e sociais),
pode ser o fértil terreno para a interrogação filosófica sobre como viver uma vida
que mereça ser vivida: uma das questões centrais da indagação filosófica. (Helena
Carvalhão Buescu)

LEWIS CARROL (pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson, Daresbury, 1832


– Guilford, 1898) nasceu numa família conservadora, com tradição no alto­‑clero an‑
glicano, mas tornou­‑se conhecido pelo subversivo nonsense que pontuou a sua obra
literária, bem como por uma vida pouco convencional dividida entre a matemática,
a fotografia, a literatura e a invenção de jogos e utensílios rocambolescos, como
o nictógrafo, para apontamentos nocturnos sem precisão de luz. Em 1862 come‑
çou a escrever para as meninas Liddel, filhas de amigos, as aventuras subterrâneas
de Alice, publicadas em 1865 como As Aventuras de Alice no País das Maravilhas («in
Wonderland»), fantasiosa fuga à moralidade vitoriana e exploração da imaginação
linguística, que viria a ter em 1871 uma sequela, mais filosófica, Alice do Outro Lado
do Espelho («Through the Looking Glass»). Ambos os livros constituem um marco
antididáctico da literatura juvenil, para além de terem aberto a literatura de aventu‑
ras a uma protagonista feminina. (Margarida Vale de Gato)

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notas críticas 741

LILIANA MIHAILOVA (1939­‑2010). Licenciada em Filologia Búlgara pela Uni‑


versidade de Sófia, trabalhou como professora do ensino secundário e jornalista.
Escreveu poesia, romances, novelas e contos. Grande parte da sua obra foi traduzida
para várias línguas: romeno, polaco, alemão, dinamarquês, russo, holandês, francês,
finlandês. A sua obra destaca­‑se pelo humanismo da mensagem transmitida, pela
clareza da narrativa e pelo dom para as formas breves de escrita. (Zlatka Timenova)

LOPE DE VEGA (Madrid, 1562­‑1635), polígrafo e autor de uma obra vastíssima,


a que nem falta uma poética do texto dramático (El arte nuevo de hacer comedias,
1609), é sobretudo como poeta lírico e dramaturgo que a sua personalidade literária
se impõe, fazendo dele uma das referências do siglo de oro. Compôs rimas sacras
e humanas, comedias e autos sacramentais, adoptou a medida nova, sem enjeitar o
metro tradicional. Os textos escolhidos assinalam: por um lado, a diversidade de
uma poesia que tanto pode tratar, com a gravidade adequada, questões existenciais
como enunciar, em jeito brincado, normas de composição; por outro, linhas de
orientação do trabalho do dramaturgo, que à História foi buscar a matéria­‑prima de
um teatro épico, enraizado em episódios que visaram a reposição da ordem que um
poder tirânico destruíra (Fuenteovejuna, 1618), e à tradição oral, a de um teatro lírico,
onde a ficção dramática se nutre dos romances e cantares que glosa (O Cavaleiro de
Olmedo, 1620). (Cristina Almeida Ribeiro)

LORD BYRON (Londres, 1788 – Missolonghi, 1824) é provavelmente o mais famo‑


so poeta romântico inglês: em grande medida, na sua vida e obra, um precursor das
estrelas de rock do século xx à maneira de Bowie ou Morrison. Herdeiro de uma
vasta fortuna, os seus excessos libertinos e talento literário tornaram­‑no conhecido
ainda em vida como «mad, bad and dangerous to know» («louco mau e perigoso de
conhecer»). Do ponto de vista literário combinou o rigor do classicismo com as
temáticas do exílio e do sublime, contribuindo para a criação da figura do herói
romântico em textos como Childe Harold’s Pilgrimage (1812) ou Lara (1814). No fi‑
nal da sua vida dedicou­‑se à causa da independência grega do Império Otomano,
combatendo como general do Exército grego. Transcrevemos um dos seus poemas
testemunhando o seu amor pela música, «Stanzas for Music» (1815). (Simão Valente)

LOUIS ARAGON (1897-1982). Romancista, poeta e jornalista, Aragon foi um dos


intelectuais engagés marcantes do século xx francês. Ideologicamente, cedo se iden‑
tificou com o Partido Comunista, tendo participado da Resistência e defendido o
totalitarismo de Estado. Esteticamente, a sua associação com Breton e Éluard con‑
solidou nele as bases da experimentação surrealista. Publicou vários títulos como,
em poesia, Les yeux d’Elsa (1942) ou, em romance, Les cloches de Bâle (1934) ou Aurélien

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(1944). Deste último é retirado o excerto apresentado, constituindo o seu incipit.


Trata-se de uma brilhante revisitação das epifanias de encontro amoroso, tal como
as encontramos por exemplo em Flaubert. Aqui, trata-se de uma epifania negativa,
sinalizando a impossibilidade de uma relação amorosa que, no século xx, se encon‑
tra marcada pelo contexto bélico das duas guerras mundiais. (Helena Carvalhão
Buescu)

LOUIS D’ESPINAY D’ESTELAN (1604­‑1644) pertenceu à aristocracia francesa.


Primogénito de Timoléon d’Espinay, de quem herdou o título de conde d’Estelan, e
sobrinho do marechal de Bassompierre por via materna, foi arcebispo de Bordéus
e homem de letras. Compôs a Comédie des académistes, em co­‑autoria com Saint­
‑Évremond, virulenta sátira ao preciosismo da Academia Francesa, grata aos oposi‑
tores de Richelieu, para além de outros textos dispersos, em prosa e em verso. Des‑
tes, destaca­‑se o soneto escolhido, na sua valorização do espelho em contexto de
representação tipicamente barroco. Objecto e reflexo, o espelho torna­‑se «pintor»
e «retrato», memória em acto da passagem do tempo e dos seus efeitos, constante na
inconstância do representado, sinédoque da tensão entre tempus fugit e carpe diem.
(Maria Graciete Silva)

LOUIS PAUL BOON (Aalst, 1912 – Erembodegem, 1979), nascido na Flandres, es‑
creveu poesia, romances e crónicas. Foi também crítico literário e pintor. Durante
a Segunda Guerra Mundial foi mobilizado, preso pelos alemães e deportado para
perto de Hanôver, onde permaneceu quatro meses. Apreciado pela sua prosa re‑
novadora, descreveu as suas experiências durante a guerra em Mijn Kleine Oorlog
(«A Minha Pequena Guerra», 1947), livro composto por mais de 30 crónicas em tor‑
no de diversas personagens. As suas obras mais conhecidas são De Kapellekensbaan
(«O Caminho de Kapelleken», 1953) e Menuet («Minueto», 1955). Em 1992, o filme
Daens, de Stijn Coninx, baseado no romance Pieter Daens sobre a luta do proletaria‑
do de Aalst, liderado por Daens, sacerdote católico, e tendo como pano de fundo a
questão linguística, foi nomeado para o Oscar de melhor filme estrangeiro. (Patrícia
Couto)

LUCIAN BLAGA (1895­‑1961), poeta, dramaturgo, filósofo, tradutor, jornalista e


académico romeno. Uma das mais marcantes personalidades da cultura romena,
Lucian Blaga foi também ministro plenipotenciário da Roménia em Portugal (1938­
‑1939). A sua obra é vasta, integrando poesia, dramaturgia, obras filosóficas (a mais
representativa é a trilogia da cultura — uma síntese do espírito romeno), jornalis‑
mo, traduções, aforismos etc. (Roxana Ciolaneanu)

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notas críticas 743

LUCIAN VASILESCU (Ploiesti, 1958) é um poeta e jornalista romeno, colabora‑


dor de várias revistas literárias, autor de crónicas e editoriais e está presente com se‑
lecções de poemas em antologias de língua francesa e inglesa. Actualmente, é editor
da publicação cultural Ziarul de Duminică («O Jornal de Domingo»). Publicou dez
volumes de poesia. Em 2004, o volume de poesia Confort 2 îmbunătăţit («Conforto
2 Melhorado»), escrito em colaboração com Ioan Es. Pop, foi nomeado para os pré‑
mios da União dos Escritores da Roménia. No ano de 2010 foi distinguido com o
Grande Prémio Nichita Stănescu. (Corneliu Popa)

LUCRÉCIO (94 a.C. – 51/50 a.C.). São escassas as informações que temos sobre a
vida do autor e contraditórias entre si. Lucrécio escreveu o De Rerum Natura, o poe‑
ma filosófico­‑didáctico mais extenso e mais importante que a Antiguidade nos le‑
gou. Lucrécio anuncia aos Romanos, com fervor de apóstolo da salvação, a doutrina
de Epicuro (342­‑271 a.C.), de que a sua obra é a exposição mais completa que chegou
até nós. O materialismo e o atomismo têm fonte grega, em Leucipo, Demócrito e
Epicuro, mas os textos são escassos e fragmentários, daí a importância deste legado
romano. (Luís Cerqueira)

LUDOVICO ARIOSTO (1474­‑1533), além de composições poéticas em latim e em


língua vulgar, escreveu à maneira horaciana diversas epístolas (ou «satire»), só pos‑
tumamente impressas, e elaborou comédias seguindo os modelos antigos de Plauto
e Terêncio. Homem de corte, concebeu ainda Orlando Furioso, que deu à estampa
pela primeira vez em 1516. Visto, no início, como uma continuação do Orlando In‑
namorato, de Matteo Maria Boiardo, Orlando Furioso narra uma história cavaleiresca
cujas raízes remontam à Chanson de Roland. Mestre na arte de entrelaçar o relato
de aventuras, de gerar o efeito de variedade prezado nas letras do Renascimento,
Ariosto deixou no seu texto questões essenciais: qual o valor da poesia? Como ler os
enganadores sinais do mundo? Quais as relações entre verdade e verosimilhança, ou
entre razão e loucura? O herói que moldou — Orlando, paladino da Cristandade,
endoidecido por amor — é um Sileno, e sobre esta figura da mitologia clássica Eras‑
mo dizia, no Encomium Moriae: «abre o Sileno e verás o contrário do que ele mostra».
(Isabel Almeida)

LUIGI PIRANDELLO (Agrigento, 1867 – Roma, 1936) é um nome maior do tea‑


tro italiano da viragem do século, tendo­‑se também dedicado à poesia e ao roman‑
ce. A obra de Pirandello é caracterizada por uma exploração da subjectividade, isto
é, aquilo que faz com que um indivíduo se conceba enquanto tal, separado do mun‑
do e com as suas características próprias. Em textos como O Falecido Matias Pascal
(1904), Henrique IV (1922), ou Um, Cem e Cem Mil (1926), Pirandello dramatiza a

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alienação do sujeito em relação não só ao mundo, mas também a si mesmo, tema


comum ao período em questão e que o aproxima da escrita de Fernando Pessoa.
A sua obra mais conhecida é a peça de teatro Seis Personagens em Busca de Um Autor
(1921), a qual junta aos temas acima elencados uma dimensão auto­‑reflexiva sobre a
prática teatral. (Simão Valente)

LUIS DE GÓNGORA (Córdoba, 1561­‑1627), ligado desde cedo à carreira eclesiásti‑


ca, nem sempre levada muito a sério, viveu sobretudo na Andaluzia, afastado da corte,
mas em fase já adiantada da vida foi ordenado em Madrid, chegando a capelão do rei
(1617). Dos grandes do barroco espanhol, foi o único a cultivar quase só a poesia lírica,
contando­‑se na sua produção, a par de muitas peças breves, de versificação tradicional
e italiana, outras de maior fôlego, como as Soledades (1613), onde se acentuam rasgos
estilísticos na fronteira da obscuridade. Exímio na prática da arte maior, nela compôs
sonetos de vária temática, muitos de pendor introspectivo. Topoi aqui revisitados são
o desconcerto do mundo e o carpe diem, este em molde violento que contrasta com o
soneto correlato de Garcilaso. (Cristina Almeida Ribeiro)

«MABINOGION», 11 contos em prosa em galês medieval, traduzidos para inglês,


no século xix, por Charlotte Guest, foram compilados a partir de histórias encon‑
tradas em dois manuscritos da Idade Média tardia, mas remontam a uma tradição
celta oral e muito anterior. Desenvolvendo-se numa paisagem mágica, cheia de se‑
res fantásticos, heróis e mulheres de rara beleza, os contos permitem uma aproxi‑
mação ao mundo celta, aos seus mitos e lendas, e são o maior testemunho do fol‑
clore e cultura primitivos do País de Gales. «Lludd e Llevelys», cujo enredo se situa
numa época pré-romana, descreve uma série de desafios à soberania na Britânia,
que envolvem invasores estrangeiros, animais monstruosos, dragões e ameaças de
escassez de alimentos, e o modo como estes problemas foram resolvidos por meio
do heroísmo e da esperteza de Lludd, ajudado pelo irmão Llvelys. (Luísa Azuaga)

MADAME DE LA FAYETTE (1634-1693). Romancista e novelista francesa cuja


obra inaugura o romance de análise psicológica, de grande futuro nas letras fran‑
cesas e europeias. Combinou o mais tradicional romance de aventuras, de recorte
exótico (Zaide, 1669-1671), com as novelas psicológicas La Princesse de Montepensier
e La Comtesse de Tende, esta última póstuma, e sobretudo o romance La Princesse de
Clèves (1678), considerado como a sua obra maior. Neste romance, reflecte-se so‑
bre a sociedade de corte e os dilemas morais e passionais que os protagonistas,
a princesa de Clèves e o duque de Nemours, encarnam. Próxima da moral jansenista
e em particular de La Rochefoucauld, a autora ocupa-se da análise psicológica da
protagonista, aproximando-se da ideia de uma culpa (amorosa) essencial e, por essa

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notas críticas 745

razão, independente das circunstâncias que a poderiam ou não tornar realizável.


O episódio aqui transcrito constitui um dos fulcros da ignição da paixão amorosa
entre os protagonistas. (Helena Carvalhão Buescu)

MARCEL PROUST (1871­‑1922) foi um dos maiores escritores franceses, sendo a


sua obra­‑prima o conjunto de sete romances, publicados entre 1913 e 1927, com o
título englobante de À la recherche du temps perdu. Além de romancista e novelista,
foi também ensaísta, tradutor e poeta. Proust, um homossexual judeu, traz para o
palco principal do seu enorme fresco da Recherche o conjunto de ameaças e grandes
transformações e ambições pessoais, sociais, políticas, simbólicas e artísticas que
caracterizaram o fin­‑de­‑siècle. A enorme transformação social que dita, na socieda‑
de francesa (e parisiense em particular), o fim da aristocracia como classe fechada;
a cínica ascensão dos «arrivistas» do início do romance e o declínio dos grandes aris‑
tocratas no seu final; o famoso affaire Dreyfus, que alerta para os perigos do anti­
‑semitismo que o século xx verá re­‑explodir; o tema da memória involuntária, por
exemplo com o famoso episódio da «madeleine», num momento em que Freud vi‑
nha a insistir numa exploração revolucionária da mente humana; o grande tema do
ciúme e do desejo amoroso como derivado de uma complexa relação triangular;
a homossexualidade e a hipocrisia social e ambiguidade pessoal que a rodeiam;
finalmente, o papel da arte (sobretudo literatura, pintura e música) como conjunto
de actividades que sustentam as relações humanas — todos estes temas, e muitos
outros, compõem o fascinante fresco que nos é dado da institucionalização da so‑
ciedade burguesa como motor social e simbólico. A Recherche é considerada como
um dos melhores romances do século xx. (Helena Carvalhão Buescu)

MARCO POLO (Veneza, 1254-1324) é um autor cuja coincidência entre local de


nascimento e de morte contrasta com a sua experiência de vida. Durante 24 anos
percorreu a Ásia, permanecendo longamente na China imperial. As suas memórias
dessa viagem, ainda mais notável pelo período em que ocorre, ligando a Europa me‑
dieval ao extremo do continente asiático, foram transcritas por Rustichello da Pisa
durante um período em que os dois homens se encontravam prisioneiros da Repú‑
blica de Génova, a maior rival da Sereníssima. As Viagens de Marco Polo teve um gran‑
díssimo impacto na cultura europeia, contribuindo para um maior conhecimento
de outras culturas — ainda que imperfeito, pelas inexactidões que a obra apresenta.
Tais problemas, contudo, são ultrapassados pela riqueza descritiva. (Simão Valente)

MARGUERITE DURAS (pseudónimo de Marguerite Donnadieu, 1914­‑1996)


é uma escritora e realizadora francesa. A sua obra literária é hoje um exemplo
da escrita e estética femininas, bem como do grupo do nouveau roman, do qual a

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autora negou fazer parte, tal como recusou ser chamada feminista. O minimalismo
de Duras estabelece frequentemente uma triangulação entre os topoi desejo, loucu‑
ra e silêncio, como é o caso de Moderato Cantabile, onde encontramos os eixos rele‑
vantes da obra durasiana: o diálogo como dispositivo narrativo; a relação amorosa
impossível e o desejo erótico não concretizado; e a morte. A novela expõe o carácter
irresolúvel do encontro amoroso atravessado pela degeneração das suas instâncias
comunicativas, sentimentais e violentas, reflectindo ao mesmo tempo sobre a pró‑
pria representação literária enquanto lugar privilegiado de questionamento políti‑
co, ético e poiético. (Rafael Esteves Martins)

MARGUERITE YOURCENAR (Bruxelas, 1903 – Bar Harbor, 1987) é uma das


grandes autoras de língua francesa do século xx. Filha de mãe belga e de pai fran‑
cês (Yourcenar é um anagrama do apelido paterno, Crayencour), emigrou para os
Estados Unidos em 1939 e, em 1947, tornou­‑se cidadã americana. Escreveu poesia,
teatro, romance, conto e ensaio, sendo a primeira mulher a ter assento na Academia
Francesa. Memórias de Adriano, obra de problemática classificação, toma a forma de
uma longa carta do imperador romano ao jovem Marco Aurélio, que é passagem do
testemunho e gesto de autognose. Destaca­‑se, nesse sentido, a metáfora arquitec‑
tónica que sustenta o excerto, ritualizada na fundação de Antínoo, cidade­‑memória
de uma paixão helénica em que a história do homem se confunde com os planos do
imperador. (Maria Graciete Silva)

MARIA PAWLIKOWSKA­‑JASNORZEWSKA (Cracóvia, 1891 – Manchester,


1945) é uma poeta polaca em alguma medida comparável à portuguesa Florbela Es‑
panca na qualidade intimista e confessional da sua poesia. Depois de uma juventu‑
de boémia nos círculos culturais da sua Polónia nativa, Pawlikowska­‑Jasnorzewska
foge para o Reino Unido no início da Segunda Guerra Mundial, país onde viria a
permanecer até à sua morte, em 1945. O poema aqui transcrito contribui para as
variações em torno da Ofélia shakespeariana. (Simão Valente)

MARINA TSVETÁEVA (Moscovo, 1892-1941). «Um poema é uma criança nasci‑


da do amor, pobre filho bastardo», escreveu aquela que foi seguramente uma das
mais importantes poetas russas modernistas, juntamente com Anna Akhmátova,
sua contemporânea. Condenando os desmandos da Revolução Russa, Tsvetáeva
exilar-se-ia, em 1922, em Praga, Paris e Berlim, retornando à então União Soviética
em 1939, juntando-se a seu marido, o também poeta Sergei Efron. Durante a sua
vida, Tsvetáeva corresponder-se-ia com os mais importantes escritores e poetas
do seu tempo, como Boris Pasternak, Vladimir Nabokov ou Rainer Maria Rilke.
A vida de Tsvetáeva foi marcada pela tragédia: o marido foi fuzilado em 1941, duran‑

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notas críticas 747

te o regime de Estaline, e ela própria, sofrendo a desaprovação do regime, viveria


numa pobreza extrema, acabando por se suicidar no mesmo ano. Deve-se em parte
a Adriana Efron, sua filha, o resgate de uma extraordinária obra poética, onde, pro‑
feticamente, se encontram versos como: «Entre a poeira das livrarias, dispersos, / ja‑
mais comprados, / e todavia semelhantes a vinhos preciosos, os meus versos podem
esperar / pelo tempo que deles há-de ser». (Ana Luísa Amaral)

«O MARINHEIRO» é uma elegia que integra O Livro de Exeter, extensa colectânea


de poesia anglo-saxónica, escrita por volta do ano 1000 e doada à catedral daquela
cidade pelo bispo Leofric, em 1072. Cópia de originais com datas muito anteriores
aos poemas nele contidos, trata-se de uma miscelânea de cerca de cem enigmas e
mais de 30 outros textos, indo de obras de cariz religioso a um grupo de escritos
com temas seculares diversos, entre os quais se contam várias elegias, caracteris‑
ticamente envoltas numa visão melancólica do mundo e focando quase sempre a
solidão, o exílio, o sofrimento, e a inexorável passagem do tempo. Na sua versão
completa, «O marinheiro», monólogo dramático e comovente, profunda meditação
sobre a mortalidade humana, relata a história de um homem perdido no mar, que
possui como única esperança de redenção as alegrias do Paraíso. (Luísa Azuaga)

MARTINUS NIJHOFF (1894-1953), poeta, dramaturgo, tradutor (de Shakespeare,


Eliot, Eurípides) e ensaísta neerlandês. Em 1916 debutou com a colectânea de poe‑
sia intitulada De Wandelaar («O Passeante»). Em 1924 publicou Vormen («Formas»),
galardoado com o prémio para poesia da cidade de Amesterdão, e em 1934 seguiu-
se Nieuwe Gedichten («Novos Poemas»), que termina com o longo poema narrativo
«Awater», considerado um clássico da poesia neerlandesa. A sua última colectânea,
Het Uur U («A Hora H»), foi publicada durante a Segunda Guerra Mundial, em que
desempenhou um papel activo na Resistência. Nos seus sonetos introduz uma lin‑
guagem de carácter oral, em que alia a clareza a um conteúdo místico. Na sua opi‑
nião, a poesia não deve ser expressiva, mas criar uma realidade própria. (Patrícia
Couto)

MARY SHELLEY (Londres, 1797-1851). Frankenstein, ou o Prometeu Moderno é um


romance gótico, publicado pela primeira vez em 1818 e a versão definitiva em 1831,
considerado um texto precursor do género da ficção científica. Centrado na dinâ‑
mica entre a evolução científica e o humano como criador, o romance introduz uma
«criatura» (o monstro criado por Victor Frankenstein) entendida como a primeira
representação de vida artificial na literatura. A obra de Mary Shelley manifesta uma
tendência do movimento romântico para explorar o misterioso ou o sobrenatural,
e exemplifica o crescente interesse pelas temáticas científicas. (Miriam de Sousa)

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MICHEL BUTOR (1926­‑2016), autor de uma obra ecléctica (romance, ensaio, poe‑
sia, teatro, ópera), fez parte dos «novos romancistas» dos anos 50 e com La modifica‑
tion (1957) deu um contributo decisivo para a notoriedade do movimento. No início
do romance, o protagonista apanha o comboio Paris­‑Roma para ir ter com a sua
amante romana, decidido a levá­‑la para Paris e abandonar a mulher. Compartimen‑
to e duração da viagem conferem unidade espácio­‑temporal à narrativa iniciática
que explica por que razão, no final, Delmont volta para a família, deixando Cecília
em Roma. O relato na segunda pessoa do plural propicia que o sujeito conte a al‑
guém algo ainda não verbalizado, que ele próprio desconhece. Romance da tomada
de consciência desse sujeito, actualiza a ideia da escrita como instrumento que não
representa a realidade, antes a revela no que tem de mais profundo e menos imedia‑
to. (Eugénia Leal)

MICHEL DE MONTAIGNE (1533­‑1592) foi um dos mais brilhantes filósofos e


pensadores humanistas franceses. Pode dizer­‑se que inventou e notabilizou o géne‑
ro do ensaio pessoal, reunindo centenas de fragmentos, de dimensão e alcance vo‑
luntariamente díspar, e de temas intencionalmente diversos, no seu volume precisa‑
mente intitulado Essais (1.ª ed. 1580). O seu motto, «Que sais­‑je?», pode considerar­‑se
a fundação do seu pensamento crítico, sempre curioso e reflexivo. Simultaneamen‑
te modelado por antigos (falou latim até aos seis anos) e modernos (humanistas do
Renascimento), soube conjugar, numa atitude de singular interesse, a ideia de que
tudo o que é humano é digno de ser pensado. E sobre qualquer tema, de facto, dis‑
corre de acordo com o seu saber e o seu espírito crítico, seja sobre a amizade, seja
sobre o canibalismo. Tornou­‑se numa influência incontornável para futuros pen‑
sadores e escritores, desde Bacon até Shakespeare, Cervantes ou Nietzsche. A sua
obra é construída sobre o pensamento em acção, não apenas sobre os efeitos do
pensar. (Helena Carvalhão Buescu)

MIGUEL DE CERVANTES (Alcalá de Henares, 1547­­– Madrid, 1616), cuja biogra‑


fia está recheada de peripécias de toda a ordem, é um autor que se interessou por
todos os géneros em voga no seu tempo e que, ao praticá­‑los, procurou dar­‑lhes um
cunho pessoal. Frequentou academias e tertúlias, cultivou amizades e rivalidades
literárias. Na sua obra, o romance pastoril convive com o livro de cavalaria, a nove‑
la com a comedia ou o entremez, o romance de inspiração bizantina com o poema
alegórico. Representam­‑no na antologia duas obras: o Dom Quixote, de créditos uni‑
versalmente firmados, e os Trabalhos de Persiles e Sigismunda, de publicação póstuma,
que Cervantes considerava a sua melhor criação, neles depositando a sua esperan‑
ça de posteridade. Distribuídos por diferentes categorias, os excertos do primeiro
constituem uma amostra do modo como o procedimento amatório do protagonis‑

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notas críticas 749

ta, mimando desajeitadamente o de Amadís, se inscreve na tradição, e do modo


como, em distintos registos, se vai introduzindo no livro um discurso metaliterário.
Quanto ao Persiles, o excerto escolhido regista a passagem do grupo de peregrinos
por Lisboa, cidade famosa, ao mesmo tempo cosmopolita e provinciana. (Cristina
Almeida Ribeiro)

MIGUEL DE UNAMUNO (1864­‑1936), escritor basco da Geração de 98, foi pro‑


fessor de grego, três vezes reitor da Universidade de Salamanca e outras tantas des‑
tituído por razões políticas. Foi desterrado por Afonso XIII e deputado na Segun‑
da República. Apoiou Franco no início da Guerra Civil, logo se desencantando e
retratando publicamente, tendo morrido em prisão domiciliária. Considerado um
filósofo sem pensamento sistemático, condensou sobretudo no ensaio uma mundi‑
vidência pessimista (Del sentimiento trágico de la vida, 1912) que se expande pela obra
poética, dramática e narrativa, onde tematiza o absurdo da existência (La tía Tula,
1921) ou os conflitos entre razão e fé (San Manuel Bueno, mártir, 1931), encontrando
na natureza narrativa (Cómo se hace una novela, 1927) uma espécie de alegorização da
condição humana (Niebla, 1914). (Fátima Freitas Morna)

MIHAI EMINESCU (1850­‑1889) é considerado o maior escritor romeno de todos


os tempos, o inventor de linguagem poética em língua romena. Fez uma parte dos
seus estudos em Viena, para onde foi enviado e apoiado por Titu Maiorescu, o pri‑
meiro grande crítico e teórico literário da Roménia. Trouxe à literatura romena a in‑
fluência do romantismo europeu e adaptou­‑a ao contexto nacional. Foi considerado
o último grande romântico europeu. Contribuiu também para o desenvolvimento
da cultura nacional através das suas publicações, que foram maioritariamente divul‑
gadas na revista O Tempo. (Roxana Ciolaneanu)

MIHAIL SADOVEANU (1880­‑1961), historiador, novelista, romancista e político


romeno. Deu o seu contributo para o desenvolvimento das correntes tradicionalis‑
tas na literatura romena, baseadas no interesse na civilização rural e na sua unicida‑
de. A sua obra é abrangente tanto em dimensão como também em relação aos temas
e correntes literárias que representa: sămănătorism, poporanism (duas correntes que
valorizaram o mundo rural e os seus valores), naturalismo e realismo socialista. (Ro‑
xana Ciolaneanu)

MIKHAIL BULGAKOV (Kiev, 1891 – Moscovo, 1940). Se a expressão «realismo


socialista» ajuda a definir grande parte da literatura soviética, talvez «realismo má‑
gico socialista» possa definir a obra deste autor. Com doses iguais de realismo e fan‑
tasia, é uma das obras mais originais da Rússia do século xx. Bulgakov serve como

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médico de campanha durante a Primeira Guerra Mundial, iniciando a sua carreira


como escritor após a Revolução de 1917. Começa por escrever pequenas novelas,
dramas e contos, e cedo é acusado de anti­‑soviético. Porém, biógrafos de Estaline
apontam este como protector do escritor e, apesar da censura de que a sua obra
seria alvo, Bulgakov não sofre consequências de maior. Dedicaria os nove últimos
anos de vida a redigir uma novela publicada postumamente, Margarida e o Mestre,
que lhe granjearia reconhecimento internacional. (Tiago Guerreiro)

MIKHAIL LÉRMONTOV (Moscovo, 1814 – Piatigorsk, 1841), para muitos o poe‑


ta romântico por excelência das letras russas, mas também exímio dramaturgo e
prosador, formou­‑se, em 1834, na escola militar de São Petersburgo. Cedo apontado
como sucessor de Púchkin, terá sido a elegia à sua morte a precipitar­‑lhe o exílio
no Cáucaso, a que outros se seguiram, vindo a morrer num duelo à semelhança do
seu antecessor. De conturbada experiência se faz também O Herói do Nosso Tempo
(1840), filtrada, neste caso, pelo olhar de Maxim Maximitch, compelido a arbitrar
o conflito latente entre a jovem circassiana e o protagonista. E se o solilóquio de
Petchorine não desdiz as suas matrizes literárias, não é, entretanto, menos notória
a afirmação da dignidade de Bella, no xadrez geopolítico da guerrilha caucasiana.
(Maria Graciete Silva)

MILAN JESIH (Liubliana, 1950). Além de poeta, é também dramaturgo e tradutor.


Licenciou­‑se na Faculdade de Letras da Universidade de Liubliana, em Literatu‑
ra Comparada e Teoria Literária. Nos anos 60, fez parte do grupo de vanguarda
literário­‑teatral 442, do teatro Pupilija Ferkeverk. Hoje trabalha como freelancer
e é presidente da Associação dos Escritores Eslovenos desde 2009. Na sua lírica,
interligam­‑se os jogos de linguagem, a ironia, a paródia e a sátira. A sua obra insere­
‑se nas correntes da neovanguarda e do ludismo. É mestre em imitar e ao mesmo
tempo subverter normas estéticas, mentais e linguísticas. Escreve também peças de
teatro irónicas e satíricas e peças de teatro radiofónico. É um dos mais importantes
tradutores contemporâneos. Foi galardoado com prestigiosos prémios literários:
Prešeren, Jenko e Veronika. (Mateja Rozman)

MILAN KUNDERA (1929) é um escritor francês de origem checa que, na sequên‑


cia de atribulações constantes sob o jugo soviético no seu país, se exilou em França.
É sobretudo conhecido como romancista, mas escreveu também ensaios, textos
dramáticos e poesia. As suas principais obras, escritas depois de se ter radicado em
França, manifestam um espírito satírico e a forma como concebe o romance como
um género híbrido, combinando narrativa com digressão, ensaio e até poesia. A pre‑
dominância da crítica política foi­‑se combinando com uma vertente mais filosófi‑

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ca, que podemos aliás encontrar no seu romance mais conhecido, A Insustentável
Leveza do Ser (1983), mas que na sua obra mais recente, como A Imortalidade (1990),
se torna mais densa e nuclear. O que é o acaso? Como se tece uma vida? Quais as
fragilidades que formam as relações entre os humanos? Eis algumas das questões de
Kundera. (Helena Carvalhão Buescu)

MILJENKO JERGOVI (Sarajevo, 1966) é considerado um dos mais importantes es‑


critores balcânicos da sua geração. Os romances Buick Rivera, Mamma Leone e uma co‑
lectânea de contos intitulada Karavani são algumas das suas obras publicadas. A obra
do autor presentifica a encruzilhada cultural e histórica dos Balcãs, preocupando­‑se
com dar vida aos fantasmas dos diferentes conflitos e a momentos históricos que aí
tiveram lugar no final do século xx. Marlboro Sarajevo é um livro de contos que foi
escrito e publicado no decorrer do conflito da Bósnia (1992­‑1995), durante o qual a
cidade de Sarajevo foi cercada e bombardeada. «O túmulo», um dos contos desta obra,
retrata um episódio no contexto deste conflito. (Miriam de Sousa)

MILORAD PAVIĆ (Belgrado, 1929-2009). Académico e escritor que publicou em


1984 o romance Dicionário Khasar: Romance­‑enciclopédia em 100  000 palavras, que está
dividido em duas partes: versão feminina e masculina. O romance traça o percurso
ficcionalizado dos Khasar, uma tribo da qual se sabe pouco e que se julga ser ori‑
ginária da região do Cáucaso. Durante o século vi esta tribo estabeleceu intensas
rotas comerciais entre o mundo árabe e os povos eslavos, entrando em declínio no
século x. Landscape Painted with Tea (1988) e The Writing Box (1999) são algumas das
obras publicadas de Milorad Pavić. A maioria da sua obra ainda não foi traduzida
para português. (Miriam de Sousa)

MOLIÈRE (Paris, 1622-1673), de seu nome Jean-Baptiste Poquelin, foi um dos dra‑
maturgos mais importantes da sua época, sendo continuamente encenado até hoje.
A sua ligação ao teatro expressou-se também como encenador e actor. Distinguiu-
se por uma forma de comédia complexa, que faz entrar, na dramaturgia francesa,
as personagens e o mundo de uma burguesia ridícula, em detrimento da inspiração
mitológica e clássica. Estas comédias têm ainda uma densa componente trágica,
pelo retrato de uma série de «paixões» que obcecam os protagonistas: a misantropia
(Le misanthrope), a ascensão social (Le bourgeois gentilhomme), a hipocondria (Le ma‑
lade imaginaire), a obsessão sexual (Don Juan ou le festin de pierre), a avareza (L’avare)
e muitas outras. No excerto escolhido, encontramos uma das cenas que caracteriza
o burguês arrivista, que resolve ter lições e julga descobrir as maiores platitudes
(como «falar em prosa»), que o deixam muito orgulhoso. Molière retrata, nas suas
comédias, uma sociedade em que o Ancien Régime se aproxima do seu final, e as

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fronteiras entre as classes (nomeadamente aristocracia e burguesia) começam a di‑


luir-se. (Helena Carvalhão Buescu)

MONTESQUIEU (1689­‑1755), nome pelo qual é conhecido Charles­‑Louis de Se‑


condat, formou­‑se em Direito, interessou­‑se por outras áreas do conhecimento
e, aspirando a uma eventual glória literária, foi viver para Paris, onde iniciou a re‑
dacção da obra que o celebrizou: Cartas Persas (1721). Romance epistolar, onde a
narrativa se actualiza a partir da correspondência de Usbek e Rica com amigos e
familiares, o livro deve o seu êxito à crítica irónica aos costumes e às instituições
francesas, num exercício tolerado pelo poder por ser apresentado como o ponto de
vista de estrangeiros. Ao absurdo da pergunta «Como se pode ser persa?», responde
implicitamente o texto de Montesquieu: «Como é possível olharmos para nós, para
uma sociedade, sem nos rirmos? Só o riso pode ajudar­‑nos a suportar e a melhorar a
realidade.» (Eugénia Leal)

MULTATULI (pseudónimo de Eduard Douwes Dekker, 1820-1887) foi funcionário


público nas Índias Orientais Neerlandesas, onde foi confrontado com graves abu‑
sos de poder por parte de regentes locais. Demitiu-se das suas funções e regressou
à Europa, onde em menos de um mês escreveu a sua denúncia política sob a forma
do romance Max Havelaar of De Koffievelingen der Nederlandsche Handelsmaatschappij
(Max Havelaar ou os Leilões de Café da Companhia Holandesa de Comércio, 1860), em
que denuncia as injustiças e a opressão da administração holandesa contra os pe‑
quenos cultivadores de café e que desempenhou um papel de grande impacto nas
políticas coloniais. O romance tornou-se controverso por apresentar três narrado‑
res, várias narrativas que se entrelaçam e misturam com parábolas, panfletos, frag‑
mentos teatrais, poesia e notas do autor, intercalando humor e ironia com tragédia.
(Patrícia Couto)

NICCOLÒ MACHIAVELLI (Florença, 1469­‑1527), mais conhecido em português


como Maquiavel, é uma figura cujo nome se tornou sinonímico com uma conduta
política dúplice, hipocrisia e calculismo. Uma carreira pública ao serviço da Repú‑
blica de Florença deu­‑lhe a oportunidade de observar as práticas a exortar e con‑
denar na sua obra mais conhecida, O Príncipe (1513), estruturada como um manual
para educação e preparação de um estadista. Um dos capítulos principais, aquele
aqui transcrito, prescreve que o príncipe deve ser em princípio um homem de sua
palavra, em substância, mas sobretudo em aparência, de forma a poder, quando ne‑
cessário, mentir ou voltar atrás com o prometido. A influência de Maquiavel veio a
crescer ao longo dos séculos, sendo um dos fundadores da ciência política moderna.
(Simão Valente)

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notas críticas 753

NICOLAE PRELIPCEANU (1942), poeta e editor romeno contemporâneo.


Durante a sua carreira foram­‑lhe atribuídos numerosos prémios, entre os quais: o
prémio da Associação dos Escritores de Cluj para o livro 13 Ilusões (1971); o prémio
da União dos Escritores para publicações com o volume Diálogos sem Platão (1976);
o prémio da União dos Escritores para poesia com o volume Inatingível, Inatingível
(1976) e Feliz por Correspondência (1983); o prémio da Associação dos Escritores de
Cluj para o livro em prosa O Túnel Norueguês (1980); o prémio da União dos Escri‑
tores para o volume O Bem­‑Mortal (1996). Presentemente é editor­‑chefe de uma
das mais prestigiosas revistas literárias da Roménia: Viața Românească. (Roxana
Ciolaneanu)

NIKOLAI GÓGOL (Velyki Sorochyntsi, 1809 – Moscovo, 1852) é um escritor rus‑


so. Tendo praticado diversos géneros literários, tem em O Inspector (1836), uma peça
satírica, a sua mais relevante obra para teatro. Gógol foi um dos autores mais ex‑
pressivos na contística da primeira metade do século xix, com os volumes Noites na
Granja ao pé de Dikanka (1831) e Mírgorod (1835), bem como os chamados Contos de
São Petersburgo, que incluem alguns dos seus textos mais populares, entre os quais
«O retrato» (1835), «O nariz» (1836) e «O capote» (1842). O seu gosto pelo fantástico
e pelo grotesco, bem como a sua tendência para o irrisório e para a sátira, encon‑
traram no romance Almas Mortas a sua forma derradeira. Concebendo a obra como
uma trilogia, Gógol suicidou­‑se, porém, em 1852, queimando o segundo manuscri‑
to, do qual nos chegou apenas uma pequena parte. (José Bértolo)

NOVALIS (pseudónimo de Georg Friedrich Philipp von Hardenberg, 1772­‑1801),


poeta e filósofo alemão, era formado em engenharia de minas. Conhecido no âmbito
do movimento romântico de Jena, a sua obra inclui uma novela inacabada e nume‑
rosos fragmentos, sendo Os Hinos à Noite (Hymnen an die Nacht), uma sequência de
seis poemas parcialmente em prosa rítmica, publicados na revista Athenäum em 1800.
O terceiro hino pode ser visto, para além da dimensão autobiográfica que lhe está
subjacente e que se prende com a memória viva que subsiste após uma perda, como
um exemplo da visão novalisiana sobre a universalidade da natureza como manifes‑
tação religiosa, ambicionando restabelecer uma ideia de unidade espácio­‑temporal e
uma atitude de veneração da mesma, antecipando teorias holísticas e ambicionando
superar os parâmetros crítico­‑analíticos iluministas. (Teresa R. Cadete)

ODYSSÉAS ELYTIS (Heraklion, 1911 – Atenas, 1995) nasceu numa família abas‑
tada, de apelido Alepoudhelis, que em 1914 trocou Creta por Atenas, onde Elytis
frequentou Direito. Pertencente à Geração de 30, tal como Seféris, estreou­‑se
como poeta na revista Néa Grámmata, num quadro de renovação das letras gregas.

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Combateu depois na Albânia as tropas de Mussolini, interrompendo uma carreira


de poeta e ensaísta de início muito próxima do surrealismo. Áxion Estí («Louvada
Seja»), a sua obra­‑prima, deu­‑lhe projecção mundial e, entre os gregos, a aura de
poeta nacional, sobretudo depois de Míkis Theodorákis ter musicado o poema. Ga‑
lardoado com o Nobel da Literatura em 1979, considerou, então, que na distinção
recebida se homenageava a cultura helénica no seu todo, como os textos escolhidos
corroboram de forma lapidar. (Maria Graciete Silva)

OSCAR WILDE (Dublin, 1854 – Paris, 1900) é um dos mais conhecidos escritores
irlandeses, notabilizando­‑se numa variedade de géneros literários, incluindo teatro,
romance e poesia, combinando a sátira dos costumes da alta sociedade e um uso
da linguagem para efeitos humorísticos com teorização estética. Conhecendo um
grande sucesso ainda em vida, com peças como Uma Mulher sem Importância (1893)
ou A Importância de se Chamar Ernesto (1895), Wilde, que era homossexual, foi pro‑
tagonista de um escândalo que resultou na sua condenação a dois anos de trabalhos
forçados por atentado à moral, devido às leis vigentes no período a proibir a prática
de actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O seu romance O Retrato de Dorian
Gray (1890) denuncia os vícios escondidos pelas classes altas britânicas sob a justifi‑
cação de práticas artísticas. (Simão Valente)

OSSIP MANDELSTAM (1891­‑1938) foi um poeta e ensaísta russo. Ao lado de Anna


Akhmátova, é dos autores mais conhecidos do acmeísmo, uma revisitação moder‑
nista da poesia neoclássica europeia, que, por oposição ao simbolismo, privilegiou
a simplicidade e a clareza do enunciado poético e que é comparável com o contem‑
porâneo imagismo britânico. Além da poesia, destacam­‑se o manifesto A Manhã do
Acmeísmo (1913) e O Sinete Egípcio (1928), um dos raros exemplos de prosa surrealista
em russo. Tal como os restantes acmeístas, recusou colocar a literatura ao serviço
do Estado, o que o exilou, acabando por morrer num campo de trabalhos forçados.
O poema foi escrito em 1933 e é um insulto epigramático e colectivo a Estaline, no
qual o engenho satírico representa e critica in absentia a pessoa e a conduta do «mon‑
tanheiro do Krémlin». (Rafael Esteves Martins)

OVÍDIO (Sulmona, 43 a.C. – Tomos, 17 d.C.) Desiste da carreira retórica, pois os


versos afluem­‑lhe espontaneamente. Tem uma obra vasta, toda ela centrada na te‑
mática amorosa e no desejo, que leva à superação dos limites, e mesmo à transfor‑
mação dos seres. Escreveu, entre outras obras, Amores, Heroides, Ars Amatoria, Fasti.
A sua grande obra são as Metamorfoses, 14 livros em que reúne histórias mitológi‑
cas numa versão que será importante para as artes europeias. Vivendo na época de
Augusto, a sua perspectiva de vida fá­‑lo chocar com o regime, que pretendia uma

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notas críticas 755

morigeração da sociedade, tendo sido exilado para Tomos na sequência de um epi‑


sódio pouco claro. A sua poesia de exílio ganha profundidade e maturidade. (Luís
Cerqueira)

P. MUSTAPÄÄ (1899­‑1973) foi um folclorista e poeta finlandês de língua finlande‑


sa. Integra movimentos marcantes da literatura em finlandês, dos quais se destaca
o grupo de vanguarda Tuulikantala («os portadores de tochas»), influentes no re‑
nascimento de uma tradição poética moderna com raízes na herança folclórica da
literatura finlandesa. Os poemas seleccionados reflectem o cruzamento do conhe‑
cimento poético do ritmo, da melodia da língua e das figuras da metáfora. (Francis‑
co Marques)

PATRICK KAVANAGH (1904­‑1967). Poeta, romancista e jornalista irlandês,


deixou a escola aos 12 anos. Oriundo da Irlanda rural e católica idealizada como a
alma da Irlanda independente pelo Renascimento Literário Irlandês, a poesia de
Kavanagh não correspondia às expectativas daqueles que escreviam sobre a Irlanda
rural, idealizada, mas não vivenciada. Autor de um romance vagamente autobiográ‑
fico, The Green Fool (1938), a obra mais conhecida e incisiva de Kavanagh é o poema
longo narrativo «The Great Hunger» («A grande fome») (1942): se o título alude à
fome (1845­‑49) que provocou a morte de uns e a emigração de outros, reduzindo
drasticamente a população irlandesa, o narrador remete para a fome material, se‑
xual e espiritual da Irlanda rural nas primeiras décadas após a independência (1922).
(Teresa Casal)

PATRICK MODIANO (1945-) é um autor francês cuja obra foi galardoada em


2014 com o Prémio Nobel da Literatura. É filho de pai sefardita de origem italiana e
mãe belga, que se conheceram durante a ocupação alemã de Paris. A sua obra ficará
marcada por um sentido forte da ausência, eco de um luto pessoal pela morte do ir‑
mão mais novo, aos 22 anos. A memória é, aliás, um dos elementos mais explorados
na sua obra, como a experiência autobiográfica de Pedigree (2004). O excerto selec‑
cionado, de Dora Bruder (1997), é o relato de uma cidade e de uma forma particular
de a habitar pela memória. (Francisco Marques)

PAUL CELAN (pseudónimo de Paul Antschel, Czernowitz, 1920­– Paris, 1970) nas‑
ceu numa cidade da Roménia, que viria a ser ocupada pelas tropas russas em 1940
e pelos alemães em 1942. Após ter sobrevivido ao Holocausto, mudou­‑se para Paris
em 1948, onde viria a cometer suicídio em 1970. A experiência da Shoah marcou de
forma trágica e indelével a sua produção poética. De Mohn und Gedächtnis (1952) a
Litchzwang (1970), esta é uma poesia que se afirma no limite do dizível. Numa arte

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poética que combina magistralmente uma opacidade elíptica e uma poética do en‑
contro, a obra celaniana sonda a aporia entre trauma e representação, oferecendo
uma resposta ao dictum adorniano da impossibilidade da lírica após Auschwitz. Se o
poema «Fuga da morte» constitui um testemunho trágico de representar a barbárie
e a desumanização, já «Salmo» ensaia, através de uma oração negativa, um diálogo
impossível com a transcendência. (Ricardo Gil Soeiro)

PAUL CLAUDEL (Villeneuve­‑sur­‑Fère­‑en­‑Tardenois, 1868 – Paris, 1955) fez os es‑


tudos liceais em Paris. O seu contacto com o meio literário parisiense levou­‑o a
rejeitar o positivismo materialista e a procurar no ideário simbolista resposta para o
inexplicável sentido das coisas. Controverso pela sua intolerância política e religio‑
sa, a singularidade da sua obra foi, todavia, reconhecida por escritores seus contem‑
porâneos. O seu teatro, nem sempre bem recebido pelos artistas, constitui a parte
mais original da sua obra, o lugar de invenção por excelência de uma voz poderosa
que cruza todas as formas dramáticas e as submete a um projecto maior: compreen‑
der a unidade da humanidade em Deus. (Maria João Brilhante)

PAUL VALÉRY (1871­‑1945). Depois de uma primeira renúncia à criação poética,


em 1892, consagrou­‑se expressamente «à vida do espírito», tornando­‑se um dos au‑
tores centrais da poesia e do pensamento estético francês da primeira metade do sé‑
culo xx. Céptico quanto ao poder da inspiração na arte, foi cultor de um «lirismo do
intelecto» que prolongaria a tradição mallarmeana do formalismo reflexivo, patente
em poemas como «La jeune parque» (1917) e «Le Cimetière Marin» (1920), ou na pro‑
sa de La soirée avec Monsieur Teste (1926). O seu interesse pela matemática, o gosto
pela arquitectura (Eupalinos ou l’architecte, 1923) e pela dança (L’âme et la danse, 1925),
assim como a constante atenção às mudanças políticas e civilizacionais da época,
impregnaram­‑lhe os ensaios, anotações e intervenções públicas (Variétés; Cahiers;
Mélanges) de uma curiosidade dispersa e de um espírito naturalmente relacional que
continuam a ser muito inspiradores e a apontar para a crítica interartística. (Ana
Paula Coutinho)

PAUL VERLAINE (1844-1896). Poeta simbolista e decadentista francês, é um dos


representantes maiores de uma poesia das sensações, em que a ideia da «música
antes de tudo» define a diluição do sentido discursivo no verso em outras compo‑
nentes, como a estrutura rítmica e melódica. Tendo-se ele mesmo considerado,
juntamente com outros poetas contemporâneos (como Rimbaud, com quem man‑
teve uma turbulenta relação, e Mallarmé), um «poeta maldito», a sua poesia oscila
entre a representação dessa dimensão de excesso (Poèmes saturniens, 1866) e breves
representações, quase impressionistas, de memórias episódicas que se concentram

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notas críticas 757

em momentos raros (como no poema «Chove sobre a cidade», aqui reproduzido).


A sua «arte poética» consegue, de forma condensada, exprimir os princípios que a
arte simbolista persegue. (Helena Carvalhão Buescu)

PEDRO CALDERÓN DE LA BARCA (Madrid, 1600­‑1681) nasceu numa família


fidalga, de pequena fortuna, e, após concluir os estudos universitários em Salaman‑
ca, renunciou à carreira eclesiástica a que estava destinado, trocando­‑a por uma
vida dedicada ao teatro. De 1623 a 1640, escreve numerosas peças sacras e profanas
e o sucesso granjeia­‑lhe honras e cargos na corte. Interrompido esse percurso pela
ida para a guerra da Catalunha, onde é ferido em combate, retoma na volta (1642)
a prática literária, que confina a temas religiosos, é ordenado (1651) e acaba por re‑
gressar à corte como capelão honorário (1663). Uma das suas obras mais famosas é
A Vida é Sonho, drama filosófico bem ao gosto barroco, que encena, com aparato,
questões tão complexas como o livre­‑arbítrio, o conhecimento e a ética. (Cristina
Almeida Ribeiro)

PERCY BYSSHE SHELLEY (Sussex, 1792 – Livorno, 1822). Poeta romântico in‑
glês que, juntamente com Lord Byron e John Keats, se consagrou como um dos
grandes autores do romantismo na literatura. A sua vida foi marcada pela inquietu‑
de, pela rebeldia e pela devoção aos ideais românticos. O poeta teve um fim trágico,
falecendo afogado num acidente de barco, antes de cumprir 30 anos, quando estava
em Itália. As obras «Prometheus unbound», «The cency» e «Hymn to intellectual
beauty» são cristalizações da estética romântica. (Miriam de Sousa)

PETER HANDKE (Caríntia, 1942­), prosador, dramaturgo, ensaísta e tradutor,


é por certo um dos mais importantes escritores contemporâneos de língua alemã,
estabelecido hoje em França. Em parte devido ao contexto bilingue (alemão/eslove‑
no) da sua família materna, Handke desde cedo se interessou pelo papel primordial
da linguagem na criação literária. Na década de 60 notabilizou­‑se pela sua polémica
intervenção em Princeton, em que acusou o reconhecido Gruppe 47 de «impotên‑
cia descritiva», assim como pela sua irreverência discursiva patente em obras dra‑
máticas como Publikumsbeschimpfung («Ofensa ao Público») (1966) e Kaspar (1968).
Ao longo do seu percurso manteve sempre a preocupação com os limites da lingua‑
gem, centrando­‑se, a partir dos anos 80, na experiência da narrativa como busca de
uma linguagem literária, conforme ilustra o excerto aqui sugerido de Os Belos Dias
de Aranjuez (2012), que Handke escreveu originalmente em francês e traduziu para
alemão. (Joana Moura)

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PETRÓNIO (Massalia, c. 27 – Cumae, 66), autor latino de primeiro nome Tito


ou Gaio, que viveu em Roma durante o consulado de Nero e era conhecido como
«arbiter elegantiae», isto é, o juiz da moda, do luxo e da elegância na corte impe‑
rial. Pouco se sabe da sua vida, com excepção de que lhe é atribuída a autoria da
obra Satiricon, escrita talvez no ano 61 e que nos chegou incompleta. Satiricon é uma
obra­‑prima do género sátira menipeia, onde se rompe com os cânones estéticos
clássicos de harmonia, equilíbrio e propriedade através da representação de carac‑
teres e episódios contemporâneos, da descrição realista e minuciosa dos costumes
sociais do tempo e da inclusão de frequentes alusões satíricas a figuras públicas e
comportamentos da época (porventura ao próprio Nero). É especialmente famosa
a longa cena do banquete de Trimalquião, que inspirou a literatura carnavalizada e o
grotesco da Idade Média e do Renascimento, em particular Rabelais. O Satiricon foi
adaptado ao cinema por Fellini, em 1969. (João Ferreira Duarte)

PICO DELLA MIRANDOLA (1463­‑1494) estudou em Ferrara, Pádua e Pavia


antes de se fixar em Florença, onde integrou o círculo de brilhantes humanistas
reunidos na órbita ou sob a protecção de Lourenço de Médicis. Pico, em 1487,
destruiu (ou desejou destruir) a sua obra poética de tema amoroso; em 1494, traba‑
lhava nas Disputationes Adversus Astrologiam Divinatricem, que não chegou a acabar.
Antes, porém, em 1486, ambicionara promover um magno concílio de sábios que
discutissem o que o apaixonava: «os princípios das coisas humanas e divinas». Foi
para este fim que escreveu numerosas Conclusiones, logo em parte reprovadas pela
Igreja. A Oratio de Hominis Dignitate, concebida como discurso de abertura desse
encontro que nunca teve lugar, seria impressa em 1496 e alcançaria, a partir daí,
uma extraordinária fortuna. «Magnum miraculum est homo», dizia Pico, disposto
a conciliar a lição de hebreus, árabes, gregos e latinos para melhor pensar e desco‑
brir. (Isabel Almeida)

PIER PAOLO PASOLINI (Bolonha, 1922 – Ostia, 1975) foi um dos mais represen‑
tativos e polivalentes intelectuais da Itália do pós-guerra, um período de crescimen‑
to económico e sangrentas lutas políticas, culminando na década de 70, os chama‑
dos «anos de chumbo». Católico, comunista e homossexual, a vida e obra de Pasolini
foram um caso de constante empenho político e social através de várias formas de
arte: cinema, poesia, teatro, romance. Foi assassinado nos arredores de Roma, num
crime até hoje não completamente esclarecido. O poema aqui transcrito, «A bala‑
da das mães», é retirado do seu livro Poesia in Forma di Rosa (1964), uma obra que
reflecte a desilusão do autor face aos excessos do capitalismo e às contradições do
comunismo na sociedade italiana dos anos 50 e 60. (Simão Valente)

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notas críticas 759

PIERRE DE RONSARD (Couture­‑sur­‑Loire, 1524 – Saint­‑ Cosme­‑en­‑l’Isle, 1585)


é, com Du Bellay, um dos rostos da Pléiade, grupo defensor de uma poesia nacional
inspirada nos antigos e em modelos renascentistas italianos como Dante e Petrar‑
ca, por oposição às poéticas medievais. Cedo integrado na esfera áulica, recebe a
tonsura em 1543, gozando de protecção régia, como poeta oficial, entre 1558 e 1560.
Representativos da sua poesia amatória, com edição de 1552 e sucessivas reedições,
os poemas em apreço centram­‑se no jogo entre o eterno e o efémero, associado a
novas maneiras de louvor, por vezes de inspiração petrarquista. Destaca­‑se a glo‑
rificação do poeta, como figura autoral, em contraponto ao primado da dama, em
«Quando fordes bem velha…», na sua ligação ao topos da imortalidade das letras.
(Maria Graciete Silva)

PLATÃO nasceu em Atenas em 427 a.C., oriundo de uma família aristocrática. Vida
e obra foram muito marcadas pelos acontecimentos políticos ocorridos no final do
século v e início do iv, nomeadamente, a vitória de Esparta, em condições humi‑
lhantes para Atenas, em 404, e a condenação de Sócrates, de quem foi o principal
discípulo, pelo tribunal dos Heliastas em 399, acusado de corromper a juventude e
de descrer nos deuses da cidade. A questão da morte do homem justo às mãos da
cidade injusta é um tema que atravessa o seu pensamento. Depois de uma primeira
viagem que o levou ao Egipto e à Sicília (390­‑388), Platão fundou a Academia, a es‑
cola platónica, associação que persistiu até à época de Justiniano (529) e onde pôde
desenvolver o seu magistério. Independentemente da questão referente ao ensino
esotérico e exotérico, bem como a problemas relativos à autenticidade de alguns
textos (é o caso, por exemplo, das Cartas), Platão deixou­‑nos uma vasta obra, consti‑
tuída por inúmeros diálogos, cuja influência literária e filosófica nunca se extinguiu.
(José Pedro Serra)

PREDRAG MATVEJEVI (1932­‑2017). Escritor e ensaísta «etnicamente impuro»,


como ele mesmo se qualifica, nasceu na antiga Jugoslávia e viveu as últimas décadas
entre Paris e Roma. A sua obra mais conhecida é este Breviário Mediterrâneo (1987,
em serbo­‑croata), de que foi escolhido o excerto relativo à batalha do Lepanto que,
em 1571, foi uma das maiores batalhas navais que opôs o Império Otomano às forças
ocidentais. Esta obra, correspondendo às suas convicções histórico­‑ideológicas e
sobretudo simbólicas, olha para a história do Mediterrâneo como uma negociação
e uma batalha entre diversas forças históricas que geograficamente se avizinham.
(Helena Carvalhão Buescu)

PRIMO LEVI (Turim, 1919­‑1987). Apesar de oriundo de uma família judia, só com
a ascensão da ideologia anti­‑semita tomou consciência de si como judeu. Em 1943,

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aderiu ao Partito d’Azione e foi detido. Em Fevereiro de 1944 foi deportado para
Auschwitz. Doutorado em Química, conseguiu trabalhar no laboratório de Mo‑
nowitz. A escarlatina salvou­‑o da marcha da morte. Na sequência da libertação do
campo, em Janeiro de 1945, empreendeu a viagem de volta a Itália, onde chegou em
Outubro do mesmo ano. O testemunho da experiência concentracionária é veicula‑
do principalmente através de três obras: Se questo è un uomo (Isto É Um Homem, 1947),
retrato dos meses passados em Auschwitz; La tregua (A Trégua, 1963), relato do pé‑
riplo de regresso a Itália, e I sommersi e i salvati (Os Que Sucumbem e os Que se Salvam,
1986), reflexão acerca da condição do homem no lager. (Fátima Fernandes da Silva)

RAFAEL ALBERTI (1902­‑1999), poeta, dramaturgo e artista plástico, muito activo


na vanguarda madrilena dos anos 20 (Geração de 27), manteve intensa actividade
política durante a Segunda República e a Guerra Civil, exilando­‑se depois até 1977.
Deixou três notáveis volumes de memórias (La arboleda perdida, 1959, 1987, 1996).
A sua poesia, desde Marinero en tierra (1925), combina ecos da tradição (cancionei‑
ril, barroca, pós­‑romântica) com uma peculiar interpretação da poética surrealista
(Sobre los ángeles, 1929), assumindo, a partir dos anos 30 e sobretudo no exílio, o com‑
prometimento ideológico do autor (El poeta en la calle, 1966), sem perder de vista a
relação com a Andaluzia natal (Ora marítima, 1953, a que pertence o primeiro poema
incluído) e com as artes plásticas (Los 8 nombres de Picasso, 1970, a que pertence o
segundo). (Fátima Freitas Morna)

RAINER MARIA RILKE (1875­‑1926) é considerado consensualmente como um


dos expoentes da poesia universal e responsável pela reinvenção da lírica alemã no
início do século xx. Composto por anotações de diário, o seu romance de cariz au‑
tobiográfico Die Aufzeichnung des Malte Laurids Brigge (Os Cadernos de Malte Laurids
Brigge, 1910) instaura uma ruptura com os padrões realistas do romance oitocen‑
tista, privilegiando a forma fragmentária e renunciando a uma narrativa linear. As
Duineser Elegien (Elegias de Duíno), de que se reproduz a elegia inaugural (em que
avulta a famosa interrogação aos anjos — «Wer, wenn ich schriee»), condensam um
desarmante lirismo de recorte existencial, em que se consuma uma poesia órfica,
oscilando entre o imperativo do canto e a aguda consciência da morte. (Ricardo Gil
Soeiro)

RENÉ CHAR (1907-1988) foi um dos maiores poetas franceses do século xx.
Publicou numerosas recolhas poéticas, depois da sua estreia, em 1928, com Les clo‑
ches sur le coeur, e de várias colaborações com os surrealistas franceses. A partir dos
anos 30, a sua poesia lírica, sem perder uma condição sintáctica e semanticamente
complexa, que caracterizará sempre o seu dizer poético, torna-se progressivamen‑

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notas críticas 761

te mais ideológica e empenhada (Dehors la nuit est gouvernée, 1938), nomeadamente


durante a ocupação francesa pelos nazis e nos anos posteriores à Segunda Guerra
Mundial. A recolha Fureur et mystère (1948), que reúne vários dos seus livros ante‑
riores, dá conta de uma imagética fortíssima sempre ligada à rebelião surrealista e
à crença na figura do poeta como aquele que pode «transformar o sofrimento em
pão», numa imagem simbolicamente salvífica. (Helena Carvalhão Buescu)

ROBERT BROWNING (1812-1889), poeta inglês do período vitoriano, cultivou


predominantemente formas literárias híbridas onde convivem elementos líricos,
narrativos e dramáticos, que, por interacção, visam definir o quadro psicológico de
personagens situadas em circunstâncias ou momentos críticos. Nos seus monólo‑
gos dramáticos, de que é exemplo «Pictor ignotus», a tentativa de verbalizar as mais
íntimas emoções aprofunda o grau de introspecção e autognose das personagens; se
e quando tais figuras procuram justificar anomalias de comportamento, assumem
a estratégia de manipular em seu proveito as reacções dos ouvintes e dos próprios
leitores. Autor de obra vasta, as suas preocupações estéticas, morais e religiosas são
atravessadas pela fragmentação e relativização da verdade, que exprime através da
multiplicidade de pontos de vista. Deverá, pois, Browning ser precursor do mo‑
dernismo euro-americano e da crise da subjectividade lírica a que Fernando Pessoa
atribuirá vozes heteronímicas. (João Almeida Flor)

ROBERT DESNOS (Paris, 1900 – Theresienstadt, 1945) foi um poeta francês


associado sobretudo ao modernismo dos anos 20 e ao surrealismo dos anos 30.
Partilhando dos ideais estéticos de André Breton, líder dos surrealistas, afasta­‑se
contudo do movimento quando Breton lhe dá um pendor político alinhado com o
comunismo. Não obstante, Desnos participa em publicações antifascistas e, mais
tarde, toma parte na resistência francesa à ocupação nazi. Trabalhando inicialmen‑
te no âmbito do jornalismo, Desnos especializa­‑se no campo da publicidade, em
contacto com Alexandre O’Neill dos pontos de vista literário, profissional e políti‑
co. Morre no campo de concentração de Theresienstadt, na actual Chéquia, pouco
tempo depois do seu encerramento, para onde fora deportado pela sua actividade
na resistência francesa. (Simão Valente)

ROBERT LOUIS STEVENSON (Edimburgo, 1850 –­ Ilhas Samoa, 1894), autor de


romances, contos, poesia e literatura de viagens, é sobretudo conhecido como o
autor de dois clássicos da literatura, A Ilha do Tesouro (1883), inspirado num mapa de
uma ilha imaginária e popular entre o público infanto­‑juvenil, e O Estranho Caso do
Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (1866), novela gótica que teve a sua origem num pesadelo. As
personagens complexas que povoam as obras de Stevenson são reveladoras do seu

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interesse pela ténue fronteira entre o bem e o mal, a tal ponto que a expressão ingle‑
sa «Jekyll and Hyde» passou a designar uma personalidade de duas faces, uma boa e
outra má. É esse interesse pelo mal que, desde as últimas décadas do século xx, tem
atraído um olhar renovado sobre a obra de Stevenson. (Teresa Casal)

ROBERT MUSIL (1880­‑1942) foi um multifacetado escritor austríaco cuja obra se


reparte entre o romance, o teatro e o conto. Foi também um prolífico ensaísta, com
especial destaque para «Über die Dummheit», uma conferência que Musil proferiu
em Viena em 1937. Os pequenos textos em prosa, coligidos no volume Nachlass zu
Lebzeiten (1936), constituem um modelar exemplo do desarmante humor de Musil e
da sua inventividade reflexiva e linguística. Mas é sobretudo pelo seu romance mo‑
numental e inacabado, Der Mann ohne Eigenschaften (O Homem sem Qualidades), que
Musil é considerado um dos romancistas mais inovadores da literatura universal.
Publicado em três partes (1930­‑1942), este monumental romance filosófico cons‑
titui uma poderosa e minuciosa reflexão sobre as tensões do desmoronamento do
Império Austro­‑Húngaro e um diagnóstico cáustico da época moderna, plasmado
na busca identitária empreendida pelo protagonista, Ulrich. (Ricardo Gil Soeiro)

ROSALÍA DE CASTRO (Santiago de Compostela, 1837 – Padrón, 1885) foi a


principal figura do renascimento literário galego (o chamado «Rexurdimento») na
segunda metade do século xix, enquadrando­‑se no movimento de recuperação e
promoção da identidade cultural da Galiza, que ganhará maior fôlego nas primeiras
décadas do século xx. Os poemas em língua galega publicados por Rosalía de Cas‑
tro nos volumes Cantares gallegos (1863) e Follas novas (1880) constituem um acervo
notável de lirismo de raiz folclórica combinado com a reflexão sobre a realidade
social na Galiza (por exemplo, as dificuldades da vida rural, ou a emigração para a
América), incluindo também a expressão intimista e a reflexão filosófica e religiosa.
(Ângela Fernandes)

SAFO (c. 617 a.C. – c. 570 a.C.). Nome cimeiro da poesia grega arcaica — constava
do cânone alexandrino de nove poetas líricos —, a biografia de Safo mantém con‑
tornos indecisos e foi objecto de efabulações. O seu nascimento, na ilha de Lesbos,
provavelmente em Mitilene, ocorreu entre 617 e 612 a.C. e é muito provável que a
sua morte tenha ocorrido entre 570 e 560 a.C. Oriunda de uma família aristocrata,
Safo, na sequência dos conflitos políticos que então se viviam na ilha, foi exilada
para a Sicília, de onde regressou entre 586 e 585. É aí, em Lesbos, que as suas rela‑
ções com companheiras e amigas se tornam famosas. A enciclopédia bizantina Suda
(século x) acusa­‑a de um «amor vergonhoso», dando a entender que as relações com
as suas companheiras, para além do aspecto literário, incluíam uma componente se‑

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notas críticas 763

xual. Deste convívio, realizado em Lesbos, deriva o termo «lesbianismo», utilizado


para designar a homossexualidade feminina. Simultaneamente, forjou­‑se também a
lenda segundo a qual a poetisa se teria atirado ao mar do rochedo de Lêucade por
causa de um amor não correspondido pelo belo jovem Fáon. Embora, ainda de acor‑
do com a Suda, Safo tenha escrito nove livros de poesia lírica (epigramas, iambos,
elegias), muitos dos seus poemas chegaram­‑nos sob a forma de fragmentos. (José
Pedro Serra)

SAINT­‑JOHN PERSE (pseudónimo de Alexis Léger, Point­‑à­‑Pitre, 1877 – Giens,


1975), nascido numa família de ascendência borgonhesa radicada nas Antilhas até à
viragem do século, foi diplomata de carreira e persona non grata ao regime de Vichy, que
lhe retirou a cidadania francesa. Exilou­‑se nos Estados Unidos, onde compôs Amers,
obra emblemática da sensibilidade do poeta que se dizia tanto mais francês quanto
mais universal, editada em 1957. Assente na correspondência simbólica entre «tálamo»
e «navio», o excerto seleccionado desdobra­‑se em ressonâncias bíblicas e imagens de
recorte clássico sugestivas de uma transcendência do imanente em que se conjugam
memória e sensualidade. Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1960, vi‑
veu os últimos anos entre o Sul de França e os Estados Unidos. (Maria Graciete Silva)

SALVATORE QUASIMODO (Modica, 1901 – Nápoles, 1968) foi um poeta italia‑


no, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1959. A poesia de Quasimodo tem
dois grandes períodos: primeiramente aquela escrita no âmbito do hermetismo,
movimento literário da década de 30 em Itália, caracterizado por uma concepção
do texto poético enquanto matriz criadora, com frequentes chamadas ao mundo
natural, apresentando­‑se enquanto herdeiro do simbolismo francês através do uso
de códigos linguísticos a serem decifrados por aqueles que se iniciam na sua leitu‑
ra. Num segundo momento, após a Segunda Guerra Mundial, Quasimodo escreve
cada vez mais poesia politicamente empenhada com os ideais do partido comunista
italiano. É ainda de sublinhar a sua actividade enquanto tradutor, especialmente de
textos clássicos, Shakespeare e Molière. (Simão Valente)

SAMUEL BECKETT (1906­‑1989). Mais espirituoso do que na maior parte das ve‑
zes se lembra, À Espera de Godot é peça central num período definidor na obra deste
autor, iniciado em 1946, quando o irlandês passa a escrever sistematicamente em
francês e se afasta em definitivo da opressiva influência de Joyce. É Godot, o ciclista
francês dos anos 40, de primeiro nome Roger, ou o Godeau de Balzac, por quem
Mercadet espera para resolver impasses financeiros? As múltiplas leituras a que a
peça deu origem ilustram a amplitude de abordagens de que a obra de Beckett foi
alvo. A obra esquiva­‑se e Vladimir e Estragon tanto são herdeiros dos desajeitados

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pares do vaudeville como variações das almas que purgam na Divina Comédia. A mes‑
ma dinâmica de pares continua em Dias Felizes. (Raquel Morais)

SAMUEL TAYLOR COLERIDGE (Devonshire, 1772 – Highgate, 1834). Poeta,


crítico e filósofo inglês que, juntamente com William Wordsworth, inaugura o mo‑
vimento literário romântico inglês. Os dois autores publicam, em 1798, Baladas Lí‑
ricas, obra que estabelece uma nova estética literária. «Rima do velho marinheiro» é
um poema fundamental deste movimento literário que, principalmente, se centra
na tradução da experiência (por vezes tumultuosa) do sujeito no mundo, com par‑
ticular ênfase na sua relação com a natureza. «Christabel» e Biographia Literaria são
reconhecidas obras de S.T. Coleridge. (Miriam de Sousa)

SÁNDOR MÁRAI (1900­‑1989). Multiplicando títulos desde 1918, é mestre na fic‑


ção psicológica, desde A zendülök (Rebeldes, 1930). Válás Budán (Divórcio em Buda,
1935) anuncia maneira universalmente saudada, e mais Eszter hagyatéka (A Herança
de Eszter, 1939), sobre o amor destruidor, que, na nobreza do tom, se faz esperança
e aquece a memória. Quadro do Império Austro­‑Húngaro em tons crepusculares,
A gyerták csonkig égnek (As Velas Ardem até ao Fim, 1942) confronta a queda do império
da amizade entre dois homens: no meio, sempre, uma mulher, como em Az Igazi.
Judit… és utóhang (A Mulher Certa), um nocturno sobre a degradação das relações con‑
jugais, europeias, nacionais, em que os embates entre proletariado e burguesia se di‑
luem no consumismo e o conceito de cultura se reduz a reflexo. (Ernesto Rodrigues)

SÁNDOR PETŐFI (1823­‑1849). As oitavas do seu Nemzeti dal (Canto Nacional)


acompanham o levantamento húngaro de 15 de Março de 1848 contra os Habsbur‑
gos: «De pé, húngaro, a pátria chama! / É a hora, agora ou nunca!» Desde Janeiro
de 1847, este filho de pai eslovaco, que hungarizara o apelido Petrovics — fora à
conquista de Peste, vivendo de empregos efémeros —, entoava sucinto programa
lírico resumido no título inaugural: Szabadság, szerelem! (Liberdade, Amor!). Ajudan‑
te de campo do general Bem na batalha de Segesvár (Sighisoara, Transilvânia), de‑
sapareceu, sebasticamente, num campo de milho, em 31 de Julho de 1849. Antero
de Quental (1886) traduziu do alemão esse «poeta político», de rosto humanitário,
também «admirável poeta lírico! Que profundidade e originalidade, em tão artística
concisão!». (Ernesto Rodrigues)

SEAMUS HEANEY (1939­‑2013), poeta, ensaísta, professor e tradutor, nasceu


numa família católica da Irlanda do Norte, tendo tido a oportunidade de estudar
e de «cavar», já não com a pá do pai e do avô, mas com a pena, como diz no poema
que abre a sua primeira obra, «Cavando» (1965). Sinalizando as suas raízes rurais e o

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notas críticas 765

modo como a poesia surge da relação entre solo e memória, história pessoal e co‑
lectiva, esse primeiro poema aponta já para as «preocupações» (1980) da escrita de
Heaney, que culminarão na metáfora da «cadeia humana» que intitula a sua última
obra, Human Chain (2010). A responsabilidade ante as múltiplas histórias e tradi‑
ções herdadas agudiza­‑se com a eclosão de conflitos sectários na Irlanda do Norte
(1968­‑1998), que marca o volume North (1975). Distinguido com o Prémio Nobel da
Literatura em 1995, Heaney alia preocupações éticas e estéticas, sendo sensível à
pressão sentida pelos poetas na Irlanda do Norte para conciliarem «responsabilida‑
de social e liberdade criativa». (Teresa Casal)

SÉNECA (4-1 a.C. – 65 d.C) nasceu em Córdova, de onde era oriunda a família, e
suicidou­‑se abrindo as veias numa banheira. Seu pai, Séneca, o Retor, escreveu uma
antologia de controvérsias e suasórias e seu sobrinho Lucano escreveu uma epopeia
sobre a guerra civil. Filósofo estóico, produziu textos em que expõe esta filosofia,
como o De Ira, o De Clementia, o De Uita Beata, o De Beneficiis, mas também tem uma
vasta produção teatral, que serve de veículo às ideias estóicas. Preservam­‑se nove
tragédias, todas de tema mitológico. Interessou­‑se também por questões científi‑
cas, escrevendo Naturales Quaestiones. Foi nomeado perceptor de Nero em 49 por
Agripina e terá sido conivente nos assassinatos de Britânico e da própria Agripina,
mais não fosse pelo seu silêncio, acabando por ser vítima da sua relação com o po‑
der. Foi muito estimado pelos Padres da Igreja, que viam no seu pensamento uma
proximidade com o cristianismo. (Luís Cerqueira)

SIMONE DE BEAUVOIR (1908­‑1986), autora da célebre frase «On ne naît pas


femme, on le devient», é uma destacada ensaísta, romancista e filósofa francesa,
autora de Les Mandarins (1954), Mémoires d’une jeune fille rangée (1958) e La Femme
rompue (1967). Le Deuxième Sexe (O Segundo Sexo), publicado em 1949, é o seu livro
mais notório e tornou­‑se uma referência incontornável para o feminismo contem‑
porâneo. Esta obra foi lida e comentada por muitos autores, nomeadamente por
Judith Butler, que lhe dedicou um importante ensaio no qual discute a questão da
construção da identidade de género («Sex and gender in Simone de Beauvoir’s Se‑
cond Sex», 1986). Juntamente com Jean­‑Paul Sartre, com quem manteve uma longa
relação, Simone de Beauvoir é um nome fundamental da corrente existencialista e
fundadora, com outros escritores e filósofos seus contemporâneos, da revista Les
temps modernes (1945), que tinha como objectivo dar a conhecer as relações do exis‑
tencialismo com a literatura contemporânea. (Ana Filipa Prata)

SÓFOCLES (c. 495 a.C.), dramaturgo ateniense que, ao longo dos seus cerca de 90
anos, compôs mais de 120 peças (deste corpus apenas sete sobrevivem), arrebatando

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mais de 20 vitórias em competições dramáticas. Antígona (c. 440 a.C.), em termos


de recepção provavelmente a mais popular das tragédias gregas, e Rei Édipo (c. 430­
‑420) são as duas principais tragédias do dramaturgo, com Édipo em Colono como
uma espécie de epílogo. Nesta que é talvez a mais atípica das tragédias gregas,
examine­‑se a questão da agência de Édipo no assassinato de Laio, a relação entre
Édipo e os filhos, a oposição entre Tebas e Atenas, e a influência que um herói, mes‑
mo depois de morto, pode ter sobre uma cidade. (Tatiana Faia)

SÓLON (638 a.C.?­– 558 a.C.). Considerado um dos Sete Sábios da antiga Grécia e
um dos grandes legisladores de Atenas, juntamente com Drácon e Péricles, Sólon é
conhecido pelas reformas políticas que levou a cabo na cidade de Palas Atena, nomea‑
damente as que dizem respeito à abolição da escravidão por dívidas e à nova organi‑
zação censitária. Vivendo numa época em que os conflitos intestinos grassavam pelas
cidades gregas, Sólon procurou um equilíbrio social que evitasse o advento da tirania,
o que, por fim, não conseguiu impedir. Politicamente, as suas elegias — composições
constituídas por dísticos, um hexâmetro dactílico e um pentâmetro dactílico — re‑
flectem as suas preocupações políticas e éticas. Quanto à sua concepção da «euno‑
mia», a lei justa ou a boa lei, ela representa um significativo momento entre as ante‑
riores concepções de Hesíodo e as futuras reflexões de Ésquilo. (José Pedro Serra)

STANISŁAW LEM (1921-2006), romancista e contista polaco de ficção científica.


Os seus livros, traduzidos para 42 línguas e com mais de 30 milhões de exemplares
vendidos, tornam Lem o autor polaco mais traduzido. Desistiu da medicina para
se dedicar à escrita. Estreou­‑se, em 1946, com o conto «Homem de Marte», mas
somente em 1951, com Os Astronautas, alcançou fama na Polónia. O seu romance
mais conhecido e traduzido é Solaris (1960), adaptado ao cinema por A. Tarkovski
(1972) e por S. Soderbergh (2002). De um modo geral, a sua obra explora aspectos
do progresso da ciência e da tecnologia, da natureza humana e da (im)possibilidade
de estabelecer contacto com seres inteligentes de outros planetas, a par de temas
relacionados com a sociedade contemporânea e com a avaliação dos regimes comu‑
nistas e capitalistas. O asteróide 3836 foi denominado Lem e o asteróide 343000,
designado Ijontichy, em homenagem a uma personagem recorrente em três dos
seus romances: Ijon Tichy. (Teresa Fernandes Swiatkiewicz)

STEFAN ZWEIG (Viena, 1981­– Rio de Janeiro, 1942). Romancista, tradutor,


biógrafo e jornalista, nasceu numa família judaica, mas o anti­‑semitismo crescen‑
te obrigou­‑o ao exílio, primeiro em Londres, depois nos EUA e por último no
Brasil, onde viria a cometer suicídio, desencantado com o estado de catástrofe da
«sua» Europa. Deixou uma obra tão diversa quanto a sua experiência de vida, mar‑

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notas críticas 767

cada pela errância judaica, a formação humanista e o espírito cosmopolita A sua


última obra, O Mundo de Ontem. Recordações de um Europeu (1942), constitui a ra‑
diografia de um tempo de grandes transformações sociais, políticas e económicas,
que culmina com o colapso do Império Austro­‑Húngaro — a estabilidade social
e financeira e a crença inabalável no progresso deram lugar à perda da segurança,
da justiça e liberdade e sobretudo à humilhação e à aniquilação da comunidade ju‑
daica, essa mesma comunidade que tinha sido motor da cultura vienense ao longo
do século xix. (Luísa Afonso Soares)

STENDHAL (1783-1842) é o pseudónimo principal de Marie-Henri Beyle, um dos


grandes romancistas, novelistas e ensaístas franceses da primeira parte do século
xix. A sua obra, que tem como lugares cimeiros La chartreuse de Parme (1839), Lucien
Leuwen (póstumo) ou Le rouge et le noir (1830), além de uma autobiografia e ensaios
vários, como De l’amour, não cabe nos cânones definidos em termos periodológicos,
excedendo as designações de romântica ou de realista. Por um lado, Stendhal repre‑
senta, de forma intensa mas depurada, o fim do Antigo Regime e o poder centrípeto
que Napoleão simbolicamente representa, num quadro político de figuras enormes
que extravasam muito além dos seus limites e papéis. Por outro, a desmesura de tais
figuras faz sobressair o quadro pequeno-burguês a que a sociedade pós-revolucioná‑
ria está votada. No caso d’ O Vermelho e o Negro, os protagonistas Julien e Mathilde
unem-se, de forma paralela mas contraditória, pelo seu carácter maior que o mun‑
do, sem que os sentimentos diluam as meticulosas e secas análises que os ocupam.
(Helena Carvalhão Buescu)

STÉPHANE MALLARMÉ (1842­‑1891). «O mundo existe para ser incluído num li‑
vro», afirmou numa entrevista em 1891. E tudo, da matéria prosaica do «jornalismo»
(Crise de vers) às «artes» (Divagations, 1897), ou mesmo a «moda» (La dernière mode,
1874), foi matéria do seu trabalho de rarefacção do real pela escrita. Inscrevendo­
‑se já num segundo momento do simbolismo pós­‑verlainiano, para ele, na poesia,
tratava­‑se não de «nomear» (imitar) mas de «sugerir». Escritor raro, na obra escrita e
publicada (Album de vers et de prose, 1888), Mallarmé concebeu um projecto de «livro»
(performático) total (Le livre de Mallarmé, 1957) que, em certa medida, constitui a
aura espectral do túmulo do seu filho (Pour un tombeau d’Anatole, 1861). Com Igitur e
Un coup de dés jamais n’abolira le hasard introduziu a modernidade (Apollinaire) a uma
concepção espacial de poesia. (Fernando Guerreiro)

T.S. ELIOT (1888­‑1965). Poeta, ensaísta e dramaturgo norte­‑americano, estudou em


Harvard e foi para Inglaterra em 1914 a fim de preparar o doutoramento em Filosofia.
Em Londres conheceu o seu conterrâneo Ezra Pound, que viria a proporcionar­‑lhe

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a publicação em 1915 de «The Love Song of J. Alfred Prufrock» e a contribuir para


a versão final de The Waste Land (1922), um poema feito com fragmentos de vozes,
de memórias e de identidades, que se tornaria emblemático do modernismo anglo­
‑americano. As suas ideias sobre a impessoalidade da criação poética influenciaram
alguns rumos da teoria e da crítica literárias no século xx. Em 1927 torna­‑se cida‑
dão britânico. Com a excepção da sequência poética The Four Quartets (1936­‑42), o
drama foi dominante na sua criação literária a partir de 1935. Foi Prémio Nobel da
Literatura em 1948. (Gualter Cunha)

TAHIR MUJIČIĆ (Zagrebe, 1947) é, por vocação, um homem de teatro: co-fun‑


dador de várias companhias, incluindo uma de marionetas; co-autor de algumas
dezenas de peças encenadas; encenador; cenógrafo; figurinista e crítico. Também
escreve poesia e prosa, que bebem da sua experiência cénica e aliam fortes elemen‑
tos visuais, experimentalismo poético-linguístico, performance, cancioneiros po‑
pulares e uma aguda consciência irónica. Mujičić tem publicado extensamente, e foi
recentemente premiado pelo seu romance de estreia Budi Hamlet, pane Hamlete («Sê
Hamlet, Meu Caro Hamlet», 2012). É ainda membro de várias associações profissio‑
nais croatas e internacionais. Luna Lusitana, livro de viagens poético elaborado em
co-autoria com o artista plástico Hrvoje Šercar, explora uma afinidade surpreen‑
dente com as terras portuguesas percorridas, sublimando-a em imagens-tipo da he‑
rança cultural «lusitana». (Arijana Medvedec)

TED HUGHES (West Yorkshire, 1930­– Londres, 1988). Um dos mais importantes
poetas ingleses da segunda metade do século xx, escreveu também ficção, teatro e
livros para a infância, traduziu autores clássicos e organizou antologias fundamen‑
tais de outros poetas como Emily Dickinson, S.T. Coleridge ou Sylvia Plath, com
quem foi casado entre 1956 e 1963 (data do suicídio de Plath) e com quem teria dois
filhos, Frieda e Nicholas. De resto, a ele se deve a organização da poesia completa
de Plath, embora a sua relação com a poeta norte­‑americana tenha sido objecto de
controvérsia. Desde a publicação, em 1957, de The Hawk in the Rain, o seu primeiro
livro de poemas, Ted Hughes seria consistentemente aclamado pela crítica, tendo
recebido vários prémios e distinções, como a Ordem de Mérito ou a Ordem do
Império Britânico. Foi nomeado poeta laureado em 1984, distinção que manteria
até à morte. (Ana Luísa Amaral)

TERESA DE ÁVILA (Ávila, 1515 – Alba de Tormes, 1582) nasceu numa família de
comerciantes de ascendência conversa e foi desde jovem marcada por uma sede de
verdade que alimentou os seus exercícios espirituais e a preparou para o ingresso
na vida monástica. A sua força interior revela­‑se em 1562, quase 30 anos após ter

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notas críticas 769

professado no convento das carmelitas descalças de Ávila, quando, empenhada na


reforma da Ordem, tem de vencer inúmeros obstáculos para a concretizar. Reparte­
‑se depois entre as viagens de apoio à fundação de novos conventos e a escrita de
textos que combinam experiência mística e doutrina. Canonizada em 1622, foi em
1970 uma das duas primeiras mulheres reconhecidas como Doutoras da Igreja. Os
seus poemas mostram a proximidade entre o discurso místico e o discurso amoroso.
(Cristina Almeida Ribeiro)

THEODOR FONTANE (1819­‑1898) foi um dos mais conhecidos romancistas


alemães da segunda metade do século xix, sobretudo devido ao facto de algumas
das suas obras mais célebres focarem a situação da mulher na sociedade burgue‑
sa, destacando­‑se o adultério e suas consequências, temas celebrizados na sua con‑
temporaneidade em Madame Bovary e Anna Karénina. Na verdade, Fontane foi um
romancista tardio, tendo grande parte da sua vida adulta sido dedicada ao serviço
do Exército prussiano e ao jornalismo. São as obras sobre a vida contemporânea
e a sociedade burguesa europeia, normalmente integradas no chamado «realismo
poético», caracteristicamente germânico, as que mais se destacam (passou alguns
anos em Inglaterra ao serviço do Exército durante a época vitoriana), quase sempre
sobre a condição feminina. O seu mais célebre romance é Effi Briest (publicado em
livro em 1895), adaptado ao cinema em 1974 pela mão de Rainer Werner Fassbinder.
(Fernanda Gil Costa)

THÉOPHILE DE VIAU (Clairac, 1590 – Chantilly, 1626) teve uma vida breve e
aventurosa, marcada pela itinerância (numa companhia de teatro, 1611­‑1613), pelo
exílio (1619­‑1620), por uma condenação à morte executada em efígie (1623) e pela
prisão (1623­‑1625), que se seguiu a uma frustrada tentativa de fuga para Inglaterra e
a que, encontrando­‑se ele já muito debilitado, a intervenção do duque de Montmo‑
rency viria a pôr termo. Aclamado por uns, sensíveis ao seu génio, e perseguido por
outros, por razões políticas ou sob a acusação de libertinagem, foi poeta de corte e
dramaturgo e é hoje reconhecido como um dos grandes nomes do barroco francês.
Ilustrativa desta pertença, é, na fantasmagoria que dela emerge, a ode aqui repro‑
duzida, onde se multiplicam, num turbilhão, as imagens de um mundo às avessas.
(Cristina Almeida Ribeiro)

THOMAS BERNHARD (1931­‑1989) é um autor austríaco que nasceu na Holan‑


da, mas passou a infância entre a Áustria e a Alemanha (Bavária), ao cuidado da
mãe e dos avós maternos. Foi com o avô, o escritor Johannes Freumbichler, que
cedo iniciou os seus estudos musicais que viriam a influenciar indelevelmente a sua
produção literária, como está patente nos seus romances Perturbação (1967) e Betão

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(1982) ou no texto dramático Minetti (1976). Toda a sua obra é uma crítica mordaz
ao conservadorismo da sociedade austríaca, sendo a sua escrita caracterizada pela
radicalidade de uma linguagem aparentemente trivial, assim como pelo pessimismo
obsessivo e louco dos seus protagonistas, como bem ilustra o excerto de O Sobrinho
de Wittgenstein: Uma amizade (1982) aqui apresentado. (Joana Moura)

THOMAS KINSELLA (Dublin, 1928). Poeta, tradutor, editor e professor, fez a ins‑
trução básica em gaélico e estudou Ciências e Letras na University College Dublin.
Autor prolixo, entre Another September (1958), a obra que lhe trouxe reconhecimen‑
to na Irlanda e no Reino Unido, e Late Poems (2013), Kinsella publicou mais de 30
volumes de poesia. Se a lírica inicial tinha ecos de W. H. Auden na sua elegância
formal, o interesse pelos modernistas americanos propiciou uma inflexão na sua
escrita, mais experimental a partir de Nightwalker and Other Poems (1968). Kinsella
fundou a editora Peppercanister Press, sendo também conhecido pelas suas tradu‑
ções do gaélico irlandês, designadamente The Táin (1969) e a antologia An Duanaire
1600­‑1900: Poems of the dispossessed (1981). (Teresa Casal)

THOMAS MANN (1875­‑1955) pode ser considerado um dos maiores escritores


alemães da primeira metade do século xx. Autor de uma obra narrativa (e também
ensaística) muito extensa, merece ser destacado como autor de um romance típi‑
co dos finais do século xix — Os Buddenbrooks. Decadência de uma família, uma saga
familiar burguesa observada ao longo de três gerações entre o apogeu e o declínio.
A sua obra mais conhecida viria a ser Morte em Veneza (1912), uma narrativa curta que
o filme homónimo de Luchino Visconti tornou num sucesso mundial. A luta entre o
espírito apolíneo e vitalista e a tentação do excesso e do caos do espírito dionisíaco
desenham o conflito do protagonista que perpassa afinal toda a obra do autor. São
ainda dignos de menção especial A Montanha Mágica (1924) e Doutor Fausto (1947).
O Prémio Nobel da Literatura foi­‑lhe atribuído em 1929. Thomas Mann viveu exi‑
lado nos Estados Unidos e na Suíça a partir de 1933, devido ao seu público repúdio
do nazismo e do Terceiro Reich. (Fernanda Gil Costa)

THOMAS MORE (Londres, 1478­‑1535) foi um dos mais destacados humanistas do


Renascimento inglês, desempenhando funções ao mais alto nível da coroa britânica
no reinado de Henrique VIII. É este mesmo monarca que condena More à morte por
decapitação, em consequência da recusa do seu conselheiro em aceitar a cisão com
o papa e a fundação da Igreja Anglicana com o rei como líder religioso. Do ponto de
vista literário, More ficará para sempre associado a Utopia (1516), o relato ficcional da
viagem de um marinheiro português a uma ilha distante, pretexto para o autor satirizar
as formas de governo e costumes do seu tempo e, simultaneamente, teorizar uma so‑

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notas críticas 771

ciedade ideal. Com efeito, a palavra «utopia» é cunhada por More para dar nome à sua
ilha, vindo a partir de então a adquirir o significado que conhecemos. (Simão Valente)

TITO LÍVIO (Pádua, 59 a.C. – 17 a.C.) As suas datas de nascimento e morte


foram­‑nos transmitidas por Jerónimo. Escreve na juventude obras retóricas e fi‑
losóficas que se perderam, mas a sua glória vem da gigantesca obra dos 142 livros
sobre a história de Roma, Libri ab Urbe Condita, de que só sobreviveram comple‑
tos a primeira década (dez livros), a terceira, a quarta e a quinta. Dos restantes
livros temos resumos (periochae) compilados talvez no século iii­‑iv e fragmentos
de livros perdidos. Os primeiros livros, sobre as origens de Roma, reúnem as len‑
das fundacionais, tão importantes para a criação de uma identidade nacional. A
sua historiografia tem uma perspectiva ideológica e edificante, como era normal
na historiografia antiga. (Luís Cerqueira)

TOMAS TRANSTRÖMER (Estocolmo, 1931­‑2015), o mais traduzido dos poe‑


tas suecos, foi Prémio Nobel da Literatura em 2011. Nota­‑se então, entre nós, um
crescendo de interesse pela obra do poeta que, em 1954, ainda estudante de Psi‑
cologia na Universidade de Estocolmo, atraía a atenção da crítica com 17 Poemas.
Iluminavam­‑se assim, em termos biográfico­‑críticos, alguns traços salientes de uma
carreira ameaçada pela doença que, em 1990, punha à prova a resiliência do poeta
e músico. No poema escolhido, de 1962, opera‑se a transfiguração de uma noite
tempestuosa de Inverno em metáfora de insegurança num mundo em ebulição, essa
bem mais rigorosa tormenta que nos atinge a «alma», menos previdente que a «casa»,
confrontando‑nos com a vulnerabilidade da nossa condição. (Maria Graciete Silva)

TORQUATO TASSO (Sorrento, 1544­–­ Roma, 1595), formado, num percurso iti‑
nerante, em várias cortes de Itália, cultivou desde cedo a poesia de tema cavalei‑
resco, emulando em parte o exemplo de seu pai, Bernardo Tasso, autor do Amadigi.
A ambição de Torquato Tasso, porém, era construir uma epopeia. Il Goffredo (título
original da obra que veio a ser publicada, em 1581, como Gerusalemme Liberata), um
«picciol mondo», surgiu como prodigiosa coincidentia oppositorum e suscitou contro‑
vérsia. Tasso, atento ao êxito do género romanzo, fez entrar na narrativa da primei‑
ra cruzada, junto com a racionalíssima personagem do chefe Goffredo, uma densa
intriga amorosa e, com ela, toda a instabilidade e maravilha das paixões. Sinais dos
tempos: o poeta que, acometido de demência ou «melancolia», sofreu a prisão en‑
tre 1579­‑1586, quando de novo livre sujeitou a Gerusalemme Liberata a uma severa
autocensura ditada por escrúpulos religiosos e espirituais. Nascia assim, fruto de
pública e atormentada contrição, temendo a heresia e o pecado, a Gerusalemme Con‑
quistata (1593). (Isabel Almeida)

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TRISTAN TZARA (pseudónimo de Samuel Rosenstock, Moinesti, 1896 – Paris,


1963), autor romeno naturalizado francês em 1947, foi um dos fundadores do da‑
daísmo e um dos comparsas do famoso Cabaret Voltaire que, em 1916, escandalizou
Zurique, em plena guerra mundial. Poeta e autor de manifestos daquilo que os fun‑
dadores do movimento preferiam chamar Dada, termo mais adequado ao seu pen‑
dor subversivo e antiprogramático, Tzara veio a aproximar­‑se da vanguarda francesa
e do grupo da revista Littérature, fundada, em 1919, por André Breton, Louis Aragon
e Philippe Soupault, onde, nesse ano, veio a lume o texto escolhido. Provocatório
no simultaneísmo das suas imagens e associações insólitas, tão caro a dadaístas e
surrealistas, o texto objectiva no seu efeito de colagem a blague de todas as blagues:
a literatura. (Maria Graciete Silva)

TUCÍDIDES (460 a.C. – 400 a.C.) foi um historiador e general ateniense cuja
obra magna é o relato da guerra entre Atenas e Esparta, conhecida como Guerra
do Peloponeso. A sua História da Guerra do Peloponeso é reconhecida como uma das
primeiras obras do género, distanciando­‑se de Heródoto na forma como conce‑
be a História enquanto registo de uma agência humana, livre de preceitos divinos.
O excerto escolhido narra o discurso imperial de Péricles perante os atenienses,
onde justifica a relevância do sistema democrático da cidade. (Francisco Marques)

TUDOR ARGHEZI (pseudónimo de Ion Nae Theodorescu, 1880­‑1967) foi um


dos mais importantes autores romenos do século passado. Só começou a escrever
na maturidade, mas conseguiu produzir uma mudança significativa na linguagem
poética, inaugurando na literatura romena a corrente baudelairiano­‑modernista —
sendo o sintagma mais utilizado para descrever a sua poética «a poesia da podridão»
(seguindo um verso argheziano famoso: «Din bube, mucegaiuri și noroi/Iscat­‑am
frumuseţi şi preţuri noi»). Contribuiu significativamente para o jornalismo do pe‑
ríodo interbélico, tendo construído uma tipografia no Mărțișor (a sua casa), onde
publicava os famosos Bilhetes de Papagaio, uma revista que acolhia todos os escrito‑
res conceituados da época. (Roxana Ciolaneanu)

UGO FOSCOLO (Zante, 1778 – Londres, 1827). A vida deste autor é representativa
do cosmopolitismo do século xviii europeu: filho de pai veneziano e mãe grega,
Foscolo nasce na ilha de Zante, actualmente grega mas à altura parte da República
Veneziana. Fervoroso partidário da unificação de Itália, que só viria a ter lugar em
1861, Foscolo participa nas guerras napoleónicas chegando a combater do lado do
Exército imperial, visto pelo autor como potencial libertador da península italiana,
à altura dividida entre os domínios austríaco, papal e espanhol. É a sua actividade
política que o conduz ao estatuto de exilado no Reino Unido, onde viria a morrer.

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notas críticas 773

A sua obra é de cariz nacionalista, romântico, sem, contudo, se afastar dos ideais
neoclássicos, deixando espaço a reflexões sobre as experiências de amor e exílio.
(Simão Valente)

UMBERTO ECO (Alessandria, 1932 – Milão, 2016) é um dos escritores italianos mais
conhecidos do grande público. Com um percurso que conjuga uma notável carreira
académica com a actividade literária, para além da intervenção cívica e o jornalismo,
Eco é um dos responsáveis pelo desenvolvimento da semiótica, a disciplina que estu‑
da sistemas de criação de significado para além da linguagem articulada, aquilo que
no âmbito da disciplina em causa se chama o signo. No campo estritamente literário,
a sua obra maior é sem dúvida O Nome da Rosa (1980), romance em que o autor faz uso
de uma narrativa policial para explorar o acto interpretativo, ou seja: como e em que
condições o indivíduo produz o seu significado a partir da leitura de um texto — ou
da análise dos traços deixados por um criminoso. (Simão Valente)

UMBERTO SABA (Trieste, 1883 – Gorizia, 1957) é um poeta italiano indelevelmente


ligado à sua cidade natal, Trieste, à altura do seu nascimento parte do Império Austro­
‑Húngaro e ponto de convergência de influências latina, germânica e eslávica. En‑
quanto membro da activa comunidade judaica triestina, Saba representa também a
riqueza do ponto de vista multirreligioso da cidade onde viveu quase toda a sua vida.
Negociante de livros antigos e raros de profissão, os seus textos reflectem a ambiência
de Trieste e da região circundante, numa poesia de cariz autobiográfico em que o au‑
tor explora as suas relações familiares e amizades, muito especialmente a sua mulher,
Carolina. A linguagem é clara, directa, valorizando sobretudo a comunicabilidade de
sentimento e reflexão sobre as experiências de vida do autor. (Simão Valente)

«VAGAMUNDO», que aqui traduz «The wanderer», é uma das mais inspiradas
composições líricas escritas em anglo-saxónico, dialecto literário do inglês antigo.
De data e autoria incerta, encontra-se registado num manuscrito de finais do século
x, denominado O Livro de Exeter (The Exeter Book). O cerne do poema, composi‑
ção lírica de tom elegíaco, é constituído por um conjunto de tópicos, resultado da
interpenetração de elementos pagãos e cristãos: a recordação nostálgica do passa‑
do; a lembrança de alegres festins e dos companheiros e parentes, apartados pela
distância ou pela morte e evocados através do motivo do ubi sunt?; a consciência
da privação de bens materiais; a amargura do afastamento do lar; o queixume dolo‑
roso pelo exílio que obriga a vaguear por terras e mares; enfim, a saudade da alegria
de outrora, em conflito com o presente de mágoa, ausência e solidão. (Júlia Dias
Ferreira e João Almeida Flor)

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VALÉRY LARBAUD (Vichy, 1881­‑1957) é um autor francês com um singular per‑


curso de vida. Herdeiro de uma fortuna apoiada no comércio das águas minerais
da região de Vichy, Larbaud dispunha dos meios económicos que lhe permitiram
viajar extensivamente pela Europa, assim tomando parte do cosmopolitismo da vi‑
ragem do século. Simultaneamente, o seu amor pela literatura levou à acumulação
de uma considerável biblioteca, bem como das relações com autores e intelectuais
seus contemporâneos como André Gide e James Joyce. Com efeito, a tradução para
francês do Ulisses do autor irlandês foi supervisionada por Larbaud. A sua obra li‑
terária é reflexo das suas vivências, documentando o internacionalismo das elites
culturais antes e depois da Primeira Guerra Mundial. (Simão Valente)

VANDA JUKNAITË (Papiliai, 1949­) é uma escritora multifacetada, que alia à acti‑
vidade literária (como ficcionista, dramaturga e ensaísta) uma intervenção sustenta‑
da, com tradução editorial, junto de crianças com deficiência ou sujeitas a qualquer
forma de marginalização. Licenciada pela Universidade de Vilnius, tornou­‑se, em
1975, docente da mesma universidade, vindo, em 2008, a ser distinguida com o Pré‑
mio Nacional da Lituânia para a Arte e a Cultura. A maternidade, tema central da
sua obra, adquire aspectos tocantes em O País de Vidro, novela publicada em 1995,
retomada aqui a partir de uma antologia da ficção lituana contemporânea. Metáfora
de um país imaginado, o excerto projecta no vínculo materno, em todas as suas im‑
plicações, fantasmas e esperanças da independência reconquistada em 1990. (Maria
Graciete Silva)

VERGÍLIO (70 a.C. – 19 a.C.), cujo nome foi corrompido em Virgílio, nasceu em
Mântua. Poeta ligado ao círculo de Augusto, exaltou na sua obra a grandeza de Roma
e o projecto de reconstrução nacional que o princeps pretendia levar a cabo, após a
sangria da Guerra Civil, com a batalha de Ácio. Escreveu três obras maiores: as
dez Bucólicas (ou Éclogas), poemas breves de ambiente campestre, imitando o grego
Teócrito, que havia criado o género; os quatro livros das Geórgicas, poesia didáctica
sobre o cultivo dos campos, a criação de gado e a apicultura; a Eneida, poema épico
sobre os errares de Eneias e as guerras deste em Itália, que miticamente explicam a
origem de Roma. O impacto de Vergílio na cultura europeia só é comparável ao da
Bíblia. É o clássico da Europa. (Luís Cerqueira)

VICENTE ALEIXANDRE (1898­‑1984). Poeta andaluz pertencente à Geração


de 27, Prémio Nobel da Literatura em 1977. Permanecendo em Espanha depois da
Guerra Civil, foi um elo de ligação entre a sua e as gerações do pós­‑guerra. Aliando
uma selectiva apropriação da tradição barroca espanhola com certa concentração
da «poesia pura» de Juan Ramón Jiménez, a sua poesia integra­‑se conscientemente

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notas críticas 775

na tradição europeia que de Rimbaud conflui no surrealismo, explorando o poema


em prosa até às margens do automatismo (Espadas como Lábios, 1932, La destrucción o
el amor, 1935, Sombra del Paraíso, 1944). Do movimento de «re­‑humanização» que se
seguiu à guerra resultaram os poemas de Historia del Corazón (1954), a que pertence o
aqui incluído, inflectindo depois a sua obra num sentido mais especulativo (Diálogos
del conocimento, 1974). (Fátima Freitas Morna)

VICTOR HUGO (1802-1885), grande poeta, romancista e dramaturgo francês do


século xix, moldou, através da sua grandeza (de comportamento, de rupturas lite‑
rárias e ideológicas, de dimensão discursiva), toda a literatura do século que atraves‑
sou, como espectador e agente: foi um dos expoentes literários da Europa oitocen‑
tista. Autor de vários romances de forte recorte épico, como Les misérables (1862) ou
Notre Dame de Paris (1831), as suas personagens principais destacam-se pela sua po‑
derosa força de intervenção e de revolta contra as convenções individuais e sociais,
com um recorte melodramático que o acompanha das primeiras composições mais
românticas (Cromwell, 1827) às de índole mais próxima do socialismo proudhoniano
e claramente políticas (como muita da sua poesia das décadas de 50 e sobretudo
60, por exemplo, Les châtiments). Les contemplations (1856), de que se publica aqui
um dos mais comoventes poemas, é uma recolha toda ela estruturada em torno da
trágica morte da filha, dividindo o tempo entre o «antes» e o «depois» da sua morte.
É também um poema em que Hugo se mede com Deus ele mesmo, o poder supre‑
mo e incompreensível. (Helena Carvalhão Buescu)

«A VIDA DE LAZARILHO DE TORMES E DAS SUAS FORTUNAS E


ADVERSIDADES» permanece uma obra anónima, pesem os muitos trabalhos
atribuindo a autoria a Diego Hurtado de Mendoza, a Juan de Ortega ou a Juan de
Valdés, entre outros. Tão-pouco se conhece a data da primeira publicação, con‑
servando-se hoje quatro edições de 1554. Trata-se de uma falsa autobiografia, em
que um pícaro, pobrete sem honra, narra como as suas experiências de privação ao
servir diferentes amos o tornaram num determinado tipo de adulto, um que con‑
sente o «caso» da esposa com um arcipreste. No presente excerto, pode apreciar-se
algumas das características do género picaresco espanhol, nomeadamente a sátira
anticlerical e o herói que, ao invés de actuar, observa e comenta. Novela picaresca
primogénita, Lazarilho veio a assumir um papel determinante na história do roman‑
ce europeu. (Rita Bueno Maia)

VIRGINIA WOOLF (1882­‑1941) é uma figura maior da literatura do século xx.


Ficcionista, ensaísta, as suas vitais deambulações pela escrita são o âmago de uma
vida dedicada a interrogar as (e através das) possibilidades da expressão literária.

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Examina os fascínios, os tormentos e as ironias da vida social, as armadilhas do pen‑


samento binário como as das sexualidades, as perplexidades do tempo histórico.
Distintas são as suas técnicas para descobrir a vida interior das personagens, a per‑
sona que cria para narrar divagações, memórias, fluxos de consciência, processos de
associação de impressões; afastando nexos de causalidade ou de enredo, criando um
processo de «escavar túneis» na consciência das personagens para nelas explorar a
profundidade do tempo. Experimentando, sempre. Até ao fim. Obras em destaque
podem ser Mrs. Dalloway (1925), To the Lighthouse (1927), Orlando (1928), Between the
Acts (1941 post.), ou A Room of One’s Own (1929). Ou muitas das ficções breves. Ou
muitos dos numerosos ensaios. (Luísa Maria Flora)

VITTORIA COLONNA (Marino, 1492 – Roma, 1547) é uma das mais notáveis
escritoras de sonetos do Renascimento italiano. Originária da alta nobreza napo‑
litana, Colonna dedicou­‑se à escrita de poesia de temática amorosa e religiosa, de
feição petrarquizante, num período em que frequentemente as mulheres eram re‑
legadas para uma posição secundária na produção literária. Simultaneamente, a sua
posição social permitiu que Colonna organizasse em seu torno, na ilha de Ischia, ao
largo de Nápoles, uma corte pela qual passaram escritores como Sannazzaro, Arios‑
to ou Castiglione. Foi, contudo, com Miguel Ângelo que Colonna veio ao longo
da vida a estabelecer uma profunda amizade, da qual é testemunha a longa corres‑
pondência entre os dois. Grande parte da sua poesia provém precisamente dessas
cartas. (Simão Valente)

VOLTAIRE (1694­‑1778), de seu nome François­‑Marie Arouet, foi um dos mais no‑
táveis representantes do Século das Luzes, cultivou todos os géneros, mas foram os
seus contos que melhor resistiram ao tempo, impondo­‑se pelo humor e pela ironia
da crítica às instituições, à moral e à ignorância. Nesse contexto se inscrevem os
capítulos 5­‑ 6 de Cândido, ou o Optimismo, obra onde o autor, através de Cândido, que
aceitava sem discussão quanto lhe diziam, e de Pangloss, que defendia «a razão sufi‑
ciente do melhor dos mundos possíveis», demonstra a ineficácia de uma harmonia
pré­‑estabelecida. Visando libertar o leitor de preconceitos que tornam a vida into‑
lerável, o filósofo fez do romance arma contra a estupidez, sublinhando o ridículo
de situações como a decisão tomada pelos sábios da Universidade de Coimbra para
prevenir novos terramotos. (Eugénia Leal)

W.B. YEATS (1865­‑1939). Um dos maiores poetas em língua inglesa do século xx,
era oriundo da minoria protestante anglo­‑irlandesa que, desde o século xvii, de‑
tinha o poder político, económico, social e cultural na Irlanda. Nome cimeiro do
renascimento literário irlandês, Yeats defendeu e arriscou­‑se a idealizar a cultura

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notas críticas 777

irlandesa, e a sua obra poética e dramatúrgica sofreu a influência tanto do seu in‑
teresse por mitos e lendas celtas, como pelo teatro Noh japonês, o misticismo e o
ocultismo. Um dos fundadores do Teatro Nacional Irlandês, ou Teatro Abbey, que
visava estimular a criação de um repertório irlandês, o processo violento que con‑
duziu à independência da Irlanda, envolvendo conflitos armados e a partição da
ilha, levou Yeats a questionar­‑se, sobretudo nos últimos poemas, sobre os eventuais
excessos de uma visão heróica e sacrificial da causa nacionalista. Senador no recém­
‑criado Estado Livre Irlandês (1922), Yeats foi distinguido com o Prémio Nobel da
Literatura em 1923. (Teresa Casal)

W.G. SEBALD (1944­‑2001) é um dos escritores alemães mais reconhecidos da se‑


gunda metade do século xx, dentro e fora da Alemanha. Viveu grande parte da sua
vida em Inglaterra, onde morreu prematura e acidentalmente aos 57 anos. Austerlitz
(2001) é o seu romance mais conhecido internacionalmente, tendo recebido im‑
portantes prémios internacionais como o National Book Critics Circle Award for
Fiction, nos Estados Unidos, em 2001, e em 2002 recebeu no Reino Unido o Inde‑
pendent Foreign Fiction Prize, entre outros. O romance Os Anéis de Saturno (1995)
já tinha chamado a atenção dos leitores e da crítica. O tema do Holocausto está
sempre presente na sua obra de forma nostálgica e delicadamente filtrada pelas suas
memórias biográficas. O seu livro ensaístico História Natural da Destruição (1999) é
uma violenta acusação à sistemática (e injustificada) destruição das cidades alemãs
pelos Aliados nos últimos anos da guerra e uma interpelação ao persistente silêncio
da Alemanha sobre o assunto. (Fernanda Gil Costa)

W.H. AUDEN (York, 1907 – Viena, 1973), iniciais de Wystan Hugh, foi um poeta
modernista britânico, tomando proeminência no panorama literário internacio‑
nal na década de 30, influenciado por W.B. Yeats e T.S. Eliot. Educado em escolas
privadas e na Universidade de Oxford, Austen insurgiu­‑se contra o sistema a que
pertencia com textos de pendor político em que traçava os impactos na consciência
individual causados pelas crises que assolavam a Europa e o mundo. Emigrou para
os Estados Unidos em 1939, adquirindo a cidadania norte­‑americana, juntamente
com o romancista Chistopher Isherwood, com quem teria uma relação amorosa
durante o resto da sua vida. Auden é hoje conhecido por poemas como «Funeral
Blues» (1936) e «1 September 1939» (1939), mas a «Canção» (1939) que transcrevemos
é representativa de toda a sua obra. (Simão Valente)

WALTER SCOTT (1771­‑1832) foi um poeta, romancista, dramaturgo e editor es‑


cocês, que se tornou famoso como criador do romance histórico. A sua carreira
como escritor inicia­‑se com a publicação de poesia narrativa inspirada em baladas e

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narrativas orais tradicionais da Escócia, de que são exemplo obras como a colec‑
tânea de baladas Minstrelsy of the Scottish Border (1802­‑1803), o poema The Lay of
the Last Minstrel (1805), ou de The Lady of the Lake (1810). Foi a poesia que fez de
Scott o escritor mais famoso da sua época. Todavia, foi sobretudo com a criação do
romance histórico que exerceu notável influência na literatura europeia. Por ser a
narrativa considerada um modo literário menor, começa por publicar os primeiros
romances anonimamente. Entre os seus romances mais famosos contam­‑se Waverly
(1814), Guy Mannering (1815), Rob Roy (1817), Old Mortality (1816), The Heart of Mi‑
dlothian (1818), The Bride of Lammermoor (1819) ou Ivanhoe (1820). (Alexandra Assis
Rosa)

WALTHER VON DER VOGELWEIDE (c. 1170 – c. 1230) é considerado o poeta


germânico mais importante da Idade Média. Apesar de sabermos pouco acerca da
sua vida, a sua obra foi preservada em diversos manuscritos, dos quais o mais famo‑
so, o Codex Manesse do século XIV, contém quase toda a sua obra, o que atesta a
importância dada a este poeta. Trovador, compôs cantigas de amor ou Minnelieder,
em que tanto se dedica ao amor cortês como ao amor mundano. Em dois poemas
menciona Reinmar von Hagenau como o seu mestre. Durante os anos mais produ‑
tivos foi protegido do duque Frederico I de Áustria, após a morte do qual deambula
de corte em corte, convivendo com os grandes senhores do império. Quanto aos
seus poemas de teor político, e apesar de ser profundamente católico, evidenciam
ter tomado o partido do Sacro Império contra o papado. (Patrícia Couto)

WERNER HERZOG (1942) é um realizador, actor, encenador e autor alemão.


Mais conhecido pela sua obra fílmica, com particular destaque para Aguirre, ou a
Ira de Deus, filme de 1972, e Fitzcarraldo de 1982. A sua obra escrita gira em torno da
escrita de registo, como o diário ou a reflexão. Seleccionou­‑se uma passagem dos
excertos de um seu diário pessoal de peregrinação. Caminhar no Gelo é o resultado
da viagem que o autor realizou, a pé, desde a sua Munique natal até Paris, em 1974,
na esperança de, assim, conseguir obrigar o tempo a adiar a esperada morte de Lotte
Eisner, crítica e historiadora do cinema. O relato é o de duas viagens, uma através
do espaço e outra através do pensamento. (Francisco Marques)

WILLIAM BLAKE (Londres, 1757­‑1827) foi um poeta e artista visual inglês, notó‑
rio pelas suas obras concebidas numa totalidade que combina o texto poético com
o design gráfico. Com efeito, Blake, impressor e tipógrafo de profissão, desenvolveu
novas técnicas de gravura, nomeadamente a água­‑forte em relevo com a utilização
de ácidos para corroer a matriz, permitindo uma aplicação da cor sobre o papel
mais matizada do que anteriormente. A sua poesia é de cariz fortemente fantástico,

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notas críticas 779

tendo criado todo um panteão de seres sobrenaturais em obras como The Four Zoas
(1797­‑1827) e Jerusalem (1804­‑1820), frequentemente como alegorias para criticar
e refrear as piores características da revolução industrial. O seu poema «O tigre»
(1794), aqui transcrito, é exemplo da sua estética mística. (Simão Valente)

WILLIAM GOLDING (1911­‑1993), escritor britânico, nasceu e viveu grande parte


da sua vida na Cornualha, tendo­‑se primeiro dedicado ao ensino. O Deus das Moscas
(1954) granjeou­‑lhe o sucesso, ainda que sob acesa controvérsia. Romance distópi‑
co, nele se narra a vivência de um grupo de crianças que, abandonadas à sua sorte
numa ilha deserta dos trópicos, adoptam um comportamento violento e predador,
darwinista no popular sentido da luta pela sobrevivência. Em 1983 é­‑lhe atribuído o
Prémio Nobel da Literatura e, pouco depois, o título de cavaleiro (1988). A natureza
moral do homem seria tema de novo abordado, em Ritos de Passagem (o primeiro
volume da Trilogia para os Fins do Mundo), que recebeu o prémio Booker McConnell.
(Adelaide Meira Serras)

WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616), poeta lírico e dramático, é considerado


o mais influente e representativo autor de expressão inglesa e uma das figuras do
cânone da literatura universal. Familiarizado com todas as exigências da sua arte,
revela-se capaz de sintetizar e superar tanto a tradição do teatro religioso medie‑
val como a herança clássica, revitalizada pelo Renascimento. A sua obra não co‑
nhece divisão em actos e cenas nem a observância das unidades de tempo, lugar e
acção, como artes poéticas classicistas viriam a prescrever. Nela se encontra, antes,
um modelo de construção musical, comparável a uma peça sinfónica, cujo desen‑
volvimento temático assenta numa sequência de exposição, alternância, reitera‑
ção e variações. Experimentando com uma notória variedade de estilo, técnica e
simbolismo para problematizar os jogos do amor, do poder e da morte, é autor de
um repertório de 36 peças, traduzidas e representadas no mundo inteiro, entre as
quais se contam dramas históricos, comédias, e tragédias como Hamlet e Macbeth.
Na sua produção final avulta a peça The Tempest, onde a realidade humana coexis‑
te com entidades imaginárias e submetidas às forças da magia. Como poeta lírico,
Shakespeare é autor de dois longos poemas com sugestões eróticas e de uma longa
série de sonetos famosos onde se tratam várias modalidades do amor e certas situa‑
ções de triangulação a que este dá origem. (João Almeida Flor)

WILLIAM WORDSWORTH (Cockermouth, 1770 – Rydal Mount, 1850) foi o


poeta que, juntamente com Samuel Taylor Coleridge, fundou o movimento român‑
tico em Inglaterra com a publicação da primeira versão do volume Lyrical Ballads,
em 1798. Wordsworth foi a figura dominante no estabelecimento de uma nova

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estética, que rompia definitivamente com a retórica neoclássica da «dicção poética»


ao propor uma linguagem realmente falada pelos homens, como afirma no prefácio
a Lyrical Ballads. Os princípios básicos dessa estética consistiam numa nova atitude
para com a natureza, vista numa relação orgânica com o Homem, a elevação da poe‑
sia ao estatuto de cerne do conhecimento e da experiência humana e, sobretudo, a
centralidade do sujeito e da sua interioridade psicológica enquanto fonte de sentido
do mundo. O longo poema autobiográfico The Prelude: Growth of a Poet’s Mind, pu‑
blicado postumamente, é, neste contexto, o exemplo mais completo do romantismo
inglês, ao qual se juntam poemas tais como «Tintern Abbey» ou «Ode: Intimations
of Immortality», há muito centrais no cânone literário inglês. (João Ferreira Duarte)

WISŁAWA SZYMBORSKA (1923-2012), poeta polaca, crítica literária, ensaísta,


tradutora. Prémio Nobel da Literatura em 1996. Pertence à geração dos poetas po‑
lacos do pós­‑guerra que responderam ao repto de Theodor Adorno: Como escrever
poesia depois de Auschwitz? Estreou­‑se em 1945 com a publicação de um poema inti‑
tulado «Procuro a palavra», onde versa sobre a dificuldade de encontrar as palavras
para descrever a realidade do pós­‑guerra. A sua obra poética (14 pequenos volumes)
é marcada por algumas características recorrentes: uma atitude de ironia condes‑
cendente, a descrição de cenas do quotidiano, a precisão das palavras, a enumeração
e a capacidade de rematar os seus poemas com extrapolações memoráveis que re‑
metem para questões existenciais e filosóficas. A poeta destinou o valor do Prémio
Nobel a uma fundação cuja missão é promover a literatura polaca e apoiar escritores
polacos. Traduzida para 41 línguas, é um fenómeno de popularidade no ciberespaço.
(Teresa Fernandes Swiatkiewicz)

WITOLD GOMBROWICZ (1904-1969), nobre polaco, contista, romancista e dra‑


maturgo. Licenciado em Direito, cedo começou a escrever contos, compilados na
colectânea Memórias de Tempos Imaturos (1933). A sua obra mais conhecida é Ferdydurke
(1937), um romance no qual a história de um aspirante a escritor se cruza com sátira
social e situações grotescas ou surreais. O romance pertence hoje ao cânone literário
polaco e europeu. Gombrowicz participava como jornalista na travessia atlântica do
navio polaco MS Chrobry, quando rebentou a Segunda Guerra Mundial e decidiu per‑
manecer na Argentina, de onde só partiu, em 1964, para França, quando as traduções
dos seus romances (Ferdydurke, Pornografia, Cosmos, Trans­‑Atlantyk, etc.) já desperta‑
vam o entusiasmo da crítica e dos leitores europeus e as suas peças de teatro começa‑
vam a ser encenadas na França, Alemanha e Suécia. (Teresa Fernandes Swiatkiewicz)

ZADIE SMITH (Londres, 1975) é filha de mãe jamaicana e pai inglês. Cronista
singular da contemporaneidade, foi considerada pela revista Granta, em 2003, uma

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das 20 melhores romancistas da sua geração. O seu primeiro romance, White Teeth
(2000), distinguido com vários prémios, entre eles o Guardian First Book Award,
apresenta a multiculturalidade londrina, com grande abrangência temática (identi‑
dade, questões raciais e de género, ética e ciência). Também os romances The Auto‑
graph Man (2002), On Beauty (2005), NW (2012) e Swing Time (2016) foram premia‑
dos. É, ainda, autora de ensaios (Changing My Mind, 2009) e de contos, publicados
regularmente, por exemplo, na revista New Yorker. Defensora da necessidade de re‑
lações humanas com sentido numa época marcada pela histeria e superficialidade,
a sua ficção realista experimental e de cariz ético tem vindo a dar crescente atenção
à desigualdade social. (Teresa Cid)

ZBIGNIEW HERBERT (Lviv, 1924 – Varsóvia, 1998) é um dos principais poetas


polacos do século xx. Começou a escrever poesia na adolescência, mas o primeiro
livro, Acorde de Luz, só viria a ser publicado em 1956. Estudante primeiro de econo‑
mia e depois de direito, vivendo em várias cidades diferentes e tendo vários traba‑
lhos, dedicou­‑se ao estudo da filosofia tendo por mentor o poeta Henryk Elzenberg.
O primeiro livro, como notou Zagajewski, altera tudo, e transforma­‑o num escritor
que viaja pelo mundo. Acorde de Luz é um dos mais belos livros escritos no século
passado. Sr. Cogito, personagem que surge em diversos livros, uma das mais notáveis
criações literárias do nosso tempo. (Tatiana Faia)

ZLATKA TIMENOVA (Sófia, 1949) está há muito radicada em Portugal, onde se


tem dedicado ao ensino e à poesia. Escreve ora em búlgaro, ora em francês, prati‑
cando a autotradução entre essas duas línguas, num processo que alarga, às vezes,
ao português. Particularmente afeiçoada às formas breves de raiz oriental, poten‑
ciadoras da emergência de uma voz que aspira à harmonia e busca o equilíbrio entre
a palavra e o silêncio, cultiva o haiku, como mostram os pequenos textos que aqui a
representam, e participou recentemente na elaboração de um renku, poema a duas
vozes, em que dialogou com Casimiro de Brito. (Cristina Almeida Ribeiro)

ZORAN IVKOVI (Belgrado, 1948). Escritor e ensaísta, com uma obra acadé‑
mica e literária destacada nas áreas da literatura fantástica e de ficção científica.
A Biblioteca recebeu, em 2003, o prémio World Fantasy Award. «A biblioteca noc‑
turna» é um dos seis contos da obra premiada, que abordam a relação com a leitu‑
ra e a escrita no domínio do fantástico. O Livro (1999), O Escritor­‑Fantasma (2009)
e O Grande Manuscrito (2012) são algumas das suas obras traduzidas para português.
(Miriam de Sousa)

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foi composto em caracteres Hoefler Text
e impresso em papel Coral Book de 70 g,
na Eigal, Indústria Gráfica, no mês
de Abril de 2018.

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Helena Carvalhão Buescu é professora cate­
A mais ambiciosa Maria Graciete Silva é professora auxiliar apo­
drática de Literatura Comparada na Universidade das antologias em português sentada desde 2013, ano em que cessou funções
de Lisboa. É professora ou investigadora visitante
de prestigiadas universidades na Europa, EUA e
reúne textos literários de todo como docente do Departamento de Estudos Por­
tugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Huma­
Brasil. Tem mais de uma centena de ensaios publi­ o mundo em sete volumes. nas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora
cados e é autora de dezenas de livros, sendo o mais do Centro de Estudos Comparatistas, integra os
recente Experiência do Incomum e Boa Vizinhança. Depois dos primeiros livros dedicados à literatura escrita projectos ECHO: Poesia e Poetas do Cancionei­
Literatura Comparada e Literatura­‑Mundo (2013). originalmente em português, a antologia Literatura­‑Mundo ro Geral e Literatura­‑Mundo Comparada, ten­
Foi fundadora e directora do Centro de Estudos Comparada avança para a segunda parte — «O Mundo Lido: do coordenado, com Helena Carvalhão Buescu,
Comparatistas (Universidade de Lisboa) e perten­ Europa». Abarcando tradições literárias europeias muito di­ a participação do Centro no projecto europeu
ce ao conselho do Institute of World Literature. versas, que contribuem para os cânones mundiais da litera­ ELiCa: University and School for a European Lite­
É membro da Academia Europaea e membro­ tura, estes dois volumes incluem autores como Dostoiévski, rary Canon (2010­‑2012). É autora de ensaios e arti­
‑correspondente da Academia das Ciências de Lis­ gos diversos na área da literatura, e co­‑organizou,
Proust, Joyce, Cervantes, Woolf, Aristóteles, Yeats, Shakes­
boa. Foi distinguida com o Prémio Ensaio APE/ com Cristina Almeida Ribeiro e Helena Carvalhão
peare, Beauvoir, Baudelaire, Beckett, Pirandello, Tolstói,
Portugal Telecom. Buescu, a antologia Um Cânone Literário para a Eu‑
Shelley, Kafka, Goethe ou Szymborska, e textos fundado­ ropa (2012).
Cristina Almeida Ribeiro é professora catedrá­ res como A Bíblia ou a Ilíada, incluindo várias traduções até
tica da Faculdade de Letras da Universidade de Lis­ agora inéditas. Simão Valente é professor auxiliar convidado na
boa, no Departamento de Literaturas Românicas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
onde se dedica ao ensino de Estudos Franceses e «A segunda parte enceta o alargamento do projecto a um onde ensina Literatura Comparada. Doutorou­‑se
Hispânicos. É investigadora do Centro de Estudos conjunto de textos de literatura‑mundo traduzidos para em Línguas Medievais e Modernas na Universida­
Comparatistas, onde coordena o Grupo MORPHE português, neste caso relativos à Europa. Reconhece‑se, de de Oxford, onde foi leitor de português e co­
e dirige o projecto ECHO: Poesia e Poetas do Can­ assim, a importância da tradução na mundialização das li­ ‑director do Centro Camões. Anteriormente, obte­
cioneiro Geral. As suas principais áreas de interesse teraturas em português, o que pressupõe um imprescindí­ ve mestrados em Literatura Francesa e Comparada,
são a poesia tardo­‑medieval e as teorias e práticas vel diálogo com a primeira parte (e com a terceira, de outro pela Universidade de Estrasburgo, e em Estudos
da narrativa breve, a que respeitam as suas mais modo) que potencie a compreensão do contributo decisi­ Italianos, Ciências da Linguagem e Culturas Lite­
recentes publicações. É, desde 2015, colaboradora vo da Literatura‑Mundo Comparada: Perspectivas em Português rárias Europeias, pela Universidade de Bolonha.
do Grupo de Investigação e­‑LITE — Ediciones y para a construção de uma Europa não etnocêntrica. É, pois, É investigador no Centro de Estudos Comparatis­
Estudios de Literatura Española (UVigo) e, desde tas da Universidade de Lisboa, e está a preparar um
da articulação produtiva entre unidade e diversidade que se
2016, académica correspondente da Real Academia livro sobre a criação do cânone literário português.
faz este livro.»
Española.
—Da Introdução

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