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Poetas

personagens da linguagem

CARLOS
DE OLIVEIRA
&
NUNO
JÚDICE

Ida Alves
© Oficina Raquel, 2021
© Ida Alves, 2021

EDITORA
Raquel Menezes e Jorge Marques

ASSISTENTE EDITORIAL
Mario Felix

CAPA e diagramação
Daniella Riet

IMAGEM DA CAPA
Conferir no Canvas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A474p Alves, Ida Maria Santos Ferreira.


Poetas [recurso eletrônico] : personagens da
linguagem : Carlos de Oliveira e Nuno Júdice / Ida
Maria Santos Ferreira Alves. – Dados eletrônicos (1
arquivo : 00 megabytes). – Rio de Janeiro : Oficina
Formato: PDF.
Requisitos do sistema: Software leitor de PDF.
Modo de acesso: World Wide Web.
ISBN 978-65-86280-93-7
1. Oliveira, Carlos de, 1921-1981 2. Júdice, Nuno
3. Poesia portuguesa 4. Poetas portugueses I. Título.

CDD P869.1
CDU 821.134.3-1

Bibliotecária: Ana Paula Oliveira Jacques / CRB-7 6963

www.oficinaraquel.com.br
SUMÁRIO

ESCLARECIMENTO

APRESENTAÇÃO
Contextualização do estudo – 13
Organização e abordagem teórico-crítica – 21
Nota de leituras – 26

EXERCÍCIO DO POÉTICO: RELAÇÕES NECESSÁRIAS


Poesia e linguagem: o processo metafórico – 37
Poesia e história: temporalidade, narratividade e memória – 49
Poesia e filosofia: criação e conhecimento – 64

POESIA PORTUGUESA DOS ANOS 1960 AOS ANOS 1990: UM


ESBOÇO DE MAPA
Linhas que se encontram na linguagem poética – 84
Em direção ao sujeito – 86
Em direção à narratividade – 93
Em direção ao dialogismo – 101

CARLOS DE OLIVEIRA: INVENTOR DE JOGOS


De Cantata a Pastoral, ao encontro de Finisterra – 117
Balizas de um trabalho poético: O aprendiz de feiticeiro – 143
Percursos do sujeito no tempo e no espaço – 151
Jogo de paisagens – 157
Memória do sujeito, memórias da escrita –164
NUNO JÚDICE: PERSEGUIDOR DA ETERNIDADE
De A noção de poema a Teoria geral do sentimento –174
Meditações estéticas: As máscaras do poema – 212
Percursos do sujeito no tempo e no espaço – 223
Experiências do ser: memória e metamorfoses – 231
Ruínas, vestígios e fragmentos –241
À janela: sujeito, mundo, texto – 247

CARLOS DE OLIVEIRA E NUNO JÚDICE: PERSONAGENS DA


MESMA HISTÓRIA
Cultura poética – 269
Cultura portuguesa – 277

UM MODO DE FIM – 283

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
De Carlos de Oliveira – 287
De Nuno Júdice – 287
De outros poetas

ANEXO – 321
ESCLARECIMENTO

Há 21 anos, defendi tese de doutorado sobre as poéticas de Carlos


de Oliveira e Nuno Júdice na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sob orientação do professor, ensaísta e leitor maior de poesia, Jorge
Fernandes da Silveira, hoje Professor Emérito dessa Universidade. Ao
intitulá-la Poetas: personagens da linguagem, aproximava dois trabalhos
poéticos muitos distintos em diversos aspectos, mas sobretudo na
história de vida dos respectivos autores e no modo como elaboravam
seus poemas. O que os unia, na leitura acadêmica proposta, era a
teorização lírica que cada um fazia sobre os atos de escrita e de leitura.
Havia ainda outra relação de proximidade: o jovem Nuno Júdice
também frequentara os cafés Toni dos Bifes e Monte Carlo, próximos à
casa de Carlos de Oliveira, em Lisboa, no Saldanha. Em mesas desses
cafés, Oliveira se encontrava com companheiros de letras, como José
Cardoso Pires, Augusto Abelaira, José Gomes Ferreira e António José
Forte, além de Herberto Helder. Ali estiveram igualmente Ruy Belo,
Gastão Cruz e Fiama Hasse Pais Brandão. Assim, sentavam-se juntos
tanto escritores experientes quanto os mais novos, que buscavam
estabelecer seus próprios espaços de escrita contemporânea.

Neste ano, 2021, quando evocamos o centenário de nascimento


do escritor português Carlos de Oliveira1, nascido, porém, no Brasil, em
Belém do Pará, e já se aproximam os 50 anos de publicação do primeiro
livro de poesia de Nuno Júdice, A noção de poema (1972), resolvi editar
como e-book este estudo, que alguns pesquisadores já conhecem em

1. Para marcar essa data, criei, em março de 2021, com a parceria da Profa. Dra. Andreia Castro, da
UERJ, o site Escritor Carlos de Oliveira, que pode ser acessado em https://escritorcarlosdeoliveira.
com.br/ . Reunem-se aí informações biobibliográficas e imagens que podem ajudar os jovens
pesquisadores e demais interessados. Também neste ano de 2021, será publicada a primeira
antologia brasileira de sua poesia, sob minha organização e com a colaboração de leitores especiais
da obra de Carlos de Oliveira, como Rosa Martelo (Universidade do Porto) e Osvaldo Silvestre
(Universidade de Coimbra), ao lado de Leonardo Gandolfi (UNIFESP) e Luis Maffei (UFF).
9
parte ou por inteiro. Ao longo dos anos, o acesso à tese, sempre que
solicitado, era dado por cópia ou arquivo pessoal, já que, quando foi
defendida, em maio de 2000, ainda não havia o catálogo online de
dissertações e teses – Capes. A divulgação de algumas passagens foi
realizada, também, em artigos de revistas impressas / eletrônicas ou
capítulos de livros de circulação acadêmica restrita, só encontráveis em
algumas bibliotecas universitárias. Na ata de defesa, a Banca registrou,
com ênfase, que o trabalho deveria ser publicado. Era também, no
Brasil, a primeira tese de doutorado que discutia toda a obra poética
de Carlos de Oliveira e a de Nuno Júdice. Mas faltou oportunidade e o
tempo foi correndo.

A abordagem teórico-crítica que sustentou o estudo permanece


válida e, como o conteúdo aborda a poesia portuguesa das últimas
décadas do século XX, pode interessar ainda ao pesquisador que se
inicia na compreensão desse campo de produção. Porém, sobretudo,
esta publicação agora é simplesmente um gesto de confirmação da força
do trabalho poético de Carlos de Oliveira, ainda pouco conhecido e lido
no Brasil, e um reencontro com a poesia de Nuno Júdice publicada dos
anos 70 aos 90, quando propunha, ao lado dos seus contemporâneos2,
um modo diverso de fazer e pensar a poesia como ficção da escrita e
da leitura. Se o segundo autor continua em atividade, com obra já tão
valorada e premiada, embora pouco lida entre nós, o primeiro, falecido
em 1981, perto de completar 60 anos, permance em zona de sombra,
sendo nomeado apenas por especialistas que conhecem a importância
de suas obras narrativas e poéticas, escrita de tensão sócio-histórica e de
intenso e permanente questionamento estético.

Este livro, portanto, dirige-se especialmente aos pesquisadores


brasileiros que se interessam por poesia, para que não percam a
oportunidade de conhecer a obra de Carlos de Oliveira e de Nuno

2. Seu primeiro livro de poesia, A noção de poema, foi publicado em 1972. Nos primeiros anos da
década de 70, começam a publicar Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorges,
António Franco Alexandre e Helder Moura Pereira.
10
Júdice. Em relação a Oliveira, junta-se o fato de que, em 2012, um
espólio inesperado composto por mais de oito mil documentos foi
doado ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, Portugal, o
que está abrindo, nos últimos anos, outras trilhas para o entendimento
de sua obra e suscitando novas e provocadoras questões.

Para esta edição, retiramos os traços mais evidentes de tese,


atualizamos notas, informações e renovamos a linguagem, visando uma
leitura mais fluida e dialogante com este tempo presente.

Rio de Janeiro, junho de 2021

Ida Alves3

3. Professora titular de Literatura Portuguesa do Instituto de Letras da Universidade Federal


Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de Janeiro. Docente permanente do Programa de Pós-
graduação em Estudos de Literatura da UFF. Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2000). Tem pós-doutorado pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (2005, com a Profa. Dra. Lélia Parreira Duarte) e pela
Université Sorbonne Nouvelle – Paris III (2011-2012, com apoio da Capes, Seminários de Pesquisa
do Prof. Dr. Michel Collot). Colidera os grupos de pesquisa “Estudos de paisagem nas literaturas
de língua portuguesa” e “Poesia e contemporaneidade”. É pesquisadora do CNPq e integra o grupo
internacional de pesquisa sobre linguagem poética e visualidade LyraCompoetics, com sede no
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Universidade do Porto. Integra, ainda, o
Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras, sediado no Real Gabinete Português de Leitura, e é Cientista do
Nosso Estado (Faperj, período 2018-2021).
11
APRESENTAÇÃO

Nosso interesse por estudos mais amplos e aprofundados sobre


a poesia portuguesa contemporânea, especialmente aquela produzida a
partir da década de 1950, motivou a defesa, em 1990, de dissertação de
mestrado sobre a obra poética de Carlos de Oliveira4, na qual procuramos
demonstrar como o escritor, no discurso poético, problematizava a
poesia autorreferencial e a modernidade. Partíramos do pressuposto de
que a poesia adjetivada de moderna pela crítica literária5 centrara em
si seu próprio objeto de referência e análise, constituindo, no interior
do processo literário, uma reflexão intensa sobre o seu fazer, a fim de
compreender a criação verbal, o valor das transformações formais e
semânticas inerentes à sua elaboração e o nível de intervenção crítica da
linguagem poética frente à realidade do mundo.

A pesquisa realizada nos forneceu algumas respostas, mas suscitou


também outras indagações. Assim, demos continuidade ao estudo com
o intuito de compreender a(s) trajetória(s) dessa poesia e investigar os
lugares de onde fala num momento mais específico e mais próximo de
nós – as décadas de 1960 a 1990 –, registrando criticamente as reflexões
realizadas e as práticas características em torno da ação e constituição
da palavra poética após um projeto denominado de modernidade, se
aceitarmos, é claro, a ideia de seu fim (Cf. PAZ, 1984, p. 190).

4. As paisagens poéticas de Carlos de Oliveira. Niterói: Instituto de Letras – Universidade Federal


Fluminense, 1990. Trabalho realizado sob orientação da Profa. Dra. Fernanda Bastos Moraes
Maddaluno.

5. Sobre a dificuldade e a mistura de critérios para definição dos termos “moderno” e “modernidade”,
cf. SENA, 1971, p. 395-417; AMARAL, 199l, p. 17-36.
12
Contextualização do estudo

O final do século XX evidenciou as transformações que a política


mundial - definida por uma minoria economicamente poderosa -
vem provocando, incidindo diretamente sobre as culturas nacionais
e sobre as formas de recepção, compreensão e debate dos temas que
circunscrevem nossa existência cotidiana. Desde meados da década de
1970, a discussão sobre a pós-modernidade, por exemplo, tem sido uma
discussão sobre nossa contemporaneidade globalizada, sem utopias,
num mal-estar existencial que advém da contraposição entre desejos
diversos e a impossibilidade de realizá-los, tanto no nível coletivo (nas
áreas político-econômica e sociocultural) quanto no nível pessoal (em
relação às experiências diversas do sujeito). Vemos agora, na segunda
década do século XXI, o acirramento dessas transformações e questões
problemáticas.

Especialmente em relação à literatura, perguntava-se, de forma


premente, para onde caminhavam os estudos literários e qual seria o
papel ou contribuição da arte para a sociedade, em face de realidades
por demais díspares. A partir dos anos 50, constatamos a expansão de
uma cultura de massa que desejava dar conta do mundo e se infiltrar no
cotidiano, por meio de discursos banalizantes veiculados principalmente
pela televisão, rádio, jornais e revistas. Esses veículos de comunicação
– aos quais, hoje, acrescentam-se as redes eletrônicas – foram, e ainda
são, pródigos em criar heróis e simular um poder quase divino de
onipresença, interferindo no modo como as pessoas vivem a realidade6.
Parte da ficção narrativa respondeu ao movimento de caleidoscópio do
contemporâneo com uma textualidade muito consciente do confronto
com a mídia, procurando sua inserção também no mercado de consumo.
Isso, muitas vezes, resultou na produção de obras pouco preocupadas
com o nível estético e mais interessadas em atingir rapidamente e de

6. Atualmente, a relação entre fake news e política demonstra a que ponto essa interferência chega,
ainda mais no contexto da pandemia de coronavírus que o mundo ainda enfrenta enquanto
escrevemos esta nota.
13
forma simplificadora uma parcela significativa de público. Outra parte,
mesmo sem abrir mão do valor literário, suscitou maior interesse de
leitura que outros gêneros literários.

Nesse contexto, qual é a situação da poesia? Esta, sempre


desafiadoramente nos limites, ou contra eles, considerada
frequentemente pelo leitor comum discurso confessional e sem utilidade
específica, parecia estar, mais enfaticamente naquele tempo finissecular,
condenada ao desaparecimento. Como a palavra poética poderia
competir com a mass media e o poderio tecnológico? Como se faria ouvir
na agitação consumista das grandes metrópoles? Como enfrentaria os
sistemas político-econômicos que redefiniam as fronteiras do mundo,
num movimento de indiferenciação cultural? Como atrairia o homem
comum, em meio ao turbilhão da vida, para a leitura ou audição de
poesia?

Apesar de tantos impasses, os poetas não se calaram, e a produção


poética mundial se mantém como uma estratégia de resistência7 por
meio da qual ainda é possível se pensar com autonomia, questionando
o mundo e a linguagem, opondo-se à massificação. Por isso, é
fundamental continuar a enfatizar que o discurso poético é espaço livre
da reflexão de tudo que importa ao homem, com a afirmação de sua
condição humana, sua dignidade existencial, ainda mais num tempo
marcado pela descrença, distopia, destruição e banalização da vida (Cf.
BLANCHOT, 1984, p. 205-234).

No entanto, a poesia, na paisagem contemporânea de supremacia


do tecnológico e do materialismo, é um discurso desvalorizado
socialmente. Alguém poderá retrucar que sempre o foi. Porém, até
meados do século XX, o poeta gozava de um certo reconhecimento
“burocrático” em alguns meios sociais, com presença pública mais visível
e, por vezes, razoavelmente respeitada. Nas últimas décadas do século

7. A esse respeito, ver o site da LyraCompoetics, rede de investigação internacional sobre poesia,
com sede na Universidade do Porto, que mantém uma série de depoimentos de poetas sobre
“poesia e resistência”. https://ilcml.com/lyracompoetics/.
14
XX, sob o ponto de vista de “consumo”, a poesia foi sendo relegada a uma
posição menor – e isso se pode comprovar, sem pretensões estatísticas,
com a simples verificação do espaço que a mídia lhe tem dado, ou a
quantidade de leitores que a ela se dedicam com fidelidade, não por
modismos de leitura. Mesmo nos círculos acadêmicos, considerando
congressos, seminários públicos, cursos universitários, livros
acadêmicos, projetos, programas, dissertações, teses etc,. constata-se a
predominância de estudos e pesquisas dedicados à narrativa8.

Essa perspectiva pessimista em relação ao lugar da poesia no


período em análise provocou a fixação deste estudo no intervalo
temporal que se considera, em geral, como o momento da crise da
modernidade: as décadas de 1960 a 1990 do século passado. É comum
dizer-se que há risco em se estudar uma época ainda muito próxima do
ato crítico, pois se considera que o afastamento temporal permite uma
avaliação mais segura do objeto de análise, pela estabilidade dos fatos,
pelo acúmulo de dados e pela visão mais ampla de valores e critérios.
Embora ciente disso, opto pelo estudo da poesia portuguesa produzida
nos últimos 40 anos do século XX, fazendo um determinado recorte que
define algumas questões fundamentais nas obras poéticas de Carlos de
Oliveira e Nuno Júdice – autores que, cada um a seu modo, representam
esse tempo de crise e de transformação da escrita.

Sem dúvida, a literatura portuguesa do século XX tem uma


plêiade de nomes que atingiram uma realização poética igualmente
notável, sob vários aspectos. Entretanto, como um estudo desta natureza
impõe limitações, para que não perca seus objetivos ou extrapole suas
possibilidades, foi necessário fazer certas escolhas, e é preciso explicá-
las ao leitor.

8. No horizonte atual, vemos que o domínio das redes eletrônicas abriu um espaço de divulgação
e circulação apreciável para os poetas e para seus leitores. Há um lado positivo nisso, sem dúvida,
mas também há o desaparecimento das livrarias físicas, a mercantilização do literário, com suas
feiras e ações de marketing, criando outros interesses, muito diferentes da relação de leitura de
poesia em situação de reflexão e de diálogo crítico.
15
Não temos a pretensão de realizar um levantamento
quantitativamente representativo daqueles que seriam os principais
poetas portugueses do século XX, cujas primeiras obras, publicadas
a partir dos anos 60, teriam contribuído para o estabelecimento de
uma outra fase da modernidade literária em Portugal. Isso, aliás, já
foi feito, por exemplo, com outra perspectiva e diferente recorte, por
Fernando Pinto do Amaral em sua dissertação de mestrado, em 1990,
publicada no ano seguinte sob o título O mosaico fluido – modernidade
e pós-modernidade na poesia portuguesa mais recente. O que buscamos
é evidenciar que essa poesia empreendeu mais assumidamente um
trabalho de releitura da tradição poética, considerando sob o rótulo de
tradição a própria modernidade. Esse trabalho de releitura, mais atuante
a partir dos anos 70, viria em continuação a um trabalho de escrita e sua
reflexão teórica que a poesia dos anos 60, em Portugal, exemplarmente
viu configurados nas obras de poetas como Jorge de Sena, Carlos de
Oliveira, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Ruy Belo e os jovens
de Poesia 6l, ainda que as propostas fossem diferentes e as suas “artes
poéticas” demarcassem, naturalmente, trajetórias independentes. Pois
bem: a escolha dos nomes de Carlos de Oliveira (1921-1981) e Nuno
Júdice (1949 - ) decorreu não só do direito de gosto de leitor de poesia
portuguesa, mas também, e principalmente, por eles terem construído
obras assumidamente preocupadas com a reflexão sobre a linguagem
literária, o poético e seus dilemas frente à realidade do mundo. De fato,
os dois escritores, de forma sistemática, problematizam a escrita da
poesia, constituindo o que se poderia defender como uma teorização
da escrita e da leitura poética que foi sendo elaborada ao longo de seus

16
percursos, tanto na atividade literária, propriamente considerada, como
na produção reflexiva (ensaio, artigos, comentários, entrevistas etc.)9.

Carlos de Oliveira, na década de 1940, publicou seu primeiro livro


de poesia, Turismo, sob a égide do Novo Cancioneiro, coleção editorial
coimbrã considerada um marco na estética neorrealista portuguesa,
o que confirmou sua integração às propostas defendidas pelo grupo
neorrealista português. Produziu alguns dos melhores romances
contemporâneos, como Casa na duna (1943), Uma abelha na chuva
(1953) e Finisterra (1978), mantendo também uma constante produção
de poesia até seu falecimento, em 1981. Na obra poética, destacam-
se Cantata (1960), livro que a crítica definiu como representativo da
transformação de sua trajetória, por nele ocorrer de forma mais visível
a mudança10 do interesse ideológico para o estético, e Micropaisagem
(1968), que é considerado o resultado concreto da predominância
da atenção estética, exemplo de uma teorização da escrita que irá
declaradamente dialogar com a produção de poetas mais jovens,
como Gastão Cruz e Fiama Hasse Pais Brandão11, e ecoar na prática
poética mais recente, como observou o poeta e crítico Joaquim Manuel
Magalhães (1981, p. 67 e 74):

9. Em 2012, um fato veio abrir novos caminhos para o estudo da poética de Carlos de Oliveira:
a existência e doação de um espólio literário até então inesperado. Cerca de 8 mil documentos e
biblioteca do autor encontram-se agora catalogados no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca
de Xira, com consulta liberada para estudo. No caso de Nuno Júdice, ainda em plena produção,
as obras publicadas nas duas décadas do século XXI persistem em algumas linhas importantes de
sua escrita, explorando, porém, com outra ênfase o jogo entre razão e emoção que a caracteriza.
Destacam-se a seu respeito estudos sobre poesia e outras artes, poesia e intertextualidade, a relação
com o clássico.

10. Essa mudança caracterizaria a definição de duas fases poéticas na obra do escritor. A primeira,
compreendendo a produção poética produzida nas décadas de 1940 e 1950; a segunda, nas décadas
de 1960 a 1980. Leia-se GUSMÃO, 1981.

11. Em julho de 198l, no Jornal de Letras, Artes e Ideias de Lisboa, em despedida de Carlos de
Oliveira, Gastão Cruz publicou o texto intitulado “Que lhe diremos, mestre?”. Depois, em
homenagem aos 10 anos de falecimento do autor, no mesmo jornal esse poeta e Fiama Hasse Pais
Brandão lembravam o rigor e a atenção à escrita que caracterizavam o seu trabalho estético.
17
“O que resta e o que pesa de Carlos de Oliveira, e é imenso, culmina
e parte de Cantata. Por isso, parece ser do mais central valor, para
qualquer perspectiva sobre a sua poesia, parar neste conjunto de
poemas, que foi livro e é agora a última parte do primeiro volume de
Trabalho poético. O que de mais moderno nos propõe reúne-se, sem
dúvida, no segundo volume dessa obra. Mas Cantata é o arco da seta
com que atravessa a nossa mais recente poesia. Dedicar-lhe mais estas
palavras, e ainda as seguintes, está ainda muito aquém do que seria
necessário”. E, mais adiante: “[...] Há uma alta tarefa educativa em
poetas assim”.
Além de poesia e romance, Carlos de Oliveira publicou em 1971
O aprendiz de feiticeiro, que reúne textos diversos redigidos entre 1947
e 1970. Em 1992, a Editora Caminho, de Lisboa, publicou em um só
volume toda a obra do autor, com exceção de Alcateia,, arrolando toda a
bibliografia ativa do escritor e também a passiva até aquele momento. No
Brasil, houve edições de alguns de seus romances mas não da poesia12.

O outro poeta, Nuno Júdice, nascido em 1949 em Mexilhoeira


Grande (Algarve), era um jovem nos anos 70 e rapidamente construiu
vasta obra literária, com predomínio da poesia sobre a prosa, também
algum teatro, e significativas incursões pela crítica literária, representativa
de seu magistério universitário, além de ser presença assídua como
cronista ou crítico em diversos jornais e revistas portugueses. Sua obra
nos possibilita discutir de forma imediata uma teorização da escrita e da
leitura na poesia portuguesa mais recente, uma vez que, à semelhança de
Carlos de Oliveira, a poesia de Nuno Júdice, desde o seu primeiro livro,
A noção de poema (1972), preocupou-se sobremaneira com a realização
do poema e a compreensão do “ato poético”, questionando o sujeito lírico
e sua existência no texto e no mundo. Em 1991, lançou Obra poética,
reunindo nove livros de poesia publicados de 1972 a 1985, com mais
o inédito Rimbaud inverso. Com regularidade, vem publicando outros
livros de poesia, intercalando-os com obras narrativas e ensaísticas, a
destacar O processo poético (1992) e As máscaras do poema (1998), obras

12. Em agosto de 2021, será publicada a primeira antologia brasileira da poesia de Oliveira, sob o
título Trabalho poético, sob nossa organização, editora Oficina Raquel, Rio de Janeiro.
18
significativas para a reflexão sobre o poético e sua linguagem. Desde
então, novos títulos foram publicados. Na poesia, Poesia reunida –
1967-2000 (2001), Pedro lembrando Inês (2002), Cartografia de emoções
(2002), O estado dos campos (2003), Geometria variável (2005), As coisas
mais simples (2006), A matéria do poema (2008), O breve sentimento do
eterno (2008), Guia de conceitos básicos (2010), Fórmulas de uma luz
inexplicável (2012), Navegação de acaso (2013), O fruto da gramática
(2014), A convergência dos ventos (2015), O mito da Europa (2017), A
pura inscrição do amor (2017) e Regresso a um cenário campestre (2020).
Também continuou a publicar ficção, teatro e ensaio13.

Em suas obras produzidas no século XX, alguns caminhos são


claramente assinalados: o debruçar-se sobre a escrita, a reflexão sobre
a produção de paisagens nos poemas, o ato de leitura sobre escritas
alheias e sobre sua própria, num cruzamento provocativo de tempos
poéticos diversos como o romantismo alemão (na figura emblemática
de Hölderlin), o simbolismo português (Pessanha), a modernidade
finissecular francesa (Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Verlaine), a
própria constituição da modernidade em Portugal (Fernando Pessoa) e
a vivência finissecular.

Os dois poetas encontram-se aqui num recorte definido da


poesia portuguesa contemporânea, por ser possível demonstrar, apesar
da diferença geracional e dos projetos estéticos diversos, a interlocução
existente entre suas vozes poéticas, personagens na e da linguagem.
Ambos os autores desenvolvem no âmbito de suas obras, de forma
contínua, reflexões importantes sobre a literatura, compartilhando a
angustiada vivência de um tempo individual e coletivo marcado pela
disforia, melancolia e descrença, a exigir a ação da memória pessoal e
cultural para enfrentar a finitude da existência humana e transformar
a precariedade em permanência. Ambos demonstram ser a poesia um
lugar crítico cada vez mais necessário num “tempo de indigência”, para
recuperar expressão de Hölderlin. São realmente poetas-personagens que

13. Ao final, incluímos uma relação atualizada da produção desse escritor.


19
encontram sentido na linguagem e por causa dela. Para isso, neutralizam
a biografia real, acentuando subjetividades construídas textualmente
que transitam por espaços interiores (como a casa ou o pensamento),
exteriores (o espaço agrário, a natureza e a cidade) e estéticos (o texto,
fundamentalmente, mas também a pintura ou o cinema). Suas escritas
expressam a angústia frente à morte e às aporias da experiência do
tempo, além de indagarem sobre os sentidos do sujeito poético, sobre
a ficção que a poesia é, sobre suas perspectivas de olhar e o dialogismo
entre obras e autores.

Acreditamos que a escolha desses dois poetas, talvez inusitada


para quem se limitar a questões geracionais, é importante e consequente
para demonstrar certas linhas de força da modernidade literária
portuguesa pós-60, que recebeu o epíteto de pós-modernidade – “o
unicórnio do século”, em citação irônica de João Barrento (1996, p.
53), ou o “conceito-esponja”, de Fernando Pinto do Amaral (1991, p.
21). Esse debate já caducou e não nos interessa nada classificar como
pós-modernistas as obras de Carlos de Oliveira e Nuno Júdice. O que
importa é discutir, nas obras poéticas desses dois autores, determinados
traços que, sem dúvida, marcaram incisivamente a produção estética da
segunda metade do século XX: os impasses da representação (mimese),
o questionamento da construção do sujeito na obra de arte e a vivência
diferenciada da temporalidade e da espacialidade na sociedade
contemporânea.

Além disso, há outra questão que não pode ser relegada: trata-se
de examinar o espaço ocupado por Portugal nas poéticas desses dois
escritores. Nas obras de outros importantes poetas portugueses do
século XX – e citamos apenas alguns, como Sophia de Mello Breyner
Andresen, Jorge de Sena e Ruy Belo –, Portugal é nomeado ou evocado
com certa constância crítica. Já a segunda fase da obra poética de Carlos
de Oliveira e toda a obra de Nuno Júdice realizam um apagamento (que
sabemos aparente) da imagem de Portugal, ou seja, parecem buscar
uma escrita poética isenta ou bastante transformadora das vivências
portuguesas particulares para a elaboração de um discurso mais
20
universalista, abdicando do território nacional em prol da universalidade
do território poético. Nesse sentido, seria possível a aproximação
com a escrita de Herberto Helder, voz quase paradigmática para os
poetas que começaram a publicar na década de 1970 e interlocutor
também de Carlos de Oliveira, responsável por uma obra de grande
liberdade e insubmissão a quaisquer fronteiras impostas ao exercício
da poesia. Mas, dissemos “aparente”, porque a esse movimento de
apagamento contrapõe-se uma atividade de afirmação da cultura em
língua portuguesa na sua pluralidade e capacidade de dialogar com
outras culturas, delineando-se melhor a própria identidade nacional
num mundo globalizado, de falsa homogeneidade. Assumir a língua
como elemento de diferença talvez seja a questão fundamental para os
poetas, por isso a pertinência de analisar o contraste entre apagamento
e presença de Portugal na escrita de seus autores.

Organização e abordagem teórico-crítica

Sobre a organização deste estudo, cabe explicar que há dois


momentos de desenvolvimento. No primeiro, procuramos examinar e
discutir relações teórico-críticas importantes que a poesia mantém com
outras áreas de conhecimento, como a linguagem, a história e a filosofia.
Acreditamos que a teorização sobre a escrita e a leitura, realizada pelos
poetas aqui estudados, impõe uma abordagem metodológica que repense
a relação entre poética e representação, entre textualidade e realidade do
mundo. Exige que se pense o escrever e o ler como atividades críticas a
dobrarem-se sobre seu próprio processo de elaboração, numa análise
rigorosa de sua validade ou de suas consequências na compreensão do
mundo e dos sujeitos (escritor / leitor). Assim, as áreas de conhecimento
aqui entrecruzadas são fundamentais, uma vez que nossa premissa é a

21
confiança de que o trabalho poético é uma ação cognitiva14 importante
para questionar o ser e o estar no mundo, o pertencer a uma história
comum. A ação artística, especialmente em tempo de crise – quando
se aceleram as transformações sociais, econômicas e tecnológicas, cada
vez mais responsáveis pela destruição de fundamentos e pela dissolução
de identidades –, mantém-se como princípio de resistência e garantia
da “condição humana”. Dessa forma, ao considerarmos o par “poesia e
linguagem”, procuraremos enfatizar as pesquisas em torno da metáfora
como processo cognitivo que permite, na linguagem poética, a inovação
na apreensão imagética do mundo e do sujeito. Para isso, recorremos ao
trabalho desenvolvido por Paul Ricoeur em A metáfora viva (a primeira
edição francesa é de 1975), estudo básico ao qual se aliam outras
pesquisas posteriores sobre metáfora e conhecimento.

Em relação a um segundo par, “poesia e história”, destacamos


o tempo como categoria-chave, não só porque a temporalidade se
manifesta imediatamente na existência individual (biografismo e
memória), mas também por ser o tempo o eixo à volta do qual se move a
percepção sócio-histórica humana (histórias nacionais, trajetos culturais
e memória coletiva). A temporalidade ecoa na análise de uma teorização
da escrita e da leitura, já que a literatura é uma atividade inserida no
tempo e criadora de perspectivas temporais a envolver o escritor e o
leitor, a tradição e a ruptura, e todo movimento dialógico; além disso,
a narratividade do tempo está claramente presente nas obras poéticas
que iremos examinar, constituindo um núcleo temático incontornável.
Sabemos, ainda, que o debate entre modernidade e pós-modernidade
expôs muito fortemente que as transformações na percepção da

14. Fernando Guimarães (1992, p. 36) escreve: “Há muito que começaram os filósofos a fazer um
apelo aos poetas e a ver nas vozes fugitivas um possível acesso às questões que os preocupam. Essas
vozes poderiam ser as de um Hölderlin, as de um Rilke – ambos, como se sabe, exemplarmente
interpretados por Heidegger – ou as daqueles que, para nos servirmos das próprias palavras de
Schelling numa carta enviada a Hegel, pressentiram que a poesia era um verdadeiro ‘pedagogo da
humanidade’, uma espécie de guia capaz de nos conduzir ao próprio centro da realidade, ao lugar
onde o ser fala através das palavras e, ao mesmo tempo, do silêncio cheio de significações que cada
poema vem revelar.”
22
temporalidade delinearam uma outra história cultural nos séculos XIX
e XX, com reflexo imediato nos caminhos da poesia ocidental. Para
a abordagem do tempo na literatura, utilizamos a própria lógica das
reflexões de Paul Ricoeur, que dá continuidade ao estudo da metáfora
com a publicação de Tempo e narrativa (a primeira edição francesa, em
3 volumes, é de 1983-1985), no âmbito de uma teoria da interpretação
(hermenêutica) com base fenomenológica.

Em terceiro lugar tentaremos discutir, com inevitáveis limitações,


a relação entre “poesia e filosofia”. Apesar da dificuldade, já que esse
não é nosso domínio, não desistimos de tecer algumas considerações,
na medida em que as obras dos dois poetas escolhidos revelam uma
fundamentação filosófica inegável. Não só tentaremos mostrar a
ocorrência do diálogo entre poesia e filosofia, como discutiremos a
questão de conhecimento do sujeito e do mundo que o discurso poético
pode possibilitar como linguagem crítica que é, indo ao encontro de
determinados questionamentos filosóficos.

O segundo momento do trabalho, subdividido em três segmentos,


é dedicado à poesia portuguesa contemporânea nos limites das quatro
últimas décadas do século XX. No primeiro segmento, buscamos delinear
um panorama, que não se pretendeu exaustivo, dos principais trajetos
que a crítica aponta para essa poesia, destacando questões nucleares na
produção do período. Em seguida, analisamos a obra poética de Carlos
de Oliveira publicada a partir de 1960, o que não significa ignorar a
produção precedente nem a prática de reescrita a que o autor submeteu
seus textos anteriores, transformados assim pela intervenção do tempo

23
presente no texto do passado15. Essa revisitação a sua obra poética tem
em mira uma escrita preocupada com a aferição do processo metafórico
(a relação tensionada entre a imagem literária e a representação), com
o exercício de depuração e memória em torno de um sujeito poético
marcado pela passagem do tempo e com a problematização do espaço
da literatura na relação entre o sujeito produtor e o sujeito receptor.
Acompanhando os percursos do sujeito lírico no tempo e no espaço,
buscamos compreender como esse trabalho poético configura a situação
de precariedade da vida humana num mundo contemporâneo cada vez
mais artificial e desesperançado.

No terceiro segmento, analisamos a obra poética de Nuno Júdice,


que começou a ser publicada na década de 1970 e está em contínua
produção. Destacamos um projeto de escrita e leitura a exercitar-
se sobre a tradição clássica e moderna, ou seja, a indagar os lugares
perdidos da poesia e os ocupados na contemporaneidade, insistindo na
permanência de sua voz. Sua escrita revolve a emotividade romântica,
discute a essencialidade da poesia, a divisão do sujeito poético e o próprio
discurso da modernidade – transformado, já agora, em tradição, mito
cultural16. É uma poética de “partilha de mitos”, considerando que, no
ato de partilhar, se há o desejo de encontro, há também a consciência
da fragmentação. Essa interlocução contínua e insistente é o exercício
crítico de um leitor especializado de poesia, nada ingênuo, sobre os
próprios limites da palavra poética e a significação de sua existência em

15. Rosa Maria Martelo apresentou, na Universidade do Porto, em 1996, tese de doutoramento
intitulada A construção do mundo na poesia de Carlos de Oliveira, já publicada em 1998 com o
título Carlos de Oliveira e a referência em poesia (Porto: Campo das Letras). Em estudo minucioso,
demonstrou o processo constante de reescrita exercitado pelo autor a ponto de transformar
quase totalmente uma obra pretérita a partir das preocupações estéticas do presente. Assim foi
com Turismo, cuja versão considerada pelo poeta como definitiva está muito afastada da primeira
publicação em 1942, no Novo Cancioneiro. Da tese fotocopiada, retiramos, quando necessário, as
primeiras versões de poemas de Carlos de Oliveira.

16. A respeito, é interessante transcrever o que diz Eduardo Lourenço (1993, p. 84) sobre Fernando
Pessoa: “O inextricável da textualidade pessoana de si mesmo produzia o paradigma destinado,
não só, como Pessoa o sonhara, a mitificar a sua aventura, mas a convertê-la, como aconteceu, num
dos mitos culturais mais prodigiosos do nosso século.”
24
um tempo limite.Como Carlos de Oliveira, Nuno Júdice é um poeta do
trabalho da memória e da poesia como narratividade do tempo.

Se a produção literária desses dois autores portugueses pode


configurar, portanto, alguns problemas da poética dos anos 60 a 90 do
século passado, principalmente pela elaboração, reflexão e prática de
uma escrita que submete ao juízo crítico as noções de trabalho poético,
subjetividade, ficcionalidade, narratividade poética e funcionalidade da
poesia, dedicamos ainda um capítulo final para demonstrar que ambos
os poetas, vozes diferentes e por vezes distantes pelas experiências
vivenciais e estéticas, são personagens de uma mesma história cultural
e nacional que podemos acompanhar e compreender. Deslocadas
as diferenças, há neles não só perspectivas semelhantes em relação à
significação da poesia e à configuração do tempo em busca de uma
identidade textual, como também um movimento crucial: nega-se
a obsessão de uma pátria como identidade única do sujeito para se
assumir uma identidade linguística, a partir do conhecimento de uma
cultura agente ou cultura ativa, capaz de realizar sua própria crítica e de
contar sua própria história. Não será esse movimento a lição essencial a
se tirar da produção literária portuguesa contemporânea, indicando que
finalmente está na modernidade (e não apenas perseguindo “ismos”),
como refletia Fernando Pessoa17?

É necessário continuar discutindo as diferentes percepções das


categorias tempo e espaço na realidade pós-60, para entender como
os princípios de universalismo e cosmopolitismo são perspectivados
pela arte contemporânea, avaliando-se o alcance ou a pertinência de

17. PESSOA, 1981, p. 406: “O que quer Orpheu? Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço.
A nossa época é aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela primeira
vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a
Oceania são a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu – mesmo aquele
cais de Alcântara – para ter ali toda a terra em comprimido. E se chamo a isto europeu, e não
americano, por exemplo, é que é a Europa, e não a América, a fons et origo deste tipo civilizacional,
a região civilizada que dá o tipo e a direção a todo o mundo. Por isso a verdadeira arte moderna
tem de ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só
assim será tipicamente moderna [...]”.
25
uma crítica da modernidade e, no âmbito da cultura portuguesa,
a constituição de um discurso crítico autônomo capaz de pensar
Portugal, não orgulhosamente só (mote salazarista de triste memória),
mas necessariamente inserido dialogicamente no mundo político,
econômico, social e cultural do século XXI.

Nota de leituras

Um trabalho como este se faz necessariamente de muitas leituras:


algumas ressoam mais fortemente, outras contribuem de maneira
menos decisiva.

A obra-guia é de Paul Ricoeur, com sua perspectiva interdisciplinar.


Para o desenvolvimento de suas próprias reflexões no âmbito de uma
teoria hermenêutica da interpretação, não se exime o filósofo de
buscar em áreas diferentes elementos que possam ser articulados. Isso
nos permite certa liberdade de ação para o desenvolvimento de nosso
próprio estudo, convocando outras leituras igualmente importantes para
a compreensão das obras poéticas estudadas. Por isso neste trabalho
ecoam vozes como as de Walter Benjamin, Maurice Blanchot, Roland
Barthes e Octavio Paz, o qual, principalmente em Os filhos do barro,
pensa a modernidade como um conceito decorrente da apreensão da
temporalidade.

Sobre a especificidade do discurso poético, arrolamos nomes


consagrados, como M. Dufrenne, J. Cohen, H. Friedrich, M. J.
Lefebvre, Y. Lotman e H. Meschonnic, cujas reflexões, por diferentes
caminhos, são referências importantes. Na abordagem filosófica do
poético, destacamos a leitura de algumas obras de Martin Heidegger,
nas quais a arte (especialmente a poesia) e a temporalidade são temas
fundamentais, e de Hannah Arendt, em especial A condição humana18.

18.Em relação aos estudos teórico-críticos em língua estrangeira, havendo


boa tradução em língua portuguesa, optamos por sua utilização, consultando,
quando possível ou necessário, as edições originais.
26
No entanto, para analisar determinadas questões que as obras de Carlos
de Oliveira e Nuno Júdice suscitam, privilegiamos alguns outros estudos
que discutem a questão de gênero narrativo e a noção de horizonte como
fundamento de uma estrutura da experiência poética, relacionando
sujeito e mundo, escrita e leitura. Por isso, a utilização de obras como
La poésie moderne et la structure d’horizon (1989), de Michel Collot, e
Poésie et récit: une rhétorique des genres (1989), de Dominique Combe.
É necessário também enfatizar a contribuição importante de estudos de
teóricos, críticos e poetas brasileiros e portugueses, como Luiz Costa
Lima, Leyla Perrone-Moisés, Alfredo Bosi, Manuel Gusmão, Eduardo
Prado Coelho, Eduardo Lourenço, Fernando Guimarães, Gastão Cruz,
João Barrento, Jorge de Sena e Ruy Belo. Com a determinação de que
este trabalho não se reduza à aplicação de um modelo teórico ao texto
literário, o que muitas vezes acaba privilegiando a teoria e silenciando
o texto, invocamos a necessidade de pensar, analisar e compreender as
obras poéticas de Carlos de Oliveira e Nuno Júdice a partir do próprio
horizonte teórico expresso nelas e em outros livros dos autores, como O
aprendiz de feiticeiro e As máscaras do poema.

No que diz respeito a Carlos de Oliveira, utilizamos a edição de


Obras de Carlos de Oliveira publicada pela Editorial Caminho (1992)19.
Para Nuno Júdice, em relação à produção de 1972 a 1985, utilizamos
sua Obra poética (Quetzal, 1991); em relação à produção posterior,

19. Nas referências bibliográficas, indicaremos os livros de Carlos de Oliveira pelas seguintes siglas:
Turismo (T), Mãe pobre (MP), Colheita perdida (CP), Terra de harmonia (TH), Cantata (C), Sobre o
lado esquerdo (SLE), Micropaisagem (M), Entre duas memórias (EDM), Pastoral (P), Finisterra (F),
O aprendiz de feiticeiro (AF) e Obras de Carlos de Oliveira (O).
27
quando possível, as primeiras edições20. A bibliografia ativa e passiva
dos dois poetas arrolada ao final não é exaustiva, reportando-se apenas
aos textos aqui analisados ou diretamente pesquisados. Mas incluímos,
em separado, uma relação mais atualizada das obras de Nuno Júdice,
escritor ainda muito ativo.

De resto, este estudo não tem outra pretensão imediata senão


contribuir para o desenvolvimento entre nós de mais estudos sobre a
poesia portuguesa contemporânea.

20.Em relação aos livros de Nuno Júdice observados, usaremos as seguintes


siglas: Obra poética (OP), A noção de poema (NP), O pavão sonoro (PS), Crítica
doméstica dos paralelepípedos (CDP), As inumeráveis águas (IA), O mecanismo
romântico da fragmentação (MRF), Nos braços da exígua luz (NBEL), O corte
na ênfase (CE), O voo de Igitur num copo de dados (VICD), A partilha dos
mitos (PM), Lira de líquen (LL), A condescendência do ser (CS), Enumeração de
sombras (ES), As regras da perspectiva (RP), Uma sequência de outubro (SO),
Um canto na espessura do tempo (CET), Meditação sobre ruínas (MSR), O
movimento do mundo (MM), A fonte da vida (FV), Raptos (R), Teoria geral do
sentimento (TGS), O processo poético (PP) e As máscaras do poema (MP).
28
EXERCÍCIO DO POÉTICO:
RELAÇÕES NECESSÁRIAS

“O imperador An Lushan: ‘Um poeta? Que animal é esse?


para que serve?’. O poeta, polindo com a palma da mão um
calhau das praias: ‘Para transformar as palavras em cigarras de
granito’.” Casimiro de Brito (l998, p.27)
Diante das inúmeras dificuldades sociais, econômicas e políticas
que vão inevitavelmente surgindo na vida, por vezes com tal frequência
e intensidade que acabam por tornar a existência uma forma de
aprisionamento que isola o homem de si e dos outros, a arte, como
capacidade de imaginação, de criação de mundos ficcionais nos quais
experiências humanas diversas se dão a ver, garante-nos um meio de
enfrentar ou buscar compreender o mundo em si e a sua volta. A arte
é, por isso, uma necessidade (Cf. FISCHER, s.d.) para todos, e não
direito de uma elite, atividade alienada, supérflua ou irrelevante. Com
o imaginário e sua liberdade criativa em diversos níveis (consideremos
como exemplo, no âmbito cotidiano, os sonhos, os jogos infantis, as
formulações narrativas mais simples, como a mentira e as anedotas;
no campo mais elaborado, as abstrações filosóficas, matemáticas e
estéticas), o homem consegue trazer à tona seus temores e sua luta
contra diversos cerceamentos, partilhando o desejo de transformação
daquilo que impede seu bem-estar. Ora, se essa capacidade imaginativa
é uma potencialidade humana, para alguns, especialmente, ela torna-se
um compromisso radical do sujeito frente ao mundo, constituindo uma
experiência ímpar a dar sentido a sua presença na vida real.

Nesse espaço amplo e diversificado da criatividade humana,


interessa-nos o que se pode fazer com a linguagem verbal para a elaboração
do ficcional e a reflexão estética. Pensamos, é claro, na literatura e na
possibilidade de, por meio das palavras, criar outros mundos, ou seja,
dar existência, visibilidade a seres, coisas e acontecimentos os quais, de
outra forma, não se constituiriam. O uso da linguagem verbal com essa

29
orientação criadora é “o exercício da sabedoria da linguagem”21, como
explicava o poeta português Ruy Belo, ou a prova de fogo do narrador,
segundo reflete Walter Benjamin:
A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo.
Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser
familiar. [...]
Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus
gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem
maneiras o fluxo do que é dito. [...] Podemos ir mais longe e perguntar
se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não
seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a
matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a
num produto sólido, útil e único? [...] Assim definido, o narrador
figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para
alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio.
Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não
inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que
sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade
é contá-la inteira (BENJAMIN, 1994, p. 220-221).
Com essa perspectiva mais ampla, a narratividade não é um
gênero, o rótulo de uma forma literária, mas um processo por meio do
qual usamos a linguagem verbal para dar conta da experiência de mundo
dos sujeitos que nele existem. Por isso, a poesia torna-se também uma
prática narrativa, já que os poetas, por meio de seus poemas, contam
versões provisórias da experiência de viver, narrando histórias do
sujeito, do mundo e da própria linguagem, constituindo uma memória
do humano.

Efetivamente, o fazer poético nunca foi uma ação isolada, pois,


desde a origem, esteve compromissado com a comunidade, a audição e
o diálogo. Todos sabemos que houve um tempo em que a poesia exerceu
uma função explícita na comunidade: a de manter a memória coletiva,
constituindo-se como ferramenta social, sem finalidade estética,

21. Cf. nosso artigo “O exercício da sabedoria da linguagem”, em ALVES, 1998.


30
responsável pela guarda de fatos e histórias comuns, assegurando a
identidade mítica, a relação entre gerações e as leis do grupo, como nos
explica Georges Jean em seu livro La poésie:
A primeira característica comum desses tipos mais arcaicos de
“poesia” é ter uma finalidade claramente definida, não estética: mágica,
histórica, jurídica, didática. E a segunda característica comum desses
mesmos tipos arcaicos é atingir essa finalidade (conservação dos
ritos, genealogias, conhecimentos agrícolas, náuticos, jurídicos etc.)
por meio de técnicas bem aparentes, técnicas da memória oral: isto
é, mnemotécnicas. O que chamamos poesia não nasceu como prazer,
mas como ferramenta. Toda a história posterior da poesia será a
história das mudanças de uso e de destinação dessa ferramenta (JEAN,
1966, p. 29. Tradução nossa)22.
No correr dos séculos, o conceito de poesia sofreu transformações
apreciáveis, ganhando cada vez maior complexidade, em consequência
das muitas mudanças realizadas nas relações comunitárias. Certas
manifestações expressivas, como a pintura, a dança coletiva, a
música, a poesia etc., que hoje estão dominantemente circunscritas
ao meio artístico, outrora exerciam funções predeterminadas na
realidade do grupo social. Porém, assim como as comunidades se
modificaram, também esses sistemas simbólicos se desenvolveram em
graus diferentes de especialização e se afastaram do espaço cotidiano
original. A linguagem poética, por exemplo, perdendo aquela utilidade
“mnemotécnica” imediata, passou a ocupar um espaço à margem em
relação à comunidade e ao uso pragmático da linguagem verbal. A
história da poesia, mais do que buscar explicação para as mudanças no
próprio processo poético, deve investigar as transformações ocorridas

22. No original: “Le premier caractère commun de ces types les plus archaïques de “poésie” c’est
d’avoir une finalité nettement définie, non esthétique: magique, historique, juridique, didactique.
Et le second caractère commun de ces mêmes types archaïques c’est d’atteindre cette finalité
(conservation des rites, des généalogies, des connaissances agricoles, nautiques, juridiques, etc.)
par le moyen de techniques très apparentes, techniques de la mémoire orale; c’est-à-dire des
mnémotechniques. Ce que nous appelons poésie n’est pas né comme plaisir, mais comme outil.
Toute l’histoire ultérieure de la poésie sera l’histoire des changements d’usage et de destination de
cet outil”.
31
no relacionamento entre poesia e público (Cf. MOUNIN, 1968). O
poeta acabou expulso da cidade, ou, permanecendo nela, teve sua
palavra desautorizada, justamente porque os ouvintes mudaram e
não reconheciam mais a poesia como uma prática útil ou um meio de
conhecimento necessário à compreensão da realidade experimentada.

Quando essa poesia “original” passou a ser “discurso” e objeto


de crítica, já era uma linguagem específica, especializada23. A poesia
tornou-se palavra de poucos para poucos.
A transformação da poesia, que de fala tornou-se, como veremos,
escrita, teve por consequência fazê-la passar do estado de arte popular
para o estado de arte aristocrática. Desse modo, um bem vasto público
não teve mais acesso à poesia. Ao mesmo tempo, manteve-se na
canção uma tradição poética popular extremamente rica, que alemães
como Herder contribuíram para redescobrir na época romântica. Um
divórcio se estabeleceu assim entre o folclore, a poesia popular e o
poema impresso (JEAN, 1966, p. 19. Tradução nossa)24.

23. Pensamos, por exemplo, na produção lírica medieval.

24. No original: “La transformation de la poésie, qui de parole est devenue comme nous le verrons
écrit, a eu pour conséquence de la faire passer de l’état d’art populaire à l’état d’art aristocratique. De
ce fait, un très vaste public n’a plus eu accès à la poésie. Dans le même temps se maintenait dans la
chanson une tradition poétique populaire extrêmement riche que des Allemands comme Herder
ont contribué à faire redécouvrir à l’époque romantique. Un divorce s’établit donc entre le folklore,
la poésie populaire et le poème imprimé”.
32
Na segunda metade do século XVIII, define-se uma outra época
cultural: a modernidade25. Entra em crise a unidade ética, científica
e estética anterior à Ilustração, à Revolução Francesa e à Revolução
Industrial, fortalecendo-se a ação contestadora de valores estabilizados
no terreno da arte. Contudo, é no século XIX, “esse século que nunca
mais acaba de passar”, na expressão de Ana Hatherly (1979, p. 21), que se
fazem interrogações estéticas fundamentais e que ainda hoje merecem
discussão: qual é a função da arte? Qual é o poder da literatura? Qual é o
grau de intervenção e transformação que o texto literário pode exercer?
O que é a poesia e o que faz o poeta?

Assim, da crise iluminista estabelece-se um discurso crítico


como o Romantismo26, que, se vai valorizar o poético como linguagem
transcendental, irmã da filosofia, vai também desenvolver a observação
crítica, em busca da essência do poético e da natureza do poeta.
Escreve Novalis: “A poesia transcendental é um misto de filosofia e de
poesia. No fundo abarca todas as funções transcendentais e contém,

25. Sobre a diversidade temporal da modernidade, explica Sergio Paulo Rouanet (1994, p. 11):
“Estudando a concepção de Modernidade dos vários autores, constatamos que eles se referem
a momentos históricos muitos diferentes, entre os quais, inclusive, outras ‘rupturas’ foram
assinaladas. Alguns historiadores, como Voltaire, Guizot e Ranke, consideram que a História
Moderna se inicia com a queda de Roma, isto é, na alvorada do século VI d.C. Outros indicam o
século XV, com o advento do Renascimento, o momento primal da Modernidade, quando se dá
uma série de rupturas em relação ao medievo europeu. Há outros, como Troeltsch, que preferem
indicar o final do século XVII – o do Iluminismo, acionado com a obra de Locke, em 1688 – como
o iniciador da Modernidade, lutando contra a ignorância e o fanatismo dinástico e religioso das
décadas anteriores. Já grande número de autores consideram que a Modernidade contemporânea
– a que demonstrou ter vocação de ‘mundializar-se’ – começa realmente com as duplas revoluções,
a industrial inglesa e a política francesa, nos fins do século XVIII.”

26. Citamos Eduardo Prado Coelho (1982, p. 180): “Na leitura que nos sugerem Lacoue-Labarthe
e Nancy, há um jogo subtil entre o romantismo teórico e o romantismo romanesco. O romantismo
teórico assinala uma crise múltipla: crise da sociedade alemã, crise económica, social e cultural
da sociedade moderna. Mas não se trata apenas de assinalar. O romantismo teórico será assim
a formulação mais crítica dessa crise da história moderna. E, de certo modo, o romantismo
romanesco, também produto dessa mesma crise, é sobretudo o modo como a crise se deixa assinalar
pela própria forma como se tenta dissimular. O romantismo romanesco é mais ocultação do que
revelação da crise, embora através desta ocultação a crise se continue a dizer, mas de outro modo”.
33
na realidade, o transcendental em geral. O poeta transcendental é o
homem transcendental por excelência”27. E recordemos também que
Shelley responde à acusação de inutilidade da poesia, feita por Thomas
Love Peacock em The four ages of poetry, com A defense of poetry, ensaio
publicado em 1840, embora escrito em 182128. O intenso questionamento
sobre a arte que se estabeleceu na virada do século XIX para o XX,
em consequência das mudanças impostas pela estética romântica
na primeira metade do século XIX, aponta uma outra modernidade,
consciente de sua ação de ruptura. Nunca se indagara tanto sobre a obra
de arte, sobre o artista, sobre sua linguagem. Não à toa, Hugo Friedrich
afirmou que a poesia moderna é o Romantismo desromantizado (1978,
p. 30), pois continuou no século XX esse exercício crítico, agora sem
transcendência nem divinização do poético.

Em nossa contemporaneidade, não se duvida da permanência da


poesia, embora ela seja produzida e consumida com parcimônia, mas
continuam ainda as interrogações: o que diz ou pode dizer o discurso
poético em meio ao turbilhão da vida moderna? Como, por que e por
quem continua a ser ouvida? Sem dúvida, os problemas de produção e
recepção estéticas, na atualidade, ganharam uma relevância que não se
pode ignorar29. Note-se, por exemplo, a grande pertinência da reflexão
de Carlos de Oliveira sobre o leitor, em O aprendiz de feiticeiro:

27. Para ler esse e outros textos fundamentais sobre o Romantismo crítico, ver: CHIAMPI, 1991.
Ver NOVALIS. Pólen. 2a. ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001.p. 124.

28. Escreve Maria Irene Ramalho de Sousa Santos (1993, p. 104): “Peacock, depois de traçar
as origens e evolução da poesia ao longo dos tempos, acaba por concluir que a poesia não tem
lugar na sociedade moderna. No seu entender, a poesia é a expressão própria da imaginação de
povos primitivos e incultos, mergulhados na irracionalidade, devendo os homens, à medida que a
civilização avança, ocupar-se de projectos mais ‘úteis’”. É contra essa “tese” de Peacock que se ergue
a defesa da poesia de Shelley.

29. Lembre-se a importância, a partir da década de 1960, da estética da recepção, com a publicação
das obras de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Hoje, a existência dominante do espaço virtual
estabelece novas indagações e outros problemas a serem discutidos sobre criação, circulação,
divulgação e recepção literárias.
34
O romancista, o poeta, etc., estão melhor ou pior nos seus livros, nos
seus textos teóricos, e até nas suas atitudes de cidadãos. O que falta é
conhecer o segundo termo da relação autor-leitor, sondar o destino
do romance ou do poema, auscultar a tarefa anónima que os modela
continuamente e lhes dá vida.
Numa palavra: de quem, de quê e como se alimenta (depois de ter
devorado o seu criador) esse animal faminto que é a obra literária? (O
[AF], p. 474-475)
A poesia acabou por definir-se como capacidade ou habilidade
especial de recriar o existente, de instaurar o inexistente, de registrar
ou assumir desejos e combates, com linguagem autorreferente,
considerando-se o imaginário espaço livre em que se formulam diferentes
visões de mundo. Curioso é que, apesar da autonomia conquistada, sua
posição na sociedade não tenha sido de fortalecimento. Parece, pelo
contrário, ter aumentado o descrédito ou desconsideração em relação a
sua significação e importância, como se não houvesse lugar útil para a
palavra poética numa sociedade tecnológica como a atual. No entanto,
a poesia insiste em todas as línguas e em todas as comunidades, talvez
porque continuemos a buscar respostas que a técnica e a ciência não
conseguem dar, e o poético continue a exercer, sem que se pense nisso,
sua função essencial: manter a memória humana, pondo em xeque a
cada texto a presença e a ação do homem no mundo que o rodeia.

Com a poesia, busca-se reaver a dignidade da condição humana,


encontrar na linguagem um lugar para ocupar, lutando contra inúmeras
perdas e estabelecendo metas necessárias à continuidade da vida. A
poesia, exercício do paradoxo, é destruição e construção, negação e
afirmação, som e silêncio, espaço de simultaneidades. Esse exercício de
linguagem é, assim, tão fundamental que, apesar de todas as tentativas
de deslocá-la para um nível de menor importância ou silenciamento
no dia a dia, ela perdura e resiste, constituindo o lugar de crítica a
todas as certezas racionalistas, que se mostram incapazes de “dizer” as
perplexidades da vida, decretando o fim de certos valores. Se afirmamos
anteriormente que, sob a figura do narrador, está também o poeta, é
porque acreditamos que ambos partilham um saber de experiências,
35
atraindo os seus ouvintes pelo oferecimento de um contato humano ciente
de seus limites. Essa certeza revela a luta constante contra a banalidade
e os fracassos cotidianos, acreditando ainda que é possível, por meio
da arte, viver um mundo transformado, com outras possibilidades de
vivência temporal e de enfrentamento dos conflitos reais.

Essas reflexões podem talvez soar como eco das afirmações


transcendentalistas dos poetas românticos; entretanto, a experiência
histórica já mostrou que, enquanto houver humanidade, haverá arte.
Talvez a dificuldade discursiva para explicar a poesia surja por esta
ser, como diz Eduardo Lourenço, “literalmente incriticável” (apud
COELHO, 1979, p. 65). A compreensão do trabalho poético requer a
discussão de relações abstratas complexas e interdisciplinares, além da
verificação de relações concretas especiais que se processam no nível
material da língua. Dosar esses níveis de análise é difícil, mas tarefa
necessária, já que a opção analítica que privilegie apenas a forma ou
apenas o enunciado não dá conta plenamente da complexidade do ato
poético.

Nossa ideia nuclear é a de que o discurso poético mantém-se


fiel a um ato específico de conhecimento: o de apreensão do mundo
(lembremos o famoso verso de Hölderlin (1991, p. 429): “Mas o que
fica, os poetas o fundam.”). E um dos nossos objetivos é discutir tal
elaboração discursiva como um exercício, um trabalho consciente a que
os poetas se dedicam com rigor, explorando processos de construção e
possibilidades de configuração e refiguração do mundo, seguindo Paul
Ricoeur. Dessa forma compreendemos o que escreve Manuel Gusmão
num texto intitulado “Da poesia como razão apaixonada”:
O que permite que a poesia possa ser esse trabalho de construção
antropológica aberta é, no fundo, radicalmente, do ponto de vista
de uma teoria da linguagem, é ela ser apropriação, re-aprendizagem,
exploração dos possíveis da linguagem como componente histórica
e trans-histórica da antropogénese. A poesia não é um sub-sistema
estruturalmente especificável da língua, ou um desvio, doença
ou margem, desprezível ou privilegiada, do que podemos fazer

36
com palavras. A poesia não é um outro separado do que chamam
linguagem comum e que imaginam pobre e utilitária, antes é a
linguagem, como diz Meschonnic, “mais carregada de comum”, ou
seja, factor tendencial de comunidade como determinação e horizonte
da individuação. Sem ter que pressupor qualquer transparência ou
homogeneidade. A poesia, a literatura, re-produz, refaz todos os actos
de linguagem que possamos enumerar. [...]
A poesia não faz mais que a faculdade da linguagem: jogar figuras,
indefinidamente diferentes, do loquens e do faber, do sapiens e do
ludens, etc. (GUSMÃO, 1994, p. 246)
Acreditamos ser a poesia um discurso útil. Assim, o que também
se intenta demonstrar aqui é como isso se apresenta na realidade
textual. Será a poesia a dar a palavra final, e é ouvindo o que os poetas
dizem em suas obras que definimos a seguir três relações necessárias à
compreensão do poético em nossa contemporaneidade.

Poesia e linguagem: o processo metafórico


“(Como, porém, levar água a um tigre
pousado numa nuvem?)”
Nuno Júdice, O mecanismo romântico da fragmentação
“Já no azul aéreo das florestas,
que a idade média do luar gelou,
desabrocham as rosas manifestas
que a tua lucidez corporizou.”
Carlos de Oliveira, Terra de harmonia
Muitas faces foram reconhecidas como da poesia: magia,
mito, sabedoria, revolução. Contudo, essa diversidade se unifica na
compreensão de que a poesia é uma atividade especial da linguagem
verbal30. A modernidade, ao questionar a produção da obra de arte e

30. MOUNIN, 1968, p. 46 (tradução nossa): “D’abord, il faut constater que l’histoire de la poésie
tout entiére est l’histoire d’une succession de langages – à des degrés divers – absolument neufs.”
[Primeiramente, é preciso constatar que toda a história da poesia é a história de uma sucessão de
linguagens – em graus diversos – absolutamente novas.]
37
a especificidade do sujeito estético, provocou, nas diversas áreas da
produção artística, movimentos de autorreferencialidade, iniciando-se
no Romantismo, como já apontamos, um viés crítico que não mais seria
deixado de lado. No âmbito literário não foi diferente, e viu-se o interesse
crescente de avaliar a obra na sua produção e, mais recentemente, na sua
recepção. Em relação à poesia, acentuou-se a preocupação de explicar os
processos de linguagem que possibilitam o poema, especialmente com
a maior divulgação dos estudos linguísticos de Ferdinand de Saussure e
dos debates empreendidos pelos formalistas russos, que fundamentaram
o desenvolvimento de uma teoria da literatura como ciência do texto. A
partir daí, seja qual for a abordagem, o poema, a princípio, se define
como construção verbal diferenciada que segue determinadas “regras”
de transformação dos elementos diversos que constituem um sistema
linguístico específico. O poeta torna-se um “linguista das imagens”,
testando práticas discursivas, verificando na própria escrita a eficácia
comunicativa de diferentes relações sintagmáticas e paradigmáticas,
contrastando os subsistemas linguísticos – o fonológico, o morfológico,
o sintático e o semântico – para atingir grau elevado de significado
ou conotação31. Enfim, a modernidade literária do século XX trazia à
cena a matéria indispensável para o exercício da criação: a língua. E
os poetas, que sempre a consideraram fundamental, expressaram e
divulgaram, por meio do exercício crítico ou na prática do próprio
poema, as condições de trabalho com essa matéria. Sobre isso, escreveu
o poeta e crítico António Ramos Rosa, nome marcante na produção
poética portuguesa a partir da década de 1950:
O que caracteriza fundamentalmente a poesia moderna é a recusa de
uma ilusão que durante séculos dominou a literatura tradicional [...] A
moderna consciência poética descobriu que o objeto que o poeta diz
não é independente da linguagem que o formula. Assim, a linguagem
já não traduz a realidade, pois ela própria cria uma nova realidade.
(ROSA, 1989, p. 32)

31. Sobre conotação e denotação, acompanhamos considerações de Luiz Costa Lima (1974).
38
O usuário cotidiano de um sistema linguístico muitas vezes
recorre a procedimentos típicos da linguagem literária, como a utilização
de diferentes relações fonológicas, sintáticas, morfológicas e semânticas
que determinam tropos como aliteração, onomatopeia, hipérbato, elipse,
anacoluto, antítese, ironia, hipérbole, metáfora etc. Esses procedimentos
são, por vezes, tão repetitivos e condicionados a determinados objetivos
de comunicação que acabam por servir apenas ao nível denotativo da
linguagem, à referencialidade de primeiro grau32, perdendo parte de sua
força significativa pela previsibilidade e conformação ao discurso diário,
com mínimo grau de inovação. Superar esse uso, transformar o comum
em particular, deslocar e reorganizar as estruturas verbais para alcançar
resultados inéditos, levando à desautomatização, são formulações da
função poética que Jakobson apontou nos textos centrados no desvio
linguístico e imagético – como o poético e o publicitário, por exemplo.
Ora, a questão fundamental em poesia, como já afirmou há certo tempo
Jakobson (1973, p.5) em “O que fazem os poetas com as palavras” , está
“nas relações entre som e sentido”, e tudo é, “nos seus diversos níveis,
significante”.

Entretanto, se lembrarmos que, no próprio quadro de funções da


linguagem reelaborado por Jakobson, a função poética pode também
estar presente em um texto não literário, como em um anúncio ou um
slogan político (por exemplo, “I like Ike” ou o nosso, bem brasileiro,
“Lula lá!”), qual é a diferença para o trabalho poético ipsis litteris? A
resposta está provavelmente na análise do objetivo de elaboração de
um texto, ou, de outra perspectiva, na análise da relação entre texto
e receptor. No texto publicitário, a elaboração verbal é um meio para
atingir o leitor / ouvinte, despertando sua atenção para um produto que
se deseja vender. O texto se projeta para o produto, para o elemento
referencial fora-texto. No texto poético, a elaboração verbal é um fim
em si mesmo para atingir o leitor / ouvinte, direcionando a atenção
para a realização de algo que só existe no interior do poema. O texto se

32. Sobre referencialidade, cf. LIMA, 1974; RIFFATERRE, 1984. A denominação “referência de
primeiro e de segundo grau” vem de RICOEUR, s.d. a.
39
introprojeta, ou seja, transforma-se em sua própria referência e impõe
ao leitor o movimento em direção ao universo textual33.

A realidade significante da escrita poética é um fato. A


preocupação com o ritmo, com a tonicidade, com a ressonância ou a
contraposição de dessemelhanças em diversos níveis sempre esteve
presente na elaboração do poema; porém, é inegável que um dos fortes
traços da modernidade literária (e pensamos essa modernidade a partir
de Baudelaire) foi a afirmação e discussão de processos de dissonância
na elaboração do texto poético. Tal dissonância se estabelecia nos níveis
fonológico e morfossintático, como também, cada vez mais, no nível
semântico, obrigando o poeta a avaliar os limites de seu próprio trabalho
imagético, especialmente em relação ao processo de metaforização, tão
fulcral no tecido poético e, portanto, exigente em sua constituição e no
controle de efeitos.

Lembremos que os dois poetas cujas obras analisaremos


adiante expõem em seus trabalhos poéticos e em reflexões literárias
uma consciência bastante segura sobre o desenvolvimento de seu
ofício criativo, com uma atenção muito direcionada ao processo
de metaforização, o que os leva a discutir, em sua escrita, como
se processam as imagens no poema e como se organizam nele as
metáforas. Nuno Júdice sobre isso escreve em Máscaras do poema e
em O processo poético; Carlos de Oliveira, em O aprendiz de feiticeiro,
anota reflexões sobre imagens vitais de sua obra, além de haver, em sua
poesia, principalmente em Micropaisagem, a reflexão sobre o processo
metafórico como fundamento da escrita poética.

Em decorrência, é importante para a coerência deste trabalho


discutir no âmbito da relação entre poesia e linguagem o processo
metafórico. Carlos de Oliveira e Nuno Júdice reafirmam o papel
essencial da metáfora na escrita literária e, mais do que isso, discutem a

33. Em relação a essa diferença, lembre-se a distinção feita por Heidegger entre obra de arte e
instrumento: a obra de arte caracteriza-se pelo fato de se impor como digna de atenção enquanto
tal; o instrumento se esgota no uso e na referência ao mundo (HEIDEGGER, 1999).
40
necessidade de renovar os procedimentos metafóricos, indagando sobre
a acomodação imagética que a poética moderna acabou por instituir,
quando deixou de ser discurso de ruptura para tornar-se tradição.
Abordam direta ou indiretamente o processo metafórico, não apenas
como figura, e sim como um processo de transformação de sentidos,
dependente de operações cognitivas que envolvem texto, leitor e mundo.

Sabemos bem que o estudo sobre a metáfora, já presente em Arte


retórica e poética de Aristóteles, ganhou outro desenvolvimento e maior
espaço de discussão há poucas décadas. Sabemos que especialistas
da área ainda se deparam com verdadeiros impasses para dar conta
da especificidade do processo metafórico e que há, como é natural,
divergências nos caminhos analíticos em relação à importância da
metáfora, sua concepção semântica, sua relação com a referencialidade.
Não temos essa preocupação e por isso não enfrentaremos essas
divergências34. Motivados pelas obras poéticas de Carlos de Oliveira e
Nuno Júdice, trabalhamos uma descrição de metáfora inserida numa
teoria geral sobre a linguagem ou significação, e, por isso, recorremos à
abordagem teórica de A metáfora viva, de Paul Ricoeur, que defende a
tese de que “a metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso liberta
o poder que certas ficções comportam de redescrever a realidade” (s.d.
a, p. 9).

A lição de retórica clássica, preocupada com descrição e


classificação, explica que a metáfora é um tropo numa relação de
similaridade abreviada. Segundo Quintiliano, seria “uma mudança
bem-sucedida de significação de uma palavra ou de uma locução” (apud
PERELMANN, 1996, p. 453); e Aristóteles (s.d., p. 211), ao tratar “Da
beleza do estilo”, afirma que, “De um modo geral, de enigmas bem-
feitos é possível extrair metáforas apropriadas, porque as metáforas são
enigmas velados e nisso se reconhece que a transposição de sentido foi
bem-sucedida”. Mais adiante o filósofo acrescenta que, para elaborar
boas metáforas, é necessário guiarmo-nos pela analogia. Também na

34. Em SACKS, 1992, podemos acompanhar em parte as discussões.


41
Arte poética, Aristóteles fará a distinção entre imagem e metáfora,
ressaltando que há pouca diferença entre elas, já que a imagem trabalha
com a comparação explícita (“que se atirou como um leão”) e a metáfora
resulta da transposição (“este leão atirou-se”). Sua lição termina
enfatizando o vínculo entre metáfora e analogia.

A fórmula mais comum da relação analógica é: A está para B,


assim como C está para D. A metáfora elaborada a partir de uma analogia
transforma a fórmula anterior para chegar à expressão “C de B” que
designa A. Porém, as metáforas mais originais são as que se apresentam
logo de início como fusão de A e C, silenciando os termos B e D.
Devemos lembrar que, do ponto de vista da retórica aristotélica, fundem-
se a preocupação com a persuasão e a discussão sobre o verossímil,
estabelecendo “sobre esta reflexão o edifício completo de uma retórica
filosófica” (RICOEUR, s.d. a, p. 18). Ora, se formalmente a metáfora
resulta de uma operação de transferência de sentido, funcionalmente
ela é tanto um instrumento retórico quanto um instrumento poético
(RICOUER, s.d.a, p. 6-9).

Para a retórica clássica, a metáfora é compreendida como o


resultado de uma operação de substituição e, dessa forma, como discute
Ricoeur, “a informação fornecida pela metáfora é nula, a metáfora
apenas tem valor ornamental, decorativo” (RICOEUR, s.d. a, p. 34).
Mas o teórico francês, na sua releitura crítica da Retórica e Poética de
Aristóteles, demonstra que estão no próprio discurso do filósofo grego
os fundamentos para se estabelecer uma “teoria da tensão” que supera a
“teoria da substituição” segundo a qual a metáfora acaba por se reduzir
a um ornamento. A tensão encontra-se no relacionamento predicativo
que a metáfora mantém, fazendo a ultrapassagem da léxis para chegar à
frase, ao enunciado, ao discurso.

O que Ricoeur deseja demonstrar é que, no discurso literário, temos


a “metáfora viva”, isto é, o resultado do processo metafórico com função
cognitiva, pois sua constituição se dá pela percepção de semelhanças
e diferenças, com o estabelecimento de uma inovação semântica que
42
“acontece” na linguagem. “[...] não há metáfora no dicionário, apenas
existe no discurso; neste sentido, a atribuição metafórica revela melhor
que qualquer outro emprego da linguagem o que é uma fala viva; esta
constitui por excelência uma “instância de discurso” (RICOEUR, s.d. a,
p. 148). Mas a grande diferença é que, não se falando mais de metáfora
como palavra e sim como enunciado metafórico, dá-se relevo à figura do
auditor ou do leitor que será o agente capaz de garantir o “acontecimento
semântico”, a vida da metáfora. É a base de uma “teoria da interação”.
[...] é necessário tomar o ponto de vista do auditor ou do leitor, e tratar
a novidade de uma significação emergente como a acção instantânea
do leitor. Se não tomarmos este caminho, não nos desembaraçaremos
verdadeiramente da teoria da substituição. [...] prefiro dizer que o
essencial da atribuição metafórica consiste na construção da rede
de interacções que faz desse contexto um contexto actual e único.
A metáfora é então um acontecimento semântico que se produz no
ponto de intersecção entre vários campos semânticos. Esta construção
é o meio pelo qual todas as palavras tomadas conjuntamente
recebem sentido. Então, e somente então, o torsão metafórico
é simultaneamente um acontecimento e uma significação, um
acontecimento significante, uma significação emergente criada pela
linguagem. (RICOEUR, s.d. a, p. 150-151)
Encampamos a tese defendida por Ricoeur sobre a metáfora viva,
entendendo essa metáfora como relação de sentido instituída além
da palavra, ou seja, implicação significativa no nível da frase. Ricoeur
recolhe em Benveniste a diferença entre “uma semântica, em que a
frase é portadora da significação completa mínima, e uma semiótica
para a qual a palavra é um signo no código lexical” (RICOEUR, s.d.
a, p. 151), acarretando a formulação de uma “teoria da tensão” que se
opõe a uma “teoria da substituição”. Ao discutir essa oposição, o filósofo
deseja delimitar o problema “da criação de sentido de que é testemunho
a metáfora de invenção.” Mais adiante invoca outra problemática em
relação à referência do enunciado metafórico na ação de redescrever a
realidade. Citamos ainda:
Mas a possibilidade de o discurso metafórico dizer qualquer coisa
sobre a realidade esbarra com a constituição aparente do discurso
43
poético que parece não referencial e centrado sobre si mesmo. A esta
concepção não referencial do discurso poético opomos a ideia de
que a suspensão da referência literal é a condição pela qual pode ser
libertado um poder de referência de segundo grau, que é propriamente
a referência poética. É necessário então não falar apenas de duplo
sentido, mas de “referência desdobrada”, segundo uma expressão
recolhida em Jakobson. (Cf. RICOEUR, s.d. a, p. 9).
A metáfora viva é, portanto, a marca de diferença da poesia que
se reconhece um trabalho de escrita a partir do ato de leitura, pois ler é
intervir na elaboração imagética para efetivar a redescrição do mundo35.
Exemplificamos com Carlos de Oliveira e o trabalho de permanente
reescrita de seus poemas em busca de um rigoroso controle da metáfora,
rejeitando a imagem e a emotividade carregadas de tradição (repetição)
em prol da metaforização originada na experiência de inovar e depurar
o sentido, com outra compreensão do que seja a referência em poesia e
o valor da metáfora na enunciação do poético. O processo de reescrita
é cuidadosamente demonstrado por Rosa Maria Martelo em sua tese,
mas não deixamos de registrar aqui um exemplo dessa transformação
necessária, para que se destaque o resultado do processo metafórico em
torno do tempo. Num poema de Mãe pobre, primeira versão, lemos:
Pureza experiente é ser-se forte,
mas a impiedade cabe bem na guerra:
pra sempre dobe o tempo os ciclos da morte
sobre a mesquinha escuridão da terra. (apud MARTELO, 1996, p. 456)
Na versão definitiva,
Pureza experiente é ser-se forte
mas a impiedade cabe bem na guerra:

35. RIFFATERRE (1984, p. 100), sobre significação em poesia, escreve: “Dos primórdios da retórica
à semiótica moderna, longamente se estudou a significação indirecta, embora como fenómeno
estritamente fechado no texto. A aproximação mais frutífera – de facto, a única satisfatória –
consiste em levar em conta simultaneamente o leitor e o poema: aquele que interpreta ao mesmo
tempo que aquilo que interpreta. Porque não é no autor, como durante muito tempo pensaram
os críticos, nem no texto isolado que se encontra o lugar do fenómeno literário, mas sim numa
dialéctica entre o texto e o leitor.”
44
para sempre dobe o tempo os ciclos da morte
no tear que tece a translação da terra. (O [MP], p. 54, grifo nosso)
É o que faz também um leitor especial como Nuno Júdice em
relação à poesia francesa e alemã dos séculos XVIII e XIX, quando se
apropria da textualidade alheia e reelabora o jogo metafórico numa
nova experiência da imagem perpassada de ironia, impondo uma outra
leitura à leitura da tradição, o que significa uma ação de paródia na
formulação defendida por Linda Hutcheon: “repetição com distância
crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (1989, p.17). É o
tom, por exemplo, de um conjunto de textos em prosa, o qual encerra
Obra poética. Sob o título de Rimbaud inverso e com um aviso de que “O
pastiche é um pastis”, a escrita de Júdice absorve a escrita de Rimbaud
e revela seus excessos imagéticos, “Delírios do verbo – alquimia”
(JÚDICE, 1991, p. 338).

Outra questão relacionada à tese da metáfora viva diz respeito ao


problema da referência e da representação – mimese. Ricoeur argumenta
que a inovação semântica é uma resposta ao estaticismo das coisas e,
portanto, quando ocorre a inovação, também ocorre uma “redescrição
do universo das representações” (s.d. a, p.192).

Pois bem, isso é fundamental para a leitura das obras poéticas


de Carlos de Oliveira e Nuno Júdice. Com propostas diferentes,
com linguagens diversas, os dois põem em questão os “enunciados
semânticos” e realizam na prática a tese de Ricoeur: “É provável que
a referência ao real deva ser abolida para que seja libertada uma outra
espécie de referência a outras dimensões da realidade” (s.d.a, p.222). Com
essa perspectiva, pensamos que também ganha coerência nossa tese de
que podemos compreender a obra de Carlos de Oliveira principalmente
como uma teorização da escrita, e a de Nuno Júdice principalmente
como uma teorização da leitura, já que, se no primeiro há a discussão e
a prática de uma escrita que deseja ultrapassar o referencial (de 1º grau)
para libertar outra espécie de referência (de 2º grau), conforme nos
demonstra o magnífico conjunto de poemas intitulado Micropaisagem,

45
na obra do segundo, o poema se dá como “objeto de leitura” e como
“abertura activa ao texto” (apud. RICOEUR,s.d. a, p. 313). Nesse sentido,
podemos lembrar textos de Júdice que impõem ao leitor a ação ativa de
compreensão do que vai lendo, principalmente por expor uma série de
referências literárias que precisam ser recuperadas para que o sentido
do texto ganhe unidade. Um exemplo radical disso é o texto em prosa
“Génese e explicação do poema ‘Interrogação a uma amiga morta’”, em
que o poeta faz a desconstrução do processo de leitura necessário para
a compreensão do poema, mostrando a relação entre as metáforas que
estão no texto e as referências que estão fora dele. Vejamos fragmentos
– primeiro do poema, depois da explicação:
Pergunto o que queres:
a rosa que não abriu sob o céu de abril?
Um túmulo branco no centro da terra?
Os seios de fogo da rapariga matinal?
Os dedos sem mancha dos amantes? (FV, p. 102)

Soube da morte da Margarida Vieira Mendes na Sexta-feira, 7 de


fevereiro de 97, a meio da tarde. O poema é uma resposta a essa
situação.
É um poema que parte de uma reflexão antroposófica. Há uma
interrogação a uma amiga morta, que se refere ao próprio enigma da
morte, que é inacessível aos vivos. O poema abre com uma pergunta:
Pergunto o que queres – nessa sua nova condição.
A rosa que não abriu sob o céu de abril? É uma metáfora da vida: abril
é o mês do regresso de Proserpina, que vem restituir a vida à natureza.
Por isso a morte é um momento transitório dentro desse ciclo natural.
Quanto à flor, surge nesta sequência, embora remeta também para
uma tradição literária, dado que a notícia súbita e brusca da sua morte
me evoca Malherbe, na sua “Consolation à Monsieur du Périer”: “Et
rose elle a vécu ce que vivent les roses, / l’espace d’un matin.”
Um túmulo branco no centro da terra? Trata-se novamente de uma
referência à ligação com a terra. O branco, por outro lado, é a cor do
luto para os romanos. Também o centro da terra se refere à ideia de

46
Ísis: a deusa branca, de que fala Robert Graves, a que associo a sua
figura depois da morte. (FV, p. 150)
Muito coerentemente, Ricoeur fará com que A metáfora viva seja
seguida por Tempo e narrativa, obra na qual desenvolveu e aprofundou
a questão da mimese, além de ter desdobrado a discussão da relação
real-obra-leitor. Mas, por ora, voltemos ao problema da referência. Ao
fazer a avaliação crítica de diversos estudos sobre a metáfora, o filósofo
francês, em determinado momento de sua reflexão, analisa o conceito
de G. Frege de referência e sua teoria da denotação, a qual que só seria
possível aos enunciados da ciência e recusado aos da poesia. Ricoeur (s.d.
a., p.330) questiona que “o discurso literário manifesta uma denotação
de segunda ordem, graças à suspensão da denotação da primeira ordem
do discurso”. Assim, a relação entre metáfora e referência expõe que a
metáfora é esse processo de suspender a referência literal para recompor
outro grau de referência: “Se é verdade que é numa interpretação que
sentido literal e sentido metafórico se distinguem e se articulam, é
também numa interpretação que, graças à suspensão da denotação de
primeira ordem, se liberta uma denotação de segunda ordem, que é
propriamente a denotação metafórica” (s.d. a, p. 330)36.

Isso nos interessa vivamente para a compreensão das escritas


poéticas que ora estudamos. Carlos de Oliveira tensiona a relação
referencial entre a linguagem poética e o mundo, coerente com o projeto
neorrealista, como também vai progressivamente transformando essa
relação para demonstrar que o poético cria mundos autônomos que
constituem seus próprios jogos de referência. Nuno Júdice, no que
podemos considerar a primeira fase de sua obra poética, debruça-
se sobre a própria linguagem literária, principalmente sobre aquela
que, no final do século XIX, implodiu a ilusão da referencialidade,
a subordinação a um projeto de descrição do real, buscando uma
linguagem tão livre quanto a linguagem musical, cujo sistema
referencial é interno e independente do mundo concreto e objetivo. Na
segunda fase, continua a exploração dos limites da linguagem poética,

36. A esse respeito, consultar também LIMA, 1974, p. 22.


47
tensionando igualmente a relação poesia e realidade, para se efetivar
um discurso poético que assume na sua interioridade a sua autonomia.
Para ambos, a escrita poética compreende o processo metafórico como
desencadeador de estratégias de produção e recepção textual. Por isso, a
tese de Ricoeur de que o discurso poético faz a suspensão de referência
de primeiro grau e impõe uma ação interpretativa em “busca de um
outro modo de referência” (s.d. a, p. 341), tendo uma função cognitiva, é
uma formulação constante na obra desses dois poetas portugueses, que
põem em interação sujeito, mundo e leitor para desencadear o processo
de redescrição do mundo, reescrevendo mundos (os textos).

Desse modo, a obra de arte que aí se defende é, em termos


heideggerianos (e Ricoeur é leitor atento de Heidegger), ontológica, ou
seja, “a obra de arte não exprime nem dá testemunho de um mundo
constituído fora dela ou independentemente dela; ela própria abre
e funda um mundo” (HEIDEGGER, 1999, p. 34)37. Outro leitor de
Ricoeur, Karsten Harries, em estudo sobre a metáfora, “A metáfora e
a transcendência”, unindo a reflexão de Heidegger sobre a obra de arte
à reflexão do filósofo francês sobre a metáfora, escreve: “Compreender
um texto é, portanto, colocar-se ‘ante o mundo da obra’, estar aberto
para aquele mundo e permitir que aumente a compreensão que se tem
do mundo. A metáfora é discutida no contexto dessa interpretação
ontológica” (1992, p. 91). Portanto, o processo metafórico se amplia no
discurso poético e se transforma numa abordagem cognitiva do mundo
real e do mundo do texto.

37. Ainda sobre a noção de mundo heideggeriana, citamos: “Mundo não é a simples reunião das
coisas existentes, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mas mundo também não
é uma moldura meramente imaginada, representada em acréscimo à soma das coisas existentes. O
mundo mundifica (Welt eltet) e é algo mais do que o palpável e apreensível, em que nos julgamos
em casa. Mundo nunca é um objecto, que está ante nós e que pode ser intuído. O mundo é o
sempre inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte,
da bênção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais
da nossa história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e onde de novo são
interrogadas, aí o mundo mundifica” (1999, p. 35).
48
Poesia e história: temporalidade, narratividade e memória
“O que em mim cresce e se reproduz, então, não sou eu, é o que
escrevo. E só essa vida ‘textual’ e escrita me protege do nada, do
pó, da mortal opacidade do gesto efêmero.”
Nuno Júdice, As inumeráveis águas

“Registar / nessa memória / ao contrário / de trás / para diante / as


palavras / que ficam / assim / misteriosas / e depois / soletrá-las / do
fim / para / o princípio.”
Carlos de Oliveira, Micropaisagem
Entre as categorias físicas que possibilitam a percepção de uma
realidade comum a todos, tais como espaço, volume, densidade, substância,
dimensão etc., a temporalidade é a noção mais abstrata e a mais resistente
a explicações objetivas e descritivas. Na concepção vulgar, o tempo é um
continuun ao qual damos limites e artificialmente impomos visibilidade
(por meio de formas de medição), estabelecendo um ilusório domínio
sobre o que é, na verdade, inacessível. O desejo de controle do tempo
fala, portanto, da angústia humana frente às transformações físicas muito
concretas que marcam os seres vivos, lembrando sua não perenidade, sua
fatal caminhada para um fim que tem na velhice um dos seus prenúncios.
Inevitavelmente, a temporalidade tornou-se, em níveis diversos de interesse,
um tema permanente de inquirições e investigações em todas as épocas38,
constituindo-se uma “história do tempo” assaz ampla e inesgotável. A partir
dela, podemos dizer de maneira geral que se confrontam duas concepções
temporais: a objetiva e a subjetiva. A segunda nos interessa especialmente,
na medida em que significa compreender o tempo como duração mental,
categoria subjetiva porque interior ao ser, ideia que foi desenvolvida
inicialmente por Santo Agostinho, cujas indagações sobre o tempo como
uma experiência da alma, dependente, consequentemente, do sujeito e de

38. Para seguir essa história, numa visão geral, consultar ROMANO, 1993, principalmente p. 11-91;
e REIS, 1994. Há ensaios muito elucidativos a respeito de temporalidade e história em NOVAES,
1992.
49
sua interioridade, influenciarão sobremaneira as abordagens da questão
temporal ao longo dos séculos.
Quando meço o tempo, não meço sílabas em si, nem o passado, nem o
futuro, nem o presente em si. Eu meço os tempos da alma. A impressão
que as coisas fazem na alma enquanto passam e permanecem – esta
experiência é que se mede. Ela é presença, e não as coisas que passam.39
Trata-se da noção de distentio animi a que Santo Agostinho reduz
a extensão do tempo, considerando um tríplice presente: o presente do
futuro (a expectativa), o presente do passado (a memória) e o presente
do presente (a atenção).

No século XX, o questionamento sobre a compreensão


subjetivista do tempo estará presente nas reflexões de inúmeros
filósofos. Na diversidade de seus estudos, e com a consciência de que,
no âmbito deste trabalho, devemos nos limitar apenas a determinados
dados orientadores, podemos anotar algumas contribuições para a
discussão sobre a temporalidade, como: a) a importância da consciência
para o fundamento das coisas, com a ideia de um tempo quantitativo,
homogêneo, mensurável e contínuo, o conceito de duração (Bergson),
b) a descontinuidade e o instante como dado imediato (Bachelard), c)
a ideia de que o tempo está na “relação de um sujeito a um outro”, na
história (Levinas), d) a importância do passado na arquitetura temporal
e a função da memória (Lavelle), e) o presente como “ponte” entre
passado e futuro, como “retenção de retenções” a interferir no passado
sem o negar (Husserl), f) a temporalidade como fundamento ontológico
do Dasein, estabelecendo o tempo psicológico da vida cotidiana
(Heidegger) e g) com a impossibilidade de uma fenomenologia pura
do tempo, a proposta de que o ato narrativo é um meio de responder às
suas aporias (Ricoeur).

39. Citado por NOVAES, 1992, p. 31. Ver também no volume 1 de Tempo e narrativa de Paul
Ricoeur o capítulo “As aporias da experiência do tempo”, sobre o Livro XI das Confissões de Santo
Agostinho.
50
O homem sempre buscou compreender a temporalidade, dando-
lhe artificialmente marcações, balizas, medidas, um vocabulário
(instante, agora, sempre, ontem, hoje, amanhã, ano, mês, dia etc.) e
desenvolvendo sobre ele as mais complexas reflexões numa tentativa de
dominá-lo, transformá-lo, subordiná-lo ao seu controle racional. Dessa
maneira, entender como se organizam as relações temporais (e também
espaciais, outra noção fundamental no imaginário humano) numa
determinada cultura é perceber de forma mais concreta as expectativas
sociais de uma comunidade.
Nas práticas espaciais e temporais de toda sociedade são abundantes as
sutilezas e complexidades. Como elas estão estreitamente implicadas
em processos de reprodução e de transformação das relações sociais,
é preciso encontrar alguma maneira de descrevê-las e de fazer uma
generalização sobre o seu uso. A história da mudança social é em parte
apreendida pela história das concepções de espaço e de tempo, bem
como dos usos ideológicos que podem ser dados a essas concepções.
Além disso, todo projeto de transformação da sociedade deve
apreender a complexa estrutura da transformação das concepções e
práticas espaciais e temporais. (HARVEY, 1992, p. 201)
Walter Benjamin, refletindo sobre a história, disse que “a
consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às
classes revolucionárias no momento da ação” (1994, p. 230); portanto,
para libertar-se de uma ordem, romper o continuum da dominação, é
necessário enfrentar as balizas temporais da sociedade40.

Assim, a reflexão sobre a temporalidade é invocada aqui como


uma das formulações fundamentais da vivência humana e, por isso,
tema que se reflete de forma determinante na arte. A pintura rupestre,
nos primórdios da humanidade, talvez tenha sido a primeira tentativa
de aprisionamento do existente, do passageiro, registro de fatos
vivenciados ou desejados, gesto carregado de intenção ritual. O homem
moderno herdou essa ânsia e o desenvolvimento científico colaborou

40. Foi o caso da Revolução Francesa, que estabeleceu um novo calendário, com nomeações
inéditas e uma quantificação diferente para substituir a ordem temporal e a consciência histórica
do Antigo Regime.
51
para “ordenar” o tempo e torná-lo uma “realidade” cotidiana. Nas
últimas décadas do século XIX, por exemplo, o tempo dos relógios
é soberano41. Lembremos, sob a perspectiva da temporalidade, a
motivação para a criação da fotografia (1816), apreensão do instante,
e, depois, do cinema (cerca de 1900), o movimento controlado da
imagem no tempo. O literário também se voltou continuamente para
essa problematização, mesmo sem nomeá-la, e o narrar, o poetar e o
dramatizar “representavam” o tempo, principalmente nos séculos XIX
e XX, quando a aceleração temporal levou o homem a experimentar
mais agudamente a fugacidade, o contraste entre passado e presente,
entre tradição e renovação. Não é no século XIX, em meio à onda de
progresso, à transformação das cidades, que o termo “modernismo”
começa a circular com maior desenvoltura42?

A partir desse século, o homem se vê envolvido pelo turbilhão


da vida urbana, admirando o ritmo do progresso, espantando-se com a
velocidade cada vez maior dos meios de transporte, com as aceleradas
modificações técnicas e sociais que criam a ilusão de domínio sobre o
tempo e sobre a natureza – mas, na realidade, a humanidade perdeu cada
vez mais tempo interior, ou seja, o tempo de reflexão e conhecimento.
Se um dia todos os relógios se recusassem a obedecer, a nossa
sociedade afundar-se-ia por completo. Os transportes ferroviários e
aéreos parariam catastroficamente, pois não podem funcionar a não
ser respeitando horários bem precisos. [...] a rede de distribuição de
energia eléctrica sofreria certamente um colapso [...]. O sistema das
comunicações ficaria profundamente desorganizado, e assim também

41. Apenas para ilustrar tal soberania, registremos alguns dados: “Nos finais do século XVIII, a
média anual da produção londrina rondava as 130.000 peças [...] Genebra produzia 70 a 80.000 [...]
A partir de 1885, [...] a indústria relojoeira suíça exporta neste ano cerca de três milhões de relógios
e mecanismos completos; este número sobe para 13 milhões em 1913, para cerca de 21 milhões em
1946 e para mais de 60 milhões em 1966” (ROMANO, 1993, p. 31-32).

42. BERMAN (1989, p. 17) registra que “Rousseau é o primeiro a usar a palavra moderniste
no sentido em que os séculos XIX e XX a usarão.” Mais adiante (p. 145), dedica um capítulo a
Baudelaire, “que fez mais do que ninguém, no século XIX, para dotar os seus contemporâneos de
uma consciência de si próprios como modernos.”
52
os meios de comunicação de massa [...] Estes poucos exemplos bastam
para recordar que a nossa sociedade se reproduz diariamente graças
a actividades inúmeras, cuja ordenação, às vezes subtilíssima, só é
possível porque os vários poderes públicos impõem a todos um tempo
não meramente qualitativo mas também, ou mesmo principalmente,
quantitativo: medido e anunciado pelos relógios. (ROMANO, 1993, p.
16-17)
Em meio a essa aceleração, formou-se a multidão de que fala
Baudelaire e gerou-se a modernização do século XX, que será marcada
por problemas e tensões decorrentes de muitos fatos que prometiam
o progresso: o crescimento urbano, o crescimento populacional, o
desenvolvimento de mercados de consumo, o desenvolvimento técnico-
científico, o domínio dos meios de comunicação, a força econômica de
determinados países sobre os mais pobres etc. O homem contemporâneo
nascido em meio a essa violenta “modernização”, habitante de um
mundo dito “globalizado”, é impelido a produzir, a “ocupar o tempo”,
a preencher os vazios, a multiplicar as tarefas, na ânsia de aproveitar
o máximo que a publicidade oferece, de agir continuamente conforme
padrões culturais impostos, de viver mais, aproveitando os milagres da
ciência. O sujeito perdeu o domínio do tempo interior, pois foi educado
e incentivado a valorizar o tempo exterior, o time is money capitalista, e,
apesar de tantas facilidades materiais,
o público moderno multiplica-se numa multidão de fragmentos,
que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais; a ideia de
modernidade, concebida em inúmeros e fragmentários caminhos,
perde muito da sua nitidez, ressonância e profundidade e perde
a sua capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas.
Em consequência disso, encontramo-nos hoje numa era moderna
que perdeu contacto com as raízes da sua própria modernidade
(BERMAN, 1989, p. 17).
Foi, afinal, sobre as contradições das experiências do tempo,
já no fim do século XX, que se estabeleceu o binômio Modernismo/

53
Pós-modernismo43. Se o Modernismo apontava para o futuro, para
a transformação do homem e do mundo, livrando-se das carências
e dificuldades do passado, o Pós-modernismo, com todas as suas
ambiguidades internas e externas, questiona a possibilidade dessas
utopias

Ora, partindo do pressuposto de que a arte é um sistema simbólico


que diz a presença humana no mundo, é previsível afirmar que está
nela também a reflexão sobre o tempo. As obras poéticas que adiante
analisaremos têm em comum esse tema, e é para seguir os modos
como falam do tempo que, entre as diversas abordagens filosóficas e
estéticas sobre a temporalidade, destacamos as teses de Paul Ricoeur
em Tempo e narrativa, com as ideias fundamentais de que “o tempo
torna-se tempo humano na medida em que ele é articulado de modo
narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em
que esboça os traços da experiência temporal” e “o mundo exibido por
qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal” (RICOEUR,
1994, p. 15). Considerando aqui que a “narratividade” como articulação
temporal está igualmente na poesia, o estudo de Paul Ricoeur nos
guia na compreensão dos discursos poéticos de Carlos de Oliveira
e Nuno Júdice. Façamos, então, uma síntese das principais propostas
apresentadas em Tempo e narrativa.

Desde o início de seu estudo, Ricoeur reconhece que o tempo


é um tema de perplexidades e que não se submete a uma explicação
teórica, sendo impossível uma fenomenologia pura a seu respeito. Por
“fenomenologia pura” do tempo, o filósofo entende uma apreensão
intuitiva da estrutura do tempo, que possa ser isolada dos procedimentos
de argumentação e que não leve a novas aporias. Para ele, o tempo não
pode ser diretamente observado, sendo invisível; e as fenomenologias
puras teriam tentado em vão fazê-lo “aparecer em si” (REIS, 1994, p.
59).

43. Sobre essas contradições e a problemática do tempo “pós-moderno”, é útil a leitura de COELHO,
1984; LYOTARD, 1997; e EAGLETON, 1998.
54
Assim, frente às aporias do tempo, a proposta de Ricoeur para
resolver o impasse é demonstrar que as “intrigas que inventamos [são] o
meio privilegiado pelo qual reconfiguramos nossa experiência temporal
confusa, informe e, no limite, muda” (1994, p. 12). A narrativa é, assim,
uma necessidade humana de compreender sua própria existência e de
organizá-la na perspectiva temporal.

Na primeira parte de seu trabalho, o filósofo confronta as


reflexões sobre o tempo de Santo Agostinho (subjetivo) com as de
Aristóteles (objetivo), mostrando que a temporalidade é uma questão
sem explicação, mas passível de ser enfrentada justamente por meio
do texto narrativo: “Será uma tese permanente deste livro que a
especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusiva, à qual só
replica a atividade narrativa” (RICOEUR, 1994, p. 21). Nas reflexões
de Santo Agostinho, Ricoeur considera fundamental a ideia de reduzir
a extensão do tempo à distensão da alma, enquanto nas ideias de
Aristóteles destaca as questões à volta da atividade mimética. Enfatiza
também a diferença entre a mimese platônica e a aristotélica, pois, se
para Platão “as coisas imitam as ideias, e as obras de arte imitam as
coisas”, para Aristóteles “a imitação é uma atividade e uma atividade
que ensina” (RICOEUR, 1994, p. 60). Avisa, porém, que não se pode
compreender mimese como “imitação”, cópia do real, e sim como criação,
transformação, acrescentando que “O artesão de palavras não produz
coisas, mas somente quase-coisas, inventa o como-se” (p. 60). O filósofo
contemporâneo dá importância à narrativa, considerando as relações
entre a história e a construção da intriga – elemento primordial na arte,
do ponto de vista de Aristóteles, para imitar uma ação. Assim, Ricoeur
discutirá longamente a narratividade no âmbito da historiografia e da
narrativa de ficção. Ao superar o sentido de narratividade como gênero,
Ricoeur trabalha com uma noção mais ampla de esquema narrativo,
emprestada da semiótica narrativa e da psicossociologia dos atos de
linguagem, “em que se fala correntemente de programas, de percurso
ou de esquemas narrativos” (RICOEUR, 1997, p. 444). Mas faz diferir a
historiografia da narrativa, elaborando as noções de “quase-intriga, de
quase-personagem e de quase-acontecimento, que dão a entender que
55
o modelo inicial da armação de intriga é levado pela historiografia à
vizinhança de um ponto de ruptura para além do qual já não podemos
dizer que a história é uma extensão da narrativa” (p. 458).

Sua tese defende que a atividade narrativa possibilita a configuração


/ refiguração da experiência temporal, o que ocorre a partir da relação
mimética entre a ordem da narrativa e a ordem da ação e da vida. Três
percepções temporais são envolvidas na narração: a do enunciado, a da
enunciação e a do leitor, equivalentes às três mimeses propostas em sua
teoria de tripartição da mimese. A mimese I trata da referência anterior
à composição poética; a mimese II é a mimese-criação, função-pivô da
análise, com faculdade de mediação; a mimese III trata da atividade
mimética realizada pelo espectador ou leitor. Com essa divisão, o autor
organiza a relação entre os três estágios da mimese como prefiguração
(há uma pré-compreensão do mundo e da ação – nível paradigmático),
configuração (mediação entre acontecimentos ou incidentes individuais
e uma história considerada como um todo, fazendo a junção de
elementos heterogêneos e uma síntese dessa heterogeneidade – nível
sintagmático) e refiguração (“marca a interseção entre o mundo do
texto e o mundo do ouvinte ou do leitor”) (1994, p. 101-110).

Em relação à mimese I, portanto, Ricoeur considera que é por


pré-compreender o mundo à sua volta que o poeta e o leitor podem
erguer a tessitura da intriga. Nesse sentido, explica que essa mimese
está no nível de “repertório” (aproveita categoria de Wolfgang Iser),
afirmando ainda que, “a despeito da ruptura que ela institui, a literatura
seria incompreensível para sempre se não viesse a configurar o que, na
ação humana, já figura” (1994, p. 101). Em relação à mimese II, explica
sua função mediadora em três níveis: primeiro, porque “transforma os
acontecimentos ou incidentes em uma história”; segundo, porque reúne
a heterogeneidade (agentes, fins, meios, interações, circunstâncias,
resultados etc.) numa unidade, ressalvando que “Aristóteles iguala
a intriga à configuração que caracterizamos como concordância-
discordância” (1994, p. 103), realizando, portanto, a sintagmática
narrativa; terceiro, ela é mediadora pelos caracteres temporais próprios,
56
ou seja, a tessitura da intriga combina duas dimensões temporais:
uma cronológica (a dimensão episódica da narrativa – a ordem dos
acontecimentos) e uma não cronológica (a dimensão configurante, já
que a intriga transforma os acontecimentos em história). A mimese III
dá oportunidade ao leitor de concluir o ato configurante, transformando
a leitura em atividade ativa de transformação da obra. Mais uma vez,
Ricoeur se aproxima da teoria da leitura de Iser e da teoria da recepção
de Jauss, com a ideia comum de que “O texto só se torna obra na
interação entre texto e receptor” (1994, p. 118):
De um lado, os paradigmas recebidos estruturam as expectativas
do leitor e o ajudam a reconhecer a regra formal, o gênero ou o tipo
exemplificados pela história narrada. Fornecem linhas diretrizes para
o encontro entre o texto e o seu leitor. Em suma, são eles que regulam
a capacidade da história de se deixar seguir. De um lado, é o ato de ler
que acompanha a configuração da narrativa e atualiza sua capacidade
de ser seguida. Seguir uma história é atualizá-la na leitura (1994, p.
118).
Desenvolvendo suas teses sobre uma teoria da escrita completada
por uma teoria da leitura, Ricoeur está também discutindo um tema
já defendido em A metáfora viva: a referência no discurso. Indo
contra a corrente, defende a existência da referência na obra literária,
considerando que “toda referência é correferência, referência dialógica
ou dialogal. [...] O que um leitor recebe é não somente o sentido da
obra mas, por meio de seu sentido, sua referência, ou seja, a experiência
que ela faz chegar à linguagem e, em última análise, o mundo e sua
temporalidade, que ela exibe diante de si” (1994, p. 120). Assim, destaca
uma “noção de horizonte” na obra de arte, considerando o “mundo do
texto” e o “mundo do ouvinte ou do leitor”, na medida em que o artista
busca levar à linguagem e dividir com o receptor uma experiência
nova. A leitura funde esses dois mundos. Ricoeur insere essa discussão
no quadro de uma hermenêutica pós-heideggeriana “que visa menos
restituir a intenção do autor por trás do texto que explicitar o movimento
pelo qual um texto exibe um mundo, de algum modo, perante si mesmo”
(1994, p. 123).

57
Voltando à narratividade, Ricoeur afirma que tanto a
historiografia quanto a arte literária enfrentam o tempo, respondendo
às perplexidades com as ações de “prefiguração, configuração e
refiguração”. O ponto comum entre a narrativa histórica e a narrativa
de ficção é “dependerem das mesmas operações configurantes que
colocamos sob o signo de mimese II” (RICOEUR, 1995, p. 10), mas o
que as diferencia é a pretensão de verdade, definindo-se a mimese III.
Frente ao tempo físico e ao tempo filosófico, o tempo histórico é um
tempo mediador entre o tempo cósmico e o tempo da consciência. O
tempo histórico se concretiza como discurso de identidade humana e,
sob essa denominação geral, o tempo da ficção, especialmente, vai aos
limites do tempo, enfrentando a eternidade.

Como dissemos, a noção de narratividade, para Ricoeur, vai além


do romance, embora, em sua obra, a aplicação da tese se faça sobre três
narrativas: Mrs. Dalloway, A montanha mágica e Em busca do tempo
perdido. No entanto, ligando Tempo e narrativa a A metáfora viva,
Ricoeur liga também a narratividade à poesia, embora não desenvolva
suas reflexões nessa direção, a não ser por algumas breves considerações.

Ora, as reflexões de Ricoeur sobre tempo e narratividade,


acreditamos, podem ser aplicadas igualmente à escrita poética e o
faremos, porque constatamos na poesia portuguesa contemporânea
uma opção de narratividade que tensiona a vivência do tempo em
diversos níveis: o histórico-cultural, o estético e o individual. Os poetas
se encontram na narração de uma experiência comum: a vivência do
mundo numa cultura de língua portuguesa, o que significa, para eles,
refletir sobre como o sujeito manifesta essa vivência na linguagem e no
tempo.

Qualquer leitura descompromissada, mas atenta, comprova


nessa produção poética um diálogo mais persistente entre o poético
e o filosófico, sendo a figuração da temporalidade o núcleo temático
dessa interseção, tópus de interrogação e reflexão crítica. Na cultura
portuguesa, o tempo histórico sempre esteve em questão, como bem
58
demonstram Os lusíadas, que Oliveira Martins, em sua História de
Portugal, afirmou ser o epitáfio de uma época. A acentuação da crise
na história coletiva portuguesa e na história individual vai, no século
XX, marcar uma poesia da memória, da morte, das ruínas, escrita de
um sujeito que se contempla e narra um mundo em fragmentação,
questionando em todos os sentidos o canto épico da pátria que
fundamentou sua cultura.

Os teóricos da cultura contemporânea afirmam que a preocupação


com o efêmero, o fragmentário, o descontínuo e o descentramento
caracterizam uma “pós-modernidade”, espírito de uma época que se
afirmou quando as certezas e o discurso da modernidade se esgotaram
frente a um mundo que não mais crê em utopias ou perenidade, mundo
que trabalha para construir o passageiro, o não durável, o perecível,
porque é nesse movimento que a máquina capitalista encontra sua razão
tecnológica de existir. Ora, esse confronto entre o princípio de construção
que caracterizaria a modernidade e o princípio de fragmentação que
caracterizaria a pós-modernidade motiva um problema sociocultural
passível de discussão no âmbito do literário, integrando o “tratamento
imaginativo do tempo” (segundo Borges, apud FOKKEMA, s.d., p. 61)
ao tratamento da estruturação interna da narrativa. O que a literatura faz
neste outro tempo? Num mundo que opera com o fragmentário como
simulacro válido da totalidade, como fica a palavra literária? Como a
literatura pode continuar a existir, quando alguns vaticinam sua morte?

Parece-nos que a poesia mais recente tomou para si essas perguntas


e vem respondendo, vem afirmando sua vida contra o desaparecimento
anunciado. Em relação à poesia portuguesa, sempre tão envolvida com
as imagens do tempo, memória e história (pensamos, por exemplo, na
formulação do Saudosismo, no início do século XX), tão preocupada em
encontrar o seu lugar cultural, é especialmente interessante observar que,
através desse questionamento contínuo, ela atingiu uma complexidade
que se manifestou, na segunda metade do século XX, numa recorrente
reflexão sobre o poético na própria prática de escrita, como comprova
a leitura de poemas de Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Eugénio
59
de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, Gastão Cruz, Fiama
Hasse Pais Brandão, Herberto Helder e Ruy Belo, sem mencionar outros
nomes das décadas de 1950 e 1960 e mais recentes. Essa poesia examina
muito atentamente sua elaboração e sua situação na sociedade, expondo,
sem palavra de salvação, ou seja, sem idealismos ou utopias, a crise da
contemporaneidade, e, no caso português, deslocando a história da
pátria para uma das margens do espaço literário, ou reavaliando o modo
como Portugal pode estar presente nesse espaço, na medida em que essa
poesia retorna ao individualismo e vivencia fortemente a solidão da
linguagem.

Especialmente as obras poéticas que estudaremos adiante têm


como ponto comum a narração de experiências temporais. Veremos
que Carlos de Oliveira e Nuno Júdice são poetas bastante atentos à
problemática do tempo em perspectivas diversas: no sujeito lírico,
na realidade do mundo, na escrita e leitura da própria textualidade.
Discutiremos que essa presença temporal se reconfigura pela
narratividade produtora de histórias e memórias. Se, como diz Ricoeur, o
mundo que qualquer narrativa configura é sempre um mundo temporal,
os mundos narrados pelos dois poetas portugueses contemporâneos
se estruturam no tempo e sobre o tempo, articulando uma avaliação
complexa sobre a condição humana em nossa modernidade / pós-
modernidade e, de forma diluída, sobre a própria condição portuguesa,
já que são vozes de uma coletividade por demais marcada por uma
história nacional, que fez do passado uma questão de identidade e uma
fonte de interrogações.

Com as teses de Ricoeur, temos em mãos reflexões importantes


sobre a escrita e a leitura como atividades de configuração e refiguração
temporal, e por isso as seguimos para analisar as obras poéticas de Carlos
de Oliveira e Nuno Júdice, pois, como diz o filósofo, “os poetas estão
aqui: refazendo mundos e nos provocando a refazê-los” (RICOEUR,
1994, p. 124).

60
O projeto de Ricoeur também significa uma revisão crítica
de gêneros e de funções, seja em relação à noção de narrativa, seja
no contraste entre discurso científico e discurso ficcional. Significa,
para nós, rever o discurso poético sob uma perspectiva que o liberte
do enclausuramento da forma para reavaliar a ligação do texto com o
mundo, por meio da discussão sobre o processo de referência que em
poesia se estabelece. A poesia se mantém como textualidade ficcional
que constrói a cada momento sua autonomia, mas não abdica de
compartilhar experiências do tempo e da condição humana. Isso precisa
ser lembrado para que se dê à poesia o lugar que ela ocupa de direito:
discurso social sobre o mundo e sobre o homem.

Ricoeur considera a narrativa guardiã do tempo. Consideramos


nós que os poetas são guardiões da palavra, mantendo a sua memória
para que não cesse de contar a vida, com suas circunstâncias e
necessidades.

Por fim, ainda devemos fazer algumas breves considerações sobre


a memória, que é um importante elemento de identidade individual e
coletiva. O ato mnemônico que tenta dar conta do passado e trazer ao
presente informações que não devem ser esquecidas utiliza-se também
da narratividade como um esquema de configuração do que se perdeu.
Também “Pierre Janet considera que o acto mnemônico fundamental é
o ‘comportamento narrativo’ que se caracteriza antes de mais pela sua
função social, pois que é comunicação a outrem de uma informação, na
ausência do acontecimento ou do objecto que constitui o seu motivo”
(ROMANO, 1997, p. 12).

Na Antiguidade, cabia ao poeta guardar a memória coletiva,


conhecer a verdade, sendo esse um dom de iniciados. Marcel Detienne,
e citamos via Costa Lima, observa que:
“Por sua memória, o poeta tem acesso direto, em uma visão pessoal,
aos acontecimentos que evoca; tem o privilégio de entrar em contato
com o outro mundo. Sua memória lhe permite decifrar o invisível”. A
memória não é portanto apenas o suporte material da palavra cantada,

61
a função psicológica que sustenta a técnica formular, é também e
sobretudo a potência religiosa que confere ao verbo poético seu
estatuto mágico-religioso. Com efeito, a palavra cantada, pronunciada
por um poeta dotado de um dom de vidência, é uma palavra eficaz;
por sua virtude própria, ela institui um mundo simbólico-religioso que
é o próprio real (apud LIMA, 1980, p. 9).
Para a filosofia grega, memória não se relacionava à história,
subtraindo-se à experiência temporal. Aristóteles distinguia a mnemê,
habilidade de conservar o passado, da mamnesi, reminiscência,
habilidade de evocar voluntariamente o passado e a memória
propriamente dita. A dessacralização da memória significava a sua
inclusão no tempo e sua utilização pragmática na comunidade, como
ocorreu quando se desenvolveu a escrita entre os gregos, criando-se
novas técnicas de memória: a “mnemotecnia”.

Na Idade Média, com o renascimento da retórica, a memória é


a sua quinta operação, depois da inventio, dispositio, actio e memoria
mandare. Porém, é com Santo Agostinho, no domínio da palavra cristã,
que a memória torna-se o espaço profundo da interioridade humana,
com o incentivo ao exame de consciência, ao recolhimento e meditação,
contrastando-se o mundo interior (a espiritualidade e o diálogo divino)
com o mundo exterior (a mundanidade).

A partir do século XVIII, há um alargamento no conceito de


memória coletiva na ordem do saber, com as enciclopédias diversas,
os dicionários, os arquivos, os museus; e, após a Revolução Francesa,
começa a grande época dos cemitérios, monumentos, inscrições
funerárias, culto aos mortos. O século seguinte, com o Romantismo,
vê a memória em relação aos sentimentos e ao passado, enfatizando-se
a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia, memória e
narração44. Note-se também a importância da fotografia como recurso
da memória: “multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma

44. “A História é a ressurreição do passado”, afirma Michelet, citado por Alfredo Bosi (in: NOVAES,
1992, p. 28).
62
verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a
memória do tempo e da evolução cronológica” (ROMANO, 1997, p. 39).

Na contemporaneidade, a história da memória envolve-se


profundamente com a ciência e a tecnologia, considerando-se o
surgimento de máquinas de calcular, computadores, cérebros artificiais,
memória genética etc. Artisticamente, o ciclo narrativo de Marcel Proust,
Em busca do tempo perdido (1913-1927), tece inovadora relação entre
memória e escrita literária, sem esquecer, também, o projeto surrealista
e a base freudiana de análise do imaginário. Enfim, seria necessário
fazer uma pesquisa extensa para dar conta da história da memória
como matéria antropológica, mas o pouco que aqui se escreve auxilia
a afirmação de que falar da memória é voltar a falar da temporalidade
e dos modos como o tempo foi compreendido ao longo dos séculos e
como se apresenta nos sistemas ideológicos.

Porém, o que nos interessa é a escrita da memória no texto


literário. Se as obras que analisaremos falam do tempo, falam também
da memória como uma construção da ficção e uma identidade da escrita
e do sujeito textual. A narratividade defendida por Ricoeur é necessária
para nossa defesa da escrita como memória de mundo e da condição
humana45, ligando-se à ideia de Benjamin sobre o narrador, aquele que
guarda a memória das experiências a partilhar, e a impossibilidade de
sua existência numa contemporaneidade massificada e dominada pelo
texto sem história.

45. Temos em mente Hannah Arendt (1995, p. 17): “A condição humana compreende algo mais que
as condições nas quais a vida foi dada ao homem. [...] O que quer que toque a vida humana ou entre
em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.
É por isso que os homens, independentemente do que façam, são sempre seres condicionados.
Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano,
torna-se parte da condição humana.”

63
Poesia e filosofia: criação e conhecimento
“Às vezes, um verso transforma o modo
como se olha para o mundo;”
Nuno Júdice, O movimento do mundo

“Imaginar / o som do orvalho, / transmiti-lo/ de flor para flor, / guiá-lo


/ através do espaço / gradualmente espesso / onde se move / agora /
[água → cal], / e captá-lo como / se nascesse / apenas / por ser escrito.”
Carlos de Oliveira, Micropaisagem
As obras poéticas adiante examinadas revelam aqui e ali o
encontro entre poesia e filosofia; por isso, não nos podemos furtar a esse
diálogo, ainda que a própria complexidade dos termos envolvidos nos
force a restringir a abordagem a apenas algumas considerações sobre os
cruzamentos entre criação e conhecimento.

Vimos anteriormente que a poesia não escapa de ser considerada


inútil por aqueles que só acreditam na validade da ciência para a
construção do conhecimento. Porém, já no século XIX, o romantismo
crítico havia expressado a importância da poesia como meio de revelação
de uma essência, relacionando-a ao transcendental. Vem da filosofia do
século XX a reação a leituras depreciativas do valor do poético, quando
filósofos como Heidegger, por exemplo, afirmaram o valor da poesia
como linguagem essencial, com um nível de abstração que suportaria
determinados processos cognitivos.

A poesia é a palavra por meio da qual o homem interroga a si


e ao mundo; a filosofia, por sua vez, sempre utilizou uma linguagem
carregada de metáforas. Ainda assim, teóricos como Mikel Dufrenne,
a esse respeito, são taxativos: “Certamente, a poesia não é filosofia:
não reflete sobre a linguagem, ela a produz; mas não a inventa; apenas
transfigura a linguagem comum” (1969, p. 48). Deleuze e Guattari, ao
responderem “o que é a filosofia?”, fazem uma distinção interessante.
Explicam-nos que a filosofia opera com conceitos, considerando que o
“conceito é um incorpóreo, ainda que se encarne ou se efective nos corpos.
64
[...] Diz o acontecimento, não a essência ou a coisa. É um acontecimento
puro, uma ecceidade, uma entidade. [...] é simultaneamente absoluto e
relativo [...] não tem referência: é autorreferencial, põe-se a si próprio
e põe o seu objecto, ao mesmo tempo que é criado” (1992, p. 25-26).
A arte, por sua vez, trabalha com “afectos e perceptos, um bloco de
sensações. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por
si próprios e excedem todo o vivido. (1992, p.144-145) [...] A obra de
arte é um ser de sensação, e nada mais: existe em si. E a ciência? Esta
não tem os conceitos por objecto, mas funções que se apresentam como
proposições em sistemas discursivos” (1992, p. 105-112). Mesmo que
haja dificuldade natural para a compreensão imediata dessas diferenças,
percebemos que um divisor entre essas áreas é a relação com a referência.
Nesse sentido, realmente a filosofia, embora diferente, aproxima-se da
poesia, quando ambas pensam a criação e o conhecimento no acontecer
da linguagem.

Entre os filósofos, lembremos necessariamente Heidegger,


principalmente o chamado “segundo Heidegger”, no domínio da
ontologia fundamental, o qual se aproximou bastante dos poetas,
construindo, por exemplo, em torno da palavra poética de Hölderlin,
sua reflexão sobre o ser, a essência da poesia e da linguagem. Muito já
se escreveu e se discutiu, a partir dos escritos heideggerianos, sobre a
poesia de Rilke e Hölderlin, este, aliás, considerado pelo filósofo o poeta
da essência da poesia, já que a poesia para o poeta alemão é a fundação
do ser na palavra, o que vem ao encontro do pensamento do filósofo que
considerava ser a linguagem a “sede do evento do ser”.

Já se passaram algumas décadas sobre a obra de Heidegger,


mas esta continua a ser um caminho percorrido por muitos filósofos,
inclusive o próprio Ricoeur. No entanto, aqui invoca-se sua presença
por ter compreendido a poesia como uma forma de conhecimento,
na medida em que a linguagem poética é uma “forma eminente da
experiência da própria realidade” (VATTIMO, 1989, p. 126). Discutindo
a noção de instrumento (o que se reduz ao mundo a que pertence),
Heidegger defende que a obra de arte não é instrumento, porque não
65
se submete aos limites da referência, criando ela própria seu sistema,
ou melhor, seu plano de referências. “Levantando-se em si mesma, a
obra abre um mundo e mantém-no numa permanência que domina”
(HEIDEGGER, 1999, p. 34).

Algumas opiniões contrárias a essas ideias consideram que a


valorização que o filósofo faz do poético é idealista e insatisfatória na
perspectiva da contemporaneidade, discussão que deixaremos de lado.
Importa-nos que Heidegger tenha trazido especialmente o poético para
os domínios da reflexão filosófica e defendido uma função de verdade
para a poesia.

Agora, é perguntar: que tipo de conhecimento a poesia possibilita?


Para responder, é necessário precisar a noção de conhecimento. Desde
Hegel e o domínio da razão como princípio fundamental, o homem
é fascinado pelo cientificismo e sua busca de verdade, o que seria o
caminho contrário à arte, palavra de ilusão. Entretanto, a verdade é
também um conceito relativo, e, se a ciência busca encontrá-la universal
e comprovável, a arte configura verdades particulares, sempre mutáveis.
De fato, a ação da obra de arte não muda o mundo físico e biológico;
no entanto, a obra de arte afeta a percepção humana, transformando
perspectivas e levando à compreensão diversa do mundo circundante.
“As invenções estéticas alargam directamente a consciência humana,
com novos modos de viver o universo, e não com novas interpretações
objectivas” (KUBLER, 1977, p. 95).

Nesse sentido, o conhecimento que a obra de arte possibilita é


o desenvolvimento de outra capacidade de experimentar e expressar o
mundo, contrastando experiências adquiridas. Ela não traz uma fórmula
que, aplicada, possa se dizer: eis a verdade!, mas formula esse espanto de
que falam os filósofos diante da vida e diz: eis uma verdade que só existe
aqui. A obra de arte, portanto, exige uma compreensão que diríamos,
com Bakhtin (1997, p. 382), dialógica, ou seja, frente à obra, o receptor
reage com o desejo de compreender, e isto se realiza quando ocorre uma

66
modificação e um enriquecimento recíproco; portanto, efetiva-se um
novo conhecimento.

Em relação à poesia, o conhecimento poderia estar simplesmente


no reconhecimento de informações veiculadas por elementos
referenciais; isto, se o poema fosse apenas cópia do real. Porém, o que os
filósofos e os poetas dizem é que o conhecimento que a poesia possibilita
é o conhecimento da própria linguagem no seu fazer-se, no seu
acontecer. Assim, discutir conhecimento na área do poético é discutir
a especificidade da linguagem da poesia e sua relação com o sujeito e
o mundo. Se aceitarmos as hipóteses formuladas por Manuel Gusmão
em três comunicações apresentadas no âmbito de um seminário que se
repetiu por três anos, com o tema “poesia da ciência, ciência da poesia”,
o poema talvez seja fonte de conhecimento por: a) mostrar a linguagem
como construção antropológica; b) mostrar o mundo de mundos em que
vivemos historicamente; c) conduzir o sujeito à interpelação de si (1991,
p. 209-212)46.

Gusmão fala de hipóteses e parece-nos que não podemos


realmente chegar a conclusões nesse campo de discussão. Mas cada
poema traz essas indagações e talvez seja a sua função cognitiva provocar
no leitor o desejo de questionar o real, o sujeito, a própria poesia.
Parece-nos que conhecimento e criação são indissociáveis, pois, quando
algo que não existia passa a estar presente, essa presença nos convoca a
participar de sua existência47, modificando-se nosso próprio modo de
estar no mundo. Portanto, a participação significa transformar a obra
de arte que contemplamos, ao mesmo tempo que nos transformamos
ao conhecê-la.

46. Esses textos foram posteriormente publicados em Tatuagem e palimpsesto: da poesia em alguns
poetas e poemas, 2010.

47. Bronowski, discorrendo sobre a relação entre pintura e conhecimento, escreve: “Chamei a esta
conferência ‘O acto de reconhecimento” porque, quando apreendemos o sentido da imagem e o
eco que em nós produz, reconhecemo-nos no artista, reconhecemo-nos identificados com a sua
criação e, reciprocamente, reconhecemos toda a raça humana dentro de nós próprios” (1983, p.
150).
67
A linguagem poética definiu-se como capacidade ou habilidade de
recriar o existente, de registrar ou assumir o desejo de deter sua passagem
e fragilidade, provando a liberdade da criação. Essa linguagem, tal como
a prática religiosa ou filosófica, permite o conhecimento antropológico
de que fala Gusmão, ou seja, através dela o homem examina sua
humanidade e põe em xeque a superação de limites e da perenidade
da matéria física. Através da poesia, esse conhecimento se processa, é
transmitido e vivenciado: conhecer o homem e o mundo, praticar o
permanente exercício de busca do abstrato, do incerto, do imaterial, do
que flui por entre nossas mãos carregadas de tempo. Escreve Fernando
Guimarães (1992, p. 62-63), ao indagar sobre a natureza do discurso
poético:

O pensamento analógico e simbólico, a sedução pelas formas


sensíveis e espirituais do imaginário, a revelação intuitiva do saber,
a confrontação com o próprio sistema da linguagem serão as
linhas fundamentais que permitem traçar o perfil do que a poesia é
essencialmente. Dir-se-ia que esse perfil traz consigo o segredo de não
pertencer a ninguém, sem que – importa notá-lo desde já – o espaço
que se forma a partir de tal ausência acabe por irrealizar a poesia. É
nesta ambiguidade que assenta um dos seus maiores poderes, o qual
muitos não lhe reconhecem: o de ser uma forma de conhecimento.
Tem este conhecimento uma característica especial, pois ele diz
respeito a uma realidade cuja configuração deriva do próprio acto
criativo do homem, se admitirmos que ao homem esse poder de
criação lhe é facultado pelo exercício de uma linguagem instauradora.
Esta deixa de ser um intermediário entre as coisas e o homem, o real
e o concebido, a matéria e a voz. Da palavra se serve o poeta para que
já não haja aquele hiato, aquela separação entre o que se nomeia e o
acto de nomear. Reside aqui, sem dúvida, a razão por que a imagem
desempenha um papel tão importante na poesia. Ela é o conhecido.
Por isso entendemos a poesia, na concretude dos poemas,
como um trabalho sobre a linguagem que se oferece e que não cessa
de ocorrer. Sob essa perspectiva, a importância da ação metafórica não
pode deixar de ser pensada. Seguimos as reflexões de Paul Ricoeur que
vêm, no âmbito da hermenêutica, tensionar a categorização da metáfora,
68
defendendo o seu teor cognitivo, já que produz sentido novo; é um ato
de predicação, que possibilita re-conhecer o mundo.

Carlos de Oliveira e Nuno Júdice interrogam-se sobre o lugar do


poema e, contemplando o próprio fazer poético, oferecem cada texto
como um gesto de reescrita do mundo ao qual o ato de leitura, com
liberdade, poderá se aliar, numa prática transformadora da linguagem,
o que se pode compreender como uma partilha de conhecimento por
meio da poesia. É assim que lemos, por exemplo, os versos a seguir,
respectivamente de Nuno Júdice e Carlos de Oliveira:
O bico do compasso, que
marca o centro que não se vê,
não canta como o bico
da ave que é o centro do canto que a ocupa. No
entanto, roda o compasso
como se o movessem
asas; e desenha, no papel,
o círculo que, no ar, a ave sugere. (MSR, p. 64)

Caem
do céu calcário,
acordam flores
milénios depois,
rolam de verso
em verso
fechadas
como gotas,
e ouve-se
ao fim
da página
um murmúrio
orvalhado. (O [M], p. 242)

69
POESIA PORTUGUESA DOS ANOS 1960 AOS ANOS
1990: UM ESBOÇO DE MAPA

“O poeta / [o cartógrafo?] / observa / as suas / ilhas caligráficas


/ cercadas / por um mar / sem marés, / arquipélago / a que falta
/ vento, / fauna, flora / e o hálito húmido / da espuma”
Carlos de Oliveira, Micropaisagem
Num estudo descritivo de qualquer matéria, é importante que
se estabeleçam balizas precisas a limitar a área analisada para melhor
controle dos fatos observados, mas é igualmente importante que o
analista tenha de seu objeto uma visão plena para que saiba fazer com
segurança as relações necessárias entre o particular e o geral. Não
é diferente quando se trata de estudos literários. Assim, para melhor
compreendermos os lugares ocupados pelas obras de Carlos de Oliveira
e de Nuno Júdice, consideramos ser de valia traçar um esboço de mapa,
algumas rotas no território extenso da poesia portuguesa das décadas
de 1960 a 1990, ressaltando aí, pelo cruzamento de determinadas linhas,
alguns espaços onde os poetas podem se encontrar.

Antes, porém, de avaliarmos a década de 1960, é necessário que


lancemos um olhar para os 20 anos anteriores, pois neles ocorreram
fatos significativos para a constituição da poesia mais recente. Um é
o surgimento e domínio do Neorrealismo, exigindo a arte combativa
e compromissada com o real histórico, o que fomentou, nas letras
portuguesas, uma polêmica intensa sobre a função da arte e a
responsabilidade do artista. O projeto neorrealista começou a definir-se
nos últimos anos da década de 1930, com a divulgação de ideias, artigos
e debates principalmente por meio de O Diabo, Semanário de Crítica
Literária e Artística, que acabou tornando-se “um dos porta-vozes desta
corrente literária” (PIRES, 1986, p. 131). Em 1941, foi lançada uma
coleção de obras neorrealistas, intitulada Novo Cancioneiro, na qual
Carlos de Oliveira publicou seu primeiro livro de poesia (Turismo);
outros autores que publicaram pela coleção foram Fernando Namora,

70
Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó,
Manuel da Fonseca, Sidónio Muralha, Francisco José Tenreiro e Políbio
Gomes dos Santos.

Sabemos da grande polêmica que houve, e ainda persiste em


parte, em torno do Neorrealismo em Portugal, questão que deixamos
de lado, mas concordamos com alguma crítica que afirma estar ainda
por se fazer uma avaliação total, isenta, dos caminhos trilhados pelos
neorrealistas e suas consequências na cultura portuguesa, ainda que
já tenhamos alguns importantes e alentados estudos na área, como O
discurso ideológico do Neorrealismo português, de Carlos Reis.

Embora de forma aproximativa, uma questão importante se


afirma em meio às muitas discussões provocadas pelo Neorrealismo:
a relação complexa entre a arte e o real, entre a linguagem literária e a
linguagem referencial, questão que ecoará por muita poesia portuguesa
não “neorrealista” produzida a partir da década seguinte. Fora isso,
Gastão Cruz, por exemplo, sublinha a importância do Neorrealismo
para a evolução da poesia portuguesa, destacando que os poetas
neorrealistas (e registra a inadequação do rótulo) “prosseguiram um
trabalho de revitalização do discurso poético português, quer por
via de um intimismo ao arrepio do confessionalismo exibicionista e
estridente, quer pela recuperação da densidade de uma tradição lírica,
no que convergem, aliás, poetas estranhos ao movimento como Sophia
de Mello Breyner e Eugénio de Andrade” (1988, p. 86).

Outro fato marcante da década de 1940 foi a constituição, em


Lisboa, do Grupo Surrealista Português (1947) e, depois, do Grupo
Surrealista Dissidente (1949). Formalmente, eles duraram pouco, o que
até fez a crítica considerar que não houve um “movimento” surrealista
em Portugal, e sim uma “movimentação” tardia e fugaz48. Entre os
participantes, figuravam nomes como os de António Pedro, Mário-

48. A respeito, leia-se “Surrealismo: do ‘cadáver-esquisito’ ao gato resplendente andando pela noite”,
de Hermínio Monteiro, publicado em A Phala, p. 91-99.
71
Henrique Leiria, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill,
Pedro Oom e António Maria Lisboa. Já em meados dos anos 193049,
porém, circulava em Portugal (Lisboa, principalmente) dados sobre o
movimento surrealista francês, e Jorge de Sena, em 1942, cita André
Breton e René Char em epígrafes de seu livro de poesia Perseguição.

Embora alguma crítica tenha desconsiderado a importância


do Surrealismo português, atualmente, cada vez mais, não podemos
nos contentar com tal leitura, ignorando as consequências dessa
“movimentação”50. Ao se contrapor ao discurso neorrealista, a arte
surrealista reagia ao marxismo alheio à revolução na linguagem,
embora também fosse uma reação ao salazarismo tradicionalista. A
ação surrealista discutia, portanto, a especificidade do trabalho artístico
e a necessidade de uma vanguarda que realmente viesse a transformar
a cultura portuguesa. Se é certo que realmente não constituiu, em
Portugal, um “movimento” com duração e organização interna ou um
conjunto notável de artistas, o Surrealismo marcou indelevelmente a
poesia portuguesa ao optar por outro tipo de trabalho imagético, pelo
tom dessacralizador e diferente organização dos elementos poéticos, seja
no nível da linguagem, seja no nível da própria relação do poema com o
mundo, tornando “inactual, arcaico, fóssil um mundo de formas que era
a forma mesma do interior viver nacional. [...] O que o Surrealismo [...]
contribuiu para extirpar foi a onipotência da percepção “realista”, nas
letras e na cultura [...]” (MARINHO, 1987, p. 98). As obras de Cesariny
e O’Neill representam muito bem essa contribuição que vai chegar a

49. Jorge de Sena informa que a primeira referência ao Surrealismo feita em Portugal é de 1925.
Leia-se artigo “A primeira referência ao Surrealismo feita em Portugal” (1988, p. 233-238). Nesse
livro (Estudos de literatura portuguesa), também se encontram outros artigos sobre o Surrealismo
português.

50. Para estudo particular do Surrealismo português, consulte-se MARINHO, 1987.


72
poetas novos dos anos 1960, como Herberto Helder e Luiza Neto Jorge51,
sem contar a permanência de alguns traços nas poéticas que vão sendo
publicadas nas décadas de 1970, 1980 e 1990. A própria escrita de Nuno
Júdice, principalmente em sua primeira fase, mostra essa permanência
no trabalho imagético realizado e na relação entre escrita, imaginário
e fingimento, trazendo para a folha em branco uma construção verbal
bastante provocadora, pela desconstrução discursiva, pela ironia e pela
valorização da potencialidade significativa das palavras.

Além disso, é preciso lembrar que foi na década de 1940 o início


(1942) da publicação, pela Ática, das Obras completas de Fernando Pessoa,
o que possibilitou sua maior divulgação e consequente participação nas
profundas transformações da escrita poética portuguesa a partir de
1950. Eduardo Lourenço escreveu que
A irrupção da poesia de Pessoa não constituiu apenas uma revelação
de mais um grande poeta. Traçou pela sua simples existência o
quadro dentro do qual se desenvolve a dialéctica mesma da nossa
Modernidade. O grau de consciência poética que representa situou
toda a aventura poética sua contemporânea e posterior e re-situa como
sempre acontece a própria aventura passada. Não é possível escrever
poesia como se a sua experiência não tivesse tido lugar (s.d., p. 190).
A presença da obra pessoana ao longo das décadas de 1940 e 1950
significou a abertura de novas trilhas para a poesia desse momento, e
podemos dizer que a partir daí a escrita de Pessoa será, para os novos
poetas, um espaço de confronto, de conhecimento e de desafio. António
Ramos Rosa, refletindo sobre isso, diz que a influência pessoana “é

51. Sobre os dois poetas, escreve Manuel Gusmão (1997, p. 194-195): “embora muito diferentes
entre si, a obra de cada um pode ser lida como transportando a energia verbal e modos de um
visionarismo de linhagem romântica que o surrealismo ecoa. Entretanto, se Herberto Helder
prolonga essa linguagem e a exacerba de forma violenta, na construção de uma imaginação
radical, fulgurantemente concentrada sobre si própria, Luiza Neto Jorge vai em parte receber do
surrealismo não só o regime da imagem surpreendente e o empenhamento vital da poesia, mas
também o jogo de palavras, uma dimensão irónica e por vezes desabridamente satírica, pela qual
inscreve nos poemas a sua insurrecta experiência do seu tempo histórico. [...] no primeiro se lê na
constelação ou na coesão expansiva das imagens, e na segunda se marca sobretudo na silabação
prosódica, na elipse, na segmentação dos versos e na torção da sintaxe”.
73
exercida ao nível da linguagem poética. E é sempre o heterónimo Álvaro
de Campos que exerce maior atracção, particularmente nas gerações
de 40 a 60” (1991, p. 40). Há ainda que se considerar, diz Rosa, o seu
discurso conceptual que encontraremos, por exemplo, em Jorge de Sena,
Ruy Belo e, depois, em Nuno Júdice, a abertura discursiva, presente
em toda a poesia contemporânea, o radical individualismo pessoano,
que se mesclará com a atenção social nos poetas de 1950 e 1960 e,
principalmente, a consciência dos processos de criação poética, que
contribuirá para a dominância da poesia autorreferencial no contexto
das poéticas de fins de 1950, 1960 e 1970.

Ainda nos anos 1940, começam a circular traduções feitas por


Paulo Quintela da poesia de Hölderlin e de Rilke, poetas exemplares para
uma “mitologia do poético” que será bastante considerada pelos jovens
que começam a publicar nessa década, como Eugénio de Andrade,
Carlos de Oliveira, Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, e
continuará em poetas dos anos 1950, influenciando uma escrita poética
ontológica, com primazia da palavra, tratando a linguagem como
essência do humano – direção que podemos recuperar tanto na poesia
de Carlos de Oliveira como na de Nuno Júdice.

Os textos críticos de muitas das revistas, semanários e jornais


literários publicados na década seguinte52, alguns de curta duração,
por dificuldades censórias e financeiras, apontam e requisitam mesmo
a confluência das diferentes propostas literárias e a impossibilidade de
definir-se um caminho único. São também veículos de divulgação de
novos poetas, obras, traduções, e vão fazendo a avaliação da modernidade
estética portuguesa. Entre essas publicações, avulta a importância de
Cadernos de Poesia, “publicação literária em fascículos”, com três séries
– 1940-1942 (cinco fascículos antológicos), maio a dezembro de 1951
(sete fascículos) e 1952-1953 (três fascículos) – e organização de Tomaz
Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti (depois, participou também

52. Conforme dados recolhidos em PIRES, 1986, p. 33, na década de 1950 houve um total de 33
revistas; na década de 1940, 29; na década de 1960, 20; na década de 1970, 29; e, nos anos 1980, 36.
74
Jorge de Sena); Árvore, Folhas de Poesia – número 1 de outono de 1951,
número 2 de inverno de 1951/1952, número 3 de primavera de 1952 e
número 4 de 1953 –, com corpo diretivo constituído por António Luís
Moita, António Ramos Rosa, José Terra, Luís Amaro, Raul Carvalho e,
no último número, Egito Gonçalves; e Távola Redonda (1950 a 1954,
20 números), com direção de David Mourão-Ferreira, António Manuel
Couto Viana e Luís de Macedo. A primeira defendia que “A poesia é
só uma”, porque “os Cadernos nunca representaram um grupo literário
nem sequer uma associação de poetas. Representaram, sim, e pretendem
representar uma atitude de lucidez, compreensão e independência”; a
segunda defendia a ideia de que “A poesia é um diálogo com o universo”
e “a superior necessidade da poesia tanto no plano da criação como no da
demanda social”; e a terceira considerava-se uma “publicação de poetas
novos, a quem se não pede livrete de nenhum partido nem atestado de
nenhuma escola. Em suma, “ao serviço da poesia, e nunca poesia ao
serviço de...” (PIRES, p.71, 96 e 290), procurando valorizar a tradição
do lirismo. Essas revistas, portanto, refletem a diversidade de trajetos
poéticos, incentivam os novos poetas e defendem a autonomia da
poesia. No caso de Árvore, há que se notar em suas páginas a confluência
da escrita neorrealista com a escrita surrealista, encontro que, afinal,
caracteriza o perfil dessa década, um tempo de entrecruzamento
estético como estratégia necessária para garantir a ação da poesia numa
sociedade cerceada e silenciada.

É nesse contexto53 que vão se afirmar as obras de alguns poetas


(que haviam começado a publicar nos anos 1940) cuja escrita é marcante
pela individualidade temática, como os já referidos Jorge de Sena,
Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen e António
Ramos Rosa. E cada um deles, por caminhos diferentes, se tornará uma
figura exemplar para os novos poetas de 1960 em diante.

53. Para conhecimento detalhado da produção dos anos 1950, é indispensável a leitura de
MARTINHO, 1996.
75
Já é ideia comum dizer que o discurso poético português, a
partir da década de 1960, dando continuidade a determinadas linhas de
interesse dos poetas de 1950, assumiu com intensidade a reflexão crítica
sobre sua própria produção, com a intensificação da metapoesia. Sobre
isso, escreveu Gastão Cruz:
Existe uma acentuada convergência de quase todos os principais
poetas em actividade nos finais da década de 50 e durante toda
a década de 60, tanto da nova geração como das imediatamente
anteriores, no sentido de explorar, com maior ou menor radicalismo, é
claro, as potencialidades da palavra poética, segundo a linha defendida,
como vimos, por Ruy Belo: “Só o poeta se fica na linguagem”. Não é
por acaso que vários poetas escrevem, então, poemas sobre o poema
ou sobre a palavras, de Eugénio de Andrade, Carlos de Oliveira,
António Ramos Rosa, a Herberto Helder, Ruy Belo, Fiama Hasse P.
Brandão, Luiza Neto Jorge. É um fenómeno novo esta proliferação de
“artes poéticas”, que apontam para o conceito de poesia como criação
verbal e da linguagem poética como um fim em si. A mensagem do
poema será, portanto, a sua própria linguagem (1999, p. 123-124).
Nesse período de mudanças cruciais para a nova configuração
da sociedade ocidental, com diferentes relações sociais, econômicas e
políticas, a poesia, na paisagem cultural portuguesa de enfrentamento
do salazarismo (cada vez mais contestado pela manutenção de um
projeto colonialista em fracasso), responde com a vontade de partilhar
as transformações estéticas mundiais e contribuir para repensar, em
Portugal, as relações de opressão nos diversos níveis da sociedade,
acentuando a discussão sobre linguagem poética e comunicação,
linguagem poética e sociedade, depuração discursiva e consciência
formal. Assim, não só se definem as propostas do Experimentalismo
(a publicação coletiva Poesia Experimental I54, que contou com dois
números, se deu em Lisboa, em 1964 e 1966) em diálogo explícito com

54. Em Poesia Experimental I, colaboraram Herberto Helder, António Aragão, António


Barahona da Fonseca, Salette Tavares e E. M. de Melo e Castro. “Nesse Caderno I predominam
as experiências sintáticas e semânticas, enquanto no Caderno II, com vasta colaboração de poetas
novos portugueses e de autores da vanguarda internacional, predominam as experiências visuais e
gráficas” (apud MELO E CASTRO, 1993, p. 57).
76
o Concretismo brasileiro e com o desenvolvimento de pesquisas sobre
a linguagem e a criação poética, considerando-se a importância que
tomou a visualidade do signo na realidade urbana dos anos 1960, como
se radicaliza, com os poetas de Poesia 61 (Fiama Hasse Pais Brandão,
Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito)
uma linguagem da brevidade e de tensão social e política, em torno
do corpo mutilado, do silêncio, da morte e também do corpo vivo,
erotismo e linguagem55, o que levará num crescendo à quebra da frase,
à renúncia da discursividade, à especialização do diálogo, ou seja, ao
estabelecimento de alguns protocolos de leitura para melhor apreensão
do poema, mesmo sob o risco de hermetismo para o leitor não iniciado.
Expresso o sono de regressos torres
destruídas na base
pausas
submetido ao semblante ao corpo ao tempo
de passagens aranhas aviões
e a morte
o planeta
expresso o tempo de reflexos falsos
a mágoa de contactos passageiros
de pactos de ruídos e de assaltos56
Nesse momento há uma intensa preocupação com os processos
estruturais do texto poético, decorrente, também, do desenvolvimento
dos estudos de linguística no âmbito universitário, de onde, aliás,
originam-se os novos poetas. É nos anos 1960 que ocorre a maior
divulgação crítica da linguística saussureana e das ideias dos formalistas
russos sobre a constituição do texto literário. Por outro lado, na
sociedade em geral desenvolve-se uma produção visual mais intensa de
informação e de cultura, em decorrência do surgimento da televisão e
sua gradual presença e “domínio” nos lares, da abertura de mais salas

55. Sobre Poesia 61, cf. SILVEIRA, 1986.

56. Versos retirados do livro Hematoma, de Gastão Cruz, de 1961. Apud SILVEIRA, 1986, p.138.
77
de cinema e do desenvolvimento do mercado consumidor com maior
apelo publicitário a se utilizar da imagem e da brevidade textual. Essa
expansão da visualidade no cotidiano levará a literatura a experiências
com o significante, transformando-se a relação entre escrita e espaço,
como ocorreu com o Concretismo brasileiro e, nas suas pegadas, o
Experimentalismo português. No entanto, também logo se chegará a
um impasse: a destruição da frase isola a palavra e o seu sentido; mas
a fragmentação do significante, gerando apenas letras no espaço em
branco da folha ou o jogo gráfico, o poema-objeto, acaba por anular ou
dificultar a comunicação, a partilha da linguagem. É o que ocorre, por
exemplo, com a narrativa visual O escritor, de Ana Hatherly, sobre o
qual, aliás, a autora diz ser “um texto-não-texto”57.

O fundamental a destacar no conjunto desse momento é a


formulação de uma prática poética (Poesia 6158) e de uma pesquisa
estética (Experimentalismo) voltadas para um rigor formal (não
formalista) que busca desautomatizar a linguagem e extrair das palavras
uma depuração semântica e comunicativa. Ana Hatherly, em seu
livro O espaço crítico – do simbolismo à vanguarda (1979), escrevendo
sobre a experiência crítica da poesia, chama a atenção para o caráter
de vanguarda da Poesia Experimental, a forte formação teórico-crítica
dos experimentalistas e a contribuição para universalizar a cultura
portuguesa. De outro lado, a Poesia 61 tem em Gastão Cruz, Fiama
Hasse Pais Brandão e Luíza Neto Jorge vozes das mais importantes para
os novos caminhos da poesia portuguesa de 1960 e 1970, e uma atenção
crítica à linguagem e ao compromisso do poético com o mundo que
vem do contato prolongado com o poeta Carlos de Oliveira, a quem,
aliás, como já referimos, Gastão Cruz chama de “mestre”.

57. A propósito, leia-se artigo em que a autora explica a estrutura de O escritor (HATHERLY, 1979,
p. 107-112).

58. Não se trata da nomeação de um movimento, mas de uma publicação conjunta de cinco jovens
poetas: Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge e Casimiro
de Brito.
78
Do ponto de vista crítico da história das ideias, a década de 1960 foi
um tempo-limite (cf. HUTCHEON, 1991, p. 25), “fim da modernidade”,
dizem alguns, e a crítica literária portuguesa aponta também no ano de
1961 o aparecimento de autores novos que vão mudar os caminhos da
produção poética contemporânea59. Nesse ano, Herberto Helder60 publica
sua primeira recolha, A colher na boca, incluindo o poema “O amor em
visita”, e Ruy Belo publica seu primeiro livro de poesia, Aquele grande
rio Eufrates. Essas publicações significarão para os olhos vindouros a
concretização de práticas poéticas que já se tinham anunciado em 1950:
uma linguagem poética do cotidiano, assumindo a discursividade em
tom prosaico, pondo em debate a aura poética, mas rigorosa em domínio
do verso, como se constata em Ruy Belo; de outro lado, explorando a
liberdade imagética, redefinindo o jogo com a metáfora, descentrando a
linguagem e os sentidos instituídos, retornando a uma magia do verbo
num eco bem prolongado e transformado da escrita surrealista, como
nos mostra Herberto Helder.

Nos anos 1960, não mais se registra a formação de grupos literários


(reforcemos que Poesia 61 não era um movimento com manifestos,
mas uma publicação conjunta de plaquetes de cinco poetas), não há a
importância crítica de uma determinada revista literária, divulgando
um ideário estético, não há lançamento de manifestos nem a defesa
pública, acadêmica ou artística, de uma teoria de “poesia pós-60”. Havia,
sim, uma diversidade poética a qual, como avaliou com Gastão Cruz,
será fecunda para os novos caminhos da poesia portuguesa da década
de 1970. Citemos:

59. Manuel Gusmão utiliza uma interessante expressão para reunir as diversas individualidades
poéticas que surgem e se destacam nos anos 1960, contribuindo para um outro contorno da poesia
portuguesa contemporânea: tempo constelado. Realmente, a década de 1960, principalmente em
seu início, é um momento altamente importante para a compreensão do que vai tornar-se a poesia
portuguesa a partir de 1970. A diversidade de trabalhos é muito forte, assim como a qualidade
particular de cada um. É um “tempo constelado”, sem dúvida. Cf. GUSMÃO, 1997, p. 189-198.

60. Para maior precisão, registre-se que Herberto Helder publicou pela primeira vez em 1958;
tratava-se de um folheto com o longo poema “O amor em visita”.
79
A fisionomia da poesia portuguesa apresenta, nos primeiros anos da
década de 60, uma diversificação, ou mesmo uma sobreposição, de
tendências que deve ser assinalada. No ano de 1961 temos, por um
lado, a poesia altamente retórica e barroca de Herberto Helder, com
A colher na boca, e a poesia de propensão narrativa e descritiva de
Ruy Belo em Aquele grande rio Eufrates, modalidades da tradição
discursiva referida, que se prolongará até 1963, pelo menos, num
livro como Metamorfoses de Jorge de Sena, e, por outro lado, a radical
contestação, particularmente visível na colaboração de Maria Teresa
Horta em Poesia 61, dessa mesma linha evolutiva – e sensível também,
embora mais atenuadamente, em outras obras de 1960 e de 1961, como
Cantata de Carlos de Oliveira, Voz inicial de António Ramos Rosa e
Mar de setembro de Eugénio de Andrade (1999, p. 159).
A partir dos anos 1960, em direção às décadas de 1970 a 1990, não
podemos mais ignorar que falar de poesia é falar de individualidades,
de obras singulares com algumas perplexidades comuns frente à ação
poética, frente a uma história partilhada, portuguesa e ocidental.
Nesse tempo, a arte instituiu de forma mais determinante práticas
desconstrutoras dos discursos oficiais, corroendo mais intensamente
as relações com as instituições sociais, como facilmente se comprova
com os movimentos contraculturais e antimodernistas mundo afora, ou
seja, uma reação à própria modernidade, vista agora como mais um elo
da tradição, um espaço já “clássico” para o olhar de 199061. Negam-se
também os projetos da história moderna, rejeitando-se “a crença ‘no
progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento racional de
ordens sociais ideais’ sob condições padronizadas de conhecimento e de
produção” (HARVEY, 1992, p. 42), o que irá constituir o discurso pós-
modernista a partir da década de 1970, com todas as suas ambiguidades
e indefinições categoriais.

61. Fernando Pinto do Amaral, em encontro com escritores portugueses realizado em 22 de abril
de 1999, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em conversa informal
com o auditório, comentou que, em Portugal, estava saindo uma publicação em série de autores
portugueses sob a rubrica de Literatura Clássica Portuguesa. Estavam ali não só os clássicos
(séculos XVI-XVII), como poetas das décadas de 1940, 1950 e 1960.
80
Joaquim Manuel Magalhães, poeta, crítico, professor, com leitura
reflexiva constante da poesia mais recente, assim como Gastão Cruz o
fez em relação à poesia das décadas de 1960 e 1970, fala de uma “geração
dessatisfeita, [...] culturalmente, nenhum lado faz sentido, ou fez um
sentido novo. Politicamente, nada esteve interessado na criação cultural
fosse do que fosse, cobrando uma nova geração de poetas para quem o
futuro se chame a denúncia deste presente” (1981, p. 368). Talvez, como
é comum nas considerações desse crítico, o tom pessimista e radical
nas generalizações venha pela descrença em soluções de problemas
crônicos da sociedade portuguesa, mas sua voz é fundamental porque,
através dela, temos a avaliação de uma época, o final do século XX, que
chegou e partiu em crise.

A década de 1970, em Portugal, será o momento de repensar


o legado de sua modernidade, de reavaliar, sob outros pressupostos,
a sua tradição lírica e a sua tradição cultural, não para a escolha de
paradigmas, mas para a compreensão e debate do lugar da arte num
tempo marcadamente em crise de valores e de certezas, com destacáveis
momentos de impasses sociais, políticos, econômicos e culturais.
Daí a possibilidade de se dizer que é também uma poética da pós-
modernidade. Nessa década ocorre a Revolução dos Cravos, que liberta
o país do atraso e aprisionamento salazaristas, mas trará em seu bojo
a discussão, agora livre, de velhas questões portuguesas: a identidade
cultural de Portugal, a inserção do país na Europa, a relação de Portugal
com as ex-colônias, o redimensionamento da própria sociedade
portuguesa e o lugar nela ocupado pelos artistas e intelectuais62.

No início da década de 1970, temos a estreia de novos poetas


que, hoje, já constituem nomes reconhecidos pela crítica, com obras
indispensáveis no panorama da poesia portuguesa mais recente. Muitos
concordam com Fernando J. B. Martinho, quando ele diz que “no
princípio da década de 70 começa a definir-se uma nova sensibilidade na

62. Sobre isso, é proveitosa a leitura de “Configurações do campo intelectual português no pós-25
de abril – o campo literário” (RIBEIRO, 1993).
81
poesia portuguesa” (apud AMARAL, 1991, p. 49). Começam a publicar
João Miguel Fernandes Jorge (Sob sobre voz, 1971), Nuno Júdice (A
noção de poema, 1972), Joaquim Manuel Magalhães (Consequências
do lugar, 1974), António Franco Alexandre (Sem palavras nem coisas,
1974, embora já tivesse publicado um livro em 1969, A distância,
desconsiderado pelo autor), Al Berto (À procura do vento num jardim
d’agosto, 1977), Helder Moura Pereira (Cartucho63, em colaboração,
1976, Entre o deserto e a vertigem, 1979) e Luís Miguel Nava (Películas,
1979). A esses poderíamos juntar mais nomes que estão referenciados no
estudo de Fernando Pinto do Amaral, O mosaico fluido – modernidade e
pós-modernidade na poesia portuguesa mais recente. Nele, o autor arrola
como alguns traços comuns64 para esse tempo: a) a falência de uma
literatura representativa da realidade, a consciência de crise da mímesis;
b) um resgate da linguagem e do sentido; c) o caráter vincadamente
lírico; d) uma persistente melancolia, gerando uma escrita da ausência.

O contato direto com as obras poéticas desses autores nos mostra


escritas que reagem ao antidiscursivismo, continuando o caminho
aberto por um Ruy Belo e o seu gosto da frase, do narrativo, do poema
mais longo, num jogo de memórias e histórias, mas também uma
atenção à construção do poema, à contenção do sentido, renovando a
relação com a referencialidade em poesia. Um exemplo apenas, de João
Miguel Fernandes Jorge:
Tenho vinte e muitos anos estou a meio da minha vida
e nada sei sobre o Guadalquivir.
Nada sei das inundações arruinando searas
dos seus rápidos do infindável tráfego
que vai remando para jusante.

63. Cartucho foi uma publicação-objeto, isto é, os poemas ficavam enrolados e amarrotados no
interior de um cartucho que se abria desatando-se um cordel. Os poemas eram da autoria de
António Franco Alexandre, Helder Moura Pereira, João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel
Magalhães. Hoje, é uma edição rara em alfarrabistas portugueses. Ver imagem em https://in-
libris.com/products/cartucho?variant=24732670021
64. Leia-se em AMARAL, 1991, p. 49-52.
82
Histórico traiçoeiro rio
(será do Guadalquivir que falo?) muito dele tenho a aprender.
Uma manhã acordei sob estreita mão no meu ombro.
Que me queres? Queria conversar.
Que espécie de vida levas? Faço o que tenho a fazer.
Então fala-me do Guadalquivir.

Olhei apenas para as águas do rio (porque


me sentia tão só assim o cão de Francis Bacon
entre uma esquadria vermelha).
Tenho muitos muitos anos e nunca estarei a meio da minha vida.
(1982, p. 53)
Eduardo Prado Coelho nota que “esta geração dos anos 70 escreve
com/contra Herberto Helder” (1988, p. 128), embora reconheça graus
diferentes para essa aproximação entre os poetas novos. Mas, realmente,
a magia da palavra de Herberto Helder motivou em alguns desses
poetas um corpo a corpo com a escrita em busca de um lugar outro
na poesia portuguesa pós-60, enfrentando a metáfora com “fragmentos
de um real inacessível a qualquer projecto de totalização” (COELHO,
1988, p. 131). Com outra perspectiva, Nuno Júdice, escrevendo sobre
a produção poética de 1970, fala de uma “linguagem desinibida”, da
“urbanização” dessa poesia, abrindo-se para a marginalidade, a cultura
pop e o rock (Cf. JÚDICE, 1997, p. 93-96) em alguns momentos; em
outros, restaurando a “dignidade do retórico e do discurso, não se
confundindo essa recuperação porém com qualquer forma de regresso
ao romantismo” (JÚDICE, 1997, p. 83.).

Agora, falar das décadas de 1980 e 1990 significaria continuar a


falar dos poetas de 1970 e dos rumos que tomaram suas obras. Sem
dúvida, outros nomes surgiram, principalmente uma produção feminina
de ruptura, como a de Fátima Maldonado, Adília Lopes, Ana Luísa
Amaral, Rosa Alice Branco e Inês Lourenço. De qualquer forma, é de
salientar a escrita tensa de uma cultura ocidental que se examina no texto
literário, confrontando-se com a própria cultura em língua portuguesa,
83
a consciência da temporalidade e o desencontro na história. Há um tom
melancólico, ainda, pela descrença de futuro, pela impossibilidade de
utopias desse fim de século, um realismo do cotidiano, a abertura para a
diferença principalmente em relação à escrita homoerótica (Luís Miguel
Nava e Al Berto, por exemplo), um “culto do negativo”, em expressão de
Manuel Frias Martins em 10 anos de poesia em Portugal (1974-1984):
leitura de uma década.

Realmente, há muita diversidade e muitas obras em processo;


portanto, o mapa dessa poesia mais recente só pode ser delineado com
traço leve. É preciso que, progressivamente, se vá estudando a obra
de cada poeta, para que, pelo contraste, se especifiquem, além das
diferenças, lugares de encontro.

Linhas que se encontram na linguagem poética


“Em que limites começa o meu limite?
Entre que marcos de fronteira alguma se marcam
os extremos por onde passo ou não passo?”
Nuno Júdice, A fonte da vida
O mapa que esboçamos anteriormente pretendeu indicar
a diversidade de caminhos que recortam o “território” da poesia
portuguesa contemporânea dos últimos 40 anos do século XX. Cada
poeta situou-se nesse panorama pelas relações entretecidas com outros
poetas e suas obras. Assim, ao nos aproximarmos de um, estamos, na
verdade, aproximando-nos de mais poetas que estavam em diálogo
frente a seu tempo e à literatura. Quando falamos de “diálogo”, isto
não significa a busca apenas de semelhanças, o que tornaria a conversa
mais fácil, porém menos interessante. É muitas vezes pelas diferenças
que os poetas falam mais e melhor de sua escrita, e reconhecer isso já é
caminhar por esse território vasto sem perder o rumo.

Vimos anteriormente que em cada década verificou-se uma


contribuição determinante para a continuidade da forte presença da

84
poesia no contexto da cultura portuguesa. Há entre os poetas mais
velhos e os mais novos uma rede complexa de encontros e desencontros
que, afinal, caracteriza a diversidade do poético na segunda metade do
século XX. Por isso, a poesia de 1960 a 1990 não pode ser adjetivada na
univocidade de uma prática, mas é possível traçar aqui algumas linhas
comuns que reúnem, por vezes, os poetas mais diversos.

Ao considerarmos os anos 1960, percebemos que ocorreu nesse


período um balanço da situação da poesia portuguesa do século XX.
Usamos a expressão “tempo-limite” e, realmente, essa produção
poética65 é um marco em relação ao que já havia sido feito e um aviso
ao futuro que se construía. Na escrita da Poesia 61 e, depois, nas obras
fortes de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge,
nas construções visuais e críticas da PO-EX, nas presenças reveladoras
de Herberto Helder e Ruy Belo, na transformação calculada da obra
de Carlos de Oliveira, na continuidade de produção de poetas como
Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen
e António Ramos Rosa, está um tempo verdadeiramente inovador da
poesia portuguesa contemporânea. Nele, afinal, se radicaliza o corpo a
corpo com a linguagem e se confronta o sujeito com a escrita e o mundo.
A poesia dos anos 1970, 1980 e 1990 nasce nesse momento, exercitando
ou reagindo a determinadas opções que se instituíram: a poética do ser,
a narratividade e o intenso e crítico dialogismo.

Como poética do ser entendemos, no âmbito dessa produção,


uma escrita das percepções do indivíduo contemporâneo e urbano que
está no mundo, pertence a uma cultura e sofre cotidianamente os efeitos
de um sociedade tecnológica e globalizada, com alterações irreversíveis

65. Lembremos mais algumas datas e obras: em 1961, Vitorino Nemésio publica Poesia (1935-
1940), Jorge de Sena, Poesia I, Eugénio de Andrade, a antologia Mar de Setembro; em 1962, Carlos
de Oliveira publica Poesias (já em processo de reescrita), e António Ramos Rosa, um volume de
crítica intitulado Poesia, liberdade livre; em 1963, são publicados Metamorfoses, de Jorge de Sena, e
Os passos em volta, de Herberto Helder; em 1966, Arte de música, de Jorge de Sena; em 1968, Sobre
o lado esquerdo e Micropaisagem, de Carlos de Oliveira; em 1969, Peregrinatio ad loca infecta, de
Jorge de Sena, e Dezanove recantos, de Luiza Neto Jorge.
85
na vivência do tempo e do espaço. Numa época dita pós-moderna, o
ser acaba por se tornar uma impossibilidade, mas a negação do ser é
ainda uma forma de dizer a sua existência, mesmo que fragmentada.
Discutem-se, portanto, a noção de sujeito, a transformação da
emotividade, a despersonalização e a identidade. Como narratividade,
entendemos a motivação desses poetas para permanecer no discurso,
contando histórias não apenas do cotidiano individual (ainda que
fingido), mas desse tempo finissecular tão marcado por perdas, por
mal-estar, por crises e ausências; um tempo de melancolia – sentimento,
aliás, que Fernando Pinto do Amaral (Na órbita de Saturno, 1982) e João
Barrento (A palavra transversal, 1996) julgam ser dominante nos poetas
de 1970 a 1990. O gosto da frase, o poema longo com dicção prosaica e
o tom narrativo constante falam do desejo de reformulação da própria
poesia para sobreviver num mundo sem euforia. Como dialogismo,
claramente reportando-nos à intertextualidade, interessa-nos discutir a
importância crítica que essa poesia dá à citação, à paródia, à alusão e
outros processos de cruzamentos textuais, numa rigorosa avaliação dos
limites da cultura num tempo de massificação e indiferenciação.

Do nosso ponto de vista, essas são as principais linhas em que se


encontram os poetas portugueses contemporâneos.

Em direção ao sujeito
“Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de
longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama,
sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando
grito por fim “eis uma cara nova”, penso logo “afinal, eras tu”.
Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo,
recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de
estátuas muito antigas, petrificado no papel.”
Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo
Luiz Costa Lima, em O controle do imaginário (1984), evidencia
que “ao colapso da época clássica, fundada no princípio da semelhança
entre a ordem humana e a ordem natural, correspondeu um novo surto
86
de interesse pela subjetividade” (p. 110). Perdida a ideia de totalidade, o
sujeito tornou-se um núcleo aglutinador da dispersão, o que lhe deu no
Romantismo uma importância por vezes desmedida. O mundo se reflete
num eu carregado de emotividade a construir uma imagem heroicizante
ou, no mínimo, idealista de sua presença na realidade.

Ora, a crise do final do século XIX e princípio do XX atinge também


o sujeito, atacando sua pseudounidade. Em Portugal, a obra pessoana
demonstra plenamente essa fragmentação do sujeito, a impossibilidade
de unidade, por meio dessa ficção que é a heteronímia. A escrita de
Pessoa definitivamente pôs “em suspeita” o sujeito e a emotividade,
instituindo na poética portuguesa uma mudança irreversível: do sujeito
como causa do texto ao sujeito como efeito do texto. A divulgação da
obra pessoana na década de 1940 pôs às claras esse jogo de uma “poética
do fingimento” e a relatividade do eu que se afirma no poema.
Pessoa vai colocar as pessoas, ou personae, poéticas, na cena da
linguagem do Eu, jogando um fingimento cujo drama – real – se
resume no facto da sua inteira, única e final realidade: mas a realidade
indicível, tão proibida como o incesto, que é essa da autenticidade do
ser literário, mais absoluta e profunda do que a do ser real com todos
os seus sentimentos, emoções, dores, alegrias ou amores (Ophelia
que o diga, vítima implacável da realidade de Álvaro de Campos)
(JÚDICE, 1992, p. 157).
Ao contrário, Presença havia defendido a individualidade
criadora e assumira um sujeito enredado em sua psicologia e buscas
interiores, uma experiência de subjetividade narcísica a que reagirá a
poesia neorrealista, que rasura o eu para que se torne um nós combativo,
adotando como estratégia de aproximação e incentivo à compreensão
uma “sinceridade” de emoção a referir-se ao sofrimento comum, à luta
necessária e à morte. A situação do sujeito, no contexto neorrealista, é
um eco da heroicização do eu romântico, expurgado, porém, do direito
à solidão e egoísmo, formulando-se uma “poética de testemunho”66, ou

66. Falando de “poética de testemunho” e de “poética de fingimento”, reporto-me a reflexões de


GUSMÃO, 1997.
87
seja, a imposição de uma função social para o sujeito poético, que está
no mundo e precisa falar sobre ele.

Sabemos que, correndo os anos 1950 e 1960, com a leitura de


Pessoa, aumentará a tensão entre a “poética de fingimento” e “de
testemunho”, constituindo-se o adensamento da problemática da
subjetividade na poesia contemporânea portuguesa. Se vozes como as de
Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade
não abdicarão do eu, controlando, porém, a emotividade, por meio da
ironia crítica, “Roubam-me Deus, / outros o Diabo / – quem cantarei?
// roubam-me a Pátria; / e a Humanidade / outros ma roubam / – quem
cantarei?” (SENA, 1988, p. 17), pela visão do sagrado, do mito, “Noutra
varanda assim num Setembro de outrora / Que em mil estátuas e roxo
azul se prolongava / Amei a vida como coisa sagrada / E a juventude
me foi eternidade.” (ANDRESEN, 1997, p.20) e pela concretude do
real em Eugénio de Andrade (1990, p. 43.): “Tudo me prende à terra
onde me dei: / o rio subitamente adolescente, / a luz tropeçando nas
esquinas, / as areias onde ardi impaciente.”, a obra de Carlos de Oliveira,
nos anos 1950, sofrerá o processo de reescrita, redefinindo-se o lugar do
sujeito e a construção textual da emotividade, tensionando a escrita de
testemunho.

De poeta preocupado com o mundo a poeta preocupado com


a realidade do poema, Carlos de Oliveira exemplifica no panorama da
poesia desse momento um confronto inevitável para a escrita poética
pós-60. Como exemplo, leia-se o texto “Árvores”, de Terra de harmonia,
que é a transformação textual de uma crônica intitulada “O pomar”,
publicada originalmente em Seara Nova. Rosa Maria Martelo, em sua
tese já referida, confronta e analisa a transformação (1996, p. 334-338).
Aqui, apenas destacamos que um texto onde dominava a primeira
pessoa, com explícita manifestação da emotividade, principalmente por
meio da pontuação e da adjetivação, com referências diretas à realidade
biográfica do sujeito, é decantado até atingir a ideia básica, com rasura
do eu, da referência biográfica e da emotividade direta, num movimento
de despersonalização. O último parágrafo da crônica original é: “Passei
88
o resto da tarde a invejar o meu avô! Esse, sim, imaginação tinha-a ele!
Que força formidável de poesia não é precisa realmente para conceber
todas estas laranjeiras, limoeiros e macieiras, todas estas folhas e flores
e frutos – no tamanho duma semente mais pequena que o coração das
aves!” Pela reescrita, temos a versão depurada:
Camponês, que plantaste estas árvores reais como pássaros vivos na
verdura autêntica das ramagens, sabias bem que nada valem as asas
fulvas e imaginárias nas florestas do tempo.
Tu sim, que concebeste todas estas folhas, flores e frutos, toda esta
terra de harmonia – no tamanho duma semente mais pequena que o
coração das aves. (O [TH], p. 132)
Analisa-se que a Poesia 61 (ampliando-se para as obras seguintes
dos poetas participantes) se caracterizou pela despersonalização,
pelo antidiscursivismo e controle da emotividade, lições aprendidas
(principalmente no caso de Gastão Cruz e de Fiama Hasse Pais
Brandão) com Carlos de Oliveira. Se, de uma perspectiva geral, essas
características lá estão, de outra, mais restrita, há que se pensar o que
significa essa “despersonalização”, ou seja, não ausência do sujeito
emissor, mas a transformação da subjetividade em torno de uma
“persona” textualizada, deslocando-se o sujeito referencial para dar voz
a um sujeito que tem sua referência no interior do próprio texto, por
meio da estruturação discursiva.

A observação do uso de pronomes pessoais67 pode, por exemplo,


demonstrar com objetividade essa “despersonalização” comum a Carlos
de Oliveira e Gastão Cruz. A primeira pessoa do singular ocorre menos
vezes, variando com a segunda pessoa, e predominando a terceira
do singular68. Na escrita de Carlos de Oliveira (segunda fase), o uso
do infinitivo impessoal aponta a indiferenciação pronominal como

67. Temos em mente reflexões sobre “a natureza dos pronomes” de BENVENISTE, 1988.

68. “É preciso ter no espírito que a ‘terceira pessoa’ é a forma do paradigma verbal (ou pronominal)
que não remete a nenhuma pessoa, porque se refere a um objeto colocado fora da alocução.
Entretanto existe e só se caracteriza por oposição à pessoa eu do locutor que, enunciando-a, situa-a
como ‘não pessoa’” (BENVENISTE, 1988, p. 292).
89
estratégia discursiva útil para marcar a presença de um personagem sem
rosto, o poeta, uma “não pessoa”, sem marcas, sem limites, que existe
na linguagem como construção textual. Comparem-se um poema de
Carlos de Oliveira e um de Gastão Cruz, em que a atenção discursiva
está fora da lª ou 2ª pessoa:
Imaginar
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas. (O [M], p. 236)

O dorso sob a luz o ar os dedos


a pele intensa de suor e fogo
o mar a primavera rompe o dorso
nocturno sob o fogo a lama o sol

O dorso sob
um beijo a electricidade fria da noite
lábios subindo a encontrar o corpo
suor e água pó montanhas altas

humedecendo o dorso
o sentido da carne o frio

90
o rio aberto

vector
o dorso o olhar o fogo
o dorso todo humedecendo o beijo (CRUZ, 1990, p. 33)
Ora, frente a esse despojamento da “pessoa”, que tem realmente a
sua mais violenta prática no Experimentalismo (pois acaba despojando-
se da própria linguagem verbal), reage a poesia de 1970 a 1990 com
a recuperação da subjetividade, sua presença como pessoa no texto e
na história. É o que ocorre, por exemplo, na poética de Ruy Belo, sem
que isso signifique qualquer traço de inocência sobre a relação poeta
e autor, sujeito no texto e sujeito real. “Escrevo como vivo, como amo,
destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. [...] Ao escrever,
mato-me e mato.” (1990, p. 11).

Desses confrontos se forma a poesia mais recente, bastante


envolvida criticamente com o lugar do sujeito no texto literário,
bastante marcada por um tempo dito “pós-moderno” de fragmentação,
homogeneização artificial e massificante da individualidade. Para reagir
a isso há que se garantir voz ao sujeito, sem a ilusão de totalidade do eu.
Na escrita dos poetas que produzem nas décadas de 1970 a 1990, domina
um sujeito reflexivo que, sem ilusões ou utopias, vai vivendo o cotidiano
e habitando o poema como um refúgio, na tradição de um Ruy Belo
principalmente. Voltam assim estratégias discursivas da personalização:
a confissão, o comentário, a narração, a avaliação, o desabafo, a escrita
como conversa, um eu dominante que se reflete no tu. Benveniste (1988,
p. 286) afirma: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se
constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade,
na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego”. E parece-nos que
nessa poesia a linguagem é realmente considerada como espaço que
resta para encontrar a individualidade. Vejamos dois poemas em que o
sujeito se confronta com o mundo exterior, apontando suas ruínas ou
contradições: o primeiro, de António Franco Alexandre; o segundo, de
João Miguel Fernandes Jorge:
91
aqui estou eu entre demónios e paredes lisas
solicitando certificados bulas para viver melhor à sexta-feira
vale-me não ser ninguém: faziam-me a vida negra
assim basta o cinzento fato completo silencioso com lugar para os
olhos
levantar cedo ver passar os carros
estar certo que o que digo já foi dito e selado
agora não me resta poesia alguns dias mais oscilando a cabeça
fazendo que sim

dá vontade de fugir vomitando tudo em volta mas o preço é preciso


se ao menos inventasse a cura do ar podia secar tranquilamente
agora espero pelo meio do escuro para gritar errei! errei!
desmanchando o [cabelo
nada disto é a minha vida!
(ALEXANDRE, 1996, p. 267)

Na praia sob um chapéu à Hockney


eu vi uma história da guerra
o sol que me caía no corpo também caía
no vosso corpo

sobre a praia sob o chapéu de listas


verdes e azuis mal se distinguindo a luz
do verde e do azul sendo sempre aos que
passavam só azul, apenas verde como

vós, perfeitos corpos imperfeita coisa


de dizer. Um,
era a própria corrida que lançava sobre
a Costa a leve penugem negra como só

92
aos trinta anos ainda têm os portugueses
ah! oh! o outro não era tão bonito
era bonito, lembrando a cada um a guerra
a guerra a guerra puta que pariu
e mais às áfricas, com menos uma perna era

levado sob a areia


que ventos levemente erguiam
com um braço sobre o outro entrando o
mar

Ainda havia uma criança, algumas bichas


e um moinho de papel que depois comprei.
(JORGE, 1982, p. 130-131)
No poema de João Miguel Fernandes Jorge, o sujeito lírico
confronta no cotidiano a história coletiva e o tu que a mantém, revirando
o discurso do poder. No poema de António Franco Alexandre, o sujeito
nega-se a compactuar com uma imagem exterior de si (nada disto é a
minha vida), buscando-se na escrita (aqui estou eu), na formulação de
uma voz que grita, rompendo com um falso eu (errei!, errei!). Mas toda
essa presença do eu é reconhecida como ficção, configuração textual sob
a qual se mascaram os sujeitos reais, escritor e leitor. Depois de Pessoa,
é impossível na poesia portuguesa confiar na primeira pessoa, pois
sua presença no texto é, afinal, uma interrogação sobre a sua própria
existência.

Em direção à narratividade
“Conta-me, então, que desejo imenso te guiou
contra o sentido dos rios?”
Nuno Júdice, As regras da perspectiva
No início do artigo intitulado “O poético e o narrativo”, publicado
em Poétique nº 28, Laurent Jenny indaga: “Os poemas, por muito líricos
93
que sejam, não nos contam também ‘histórias’?” (In: TODOROV et al.,
1982, p. 95). A pergunta do autor suscita reflexões bastante pertinentes
e muito atuais sobre as fronteiras entre gêneros. Não só a questão se
apresenta dominantemente na poesia contemporânea como muitos
se têm dedicado a desenvolver estudos nessa direção, como é o caso
de Dominique Combe, autor de Poésie et récit: une rhétorique des
genres (publicado com o apoio do Centre National de la Recherche
Scientifique), de 1989, obra que nos guia em alguns momentos.

Embora não seja nosso intuito fazer um histórico do sistema


de gêneros, é útil, para o desenvolvimento da reflexão, lembrar que
herdamos de uma tradição greco-latina, a partir de leituras que se
fizeram da Poética de Aristóteles, a tripartição: épico, dramático e
lírico, e que não havia nas poéticas clássicas dos séculos XVII e XVIII
incompatibilidade entre poesia e narrativa. Combe refere-se a um autor
francês, Rapin, que, em sua Réflexions sur la poétique (1709), afirma
outra “tríade”, eliminando o que considera gênero menor, a lírica.
Para esse autor, “A Poética geral pode ser dividida em três espécies de
poema perfeito: a epopeia, a tragédia, a comédia, e essas três espécies
podem se reduzir a duas somente: uma consiste na representação; a
outra, na narração”69. A análise dessa discussão em outros “tratadistas”
confirma também a relação entre poesia e narrativa. O problema está na
concepção que se tem da poesia lírica em contraste com a poesia épica
e a dramática. Se, para essas duas últimas, compreende-se a presença
da “fábula” (encadeamento de ações) como conteúdo narrativo, para a
lírica (expressão dos sentimentos), mesmo os clássicos desconsideram
a questão.

Será, assim, pela discussão da especificidade do lírico (sem


condição de “representação”, narração) que se constituirá um outro
sistema de gêneros, a partir do século XIX, com o deslocamento da

69. Apud COMBE, 1989, p. 64. No original: “La Poétique générale peut être distinguée em trois
espèces de poème parfait, en l’épopée, la tragédie, la comédie, et ces trois espèces peuvent se réduire
à deux seulemente, dont l’une consiste dans la représantation, l’autre dans la narration”. Tradução
nossa.
94
épica e do drama para fora da poesia, que, por sua vez, compreenderá
somente a lírica. A “revolução da linguagem poética”, com Mallarmé,
Lautréamont, Rimbaud, Valéry e Breton, reagindo à mimese, à
representação, defende a “poesia pura”, “essência”, instalando o lírico
num lugar oposto ao da narrativa e do drama (o épico e o dramático).
Observemos ainda que essa mudança é acompanhada por outra divisão:
prosa e verso, pois, até o século XVIII, a palavra “poesia” era equivalente
à “literatura”, com os sentidos de versificação e criação. Os textos em
prosa eram de menor valor, fora do sistema poético. No século seguinte,
ocorrerá a especificação da palavra literatura, e a separação de textos
em prosa e verso, compreendendo que em prosa estão os textos de
representação, e em verso os textos que só desejam dar conta da própria
linguagem (JÚDICE, 1997, p. 83.) no entanto, será também o início da
mistura de formas e discursos: o Romantismo mesclará essa divisões
com o poema em prosa – “nasceu do desejo de liberar a poesia das
restrições formais impostas pela versificação” (COMBE, 1989, p. 92)70 –,
e o Simbolismo, com a narrativa poética.

Atualmente, ainda mais com a abolição das fronteiras de gênero,


essa problemática perdeu importância; porém, a discussão sobre a
especificidade do poético permanece, e ainda hoje causa espécie afirmar
que o narrativo também se configura na poesia lírica, pela tradição de
esta ser discurso centrado na subjetividade e sua expressão emotiva.

Na contemporaneidade alargou-se a noção de linguagem


narrativa e, mais do que um gênero ou uma forma, ela passou a ser
compreendida, como o faz Ricoeur, como um meio de configurar o
tempo humano ou, na definição mais geral de Bremond, “uma mensagem
que enuncia o devir dum sujeito”71. Linguisticamente, poderíamos
dizer que o narrar é estruturação discursiva centrada na verbalização,
principal estrutura responsável pela marcação temporal no interior da

70. No original: “est né du désir de libérer la poésie des contraintes formelles imposées par la
versification”.

71. Apud LAURENT. In: TODOROV et al., 1982, p. 95.


95
frase, enquanto o lírico caracterizar-se-ia pela nominalização, através
de estruturas adjetivantes ou predicativas. Mas, ao examinar a poesia
portuguesa contemporânea, essa separação se esboroa com facilidade,
e acompanhamos Pessoa, Sena, Herberto Helder num trabalho lírico
que não se exime do narrativo como história que se conta do sujeito,
do mundo e da própria enunciação do poema. A ação narrativa na
poesia relaciona-se, estruturalmente, à discursividade organizada,
ao prosaísmo, ao prazer do verso e poema longos, com acúmulo
de imagens e uma articulação de sentidos que busca representar a
habilidade de contar, transmitir uma experiência, uma situação, uma
problematização. No conteúdo, o poema ganha “memória”, convoca a
“consciência poética da duração”.
“Narrar é a última forma de contrariar o fim” (Lídia Jorge). Alguns
dos caminhos actuais da poesia (portuguesa e não só) parecem, como
se viu, convergir neste interesse renovado pela expressão de uma
consciência poética da duração, que conduz, já em alguns exemplos
recentes, ao reino sherazadiano do poème-fleuve. Julgo tratar-se de
um sintoma que marca uma certa crise do espírito analítico, com o
concomitante fascínio por uma apropriação metafísica do tempo, que
atinge também alguma filosofia “pós-moderna” [...], num fim de século
inegavelmente dominado pela presença de formas romanescas que
parecem muitas vezes querer negar a própria possibilidade da narração
hoje (BARRENTO, 1996, p. 76-77).
Se considerarmos a narratividade como proposta e não como
forma, é mais fácil aceitar que o texto poético é também narrativo,
ainda mais na contemporaneidade, quando se acentuou a necessidade
de manter a experiência da narrativa como reação ao individualismo, à
indiferenciação e à massificação. Lembremos o filme As asas do desejo, de
Wim Wenders, em que anjos, vivendo a eternidade, acompanham a vida
humana, o desenrolar da(s) sua(s) história(s), seduzidos pela diferença
entre homens e anjos: a fragilidade da vida. No filme, destaca-se, porém,
a figura de um velho que tira sua força de sobrevivência da vontade de
continuar a narrar a história, guardando a experiência humana que não
pode desaparecer, como desaparecem cidades e pessoas. Nesse sentido,
também se expressa Jorge de Sena, quando escreve que
96
Nós, os poetas, não somos profetas, contrariamente às ilusões
românticas. Somos aqueles que, falando poeticamente, devem
continuamente recordar àqueles que pensam que sabem muito, que
nós – seres humanos – não sabemos nada, para além da gramática
convencional de algumas ciências. Mas assim sendo, sabemos mais
num plano diferente, uma vez que somos, como somos, os registos e
arquivos da experiência humana através da linguagem (1977, p. 271).
Essa necessidade de narrar é, afinal, a metáfora da própria arte
que não se afasta do mundo, mesmo que o negue ou o silencie. Toda
a poesia sempre participou desse jogo, mas foi no século XX que essa
participação se transformou em polêmica, em reflexão, e pôs em crise
os próprios limites do poético, como fez, por exemplo, Fernando Pessoa
quando redimensionou a subjetividade na lírica e reagiu a uma tradição
retórica da poesia. Em meados do século, a poesia neorrealista, apesar
de suas falhas largamente apontadas por contemporâneos e críticos
posteriores, contribuiu para a reavaliação do nível de representação de
mundo que o discurso poético pode e deseja fazer. Assumiu o narrativo
poético como ação ideológica, muitas vezes pecando por dogmatismo,
mas, há que se reconhecer, abrindo caminho para as transformações
que o discurso poético português iria sofrer. Nesse sentido, a obra de
Carlos de Oliveira é um paradigma dessa necessidade de transformação
e da consciência de que a escrita poética é uma escrita rigorosa e
concentrada do tempo, inevitavelmente uma forma de narrar o mundo.

Nos anos 1960, um tempo-limite, como vimos, acentua-se na


poesia portuguesa o confronto entre a depuração da linguagem poética
(Poesia 6l), a tentativa de vanguarda (o Experimentalismo) e a poesia
discursiva. Os poetas que começam a publicar nos anos 1970, reagindo
especialmente ao Experimentalismo e não mais compartilhando
um projeto ideológico único, vivenciam um momento de séria crise
literária (de um lado, “escombros” (VIEGAS, 1984, p. 215.) do discurso
neorrealista, incapaz de suportar um projeto estético autônomo; de
outro, a exaustão de um discurso poético autocentrado cuja unidade
de sentido prendia-se à palavra) e, entre o domínio da fragmentação
e a expansão linguística, optam pela segunda, revalorizando a

97
discursividade e o narrativo, com paradigmas nas obras poéticas, por
exemplo, de Jorge de Sena, Ruy Belo e Herberto Helder.

Esse “resgate da linguagem”, recompondo-se a gramática do verso


e a capacidade referenciadora (Cf. MAGALHÃES, 1989, p. 120.), vai
além de um trabalho linguístico, porque atinge diretamente a relação do
poeta, por meio da linguagem, com o mundo que habita. É necessário
concordar com Fernando Pinto do Amaral que diz que esse “resgate da
linguagem” é também um resgate do sentido (Cf. AMARAL, 1982, p.
51.). Também Nuno Júdice vem se juntar a essas vozes, acrescentando
que “regressa um sentido outro de “missão” da poesia, que é o de
restituir um sentido à degradação da linguagem comum” (1997, p. 85).
Apesar das diferenças individuais, os poetas que publicam em 1970,
1980 e 1990 parecem se encontrar na direção da narratividade, bastante
preocupados com a vivência do tempo e configurando por meio da
linguagem poética os impasses das últimas décadas do século: o lugar do
indivíduo numa sociedade urbana e desumana, o fracasso das utopias,
a descrença em transformações sociais relevantes, a degradação cultural
e a perda de referenciais.
No mundo burguês da informação explicada, desprovida de espanto
e magia, um mundo que vive ao ritmo estúpido do trabalho e
desconhece o ócio criativo, e que o combate com a “ocupação dos
tempos livres” e a “indústria do entretenimento”, neste mundo irrompe
o poema que vive do mundo e precisa dele, que vem reafirmar um
fascínio da narração a espraiar-se num tempo interior que sustenta
os dias e os projecta numa paisagem em que, como escreve ainda
Benjamin, tudo muda menos... as nuvens e o corpo, minúsculo, frágil
(BARRENTO, 1996, p. 72).
Diante desse quadro, como situaremos Carlos de Oliveira,
que, no final dos anos 1960 e na década de 1970, publicou quatro
livros de poesia e um romance (entre eles, livros fundamentais, como
Micropaisagem e Finisterra) e dois volumes reunindo sua obra toda
revista? Frequentemente, esse autor é lembrado pela brevidade de sua
escrita nominalista. No entanto, a ação narrativa aí se encontra, não
como forma, mas como proposta interna dos poemas, dominando
98
em sua escrita as aporias do tempo. Obra a obra, a escrita vai se
constituindo como o acontecimento primeiro, capaz de dar sentido aos
acontecimentos da vida e do mundo. Embora o contraste entre os textos
de Carlos de Oliveira e os dos poetas novos seja claro pelas opções
discursivas (de um lado, a brevidade, a contenção; do outro, a extensão,
a multiplicidade, a dispersão), mais uma vez os poetas se encontram na
concepção de uma escrita poética que se faz de memórias, de partilha de
experiências de sentido, comunicação entre poeta e obra, obra e leitor,
culminando na narração da própria criação verbal, lugar a partir do qual
se enfrenta o mal-estar social, político e existencial, ou seja, a História.

A leitura de Carlos de Oliveira demonstra com facilidade


a importância da verbalização em sua poética; basta percorrer
aleatoriamente páginas de seus livros de poesia: “Vai meu coração”, “E
escrevendo à luz débil me pergunto”, ‘Trago notícias da fome”, “Hei-de
cantar-vos a beleza um dia”, “Só, em meu quarto, escrevo à luz do olvido”,
“Desço pelo cascalho interno da terra”, “levantar a torre do meu canto”,
“Imaginar o som do orvalho”, “Localizar na frágil espessura do tempo”,
“Registar nessa memória ao contrário”, “Rodar a chave do poema”. Sua
escrita valoriza as formas verbais como índices de uma intervenção, seja
no real, seja no ficcional. Há uma narratividade sobre o estar no mundo
e o estar na escrita. Narra-se a luta contínua para que a linguagem ocupe
o espaço vazio entre o sujeito e o mundo.

Os poetas de 1970 a 1990, por sua vez, não se eximem de narrar,


não só porque contam e recontam a própria história do poético,
reavaliando a tradição que os formou, mas também porque estão a
falar de sujeitos poéticos e suas histórias (atenção ao desejo, ao corpo
e ao cotidiano, num “novo realismo”, segundo Nuno Júdice72). Veja-se
a poesia de alguns nomes reverenciados pela crítica contemporânea
portuguesa, como João Miguel Fernandes Jorge, António Franco

72. JÚDICE, 1997, p. 93. Em comentário semelhante, João Barrento (1996, p. 70) escreve: “Hoje,
alguns exemplos da novíssima poesia são animados por esse halo narrativo, mas não épico, em
lances de escrita que indiciam uma nova forma de relação com o real”.
99
Alexandre, Al Berto, Helder Moura Pereira, Paulo Teixeira, em cujos
textos, muitas vezes, encontramos um sujeito que caminha entre
imagens, sem totalidades, sem ilusões. O real fragmenta-se no texto
e só fica uma memória (re)construída, um espaço de interrogação e
desencontro – é o que se observa, por exemplo, em “Zona biográfica”, de
Paulo Teixeira (1991, p. 54):
Agora que o mundo deslizou como uma bola
das mãos de deus e cruza a noite vazia
dos espaços sabemos que a morte nos espera
disposta como uma refeição à nossa mesa.
Rendemos à sorte de cada minuto as nossas
vidas e corremos de monte em monte como
correria uma canção levada pelo vento.

A janela do comboio desenha, alisada


pelo gelo e o fogo, as ermas paisagens conhecidas
(ao longe, vê, a cinza e o sangue novo do crepúsculo).
Alma, era este o mundo, a imagem que retenho,
ao inspirar, nos meus brônquios. Quando o ar
se evadir da minha boca sei que perdi tudo,
é outro o mundo e sou eu, crê-me, a sua testemunha.

Nada nos resta senão lembrar as coisas tocadas


e suprimidas nesse mapa de ausência compassiva:
Praga, Hamburgo, Leipzig, Viena, essa obscura
zona biográfica onde largámos o passado
e perdemos a pauta dos horários futuros.
Entre esses poetas, está Nuno Júdice, com a mesma direção
narrativa (embora por diferentes caminhos) a dar conta da própria
escrita poética e da existência plural do sujeito lírico, dizendo as
impossibilidades desse sujeito num tempo urbano no qual já se perdeu
a ilusão de origem. Para resistir, narra uma perspectiva de existência

100
cultural, um modo de estar na cultura ocidental, tensionando sua
existência na linguagem cotidiana e na poesia. Nessa experiência,
encontra-se com os personagens fingidos de seu imaginário – os poetas,
os loucos, os amantes, os solitários, os insones, os profetas, os “inventados
inventores”, além do leitor, esse cumplice da ficção. São todos seres que
se falam e se ouvem no único espaço comum de realidade e contato que
ainda perdura: o poema.
Sobre os monges mortos, na capela do convento, ouvindo o vento:
o poema transforma a realidade. Ele é a fingida memória do poeta.
Vendo o mar:
[...]
Vendo o mar da janela do refeitório:
o sol a caminho do horizonte. O mar,
ondulação rasteira. Ouve-se aqui o vento. Neste lugar, há um ano,
[imaginei-me
na atitude de olhar os montes, a linha de separação entre a terra e o
mar,
a linha de separação entre o mar e o céu, cada recanto humano
desta serra desabitada. O meu Duplo teve então um trabalho
doloroso: criar memória. [...] (JÚDICE, 1991a, p. 41)
O paradigma da narratividade é, portanto, marcante na poesia
portuguesa das últimas décadas do século XX e mesmo no início do
século XXI, como reação a um tempo de vazio, de perdas e de melancolia.
Narrar, como no filme Asas do desejo, é resistir em meio à destruição
inevitável.

Em direção ao dialogismo
“Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido
festejará um dia seu renascimento.”
Mikhail Bakhthin, Estética da criação verbal
Falar de intertextualidade hoje é cada vez mais um lugar-comum
em estudos literários, pois é impensável falar do texto sem observar o
101
processo dialógico que o constitui, na medida em que a escrita é, por
natureza, o resultado de um diálogo com outros textos e sistemas de
significação. Nesse sentido, podemos dizer que sempre houve a ação
intertextual, como, por exemplo, no Renascimento, quando era uma
prática estética comum a retomada de textos alheios como modelos
a serem seguidos e valorizados. Em língua portuguesa, virão logo
à lembrança os sonetos camonianos, tão próximos dos de Petrarca.
Entretanto, foi a modernidade teórica, no século XX, que nomeou essa
ação e vem discutindo sua especificidade. Mikhail Bakhtin foi o primeiro
a enunciar teses sobre o dialogismo textual, em seu Problemi poetik
dostoievskovo (primeira edição de 1929, e segunda revista e ampliada de
1963), tendo seu trabalho sido divulgado por Julia Kristeva, que, ao final
da década de 1960, sistematizou o conceito de intertextualidade. Desde
então, não cessaram os estudos nessa área, ampliando abordagens e
definindo estratégias, como, entre outros, fizeram Laurent Jenny, Gérard
Genette e Antoine Compagnon73, e o tema tornou-se produtivo para a
análise de diversas obras.

Pois bem, aqui a teorização sobre a intertextualidade é


necessariamente convocada, porque a poesia portuguesa contemporânea
tem, no trabalho intertextual, uma estratégia recorrente de pensar a
literatura, sua cultura e o mundo. Os poetas portugueses, principalmente
a partir da década de 1960, vão mais declaradamente demonstrar que a
escrita se faz com leituras, em busca de encontros e contrastes. Note-
se, por exemplo, como Fiama Hasse Pais Brandão lê Pessoa, em “Hora
obscura”, instalando-se num lugar de diferença capaz de reavaliar os
discursos que a escrita pessoana suscitou no contexto da sociedade
portuguesa sob regime ditatorial:
Por muito que a minha escrita decalque as páginas de fernando pessoa
eu digo numa fissura do verso uma outra coisa. Que nas
comemorações

73. Cf. JENNY, 1979; GENETTE, 1982; e COMPAGNON, 1979. Em relação a este último, a edição
brasileira (1996) não apresenta o texto integral.
102
de sua morte me apercebi de que ele não regressaria aonde estivera
presente:
a calecute.

Aí, perante as flâmulas, afastando-se começara a escrever


a mensagem com incidências subtis como a da duplicidade
de pedro o regente ou a das duas batalhas.
A bibliografia de um verso é-me, na vigília, essencial.
O poeta não subira, pois, à coberta das naus, lera as oitavas.

Depois, na sua própria longínqua ortografia dos símbolos


inscrevera novo desígnio filosófico ou desenho. Leio-o
com a avareza de quem herda os antigos e os contemporâneos.
Apercebo-me de que apenas no fim do texto, no último poema,
o país onde o leio tem na hora absurda o historiógrafo, cujo nome
como o de um leitor antecede esta ambígua e ubíqua biografia.
(BRANDÃO, 1986, p. 30)
Porém, é preciso explicar a concepção de intertextualidade que
utilizamos. Voltemos, de forma breve, a Bakhtin e Kristeva. O primeiro
defendeu que Dostoievski é o criador do romance polifônico, ou seja,
“há uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e
imiscíveis e a polifonia de vozes plenivalentes” (BAKHTIN, 1981, p. 2),
constituindo-se relações dialógicas
entre todos os elementos da estrutura romanesca, ou seja, eles
estão contrapontisticamente em oposição. As relações dialógicas –
fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do
diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase
universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações
e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e
importância (1981, p. 34).
O dialogismo bakhtiniano se apresenta como uma técnica de
contraposição e de abertura à palavra do outro, para que se torne possível
a comunicação dialogada entre as consciências (BAKHTIN, 1981, p. 73).

103
Kristeva, apresentando sua leitura do teórico russo, direciona as teses de
polifonia e dialogismo para a estruturação semântica do texto literário,
definindo algumas ideias fundamentais: a) “a ‘palavra literária’ não é um
ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais,
um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da
personagem), do contexto cultural atual ou anterior”; b) “Todo texto se
constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação
de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-
se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como
dupla.”; c) “num discurso dialógico, a escritura lê uma outra escritura, lê-
se a si mesma e se constrói numa gênese destruidora.” (Cf. KRISTEVA,
1974, p. 60, 64 e 76 )

Assim, falando de intertextualidade na poesia portuguesa,


estamos nos referindo ao modo como as diversas escritas poéticas
contemporâneas dão conta das leituras feitas, revelando no encontro
de textos diferenças temporais, críticas e ideológicas. Os processos
intertextuais são muitos, como demonstraram Laurent Jenny e Gérard
Genette, entretanto o que nos interessa, tendo a poesia portuguesa
contemporânea como nosso corpus de reflexão, é pensar a função da
intertextualidade, concordando com a afirmação de Jenny de que “a
pura repetição não existe”, e toda retomada textual significa uma ação
crítica e avaliadora de uma tradição, de uma cultura, de uma sociedade.
“A intertextualidade é, pois, máquina perturbadora.” (Cf. JENNY, 1979,
p. 44-46.)

Ao examinarmos diversas obras poéticas portuguesas, produzidas


no espaço das quatro últimas décadas do século XX, sem nenhuma
pretensão de enunciar um juízo totalizador, observamos que a prática
da intertextualidade é um ponto comum entre diferentes poetas e
uma estratégia por meio da qual eles questionam a escrita e a leitura,
questionando igualmente os lugares do poeta e do leitor. Há duas grandes
direções intertextuais nessa poesia: a) o diálogo direto (por citação,
alusão, paródia, pastiche) ou indireto (epígrafes, nomeação apenas de
títulos, de autores), convocando uma cultura literária específica e uma
104
história da própria poesia; b) o diálogo entre o poema e outros textos
não verbais, como a pintura e a música, ou verbais não literários, como
o discurso histórico e filosófico.

Em relação à primeira direção, constatamos que os poetas se


debruçam sobre a literatura, indagando sobre os limites de sua ação,
revelando suas influências, contrastando formas de escrita, buscando
semelhanças e diferenças no tempo e no espaço. Assim, é recorrente
que os poemas se ponham em diálogo com a poesia clássica, com a
poesia francesa do final do século XIX, com a poesia anglo-saxônica e,
principalmente, com a própria poesia portuguesa de todos os séculos,
embora haja o predomínio das duas grandes textualidades: a camoniana
e a pessoana. Retomam formas, temas, contrastam visões estéticas,
confrontam relações da poesia com o mundo. Há uma preocupação
entre os poetas mais recentes de avaliar a tradição lírica, na qual sua
escrita poética se inscreve ou não, e de questionar conceitos como
tradição e modernidade / pós-modernidade. Além disso, o diálogo
textual indica a necessidade de romper um certo enclausuramento da
cultura portuguesa, buscando-se a universalidade para acompanhar
o movimento do mundo, o que significa pensar individualidade e
nacionalidade por meio do texto literário.

Em relação à segunda direção, o poema dialoga com textos não


verbais, como a pintura e a música, discutindo a questão de representação,
os limites de significação, o próprio pensamento estético que permite
a produção de objetos artísticos. Ao dialogar com textos verbais não
literários, percebe-se que a poesia volta-se para a filosofia e a história,
absorvendo linguagens, pondo em crise discursos, questionando
conceitos e valores. Nesse sentido, compreende-se que realmente houve,
para essa poesia, “um alargamento da base referencial” (JÚDICE, 1997b,
p. 84).

Talvez possamos dizer que essa poesia difere da produção anterior


por ser extremamente conceitual e dialógica, exigindo um tipo de leitor

105
culturalmente ativo, capaz de partilhar o diálogo e a reflexão, pensando
a cultura ocidental e, em relação a ela, o lugar da cultura portuguesa.

Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 152-155.) já escreveu


que poderíamos aplicar à cultura portuguesa a ideia da antropofagia
oswaldiana e, se realmente consideramos a intertextualidade como
prática antropofágica, compreenderemos que a poesia portuguesa
contemporânea assumiu essa necessidade de absorção e digestão da
produção alheia para definir uma identidade própria, que se revela
tanto nas diferenças como também no encontro de semelhanças. É
preciso notar que esse “projeto” é de largo alcance, significando uma
reação à massificação cultural, à des-cultura, que o mundo moderno
globalizado oferece. Temos em mente igualmente reflexões de Leyla
Perrone-Moisés sobre o valor da antropofagia oswaldiana, quando
diz que ela “nos permite superar essa ‘ansiedade’, acabar com todo
complexo de inferioridade por ter vindo depois, resolver os problemas
de má consciência patriótica que nos levam a oscilar entre a admiração
beata da cultura europeia e as reinvindicações estreitas e xenófobas pelo
‘autenticamente nacional’” (1990, p. 98). Leyla Perrone-Moisés pensa no
caso brasileiro, mas nós podemos transferir suas palavras para o caso
português, porque há também esse “complexo de inferioridade”, essa
“má consciência patriótica” que exige dos poetas uma reação crítica,
avaliativa e construtora de uma cultura autônoma, consciente de seus
próprios discursos, apta a receber e a transformar o de fora, o alheio, em
legitimamente seu.

Nesse panorama geral sobre a intertextualidade na poesia


portuguesa contemporânea, como situar os poetas Carlos de Oliveira
e Nuno Júdice?

A poética de Carlos de Oliveira apresenta claramente essa ação


intertextual, já estudada, entre nós, por Orlando Orofino em sua
dissertação de mestrado (1980). Em Portugal, a questão intertextual em
Terra de harmonia foi tema de outra dissertação (PARRADO, 1996),

106
com análise bastante cuidadosa sob perspectiva da teorização de Gérard
Genette.

O leitor da obra de Carlos de Oliveira sabe que o processo


intertextual em sua escrita é intenso, retomando composições de
poetas de sua eleição, relendo seus versos e o tempo que os possibilitou,
unindo o que está distante no presente do texto novo, onde, mais do
que semelhanças, são diferenças que se leem. É o caso de alguns textos
publicados, por exemplo, em Terra de harmonia, como o “Vilancete
castelhano de Gil Vicente”, “Soneto castelhano de Camões”, “Que me
quereis, perpétuas saudades?” – três poemas: “Soneto de Camões”,
“Imité de Camöens (Aragon)” e “Imitado de Aragon” – e “Sonetos de
Shakespeare” reescritos em português, além de alguns outros textos
em que poetas / escritores mortos ou distantes são reencontrados nos
versos, como Gomes Leal, Fernando Pessoa, António Nobre, Camilo
Pessanha, Afonso Duarte, José Gomes Ferreira, Rui Feijó, Cesário Verde
e os estrangeiros nomeados: Desnos, Maiakovski, Rilke, Malcolm Lowry.

Essa ação de leitura para possibilitar a reescrita é marcada pelo


respeito à produção poética alheia, instaurando-se o diálogo entre
tempos e percepções diferentes do poético, sem submissão. O encontro
de textos é também um proposital reexame de imagens, de estruturas
formais e de sentidos. O poeta afirma sua escrita na contribuição de
outras escritas, gerando-se uma leitura dialógica do poético e de
realidades diversas. Além disso, devemos considerar também como
prática intertextual o próprio processo de reescrita a que Carlos de
Oliveira submete seus textos publicados nos anos quarenta e cinquenta.

Também na poesia de Nuno Júdice a escrita se efetiva pela leitura


crítica do discurso poético que fundamentou o discurso da modernidade.
Assim, utiliza-se de um léxico literário marcado pelo Romantismo e
Simbolismo; vale-se de estruturas, versos e temas de alguns expoentes
da poesia francesa (Mallarmé, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine), da
alemã (Hölderlin, Rilke) e da própria modernidade portuguesa
(principalmente a figura/ficção pessoana), numa ostensiva apropriação
107
que indica não só o gesto admirativo, o olhar solidário à aventura difícil
da poesia, como também um provocativo descentramento da palavra
alheia, revendo pela ironia a cultura literária ocidental, os paradigmas
poéticos e as imagens típicas de poeta sem lugar no presente. No
Colóquio Interdisciplinar Friedrich Hölderlin, realizado em 2 e 3 de
dezembro de 1993, Nuno Júdice, como poeta convidado, explicou o seu
encontro com o poeta alemão:
É evidente que não se fala de um poeta, ou se escreve sobre ele, se
não tivermos pontos de contacto com a sua linguagem. Para mim,
o que é decisivo na poesia de Hölderlin é a concepção do mundo
como forma de uma outra coisa, significado ou imagem, que está
para além dele mas à qual não se chega porque há o obstáculo da
linguagem, a “dificuldade” de ter de dizer o que não pode ser dito, ou
ainda a exigência de manter o silêncio dentro do poema. Através dele
chegamos a zonas da literatura que, de outro modo, continuariam a
colocar obstáculos a quem vive no mundo contemporâneo, em que não
é possível já manter a atitude ingénua e confiante perante os elementos
e a natureza; e encontramos uma respiração da palavra que transporta
o passado clássico, com o seu ritmo natural, ainda não subvertido por
certos artifícios modernos que transformaram o poema num objecto
de imagens articuladas mecanicamente por exigência da metáfora,
desligando-se progressivamente de um sentido final e configurante do
que é dito (1994, p. 287).
Se a poesia de Nuno Júdice exemplifica os ecos do Romantismo
na literatura portuguesa moderna, como afirma Joaquim Manuel
Magalhães (1989, p. 247-260.), essa volta, obviamente, não é inocente,
pois o acompanhar de sua produção literária revela um leitor atento,
crítico, que confronta tempos e modos de escrita. Ainda sobre a
poesia de Júdice, Joaquim Manuel Magalhães diz que há a “invenção
da poesia conduzida pela cultura”, e, realmente, o poeta impõe aos
seus próprios leitores a obrigatoriedade de conhecer um determinado
panorama literário sem o qual parte de sua poesia parece ficar reduzida
à manifestação neorromântica de um eu narcísico e solitário. Outra
forma de ironia fatal para o leitor. Solicita-se, portanto, um tipo de
leitor também literário, realizando o que Umberto Eco expõe em Sobre
os espelhos: “Quando um texto cita um texto anterior, este impõe ao
108
receptor uma inspeção na própria competência intertextual e no próprio
conhecimento do mundo. [...] É necessário, para entender a obra, ir para
fora da obra e explorar o que vem antes da obra” (1989, p. 118).

A obra de Nuno Júdice realmente constrói uma teoria da leitura


que vai problematizar a relação entre escritores e a relação entre autor e
leitor, os problemas da recepção estética. Igualmente discute os limites
das diversas áreas de conhecimento e tanto torna o poema uma reflexão
filosófica ou estética como o transforma num discurso comum, do dia
a dia, parodisticamente cotidiano. Embora nos seus primeiros livros
isso seja mais dominante, a preocupação com a leitura do mundo,
da obra, da literatura e da cultura percorre toda sua produção, seja
em poesia, seja em narrativa. A intertextualidade ganha assim uma
função específica: estratégia crítica (ação separadora), um momento
de interrogação sobre a validade do discurso literário e a avaliação da
fundação de sentidos novos na arte deste fim de século. Essa ação de
leitura também recai sobre o leitor de sua obra, que precisará recompor
seus próprios modelos literários para atravessar a textualidade de Júdice
e não se enredar por entre os personagens literários e a fingida memória
de um mundo de ficção. Nesse caso, é preciso ser o “leitor desconfiado”
de que fala Ricoeur:
A função da literatura mais corrosiva pode ser contribuir para fazer
aparecer um leitor de novo tipo, um leitor ele próprio desconfiado,
porque a leitura cessa de ser uma viagem confiante feita em companhia
de um narrador digno de confiança, e torna-se um combate com o
autor implicado, um combate que o reconduz a si mesmo (1997, p.
282).
Tendo em vista esse panorama da poesia portuguesa
contemporânea, podemos agora nos deter nas obras poéticas desses dois
autores envolvidos pela atividade constante de escrever e ler sujeitos,
mundos e textos.

109
CARLOS DE OLIVEIRA: INVENTOR DE JOGOS74

“‘O céu parou. É o fim do mundo’.


Mas outro amigo, o inventor de jogos, diz-me:
‘Deixe-o falar. Incline a cabeça para o lado, altere o ângulo de
visão’.
Sigo o conselho: e as estrelas rebentam num grande fulgor, os
revérberos embatem nos caixilhos que lembram a moldura dum
desenho infantil.”
Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo
Carlos de Oliveira, por opção pessoal, sempre ocupou um espaço
social discreto e silencioso, evitando frequentar quaisquer encontros
ou atividades institucionais relacionadas ao jogo do poder literário.
Manteve-se fiel ao seu projeto de vida e de arte, não permitindo que
sua história cotidiana se tornasse mais importante que sua obra. Por
isso, raras foram as entrevistas impressas e muito pouco nelas revela o
homem do dia a dia que não participava de eventos literários oficiais
para divulgar imagem e marcar presença na cena pública da literatura
portuguesa. No entanto, para todos que acompanham com cuidado o
panorama dessa literatura, esse escritor é incontornável, e as implicações

74. A existência agora de um espólio catalogado, no Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira,
Portugal, abre novos caminhos de análise e interpretação. O curador do espólio, Prof. Osvaldo
Silvestre, vem, nestes anos recentes, revendo também, em apresentações e artigos que devem ser
consultados, algumas de suas leituras anteriores.
110
de sua escrita cada vez mais motivam a atenção da crítica75. De fato, a
obra de Oliveira se destaca no conjunto admirável da poesia portuguesa
contemporânea pela meditação sobre o poético, com suas tensões e
limites, que foi desenvolvendo ao longo dos anos no interior de sua
própria escrita. Diferentemente de Nuno Júdice, Oliveira não se dedicou
à crítica e à ensaística; toda a sua reflexão se espraia pelas páginas de
poesia, romances e “crônicas” (O aprendiz de feiticeiro) que nos deixou.

Sabemos que o percurso de sua obra foi muito marcado por um


quadro histórico determinante da situação mundial atual: Segunda
Guerra Mundial, contraposição de dois sistemas ideológicos – o
capitalismo e o marxismo –, o fascismo, o poder das ditaduras, com
o cerceamento da liberdade em todos os níveis, a Guerra Fria, com a
ameaça permanente da guerra nuclear, o desenvolvimento das nações
ricas à custa da miséria de grande parte da população mundial,
entre muitos outros fatos que poderiam ser lembrados. Frente a esse
mundo e inserida em uma sociedade sob ditadura, com grandes
índices de carência em vários níveis socioeconômicos, sua escrita se
inicia claramente em referência a essas questões, aproximando-se das
orientações neorrealistas, as quais, nas décadas de 1940 e 1950, tinham
bastante força na produção literária portuguesa. Assim, o então jovem
escritor (seu primeiro livro de poesia é publicado em 1942, na coleção
Novo Cancioneiro) pôs sua palavra à disposição da luta social, em prol

75. A bibliografia crítica sobre Carlos de Oliveira já é extensa. Na década de 1990, em Portugal,
houve um aumento significativo dessa produção: foram defendidas algumas dissertações de
mestrado e teses de doutorado e publicaram-se estudos mais extensos sobre sua obra, como os
de SILVESTRE, 1995, DIOGO, 1995, GOULART, 1997, LOPES, 1996, MARTELO, 1996, além de
diversos textos curtos, como ensaios e comunicações em revistas literárias, coletâneas de artigos e
anais de congressos. No Brasil, embora o movimento de leitura da obra de Carlos de Oliveira esteja
restrito a alguns centros acadêmicos de Letras, especialmente no Rio de Janeiro, com a produção ao
longo das décadas de 1980 e 1990 de poucas teses de doutorado, dissertações de mestrado e algumas
comunicações e artigos, há certa constância e, nos anos mais recentes, novas dissertações e teses foram
defendidas. No novo site que criamos em 2021, Escritor Carlos de Oliveira – Centenário, https://
escritorcarlosdeoliveira.com.br/ , registra-se de forma atualizada e detalhada essa fortuna crítica.

111
de um projeto político de transformação da vida portuguesa. Nesse
momento, como afirma Rosa Maria Martelo, o marxismo era o “campo
de referência externa incontornável” (1996, p. 378), embora ainda não
presente como proposta amadurecida nos versos. Leiam-se dois poemas
retirados da primeira edição de Turismo; um pertence à primeira parte,
intitulada “Amazónia”; outro, a “Gândara”, segunda parte.
II
Amazónia.
O Negro e o Índio e o mais que me couber:
o fogo doutro céu,
o nome doutro dia
e tudo o que estiver
nos nervos que me deu.

Amazónia.
Nome
do sangue que trago em mim:
sangue-declaração de guerra,
sangue dos olhos com fome
das latitudes da Terra.

– Somos assim.

XX
Cinza,
os sinos dobrados
já pela tarde fria.
– Porque arde em mim ainda,
de mágoa e bronze,
o sol do dia?

112
Ronda de bois na planície,
cangas sugando nervos,
– Mais do que eles,
foram meus olhos servos.

Que importam os milhos


queimados de tristeza?
– Sol no meu dorso, a vida inteira,
é maior pobreza.
(Apud MARTELO, 1996, p. 439 e 446-447)
A poesia e a narrativa que se seguem no correr dos anos 1940
até 1950 continuarão como uma “poética de testemunho” em luta
contra a exploração humana e sua degradação. Isso significava sobrepor
aos interesses estéticos a missão ideológica, constituindo-se uma
escrita literária engajada e preocupada com sua atuação na sociedade,
contribuindo para a desalienação do homem comum. Esse é o tom
até Terra de harmonia (1950). Porém, o escritor cedo demonstraria
compreender que a palavra literária não se curva sem insatisfação
e angústia a projeto exterior, tendo que deslocar para a margem os
problemas de sua própria elaboração. Por isso, a obra de Oliveira
torna-se testemunho de questões fundamentais em literatura, como o
problema da mimese e da referência, tensionando o “falar do mundo”
com a “criação de mundos”, representação e ficção.

Os críticos de sua obra concordam que o desenvolvimento da


reflexão estética que o próprio autor realizou sobre sua escrita acabou
por demarcar fases em seu trabalho: a primeira, preocupada com a
função social da escrita, e a segunda, voltada num crescendo para a
autonomia do objeto estético. As leituras críticas têm procurado discutir
as especificidades de cada momento e vêm refletindo, a partir dessa
textualidade complexa, sobre as impossibilidades do discurso neorrealista
e sua superação, a falência do projeto marxista e consequências, a crise
da representação na pós-modernidade. Aliás, a pós-modernidade, que
se tornou tema recorrente em estudos literários de língua portuguesa
113
na década de 1990, motivou, por exemplo, as análises de Osvaldo
Manuel Silvestre (1995) e de Américo António Lindeza Diogo (1995)
sobre Pastoral e Finisterra, últimos livros de Oliveira. Suas teses são
semelhantes: a falência da práxis marxista, o fim da utopia, a paragem
da história, a aceitação do imponderável, transformando a escrita final
desse escritor num “locus horrendus” (SILVESTRE, 1995, p. 144), “num
imaginário em que natureza e história, génese e destruição estariam no
mesmo lugar.” (DIOGO, 1995, p. 75) e Pastoral descobre que a ordem do
mundo não corresponde a uma ordenação. O seu fundo ‘histológico’ é
abismo e não fundamento. A Mimese perdeu-se e as pálidas aleluias são
a sua sobrevivência mentirosa” (DIOGO, 1995, p. 97).

Essas duas leituras, ainda que instigantes, não serão discutidas


aqui. Não concordamos com a ideia de impor à obra de Carlos de
Oliveira análise que sobrevalorize a questão marxista e a falência ou não
de uma ideologia. Além disso, os dois críticos por vezes preocupam-
se muito em questionar o que eles consideram “as perplexidades
do leitor marxista de Carlos de Oliveira” (SILVESTRE, 1995, p. 15),
representado para eles na figura de outro crítico, Manuel Gusmão,
num “debate” com um quê de estranheza. Se seguíssemos Silvestre e
Diogo, teríamos que considerar que a obra de Oliveira foi submissa ao
imaginário marxista que a orientou, e que, quando o projeto mostrou-se
em ruína, ao escritor nada mais restou além da desistência e do silêncio,
da indiferenciação do mundo em Pastoral e Finisterra76. Nosso ponto
de vista, pelo contrário, conscientemente deslocando para a margem a
questão marxista, defende que a obra de Carlos de Oliveira precisa ser
lida a partir de suas referências internas, as quais priorizam o projeto
estético, discutindo o (des)encontro entre escrita e realidade, teorizando
(se teorizar significa em grego “ação de contemplar, examinar”) a escrita
e a leitura como sistemas criadores e não apenas representativos. Toma-

76. Em SILVESTRE, 1995, p. 43, lemos: “como pode, enfim, o código neo-realista, tão ingenuamente
crente na possibilidade da mimese, comportar uma teoria da representação tão sofisticada e não
realista como a que nos é apresentada em Finisterra? Diria, pois, à guisa de conclusão, que nas obras
terminais de Carlos de Oliveira assistimos ao finis terrae do imaginário marxista, o que nos é dado
por uma textualidade alheia já às convenções da literatura neo-realista”.
114
se o texto, então, não como espaço todo-poderoso, e sim como lugar
de resistência apesar de sua precariedade, a passagem das “palavras de
ferro” para “a leve têmpera do vento”, independentemente de um projeto
ideológico cujas falhas a consciência crítica do autor há muito avaliara77.

Nosso modo de ler a obra de Carlos de Oliveira não enveredará


pelos caminhos contraditórios da pós-modernidade nem por filiações
ideológicas rotuladoras, pois o que aqui se privilegia é a compreensão
da escrita literária como processo refigurador da condição humana
num mundo cada vez mais inumano. Se as necessidades estéticas
num tempo inicial da sua produção literária, precisamente na década
de 1940, quando inicia suas publicações, parecem ser silenciadas pelo
projeto político que o Neorrealismo, em arte, defendeu, é porque,
naquele momento, acreditou-se que no grito estava a função da palavra
poética. No entanto, o escritor sempre esteve atento ao discurso como
trabalho com a linguagem, transformação das imagens, capacidade de
redescrição do mundo. Quando, em 1976, publicou sua Obra poética,
recuperando o primeiro livro, Turismo, com inúmeras e profundas
transformações (poemas expurgados, corte de versos, depuração do
excesso de dramatismo, apagamento do referencial sócio-histórico),
o poeta resgatava do material inicial o fundamento de seu discurso: a
cuidadosa atenção à nomeação do mundo. Do original poema V da
segunda parte, “Gândara”, em que se lia “A um sol de oiro,/ cai em gotas,
das folhas, / a manhã deslumbrada [...]”, ao poema III, na edição de
1976, permanece a capacidade de redescrever o mundo por meio da
palavra poética, concentrada na ideia de transmutação, exercício da
metáfora.
III
Transmutação
do sol em oiro.

77. Um dado apenas: Carlos de Oliveira deixa o partido comunista em 1952, como informa Rosa
Martelo (1996, p. 205, nota de rodapé).
115
Cai em gotas,
das folhas,
a manhã deslumbrada.
(O [T], p. 19)
Por isso, também, não consideraremos que as últimas obras
Pastoral e Finisterra componham o réquiem do fim da História ou da
utopia, mas sim que toda sua escrita vai se direcionando para uma
teorização do poético, com a discussão sobre as formas de apreensão
do mundo e determinação de outra função da narratividade: a
ressignificação do mundo na sua dimensão temporal (Cf. RICOEUR,
1994, p. 124.). Não falaremos de fim, mas de continuidade e de retorno,
que se sustentam pela preocupação de rever e reescrever suas obras
do passado, reelaborando as estruturas linguísticas, reavaliando as
estruturas imagéticas, em busca de maior homogeneidade de sua
produção literária e de uma identidade que só narrando se pode
reconhecer78.

Do interior de sua obra vêm-nos o debate entre um astrólogo


e um inventor de jogos. Se o primeiro, determinista, anuncia o fim do
mundo, o segundo desconsidera o tom apocalíptico e sugere o jogo,
a transformação da perspectiva, para que o céu reverbere num novo
cenário de luzes.
O azul do céu precipitou-se na janela. Uma vertigem, com certeza. As
estrelas, agora, são focos compactos de luz que a transparência variável
das vidraças acumula ou dilata. Não cintilam, porém.
Chamo um astrólogo amigo:

78. Cf. RICOEUR, 1997, p. 424-425: “O termo ‘identidade’ é aqui tomado no sentido de uma
categoria da prática. Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à
questão: Quem fez tal ação? Quem é o seu agente, o seu autor? Essa questão é primeiramente
respondida nomeando-se alguém, isto é, designando-o por um nome próprio. Mas qual é o suporte
da permanência do nome próprio? Que justifica que se considere o sujeito da ação, assim designado
por seu nome, como o mesmo ao longo de toda uma vida, que se estende do nascimento à morte?
A resposta só pode ser narrativa. [...] O si do conhecimento de si é o fruto de uma vida examinada”.

116
Então?
O céu parou. É o fim do mundo.
Mas outro amigo, o inventor de jogos, diz-me:
Deixe-o falar. Incline a cabeça para o lado, altere o ângulo de visão.
Sigo o conselho: e as estrelas rebentam num grande fulgor, os
revérberos embatem nos caixilhos que lembram a moldura dum
desenho infantil. (O [SLE], p. 205)
Se o astrólogo é a voz da descrença e da desistência muitas vezes
ouvida nos interstícios da escrita de Oliveira, caberá ao inventor de jogos
a superação dessa voz, relativizando o que se vê, relativizando o que se
conta. O escritor é esse “inventor”, e a escrita, essa janela ou desenho
onde tudo pode reverberar.

Nosso estudo sobre a produção poética de Carlos de Oliveira


no espaço temporal de 1960 a 1980 buscará, assim, compreender a
complexidade de seu exercício arqueológico de imagens79 a partir
da perspectiva de um sujeito lírico que não cessa de narrar suas
perplexidades de escrita e de mundo, sabendo que é um ser no tempo.
Precariedade e permanência, transitoriedade e memória, escrita/leitura
e realidade são, assim, polos da obra desse escritor os quais precisamos
discutir.

De Cantata a Pastoral, ao encontro de Finisterra


“Sim,
conheço
a força das palavras,
menos que nada,
menos que pétalas pisadas
num salão de baile,
e no entanto

79. Fiama Hasse Pais Brandão (1975, p. 59) lembra que “todos os textos de Carlos de Oliveira
movem uma problemática unitária: a da imagem”.
117
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?”
Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo
Se compararmos a extensão da obra literária de Carlos de Oliveira
com a de outros escritores contemporâneos, constataremos de imediato
que não é vasta. Sua produção poética publicada se constitui de 10
livros de poesia, cobrindo cerca de 300 páginas; a produção narrativa
engloba cinco romances; e há, além de poesia e romance, apenas mais
um livro de “crónicas”. O autor fez, em vida, duas recolhas de sua
poesia, e organizou com José Gomes Ferreira uma antologia de contos
tradicionais portugueses80. Nas décadas de 1940 e 1950 colaborou com
certa constância em jornais, revistas e obras coletivas. Foi responsável
também pela organização de edições sobre a obra de Afonso Duarte,
além de ser tradutor da peça Voz humana, de Jean Cocteau, de Vida
terrena, de Félix Cucurull (colaboração), e de um conto de O livro das
mil e uma noites81.

No entanto, por ser de um escritor que afirmava que “correcções,


rasuras, acrescentos, são o meu forte (e o meu fraco)” (O [AF], p. 446),
essa obra de extensão média ganha outra dimensão, se considerarmos
o processo contínuo de revisão e reescrita a que Carlos de Oliveira
submeteu seus textos durante toda a sua vida literária, publicando novas
edições revistas das obras inicialmente lançadas na década de 1940
(poesia) e 1950 (poesia e narrativa), com transformações linguísticas,
estilísticas e imagéticas consideráveis. As coletâneas de suas obras
poéticas, como Poesia, de 1962, Trabalho poético – v.1 e 2, de 1976, e
Trabalho poético, edição póstuma de 1982, reapresentam aos leitores
textos com transformações diversas, em alguns casos tão substanciais

80. OLIVEIRA, Carlos de; FERREIRA, José Gomes. Contos tradicionais portugueses. (Pref. de J.G.
Ferreira). Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1957. 2 v.

81. Consulte-se a bibliografia ativa em Obras de Carlos de Oliveira (1992), p. 1159-1166 ou no site
Escritor Carlos de Oliveira, já referido.
118
que alteram sua configuração original, como no caso já referido de seu
primeiro livro de poemas, Turismo. Sua obra sofreu, assim, um trabalho
constante de revisão e apuramento, desdobrando textos até uma versão
que se considerasse definitiva. O mesmo se processou em relação às
narrativas, pois alterações eram realizadas a cada edição. A importância
que Carlos de Oliveira dá a esse trabalho de transformação pode ser
comprovada pela negativa de republicar Alcateia (duas edições somente,
de 1944 e 1945), que não aparece em suas Obras completas, de 1992,
respeitando-se a vontade do autor, falecido havia 11 anos. Embora ele
estivesse trabalhando na revisão desse livro, não chegou ao ponto de
estabelecer uma versão que julgasse satisfatória.

Dessa forma, a obra de Carlos de Oliveira torna-se um jogo que


facilmente pode ludibriar o leitor apressado ou ingênuo que, ao ter em
mãos, por exemplo, o volume de Obras de 1992, pensa encontrar ali
a realidade de sua produção. Turismo, que ali está como seu primeiro
livro, de 1942, é, como sabemos, uma obra refeita em final de 1960 e
muito diferente da original. Nessa perspectiva, a própria escrita e leitura
se relativizam.

A ação de reescrita é um complicador na análise da obra de


qualquer autor, e, no caso de Carlos de Oliveira, a questão se adensa,
porque sua ação é insistente, rigorosa e, por vezes, altera sobremaneira
a obra passada, modificando o status dessa obra no conjunto maior.
A discussão dessa ação foi um dos objetivos, por exemplo, da tese
de doutoramento já citada de Rosa Maria Martelo, sendo estudo
fundamental para a compreensão desse processo. Quanto a nós, não
repetiremos essa problematização, considerando que o que nos importa
é a uniformidade de determinadas relações de conteúdo que, de versão
a versão, apesar de todas as modificações realizadas nos textos, vai se
mantendo. Além disso, nosso corpus de trabalho é a produção de 1960 a
1980, que sofreu modificações menos significativas.

Neste trabalho, optamos por fazer um recorte na obra poética do


autor. Concordamos com a ideia de que há duas fases na elaboração de
119
sua obra. Nossa própria dissertação de mestrado (1990), nos limites do
material pesquisado e da abordagem teórica utilizada naquele momento,
procurou demonstrar de forma mais visível essa transformação que
vinha sendo apontada por alguns críticos portugueses, como Eduardo
Prado Coelho, Eduardo Lourenço e Manuel Gusmão. O momento de
virada é a publicação de Cantata, em 1960, cujos poemas (na primeira
edição, a data-limite de redação é 195682) vão se direcionar para a criação
poética, definindo-se os principais campos metafóricos relacionados à
escrita e à memória. A década de 1960 será muito importante, porque
em seu início é publicada a primeira recolha de seus livros de poesia
(1962, sem Turismo), e no decorrer dela se processará a reescrita dos
livros anteriores: Turismo (1942), Mãe pobre (1945), Colheita perdida
(1948), Descida aos infernos (1949), Terra de harmonia (1950). A
segunda recolha é de 1972, com a inclusão do livro de 1942.

Ora, essa situação especial da obra de Oliveira se alia ao


pressuposto de que a década de 1960 foi um período de grandes
transformações sociais e estéticas, e, por isso, natural nos parece que,
para nossos objetivos, seja a partir daí que estudemos a obra do autor.
Os livros anteriores reunidos e publicados em Obras de Carlos de
Oliveira, volume único (1992)83, formam, na verdade, um grande texto
pós-60. Estão ali textos do passado relidos e reescritos pelo futuro, que
já é presente. Temos, portanto, uma curiosa subversão temporal.

Para que o leitor acompanhe o desenvolvimento de nossas


reflexões adiante, parece-nos imprescindível que se apresentem
brevemente os livros de poesia de Carlos de Oliveira publicados a partir
de 1960. E, portanto, iniciamos com Cantata, sobre o qual Eduardo
Lourenço disse ser “uma espécie de Réquiem” (Apud MARTELO, 1996,

82. De acordo com MARTELO, 1996, p. 339.

83. A preocupação com a unidade é tão forte em Carlos de Oliveira, que era seu desejo “reunir
num único volume os textos que o Autor reconhecia (à data da sua morte) como constituindo a
sua obra”. Por isso essas Obras. Não aparece aí Alcateia, cuja reescrita jamais foi concluída. Cf. nota
dos editores.
120
p. 342). Esse livro realmente se afirma como um lugar-limite, um ponto
de chegada, um ponto de partida.

Cantata reúne 22 poemas, na sua absoluta maioria, curtos. Há


dois poemas com 10 versos e outros dois com 11; seis poemas com 12
versos; cinco poemas com 13 e sete sonetos – “alguns deles são mesmo
rigorosamente sonetos, os outros são como que pré-sonetos, ou melhor,
pós-sonetos: sonetos filtrados de que fica o rasto, o voo preso, o esqueleto,
o depósito, depois de decantada a sua estrutura mais tradicional [...]”
(GUSMÃO, 1981, p. 44). Os versos são curtos, com o mínimo de duas
sílabas e o máximo de 10. Com exceção de dois sonetos reunidos sob
o título “Sonetos do regresso” (I. “Volto contigo à terra da ilusão”, II.
“Acordar, acender”), os demais poemas são intitulados por meio de um
único termo substantivo, sem qualquer determinante, como: “Vento”,
“Bolor”, “Lágrima”, “Sono”, “Soneto”, “Hora”, “Imagem”, “Névoa”, “Fóssil”,
“Vitral”, “Infância”, “Salmo”, “Voo”, “Dicionário”, “Mar”, “Estrela”, “Oiro”,
“Paisagem”, “Enigma” e “Chama”.

Contenção e concentração rítmica, métrica e metafórica


organizam esse livro, cujos poemas fazem o balanço das imagens
fundamentais na obra de Carlos de Oliveira e refletem suas principais
questões: a) a importância das palavras (“quem vos ferir / não fere em
vão, / palavras”), b) a transformação dos seres e das coisas (“A cada hora
/ o frio / que o sangue leva ao coração / nos gela como o rio / do tempo
aos derradeiros glaciares / quando a espuma dos mares / se transformar
em pedra.”), c) a precariedade e brevidade de tudo (“Pobre / sedução da
terra / cada árvore destas / é um bosque morto / na esperança / e o fio
de água / sob a ponte romana / uma saudade / já perdida / nas margens
desses rios / que me esperam / nos astros”), d) o confronto entre céu e
terra (“Aves / desta canção astral [...] levai-nos / do chão onde as cidades
/ podres nos poluem / ao céu deserto / e puro:/ naves, / ao incerto mar
/ da eternidade.”), e) o contraste entre as ideias de transitoriedade e
permanência – o processo da memória (“Sonhos / enormes como
cedros / que é preciso / trazer de longe / aos ombros / para achar /no
inverno da memória / este rumor / de lume:/ o teu perfume, / lenha / da
121
melancolia.”) e f) o desejo de transformar a linguagem em via de acesso
a outras realidades que no poema se edificam:
Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.
(O [C], p. 181)
Fundamental em Cantata é a expressão do projeto de memória
a garantir a existência, mesmo transformada, para além do tempo.
Nos poemas, a primeira pessoa se dilui na linguagem, isto é, poucas
vezes o eu pronominal é marcado, prevalecendo um sujeito material,
elemento da natureza a receber vida por meio da escrita. Assim, “As
palavras cintilam”, “Os versos que te digam”, “A morte passa”, “A pedra
abriu”, “O dia acende o teu olhar”. O mundo se apresenta na cena do
poema ressignificado como metáforas essenciais que um tu/vós deverá
compreender, reencontrando o sujeito criador. Dessa forma, cada poema
é uma memória, conjunto de vestígios e marcas da vida: os sentimentos,

122
imagens do real e imagens de um imaginário pessoal. O poema “Fóssil”84
é a mais forte metáfora desse processo de transformação da vida em
escrita, do transitório ao desejo do permanente:
A pedra
abriu
no flanco sombrio
o túmulo
e o céu
duma estrela do mar
para poder sonhar
a espuma
o vento
e me lembrar agora
que na pedra mais breve
do poema
a estrela
serei eu.
(O [C], p. 185)
Note-se que, na pedra do poema, “a estrela serei eu”; portanto, em
direção ao futuro, o sujeito escrevente vai se fossilizando na sua escrita,
ficando como um vestígio de vida na sua ausência. Em direção ao
passado, o sujeito escava-se como sítio arqueológico que deseja expor à
luz, reencontrando não o real, para sempre perdido porque sob o signo
da morte, e sim imagens que são os vestígios, a memória dessa vida
fadada à precária existência no presente. É no confronto entre ausência e
presença, passado e futuro, passagem e permanência, que Cantata define
o traço mais forte da escrita de Carlos de Oliveira: a busca arqueológica

84. Em ROMANO, 1997, p. 90, lemos a seguinte explicação: “O próprio conceito de fóssil sofreu
transformações: no sentido original, aceite até ao fim do século XVIII, ‘fóssil’ permanecia fiel à
sua etimologia, do latim fodere ‘escavar’, ‘cavar’ ou ‘extrair’ [...] Parece que o termo se deve ao
alemão Georg Bauer, alias agrícola, para quem os fósseis eram não só os restos vegetais ou animais
mineralizados, mas também as pedras, os minerais etc. [...] Werner, em 1714, tratando dos “fósseis”,
dava ao termo o significado de ‘pedras’.”
123
de imagens vitais para o poeta e a inscrição de seu ser na linguagem,
que se torna um corpo a desafiar o domínio do tempo. A fossilização é
um processo material que dá à morte a possibilidade de outra espécie de
vivência, assim como a escrita para o poeta é a sua forma de configurar
o tempo como uma espécie de eternidade, porque, mesmo morta a
realidade biológica que um dia foi, o ser pode permanecer por meio
do processo de leitura, de decifração de sinais, que o leitor exerce como
condição do jogo literário. Sem dúvida, Cantata nos fala de refigurações
por meio da palavra poética.

Oito anos depois, o autor publica dois livros de poesia: Sobre o


lado esquerdo e Micropaisagem. O primeiro apresenta uma organização
interna semelhante a um livro anterior, Terra de harmonia , de 1950.
Em ambos há textos em versos e em prosa. Terra de harmonia apresenta
23 títulos que englobam 32 textos, dos quais sete são em prosa; Sobre o
lado esquerdo reúne 21 títulos, englobando 26 textos, dos quais 14 são
em prosa. No livro de 1950, o trabalho intertextual é dominante85, com
o poeta retomando versos ou mesmo poemas inteiros de seus poetas de
eleição, como já observado; no livro de 1968, a intertextualidade volta
a dominar como processo gerador da escrita. Não ocorre a retomada
direta de textos, e sim o registro de leituras, evocando-se Desnos,
Maiakovski, Rilke, Carlos Drummond de Andrade e Edgar Allan Poe.
Em ambos os livros, há também uma intertextualidade interna ao
próprio conjunto da obra de Oliveira, ou seja, alguns dos textos em prosa
são como rascunhos que ainda serão publicados em definitivo (de Sobre
o lado esquerdo, por exemplo, os textos I, II, III e IV, que aparecem sob
o título de “Desenho infantil”, são recuperados em Finisterra), outros
são fragmentos de textos publicados e transformados, como no caso de
“Árvores” em Terra de harmonia, o qual, aliás, já comentamos. Além
disso, retoma-se o personagem “o inventor de jogos”, e o texto “Dunas”,
de Sobre o lado esquerdo, parece continuar o texto “O círculo”, de Terra
de harmonia:

85. Como já referimos, a dissertação de mestrado de PARRADO, 1996, faz estudo cuidadoso sobre
a intertextualidade em Terra de harmonia.
124
Caminho em volta desta duna de cal, ou dum sonho mais parecido
com ela do que a areia, só para saber se a áspera exortação da terra, o
seu revérbero imóvel na brancura, pode reacender-me os olhos quase
mortos.
O que eu tenho andado sobre este círculo incessante: e ao centro o
pólo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta há
muito, possivelmente imaginada, conduz-me sem descanso, prende-
me como um íman ao seu rigor já cego.
(O [TH], p. 161)

Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca


julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na
cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos
meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da
praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:
“O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme
os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros,
e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a
energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados
científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere
que os astronautas o acordem.” (O [SLE], p. 222)
Apresenta-se no segundo texto uma questão central da obra
de Oliveira no seu conjunto. Destaquemos uma frase: “O inventor de
jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego.” Ora, a solução para
impedir a cegueira total é utilizar um instrumento que facilite a visão.
No caso, o inventor recomenda um microscópio, por meio do qual os
grãos imperceptíveis se transformam em grandes massas orográficas.
Temos aí uma proposta de mudar o ângulo de visão para poder mudar
a descrição de algo que se contempla. É, portanto, sobre transformação
que os poemas de Sobre o lado esquerdo vão se fazendo, definindo o
tempo como agente principal dessa atividade que se reduplica na ação
de escrita e leitura. Os textos desse livro também falam da memória,
tempo vivenciado pelo sujeito, tempo narrado. É o que ocorre, por
exemplo, no primeiro texto do livro, “Look back in anger”, no qual se
cruzam dois sujeitos – o que viveu as agruras da guerra e o que herdou

125
“imagens latentes”, revelando-as “numa pura suspensão de cristais”, a
escrita.

Assim, o que o leitor desse livro acompanha é o percurso de um


sujeito em primeira pessoa no interior da própria linguagem, edificando
sua escrita sobre memórias, reexaminando o seu tempo histórico e
biológico, ou seja, a sua existência social e física que a casa e o corpo
representam. Nesse sentido, por exemplo, elaboram-se os poemas
“Porta”, “Casa” e o texto em prosa “Sobre o lado esquerdo” (referência
aliás Drummondiana...), no qual o projeto é “esmagar o coração”. Porém,
há um espaço de cruzamento da casa e do corpo, lugar em que os tempos
histórico e biológico, ambos precários, são transformados em duração
– falamos do poema, dessa casa / corpo de palavras86. O livro, assim,
narra um trabalho fundamental para os poetas: processar e avaliar
representações como enfrentamento do tempo. Em muitos momentos do
livro fala-se de processos representativos: o filme fotográfico, o desenho
infantil, o fotograma, a radioscopia, a metáfora e o poema; utilizam-
se formais verbais que indiciam o movimento de representação: revelo,
fulgurando, altere, conjugar, reflectir-se, desvendar, reconstrói, chamar.
No entanto, a representação de que se fala em Sobre o lado esquerdo
não tem nada de duplicação, cópia, repetição, e, por isso, é um trabalho
angustiado, porque o que se deseja representar é justamente o que não
tem imagem: o tempo, a beleza, o fulgor, o movimento da vida. A escrita,
portanto, é um ofício inquietante, sempre precário nas suas realizações,
porque o movimento desse ofício é a constante transformação: “cada
poema, / no seu perfil / incerto / e caligráfico, / já sonha / outra forma.”
(p. 223), “Esta coluna / de sílabas mais firmes, / esta chama / no vértice
das dunas / fulgurando / apenas um momento, [...]” (p. 204), “[...] as
palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se
no rasto da criança.” (p. 214) e

86. Partimos da ideia de que “O corpo expande-se na casa. [...] E não apenas a casa aberta
comunica com a paisagem, por uma janela ou um espelho, como a mais fechada casa é aberta
para um universo. [...] É como uma passagem do finito ao infinito, mas também do território à
desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 158-159).
126
A cidade caía
casa a casa
do céu sobre as colinas,
construída de cima para baixo
por chuvas e neblinas,
encontrava
a outra cidade que subia
do chão com o luar
das janelas acesas
e no ar
o choque as destruía
silenciosamente,
de modo que se via
apenas a cidade inexistente.
(O [SLE], p. 225)
Aproximar-se desse “inexistente” é o projeto de escrita rigorosa
dessa poesia que se autoexaminará em Micropaisagem (82 textos
distribuídos em 12 conjuntos de poemas, todos com 14 versos curtos),
obra também publicada em 1968. Mais uma vez a crítica é uníssona sobre
a importância desse livro no conjunto da obra de Carlos de Oliveira.
Extremamente densa, móvel em termos de composição e imagética, a
escrita torna-se um verdadeiro puzzle, e o livro, um tabuleiro de jogo
em que os dados são as palavras, em lances sem acaso. O próprio Carlos
de Oliveira fala-nos que foi “obra lenta, elaborada com todo o vagar na
‘alquimia’ dos papéis velhos” (O [AF], p. 585), porque
O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta,
luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional.
Para mim esse trabalho consiste quase sempre em alcançar um texto
muito despojado e deduzido de si mesmo, o que me obriga por vezes a
transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimetno
e destino. É o caso da “Micropaisagem”. Um texto diante do espelho:
vendo-se, pensando-se. (O [AF], p. 587)

127
O estudo de Nelson de Matos intitulado “Micropaisagem, um
espaço de rigor e harmonia”, publicado em A leitura e a crítica (1971),
ainda nos parece muito esclarecedor sobre a organização desse livro,
principalmente em relação ao conjunto de 24 poemas que formam
“Estalactite”, impressionante exercício de contenção expressiva que vai
refletir como espelho o trabalho de elaboração da linguagem poética e
a criação metafórica. Tal trabalho se constitui, claramente, em torno de
um eixo: a memória, que será fonte e objetivo do poético. Diz Carlos de
Oliveira, em outro lugar: “A memória, uma estalactite.” (O [AF], p. 586).
Mas, voltando ao estudo de Nelson de Matos, há um momento em que
ele cita Derrida:
Escrever é retirar-se. Não para a sua tenda para escrever, mas da
sua própria escritura. Cair longe da sua linguagem, emancipá-la ou
desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a
palavra. Ser poeta é saber abandonar a palavra. Deixá-la falar sozinha,
o que ela só pode fazer escrevendo (apud MATOS, 1971, p.110 ).
Valendo-se dessa citação, o crítico considera que em
Micropaisagem a linguagem é “sujeito do livro, ser falante que nele
escreve e simultaneamente sobre ele e sobre si vai reflectindo”87.
Realmente, o leitor desse livro depara-se com o próprio processo de
elaboração poética como estratos de imagens que vão se sobrepondo e se
metamorfoseando no labirinto do discurso. Essa teorização do poético
demonstra que o poema cria suas próprias referências e se liberta do
poder de referência de primeiro grau típica da linguagem ordinária,
pondo em prática a “teoria da interação” de que fala Ricoeur (s.d.a, p.
213), quando considera a metáfora-discurso.
A tese que eu aqui sustento [...] estabelece que a suspensão de
referência, no sentido definido pelas normas do discurso descritivo, é

87. MATOS, 1971, p. 110. A citação de Derrida é retirada de L’écriture et la difference. Paris: Seuil,
1967, p. 106: “Écrire, c’est se retirer. Non pas dans sa tente pour écrire, mais de son écriture même.
S’échouer loin de sur langage, l’émanciper ou le désemparer, le laisser cheminer seul et démuni.
Laisser la parole. Etre poête, c’est savoir laisser la parole. La laisser pareler tout seule, ce qu’elle
ne peut faire que dans l’écrit”. Citamos em português a partir da edição brasileira pela Editora
Perspectiva, 1995 (coleção Debates, 49), p. 61.
128
a condição negativa para que se liberte um modo mais fundamental de
referência cuja explicitação é tarefa da interpretação. Essa explicitação
põe em jogo o próprio sentido das palavras realidade e verdade, que
devem, também elas, vacilar e tornar-se problemáticas (RICOEUR,
s.d.a, p. 341).
Leiam-se, com essa perspectiva, dois poemas:
III
Se o poema
analisasse
a própria oscilação
interior,
cristalizasse
um outro movimento
mais subtil,
o da estrutura
em que se geram
milénios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.

IV
Localizar
na frágil espessura
do tempo
que a linguagem
pôs
em vibração,
o ponto morto
onde a velocidade
se fractura
e aí
129
determinar
com exatidão
o foco do silêncio.
(O [M], p. 237-238)
Esse “foco do silêncio” não será talvez o espaço da criação de
sentido própria à metáfora viva?

Após “Estalactite”, seguem-se quatro conjuntos de poemas


cujo fio temático comum é a metamorfose estética: em “Árvore”
(oito poemas), as raízes da árvore que estão na escrita do poema, em
“Debaixo do vulcão” (oito poemas), uma epígrafe de Malcolm Lowry
e seu imaginário narrativo transformado em poema, em “Fogo” (três
poemas), do fósforo como objeto real ao fogo metafórico no poema, em
“Aresta” (cinco poemas), do conto “O pêndulo”, de Poe, em tradução de
Baudelaire, à imersão na matéria do poema. Após, seguem-se mais sete
grupos poemáticos, “Vidro” (quatro poemas), “Puzzle” (três poemas),
“Filtro” (quatro poemas), “Rasto” (cinco poemas), “Mapa” (dois
poemas), “Espaço” (10 poemas), “Líquenes” (seis poemas), que vão
tratar de grandes linhas que percorrem toda a sua escrita, evidenciando
o processo de redescrição do mundo, da vida, do sujeito. Esses poemas
falam de paisagens interiores que se transformam em poemas, “ilhas
caligráficas” a serem conhecidas através do mapa que o poeta não
cessa de desenhar, numa permanente oscilação entre processos de
esquecimento e de memória. Entre esses conjuntos, destacamos “Filtro”,
em que se expõe o processo de depuração do real até se chegar a uma
imagem-essência que, embora não mais presa à realidade, restitui com
mais lucidez o que se perdeu. Vale a pena a transcrição integral dos
quatro poemas:
I
[...] e as
suas íris,
nítida
profundidade aquosa,

130
coavam
lentamente
as chamas
da lareira
transformando-as
quase
num depósito
vítreo
de fulgor
e penumbra.

II
O poema
filtra
cada imagem
já destilada
pela distância,
deixa-a
mais límpida
embora
inadequada
às coisas
que tenta
captar
no passado
indiferente.

III
Pior
para as coisas.

Este álcool decantado

131
gota a gota
bebe-se
e embriaga
um pouco
mas
por outro lado
apura,
aguça

a lucidez
do texto,

IV
restitui
com mais intensidade
as chamas
não
mas
essa essência
quase vítrea
de penumbra
e fulgor
que deixaram
nuns olhos.

Melhor
para as coisas.
(O [M], p. 290-293)
A organização interna desse livro nos faz pensar em terrenos
sobrepostos. Cada conjunto de poemas vai se associando numa
geologia poética que precisamos analisar: camadas de versos, imagens
e de metáforas que se elaboram no tempo, “estratos sobrepostos” (O

132
[AF], p. 586). A leitura inocente, distraída, torna-se impossível porque
o que se lê é o próprio acontecer da linguagem, com suas surpresas e
impossibilidades. Assim, essa escrita impõe ao leitor também um
trabalho de pesquisa, de refiguração interpretativa para conhecer as
“ilhas caligráficas” que “O poeta / [o cartógrafo?] observa”.

Micropaisagem é literalmente uma invenção de mundos e, junto


com Finisterra, realiza o projeto do escritor: “Erguer a cúpula da criação.”
(OLIVEIRA, 1981, p. 5) É uma obra que tem a memória dos impasses
elaborativos dos livros anteriores, e será ela a indicar o prosseguimento
da produção de Carlos de Oliveira em direção a um aprofundamento
na matéria com que se fazem os poemas – não só as palavras, não só os
sons, não só as referências, mas uma busca incessante de definir camadas
na linguagem, de buscá-las no silêncio, no ausente e no indizível. Uma
concepção de linguagem como lugar de conhecimento e não apenas de
comunicação. É, sem dúvida, a defesa mais intensa de Carlos de Oliveira
sobre a importância do olhar na escrita, quer por uma perspectiva
interior, com as experiências do imaginário, quer pela perspectiva
exterior, com o confronto com o real. Micropaisagem é a alegorização da
própria criação poética, como trabalho, lavratura, penetração da terra
com o olhar para alcançar micropaisagens.

Nesse momento, a escrita poética de Carlos de Oliveira está


dominando plenamente suas estratégias de composição e evidenciando
com muita clareza os temas que lhe são fundamentais: a arte como
trabalho, o ser como construção no tempo, a escrita entre morte e
memória, a linguagem como espaço de uma cosmogonia e a consciência
crítica do fazer literário.

Na década seguinte, o autor publica Entre duas memórias


(vencedor do Prémio de Imprensa de Literatura, dado pela Casa da
Imprensa), em 1971; e, em 1977, Pastoral, o qual viria a ser seu último
livro de poesia. Lembremos também que, em 1976, reuniu de novo sua
obra poética em dois volumes, sob o título de Trabalho poético. Carlos
de Oliveira faleceu em 1981.
133
Entre duas memórias, considerado por Gastão Cruz “a verdadeira
cúpula de todo o edifício poético” (1999, p. 62), é uma obra composta
por três grandes partes – “Cristal em Sória”, “Sub specie mortis” e
“Tempo variável” –, cada uma, por sua vez, dividida em três conjuntos
poéticos88. Na primeira parte, “Cristal em Sória”, os poemas se elaboram
a partir de material imagético colhido em obras alheias. Em “Nas colinas
de António Machado” e “Rio, despedida”, o poeta português visita a obra
do poeta espanhol António Machado, Campos de Castilla, e ressitua as
imagens das colinas, do cristal e do rio na especificidade de sua própria
escrita.

Assim ocorre também em relação a “Descrição da guerra em


Guernica”, espaço verbal que lê a pintura e dela realça o espanto pela
destruição e pela morte. O poeta, portanto, está entre duas memórias
(do real e da arte), e nesse espaço de intervalo ele expõe outra memória,
que é a sua escrita. Na segunda parte, “Sub specie mortis”, reunindo
“Salto em altura”, “Noite de verão” e “A segunda memória”, o tema
da transformação persiste; contudo, o processo de metamorfose das
imagens se constitui a partir de paisagens interiores ao sujeito lírico,
ou seja, resulta da descrição de imagens inscritas nesse sujeito. Há um
cruzamento intenso de referências concretas que são tão subjetivadas
que a leitura se torna um caminhar por labirinto: voo, anjos, pastores, o
saltador, a lua japonesa, as páginas de Os lusíadas, o eletrocardiograma,
uma viagem tornam-se elementos voláteis no tecido dos poemas, que
formam para o leitor uma “cartografia transtornada” e uma “memória
intransitável” (O [EDM], p. 364).

Na terceira parte, “Tempo variável” (“Dança”, “Crepúsculo” e


“Fotomontagem”), o tempo é o elemento propulsor da mudança, e a
escrita tenta captar esse movimento devorador, ciente da sua impotência,
mas insistindo na resistência a ele. Fala-se, assim, de esquecimento e
memória, da morte, único espaço sem tempo.

88. Já se estudou o aspecto numérico dessa organização. Cf. MACHADO, 1998, p. 75-99.
134
III
sente-se a lentidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;
dançam agora dois a dois,
reconstituem a unidade
cindida ainda há pouco; os pares
mortais; a vocação
de transformar o tempo em rostos;
somam-se duas mortes
e obtém-se uma criança; ela, sim:
resistirá, crescendo,
ao desgaste do dia,
procurará na outra noite
o corpo que define o seu;
protege-a a espuma, a máscara,
até de madrugada; e então,

IV
das duas uma: reproduz-se
também; ou extingue em si
o fluxo da dança;
[...] (O [EDM], p. 371-372)
Entre duas memórias, portanto, testemunha a atenção que o
escritor dá ao problema da representação em arte, aos processos de
transformação das imagens, distinguindo cuidadosamente a atividade
de criação da atividade falhada da mera reprodução. É uma questão
importante na obra de Carlos de Oliveira e na própria reflexão estética
que a poesia neorrealista possibilitou – o que não se deve esquecer, para
não reduzir o projeto neorrealista às produções menos importantes e
mais ortodoxas de alguns de seus participantes, por demais preocupados
com uma retórica política incapaz de compreender o fenômeno estético.

135
Ora, a falha e falência de qualquer representação que se pretenda
totalizadora será tema de Finisterra (1978); entretanto, também
em Pastoral, o último livro de poesia publicado (1977), assistimos
ao esfacelamento de qualquer modelo de escrita com pretensão à
reprodução ou à totalização de imagens do mundo. Pastoral reúne
10 poemas, os quais já estavam escritos em 197189, e é o conjunto de
poemas mais complexo do autor, gerando ainda agora perplexidades de
interpretação, o que talvez seja a grande vitória desse livro que não se
submete de forma alguma à singularização de uma leitura.

Na visão e revisão de uma paisagem rarefeita, terra (des)povoada


de camponeses, fecha-se um ciclo poético começado há muito em
Turismo. Neste, terras eram nomeadas e representadas na escrita:
Amazónia e Gândara, lugares de origem e da memória imagética. Em
Pastoral, a terra se dilui e só restam alguns traços de sua existência na
linguagem; o que sobra afinal é apenas a escrita. Recorremos de novo a
Ricoeur (s.d.a, p. 343): há uma interpretação literal impossível, e, sobre
as ruínas do sentido literal, ergue-se uma nova intenção referencial que
se dirige ao interior da própria obra, para poder dar “alguma ideia disto.”
(O [P], p. 408 – último verso do último poema).

A complexidade reflexiva a que Carlos de Oliveira se entrega


nesse seu último livro de poesia dá azo a que se fale de hermetismo a
intranquilizar nossa leitura; mas esse hermetismo pode ser rompido se
o leitor tiver acompanhado todo o projeto poético do autor, já que o
poeta foi fiel aos seus temas, às suas preocupações e reflexões estéticas,
sociais e ideológicas. No entanto, não se pode negar que esse conjunto
de 10 poemas tem um tom negativo, e mesmo pessimista, o que vem
provocando algumas leituras críticas a defender um discurso pós-

89. Em MARTELO, 1996, p. 419, lê-se: “Conforme a nota final que, em 1976, acompanhava o
segundo volume desta obra, os dez poemas assim reunidos não terão sido redigidos depois de 1971,
e as características de que se revestem deixam supor que não poderiam ter sido escritos muitos antes
dessa data”. Em nota, Rosa Martelo explica: “De notar ainda que sete poemas de Pastoral incluídos
no segundo número de Nova (Outono de 1976, p.28-31) são datados de 1968/71”. Observe-se ainda
que ela intitula o capítulo sobre Pastoral de “Deserção inconclusa”.
136
moderno a partir das ideias de paragem da História e da fragmentação
da própria linguagem, incapaz de qualquer representação, como já
comentamos. Nesse sentido, lê-se Pastoral como texto de melancolia e
“paisagem de privação. Da luz, da linguagem, do mundo” (SILVESTRE,
1995, p. 138); reconhecimento do fim. Assim, o último poema, “Musgo”,
torna-se facilmente o fecho da tragédia anunciada:
Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso quase obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.

Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.

Dir-se-á por fim


que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;
e talvez
que só o musgo dá;
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto. (O [P], p. 408)
A morte do autor em 1981, infelizmente, colaborou para se
considerar Pastoral como um fim, a escrita da desistência; porém, se

137
a morte não houvesse ocorrido, talvez outro livro de poesia tivesse
sido publicado, relativizando o sentido de Pastoral90. Logicamente, não
poderemos mais considerar essa hipótese, mas, pela obra pretérita,
avaliada e constantemente revista pelo autor, pelo encaminhamento
que este lhe deu sempre, consideramos que ler Pastoral como discurso
do fim, réquiem da História, é negar o fundamento da obra de Carlos
de Oliveira: permanência, memória, combate com a linguagem91.
Assim, não o lemos para encontrar o fim do mundo, da História ou do
imaginário marxista, e sim para defender que o poeta continua a falar da
autonomia de uma escrita que não se submete ao mundo fora do texto,
mas não o ignora como matéria de poesia. Manuel Gusmão considera
que “parte pelo menos das singularidades da poesia de CO vem da
intensa articulação de dois movimentos: o de um desejo obsessivo do real
e o da autofiguração das formas operatórias desse desejo” (GUSMÃO,
1992, p. 67). Acreditamos que Pastoral seja a experiência extrema dessa
autofiguração, quando transforma o poema em um dos únicos vestígios
“materiais” de um mundo, dirigindo toda a referência a si próprio. Por
isso, a compreensão positiva do poema “Registo”:
Saber que seja
este hálito: se terra

90. “Com efeito, não são poucos os títulos de obras anunciados ao longo da vida de Carlos de
Oliveira e que nunca vieram a ser publicados. Basta citar alguns exemplos: em 1944, ao publicar
Alcateia, anunciava um novo romance, Os dias e as noites; em 1962, na publicação da recolha
Poesias (1945-1960), anunciava dois livros de poesia inéditos, Convívio de amigos e Dicionário do
povo; em 1968, na edição de Micropaisagem, era anunciado o romance Duas mortes para cada um
e os livros de poemas Convívio de amigos (novamente) e Jornal de actualidades; em 1978, na edição
de Finisterra, era anunciada a publicação de O inventor de jogos e do III volume do Trabalho poético.
Eis um conjunto de títulos que sempre ficaram inéditos. Porventura alguns terão sido publicados
com título diferente. [...] Não sabemos também se algum deles existe manuscrito; a única coisa de
que possuímos informação é que alguns deles chegaram a estar escritos” (VÉRTICE, 1982, p. 734).

91. Recordemos texto de José Cardoso Pires sobre Carlos de Oliveira, intitulado “Sobre o Lado
Esquerdo” e publicado em Jornal de Letras, Artes e Ideias (7 a 20 de julho de 1981, p. 17): [...]
Conversámos quase linha a linha sobre esse admirável levantamento de uma paisagem [Finisterra],
que nos era nossa, eu com o pudor dos entusiasmos profundos, ele com o discorrer sereno e
aparentemente desencantado com que costumava enfrentar os problemas do ofício e da vida e que
não queria dizer renúncia nem desespero, isso nunca.” (Grifo nosso.)
138
ou ar movido
já por metais mutáveis
na linha das colinas.

Como se propaga
esta sombra e fica
gradualmente gráfica
num som
de minas e éter; ou
ter desenhado o horizonte
com o seu traço
mais volátil: vermos só
a tinta evaporar-se.

Não há outro
registo, mas alíneas
deste. Assim flutua;
cálculo e acaso; a cal
ainda tensa das casas
sobre
o crepúsculo esponjoso.
(OLIVEIRA, 1992, p. 389)
Se há desistência ou pessimismo em relação à ideologia ou à
política (estava-se num período pós-Revolução dos Cravos, vivenciando-
se desapontamentos com os rumos tomados (Cf. RIBEIRO, 1993, p.
494-495.)), não há a desistência da poesia. E isso não era uma afirmação
formalista ou idealista, e sim uma forma de resistência necessária para o
poeta. Pastoral não é o discurso do fim, mas o discurso de enfrentamento
desse fim; por isso a esperança transfigurada em poesia ainda pode
existir, e é com esse entendimento que o poema “Chave”, nesse livro, é
lido aqui como espaço afirmativo da linguagem:
Se uma película de vidro

139
adere à pele da pedra; se algum
vento vier.

Afere-lhe o esplendor; martela,


fere: um som de ferro
no exterior; por dentro
outra textura mais espessa. Poisa
como um verniz depois o ar
suave a sua
laca no esmalte fracturado.

E levanta-se então.
Minuciosamente. Ergueu-se
o halo
das colinas; a lenta beleza
levitada em cada grão
de pedra. Irradiando as lanças
que o brilho do vento
restituiu à luz, no aro
mais espesso do ar.

Rodar a chave do poema


e fecharmo-nos no seu fulgor
por sobre o vale glaciar. Reler
o frio recordado.
(O [P], p. 391-392)
Em 1978, o autor publica sua última obra: Finisterra – paisagem e
povoamento. É uma narrativa que retoma não só textos já publicados em
O aprendiz de feiticeiro (como “A Fuga”), em Sobre o lado esquerdo (como
“Estrelas”, “Desenho infantil I, II, III e IV”), como também sua primeira
narrativa, Casa na duna, de 1943. “Romance dos romances” (VIÇOSO,

140
1991, n. 38, p. 10), Finisterra transformou-se num marco92 da escrita
ficcional portuguesa contemporânea e realizou uma síntese da própria
obra do autor, já que essa narrativa, claramente subversora de instâncias
discursivas (como sujeito, espaço e tempo), realiza a confluência da sua
prosa com sua poesia, constituindo um texto mesclado, o qual o crítico
Manuel Gusmão já disse ser “o exemplo extremo do trabalho poético de
um autor” (GUSMÃO, 1988, p. 47).

Finisterra nos fala da falência de qualquer tentativa de


representação reduplicadora do real, refletindo sobre a impotência dos
simulacros em recuperar um mundo em ruínas. Porém, é a partir dessas
ruínas, de vestígios, de registros, do texto, que esse mundo, relativo e
relativizado, instável e precário, pode ainda existir. Ouvimos desejos e
acompanhamos ações de reapresentação de uma paisagem que está se
perdendo e a impossibilidade de efetivar a representação, mostrando-
se toda textualidade (em sentido amplo: desenho, foto, pirogravura
etc.) como lugar de “desilusão”93, ficção. No entanto, a narrativa vai
se construindo em negativo, como um filme fotográfico lentamente
se revelando. Vemos, assim, por que Finisterra é realmente um marco
narrativo em língua portuguesa, comparável com a desconstrução do
sujeito que a obra pessoana representou.

Sobre essa obra, aberta em todos os níveis de sua elaboração, é


muito pouco o que registramos por agora; pelos limites deste estudo,
não avançaremos mais, a não ser para fazer uma relação também aberta
entre textos: no primeiro capítulo da narrativa, a criança/homem está
“sentado num osso de baleia [...] textura de madeira pobre, exposta
à água, à erosão, sem apodrecer”. Aí sentado e apoiado, “consegue

92. Maria Alzira Seixo escreve: “É em 1978 que se publica o texto que, a nosso ver, condensa
com mais absoluto acabamento as tendências que acabámos de enunciar: é de Carlos de Oliveira
e chama-se Finisterra [...]. Romance singular deste nosso tempo, nele se estampam algumas das
constantes do romance contemporâneo (construção do texto plural, modulação una, miscigenação
de registos, alinhamento paratáctico) num invulgar grau de concatenação e de confluência, numa
invulgar consecução de ordenamento estético” (1986, p. 57).

93. Cf. VIÇOSO, 1991, n. 38, p. 19: “ver alguém a construir ilusões é um modo de desilusão”.
141
desenhar”. Expulso do jardim pela chuva, entra na casa e projeta medi-la:
“Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a distância entre
as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas horas através da casa:
às escuras e sem tropeções”. (OLIVEIRA, 1992, p.1010-11) A narrativa
começa. Já em O aprendiz de feiticeiro, no texto “Almanaque literário”, o
último tópico tratava de “diálogo entre personagens de romance”:
– Só o osso, o que em nós é duro, resistente, dá algum sentido (muito
relativo) a palavras como eternidade, alma, tempo. Não há outra
metafísica possível senão essa. Acredita. A do osso, a do cálcio.
– Se não sabes nadar, porque te atiras à água?
– Porque nado doutra maneira. Porque me estou bugiando para as
bóias e os nadadores convencionais. Porque em última análise não
nascemos para nadar. Aí tens. Nascemos para ir ao fundo. Eu explico-
te melhor a minha teoria. Osso, cálcio. A palavra cálcio subdivide-se
noutras duas: cal e cio. Pode não ser uma descoberta importante mas
aposto que não tinhas reparado nisso. O mineral e o animal ao mesmo
tempo. Quando o cio, o tutano, o animal, se decompõe e desaparece,
fica o mineral, a nossa durabilidade extrema, a nossa resistência ao
tempo. Só ele faz pensar um pouco na eternidade, vista do ângulo que
te interessa.
– Interessar-me uma aproximação duvidosa e inerte (repara bem,
inerte) da eternidade? A mim? Estás enganado. O osso, bolas para o
osso, não tem consciência.
– De facto, não tem. Mas que diabo há em ti de mais duradoiro, mais
eterno, do que ele? A tua alma ou é esse resíduo de pedra ou não é
nada. (O [AF], p. 479)
Relação aberta, dissemos nós, a dar a ideia de que a escrita é
esse resíduo de pedra, uma tentativa de reter nossa parte mineral,
“nossa durabilidade extrema”, fazendo com que osso, cal, pedra sejam
metáforas da literatura. É inevitável lembrar ainda de “Estalactite” e a

142
“cal”, e de Eduardo Prado Coelho e a cal(i)-grafia94, desenho de letras,
narrativa que fica. Finisterra, como a poesia de Micropaisagem, revela-
se a “câmara escura” da escrita de Carlos de Oliveira, inventor de jogos.

Balizas de um trabalho poético: O aprendiz de feiticeiro


“Nós, escritores, trabalhamos com palavras. Não nos é
lícito ignorar que podem ser uma arma de força terrível ou
terrivelmente frágeis. [...] O nosso ofício consiste em escolher
as palavras, utilizá-las no momento exacto, atenuá-las,
engrandecê-las, dominá-las. E o que são as palavras? Língua,
linguagem, povo, oralidade, escrita, herança literária. A
reestruturação da técnica narrativa ou poética tem de conhecer
até ao pormenor a matéria de que se serve. Ou então a literatura
é uma batata.”
Carlos de Oliveira, O aprendiz de feiticeiro
Todo o trabalho de depuração ao qual submeteu sua obra
demonstra que, para Carlos de Oliveira, escrever era uma ação de
extrema responsabilidade ética e estética. Importava habitar a linguagem
de tal modo que não dominasse o vazio no sujeito e entre o sujeito e o
mundo, e, por isso, sua escrita tornou-se uma contínua reflexão sobre a
própria linguagem e o exercício do poético. Trabalhou sua prosa como
um poeta, pois, também aí, era a linguagem que estava em jogo e em
risco.

Escritor avesso a tertúlias literárias e à imposição de sua


presença, Carlos de Oliveira exerceu um papel crítico importante não

94. “Poderíamos dizer (forçando as leis etimológicas) que a relação que o poeta estabelece entre
a cal e a água, polos onde o sentido se gera, é a chave explicativa do enigma da escrita: o poema é
caligrafia (“para / a cal / florir / nesta caligrafia / de pétalas / letras”). Isto é, o poema aparece como
cal (i)-grafia, grafia da cal: combinação metafórica de pétalas e letras, formação de flores calcárias
(que em si mesmas contêm o elemento que lhes dá origem), e, no limite, de estrelas que povoam
um “céu calcário” (na sequência que a rima acentua: pedra – pétala – letras – estrela)” (COELHO,
1972, p. 121).
143
só para aqueles que privaram de sua amizade95, como para todos que
leram, pelo menos, seu único livro de artigos, crônicas e reflexões
publicado em 1971. Falamos, naturalmente, de O aprendiz de feiticeiro.
Nenhum estudo abrangente sobre sua obra pode ignorar esse livro, no
qual o “aprendiz” discute as balizas que norteiam a condução de seu
trabalho estético e a condição de escritor português, além de homem
no mundo. Lá estão, em síntese, os três princípios que dirigiram sua
escrita por cerca de 40 anos de vida literária: ética, rigor e harmonia.
Sem dúvida, “a multiplicidade de textos que compõem O aprendiz de
feiticeiro vem ensinar-nos a ler, nos seus aspectos mais diversificados,
um projecto escritural que insiste em se fazer reconhecer ao longo da sua
metamorfose” (COELHO, 1972a, p. 136, grifo do autor).

O livro reúne 24 textos que já haviam sido redigidos, alguns até


publicados, no período largo de 1945 a 1970. Sua inserção nesse livro
significou para cada texto a definição de sua importância frente à obra
realizada até 1970, mostrando a continuidade de determinadas ideias e
o resultado particular da ação de reescrita que anulou “sobretudo (n)os
mais antigos” (O [AF], p. 410) outras preocupações que, para o escritor,
em 1970 nada mais significavam. Representa, portanto, uma avaliação
crítica, um balanço; e o resultado é a maior entrevista pessoal que o
escritor poderia ter dado a seus leitores, explicando seu projeto estético,
seu posicionamento como homem, cidadão português e escritor de
língua portuguesa.

Todos os textos têm como motivação uma referência textual ou


literária propriamente dita. Em “A viagem”, o famoso verso de Adriano,
“Animula vagula blandula”; em “A dádiva suprema”, versos de Afonso
Duarte; em “Manual de jogos”, a descoberta de um livro de autor
desconhecido, impresso nos fins do século XIX; em “Imagem turva”, um

95. “Ao longo dos anos mantém convívio assíduo com escritores e poetas de sucessivas gerações
(José Gomes Ferreira, Mário Dionísio, João José Cochofel, Fernando Namora, Manuel da Fonseca,
Joel Serrão, Augusto Abelaira, Jorge Reis, Urbano Tavares Rodrigues, Álvaro Salema, Herberto
Helder, José Carlos Pires, Alexandre Pinheiro Torres, Helder Macedo, Gastão Cruz, Nuno Júdice e
alguns outros).” (MOREIRA, 1982, p. 741).
144
volume da série “Patologia Social”, de Abel Botelho; em “O inquilino”,
um fragmento de uma peça que planejava escrever; em “A pergunta”,
a peça O doido e a morte, de Raul Brandão; em “O grão de areia”, a
narrativa de Erskine Caldwell96; em “Almanaque literário”, Camilo
Castelo Branco e outros escritores, numa feira de livros; em “Serenata”,
uma curta narrativa; em “Chuva”, a imagem de Luciana, uma personagem
feminina apenas esboçada; em “A bela adormecida”, um conto curto de
caráter popular; em “O tesouro ao sol”, contos populares que recolheu
com José Gomes Ferreira; em “Corvos”, o poema de Edgar Allan Poe;
em “Gás”, o corte de árvores com reflexos literários de Tchekov; em “Na
floresta”, diversos versos da literatura portuguesa; em “Fausto”, Enseada
amena, de Augusto Abelaira; em “Autor, encenador, actor”, a escrita de
José Gomes Ferreira; “À espera de leitores”, a novela Maria Adelaide, de
Teixeira-Gomes, e a escrita de Irene Lisboa; em “Janela acesa”, em que
se pensa a elaboração de um texto como composição de um filme; em
“O que é o povo”, contos tradicionais; em “O iceberg”, Afonso Duarte;
em “Coisas desencadeadas”, a poesia em geral; em “Micropaisagem”,
reflexões sobre seu próprio livro, de igual título; em “A fuga”, esboço de
Finisterra.

Essa relação comprova que, mesmo falando da vida cotidiana,


refletindo sobre o que se passa à sua volta, Carlos de Oliveira o faz sempre
mediado pela consciência da escrita, seja de sua própria produção
literária, seja de outros autores que lê com admiração ou curiosidade.
Ora, essa repetição de estratégia textual – elaborar seu próprio texto em
torno de outros textos – só por si indica um autor profundamente crítico,
no sentido de que é um escritor/leitor a debruçar-se sobre o trabalho
textual alheio, buscando temas e implicações. Assim, O aprendiz de
feiticeiro é uma cartografia muito clara de seu projeto de literatura e de
sua compreensão sobre as funções da escrita, pois evidencia os caminhos
trilhados percorridos em sua obra.

96. Escritor norte-americano (1903-1987), da geração de William Faulkner, John Steinbeck, John
dos Passos e Ernest Hemingway. Sua obra referência mais conhecida é A estrada do tabaco (1932),
que narra a vida da gente pobre branca do Deep South, num Neorrealismo à americana.
145
Em “O iceberg”, numa “carta a uma estudante de literatura que
me pede dados biográficos” (1966), Carlos de Oliveira diz:
Pensando bem, não tenho biografia. Melhor, todo o escritor português
marginalizado sofre biograficamente do que posso denominar
complexo do iceberg: um terço visível, dois terços debaixo de água. A
parte submersa pelas circunstâncias que nos impediram de exprimir o
que pensamos, de participar na vida pública, é um peso (quase morto)
que dia a dia nos puxa para o fundo. Entretanto a linha de flutuação
vai subindo e a parte que se vê diminui proporcionalmente. (O [AF], p.
568)
Ao denunciar a opressão que impediu o “direito à experiência da
minha própria liberdade”, apresenta a biografia que importa:
Com a biografia interior as coisas mudam de figura. Dentro,
mandamos nós. Se não podemos expandir-nos livremente podemos
recusar, fechar a porta às intrusões, manter a casa limpa. Difícil e duro,
eu sei. Custa momentos de grande solidão. Mas pagando esse tanto as
pessoas dormem em paz consigo mesmo.97 (O [AF], p. 568-569)
Pois bem, O aprendiz de feiticeiro é essa biografia interior que se
revela ao leitor atento, a escutar aqui e ali as reflexões do homem e do
escritor. Assim, nessa mesma “carta”, a primeira baliza de seu trabalho
se impõe: a dignidade.
Tocámos no verdadeiro problema. O que vive em nós mesmo
irrealizado precisa nestes tempos dúbios da rijeza da pedra. Orgulho
autêntico. Recusa da conivência, do arranjo disfarçado. Dignidade.
Elementos de que se faz a vagarosa teimosia dos sonhos. E então a
partida está ganha. Pode perdê-la o escritor (por outras razões, aliás)
mas o homem vence-a de certeza. (O [AF], p. 569)
Essa dignidade significa a responsabilidade por estar no mundo
e por ser escritor, capaz de dizer o que muitos calam por conivência ou
covardia. Por isso, para ele a arte tem “um papel de medicina humanista,

97. Note-se a concordância. Não será a sua própria condição de escritor?


146
de contraveneno98 insubstituível” frente à “tecnocracia; a habituação
passiva ao mecanismo, a uma atmosfera de metal diluído; e a idolatria,
a sufocante obsessão dos objectos, fomentada por um aparelho
publicitário formidável” (O [AF], p. 582).

A essa responsabilidade com a vida, demonstrando seu horror


ao urbano no que representa de perda de origem, de automatização
do real, massificação das paisagens, destruição do natural, alia-se um
extremado rigor estético a impor na arte o mesmo comportamento
crítico e responsável pela vida e pela humanidade de todos nós. Assim,
acompanhamos nas páginas de O aprendiz de feiticeiro o seu temor
pela desumanidade que vai tomando conta da contemporaneidade. A
arte, por isso, deve ser um “remédio”, combatendo a lenta, progressiva e
inexorável destruição do homem.

Mantendo-se fiel ao que um dia o ideário neorrealista propôs,


Carlos de Oliveira, nos textos de 1960 a 1970, ainda assume a necessidade
de falar do povo, porque falar dele não é uma “determinação do partido”,
mas um compromisso do escritor frente a seu mundo. Ouvimos em sua
obra com certa insistência a defesa da dignidade do escritor, do povo,
especialmente dos camponeses. O que os liga é a relação com a terra, a
origem comum, com uma identidade coletiva e pessoal. “Diz a fábula de
Anteu, como sabem, que é preciso tocar de vez em quando a terra para
não sucumbir. Pois para criar também” (O [AF], p. 518).

O aprendiz de feiticeiro nos diz que tudo se transforma em


matéria de interesse para o escritor, formando-se a memória necessária

98. Há nessa afirmação de Carlos de Oliveira a lembrança provável do diálogo Fedro, de Platão, em
que se discute o que convém e o que não convém escrever e quando a arte é bem ou mal aplicada.
Derrida, em A farmácia de Platão (1997), revisitando o momento em que Sócrates conta a Fedro
o mito de Thot, que seria o inventor dos números, do cálculo, da geometria, da astronomia, dos
jogos das damas e dos dados e também da escrita, conclui: “O deus da escritura é pois um deus da
medicina. Da ‘medicina’: ao mesmo tempo ciência e droga oculta. Do remédio e do veneno. O deus
da escritura é o deus do phármakon. E é a escritura como phármakon que ele apresenta ao rei no
Fedro, com uma humildade inquietante como o desafio.” (p. 38). Devemos a Jorge Fernandes da
Silveira a lembrança do “phármakon” de Derrida.
147
para impedir o esquecimento da origem, a submissão ao cotidiano, a
aceitação do silêncio imposto pelo poder. A escrita é um lugar de tensão
e um lugar de permanente atenção ao mundo. “Afinal o presente, o
futuro interessam-me também. Não os rejeito, Gelnaa. Não rejeito nada.
Espero.” (O [AF], p. 598)

Poetas e críticos mais novos reconhecem na obra de Carlos de


Oliveira um posicionamento ético-estético muito marcante, e isso é
importante para assegurar que seu trabalho não foi apenas mais um entre
tanta produção portuguesa contemporânea de qualidade literária, mas
um momento especial de afirmação da arte como espaço imprescindível
de um outro saber sobre o homem e o mundo. Sem dúvida, significa
uma exigência ética que vai centrar na linguagem a luta pela dignidade
humana:
A poesia evolui, experimenta, liberta-se, mas não deixa de ser um
produto directo, dilecto, da consciência humana. A verdadeira
vanguarda não imita exactamente aquilo que mais precisa de combater,
o esquecimento do homem na rápida aridez do mundo, que não
advém do progresso mas do seu uso deturpado. Se a poesia é como
queria Maiakovski uma “encomenda social”, o que a sociedade pede
aos homens de hoje, mesmo que o peça nebulosamente, não anda
longe disto: evitar que a tempestade das coisas desencadeadas nos
corrompa ou destrua. (O [AF], p. 583)
Seguindo as trilhas de O aprendiz de feiticeiro, ouvindo as
considerações sobre a vida contemporânea e os problemas sociais,
compreendemos a responsabilidade desse escritor com sua escrita.
Além disso, encontramos nele os marcos principais de seu trabalho
literário: a construção da memória pessoal e cultural, a definição de
paisagens primaciais (a terra – Gândara, dunas, floresta; o céu – astros
e ordem cósmica), a temporalidade (a certeza angustiada da brevidade,
da precariedade de tudo, morte a enfrentar) e, apesar da tensão e da
angústia, a busca da harmonia, o equilíbrio, ainda que precário. De
fato, sua escrita caracterizar-se-á pela concisão e pelo depuramento,
buscando harmonizar a maior extensão significativa com a brevidade
do poema.
148
Embora O aprendiz de feiticeiro seja uma coletânea de textos
de épocas diversas, seria um equívoco supor que tal reunião fosse
um acaso, questão apenas material. O próprio autor nos avisa que
remodelou os textos, e, se os escolheu, certamente foi pela atualidade
de suas reflexões. Há uma coesão muito forte entre esses textos, que se
cruzam no tempo e no espaço. Não à toa, como já observou Manuel
Gusmão99, o primeiro é “A viagem”, e o último, “A fuga”. E desses dois
polos irradiam-se os temas recorrentes na obra de Carlos de Oliveira,
como memória, transitoriedade, mortalidade, resistência ao tempo,
movimento do mundo (social e cósmico). Em “A viagem”, ao ritmo de
“Animula vagula blandula”:
Não sei onde descobri o verso. [...] Recordo-me dele por exemplo
numa página de Aquilino. E agora, localizá-lo na obra enorme? Folheei
volumes e volumes: nada. Contudo, está lá. Numa dessas páginas
maiores que põem no frémito da vida o toque do que é precário,
passageiro, e simultaneamente consciência disso. Pobre e pequena
alma, luz duma vela consumindo a cera de que nasce até se extinguir.
(O [AF], p. 414)
Em “A fuga”,
Aparentemente o céu é sempre igual e confuso. Mas um observador
que sabe aquele mapa de cor e lhe sobrepõe o outro, o das figuras
mitológicas que o povoam desde os pastores caldeus ou mais de trás
ainda, bichos, deuses, sonhos, variando de nome, forma e signo na
imaginação do mundo, recolhe o velho espanto, participa dele, elabora
a sua metafísica poética e não se cansa.
[...]
O céu real é talvez irreal. Nada me garante que não contemplo um
universo morto, um deserto. Talvez a máquina de facto parasse. Mas
trabalha ainda nos meus olhos. Tece neles a sua própria harmonia. (O
[AF], p. 593 e 599)
A vivência temporal sobressai entre todos os núcleos temáticos,
e isso equivale a uma intensa preocupação com a História, aliás bem

99. Anotações de aula feitas durante curso ministrado por esse professor sobre a obra de Carlos de
Oliveira, a convite da pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, em abril de 1998.
149
compreensível em alguém licenciado em “ciências histórico-filosóficas”
e com formação marxista. O sujeito ficcional que é o “aprendiz de
feiticeiro” configura experiências do tempo e seus efeitos. A escrita
torna-se, por meio da leitura, esse lugar de “refiguração efetiva do
tempo, tornado assim tempo humano, pelo entrecruzamento da história
e da ficção” (RICOEUR, 1997, p. 315), com o princípio de criação
enfrentando o princípio de destruição. Nesse embate sem fim, o sujeito
ficcional experimenta os sentimentos do jogo da vida: angústia, medo,
melancolia, desilusão, mas também coragem, esperança e resistência.

A configuração do tempo fala igualmente de brevidade e


precariedade. No texto “Micropaisagem”, de O aprendiz de feiticeiro, o
autor trata da vivência da brevidade em sua vida pessoal e literária:
Desses elementos se sustenta bastante toda a escrita de que sou capaz,
umas vezes explícitos, muitas outras apenas sugeridos na brevidade dos
textos. E disse sem querer uma palavra essencial para mim. Brevidade.
Casas construídas com adobos que duram sensivelmente o que dura
uma vida humana. Pinhais que os camponeses plantam na infância
para derrubar pouco antes de morrer. A própria terra é passageira:
dunas modeladas, desfeitas pelo vento. Que literatura poderia nascer
daqui que não fosse marcada por esta opressiva brevidade, por este
tom precário, demais a mais tão coincidentes com os sentimentos do
autor? (O [AF], p. 588)
Ora, esse “sentimento” de brevidade tem em sua obra duas
possibilidades de significação: em direção ao tempo e em direção ao
espaço. Com efeito, o breve é o que tem pouca duração, o que logo vai
desaparecer, fenecer, morrer; portanto, breve e precário se igualam na
mesma ideia de finitude, perda e morte; em outra direção, o breve é
o pouco extenso, a contenção, a depuração, o essencial. Por agora,
continuemos na direção temporal.

Se a noção da temporalidade é uma construção do sujeito, é em


relação à subjetividade que o breve e o longo se definem. Na escrita
de Carlos de Oliveira, o sujeito ficcional expressa a busca de imagens
primeiras, da origem; por isso, a infância é o período de tempo mais

150
determinante no seu discurso. Essa presença de um tempo que não é
mais, que só existe como configuração feita pela memória, é o núcleo do
texto “A fuga”, esboço de Finisterra. A busca temporal, porém, não cessa,
mesmo que o sujeito reconheça a sua impotência para realizá-la. A busca
transforma-se numa arqueologia do ser, revelando-se os estratos da vida
ao longo do tempo, e nessa “arqueologia” os momentos do passado vão
ganhando sentido por meio do olhar do presente, seletivo e crítico. É
o movimento de reescrita em busca da identidade narrativa que vai se
estruturando em círculos cada vez maiores, indo do sujeito ao mundo
e deste ao texto.

Essa narratividade tensiona também o sentido de brevidade e


de precariedade no enunciado e na enunciação. A escrita sobre a folha
de papel se deseja breve; a experiência de mundo diz a sua brevidade:
morte dos amigos, dunas mutáveis da sua geografia pessoal, carência
das palavras, terra impotente frente à destruição (Hiroshima, Nagasaki,
Guernica...). Mas o olhar do “aprendiz de feiticeiro” vai buscar o céu, o
espaço cósmico, porque aí o breve ganha duração: a estrela há muito já
morreu, mas sua luz continua a chegar. Brevidade e precariedade nesse
outro espaço transformam-se, ao olhar humano, em duração, infinitude,
imagem ilusória da própria eternidade.
A grande máquina trabalha. Bichos escondidos entre estrelas; Toiro,
Leão, Carneiro, etc.; de flancos incendiados. Um desenho infantil.
Penso que tudo isto pode ter morrido há muito. A estrela mais
próxima, a oito anos-luz, é Sirius (sem falar da Alfa do Centauro
invisível no hemisfério norte). Se explodir agora, só daqui a oito anos
deixarei de a ver. Outras daqui a cem, mil, um milhão, biliões...Não faz
sentido. Perco-me nas contas. (O [AF], p. 599)

Percursos do sujeito no tempo e no espaço


“Andar altas horas através da casa: às escuras e sem tropeções.
Trabalho de paciência e rigor. Construo um esquema
topográfico geral e pratico-o de olhos fechados até transformá-
lo num simples dado da memória.”
Carlos de Oliveira, Finisterra
151
A crítica que se desenvolveu em torno da produção literária
neorrealista com uma perspectiva depreciativa, ao avaliar a obra de
Carlos de Oliveira, em geral, procurou destacar a qualidade de sua
produção literária, relacionando essa “qualidade” à independência do
escritor não submetido à estética do movimento100, com o consequente
rompimento de um discurso coletivo e excessivo. Outro gênero de crítica,
mais preocupado com a especificidade da escrita poética, reconhecia na
produção desse autor uma transformação no seu processo, envolvendo
fundamentalmente a posição do sujeito lírico. De fato, a leitura das
primeiras edições de sua poesia produzida nas décadas de 1940 e
1950 (Turismo, Mãe pobre, Colheita perdida e Terra de harmonia) nos
leva ao encontro de um sujeito que tenta anular-se para ser a voz do
“outro”, socialmente considerado (o povo, o país), já que a consciência
política exigia que o escrever fosse um ato de denúncia e luta em prol da
esperança de transformação do mundo. Poesia-testemunho, poesia de
um arauto. É o que ocorre, por exemplo, em Mãe pobre (1945):
Tosca e rude poesia,
meus versos plebeus
são corações fechados,
trágico peso de palavras
como um descer da noite
aos descampados.
[...]
E quanto mais nos gelar a frialdade
dos teus inúteis astros,
mortos de marfim,
mais e mais, génio do povo,
tu cantarás em mim (O [MP], p. 41)
e

100. Avaliação equivocada, pois o próprio autor sempre fez questão de afirmar, nas raras entrevistas,
sua ligação com esse movimento, e isso é confirmado também por depoimentos de outros escritores
que mantinham com ele forte relação de amizade.
152
Quem soprou na gândara
a última chama?
Se quiseres, ó morte,
abro-te os lençóis
e dou-te a minha cama.

Vai meu coração


pelas aldeias moiras
onde pena e erra,
peregrinação
ao tojo da terra.

Caminheiro cansado
sem nenhum bordão,
onde houver um sonho
para ser sonhado
está meu coração.
(O [(MP], p. 43) 101
Porém, já se percebe nesse momento de sua escrita a tensão que
envolve esse sujeito, dividido entre o apelo exterior e uma interioridade
que precisa se refletir na linguagem para encontrar sua identidade –
como é o caso de “Viagem entre velhos papéis”, em Colheita perdida
(1948)102 –; uma história própria construída no tempo. Terra de harmonia
(1950) é um conjunto textual que tenta equilibrar essas direções, mas

101. Em relação a esse poema, na versão de 1945, os três últimos versos eram diferentes: “num
tronco

nodoso / sangrento e cravado / está meu coração!”.

102. Sobre esse livro, Rosa Martelo (1996, p. 311) comenta: “Simplesmente, ao contrário do que
acontecia com Mãe pobre, a questão do realismo começa a tornar-se problemática na poesia de
C.O.”.
153
o que se acaba afirmando é a figura do “poeta artífice”103, entregue ao
trabalho poético e à arqueologia de seu ser. Vai-se de uma poética que
tenta dar uma versão de mundo a outra que se preocupa com a criação
de mundos. É o salto de Cantata (1960).

Dessa forma, progressivamente, a escrita de Carlos de Oliveira


assumirá um ego “em desassossego” no tempo, à procura de espaços
significativos para sua realidade interior, libertando-se da missão de
“arauto”, o que não significa negar ou anular o político, uma vez que a
consciência crítica em relação ao social, à História, à terra, o poeta nunca
deixará de ter. Aquele “outro” do primeiro momento será substituído por
um “eu” que se torna a “outridade” a ser escavada, avaliada, interrogada,
já que toma forma de uma paisagem oculta, densa, cujos vestígios
exigem uma decifração, fazendo com que esse “eu”, cada vez mais, só
encontre rosto e existência na escrita desses sinais.

A obra de Carlos de Oliveira tem uma coerência notável. As


duas fases sobre as quais acabamos de falar não são antagônicas, e sim
complementares. O “poeta artífice”, que se desloca para o interior da
matéria, já estava junto do “poeta arauto”, mas em posição de silêncio,
para que a voz social mais urgente fosse escutada. Qual leitor de Carlos
de Oliveira não se lembra de “Odes”, em Mãe pobre, no qual a tensão
eclode – “Poesia, convento negro do instinto, / incensa as tuas naves de
razão: / e vós, versos meus, monges sem fé, / blasfemai aos claustros do
meu coração.” (O [MP], p. 53)? Hoje, examinando essa obra “completa”
pela fatalidade da morte, sabendo do processo constante e intenso de
reescrita a que o poeta submeteu seus livros, constatamos que o princípio
se encontra no final e que esse final já estava como estrato, como camada
funda na terra poética inicial. Talvez seja essa a mensagem de Turismo,
versão modificada, em que de tudo só restaram os estratos mais fundos.

103. Em nossa dissertação de mestrado (ALVES, 1990), trabalhamos com a oposição “poeta arauto”
e “poeta artífice”, representando dois momentos do percurso de Carlos de Oliveira. Considerando
ainda válida essa representação, retomamos a distinção.
154
Com essa certeza, retomamos e transformamos a ideia de
circularidade apontada na tese de doutorado de Terezinha Val104
em relação a Casa na duna. Aproveitamos essa ideia porque vem ao
encontro de nossa própria apreensão da estrutura organizadora da obra
de Carlos de Oliveira. O processo de escrita e reescrita realiza-se em
círculo à volta do sujeito lírico, por isso o início está no fim e o fim
se encontra no princípio. Essa organização é interna e externa, isto é,
cada livro retoma marcas textuais de outros ou representa textualmente
a ideia de circularidade na escrita, como no texto em prosa “O círculo”,
que já transcrevemos anteriormente. Também em Finisterra há um halo
fosforescente à volta da casa. Na relação entre as obras, há o encontro
entre Casa na duna, o primeiro romance, e Finisterra, o último. Portanto,
espacialmente, a obra de Carlos de Oliveira se autoconfigura como
um círculo, porque se constrói à volta de um sujeito que é o seu ponto
fixo105. Interessante pensar, por exemplo, sob essa perspectiva, o espaço
cósmico, a que tanto o autor se refere, em O aprendiz de feiticeiro (mas
não só): o planetário, a abóbada celeste, a esfera, o horizonte, os astros
que os grãos de areia reduplicam.

Porém, a ideia de circularidade ainda mais nos interessa ao


observarmos os percursos do sujeito no tempo, numa deambulação que

104. “Pode-se concluir que o motivo da forma circular, de elementos significativos que insinuem o
arredondado, colhido no âmbito das múltiplas relações plásticas do texto [Casa na duna], da magia
ótica, sugere o efeito de real pelo efeito estético: a forma vazia de sentido, enquanto geométrica
(por exemplo, o círculo, a esfera), será preenchida de sentido artístico e humano pela categoria da
precária e opressiva brevidade das coisas, uma categoria tensionada em processo permanente com
a esperança e a alegria da mudança. [...] Não é um risco afirmar-se que a imagem da circularidade
se manifesta na escrita do Poeta como uma imagem recorrente, obsessiva” (VAL, 1994, p. 29-30 e
49).

105. Lembremos que, de acordo com o Novo dicionário da língua portuguesa, geometricamente um
círculo é a “região de um plano limitada por uma circunferência”, e esta é o “lugar geométrico dos
pontos equidistantes dum ponto fixo” (HOLANDA, 1986).
155
intenta ligar origem e fim, infância e maturidade, criança e homem106.
Nas trevas acontecem o princípio e o fim do indivíduo.” (O [AF], p.
578): não é essa a organização da obra poética de Carlos de Oliveira?
Não é esse o projeto em Finisterra? A memória traça a circunferência
no plano da vida, ligando o presente ao passado, o passado ao presente/
futuro. A escrita figura-se assim uma espiral, recorrendo de novo à lição
geométrica: “curva plana gerada por um ponto móvel que gira em torno
de um ponto fixo, ao mesmo tempo que dele se afasta ou se aproxima
segundo uma lei determinada” (HOLANDA, 1986.). Não podemos
dizer que a escrita está refigurando o tempo em torno de um sujeito,
dele se aproximando e se afastando? Não é esse o movimento do tempo
no trabalho da memória? Não é essa a teorização da escrita poética que
Micropaisagem nos faz ouvir?
XII
Registar
nessa memória
ao contrário
de trás
para diante
as palavras
que ficam

106. Em O aprendiz de feiticeiro, no texto intitulado “Iceberg”, a segunda parte é dedicada à obra
de Afonso Duarte – “mestre”, como a ele se refere Carlos de Oliveira em um poema. Nesse quase
ensaio dedicado ao poeta mais velho, Carlos de Oliveira acaba por desenvolver uma grande reflexão
sobre a circularidade, arquitetura mágica do poema e do mundo. Esse texto está esperando um
estudo mais detido e aprofundado, por dizer muito da própria escrita de Carlos de Oliveira. Não
podendo fazer isto aqui, pelo menos citamos passagens: “Qualquer sistema tem a sua dinâmica
interna que o põe a funcionar; aqui, como já vimos, o ciclo dia-noite-noite-dia (e não dia-noite-
dia-noite) considera o tempo reflectido no relógio (também circular), o dia teoricamente dividido
em duas partes que o diâmetro separa: Luz e Trevas na mesma unidade. [...] Accionando esta
mecânica, dando corda ao relógio (por assim dizer), se passa do círculo à sinusóide. É na zona
escura do círculo que decorrem as metamorfoses, [...] E chegámos à mãe, ao eflúvio, privados de
Luz e de Maiúsculas. De facto a germinação uterina processa-se nas Trevas e é misteriosa; [...] Com
o eflúvio, forma nocturna do Espírito, passa-se a mesma coisa: começa a aparecer na escuridão, no
útero” (O [AF], p. 577-588).
156
assim
misteriosas
e depois
soletrá-las
do fim
para
o princípio,

XIII
olhá-las
como imagens
no espelho
que as reflecte
de novo
compreensíves
e tornar
a juntá-las
obsessivamente
ao rimo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas,
(O [M], p. 246-247)

Jogo de paisagens
“Trago a janela de muito longe.”
Carlos de Oliveira, O aprendiz de feiticeiro
Em O Aprendiz de feiticeiro, no texto “Manual de Jogos” (1963), o
autor conta que achou por acaso, numa feira de livros, uma obra intitulada
Manual de jogos, de autor desconhecido, editada em Lisboa nos fins do
século XIX. A leitura do livro provoca algumas interessantes reflexões:
157
primeiro, pela dedicatória que ali ficou registrada, atravessando o tempo
e levando a imaginar as relações entre quem havia dado o livro, uma
mulher, e quem o havia desejado ganhar, um homem; segundo, pelo
conjunto de jogos que registrava, fazendo com que Carlos de Oliveira
descrevesse alguns desses jogos, discorrendo sobre o princípio lúdico
e as habilidades/qualidades pertinentes, o que rapidamente transferiu
para a própria prática literária. “O ‘Manual’ (terceira parte, consagrada
aos jogos de prendas) traz alguns textos que vale a pena meditar, do
ponto de vista literário, pelo seu espírito quase contemporâneo. Quase?”
(O [AF], p. 427). Em síntese, tem-se a literatura como jogo com regras
elementares deduzidas das leis gerais de outros jogos. Encontra-se,
portanto, o escritor com o inventor de jogos, personagem que sabemos
aparecer em Cantata (1960).

Ora, um dos jogos que esse inventor propõe, já citamos o


texto, é mudar o ângulo de visão frente a um cenário aparentemente
estático, e, em decorrência, o imóvel se dinamiza e outra descrição se
torna possível. Assim, a regra do jogo é saber olhar sempre de forma
diferente, para que diferentes paisagens surjam. Parece-nos que temos
dessa forma o princípio organizador da escrita de Carlos de Oliveira.
Sem dúvida, o olhar é o sentido mais utilizado em sua obra e culmina,
quase que de maneira apoteótica, se não exageramos, com a obsessão
do olhar que é Finisterra. Em todas as direções da obra de Carlos de
Oliveira, encontramos paisagens que se movem, que se transformam,
que se entrecruzam a formar o jogo de sua escrita com o leitor.

Toda paisagem resulta de uma seleção e apreensão do que


se vê. É o resultado de uma relativização, porque é sempre, num
determinado momento, a versão de um espaço estático a ganhar
movimento e significação a partir dos olhos que a miram. As paisagens
são franqueadas a todos, mas, paradoxalmente, únicas, irrepetíveis, já
que constituem espacializações organizadas por um determinado olhar
num determinado momento. Da natureza à paisagem, entra em questão
a relação cultural do sujeito espectador com o mundo à sua volta.

158
não existe o tal olho inocente. O olho se situa, vetusto, frente a seu
trabalho, obcecado por seu próprio passado e pelas insinuações
passadas e recentes do ouvido, nariz, língua, dedos, coração e cérebro.
Não funciona como um instrumento autónomo e único, mas como
membro submisso a um organismo completo e caprichoso. [...] O
olho seleciona, rejeita, organiza, discrimina, associa, classifica, analisa,
constrói. Não atua como um espelho que, tal como capta, reflete; o que
capta já não o vê tal qual, como apenas dados sem nenhum atributo,
senão como coisas, alimentos, gentes, inimigos, estrelas, armas. Nada
se vê desnudo ou desnudamente (GOODMAN, 1976, p. 25)107.
Na obra de Carlos de Oliveira produzida de 1960 a 1980, dominam
as paisagens calcáreas provocadas pela desertificação (com consequente
erosão e despovoamento) que avança pelo campo108 e pela folha de papel,
outro deserto em abstração que será povoado pela escrita. Mas há outras
paisagens que, em nossa dissertação de mestrado, já referida, tentamos
descrever: a floresta, o abismo e o labirinto ( Cf. ALVES, 1990, p. 92-
127.). Não repetiremos a pesquisa realizada, porém importa retomar
a significação dessas paisagens numa outra relação de leitura, mesmo
porque o escritor diz: “Preciso quase sempre de imagens e, embora me
digam que é um hábito grosseiro em escritos destes, não desisto de ligar
tudo o que penso ao mundo comum, cotidiano: os objectos, a paisagem,
os homens” (O [AF], p. 433).

Numa visão macroestrutural, podemos dizer que as paisagens


observadas em sua obra se organizam em dois grandes níveis: paisagens

107. Na tradução da primeira edição em inglês para o espanhol, feita por Jem Cabanes: “no existe
el tal ojo inocente. El ojo se sitúa, vetusto, frente a sua trabajo, obsesionado por su próprio pasado
y por las insinuaciones pasadas y recientes del oído, la nariz, la lengua, los dedos, el corazón y el
cerebro. No funciona como um instrumento autónomo y solo, sino como miembro sumiso de
un organismo complejo y caprichoso. [...] El ojo selecciona, rechaza, organiza, discrimina, asocia,
clasifica, analiza, construye. No actúa como un espejo que, tal como capta, refleja; lo que capta ya
no lo ve tal cual, como datos sin atributo alguno, sino como cosas, alimentos, gentes, enemigos,
estrellas, armas. Nada se ve desnudo o desnudamente”. A tradução do espanhol para o português
é nossa.

108. A desertificação do campo é um dado referencial ligado à realidade da região da Gândara, tão
presente na memória biográfica do autor.
159
naturais e paisagens artificiais. Como naturais, reconhecemos a terra
da infância (a Amazônia, ainda que só imaginada, a Gândara) e o céu;
como artificiais, a cidade e a escrita. Notamos com facilidade que essas
paisagens se organizam também no tempo: paisagens da infância (terra
– Amazônia e Gândara) e paisagens da maturidade (o céu na cidade e
a escrita).

Como paisagem da infância, o sujeito que escreve recebe as


imagens de um mundo que se formou na concretude da terra gandarense
ou no imaginário da terra amazônica. De uma vêm as dunas, os grãos de
areia, a cal, a precariedade e a brevidade da vida; da outra, a exuberância
da floresta, a força das raízes, as ideias de continuidade e permanência.
Paisagens naturais, ainda que diferentes; lugares de imagens arquetípicas,
onde se constroem histórias (casas, camponeses e trabalho), fundamento
da identidade do sujeito espectador. E que sujeito é esse? Atravessando a
obra está, principalmente, a criança a olhar o mundo de sua perspectiva
e a transpô-lo para uma representação possível por meio do desenho,
realizando a interpretação da paisagem, tentando a concretização do
experimentado.

É significativo que seja Turismo o título do primeiro livro de


poesia, publicado pelo autor em 1942, retomando espaços naturais que
foram contemplados pela criança quando ainda não os podia descrever
ou mesmo entender. Sua reescrita é a volta dessa criança nos olhos do
adulto, o qual vai buscar, nesses espaços de nascimento e de vivência da
infância, as raízes de um imaginário e de um modo de estar no social.
Assim, contrapondo as duas versões, (1942, 1976) trabalho que Rosa
Martelo já nos facilitou, vemos que o que se mantém é justamente uma
paisagem interpretada como fonte de imagens primordiais para a escrita
de Carlos de Oliveira.

Na outra ponta de sua obra, está de novo a criança olhando


a paisagem e desenhando suas imagens. Finisterra é um lugar
privilegiado para discutir as representações que as paisagens são.
Muitos já demonstraram que nesse romance está em causa o próprio
160
problema da representação do real, ideia com que inteiramente
concordamos. Não insistiremos nisso. No entanto, diremos que cada
representação ali descrita – o desenho, a pirogravura, a foto, a maquete
– são representações em falta, em carência, reunidas pela representação
maior que é o próprio romance, a grande paisagem que reúne todas
as imagens fundamentais da escrita do autor. O subtítulo de Finisterra
é paisagem e povoamento, porém, o enunciado trabalha justamente as
impossibilidades de absorver a paisagem e o lento despovoamento (a
casa arruinando-se, os pastores afastando-se). É na enunciação que se
realizam finalmente a paisagem e o povoamento, recuperando-se uma
terra só existente na escrita, povoando-a com elementos que só voltam
pelo trabalho dessa escrita, como processo de guarda da memória. Com
essa leitura, Finisterra é, ao mesmo tempo, de um determinado ponto
de vista social, um documento de perda e de ruína, uma história de
decadência; de outro ponto de vista, o poético-filosófico, a paisagem
final, único lugar que permanece, apesar de toda destruição.

Na paisagem da infância, a ação do tempo é o eixo à volta do


qual todas as imagens se relacionam e se organizam em reflexões sobre
o ser e o poético, e é em Pastoral que essa relação entre ser e poesia se
depura e se confirma como relação essencial, para enfrentar as carências
da vida. Pastoral trata igualmente de paisagem e de povoamento, como
Finisterra, mas o povoamento se dá com imagens e não com seres, com
palavras e não com personagens. A história referencial perde sentido,
inútil é a ideia de progresso com a resolução definitiva de graves
questões sociais. A história que ainda mantém significado é a narração
de como se habita e se povoa a linguagem, vivendo-se ainda a utopia na
linguagem, já que utopia é u-topo, o não lugar, paisagem de palavras,
ao mesmo tempo terra inexistente e existente, possível apenas como
“finisterra” da criação.

Se a paisagem da infância é a terra, a paisagem da maturidade


é o céu, o espaço cósmico, para o qual o sujeito, agora habitante da
cidade, frequentemente olha, como lugar livre do artificial e imagem de
ilusória eternidade. Poucas vezes o poeta fala da cidade e, quando o faz,
161
aponta o contraste com o espaço natural, lugar em que se toca a terra e
se contempla a vida vegetal. A cidade é um outro tipo de deserto, com “a
aridez desdobrada em cimento” (p. 526). Exemplar dessa perspectiva é o
texto “Gás”, em O aprendiz de feiticeiro, no qual o escritor observa que “o
arboricídio floresce” e a urbanização descontrolada é um movimento de
destruição implacável. “Os operários derrubam a última tília e partem
nos camiões pouco antes de se acenderem as lâmpadas da praça, que
são (como os arboricidas gostam) flores de gás” (O [AF], p. 525-528).
Dessa forma, mais se acentua o contraste entre o artificial e o natural,
cidade e céu.
Aves
desta canção astral
súbitas como sonhos
ou clarões
rompendo das estrelas,
levai-nos
do chão onde as cidades
podres nos poluem
ao céu deserto
e puro:
naves,
ao incerto mar
da eternidade.
(O [C], p. 189)
Entretanto, as reflexões desenvolvidas em torno da paisagem
cósmica revelam também a preocupação com a solidão intensa, a
imobilidade aparente, a indiferença com o destino humano. No espaço,
o tempo é uma outra realidade, e a própria noção de realidade se
transforma, com outras regras físicas. Essa paisagem na obra de Carlos
de Oliveira parece alegorizar as contradições da arte, na medida em que
o céu contemplado é lugar da relatividade, da ilusão para olhos ingênuos.
No último parágrafo de O aprendiz de feiticeiro, o autor afirma que “o
céu real é talvez irreal” (p. 599), e não é esse paradoxo também o da arte?
162
Dissemos que a obra de Carlos de Oliveira realiza uma teorização
complexa sobre o poético, sobre o estético, e chegamos agora à paisagem
mais forte, que é da própria escrita, redescrição da terra. Nesse sentido
é previsível a analogia entre poeta e lavrador, entre escrita e lavratura.
“Escrever é lavrar, penso comigo” (O [AF], p. 421). De livro a livro,
considerando o processo de reescrita, os textos vão cada vez mais
apontar para sua própria textualidade, materializada e metaforizada
pelo deserto, pela cal, pela floresta. Terezinha Val afirmou em seu
trabalho que “o efeito de real é, sobretudo, um efeito de texto” (VAL,
1994, p. 39.), e é questionando essa relativização, teorizando a criação,
que o autor afirma a função do texto como paisagem essencial.

Esses percursos no espaço se refletem no tempo, e, se a terra


natural é contraposta à terra artificial da escrita (representação),
há também nisso o confronto entre tempos (o passado biográfico
e o presente da escrita), e será o poema o espaço da indiferenciação
temporal, pois nessa paisagem não há realmente passado e futuro, mas
um tempo permanente, o ponto morto, em que o sujeito se localiza.
IV
Localizar
na frágil espessura
do tempo,
que a linguagem
pôs
em vibração,
o ponto morto
onde a velocidade
se fractura
e aí
determinar
com exactidão
o foco
do silêncio.

163
(O [M], p. 238)
Reflexo desse espaço de indiferenciação é o céu que o escritor
observa sem nenhum romantismo ou idealismo, mas como um modelo
de relações espaciais e temporais que se harmonizam sem a intervenção
humana. Equilíbrio, autonomia e duração: desejos da escrita.

O autor fala da “janela que trouxe de muito longe”, e parece-nos


que sua moldura são os limites da folha em que escreve, janela para o
mundo, lugar a partir do qual o sujeito aprende a vê-lo e a perceber que
este mundo são vários; e é dizendo as diferenças, relativizando o real,
que pode dar sentido à sua própria existência nele. “Magia, imaginação,
limitam-se a colher o rigor submerso da realidade. Os números, a
geometria, em que o mundo repousa.” (O [F], p. 1030)

Memória do sujeito, memórias da escrita


“Há em mim uma coisa ainda incólume: a memória.”
Carlos de Oliveira, O aprendiz de feiticeiro
A questão da temporalidade na obra de Carlos de Oliveira,
como procuramos demonstrar, é responsável pela produção de alguns
caminhos de acesso a seu interior. Um desses caminhos nos levou ao tema
da brevidade e da precariedade, com a consequente reação ao transitório
e à perda. Assim, define-se em sua escrita o trabalho de registrar, refletir,
localizar, cristalizar (são alguns dos verbos utilizados em “Estalactite”, de
Micropaisagem) o movimento do tempo e a mobilidade do real. Falemos
agora de esquecimento e memória, no ser e na escrita.

A passagem irrevogável do tempo torna normal o movimento


de esquecimento, essa outra forma de morte, contribuindo para o
silenciamento das histórias, o apagamento das imagens e a perda dos
seres. A escrita de Carlos de Oliveira age para deter esse movimento,
transformando a passagem em presença, o esquecimento em memória.

164
Já dissemos que a escrita tem função mnemônica, ou seja, é uma
atividade cuja origem está ligada à necessidade de registrar informações
para que atravessem o tempo, superando a finitude da vida humana.
É, aliás, o que manifesta o velho deus Thoth, ao apresentar a escrita ao
monarca Tamuz do Egito, na história que Sócrates conta a Fedro:
Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará
a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para
a memória. – Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar
uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão
para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas
dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer!
Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever,
deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só
se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio
de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste
um remédio para a memória, mas sim para a rememoração (PLATÃO,
1986, p. 121).
Porém, como vemos, o monarca egípcio diferencia memória
e rememoração, relacionando a primeira à sabedoria, a uma
experiência interior de vida transmitida de homem a homem, o
dom do narrador. A escrita, interferindo nessa relação de oralidade,
substituindo “mecanicamente” a transmissão de histórias, incentivaria
o esquecimento. Numa certa perspectiva, realmente a escrita cotidiana,
instrumento de comunicação, pode ser considerada como atividade que
permite o esquecimento, na medida em que sua presença é a ausência
do “assunto em si mesmo”. Ora, a literatura, especialmente a poesia,
como espaço tensionado da linguagem, também tensiona essa relação
de esquecimento e memória, escrita e sabedoria. Por isso, a escrita
literária não é uma “técnica mnemônica”, mas uma via de acesso à
recuperação da relação integral entre os homens e entre os homens e
o mundo. Sob nosso ponto de vista, há no discurso poético a formação
de um outro tipo de memória, que guarda a condição humana contra
a destruição. Esse é, por exemplo, o estrato mais fundo de um poema
como “Colagem, com versos de Desnos, Maiakovski e Rilke”:
Palavras,
165
serei apenas mitos
semelhantes ao mirto
dos mortos?
Sim,
conheço
a força das palavras,
menos que nada,
menos que pétalas pisadas
num salão de baile,
e no entanto
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?
(O [SLE], p. 208)
O primeiro livro de Carlos de Oliveira, Turismo, indicava um
percurso do sujeito em busca das paisagens primevas, a alimentar seu
imaginário e a configurar um passado. Mas a busca naquele momento
ficou recalcada pela problemática social. A reescrita do livro inverteu
essa situação, e Turismo transformou-se numa viagem interior, com a
definição de duas trilhas da memória em sua obra: a memória do sujeito
e a memória da escrita. Note-se que nessa versão o poeta criou uma
terceira parte que não existia, denominando-a “Infância”, e a posicionou
como abertura do livro. Assim, temos não só a recuperação de uma
escrita do passado, como a nomeação do espaço-origem do sujeito lírico.

Da mesma forma, quando lemos os textos de O aprendiz de


feiticeiro, constatamos com rapidez que “desdobrar o fio da memória”
(O [AF], p. 531) é o exercício nuclear de Carlos de Oliveira à procura de
sua identidade na escrita e na arte. Pode-se até recuperar uma espécie
de biografia do autor a partir das memórias do(s) sujeito(s) que se vão
narrando por toda sua obra, num jogo de espelhos deformantes. O sujeito
que vai em busca da infância sem sentimento idealista ou saudosista

166
sabe que não há o retorno, mas há a possibilidade de compreender
aquilo que acabou por tatuá-lo e impor seu modo de estar no mundo.
Perguntam-me ainda porque falo tanto da infância. Porque havia de
ser? A secura, a aridez desta linguagem, fabrico-a e fabrica-se em
parte de materiais vindos de longe: saibro, cal, árvores, musgo. E
gente, numa grande solidão de areia. A paisagem da infância que não é
nenhum paraíso perdido mas a pobreza, a nudez, a carência de quase.
Desses elementos se sustenta bastante toda a escrita de que sou capaz,
umas vezes explícitos, muitas outras apenas sugeridos na brevidade
dos textos. (O [AF], p. 588)
A memória do sujeito tem como metáfora a imagem da “floresta”,
que enreda nos seus muitos caminhos o verde labirinto da Amazônia
imaginada, os desertos da Gândara e a terra de lavratura. O encontro
do homem com a criança é o reencontro com uma sensibilidade de
mundo que se formou na infância, atenta à terra e à presença instável
do homem nela. A Gândara é o espaço telúrico maior, dando-lhe os
elementos que vão perdurar em sua obra: terra, dunas, cal, pastores e
florestas submersas, cercadas de carência e fragilidade.

A memória, assim, se faz de imagens longínquas, vestígios de


um passado, ruínas de casa/corpo que a escrita conserva no papel. Para
preencher os vazios reais provocados pelos movimentos de perda, falta e
ausência, o escrever (uma “finisterra”) torna-se um processo ordenador e
criador da memória (“paisagem e povoamento”) como espaço de análise
e composição, no qual o sujeito pode enfrentar sua maior angústia: a
morte. Em Eros e civilização, Marcuse afirma que
esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram
– sem derrotar essas forças. As feridas que saram com o tempo são
também as feridas que contêm o veneno. Contra essa rendição ao
tempo, o reinvestimento da recordação em seus direitos, como um
veículo de libertação, é uma das mais nobres tarefas do pensamento
(s.d., p. 195).
E não são poucas as passagens textuais na produção de Carlos
de Oliveira em que o poeta/narrador assume o recordar como tarefa de
resistência, como no poema “Casa”:
167
A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
reflectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contrário da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama. (O [SLE], p. 215)
Entretanto, o trabalho com e sobre a memória não fica apenas no
nível do sujeito como intimidade revisitada, mas se amplia por outros
estratos, relacionando-se com as paisagens diferentes que se estruturam
na e por meio da escrita. Isso significa que, além da memória do sujeito,
subjetiva e abstrata, há uma memória material, a memória da própria
escrita, isto é, não se trata apenas de guardar a memória dos fatos através
do escrever, mas de demonstrar que a escrita se faz também com outras
escritas que foram lidas, vivenciadas, tatuando um sujeito-escritor. No
caso de Carlos de Oliveira, essa memória material, sua textualidade, é
abordada de duas formas diferentes: 1ª) a questão da reescrita de seus
textos; 2ª) a questão de leitura dos textos alheios, penetrando em sua
escrita (o processo de intertextualidade).

Já tivemos a oportunidade de fazer algumas reflexões sobre


a questão da reescrita tão determinante na obra desse autor. Não
pretendemos arrolar aqui provas a respeito nem desenvolver um estudo
em separado, mas ainda podemos enfatizar a significação do gesto de
reescrita, que nos parece revelador da importância da memória textual.
O escritor é um personagem da linguagem, e isso significa que sua

168
existência está condicionada a sua escrita, logo, todo texto produzido
faz parte da identidade do escritor e não pode ser simplesmente
rasurado ou apagado, ainda que excluído da publicação da obra total.
Voltar ao texto e transformá-lo é confrontar tempos de produção,
histórias da existência; trata-se, portanto, de uma memória tensionada.
Cada texto reescrito é um passado presentificado, um tempo subvertido,
um testemunho de transformação no homem e na obra. Veja-se, como
exemplo, o que ocorreu com o poema “Oiro”, publicado em Cantata
(1960), em que se lê:
O dia acende
o teu olhar
e não te deixa
adormecer
sem que essa luz
seja cravada
pelo punhal do sol
na eternidade,
coisa breve
doirada
como a vida.
(OLIVEIRA, 1992, p. )
Na edição de 1976, os três últimos versos são transformados, e
passamos a ler: “halo breve / e doirado / como o poema”. Da “coisa” ao
“halo”, da “vida” ao “poema”, temos a expressão de uma mudança capital
na obra do escritor: a poesia não é a vida, não a reproduz, mas é ela que
constitui a memória da vibração da vida. O poema é, assim, o lugar final
onde o sujeito encontra seu sentido.

No caso da convocação de textos alheios marcando sua escrita,


não temos uma subversão do tempo, e sim um modo de indiferenciar
diferentes tempos, isto é, o tempo literário é o da simultaneidade. No
presente do texto que se constrói, cruzam-se outros tempos textuais,
outras vozes textuais que se sincronizam com a do escritor. Em muitos
169
momentos de suas reflexões, Carlos de Oliveira afirma que a escrita se
faz de leituras e que todo escritor é um leitor atento. A atividade de
leitura recolhe, lembra, guarda e reconstrói. É a consciência de uma
experiência comum, uma partilha solidária e necessária à existência do
escritor. Mais uma vez, O aprendiz de feiticeiro é chamado aqui como
o depositário dessa visão estética, pois a constituição dessa obra é, por
ela própria, uma prova dessa partilha, um ato de escrita indissociável
do ato de leitura. Citamos: “Ler os autores estrangeiros parece-me
evidentemente necessário, indispensável. [...] As experiências alheias
são experiências minhas e sem elas (La Palice) viveria mais pobre” (O
[AF], p. 468) e:
Em todo o caso temos consciência, mais ou menos, que a poesia
de cada um se faz também com a poesia dos outros no permanente
confronto da criação. Para descobrir o que há de pessoal em nós,
para nos distanciarmos, já se vê. Mas não se foge completamente
a certos contextos literários, a certa parentela. Entramos sempre
com maior ou menor conhecimento do facto numa linhagem que
nos convém e é dentro dela que trabalhamos pelas nossas pequenas
descobertas, mesmo os que se pretendem duma total originalidade.
Não há revoluções literárias que rompam cerce com o passado. Olhem
para elas, procurem bem, e lá encontrarão as fontes, as referências,
próximas ou distantes. Claro, os escritores que contam são aqueles que
acrescentam ou opõem alguma coisa ao que já existe, ou o exprimem
de maneira diferente, mas cortes totais, rupturas, não se dão. (O [AF],
p. 588)
Sem dúvida, Terra de harmonia (1950) é o livro em que
declaradamente a intertextualidade é um projeto em execução109. Como
já foi apontado e analisado (PARRADO, 1996, p. 73), mais de 50% dos
poemas desse livro se fazem em diálogo com textos de outros autores.

109. Cf. PARRADO, 1996, p. 4: “Terra de harmonia é, em todas as suas versões, ainda que
diferentemente em cada uma delas, um livro onde a questão intertextual se coloca de forma
incontornável, relacionando-se, inclusive, (in)directamente (em 1976), com o problema da
reescrita da obra própria. Harmonioso apenas numa leitura imediata, nele são tornados visíveis,
de maneira ostensiva, procedimentos e referências intertextuais diversos que relevam a dimensão
de encontro/confronto com a tradição que o acto de produção poética instaura. Um acto que,
acentue-se, implica a (relativa) conquista, o tomar da palavra dos /aos outros para a fazer sua”.
170
Temos que concordar com Luís Filipe Praxedes Parrado (p. 74) que “o
poema não é apenas um efeito da linguagem no leitor, ele revela-se, no
essencial, um efeito da linguagem sobre a própria linguagem (para além
do facto da linguagem escapar ou resistir à transparência de qualquer
efeito comunicativo)”. Porém, não é só Terra de harmonia o lugar dessa
memória textual. Em todos os outros livros ela ocorre, não só com textos
alheios, como também evocando outros do próprio poeta. Vai estar
presente, por exemplo, em Sobre o lado esquerdo, ainda estará presente
em Pastoral com resíduos camonianos. Está em O aprendiz de feiticeiro,
em Finisterra. Sempre a memória-escrita revelando a memória-leitura.

Essa propensão para utilizar textos alheios ou textos passados


garante também o interesse que o poeta tem de buscar estratos, raízes,
vestígios, marcas na própria linguagem, pesquisando os processos
de composição e decomposição da matéria mineral que é a escrita.
Sua poesia, então, passa a ser um palimpsesto que impõe ao leitor a
percepção das sombras caligráficas por trás da escrita última. O trabalho
de recuperação da escrita é, assim, uma forma também de enfrentar a
precariedade da vida e da palavra no tempo, uma vez que, lembrando a
palavra alheia em diálogo com a sua, evidencia-se uma tradição literária
e cultural que o poeta reconhece e ressitua.

Com essa perspectiva, encontrar-se-á com o poeta mais jovem,


Nuno Júdice, como intentaremos agora demonstrar.

171
NUNO JÚDICE: PERSEGUIDOR DA ETERNIDADE

“Os olhos não sabem, ainda, que a visão profunda


os dispensa. Por dentro, o olhar implica a noite;
e é da fusão das formas no negro último do céu,
para além da superfície das estrelas e das nebulosas,
que essa verdade brilha com a sua exacta eternidade.”
Nuno Júdice, Meditação sobre ruínas
A obra poética de Nuno Júdice já alcançou ressonância na cultura
contemporânea portuguesa, seja por sua constância e extensão, seja pela
recepção valorativa registrada em diversos textos críticos, recensões e
alguns estudos ensaísticos. Recebeu prêmios como o Pablo Neruda,
em 1973, com O mecanismo romântico da fragmentação, Poesia (PEN-
Club Português), em 1986, com Lira de líquen, D. Dinis (Fundação Casa
de Mateus), em 1990, com As regras da perspectiva, e da Associação
Portuguesa de Escritores, em 1994, com Meditação sobre ruínas, obra,
aliás, finalista do Prêmio Europeu de Literatura. Alguns de seus livros
de poesia já estão traduzidos em francês, espanhol, italiano, holandês,
inglês e dinamarquês. Temos em mãos, portanto, uma obra consagrada,
porém ainda não objeto de um estudo mais amplo a avaliar sua presença
no panorama da poesia portuguesa contemporânea.

Como indicamos em nossa introdução, o autor publicou, em


1991, um volume intitulado Obra poética, reunindo os livros de poesia
que haviam sido publicados de 1972 a 1985, com exceção de O corte
na ênfase (1978)110. Após 1991, publicou mais cinco livros de poesia,
e, portanto, essa Obra significou por parte do autor um primeiro
estabelecimento de corpus, a demarcação de uma etapa fundamental em
sua trajetória poética. Interessa-nos não só entender o que unificaria
essa primeira etapa, como também verificar em que medida ou de que

110. Em contato por e-mail, Nuno Júdice explicou que não incluiu O corte na ênfase por não
considerá-lo significativo em sua trajetória.
172
forma a produção que se segue dialoga com ela, delineando o perfil
da escrita desse poeta e permitindo o diálogo com a obra de Carlos de
Oliveira no contexto da poesia portuguesa de 1960 a 1990.

A obra de Nuno Júdice igualmente se apresenta como reflexão


sobre o poético, sobre a escrita e a leitura, desenvolvendo, como a de
Carlos de Oliveira, uma escrita dominada pela problemática temporal.
Por isso, provocar o diálogo entre esses dois poetas fortes111 da poesia
portuguesa contemporânea nos parece ser um trabalho produtivo para
começarmos a constituir de forma mais afirmativa o perfil dessa poesia,
destacando, além das naturais diferenças, algumas semelhanças, isto é,
alguns percursos dialogantes que vão nos indicar uma visão partilhada
do que seja o trabalho poético e o que representa o poeta, personagem
da linguagem, em nossa contemporaneidade e no panorama da cultura
de língua portuguesa.

Como fizemos em relação à obra poética de Carlos de Oliveira,


apresentaremos a seguir a obra de Nuno Júdice, que não é muito lida
no Brasil, com o intuito de auxiliar o leitor na compreensão de seus
principais núcleos temáticos. Antes, porém, é preciso fazer uma
ressalva: como a apresentação exaustiva significaria percorrer, até o final
do século xx, vinte livros de poesia, faremos um recorte para privilegiar,
sob nossa perspectiva de trabalho, as publicações que consideramos
mais significativas, apenas referenciando as demais.112

111. A adjetivação lembra Bloom (1991), sem seguir, porém, sua perspectiva. Parrado (996)
também a utiliza para Carlos de Oliveira, seguindo Bloom.

112. O poeta continua bastante ativo em sua escrita. Desde 2000, vem publicando novos títulos de
poesia pela editora Dom Quixote, constituindo já outro núcleo de interesse.
173
De A noção de poema a Teoria geral do sentimento
“Escrevia: atingira a própria finalidade, consumava-se num
sacrifício de si ao papel, deixando-o manchado com as
impressões do seu corpo.”
Nuno Júdice, A partilha dos mitos
As primeiras obras de Nuno Júdice aparecem provocando uma
certa estranheza entre a crítica, porque, na década de 1970, ao lado
do trabalho poético de depuração, economia verbal e antirretórica113
realizado por Poesia 61 e a Poesia Experimental, a poesia do jovem autor
assumia um discurso contestador às avessas, ou seja, sua escrita assaz
discursiva e retórica e seu conteúdo centrado em temas próprios ao
tempo finissecular do século XIX reavivavam uma mitologia do poético,
dramatizando o poeta como louco, visionário ou profeta entregue à
voracidade do verso e habitando o poema em solidão, numa reação
intimista ao seu tempo histórico real e ao espaço de vivência biográfica.
Esse modo de ser poeta parecia um “retrocesso” diante do processo
poético contemporâneo, preocupado com as relações significantes no
poema ou atento a determinadas questões político-sócio-urbanas. Essa
escrita parecia anacrônica em confronto com as propostas da década de
1960 e, sob certos aspectos, surgia isolada da poética que ia se instituindo
na década de 1970. Surpreendia que, já no final do século XX, após
tantas transformações estéticas e teóricas no âmbito do literário, um
jovem poeta “retomasse” modelos românticos e simbolistas em busca da
essência poética. Mas a crítica experiente logo reconheceu que a poesia
inicial de Júdice não repetia ingenuamente modelos, mas questionava-
os, comprazendo-se em construir um “drama em gente”, em criar
poetas-personagens, com a intensificação da presença do sujeito até
o paroxismo da fragmentação, pelo transbordamento dos limites da
emotividade. Era o desenvolvimento provocativo de uma escrita em

113. Gastão Cruz explica que a escrita de 6l demonstrava “rigorosas organizações estilísticas,
resultantes de uma concepção de linguagem poética total, isto é, em que todos os elementos do
discurso são valorizados e minuciosamente controlados” (1973, p. 185).
174
torno de uma tradição poética constituída por nomes como Hölderlin,
Rilke, pelos simbolistas franceses fin de siécle e pelo próprio Pessoa.

Em 1972, publicou o primeiro livro de poesia, intitulado


significativamente A noção de poema, em cujo primeiro texto, “Apogeu
da gramática”, o sujeito lírico indagava sobre as possibilidades do canto,
traçando o projeto de sua própria ação:
Como iniciar o canto
Como ordenar a substância nomeativa
Iniciarei por um canto requisidor
Eis contra quem proponho o contágio temporal do poema
Poema! – suspende o impulso ártico de nomeação.
Ordenarás a extensa nomenclatura da imagem. (OC, p. 11-12)
Nos 24 poemas que constituem esse livro, o poeta observa,
enumera, questiona técnicas de composição, de ordenação do real, e
põe em dúvida a unidade do texto, do sujeito e do mundo. Contrasta
essa perda de totalidade com o desejo do absoluto e da palavra essencial
que move os poetas para o ato de nomeação do mundo. “Chego onde
pergunto – por que estou aqui? que palavras, frases, / intuições me
observam? [...] O esquecimento / é uma consagração tipográfica. A
loucura, / uma caligrafia moral. // Eis que está escrito. E mexe.” (OP, p.
15)

A literatura é assumida, assim, como espaço dramático, lugar


de mitos e fingimento, e a memória romantizada e cheia de nostalgia
representa, com ironia, as impossibilidades da escrita, a inutilidade da
representação, afirmando-se a ficção que são poeta e leitor. Não à toa,
o fantasma pessoano é a sombra dessa escrita dramatizadora de um eu
ficcionalizado: “Dei-me a um exercício / inquieto - reconstruir estados
de alma, variações do rosto, a própria / direcção de um olhar.” (OP, p.
32)

175
Único livro que traz uma epígrafe: o texto é do poeta Rui Diniz e
aparece sem qualquer referência bibliográfia114
A arte, diz-se, põe hoje problemas de sua teoria no próprio acto de
sua invenção. Põe-se a si mesma em causa no interior de si mesma;
procura, no gesto com que se cria, definir-se, postular-se, explicar-se
de forma mais próxima de si; mais correcta porque elimina o processo
de dicotomia estabelecido pela existência de dois ofícios: o teórico e o
prático, e mais verosímil porquanto é por um gesto de invenção (mas
apresentado aqui com grande honestidade e clareza) que elabora a sua
teoria, as suas axionomias; porquanto é ainda práxis a sua teorização.
Os itinerários dessa escrita convergem para o que texto acima
anuncia: uma práxis que é sua própria teorização. Por isso se discutem
o espaço do poema, a elaboração da escrita, a missão do poeta, as
paisagens literárias, o diálogo entre artes (literatura e pintura, literatura
e música), o diálogo entre poetas – com, por exemplo, a evocação de
Hölderlin, Mallarmé, além de Pessoa, que atravessa essa obra e toda a
produção de Nuno Júdice, com experiências questionadoras do tempo
e do espaço, sentindo a inquietude da vida e sua precariedade. Como
escreveu Manuel Gusmão em resenha sobre esse primeiro livro do
poeta, “há uma ironia de composição que traça os limites complexos,
dentro dos quais se abre um espaço de releitura de outros textos. O livro
assume-se como lugar de uma linguagem plural (lugar de linguagens),
como releitura de outros livros” (1972, p. 3).

Segundo entrevista115, esse livro era um manifesto contra o


realismo da poética dos anos 1960, preocupado com a materialidade
da escrita e a rasura da subjetividade. A isso, portanto, respondia com
a desmedida de um sujeito poético que se via como deus, onipresente e

114. Poeta que também estreou na década de 1970, com Ossuário: ou a vida de James Whistler.
Lisboa: & etc, 1977. Pelas informações colhidas, parece ser este o único livro que publicou. Cf.
AMARAL, 1991, p. 172.

115. MARQUES, 1989, p. 12. Diz Júdice: “A noção de poema era um livro com um duplo propósito.
Era por um lado um manifesto, e por outro uma tentativa de desligar o poema de tudo o que lhe
fosse exterior. O primeiro poema do livro era o que reflectia melhor essa intenção. A parte mais
substancial do livro, vista hoje, talvez se desprendesse já desse objectivo programático.”
176
onipotente, potência do ser em busca do sublime. Dessa forma, os textos
de A noção de poema se elaboram em torno de um eu transbordante de
subjetividade e emotividade, num teatro de fingidas individualidades
que se contemplam no correr das páginas. À primeira leitura, é uma
escrita de excessos em níveis diversos: na discursividade, já que todos
os poemas têm versos longos e, algumas vezes, constituem uma prosa
poética ou são realmente textos narrativos em prosa, com seu ritmo
específico; na vivência das emoções, nas configurações do poeta e do
poema e até mesmo na pontuação, bastante “sentimentalizada”, com uso
constante de interrogações, exclamações, travessões e reticências. Esse
excesso, aparentemente sem lugar na produção literária portuguesa do
início da década de 1960, aponta para um trabalho irônico de escrita,
repensando o lugar da poesia na contemporaneidade, como pode
indicar a leitura dos fragmentos do poema “Regra de composição”, no
qual se enumeram os marcos dessa trajetória poética em direção a uma
trindade absoluta: Deus, o poema e o eu.
Ganhei o conhecimento seguro da indecisão – alma, movimento
de vulnerabilidade... Ó balbuciar visionário das palavras solitárias...
condenação obscura... divina... imprecisa...

[...]

Escrevo contra a exigência ética dos cultores de realidade. Agir


é uma forma de maculação. A disponibilidade da alma consagra o
[hexâmentro...
a loucura progride sem remissão... apogeu
do outono!... anseios de alma!... quem interpretará
o meu silêncio? Desvendarei a lonjura... o peso intemporal da exegese...
[o verbo
sublime de uma ressonância de indiferença...

Ouvi esta palavra: deus. Ela surge em relação recíproca

177
com o poema de que eu próprio faço parte. No autêntico tudo deverá
ser
ao mesmo tempo prodigiosamente coerente e misterioso... tudo deverá
Ter
alma... a natureza misturar-se-á insolitamente com o mundo
do espírito... nostalgia infinita do irradiante fundamento da realidade...

[...]

[...] ó eu próprio, conceito


dúctil de uma arqueologia egocêntrica...Fechar-me-ei no recôndito
do excesso... mergulharei no meu ser em serena divindade...
ascenderei à certeza... deus! deus! Vocação formal! redescoberta
[de impunidade!
eis os modelos retóricos de uma evolução posterior.
(OP, p. 34-35)

Esse texto é também um bom exemplo da escrita dominante em


A noção de poema, que explica, por exemplo, a frase inicial da resenha
de Manuel Gusmão já citada: “Este livro pode aparecer como irritante.”
E realmente era, justamente pelo propósito de manifesto e pelo uso
de uma retórica poética provocadoramente anacrônica. Mas, como o
próprio poeta comenta hoje (na entrevista também referenciada), há ali
muito mais que um “enfant terrible” a brincar com a seriedade da poesia;
há os fundamentos de uma poética que demonstram a impossibilidade
de qualquer unidade ou projeto de totalidade, assumindo um sujeito
dilacerado e em confronto com as pseudoverdades da tradição. Essa
obra inicial também testemunha mais explicitamente as consequências
da escrita pessoana sobre a poesia portuguesa mais recente.

Na década de 1970, o jovem autor publicou seis livros de poesia, de


pouca extensão cada um, ligados por temática semelhante, demarcando
o lugar que o poeta deseja ocupar: O pavão sonoro (também em 1972,
com oito poemas), Crítica doméstica dos paralelepípedos (em 1973, com
178
23), As inumeráveis águas (em 1974, com 25), O mecanismo romântico
da fragmentação (em 1975, com 30), Nos braços da exígua luz (em 1976,
com 27) e O corte na ênfase116 (em 1978, com 12).

Nesse conjunto de livros persistem os caminhos abertos por A


noção de poema, mas progressivamente o poeta passa a exercer um maior
controle sobre o verso, em termos de extensão e excesso imagético. O
poema, esse lugar de exibição, contempla sua própria imagem e expõe seu
corpo materializado na linguagem, não havendo separação entre sujeito
e poema. Espaço de um sujeito egocêntrico e narcísico, que enuncia
“eu andava em torno de mim” (OP [PS], p. 65), se reconhece como
personagem em construção e cuja emotividade é um risco calculado, a
escrita é espelho, lugar de reflexo por meio da leitura: “comecei a ler-me
/ li tudo o que tinha escrito” (OP [PS], p. 59). O contemplar-se leva à
autocrítica, e o poema parece libertar-se do “escritor” (o sujeito) para se
constituir como uma “forma viva” a proclamar a morte do seu criador.
Em outras palavras, temos uma arte poética negativa, pois duvida-se de
sua possibilidade ou mesmo utilidade, e por isso o poema pode romper
todas as regras. Leia-se, como exemplo, “Poema”, a falar do movimento
de construção textual que se faz independentemente de qualquer plano
objetivo de elaboração:
Em um novo poema sobre a morte, sem me ter ainda convencido
de que, embora morto, algo permanecia no meu ser que partici-
pava da Vida e do movimento inumerável dos objectos batidos
[pelo vento, afirmei que a Poesia me acompanhava.
Como se a Poesia fosse algo que eu nomeasse fisicamente... que
tocasse...
E ao constatar uma impossibilidade objectiva, fiz uma experiên-
cia que a confirmou definitivamente: li tudo o que tinha escrito.
Foi como se não tivesse lido nada. Sem me dar conta sequer
de um estilo, de uma gramática, da própria língua... foi

116. Numa tiragem mínima de 250 exemplares, edição simples e com certo descuido na composição
tipográfica.
179
como se não soubesse ler.
Ao apresentar a narrativa exacta do que aconteceu, descubro
que também aqui não tenho nenhum objectivo, nenhum
pretexto, nenhum facto que justifique o poema. Mas ele
existe apesar disso. E é por isso mesmo que, sem arte
poética e sem argumentos, o apresento e mantenho.
(OP [PS], p. 68)
Há uma persistente reflexão sobre a escrita poética, adensando-se
a ideia de ser o poema a instância em que o sujeito põe à prova o tempo
e o espaço, não cessando a procura de sua humanidade. A questão da
temporalidade passa a ocupar lugar capital na cena poética, e falar do
tempo é falar da memória, da instabilidade do mundo, disto resultando
a percepção de ruínas que, embora pouco nomeadas, começam a
apontar numa paisagem de destruição. Em resposta à experiência de
mortalidade que paira sobre muitos dos poemas, a escrita poética
defende o movimento da vida, “como se houvesse algo a procurar” (OP
[CDP], p. 94).

Se a escrita constitui um rio ao contrário, como disse Carlos de


Oliveira, também a poesia de Nuno Júdice navega nesse rio, buscando
perscrutar o tempo e o espaço para reordenar o caos que envolve a
vida. A metaforização da viagem, aliás, é bem presente nesse momento,
narrando-se naufrágios, caminhadas, buscas, batalhas e movimentos
diversos no interior do ser, numa experiência onírica ou visionária. A
fluidez da água (rio ou chuva), o vento, o silêncio e a morte falam de uma
vivência tensionada do tempo e de uma natureza conturbada, espelho
em que o sujeito narcísico se contempla e se multiplica nos reflexos de
si. Leia-se o poema “No barco”:
Sobre estas escuras águas pouso o corpo e flutuo.
Do mesmo modo flutua a memória sobre a minha obscura alma,
e o seu desenho reflecte-se na atmosfera sombria
do entardecer. “Ficarei”, pergunto,
e sem esperar resposta olho a outra margem e o cais

180
a aproximar-se. Por fim, não desembarco. À espera do regresso
seguro-te as mãos, embora ninguém esteja comigo. Em silêncio
respiro o cheiro das máquinas; “para onde me conduzes,
ó infindável morte, por entre os vivos e as suas sombras”, ouço-me
dizer-te. Para que não me respondas, deixando-me preso
a um banco do barco, sacudido pelos temporais, vendo a chuva cair
por detrás dos vidros. (OP [CDP] p. 92)
No entanto, a escrita é uma cena teatral, e o poema, um lugar
de observação, onde se exercita a visão interior capaz de conhecer os
mundos que constituem a existência. Assim, o poema torna-se uma
janela a partir da qual o poeta se põe a olhar o horizonte, as paisagens
diversas, a mudança de estação e o seu próprio eu em encenação. Assim,
contrapõem-se nesses poemas, nos limites da existência ficcional, o
sujeito enunciador/o sujeito-escrevente, o sujeito enunciado/, o sujeito-
leitor:
Foi na véspera dos maiores temporais desse ano. A olhar para o vento,
guardando um silêncio que apenas a morte quebraria, a gaivota deixou
o seguro abrigo dos rochedos para se lançar em inútil desafio contra
o espesso cinzento das nuvens. O que eu vi naqueles intermináveis
dias... [...] Desci à verdadeira profundidade da imperfeição, seguindo a
linha sinuosa do litoral, até aos grandes rochedos que limitam o ser aos
gemidos incertos de humanidade. O que então reflecti de impaciência
animal! O horizonte tornara-se-me um vício de ausência e de horror
para comigo. [...] Uma presença incógnita sobre as escarpas destruiu
o muro de piedade que me protegia. Descobri que o medo é a melhor
parte de mim. Um rumor de sons juntou-me na humilhação aos
inumeráveis seres que esse inverno desalojara do sentimento. (OP [IA],
p. 107)
A presença material das palavras contrasta com o muito que fica
ausente e silenciado. O jogo poético se estabelece a partir do desejo de
apreender os sentimentos, as emoções na sua gênese, definindo um
momento único em que o abstrato e o fugaz parecem estar “aprisionados”
no verso. A teorização do poético acaba por esbarrar na impossibilidade
de regras gerais, pois cada poema é um objeto irrepetível, particular,

181
produto de uma experiência de sensações, ou imagens, ou desejos
que só existem na realização ficcional. O sujeito poético dividido se
autocontempla, examinando “o mecanismo romântico da fragmentação”
capaz de mover essa escrita em busca de sentido. O sujeito é, sob essa
perspectiva, uma “outridade” que se precisa (re)conhecer, um espaço
que se tenta ocupar, como se lê em “Descrição de um lugar”:
Sou um reflexo no vidro. Olho-me
fixamente, e o poema capta-me nesta atitude.
Pudesse eu conhecer-me como se conhece
o poema...
Deixo um retrato de mim, morto,
há um ano por esta altura. Que me aconteceu,
entretanto? De quem é este corpo
que me é estranho, pálido habitante de um movimento
indeciso e aparente? Quem sinto quando me toco,
quem me dorme, quem me pensa,
quem me escreve? O meu rosto encobre um pronome. Vivo
do mito. Quem me impede o sentimento? Quem me abre
um caminho que não sigo, condenado a outro
de mim próprio?
No entanto, estou aqui. Entre mim e o poema,
opaco a ambos, sem nada para dizer.
(OP [MRF] p. 150)
Nesses primeiros livros do autor, a questão da representação se
impõe fortemente. A escrita poética é a apresentação sempre incompleta
de algo, uma forma habilidosa de nomear o inexistente, criando, no
poema, uma outra realidade, que estabelece formas diferentes de
referencialidade. Assim, o que continuamente se discute é, afinal, de que
forma o processo poético dá conta do real e do imaginário, realizando
redescrições dos mundos diversos que constituem a existência do
sujeito-escritor e do sujeito-leitor.

182
Para responder também ao dilaceramento do corpo poético,
tanto em relação à unidade do sujeito quanto em relação aos impasses
da escrita, vai-se acentuando o tema da memória para manter o sentido
da vida textual e da vida subjetiva, como contraface dessa escrita de
fragmentos. Os atos verbais se fortalecem no movimento de conservação
da “exígua luz” capaz de garantir a sobrevivência do sujeito por meio
das palavras. O confronto entre vida e morte é dramatizado, e a escrita
poética narra essa história repetidas vezes, optando o poeta, com certa
frequência, por textos em prosa, por vezes extensos, que materialmente
se opõem ao sentido de brevidade, tão marcante na experiência da vida
e do poético. A certeza de que tudo passa, de que o transitório e o fugaz
marcam nossa temporalidade interior, é a reflexão sobre os limites
humanos e uma convocação à insubmissão e à superação por meio da
metamorfose constante a se manifestar na textualidade, por meio do
“Inscrito”:
Mas os olhos fechados. Toda a pouca importância
de essa morte
aqui. Também aqueles que o disseram
não sobreviverão às palavras pronunciadas que (elas sim!)
prolongam este gesto – poético! – o poema insuportável morte
criação de dedos no vazio do corpo, do copo
a brusca meditação cortada.
Ó terra: fala
a voz de raízes doces na concavidade da tarde
o conhecimento fúnebre um rigor no crescimento
na composição num cálculo de puro
mover-se
a descida
para o chão

o que fica
(OP [NBEL], p. 204)

183
Frente à mutabilidade de tudo, à precariedade, o olhar poético
busca um espaço de indiferenciação entre ausência e presença,
configurado no encontro entre o céu e a terra, limite que se mira, mas ao
qual nunca se chega, representação simbólica da obsessão existencial de
conhecer o invisível e de se integrar à unidade, miragem do equilíbrio
entre o divino e o humano. O horizonte como imagem torna-se uma
estrutura simbólica fundamental na poesia de Nuno Júdice, falando-nos
dessa miragem e das contradições do poético: potencialidade do dizer
e impossibilidades da escrita. O horizonte é, assim, uma linha de fuga
na pintura que todo poema acaba por ser, dirigindo o olhar do sujeito
lírico e do sujeito-leitor para o longínquo, metáfora da liberdade e da
totalidade perdida, o algures desejado.

As obras da década de 1970, com exceção de O corte na ênfase,


foram reunidas a mais três publicadas nos anos 1980, O voo de Igitur
num copo de dados (1981)117, A partilha dos mitos (1982), Lira de líquen
(1985) e um conjunto inédito de textos, datado de 1985, Rimbaud inverso,
para formar o volume único de Obra poética (1972-1985) publicado em
1991.

Nas obras dos anos 1980, devemos destacar A partilha dos mitos,
que desejamos ler como uma obra-balanço da relação entre poeta e
poesia, escrita e leitura, apresentando-nos linhas fundamentais do

117. Esse livro é, na verdade, um único texto, dividido em três partes, com dialogismo explícito
com Mallarmé. Há uma experiência provocadora (radicalizar a ausência de referência) que acaba
por estabelecer um texto ilegível para o leitor comum. Em relação ao Igitur de Mallarmé, Blanchot
(1987), p. 105-106, cita carta do poeta: “É um conto, pelo qual quero fulminar o velho monstro da
Impotência, seu tema, de resto, a fim de me encerrar num grande labor já reestudado. Se ele for
feito (o conto), estou curado...”; “Infelizmente, ao aprofundar o verso a esse ponto, encontrei dois
abismos que me desesperam. Um é o Nada... O outro vazio que encontrei é o do meu peito”; “E
tendo chegado agora à visão horrível de uma obra pura, quase perdi a razão e o sentido das palavras
mais familiares”. Diz Blanchot a respeito: “Quando se recordam estas alusões, não se pode duvidar
de que Igitur nasce de experiência obscura, essencialmente arriscada, para onde o arrasta, ao longo
desses anos, a tarefa poética. Risco que atinge o uso normal do mundo, o uso habitual da palavra,
que destrói todas as garantias ideais, que retira ao poeta a segurança física de viver, expõe-no,
enfim, à morte, morte da verdade, morte de sua pessoa, entrega-o à impessoalidade da morte.” Isso
ecoa na escrita de Júdice.
184
trabalho de Nuno Júdice: a literatura como obsessão, a exuberância
metafórica, lição de Herberto Helder, num exercício intenso de testar a
potência das analogias, a vivência angustiada do tempo e a consequente
angústia do ser. É também nesse conjunto de poemas que a questão da
emotividade e subjetividade ganha maior reflexão crítica sobre a entrega
total à escrita, à poesia, ao trabalho verbal como ação de metamorfose
irrecusável.
Escrevia; as palavras e as frases sucediam-se ao ritmo da sua própria
respiração. Sentia-se vivo, assim; nada o distraía desse trabalho, nem o
barulho da chuva, que ouvia nos intervalos da música, nem o silêncio
súbito que se estabeleceu, quebrado depois pelo vento nas ramas do
bosque. Escrevia: atingira a própria finalidade, consumava-se num
sacrifício de si ao papel, deixando-o manchado com as impressões do
seu corpo. Tanspunha-se para o espaço da folha, e ficava vazio, despido
de sentimento e emoções, numa apatia que o deixava prostrado ao
longo da noite, sem dormir, com os sentidos despertos unicamente
para o bater irregular do coração.
Descobriu um dia que essa vida o destruía. […] (OP, p. 245)
A poesia é espelho em que o sujeito se mira sempre em busca da
imagem outra que o puro reflexo oculta. Assim, essa escrita obcecada
fala do tempo e da divisão do ser, motivando a reflexão metafísica,
a discussão sobre o conhecimento que a linguagem poética pode
proporcionar. É realmente a apresentação da literatura/poesia como
mitologias do ser e a escrita/leitura como ritos de partilha e criação. O
sujeito que aí se apresenta é personagem de muitos papéis: demiurgo,
profeta, vítima de sacrifício, um deus criador cuja existência depende do
verbo. Em relação a isto, há nessa escrita o limite tenso entre o humano
e o divino, desde que se considere o divino como princípio criador,
abstraído da realidade e da matéria, elementos frágeis do humano.

O trabalho metafórico extremamente forte que nesse livro se


desenvolve mantém a tensão entre a vida textual e a vida real. A metáfora
é o processo inerente a essa escrita, que transforma a matéria vivida em
matéria do poema, numa tentativa sempre impossível de conciliação
entre o real e o imaginário. No entanto, como já escreveu Carlo Vittorio
185
Cattaneo, numa resenha sobre essa obra (1982, p. 28-R), existe “um ponto
de coincidência, se bem que ilusória, e é a memória, onde se cria uma
espécie de território neutro no qual a realidade se imobiliza antes de se
transformar em texto”. De fato, os poemas de Júdice falam do processo
literário como um jogo de perseguição, ou seja, o poeta é o perseguidor
da eternidade por meio da linguagem poética, sabendo de antemão que
sua matéria se faz do passageiro, do transitório, de resíduos, ruínas do
vivido, do sentido, do real. Em diversos poemas desse livro, essa questão
se apresenta sem solução; no entanto, o tema da memória vai ganhando
força e se transformando no espaço que a escrita institui e recria, uma
verdadeira “região de intervalo”.

À sua maneira, esse livro é uma outra homenagemaliteratura118,


explorando imagens do sujeito, da escrita e da própria literatura
como horizonte final de todo o trabalho poético, em meio a diversas
possibilidades e experiências de ilusão. Os poemas formam uma
narrativa estética cujo herói é um eu-poeta em luta por sua sobrevivência
em espaços diversos: a folha de papel, o oceano, o corpo, o espelho, em
demanda de um graal que, afinal, é cada poema, com seu gosto de sagrado
e eternidade, porque “[...] Reconheço a falésia / do dormente desejo de
eternidade, um flutuar / de precipitações no ritmo das pálpebras, o si- /
lêncio, vago íman da impaciência. Murmúrio / de génesis num pousar
de dedos, rebordo de limites / na abdicação do gesto. Mágico círculo
divino.” (OP, p. 232)

Em Obra poética, Lira de líquen119 é um ponto de chegada e a


primeira estação de um outro percurso que se estende para além do
texto mitologizado, ao encontro de uma escrita que avalia o real, verifica

118. É impossível não dialogar com Fiama Hasse Pais Brandão. Veja-se texto do livro
Homenagemaliteratura: “Estou a sentir que qualquer descrição acrescenta / o tempo de que
disponho para viver e ao qual / a consciência me concede um prazo divino / para pensar.” (1986,
p. 47)

119. É o penúltimo livro em Obra poética (1991a). O último é Rimbaud inverso, que constitui
um conjunto de textos até então inéditos. Assim, Lira de líquen é, na verdade, o último livro já
publicado incluído na recolha.
186
as impossibilidades cotidianas e as incapacidades humanas num tempo
dominado pela tecnologia prepotente, a impor um mundo cada vez
mais afastado do natural, fascinado pela ideia de progresso e controle
das forças da natureza. Muitos dos poemas desse livro são narrativas
sobre as deambulações de sujeitos que se entregam a experiências de
dissolução, loucura e ao poder do imaginário. São histórias de excessos
e desmedidas, de seres que enfrentam o silêncio, o vazio e a morte.

O discurso poético se faz de abstração, vivência do onírico e das


impressões. Queremos dizer que os sujeitos que transitam pelos poemas
redescrevem o mundo como se o sonhassem e de forma impressionista
falam de sensações múltiplas e simultâneas, numa perspectiva
interseccionista, optando pela fragmentação e pela impossibilidade
da unidade, seja do sujeito, da paisagem, do poema ou da realidade.
O chamado da poesia é um desafio frente ao concreto do mundo, uma
luta no interior do ser, exigindo do poeta o despojamento de sua vida
comum para se lançar numa travessia, qual Orfeu, em busca de outra
margem, lugar do não nomeável.
[...] Mas é
no campo, ao poente, saboreando o cheiro doce
dos frutos que apodrecem na terra, como algas
mortas, que uma voz insistente me chama – poe-
sia? Quem, por detrás do seu rosto sonoro e
abstracto? Memória que a noite depressa apaga…
(OP , p. 283)
Nesse sentido, a poesia é um lago de Narciso, em que “o segredo
que oculto em mim persigo” (OP, p. 281), motivando esse desejo de
conhecimento de si e da outra vida que na poesia existe e perdura.

A multiplicidade de personagens que dizem eu no texto,


encenando seus dramas nos cenários do poema, indica-nos a questão
pessoana da alteridade. Há entre o escritor e poeta a afirmação da ficção
com diferentes personas, não apenas criadas pelo poeta, mas também
vindas de obras alheias, constituindo-se o jogo intertextual.
187
Passar do Uno ao múltiplo, como quem se desembaraça
De uma casca que os outonos marcaram com a sua humidade! Se
assim pudesse, numa recuperação de amargas estações, fazer
reflorescerem as pétalas secas entre as folhas do livro,
as imagens dissipadas numa infusão de memórias, a madrugada
de um poema que, nas mãos perturbadas da despedida, anunciou
uma definitiva renúncia. [...]
(OP [LL], p. 315)
No entanto, encerrando o volume de Obra poética, o autor
apresenta um conjunto inédito de poemas, intitulado Rimbaud inverso,
sobre o qual vale fazer alguns comentários. O primeiro texto é “Um
inferno na estação (fragmentos)”, e acima do título, há o “aviso” de que
“O pastiche é um pastis”. Realmente é um texto-pastis120, não só no
aproveitamento de versos de Rimbaud, como também e principalmente
no conteúdo-abismo que devora o leitor na embriaguês de imagens e
situações a envolver o eu teatral e suas andanças num mundo sem lógica
aparente. Rimbaud inverso é um exercício lúdico e uma experiência dos
limites a que o sujeito lírico pode chegar antes de atingir sua dissolução
na própria escrita que o configura. “– O verbo foi a minha obra
alquímica – e forneceu-me muita poesia de ferro-velho. [...] Vertigens
fixas do inexprimível, bebei, vós finalmente, as noites de silêncios no
estudo dos princípios!” (OP, p. 340)

Trata-se de um conjunto de poucos textos, predominantemente


em prosa, com datação final de 25 a 27 de abril de 1985, em Lisboa.
O ato de datar é raro na escrita de Júdice e, no caso, lembra não só os
36 anos que o poeta faria, como também os 21 anos da Revolução dos
Cravos. Ao contrário, o tempo nos textos é sem datação explícita, porém
dialogante com um tempo poético definido, o de Rimbaud, finissecular.
Em exercício explícito de intertextualidade, irônico e livre, fala-se de

120. De acordo com o dicionário Larousse de la langue Française (1985), pastiche: “Imitation de
la manière d’ecrire, du style d’un écrivain, de la façon de parler, de jouer, etc, d’un artiste”; e pastis:
“liqueur anisée prise comme apéritif. pop. situation embrouillé, inextricable, ennui”.
188
dispersão e de descontrole da razão num espaço infernal, onde o horror,
o grotesco, a heresia, o maldito têm livre trânsito numa revolta de
imagens e sentidos. Nele a loucura se escreve, ou melhor dizendo, finge-
se o desvario contra o bom senso, o normatizado, a tradição poética e a
expectativa do legível. “Repetirei a consolação de vos curar da fé. Fiai-
vos na loucura. O mundo está, decididamente, fora de nós. O nada já
nos ouve; e arrastamo-nos, nesse rumor do forquilha, até ao bosque de
todos os feitiços possíveis.” (OP, p. 333)

O volume de Obra póetica é o fecho de um projeto de poesia no


qual o centro de atenção era o eu como instância ficcional e a escrita
poética como escrita “dramática” e narrativa. Podemos dizer que em
sua textualidade há domínio da ação, isto é, uma sintaxe que privilegia
o sintagma verbal, a frase oracional. Seus poemas enumeram ações e
o sujeito ou sujeitos que ali contracenam agem, mesmo quando não
entendem o porquê ou o para quê. A textualidade é um espaço mítico
que o sujeito percorre numa busca conturbada de criação de modos de
estar num mundo de fragmentos e ruínas humanas, textuais, sociais
e históricas. Sendo espaço poderoso de metamorfoses, predominam,
no que seria uma primeira fase da obra, os títulos metapoéticos, as
referências artísticas cruzadas, o dialogismo intenso intratextual e
extratextual, numa prática muito lúdica do que é ser poeta e escrever
poesia no final do século XX. Mas o jogo instaurado produz um riso
melancólico, pela certeza das muitas impossibilidades de escrita e de
leitura, de viver num tempo e espaço contemporâneos sem mais lugar
para a esperança ou o sonho e talvez sem lugar para a própria literatura,
para uma linguagem que não aceita a sua banalização.

Embora publicada em 1991, como dissemos, a coletânea não


teve incluídos pelo poeta três livros que foram lançados de 1988 a 1990
– A condescendência do ser (1988), Enumeração das sombras (1989) e
As regras da perspectiva (1990) –, o que nos pode indicar a princípio
que eles já não faziam parte da obra precedente, por apontar uma
diferença no trajeto da escrita poética de Júdice, embora mantenham o
desenvolvimento de certas linhas de força, o que garante sua integração à
189
obra maior. Os poemas desses três livros voltam-se para outras paragens
reflexivas, que passarão a dar o perfil da obra restante: um pensamento
filosófico e teológico em torno do ser e da existência. O tom discursivo
é clássico, com referências ao pensamento e à literatura clássica e ao
grande tema da viagem, da navegação. A viagem em busca de outra
margem significa atravessar o mar interior, mirando o conhecimento do
ser no limite da eternidade. Sobre isso é exemplar o poema “Intervalo”,
no qual o poeta é o “perseguidor de eternidade, e o eu, um feiticeiro
absurdo de um cerimonial / oblíquo, comandando movimentos sonoros
na abstração / da página. Eu, ainda, remexendo as cinzas de um ritual
amoroso / num fundo de chávena, olhando-me – reflexo nos degraus
negros / do cais.” (CS, p. 15).

Como duplo dessa água interior e vasta, define-se o céu como


paisagem do incorpóreo e do imaginário. Lugar do divino, lugar de
anjos, é a paisagem do espírito e da alma, numa tradição teológica cristã
que o poeta não deixa de acolher, mesmo porque, para essa voz que só
vê vazios e ausências, o céu é espaço a ser ressignificado pelo narrar da
navegação poética. De novo, o céu é o tempo infinito, e o poeta, como
“perseguidor da eternidade”, é um criador de paisagens que se podem
habitar.
[...] e ela, a passageira
sombra de corpo ou de ave antiga, virá ao beiral do verso
cantar a própria passagem, de lado nenhum, para que
do mesmo modo para algum lado o olhar se dirija quando a voz
soar, precisa, e as sílabas se juntarem na matinal restituição
da paisagem. A isso se chama o poema: figura que dá voz
ao mundo íntimo das palavras que os lábios perdem,
repetindo a sua articulação invisível; um nó de emoções
que nenhum gesto ousa, atando à entoação abstracta da memória
uma eternidade de circunstância; e o quebrar de interiores marés
na margem humana que a estrofe decide sem o frágil eclipse
de um nome (CS, p. 48)

190
Essa série de livros constitui uma arte poética e uma reflexão
filosófica em torno do ser do poema e do ser do sujeito, ambos
questionados por um olhar cuja ânsia de conhecer ultrapassa as
aparências e a previsibilidade da linguagem comum. Por isso, também
aqui afirma-se e examina-se o processo metafórico, processo que busca
revelar outras imagens do que já não se vê, por estar demasiadamente
presente à nossa frente. Conhecer seria desvelar, ver por trás das imagens
que temos “o todo invisível que é a Criação”, e é disso que essa poesia
fala, seja quando filosofa sobre a existência do ser, seja quando teoriza o
poema e sua escrita. O tecido poético é fiado por vozes dialogantes que
superam a matéria em busca do inconcebível.
Há uma proposta essencial, um contrato, que une
a escrita a quem escreve; e não é a cumplicidade do criador
e da criatura, apenas, que pode resumir esse pacto
mas algo de mais profundo: união de existência que
concede o conhecimento do próprio inconcebível.
Mas, digo, nada ilude a possível contradição que os espaços
anulam – nuvens, horizontes, planaltos para lá do olhar
que dão acesso a outros céus; e aí se torna real
o sono sem pálpebras que os anjos referem. [...] (ES, p. 62)
Há, assim, uma escrita de tom platonizante, isto é, escrita de
confronto entre sombras e luz, entre simulacros e verdade, levando o
poeta a querer preservar a perdida imagem, mesmo que se desconheça
que imagem é essa. O paradoxo está na própria linguagem poética,
tecido de imagens nas mãos dos poetas, entregues ao desejo de superar
sua condição humana de efemeridade e mortalidade. Assim, o encontro
entre céu e terra não é apenas o encontro de dois espaços estáticos, mas
um círculo em movimento contínuo que faz a terra no céu e o céu na
terra. Questão de reflexo, questão de representação, experiência vital
daqueles que habitam no horizonte ou a ele querem chegar.
À minha volta um sentimento se demora: possuir
o céu, a respiração de um horizonte sem névoa

191
nem mistério, a plenitude que daria uma última
sabedoria; e, no entanto, apago o fogo desse conhecimento com
que alguém nos tenta – e aqueço-me na chama interior
de um desejo possível nos dias de silêncio
e incerteza, vagueando imóvel pelos limites que a sombra
coloca. É um fogo que não nos transporta para lado algum,
invisível até para os que possuem a visão da treva;
mas que arde depois de tudo, já, ser cinza, e brilha
até muito depois de a noite ter cerrado as pálpebras
do astro insistente – cuja cor pálida contaminou
os dedos da amada, pousados sobre o peito num
repouso que a memória não perturbará. Prometido,
o poder divino de interromper a queda não se nos concede
num acaso matinal; possa embora a luz diurna imitar
a imagem cega da ave que espera o voo, suspensa num fio
de eternidade. (ES, p. 22-23)
A linguagem poética se efetiva no domínio da metamorfose, da
metaforização, a qual, como já discutimos no primeiro capítulo, deve
ser entendida não como mera figura de linguagem, e sim como processo
de linguagem de amplo aspecto, que resulta numa outra percepção
cognitiva. Ou seja: “a realidade trazida à linguagem une manifestação e
criação” (RICOEUR, s.d. a, p. 357).

O primeiro poema de As regras da perspectiva, “Alegoria”, constitui


uma chave de leitura para compreender a reflexão sobre o poético, sobre
as muitas sombras que se cruzam no texto literário, demarcando uma
paisagem que não cessa de configurar a temporalidade. Por meio do
trabalho metafórico, “as sombras” ganham vida e visibilidade. Porém,
sua não concretude, já que são “imagens” de mundo, não o mundo,
possibilita-lhes a liberdade de ser em plenitude. Mais uma vez podemos
falar de uma escrita platonizante, porém, com inversão: é no fundo da
caverna que está o mundo significativo. O espaço da luz não permite

192
o mistério, impõe uma visão “descoberta”, “evidente”, e o sujeito se
submete ao que todos devem ver; é um aprisionamento pela razão.

[...] No inverno,
os corpos não têm sombra; e os mortos ocupam essa
ausência roubando, a quem os não pressente, a decisão
da vida. Então, imóveis, nenhum gesto os toca – a esses
cujo silêncio só o amor resgataria. Condena-os
a excessiva nitidez do mundo, como se
o fascínio dessa aparência substituísse a imagem
do ser. Mas os outros, os que preferiram a obscuridade
da gruta à convicção do dia, calam
o conhecimento da madrugada; e a mudez dos seus lábios
constrói a figura fértil das frases
que anunciam o verso. Eles sabem que transformações
atormentam a imobilidade das nuvens. Os seus dedos
leram,
no horizonte, o contorno de um futuro luminoso (RP, p. 9)
Ora, na alegoria da caverna121 reescrita pelo poeta, a linguagem
poética é o lugar das sombras onde se reflete a luz da realidade, mas é a
sombra que doa sentido a essa luz122. Uma das “regras da perspectiva”
poética é saber da impossibilidade do regresso; outra, que a escrita poética
é a ilusão do eterno.
[...] Não há aqui repetição, mas a nostalgia
do único, um arquétipo que se confunde com a imagem

121. PLATÃO, 1998, p. 251-255.

122. Analisando a poética de Hölderlin e a essência da poesia, diz Heidegger (1996, p. 57): “La
poésie éveille l’apparition de l’irréel et du rêve face à la réalité bruyante et palpable dans laquelle
nous nous croyons chez nous. Et pourtant, c’est, tout au contraire, ce que le poète dit et ce qu’il
assume d’être, qui est le réel”. [A poesia desperta a aparição do irreal e do sonho face à realidade
barulhenta e palpável na qual nós nos acreditamos dentro de nós. E, entretanto, é, bem ao contrário,
o que o poeta diz e o que ele assume ser, que é o real.]
193
inscrita no fundo da memória, de que todas
as outras constituem o reflexo degradado. O verso,
porém, não faz senão romper essa totalidade,
lembrando na insistência da sílaba a
a pura impossibilidade do regresso; e na matéria
verbal da estrofe encontro, mais do que
o presente, um rosto usado
como o amor que me obriga ao passado (RP, p. 24)
Se o mito é tudo, a escrita poética não pode deixar de participar
dessa totalidade, assumindo também a perspectiva mítica para falar
do mundo. Para isso, o poeta penetra nos caminhos da criação/morte
(Orfeu), entrega-se à arte (musas) e tenta encontrar a identidade do
sujeito poético na permanente tensão do reconhecimento de si (Eco e
Narciso). O poético e o mítico dialogam, portanto, como linguagens
alegóricas sobre o mundo, “palavras que nos levam mais depressa até
esse horizonte / onde nunca pensámos chegar.” (RP, p. 73).

Esses três livros, publicados antes de 1991 mas não incorporados


ao volume único de Obra poética, são como uma ponte entre o primeiro
e o segundo momentos da escrita de Júdice. Neles se decanta o excesso
imagético e dramático que permeava o tecido das obras de 1972 a 1985,
porém se mantém a mesma atenção à poesia, ao poema e ao ato de
poiesis como meio de (re)conhecimento das inúmeras paisagens que vão
constituindo a existência humana e dando um contorno ao sujeito que
existe por meio da linguagem. Essa ponte liga o poético ao filosófico,
demarcando, no segundo momento da obra desse autor, uma escrita
bastante consciente de que a poesia é um discurso que deságua no
filosófico, na medida em que ambos interrogam o ser e o mundo.

Na década de 1990, Júdice publica sete livros: Uma sequência de


Outubro (1991), Um canto na espessura do tempo (1992), Meditação sobre
ruínas (1994), O movimento do mundo (1996), A fonte da vida (1997),
Raptos (1998) e Teoria geral do sentimento (1999). Com exceção do
primeiro e do sexto livros, são obras que reúnem uma grande quantidade
194
de poemas (em média, mais de 70 cada um) e representam, sob nosso
ponto de vista, uma segunda fase da escrita, em que há depuração
temática e formal, diminuindo sensivelmente a presença de textos em
prosa, os poemas por demais extensos, os versos longos e o tom dramático
carregado de ironia. Se é certo que persistem os núcleos temáticos
fundamentais (a reflexão sobre a linguagem poética e o problema da
representação, a construção do poema como construção de mundo, a
experiência angustiada do tempo na transitoriedade de tudo, a certeza
da morte e seus correlatos: o vazio, a solidão e a incomunicabilidade, e
a afirmação da relação memória, escrita, poesia como reação necessária
para a sobrevivência), devemos agora destacar que esses núcleos se
interseccionam num só problema teorizado: a linguagem poética como
via de conhecimento, na medida em que a escrita e a leitura exercitam a
transformação do sujeito e a transformação do mundo. Nesses livros, o
escritor assume a necessidade da poesia como salvaguarda da condição
humana, sem romantismos ou idealismos. A poesia como resistência.

Entre os livros publicados nos anos 1990, Uma sequência de


Outubro e Raptos assemelham-se claramente. O primeiro é editado
numa coleção especial coordenada por Alexandre Melo e Margarida
Leal: “Livros de Artistas123 – Comissariado para a Europália 91”. Se nas
fotos de Rui Chafes há luz contraposta à escuridão, na escrita há o som
das palavras em contraposição ao silêncio que envolve poeta e leitor
(eu e tu) num tempo sem medida, vazio de presença humana. Não há
respostas definitivas às indagações que se espalham pelos textos, mas
talvez o percurso seja um constante interrogar sobre a constituição do
ser e a validade do poema, para que não seja verdadeira a afirmação de
que “O poema tornou-se, portanto, inútil... (p. 7)” – último verso de
“Composição”, texto que abre Uma sequência de Outubro. Não devemos
esquecer que esse verso, um pouco modificado, já aparecera em livro de
1976, Nos braços da exígua luz, abrindo o poema “Vaga lição: fortuna”
(“A poesia, tal como a entendo, é inútil. Para que terei então chegado

123. Coleção que se caracteriza por unir o trabalho poético ao trabalho figurativo, como pintura,
desenho, gravura ou fotografia.
195
aqui?”). Não à toa, o último texto em Uma sequência de Outubro termina
com interrogações sobre a permanência, sobre o eterno retorno:
[...] Sim, o poema só
constata evidências; e as últimas estrofes
coincidem, quase sempre, com a descoberta de
uma verdade esquecida. No entanto, perguntas:
por que é que tudo recomeça? A primeira clari-
dade depois da treva? Um regresso de pássaros
em pleno inverno? A imagem inesperada com que,
de súbito, todas as frases se acendem por dentro? (SO, p. 30)
O segundo livro, edição conjunta da Casa Fernando Pessoa e
Quetzal, também alia a 10 poemas de Nuno Júdice a arte figurativa,
agora com a colaboração de Jorge Martins. Há uma narração mítica
da experiência amorosa como perseguição da unidade, com Eros e
Thanatos disputando o domínio final. Três poemas falam de raptos
mitológicos – de Europa, de Proserpina, de Psique, mas raptos também
são os outros poemas a falar de instantes, de imagens, das mãos que
captam o instante na ânsia de registrá-lo. A arte como horizonte do
imaginário livre torna-se um corpo feminino desejado e perseguido.
O erotismo é, em cada texto, princípio motivador de imagens que vão
construindo os caminhos dos poemas, e, por isso, os 10 textos falam
de amor como paixão, prazer e criação. O amor-eros acaba por ser o
princípio da própria arte.
Há um caminho que leva ao fim de
todos os caminhos. Talvez te lembres, tu
(procurada nos mais impossíveis caminhos,
os que entram pelo mar e os que saem do mar),
que nunca me ensinaste o verdadeiro caminho
(o que começa e acaba em ti, no meio de ti,
no fundo mais fundo do teu sexo
que refloresce como a erva do campo
depois das primeiras chuvas

196
de setembro.) O caminho da tua pele,
o que é indicado pelos teus cabelos e,
também, pelos teus olhos (o caminho sem saída
dos teus olhos) é o único
que não vem nos mapas: o caminho invisível
que não me ensinaste, deixando-me
à porta de todos os caminhos. (R, p. 12)
Os cinco livros restantes representam a maturidade poética do
autor, e vale comentar, ainda que brevemente, suas principais trilhas.
Uma delas continua sendo a temporalidade como problema crucial para
o sujeito lírico, pois sua experiência fala de fragilidade e fugacidade,
precariedade da vida. O ritmo temporal é extremamente marcado no
enunciado dos poemas, principalmente pela mudança de estações,
destacando-se, pela recorrência, o outono e o verão. O primeiro, como
tempo de morte e melancolia, mas também de transformação necessária
para o ressurgir da vida; o segundo, como excesso de luz, materialidade
do real, existência da vida e apelo da concretude. Leiam-se, com essa
visão, os poemas “As quatro estações: o outono” e “Bucolismo: o verão”,
dos quais transcrevemos apenas uma estrofe, respectivamente:
Não sei, no entanto, que estação é esta
na alma. Talvez uma indecisa nostalgia
provoque o regresso das tardes solitárias
de frio e chuva; e um luto de sol
se instale na superfície dos dedos, impe-
dindo o curso do verso. É como se abrisse
a janela, e me debruçasse para um lago
de névoa, onde apenas se ouvisse o ruído
monótono dos remos na sua incansável tarefa;
e uma voz me chamasse de dentro, distraindo-
-me desse tempo que se aproxima, com o
declínio das aves, com a lucidez nos lábios,
e um sentimento que insiste, sem se ver. (CET, p. 11)

197
e
A terra altera os elementos do quadro:
pendem para o real, isto é, para a sensação
que o corpo experimenta ao sacudir de si o
espírito, mergulhando na vida. Para todos
os lados, as cores vivas do verão definem
árvores, campos, caminhos e casas. O que se
ouve esvazia-se da origem humana: puros
ruídos que as palavras não definem, embora
o vento as reúna num som único. (CET, p. 77)
O tempo da natureza faz, assim, a fronteira entre o interior e o
exterior do sujeito lírico, que se contempla e se interroga mirando o
depósito de imagens que é a memória, confronto entre as faces diversas
desse sujeito, entre o passado e o presente, entre a realidade e sua ilusão
na escrita. O tempo fala de fragmentação e se reflete na pluralidade do
ser, lição pessoana que o poeta mais jovem reconhece e utiliza. Aliás,
Pessoa é também uma sombra nos versos de Nuno Júdice, e dele o poeta
contemporâneo traz os questionamentos acerca do sentir/pensar, a
impossibilidade da unidade e a certeza de que a escrita é fingimento.
Dele também virão o rumor marítimo e o cais, esse lugar à beira d’água,
limite da terra, ponto privilegiado para se olhar o horizonte.
Chego em frente do mar, das suas ondas,
das marés que setembro enfurece, dos cinzentos
e azuis que alternam com verdes estranhos;
[...]. Um barco abstracto
passou devagar pelo horizonte que a manhã não viu,
entrando no outro lado da terra, esquecido
por instantes da música dos portos. O poema, disseram-me,
ignorou essa distracção: atravessou
o limite da eternidade, vestiu-se com as palavras
nocturnas, deixou que a morte o contaminasse.
À beira-mar, não dou por isso; e digo-o,

198
devagar, repetindo em voz baixa
todas as suas contradições. (CET, p. 30)
Registre-se, ainda, a importância da figura feminina nessa escrita
carregada de tempo e memória. Mulheres diversas estão nos poemas
de Júdice; elementos femininos são a árvore, a noite, a sombra, a lua, a
morte, por exemplo. O feminino é o ventre do tempo, lugar que gera a
memória. O canto é ato de penetração, por vezes, de violação e uma forma
de amor que, nessa escrita, é um sentimento necessariamente carregado
de contradições, capaz de romper a “espessura do tempo”, insistindo na
permanência do sujeito frente ao desaparecimento inevitável.
Chamo as mulheres que o espelho empalidece; e
que do fundo da água enumeram os nomes do amor, so-
nâmbulas, perdendo sílabas na repetição de frases
mais longas. Aproximam-se, quando as fito, e quase deixam
a moldura obscurecida pela idade. Em que
pólen de memória os seus olhos adquiriram o fértil
brilho da imaginação? Por que se calam, quando
as interrogo, e os seus corpos uníssonos se dissipam
num sono de infinito? Vinde! Não vos percais no corredor
sem fim da nostalgia de um ser antigo! E resignai-vos
à medida vaga que o tempo oferece, com a música
de uns lábios afogados. (CET, p. 70)
A segunda trilha percorrida pela maturidade poética de Júdice
aponta para o problema da representação, na medida em que o poeta
considera que qualquer tentativa de reprodução é uma ação falhada, pois
perde-se inevitavelmente o fulgor do original. Desse modo, as paisagens
que se descrevem nos poemas, que olhamos por meio das palavras, estão
repletas de ruínas (culturais, sociais, históricas, filosóficas, poéticas e
pessoais), ou seja, são partes de uma unidade perdida, são fragmentos
que, no presente, lembram um tempo e uma história que se perderam, e
não há como recuperá-los a não ser como recriação.

199
Num tempo em que as origens estão perdidas, a Idade de Ouro é
apenas uma paisagem mítica, a obra de arte perdeu sua aura124 e tudo é
reprodução mecânica num mundo que é, agora, lugar de exílio, solidão
e incompreensão. Mas, apesar desse tom de profunda melancolia,
resultante principalmente da ideia de que as ruínas surgem em todos
os lugares, lembrando a ausência e a morte, a escrita poética inverte
essa direção para afirmar o valor do poema na luta contra o efêmero,
transformando o fragmento em motivo positivo, na medida em que
provoca o desejo de recuperação de uma história, pessoal ou coletiva,
ficcional ou referencial. Em outras palavras, a arte se torna o meio
necessário para resistir à perda do sentido, seja na linguagem, seja no
real. Bem a propósito, lemos passagem de uma resenha sobre Meditação
sobre ruínas:
Seja como for, a poesia de Nuno Júdice conta sobretudo histórias de
fantasmas e quem fala descreve-se a si mesmo como uma espécie
de fantasma, alguém que traz consigo a voz dos mortos “como se a
ouvisse” (cf. p. 87) [...] Falamos de alegoria a propósito desta poesia
no sentido em que nenhuma relação às coisas e aos seres se pode ter
fora do âmbito a que Wordsworth se referia como “my own immaterial
nature” – o espírito, a alma –, acentuando que nenhuma coisa pode
ser, para estes poetas, percepcionada sem a mediatização da arte (SAN
PAYO, 1996, p. 197).
Tal obra é, assim, uma “finisterra”, e o poeta à janela, contemplando
as paisagens destruídas, precisa buscar outra perspectiva, buscar “o
espelho onde nos possamos reconhecer” (MSR, p. 133). Essa busca
ocorre no interior do tempo pelo trabalho das mãos. “O tempo só
manteve o essencial: as mãos / estendidas, abertas, no gesto de pegar /
o instante; e a ideia de corrupção que / essas mãos fecham quando, com
um gesto / brusco, as limpo das coisas inúteis.” (MSR, p. 19). Por isso,
podemos dizer também que essa escrita poética torna-se um trabalho
arqueológico, na medida em que o poeta examina resíduos, vestígios e

124. Naturalmente, o ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (BENJAMIN,
1994) é nosso horizonte de leitura.
200
ruínas, “lendo” as camadas que formam uma língua e uma cultura. É
um trabalho de reconstrução de mundos, por meio do trabalho poético.

A narração sobre o desencanto do mundo real é outra via bastante


percorrida nesse conjunto de livros. Fala-se da vida cotidiana e trivial,
que aprisiona o imaginário e se transforma numa repetição de gestos
sem sentido, numa vivência dominada pelo tempo artificial urbano.
Se, na realidade, essa temporalidade evidencia a fugacidade de tudo, a
fragilidade da vida, no ficcional experimenta-se um outro tempo que
não tem medida, que se aproxima do perene. A experiência de narrar
é, como diz Benjamin, em texto muito referenciado, uma sabedoria
insubstituível que o poeta herda e guarda, porque só narrando domina-
se o tempo e mantém-se o conhecimento adquirido por gerações.
Durante gerações, acreditaram na vinda do Messias; depois deixaram
de acreditar quando souberam que o Messias já tinha vindo.
Durante gerações rezaram para que chovesse; depois deixaram de rezar
quando a chuva começava a cair.
Durante gerações pediram que o raio não lhes fulminasse as casas;
depois, deixaram de pedir quando se inventou o pára-raios.
Durante gerações isto e aquilo, e isto e aquilo acontecia ou não
consoante era isto ou aquilo.
Só, durante gerações, a Branca de Neve continuou branca como a neve;
a menina do Capuchinho Vermelho nunca pôs um capuchinho azul
nem cor-de-rosa; e a Bela Adormecida não acordou para contar os
sonhos que teve ou não teve. (MSR, p. 39)
Nessa poesia propositalmente filosofante, a interrogação sobre o
ser e o mundo se dirige ao próprio poético como caminho de criação
e recriação. O poeta, assemelhado ao filósofo, procura outros saberes,
questionando a função da arte e seu comprometimento, não social ou
político, mas humano. A escrita poética se recobre de uma nostalgia
originada da descrença na totalidade. Essa perda se ratifica em muitos
níveis, inclusive no teológico, pois o mundo contemplado está vazio
de deuses. A poesia continua a ser para o poeta um movimento de
preenchimento desse vazio, por isso é uma leitura de sinais e de vestígios.

201
De forma fiel, a escrita e a leitura são as ações privilegiadas pelo poeta
para enfrentar o emparedamento urbano ou o labirinto existencial.
Praticando essas ações libertadoras, o eu é um personagem de diversas
faces num jogo de espelhos que, afinal, constitui o jogo dos sentimentos
e do pensar. A linguagem é o tabuleiro onde esse xadrez acontece,
numa partida sem fim, sem vencedor ou vencido. Cabe sempre ao leitor
o movimento desse mundo lúdico, definindo-se também a ideia de
viagem para o interior do ser e do texto, constituindo-se uma anábase
sentimental, filosófica e poética, como se lê no poema “Anábase”:
Subo o rio do teu corpo num mapa antigo,
com o papel a desfazer-se e as letras apagadas
pelas chuvas da noite. Um barco de palavras
leva-me nessa expedição; e os remadores
calaram o seu ritmo monótono, ouvindo
o bater do casco nas águas do fundo.

Outrora, sonhei um desembarque matinal


nestas areias inacessíveis; ouvi os pássaros
indicarem o caminho das montanhas; soube
que as nuvens estavam ao meu alcance, como
se a fonte não fosse apenas um ponto abstracto
no centro da página. (MM, p. 39)
A viagem na terra das palavras é uma aventura de conhecimento
e se faz de espantos e de descobertas a cada toque, a cada movimento
de nomeação. A poesia, como território sem fronteiras, possibilita que
mundos diversos se encontrem, e as palavras conduzem o sujeito ao não
conhecido. Nesse território de palavras, encontram-se sempre o eu e
o tu, mas lá também se descobre que a segunda pessoa é ainda uma
imagem da primeira, construção subjetiva do eu que fala e deseja ser
ouvido. A escrita de Júdice dos anos 1990 deixa o tom excessivo das
suas primeiras obras, mas não abdica de um eu centralizador, que se
persegue nos outros contemplados. É o eu que determina o movimento
de aproximação ou existência, preenchendo as lacunas do discurso,
202
ensinando a gramática da comunicação, como no poema “Exercício de
gramática”:
Tu, que
os ventos percorrem
com os lábios
do horizonte,
e uma nuvem estranha cobre
como o lençol amargo
da madrugada: dá-me
as tuas mãos, agora
que o teu nome se
demora nos ouvidos da terra;
ou corre por esse rio
subterrâneo que desagua
no fundo
dos espelhos, de onde
nenhuma voz te chama.

Tu, o mais
abstracto dos pronomes,
vestida com o fogo surdo
da última vogal, [...]

Fica na tinta dos meus dedos,


resto de um verso, segredo
sem rosto; ou leva-me contigo,
limpo de reflexos e pronomes,
enquanto um rumor de fonte
me ensina a encontrar-te (MM, p. 44-45)
Mas, se o sujeito lírico com frequência se dirige ou se refere a
um tu, seja a mulher amada, seja o próprio texto, seja o leitor, seja o
eu escrevente perspectivado pela leitura, a relação discursiva, dando
203
espaço ao outro, com efeito enfatiza ainda mais a fala do eu a dar voz
a sua emotividade e subjetividades “pensadas” na linguagem e pela
linguagem. Por isso se compreende a afirmação de Eduardo Lourenço
de que há na escrita de Nuno Júdice um “corpo-a-corpo da poesia
consigo mesma”,
o autotelismo da poesia, a sua “finalidade sem fim”; a auto-
referencialidade da literatura concretizada na presença directa
ou intertextual da literatura clássica greco-latina [...], de autores
portugueses (Pessoa) ou não (Hölderlin), contemporâneos (Lezama
Lima, Ítalo Calvino) ou não (Shakespeare, Dante), da literatura “culta”
(“Elegia”, “Soneto”) ou “popular” (“Romance de cordel do banqueiro
suicida e da cómoda D. Maria”) – mostrando afinal que a poesia não é
mais do que a linguagem dos iguais dispersos no tempo (e no espaço),
como queria Almada Negreiros (apud FRIAS, 1997, p. 96-97).
A relação entre pessoas, em sua obra, fala-nos igualmente de
amor como caminho necessário para ir ao fundo do ser, ou seja, de
atingir uma unidade, ainda que temporária, de estabelecer entre almas a
comunicação, preenchendo as faltas e os silêncios. Vários são os poemas
de amor que nos falam de “[...]almas / que comunicam no limite de / um
segredo de frases” (MM, p. 56). Por isso, Orfeu é o mito mais presente,
a representação ideal do poeta, perseguindo “a imagem da amada / nas
fontes do canto. Assim, abre o caminho / às sombras que se perderam /
no bosque.” (MM, p. 101)

Entre os livros dessa “segunda fase”, O movimento do mundo é, sem


dúvida, uma belíssima obra sobre a própria poesia e reúne alguns textos
importantes para compreender, no âmbito deste trabalho, o encontro
entre Nuno Júdice e Carlos de Oliveira, principalmente considerando o
último livro de poesia publicado por este, Pastoral. Também no livro de
Júdice são insistentes os poemas sobre o campo, como espaço metafórico
da vida, lugar aberto em que o sujeito se defronta com a imensidão do
céu como abismo silencioso sobre as cabeças humanas. O diálogo se
impõe pela ocorrência de imagens semelhantes, pela problemática a
envolver os sujeitos líricos que buscam afinal entender o enigma que
envolve a vida, desejo de conhecimento nunca saciado. Em ambos, o
204
encontro do céu e da terra se transforma na natureza do poema, onde
o poeta perdura o gesto original da criação e encontra uma razão para
a persistência de sua escrita, ainda que o mundo real fale de fracassos e
de impossibilidades.
Claro que eu não diria que o caminho de
terra acaba logo ali, na extremidade do muro,
quando o camponês me diz que o muro
caiu no último inverno. E as pedras? Onde encontrar
estas pedras que parecem pedaços salvos
de um dilúvio? De resto, quando me despedi, o homem
ainda me disse: “No próximo inverno há-de
chover muito mais; e estes campos transformar-se-ão
num lago.” Olho, então, para o céu:
um céu azul, à espera da noite
limpa de lua, em que as constelações serão perfeita-
mente visíveis; e nada aponta para esse próximo
inverno. “Repare, continua ele, o vento. Alguma
vez sentiu este vento em pleno verão?” Sim,
o vento carregado de humidade, como se o mar
tivesse avançado até ao interior com a sua respiração
ofegante. “Talvez tenha razão”, respondo-lhe. E ele,
mudando de assunto: “Então, venha beber
um copo.” Não adianta dizer-lhe que não bebo,
que o álcool me queima o estômago. Perante o fim
dos tempos, cujo sinal vem com a fuga dos pássaros,
o melhor é esvaziar esse copo, de um trago,
e esperar pela noite para
ler os astros. (MM, p. 96)
Em relação ao tema do amor, o leitor apressado pode vir a
fazer uma leitura reducionista, ao considerar que a “fonte da vida” é o
amor rompendo a indiferença dos seres e a solidão. Mas, na verdade,
os poemas, em geral, deslocam essa visão idealista e falam de forma

205
recorrente de impossibilidade, simulação e negação. O amor pode
realmente suspender o tempo, preencher o vazio e ser ponte entre os
seres, mas não é exatamente em defesa da força do amor que os poemas
se fazem, e sim em defesa de uma linguagem que ainda insiste em falar
de amor num mundo indiferente, lembrando um poema incluso num
livro anterior, As regras da perspectiva, sob o título de “Canção”:
Amor, assim, orienta o sentido do verso
e o conduz, mais do que dita: porque o
verso repetido perde o sentido e não
seduz senão alguém que o repita. Não sei
que voz o canta na tarde que o dia
escurece; nem quem se espanta de que
o murmúrio apague a ânsia que arde no
canto do poema. Todas as palavras se
juntam nesse instante: e a música, com
que lavras a página, brota num fulgor
errante do desejo em que insiste o amor (RP, p. 57)
Se o fio da meada dessa produção dos anos 1990 parece ser
romântico, a meada é um romantismo crítico, isto é, uma reflexão
contínua sobre o sentimento e sua representação pela linguagem poética,
ao mesmo tempo que conclui sobre a ilusão dessa representação. O
poeta diz que a analogia é a fonte do poema (FV, p. 58), e é bom lembrar
que, a crer nisso, o poema cria um mundo suposto no qual intervêm
tanto o poeta como o leitor, sujeitos ao imponderável.
Escrevo-te, agora, por dentro deste poema.
Podia sonhar que vais nascer de dentro dele, ou
que estás dentro dele
como a flor futura habita o centro do inverso.
A analogia é o ponto aonde o poema vai beber,
como se vai à fonte, ou como se ouve, no silêncio
da terra, um rumor de águas subterrâneas.
Então, a tua voz abre-se, como se fosse

206
a própria flor. Entra em mim,
e percorre os espaços desertos da minha alma,
como se um vento empurrasse as portas e as janelas,
atravessasse as salas, e avivasse o fogo
nas cinzas do coração. Limito-me
a ouvir-te no intervalo dos versos, enquanto
a vida recomeça, devagar, o seu curso:
[...]. Então,
deixo que entres para dentro do poema; e vejo-te
avançar pelas frases, até ao fim da linha,
onde te espero,
como se cada sonho se não desfizesse
com o ar. (FV, p. 58-59)
Assim, o tema predominante é o trabalho na linguagem que o ato
poético de forma determinada exerce sobre as palavras. E esse trabalho
consiste numa arqueologia verbal, ofício de quem busca vestígios no
solo textual do poema, recuperando um mosaico de fragmentos que é a
memória inter e intratextual.

Num poema intitulado “Fons vitae”, Júdice escreve que essa fonte
é o coração (“[...] Nem há outros assuntos / quando nos encontramos,
e me começas a falar, / como se fosse o coração a única / fonte do
que dizemos.” (FV, p. 148); porém, essa metáfora, romântica por
excelência, é aqui metáfora moderna de uma escrita que reflete sobre
seus modos de sentir e ser, sobre os discursos das emoções, sobre as
palavras carregadas de imaginação. O poeta explica o próprio jogo da
escrita poética – resíduos, fragmentos, vestígios que se misturam num
amálgama, a memória –, vida reapresentada por imagens e não fatos,
transformação de um real que ficou para sempre perdido no tempo. A
memória é o tecido da existência com tramas constantemente rompidas
e que incessantemente busca-se recompor. Sob tal perspectiva, a fonte
da vida é a linguagem que nos faz existir para além da matéria, que
é capaz de reapresentar a vida onde só existem a morte e o silêncio.

207
“Perguntava se a poesia se faz com o sentimento” (FV, p. 24), e a resposta
é a própria escrita poética como memória fingida dos sentimentos e
permanente tensão entre o vivido e o imaginado, elaboração ficcional
dos sentimentos comuns da vida real. Logo, a poesia não se faz com
sentimentos, mas com as palavras que os dizem. “Tornar as palavras
sentimentos”, já se disse sobre a escrita de Carlos de Oliveira, e o mesmo
caberia também a Nuno Júdice.

Devemos observar, ainda, a presença do país natal nesse


momento de sua produção. A nomeação do território nacional é rara
em sua obra, por isso devem provocar algumas considerações poemas
como “Portugal”, claramente dialogante com um poema pessoano de
Mensagem. Entretanto, a mensagem contemporânea é pessimista,
apontando-se um lugar de marasmo, de imobilidade, de ausência e de
indiferença.
Deita-se com a cabeceira
voltada para o norte e os pés a mergulharem
no atlântico. [...]
[...] Como um cinto, o Tejo prende-
-o a essa cama estreita; e olha
o mar, deixando que as ondas o despertem,
por instantes, do sono antigo. De-
pois, vira-se para o outro lado, como se
não quisesse saber de nevoeiros matinais; e
volta a adormecer, enquanto o sol
agoniza no horizonte. (FV, p. 36)
Como se lê, o território nacional é estreito e indiferente ao
mundo, mergulhado num “sono antigo”. Parece que o silenciamento da
nação em sua obra revela que a opção do poeta é por outro território,
questão que discutiremos em nosso último capítulo.

O seu último livro de poesia publicado ao final do século XX é


Teoria geral do sentimento. O título escolhido para essa obra indicia

208
muito claramente a proposta que se tenta desenvolver, com sorriso
irônico, na escrita dos textos. Pretende-se expor uma teorização sobre
o sentir e as formas por meio das quais representamos os sentimentos.
Entre todos, o poeta escolhe como objeto de detida análise o amor, esse
sentimento cheio de contradições. O primeiro poema do livro intitula-
se justamente “A ciência do amor”; o segundo, “Arte poética com
melancolia”; e o terceiro, “Plano”, que abaixo transcrevemos:
Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro. (R, p. 10)
Constata-se, assim, que, em continuidade ao que Júdice vem
escrevendo, é de novo o “romantismo” como prática discursiva, como
perspectiva de observação do sujeito, que está em questionamento. Se as
ideias românticas do século XIX fizeram do coração o lugar sagrado do
indivíduo, o sujeito do século XX quis esquadrinhá-lo em busca do seu
mecanismo secreto, chegando mesmo a substituí-lo em corpos abertos,
fazendo-o perder, portanto, seu mistério e encantamento.

O sujeito que se expõe nos poemas desse livro de poesia de Nuno


Júdice, no final do século XX, é um “pesquisador” que se debruça sobre
esse mecanismo (coração, “comboio de corda” pessoano) e sobre sua
energia, o sentimento, querendo entendê-los, querendo acreditar na sua
209
possibilidade num tempo de melancolia e descrença. Mas esse “comboio
de corda” sofre uma metamorfose e será para o poeta o poema, e,
paradoxalmente, o desmonte desse brinquedo será a sua própria teoria
de composição. Poemas que tentam dizer o que seja a vivência, o
sentir amoroso, acabam por dizer a impossibilidade de compreensão
e concluem que a apreensão do sentimento é o horizonte inalcançável
do texto. Não à toa, o primeiro poema, “A ciência do amor”, tem como
epígrafe versos de Emily Dickinson – “Que amor é tudo o que há, é tudo o
que sabemos do amor” –, a nos indicar, desde o início, a impossibilidade
de uma “teoria geral do sentimento”, a não ser como teorização sobre
a própria linguagem dos sujeitos amantes. Por isso, “teoria geral do
sentimento” transforma-se em “teorização sobre a escrita e a leitura dos
sentimentos”, projeto inerente à poesia contemporânea.

Dessa forma, o que está em teorização é o confronto entre a vida,


realidade experimentada, e sua existência por meio da linguagem. Está
se analisando, então, o processo de memória da vida, um movimento
tenso de conservação do que foge, do que não se consegue dizer,
do desconhecido, como se lê, por exemplo, em “Arte poética com
melancolia”:
Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo
como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem
as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita
primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro
palavras de dentro do que penso e do que faço, como
se elas pudessem viver aí, peixes verbais no
aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem
da terra, nem trazem consigo o peso da matéria;
quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem
o mesmo sangue com que se faz viver as emoções,
e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas,
estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me
das mãos como areias; tento apanhar esses restos de tempo,

210
de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e
vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços
a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É
então que surges: o teu corpo, que se confunde com o das
palavras que te descrevem, hesita numa das entradas
do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome
com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra
portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens
inúteis que me separam de ti. (TGS, p. 9)
Nesse livro, como em todas as obras poéticas de Nuno Júdice,
a escrita é o exercício continuado de interpretação dos sentimentos
e do sentir; porém, um exercício controlado pela melancolia, pois a
interpretação é sempre parcial e restrita. Afinal, não “há cadernos de
instruções para os sentimentos” (TGS, p. 112).

No entanto, qual é a teoria desse “exercício”? Parece-nos que


o poeta já respondeu anteriormente, em As regras da perspectiva. O
sujeito poético pensa o sentimento, ficcionalizando o seu sentir. Tal
perspectiva é, afinal, a teorização do fingimento que Pessoa, como
mestre, soube demonstrar. Se a linguagem cotidiana acredita reproduzir
o real, a linguagem poética da modernidade denuncia a ilusão de toda
representação unívoca, pois sabe que o “poeta é um pastor de sombras”
(TGS, p. 122).

Revendo o percurso aqui registrado, esse último livro publicado


pelo autor no século XX encontra-se com o primeiro, A noção de poema,
por permanecer o motivo principal de sua escrita: narrar os vazios da
vida para tentar preenchê-los de palavras, de imagens e de sentidos.
Nuno Júdice também encontra-se com Carlos de Oliveira, numa
teorização do poético que reflete sobre os limites da representação do
mundo por meio das palavras. Em ambas as escritas, a mesma atenção
à metáfora e a mesma exploração do sujeito poético, personagem de
memórias e histórias. A mesma busca de paisagens em que se encontre
uma possibilidade de contemplar o tempo sem finitude, a utopia final
211
de todo homem, ainda mais se é do século XX, no qual as palavras
dominantes são morte, descrença, melancolia e fim.

Meditações estéticas: As máscaras do poema


“[...] eu aprendia de que forma
se constrói o mundo – a partir de que transparência,
e sobre que pedra.”
Nuno Júdice, O movimento do mundo
O percurso que empreendemos até agora pela obra de Nuno Júdice
procurou demonstrar o quão preocupado é o escritor com o processo
poético, com o lugar e a função da escrita, com os limites da linguagem
e da literatura neste tempo de massificação e globalização. Muitos são os
títulos de poemas em todos os seus livros que confirmam essa direção
de trabalho e levam o seu leitor inevitavelmente a considerar a poesia
sob a perspectiva crítica. Os exemplos disso seriam realmente inúmeros,
por isso destacamos apenas alguns títulos bem específicos, como “Regra
de composição” (NP, p. 34), “Os corredores do poema” (NP, p. 43), “Arte
do poema” (PS, p. 61), “A arte é poética” (CDP, p. 79), “Procurando as
palavras ancestrais” (CDP, p. 85), “Teoria geral do poema” (IA, p. 121),
“Ao tentar uma interpretação épica do poema” (MRF, p. 146), “Só se o
poema não surgir” (MRF, p. 164), “Sob o tampo do poema” (NBEL, p.
18), “Para que esse autor regresse” (NBEL, p. 179), “Teoria do poema”
(CS, p. 29), “Comentário do 16º Soneto a Orfeu” (ES, p. 24), “Poética”
(RP, p. 72), “Composição” (SO, p. 7), “Soneto em três partes” (MSR, p.
38), “Arte poética” (MM, p. 10), “Arte poética com marinha” (FV, p.
29), “Elegia com uma variação romântica” (R, p. 14), “Poética com arte
analógica” (TGS, p. 62), “Exercício de leitura básica numa sexta-feira
13” (TGS, p. 42). A esses títulos poder-se-iam juntar muitos outros,
como aqueles que indicam simplesmente uma forma poética (poema,
estrofe, soneto, ode, epigrama, elegia) e uma grande maioria de títulos
metafóricos que apontam para a construção ou a compreensão do
poema (como “Casa ou flores retóricas”). Os títulos de alguns livros,
igualmente, indicam explicitamente a preocupação com o poético,
212
como podemos verificar em A noção de poema, O mecanismo romântico
da fragmentação, Lira de líquen, As regras da perspectiva, Um canto na
espessura do tempo, Teoria geral do sentimento. Outros metaforizam a
relação do poeta com a poesia ou o seu lugar frente ao mundo, como O
pavão sonoro, As inumeráveis águas, Nos braços da exígua luz, A partilha
dos mitos, Meditação sobre ruínas, O movimento do mundo e A fonte da
vida.

Assim, em todas as direções desse escrever poético125, o leitor


acompanha reflexões estéticas e é levado ao questionamento sobre a
permanência da arte nesse tempo finissecular, em que aparentemente
ela não mais encontra razão para intervir ou insistir em prol da condição
humana. A obra de Nuno Júdice, na prática permanente de leitura crítica,
interroga a modernidade que gerou esse final de século e discute, afinal,
o raio de ação da literatura. Essa opção de trabalho se complementa com
a elaboração e publicação de obras ensaísticas diversas, como A era do
“Orpheu” (1986), O processo poético (1992), Portugal, língua e cultura
(1992), Voyage dans un siècle de littérature portugaise (1993), reeditada
e revista em 1997 (Viagem pela literatura portuguesa), e As máscaras do
poema (1998).

A coesão entre os diferentes gêneros com que Júdice, leitor


especializado de literatura, trabalha (poesia, narrativa, teatro e ensaística)
se dá pelo olhar crítico frente à escrita, sua e alheia, em língua portuguesa
ou não. Sua produção ensaística e literária preocupa-se com a produção
poética francesa do século XIX que modelou a modernidade literária
ocidental, com poetas como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud, com
outros poetas, como Saint-John Perse e Francis Ponge, com a poética
anglo-americana – Eliot, Pound, Cummings –, com a poesia alemã de
Hölderlin e Rilke126, além da literatura clássica latina, medieval e clássica

125. Se alargássemos nosso corpus de análise, essa afirmação seria válida para toda a sua obra
(narrativa, teatro e ensaio).

126. A própria poesia de Júdice nos indica claramente esses nomes, mas pode-se também consultar
entrevista dada pelo poeta em: ROZÁRIO, 1994, p. 287.
213
portuguesa. Por isso, podemos dizer que, tal como Carlos de Oliveira,
Nuno Júdice pertence a esse grupo de poetas para os quais escrever é
ler criticamente, e ler é buscar em outras escritas trajetórias modelares
com as quais o poeta poderá melhor caminhar em seu próprio território
de palavras. Em entrevista, ao ser questionado se a escrita depende da
leitura, Júdice respondeu: “Ler e escrever são duas atividades que se
penetram e, por vezes, confundem. Escrevo porque muito do que leio a
isso me estimula – ou porque me surge como um modelo que gostaria
de atingir. Entendo o ut pictura poesis de Horácio nesta linha: a escrita
do poema é, antes de mais nada, uma cópia dos mestres” (ROZÁRIO,
1994, p. 286.).

Na meditação contínua sobre o lugar e a ação do sujeito lírico,


na transformação pluralizante do eu como personagens vários de uma
história maior (incansavelmente narrada) que é a da própria literatura
ocidental, o escritor e crítico está discutindo a leitura como exercício
obrigatório de dialogismo127 para quem deseja compreender seu tempo,
sua cultura, sua própria literatura nacional. Dessa forma, destacamos
como a prática de leitura crítica é recorrente em sua obra, gerando
poemas que se tornam reflexões estéticas complexas.

Esse modo de ler, bastante compromissado com a crítica, realiza


a avaliação de uma tradição literária europeia que estabeleceu as bases
sobre as quais a modernidade portuguesa foi se constituindo. Na
escrita de Nuno Júdice, está sob exame não só sua formação clássica,
como também (e muito) o Romantismo, o Realismo, o Simbolismo
e o próprio Modernismo europeu. Em relação ao Modernismo em
Portugal, destaque-se a sombra pessoana, pois, com Pessoa, o autor
compreendeu os processos do jogo ficcional em poesia e aprendeu
que o sujeito poético é necessariamente plural, se deseja ser realmente

127. Assim, falar de intertextualidade na obra de Nuno Júdice, como também na de Carlos de
Oliveira, não é aqui um mero lugar-comum da crítica literária contemporânea, mas uma proposta
inequívoca de como esses poetas se posicionam frente ao trabalho literário em relacionamento
permanente com toda a literatura como atividade humana solidária, ainda que produzida em
solidão.
214
um poeta, personagem da linguagem. Observe-se que não se trata de
discutir influências ou demarcar burocraticamente hierarquias de valor,
mas de verificar confluências, a transformação crítica de escritas alheias
no trabalho de um escritor formado nas últimas décadas do século
XX, que já pode avaliar o que foi ou é a modernidade. Nesse sentido,
o que escreve Leyla Perrone-Moisés no ensaio “Literatura comparada,
intertexto e antropofagia” alia-se a nossa ideia de uma teorização da
leitura na obra de Nuno Júdice:
[...] Jorge Luis Borges propõe uma total subversão do conceito
de tradição, a partir de uma teoria da leitura. Em “Kafka e seus
precursores”, ele observa como uma obra forte nos obriga a uma
releitura de todo o passado literário, onde passaremos a encontrar
não as fontes daquele novo autor, mas obras que se tornam legíveis
e interessantes porque existe esse autor moderno. [...] Para Borges,
portanto, a tradição é uma questão de leitura, de recepção, e como essa
recepção se transforma em cada momento histórico, a tradição está
constantemente sujeita a uma revisão, está em permanente mutação.
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 95)

[ ...] E o futuro da literatura não se decidirá pela simples linha


sucessória, mas por essa interação sincrônica que faz com que a
literatura seja mais um espaço de escritura-leitura do que uma
sequência simples de fontes puras e influências degradadas.
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 99)
A leitura realizada por Nuno Júdice se faz em muitas direções:
poeta português lendo outros poetas portugueses além de Pessoa,
como Camões, Almeida Garrett, Antero de Quental, Guerra Junqueiro,
Mário de Sá-Carneiro, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Eugénio de
Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Belo, Herberto
Helder, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães,
Al Berto; poeta português lendo outros poetas não portugueses,
notadamente, europeus e afastados temporalmente: os clássicos gregos e
os latinos, os alemães, os franceses e os ingleses; poeta lendo prosadores
portugueses e estrangeiros; poeta “lendo” outros artistas (pintores e
músicos, especialmente). É uma voz do presente em diálogo com vozes
215
do passado; é uma voz portuguesa em diálogo com vozes estrangeiras,
olhando e dirigindo-se ao outro sem submissão ou complexo de
inferioridade. Pelo contrário, ler e escrever são atos de liberdade,
penetrando-se na textualidade alheia para criar sua própria versão, indo
além, reapresentando e confrontando as versões existentes. Lembremos
que Roland Barthes escreveu que
ler é encontrar – ao nível do corpo, não no da consciência – como isso
foi escrito: é meter-se na produção, não no produto; pode-se iniciar
esse movimento de coincidência, quer de uma forma bastante clássica,
revivendo com prazer a poética da obra, quer de uma forma mais
moderna, suspendendo em si próprio qualquer espécie de censura e
deixando seguir o texto em todos os seus extravasamentos semânticos
e simbólicos; ler é, nesse ponto, verdadeiramente escrever: escrevo –
ou reescrevo – o texto que leio, melhor e mais do que o seu autor o fez
(BARTHES, 1995, p. 212).
e parece-nos que a leitura que se empreende nas obras poéticas de
Júdice realiza esse ato de “meter-se na produção” para instalar-se melhor
na sua própria textualidade, por vezes de forma bem irônica, quando
nega o texto como lugar de encontro ou compreensão – “A poesia, tal
como a entendo, é inútil” (NBEL, p. 198) –, contestando a mitologia
romântica que igualava vida e obra.

Se a leitura é ato reorganizador de qualquer texto, no poético ela é


atividade ainda mais exigente, a recompor os diversos níveis estruturais
que formam um poema. Ler pressupõe a habilidade de percepção das
unidades significativas e das relações entretecidas por elas, para atingir
uma totalidade sempre provisória; por isso, o trabalho do poeta e
do leitor é essa reorganização contínua do poema, espaço em que se
processa a luta declarada contra a imobilidade dos significantes e dos
significados nas estruturas frasais que formam os versos. Desse ponto
de vista, igualam-se, portanto, poeta, leitor e crítico.

Em relação às suas obras ensaísticas, podemos referenciar,


brevemente, que A era do “Orpheu” reconta a história da Revista
Orpheu, marco do Modernismo português, avaliando sua importância
216
e reunindo num só lugar histórias e reações jornalísticas da época
sobre a publicação dos dois números do periódico. Portugal, língua e
cultura foi obra preparada para a Exposição Universal de Sevilha, em
1992. Voyage dans un siècle de littérature portugaise é uma pequena
obra de divulgação da literatura portuguesa moderna, destacando
seus momentos fundamentais e privilegiando autores e obras que
constituíram trajetórias importantes no século XX. É uma obra sem
pretensão de exaustão, tendo o autor optado por uma síntese panorâmica
da literatura portuguesa no século XX, para publicação em França,
1993. Compreende-se que o objetivo é generalista, para iniciar um leitor
estrangeiro. Quatro anos depois, reeditou esse livro em português.

O processo poético foi publicado em 1992 e tem como subtítulo


“Estudos de teoria e crítica literárias”, reunindo alguns inéditos e outros
textos já publicados em jornais, revistas, atas de colóquios e prefácios. As
seções desse livro representam bem os interesses críticos de seu autor: “A
metáfora na poesia francesa de transição dos séculos XIX e XX”, “Antero:
o filho de um século maldito”, “Escrita e modernidade”, “Aproximações
contemporâneas” e, antes desta parte, “Algumas chaves para a leitura
de Carlos de Oliveira”, o que significa um contato interessado de
Nuno Júdice (leitor) com as obras de Carlos de Oliveira. Ali, o autor
reúne três estudos que versam sobre Uma abelha na chuva, Finisterra
e Trabalho poético. A fazer valer o que Nuno Júdice diz a respeito de
outro poeta em lugar diverso, não se destaca um autor se o diálogo não
interessa; portanto, é interessante observar que nesse livro crítico Júdice
tenha recolhido e republicado ensaios sobre a obra de Oliveira, o que
não deixa de ser o reconhecimento da validade desses estudos e, mais
importante, o reconhecimento da importância da obra do autor mais
velho no panorama da literatura portuguesa contemporânea.

No entanto, sob nosso ponto de vista, está em As máscaras do


poema (1998) o material textual crítico mais consequente para entender
os princípios que dirigem o plano de trabalho do poeta. Por isso, no
contexto deste estudo, essa obra tem importância semelhante à que
exerce O aprendiz de feiticeiro no conjunto de Carlos de Oliveira.
217
Como em O processo poético, As máscaras do poema reúne artigos
diversos: a maior parte é inédita, e os outros textos já haviam sido
publicados “em revistas ou publicações coletivas de acesso nem sempre
fácil” (nota final, p. 265). Também é dividido em seções, cinco: “Sobre
poesia”, “Para uma releitura de Bernardim Ribeiro”, “Outros estudos”
(sobre Hölderlin, Manuel Laranjeira, Mário de Sá-Carneiro, Almada
Negreiros, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, Florbela Espanca,
Mário Cesariny, Surrealismo, poesia e pintura, poesia e modernidade,
poesia e narratividade), “Alguns percursos contemporâneos”
(destacamos “Uma casa portuguesa”, além de mais sete estudos sobre a
linguagem poética de alguns poetas) e “Poesia e tradução”.

Obra de maior extensão, com aproximadamente 250 páginas de


escrita crítica, constitui uma reflexão amadurecida sobre a ação poética,
o poema, a poesia de outros poetas e, sem dúvida, a contemplação de
sua própria perspectiva literária e o lugar de sua escrita poética. É, por
conseguinte, uma obra fundamental, que não afasta do seu horizonte
reflexivo todo o trabalho poético que até então o escritor-professor-
poeta realizou, discutindo as suas balizas e núcleos teóricos.

O primeiro deles é o motivo da poesia, a persistência do poético.


Na perspectiva do crítico, a poesia é uma reação ao mundo e se elabora
na tensão e num drama entre sujeito e realidade. Não é discurso de
salvação ou de harmonia, e sim processo verbal por meio do qual se
enfrenta a crise da existência humana frente às certezas de sua destruição
ou precariedade. Essa visão é sintetizada na ideia de antiutopia: “Este
é, então, o plano da antiutopia: aquele em que o homem, tomando
consciência da sua condição mortal, procura a sua sobrevivência que é,
acima de tudo, a permanência na memória que só existe na palavra que
lhe dá forma” (p. 13).

A poesia como atividade de resistência põe o problema da


memória no centro de sua atenção, pois a escrita institui um diálogo
que não cessa de ser encetado a cada aproximação de um leitor, o qual,
afinal, dá a razão de ser de qualquer texto. Logo, a ideia de uma poesia
218
fechada em si, autocontemplativa ou autorreferencial, é uma falácia que
negaria o sentido próprio do poético: a sua inserção na comunidade
como linguagem de liberdade, a permitir o confronto de versões de
mundo e de versões de sujeitos. O escritor afirma: “Trata-se de uma
tensão que coloca no horizonte da poesia o próprio humano.” (p. 40),
e essa declaração defende a poesia como discurso que persiste como
memória humanista frente à automatização, massificação e materialismo
tecnológico.

No texto “As linguagens e as máscaras do poema”, a razão da


poesia é seu tema central. E, repetindo o que em diversas passagens
do livro é dito, escrever é buscar a identidade maior: ser homem num
tempo inumano. A razão da poesia se encontra, portanto, na existência
do sujeito, e isto é o segundo polo fundamental do trabalho poético de
Júdice. Escreve-se sempre para alguém, mas esse pronome indefinido
não significa, muitas vezes, o outro fora do eu-escrevente, mas os outros
que atuam nesse eu, numa experiência dramática interior que a poética
pessoana magistralmente deu a conhecer. Júdice reflete com muita
atenção sobre o sujeito da escrita e o sujeito da leitura, sobre o eu-
escritor e o eu-leitor, vivenciando ambos os limites da ficção para chegar
à seguinte ilação: “Então, para que o círculo se feche, aqui está: o leitor
ideal é o próprio escritor, aquele que se pode dispensar a si próprio, e
que procura, de cada vez que escreve, criar um outro, desembaraçar-se
do seu personagem ou, pelo menos, encontrar os outros rostos de si
próprio” (p. 53).

O status de sujeito ordenador do discurso tem implicações sérias


na constituição do poema. A existência de um sujeito que doa a sua
palavra e a de um sujeito que aceita recebê-la significa o estabelecimento
de um acordo essencial para o exercício da linguagem: a escolha de
uma perspectiva comum. A escrita ficcional é, assim, o resultado dessa
perspectiva por meio da qual se olha o real, estabelecendo imagens
diversas do que se contempla. O diálogo entre escritor e leitor é a
discussão contínua das regras de perspectiva que a ficção utiliza.

219
Com efeito, o texto interpela o leitor de uma forma directa,
obrigando-o a identificar-se com essa cena subjectiva, e a projectar-
se nesse tu a quem é exigida uma resposta. O leitor é, então, uma
figura necessária nessa cena inconsciente, aí figurando como o único
elemento capaz de esclarecer o mundo não visível do poema e de
conferir uma presença real ao sujeito poético.
[...]
No poema, a perspectiva é algo que é intrínseco da própria natureza
do lirismo: o sujeito, omnisciente e omnipresente, reduz-se a um
expediente gramatical; e o mundo que ele põe em cena não passa
de um jogo articulatório de significações decorrentes da dominante
subjectiva. Assim, a primeira pessoa introduz uma instância presente
na produção do mundo ou realidade do poema. O leitor é forçado
a integrar essa dimensão, vendo apagada a mediação histórica, a
distância de um devir que impõe uma fronteira entre o real do texto
e o real do leitor, entre o tempo da ficção e o tempo real. Todo o
artifício do poema decorre, então, dessa anulação de fronteiras, vendo-
se o leitor envolvido imediatamente no jogo dialógico, como parte
necessária do fundo inconsciente do texto (p. 33-35),
No horizonte do poema está uma paisagem sempre em elaboração
a partir do olhar do leitor. Por isso o poeta é, como diz Júdice, um
mediador entre espaços, tempos e mundos, os do texto e os do leitor.
Nessa paisagem, a metáfora é princípio ordenador, porque reúne as
oposições ou diferenças, estabelecendo-se como mecanismo cognitivo
que permite a transformação do leitor frente à escrita, na medida em
que o faz conhecer ou reconhecer mundos. Nessa direção, a metáfora
é o resultado de um processo de interação entre linguagem e sujeitos
(escritor, leitor) que a utilizam.
É a criação linguística que está no centro do que se pode chamar a
diferença da poesia em relação a outras formas de expressão: criação
que passa por um processo de transferência dos mecanismos de
apreensão do mundo através da linguagem para o interior dela própria,
criando um meta-sistema linguístico de que a retórica é uma das
codificações possíveis. Dentro desse processo, a metáfora desempenha
um papel nuclear, enquanto forma substitutiva de objectos semânticos.
Neste sentido, a metáfora não se limita ao simples plano de uma figura
de retórica, dado encontrar-se no centro de um raciocínio cognitivo
220
que decorre do sujeito, enquanto fonte última do conhecimento do
processo metafórico (p. 63).
A poesia é, portanto, um discurso rigoroso, exigente e nada
inocente em relação às suas próprias estratégias de elaboração e ludibria
facilmente aqueles que entendem o lirismo, a subjetividade, como
transferência direta de emoção e sentidos. Ora, a concepção de que
o poético é uma prática cognitiva une poetas e leitores numa “outra
comunidade”, a habitar um território que não se restringe ao solo nativo
ou nacional. Quando Júdice estuda a poética de Rilke, diz:
Poderá dizer-se dele, como se diz de Pessoa, que a sua pátria é a
sua língua? De certo modo, este é um traço que o identifica com o
poeta português, e poucos mais haverá a ligá-los, a começar pelo
défice afectivo. Mas é essa forte relação com a língua que marca, sem
dúvida, uma época em que outras referências, políticas ou culturais,
religiosas ou filosóficas, entram em crise profunda, da morte de
Deus de Nietzsche à revolução bolchevique. A perda da identidade,
determinada por migrações, rupturas sociais e nacionais, exílios,
entre muitos outros aspectos dessa época trágica que tem na lª Grande
Guerra o seu epicentro, vai provocar em muitos autores a procura de
uma comunidade outra que a do sangue ou da terra em que nasceram.
O caso de Rilke é, por isso, emblemático dessa fixação num território
imaterial, que é o da poesia (p. 95).
Essa desterritorialização para se chegar a uma reterritorialização
no domínio da linguagem poética é um dos pontos-chave da obra de
Nuno Júdice. A intensa preocupação com o poético parece excluir o
mundo histórico real, mas o que se efetiva por meio desse posicionamento
é a forte reflexão sobre um discurso que se autoexamina, buscando
compreender sua presença naquele mesmo mundo. A esse respeito, em
entrevista já referenciada anteriormente, Júdice diz:
Levei sempre a sério a advertência platônica de que o poeta deve ser
expulso da cidade, isto é, coloquei sempre a minha poesia num espaço
a-político (fora da “Polis”) e nunca senti a necessidade de alterar essa
posição, mesmo em situações que exigiriam de mim, como cidadão,
uma intervenção na vida política concreta. É evidente que não é fácil
exercer a atividade poética quando existe censura, quando a sociedade

221
é injusta, quando há perseguições. Conheci esse quadro no Portugal
pré-democrático, até 1974; mas julgo que o empenhamento poético é
algo que na Poesia se justifica, e não em função de crenças ou combates
noutros níveis de realidade (Cf. ROZÁRIO, 1994, p. 284).
Ao mesmo tempo, se a nação é uma imagem construída por um
grupo na sua linguagem comum128, cada poeta afirma sua nacionalidade
na potencialização de sua língua, na abertura que ela lhe permite para
confrontar-se com as outras culturas, evidenciando-se as versões que
lhe são próprias, pois é confrontando as diferenças que se assume em
definitivo o território de palavras que nos deu um mundo para habitar.
A essa discussão voltaremos no último capítulo, tal a importância da
questão no trabalho dos poetas que ora estudamos.

Como dissemos, As máscaras do poema se equipara a O aprendiz


de feiticeiro por ambas serem obras de reflexão crítica sobre a literatura
e as suas relações com o mundo. Há uma diferença, porém, entre elas:
na obra de Carlos de Oliveira, o fio que costura todos os textos é a
presença de um sujeito-escritor (muito próximo de seu leitor, no tom
de conversa quase confessional) que considera a escrita um jogo de
memórias transformadas e transformadoras (memória cultural, social,
histórica e biográfica); na obra de Nuno Júdice, há especialmente um
sujeito-leitor (mais afastado de seu próprio leitor pelo tom teorizador
e didático129) a discutir o uso da linguagem para que a memória, que o
poema é, se estabeleça. Contudo, são duas obras, com cerca de 20 anos
de diferença de publicação, que se encontram na defesa da linguagem
poética como território comum a todos que desejam enfrentar o mundo
e sua precariedade, impedir o esquecimento e a desvalorização do
humanismo.

128. Cf. ANDERSON, 1989, p.14: “Dentro de um espírito antropológico, proponho, então, a
seguinte definição para nação: ela é uma comunidade política imaginada – e imaginada como
implicitamente limitada e soberana”.

129. Embora aqui e ali se assuma um tom próprio ao cronista, como em: “Há um fenómeno que me
surpreende sempre em Lisboa: no mês de Agosto, quando a cidade se esvazia, vêem-se pelas ruas
pessoas que falam sozinhas, que gritam, que fazem movimentos sem uma lógica aparente. Sei que
esses loucos estão normalmente ali; e que, no inverno, não deixam a cidade” (p. 59).
222
Penso que o poema deverá sempre guardar um ponto de contacto
com o homem, com o leitor, e ter uma mancha de humanidade, pois é
através desse lodo de emoções, de sentimentos, e também de imagens,
que nos poderemos todos encontrar, poeta e leitor, mergulhados numa
aventura comum mesmo que, finalmente, o verdadeiro sentido do
poema nos escape a todos – ou vá, como dizia Rimbaud, à frente da
acção.
[...]
De facto, é para assistir a esse milagre da criação poética que o poeta
continua a escrever, mesmo que não se trate senão de um pequeno
milagre, em todo o caso, o único milagre a que nós, os habitantes de
um mundo que perdeu já todos os deuses e mistérios, podemos ainda
ter o direito de assistir (MP, p. 57-58).

Percursos do sujeito no tempo e no espaço


“Era, no entanto, o centro que pisávamos, em cada passo que
nos fazia avançar para a margem; esse lugar entre o ser e a sua
sombra, por onde passava a substância do labirinto.” Nuno
Júdice, Meditação sobre ruínas
As reflexões estéticas que Nuno Júdice, ensaísta, desenvolve
confirmam a imagem de poeta que logo se esboça para o leitor de
sua poesia: um teorizador da linguagem poética e pesquisador dos
seus limites e processos imagéticos. Desde o primeiro livro de poesia
(lembremos que a produção poética é muito anterior à produção
ensaística), dominam as indagações metapoéticas e a discussão
filosófica sobre o ser, a linguagem, a poesia e o seu lugar no mundo.
Por isso, constata-se sem dificuldade que há em sua obra poética um
questionamento contínuo sobre a escrita e a leitura, ações que instalam
o sujeito na linguagem para a nomeação e criação de mundos. O poético
é, por sua vez, um lugar ímpar da linguagem, pois é nele que todos os
discursos sobre o ser, o mundo e a própria linguagem estão em tensão
crítica, afirmando-se a autonomia da poesia frente à categoria que
domina nossa existência: o real cotidiano. Muitos poemas de Nuno
Júdice discutem, como nos dois poemas a seguir, a distância entre as
palavras e “as realidades do mundo”, preenchendo essa lacuna com a

223
“invenção de imagens”, que estabelece um outro espaço, só percorrido
no poema. Nesse sentido, a experiência poética é um exercício solitário
em busca de algo não nomeável, como bem demonstram os dois poemas
a seguir, publicados em diferentes livros:
Um ritmo próprio regula a invenção das imagens
que, sob a ilusão nascida da sua existência,
transmitem um nexo oculto. Ao escrever, então,
não me limito a designar realidades do mundo
aparente, antes dou uma ordem diversa aos elementos
que a tradição me legou e que, através
do sopro da imaginação, me sugerem o poema. Não
se pense, porém, que essa “inspiração” determina,
de forma absoluta, aquilo que escrevo: não só
uma disposição anterior me impõe a frase literária
como também o estilo, essa marca individual
da linguagem, me integra numa expressão
mais vasta de sentimentos e ideias, na corrente
humana de uma procura de outra verdade – que
a língua vulgar é incapaz de reproduzir. Nalguns,
o verniz das convenções dissimula o esforço
autêntico, a alma ou, por outras palavras, a
revelação divina que o poema manifesta; noutros,
pelo contrário, é aquilo que se designou
por “génio”, particular manifestação da loucura,
que imprime um ânimo profundo às palavras
devolvendo-lhes, num raro brilho, a sua significação
primeira. Então, elas deixam ver uma parte
desse todo invisível que é a Criação; nada
ensinam: e não se pode, com rigor, falar de
conhecimento, de compreensão de um objecto
específico. Vemos a luz sem fixarmos a fonte,
banhamo-nos na água sem tocarmos o fundo. (CS, p. 29-30)

224
Onde o retrato esquece o rosto, que a sombra
da tarde apagou, a voz o substitui, e lhe
desenha o contorno. Não sei, no entanto, se é o
perfil que nasce nessa obscura extremidade;
ou se um eco pálido da frase antiga atravessa
a memória para que o ar a inscreva. Ar: pedra
abstracta, respiração de alma, sulco diurno de
nuvem; que imagem se concretiza num limite
do olhar, para logo se perder, fugitiva, na poeira
de um vento súbito? Ouvir-se-á o verso que a
circunstância evoca; e talvez se pressinta
a música desse corpo que a noite desejou. As
rimas são pobres na sua falta; um ritmo se
perde quando os dedos não tocam a pele, nem
os lábios imprimem noutros lábios a sua humidade.
Deixo o espelho da estrofe entregue à
decifração de quem reflete. A direcção do som
não coincide com o sentido das palavras. (CET, p. 29)
Note-se que o primeiro texto intitula-se “Teoria do poema”,
e o segundo, “Lição de desenho no atelier”. Em ambos, a reflexão
sobre a transformação que a arte produz, criando algo que, mesmo
relacionado à realidade, não pertence a ela, pois sua existência depende
da contemplação, de uma perspectiva de olhar. Assim, ocorre o que
Ricoeur chama de “referência de 2º nível”, ou seja, o poema cria a sua
própria referência, libertando-se da referência ordinária: “A metáfora
é, ao serviço da função poética, essa estratégia de discurso pela qual a
linguagem se despoja da sua função de descrição directa para aceder ao
nível mítico em que a sua função de descoberta se liberta” (s.d.a, p. 368).

Ora, esses poemas mostram que o espaço estético se estrutura a


partir do olhar que o artista lança ao mundo, definindo paisagens no
imaginário. O modo de olhar determina uma perspectiva e, no caso da

225
obra do poeta Nuno Júdice, essa ação vai motivar, no espaço do poema,
a discussão de algumas questões marcantes do discurso estético-crítico
contemporâneo: a arte e o confronto entre verdade e fingimento, entre
realidade e representação, entre o sentir e o pensar. Na poética que
ora examinamos, esse embate ganha voz por meio de uma primeira
pessoa que assume sua condição de poeta frequentemente a pensar o
seu próprio processo de criação, a pensar sua própria existência como
poeta. Essa afirmação é válida para todos os momentos da obra poética
do autor, mas é principalmente no seu primeiro livro publicado, A noção
de poema, que essa posição se apresenta como centro em torno do qual
a escrita vai se fazendo.
A poesia é o teatro, diz-me uma voz interior. Representar-me
em cada poema, montar-me um personagem, uma acção, um
ambiente.

Numa segunda revelação, vim a saber que toda a identidade


é falsa, que eu próprio só acessoriamente sou eu próprio.
[...]
Para existir o poema precisaria o poeta pois de inteligente
insensibilidade, de não ceder, de conter a cada instante as suas
sensações, os seus desequilíbrios, a sua solidão. Debruçar-se-ia o poeta
com cuidado e experiência para o papel, escreveria formas
estáveis de vida, exprimiria verosímeis emoções. Assumiria o poeta
então o destino impessoal da sua poesia, seria ele próprio o próprio
mistério de ser, uma presença obscura nos outros, in-
[substituível personagem de si próprio, inventado inventor.

Quem, no entanto, ousará assumir este modo consistente de ser?


quem recusará as solicitações humanas da vida? quem subsistirá
na indiferença e no tédio, na privação e na ausência, no poema?
(OP, p. 28-29)
Anteriormente falamos de paisagens, porque é recorrente na
escrita de Nuno Júdice a configuração de determinados espaços que
226
serão fundamentais para a compreensão de seus mais importantes
núcleos temáticos: a) o próprio poema (lugar do imaginário poético):
“Escrevo-te, agora, por dentro deste poema. / Podia sonhar que vais
nascer de dentro dele, ou / que estás dentro dele / como a flor futura
habita o centro do inverno. (FV, p. 58); b) a casa130 (lugar do sujeito e/
ou o próprio poema): “Vagueio como uma sombra sem memória / entre
as recordações e as relíquias, eu próprio sou parte de um outro tempo
e de outra gente [...] Durmo na perpétua imobilidade do poema, nos
recantos esquecidos de uma praia inacessível, litoral eterno de viajantes
sem navio. E o poema é esta casa / abandonada, o rosto belíssimo de
imagens mortas.” (OP [NP], p. 43-44); c) a natureza (terra, mar, céu): “O
mundo natural não traz surpresas para quem vive no campo. As árvores
dão flor na primavera, dão frutos no verão, despem-se no inverno.
De facto, as estações regulam o ritmo das coisas; [...]” (FV, p. 19); d) a
cidade (ruas, prédios, relações urbanas): “É como se a cidade estivesse
colada aos teus / braços; e trouxesses às costas o choro de quantos /
te perseguiram com o queixume branco / da manhã. Não o esqueças:
limita-te a carregá-lo, / curvando os ombros à passagem dos aviões,
/ e chora – sem que te vejam – para que tu, apenas, / te lembres que
é humano.” (TGS, p. 88); e) a alma, espaço interior do sujeito que se
delimita pela emotividade, pela narração de sentimentos examinados
pela razão do poema: “Esqueci-me de quem sou. [...] Por instantes, hesito
/ na própria sequência do raciocínio: procurar / nos átrios da memória,
o corredor de um vago / infinito; ou prosseguir a descida indicada / num
charco de sombras?” (RP, p. 33). Percorrendo com o olhar esses espaços,
o poeta fala de diversas paisagens, encontrando nelas um traço comum:

130. Cf. BACHELARD, 1988, p. 62: “A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado
transcende o espaço geométrico”. Em DURAND, 1989, p. 168, lê-se: “A casa constitui, portanto,
entre o microcosmos do corpo humano e o cosmos, um microcosmo secundário, um meio-termo
cuja configuração iconográfica é, por isso mesmo, muito importante no diagnóstico psicológico
e psicossocial. Pode-se perguntar: ‘diz-me que casa imaginas e dir-te-ei quem és’. [...] A casa
inteira é mais do que um lugar para se viver, é um vivente”. Consultem-se, também, os ensaios
sobre a imagem da casa na cultura portuguesa reunidos por SILVEIRA, 1999. O próprio Júdice,
em seu livro As máscaras do poema (1998), desenvolve dois artigos em torno dessa imagem na
compreensão da modernidade literária portuguesa: “O alfabeto da casa” e “Uma casa portuguesa”.
227
a experiência do tempo, que é, sob nosso ponto de vista, o eixo filosófico
fundamental de sua escrita, já que pensar o tempo é pensar o ser na
sua finitude e precariedade. Seja onde for, o sujeito lírico depara-se
com a temporalidade, perseguindo o que passa sem retorno. A ideia de
tempus fugit, mais que título de um poema, é a certeza angustiada que
impulsiona a própria criação estética, na tentativa de raptar o instante e
conservá-lo, num simulacro de eternidade:
O tempo rodeia-me com as suas florestas,
os seus atalhos, os seus rios de instantes
brancos como as pupilas dos deuses.
Mas empurro-o: como se me obedecesse.
O tempo trata-nos como se fôssemos
animais de carga, casas desabitadas,
rochedos expostos num litoral de inverno.
São visíveis as suas marcas,
e ele obstina-se nesse trabalho como se fosse
uma arte, um exercício de gosto.
Cinzelador de imperfeição, raptor
do presente: quem poderá fugir
às suas mãos? Então, lembro-me de ti.
[...] (FV, p.124)
Assim, na atividade contínua de escrever, o poeta torna-se um
pensador do tempo – “O meu olhar demora-se / na efémera imagem da
Eternidade. Vivo o tempo previsível da / nostalgia.” –, examinando essa
categoria em diversas direções: a) o tempo vivenciado pelo sujeito lírico
(passado e presente); b) o tempo da natureza (as quatro estações, o dia
e a noite); c) o tempo cultural (mitos, tradições, História, memória); d)
o tempo social (as relações entre pessoas, a vida nas grandes cidades em
oposição à vida nos vilarejos). Portanto, seus poemas são carregados de
tempo, e neles se apresentam visões, em geral, melancólicas e tensas da
vivência temporal.

228
Esse tom melancólico, por vezes dramaticamente exposto, é
provocado, principalmente, pela evocação da morte e pela certeza de
que tudo se corrói, principalmente em nossa realidade contemporânea,
na qual dominam a desilusão, a descrença, a dissolução rápida. Visão
disfórica, aliás, alimentada pelos fatos que marcaram o século XX
como o tempo da degradação da vivência humana, sob o risco possível
do aniquilamento total. Degradação que também reflete a própria
situação da linguagem poética, obrigada a se contrapor aos discursos
do consumismo imediato, com sua banalidade e artificialidade. Em
depoimento sobre “O lugar da poesia”131, Nuno Júdice destaca a gradativa
perda da potencialidade dos discursos oral e escrito atuais frente à
massificação e simplificação dominantes nos meios de comunicação.
Para ele, “a poesia funciona como o discurso depositário da memória da
palavra como mundo pleno de uma significação inteira [...]”. Portanto,
a sua poesia, ao mesmo tempo que diz essa perda profunda do contato
original com a linguagem, com a “palavra dos ancestrais” que guardava o
sentido da presença humana no mundo – “pois eu ouvira, / com nitidez
e exactidão, as vozes sublimes dos Antepassados; e / os seus rostos,
destruídos pela terra, incitavam-me, / ousavam murmurar as palavras
esquecidas que haviam soado / outrora, aos ouvidos / poderosos
de Deus!” (OP [CDP], p. 86) –, é ainda uma forma de se opor a esse
movimento de esquecimento humano.

Nos primeiros livros reunidos em Obra poética, como já


apontamos, há a obsessiva presença da primeira pessoa do singular, que
controla as imagens de si, do mundo e do texto, defrontando-se com
o tempo. A fala do eu (e são vários eus que vão atuando nos poemas,
sujeitos-personagens) expõe uma consciência de crise própria à
contemporaneidade, sem esperança teológica, histórica ou social. Esses
eus que atuam nessa fase da obra de Nuno Júdice em cenas poéticas
tão cheias de excessos (emotivos, verbais e oníricos) são realmente

131. “Inquérito” feito pela revista Relâmpago, n. 2, em abril de 1998, com a publicação de
depoimentos de oitos poetas portugueses contemporâneos. O de Nuno Júdice, “A poesia, hoje,
ocupa o lugar da eloquência”, encontra-se nas páginas 41, 42 e 43.
229
personagens vários que vão surgindo nos percursos da escrita e da leitura,
representando histórias de desencontros, dissoluções e vazios. Porém, o
poeta, centro unificador desses eus, “perseguidor de eternidade” (CS,
p. 15), persiste na sua errância por entre as palavras, transformando as
ruínas em material de construção, já que o que importa ao final é o canto
como espaço de ordenação do caos, de permanência, como trabalho
necessário para que se consiga sobreviver num “tempo de indigência”,
que é sempre o tempo de uma sociedade em crise. Se a temporalidade,
noção abstrata, concretiza-se na visibilidade das muitas transformações
físicas e materiais que os seres e as coisas do real sofrem, a caminho
da morte ou do desaparecimento, o canto na “espessura do tempo” é a
tentativa de deter esse percurso sem retorno, sua ação corruptora.
Em que ermo dispersas as tuas palavras
encontram um eco e voltam ao contacto antigo
dos corpos e das vozes? Longe, tão longe
que nem as aves, no regresso fatigado das últimas
migrações, o descrevem no seu canto tardio; e
que nem as nuvens esboçam uma claridade nostálgica
do rosto que o luminoso riso habitava. Então,
que o canto tome sobre si o cuidado de preservar
a perdida imagem; e conduza os meus passos
até esse limiar em que a tua sombra deixou a margem
do humano e entrou na corrente negra do ocaso. Chama-te,
dessa frágil fronteira, uma rima branca
dos ritmos insones da madrugada: horizontes anulados
no instante em que ouço uma apressada aparência
de respiração – e deixo que o verso corra pela página,
perseguindo um equilíbrio que na tua ausência
se rompe. (ES, p. 17-18)
A obra poética de Nuno Júdice, como a de Carlos de Oliveira,
fala de percursos no espaço e no tempo, lembrando continuamente a
fragilidade da vida, a brevidade de tudo, porque tudo existe no tempo;
mas ambos os poetas reagem a isso, creditando à linguagem da poesia
230
o poder de se transformar em memória da condição humana, porque,
como diz Nuno Júdice no depoimento já referido, “a poesia pode reflectir
o trabalho ligado ao tempo que passa, e marcar o ritmo desse tempo e
das suas mudanças. [...] Assim, é na verdade identitária e original do
poema que sobrevive a nossa memória, e também a mais primitiva
relação do homem com a terra. O que não quer dizer que a poesia não
seja, por outro lado, a mais sofisticada forma de descrever e de trabalhar
essa relação: e ainda a mais simples”. (Revista Relâmpago, n.2, 1998, p.
41-43)

Experiências do ser: memória e metamorfoses


“[...] deixai o centro, a luz, o sol morto do outono,
para entrardes na água abstracta da vida
cujo murmúrio faz ouvir o canto invisível do verso.”
Nuno Júdice, As regras da perspectiva
“A memória é um fruto que demora.”
Nuno Júdice, A condescendência do ser
O poeta ocupa a linguagem para enfrentar a experiência
problematizadora da temporalidade. Para isso, “pinta” com as palavras
paisagens que são, com efeito, quadros a representar ficcionalmente os
movimentos da memória, a qual busca recompor, a partir de fragmentos
e ruínas, as histórias possíveis da vida. As aporias do tempo e o desejo de
reencontrar um espaço original de comunicação, isto é, um espaço onde
exista a presença humana com as marcas de seu trabalho, impulsionam
essa escrita poética e dão a ela um matiz filosofante, já que sua linguagem
contempla o ser, o mundo e a si própria, interrogando e refletindo sobre
a condição do homem num mundo destinado à morte.

Observamos no percurso aqui realizado que um certo platonismo


envolve a poesia de Nuno Júdice, ou talvez fosse melhor dizer que há nela
a recorrência de uma alegoria platônica, o mito da caverna, falando do
desejo de recuperar algo perdido (a totalidade, a unidade, a divindade,
a linguagem essencial, a verdade?) e ainda mais valorizado no contraste
231
com o mundo que se conhece. Mas já anotamos que não há a simples
transposição do mito platônico para a poesia, e sim uma transformação
ou, como dissemos, “uma inversão”, pois, muitas vezes, está nas sombras
a verdade procurada. O livro A fonte da vida, por exemplo, inicia-se
com o poema “Destino”, em que o amor é uma dessas sombras:
Uns afastam-se, em busca de cidades
obscuras, nórdicas, seguindo o caminho
do inverno. É verdade que a chuva atrai
os mais tristes, os poetas, os que se
demoram na contemplação dos vidros,
esperando que a humidade deixe ver
o reflexo de um rosto que se perdeu;
mas também o caminho que seguiste foi
esse, e nenhum canto me conduz através
dele, como outrora a flauta guiava
os passos do pastor. Que rebanhos, porém
podem distrair o amante da sua obsessão?, ou
que vida permite, ainda, que se atravessem
pontes sem regresso, e se deixe para trás
a paisagem conhecida, o refúgio das margens?

Parti, porém, ó vós que acreditais


no poema! Deixai-me sozinho com a imagem
que amo, acendendo o fogo da memória com
o nome que nenhum silêncio me roubará; e
não me desabitueis da sombra que habita
o lugar em que esteve, essa que tem consigo
o segredo do vinho que amadurece, e um riso
de rosas com a brancura do dia que nasce. [...]
[...] Quem ouvirei, agora, quando
as tardes caírem de súbito, e a noite me
empurrar, com o seu punho, para a solidão

232
de uma alma sem a satisfação da eternidade?

Tu, porém, e as palavras que me deixaste,


obrigam-me a esperar, no crepúsculo das estrofes,
as mãos que se juntam, os olhares que se fixam,
a figura do amor em cada novo reencontro. (FV, p. 9-10)
A poesia, então, torna-se uma mnemônica especial, isto é, uma
arte de fortalecimento da memória – não só do sujeito, como também, e
principalmente, da cultura que o formou, dos valores que fundamentam
o tratamento valorativo do homem. Com forte feição narrativa, o poeta
conta, a cada poema, uma breve história, integrando as muitas narrativas
numa História maior: a própria cultura humanística (e aí, com grande
relevo, está a arte) que possibilitou essa escrita. As histórias do sujeito
falam do jogo da vida: a nostalgia da infância, a vivência do amor e suas
impossibilidades, a solidão nas grandes cidades, a presença palpável
da morte, os encontros e desencontros do cotidiano, as angústias e
inquietações da alma. São memórias fingidas, mesmo que um fato
referencial possa ser apontado, aqui e ali, na origem da ação poética,
porque tal escrita não se pretende biográfica, pelo contrário, insiste na
capacidade criadora de instantes existenciais, num imaginário livre,
muitas vezes devedor do Surrealismo ou da linguagem densamente
metafórica de um Herberto Helder. A escrita se oferece à leitura como
registro da imaginação, e não da vida real.
[...] Eu sentava-me
em ocas esplanadas, sacudindo o vento da cara; um sol
já frio, indicando o meio-dia no prumo da vara, no
zénite varava, lento – e um mastro de chamas
o céu varia com ondulações de lava. Eu levava
à boca, com o café, um depósito de larvas: e
uma sereia louca entrava-me nos ouvidos.
[...]
No céu – vistes? – havia braços alados

233
e atrás deles, pelos campos, iam-se-me os olhos baços. (OP
[LL], p. 302)
Mas, na poesia de Nuno Júdice, o sujeito lírico é uma pluralidade
(lição pessoana confessa132), fragmentando-se em muitos personagens
que atuam na cena do poema. O drama que representam fala da cultura
que fundamenta essa escrita poética. Especialmente nos primeiros
livros reunidos em Obra poética, domina essa relação que se declara no
jogo intertextual, dando conta do cruzamento de diferentes vozes que
vão traçar diferentes paisagens estéticas no tempo e no espaço. Além
do cruzamento dessas vozes, ocorre também o cruzamento de gêneros
estéticos, ou seja, poesia e pintura, poesia e música, poesia e teatro, poesia
e romance. Além disso, cruzam-se discursos da cultura, compreendendo
aí a utilização de uma dicção verbal comum à argumentação filosófica,
teológica, antropológica e histórica.

Essa variação de vozes, esse entrecruzar de posições na linguagem


e na cultura demonstram que falar de memória e metamorfoses na
obra de Júdice é indispensável para se compreender o seu projeto de
escrita. De um lado, a memória mantém o que não cessa de passar;
de outro, a regra da arte é realizar e aceitar a metamorfose. Ambos
os processos decorrem do interesse cognitivo do poeta que não cessa
de observar, analisar, indagar sobre o homem, o mundo e o texto.
Assim, o poeta trabalha a metáfora, resultado da metamorfose, como

132. Em entrevista a Michael March para a The New Presence, em outubro de 1997, o autor fala de
sua relação com Pessoa: “I learned to write with him, but then I had to liberate myself in order to
write freely, because he was too present in Portugal, he’s always too present in our 20th century. What’s
important is the relationship between the poet and person. After Pessoa, it is very difficult to keep the
Romantic idea that the poet and poem are one. When I write, I know I am subjugating the poet – I
know that I am not necessarily the poet in the poem. We may attribute this invention to Pessoa” [Eu
aprendi a escrever com ele, mas então tive que me libertar para poder escrever livremente, porque
ele estava presente demais em Portugal, ele está sempre por demais presente em nosso século
XX. O que é importante é o relacionamento entre o poeta e a pessoa. Depois de Pessoa, é muito
difícil manter a ideia romântica de que o poeta e o poema são um. Quando eu escrevo, eu sei que
estou submetendo o poeta – eu sei que não sou necessariamente o poeta no poema. Nós podemos
atribuir essa invenção a Pessoa].
234
elemento fundamental para que o discurso poético seja fundador de
uma linguagem nova. O poeta é, por isso, “um escultor do movimento”:
Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta
própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua prática
confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte. (TGS, p. 136)
Não esqueçamos que a escrita ensaística de Júdice é assaz atenta à
metáfora como núcleo de elaboração ficcional em poesia. Em O processo
poético, aliás, há um estudo sobre “A metáfora na poesia francesa de
transição dos séculos XIX e XX”, no qual, analisando modos de
utilização da metáfora por Baudelaire, Mallarmé e Claudel, conclui que
neste último poeta “há uma evidência máxima do jogo figurativo:
O signo poético adquire, assim, uma opacidade que faz com que a sua
leitura seja, em grande parte, determinada por esse dizer. Afastamo-
nos radicalmente tanto da comunicação imediata que o Romantismo
pretendia como do hermetismo sabiamente trabalhado do Simbolismo.
O poema cria um efeito de comunicação que decorre desse jogo
entre o sentido primeiro e o sentido segundo da imagem – o que
deixa um espaço de não resolução da leitura que decorre do aspecto
fantasmático de uma das leituras da imagem a partir do momento em
que a outra ganha espessura, ou objectividade. A oscilação do sentido
deixa de depender do factor subjectivo ou da polissemia, com que
jogam as estéticas romântica e simbolista, sendo um efeito do dizer do
poema (p. 43).

235
Ora, tal atenção ao “efeito do dizer do poema” se estende, como
práxis, a toda a sua poesia, que continuamente explora a potencialidade
das imagens para que o poema diga mundos (estamos pensando, é
claro, na “redescrição de mundos”, segundo Paul Ricoeur), lugares do
imaginário que só a linguagem poética pode dar a conhecer. Escreve
ainda Nuno Júdice: “o poema deve manter o seu estatuto subversivo,
também aqui desligado do sentido social da palavra subversão, mas
antes remetendo para a vida, até no sentido mais cotidiano da palavra,
fazendo com que o olhar “aprenda” com a leitura do poema uma nova
imagem do mundo”133. E, em seus versos, lemos:
Há uma proposta essencial, um contrato, que une
a escrita a quem escreve; e não é a cumplicidade do criador
e da criatura, apenas, que pode resumir esse pacto
mas algo de mais profundo: união de existência que
concede o conhecimento do próprio inconcebível. (ES, p. 62)
Essa prática metamorfoseante se aplica também à vivência
da(s) memória(s), porque, se esta(s) já é (ou são), objetivamente, uma
transformação do real, falar do que se lembra é duplicar a transformação,
é movimentar o que jaz imóvel a um canto do ser ou da vida. Os poemas
de Júdice obsessivamente falam da memória e do tempo, dos limites
representativos das palavras, das imagens que, por meio da linguagem,
se criam, a envolver sujeitos de diferentes espaços: o eu no poema, o
leitor/ouvinte do poema, o próprio poeta como criador desse jogo de
relações. Dar voz à memória é fazer com que esses sujeitos enfrentem
o tempo, recontando histórias silenciadas ou esquecidas, fazendo o
reconhecimento de lugares (des)habitados que passam a ser ocupados
nos poemas. Rememorar é saber ler vestígios de paisagens, “fixando
sombras”, formulando estratégias de permanência sobre a brevidade da
vida, permitindo o “povoamento”. Diversos poemas, em todos os livros,
apresentam essa formulação, demonstrando realmente a importância

133. Depoimento publicado em Cadernos de Serrúbia, n. 3, dez. 1998, p. 42.


236
dessa questão no contexto maior da obra de Nuno Júdice. Em As regras
da perspectiva, lemos:
Mudança: chave de tantas das figuras
que construíram o poema, moldaram a
sua forma, abriram à sonoridade do cre-
púsculo os versos inúteis da madrugada,
– inspira, uma vez mais, a passagem das
sombras que procuram o abrigo do tempo,
sonhando o destino perecível do humano;
não as expulses de dentro da esperança,
condenando-as à imobilidade da treva;
abre-lhes a porta luminosa do fim – re-
velando, num parêntesis de eternidade,
o rosto mortal que enuncia o instante. (p. 7)
E, no poema “Alegoria da caverna”, publicado em Teoria geral do
sentimento,
Um poema precisa de viver. E, para isso, não pode
estar à sombra de qualquer coisa, mesmo que essa sombra nasça da
tua imagem. Tenho de apagar um deles: poema ou imagem; e
deixar que o caderno se feche quando a decisão ficar tomada, para que
[dentro dele
fique o registo dessa noite em que foi preciso decidir entre a memória
e a palavra. No entanto, ao acabar o poema, esquecendo-me por
instantes
do seu princípio, tudo volta ao mesmo: e tu estás comigo, isto é, a tua
imagem desce-me da memória para o caderno, alastrando pela página
até
ao fim do poema.

É como se o poema existisse por essa única razão: fixar a tua sombra.
(p. 137)

237
Fixar a sombra é o que faz essa escrita poética que registra versões
dos fatos, transformações das formas, imagens dos seres, enfim, escrita
que assume ser a ficção de realidades perdidas no movimento da vida.
Com essa perspectiva, o tempo do poema é o presente, porque é sempre
no presente da leitura que o poema “acontece” ou “diz” a sua existência.
Justamente porque essa poética não é biográfica, o passado não importa.
Cada texto é um presente permanente e um desafio de superação, um ir
à frente, metaforizando-se a ânsia de atingir o limite da linguagem e do
ser, no movimento do olhar ou do voo que se dirige para o horizonte,
espaço que começa a ser significativo na obra poética a partir de 1982,
ano de publicação de A partilha dos mitos:
Sem dúvida, a sensação de divino aparece a muitos, próxima ou
longínqua,
no curso da vida. E, como o pálido brilho da chama, indica o sombrio
[caminho
de um futuro. Mas só o poeta a recebe como duração, algo que nasce
entre a vegetação dos minutos, que as mãos da alma colhem num
êxtase
[musical,
e só ele por instantes compartilha uma vibração de eternidade
na inércia nocturna das aparências. Assim se desprende da humana
corrente;
[...]
[...] É ele,
habitante casual de uma respiração de casulo, no fértil sopro se move;
em cujas garras, imóveis, o pássaro da incerteza jaz.

Canta, essa ave, uma voz azul que rasga os ombros da noite,
E aluz alastra enquanto permanece o canto. Ao olhar se abrem os
contornos
de naturezas mortas, vultos litorais de um rumor de florestas,
o sofrimento baço das paredes do quarto onde as ervas reflectem o mar
agitado pelo vento mental de uma inesperada manhã.

238
[...]
[...] Ainda vi as asas,
manchadas de sombra, modelando a argila da definitiva imagem. Que
[opaco horizonte
abriga o seu voo? Que faroleiros do limite avistaram, pela última vez,
esse ser de efémera matéria? Aqui, uma nostalgia se mantém nos
ouvidos.
[Nada
se evade da pura ânsia de ficar, partindo...

Uma relação sobrevive se o poeta, ou a ave, se afastam


do humano. (PM, p. 226-227)
Essa concepção temporal do poema pode ser relacionada à
experiência da narração mítica a que Nuno Júdice alude em passagens
diferentes de sua obra. O mito suspende a tripartição temporal cotidiana
(passado, presente e futuro) e se instala numa temporalidade contínua,
o eterno retorno.

Naturalmente, dada a importância da cultura clássica na formação


do poeta (Cf. ROZÁRIO, 1994, p. 280.), a presença de alguns mitos
gregos é previsível, mas deve-se observar que três mitos se destacam,
e não à toa: Narciso, Orfeu e Perséfone. Não é necessário recontar aqui
tão conhecidos mitos, e sim destacar que, na poesia de Nuno Júdice,
Narciso fala da tensão do conhecimento de si, Orfeu lamenta as perdas
que constituem a vida e Perséfone nos lembra o peso do tempo. Dos
três, Orfeu, o poeta que foi ao reino das sombras em busca daquela
que dá sentido à vida, é o mais citado. O percurso de Orfeu de volta à
terra, à luz, sabendo que, para sempre, está perdida nas sombras a razão
de sua vida é a narração mítica da própria poesia, que sabe estar nas
sombras (portanto, no indistinto, no desconhecido, no inconcebível) a
razão de sua existência e a causa da melancolia de sua voz, constituindo,
na contemporaneidade, uma “poética do irrecuperável”. Daí a ânsia de
memória e a sobrevivência por meio da transformação das formas – uma
luta contra o tempo. Narciso morre e se transforma em flor; Perséfone
239
por alguns meses volta ao mundo dos vivos e, com ela, a primavera; mas
para Orfeu não há outra saída senão a morte por não responder aos
desejos da vida.
Atravessa o túnel do verso,
ouvindo a água gotejar nas cesuras:
música de antigas chuvas,
que atravessam as idades e as rimas,
deixando nos lábios o ritmo
de uma óbvia monotonia. Como
se tudo fosse incompreensível,
finge perder-te à saída, quando a luz
de um sentido te ofusca; depois,
recupera a direcção certa: mesmo
que haja outras para além dessa, e
outras invisíveis no lugar que deixaste. Mas
não olhes para trás: o que ficou, é
o irrecuperável; e nenhum rumo
te transporta de regresso à origem, como
nenhum dos braços futuros te restitui
o amor revelado num primeiro abraço. (MM, p. 62)
O tom dessa poesia frequentemente é pessimista e melancólico134;
no entanto, esse tom deve ser relativizado porque, de fato, não é seu
tom único, e sim expressão variável de diferentes sujeitos poéticos que
vão aparecendo na cena poética, representando um “drama em gente”
a falar de corrupção, perda e morte. Porém, muitas vezes a melancolia
se transforma num breve sorriso de quem sabe que o canto se faz de
ficção e que é, apesar de tanta negação, uma janela aberta, mirando o
horizonte para além das ruínas do mundo.

134. E a leitura crítica da pós-modernidade encontra mais um exemplo na literatura portuguesa


contemporânea sob o signo da melancolia. A esse respeito, ler AMARAL, 1992, e BARRENTO,
1996.
240
Ruínas, vestígios e fragmentos
“‘Quem canta’, perguntaram as sibilas, ‘quem canta
com voz divina / entre ruínas?’”
Nuno Júdice, A noção de poema

“No último fragmento, fixa


o efémero e repousa.”
Nuno Júdice, Movimento sobre ruínas
Quando tratamos de metáfora, pensamos no jogo de
metamorfoses que a escrita de Nuno Júdice expõe, falamos da
necessidade poética de dinamizar o que está inerte na linguagem e da
reflexão sobre a transformação que o tempo imprime às coisas e seres do
mundo. Vimos que essa poesia, ao falar constantemente de mudanças
(no sujeito, na natureza, no texto), fala igualmente das perdas diversas
que os sujeitos vivenciam, seja na sua história pessoal (o amor falhado, a
nostalgia da infância, a inevitabilidade da morte, as impossibilidades do
ser num tempo de artificialidade), seja na história coletiva, e em relação
a isso a noção de perda se amplia, refletindo a crise das ideologias, a
dúvida sobre os benefícios do progresso, as indagações teológicas e as
interrogações filosóficas, enfim: a descrença de que haja alguma unidade,
alguma totalidade que se possa manter na sociedade contemporânea.
Sua poesia, portanto, torna-se uma “meditação sobre ruínas”.

Essa meditação propõe o que chamamos de “análise arqueológica”


no texto. O arqueólogo examina as ruínas de uma cidade e consegue
recuperar uma época, a história de um povo. O antropólogo, recolhendo,
por vezes, fragmentos de textos e de histórias orais, busca os elementos
para recuperar uma unidade de sentido, para recompor uma história
social. Em poesia, esses elementos residuais são as emoções, as palavras,
as imagens, que, reordenadas pela lógica do poema, pela escrita e pela
leitura, podem revelar o ausente, lembrar o perdido e dar a conhecer o
inexistente. A arqueologia de que falamos se organiza para ressignificar
o que se encontra sem sentido.

241
Às vezes, um verso transforma o modo como
se olha para o mundo; as coisas revelam-se
naquilo que imaginação alguma as supôs; e
o centro desloca-se de onde estava, desde
a origem, obrigando o pensamento a rodar
noutra direcção. O poema, no entanto, não
tem obrigatoriamente de dizer tudo. A sua
essência reside no fragmento de um absoluto
que algum deus levou consigo. Olho para
esse vestígio da totalidade sem ver mais
do que isso – o desperdício da antiga
perfeição – e deixo para trás o caminho
da ideia, a ambição teológica, o sonho do
infinito. De que eternidade me esqueço,
então, no fundo da estrofe? (MM, p. 7)
Ao longo dos séculos o homem foi construindo uma história
coletiva que estabeleceu como as grandes unidades Deus, o Sujeito e
o Mundo. Na poética de Júdice, tais unidades estão fragmentadas, e o
que se encontram são seus vestígios, suas ruínas espalhadas pelos textos.
Caberá ao leitor a recolha dessas marcas e a tentativa de reencontrar
um sentido, estabelecendo uma outra ordem de significação no nível da
linguagem poética, que é, na perspectiva do poeta, um espaço capaz de
reconhecer a totalidade.

Em relação ao sujeito lírico, os vestígios de sua existência são os


sentimentos que se espalham pelos versos: o amor, a nostalgia, a solidão,
a tristeza, a melancolia etc., a indiciar faces de uma individualidade
moderna que se autocontempla, como Narciso, e não pode mais crer na
ilusão de sua imagem.

Esse sujeito é reflexo de um mundo também em fissura,


principalmente num tempo como o de agora, em que tudo é relativo e
não há mais possibilidade de recuperar uma pretensa “idade de ouro”
sem diferenças ou conflitos. O mundo fragmentado que se recolhe
242
na poesia de Júdice é esse mundo cheio de lacunas, com os sujeitos
vivendo a tensão entre o natural e o artificial, o isolamento e a multidão,
a cultura e a massificação. O movimento desse mundo é o movimento
automatizado e ininterrupto das pessoas nas ruas das grandes cidades,
dos carros nos congestionamentos, dos retalhos de vida que se estampam
nos jornais, enfim, o burburinho urbano que não constitui diálogo,
deixando à mostra vestígios que apenas lembram a presença humana.
A escrita poética, na sua autonomia, possibilita a leitura desses vestígios
e reconta a história do sujeito, avaliando o movimento do mundo que o
formou. Assim, também se oferece como lugar de acolhimento em meio
a ruínas.
O homem que falava sozinho na estação central de munique
que língua falava? Que língua falam os que se perdem assim, nos
corredores das estações de comboio, à noite, quando já nenhum
quiosque vende jornais e cafés? O homem de
munique não me pediu nada, nem tinha o ar de
quem precisasse de alguma coisa, isto é, tinha aquele ar
de quem chegou ao último estado
que é o de quem não precisa nem de si próprio. No entanto,
falou-me: numa língua sem correspondência com linguagem
alguma de entre as possíveis de exprimirem emoção
ou sentimento, limitando-se a uma sequência de sons cuja lógica
a noite contrariava. Perguntar-me-ia se eu compreendia acaso
a sua língua? Ou queria dizer-me o seu nome e de onde vinha
– àquela hora em que não estava nenhum comboio
nem para chegar nem para partir? Se me dissesse isto,
ter-lhe-ia respondido que também eu não esperava ninguém,
nem me despedia de alguém, naquele canto de uma estação
alemã; mas poderia lembrar-lhe que há encontros que só dependem
do acaso, e que não precisam de uma combinação prévia
para se realizarem. – É então que os horóscopos adquirem sentido;
e a própria vida, para além deles, dá um destino à solidão que empurra
alguém para uma estação deserta, à hora em que já não se compram
243
jornais nem se tomam cafés, restituindo um resto de alma ao corpo
ausente – o suficiente para que se estabeleça um diálogo, embora
ambos sejamos a sombra do outro. É que, a certas horas da noite,
ninguém pode garantir a sua própria realidade, nem quando outro,
como eu próprio, testemunhou toda a solidão do mundo
arrastada num deambular de frases sem sentido numa estação
morta. (CET, p. 34)
A imagem da extrema solidão que esse poema apresenta fala
dessa espécie de morte que é a ausência de diálogo, e, reagindo a esse
vazio social e humano, o poema é um lugar em que a linguagem se
manifesta impondo o diálogo, requisitando o encontro. A melancolia
desse texto evidencia que não há mais lugar para a ilusão romântica de
que a poesia pode transformar o mundo; no entanto, falando da ausência
de linguagem compartilhada numa estação morta, afirma a ideia de
que o exercício da linguagem pode transformar o sujeito, tornando-o
apto a reavaliar o mundo e sua posição nele. Diz o poeta: “Por isso, ao
contrário da ideia romântica da poesia como transformação do mundo,
prefiro a formulação: a poesia como transformação do eu”135.

Se procuramos demonstrar que a temática da fragmentação e da


ruína está na poesia de Nuno Júdice como representação da perda de
unidade do sujeito e do mundo, agora é necessário refletir que também no
nível da enunciação ela se apresenta, como uma estratégia intertextual. O
que desejamos dizer é que a escrita do poeta se vale de vestígios, marcas
e indícios de outros textos ou sistemas textuais. Não há fragmentos
propriamente ditos, com exceção de algumas poucas epígrafes, mas
um sistema desenvolvido de citações que se vai recuperando no ato de
leitura horizontal e vertical de sua poesia. Por todos os livros, os poemas
apontam as marcas de outros textos que foram lidos pelo poeta ou que
estão presentes no imaginário do leitor ocidental contemporâneo. Os
próprios índices de seus livros são vestígios à superfície de que a escrita
se faz de leituras e de que o poeta habita também a linguagem alheia.

135. Depoimento publicado em Cadernos de Serrúbia, n. 3, dez. 1998, p. 42.


244
Como exemplos, citemos alguns títulos: “Ulisses”, “Homenagem a
Blake”, “Penélope”, “O enigma de Inês”, “Bernardim Ribeiro”, “Clearly
Campos (citação)”, “A ilha de Ovídio”, “Virgínia Woolf ”, “Paráfrase de
C. G. R”, “Quadras com citações de Sartre e Shakespeare”, “Imitação de
Propércio”, “Se, numa noite de Natal, a prostituta”, “Arte poética com
citação de Hölderlin”, “Romance de cordel do banqueiro suicida e da
cómoda D. Maria”.

O cruzamento textual deve ser compreendido como um encontro


de versões de mundo, versões que são interrogadas pelo poeta e pelo
leitor, ampliando no tempo e no espaço a reflexão constante sobre a
linguagem poética. Assim, o que se constitui também na enunciação
é a necessidade de diálogo, de troca de sentidos e de imagens, para
que se efetive uma “comunidade” cujo território é a vastidão da arte.
Leia-se como exemplo desse cruzamento partes do poema “Tema com
variazoni”:
Uma tarde, em berna, lendo ruy belo e – não sei
porquê –
lembrando-me de um túmulo de uma portuguesa que foi
morrer
a pisa, pus no giradiscos a “dido e eneias” do
purcell, deixando que o canto saísse pela janela
e contaminasse os campos que, nessa primavera, estavam
azuis e verdes – flores e relva – com vacas a correrem
à frente de um cão. Não havia nada a ligar a ópera
inglesa, o poeta português e a portuguesa de pisa, a não
ser a que as próprias circunstâncias de um acaso
de tarde estabeleceram; e no entanto uma imagem única
se sobrepunha a essas, a que se poderia dar o nome de
poesia
se a poesia não fosse algo de abstracto numa paisagem que
nada tinha a ver com um sentimento preciso – a melancolia
de uma breve primavera entre campos e prédios, susceptível

245
de trazer até mim a tão vaga imagem da mulher antiga
com a música de purcell.
[...]
O mistério, digo, faz-se com estes reencontros
que não têm uma explicação precisa; eles surgem de imagens
que guardamos dentro de nós, num recanto de alma,
e que um dia se abrem inesperadamente. Sei, no entanto,
que
não é só o motivo pessoal da memória de um poeta, nem
a tentativa de reconstituir a figura de uma portuguesa
morta em itália, nem o canto sacrificial de dido na ópera
de purcell, que me levaram a escrever, agora, este
poema. De
resto, nenhum poema terá uma razão imediata – e
mesmo
aqueles que nascem de um episódio concreto depressa
nos levam
para uma zona abstracta de confluências interiores
de impressões e gestos que, sem o verso, não teriam tradução.
Assim, o soldado de Giorgione sai do quadro onde o
pintor
o fixou e, trazendo atrás de si o cão que, séculos depois,
afugentou as vacas do pasto de wittigkofen, pergunta-me
pelo ruy belo – sem que eu possa responder, ocupado
a escrever
este poema e a tentar explicar à portuguesa enterrada
em pisa por que é que, precisamente, foi a ária de dido
numa ópera de purcell que a trouxe até junto de mim.136 (RP, p. 47-48)
O processo dominante de citação manifesta o desejo de manter
o diálogo, apesar das diferenças, definindo traços comuns a garantir o
encontro entre os homens, mesmo no vazio e no silêncio do mundo.

136. Procuramos manter a mesma disposição gráfica do poema publicado no referido livro.
246
Assim, o tema da comunhão possível pela palavra, cada vez mais atenta
à necessidade de guardar o humano do vazio de uma linguagem a qual,
falando sem parar, nada partilha ou ensina, contrasta fortemente com
o tema das ruínas e da fragmentação do mundo e do sujeito, numa
realidade massificadora e artificial. É impossível não voltar a pensar
no filme Asas do desejo, em que, em meio às ruínas urbanas, o velho
narrador insiste na palavra.

À janela: sujeito, mundo, texto


“Escrevo na linha infindável do horizonte,
procurando a medida que o tempo sugere
eterna.”
Nuno Júdice, Enumeração de sombras
A configuração de paisagens é recorrente na obra de Nuno Júdice,
já que o olhar do poeta ou dos sujeitos que habitam sua poesia contempla
lugares na alma ou na rua, transformando-os em paisagens textuais,
apenas vistas ou experimentadas na linguagem. O enquadramento para
a ação de ver é, de forma frequente, a janela, pois é a partir desse espaço-
moldura que o(s) sujeito(s) dirige(m) sua atenção para elementos
diversos, estabelecendo os limites da própria paisagem, as suas regras
de perspectiva. A janela cotidiana de cada um são os olhos por meio
dos quais olhamos o mundo real; para o poeta, a janela é o texto que
se abre para uma outra realidade, com paisagens sempre novas. “[...]
Proponho-te um jogo: abrir e fechar / janelas como quem folheia um
livro.” (MM, p. 102)

Paisagem é o que é contemplado pelo sujeito, é um conjunto


subjetivo de imagens que o olhar reúne e ao qual dá significado a partir de
uma determinada perspectiva. É “natureza vista através de uma cultura”
(ROMANO, 1997, p. 107). Na textualidade poética de Júdice, o sujeito
lírico muitas vezes está à janela contemplando a cidade, a rua, as pessoas
que passam, mirando o céu, o horizonte, a natureza. Algumas vezes,
o que vê além de si provoca o ensimesmar, e se define uma paisagem
247
na alma, ordenando os sentimentos. No poema “Passagem/paisagem”,
lemos essa necessidade de visualizar as emoções e, por meio disso, rever
o mundo fora do sujeito; fazer, portanto, uma passagem entre o interior
e o exterior, conciliando oposições e diferenças:
A descrição mantém uma insistência na alma
que a faz inquieta, exaltada: uma paisagem serve
para dar um sentido às emoções, traduzindo-as
fisicamente; e aquilo que se passa dentro dela,
a vida natural, sublinha por sua vez esse claro
sentido e esse preciso sentimento. Assim,
é num fragmento do poema que a natureza se revela
e o espírito a impregna, absorvendo a luz e
as formas de tudo o que se lhe torna presente:
o dia e a noite, a primavera e o inverno,
a água e a terra. Mas não é só nas oposições
que se encontra algo da matéria sensível do cosmos;
também nas imagens que unem e conciliam os opostos,
e que se identificam com um conceito de beleza,
se distingue o conflito essencial da vida
e a obscura energia de um movimento imóvel. O amor,
digo, corresponde a essa paragem no curso
de um rio sem imagens; e poderá falar-se
de transparência, de visão pura, ou de êxtase,
no breve instante que condensa todos os instantes,
e na emoção sem sentido a que todos os sentidos
conduzem. (ES, p. 49-50)
O leitor dessa obra poética progressivamente vai percebendo a
importância que a paisagem tem nela. Já são agora, em 2021, 49 anos de
poesia, com mais de 35 livros de poesia publicados, apresentando como
traço comum justamente a valorização do olhar e a contemplação das
mais diversas paisagens. Sem dúvida, todo poeta é um contemplador, e
seu ato de ver é sempre dinâmico e provocador de transformações. O

248
poema é, assim, um olhar verbalizado, e, portanto, paisagens são todos
os poemas. Mas na escrita de Nuno Júdice não há apenas o resultado do
olhar, e sim o processo e a problematização desse olhar, com a avaliação
da paisagem que ele define. “O caso é simples – se retirarmos à / frase a
filosofia que a corrompe. Os olhos / é que importam para a compreensão
do / que está por dentro das palavras. / Uma imagem nunca se reduz
ao plano só da abstracção / poética. Entra para dentro da alma com o
seu peso concreto; e a memória com- /fere-lhe a espessura do tempo.”
(CET, p. 77) Lembremos que um de seus livros intitula-se As regras
da perspectiva, e há muitas referências à pintura, quadros, paisagens
criadas por outros artistas137. Ordenemos, então, os níveis de paisagem
que sua poesia nos aponta, observando, porém, que tal ordenação é um
artifício de exposição, pois, na obra, as paisagens se interseccionam
frequentemente.

De A noção de poema (1972) a A partilha dos mitos (1982), o olhar


do sujeito lírico se dirige principalmente para a própria composição
textual. A paisagem que se vê é o texto que se escreve/lê, ou é o texto não
verbal que se contempla (seja quadro, retrato, natureza-morta, marinha,
seja mesmo uma paisagem natural ou um fragmento musical que se
ouve/sente). Inúmeros seriam os exemplos em que o eu descreve a
paisagem textual e narra sua inserção nela, como em A noção de poema:
“Iniciarei pois um canto requisidor ao alcance do século. Palavra,
solicitação aventureira da exigência, desordem curva do erro!” (p. 11);
“Chego onde pergunto – por que estou aqui? que palavras, frases, /
intuições me observam?” (p. 15); “Neste óleo sobre tela, assinado em
baixo, à esquerda, / parece-me ver o excessivo amor com que, alguns
dias, olho / o horizonte inteiro [...]” (p. 18); “Fixei-me na escrita.” (p.
20); “A poesia é o teatro, diz-me uma voz interior. Representar-me em
cada poema, montar-me um personagem, uma acção, um ambiente.”

137. Em conversa informal com Nuno Júdice a respeito de Carlos de Oliveira, o escritor observou
que seu interesse pelo outro poeta estava num ponto comum: a paisagem, apreciando especialmente
os livros Micropaisagem e Finisterra. Lembremos, aliás, que o subtítulo de Finisterra é Paisagem e
povoamento.
249
(p. 28). Em O pavão sonoro (1972), encontramos: “Comecei a ler-me
com uma obscura sensação de desgosto.” (p. 59); “Eu andava em torno
de mim, debruçado e simultaneamente não debruçado / para mim,” (p.
65). Em Crítica doméstica dos paralelepípedos (1973): “Repito: ‘brilho,
fulgores...’, e através do verso assim recomeçado / é a minha própria voz
que ouço e me atinge.” (p. 79); “– Ó cavalo, tu és o próprio poema e se
eu sou o poema já o horizonte / me anuncia,” (p. 97). Em As inumeráveis
águas (1974): “O que em mim cresce e se reproduz, então, não sou eu, é
o que escrevo.” (p. 111); “O poema, eis um trabalho de mastros, / estiva
de absoluto nos degraus da morte.” (p. 127); “Dobro o joelho perante o
poema.” (p. 133). Em O mecanismo romântico da fragmentação (1975):
“Obstinadamente escrevo, / sobre a usual interpretação do discurso, / o
desejo de aprender as palavras fundamentais / da diferença.” (p. 141);
“Sou um reflexo no vidro. Olho-me / fixamente, e o poema capta nesta
atitude. / Pudesse eu conhecer-me como se conhece / o poema...” (p.
150). Em Nos braços da exígua luz (1976), devem-se observar os muitos
textos que falam de outros textos e descrevem a situação do autor frente
a sua escrita. Citemos apenas os títulos: “A camiliana noite”, “Sob o
tampo do poema”, “Vaga lição”, “Fortuna”, “Para que esse autor regresse”,
“Femme à l’ombrelle”, “1886”, “Teoria do círculo”. Em A partilha dos
mitos (1982): “A literatura mexia-se na minha cabeça / como um réptil
asfixiado.” (p. 234); “Com as mãos rasgo o limite, também / eu entro na
oca circunferência onde a lira / doente tocou o ocaso.” (p. 235); “Vede
como o poema se forma, / em estratos sucessivos,” (p. 239); “Escrevia:
atingira a própria finalidade, consumava-se num sacrifício de si ao
papel, deixando-o manchado com as impressões do seu corpo.” (p. 245);
“Avanço em parágrafos, ferindo os joelhos nas arestas das palavras /
mágicas.” (p. 258).

O longo arrolamento de versos nos ajuda a insistir na ideia de que


há nesse conjunto de obras a obsessão da textualidade, constituindo a
principal paisagem descrita pelo sujeito lírico, o qual entrega-se à arte
como o único mundo que lhe importa e nele vive a ficção de outras vidas,
de outros lugares e de outro tempo, dramatizando personagens vários.
Por isso é dominante o espaço interior, com evidente simbolização de
250
lugar que protege, guarda, isola e oculta. Daí o poema ser casa, quarto,
gruta, útero, barca, círculo, “um continente submerso”. Sabemos bem,
com Bachelard e Durand, os sentidos dessas imagens que contêm o
sujeito.

No livro Lira de líquen, início de um outro momento da obra de


Júdice, não há um corte radical com a produção anterior, mas, ao lado
do espaço interior, que é ainda forte, começa o sujeito a contemplar
o que está fora de si, delineando outras paisagens que estarão sempre
presentes em todos os demais livros. O texto permanece como lugar
indispensável, mas o sujeito começa a olhar o mundo e o transforma
em paisagens do poema. Há, para isso, o exercício do afastamento entre
o eu e o texto, entre o eu e a alma, e o controle da emotividade que
transbordava provocativamente no primeiro momento de sua obra.

A partir desse livro e cada vez mais fortemente, o sujeito lírico


fala de lugares da natureza (a terra, o mar, o céu) e da cidade (as ruas,
os prédios, as pessoas). Esse falar vai se aproximar da vida quotidiana,
tornando-a matéria para reflexão e escrita do poema. Realmente, o
segundo momento da obra de Nuno Júdice, reunindo 12 livros, contrasta
com o primeiro por essa “exterioridade” temática e pela presença de um
sujeito poético menos “dramático”, embora não abdique da ficção de si e
de seu interior (alma e sentimentos).
A mulher da caixa espera que os últimos clientes
saiam para fechar a caixa. Faz as contas de cabeça,
e não olha para a rua onde a neve permanece
sem que o céu faça alguma coisa para a levar
dali. A neve e a mulher da caixa juntam-se, assim,
num fim de tarde, enquanto as olho do outro lado
da rua, onde um café me abriga para olhar o
que se passa na rua e do outro lado dela. Mas
ao fim da tarde os eléctricos passam entre mim
e a mulher da caixa não olha para a rua, e não vê
os eléctricos nem me vê a mim. Faz contas de cabeça
251
enquanto eu penso nela, embora saiba que a podem
ver do outro lado da rua; e talvez não olhe para
fora para que o seu olhar não se cruze com o de
alguém como eu que, do outro lado da rua, se pergunta
de que cor serão os olhos dela. É verdade que o café
se enche de gente neste fim de tarde: sentam-se,
em silêncio, fingindo que lêem jornais para justificar
não estarem a fazer nada. Eu, ao menos, olho para a neve
e para a mulher da caixa, e enquanto não chega a hora
do meu eléctrico vou fazendo contas na cabeça dela. (MM, p. 77)
Notam-se claramente nesse poema os ecos pessoanos do sentir
e pensar e da divisão do sujeito entre o eu e o outro. A presença desse
outro poeta que, em língua portuguesa, ensinou a multiplicidade do ser
e a atenção à escrita como realidade que se basta lembra a Nuno Júdice
a necessidade de ocupar a paisagem do texto como horizonte último
de toda a atenção, onde a vida, os seres, a realidade e o imaginário vão
se encontrar no território que é cada poema: “Todos os lugares são, /
afinal, lugar nenhum para quem não habita / senão a própria voz: sonho
de outra margem, / cantor perdido no labirinto das pontes. / Perto da
foz, sem o saber; sonhando a nascente, / como se não fosse ele próprio a
única fonte.” (FV, p. 37).

Outros lugares, porém, se estabelecem no espaço do poema, e é


importante que se verifique, no segundo momento da poesia de Nuno
Júdice, a importância dos espaços natural, urbano e celestial.

A natureza está muito presente a partir de Lira de líquen. É nela


que o sujeito poético acompanha a passagem do tempo e aprende
lições de transformação dos seres. O tempo está nas estações do ano
e na duração do dia, mostrando morte e vida, destruição e renovação.
O outono e o inverno trazem a tristeza, a morte, as sombras, enquanto
o verão e a primavera falam da luz e da renovação da vida. Da mesma
forma, a noite é o espaço das sombras, espaço da alma, enquanto o dia
é domínio do corpo e da luz. Mas é importante ver aí não apenas esse
252
contraste negativo/positivo, e sim a valorização do espaço natural, feito
de sombras e luz, de vida e morte, como o lugar de origem, o lugar
trabalhado pelo homem em harmonia com o tempo. Nessa perspectiva,
o sujeito contempla o lavrar e o pastoreio, como atividades que produzem
e acolhem a vida que se vai. A partir da terra, também, o poeta recupera,
no imaginário, os mitos clássicos em torno das divindades agrárias e
infernais. Trata-se do lugar do mítico, da origem, onde o homem poderia
se sentir pleno se não fosse o que é hoje: predominantemente urbano,
transformando a natureza em espaço também artificial. O poema “Idade
do ouro” parece contar isso:
Uma curva no tempo, como num caminho,
desvia o homem da direcção antiga. De súbito,
uma paisagem diferente: casas de madeira,
a cobertura negra da ponte, o verde dos
campos. Aí, senta-se numa pedra; não sabe
onde está; nem ouve que o chamam,
do fundo, para que regresse.

Ele sabe que pode avançar,


se os olhos não fixarem
a imagem conhecida. Imóvel,
uma transformação faz com que
as coisas estranhas se tornem perceptíveis
e familiares. Assim, regressa ao rigor
que os deuses lhe roubaram
com o grito inicial.

Porém, outros homens avançam


por essa paisagem, deitando abaixo
os muros. Têm foices, enxadas, rostos
embranquecidos pela vigília. Riem,
uns; e cantam, quando a terra
se abre em sulcos que sobem
253
os montes, descem colinas,
e se perdem na planície.

Um dia,
talvez se encontrem. (MSR, p. 9-10)
Ora, de cidades fala bastante Nuno Júdice. Em geral, elas não são
nomeadas, porque, afinal, todas são iguais. O sujeito poético, da janela,
olha as ruas, as lojas, as pessoas que transitam em sua solidão; no carro,
olha o engarrafamento, as estradas que cortam os campos; nos prédios, o
vazio dos corredores, a ausência do contato e da comunicação. A cidade,
qualquer cidade, grande ou pequena, é um lugar de passividade, de
incomunicabilidade e de ausências, porém é nela que está o “movimento
do mundo” e a concentração de ruínas.
Desembarcou numa sala sem dourados nem cadeiras:
madeiras velhas, jarras com flores de plástico, janelas
de vidros partidos para a auto-estrada. Nem vento
nem mar: só o ruído dos carros entrava pelas fendas
para ecoar no tecto (madeiras à vista entre os restos
de estuque). Depois, na rua, pendurou-se nos ferros podres
de antigas varandas. [...]
[...] O vale, coberto de casas, e
os montes invadidos por ferro-velho, ocultam um passado
de rebanhos e pastores.
[...] (MSR, p. 127)
Em oposição à terra, há o mar, que não é, no segundo momento
da poesia de Júdice, um espaço muito recorrente. Quando se torna
paisagem do poema, é espaço da viagem, da alma e do imaginário, pois
é nele que melhor se pode ver o céu e o seu limite virtual: o horizonte,
fundamental nessa escrita poética. É interessante, ainda, observar que
a presença do mar é um vestígio pessoano, lembrando o “mar interior”.

254
Quanto ao horizonte, ele é, no segundo momento da obra de
Júdice, “ponto de fuga” de muitas paisagens que o sujeito contempla à
janela. Não se trata apenas de um elemento representativo na pintura
ou de pinturas sobre as quais frequentemente o poeta fala, mas uma
imagem plurissignificante insistente em seus poemas. O dicionário
registra que “horizonte, do gr. horízon, óntos, ‘que limita’ (subentende-
se kyklos, ‘círculo’), pelo lat. horizonte, significa linha circular que limita
o campo da nossa observação visual, e na qual o céu parece encontrar-
se com a superfície terrestre (considerada uma esfera perfeita) (Cf.
HOLANDA, 1986.). Na poesia de Júdice o horizonte não só é essa “linha
circular que limita o campo da observação visual” do sujeito poético,
como é metáfora múltipla: a) da interioridade desse sujeito, o lugar
da alma; b) do próprio tempo – eternidade; e c) do texto como limite
da escrita. É também um espaço de contradição, pois tanto significa a
potencialidade, a plenitude e a totalidade, como representa o vazio, a
solidão e a impossibilidade. Se o espaço celestial remete para o divino,
a espiritualidade plena, a superação da condição terrestre, também
intensifica a pequenez, o isolamento e a precariedade humana na terra.

Tantas referências ao horizonte fazem com que a poesia de


Nuno Júdice possa ser discutida sob a perspectiva de uma “estrutura
do horizonte”, que Michel Collot defendeu para a poesia francesa
contemporânea. Façamos, então, um parênteses para apresentar uma
síntese do estudo de Collot intitulado La póesie moderne et la structure
d’horizon (1989). Discordando da tese formalista de que o texto poético
contemporâneo seria uma espaço de linguagem fechado em si mesmo
(a ideia de um “clôture du texte”), Collot defende que a compreensão da
escrita de poesia, na prática e reflexão dos próprios poetas, deve levar
em consideração que toda experiência poética se relaciona a três termos:
um sujeito, um mundo e uma linguagem, e que, ao final, é a percepção
de mundo que está em jogo na poesia contemporânea.

Com esses pressupostos, o autor propõe que essa abertura da


poesia ao mundo está representada no texto pela imagem do horizonte,
que é recorrente nos poetas franceses contemporâneos. Seu estudo,
255
portanto, objetiva examinar essa presença como mais do que uma
metáfora, constituindo-se numa representação da estrutura do poema
e do poético. Sua fundamentação teórica parte inicialmente da filosofia
fenomenológica de Husserl, na qual vai buscar a noção filosófica de
“estrutura do horizonte”. Para esse filósofo, o horizonte faz parte da
estrutura da experiência, regendo a percepção temporal e a relação
subjetiva. Há um horizonte interno (os objetos contêm um infinito) e um
externo (os objetos estão em relação com um “campo”, constituindo-se o
mundo como horizonte último). Na leitura de outro filósofo, Merleau-
Ponty, Collot recupera a ideia de perspectiva. De fato, a noção e categoria
de horizonte se funda na fenomenologia de Husserl e é reaproveitada
por outros filósofos, ora como um conceito, ora como metáfora apenas
(sabemos bem como a filosofia se vale com frequência da metaforização
para desenvolver suas reflexões (Cf. DERRIDA, 1991.). Um ponto de
contato com a poesia, sem dúvida.).

Ciente de um certo ostracismo por que passou a fenomenologia


em França, principalmente com o desenvolvimento da crítica
estruturalista, Collot é cuidadoso em evidenciar que seu intento não
é retomar a perspectiva fenomenológica pura (cita Heidegger: “Não
nos ocupamos da fenomenologia, mas do que ela própria se ocupa”138),
e sim, a partir de um trabalho crítico que articula fases diferentes da
fenomenologia, psicanálise e linguística, construir uma abordagem
teórica cujo núcleo imagístico e conceitual é o horizonte e a estrutura de
horizonte, transferindo-o para a abordagem do poema e sua organização
interna e externa.

Sua pesquisa se faz, principalmente, com a observação de textos


diversos de um certo número de poetas franceses contemporâneos e de
alguns predecessores, como Baudelaire, Rimbaud, Claudel e Reverdy,
considerando que os poetas modernos devem ser qualificados de poetas
“hermenêuticos”, e não herméticos.

138. “nous ne nous occupons pas de la phénomélogie, mais de ce dont la phénoménologie elle-
même s’occupe” (apud COLLOT, 1989, p. 12).
256
Em passos largos, podemos dizer que Collot examina com atenção
diferentes abordagens fenomenológicas, apresentando aos seus leitores
as reflexões também de Merleau-Ponty e de Heidegger, o que significa
passar da experiência fenomenológica para a experiência ontológica
do ser, com a instituição do jogo de presença e ausência do sujeito, do
mundo e do texto.

Esse relacionamento com a filosofia significa a revisão da


temporalidade e do espaço, agora sob a perspectiva do horizonte, isto é,
o tempo presente se abre aos horizontes do tempo passado ou futuro, e o
sujeito tem como o último dos horizontes a morte. A noção de distância
une tempo e espaço e toda uma série de relações se estabelecem no ser e a
partir dele: a memória, a paisagem de abismo e a vertigem, expandindo-
se na experiência amorosa e poética, configuradas em paisagens que se
apresentam à consciência.

Do ponto de vista psicanalítico, o horizonte figura a outridade,


abertura do ser ao mundo, em direção ao invisível e ao infinito e em
busca de uma presença ausente, de uma proximidade distante, no espaço
da intersubjetividade. O outro é o objeto de desejo. “O outro representa
originalmente para o sujeito um horizonte perfeitamente englobante,
no qual ele se encontra incluso. O corpo maternal é, para o lactante, o
primeiro horizonte, ele se confunde com a ‘carne’ mesma do mundo”
(1989, p. 99)139.

Da mesma forma, o horizonte como estrutura espacial transporta-


se do sujeito para o texto, e este passa a ser a outridade que se experimenta
na sua presença/ausência, motivando o desejo de preencher o vazio que
separa a palavra da coisa. Nesse sentido, o branco da folha de papel é
esse espaço de vazio que se perspectiva no fundo da paisagem, ou, em
direção positiva, incentiva o poeta à criação poética.

139. No original: “L’Autre représente à l’origine pour le sujet un horizon parfaitemente englobant,
dans lequel il se trouve inclus. Le corps maternel est, pour le nourrison le premier horizon, il se
confond avec la chair même du monde”. Todas as traduções de Collot são nossas.
257
Na terceira parte de seu estudo, Collot vai tratar propriamente do
horizonte do poema e relacionar a estrutura do horizonte à escrita e à
leitura, acompanhando principalmente Hans Robert Jauss e Wolfgang
Iser, os quais também reaproveitaram o conceito em sua teorização.
Consciente da crítica que se pode fazer sobre a aplicação da noção de
horizonte à linguagem poética como uma “poétisation de la poétique”,
defende que o uso de metáforas espaciais vem ao encontro da própria
textura verbal do poema, que se utiliza delas para a organização de seu
conteúdo semântico. Além disso, mesmo o estruturalismo, tão rigoroso
em suas descrições, também se utilizou de conceitos como isotopia e
alotopia. Esclarece Collot:
Nós nos propomos a mostrar que a linguagem poética tem sempre por
horizonte uma certa experiência de mundo, que, entretanto, não se dá
aí senão “no horizonte”, de maneira distanciada, indireta e paradoxal,
porque o poema, se ele procura designar as coisas, tende também a
se constituir ele próprio como um objeto puramente verbal (1989, p.
153)140.
Mais adiante (p. 153), afirmará que “palavras e coisas são os dois
horizontes do poema”141. Na linguagem poética, o eu que fala é um
outro, estabelecendo-se um espaço aberto que pode ser ocupado por
qualquer um, para vivenciar a experiência poética que se define por
três momentos essenciais: o apelo, a espera e a errância, os quais não
se organizam necessariamente de forma linear no poema. O apelo é a
necessidade que o poema tem de responder ao vazio e ao invisível das
coisas. Existe portanto uma apelo do horizonte desejando manifestar-
se na linguagem poética. A espera, “para o poeta, é colocar-se à escuta
do silêncio para perceber o eco imperceptível de um apelo ele próprio

140. “Nous nous proposons de montrer que le langage poétique a toujours pour horizon une
certaine expérience du monde, que pourtant ne s’y donee précisément, que ‘ en horizon’, de manière
détournée, indirecte et paradoxale, car le poème, s’il cherche à désigner les choses, tend aussi à se
constituer lui-même comme un objet purement verbal”.

141. “Mots et choses sont les deux horizons du poème [...]”.


258
inapreensível” (1989, p. 162)142. A errância é a busca do desconhecido,
do intervalo que há entre a palavra e o sujeito. “A experiência poética é
assim, como a própria existência, uma totalização sempre inacabada”
(p. 169)143.

Essas formulações, aqui bastante simplificadas, acabam por levar


à discussão sobre referencialidade em poesia. Collot, leitor de Ricoeur,
afirma que:
A noção de referência está frequentemente ligada aos conceitos
de identidade e de objetividade. A referência é em geral concebida
como o movimento por meio do qual uma palavra se identifica a um
objeto definido de uma vez por todas, permitindo identificá-lo. Ora,
a referência poética não é nem identificante nem objetificante, mas
modificante e “mundificante” (1989, p. 174)144.
Assim, o referente do poema é um “universo imaginário” que
constitui uma versão singular de mundo, já que dependente de cada
subjetividade, concluindo que: “É a objetividade que é uma ficção; e o
imaginário é ao contrário um instrumento de conhecimento do real” (p.
175)145. O poema configura as infinitas variações de mundo, redefinindo
o referente, que é concebido como se fosse um reservatório contendo a
totalidade das experiências que temos do objeto. Portanto, o poema não
é fechado em si, mas se constitui como poema justamente pela abertura
ao além de si. “A textualidade do poema reenvia à textura do universo”,

142. “pour le poète, c’est se mettre à l’écoute du silence pour percevoir l’écho imperceptible d’un
appel lui-même insaisissable, tendu vers une réponse encore sans répondant”.

143. “L’expérience poétique est donc, comme l’existence elle-même, une totalization toujours
inachevée”.

144. “La notion de référence est trop souvent liée aux concepts d’identité et d’objectivité. La
référence est en général conçue comme le mouvement par lequel un mot s’identifie à un objet
défini une fois pour toutes en permettant de l’identifier. Or la référence poétique n’est ni identifiante
ni objectivante, mais modificante et mondifiante”.

145. “C’est l’objectivité qui est une fiction; et l’imaginaire est en revanche un instrument de
connaissance du réel”.
259
já que “o poema faz ver o mundo na medida em que é ele próprio um
mundo que se faz ver” (p. 178)146.

Paradoxalmente, essa abertura ao mundo revela a distância


que há entre o poema e o real, entre as palavras e as coisas, porque
a linguagem poética é uma tensão contínua entre o desejo de uma
proximidade absoluta e a sua impossibilidade. A ambição ontológica
move a poesia e motiva que ela esteja ligada irremediavelmente à
melancolia e à decepção, pois a linguagem poética tem consciência de
que todo dizer é uma ilusão. O horizonte último do poema será então o
silêncio, como lugar de origem onde está o indizível e o invisível. Mas,
como num círculo, é também a partir daí, dessa origem, que o poema
se lança para inscrever esse silêncio na linguagem. Por isso, o encontro
entre a linguagem poética e a experiência mística, o acolhimento do
sagrado.

Se até agora estava(m) em reflexão o(s) modos(s) como o poeta


experimenta o mundo por meio da linguagem, é chegado o momento
de pensar no outro que é o leitor. Estudando os dêiticos na linguagem
poética, Collot põe em discussão o lugar da leitura. A função dêitica ocorre
quando a linguagem mostra o mundo, e esse mostrar é particularmente
o movimento da escrita poética que não pode ser reduzida a apenas uma
estrutura linguística, pois o poema é um “discurso”, isto é, um sistema
de alocução. Naturalmente, Collot lê Benveniste e dele retira as reflexões
sobre as relações discursivas em torno dos “indicadores” (os pronomes
pessoais, demonstrativos, advérbios de lugar e de tempo). Essas formas
constituem os indicadores discursivos por excelência e põem em
funcionamento o dialogismo, demarcando a presença do emissor e
receptor, falante e ouvinte, escritor e leitor. No poema, essas relações se
elaboram em tensão, já que, se o poema é um “mundo suposto” (p. 201),
o leitor deverá participar de um pacto de enunciação. Nesse sentido, o
diálogo é o horizonte do poema e determina sua escrita/leitura.

146. “La textualité du poème renvoie à la texture de l’univers [...] le poème fait voir le monde parce
qu’il est lui-même un monde qui se fait voir”.
260
Os pronomes eu e tu são vazios de referente fixo; eles não se
“preenchem” senão em função de cada nova situação discursiva que
redistribui os papéis de emissor e de receptor. No caso do poema, são
a cena da escrita e a cena cada vez diferente da leitura que representam
esse papel de contexto de referência (1989, p. 203)147.
Em sua conclusão, Collot considera que a noção de estrutura de
horizonte permite compreender que a escrita poética é constituída pela
união de dois movimentos: a constituição de uma estrutura e a abertura
de um horizonte, que se reflete nos níveis da referência e organização
semântica, e também nos níveis de percepção e interpretação. Assim, o
ato de escrita poética se reflete no ato de sua leitura, uma vez que, como
atividade hermenêutica, requer também dois movimentos: um ato de
imaginação e um ato de estruturação. Nesse momento, Collot, já ao final
de seu estudo, está claramente em diálogo com a estética da recepção,
que introduziu a noção de horizonte na linguagem da teoria literária. As
citações que se misturam à sua própria escrita são retiradas de L’acte de
lecture, de Wolfgang Iser.
Toda obra oferece diversas perspectivas de interpretação; em
cada momento de seu percurso, o leitor, que ‘pode se situar
simultaneamente em todas as perspectivas’, é conduzido a escolher
uma entre elas, as quais correspondem por um lado a seu próprio
ponto de vista sobre o mundo, de outro às sugestões da própria obra. O
ponto de vista retido constitui então o ‘tema’ que guia sua atenção, o fio
condutor de sua interpretação. Porém, as perspectivas rejeitadas não
são por esta razão pura e simplesmente abandonadas; elas continuam

147. “Les pronoms Je et tu son vides de référent fixe; ils ne se “remplissente” qu’en fonction de
chaque situation discursive nouvelle que redistribue les rôles du locuteur et de l’allocutaire. Dans
le cas du poème, c’est la scène de l’écriture, et la scène chaque foi différente de la lecture que jouent
ce rôle de contexte de référence”.
261
se apresentando ‘na margem do campo visual’, onde ‘elas adquirem a
marca de horizonte (1989, p. 255)148.
Podemos agora fechar os parênteses e reatar o diálogo com
a poesia de Nuno Júdice, considerando com uma perspectiva mais
alargada a questão do horizonte como paisagem forte em sua escrita.
As reflexões que Collot faz para ler a poesia francesa contemporânea
parecem se refletir na escrita do poeta português. O horizonte também
em Júdice é uma estrutura temporal e espacial que não apenas representa
os temas do longínquo, da referência impossível, do indizível, das
impossibilidades que geram realmente uma escrita perpassada de
melancolia, como também, e principalmente, do nosso ponto de vista,
estrutura o próprio conteúdo crítico do ato poético, enquanto atividade
de escrita e de leitura carregada de possibilidades de redescrição do
mundo por meio do processo de criação, que é realizado pelo escritor e
renovado pelo leitor. Na linguagem teórica de Ricoeur, podemos dizer:
mundo configurado pela escrita e refigurado pela leitura.

Parece-nos, assim, importante afirmar que nomear paisagens


na análise da obra poética de Nuno Júdice não é ornamento da leitura
interpretativa, mas um modo consequente de compreender mais
intensamente o diálogo aqui proposto entre esse poeta e Carlos de
Oliveira. Neste último, a escrita também recorta paisagens do mundo.
E esse recortar não é uma seleção (re)organizadora do real? Tal como
a poesia de Júdice, a de Oliveira interroga a linguagem poética e os
processos de sua construção, questionando a ação de conhecimento
que impele o homem a habitar o mundo, habitando a linguagem. Essa
posição estética exigiu a reflexão intensa sobre a própria elaboração
da escrita literária e um acompanhamento microcósmico da criação

148. “Toute oeuvre offre plusieurs perspectives d’interprétation; à chaque moment de son parcours,
le lecteur, qui ‘me peut se situer simultanément dans toutes les perspectives’, est conduit à choisir
une d’entre elles, que correspond d’une part à son propre point de vue sur le monde, d’autre part
aux suggestions de l’oeuvre elle-même. Le point de vue retenu constitue alors le ‘thème’ qui guide
son attention, le fil conducteur de son interprétation. Mais les perspectives rejetées ne sont pas pour
autant purement et simplement abandonnées; elles demeurent apprésentées ‘en marge du champ
visuel’, où ‘elles acquièrent le caractère d’horizon’”.
262
imagética, buscando atingir, na brevidade dos versos, na contenção da
emotividade, na minúcia exploratória e reelaborativa de sua obra, o
ponto de fuga (o seu horizonte) que reunisse linhas de perspectiva a dar
conta do conhecimento de si (memória e vivência) e do conhecimento
do mundo (realidade e ficção). Na obra de Nuno Júdice, a permanência
dessas interrogações cognitivas pode significar a continuidade da
rejeição da realidade urbana contemporânea, múltipla, fragmentada,
caleidoscópica, artificial e desumanizadora, forçando o sujeito poético
a buscar na linguagem a capacidade humana original de doação de
sentidos ao mundo circundante. Os dois poetas contemplam o espaço
celeste e o confrontam com a terra. Escreve Nuno Júdice, em “Um
problema celeste”:
O céu não coincide com o paraíso
mas com as nuvens, o sol e,
mais em baixo,
os pássaros que, quando cantam,
o evocam.

O céu também coincide com


as estrelas, a lua,
o rasto cadente de vidas efémeras
que nada têm a ver
com anjos, arcanjos
ou demónios.

Quando chove, porém,


parece que não existe céu.
Nesses dias, mais vale olhar a terra
onde as gotas caem,
formando charcos que,
quando voltar o sol,
hão-de reflectir o céu.

263
Entre o céu e a terra,
hesitando, o homem talvez
não saiba em que há-de
acreditar. Porém,
o que existe no céu
chama por ele; e
a terra parece pequena quando,
depois dos temporais,
o arco-íris se abre
como uma escada celeste
(MM, 66-67).
Escreve Carlos de Oliveira:
A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.
(O [SLE], p. 206)
Personagens da linguagem, os poetas narram uma história
comum: superar a finitude humana e defender a poesia como memória
da palavra original, memória do horizonte humano.

264
Antes de terminarmos, porém, estas reflexões sobre a paisagem na
obra de Nuno Júdice, uma interrogação ainda precisa ser feita. Quando
um poeta descreve as paisagens que lhe importam, é comum que se
destaquem as paisagens da terra natal. Então, o leitor poderá perguntar:
na poesia de Júdice, poeta português, estão presentes as paisagens de
seu país? A resposta nos leva a outra questão importante na obra desse
escritor e se relaciona à discussão sobre identidade e nacionalismo,
cosmopolitismo e provincialismo. Vejamos.

As paisagens exteriores à janela na poesia de Júdice são, como


vimos, urbanas ou naturais. As urbanas podem ser de qualquer cidade
contemporânea de maior porte, até mesmo Lisboa, ou de pequenas
cidades de qualquer país, com sua vida monótona, acomodada e
distanciada da agitação e conturbação das metrópoles. Sob esse ponto
de vista, existe uma indiferenciação de nacionalidade, como se o poeta
precisasse se libertar do adjetivo “português” para se encontrar na
universalidade do poético, sem pátrias ou bandeiras, num movimento
de superação de fronteiras.

A poesia de Júdice parece apagar imagens de Portugal, pois


pouquíssimos são os textos em que o país ou lugares desse país são
referentes objetivos, num corpus poético que já vimos ser extenso.
Alguns poemas lembram paisagens da infância, sem nomeação explícita.
Portanto, deveríamos ler nisso uma rasura da nacionalidade? A resposta
afirmativa seria um equívoco na compreensão de sua obra, porque, se as
paisagens não nomeiam (ou muito pouco o fazem) Portugal, elas ainda
são produzidas por um olhar português e são estabelecidas no território
da língua portuguesa. Júdice acaba por realizar o que já afirmara Pessoa/
Bernardo Soares: a minha pátria é a língua portuguesa, e nesse lugar,
na linguagem, o seu Portugal é fingido silêncio, topos deslocado em
confronto tenso com o olhar europeu. É preciso imaginar-se outro para
se reconhecer, para dizer a identidade de sua cultura.

O cruzamento de paisagens é, devemos repetir, cruzamento de


textualidades, cruzamento de discursos culturais a que a poesia de
265
Júdice dá voz, interrogando seu sentido neste fim de século XX. Em
tempo de ruínas, a paisagem necessária está ao longe, no horizonte,
lugar-potência, lugar de encontro consigo e com o sentido da vida num
mundo que rasurou todos os mapas.

Não sei por que é que nos lembramos de certos lugares,


às vezes, à noite; nem por que é que sentimos a falta
desses lugares – a não ser que seja que algo da nossa vida,
de súbito, nos falte. Sim: é quando a noite se começa a pôr,
quando um sentimento antigo cai com o sol no horizonte,
quando os olhos deixam de ver o presente, a luz do dia,
o rosto que nos interroga, que certas imagens descem
talvez da memória, talvez do esquecimento que a substitui
e formam essa paisagem que, parece, espera apenas um
movimento para se animar; e nada faço, e ela desaparece.

Que país assim saltou do mapa; e se desfez num atlas


subjectivo onde as fronteiras não exigem mais do que o passa-
porte que a vida nos passa? Desapareceu comigo lá dentro;
e eu próprio não sei se fico ou se fujo nessa terra de ninguém,
perseguido por uma sombra que se confunde comigo. Não
a olho; nem ouço o aviso que me impede de alcançar a outra
margem, onde me esperas, como se hoje fosse ontem,
ou o vento tivesse deixado de soprar na primavera obscura
que herdei da tua morte. Habito a cor inacessível desses
livros fechados; e convivo com azuis, verdes, castanhos,
roubados à terra pelos olhos que perdi no teu rosto ausente.

Sobretudo, perdi a noção das distâncias: entre ti e mim, entre


o teu tempo e este tempo em que acordo, com rostos de
nuvens no ar e o ruído de uma cidade habitual. Ainda se este
vazio que aperto nas mãos fosse um resto da tua passagem...

266
ou se a água negra do rio nocturno fosse a mesma em cujo
olhar coincidimos... Porém, liberto-me de ti sob o tampo
da manhã; e dou comigo a desenhar as linhas da mão,
mesmo as que se interrompem no limite dos dedos.
(CET, p. 79.)

267
CARLOS DE OLIVEIRA E NUNO JÚDICE:
PERSONAGENS DA MESMA HISTÓRIA

“O problema português não é o de atingir ou não atingir a


pós-modernidade, mas, sim, o de desenvolver os valores da
modernidade.”
Manuel Maria Carrilho149
No início deste caminho de leitura, afirmamos que os últimos 50
anos do século XX caracterizaram-se pela velocidade de transformações
nos mais diversos setores da vida e pela multiplicidade de informações,
relativizando-se os conceitos de realidade e verdade. Acentuou-
se o individualismo numa competição de mercado e de lugar nos
grandes espaços urbanos contemporâneos, paisagens construídas
que favorecem o isolamento, o decréscimo de solidariedade e a não
partilha de experiências de vida. Nas florestas contemporâneas que
são as metrópoles, os caminhos se cruzam, mas não levam as pessoas
ao encontro, e os indivíduos vivenciam cada vez mais fortemente a
sensação angustiante de uma prisão a que não se pode escapar (Cf.
LINS, 1990, p. 43.).

Carlos de Oliveira e Nuno Júdice pertencem a esse tempo e dele


falam nas indagações de uma escrita estético-filosófica, o que equivale
a dizer que, em seus textos, está em reflexão a cultura que os formou e
em relação à qual eles acrescentaram perspectivas, demarcando lugares
de diferença. Suas produções poéticas e ensaísticas pensam o homem no
mundo, mas especialmente traçam os contornos de uma cultura poética
e de uma cultura portuguesa, definindo sobre o papel mapas para se
percorrerem o que podemos denominar de “comunidades imaginárias”:
o poético e a portugalidade. O modo como habitam essas “comunidades”

149. Citado por Eduardo Prado Coelho (1997, p. 99). Manuel Maria Carrilho é filósofo e foi
ministro da Cultura de Portugal nos XIII e XIV Governos Constitucionais, dirigidos
por António Guterres.
268
não só demonstra as diferenças de suas trilhas, como indica momentos
de encontro ao partilharem identidades: poetas e portugueses.

Cultura poética
[...] verificamos que os próprios homens não são escritores da
linguagem, mas constituídos, formados pela linguagem. E isto
quer dizer que a própria linguagem é produtora de cultura.
Ou, por outras palavras, uma linguagem pode criar um espaço
simbólico tal que pode produzir uma cultura ou o próprio
sujeito dessa cultura.
Fernando Guimarães (apud SILVA e JORGE, 1993, p. 99-100).
A arte do século XX, ao refletir a velocidade das transformações
e a relatividade dos valores, definiu-se como atividade em contínua
elaboração, reavaliando o conceito de tradição. A descrença em
qualquer princípio totalizador, com a “destruição da imagem do
mundo”150 pelo domínio da técnica, gerou a modernidade e rompeu
em definitivo com a ideia de que a obra de arte poderia “imitar”
o mundo. Sem formular respostas definitivas, sem acreditar em
idealismos ou transcendentalismos, a arte contemporânea assumiu as
perplexidades do século XX e se constituiu, na sua diversidade, como
discurso interrogativo sobre a existência do sujeito, as experiências de
mundo e os próprios limites de sua atividade. Por isso, intensificou-
se, principalmente em relação à poesia, o diálogo com a filosofia,
compartilhando-se a necessidade de indagar sobre a condição humana
a partir da linguagem.

Os poetas Carlos de Oliveira e Nuno Júdice foram analisados


como casos exemplares dessas vozes críticas que há muito vêm se
avolumando também no interior da cultura em língua portuguesa. Por
“vozes críticas”, compreendemos vozes capazes de avaliar os caminhos

150. PAZ, 1991, p. 99: “Para a técnica o mundo não é nem uma imagem sensível da ideia nem
um modelo cósmico: é um obstáculo que devemos vencer e modificar. O mundo como imagem
desaparece e em seu lugar se erguem as realidades da técnica, frágeis apesar de sua solidez, já que
estão condenadas a ser negadas por novas realidades”.
269
que trilham para a construção de suas próprias obras, expressando por
meio da poesia ou de ensaios suas indagações. Nesse sentido, esses dois
poetas portugueses, diferentes sob alguns aspectos, como já vimos,
assemelham-se pela reflexão contínua sobre a cultura que os formou e
com a qual continuam dialogando pelo ato de leitura de suas obras.

Tanto Oliveira quanto Júdice escrevem com a certeza de que


partilham a tradição lírica ocidental. Seus versos, além de seus motivos
temáticos individuais, indicam encontros com a literatura e a arte
que ultrapassam limites nacionais. Há, portanto, no conjunto de suas
obras, a defesa de uma memória estética indispensável aos poetas da
contemporaneidade, para que continuem a testemunhar o movimento
de criação e transformação através do tempo. Por serem autores bastante
atentos à elaboração do poema, essa certeza de partilha de uma tradição
não significa um olhar de confirmação e mera continuidade, e sim
uma perspectiva crítica que põe em questão essa partilha e o próprio
ato de escrita pensado em sua temporalidade. Escrever é presentificar,
com olhos voltados para o passado e o futuro; é falar de tempos e se
realizar num tempo. Como bem disse Joaquim Manuel Magalhães,
em cada poema é a “globalidade da poesia que está em jogo” (1982, p.
28). Portanto, o ato de escrita poética é fundamentalmente absorção e
metamorfose, ou, dito de outra maneira, uma “escrita sempre leitura”,
capaz de ecoar ou reinterpretar ou recusar (MAGALHÃES, 1982, p. 29)
algo que lhe é anterior e que possui uma aura definida: ser tradição.

No campo literário, frequentemente associa-se essa ideia de


tradição à noção de clássico, considerando-se que se está falando de uma
produção artística que permanece no tempo como modelo, exemplo de
uma obra de arte que atingiu alto grau de excelência. No entanto, hoje,
tanto a noção de tradição como a de clássico estão relativizadas, como
nos mostra, por exemplo, Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, em
cuja introdução discute justamente a variedade de definições para o
conceito de “clássico”. Diz Calvino que “é clássico aquilo que persiste
como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”
(1993, p. 14). Ora, esse rumor devemos entender como a persistência
270
no tempo, a constituição de uma memória literária e a relação crítica
que não cessa de provocar. É, portanto, a leitura que nomeia o clássico
ou identifica tradições. Na escrita dos poetas, esse rumor é audível pela
estratégia de intertextualidade, que não pode ser compreendida apenas
como um encontro de textos, mas como um procedimento crítico de
“leitura” que vai em busca de fontes, imagens, encontros ou diferenças.
E é isso o que ocorre de forma insistente nas obras de Carlos de Oliveira
e Nuno Júdice, escritores por demais atentos a essa contraface da escrita:
a leitura.

Se já discutimos a recorrência da intertextualidade, agora é


necessário pensar que escolhas foram feitas pelos dois poetas e que
rumor ouvimos quando lemos essas escritas/leituras.

Carlos de Oliveira, em diversas passagens de O aprendiz de


feiticeiro, fala da necessidade de retomar a palavra alheia e demonstra
que é, antes de escritor, um leitor marcado pela produção de outros
escritores, atento ao seu trabalho de escrita. “Outros versos, outras
frases que me devoram [...] trabalham também de maneira obscura para
vir de quando em quando à superfície. Avisos, sinais de qualquer morse
nebuloso mas importantíssimo” (O [AF], p. 415).

Há estudos que já demonstraram a atividade de intertextualidade


em seus livros, e por isso é escusado esmiuçar alguns desses “versos
que devoram”. Interessa-nos, levando em consideração os resultados
desses trabalhos rastreadores, compreender que pontos de contato e
de diferença vêm à tona quando Carlos de Oliveira retorna a escritores
portugueses como Gil Vicente, Camões, Camilo Pessanha, Cesário
Verde, Gomes Leal, António Nobre, Afonso Duarte, José Gomes Ferreira
e Fernando Pessoa, além da tradição medieval e popular; a estrangeiros,
como Shakespeare, Quevedo, Jane Austen, Edgar Allan Poe por meio de
Baudelaire, Aragon, Desnos, Maiakovski, Rilke, Carlos Drummond de
Andrade, António Machado, Erskine Caldwell e Malcolm Lowry.

271
O poeta português define, assim, espaços de diálogo sobre a
ação da palavra literária, seja em termos de sua própria elaboração,
seja em termos de mediação entre o sujeito e o mundo. Retoma versos,
faz epígrafes, cita esgarçadamente, transforma ideias, constituindo a
sua “comunidade de escritores”. Nesse sentido, é de destacar o poema
dedicado a Carlos Drummond de Andrade, estrangeiro de mesma
língua, espelho no mesmo nome, no qual Carlos de Oliveira presta
homenagem àquele que está “habituado / ao arquétipo escrito / da
lavoura” “na outra margem do mar”. Há, nessa comunidade de escritores
(poetas e romancistas) de épocas diversas, clássicos, românticos,
simbolistas e contemporâneos, falando do tempo, da morte, do mal-
estar da vida, mas, principalmente, da própria atividade literária. Leia-
se um soneto de Shakespeare “reescrito em português”:
Comparar-te a um dia de verão?
Há mais ternura em ti, ainda assim:
um maio em flor às mãos do furacão,
o foral do verão que chega ao fim.
Por vezes brilha ardendo o olhar do céu;
outras, desfaz-se a compleição doirada,
perde beleza a beleza; e o que perdeu
vai no acaso, na natureza, em nada.
Mas juro-te que o teu humano verão
será eterno; sempre crescerás
indiferente ao tempo na canção;
e, na canção sem morte, viverás:
Porque o mundo, que vê e que respira,
te verá respirar na minha lira. (O [TH], p. 148)
Em relação aos escritores portugueses evocados, o encontro/
desencontro faz revelar visões de mundo e textuais que o escritor
moderno contrasta e questiona com a situação portuguesa em que vive e
com a escrita que produz. Leia-se, por exemplo, o “Vilancete castelhano

272
de Gil Vicente”151, que Carlos de Oliveira “reescreve” na década de 1950,
escolhendo não a sátira do teatro vicentino, mas a melancolia mesclada
à esperança transmitida pelo lírico, ecoando no tempo de desesperança
que é essa década em Portugal:
Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem. (O [TH], p. 143)
Note-se que os escritores portugueses chamados a dialogar
são predominantemente poetas; portanto, é uma tradição lírica que é
invocada e que revela como temáticas a melancolia frente ao mundo e a
relação tensa com a pátria. Recordemos que esse diálogo é mais explícito
na primeira fase de sua produção e que, na segunda, a citação direta
vai rareando, até se transformar num processo de inscrição de vestígios
a ser recuperado pelo leitor. No entanto, mais importante é observar
que, entre os poetas citados, um deles é o mais confrontado: Camões.
A presença camoniana, ao longo de toda a obra de Carlos de Oliveira,
ocorre mais de uma vez152 e, significativamente, está presente também
no último livro de poesia. O Camões retomado é predominantemente

151. “Por mas que la vida pene, / no se pierda el esperanza, / porque la desconfianza / sola la muerte
la tiene. / / Si fortuna dolorida / tuviera quien bien la sienta, / sentirá que toda afront / se remedia
con la vida. / y pues doble gloria tiene / despues del mal la bonanza, / no se pierda el esperanza / en
quanto muerte no viene.” (VICENTE, 1979, p. 318).

152. Observe-se que o tom épico domina a primeira fase, quando o poeta é arauto, luta pela
transformação da história coletiva, da pátria portuguesa.
273
o lírico, e essa escolha evidencia uma posição que nega a tradição
ideológica de glória e de louvor pátrio com o uso e abuso dos versos
épicos camonianos, os quais, aliás, ao aparecerem na escrita de Carlos
de Oliveira, sofrem diluição e são invocados na “diferença”.
Tágides trazendo,
do alto mar à água doce,
a escama, o fósforo, da espuma;
e o sal saturado de vento
a explodir no rio,
nas suas rugas;
com a luz eléctrica baixando
às páginas fac-similadas
do pelicano para a esquerda:
círculo completo
que as centrais, as redes,
mantêm tenso e branco
como a lua; já reconstituída;
a desprender-se do horizonte;
tágides, por fim sobre cavalos
claros; nuas; inventando
um som diferente
aos decassílabos. (O [EDM], p. 354)
Invocando o lírico, invoca também o poeta do tempo, do
desconcerto, mas principalmente atualiza o clássico em termos de
domínio do verso e consciência do trabalho poético, a linguagem
camoniana como (des)encanto e também como canto que se contempla
no domínio da língua. Em Pastoral, ainda é Camões que ressoa num
poema de tom amoroso-erótico, num discurso de resíduos formulado
por uma escrita desconstrutora que domina suas últimas obras.
Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
274
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma. (O [P], p. 403)
Portanto, se no primeiro momento da obra de Carlos de Oliveira
há um tom épico na voz do poeta moderno, arauto e combatente, no
segundo o tom é lírico, com gradual despersonalização do sujeito e
neutralização da sombra camoniana. Escritor que acredita no valor da
forma (“O amor das palavras vivas, incisivas, o aprofundamento dos
meios de expressão, é o dever mais elementar do romancista, do poeta”)
(O [AF], p. 470), não repudia a tradição clássica, mas põe em tensão
a presença camoniana na atualidade da cultura poética portuguesa, na
medida em que configura uma forma de poder153.

Quanto a Nuno Júdice, como buscamos demonstrar, trata-se


de um leitor especializado da literatura europeia, que continuamente
interroga a escrita alheia para (re)conhecer o movimento de criação
e questionar seus efeitos. Sua preocupação crítica o faz reavaliar os
clássicos latinos, os mestres do romantismo alemão, do simbolismo
francês, poetas e romancistas contemporâneos, repensando modos de
estar na linguagem. Mas, fundamentalmente, ressoam duas grandes
vozes poéticas estrangeiras: Hölderlin e Mallarmé, principalmente no
que consideramos sua primeira fase de produção poética. Duas vozes
bem diferentes: uma, falando da poesia como essência e salvação; a
outra, exercitando o lúdico na materialidade da escrita e pondo em risco
a própria literatura. Ambas, de poetas-pensantes, que transformaram
a escrita poética numa indagação, numa exploração, estabelecendo

153. Cf. REBELO, L.S. (1997), p. 24-25: “A sua situação geográfica, e o que nela se veja ou tenha
de singular, é diversamente entendida consoante o momento histórico em que se faz a sua leitura.
No discurso épico camoniano, Portugal é a cabeça da Europa – momento alto de descobertas e
conquistas. Mas quando as sombras do declínio o envolvem, ele é o cabo do mundo e a finisterra
do continente. Surgem, assim, dois tipos de discurso que coexistem e alternam no imaginário
colectivo sempre que se coloca a questão de Portugal e da Portugalidade: o discurso épico e o
discurso da perdição”.
275
a linhagem dos poetas Igitur – o que se contempla a si mesmo, mas
esse “si” deve ser compreendido como “mundo”, no contexto de um
Modernismo crítico (Cf. PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 117.).

Das vozes poéticas portuguesas, reencontramos clássicos como


Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, contemporâneos como Herberto
Helder, Ruy Belo e mesmo vestígios da poética de Carlos de Oliveira.
Contudo, Júdice é declaradamente um leitor permanente de Fernando
Pessoa154, e dele absorve as lições sobre a fragmentação do sujeito,
o fingimento e o afastamento necessário entre o pensar e o sentir,
avaliando a “herança” pessoana que é, afinal, uma tradição portuguesa
de modernidade.

Assim, se a poesia de Carlos de Oliveira enfrenta e confronta


o texto camoniano, a poesia de Nuno Júdice enfrenta e confronta
o texto pessoano. Se o primeiro ativa a escrita clássica, o segundo,
ainda que também demonstre sua atração pelos clássicos, aprofunda o
questionamento da escrita moderna. Em ambos, a tradição lírica como
motor, a pôr em movimento a poesia contemporânea que reconhece
como necessidade de sua própria elaboração a avaliação crítica do que
já foi produzido.

Os dois autores assemelham-se pelo mesmo sentido de rigor e


exigência poética, retomando um classicismo pela disciplina no manejo
das palavras e pela ideia de que a poesia é uma prática nada ingênua de
linguagem. Nessa direção, a escrita camoniana é exemplar, pois constitui,
em língua portuguesa, o momento inicial de afirmação do poeta como
criador de mundos e um personagem da linguagem, ciente de que, nos
poemas, o tempo é relativizado, e a eternidade, transfigurada. E não
é a escrita pessoana o paroxismo disso, inventando-se a cada poema
e deixando para a realidade uma biografia indiferente em prol de

154. A presença pessoana, como tema ou como sombra a ser enfrentada, está em sua poesia,
romance, teatro e ensaística. Em entrevistas ou reflexões diversas, a importância de Pessoa para a
definição de sua própria escrita é confirmada sem dificuldade.
276
personagens de papel muito mais concretos? Não são seus versos um
exercício rigoroso da construção e desconstrução poética?

Dessa forma, Carlos de Oliveira e Nuno Júdice, poetas da segunda


metade do século XX, avaliam em suas obras a escrita poética da
modernidade e as linhagens que, afinal, possibilitaram essa modernidade,
situando sua produção no interior da literatura ocidental e no contexto
da literatura portuguesa. Fazem isso sem rejeitar tradições, pois são por
demais preocupados com o trabalho com as palavras, esteticistas no
sentido de rigor e exigência poéticos, que reconhecem ser a literatura
uma continuidade de partilha de escritas através do tempo. Por isso, a
história da poesia contemporânea deve levar em conta que, mais do que
nunca, há uma simultaneidade de tempos, e os poetas, distantes entre
si pela geração, encontram-se necessariamente em diálogo. As obras
desses dois autores, portanto, narra uma “história” da poesia, na medida
em que demonstram ser a escrita literária uma atividade de reflexão no
tempo e sobre tempos diversos da linguagem.

Cultura portuguesa
“O futuro de Portugal foi, desde cedo, o ‘lá fora’, a distância,
nossa ou alheia. Foi a Índia, o Brasil, a África, recentemente e a
vários títulos, a Europa. Hoje, é a primeira vez que Portugal e os
portugueses têm de desenhar, de conceber, de inventar e se dar
um futuro a partir de si mesmos.”
Eduardo Lourenço (1998, p. 25).
Se aceitamos a ideia de que o texto literário é, no sentido mais
amplo, uma narrativa que configura e refigura mundos, pensar uma
literatura nacional é pensar também o modo como ela reflete a sua cultura
e sociedade. Assim, no contexto da literatura portuguesa, examinar
criticamente as obras poéticas de Carlos de Oliveira e de Nuno Júdice é
meditar sobre a cultura que os formou, fundada sobre uma determinada
língua e a partir de um território físico com sua realidade, História e
imaginário. Dessa forma, os poetas têm como questão comum Portugal,

277
sua identificação como país e nação na Europa, além de lugar de uma
cultura específica no âmbito ocidental155.

Se podemos dizer que nas obras de alguns autores sempre


lembrados para a compreensão das diversas trajetórias da poesia
portuguesa contemporânea, como Jorge de Sena, Sophia de Mello
Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Ruy Belo e Manuel Alegre,
Portugal aparece como espaço claramente nomeado e criticado por
seus caminhos insatisfatórios e por uma História idealizadora e
dirigida pelo poder político156, na escrita poética de Carlos de Oliveira
(segunda fase) e de Nuno Júdice ocorre um processo de descentramento
acentuado da imagem nacional, realizando-se o que podemos chamar
de desterritorialização, na medida em que se afastam de “um certo
número de referentes e de mitos que caracterizam realmente Portugal.
E o mito supremo, o que resultou desses mitos, nem é o sebastianismo,
nem é nenhum desses temas, é pura e simplesmente a própria palavra
Portugal”157. Expliquemos com mais vagar.

A segunda fase da obra de Oliveira se diferencia da primeira,


entre outros fatores, pelo apagamento da imagem de Portugal, com o
sujeito lírico voltando-se cada vez mais para o interior da linguagem
que se constitui em um outro território de habitação: a língua e a cultura
que ela manifesta. Nos poemas desse momento, a carga referencial à
nação se dilui, restando elementos da terra da infância (pastores,
animais, dunas), a Gândara transformada em metáfora do mundo. No

155. REBELO, 1997, p. 23: “O fim do colonialismo, trazido com o 25 de Abril, tem consequências
profundas e sem precedentes que obrigam a repensar a ideia de Portugal”.

156. Ver artigo de Jacinto do Prado Coelho (1983, p. 129-134), “Portugal imaginário e verdadeiro
na poesia portuguesa”, no qual se apontam os muitos poetas que dedicaram versos a essa questão.

157. Cf. Eduardo Lourenço em SILVA e JORGE, 1993, p. 40.


278
último livro, Finisterra, Portugal pode ser invocado pelo título158, mas
essa “finisterra” pode ser também um espaço outro, de silêncio, a que
chega o poeta no interior do texto. A produção de Carlos de Oliveira a
partir da década de 1960 acentuou a relação do poema com a matéria
linguística, assumindo que o ato poético não pode ficar dependente
nem da biografia nem da ação política partidária, despersonalizando-se,
portanto, duplamente: em termos do sujeito lírico e do sujeito nacional.
Se esse dilema marcou a produção de suas primeiras obras, no que se
considera a segunda fase de seu trabalho a opção se fez, e a recepção
crítica vacilou na sua compreensão: para uns, formalismo esteticista;
para outros, um discurso de falência e desistência, um “mundo que
parou”. Espantou, talvez, que essa escrita que nunca negou sua adesão
neorrealista, seu interesse político, calasse a história social, a história da
nação, para exilar-se num mundo de palavras.

Na obra de Júdice, desde os primeiros livros, o território explorado


não recebe o nome de Portugal, caminhando os sujeitos líricos por
lugares e tempos diversos da cultura ocidental, encontrando-se, na
escrita sobre o papel, esse lugar branco, neutro, não nomeado, lugar
transnacional. Nuno Júdice, um jovem nos anos 1970, a par certamente
dos movimentos contestatórios de 1968, que sentiria as tensões políticas
em seu país159, com a exaustão das guerras coloniais e com o agonizar
do regime salazarista, espantava a crítica com a publicação de livros em
que simplesmente se falava da obsessão da literatura, neutralizando sua
contemporaneidade e a história nacional. No continuar de sua produção,

158. Cf. VAL, 1994, p. 77, citando Du baroque, de Eugenio D’Ors: “Finisterres – Irlande, Bretagne,
la Galice espagnole, le Portugal, les premièrs iles de l’Océan... Au fond de leur âme, la panique.
La panique, acquise immémorialement du temps où ces terres se trouvaient au bord d’une mer
à laquelle on ne connaissait pas de limite” [Finisterras – Irlanda, Bretanha, a Galiza espanhola,
Portugal, as primeiras ilhas do Oceano... No fundo de suas almas, o pânico. O pânico, adquirido
imemorialmente do tempo onde essas terras estavam à beira de um mar do qual não se conheciam
limites].

159. Participou do I Congresso dos Escritores Portugueses (comissão), em maio de 1975, que
discutiu o nível de participação política do escritor na sociedade portuguesa pós-revolução. Cf.
RIBEIRO, 1993, p. 503 e passim.
279
o poeta jovem encontrou seu “espaço de diferença”, que era justamente o
de não estar onde todos estavam: Portugal e a obsessão de sua história.
Júdice, no poema “Re-canto”, nos faz ouvir essa opção:
De que pátria me direis o ouro azedo? De que barcos
presos nos canaviais da margem encontrareis o traço em crónicas
de água e sangue? Desço aos porões da memória, os braços
enredados nas frases incertas do passado; e avanço por entre
esses corpos que o suplício dos ventos adormeceu, os lábios
gretados pelo sol e pelo sábio sul. Afasto da minha frente
um sono de séculos. [...] (MM, p. 18)
Quando Portugal é nomeado, em alguns pouquíssimos poemas,
a visão é de repúdio a uma imagem estática e de isolamento do mundo.
O poeta que transita pela cultura ocidental não se resigna aos limites de
um território geográfico e busca uma situação universalista.

Trata-se, então, de dois poetas de idades diferentes, de projetos


estéticos e ideológicos diversos, que se encontram numa mesma opção:
a rasura de Portugal como significante160 no silenciamento do canto
histórico valorizado pela tradição nacionalista, para que outra história
mais fundamental se possa ouvir. Ocorre uma urgente desterritorialização
política, social e mítica, reagindo de forma corajosa a uma História
imposta e cheia de lacunas, a uma sociedade centrada inutilmente em
si e como que parada no tempo. No entanto, é preciso que se entenda
que a rasura, o silenciamento não fazem a terra inexistir, pois ficam os
vestígios, os fragmentos, mesmo as ruínas, e, neles, está o Portugal que
lhes importa, paisagem materna, linguística e cultural, lugar primeiro
de conhecimento de si e do mundo, através de um imaginário que se
configura e se estrutura em língua portuguesa. Sobre isso, é relevante
lembrar um poema de Nuno Júdice intitulado “O nome de Estefânia no
castelo de Hohenzollern”, no qual o sujeito poético percorre um museu
estrangeiro e nele se depara com um nome português:

160. Aproveito afirmação de Eduardo Prado Coelho em debate registrado em SILVA e JORGE, 1993,
p. 40: “Chegamos àquilo que se pode traduzir assim: a identidade portuguesa é um significante”.
280
Os nomes nada significam sem a imaginação de um
corpo: rostos inexistentes dão figura a reis e
filósofos da Antiguidade. [...]
[...] Tudo integra uma
ordem genealógica que sobrevive à ignorância da
História. Salas, corredores, armaduras, quadros, des-
critos em bom alemão pela guia cuja memória invejo,
encontram os seus antigos habitantes do discurso
a que o tempo deu conveniente arrumação. [...]
[...] Reduzido a datas e efemérides,
o passado cansa – sobretudo quando nada se per-
cebe da língua em que nos falam. Foi então que o
nome de Estefânia, rainha de Portugal, me apareceu
inscrito numa parede da capela. O mais insignificante da visita;
uma simples notação de arquivo de
família. Nem um retrato, nem uma indicação bio-
gráfica. Mas esse nome voltou a chamar-me à realidade
de uma existência concreta, com os sentimentos
e emoções do ser. (CET, p. 43)
A obra poética de Carlos de Oliveira a partir dos anos 1960 e a
de Nuno Júdice a partir de 1970 faz a crítica do uso da linguagem para
falar do ser e do mundo, falam da portugalidade como cultura e não
território político, falam a partir de janelas que se abrem para territórios
de palavras. Há, assim, o que podemos chamar de reterritorialização,
movimento de ocupação da língua e nomeação dessa língua no espaço
cultural do mundo. Se “o país saltou do mapa” (CET, p. 79), o lugar
vago será preenchido por palavras que, sem falar dele, é ainda dele que
falam, pois falam de um lugar de cultura, de um lugar que se demarca
numa língua. Há, então, uma geografia imaginária, onde o mar, espaço
simbólico no imaginário português, é substituído pela terra, a partir
da qual se narra outra demanda simbólica da diferença cultural161.

161. Temos em mente leituras de BHABHA, 1998, e SAID, 1995.


281
Suas obras, assim, representam o esforço que a poesia portuguesa
contemporânea faz para cumprir a modernidade que Pessoa/Orpheu
defenderam: criar uma arte cosmopolita no tempo e espaço, assumindo
sua autonomia na linguagem162.

Dois poetas cruzando fronteiras, sim, críticos na sua relação com


a terra de origem, cada vez mais personagens da linguagem, integrando
outras comunidades além da realidade nacional. O processo poético,
calando ou ocultando o nome Portugal, acaba por revelar em negativo
o processo de identificação de uma terra pela língua e pela cultura que
é capaz de produzir, num “processo de diálogo e negociação de afectos,
crenças, hábitos e mitos – numa relação permanente com o Outro
da própria Europa, o Oriente mítico, a África insondável, a aurora
americana” (COELHO, 1997, p. 88.), caminho necessário para redefinir
as fronteiras reais e imaginárias do país, inventando ou construindo,
como diz Eduardo Lourenço, o seu futuro.

162. Escreve Almada Negreiros: “Orpheu era uma consequência fatal de determinados portugueses,
desligando-se dos outros portugueses, porém ligados entre si pela mesma fé na elite de Portugal. As
suas personalidades vinham já esclarecidas o bastante para uma dignidade comum, por isso mesmo
éramos portugueses sem sermos nacionalistas, nem regionalistas, nem indigenistas. Queríamos
apenas o mais difícil dos títulos portugueses: sermos portugueses simplesmente!” (1997, p. 814).
A questão é importante ainda hoje, quando Portugal está integrado à União Europeia, buscando a
integração política e econômica com o resto da Europa.
282
UM MODO DE FIM

A poesia, embora ausente da vida diária da maioria das pessoas,


continua a se fazer ouvir, resistindo a uma realidade e a um tempo em
que a condição humana vem recebendo os mais atrozes golpes para sua
veloz destruição ou enfraquecimento. Sem nenhuma ilusão ou visão
idealista, os poetas escrevem pela necessidade imperiosa de narrar o
mundo em que vivem, para compreender ou, pelo menos, testemunhar
a vida, com suas perplexidades e angústias. Nesse sentido, a poesia
alia-se à filosofia, ambas sendo discursos sobre o homem e a existência
do mundo, questionando a linguagem como capacidade humana de
superar a materialidade e a sua corrosão.

Os poetas, existindo na e por causa da linguagem, são, por


isso, seus principais personagens e habitam um território outro que
independe de nacionalidade. Formam uma comunidade autônoma e
dialogam, apesar das diferenças linguísticas, em busca da partilha do
conhecimento do mundo, de si e da própria poesia.

No percurso aqui realizado, procuramos demonstrar que o


discurso poético acaba por assumir também, em sentido amplo, o caráter
narrativo, na medida em que os poemas no seu conjunto recuperam a
experiência original do narrador ancestral, voz que certamente daria
vida às inquietações, desejos, sonhos e medos do grupo tribal. Num
tempo como o nosso, em que há o domínio da técnica, o avanço
tecnológico, a globalização desenfreada com consequente massificação
da cultura, pensar o lugar da poesia é atividade imprescindível, porque
significa pensar a validade do humano no mundo.

Para que esse “pensar a poesia” ganhasse maior amplitude


crítica, destacamos relações que consideramos fundamentais para
compreender como o discurso poético se estrutura e como se relaciona
com o real circundante. Dessa forma, quisemos evidenciar que a

283
linguagem poética tem como núcleo o processo metafórico enquanto
meio cognitivo capaz de redescrever sempre criticamente o real, criando
mundos e redimensionando as relações entre sujeito, linguagem e
realidade, conforme mostram os estudos hermenêuticos de Paul
Ricoeur. Além disso, partindo do pressuposto de que a literatura é um
discurso configurador e refigurador da temporalidade, defendemos que
a linguagem poética é também uma ação eminentemente narrativa, a
dar conta da presença do sujeito na História.

Com essas reflexões, voltamo-nos para a poesia portuguesa


contemporânea, que, na diversidade de seus caminhos e na força de sua
produção, oferece um material de reflexão muito relevante. Essa poesia,
produzida numa sociedade que durante muito tempo sofreu diretamente
os efeitos do silenciamento e cerceamento de liberdade, desenvolveu
uma destacada presença ética e crítica sobre o tempo, sobre o mundo
e sobre a própria literatura. Assim, a palavra filosófica perpassa, de
forma sintomática, o discurso poético português, conduzindo-o a uma
constante reflexão sobre a linguagem como lugar do ser e da cultura.

Do século XX, procuramos recortar a produção dos últimos 40


anos, fase tensa finissecular que recebeu o epíteto de pós-modernidade,
o que significa questionar o fim da modernidade pela perda de utopias e
fragmentação dos discursos centrados da História, principalmente. Sem
nos preocuparmos em discutir a justeza ou não dessa caracterização,
escolhemos esse tempo poético exatamente pela necessidade de uma
avaliação mais próxima, a fim de verificar como a cultura portuguesa
respondeu a ele.

Na vasta produção de qualidade que há em Portugal, optamos


pelo estudo conjunto das obras de Carlos de Oliveira e Nuno Júdice, que
nos possibilitaram seguir determinadas trajetórias para uma melhor
compreensão do discurso poético português produzido nas décadas de
1960 a 1990. Sempre motivados pela investigação do lugar da poesia
na contemporaneidade, encontramos na escrita desses autores reflexões

284
atentas sobre o poético e os processos de escrita e leitura como ações de
conhecimento do ser, do mundo e do texto.

Procuramos evidenciar que, apesar das muitas diferenças que


poderiam separar Carlos de Oliveira e Nuno Júdice, eles também se
encontram numa mesma comunidade: são poetas e vozes da cultura
portuguesa. Desenvolveram um modo de estar na linguagem, o que
consideramos ser uma “teorização sobre a escrita e a leitura”. Diferentes
por geração, com escritas diversas, apresentam-se aqui em confluência,
já que ambos defendem a poesia como linguagem crítica indispensável
na contemporaneidade, meio para enfrentar o mundo e testemunhar a
humanidade num tempo “inumano” como o atual.

O estudo desses escritores nos mostrou reflexões por demais


provocativas, a partir da categoria da temporalidade e do destaque dado
ao tema da memória. Procuramos demonstrar que ocorrem em suas
obras discussões fundamentais: a) o intervalo entre a arte e a realidade,
a problematização e relativização da representação no discurso artístico;
b) a importância da metáfora como chave para uma escrita que acredita
que a poesia é também um discurso de conhecimento; c) a constituição
de uma tradição literária ocidental e portuguesa, desenvolvendo-se uma
memória cultural como busca de origem e permanência da palavra;
d) o lugar de Portugal, na sua escrita poética contemporânea, o que
implica uma avaliação da cultura portuguesa e da história de uma nação
confrontada com sua identidade numa Europa unificada.

Para nossa pesquisa, guiamo-nos especialmente pela teoria da


interpretação desenvolvida por Paul Ricoeur, elegendo os seus estudos
sobre metáfora, tempo e narrativa como trajetos a guiar nossa própria
abordagem. Após o caminho percorrido, compreendemos a produção
poética de Oliveira e Júdice sob outra perspectiva, que é a da sua relação
questionadora com seu tempo e sua cultura.

O estudo realizado procurou defender que esses dois autores


diferentes encontram-se na mesma preocupação teórica sobre o sentido

285
da linguagem poética, ou seja, trabalham a linguagem poética como um
exercício metafórico de extrema exigência significativa e defendem o
ato poético como um ato cognitivo que transforma as relações entre
escritor, mundo e leitor. São poetas assumidamente teorizadores
da escrita e da leitura e confirmam isso na medida em que discutem
o escrever e o ler como atividades indispensáveis para a absorção do
mundo e sua compreensão.

Além disso, no panorama da poesia da segunda metade do


século XX, suas obras poéticas evidenciam um diferente tratamento
da questão da portugalidade, ressituando a cultura portuguesa na
cultura ocidental. Defendemos que há, nelas, um aparente apagamento
de Portugal, compreendendo que esse apagamento é uma forma outra
de falar da portugalidade, questão fundamental de identidade social e
cultural. O Portugal que acaba por se inscrever nas obras é a realidade
de uma língua e de um horizonte de mundo que essa língua possibilita
e mantém. Nesse sentido, os dois poetas realizam o que a Modernidade
pessoana havia proposto anteriormente: integrar Portugal à cultura
europeia, abrindo-se ao mundo e participando da cultura sem fronteiras
nacionais, forma de cosmopolitismo.

Assim, o círculo hermenêutico se fecha, na medida em que os


poetas exemplificam, sob nossa perspectiva, o movimento do texto em
direção ao mundo, reafirmando a função original da palavra poética:
memória humana, isto é, lembrar ao homem a sua precariedade, mas
também a possibilidade de resistir ao tempo pelo trabalho de criação de
outros mundos. Discursos utópicos? Não. Talvez essas poéticas mostrem
aos leitores de hoje apenas a necessidade de continuar a narrar histórias
para impedir que se perca o nosso sentido sobre a terra.

286
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS163

De Carlos de Oliveira

OLIVEIRA, Carlos de. Obras. [Trabalho poético (Turismo, Mãe


pobre, Colheita perdida, Descida aos infernos, Terra de harmonia,
Ave solar, Cantata, Sobre o lado esquerdo, Micropaisagem, Entre
duas memórias e Pastoral), O aprendiz de feiticeiro, Casa na duna,
Pequenos burgueses, Uma abelha na chuva e Finisterra – paisagem
e povoamento]. Vol. único. [Contém bibliografia, iconografia e
discografia do autor.] Lisboa: Caminho, 1992.
______. Poesias. Lisboa: Portugália, 1962.
______. Cosmogonia. Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 9-22
jun. 1981. p. 5.
______; FERREIRA, José Gomes. Contos tradicionais portugueses.
(Pref. de J.G. Ferreira). Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1957. 2 v.

De Nuno Júdice164

Poesia
JÚDICE, Nuno. A condescendência do ser. Lisboa: Quetzal, 1988.
______. Enumeração de sombras. Lisboa: Quetzal, 1989.
______. As regras da perspectiva. Lisboa: Quetzal, 1990.

163. Citamos todas as obras diretamente indicadas ao longo do estudo, mas também as que
indiretamente marcaram o percurso de reflexão e redação original da tese defendida em 2000.
Consideramos que pode ser uma fonte bibliográfica útil a jovens pesquisadores, por isso deixamos
aqui esta memória de leituras.

164. Para o poeta Nuno Júdice, listamos apenas as obras estudadas ao longo do estudo, considerando
o ano limite de 1999. Mas, ao final, em anexo, juntamos a relação atualizada de suas obras.
287
______.Obra poética (1972-1985). [A noção de poema, O pavão
sonoro, Crítica doméstica dos paralelepípedos, As inumeráveis
águas, O mecanismo romântico da fragmentação, Nos braços da
exígua luz, O voo de Igitur num copo de dados, A partilha dos
mitos, Lira de líquen e Rimbaud inverso]. Lisboa: Quetzal, 1991a.
______ e CHAFES, Rui. Uma sequência de outubro. Une sequence
d’octobre. Lisboa: Livro de Artistas – Comissariado para a
Europália 91, l991b.
______. Um canto na espessura do tempo. Lisboa: Quetzal, 1992.
______. O movimento do mundo. Lisboa: Quetzal, 1996.
______. Meditação sobre ruínas. Lisboa: Quetzal, 1996.
______. A fonte da vida. Lisboa: Quetzal, 1997a.
______ e MARTINS, Jorge. Raptos. Lisboa: Quetzal / Casa
Fernando Pessoa, 1998.
______. Teoria geral do sentimento. Lisboa: Quetzal, 1999.

Ensaio
______. A era do “Orpheu”. Lisboa: Teorema, 1986.
______. O processo poético. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1992.
______. Portugal, língua e cultura. Lisboa: Comissariado de
Portugal para a Exposição Universal de Sevilha, 1992.
______. Voyage dans un siècle de littérature portugaise. Bordeaux:
L’Escampette, 1993.
______. Viagem por um século de literatura portuguesa. Lisboa:
Relógio d’Água, 1997b.
______. As máscaras do poema. Lisboa: Aríon, 1998.

288
Artigos e crônicas em jornais e periódicos
______. Rimbaud et Mallarmé: des parcours complémentaires.
Ariane, n. 2. Lisboa, 1983. p. 233-236.
______. Percursos de Perse – sobre a dinâmica do espaço. In:
SEIXO, Maria Alzira (Coord. e pref.). Poéticas do século XX.
Lisboa: Livros Horizonte, 1984. p. 31-37.
______. O lugar do filólogo. Diário de Lisboa, 4 jan. 1990. p. 6.
______. O século XIX e o modernismo na ficção de Mário de
Sá-Carneiro. Colóquio/Letras, n. 117/118. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, set./dez. 1990. p. 54-59.
______. O duelo da subjectividade. Jornal de Letras, Artes e Ideias.
Lisboa, 11-17 jun. 1991. p. 18.
______. O castelo e o hamburguer. Ler, n. 15. Lisboa, 1991. p.
80-81.
______. Hölderlin e a reflexão poética. Runa. Revista Portuguesa
de Estudos Germanísticos [Colóquio Interdisciplinar Friedrich
Hölderlin], n. 22. Coimbra: Instituto de Estudos Alemães –
Faculdade de Letras, fev. 1994. p. 65-70.
______. O alfabeto da casa. Limiar, n. 7. Lisboa: 1996. p. 49-50.
______. Uma poesia da vida. Hablar / Falar de Poesia. Revista
Hispano-Portuguesa, n. 1. Lisboa: Casa Fernando Pessoa, out.
1997c. p. 6.
______. A poesia, hoje, ocupa o lugar da eloquência. Relâmpago,
n. 2. Lisboa, abr. 1998. p. 41-43.
______. Inquérito sobre a poesia portuguesa do século XX
[resposta]. Cadernos de Serrúbia, n. 3. Porto: Fundação Eugénio
de Andrade, dez. 1998. p. 41-42.

289
De outros poetas165

ALEXANDRE, António Franco. Poemas. Lisboa: Assírio &


Alvim, 1996.
ANDRADE, Eugénio de. Poesia e prosa. 4. ed. aum, v. 2. Lisboa:
O Jornal/Limiar, 1990.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O búzio de cós. Lisboa:
Caminho, 1997.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995.
BELO, Ruy. Obra poética. (Org. e posf. Joaquim Manuel
Magalhães.) 3 v., 2. ed. Lisboa: Presença, 1990.
BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. F de Fiama. Lisboa: Teorema,
1986.
______. Obra breve. Lisboa: Teorema, 1991.
CRUZ, Gastão. Órgão de luzes – poesia reunida. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1990.
HÖLDERLIN. Poemas. [Pref., sel. e trad. Paulo Quintela.] Ed.
bilíngue. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
JORGE, João Miguel Fernandes. Poemas escolhidos. Lisboa:
Assírio & Alvim, 1982.
MALLARMÉ, Stéphane. Poemas. [Trad. e notas José Lino
Grunewald.] Ed. bilíngue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
MENÉRES, M. Alberta; CASTRO, E. M. de Melo e. Antologia da
poesia portuguesa. Lisboa: Moraes, 1979.

165. Citamos aqui todas as obras que contribuíram para este estudo, diretamente citadas ou
indiretamente presentes.
290
NAVARRO, António Rebordão; NEVES, Orlando (Pref. e sel.).
Poetas escolhem poetas: coletânea de poesia portuguesa (1970-
1990). Porto: Lello & Irmão, 1992.
NEGREIROS, Almada. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1997.
PERSE, Saint-John. Anabase. [Trad. José Daniel Ribeiro.] Ed.
bilíngue. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
PESSOA, Fernando. Obra poética. [Org., intr. e notas Maria Aliete
Galhoz.] Rio de Janeiro: José Aguilar, 1982.
______. Obra em prosa. (Org., intro. e notas Maria Aliete Galhoz.)
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1982.
RILKE, Rainer Maria. Rilke. (Intr. e antol. Federico Bernudez
Cãnete.) Madrid: Júcar, 1984.
RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. [Trad., pref. e notas Ivo
Barroso.] Ed. bilíngue, 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
SENA, Jorge de (Antologia, trad., pref. e notas). Poesia de 26
séculos – de Arquíloco a Nietzsche. 2. ed. Coimbra: Fora do Texto,
1993.
______. Poesia I, II e III. Lisboa: Edições 70, 1988-1989.
SOARES, Bernardo. Livro do desassossego. [Sel. e introd. Leyla
Perrone-Moisés.] São Paulo: Brasiliense, 1986.
TEIXEIRA, Paulo. Inventário e despedida. Lisboa: Caminho, 1991.
______. O rapto de Europa. Lisboa: Caminho, 1993.
VERLAINE, Paul. Poemas saturnianos e outros. [Trad., pref.,
cronologia e notas Fernando Pinto do Amaral.] Edição bilíngue.
Lisboa: Assírio & Alvim, 1994.

291
Sobre Carlos de Oliveira
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320
ANEXO

RELAÇÃO ATUALIZADA DE OBRAS DE NUNO JÚDICE166

Poesia
1972 – A Noção de Poema, Publicações Dom Quixote, Lisboa.
O Pavão Sonoro, «in «Novembro».
1973 – Crítica Doméstica dos Paralelepípedos, Publicações Dom
Quixote, Lisboa.
1974 – As Inumeráveis Águas, Assírio & Alvim, Lisboa.
1975 – O Mecanismo Romântico da Fragmentação (Prémio Pablo
Neruda), Inova, Porto.
1976 – Nos Braços da Exígua Luz, Arcádia, Lisboa.
1978 – O Corte na Ênfase, Inova, Porto.
1981 – O Voo de Igitur num Copo de Dados, & etc., Lisboa.
1982 – A Partilha Dos Mitos, A regra do Jogo, Lisboa.
1985 – Lira de Líquen (Prémio de Poesia do Pen Clube), Rolim,
Lisboa.
1988 – A Condescendência do Ser, Quetzal, Lisboa.
1989 – Enumeração de Sombras, Quetzal, Lisboa.
1990 – As Regras da Perspectiva (Prémio D. Dinis da Fundação
Casa de Mateus), Quetzal, Lisboa.
1991 – Uma Sequência de Outubro, Comissariado para a
Europália, Lisboa.

166. Agradecemos ao autor este anexo.


321
Obra Poética (1972–1985) , Quetzal, Lisboa.
1992 – Um Canto na Espessura do Tempo, Quetzal, Lisboa.
1995 – Meditação sobre Ruínas, (Prémio de Poesia da Associação
Portuguesa de Escritores, Prémio Municipal Eça de Queiroz de
Literatura da CML), Quetzal, Lisboa.
1996 – O Movimento do Mundo, Quetzal, Lisboa.
Poemas em Voz Alta (com CD/poemas ditos por Natália Luiza),
Presença/Casa Fernando Pessoa, Lisboa.
1997 – A Fonte da Vida, Quetzal, Lisboa.
1998 – Raptos, Quetzal/Casa Fernando Pessoa, Lisboa.
1999 – Teoria Geral do Sentimento, Quetzal, Lisboa.
2001 – Poesia Reunida (1997–2000), Dom Quixote, Lisboa (Prémio
da Crítica do Centro Português da Associação Internacional dos
Críticos Literários) .
2002 – Pedro lembrando Inês, Dom Quixote, Lisboa
artografia de Emoções, Dom Quixote, Lisboa
2003 – O Estado dos Campos, Dom Quixote, Lisboa (Prémio
Cesário Verde da Câmara Municipal de Oeiras, Prémio Ana
Hatherly da Câmara do Funchal ).
2005 – Geometria variável, Dom Quixote, Lisboa (Grande Prémio
de Literatura DST).
Geografia do Caos, Assírio @ Alvim, Lisboa.
2006 – As coisas mais simples, Dom Quixote, Lisboa (Prémio
Nacional António Ramos Rosa da Câmara de Faro).
2008 – A matéria do poema, Dom Quixote, Lisboa.
O breve sentimento do eterno, Edições Nelson de Matos, Lisboa.
2010 – Guia de conceitos básicos, Dom Quixote, Lisboa.

322
2012 – Fórmulas de uma luz inexplicável, Dom Quixote, Lisboa.
2013 – Navegação de acaso, Dom Quixote, Lisboa.
2014 – O fruto da gramática, Dom Quixote, Lisboa (Prémio
Tabula rasa).
2015 – A convergência dos ventos, Dom Quixote, Lisboa (Prémio
Literário António Gedeão da FENPROF).
2017 – O mito de Europa, Dom Quixote, Lisboa (Prémio Francisco
Sá de Miranda da Câmara Municipal de Amares).
2018 – A pura impressão do amor, Dom Quixote, Lisboa.
O mistério da beleza, Inéditos Expresso.
2019 – Estudos para um quadro, Nova Mymosa, (ed. limitada, 75
exemplares).
2019 – O coro da desordem, Dom Quixote, Lisboa (Prémio de
Poesia do Pen Clube).
2020 – Regresso a um cenário campestre, Dom Quixote, Lisboa
(prémio Maria Amália Vaz de Carvalho APE- Câmara Municipal
de Loures).
2021 – Uma tabuada de expectativas, Nova Mymosa, (ed. limitada,
75 exemplares).

Ficção:
1977 – Última Palavra: «sim», & etc., Lisboa.
1981 – Plâncton, Contexto, Lisboa.
1982 – A Manta Religiosa, Contexto, Lisboa.
1984 – O Tesouro da Rainha de Sabá, Conto Pós-Moderno, Rolim,
Lisboa.
1984 – Adágio, Quetzal, Lisboa.
1994 – A Roseira de Espinho, Quetzal, Lisboa.
323
1997 – A Mulher Escarlate, Brevíssima, Contexto-Civilização.
1998 – Vésperas de Sombra, Quetzal, Lisboa.
1999 – Por Todos os Séculos, Quetzal, Lisboa (Prémio Bordalo da
Casa da Imprensa).
2000 – A Árvore dos Milagres, Quetzal, Lisboa.
2003 – A Ideia do Amor e Outros contos, Publ. Dom Quixote,
Lisboa.
2004 – O anjo da tempestade, Publ. Dom Quixote, Lisboa. (Prémio
Fernando Namora da Sociedade Estoril-Sol).
2004 – O segredo da mãe, conto inspirado na obra de Graça
Morais, Quetzal, Lisboa.
2007 – O enigma de Salomé, Teorema, Lisboa.
2009 – Os passos da cruz, Dom Quixote, Lisboa.
2011 – O complexo de Sagitário, Dom Quixote, Lisboa.
2013 – A implosão, Dom Quixote, Lisboa
2016 – A conspiração Cellamare, Dom Quixote, Lisboa.
2018 – O café de Lenine, Dom Quixote, Lisboa.

Ensaio:
1986 – A Era de «Orpheu», Teorema, Lisboa.
1991 – O Espaço do Conto no Texto Medieval, Vega, Lisboa..
1992 – O Processo Poético, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Lisboa.
Portugal, Língua e Cultura, Comissariado para a Exposição de
Sevilha.
1993 – Voyage dans un Siècle de Littérature Portugaise,
L’Escampette, Bordéus.

324
1997 – Viagem por um século de literatura portuguesa, Relógio
d’Água, Lisboa.
1998 – As Máscaras do Poema, Árion, Lisboa.
2005 – A viagem das palavras, Edições Colibri, Lisboa.
2005 – O fenómeno narrativo, do conto popular à ficção
contemporânea, Edições Colibri, Lisboa.
2006 – A certidão das histórias, Apenas Livros, Lisboa.
2010 – Abc da crítica, Dom Quixote, Lisboa.
2019 – Camões Por cantos nunca dantes navegados, Sibila, 2019.
(Prémio Jacinto do Prado Coelho da Associação Portuguesa de
Críticos Literários).

Teatro:
1979 – Antero – Vila do Conde, & etc, Lisboa.
1993 – Flores de Estufa, Quetzal, Lisboa.
2005 – Teatro, Artistas Unidos/Livros Cotovia, Lisboa.
2010 – O peso das razões, Assembleia da República, Lisboa.
2017 – Mulheres de Húmus, Cosmorama Edições, Maia.

Argumentos cinematográficos:
1975 – Brandos costumes de Alberto Seixas Santos, texto e
diálogos com Luísa Neto Jorge a partir do argumento de Alberto
Seixas Santos.
1978 – O construtor de anjos de Luís Noronha da Costa, argumento
e diálogos.
1982 – Gestos & fragmentos de Alberto Seixas Santos, texto e
diálogos com Robert Kramer.

325
Edições críticas e antologias:
1977 – Novela Despropositada de Frei Simão António de Santa
Catarina, o Torto de Belém, Assírio & Alvim.
1981 – Poesia de Guerra Junqueiro, col. Textos Literários, Ed.
Comunicação, Lisboa.
1981 – Poesia Futurista Portuguesa (Faro 1916-1917), Regra do
Jogo, Lisboa.
1992 – Sonetos de Antero de Quental, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda.
1993 – Poesia Futurista Portuguesa (Faro 1916-1917) , 2ª ed.
revista, Vega.
1998 – Cancioneiro de D. Dinis, Teorema, Lisboa.
2003 – Cancioneiro de D. Dinis, 2ª edição revista e corrigida,
Planeta de Agostini, Lisboa.
2005 – Infortúnios trágicos da Constante Florinda de Gaspar Pires
Rebelo, Teorema, Lisboa.
2016 – Nueve poetas portugueses para un novo siglo, (org.) UNAM,
México.
2018 – Cartas portuguesas, Cartas duma religiosa portuguesa e
Cartas familiares de uma ilustre desconhecida, Sibila publicações,
Lisboa.

Traduções:
1997 – Corneille, Sertório, Cotovia. Lisboa.
1999 – Corneille, A Ilusão Cómica, ed. Teatro Nacional S.
João,Porto.
2000 – Emily Dickinson, Poemas e Cartas, Cotovia, Lisboa.
2001 – Jorge de Montemor, Diana, Teorema, Lisboa.

326
2006 – Molière, D. João, Campo das Letras, Porto.
2010 – Poemas de amor de Pablo Neruda, Dom Quixote, Lisboa.
2011 – Um país que sonha (Cem anos de poesia colombiana),
Assírio @ Alvim, Lisboa.
2012 – Os versos do navegante, Antologia de Álvaro Mutis, Assírio
& Alvim, Lisboa.
2013 – Cyrano de Bergerac de Edmond de Rostand, Bichodomato,
Teatro Nacional D. Maria II.
2014 – Jaime Siles, Duas janelas, Não edições, Lisboa.
2014 – Juan Manuel Roca, Os cinco enterros de Pessoa, Glaciar,
Lisboa.
2014 – Jenaro Talens, De(s)apariciones, De(s)aparições/Di(s)
paritions, Segundo Santos Ediciones, Cuenca.
2015 – María Gómez Lara, Nó de sombras, Glaciar.
2015 – Mariana Bernárdez, Escreve-me nos olhos, Glaciar.
2016 – Adonis, O arco-íris do instante, D. Quixote.
2016 – William Shakespeare, Tanto amor desperdiçado,
Bichodomato.
2018 – Luis García Montero, As lições da intimidade, Abysmo.
2019 – Gérard d’Houville (Marie de Régnier), A inconstante,
Sibila.
2019 – Luis Vélez de Guevara, Reinar depois de morrer, Companhia
de teatro de Almada.
2021 – Jidi Majia, Planeta dilacerado, Sibila publicações.

327
Obras publicadas noutros países:

ALBÂNIA
2007 -Meditime mbi rrënoja, ed. Koçi, Tirana. (Trad. Anton
Papleka).

BÉLGICA
1997 – La Condescendance de l’être, Le Taillis Pré. (Trad. Michel
Chandeigne).
2000 – Le mouvement du monde, Le Taillis Pré. (Trad. Michel
Chandeigne).

BRASIL
2004 – Por dentro do fruto a chuva, Antologia poética, org. Vera
Lúcia de Oliveira, Escrituras, São Paulo.

BULGÁRIA
1999 – Lirika, Karina M., Sófia (trad. Georgi Mitzkov).
2009 – O mais simples (Poemas 2000-2009), Farrago, Sófia (trad.
Sidónia Pojarlieva).

CHINA
2017 – Variation on roses, The Chinese University Press, IPNHK,
Hong Kong.

COLÔMBIA
2013 – Defensa de lo sublime, Taller de Edición, Rocca, Bogotá
(trad. Lauren Mendinueta).
2014 – Breve Tratado de Pintura, Frailejón Editores, Medellin
(Traducción: Elkin Obregón S.)
328
DINAMARCA
1998 -Vandlinier, Brondum. Tastrup. (Trad. Merete Nissen e Per
Aage Brandt).

ESPANHA
1996 – Un canto en la espesura del tiempo, Ultimos contemporáneos,
Calambur, madrid (Trad. José Luis Puerto).
2001 – Antología, Visor dePoesia, Madrid. (Trad. Vicente
Araguas).
2008 – Tú, a quien llamo amor (Antología), Poesia Hiperión,
Madrid (Trad. Jesús Munárriz).
2013 – Devastación de sílabas, Ediciones Universidad de
Salamanca, Patrimonio Nacional, Edición, introducción y
selección de Pedro Serra.
2014 -El orden de las cosas, Editorial Pre-Textos, Madrid-Buenos
Aires-Valencia. (trad. Juan Carlos Reche)
2014 – Navegación sin rumbo, Editora Regional de Extremadura,
Mérida. (trad. Luis Marina)
El fruto de la gramatica, Valparaíso Ediciones (Trad. José Ángel
García Caballero.
2015 – Cantar de los cantares, Santos Ediciones, Cuenca (trad.
Jenaro Talens).
2016 – Implosión, Letour1987, Extremadura, (trad. Mario
Quintana).

FRANÇA
1990 – Enumération d’ombres, Editions de Royaumont, Paris.
(Trad. Michel Chandeigne).

329
1993 – Les degrés du regard, L’Escampette, Bordeaux. (Trad.
Michel Chandeigne).
1996 – Un chant dans l’épaisseur du temps suivi de Méditations sur
des ruines, Poésie/Gallimard, Paris. (Trad. Michel Chandeigne).
2000 – Lignes d’eau, Fata Morgana, Cognac (Trad. Jean-Pierre
Léger)..
2000 – Traces d’ombre, Ed. Metailié, Paris. (Trad. Geneviève
Leibrich).
2001 – Jeux de reflets, Ed. Chandeigne, Paris. (Trad. Michel
Chandeigne).
2003 – Pedro, évoquant Inês, Ed. Fata Morgana, Cognac. (trad.
Marie-Claire Vromans).
2006 – Source de vie, Ed. Fata Morgana, Cognac (trad. Marie-
Claire Vromans).
2006 – L’ange de la tempête, La Différence. (Trad. Cécile Lombard).
2011 – Géométrie variable, Vagamundo, Pont-Aven (trad. Cristina
de Melo).
2011 – Le mystère de la beauté, Editions Potentille (Trad. Lucie
Bibal et Yves Human).
2013 – Portugal : Un voyage dans le temps, Photographies de
Bernard Cornu, Les Perséides, Bécherel (éd. billingue, trad.
Anne-Marie Quint).
2013 – Histoire de chien, Vagamundo, Pont-Aven (tradução
francesa de Cristina Isabel de Melo e inglesa de Graham
macLachlan).
2015 – Le sentiment fugace de l’éternel suivi de Géographie du
chaos, Revue Nunc/Editions de Corlevour, Mayenne, (Trad.
Béatrice Bonneville- Humann e Yves Humann).

330
2015 – Manuel de notions essentielles, Atelier la Feugraie, Saint-
Pierre-la-Vieille (Trad. Béatrice Bonneville- Humann e Yves
Humann).
2017 – Navigation à vue, Revue Nunc/Editions de Corlevour,
Mayenne, (Trad. Béatrice Bonneville- Humann e Yves Humann).
2018 – Le nom de l’amour, La Nouvelle Escampette, Clermont-
Ferrand. (Trad. Max de Carvalho)
2019 – O labirinto do amor, Cahiers de l’Approche, Angoulême
(trad. Lucette Petit).
2020 – Le mythe d’Europe, Revue Nunc/Editions de Corlevour,
Mayenne, (Trad. Béatrice Bonneville- Humann e Yves Humann).

GRÉCIA
2006 – Por todos os séculos, Lagoudera, Atenas. (Trad. Nikos
Pratsinis).

HOLANDA
1998 – Recept om blauw te maken, Wagner & Van Santen,
Dordrecht. (Trad. August Willemsen).
2005 – De emotie in Kaart Gebracht, Wagner & Van Santen,
Dordrecht. (Trad. August Willemsen).
2019 – Het licht van Lissabon, Kleinood Grootzer. (Trad. Willem
M. Roggeman).

IRÃO
2009 -Meditação sobre ruínas, Teerão.

ISRAEL
2000 – Meditação sobre ruínas, Carmel, Telavive (Trad. Aharon
Shamir).
331
ITÁLIA
1991 – La poesia corrompe le dita, Colpo di fulmine Edizioni,
Verona (Trad. Adelina Aletti).
1994 – Adagio, Sestante, Ripatransone. (Trad. Fabio Pusterla).
2011 – A te che chiamo amore, Kolibris edizioni, Bologna, (trad.
Chiara de Luca).
2015 – La matéria della poesia, Kolibris edizioni, Bologna, (trad.
Chiara de Luca). Prémio Internacional Casa da Poesia de Como.
2017 – Formule di una luce inesplicable, Kolibris edizioni, Bologna,
(trad. Chiara de Luca). Prémio Internacional de poesia Camaiore.
2020 – La Cospirazione Cellamare, Grimaldi & C. Editori, Nápoles
(trad. Maria Luisa Cusati).
2021 -Ritorno allo scenario campestre, Delta 3 Edizioni, (trad.
Matteo Puppilo e Eleonora Rimolo).

LUXEMBURGO
2009 – Die Haut der Erde, Editions Phi, Institut Pierre Werner,
Luxemburg (trad. colectiva).

MARROCOS
2011 – A fonte das imagens, Antologia poética, Dar Attaouhidi,
Rabat (Trad. Said Benabdelouahed).

MÉXICO
1999 – Teoría general del sentimiento, Trilce, México (Trad. Blanca
Luz Pulido).
2010 – El misterio de la belleza, Universidad autónoma de Nuevo
Léon, (Trad. Blanca Luz Pulido).

332
2014 – A pedra do poema, Antología personal (2001-2013),
UNAM. (Trad. Marco Antonio Campos).
2018 – Meditación sobre ruinas, Textofilia, Univeridad Autónoma
de Nuevo León (trad. Blanca Luz Pulido).
2018 – La maleta del poeta, Trilce (trad. José Xaviedr Villarreal).

REINO UNIDO/REPÚBLICA CHECA


1997 – Meditation on ruins, Archangel, Londres/Praga. (Trad.
Richard Zenith).

ROMÉNIA
2019 – Materia Poeziei, Editura Muzicala,Bucareste.

REPUBLICA CHECA
1999 – Sarlatová Zená, Argo, Praga. (Trad. Pavla Lidmilová).

SUÉCIA
1998 – Kallskrift, Aura Latina, Malmö. (Trad. Lasse Söderberg).
2012 – Ana Luísa Amaral, Nuno Júdice, Vasco Graça Moura,
Vintergatan asfalteras i vitt, Almaviva, Uppsala (trad. Marianne
Sandels).
2015 – Fritt navigerande, Almaviva, Uppsala (trad. Marianne
Sandels).

USA
2020 – The religious mantle, New Meridian Arts (trad. David
Swartz).

333
VENEZUELA
1996 – Antología poética, Ed. Angria, Caracas.(trad. Eduardo
Estévez en colaboración con Neni Tábora).

VIETNAM
1999 – Tutên tap tho, ed. Trinh Bay. (Trad. Diem Chau).

334
Que este livro dure até antes do fim do mundo.

Publicado em novembro de 2021.

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