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UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA E SOCIODISCURSIVA DA

EVIDENCIALIDADE NA CONSTRUÇÃO DE ARGUMENTOS


EM TEXTOS DE OPINIÃO DE CRIANÇAS

Terezinha BARROSO
(Universidade Federal de Juiz de Fora)

ABSTRACT: This article pretends to investigate how 8-11 year-old students deal with the task of writing opinion
text in a public school context. The investigation focuses the sociocognitive, linguistic, discursive and pragmatic
aspects of this language action, related to the epistemological stance of the writer when expressing the status of
arguments to defend a position. The study tries to interconnect three sets of basic concepts to approach the
development of the competence of young children in dealing with argumentative discourse: perspectivization and
intersubjectivity of the language, enunciative anchorage and evidenciality, which together respond to the status
of the information content and the grade of credibility of the arguments.

KEYWORDS: opinion text, evidenciality, perspectivization, intersubjectivity, enunciative anchorage.

1. Introdução

Ao emitir uma opinião por escrito, o sujeito está, não só gerenciando variáveis do
contexto externo, elementos que compõem a moldura comunicativa (TANNEN &
WALLAT:1987) na qual o evento se insere e se realiza, mas, também, variáveis internas -
conhecimento de mundo, conjunto de crenças, modelos cognitivos (LAKOFF: 1988,
FILLMORE: 1982, LINDE: 1993), que constituem base sociocognitiva e pragmática para as
trocas intersubjetivas na interlocução à distância. Nessa perspectiva, emitir uma opinião é
negociar uma forma subjetiva e conjunta de angular o mundo, ao se colocar frente a uma
questão polêmica.
Através das duas propriedades intrínsecas da linguagem que acentuam seu caráter
como ferramenta semiótica de natureza cognitiva e cultural - perspectivização e
intersubjetividade (TOMASELLO, 2003), é possível ao sujeito construir mundos discursivos,
fazer referências a entidades que os constituem, com base em duas coordenadas gerais que
orientam o tipo de ancoragem enunciativa usada para a semiotização do texto empírico: uma
coordenada, cuja referência se apóia no eixo da referencialidade; outra que se apóia no eixo
da situação (BRONCKART: 1999, 2003 e ROJO, 1998).
Na tentativa de negociar posições frente a uma questão polêmica, o sujeito escritor
estabelece uma vinculação de natureza epistemológica entre origem da informação semântica
e atitude acerca do grau de comprometimento com o dito. Nesse ponto, se insere o foco deste
artigo, qual seja, o estudo da relação entre grau de evidencialidade da informação (CHAFE:
1986, MUSHIN: 2001) e ancoragem enunciativa, tal qual colocada por Bronckart (1999,
2003) e Rojo (1998). Situa-se nesse viés, o estudo de base lingüística, pragmática e cognitiva
da evidencialidade (CHAFE: 1986, MUSHIN: 2001), que ultrapassa a relação do dito com a
origem da informação, para concebê-la como estratégia sociocognitiva e sociodiscursiva de
negociação de POSIÇÃO.
O estudo se desenvolve com base num corpus de 145 textos de opinião, produzidos
longitudinalmente por alunos do primeiro segmento do ensino fundamental, do Colégio de
Aplicação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

1905
2. A constituição cognitiva e cultural da Linguagem: perspectivização e intersubjetividade

Perspectivização e intersubjetividade são dois conceitos básicos apresentados por


Tomasello (2003), antropólogo evolucionista, para pontuar a relevância do caráter social e
cultural da cognição humana, no que concerne à criação e uso da linguagem, como ferramenta
de mediação entre os indivíduos e como traço diferenciador da espécie.
Segundo o autor, a história da evolução sociocognitiva da espécie humana - na sua
ontogênese e filogênese - culminou na construção de uma cultura distinta dos primatas, o que,
dentre outros avanços, possibilitou, por evolução cultural cumulativa, a criação, a utilização e
a transformação de símbolos lingüísticos. Essa forma de comunicação, por sua vez, não surgiu
do nada, como um invento pontual, totalmente novo, de autoria individual, mas só foi
possível, na medida em que a espécie (i) passou a se ver e a seus co-específicos como seres
intencionais e mentais, reconhecendo-se no outro como sua contraparte; (ii) foi capaz de se
envolver em cenas de ação conjunta, base sociocognitiva para a construção de um sistema
lingüístico de comunicação; (iii) soube se apossar de atividades comunicativas pré-
linguísticas e transformá-las, de modo a chegar ao uso convencional dos símbolos, garantindo
o partilhamento de intenções intersubjetivamente compreendidas; e (iv) foi capaz de
compreender e monitorar intenções comunicativas e de aprender por inversão de papéis.
A linguagem, na sua ontogênese e filogênese, surge para atender às demandas
cognitivas e sociais singulares à espécie humana. A linguagem cria assim, através dos
símbolos lingüísticos, social e culturalmente construídos, uma nova forma de representação
cognitiva, totalmente distinta, sem similar em outra espécie animal. Duas poderosas
propriedades inerentes à representação simbólica humana a distinguem das formas de
linguagem dos primatas: a intersubjetividade e a perspectivização (TOMASELLO, 2003).
A intersubjetividade diz respeito à propriedade da linguagem de permitir a utilização
conjunta de símbolos lingüísticos, quer por indivíduos, quer por grupos sociais, de modo a
esse partilhamento de um mesmo artefato simbólico permitir aos usuários o partilhamento de
inferências e intenções. Pela natureza intersubjetiva dos símbolos lingüísticos, o sujeito
produz e entende enunciados ao mesmo tempo em que entende que os outros, da mesma
forma, os entendem (TOMASELLO, 2003, p. 147).
A perspectivização, por sua vez, diz respeito à propriedade da linguagem de, através dos
símbolos lingüísticos, suscitar enquadres/frames (FILLMORE, 1982) diferentes para um
mesmo objeto, ou, inversamente, de suscitar enquadre semelhante para entidades diferentes
(FILLMORE: 1982, p.165). Ou seja, tal propriedade que distingue os símbolos lingüísticos
dos demais símbolos humanos permite suscitar uma forma específica de apreender os
fenômenos e categorizá-los mediante uma dada situação comunicativa.
A intersubjetividade e a perspectivização, como propriedades de natureza cognitiva e
social da linguagem, permitem a referência a um objeto, ou a um evento, com base em
diferentes perspectivas ou angulações. Por estas propriedades, os símbolos lingüísticos podem
ser usados para a referência a objetos fora do contexto perceptual imediato, assim como para a
referência a uma mesma entidade perceptualmente presente, e podem, igualmente, simbolizar
uma mesma entidade de maneiras diferentes.
Nos termos de Tomasello (2003):

os símbolos lingüísticos incorporam uma miríade de maneiras de interpretar


intersubjetivamente o mundo que se acumularam numa cultura ao longo do tempo
histórico, e o processo de aquisição do uso convencional desses artefatos simbólicos,
e portanto sua internalização, transforma fundamentalmente a natureza das
representações cognitivas da criança (p.133).

1906
Dentro dos parâmetros discutidos, no contexto de aprendizagem sociocognitiva, a
criança, ao adquirir a linguagem, está ao mesmo tempo incorporando formas produtivas para
(i) categorizar o mundo e interpretá-lo à maneira de seus co-específicos, (ii) adotar pontos de
vista diferentes sobre uma mesma situação e (iii) partilhar, conjuntamente com seu co-
específico, intenções comunicativas, à medida em que ambos se constituem como agentes
intencionais e mentais.

3. A constituição de mundos discursivos pela linguagem: a ancoragem enunciativa

A produção conjunta e partilhada de ações de linguagem se realiza por formas


relativamente estáveis de produção discursiva, representadas conceptualmente por mundos
discursivos, sobre os quais o sujeito constrói suas referências para organizar e estruturar suas
produções textuais – os gêneros do discurso (BRONCKART: 2003).
No que respeita ao domínio de construção conceptual de mundos discursivos e à forma
de organização das representações desses mundos na produção verbal, através da
seqüencialização de tipos lingüísticos que codificam seqüências textuais (ADAM: 2001,
BRONCKART: 1999), duas possibilidades de representação desse domínio se instalam, a
partir de duas coordenadas gerais que orientam a semiotização de um texto empírico: uma
coordenada, cuja referência se apóia no eixo da referencialidade; outra que se apóia no eixo
da situação (BRONCKART, 1999, 2003 e ROJO, 1998).
A primeira coordenada – eixo da referencialidade - explicita a relação existente entre o
conteúdo temático de um texto e a forma como este se conecta com o mundo construído pela
ação de linguagem, da qual o texto se origina. Neste caso, dois tipos de operação são
possíveis: uma em que as coordenadas são alocadas à distância do mundo ordinário ao qual
pertence o sujeito, num mundo disjunto; outra na qual as coordenadas estabelecem uma
relação de acessibilidade entre conteúdo temático mobilizado e o mundo da interação social
em curso, resultando na construção de um mundo conjunto acessível aos protagonistas da
interação (BRONCKART, 1999 e 2003). Conforme distingue Rojo (1998), na relação de
disjunção de mundos, a linguagem é usada para falar de um mundo que já não é, situado à
distância; já na relação de conjunção de mundos, a linguagem é usada para falar do mundo no
qual se age, não havendo ruptura entre mundo de referência do conteúdo temático e o mundo
da situação.
A segunda coordenada – eixo da situação - explicita a relação existente entre as
diferentes instâncias de agentividade e a marca que identifica a situação material de produção
na sua realização espaço-temporal. Neste caso, também, dois tipos de operação são possíveis:
uma em que a relação com a ação de linguagem permite uma referência explícita, direta ao
interlocutor, ou à situação material de produção, propriamente dita, resultando na construção
de um mundo implicado com a situação de produção; outra em que a produção verbal se dá
sem nenhuma referência explícita aos parâmetros da situação de produção (BRONCKART,
2003, p.63), fazendo-se abstração da situação material de produção; neste caso diz-se da
criação de um mundo autônomo.
A apresentação acima tem caráter meramente didático, posto que os tipos lingüísticos
(dêiticos, exóforas, anáforas, sintagmas nominais e pronominais, etc.) e seqüências textuais
(narrativa, expositiva, argumentativa, injuntiva e descritiva), tomados como formas de
semiotização pelo sujeito de seu conhecimento textual na produção de um determinado
gênero, não se organizam de forma estanque, de modo a configurarem textos puramente
autônomos ou implicados, com referência, ou ao mundo conjunto ou ao mundo disjunto. Ao
contrário, as coordenadas (eixo da situação e da referencialidade) que participam da
representação e organização dos mundos discursivos, atualizados através dos gêneros textuais,
se constituem na articulação e na intersecção.

1907
4. O texto de opinião: forma de perspectivizar o mundo através de trocas intersubjetivas
e referências

O texto de opinião inclui-se no campo da argumentação dialética, ou seja, da Retórica,


posto que seu objetivo comunicativo é o de persuadir, buscar a adesão do outro, produzir
consenso, o que significa que a opinião, diferentemente das áreas de conhecimento próprias
das ciências empíricas, atua no campo da verossimilhança, e não do das certezas; argumenta-
se sobre opiniões, mas não se demonstram opiniões, em termos de verdades lógicas. Breton
(2003, p.14) ressalta que isso não significa dizer que opinião possa ser considerada uma
argumentação de segunda categoria, uma crença sem consistência, ou mesmo, que lide com
uma verdade pouco rigorosa, mas, sim, que escapa ao espaço da demonstração, da
racionalidade, nos termos do raciocínio silogístico, uma vez que lida com valores, crenças que
não são suscetíveis à demonstração científica.
Sob esse ponto de vista, a opinião suscita o embate de idéias, ou seja, é a expressão
concreta de uma ação de linguagem, cujo objetivo comunicativo é a argumentação a favor de
posição assumida, com a qual o sujeito se compromete.
Dessa forma, a opinião se constitui como espaço de trocas intersubjetivas e de
negociação de formas de perspectivizar o mundo e de representá-lo pela semiose lingüística.
Nos estudos sobre a opinião, sob a ótica da Retórica, dois aspectos devem ser
destacados, que justificam sua inclusão nesta área do conhecimento, e sua percepção como
forma de argumentação. O primeiro diz respeito ao seu caráter de verossimilhança (Breton,
2003, p. 44), que isenta a opinião do compromisso com a demonstração analítica, e a insere
no campo da "laicidade", do "espaço público leigo", mantendo-a distante de qualquer
dogmatismo1. O espaço público leigo, na acepção do autor, equivale ao espaço de nosso
cotidiano, feito de mundos de representações que partilhamos com os outros humanos, das
metáforas nas quais vivemos e que estruturam nossa visão das coisas e dos seres (BRETON,
2003, p.43).
O segundo aspecto refere-se à implicação de um auditório particular que dispõe de um
conjunto de crenças, culturalmente construídas, o que significa que um ponto de vista
pressupõe um outro, garantindo-se a existência do embate pela argumentação. A opinião é por
natureza um embate que se trava entre dois pólos claramente delineados.
A representação bem delineada do interlocutor e dos mundos a serem representados na
ação de opinar, o tipo de ancoragem enunciativa que se estabelece no momento da produção
textual, como formas de marcar a atitude epistemológica do sujeito na escolha dos
argumentos, são fundamentais para a realização desta ação de linguagem.
As operações cognitivas de raciocínio, que articulam posição e justificativa num texto
de opinião, se instalam nas relações de inferências entre idéias, incorporando uma variedade
de argumentos em uma língua natural, tais como os argumentos por exemplificação, os relatos
de experiência pessoal, argumento de autoridade, tipos que podem ser utilizados pelo sujeito
como forma de atribuir credibilidade e evidencialidade aos argumentos utilizados.

5. Evidencialidade e argumentos

A intenção comunicativa de persuasão e convencimento que distingue uma ação


verbal de natureza argumentativa é, assim, a expressiva atualização das propriedades
intrínsecas da linguagem: a perspectivização e a intersubjetividade. Através dessas duas
propriedades que acentuam o caráter da linguagem como ferramenta semiótica, é possível ao
sujeito construir mundos discursivos (domínios cognitivos) e referências a entidades que os
1
Breton (2003, p.44) lembra que o conhecimento científico, a religião transformam a verossimilhança de nossas
opiniões em ilusão de verdade.

1908
constituem (TOMASELLO, 2003; BRONCKART, 1999); é possível, também, ao sujeito,
estabelecer uma vinculação de natureza epistemológica entre a informação semântica
representada para essas entidades e seu comprometimento com o dito, em termos de assegurar
credibilidade ao que está sendo veiculado, e à origem dessa informação.
Em seguida, apresentamos uma discussão sintética desse segundo aspecto de
construção dos enunciados pela linguagem, nos termos propostos por Chafe (1986) e Mushin
(2001), quando tratam de uma semântica da evidencialidade. Embora não seja nosso intento
esgotar a discussão sobre evidenciais e sua forma de gramaticalização nas línguas naturais,
reconhecemos como relevante para o estudo em questão uma abordagem do fenômeno da
evidencialidade, na medida em que poderá nos servir de orientação para os critérios de análise
da natureza dos argumentos que compõem o texto de opinião da criança, concebendo-se tal
fenômeno como estratégia cognitiva e discursiva, utilizada para atribuir credibilidade aos
argumentos negociados para a defesa de uma posição.
Em linhas gerais, uma semântica da evidencialidade se ocupa com o estudo de marcas
de natureza lingüística e pragmática, denominadas de evidenciais, ou marcadores de
evidencialidade, presentes numa língua natural, que mapeiam as relações, instauradas no
discurso, entre origem da informação e atitude do sujeito frente à informação. Chafe (1986) e
Mushin (2001), assumindo este enfoque cognitivo e ampliado sobre evidencialidade, que
ultrapassa a relação do dito com a origem da informação, ressaltam que os marcadores de
evidencialidade no discurso refletem uma relação subjetiva do falante com a informação
veiculada, envolvendo atitude e comprometimento do sujeito com o dito e com a origem da
informação; nesse sentido, postura epistemológica vai afetar o status da informação, no
tocante à credibilidade.
Dessa forma, numa perspectiva cognitiva de perceber a gramática como estruturante
das conceptualizações de experiências2, o estudo do fenômeno da evidencialidade pauta-se na
postura epistemológica do sujeito frente à informação, e na relação subjetiva que se instala,
nesse procedimento, entre sujeito conceptualizador e o objeto conceptualizado, este último
representado pela informação veiculada pelo discurso contextualmente situado (Mushin,
2001, p. 7-8).
Chafe (1986, p.262-271), reforçando o viés cognitivo de seu estudo sobre evidenciais
em inglês, define evidencialidade como o fenômeno que se ocupa em estudar marcas no
discurso, sinalizadoras de atitudes do sujeito em relação ao conhecimento. Nesse enfoque, o
autor apresenta uma escala para a abordagem do fenômeno nas línguas naturais, centrada na
informação, cujo status de credibilidade é marcado por evidenciais, que atribuem graus
diferenciados de credibilidade ao dito, refletindo, assim, a relação inerente entre origem da
informação (na evidência perceptual, na própria linguagem ou em hipótese) e o modo pelo
qual a informação é adquirida pelo sujeito no contexto de uso (através de crença, ou de sua
manifestação mais atenuada, a opinião, através de indução, através de boato3, ou através de
dedução.
A proposição de uma escala de atribuição de evidencialidade aos enunciados reforça o
caráter processual e cognitivo da co-produção da significação lingüística, quando considerado
em seu contexto de uso. Neste sentido, a combinação entre origem e modo de aquisição da

2
A Gramática Cognitiva, buscando equacionar significado e conceptualização, tem como objetivo identificar e
representar as estruturas conceptuais que são convencionalizadas nas construções gramaticais, com base no
princípio de que a linguagem nunca representa diretamente o mundo, mas a nossa percepção conceptual do
mundo (Mushin, 2001, p.7). Tal epistemologia é assumida pela hipótese sociocognitiva de linguagem (Lakoff,
1987, 1988, Fauconnier & Turner, 2002, Salomão, 1997, Miranda, 1999, 2002) e enriquecida por Tomasello
(2003), que ressaltam, ainda, o papel relevante do contexto e da cultura na constituição dos significados pela
linguagem.
3
O autor usa o termo hearsay para descrever a informação adquirida por ouvir dizer, traduzido por boato,
embora se reconheça a conotação um tanto pejorativa do termo em português.

1909
informação vai se configurar num continuum na escala, e não numa polarização, e se justifica
pela necessidade de se instalar entre os interactantes o princípio cooperativo de que o que se
negocia na interação está. Dessa forma, Chafe (1986) reforça o caráter cognitivo e
epistemológico da semântica da evidencialidade, no sentido de que esta não se restringe à
identificação de marcas lingüísticas ou pragmáticas de evidencialidade e à identificação de
fontes de informação, como se tal vinculação se desse à maneira objetivista de conceber a
relação representacionista entre marca lingüística e significado; ao contrário, reconhece que
os significados produzidos pelos evidenciais ultrapassam a sua relação com os fatos no mundo
real, para revelar processos cognitivos e pragmáticos mediadores da maneira como a
informação é realmente adquirida, e o status que lhe atribuímos como produtores de
linguagem (MUSHIN, 2001, p 23-24).
Buscando uma aplicação dos estudos de Chafe e Mushin nas análises da natureza dos
argumentos utilizados pelos sujeitos de nossa pesquisa, duas seriam as formas de o sujeito
conceptualizador de vivências colocar-se frente à informação – postura epistemológica -, com
vistas a marcar para seu interlocutor a evidencialidade de seu argumento: como
conceptualizador experienciador e como conceptualizador observador. A primeira postura
realça a proximidade entre o sujeito e o dito, acentuando o grau de
comprometimento/envolvimento com o conteúdo informacional e a origem dos argumentos, o
que atribuiria caráter subjetivo à argumentação; a segunda postura realça a distância entre
sujeito e o dito e a origem da informação, e atribuiria caráter objetivo na forma de se conceber
o argumento. Na mesma direção, acreditamos, apoiados em Mushin (2001), que, na postura
de conceptualizador de experiências, o sujeito ao marcar evidencialidade em seus
argumentos, situa-se, assim como o mundo representado por ele no discurso, em posição on
stage, colocando-se como participante – direto ou indiretamente envolvido - do processo de
conceptualização; na postura de sujeito conceptualizador observador de estado de coisas, a
evidencialidade é marcada pela posição off stage, ou seja, o sujeito e o mundo representado no
discurso colocam-se fora da cena, qual seja, as ações de outros indivíduos, ou estados de
coisas não o afetam diretamente.
Nesse contexto, o texto de opinião, por seu caráter essencialmente subjetivo, constitui-
se como espaço para a ocorrência das duas posições epistemológicas do sujeito
conceptualizador - experienciador e observador - posto que, como forma mais atenuada de
manifestação de crença (CHAFE, 1986, p. 266), a opinião resulta de experiência e avaliação
do sujeito, referentes a estados ou situação de mundos. No caso específico do discurso
argumentativo, a possibilidade de duplo posicionamento do sujeito frente à origem do
argumento, utilizado para a sustentação de sua posição, atribui à opinião um grau maior de
credibilidade, quanto à origem da informação. Assim a opinião pode ser concebida como
resultante de experiência pessoal, ou como resultante de observação e avaliação do estado de
coisas. A origem da opinião pode vir do fato de o objeto de crédito ser partilhado por pessoas
reconhecidas, confiáveis - o que atribui autoridade ao argumento - ou pelo senso comum;
pode, também, originar-se do fato de ser objeto de observação do conceptualizador, a partir do
que é capaz de construir um tipo de representação para a realidade dos fatos, tomada como
evidência.
Nesta síntese, vale ressaltar a relevância do viés cognitivo e pragmático da concepção
de "atitude epistemológica do sujeito" (MUSHIN, p. 51-58), que autoriza uma extensão
complementar desse conceito, sob a perspectiva sociocognitiva e sociodiscursiva de
linguagem, quando se ressalta o caráter de co-produção do sentido pela semiose lingüística.
Nesse sentido, o grau de credibilidade impresso no discurso, a partir dos evidenciais, é
assim concebido, à medida em que é capaz de suscitar na interação tal percepção. Melhor
dizendo, se no fenômeno da evidencialidade e no conceito de atitude epistemológica, nos
termos postos por Chafe (1986) e Mushin (2001), é ressaltado o caráter subjetivo dessa

1910
construção e atitude, no tocante à seleção dos evidenciais que mapeiam o discurso e
respondem pela postura do sujeito com relação ao dito, tal estratégia deve ser concebida,
igualmente, como guiada pela percepção e representação mental do outro - um sujeito
ouvinte/leitor - com o qual se negocia a significação pela linguagem. Dessa forma, tem-se
ampliada a concepção de atitude epistemológica que se recoloca como estratégia de natureza
intersubjetiva e perspectiva, nos termos postos por Tomasello (2003).
No que respeita à construção do discurso argumentativo, podemos afirmar que a atitude
epistemológica do sujeito frente aos argumentos selecionados e a forma de marcar
evidencialidade nesses argumentos, embora representem, a princípio, uma decisão de natureza
subjetiva, são, também, resultado de processo de construção conjunta e partilhada, à medida
em que essas escolhas apóiam-se na representação mental que o sujeito cria de seu
interlocutor, do contexto de produção e do conjunto de conhecimentos que se supõe
partilhado e por negociar, no momento da ação de convencimento.

6. O cenário da pesquisa

Os dados para a composição do corpus foram coletados longitudinalmente, no período


equivalente a 3 anos, formando um conjunto de 145 textos de opinião escritos, produzidos
pelas mesmas crianças (29 alunos), na idade entre 8 a 11 anos, nas 2ª, 3a. e 5a. séries do ensino
fundamental.
Durante a coleta do material para investigação, ressaltamos a importância da moldura
comunicativa na interpretação e na realização da tarefa proposta às crianças e a
caracterizamos da seguinte forma: (1) o contexto de produção: tarefa escolar proposta pelo
professor/pesquisador em ambiente escolar; (2) o interlocutor oficial das produções escritas: o
professor, mesmo que se considerem esforços de se emoldurar a tarefa numa agenda próxima
ao uso real do gênero solicitado; (3) a ausência de qualquer discussão prévia sobre o tema que
pudesse orientar os alunos para a sustentação de argumentos, ou mesmo de posições
assumidas; (4) a inexistência de trabalho sistematizado com textos argumentativos em sala de
aula, informação fornecida pelos professores em entrevista; (5) a relevância de textos
narrativos e/ou relatos sobre os demais tipos discursivos, tanto para recepção como para
produção, na prática escolar dos sujeitos; informação obtida por investigação do material
didático utilizado em sala de aula.
Durante a pesquisa, os alunos foram solicitados a produzirem 5 diferentes tarefas que
geraram diferentes textos escritos de opinião. Dois outros aspectos relevados para a análise
das produções dizem respeito (1) à escolha do tema: posicionar-se sobre questão polêmica
contextualizada por referência à experiência de vida dos próprios alunos e por referência a um
contexto físico, externo à experiência direta; e (2) à formulação da tarefa: a proposição é
marcada pela seguinte questão direta, própria da solicitação de opinião: O que você acha
disso.../ Dê sua opinião sobre....

7. Integrando conceitos para uma análise de base sociocognitiva e sociodiscursiva das


estratégias de construção do texto de opinião pelo escritor aprendiz

Três conceitos básicos para o presente estudo foram tratados nas seções anteriores, que
dizem respeito às operações de natureza pragmática, sociocognitiva e discursiva, responsáveis
pela construção de mundos discursivos e referências a entidades que os constituem. O
primeiro – o de perspectivização e intersubjetividade - propriedades inerentes à linguagem e
que explicam na filogênese e na ontogênese a capacidade do ser humano de usar a linguagem
para angular o mundo e estabelecer trocas bem sucedidas entre seus co-específicos através dá
codificação de símbolos lingüísticos comuns. O segundo – o de ancoragem enunciativa -

1911
inclui os conceitos de mundo implicado e mundo autônomo, mundo conjunto e mundo
disjunto, categorias usadas para marcar o tipo de vinculação enunciativa entre sujeito e texto,
no que respeita à organização das representações do mundo, solicitadas pela produção textual.
Finalmente, o terceiro conceito que está vinculado ao de atitude epistemológica do sujeito
com base no fenômeno da evidencialidade (CHAFE: 1986, MUSHIN: 2001), tomado como
estratégia que regula a postura epistemológica do sujeito, frente à informação negociada com
seu interlocutor, considerando-se nesse conceito a origem da informação veiculada e a atitude
epistemológica do sujeito - conceptualizador de vivências vinculadas ao mundo ordinário ou a
um mundo projetado.
Em síntese, a ação de convencimento, característica do texto de opinião escrito,
regula-se pela capacidade de provocar no leitor mudança de perspectiva sobre a questão
polêmica. Essa capacidade, por sua vez, regula-se pela força argumentativa de que os
argumentos se revestem para atender a esta ação, na medida em que são indexados por formas
de evidencialidade, na sua relação com os mundos discursivos4construídos para este tipo de
ação, e interpretados pelo leitor. Prosseguindo, nessa relação, as representações
cognitivamente construídas para os argumentos selecionados na organização textual, assim
como os modelos cognitivos dos quais emergem, estabelecem uma relação de implicação ou
de autonomia com o momento da produção da argumentação e com os interactantes; ao
mesmo tempo, tais representações situam os argumentos num mundo conjunto ou disjunto, no
que respeita à relação entre mundo construído para a sustentação da argumentação e o mundo
no qual se insere o sujeito.

7.1 Uma proposta de análise: grau de evidencialidade e ancoragem enunciativa na


defesa de posição

No corpus em estudo, foram observadas duas atitudes epistemológicas básicas da


criança para perspectivizar os argumentos, quer sejam de base factual, quer sejam de base
contrafactual: uma na qual o escritor aprendiz se coloca como experienciador, ou seja, a
criança constrói sua argumentação, como fruto de experiência, à qual tem acesso direta ou
indiretamente, de modo que o argumento reflete a sua própria versão sobre os fatos ou
situação no mundo real ou projetado. Argumentos gerados por esta atitude epistemológica
apresentam maior grau de credibilidade, em virtude do traço subjetivo da experiência e da
maior proximidade entre origem do argumento e sujeito argumentador.
Numa segunda atitude, a criança coloca-se como observador, avaliador, ou seja, o
aprendiz, ao selecionar os argumentos, não se coloca como experienciador de estados ou
eventos no mundo ordinário sobre o qual age diretamente, ou pelo qual é afetado; ao
contrário, a atitude epistemológica assumida frente ao argumento é de distanciamento, posto
que a criança não se reconhece como parte do mundo construído para a representação do
argumento, não participando diretamente dos eventos ou situações de mundo referenciados na
argumentação. Neste caso, ressalta-se o caráter objetivo do argumento, pelo distanciamento
entre sujeito e origem do argumento.
No primeiro caso, a aproximação entre o sujeito conceptualizador e as bases de
orientação para a seleção do argumento tende a gerar uma argumentação de natureza
implicada, através da conjunção entre o mundo construído cognitivamente e o mundo
ordinário, podendo, também, ocorrer a referência ao mundo disjunto, ou seja, ao mundo
situado à distância do momento da enunciação. No segundo caso, em que o sujeito
conceptualizador se caracteriza como observador, avaliador de experiências das quais não

4
Lembramos que a noção de mundos discursivos diz respeito ao domínio cognitivo de organização das
representações de mundos pelo sujeito e que se estruturam conceptualmente como esquemas textuais ou
seqüências textuais, conforme proposto por Bronckart e Adam.

1912
participa diretamente, o distanciamento entre bases de orientação para a escolha do argumento
e o sujeito tende a gerar uma argumentação mais autônoma que diz respeito a um mundo
disjunto.
O par de exemplos a seguir - Exemplos 1 e 2 - foi selecionado, intencionalmente,
tomando-se como critério a mesma tarefa que os motivou, de modo a que se facilitasse uma
análise comparativa dos textos, no que tange ao que identificamos, neste artigo, como atitude
epistemológica de experienciador e de observador, que correspondem, nesses termos, à
maneira de a criança angular os argumentos que compõem seu texto de opinião.

Tarefa (2) (Opinar sobre a idéia de se misturarem as turmas de 2a. série no ano seguinte)

Exemplo 1 Exemplo 2
Mudança de turma para a 3a. série Mistura de turma/mistura.
Os aspectos positivos de no ano letivo de
Eu acho muito ruim pois um 2002, misturar 3a. a,b e c serão fazer novas
dia eu fui achar a profa. Miriam no amizades.
2c e estava uma bagunça mais do Os negativos serão muitos, pois trocando de
que o 2A e também eu nunca quero turmas muitas crianças terão possibilidades
mudar dos meus amigos. maiores de ter problemas familiares e
(2a. série) escolares.
[14.2] (2a. série)
[3.2]

No exemplo 1, a criança constrói sua argumentação e as referências necessárias à co-


construção do sentido dos argumentos, a partir da perspectiva de um sujeito experienciador, à
medida em que constrói uma argumentação que estabelece uma vinculação direta e de
implicação com o mundo (eventos ou estados) sobre o qual a opinião é dada. Dessa forma,
firma-se, uma relação de conjunção entre mundos: o mundo sobre o qual se fala – construído
para a negociação da posição - é o mesmo mundo no qual a criança está inserida.
Diferentemente do exemplo 2, cuja argumentação se firma num mundo projetado,
futuro, a linguagem no exemplo 1 é usada para falar do mundo do aqui e agora. Indicadores
lingüístico-discursivos são usados pela criança para marcar sua atitude epistemológica: uso do
tempo verbal pretérito para um relato de experiência pessoal, utilizado como força de
argumento; uso de dêixis de 1a. pessoa; apoio excessivo a conhecimento partilhado, o que
autoriza o autor a fazer referências definidas ao mundo implicado e conjunto (... achar a
profa. Miriam,... no 2c..., dos meus amigos). No caso em questão pode-se afirmar que o autor
do texto coloca-se em posição on stage, frente aos argumentos que compõem sua opinião.
Em contraste, o autor do exemplo 2 apresenta atitude epistemológica de observador.É
apresentada uma argumentação de natureza objetiva, autônoma a partir da disjunção de
mundos, considerando-se o distanciamento entre o sujeito no mundo ordinário, em espaço e
tempo reais, no qual emite sua argumentação (ano letivo de 2001) e o mundo projetado,
contrafactual, num espaço e tempo futuros, sobre o qual se aplica sua argumentação (ano
letivo de 2002). Poderíamos, neste caso, reconhecer a posição off stage do sujeito (MUSHIN
2001, p. 8). A sinalização lingüístico-discursiva usada pelo escritor aprendiz para marcar tal
atitude epistemológica se dá através dos seguintes recursos: uso do tempo verbal futuro, uso
exclusivo de anáforas pronominais de 3a. pessoa, uso de referencialidade nominal de conteúdo
semântico genérico, reforçado pela flexão desses nomes no plural (por exemplo, muitas
crianças terão possibilidades maiores de ter problemas familiares e escolares), marcas que,

1913
no conjunto, registram o tom de objetividade e impessoalidade da opinião emitida a partir do
mundo projetado.
Comparando-se as duas formas de apresentar a opinião em cada um dos exemplos,
com as demandas cognitivas para sua construção, pode-se afirmar que o autor do exemplo 2,
constrói uma argumentação mais próxima do modelo escrito, em virtude do grau de
autonomia do contexto de produção.
Tomando-se (1) as fontes-base dos argumentos usados pela criança no corpus que
analisamos para a construção dos mundos ordinário e projetado (base factual e contrafactual);
(2) as coordenadas que definem o tipo de ancoragem na qual a criança se apóia para construir
as representações de mundos (conjunção e disjunção de mundos) e fazer referência às
entidades que os constituem (relação de implicação e de autonomia), e (3) na postura
epistemológica do escritor aprendiz frente aos argumentos usados na defesa de sua opinião
(experienciador e observador), buscamos elaborar a seguir um quadro que resuma a tipologia
proposta para a abordagem da natureza dos argumentos, e que registre as diferentes formas de
o escritor aprendiz se colocar frente à tarefa de produzir um texto de opinião.
O Quadro (1) que se segue, pretende demonstrar a configuração da argumentação do
escritor aprendiz, tomando-se como critério o cruzamento entre as quatro categorias
apresentadas, anteriormente, para descrever os procedimentos lingüístico-discursivos e
sociocognitivos utilizados na negociação dos argumentos pela criança: origem epistemológica
da argumentação, atitude epistemológica do sujeito, grau de evidencialidade da informação e
ancoragem enunciativa.

Constituição da natureza dos argumentos


ATITUDE
ORIGEM EPISTEMOLÓGICA GRAU DE
EPISTEMOLÓGICA DO SUJEITO EVIDENCIALIDADE ANCORAGEM
DA FRENTE AOS DOS ARGUMENTOS ENUNCIATIVA
ARGUMENTAÇÃO ARGUMENTOS
SELECIONADOS
Experienciador Grau maior Mais implicado e
direto ou indireto menor distanciamento menos autônomo
(participa dos fatos, entre o sujeito e a (eixo da situação)
eventos ou estado de origem do argumento
coisas) + subjetividade na Mais conjunto
representação do (eixo da
Argumentação de ON STAGE argumento referencialidade)
base Observador e Grau menor Menos implicado e
Factual avaliador (observa e maior distanciamento mais autônomo
avalia fatos, eventos, entre o sujeito e a (eixo da situação)
estados de coisas origem do argumento
situados espaço- + objetividade na Mundo conjunto ou
temporalmente no representação do disjunto (eixo da
mundo) argumento referencialidade)
OFF STAGE
Grau maior: Mais implicado e
Experienciador menor distanciamento menos autônomo
Argumentação de indireto entre o sujeito e a (eixo da situação)
base origem do argumento
Contrafactual + subjetividade na Mais disjunto
representação do (eixo da
argumento referencialidade)

1914
Grau menor: maior Implicação ou
Observador e distanciamento entre o autonomia
avaliador sujeito e a origem do (eixo da situação)
argumento
+ objetividade na Mundo disjunto
representação do (eixo da
argumento referencialidade)

Quadro (1)
É importante ressaltar que a disposição dos traços em células isoladas é meramente
didática e visa a facilitar a leitura do quadro; não significa, portanto, que a argumentação das
crianças se constrói, exclusivamente, sob uma única origem.
Considerando-se a complexa tarefa de argumentar por escrito, o vasto campo de
representações suscitadas pelos modelos cognitivos para a realização dessa ação de
linguagem, é de se esperar a pertinência no apoio à base factual e/ou contrafactual como
estratégia argumentativa de negociação de evidencialidade dos argumentos. O exemplo 3
ilustra o que acabamos de afirmar.

Exemplo 3: Tarefa (3) (Opinar sobre a atitude de Tiago com relação a seu cão pit bull)

1. A atitude de Tiago foi muito ruim sobre o Thor. Se eu fosse


2. ele eu prenderia ele em uma varanda, sem amarrar as
3. pernas nem as mãos.
4. Ou entam eu educaria ele como os outros cachorros.
5. O Tiago tinha que faser augoma coisa dessas como
6. prender no terraço ou em augo parecido.
7. O meu cachorro era muito maucriado agora eu brin-
8. co com ele eu adoro ele por isso ele esta mais
9. educado. Eu acho que todo cachorro merece brincadei-
10. ras com isso eles seram educados e não mecheram com
os desconhecidos. (2a. série) [19.3]

A leitura do exemplo 3 nos permite a seguinte análise: a criança constrói sua


argumentação a partir da articulação entre argumentos de base contrafactual (linhas 1 a 6 e 10
e 11), a partir do qual projeta um mundo do vir a ser, disjunto do mundo de representações no
qual produz sua argumentação; e de base factual (linhas 7 a 9), na qual representa o mundo
real, conjunto ao mundo sobre o qual age. No primeiro caso, a atitude epistemológica da
criança frente ao dito é de experienciador indireto, uma vez que se coloca como contraparte
da posição assumida por Tiago no mundo real. Ou seja, em virtude do papel que se lhe atribui,
a criança constrói sua argumentação a partir da representação de seu papel num domínio
cognitivo, sem correspondência direta com o mundo real, e nesse papel é capaz de se imaginar
na posição do outro (Se eu fosse ele eu prenderia...ou entam eu educaria ele...), o que justifica
sua caracterização como experienciador indireto. Nesse sentido, as linhas 1 a 4 se contrapõem
às linhas 7 a 9, nas quais a criança se coloca como experienciador direto, numa relação de
implicação com o dito e com o tempo da enunciação (O meu cachorro era muito maucriado
agora eu brinco com ele...).
O resultado dessa construção é um grau maior de evidencialidade do argumento,
marcado lingüisticamente por uma seqüência textual própria de relato de experiência pessoal,
o que atribui status de autoridade à argumentação: este argumento é confiável, porque eu

1915
passei por tal experiência e tenho autoridade para opinar sobre, frente a qual o sujeito se
coloca como autor e responsável. No que respeita às linhas 10 e 11, seguindo ainda as
orientações do quadro (1), o sujeito se coloca como observador, avaliador, ressaltando-se o
distanciamento e a objetividade do argumento final que destaca a autonomia do argumento
com relação ao mundo da situação de produção.
O mapeamento lingüístico do que acabamos de caracterizar (linhas 1 a 6, e linhas 10 e
11) se dá, principalmente pelo uso do tempo verbal no futuro do pretérito e no futuro do
presente para a projeção de mundos, em contraposição ao tempo verbal no pretérito usado
para marcar lingüisticamente a seqüência narrativa do relato; o uso de dêixis de 1a. pessoa e a
preferência por referências através de anáforas pronominais para marcar implicação e
subjetividade, e a preferência por anáforas nominais através do uso de referência nominal de
conteúdo semântico genérico para marcar objetividade do argumento.

8. Algumas conclusões preliminares

A investigação sobre a aquisição e desenvolvimento do discurso argumentativo escrito


pela criança é relativamente recente nos meios acadêmicos. Sua ausência tem sido também
registrada nas práticas de letramento nas primeiras séries do ensino fundamental, sob a
alegação da complexidade cognitiva dessa ação de linguagem. Em decorrência disso,
corremos o risco de avaliar a competência discursiva da criança para o argumentar, na
perspectiva da deficiência e inadequação, uma vez que o único parâmetro proposto e
disponível para análise é o modelo adulto do argumentar. Nosso objetivo com essa pesquisa
em andamento é destacar a relevância de estudos sobre tipos e gêneros textuais que
ultrapassem o nível da descriçao da configuração da estrutura textual das produções escritas,
para chegar a uma abordagem que explique a natureza cognitiva, social, pragmática e
lingüístico-discursiva da construção do conhecimento de gênero pela criança. As análises nos
revelaram que, mesmo sem aprendizado formal na escola, a criança é capaz de construir para
si uma versão própria do modelo argumentativo, por apoio a modelos prototipicamente
construídos e por convívio com a diversidade de gêneros disponíveis no intertexto. Tal
conhecimento construído na interação lhe permite recorrer a estratégias bem sucedidas de
produção textual para negociar posições e fazer valer sua opinião.

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