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Esse espaço deveria conter os dados da editora e
outras informações relativas a obra. No entanto, esta é
uma obra produzida de forma totalmente independente
pela própria autora do livro. Ou seja, por mim! Prazer em
ter você aqui :)
Essa nova versão atualizada é uma comemoração aos
5.000 exemplares vendidos. Além de escrever minhas
histórias, eu também cuido de cada detalhe e empreendo
para que esse livro chegue com muito amor até você.
Esse livro não está a venda em livrarias. A venda dele é
feita somente pela lojinha online no meu website,
diretamente comigo em algum dos meus
eventos/encontros pelo mundo ou de alguma outra
maneira criativa que encontramos para fazer com que
ele chegue até meus leitores.
Cada vez mais será comum a compra de livros
diretamente pela internet. O mercado literário tradicional
passa por grandes desafios e optei pelo caminho
independente porque ele me deu liberdade criativa para
ser eu mesma e não depender do interesse de terceiros
para colocar minhas histórias no mundo.
Gostaria que você soubesse que seu apoio ao
comprar esse livro ou simplesmente multiplicá-lo para
mais pessoas significa muito para mim. Você está
apoiando uma escritora independente a realizar o sonho
de viver da sua arte. A internet e as novas tecnologias
estão permitindo cada vez mais que novos escritores
tenham a oportunidade de compartilhar suas histórias e
chegar até mais pessoas.
Obrigada pela confiança e pelo carinho, te desejo
uma ótima leitura!

Copyright © Letícia Mello, 2019


Todos os direitos reservados.

Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer


meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de
gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra
é de inteira responsabilidade do autor.
Sumário

1. Veja o invisível, acredite no inacreditável,


conquiste o impossível

2. Optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do


mesmo

3. Segue seu coração

4. Moreno, esse terreno é perigoso

5. Você não é todo mundo

6. Se você não está disposto a arriscar, esteja


disposto a uma vida comum (Jim Rohn)

7. O meu desejo de partir se completa muito bem


com o meu medo de amar

8. Eu tinha vindo de muito longe para viver


exatamente isso: o desconhecido

9. A professora nova que parecia vinda de outro


planeta

10. No good

11. Que mais consciência seja dada às pessoas que


habitam esse planeta.

12. Tanto o bem quanto o mal são necessários ao


todo (Jostein Gaarden)
13. Teacher Lê

14. Eu era livre

15. Você vive ou sobrevive?

16. Progresso em sala de aula

17. Agricultores e Policiais

18. Vivendo como uma local

19. O ocidente encontra o oriente

20. Atravessei o mundo para estar aqui

21. Toda noite de festa na Tailândia termina em


Karaokê

22. Eu tinha vontade de chorar toda vez que ele


sorria para mim

23. As minhas despedidas são a celebração de tudo o


que vivi

24. A falta de dinheiro me leva a viver aventuras que


o dinheiro não compra

25. Cada viagem deveria ser uma experiência ímpar

26. De novo, não!

27. Meu mundo de certezas dE ponta-cabeça

28. Mais amigos que eu deixaria para trás, com a


incerteza de um futuro reencontro

29. Bangkok, uma relação de amor ou ódio


30. Praticamente tudo na fronteira era falso,
incluindo os próprios policiais…

31. Realizando o sonho de conhecer uma terra que


parecia tão distante

32. Você conhece a lei do viajante?

33. Um paraíso na terra

34. Eu queria uma causa que realmente tocasse em


mim

35. A minha conexão com a dor e a alegria do povo


cambojano

36. O que eu estava fazendo ali?

37. "Eu sou uma criança diferente das outras"

38. Vamos construir uma casa

39. O plano é não ter plano

40. A Casa da Esperança

41. Os cenários reais que foram palco dessa tragédia


cambojana

42. Cruzando o Vietnã do Sul ao Norte

43. O tufão Nari havia chegado

44. Eu sabia que ela estava orgulhosa de mim

45. Mais uma vez, eu tinha a clara sensação de estar


aprendendo muito mais do que ensinando
46. Toque de recolher na capital comunista

47. Meu coração me pedia para ficar

48. A vida é feita de lugares e pessoas

49. Um dia eu voltaria

50. Para cada tristeza uma alegria

51. A minha imagem refletida no espelho

52. O que vivemos aqui, poucas pessoas viverão em


uma vida inteira

53. O meu projeto de vida

SIM, É POSSÍVEL…

Notas
“A minha eterna gratidão a todas as pessoas
que acreditaram nesse projeto junto comigo,
desde o princípio, quando tudo ainda era um
mero sonho! Ele é feito de pessoas incríveis e
de muito amor.”
1. Veja o invisível,
acredite no inacreditável,
conquiste o impossível

Em menos de 24 horas da minha chegada a Bangkok, eu


já estava na delegacia tailandesa, aos prantos. Eu nunca
havia sido furtada, mas nunca imaginei que a primeira
vez ocorreria no primeiro dia de uma viagem de um ano,
sozinha, pelo Sudeste Asiático. Sem passaporte, dinheiro
ou cartão de crédito, eu estava mais próxima de me
autodeportar do que de continuar qualquer plano de
voluntariado como professora de inglês por terras
carentes. Eu vim até aqui com as melhores intenções e
não estava achando nada justa essa recepção tailandesa.
Afinal, alguém vir pelas suas costas enquanto você
caminha pela área mais turística da cidade e cortar a sua
bolsa silenciosamente para retirar a sua carteira lá de
dentro, estava longe de qualquer expectativa para o meu
primeiro dia.
Talvez todas aquelas pessoas que me disseram (ou
pensaram) que uma garota sozinha, loirinha, de 24 anos
– mas com jeito de 19 – não deveria se achar capaz de
fazer uma viagem dessas, estivessem certas.
O melhor que eu poderia fazer era resolver a situação
o mais breve possível. Então, respirei fundo, enxuguei as
lágrimas e me lembrei de que tudo acontece por alguma
razão e comecei os procedimentos. Fiz o boletim de
ocorrência com direito a uma foto parecida com aquela
que os criminosos tiram antes de serem presos,
segurando uma placa com meu nome, dados e motivo da
ocorrência. Confesso que, nessa hora, meu estado de
humor mudou, afinal, essa seria uma foto que poucos
turistas tirariam em Bangkok. Cancelei os meus cartões
de crédito e descobri que só poderia ir a Embaixada
Brasileira no próximo dia, já que hoje era domingo.
Cogitei a hipótese de dormir na delegacia, uma vez que
seria bem difícil sair dali sem nada de dinheiro.
Mas, mexendo no meu bolso, eu achei 300 baths e me
lembrei que, quando estava desesperada e chorando no
meio daquela muvuca tailandesa com pessoas do mundo
inteiro tentando encontrar seu caminho em meio a
barracas de comida a céu aberto, cachorros famintos,
cheiro de frutas exóticas misturado a frituras, alguns dos
tailandeses que estavam trabalhando naquelas barracas
de rua juntaram um pouco de dinheiro cada um e me
deram. Meus pais sempre me ensinaram a negar e
agradecer esse tipo de gentileza. Naquele momento eu
não pude fazê-lo, pois eu realmente precisava de ajuda,
e ver que aquelas pessoas simples, que trabalham duro
para dar sustento as suas famílias, foram os que me
ajudaram, me deu força para acreditar que tudo ficaria
bem. Agradeci da melhor maneira que eu pude e pedi
aos céus que abençoasse essas pessoas.
Então agora eu tinha 300 baths, o que equivalia a
aproximadamente 9 dólares que deveriam ser gastos
com cautela. Era final de junho de 2013, época de muita
chuva na cidade, mas fazia um sol quente que, agregado
à umidade super alta, tornava impossível fazer
matemática do lado de fora. Sentei em um banco na
delegacia mesmo e fiquei fazendo cálculos. Enquanto
isso, vi um menino loiro que deveria ter mais ou menos a
minha idade passando pelo mesmo procedimento que eu
acabara de passar. Olhei para ele e perguntei em tom de
empatia:
“Oi! E aí, qual a sua história?”.
“Estava em um bar ontem à noite e não me lembro de
mais nada. Acordei hoje deitado em um banco sujo, na
frente de um hospital, sem meu celular e o dinheiro que
eu tinha”.
“Já verificou se está tudo bem com você? Sabe que
tem muito lady boy[1] por aqui, né?”.
Ele riu, meio descrente do que havia acabado de
escutar.
“Já verifiquei tudo. Intocável.”. – respondeu ele, em
tom de deboche, à minha piadinha infame.
Foi assim, na delegacia, que fiz a primeira amizade da
minha viagem. Doug era um cara muito tranquilo, de
sorriso doce e sincero, um alemão que já havia sido
obeso e hoje tinha um porte de atleta. Essa
transformação fez com que ele acreditasse que tudo o
que ele quisesse seria possível. Por isso, viajava por
terras desconhecidas, para realizar um sonho antigo que
antes o menino gordinho se encarregava de afundar
junto com cada guloseima que devorava. Era uma
pessoa serena, mas determinada e isso nos uniu em uma
irmandade de três dias.
Saímos da delegacia amigos até no Facebook das
pessoas que trabalhavam lá! Pegamos carona com o
carro da polícia que nos levou aos nossos respectivos
hostels para buscarmos nossas malas e, com calma, eu
consegui achar um cartão de crédito que estava
escondido na outra mochila. Adorei passear por Bangkok
no carro da polícia! Dividimos um quarto xexelento com
duas camas horríveis em um hotel indiano na Khao San
Road, a meca dos mochileiros em Bangkok. A opção de
saque estava indisponível no meu cartão e levou algum
tempo até eu conseguir que o meu banco no Brasil a
liberasse. Enquanto isso, eu pagava o que era possível
com o cartão de crédito e o Doug me dava a parte dele
em dinheiro. Assim, eu conseguia juntar os baths que eu
precisava para sobreviver e ele conseguia economizar
para reverter o que havia perdido.
Naquela mesma noite, sentamos em um restaurante
lindo na beira do rio, comemos fried rice — arroz frito
com legumes —, que veio cuidadosamente servido em
um abacaxi cortado pela metade, e bebemos Chang,
uma das cervejas locais, para comemorar a vida e suas
reviravoltas. Mal sabia que essa seria uma das poucas
vezes, nos próximos meses, na qual comeria em um
restaurante como esse. Eu e o Doug tínhamos tudo para
fazer um miojo no hotel e beber água, mas resolvemos
nos conectar com a abundância e festejar o que
tínhamos ao invés de chorar as perdas.
Conversamos de tudo, mas o assunto principal era a
troca de experiências sobre nossas viagens. A conversa
ficou ainda mais interessante quando descobri que ele
havia passado um ano e meio na Austrália, o meu país de
coração, onde também já morei por algum tempo.
Estávamos muito felizes de ter encontrado um ao outro
no meio a um momento tão delicado. A chance de você
se tornar melhor amigo de alguém enquanto mochila por
algum país é maior do que com qualquer pessoa que
more no seu quarteirão. Existe uma conexão quase que
imediata de quem está na estrada, ainda mais de quem
se encontra em uma delegacia.
No dia seguinte, consegui ir até a embaixada para
entrar com o pedido de um novo passaporte. Eu não
esperava que teria de pagar pelas fotos e, como meu
dinheiro estava contado, eu percebi que não teria
dinheiro suficiente para voltar para o hotel. Contei cada
moeda com a esperança de achar uma a mais, mas
somei 80 baths e o táxi na vinda tinha me custado 120.
Normalmente, eu já teria pego um ônibus cheio de locais
e me aventurado pela cidade, mas acho que ainda
estava um pouco em choque e preferi pegar o táxi
mesmo.
Vou de táxi até o taxímetro dar 80, depois eu desço e
vou andando.
Quando o taxímetro mostrou 70 baths, eu pedi para
que o motorista parasse. Ele não falava nada de inglês e
não entendia o que eu falava: afinal, eu havia mostrado o
endereço de onde eu precisava ir e ele, como um bom
taxista, tinha a missão de me deixar lá. Fui ficando
apreensiva, visto que, em breve, o taxímetro marcaria
80. Comecei a fazer gestos. Peguei a minha bolsa,
coloquei a mão dentro e demonstrei que alguém tinha
pego minha carteira. Fiz um não seguido daquele roçar
de dedos do dedão e do indicador, mas eu acho que em
tailandês isso não significa dinheiro, porque ele
continuava com cara de desconfiado olhando para mim.
Tive uma ideia. Peguei todas as moedas que eu tinha,
mostrei para ele e fiz gestos como quem diz “isso é tudo
que eu tenho”.
O taxímetro já marcava 90. Ele ignorou aquela
branquela esquisita que não parava de fazer sinais
inteligíveis e continuou viagem. Eu desisti e pensei que
com sorte eu poderia pedir emprestado na recepção do
hotel ou algo do tipo, já que eu sabia que o Doug não
estaria lá. Chegando próximo ao hotel, ele parou o táxi, o
taxímetro mostrava 130 e eu, muito sem jeito, mostrei
novamente todas as moedas, com vergonha em não ter
o valor total da corrida e meio desanimada com as
minhas tentativas de mímica frustradas. Para a minha
surpresa, ele pegou todas as moedas e me devolveu uma
de 25, sorrindo, fazendo um gesto de que estava tudo
resolvido. Eu estava incrédula. Diferentemente daquela
primeira vez em que os comerciantes me ajudaram,
agora eu já sabia falar “Obrigada” em tailandês e repeti
umas dez vezes “Kokunka” (o que está longe de ser a
pronúncia correta), e me despedi do meu taxista
sorridente.
Eu estava em êxtase pelo que tinha acabado de
acontecer e muito agradecida por todas as coisas
positivas que tinham se sucedido do que, inicialmente,
parecia uma tragédia. Naquele mesmo dia, eu reparei na
tatuagem do Doug que dizia “See the invisible, believe
the incredible, achieve the impossible”. A sensação era
de que eu havia chegado em Bangkok há muito mais
tempo do que somente esses dois dias e era
inacreditável tudo o que já havia acontecido. Por um
momento, me lembrei daquela garota cheia de sonhos e
medos que, apenas quatro meses antes do início dessa
viagem, se sentia perdida no meio no qual estava
inserida e eu seria sempre grata a ela, pela coragem de
partir e de se permitir viver a sua (nossa) verdade.
2. Optando por ficar,
estaria apenas vivendo
mais do mesmo

Era metade de fevereiro de 2013, o Carnaval tinha


chegado ao fim, o que anunciava o final da temporada de
verão em Balneário Camboriú, conhecida por muitos
como um pequeno paraíso na terra e rodeada de praias
belíssimas, festas de qualidade e pessoas bonitas. Essa
pequena cidade litorânea no estado de Santa Catarina
tem espaço para todos: é possível surfar pela manhã e ir
ao hip hop descontraído à noite ou, para os mais
vaidosos, sair de lancha durante o dia para, depois,
gastar rios de dinheiro em alguma balada. Além do mais,
é uma cidade universitária, motivo pelo qual eu havia
morado ali por cinco anos com o objetivo de me divertir
muito, ao mesmo tempo em que me formava em Turismo
e Hotelaria.
Eu estava constantemente indo e voltando, o que
tornava a minha localização geográfica sempre uma
incógnita. No ano anterior eu havia me arriscado em um
novo emprego na cidade de Maringá, onde trabalhei
como apresentadora de um pequeno programa de TV
sobre viagens, fiz viagens únicas pelo Brasil e pelo
mundo, mas a minha incapacidade em fingir ser algo que
eu não sou me fez desistir do falso glamour daquele
emprego e me demiti. A temporada do verão 2012/2013
estava prestes a começar, então embarquei com todos
os meus pertences em um ônibus que me traria de volta
a Balneário Camboriú onde poderia trabalhar com
eventos e divulgação de marcas. Assim que cheguei na
cidade, consegui fechar um contrato muito bom com
uma marca de champagne e passei a temporada toda
frequentando lugares super badalados, com a única
missão de conhecer pessoas, sorrir e divulgar a marca.
Eu precisava juntar uma grana e nem eu sabia para quê.
Trabalhei a temporada toda com a Juliana, que, em pouco
tempo, se tornou minha parceira para todas as horas.
A Ju parece uma sereia, com a pele branquinha, o
cabelo perfeitamente ondulado e o olho azul claro. Por
onde ela passava, chamava a atenção, ainda mais
quando íamos trabalhar de Fusca prateado – um fusca
turbinado que meu pai tinha modificado, mas que estava
parado em Curitiba. Como eu não tinha carro, ele
desapegou dele e deixou que o usássemos durante a
temporada. Com muitas risadas e música alta, eu e a Ju
enfrentamos os dias quentes de verão nos locomovendo
de um evento para o outro no querido Fuscão.
Outros trabalhos de divulgação foram surgindo e eu
acabava emendando um no outro para poder fazer uma
grana extra. Como sempre, eu acabei trabalhando muito
e, ao final da temporada, eu estava exausta.
Nesse momento, eu me encontrava cansada
fisicamente e psicologicamente. Por mais divertido que
fosse, eu me sentia perdida naquele meio e, mais do que
isso, eu estava me cansando das pessoas que eu
encontrava, porque elas geralmente vinham
acompanhadas de conversas previsíveis e vidas com
roteiros pré-definidos. Eu não as julgava, mas tinha medo
de me tornar uma delas. Foi em Balneário Camboriú que
eu tive a oportunidade de ter acesso a muitas coisas que
a maioria das pessoas passariam uma vida toda tentando
alcançar. E foi ali também que rapidamente eu percebi
que aquela “felicidade comprada” não significava nada.
Eu já havia cortado meus laços com a cidade alguns anos
antes, quando meu pai estava precisando de dinheiro e
concordamos que ele podia vender o apartamento onde
eu morava e o meu carro, o Monstrinho, assim apelidado
por ser uma 4x4 antiga que aguentava tudo. O que eu
fiz? Fui pra Austrália com o desejo de fazer um Master
em jornalismo e nunca mais voltar. Nunca diga nunca.
Acabei voltando por causa do tal trabalho de
apresentadora em Maringá. E, entre idas e vindas, ali
estava eu novamente.
Agora que meu contrato havia acabado, eu não queria
recomeçar nenhum projeto naquela cidade. Não me
entenda mal: o problema não era a cidade em si, mas o
fato de que eu, optando por ficar, estaria apenas vivendo
mais do mesmo. Eu não me via mais ali. O meu ciclo
naquele lugar tinha chegado ao fim.
Esvaziei a kitnet que dividia com meu primo, coloquei
o pouco que eu tinha no carro e parti. Eu teria tempo
para refletir melhor enquanto dirigia.
3. Segue seu coração

Eu nunca gostei dessa necessidade que as pessoas têm


de definir tudo. Você precisa ter uma resposta específica
para sua profissão, religião, de onde veio, aonde mora,
status de relacionamento e por aí vai. Isso tudo porque
existe a necessidade de se colocar cada pessoa em uma
caixinha identificada, tornando o processo de
autoconhecimento ainda mais intrincado. No entanto
estamos falando de pessoas e não de objetos inanimados
nos quais colam e descolam etiquetas de identificação
como os convém. Estamos todos em constante
transformação (ou, pelo menos, deveríamos). Todos
querem respostas, certezas e conceitos que, no fundo,
são inúteis e rasos.
Nesse momento, eu sentia essa cobrança, que, na
verdade, não vinha especificamente de ninguém que eu
pudesse nomear: vinha do todo, da sociedade, da
televisão, do Instagram, da revista, do vizinho, do ex-
colega de escola que, sem querer, você acaba
trombando na rua. Mas ela vinha ainda mais forte de
mim mesma. Eu me cobrava pelo fato de não ter
resposta a praticamente nenhuma dessas perguntas.
Não, eu não tinha uma profissão. A minha religião? Eu
acredito no bem. Nem me pergunte onde eu moro,
porque isso é relativo. A minha casa é onde eu estou
agora. Status de relacionamento? Recebendo mensagens
no celular de um moreno lindo que conheci no carnaval e
que mora a milhas de distância.
Por que eu tinha que ser tão complicada? Durante a
minha vida inteira, eu vi adultos bem vestidos se
encontrando e educadamente trocando essas perguntas
e respostas de forma concisa. Falando da carreira, dos
bens materiais adquiridos, dos filhos e da decoração da
casa de praia. E, agora que tinha chegado a minha vez,
eu estava assustada por não ter nem sequer a vontade
de ter essas respostas.
Eu nasci no interior do Rio Grande do Sul no dia 4 de
novembro de 1988. As minhas maiores lembranças de
infância envolvem uma bola de futebol, um rio na casa
da minha avó materna e uma energia incalculável para
fazer bagunça. Meus pais dizem que eu parecia um
menino e, desconfio que depois que eu nasci, resolveram
que apenas uma criança já daria trabalho o suficiente.
Foi assim que eu me tornei filha única. Eles eram recém-
casados e meu pai, engenheiro eletricista recém-
formado. Esses fatores fizeram com que nos
mudássemos com muita frequência toda vez que surgia
uma oportunidade melhor de trabalho. Lembro-me de
ajudar minha mãe a encaixotar o pouco de pertences que
tínhamos e entrar no carro, sedenta por mais uma
aventura. Eu sabia como ninguém embrulhar copos com
jornal e identificar caixas escrevendo frágil com um
canetão. Aos 10 anos, eu já havia morado em dez casas
e em seis cidades diferentes no Rio Grande do Sul e em
Santa Catarina. Ao todo, estudaria em mais de oito
escolas, muitas vezes começando o ano letivo em uma e
terminando em outra.
Aos 12 anos, fizemos a maior mudança de todas. Meu
pai havia conseguido um trabalho muito bom em
Curitiba, capital do Paraná, e foi para lá que nos
mudamos. Quanto mais longa a viagem de carro, mais eu
gostava, pois lia meus gibis, escutava música e ficava
olhando pela janela. Até hoje, as longas viagens me
alegram. Lembro-me do meu deslumbramento ao chegar
naquela cidade tão diferente daquele interior que eu
estava acostumada. Como a viagem era longa e seria
muito custoso fazer uma mudança, levamos apenas o
que coube no carro. Por isso, passamos alguns dias muito
divertidos dormindo em um colchão no chão e usando a
tábua de passar roupa como a nossa mesa de café da
manhã, até que, aos poucos, fomos comprando o que era
necessário. Quanto mais tínhamos, menor era a diversão
e o uso da nossa criatividade.
Apesar de gostar mesmo de pescar no rio e me sujar
no banhado, eu me acostumei facilmente com a piscina
que tinha no prédio. Era a primeira a chegar e a última a
sair. Eu sempre tive paixão pela água, especialmente
pelo mar. Nas férias, quando não íamos para a casa da
minha avó materna no interior, íamos para a casa de
praia dos meus avós paternos em Tramandaí. O mar me
fascinava. Gostava quando meu pai me colocava na
garupa dele e me levava até o fundo. Eu ficava de pé nos
seus ombros, ele me impulsionava e eu voava lá de cima,
naquela água salgada. Repetia isso inúmeras vezes até
ele cansar e me convencer a pegar a prancha de isopor
quebrada ao meio. Então, eu ia brincar no raso.
Meus pais sempre me incentivaram a fazer o que eu
gostava e o maior conselho que eu recebi era “Segue seu
coração”. Me criaram de forma muito independente e
sempre falaram que filhos são criados para o mundo. Só
não imaginavam que eu levaria a expressão tão ao pé da
letra.
Para resumir a minha vida cigana, já no primeiro ano
da faculdade, eu fui trabalhar de salva-vidas, camareira e
recolhedora de pratos nos EUA, porque queria melhorar o
meu “to be”. Cheguei a trabalhar 90 horas por semana e
contrariei a minha família com a decisão de trancar o
meu curso na faculdade, para ficar sete meses ao todo.
Fiz isso para realizar o sonho do meu primeiro mochilão
sozinha no Hawaii e na Califórnia e, também, para pagar
os custos da viagem de volta para o meu pai. Sobrevoar
sozinha o Hawaii aos 18 anos foi um dos momentos que
definiriam a minha vida como viajante.
Da janela, eu via um tom de azul que até então só
existia nas revistas e nos meus sonhos. Jamais imaginei
que realizaria esse sonho tão cedo na minha vida. E foi
ali, enquanto via as ilhas do Hawaii, que eu entendi que
tudo o que eu quisesse realizar na vida seria possível.
Movida por esse sentimento, algum tempo depois, eu
morei com uma família no Peru, fiz meu estágio final da
faculdade na Nova Zelândia e morei na Austrália.
Vira e mexe, quando alguém me pergunta de onde eu
sou, eu respondo com um sorriso no rosto: “De lugar
nenhum. E você?”. Os mais bem-humorados levam na
brincadeira, mesmo que sem entender. Outros, acham
até ofensivo. Eu não falo isso para ofender ninguém. Na
verdade, essa é a resposta mais sincera que eu posso
dar, porque é exatamente assim que eu me sinto. Eu não
criei raízes geográficas em lugar nenhum, as minhas
raízes estão apenas naquela garota baixinha, loirinha e
magrela que, quando minha mãe brigava porque estava
suja ou porque deveria ir para dentro de casa, pedia do
fundo do coração: “Mãe, deixa eu ser feliz”. Essa
garotinha sempre precisou de muito pouco para ser feliz
e é ela que eu carrego comigo como referência de quem
eu sou e de onde eu vim.

...

Eu acabara de estacionar o carro na garagem do


prédio dos meus pais em Curitiba. Havia percorrido os
230 km de viagem em pouco mais de 2 horas. A estrada
estava vazia e poder pisar no fundo do acelerador
enquanto dirigia anestesiava os meus pensamentos. Eu
pensava muito e me questionava ainda mais.
Atualmente, meus pais moram em Brasília e, para a
minha sorte, o apartamento deles estava desocupado e
eu tinha as chaves. O carro estava abarrotado com a
minha mudança. Não que eu tivesse muita coisa, mas
porque eu tomei essa decisão de forma precipitada. No
calor do momento, enfiei tudo como eu pude no carro,
que pedi emprestado para o meu primo, já que eu não
arriscaria colocar o Fuscão na estrada.
Respirei fundo, analisei a situação e concluí que era
positiva. Afinal, toda a minha parafernália cabia em um
carro pequeno e eu desfrutava da liberdade de ir para
onde eu bem entendesse. E se tinha uma coisa que eu
valorizava era a liberdade. Subi com toda a minha tralha
pelas escadas até o quarto e último andar. Por ser um
prédio antigo, não tem elevador. Larguei tudo na sala,
retomei o fôlego e andei lentamente pelo apartamento,
curtindo a sensação de me sentir em harmonia ali,
naquele lugar em que morei por tantos anos com meus
pais. Ali, eu estava segura para ser quem eu era, sem os
olhos do mundo a me questionar.
4. Moreno,
esse terreno
é perigoso

Eu estava com uma viagem marcada para visitar uma


amiga no Rio de Janeiro. Essa amiga era a Thati, eu a
conheci quando morei na Austrália e o seu jeito
descolada e de espírito viajante fez com que nossa
amizade perdurasse. Combinamos que, assim que o meu
trabalho de temporada acabasse, eu voaria para
conhecer a tal da Cidade Maravilhosa. Sim, apesar de já
ter viajado para diversos lugares, vergonhosamente eu
ainda não conhecia o Rio.
Bom, lembra do meu status de relacionamento? O tal
moreno das mensagens era do Rio também e achei que
seria uma boa deixa para encontrá-lo, aproveitando que
a paixão da nossa semana juntos em Balneário ainda
estava acesa. Eu sabia que as chances desse romance
subir a serra eram baixíssimas e foi justamente por isso
que eu apostei nele. Se tinha uma coisa na qual eu era
boa, era isto: me envolver com muita intensidade, mas
sem me apegar. Gostava de histórias intensas e curtas.
Se alguém fosse visivelmente um candidato perfeito a
futuro marido, adivinha? Eu corria fora. Caso contrário,
eu ficava só para brincar com o fogo e ver ele apagar.
Pode soar um pouco malvado da minha parte, e talvez
até fosse, mas esse lance de se envolver não era
compatível com meus sonhos de viagens.
“Oi, Lele. Quando vou te ver de novo?”. – As letras
brilharam em forma de uma pergunta despretensiosa na
tela do meu celular velho.
“Sexta-feira, às 8 horas da noite, estou
desembarcando no Rio” – Confesso que eu gostava de
causar impacto.
Eu, que era acostumada a chegar sozinha nos lugares
para os quais eu viajava, bem que gostei de ver um
moreno alto, de barba malfeita, bem-vestido e com um
sorriso lindo no rosto me aguardando assim que eu
cheguei no meio fio da área de desembarque. Ele me
beijou, colocou minha mala no porta-malas e entramos
no carro. Me deu um alivio quando vi que o carro dele era
como o de qualquer ser humano normal. Eu não me
sentia confortável em carros luxuosos: primeiro, porque
sempre tem botões demais e eu não sei o que fazer com
eles, e segundo, sei lá, pra que um ser humano necessita
de algo tão luxuoso para se locomover dentro de uma
cidade caótica?
Confesso que estava um pouco nervosa, afinal, eu
tinha conhecido ele em uma das festas de Balneário
Camboriú três semanas atrás e, agora, estava sentada
no carro dele, em outra cidade completamente diferente,
que, diga-se de passagem, não era muito conhecida pela
sua segurança. Eu e essa minha mania de confiar nas
pessoas. Mas deixa eu explicar porque eu resolvi confiar
no moreno.
Naquele dia em que nos conhecemos, eu estava
trabalhando na organização da entrada VIP da balada.
Meu turno acabava às 3 horas da manhã, quando,
supostamente, todos já deveriam ter entrado. Eu tenho
uma grande amiga que se chama Thata (que, assim
como a Thati, eu conheci na Austrália) e ela tinha vindo
de São Paulo para passar o carnaval comigo. Na hora
combinada, ela apareceu para eu liberar a entrada dela e
para curtirmos o que restava da festa. Estávamos
conversando com um grupo de garotos que eu conhecia,
quando, de repente, eu vejo uma pessoa mais ao fundo
fazendo gestos estranhos.
Olhei para os lados, desconfiando de que não era
comigo. Ele fazia gestos como quem diz: “Para de falar
com ele e vem aqui”. No mínimo, intrigante. Analisei
aquela cena estranha já com uma risada de canto e
perguntei pra Thata: “Ele tá falando comigo?” E minha
companheira de festas, que já estava alguns copos de
vodca mais animada que eu, concluiu rapidamente:
“Claro, sua boba! E ele é um gato”.
Concluí que ele deveria ser mudo e segui a festa. A
conversa continuou até que resolvemos dar uma volta.
Numa dessas voltas, a minha amiga e companheira
descolou um gringo engraçadíssimo para treinar o inglês
dela: ela, interessada no inglês, e ele, nela. Estávamos
caminhando juntos e o gringo tentava puxar a Thata pra
longe e, nesse empurra-empurra, eu dou de cara com o
moreno gato dos sinais. Comecei a rir imediatamente.
Vendo uma loirinha rir para ele, o moreno veio reto em
minha direção. Para completar a cena, minha amiga diz:
“Beija, ele é gatinho”, e o gringo a levou para longe. Eu
fiquei ali, sozinha, olhando para o moreno e muito, mas
muito sem graça.
“Oi, quer tomar um drink comigo no bar?”. – Foi assim
que eu descobri que ele não era mudo.
Assim nos conhecemos. Ele me pagou uma Smirnoff
Ice e conversamos por quase duas horas no bar. Ele me
contou que havia voltado recentemente de um período
de três anos morando em Nova York.
“Eu era treinador de futebol de meninas de 9 a 12
anos. Adoro trabalhar com crianças, foi uma experiência
muito boa”.
Boom!! Percebi que ele estava querendo me
conquistar com esse papo mole de eu adoro criancinhas.
“Na verdade, eu tenho planos de voltar pra Nova York.
Já que você gosta de viajar, você poderia ir comigo pra
lá, né?”
Isso já era golpe baixo demais. Ele era do tipo jogador
nato, daquele que não se importa de conquistar. Sabendo
disso, resolvi entrar no jogo.
“Claro, eu não conheço Nova York. Quando vamos?”.
Para minha surpresa, ele se aproximou, olhando no
fundo do meu olho e me beijou. Eu odeio alguém que
joga esse jogo de romance melhor do que eu. E vi, ali,
um competidor a minha altura.
Ele era de fora e estava na cidade para curtir. Podia
ver na maneira como os amigos dele olharam para mim,
como quem analisa se eu valia 1 ou 2 pontos na
contagem daquela noite. Eu nunca fui muito menininha e
por isso sempre convivi muito bem com o sexo
masculino. Acho eles mais práticos e menos dramáticos.
Eu havia passado vários anos da minha faculdade
curtindo e sabia muito bem como era bom estar com
minhas amigas sem se importar com mais nada. Mas
agora eu estava em um outro momento e resolvi
respeitar o momento dele.
Mas, para minha surpresa, recebi mensagem do
moreno todos os dias. Não que eu ache que tenha sido a
única, mas pelo menos deveria estar tendo uma
prioridade alta na lista. Ele só tinha mais uma semana na
cidade e acabamos nos encontrando todos os dias.
Passamos o nosso último dia juntos e, à noite, ele me
chamou para uma festa com os amigos dele, que seria a
festa de despedida, pois, no outro dia, eles embarcariam
de volta para o Rio. Eu agradeci o convite, dei uma
carona pra ele e o deixei na entrada da festa.
“Aproveita com seus amigos. É a última noite de
vocês.”
E foi assim que deveria ter acabado essa história de
carnaval. Mas, agora, eu estava dentro do carro dele no
Rio de Janeiro. Falando nisso, já fazia quase uma hora
que havíamos deixado o aeroporto e o caminho estava
começando a ficar suspeito. Parecia que estávamos no
interior: era escuro, as ruas esburacadas e estreitas.
“Você se perdeu?”. – Perguntei, com cara de
desentendida.
“Na verdade, não. Mas resolvi te trazer em um lugar
que eu sempre quis conhecer, mas nunca tinha tido a
companhia que me fizesse sentir que valia a pena vir até
aqui”.
Sorri como quem acha fofo, enquanto pensava: “Não
cai na dele, isso tudo é papo furado pra te conquistar.”.
“Eu só sei chegar até aqui. Agora preciso ligar pro
meu primo”.
Eu não sou uma pessoa muito medrosa, mas confesso
que fiquei um pouco desconfiada. Ele falou ao telefone
com quem eu esperava ser realmente o primo dele e não
o porteiro do cativeiro. Quando ele desligou, repetiu em
voz alta:
“Conta seis lombadas e vira à esquerda. É uma
entrada estreita entre dois muros”.
Meu espírito aventureiro gostou da descrição e eu
acabei relaxando. Contamos juntos as lombadas de terra
e realmente havia uma entradinha quase imperceptível
depois da lombada de número seis. O caminho era
minúsculo, estava escuro e parecia que daria em uma
rua sem saída, mas quando fizemos a curva havia uma
rampa de pedras e uma placa com o nome de um
restaurante.
Sentados em um sofá confortável, em meio à floresta,
e com uma linda decoração – luzes penduradas nas
árvores e um fogão a lenha – eu e o moreno
comemoramos esse reencontro tão inesperado. Entre
conversas e risadas, eu o observava, sempre encantada
com a beleza do seu sorriso, e pensava comigo que,
talvez, eu deveria avisá-lo dos riscos de se envolver com
uma pessoa como eu. Moreno, esse terreno é perigoso.
Quem me olha sorrindo e com esse jeito meigo se
engana, não imagina a imensidão e a intensidade da
minha alma. Moreno, você não faz ideia da encrenca em
que está se metendo.
5. Você não é
todo mundo

Eu perdi as contas de quantas vezes fui para o aeroporto


durante esses dois meses que se passaram da minha
mudança temporária para Curitiba, seja para embarcar
para o Rio ou para buscar o moreno na área de
desembarque. Rio e Curitiba já estavam pequenos
demais para nós e ampliamos as nossas rotas. Ele me
levou para Búzios. Eu o levei para a Praia do Rosa. E,
assim, tínhamos planos de ir apresentando lugares
diferentes um para o outro.
No meio disso tudo, cheguei a cogitar a hipótese de ir
morar no Rio de Janeiro, uma vontade antiga que tinha
tudo para acontecer agora, uma vez que eu tinha amigos
e um affair na cidade. Pesquisei tudo: aluguel, um
mestrado e até fui a uma entrevista de emprego para
uma vaga de Secretária Trilíngue.
O plano parecia excelente, até o dia em que eu estava
andando sozinha por Ipanema, quando a mulher da
agência de empregos me ligou para dizer que eu tinha
sido escolhida para a vaga e que eu deveria comparecer
no próximo dia para um treinamento. Ela especificou a
roupa que eu deveria usar, os documentos para trazer e
me explicou o melhor ônibus para chegar lá. Meu
organismo foi entrando em curto circuito enquanto eu
tentava visualizar tudo o que ela estava me falando.
Me vi em roupas sociais que eu tenho pavor e pânico
de vestir, usando um salto alto que eu ainda busco uma
razão sensata para a sua existência, suando dentro de
um ônibus ou endividada com as parcelas de um carro,
como se o mundo precisasse de mais carros na rua e
mais poluição no ar. E tudo isso para quê? Para eu fazer
dinheiro para poder pagar as roupas, o sapato e o carro,
tudo o que eu não fazia questão nenhuma em ter. Uma
vozinha muito malvada sussurrou no meu ouvido: “Mas
todo mundo faz isso! Bem-vinda à vida real.”. Eu titubeei.
Lembrei da minha mãe, que passou metade da minha
adolescência dizendo: “Mas você não é todo mundo!”.
Sábias palavras.
“Alô? Desculpa, não sei se a ligação está boa. Você
está me escutando? Preciso estar confirmando um
horário que seja melhor para você.”.
“Desculpa, a ligação ficou ruim, mas agora estou te
ouvindo sim. É que o mestrado que eu estou aplicando
aqui no Rio me pediu uns documentos e preciso viajar
para o Sul amanhã. Infelizmente, eu não posso
comparecer ao treinamento”
“Mas a sua ausência fará com que você esteja
perdendo a vaga”
“É uma pena, mas eu realmente não posso
comparecer. Te agradeço pela atenção, mas quando eu
voltar de viagem, eu entro em contato com você
novamente”
Desliguei o telefone ainda sem entender nada. Quem
inventou essa história toda? Quem falou aquilo para a
mulher? Não tinha sido eu. Juro. Tinha sido alguma coisa
falante e muito mais forte do que eu mesma que
resolveu me calar e soltar o verbo. Respirei fundo e senti
um alívio imenso.
Bom, quem quer que tenha dito aquilo, mandou muito
bem, me salvou de uma furada. E aos poucos fui me
dando conta de que aquele ser mais forte do que eu
mesma era a minha essência me salvando do meu eu,
digamos, “burro”. “Burro”, porque, se eu parasse para
pensar por um momento, eu me daria conta de que essa
vida que eu estava planejando não tinha nada a ver
comigo. Eu precisava de uma razão maior.
Entre essas viagens, eu já vinha passando mais tempo
em Brasília com meus pais do que em Curitiba. Eu saí de
casa com 17 anos e, desde então, não tinha mais
passado períodos longos com eles. Eu estava com os
níveis de cortisol altíssimos, havia ganho peso e estava
totalmente perdida do que eu faria da minha vida,
principalmente agora que a minha suposta ida para o Rio
de Janeiro não aconteceria. Eu já havia me sentido assim
antes em todas as vezes que eu voltei de uma viagem
para o Brasil: o meu corpo sempre respondia de forma
negativa. Era como se meu corpo não aceitasse que eu
parasse.
Às vezes, eu sentia uma vontade imensa de nunca ter
viajado. Eu amaldiçoava as estradas que havia trilhado e
as pessoas que encontrara. Queria me sentir satisfeita
com roupas de marca, com homens ricos que pagam
tudo, com maquiagem, com sapatos altos, com uma
casa, com um trabalho. Seria tudo tão simples. Talvez ser
feliz fosse ser ignorante.
O mundo era um lugar injusto. O que você faz quando
tudo o que acontece a sua volta não representa quem
você é? Quando o que a sociedade tem pra te oferecer
não é o que você precisa? Malditas respostas que eu
nunca encontraria. A vida era uma vadia.
Eu me permitia entrar de corpo inteiro,
profundamente, em todos esses pensamentos penosos e,
então, me reerguia pouco a pouco, sabendo que eu tinha
me tornado a soma de tudo o que eu tinha visto e vivido.
Não havia um caminho de volta. Eu precisava trilhar um
novo caminho.
Conviver com os meus pais novamente me trouxe
reflexões importantes para aquele momento. Olhando
para o meu pai, eu via ali o meu exemplo de coragem,
generosidade e inteligência. Um homem à frente de
todos do seu tempo, simples, de espírito jovem e
inovador, que gostava de viajar de moto. Até convenceu
a minha mãe uma vez e a colocou na garupa para uma
viagem de 15 dias até à Argentina. Não, meu pai não é
um cara que acumulou riquezas materiais na vida, mas
era, com certeza, um homem rico que sempre criou as
próprias oportunidades e que ajudou muitas pessoas por
onde passou. Até hoje, quando visito a minha avó
materna no interior, encontro alguém que diz que foi
meu pai que trouxe a eletricidade para o pequeno
vilarejo. E não fico surpresa quando ele me conta que
pegou um mendigo para ser ajudante na empresa.
Ele também é muito exigente: sempre me cobrou nota
10 na escola. Quando eu pedia ajuda com as tarefas de
matemática, ele me ensinava tudo em casa antes da
professora, me fazendo chegar em sala de aula sabendo
tudo de antemão. Enquanto os outros alunos faziam
continhas simples, eu sabia fazer divisão que não era
exata. E eu cresci assim, acreditando que não havia
limites de onde eu podia chegar.
Já a minha mãe é meu exemplo de fé, força e
humildade. É a pessoa mais calma e doce que você pode
imaginar. Tem uma qualidade que poucos têm: a de
saber ouvir os outros. Com sua tranquilidade, sempre
tem uma palavra de sabedoria para proferir. Não é tão
aventureira como meu pai, dando o equilíbrio necessário
ao relacionamento. Com seus conselhos me ensinou a
questionar as ordens do meu pai e a ver o mundo sob um
olhar singelo.
Eu era um reflexo dos meus pais e sabia que eles
tinham me dado muitas ferramentas importantíssimas
para a vida, aquelas que eu precisaria de sabedoria para
usá-las da forma correta. Seria uma tremenda perda para
o mundo se eu me contentasse em ser somente mais
uma pessoa consumindo o que a televisão me vendia.
Por isso, eu sentia essa inquietação dentro de mim
que fervilhava meus pensamentos, não me deixando
optar por uma vida banal. Se eu tinha tantas ferramentas
em minhas mãos, precisava aprender a usá-las e, com
isso, abrir novos caminhos. O que você faz quando tem
muito? Você compartilha, você cria ainda mais. De
alguma forma, eu sentia que uma estrela muito forte
dentro de mim brilhava e a resposta para as minhas
dúvidas e medos era simples: bastava acreditar.
6. Se você não está disposto
a arriscar, esteja disposto
a uma vida comum
(Jim Rohn)

Me deparei com essa frase enquanto lia a revista de


bordo dentro do avião que, em poucos minutos,
aterrissaria em Curitiba. Fiquei pensando nela durante
todo o caminho no ônibus do aeroporto até em casa. Era
necessário arriscar. Mas arriscar o quê? Nessas horas eu
desejava do fundo do meu coração que, ao descer do
ônibus, eu desse de cara com um monge careca,
vestindo umas roupas largas e que colocasse a mão na
minha cabeça e, em um tom de paz interior, me dissesse
o que eu deveria fazer. Eu juro que eu seguiria o que
fosse que ele dissesse.
Desci do ônibus, andei em círculos só para ter certeza
de que não havia nenhum monge na área. Uns mendigos
aqui e outros ali, mais nada. Desisti da ideia e fui
andando calmamente para o apartamento com a minha
mochila nas costas. Meu celular vibrou no bolso,
apareceu na tela:
“Lele, espero que tenha feito boa viagem. Você é
linda. Saudades.”.
Por que ele não sumia do mapa? Ele já tinha
conseguido tudo o que queria comigo. Não precisava
mais ser fofo e atencioso. Ele era do tipo perigoso, que
sabe que é bonito e que usa o seu charme para
conquistar. Eu já estava confusa o suficiente para ter que
lidar com questões do coração.
Chegando no apartamento, aproveitei para tomar um
banho quente, comer e deitar para dormir. Eu estava
cansada de tanto matutar coisas na minha cabeça e
definitivamente eu necessitava de uma boa noite de
sono para acalmar meus pensamentos.
Acordei, na manhã seguinte, mais calma e optei por
fazer coisas das quais eu gostava. Fui à padaria em
frente ao prédio e pedi um misto quente com um suco de
laranja natural. Depois, voltei para trocar de roupa e saí
para dar uma corrida. Eu tinha pegado esse hábito de
correr quando morei na Austrália e, desde então, se
tornou uma das minhas atividades favoritas. Sem contar
que, com o cortisol alto, eu precisava manter um ritmo
de exercícios constantes. Enquanto corria, sentia meus
pensamentos mais calmos.
Na volta, eu parei no mercado e comprei ingredientes
para o meu almoço, sem esquecer de uma garrafa de
vinho tinto para acompanhar. Sentia um prazer imenso
em estar sozinha em casa, ouvir música, cozinhar só
para mim e tomar vinho. Isso me dava um prazer
imenso. Gostava de usar produtos frescos, recém
comprados, e cozinhar o suficiente para um prato
apenas. Era o meu restaurante exclusivo.
Achei uma agenda em branco, peguei uma caneta e
comecei a escrever. Eu tinha passado esses últimos
meses cercada de pessoas e sabia que esse era um dos
motivos pelos quais eu me sentia tão perdida. Eu sempre
precisei ficar comigo mesma para resolver meus
problemas. Afinal, não seria em meio ao barulho de uma
sociedade doentia que eu encontraria as respostas para
as minhas dúvidas, somente eu mesma (com a ajuda do
vinho) teria essas respostas tão secretas.
Escrevi na folha de papel:

imagem1

Essa pergunta é fácil: eu estaria viajando. Mas para


onde, eu não sei. Nas minhas últimas viagens, eu estava
sentindo falta de um propósito maior. Não me satisfazia
mais tirar fotos em lugares turísticos e seguir o roteiro
clássico. Eu me atraía muito mais pelas culturas
diferentes e pelas pessoas. Eu poderia fazer um mochilão
de vários meses pela Ásia, aproveitando que é um
destino barato. Mas precisava de um propósito. Ahhh! Já
sei. Faria aquele voluntariado para ajudar crianças
carentes na África do Sul. Mas era muito caro. Eu não
teria dinheiro para pagar por isso.
Estava complicado. Preferi pular para a próxima
pergunta. Escrevi:

imagem2

Fácil também. Eu me arrependeria de não ter saído


pelo mundo afora com uma mochila nas costas e um
pouco de dinheiro no bolso. Eu queria viver com a minha
mochila desbravando lugares novos, conhecendo
pessoas de outras culturas e colecionando histórias que
ficariam para sempre. No entanto, isso era uma resposta
superficial. Se eu fosse um pouco mais fundo, a resposta
seria outra. Eu me arrependeria de não ter deixado um
legado, de não ter feito algo maior do que a minha
existência. De alguma maneira, eu queria contribuir para
uma mudança no mundo. Mas quando você diz isso para
as pessoas, elas riem de você.
Lembrei de um teste vocacional que eu tinha feito
com uma psicóloga uma vez. O teste dizia que eu
precisava de constantes mudanças na minha vida e que
traços fortes da minha personalidade indicavam que eu
precisava trabalhar na área da comunicação, dado que
eu tinha um sentimento muito forte de ajudar outras
pessoas. Nem tudo foram flores: o teste também me
dedou ao dizer que sou desorganizada, confirmando a
teoria da minha mãe.
Durante minha vida toda, vi meus pais ajudando
amigos, familiares e até desconhecidos. Mas não era
somente isso: eles tinham me criado uma pessoa muito
ciente de que uma grande parcela do mundo não tinha
os mesmos privilégios que os meus. Quando eu tinha uns
oito anos de idade, comecei a falar que não queria comer
isso ou aquilo. Meus pais tinham pavor de criança
mimada e me colocaram no carro junto com meu primo,
nos levando para dentro de um acampamento de sem-
terras.
“Vocês acham que essas crianças escolhem o que
comem? Tudo o que elas mais queriam era ter um prato
de comida quentinha na mesa todos os dias.” – Falavam
enquanto dirigiam vagarosamente entre crianças,
animais e barracas de lona desprovidas de qualquer
infraestrutura básica.
Foi um tratamento de choque. Desde então, eu resolvi
que a nata no leite era saudável e que brócolis era uma
delícia. Só não consegui fazer as pazes com a couve, mas
meu pai entendeu que era questão de gosto, e não de
frescura, depois que ele me obrigou a comer e eu vomitei
tudo nele.
Então, eu fui crescendo e aprendendo a olhar ao meu
redor, sabendo que eu fazia parte do todo e não de um
mundinho cor de rosa blindado. E acho que esse era um
dos meus problemas com a tal da “profissão”. Eu não
queria ter um trabalho simplesmente para gerar lucros
absurdos para uma terceira pessoa, enquanto eu recebia
o mínimo para sustentar o meu mundo de mentira. Eu
buscava mais significado nessa troca. Acreditava que
havia mais do que apenas isso.
Esse pensamento me fez voltar à essa vontade antiga
de fazer um voluntariado. Ainda na minha primeira
viagem aos EUA, eu vi um programa para a África do Sul,
mas desisti assim que vi os preços: era algo absurdo.
Peguei o computador e procurei alguns e-mails antigos
que eu tinha enviado para essa organização, a fim de
achar o website. Confirmado: 600 dólares por semana.
Os valores estavam ainda mais absurdos para o meu
orçamento.
Eu precisava achar soluções para os meus problemas.
Se o voluntariado na África do Sul era muito caro, eu
precisava encontrar um outro lugar para voluntariar que
fosse barato. Bom, se o meu sonho era viajar pela Ásia,
que era um destino barato, era só eu encontrar lugares
para voluntariar lá!!! Por que eu reclamei tanto se a
resposta era tão fácil?
Passei cinco dias enfiada no apartamento
pesquisando. Às vezes, as coisas levam algum tempo
para ficar claras, mas, quando elas ficam, eu ativo a
minha teimosia e não desisto tão fácil. Pesquisando no
Google, consegui encontrar um lugar na Tailândia que
precisava de professores de inglês para as crianças
carentes de um pequeno vilarejo ao oeste do país.
Preenchi um formulário online e aguardei ansiosa pela
resposta, que chegou rapidamente, dizendo que eles
tinham vagas para o período que eu gostaria e que não
tinha problema algum eu não ter experiência como
professora, pois o inglês era básico e o mais importante
era a interação diária das crianças com outra cultura e
com a língua inglesa. Isso traria a oportunidade dessas
crianças trabalharem com o Turismo, ao invés de
trabalharem com agricultura ou, até mesmo, com a
prostituição.
Meus olhos se encheram de lágrimas e meu coração
bateu mais forte. Era exatamente esse tipo de
experiência que eu queria fazer parte. Não havia dúvida
nenhuma: eu estava em completo estado de êxtase
simplesmente pelo fato de me imaginar lá. Respondi
agradecendo e falei que eu entraria em contato em
breve, informando a data do meu voo.
Eu nunca tinha voado do Brasil para aquela região e
não fazia ideia dos valores, mas os voos para o mês de
junho estavam muito caros. Eu tinha um mês e meio
para planejar tudo e partir. Precisava de uma solução
criativa. Passei mais três dias pesquisando quantas
milhas seriam necessárias para esse trecho de viagem,
liguei nas companhias aéreas, enchi o saco dos
atendentes, fiz simulações nos sites e cheguei a opção
mais barata: 35 mil milhas para o trecho Brasil – Europa
e 30 mil milhas para o segundo trecho Europa – Ásia.
No entanto, eu tinha apenas 30 mil milhas na minha
conta. Então, tive que recorrer ao meu banco de milhas:
meu pai. Fiz um empréstimo daqueles de pai para filha,
mais conhecido como “sem volta”, e comprei as
passagens, que me custaram R$120 de taxas de
embarque.
Eu preferi fazer uma viagem mais longa e com menos
dinheiro, por isso calculei uma média de 500 a 600
dólares de gastos por mês que seriam suficientes para
alguns meses de viagem. Pensava em ficar até um ano.
Resolvi dar um nome ao meu projeto. Chamei-o de Do
For Love Project e criei uma página no Facebook,
decidindo que compartilharia minhas histórias. Não só as
histórias, mas também as informações, uma vez que elas
tinham sido tão difíceis de ser encontradas. Esperava,
assim, ajudar mais pessoas a realizarem o sonho de se
voluntariar de forma barata.
Era incrível como no espaço de tempo de uma
semana de foco, determinação e silêncio eu tinha
mudado o rumo da minha vida completamente.
Finalmente, eu estava aceitando o fato de que eu não
precisava daquelas respostas. A maioria das pessoas as
teria ou passaria a vida correndo atrás delas. Não eu. Eu
gostava de não tê-las e assumir isso me trazia a alegria
de saber que eu teria que percorrer caminhos pouco
trilhados. Eu tinha a sorte de não ter a minha vida
engessada em nenhuma resposta. Eu era jovem,
saudável e livre para criar as minhas próprias
possibilidades.
7. O meu desejo de partir se
completa muito bem com
o meu medo de amar

Mais uma vez, eu me despedia de alguém que eu


gostava, mas, é claro, sem deixar a outra pessoa saber
dos meus sentimentos. Eu fazia questão de vestir a
máscara de quem não está nem aí pra nada. Me
disseram que as meninas aventureiras são assim e eu,
obediente, sempre soube seguir essa regra, até mesmo
porque o meu desejo de partir se completava muito bem
com o meu medo de amar.
Ele dirigia pelas ruas do Rio de Janeiro com aquele
mesmo charme e serenidade de quatro meses atrás,
quando me buscou no aeroporto pela primeira vez.
Desde então, eu perdi as contas de quantas vezes
embarquei em um avião ansiosa para encontrá-lo e
também me acostumei com as inúmeras despedidas.
Mas agora era diferente: a minha passagem era só de ida
e eu sabia que o destino de quem viaja pode ser um
tanto fatal para amores que nunca desabrocharam. Essa
foi a despedida mais estranha de todas as dezenas que
já acumulávamos.
Eu havia passado 3 dias com ele, curtindo ao extremo
o que, na verdade, tinha gosto de fim. Fiz ele matar a
aula do Mestrado pra pular de Asa Delta, numa tentativa
de deixar bem claro que certas coisas ele só viveria
comigo. Por mais que eu soubesse que as chances de
nunca mais nos encontrarmos fossem altíssimas, eu
queria deixar minha marca. Arrumamos nossas malas na
casa onde ele morava com os pais e seguimos para o
carro. Ele tinha como destino Florianópolis – ia para
algum desses weekends que eu detestava – e, antes de ir
para o aeroporto, ele me deixaria em um Hostel em
Copacabana para eu encontrar meus amigos, que
vinham de São Paulo, para mais uma despedida antes de
eu embarcar.
No carro, seguimos um roteiro já conhecido, no qual
verbalizamos um resumo dos nossos dias, sempre
chegando à conclusão de terem sido incríveis e ríamos
muito, lembrando das maluquices que fazíamos juntos.
“Caramba, você vai embarcar para a Ásia. O seu
projeto é demais! Sorte das criancinhas que vão poder
ter você por perto”. – Ele disse isso me olhando
docemente.
Eu não ficava mais desconfiando de tudo o que ele me
dizia e realmente acreditava que ele era carinhoso nas
palavras.
“E você vai embarcar para Nova York, vai validar o seu
diploma lá e vai ser o melhor fisioterapeuta dos Estados
Unidos. Nada mal para um carioca da Tijuca, hein?”. –
Falei rindo.
“Tem muito chão até isso tudo acontecer. Sabe como
você morre de vontade de conhecer o Butão? Eu tenho a
mesma vontade de conhecer o Hawaii. Penso em passar
um período estudando para a prova de validação do meu
diploma.”.
“O Hawaii é lindo”. – Disse isso com a cabeça longe,
lembrando dos lugares incríveis que eu visitei lá.
“Você conhece esse ditado: Passarinho que anda com
morcego amanhece de cabeça pra baixo?”
Olhei para ele sem entender nada e respondi rindo:
“Vocês, cariocas, são um tanto estranhos. Acho que lá
no Sul não tem esse ditado não.”.
“Pois deveria. Ele se encaixa muito bem com você, no
caso, o morcego. Acho que quando as pessoas andam
muito com você, elas começam a acreditar que tudo é
possível. Você faz o mundo parecer tão pequeno.”.
“E ele não é?”.
Ele ficou pensativo, me olhou e sorriu. Eu aproveitei a
deixa:
“Fica à vontade para me visitar lá na Ásia quando
você quiser. Posso te garantir que as crianças adorariam
ter aulas de futebol.”.
Ele não era muito de falar dele e eu nunca fiz questão
de indagar. Acho que era por isso que dávamos certo:
não tínhamos a permissão de interferir muito na vida um
do outro, seja no passado, no presente ou no futuro. Os
meus sentimentos eram muito mais baseados em como
ele fazia me sentir do que em quem ele era.
Enquanto conversávamos, ele fazia questão de
manter a mão na minha perna, só tirando para trocar a
marcha, retornando assim que possível. E eu aproveitava
para discretamente olhá-lo. Ele continuava com aquele
mesmo sorriso lindo de sempre. Definitivamente, eu
estava bem acompanhada e isso explicava o motivo de
eu estar partindo. Eu não queria me envolver e correr o
risco de nunca realizar o meu Projeto. Eu precisava fugir
desse moreno sorridente antes que fosse tarde demais.
Ele parou o carro em frente ao hostel e nos
despedimos de forma desajeitada. “Lele, você vai fazer
muita falta aqui. Você é incrível, mas agora é a vez da
Ásia saber disso também”. E me beijou pela última vez.
“Te vejo no Camboja!”. – Essa frase foi o melhor jeito
que eu encontrei de dizer “Eu preciso realizar meu sonho.
Preciso partir, mas quero te ver de novo”.
Fica fácil perceber que eu sou um desastre em
assuntos amorosos.

...

Entrar em um aeroporto sabendo que eu vou pegar


um voo é uma das melhores sensações desse mundo.
Sou fascinada pela possibilidade de ir para um lugar
desconhecido. Já havia viajado várias vezes, mas
nenhuma com a chance ficar um ano viajando e
voluntariando. Era um grande sonho sendo realizado. Eu
sentia um misto de alegria, ansiedade e orgulho. Sim, eu
estava muito orgulhosa de mim mesma, pois sabia que
tinha tomado uma decisão muito importante e que essa
Letícia que estava embarcando jamais seria a mesma
que retornaria. Era exatamente essa a sensação, de no
fundo, estar me despedindo de mim mesma.
Me dirigi para o check-in do voo com destino a
Amsterdam, onde passaria 4 dias antes de embarcar
para 15 dias na Indonésia. De lá, voaria para Bangkok. A
atendente da companhia aérea pesou o meu mochilão
querido, de alguma marca desconhecida, que me custou
70 dólares e que me acompanha há sete anos, desde
aquela minha primeira viagem aos Estados Unidos. Vi na
balança: 17kg. Uma vida resumida em 17kg que eu podia
levar para onde eu bem entendesse. Eu tinha feito um
bom trabalho na minha arte de desapego a coisas
inúteis. Sorri, peguei meu cartão e segui para o
embarque.
Liguei para os meus pais para dizer que estava tudo
bem. Meu pai parecia mais animado do que eu com a
viagem e queria saber detalhes, pedindo para que eu
enviasse fotos assim que possível. Minha mãe escondia
bem a preocupação e se mostrava animada também,
mas sempre me pedindo cautela. Acredito que eles já
estavam acostumados com a ideia de eu desbravar o
mundo sozinha e sabiam que eu estava feliz o fazendo.
Acabei a conversa com eles e me dirigi para o portão de
embarque.
O telefone toca. Era o moreno. Depois da mensagem
que eu mandei sob o efeito de alguns drinks durante a
minha festa de despedida na última noite, eu não sabia
nem se deveria atender. Era muito gentil da parte dele
estar me ligando, porque se fosse eu, aproveitaria a
oportunidade para me esquecer. Eu nem lembrava direito
o que eu tinha mandado, resolvi não atender e checar
meu telefone:
1:25 am
“Eu juro que tentei, mas está sendo difícil. Não quero ficar criando
expectativas. Eu sou acostumada a deixar pessoas para trás no meu
caminho e dessa vez não será diferente. Melhor você me esquecer e
curtir a sua vida. Aproveita muito. Boa viagem e se der, um dia nos
vemos. Bjos”
1:35 am
“Você me confunde com suas mensagens. O que você tentou, mas é
difícil? É simples, fica pra vc um amigo verdadeiro no Rio. Agora,
uma coisa que eu ainda não te falei. Te acho uma menina linda por
dentro e por fora, vou fazer força para te reencontrar. Em outras
circunstâncias eu te quero para namorar. Te ligo amanhã para
desejar boa viagem. Bjos gata”

Certo ou errado, era assim que tinha que ser. Eu não


queria embarcar para a viagem da minha vida pensando
em algúem. É preciso estar livre de coração e alma para
absorver tudo que uma experiência dessas está prestes a
te dar. Era a hora de jogar para o universo e acreditar. Eu
disse que estava acostumada a deixar pessoas para trás,
isso era verdade, mas tinha esquecido de complementar
dizendo que mesmo deixando pessoas para trás, o que
era verdadeiro sempre tinha prevalecido,
independentemente do tempo e da distância. O amor
não é posse. Deixar livre é verdadeiramente amar.
8. Eu tinha vindo
de muito longe para viver
exatamente isso: o
desconhecido

De olhos fechados, sentada na carroceria de uma


caminhonete que eu nem sequer sei para onde me leva,
sinto o vento soprando no meu rosto e parece que cada
célula do meu corpo vibra com a sensação de liberdade,
com a certeza de que estou na estrada e de que essa
será minha casa pelos próximos meses. Viajar me faz
sentir mais viva do que nunca. Eu abro os olhos e vejo a
noite, as estrelas e isso tudo se torna real demais.
Então, fecho os olhos novamente. Inspiro. Não posso
deixar de sentir essa alegria me corroendo por dentro e,
de olhos fechados, eu consigo degustá-la lentamente.
Dessa vez, eu não estou sozinha e isso me alegra. Escuto
sotaques chinês, polonês e alemão e me sinto grata por
poder agregar ao meu mundinho estes outros mundos
que antes eram tão distantes. Eu dou uma risada
baixinha. A felicidade me invade. Em seguida, meus
olhos se enchem de lágrimas. Agradeço a mim mesma
por ter decidido partir e por me permitir viver esse
momento.
Foi assim, na carroceria de uma caminhonete, que eu
cheguei em frente à escola Watputthisan, depois de 40
minutos de estrada de chão. Foram cinco horas desde
Bangkok em uma pequena van que chacoalhava rumo a
leste até chegar na principal cidade da província de
Sakaeo, que se chama Watthana Nakhon. Eu tinha
anotado em um papel onde eu deveria ficar e o motorista
me fez a gentileza de avisar quando chegamos, depois
de eu ter passado a última hora perguntando a cada 10
minutos para ele se já havíamos chegado.
Desci da van curiosa e animada, mas minha animação
desapareceu rapidamente assim que percebi que não
havia absolutamente nada ao meu redor. Uma avenida
deserta, sem casas ou pessoas, onde a única coisa que
se via por perto era um ponto de ônibus. Temi que
tivesse descido no lugar errado.
Antes que pudesse pegar o celular para ligar para o
Jason, o diretor do programa, eu vi uma caminhonete
estacionar e pessoas pularem da carroceria gritando
alguma coisa parecida com o meu nome. Me abraçaram,
me deram boas vindas, perguntaram como tinha sido a
viagem e se eu estava com fome. Isso tudo ao mesmo
tempo, enquanto pegavam minha mochila, me davam
comida e faziam perguntas. Eu definitivamente me senti
muito bem-vinda! Elas eram três voluntárias que haviam
chegado há poucos dias e fizeram questão de vir junto
com o Jason me receber.
Apesar de estarmos na frente da escola, Jason gritou
da janela do carro que me levaria até a minha nova casa,
pois já estava muito tarde, e que ele me apresentaria à
escola no outro dia. Confirmei que tinha entendido e
fiquei aliviada, pois tinha tido um dia cheio. Acordei cedo
para pegar meu passaporte na embaixada e, de última
hora, descobri que tinha que ir à Imigração Tailandesa
para pegar uma segunda cópia do meu visto, senão eu
teria problemas para continuar viagem. Isso tudo me
rendeu muitas horas em filas e burocracia desnecessária,
o que me fez sentir como se estivesse no Brasil. Assim
que terminei tudo, corri para a rodoviária e, com sorte,
consegui pegar o último ônibus que viria para cá.
Em menos de um minuto, ele parou o carro e desceu.
“Você vai ficar nessa casa, morando com duas
professoras tailandesas que trabalham na escola. Tem
um quarto para você! Elas já estão dormindo, mas
amanhã vão te mostrar tudo. Todas estão muito ansiosas
para te conhecer. Eu sei que está muito escuro e não dá
para ver muita coisa, mas estamos do lado da escola. De
bicicleta, leva menos de 5 minutos.”. – Disse ele, com um
sotaque forte, mas com uma empatia maior ainda.
Desci da carroceria, me despedi das voluntárias que
continuariam para outra escola. Apesar delas terem me
explicado para onde iriam, eu estava confusa com tantos
nomes complicados e só concordei. O Jason me ajudou
com a minha mochila e fomos em direção à casa. Estava
curiosa para conhecer onde moraria.
Ele abriu silenciosamente a porta e gentilmente
indicou para que eu entrasse. No momento em que
entrei, cometi a minha primeira gafe tailandesa. Jason
deu uma risadinha e me indicou que deveria tirar os
sapatos. Fiquei sem jeito e me desculpei. Quando tirei
meu tênis, vi que, do lado de fora, tinham dois pares de
calçados, que deveriam ser das professoras.
A casa era simples, mas muito espaçosa. Acho que a
falta de móveis dava essa impressão de ser maior do que
realmente era. Apesar de tentar fazer silêncio, a escada
de madeira estalou todinha enquanto subimos para o
segundo andar. Ele me indicou o meu quarto e se
despediu.
Eu abri a porta que estava entreaberta e me deparei
com um quarto praticamente vazio. Ele era todo de
madeira, inclusive o chão, com exceção de uma parte
que era de azulejo, exatamente onde tinha um
colchonete rosa, protegido por uma tela contra insetos
em formato de barraca. Tudo era muito limpo e bem
cuidado. Do lado de fora da tela, apontando em direção
ao colchonete, se encontrava o objeto mais valioso do
ambiente: um ventilador.
Que felicidade em vê-lo! Mesmo sendo noite, fazia um
calor tremendo! Não queria acordar ninguém, portanto,
troquei de roupa e me deitei. Rapidamente, caí no sono,
com a esperança de que assim chegaria logo o dia
seguinte, o meu tão esperado primeiro dia de
voluntariado.

...

Acordei assustada. Acho que tinha dormido muito


profundamente e acordei sem saber onde estava.
Quando sentei na cama e vi tudo quadriculado ao meu
redor, percebi que estava envolvida por uma cabana à
prova de mosquitos e retomei consciência de onde
estava. Olhei para a janela: o dia já estava claro. Fiquei
com medo de ter dormido até tarde e procurei o meu
telefone, que marcava 7:30. Ufa, na hora! Tinha me
esquecido de colocar o alarme para despertar. Ao mesmo
tempo em que estava ansiosa, sentia vergonha porque
não fazia a mínima ideia do que eu precisava fazer, ou
onde tinha que ir. Escutei barulho no andar de baixo e
concluí que o melhor seria descer para me apresentar e
me inteirar de como seria o primeiro dia. Percebi que
tinha um espelho na parede, o único ornamento do
quarto, e tentei me ajeitar um pouco. Somente então
desci rumo às vozes que vinham lá de baixo.
Do alto da escada, eu pude ver uma das professoras
na cozinha e, enquanto descia, fiz barulho para que ela
percebesse a minha presença. Ela me viu e começou a
gritar alguma coisa em Thai, rindo e demonstrando estar
muito feliz em me ver. Em segundos, a segunda
professora apareceu correndo com a mesma
empolgação. Eu esperava duas senhoras, mas, para
minha surpresa, eram duas moças muito jovens.
A que se apresentou como Katy era a mais nova, com
um cabelo liso e bem preto, comprido até a cintura.
Tinha um ar de adolescente e um sorriso constante. A
outra professora era a Kob, um pouco mais velha, com
um ar mais responsável, mas era muito amorosa na
maneira como me olhava. A Katy falava um pouco mais
de inglês, enquanto a Kob não falava praticamente nada.
Então, Katy tomou a frente e foi me mostrando o
primeiro piso da casa: cozinha, sala e banheiro.
A Kob tinha a mesma cama que a minha montada na
sala. Eu desconfiei que antes ela devia ter o quarto que
agora era meu e estava dormindo na sala para me dar
privacidade. Era engraçado não poder entrar em uma
daquelas conversas banais onde você diz que não é
necessário que ela fizesse isso e que eu poderia dormir
ali sem problemas, mesmo sabendo que nada do que eu
dissesse mudaria a opinião dela. Ao mesmo tempo, era
desnecessário agradecer a ela com palavras. Eu
conseguia ter essa conversa toda com ela apenas a
olhando e sorrindo. As duas sorriam e se divertiam
enquanto me direcionavam pelos cômodos,
aproveitavam para tocar no meu cabelo e na minha pele
dizendo “beautiful”, que quer dizer "linda" em inglês.
Tudo parecia normal até elas me mostrarem o
banheiro. Tinha uma caixa de concreto que batia na
minha cintura e estava cheia de água, ocupando metade
do banheiro, ao lado de uma privada sem descarga e, no
lado oposto, uma pia. Katy se antecipou e se posicionou
ao lado da caixa de água, mostrou uma caneca e,
enquanto fingia que enchia ela de água e jogava em
cima da cabeça, ela falava repetidamente com um
sorriso largo no rosto: “Shower! Shower!”. Não tinha
como não achar engraçada aquela cena. Mas, ao mesmo
tempo, fiquei preocupada.
Eu tinha um sério problema com banho frio: mesmo
em um dia que fizesse 40° C do lado de fora, eu tomava
banho quente. Quando era criança, ia visitar a minha avó
no interior e não tinha chuveiro. Por muitas vezes, minha
mãe me levava para tomar banho no rio, até mesmo no
inverno gaúcho. Pensa em uma água gelada. Eu só
lembro de enfrentar uma água mais gelada que essa
quando ia surfar na Nova Zelândia. Provavelmente, assim
como eu, você já achou ou ainda acha que a Nova
Zelândia e a Austrália são mais ou menos a mesma
coisa. Errado. É como comparar Cancun com a Antártica.
Para surfar, era necessária uma roupa de borracha tão
grossa que ela impedia os seus movimentos. Lembro-me
de um dia entrar em pânico porque o sol havia baixado e,
subitamente, ficou muito frio. Eu saí da água chorando, o
fundo de pedra parecia cortar o meu pé e entrei em
pânico. Segui em direção ao banheiro público, onde
sentei no vestiário. Não conseguia fazer nada, somente
chorar de frio. Definitivamente, o banho de água fria
seria um trauma a ser superado durante essa viagem.
Katy indicou para que eu me arrumasse e viesse
tomar café da manhã com elas. Depois, sairíamos juntas
para a escola. Eu não cabia em mim de tanta
empolgação com tanta coisa nova. Agradeci e subi
correndo para o meu quarto, pois não tinha muito tempo
e não queria atrasá-las. Então, rapidamente escolhi uma
roupa, peguei minha toalha e desci para experimentar o
meu primeiro banho Thai.
Encarei a caixa de concreto cheia de água gelada, tirei
a roupa e, calmamente, fui jogando canecadas de água
em mim, enquanto pulava de um lado pro outro e me
arrepiava inteira. Ao invés de ficar irritada, eu ria sozinha
da cena na qual eu havia me metido. Eu podia estar no
conforto da minha casa tomando um banho quentinho
gostoso, mas eu gostava mesmo era de me colocar no
limite. Não dava. Era muito gelada.
Peguei o sabonete e logo percebi que, naquele estilo
de banho, não seria necessária muita água. Me ensaboei
rapidinho e, sem pensar muito, joguei mais umas
canecadas doídas de água em mim. Confesso que não
tirei toda a espuma: o restante ficaria por conta da toalha
mesmo. Estava ótimo para uma primeira tentativa. Mas
sabia que o desafio maior ainda estava por vir e que ele
não ocorreria tão cedo: lavar o cabelo. Fazer dreads
nunca me pareceu tão sensato.
A dúvida maior ainda foi descobrir como dar a
descarga. Olhei de um lado para o outro inúmeras vezes,
tentando encontrar uma resposta, mas não a encontrei.
Nem fazer xixi estava sendo uma missão fácil.
Coloquei uma legging preta e uma camiseta velha que
era mais comprida na bunda. Esperando que essa roupa
fosse respeitosa o suficiente para uma professora em
uma escola Thai, apesar de estar sofrendo com
antecedência pelo calor que eu sentiria usando calça.
Desejei que shorts fossem aceitos, mas no e-mail que eu
recebi com a minha confirmação dizia bem claro que as
meninas deveriam evitar mostrar os ombros e não usar
roupas acima do joelho.
Me olhei no espelho para uma última análise e tudo o
que eu via era um grande sorriso. Era nítida a minha
felicidade. Eu tinha vindo de muito longe para viver
exatamente isso: o desconhecido.
Saí do banheiro e, muito sem jeito, perguntei como
dar a descarga. Elas riam sem parar, não de forma
ofensiva, mas como quem se diverte com as pequenas
coisas da vida. Lá veio Katy, novamente com seu sorriso
e com gestos teatrais para me mostrar como dava a
descarga. Era igual a tomar banho. Tinha que pegar uma
outra caneca que estava dentro de um balde com água e
ficar jogando água no vaso. Basicamente, uma descarga
manual.
Elas perguntaram se eu estava pronta para tomar o
café da manhã e eu afirmei que sim. Procurei uma mesa,
mas me dei por conta de que não havia nenhuma. Nem
mesa e nem cadeiras. Kob estendeu uma esteira no
chão, enquanto Katy trazia três pratos com arroz. Kob
rapidamente foi para a cozinha ajudar a trazer o
restante: um prato com folhas verdes variadas que eu
nunca tinha visto antes e uma panela com alguma coisa
frita, com muita pimenta.
Elas se sentaram na esteira e eu avisei que já voltava.
Lembrei-me de que, na minha bolsa, eu tinha um todinho
e um pão que tinha sobrado da viagem do dia anterior.
Desci com o meu café da manhã e sentei na esteira ao
lado delas com cara de quem tinha tido uma brilhante
ideia. Novamente, elas riam sem parar. Kob me olhava e
oferecia o prato dela para mim rindo. Eu agradecia
dizendo que era muito apimentado. Era uma
comunicação meio às avessas, que funcionava mais nas
risadas do que nas palavras.
Enquanto comia, fiquei observando as duas
tailandesas na minha frente que tinham gentilmente
aberto a casa delas para me receber. Eu tinha tudo para
me sentir uma estranha ali, mas eu me sentia mais em
casa do que nunca.
9. A professora nova
que parecia vinda
de outro planeta

Cheguei na escola de carona com as minhas duas


roommates tailandesas. Fomos as três na frente da
caminhonete de cabine simples rindo uma das outras. Eu
disse que iria de bicicleta, mas elas apontavam para o
sol e para a minha pele e diziam que não, com cara de
preocupação. Não entendi porque ir de carro se
estávamos ao lado da escola, mas fui mesmo assim.
Os alunos estavam todos posicionados em uma
quadra bem simples em frente à escola, todos
uniformizados e em fila. Quando me viram sair do carro,
percebi que começou um murmurinho. Todos me olharam
e disseram alguma coisa no ouvido do colega. Eles riam
e me olhavam de forma curiosa, como se eu fosse uma
alienígena saindo da minha aeronave espacial
diretamente no pátio da escola deles.
O Jason se aproximou juntamente com o diretor da
escola e com Vimos, um chinês alto e magro, muito
simpático, que também seria voluntário junto comigo. Ele
estava dormindo em um quarto ali na escola mesmo. O
diretor não falava inglês, mas, novamente, eu conseguia
me comunicar com ele através do olhar e do sorriso.
Existia uma transparência muito evidente no sorriso
daqueles tailandeses.
O diretor se aproximou e me reverenciou com as duas
mãos juntas próximas ao peito e a cabeça levemente
abaixada. Eu retribuí que me acompanharia por toda a
viagem. Ele me olhava com olhar de gratidão por estar
ajudando a escola e eu retribuía o mesmo olhar de
agradecimento por ele estar me recebendo. Eu estava
descobrindo a inutilidade das palavras, que achamos tão
necessárias.
Nos posicionamos todos em frente às crianças e nos
apresentamos, com o Jason fazendo a tradução. Era
difícil dizer quem estava mais fascinado: eu, as crianças
ou as professoras. Assim que terminamos as devidas
apresentações, as professoras vieram falar comigo.
Aquelas que tinham o inglês um pouco melhor, queriam
praticar, e as outras que não falavam, me abraçavam,
tocavam no meu cabelo, no meu braço.
Parecia que queriam ter certeza de que eu era real.
Me olhavam e falavam uma para as outras algo parecido
com “suai”, que em breve eu descobri que significa
“bonita” em tailandês. Eu me divertia no que, para mim,
era uma situação inusitada. O Jason me explicou que,
para muitas daquelas pessoas, era a primeira vez que
elas viam uma pessoa branca e loira, pois era um vilarejo
muito afastado, nenhum turista visitava a região. O
projeto dele havia começado naquele mesmo ano e a
maioria dos voluntários eram chineses até então.
Realmente, era como ver um alienígena.
Jason era uma das pessoas mais genuínas que eu
havia conhecido. Seus pais eram cambojanos que
fugiram de seu país durante a guerra, atravessando a
fronteira para encontrar paz no país vizinho, a Tailândia.
Jason por ser o mais novo dos quatro irmãos foi o único
que teve acesso à educação e ser professor foi uma
escolha muito natural para ele, pois via na profissão o
futuro da nação. Teve a oportunidade de morar nos
Estados Unidos por cinco anos, em uma rotina de dois
trabalhos, estudos e voluntariado nos finais de semana.
Foi um período de muito aprendizado, mas ele
encontrava muita dificuldade em se adaptar à vida
capitalista, sentindo falta da vida simples e feliz que
levava no interior tailandês. E foi assim que decidiu
voltar para a Tailândia e começar esse projeto de
voluntariado, no qual as crianças têm a chance de
aprender inglês diretamente com estrangeiros e, assim,
transformar esse conhecimento em oportunidades
melhores. O resultado desse trabalho era visível nos
olhos e nos sorrisos das crianças. E Jason mostra muita
gratidão por todos os voluntários que se propõem a
deixar o conforto do seu lar para doar um pouco de
conhecimento e atenção às crianças.
Jason demonstrava preocupação comigo e queria
saber se eu tinha dormido bem ou se faltava alguma
coisa. Ele disse que sabia que as instalações são simples
e um pouco precárias, principalmente para uma menina
ocidental.
Eu o tranquilizei, dizendo que estava muito bem
instalada e que ele não precisava se preocupar. Disse
também que adorei as meninas que moram na casa e
que fui muito bem recebida. Ele pareceu feliz com as
minhas palavras e me indicou que, após o almoço, me
levaria na cidade para que eu pudesse fazer compras em
um mercado grande, já que ali no vilarejo eu não
encontraria muitas coisas.
Eu teria acesso fácil a frutas e verduras, mas somente
a isso. Jason fez questão de me deixar a vontade para
avisá-lo que, toda vez que eu precisasse ir a cidade, ele
me levaria até lá sem problema algum.
Passei o resto da manhã jogando bola com as
crianças. Agora, era a vez delas analisarem a professora
nova que parecia vinda de outro planeta. Brincamos,
rimos e elas me apresentaram a escola até o Jason me
chamar para irmos à cidade. Aproveitei para pedir que
ele me levasse ao médico.
10. No good

Minha mãe conta que, quando eu era pequena, meu pai


gostava de me irritar dizendo que eu não era filha dele e
sim do Mozo, um homem muito simples que morava
próximo da minha avó no interior. Eu tinha medo dele e
diziam que ele era apaixonado pela minha mãe. Meu pai
aumentava a história contando que o Mozo tinha sido
namorado dela. Assim, ele conseguia deixar nós duas
irritadas. Ele achava graça, mas a ideia de não ser filha
do meu pai foi me preocupando. Meu pai era cheio de
sardinhas na pele e eu, com os meus sete anos de idade,
ainda tinha a pele lisinha e morria de medo que isso
fosse um sinal de que eu não fosse filha dele. Lembro-me
de que a minha primeira mancha foi no dedo e eu saí
correndo ao encontro da minha mãe para mostrar com
muito orgulho que aquela era a prova de que eu era sim
filha do meu pai. Minha mãe diz que a minha vontade era
tanta de ser parecida com ele que eu comecei a ter todas
as manchas iguais. Em pouco tempo, eu já tinha muitas
pintinhas, verrugas e manchas na pele e minha mãe
passou a me levar na médica para acompanhar a
evolução delas.
O legal é que isso se tornou um programa de família.
Por muitas vezes, eu e meu pai íamos juntos ao médico
para fazer o check-up das pintinhas e acabávamos os
dois no hospital tirando algumas delas que poderiam ser
malignas. Nunca eram. Mas era divertido voltar para casa
cheios de curativos e esperando que a mãe fizesse tudo
para nós. O meu pai tinha muitas no rosto e ele voltava
para casa parecendo o Frankenstein.
Antes de embarcar nessa viagem, minha mãe me
lembrou que havia muito tempo que eu não passava por
uma revisão com a dermatologista e que deveria marcar
uma consulta. Eu não via tanta importância nisso e fui
deixando para depois na esperança de que ela
esquecesse. Mas memória de mãe não falha,
principalmente a da minha. Ela mesma se encarregou de
ligar e me avisar a data, só que já estava em cima da
hora.
Uma semana antes de embarcar eu estava na cama
de cirurgia retirando uma pinta nas costas que a
dermatologista considerava de risco. Levei três pontos e
o médico me aconselhou a não fazer nenhum esforço
físico pelo próximo mês, quando eu deveria voltar para
retirar os pontos. Eu sorri falsamente e fui embora. Três
pontos não pareciam muita coisa.
Uma semana depois, eu estava com 17kg nas costas
me aventurando por Amsterdam. Duas semanas depois,
eu estava em Bali surfando. Três semanas depois, eu
estaria deitada de bruços em uma maca de uma clínica
tailandesa com uma médica que não falava inglês
mexendo no buraco que estava aberto nas minhas
costas.
A minha intenção era tirar os pontos, mas, apenas
com um algodão que ela passou no ferimento, ela me
mostrava o que havia restado deles e me dizia com o
pouco de inglês que sabia: “No good”. Uma das
voluntárias chinesas foi comigo e filmou o procedimento.
Quando vi a filmagem eu entendi o quanto “no good”
estava. Mas confesso que a minha preocupação maior
era com a conta desse atendimento.
Enquanto aguardava a atendente anunciar o rombo no
meu orçamento, ela o aumentava somando medicações,
pomadas e esparadrapos. Foi quando ouvi o valor final:
quinhentos baths!
Antes que eu pudesse entrar em desespero, peguei a
calculadora e fiz o cálculo, que, para meu alívio, me
mostrou que esse valor era equivalente a 15 dólares. Me
senti até melhor e mais disposta depois da conversão.
Saí de lá com o curativo mais amador já visto em minha
vida e todo o arsenal que eu deveria usar para refazer o
curativo duas vezes ao dia.
11. Que mais consciência
seja dada às pessoas que
habitam esse planeta.

Acordei no outro dia me sentindo indisposta. Parecia que


tinha pego uma gripe: estava com dor de cabeça e dor
no corpo. Achei melhor me animar e ir para a escola. Era
uma semana meio atípica essa, pois os alunos não
estavam tendo aulas, mas palestras e apresentações. Eu
sabia que eles queriam que estivéssemos lá para assistí-
los. Assim que eu cheguei na escola, de carona com as
minhas roommates, elas me levaram para um espaço
grande nos fundos da escola, semelhante a uma quadra
onde acontecem eventos: um espaço amplo e com o
chão todo de azulejo.
Eu não pude deixar de reparar que havia, do lado de
fora da porta, uma fila de pelo menos uns 50 pares de
sapatos e chinelos perfeitamente enfileirados. Reparei
que mesmo as crianças que estavam atrasadas e
chegavam com pressa tinham o cuidado de deixar o
sapato ajeitadinho na fila. Eu fiz o mesmo: deixei o meu
chinelo do lado de fora e fui acompanhar as
apresentações.
Os alunos eram muito bons. Com o pouco que tinham,
criaram fantasias bastante criativas e não tinham
vergonha de dançar e exibir seus talentos. Mas, em meio
a tantas crianças, um dos meninos me chamou a
atenção: ele estava vestido de mulher.
Não era só isso. Ele realmente parecia uma menina na
maneira de andar: estava de vestido, com duas bolas
acentuando o que seriam os seios, salto alto, peruca e,
para a minha surpresa, maquiagem. Os outros meninos
estavam vestidos de piratas, homem das cavernas,
rappers e outras coisas que eu não sabia identificar.
Alguns até usavam maquiagem, mas para compor a
fantasia, como deixar a sobrancelha mais acentuada.
Em uma conversa que tive com uma das professoras,
eu descobri que aquele aluno tinha um irmão gêmeo e
que eram órfãos. A avó cuidava deles e sempre os
incentivou a se tornarem “lady boys”, pois essa era uma
das maneiras mais fáceis para um garoto pobre ganhar a
vida na Tailândia. Quando atingissem uma idade maior,
eles largariam a vida no vilarejo para se tornarem “lady
boys” em algum centro turístico.
A avó provavelmente tinha medo de morrer e os
deixar sem um futuro. E, em um país onde essa cultura é
muito forte, ela via essa solução para que os netos
sobrevivessem. Não existe certo e errado em uma
situação dessas. Lembrei de todos os “lady boys” que eu
vi em Bangkok e do meu olhar de julgamento para eles.
Eu sim era uma pobre coitada, que cresceu rodeada de
privilégios e achava que podia olhar para uma pessoa e
concluir o que eu bem entendesse.
Eu tinha viajado até o outro lado do mundo somente
para ver aqueles olhinhos brilharem. Não via ali crianças
pobres coitadas que precisavam de ajuda. Bem pelo
contrário: eu tinha pena era de mim que cresci achando
que precisava de muito para ser feliz e que me
ensinaram que quanto maior fosse a minha casa, maior
seria a minha alegria. Esqueceram de falar que casa
grande tem muito espaço pro vazio se instalar. Para mim,
aquelas crianças tinham mais a me ensinar do que eu a
elas.
Estava chegando a hora do almoço, que aconteceria
nesse mesmo espaço em que as apresentações estavam
acontecendo. Uma movimentação diferente começou a
acontecer: as crianças menores foram pegar suas
próprias vasilhas, que tinham trazido de casa, para
entrar na fila do arroz. Depois do arroz, um professor
serviria o prato do dia. As crianças sentavam no chão e
comiam. Para a minha surpresa, tinha uma mesa imensa
onde os professores comem: cabia ali em torno de 20
pessoas. Me pediram para sentar e não me deixaram
ajudar em nada. Então, fiquei observando.
Os alunos mais velhos ajudavam a distribuir um prato
de arroz para cada professor. Esse prato seria a base
para a refeição que cada professor montaria, a partir dos
acompanhamentos distribuídos na mesa a cada grupo de
4 ou 5 pessoas. Eu gostava da ideia de ser um almoço
coletivo, no qual todos comiam um pouco de tudo.
Em pouco tempo, todos estavam prontos para comer,
mas não sem antes fazer uma oração. Infelizmente, eu
não entendia o que diziam. Curiosamente, perguntei para
uma das professoras que estava sentada ao meu lado e
que falava inglês.
Ela me disse que a oração era mais ou menos assim:
“Estamos agradecendo pela refeição e pedindo que os
agricultores sejam abençoados, pois é graças ao árduo
trabalho deles que a comida está posta em nossa
mesa.”. – Ela disse isso como quem explica uma coisa
muito óbvia, enquanto eu fingia não estar surpresa.
Esse era um nível de consciência ao qual eu não
estava acostumada. Não conseguia deixar de ficar
maravilhada em ver aquelas crianças todas orando pelos
agricultores. Fiquei feliz ao ver que eles não cresceriam
achando que os alimentos vêm diretamente da prateleira
do supermercado. Aproveitei e finalizei com a minha
própria oração: “Que mais consciência seja dada às
pessoas que habitam esse planeta.”.
12. Tanto o bem quanto o mal
são necessários ao todo
(Jostein Gaarden)

Os sintomas se alternavam entre frio, calor, dor de


cabeça e tontura. Por mais que desejasse ficar na escola,
eu não conseguia mais. Sentia-me fraca. Avisei o Jason e
ele fez questão de me levar embora, dizendo que eu
estava pálida. Eu ainda não tinha ficado na casa durante
o dia, mas descobri da pior forma possível que fazia um
calor insuportável. O calor, junto com a febre, me fez cair
em um sono profundo.
Acordei era quase noite, com a ligação do Jason para
saber como eu estava. Ele disse que as meninas tinham
deixado uma bacia com água para que eu passasse no
meu corpo, para ajudar com a febre, e um prato de
comida, porque aconteceria uma festinha na escola e
todos jantariam lá. Assim que desliguei, percebi que
estava tudo arrumadinho conforme ele falou, ao lado da
minha cama, no chão. Mesmo sem ter muito apetite,
comi o máximo que pude e voltei a dormir até a manhã
seguinte na esperança de acordar melhor.
No outro dia, o Jason acabou me levando novamente
para a cidade, em um postinho de saúde. Eu não havia
melhorado e a febre tinha aumentado. Tirei sangue e
fiquei aguardando o resultado. Eu não conseguia nem me
mexer. O que me distraiu foi o curativo que a enfermeira
fez: um tufo de algodão e um pedaço de durex
grosseiramente atravessado no meu braço. Esse curativo
tinha superado o que a médica tailandesa tinha feito nas
minhas costas no dia anterior.
Eu não tinha como não achar engraçado, mesmo
estando no estado deplorável em que me encontrava. Eu
olhava para meu braço e ria da minha situação: um
curativo desses era inédito em minhas viagens. Eu
definitivamente não estava com muita sorte, tudo vinha
acontecendo comigo.
Em Bali, eu precisei fazer exame de fezes para
descobrir que tinha pego um parasita no meu estômago
e fiquei três dias revezando entre o banheiro e a cama.
Só tinha sobrevivido porque estava ficando em uma
pousadinha familiar e o dono percebeu que eu não
estava bem. Ele me trouxe comida todos os dias no
quarto, porque eu não tinha condições de sair da cama
nem para comprar comida.
Pelo menos, dessa vez eu não tinha dor de barriga. Os
resultados saíram e descobrimos que eu tinha pego uma
infecção, provavelmente decorrente do buraco que eu
tinha aberto nas minhas costas às custas da minha falta
de cuidado com os pontos que tinha levado. A tailandesa
tinha feito um diagnóstico realmente preciso no dia
anterior, quando definiu a situação como “no good”.
Saí do postinho com mais uma leva de remédios e
voltamos para o vilarejo. Sentia-me tão indisposta que
Jason me ajudou a entrar em casa, onde Katy já me
aguardava com todo seu carinho e boa vontade. Era ela
quem vinha trocando o meu curativo nas costas, uma vez
que eu não tinha como fazer sozinha. Não queria
atrapalhá-la, mas mais uma vez eu estava na posição de
não poder negar ajuda.
Nunca foi preciso pedir nada às minhas roommates:
elas antecipavam as minhas necessidades e faziam tudo
para me auxiliar. Tinham sempre um sorriso no rosto e
zelo genuíno. Elas cuidavam de mim melhor do que eu
mesma.
Estava extremamente grata por todo o suporte que
vinha recebendo, mas isso não me impediu de chorar
como um bebê quando deitei na cama aquela noite. Fazia
apenas uma semana da minha chegada à Tailândia e eu
já tinha sido furtada, visitado a delegacia e agora pego
uma infecção que me deixou de cama, sem forças nem
para andar.
Entre lágrimas e um mal-estar que tomava conta do
meu corpo, eu me questionava o que tinha feito de
errado ou se eu tinha tomado a decisão certa de viajar.
Fazia muito calor na casa, eu dormia no chão, meu corpo
doía de febre, não conseguia me comunicar direito com
quase ninguém e o banho era difícil. Tudo o que eu
queria era uma cama confortável, um banho de chuveiro
e um chocolate quente: coisas simples que ganharam
rapidamente um novo significado. Eu estava ardendo em
febre e o suor escorria pelo meu rosto junto com as
lágrimas. Eu sabia que isso passaria e que tudo ficaria
bem. Contudo, sabia também que muitas vezes para
continuar sendo forte, é preciso sentir a fraqueza. É
preciso aceitá-la.
...

Foi necessário mais um dia de cama até que eu


finalmente melhorasse. Eu sempre digo que a melhor
maneira de conhecer um país é utilizando o sistema de
saúde local. Sendo assim, posso afirmar que conheço
relativamente bem a maioria dos países pelos quais
passei. Ainda bem que situações mais sérias
aconteceram em países nos quais existiam recursos
médicos adequados, como quando quebrei o meu ombro
andando de skate na Austrália. Pensando assim, um
parasita no estômago em Bali e uma infecção na
Tailândia ainda não eram de todo mal.
Esses dias que passei enferma me aproximaram ainda
mais de Katy e Kob, minhas roommates. Descobri que
Katy canta em uma banda e que Kob é uma professora
extremamente dedicada. A família da Kob veio nos visitar
um dia e fizeram um jantar delicioso: sentamos todos na
esteira de bambu na varanda do lado de fora da casa. Me
lambuzei toda comendo com a mão os frutos do mar, que
eram grelhados à medida que íamos comendo. Eles
faziam com que eu me sentisse parte da família.
Acabei ficando amiga também da nossa vizinha, a
Lari, que é a única cabelereira do vilarejo. Ela não tem
curso nenhum, mas leva jeito pra coisa e, na própria sala
da casa dela, colocou uns espelhos e cadeiras,
denominando o local como “Salão de Beleza”. Era
engraçado tê-la como amiga porque ela vive uma vida
totalmente fora da realidade do vilarejo, o que a tornava
uma figura única: ela é uma tailandesa muito vaidosa,
gosta de sair com as amigas, de fazer compras e tem um
namorado que tem um carro cheio de luz neon azul por
dentro.
Lari me tratava como uma boneca: me dava roupas
que ela não usava mais de presente, me levava em seu
salão para lavar meu cabelo – evitando que eu adotasse
o estilo de dreads – e, com frequência, me levava para a
cidade, para passearmos em alguma feira de rua, e até
para jantar em algum restaurante. Ela gostava de me
mostrar fotos dos tailandeses famosos e dos que ela
achava bonitos. Era como voltar a ser adolescente, só
que na Tailândia. Ela não falava inglês, logo, quando
queria me ver, me ligava e dizia “home”. Dessa forma,
eu sabia que estava me chamando para ir em sua casa.
Quando eu não podia, respondia “school”. Então ela
sabia que eu não poderia ir porque estava ocupada na
escola. E assim se desenrolava a nossa amizade.
O final de semana se passou e tudo o que eu sentia
era gratidão pela febre e todo aquele mal-estar causado
pela infecção terem passado. Como era bom ter saúde!
Depois que melhorei, a minha vontade de viver e sentir
tudo de forma intensa aumentou ainda mais. Era
simplesmente incrível estar bem fisicamente para fazer
tudo o que eu quisesse. Lembrei-me de uma frase do
livro O mundo de Sofia, que eu li quando tinha 15 anos.
Na época, quando li o livro, essa frase tinha me deixado
muito intrigada, tanto que a lembrava até hoje e agora
ela parecia realmente fazer sentido:
“Se nunca ficássemos doentes, não saberíamos o que significa a
saúde. Se nunca tivéssemos fome, não experimentaríamos a
agradável sensação de saciá-la depois de uma refeição. Se nunca
houvesse guerras, não saberíamos o valor da paz, e se nunca
houvesse inverno, não poderíamos assistir a chegada da primavera.
Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo.”[2]
13. Teacher Lê

Como uma brasileira ensinaria inglês para crianças


tailandesas? Essa era uma pergunta que vinha me
perseguindo desde o momento que eu soube que daria
aulas. Eu não tenho formação e nem experiência como
professora. Ainda no Brasil, eu fiz algumas pesquisas e
também pedi ajuda à Sandra, minha querida dinda. Para
quem não sabe, “dinda”, no Sul, é como chamamos a
nossa madrinha. No meu caso, como eu fui batizada mais
velha, eu tive o privilégio de escolhê-la: Ela é professora
de inglês, tem o dom para lidar com alunos e fez questão
de me dar uns livros e dicas preciosas. Com isso, deduzi
que seria necessário utilizar todos os elementos que
fossem comuns entre nós. Precisaria escolher
ferramentas que não precisassem de palavras para
explicar.
Na prática, seria bem diferente. Mas sabia que a
minha boa vontade e as razões pelas quais eu estava ali
seriam mais fortes do que minhas dúvidas e medos.
Gostaria muito de dizer que eu me preparei para o meu
primeiro dia, mas eu não sabia nem por onde começar.
Concluí que teria que dar a cara a tapas para iniciar.
A essa altura, éramos um grupo de cinco voluntários:
eu, o chinês do primeiro dia, um menino de Cingapura e
duas chinesas, que haviam chegado recentemente e
estavam morando na creche que havia em frente à
escola. O Jason entregou um papel para cada um,
contendo nosso cronograma do dia. A escola atendia o
equivalente a alunos da pré-escola até a oitava série (o
que, hoje em dia, chamam de nono ano). Jason
complementou dizendo que havia outras escolas na
região que também tinham interesse em receber
voluntários e que, se tivéssemos interesse, poderíamos
dar aula em outros lugares.
Eu fui a primeira a me manifestar, dizendo que não
me importava em me locomover para outras escolas e
que ficaria feliz em conhecer novos lugares. Os outros
voluntários não expressaram muita vontade, logo, acho
que o Jason contou comigo para essa missão e eu fiquei
empolgada.
Estava tão empolgada que me perdi logo de cara: não
conseguia achar a minha sala. A escola não era grande,
mas tinha dois andares e eu não fazia a menor ideia de
onde ficava o quê. Sorte que tinha escrito a sala no papel
e os alunos me levaram. Os professores não precisavam
tirar os sapatos para dar aula, mas, como para os alunos
era obrigatório, eu preferia ficar descalça também. A
única diferença é que os alunos tiravam os sapatos na
entrada pra escola e eu tirava apenas antes de entrar na
sala.
Assim que tirei meu chinelo e entrei, o silêncio se
instaurou na sala de aula e rapidamente os alunos
ficaram de pé, enquanto um dava um tapa na orelha do
outro que ainda não tinha notado a minha presença.
Fiquei de frente para eles e antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, eles gritaram em uníssono: “Good
Morning, teacher. How are you today?”.
A frase tinha um ritmo engraçado: era tão bem
decorada que saia como se fosse cantada. Eu sorri,
demonstrando satisfação com o que estava vendo.
Respondi: “Good Morning. I’m good. How are you
today?”. A resposta veio logo em seguida: “I’m fine.
Thank you”.
Parecia um bom começo. Rapidamente me virei para o
quadro para escrever algumas coisas que me ajudariam
na minha apresentação: meu nome, idade, país. Eles
continuavam em um silêncio absoluto, então, me virei e
percebi que todos continuavam de pé. Me dei conta de
que eles estavam aguardando o meu comando para que
se sentassem.
Ri sozinha. Jamais esperaria isso dos alunos. Disse que
podiam se sentar e comecei a me apresentar. A
dificuldade já começou logo de cara: eles não
conseguiam falar meu nome! Assim sendo, eu disse que
podiam me chamar de Lê. Logo, meu nome se tornou
alguma coisa entre Teacher Li, Lé e Lê.
Comecei a ensinar perguntas básicas de conversação:
“como você está”, “qual a sua idade”, “de onde você é”.
Só tinha um problema. Quando eu fazia uma pergunta,
como, por exemplo, “Where are you from?”, eles não
entendiam que precisavam responder e apenas repetiam
“Where are you from?”.
Faziam assim com absolutamente tudo o que eu dizia.
Era como conversar com um papagaio. Eles falavam
“Where are you from?” e eu apontava para mim e dizia
“Teacher Le”, “I’m from Brazil”. Adivinha o que
acontecia? Um monte de tailandezinho repetindo “I’m
from Brazil”. Eu levei algum tempo entre mímicas e
exemplos para fazê-los entender o que era a pergunta e
o que era a resposta. Quando eles entenderam, eles
mesmos riam do que tinha acontecido.
Não tinha sido um mau começo. Terminei a aula e fui
para a próxima turma. Quando cheguei na porta, percebi
que eles eram mais novos do que a turma anterior. Antes
de entrar, corri na sala dos professores e dei sorte de
encontrar a Pony, uma das professoras que falava inglês
muito bem. Peguei meu celular para anotar e pedi para
ela me ensinar algumas palavras em Thai, incluindo
“pergunta”, “resposta”, “muito bom” e “vocês
entenderam?”.
Nunca quatro palavrinhas tinham me ajudado tanto na
vida. A segunda aula já foi bem mais fácil, mesmo que o
inglês deles não fosse tão bom quanto o da primeira
turma. Mas o que mais me surpreendia era o respeito
que tinham comigo. Quando passavam na minha frente,
eu percebia que eles se abaixavam em sinal de respeito.
E, uma vez que eu estivesse falando, o silêncio tomava
conta da sala.
Nós, os voluntários, não tínhamos um cronograma
muito cheio, então, acabávamos nos encontrando na sala
dos professores entre os intervalos. Assim, fui
conhecendo melhor os meus companheiros: O Vimos, a
Victoria, a Summer e o Sum, de Cingapura.
Fui conhecendo mundos totalmente diferentes. O Sum
contava coisas incríveis sobre como Cingapura era um
país superdesenvolvido. O Vimos e a Victoria me
surpreendiam contando sobre a vida na China. Vimos
dizia que a maior preocupação dos jovens chineses era
ter o seu próprio imóvel, sendo esse um passo
importante para conseguir uma namorada. Victoria
relatava a rotina incesssante de estudos pela qual
passavam.
A Summer era uma chinesa à parte: ela tinha se
mudado para a Inglaterra para fazer faculdade. Mas o
que me deixou mais curiosa eram os nomes deles, que
não pareciam nada chineses. Descobri que eram nomes
que eles mesmos inventavam quando saíam da China,
visto que seria impossível para as pessoas lerem, falarem
ou escreverem os seus nomes originais. A mesma coisa
acontecia com os nomes tailandeses: nunca soube ao
certo se eles eram inventados ou uma tentativa de
transliteração, porque também usam outro alfabeto.
A hora do almoço se tornou uma das minhas favoritas.
A escola tinha uma cozinheira que preparava
diariamente as refeições para a escola toda. A comida
era absurdamente saborosa. Os tailandeses têm muito
orgulho da sua culinária, então, ficam muito felizes
quando você aprecia a comida. Posso dizer que eles
estavam muito felizes em me ver comendo.
Eu estava viciada no arroz branco, totalmente
diferente do nosso arroz bem temperado e soltinho: ele é
meio grudento e sem tempero nenhum. Mas o segredo é
comê-lo junto com os pratos super bem temperados e,
muitas vezes, apimentados. Comia com garfo e colher: a
colher fazia a vez do garfo e o garfo a vez da faca. Meio
confuso, né? Bom, você usa o garfo para ajudar a colocar
a comida na colher e come com a colher mesmo. Para
mim, era perfeito, porque com a colher dava pra comer
todo o caldinho da comida com o arroz.
Eu não sei explicar os pratos. Alguns tinham uma cara
horrível, mas eram muito saborosos e metade do que eu
via, eu não sabia o que era. E foi confundindo pimenta
com pimentões que me acostumei com o sabor
apimentado da culinária tailandesa.
14. Eu era livre

O Jason começou a me dar um cronograma variado.


Alguns dias professores de outras escolas me buscavam
para que eu fosse dar aula em suas escolas. Eles
apareciam para me buscar mais animados e ansiosos do
que eu. Eu gostava dessa rotina, porque assim conhecia
pessoas e lugares diferentes. Foi bom também porque
comecei a usar a bicicleta que tinha na escola para me
locomover, uma vez que o meu horário não era mais o
mesmo do que o das minhas roommates. Finalmente
entendi porque elas não me deixavam sair sozinha e
porque sempre me faziam ir de carro para os lugares. A
razão era porque não queriam que eu pegasse sol.
Um dia, decidi que ia andando. Mal havia saído de
casa e uma das professoras correu atrás de mim com um
guarda-chuva. Fazia um sol de rachar e não havia sinal
nenhum de que choveria. Eu ria sem entender nada, mas
como não conseguíamos nos comunicar, eu acabei
pegando o guarda-chuva.
Aos poucos, fui descobrindo que, para eles, o bonito é
ter a pele clara, pois quem tem a pele mais escura são as
pessoas que trabalham pesado debaixo de sol por não
terem tido oportunidades melhores.
Eu cheguei a reparar que eles vendem na farmácia
cremes que prometem clarear a pele. Sem contar que
meus alunos aparecem de manhã com a cara branca,
cheinha de talco, simplesmente porque é bonito ser
branco. Quando eu descobri isso, achei uma maluquice
sem tamanho.
Mas, logo em seguida, percebi que era exatamente
assim que funcionava de onde eu vinha, só que ao
contrário. O bonito é estar bronzeado e existem vários
recursos que garantem esse resultado. O ser humano
quer o que não pode ter. A televisão nos vende o oposto
do que temos, tornando isso uma busca irracional.
Eu acabava, na maioria dos dias, dando alguma aula
na escola do lado de casa. Como os alunos iam de
bicicleta, eu e a Victoria começamos a acompanhar as
crianças até suas casas. A Summer não estava se dando
muito bem com a vida no interior: outro dia, ela chegou
na escola aos gritos, porque disse que tinha visto uma
cobra atravessar na frente dela enquanto andava de
bicicleta. E ela vivia reclamando das formigas e dos
insetos. Logo, ela negava os nossos convites que
envolviam um alto risco de encontro com a vida
selvagem e gostava mesmo quando Jason nos levava
para a cidade de carro.
O vilarejo tinha um centrinho bem pequeno, onde
aconteciam as feiras e onde ficava o templo budista. Era
onde tinha também uma concentração maior de casas:
todas de madeira e muito pequenas para a quantidade
de pessoas que viviam nelas. Depois, o vilarejo
continuava um pouco espalhado, com casas na beira da
estrada de chão.
Parecíamos uma gang. A brasileira, a chinesa e, pelo
menos, mais uns 10 alunos tailandeses nos
acompanhando. Alguns dos alunos nos convidavam pra
conhecer as suas casas, outros gritavam em inglês o
nome dos animais que encontrávamos no caminho, como
uma maneira de mostrar o que haviam aprendido em
sala.
Quando encontrávamos com os pais de alguns dos
alunos, eles orgulhosamente explicavam que éramos as
professoras de inglês. Os pais sempre faziam uma
reverência de respeito e agradecimento. Eu ficava sem
graça, porque sei que na cultura tailandesa o jovem é
aquele que deve prestar respeito aos mais velhos, mas
os professores são tão respeitados como alguém de
idade.
Pedalando pelo vilarejo de volta para casa, eu sentia
uma alegria tomando conta de mim. Eu pedalava muito
rápido e depois soltava os pés dos pedais, para sentir o
vento batendo no meu corpo. Eu era livre. Eu não tinha
contas para me preocupar, me vestia com uma roupa
qualquer, meu meio de locomoção era uma bicicleta
velha, eu recebia sorrisos o tempo todo e me sentia grata
a todo o momento pelo que estava vivendo.
Às vezes, era até estranho ser tão livre. Parecia que
eu precisava de um compromisso ou de um problema
para resolver. Mas eu não tinha. Era muito
recompensador trabalhar sem a troca de dinheiro. Se eu
estivesse ali trabalhando por um salário, eu não estaria
tendo o mesmo prazer. Quanto mais eu vivia essa
experiência, mais eu acreditava no nome do meu projeto:
Do For Love. É muito genuíno trabalhar em troca do que
a outra pessoa tem a te oferecer. E eles sempre me
ofereceram o melhor que tinham. Por essa razão, eu
dava o meu melhor em retorno. Guardei esse momento
na minha memória para que esse fosse o meu parâmetro
de felicidade e prometi que não aceitaria menos do que
isso para a minha vida.
Viajar transforma a alma e os sentidos. A cada dia,
tenho mais vida dentro de mim e isso me transborda.
Essa viagem, que apenas começou, tem me
transformado dia a dia. Eu tenho medo dessa pessoa que
estou me tornando. Eu vi muita coisa, conheci muita
gente, perdi os hábitos e costumes, virei camaleão, como
de tudo, aceito as pessoas como elas são e vi muitas
paisagens.
Aceitei o que eu achava impossível e neguei o que por
tanto tempo desejei. Tenho medo de ter que voltar a
viver do óbvio. Eu prometo a mim mesma agüentar a
estrada mais cansativa, a mochila mais pesada e o
destino mais incerto, mas peço que a vida não me deixe
pousar no ninho do conformismo. As minhas asas querem
voar e, desde que pisei na Ásia para dar início a este
projeto, eu acredito que já não existem mais limites de
onde elas podem me levar.
15. Você vive ou sobrevive?

Constantemente eu sentia a necessidade de escrever e


compartilhar meus textos na página do Do For Love que
eu havia criado no Facebook. Algumas vezes, por solidão.
Outras, pela necessidade de compartilhar tantos
sentimentos novos que transbordavam em mim. Eu
queria contar para mais pessoas tudo o que eu estava
vendo e aprendendo. Escrever começou a fazer parte do
meu dia a dia e várias pessoas foram viajando junto
comigo por meio dos meus textos. Quanto mais eu ia me
expondo no mundo virtual, mais companhia eu tinha
durante o meu percurso.
20 de julho
“Aqui eu ando de pé descalço dentro de casa e da escola o dia todo.
As condições de higiene não são as melhores possíveis. Vejo aquelas
carnes expostas ao tempo nas feiras e provavelmente eu como em
lugares que as tem como fornecedores. Tomo banho de caneca.
Durmo no chão. Abraço crianças o dia inteiro. Tenho dois sapos de
estimação no banheiro, algumas aranhas no quarto e mil insetos por
tudo quanto é lado. Como arroz branco todos os dias pelo menos em
duas refeições. Frituras fazem parte do cardápio também. Me sinto
disposta. Sobre o banheiro? Eu prefiro não comentar. Lavamos as
roupas à mão. Compartilhamos a comida. Mas é aqui também que
na primeira semana eu melhorei de uma gripe que durou mais de
dois meses. Aqui, eu dou pelo menos uma boa gargalhada todos os
dias. Aprendi a sorrir ainda mais. Não existe nenhum programa de
televisão te dizendo o que comer e a que horas. As crianças não
acham que os alimentos vêm da prateleira do mercado e todos os
dias antes das refeições pedem para que os agricultores sejam
abençoados. O horário é flexível, mas o trabalho é árduo. Tenho
pessoas ao meu lado que pensam tanto em mim que, às vezes,
esqueço-me de pensar em mim mesma. Eles cuidam uns aos outros.
Sem interesses. Sem recompensas. É natural. Não preciso de roupas
lindas e caras para me dizerem que estou bonita. Escuto isso todos
os dias. E aprendi a dizer isso a eles também. Porque são lindos em
todos os sentidos. Não que a vida aqui seja perfeita, longe disso,
mas é um bom parâmetro de comparação com a vida idiota que
levamos. Pare e pense em tudo. Vivemos para cumprir obrigações,
obedecer a regras, preencher protocolos e pagar pelo que não
precisamos ter. Faça. Pague. Declare. Limpe. Coma. Desista.
Preencha. Envie. Pague de novo. Nós nos achamos tão modernos
com nossa tecnologia, mas não enxergamos que vivemos mesmo
em meio a pão e jogos circenses. Nos entopem de informações que
não precisamos para não procurarmos no silêncio os nossos
verdadeiros desejos e vontades. Enchem nossa cabeça com
inutilidades. Nos fazem acreditar em resultados comprados. Até
quando você reclama, você está sendo manipulado. Te chamarão de
arruaceiro, rebelde, marginal, hippie ou quem sabe, maluco. Eu diria
que você é uma pessoa consciente em meio à loucura. Ninguém
precisa dessa lona para viver. Vamos repensar. Vamos procurar o
nosso verdadeiro caminho. Vamos procurar respostas e parar com as
desculpas. Afinal, quem é você? Você precisa do que para ser feliz?
Você vive ou sobrevive?”.
16. Progresso em
sala de aula

Dentre tantas crianças e pessoas que eu havia


encontrado no vilarejo, os meus olhos brilhavam por uma
em especial. E esse ser de luz era o Tea: ele estava na
turma dos pequenos, na faixa dos 5 aos 7 anos. Durante
as atividades em sala, comecei a perceber que ele não
falava direito e que estava o tempo todo salivando: suas
roupas chegavam a ser manchadas pela saliva excessiva
e constante.
Por ter dificuldades em aprender, passei a ajudá-lo
individualmente com os exercícios. Ele não conseguia
escrever o alfabeto, então, eu me deitava no chão com
ele (nessa classe, não havia mesas e nem cadeiras),
segurava na sua mão e ia ajudando com o desenho das
letras. Mas ele babava a folha toda e virava uma
bagunça, porque a folha rasgava e não conseguíamos
fazer toda a atividade. Mesmo assim, eu ficava feliz
porque via ele feliz. Não sei se por conseguir escrever, ou
se por ter alguém ali que lhe dava atenção.
Tirando ele, a maioria das crianças aprendia com
facilidade e eu considerava que estava tendo muita sorte
pelo fato dos alunos serem extremamente respeitosos e
educados, o que facilitava em muito a minha vida de
professora estreante. Com isso, eu fui adaptando o plano
das minhas aulas porque achava aquele jogo de
perguntas e respostas um tanto tedioso. Pelo menos, eu,
como aluna, o acharia.
O próximo passo foi pedir para que os alunos viessem
até o quadro e desenhassem. Eu via as figuras do livro e
não entendia a utilidade de ensinar para eles coisas
como primavera e cinema. Pedindo para que eles
desenhassem, eu conseguia trazer o que era importante
e útil para a vida deles, até mesmo porque eu já tinha
tido provas suficientes de que eu não sou tão boa com
mímica e seria impossível eu descrever o que era a
primavera para crianças que vivem em um país em que
existe, basicamente, a estação da seca e a da chuva.
A partir dos desenhos, eu ia ensinando um
vocabulário novo e útil para eles, sem ser muito
massacrante. Funcionava bem e fui incluindo
brincadeiras com cores e animais.
Eu estava feliz com o progresso que estava tendo em
sala de aula, mesmo sabendo que estava longe de ser o
ideal. Mal sabia que minha felicidade estava prestes a
acabar no dia em que fui dar aula em uma outra escola
junto com o Vimos. Falando nele, hoje descobri que o
Vimos não conhece Bob Marley e que não sabe o que é
tequila. Eu, como boa amiga, falei para ele não se
preocupar, porque ele tinha encontrado a pessoa certa
que o ajudaria com esses problemas em um futuro breve.
Mas, voltando à escola, tudo começou bem até
entrarmos em uma sala de aula com crianças de sete
anos, que vestiam um uniforme rosa. Eles simplesmente
ignoraram a nossa presença, o que, até então, era
inédito. Mas se já não bastasse isso, alguns estavam
correndo enquanto empurravam as cadeiras pela sala,
enquanto outros, sentados sobre as mesas, empurravam
o coleguinha na mesa ao lado.
Eles não entendiam nada de inglês, mas se
assustaram com uns berros que eu dei e pararam.
Resolveram continuar a aula do jeito que estavam,
alguns sentados no chão, outros na cadeira virada ao
contrário, outros de pé junto ao quadro e, até mesmo,
sobre a mesa. Quando aceitamos que não teria como
organizar aquela bagunça, acho que eles ficaram
satisfeitos. Conseguimos ensinar o alfabeto escrito pelos
próximos 20 minutos. Depois, parecia que eles tinham
resolvido tirar o intervalo ali dentro da sala mesmo.
Eu e o Vimos desistimos, sentamos e ficamos
observando. Eles eram rápidos e, em poucos minutos, já
estavam tirando selfies com o meu celular e empurrando
a cadeira com o Vimos sentado nela.
Apesar de rir e de me divertir com a cena, eu sabia
que a nossa aula tinha sido um desastre. Enquanto
estava observando a bagunça toda, reparei que, apesar
da escola ter uma infra-estrutura bem simples e carecer
de material escolar, eles tinham uma televisão. Lembrei-
me de que eu tinha trazido o meu computador e tive a
ideia que mudaria as minhas aulas a partir de então.
Enquanto o Vimos pedia ajuda para uma professora
para instalar o computador na televisão, eu pesquisei
alguns vídeos, todos eles muito coloridos, com música e
cheio de desenhos que ensinavam o alfabeto.
Quando apertamos o play, foi como mágica. Eu tinha
achado o ponto fraco deles. Eles prestaram atenção
absoluta na aula, cantando e dançando junto com a
gente. E, como que por um milagre, conseguimos mantê-
los assim até o final da aula.
Voltamos para o vilarejo super animados com o nosso
dia de aula e até aproveitei o wi-fi na sala dos
professores para baixar mais vídeos com outras
temáticas. Passei a trabalhar a maioria das minhas aulas
assim, mesmo quando não tínhamos televisão. Nesse
caso, usava o próprio computador com as crianças
maravilhadas ao redor dele.
Quando cheguei de volta em casa e entrei no meu
quarto, reparei que todas as minhas roupas sujas, que eu
tinha deixado separadas para lavar, estavam limpas e
penduradas organizadamente em cabides ao longo de
um varal improvisado no meu quarto. Se a minha mãe
não estava ali, quem teria feito isso?
Depois de investigar o caso, descobri que tinha sido a
Kob, que resolveu me ajudar com as roupas e lavou todas
elas a mão. E sem o inglês para eu explicar que ela não
precisava ter feito aquilo, me restou abraçá-la como um
sinal universal de que eu estava grata pela gentileza.
17. Agricultores
e Policiais

Eu gostava da maneira como o Jason era inquieto e


estava sempre procurando jeitos de fazer com que o
projeto dele atingisse mais pessoas. Quanto mais eu o
conhecia, mais o admirava. Passei a ajudar também na
administração do projeto, respondendo e-mails,
organizando os textos do site e resolvendo alguns
problemas que surgiam. Era um prazer trabalhar ao lado
de pessoas com objetivos bonitos, que buscavam o
crescimento coletivo e não somente o seu próprio.
Quando eu já estava me acostumando a dar aula de
inglês para as crianças, recebo duas propostas
surpreendentes do Jason: ele me convidou para dar aulas
para os agricultores e para os policiais do vilarejo.
O aulão que fizemos reuniu um número muito grande
de agricultores da região, surpreendendo as nossas
expectativas. Quando fiquei em frente a eles para iniciar
a aula, meus olhos ficaram marejados. Era uma cena
única que eu estava presenciando: dezenas de
trabalhadores rurais, já com uma certa idade, unidos ali
pela chance rara de estar em contato com o
conhecimento. Eu não sou ingênua de achar que eles
facilmente aprenderiam a língua inglesa e que sairiam
falando por aí, mas em todo lugar que tivermos pessoas
reunidas em busca de conhecimento, há a certeza de
que estamos na direção certa.
Eles me olhavam de forma curiosa e estavam ávidos
por aprender algo novo, nem que fosse uma palavra.
Alguns estavam ali para poder incentivar os filhos, pois
tinham esperança que a língua inglesa poderia lhes dar
oportunidades melhores no futuro. Outros estavam
curiosos com a possibilidade de entrar em contato com
uma ocidental e, no final da aula, pediam para tirar foto e
me abraçavam fortemente.
E esse motivo era muito válido também, porque isso
nos deixava mais próximos como seres humanos: uma
loira branca não seria mais coisa da televisão e eles
poderiam contar para as outras pessoas que conheceram
uma e que tiveram uma experiência positiva. Assim
como para mim, que tinha a oportunidade de contar ao
mundo sobre eles. O ser humano é naturalmente curioso
e entrar em contato com o desconhecido diminui as
barreiras, agregando valor às relações humanas.
Uma das coisas mais bonitas que tem acontecido
nessa viagem é olhar para um desconhecido que,
aparentemente, é tão diferente de mim e sentir empatia,
quebrando meus preconceitos e me fazendo perceber
que há muito mais semelhanças do que diferenças entre
nós. A nossa cor, religião, roupa ou profissão não diz
nada a respeito de quem somos, a partir do momento em
que estou consciente de que, assim como eu, esse ser
humano tem as mesmas necessidades que as minhas.
Nossos deuses podem ter nomes diferentes, mas ambos
buscamos o amor e a paz.
Eu via muita pureza naquelas pessoas, coisa que eu
não via com muita frequência na minha vida ocidental.
Sempre que eu chegava em algum lugar, eu percebia
que, mesmo que eles tivessem muito pouco, o que eles
tinham de melhor era oferecido a mim. Eu percebia que
uma das principais diferenças entre nós era o fato de que
eles não tinham acesso fácil ao básico e dependiam de
um trabalho em comunidade para que suas necessidades
fossem atendidas.
Uma família plantava verduras e a outra, arroz. Não
existia a competitividade para ver qual a plantação seria
mais produtiva, porque eles dependiam da produção do
todo. Esse senso de comunidade vem se perdendo,
infelizmente, em nossas vidas.
A experiência no posto da polícia foi tão
enriquecedora quanto a com os agricultores. Assim que
me apresentei, notei a importância que eles estavam
dando para aquele momento. Havia até um banner
exposto na parede, na frente da sala, que dizia:

Programa de Treinamento da língua inglesa para


policiais.
Preparação para o AEC.

No momento em que vi a sigla AEC no banner, lembrei


que havia lido em algum lugar, provavelmente em algum
jornal, sobre o AEC. Era a Comunidade Econômica ASEAN
(abreviação em inglês para Associação de Nações do
Sudeste Asiático), uma integração regional que prometia
a criação de uma área de livre comércio, visando à
circulação de mercadorias e de trabalhadores como uma
forma de atrair investimentos na região. Mas, mesmo
com essa informação, eu não conseguia entender porque
a minha aula de inglês estava ligada à AEC e tirei a
minha dúvida com o Jason, que me explicou que com a
materialização da AEC haveria um fluxo muito maior de
pessoas e de produtos, o que exigiria dos tailandeses que
fizessem contato com estrangeiros. Tanto o inglês como
outras línguas regionais seriam de grande valia para o
futuro dos profissionais de todas as áreas.
Eu gostava do fato de estar participando ativamente
de algo que eu tinha lido no jornal. Era curioso ter tantos
policiais fardados prestando atenção minuciosa a tudo
que eu dizia. Ensinei direções e nomes de lugares, pois
eles diziam que queriam ajudar os estrangeiros com
informações. Lembrei que, quando fui furtada em
Bangkok, encontrei um policial que falava inglês e me
ajudou. Olhando para a turma, eu desejava que o que eu
estava ensinando se transformasse, um dia, em
informação para algum outro viajante em apuros.
18. Vivendo como
uma local

Entre dias cheios de novidades e dias de solidão, eu ia


vivendo minha experiência como voluntária no vilarejo e
nem eu fazia ideia do quanto eu estava aprendendo. Não
somente sobre o lugar, mas, principalmente, sobre mim
mesma.
Nas primeiras semanas, eu costumava escrever com
frequência para o moreno. Mas, aos poucos, comecei a
me observar e percebi que, o que inicialmente parecia
saudades, era na verdade, solidão. Nossas mensagens
foram ficando cada vez mais esporádicas e,
naturalmente, nos afastamos. O que nos unia agora eram
alguns likes no Instagram. O Instagram me mostrava um
mundo completamente diferente do meu e chegava até
mesmo a questionar a minha sanidade. Enquanto via
garotas parecendo bonecas saindo para lugares
badalados, eu estava com os pés descalços, pulando
corda em um vilarejo isolado na Tailândia. Elas tinham
200 likes, eu tinha 30. Alguma coisa estava errada.
Independentemente dos likes, eu me sentia cada vez
mais parte da realidade que estava vivendo no pequeno
vilarejo. Passei a perceber como a imagem do rei da
Tailândia era venerada como se fosse um Deus. Ela
estava presente em todos os lugares que eu ia. Descobri
que ele é o monarca que está há mais tempo no trono no
mundo: desde 1946. Isso, de acordo com o nosso
calendário, porque aqui estou vivendo no ano de 2.556,
conforme o calendário budista.
Aprendi a pedir comida sem pimenta e café sem
açúcar em tailandês e sabia que, mesmo assim, minha
comida viria apimentada e meu café, doce. Acostumei-
me com a forma direta com que os tailandeses sempre
me pergutavam minha idade e se era casada.
Gostava de como eles davam risada de tudo, inclusive
deles mesmos, independentemente se fosse uma
situação difícil ou séria, e já estava acostumada a ver as
tailandesas comendo insetos fritos no café da manhã em
casa. Eu até já tinha experimentado um grilo frito! Cada
um com seu paladar, mas eu preferia um escorpião bem
torradinho do que o grilo com o miolo meio mole.
Gostava de inseto sem a sensação de ele ser recheado.
Eu não era a única que estava aprendendo coisas
novas. Em um final de semana, finalmente pude
apresentar uns shots de tequila para meu amigo Vimos,
enquanto escutávamos Bob Marley, em um bar de baixo
nível em Pattaya. Nas ruas da cidade, víamos prostitutas
e velhos gringos.
Em alguns momentos, tinha a sensação de estar em
Amsterdam, vendo prostitutas nas vitrines, com luz
vermelha ao fundo. Os preços baixos e o turismo sexual
são os atrativos para a maioria dos turistas dessa cidade
litorânea, que fica apenas uma hora de carro de
Bangkok. Nós só queríamos um final de semana divertido
em uma praia.
Depois de cumprir minha promessa com o Vimos,
seguimos de volta ao hotel onde estávamos. Victoria
estava abismada com tudo o que tinha visto e explicou
que, na China, ela raramente saía, pois tinha que estudar
a maior parte do tempo e o máximo que lhe era
permitido era um karaokê com os amigos.
Eu não era fã de lugares como esse, mas também não
estava chocada com o que via. Isso me fez ficar próxima
da quarta integrante do nosso grupo nessa viagem: Lucy,
da Alemanha. Ela era uma das voluntárias que tinha ido
me buscar no meu primeiro dia e voluntariava em uma
outra cidade, próxima à minha. Como também era
voluntária do projeto do Jason, acabamos nos esbarrando
e a convidei para a viagem.
Era um alívio encontrar alguém com inglês fluente!
Sentia falta de conversar com quem tinha interesses e
conversas mais parecidos com os meus. E tê-la
conhecido foi a melhor parte da nossa viagem!
Lucy me contou do voluntariado que fez com animais
no Equador e das festas eletrônicas que gostava de ir na
Europa. Ela era alto-astral e muito divertida. Descobri
que as outras meninas que tinham ido com o Jason me
buscar no meu primeiro dia estavam na mesma escola
que ela. Ela ainda me disse que a família tailandesa com
a qual ela morava as levava para passear em todos os
finais de semana.
Logo, ela me convidou para me juntar a eles no outro
final de semana, que seria um feriado. Eu adorei a ideia,
pois vinha evitando ao máximo os finais de semana no
vilarejo: sem ter aulas para dar, eu acabava ficando sem
ter muito o que fazer e, até agora, tinha tido sorte de
sempre ter alguém para me levar para algum passeio
pelas redondezas.
Depois de um final de semana bem atípico em
Pattaya, pegamos o ônibus de volta ao vilarejo no
domingo à tarde, evitando chegar muito tarde. Sabíamos
que o próximo dia seria de celebrações, devido a um
grande feriado budista. Nem imaginava que, na manhã
seguinte, descobriria que eu seria a atração principal da
festividade.

...

Nessa segunda-feira, primeira lua cheia de julho, os


tailandeses comemoram o primeiro sermão dado por
Buda. Esse dia é conhecido como dia de Dharma, sendo
Dharma a verdade por ele ensinada. É uma das
celebrações mais importantes no budismo Theravada,
que é a vertente mais tradicional e antiga da religião.
Essa data também é importante porque marca o início do
Vassa, que são os três meses chuvosos nos quais os
monges devem dormir no mesmo templo e se dedicar
totalmente à meditação e aos estudos. Aprendi que essa
é uma época em que muitos homens se tornam monges,
motivo para muita comemoração por todo o país.
Segundo a tradição, os tailandeses devem levar velas,
água e comida para os monges nos templos. Como eu
moro no interior, aqui as tradições são muito fortes. Para
essa, em específico, eles escolhem uma mulher – a qual
deve se orgulhar por ser a escolhida, já que é uma
posição que todas as tailandesas gostariam de estar – e
um homem para se vestirem com roupas tradicionais da
Tailândia e fazerem a entrega das doações aos monges.
Assim que cheguei na escola pela manhã, descobri
que meus alunos e professores haviam me escolhido
para cumprir esse papel e pude sentir na pele o quanto
esse dia é importante para eles. Reparei que todas as
garotas estavam com tranças no cabelo, maquiagem
feita e ensaiando coreografias.
Alguns meninos também se maquiaram e se vestiam
com roupas tradicionais. Cercada pelas crianças e
professoras, fiquei sentada em uma cadeira, enquanto
elas faziam minha maquiagem. Depois, complementaram
arrumando meu cabelo com um coque falso, preso com
muitos grampos no topo da minha cabeça. Cuidavam de
todos os detalhes e riram quando perceberam que o
coque que fazia parte da vestimenta era escuro,
contrastando com meu cabelo loiro! Uma roupa
tradicional rosa, com detalhes em amarelo-ouro, concluiu
a produção.
Os olhares sobre mim eram de uma admiração que eu
nunca senti antes na pele. Crianças, adultos, professores,
policiais e agricultores não cansavam de repetir em Thai
que eu estava linda. Eu me olhava no espelho e ria. Meu
visual era composto por uma sobrancelha preta bem
definida, um coque preto que se destacava e uma roupa
que não se comparava a nada que eu já tivesse vestido
antes na minha vida. Para os padrões ocidentais, eu
estaria totalmente fora de moda.
Assim que fiquei pronta, eles me colocaram sentada
em uma cadeira na carroceria de uma caminhonete. O
carro foi detalhadamente enfeitado com papel crepom
colorido, fazendo lembrar um pequeno carro alegórico.
Alguém segurava um guarda-chuva para me proteger do
sol. Ao meu lado, estava Jason, devidamente produzido.
Os alunos se dividiram, alguns andando em frente ao
carro, que se locomovia em baixa velocidade, e outros
atrás, dançando e cantando até o templo que ficava
relativamente próximo.
As pessoas do vilarejo aguardavam a nossa passagem
na beira da estrada. Elas me olhavam, acenavam e
tiravam fotos. Eu via em seus olhos que estavam
deslumbrados e pensava se eles viam deslumbre nos
meus. O trajeto durou uns 20 minutos, até chegarmos ao
templo. Eu não saberia explicar com palavras o que senti
naquele momento.
Entramos no templo sob o olhar de admiração dos
moradores, fizemos a entrega dos alimentos e
participamos da cerimônia. Eu não entendia o que
oravam, mas não me apaguei ao significado e, sim, à
energia boa que emanava daquelas pessoas. Estava
fascinada. Eu vim até aqui para um simples voluntariado
e me pego vestida como uma tailandesa, na carroceria
de uma caminhonete, rodeada por crianças que me
admiram.
Enquanto observava o monge que parecia ter saído de
algum quadro que eu já tinha visto, eu agradeci dentro
de mim por poder viver esse momento. Seria normal eu
ter me sentido uma estranha no ninho, com o cabelo
metade de cada cor, uma sobrancelha artificialmente
preta e uma roupa para lá de diferente. Mas eu me senti
especial por fazer parte dessa data tão importante. Um
professor que falava inglês me explicou muito contente
que, para eles, eu sou uma ocidental muito diferente,
não na minha aparência, mas no meu jeito de ser. E esse
era o melhor elogio que eu poderia receber.
19. O ocidente
encontra o oriente

Comecei o dia com ótimas notícias vindas do Jason:


“O meu amigo monge entrou em contato comigo,
dizendo que você será muito bem-vinda como professora
voluntária na escola. Inclusive, tem um feriado se
aproximando e acho que é uma boa oportunidade para
você passar uns dias lá. O que você acha?” – Indagou o
Jason, sem nem saber o quanto eu estava esperando por
essa notícia.
“Claro! Confirma com ele para todos os dias do
feriado! Você não imagina como estou feliz de poder
passar uns dias na escola para monges. Obrigada por
fazer o contato.”. – Falei isso quase que saltitando na
frente dele.
Eu mal podia acreditar. Eu queria muito ter a
oportunidade de me voluntariar em uma escola para
monges, para conhecer um pouco mais sobre o budismo
e vivenciar o dia a dia deles. O Jason já havia me avisado
que eles jejuam depois do almoço, mas que eu teria
algumas opções de comida. Eles me dariam um lugar
para dormir e aulas de meditação, o que seria um super
desafio para a minha mente inquieta.
A semana passou devagar devido à minha ansiedade
para que chegasse logo o sábado. Acordei enquanto
ainda era escuro e podia escutar os sapos do lado de
fora. Coloquei umas roupas compridas na mala e esperei
pelo Jason. Ele me levaria até o ponto de ônibus, de onde
eu iria seguir de van até a próxima cidade. Ali, Pim, a
tailandesa com que Lucy estava ficando me buscaria.
Chegando no protótipo de rodoviária da cidade, vi
uma caminhonete com a Lucy e as demais voluntárias de
pé na carroceria, todas acenando e sorrindo. Logo em
seguida, Pim e o marido saíram do carro e se
apresentaram primeiro, seguido da sua filha de 12 anos.
Falaram que tinham programado alguns passeios durante
a manhã, mas que me deixariam na escola para monges
até o final da tarde.
A escola ficava em uma área isolada, a umas duas
horas de carro. Agradeci por eles se oferecerem a me
levarem até lá. O marido de Pim pegou minha bolsa e eu
pulei na carroceria, animada em conhecer melhor as
outras voluntárias. Eram duas chinesas, a Pepi e a Bai, e
uma polonesa, a Joana. Ficamos amigas logo de cara.
A Pim e família eram pessoas maravilhosas. Eles
queriam garantir a diversão do nosso dia nos levando
para inúmeros lugares, sempre contando histórias e
servindo de tradutores. Nos levaram para conhecer um
lugar muito curioso: uma escola de treinamento com
búfalos fundada por uma das filhas do rei. O objetivo da
escola é instruir agricultores a usar os búfalos para
preparar a terra, onde será plantado o arroz. Os búfalos
trabalham poucas horas por dia e apenas nos horários
em que o sol está mais baixo. Como chegamos próximo
ao meio-dia, eles estavam descansando.
Enquanto observava um dos animais de perto, um dos
tailandeses me ofereceu para fazer algo inusitado:
montar um búfalo. Com muito medo de levar uma
chifrada e com o apoio dos locais que se divertiam com
minha cara apavorada, montei no búfalo com sucesso.
Enquanto os búfalos descansavam, os agricultores
continuavam a todo o vapor, plantando o arroz na terra
já preparada. Pim me contou que a escola receberia a
visita da família real em breve e que, por isso, estavam
plantando toda a área para recebê-los. Brinquei, falando
que também queria plantar arroz para o rei. Pim traduziu
o que eu disse aos agricultores, eles levaram minha
proposta a sério e trouxeram galochas para eu entrar na
plantação.
E lá fui eu aprender a plantar arroz com os locais. Eles
me ensinaram a quantidade certa e a distância entre
cada uma das mudas. Eu me atolava a cada passo que
dava e quase perdia a galocha, mas fui acompanhando e
aprendendo enquanto a Pim ria de mim, tirava fotos e
traduzia o que eles diziam. A brincadeira durou uns 10
minutos, tempo suficiente para sentir dor nas minhas
costas e me incomodar com o sol rachando na minha
cabeça. Eles ficariam ali até o final do dia e tinham todo
o meu respeito.
Depois do passeio, fomos para o restaurante e
comemos muito. Dessa vez, o meu prato favorito foi um
peixe assado inteiro, com muitas especiarias, pimenta e
arroz para acompanhar, é claro. Rapidamente, fiquei
amiga das meninas. Conversamos muito sobre as
curiosidades da vida tailandesa. Elas estavam tendo uma
experiência muito diferente da minha, já que moravam
na cidade e tinham acesso a muitas coisas, ainda mais
com a Pim e a família as levando para todos os lugares.
Mas mesmo com a experiência mais isolada, eu não
trocava a pureza do meu vilarejo por nada.
Como prometido, na metade da tarde, eles me
levaram para a escola para monges e partiram. Mais uma
vez, eu estava sozinha em um lugar que era totalmente
desconhecido para mim. Mas o desejo pelo desconhecido
sempre foi o meu combustível. Meu medo maior era o de
não ver o mundo. Esse era o motivo por eu estar ali,
parada em frente a uma escola para monges,
observando com olhar de criança, enquanto imaginava
tudo o que eu estava prestes a viver ali.

...

Sentada em uma minivan que balança sem parar, em


meio a buracos de uma estrada de chão, eu vejo a escola
de monges ficando para trás. Um lugar que, há dez anos,
era apenas mato e que, hoje, parece mais com uma
floresta, plantada pelas mãos de muitos dos monges que
vivem lá até hoje. Trago comigo recompensas intangíveis
e do que é físico: dois livros que acabei de receber dos
monges como uma forma de agradecimento pela minha
ajuda. Isso soa tão engraçado. Eu era a pessoa que
deveria ter comprado uma biblioteca de agradecimento a
eles. Gostaria de poder dizer que os recebi das mãos dos
monges, mas isso jamais aconteceria porque os
costumes budistas não os permitem tocar em uma
mulher. Havia um pano de crochê laranja nos separando
e nesse momento eu li na capa do primeiro livro “O
ocidente encontra o oriente”. Não haveria outro título
que resumisse melhor essa experiência.
Antes de chegar na escola de monges, nem eu
mesma sabia para onde exatamente eu estava indo. Mas
cheguei preparada com muito respeito, curiosidade, com
a cabeça aberta e disposta a não julgar, mas a aprender.
E é com esse mesmo propósito que convido vocês a
viverem um pouco dessa experiência comigo. Esse lugar
é uma escola onde crianças e adolescentes estudam,
moram e vivem de acordo com os preceitos budistas,
que são muito rígidos.
Muitos dos professores são monges que moram na
escola, havendo também funcionários leigos que têm a
opção de morar lá ou não. Os noviços estudarão na
escola até terminar o que seria equivalente ao nosso
Ensino Médio e, aos 20 anos, finalmente realizam o
sonho de se tornarem monges e seguirão para a
universidade.
Essa escola é gratuita – mantida por doações – e
posso dizer que a infra-estrutura deles deixaria para trás
muitas escolas particulares no Brasil. A minha sorte foi
poder ter um quarto com ar condicionado e um chuveiro
com água quente. Luxo.
No Budismo, as pessoas comuns devem seguir cinco
preceitos, semelhante à ideia dos mandamentos na
religião católica. Os budistas que praticam a meditação
com mais intensidade seguem oito, os monges noviços,
dez, e os monges, 227 no total. Isso quer dizer que estas
crianças aceitam viver suas vidas até os 20 anos de
idade obedecendo as seguintes regras: não matar
nenhum ser vivo (incluindo formigas e insetos), não
roubar, ser casto, utilizar linguagem adequada, não
ingerir bebidas alcoólicas, não comer depois do meio-dia,
não participar de atividades de entretenimento, não
embelezar o corpo, não dormir em leitos elevados ou
luxuosos, e não aceitar ouro ou dinheiro.
Durante esses quatro dias, eu não ensinei o inglês
propriamente dito, como se espera de uma professora.
Estávamos todos muito curiosos quanto às nossas
diferenças para nos preocuparmos com regras e
explicações gramaticais. E isso não era problema
nenhum, se percebermos que é na curiosidade que mora
o verdadeiro aprendizado.
Respondi perguntas sobre a Floresta Amazônica,
piranhas e tucanos, coisas que eles leram nos livros.
Expliquei sobre como conseguimos comer arroz com
garfo e que a nossa língua é o português. Não poderia
deixar de falar sobre futebol, samba e Rio de Janeiro!
Eles queriam saber se eu já tinha escalado uma
montanha ou se eu já tinha visto um dragão-de-Komodo.
Eu fui como uma janela para o mundo.
Estava curiosa para saber o motivo que os levaram a
escolher serem monges tão cedo. A resposta era óbvia
para eles. Eu escutei crianças de 12 anos me explicando
que eles gostariam de ser felizes, meditar, dando esse
orgulho a seus pais e carregando consigo o mérito de ser
monge. Eles buscam, acima de tudo, a felicidade que a
vida como monge traz. Essa foi uma escolha própria de
mais da metade dos noviços que eu questionei e o
restante disse que os pais propuseram tal opção. Nesse
momento, eu fervia por dentro: queria saber se eles
estavam felizes com a escolha ou se era difícil para eles
se adaptarem. As tradições não me permitiram, mas,
mesmo assim, saí dali impressionada com a sobriedade
destas crianças.
Eu sabia que as aulas de meditação não seriam fáceis
e, de fato, eu estava certa. A primeira foi uma meditação
caminhando. O monge me explicou que a meditação
pode ser feita a qualquer momento, inclusive andando ou
realizando atividades cotidianas.
Ele me pediu para tomar consciência da floresta, dos
pássaros, do perfume das flores e ia me guiando pela
meditação. Mas eu ainda estava muito curiosa e me
distraia fácil com detalhes, além de encontrar
dificuldades para caminhar com a saia longa branca que
haviam me dado, tropeçando passo sim, passo não.
A segunda foi uma meditação sentada em uma
cadeira. O mais óbvio aconteceu: eu caí no sono e não
me lembro de nada. A terceira foi sentada com as pernas
cruzadas em uma sala ampla, com o monge em um
degrau mais elevado, à minha frente. Durante os
primeiros minutos, ele me guiou, pedindo que eu
imaginasse uma bola de cristal dentro de mim.
É difícil explicar isso para um monge, mas, da melhor
maneira, eu disse que não consigo criar imagens em
minha mente. Sei que soa estranho, mas é a mais pura
realidade. Se alguém me pedir para fechar os olhos e
imaginar a minha mãe, nada me virá a cabeça. A única
coisa que me vem é o sentimento que aquela pessoa ou
objeto me traz. O monge achou que ia facilitar me
pedindo para imaginar uma praia. Não queria ficar
argumentando com o monge e me esforcei, já que eu
amo praia.
Simples, imagine uma praia. Aquela praia que eu fui
no Hawaii era incrível. Acho que peguei uma carona para
chegar até lá. Sim, foi isso mesmo, um havaiano me
levou, gente finíssima. Ops, era pra pensar na praia. Foca
e pensa na praia. Calma. Água azul, areia. Mas com tanta
praia, em qual devo pensar? Hummm… Cerveja e
camarão combinam muito com praia. Estou com fome,
será que o monge está com fome também? Coitado, faz
jejum todo dia. Mas todos tem smartphone e até vi um
monge tomando whey protein outro dia. Monge pode
tomar whey protein? Esquece os monges, pensa na praia.
Água azul, areia…
E assim se seguiu a minha briga interna pelos
primeiros cinco minutos, até eu começar a ter câimbras e
ficar com uma vontade de sair correndo da sala. Espiei o
monge e pude perceber que ele estava em outra
dimensão. Senti uma pontinha de inveja. Sem fazer
barulho, estiquei uma perna, a outra, retomei a posição,
mas eu não aguentava mais. Parecia que cada segundo
era um minuto. E assim se passaram os 20 minutos mais
difíceis da minha estada na Tailândia. O problema não
era a meditação, mas eu que não estava pronta para ela.
Além de dar as aulas e fingir que meditava, pude
participar como convidada de uma cerimônia relacionada
ao Dia do Dharma. Por causa da barreira da linguagem,
muitas vezes eu tinha dificuldade em entender algumas
nuances, mas não deixava que a minha falta de
compreensão impedisse o meu envolvimento. Foi algo
bem diferente do que eu tinha participado anteriormente
lá na escola, mas que fazia parte da mesma celebração.
Ao final de uma bonita prece, fomos todos para o ponto
mais alto da escola e lançamos ao céu mais de 30 balões
iluminados por uma vela, em forma de agradecimento a
Buda. Foi uma das imagens mais bonitas que eu já vi.
Monges. Noviços. Lua Cheia. Velas. Balões. Um céu
iluminado por eles.
Nesse momento percebi que a nossa busca é a
mesma e, na essência, somos todos iguais, com os
mesmos medos, esperanças e desejos. Não importa se
você é monge, noviço, criança, adulto ou idoso.
Queremos todos encontrar a felicidade, orgulhar nossos
pais e ter consigo o mérito de ter feito alguma coisa boa
nessa vida. O que nos diferencia são os caminhos que
escolhemos para alcançar esses objetivos. E não existe
caminho único ou uma fórmula secreta. Temos limites
diferentes e cada um sabe do que abriria mão para ser
feliz. Cada um dá um valor diferente a sua busca. Estes
jovens abrem mão de tudo o que para nós é sinônimo de
felicidade e dizem encontrá-la justamente na sua
ausência e na simplicidade.
20. Atravessei o
mundo para
estar aqui

De volta à minha rotina de aulas no vilarejo, eu me


aproximava cada vez mais do meu aluno Tea. Não sei
exatamente como explicar, mas existia uma conexão
muito forte entre nós, como se ele confiasse mais em
mim do que em todo mundo que o rodeava. Eu sentia
muito amor toda vez que via seu sorriso meio babado e
quando meus olhos encontravam os dele.
Nesse dia, eu tinha acabado de sair de uma reunião
com a mãe dele, na qual o Jason serviu de intérprete
para que pudéssemos conversar. Eu tinha tido uma ideia,
mas ainda não tinha entrado em contato com ninguém.
Então, sentei na sala dos professores e, cheia de
esperança, redigi um e-mail que seria enviado para 20
amigos, cada um cuidadosamente selecionado:

“Oláááá, meus amigos!!!

Como vocês sabem, escrevo diretamente de terras


tailandesas esse e-mail e tenho uma história para
compartilhar com vocês. E tenho certeza que ela irá
mudar um pouquinho a vida de todos nós!!!
Tem um menino que estuda aqui na escola, o nome
dele é Tea, ele tem 6 anos e estuda no jardim. Ele tem
um problema na língua que não o permite falar, nem
engolir a saliva. Ele está sempre com as roupas
molhadas por conta desse problema e molha até mesmo
os livros. Várias vezes enquanto o ajudo com as tarefas,
ele rasga a folha na hora de pintar, pois ela está toda
babada. É claro que, como ele não consegue falar, isso
se reflete em sérios problemas de aprendizado e de
socialização.
Ninguém presta muita atenção nele, uma vez que ele
nunca tem muito a dizer além de uns grunhidos. E não é
pouca coisa: eu nunca consegui entender uma palavra do
que ele fala. E adivinha? De todas as crianças, ele é o
que mais me apeguei e tem o sorriso mais gostoso de
todos. A maneira como os alunos encontram de ficarem
próximos a mim é me mostrando que aprenderam inglês,
usando as palavras para me impressionar. Ele usa de
todas as outras armas: o sorriso, os gestos, o carinho e
até senta no meu colo quando as outras crianças vêm
me pedir para corrigir as tarefas. É um gesto como quem
diz: elas podem falar, eu vou ficar aqui no seu colo, pois
é o jeito que eu tenho de me aproximar de você.
Quando senti que precisava ajudá-lo, pensei que
deveria ser um problema sério e que precisava de muitos
recursos financeiros. Para a minha alegria e surpresa, o
caso é muito mais simples do que eu esperava. A mãe do
garoto não é tailandesa, veio para cá em busca de
emprego e melhores condições de vida e ela não tem
documentação para viver aqui, ou seja, ela está ilegal.
Ela tem um marido que não é o pai do garoto e, por isso,
nunca se interessou muito por ele e diz não ter tempo
para levá-lo ao hospital. Quanto à cirurgia, ela é
GRATUITA.
O que os impede de realizar a cirurgia é a falta de
alguém que possa levá-lo ao hospital e assinar os papéis
– uma vez que a mãe dele não o pode fazer. Eu já
consegui uma pessoa tailandesa para me acompanhar, já
que teremos que dormir uma noite no hospital. Essa
semana, eu conheci a mãe dele e, com a ajuda de
professores que falam um pouco de inglês, consegui
dizer para ela que eu queria ajudar e pedi que levassem
o menino no médico aqui do vilarejo para conseguirmos a
autorização da cirurgia e uma descrição de possíveis
gastos. Mais uma surpresa, não existe gasto nenhum
com médico, hospital ou medicamentos. Mas a mãe dele
me disse que eles não têm condições de arcar com as
despesas da locomoção daqui até as outras cidades – ele
terá que passar por mais um ou dois médicos – e dos
gastos com comida durante esses dias. Lembrem-se de
que essa história se passa em um vilarejo no interior da
Tailândia e, para eles, locomoção é um bicho de sete
cabeças. Eles são agricultores e não gastam dinheiro
com alimentação. Para eles, ir até a cidade grande e
enfrentar isso tudo é um desafio que nem eles sabem se
conseguem enfrentar. Eu atravessei o mundo para estar
aqui e já me dispus a ser essa pessoa a ajudá-los.
Cheguei à conclusão que precisamos de 400 dólares
para que o menino possa fazer a cirurgia e voltar a falar.
É claro que isso ainda vai levar um tempo, pois ele terá
que aprender a falar novamente e, quanto antes esse
processo acontecer, mais chances ele tem de ficar como
as outras crianças. Nesse valor, eu incluí gastos com
locomoção, alimentação, possíveis remédios e, com o
que sobrar gostaria de comprar camisetas novas para
ele, já que as que ele tem estão todas encardidas devido
ao fato de ele estar constantemente babando nelas.
Na sexta-feira, quando ele e a mãe chegaram aqui na
escola, depois da visita ao médico e de terem explicado
para ele a situação, todos o encorajaram a me agradecer.
Depois de três tentativas, esse foi o primeiro dia que eu
entendi o que ele disse para mim: Thank you!! Ele estava
meio tímido atrás da mãe, mas eu estendi meus braços e
ele veio correndo me abraçar. Eu tive que ser forte para
não desabar. Um dos professores olhou para mim e disse:
“Você entende que você e os seus amigos vão mudar a
vida dessa família??” Parece cena ensaiada de filme, mas
foi exatamente assim que aconteceu.
E agora gostaria de explicar o porquê de estar
encaminhando esse e-mail para vocês. Eu sei que o valor
é baixo, não preciso nem fazer comparações com o nosso
estilo de vida para dizer que isso é muito pouco. Quem
sabe eu poderia conseguir esse valor total diretamente
de apenas uma pessoa que tem condições financeiras de
ajudar. Mas para essa história, eu queria um desfecho
diferente.
Eu selecionei cada um de vocês que estão nesta lista
porque foram as pessoas que mais me apoiaram quando
eu decidi fazer essa viagem maluca e que sei que, de
alguma forma, ou gostariam de estar fazendo um
trabalho como esse que eu estou fazendo, ou gostariam
de ajudar. Querer nem sempre significa que podemos,
principalmente falando de ajuda financeira, mas gostaria
muito que vocês fossem as pessoas a participar dessa
mudança na vida do Tea. Seremos todos padrinhos e
madrinhas dessa criança que jamais irá esquecer do que
fizemos por ele. Então os convido a ajudarem com um
valor de, no máximo, R$100,00 para que todos possam
ajudar com um pouco e participar. O mínimo não existe e
qualquer ajuda é bem-vinda! Quem sabe se você não
puder ajudar agora, você pode conseguir alguém que
gostaria de ajudar: às vezes alguém da família ou um
amigo mais próximo. E é claro, fiquem à vontade para
simplesmente não ajudar. É totalmente compreensível
caso você não possa e isto é apenas um convite.
A logística dessa ajuda será a seguinte: quem quiser
ajudar, peço que me mande um e-mail com o valor que
gostaria de depositar e eu vou encaminhar um e-mail
com os dados da minha conta no Brasil. Dessa forma, eu
posso controlar certinho quando chegarmos ao valor total
e ter a certeza de que não receberei dinheiro além do
valor estipulado. O meu pai tem acesso à minha conta e
ele pegará esse dinheiro e enviará para o meu cartão de
viagem internacional, pois é o jeito mais rápido e fácil
que eu tenho de receber dinheiro aqui e somente
familiares podem depositar.
Quanto à data da cirurgia, será essa semana, pois eu
tenho apenas duas semanas restantes aqui no
voluntariado e quero acompanhar o processo todo.
Vou encaminhar em um outro e-mail algumas fotos
que eu tenho do Tea para que vocês possam conhecê-lo
e, assim que conseguirmos realizar a cirurgia, eu faço
questão de mandar uma surpresinha de agradecimento
para vocês. Quero dar todo o feedback para que vocês
participem passo-a-passo deste momento.
Não é sempre que temos a real chance de mudar a
vida de alguém, ainda mais se tratando de uma criança.
E fico ainda mais feliz por poder compartilhar isso com
vocês, que são pessoas muito importantes na minha
vida. Às vezes a distância dói e é preciso ser forte, então,
essa é uma maneira de atarmos nós ainda mais fortes
entre nós.

Adoro cada um de vocês!!!


Espero que estejam todos bem e me mandem notícias
sempre!!!

Beijão,
Teacher Le ;)”

Depois de atualizar o meu e-mail 30 vezes no minuto


seguinte em que o havia enviado e não receber nada,
decidi ir para casa e aguardar. Fazendo as contas do fuso
horário, eu deveria começar a receber respostas na
madrugada. Eu não fazia a menor ideia de como a minha
atitude seria recebida no Brasil.
Eu corria o risco de ser mal interpretada ou das
pessoas simplesmente ignorarem, muito ocupadas para
se importarem com o que estava se passando em um
vilarejo na Tailândia. Se isso acontecesse, eu não teria
como cumprir com a minha palavra de ajudá-lo. Eu
estava extremamente ansiosa e como consequência, tive
uma péssima noite de sono.
Durante o dia seguinte fui recebendo respostas e a
cada uma delas o meu coração vibrava:

“Eu nem vou hesitar e dizer nada. Simplesmente digo


que SIM…”.

“Tô chorando igual boba porque é muito bom saber que


tem pessoas como você no mundo! Tenho muita fé de
que a sua generosidade vai contagiar sempre todos a sua
volta! Você está fazendo um mundo melhor! Claro que tô
dentro! Manda sua conta!!!”
“Amiga você é incrível. Que gesto lindo. Me manda a
conta para fazer a transferência.”.

“Eu ajudarei com R$ 50,00, tudo bem?”.

“Eu dou R$100”.

E assim se seguiu uma sequência de e-mails com


respostas positivas. Me senti muito idiota por ter
duvidado de que isso daria certo. Como eu mesma disse,
escolhi a dedo cada pessoa para quem enviei esse e-
mail. A vida sempre me presenteou com amigos
abençoados. Eu tinha muita sorte, e agora, o Tea
compartilharia dela comigo.
21. Toda noite de festa na
Tailândia termina
em Karaokê

Enquanto eu aguardava os depósitos do Brasil, a vida no


vilarejo continuava. A Lucy estava indo embora e, por
isso, fui visitá-la no final de semana para um jantar de
despedida que reuniu, em um restaurante vietnamita, as
voluntárias, a Pim e sua família, e mais alguns
professores da escola onde ela voluntariava. A comida
era excepcionalmente deliciosa, ainda mais
acompanhada por cerveja, bebida que havia se tornado
rara na minha vida no vilarejo, pois beber é coisa para os
homens. Nos divertimos e conversamos muito. Em uma
dessas conversas, a Lucy me contou um pouco sobre
seus planos de viagem e me convidou para viajar com
ela para as famosas Ilhas ao Sul. Ela disse que ia fazer
um voluntariado com animais e que, se eu quisesse,
podia voluntariar junto com ela, dividindo o quarto que
era oferecido em troca do trabalho.
Em breve, eu teria que continuar viagem, mas não
tinha feito nenhum plano concreto a respeito disso. Eu
sempre viajava sozinha e ter companhia era tentador e
inédito. E, de qualquer maneira, eu teria que, em algum
momento, conhecer algumas das Ilhas e eu também
queria muito ir na Full Moon Party, a festa da lua cheia na
ilha de Koh Phangan. A única dúvida era quanto ao
dinheiro. Nesse primeiro mês gastei pouco mais de 300
dólares, o que me deixava com um bônus de 200 dólares
para poder viajar. Com muito planejamento, eu
conseguiria passar em torno de 10 dias viajando com
essa grana. Confirmei com ela que iria e que a avisaria
assim que soubesse a data da minha partida.
Toda noite de festa na Tailândia termina em Karaokê.
Nessa noite, não seria diferente. Pedimos mais umas
cervejas e, com uma mistura de sotaques chinês,
alemão, polonês, tailandês e brasileiro, cantamos desde
“Whenever will you go” até “Yo no soy marinero, soy
capitan”. Mais uma vez, eu observava a cena onde eu
estava inserida e me sentia grata por poder vivenciar
momentos como esse, nos quais não existia nenhum
limite cultural ou preconceito. Éramos todos iguais,
mesmo sendo tão diferentes.
22. Eu tinha vontade de
chorar toda vez que
ele sorria para mim

Facilmente chegamos ao valor total que precisávamos


para a cirurgia do Tea. Enquanto ia recebendo os
depósitos, já fui antecipando as nossas idas ao hospital.
Realmente não era fácil se locomover para fora do
vilarejo. Como demoraríamos um tempo indeterminado
no hospital, o Jason não poderia nos levar devido aos
seus compromissos na escola. Com muito custo, ele
conseguiu achar um vizinho que tinha carro e que
serviria como nosso motorista pelo dia.
Fiquei aliviada ao ver o Tea, sua mãe e a vizinha me
aguardando na escola, pois, durante a semana, ela já
havia mencionado em uma conversa que ela pensava em
desistir da cirurgia. O pior é que eu dependo do Jason
para traduzir as nossas conversas e nem sempre consigo
me expressar como gostaria. Ou pelo menos, entender o
que dizem. Porque quando a mãe pensa em desistir, a
primeira coisa que me vem à cabeça é que ela não está
entendendo o que está acontecendo, porque desistir não
faria sentido nenhum.
Seguimos todos juntos para a cidade em um silêncio
que só era interrompido pelas minhas risadas e as do
Tea, enquanto brincávamos um com o outro. Queria
muito poder me comunicar diretamente com eles e isso
me deixava um pouco frustrada. Depois de uma hora de
viagem, chegamos ao hospital. O motorista fez sinal de
que nos aguardaria no estacionamento e eu os levei
direto para almoçar em umas barraquinhas de comida de
rua.
Tentei interagir brincando com as poucas palavras que
sabia. Eles riram quando pedi o meu prato “mai pet”, ou
seja, sem pimenta. Mas a interação maior acontecia
entre mim e o Tea, que andou de mãos dadas comigo o
tempo todo. Ele pediu para comer um sorvete e, antes
que eu pudesse pegar o dinheiro, fui interrompida pela
mãe que disse que não, fazendo sinal que ele sujaria a
roupa toda.
Seguimos para o hospital público onde ficamos
aguardando quase duas horas para o atendimento, que
não aconteceu. Eu não estava entendendo nada, só sabia
que a atendente tinha nos dispensado.
Encontramos o nosso motorista dormindo no carro.
Acordamos ele e seguimos de volta para o vilarejo.
Estava ávida para chegar à escola e entender o que
havia acontecido. Assim que encontramos Jason, pedi
para que ele conversasse com a mãe para me explicar
porque o Tea não havia sido atendido. Ao que parece, o
médico responsável não estava atendendo e teríamos
que retornar na segunda-feira.
A vizinha reclamou dizendo que não poderia ir, pois
perderia o dia de trabalho como costureira. Por meio do
Jason, perguntei quanto ela ganhava ao dia. Ela
respondeu que era algo em torno de 10 dólares. Eu
garanti que pagaria o seu dia de serviço para que nos
acompanhasse. Ela pareceu satisfeita com a oferta e
ficou combinado que nos encontraríamos as 6h da
manhã na escola, o mesmo motorista nos levaria
novamente.

...

Eu me arrumava para dormir mais cedo no domingo à


noite, quando recebi a ligação do Jason.
“Letícia, a mãe do Tea pediu para te avisar que ela
não vai levá-lo ao hospital, mas que se encontrará com
você amanhã na escola para conversar”. – Eu estava
incrédula do outro lado da linha.
Indaguei o Jason, porém, ele não soube me explicar
muito mais do que isso. Eu não queria acreditar. Como
uma mãe deixa uma oportunidade dessas escapar?
Como eu explicaria isso para meus amigos que já haviam
depositado o dinheiro? O que seria do futuro dessa
criança sem poder se comunicar e aprender?
No outro dia pela manhã, a mãe apareceu na escola e
pediu desculpas para mim, alegando que não queria
fazer a cirurgia no garoto agora e que achava melhor
esperar mais alguns anos. Alguns anos? Eu não
acreditava naquilo. Os professores que estavam próximos
caíram em cima dela falando que isso era um absurdo,
que ela estava tirando a oportunidade do próprio filho de
ter um futuro, de ser e aprender como as outras crianças.
Eu pedi explicações. A cada hora ela dizia uma coisa.
Alegava que a vizinha não poderia ajudar, que a cirurgia
era muito complicada, que o médico talvez não
atenderia, que era melhor esperar. Terminamos essa
conversa com o Jason olhando nos olhos dela e dizendo
que ela não deveria pedir desculpas a mim e aos meus
amigos, mas sim ao filho dela, pois ele era a única vítima
dessa decisão que ela estava tomando.
Por coincidência, logo na sequência eu fui dar aula na
turma do Tea. Eu tinha vontade de chorar toda vez que
ele sorria para mim e babava na roupa ou quando um
amiguinho desconsiderava sua presença. Era muito
injusto o que a própria mãe dele estava fazendo e eu me
sentia de mãos atadas, o que aumentava ainda mais a
angústia que sentia no peito.
No intervalo, eu tentei mais uma vez conversar com
os professores para entender a situação. Eles disseram
que a mãe aparece com frequência com cheiro de bebida
alcoólica na escola para buscar o filho, e o padrasto
nunca mostrou interesse no garoto. Infelizmente, eu não
consigo ajudar alguém que não quer ser ajudada. Eu
preciso que a mãe dele concorde. Não posso pegar o Tea
pela mão e sair por aí para realizar uma cirurgia. E
infelizmente, ela como mãe, tem o poder da palavra.
Eu não sou de me dar por vencida facilmente, mas,
dessa vez, eu teria que recuar. Com lágrimas nos olhos e
muito desapontada, eu escrevi mais um e-mail para os
meus amigos, no qual eu expliquei o acontecido. Quanto
ao dinheiro, disse que poderia devolver os depósitos ou
utilizá-lo para ajudar alguma outra pessoa que eu
encontrasse no meu caminho. Para minha surpresa, essa
foi a escolha de todos eles, alegando que esse era
apenas o começo da minha viagem e que em breve eu
encontraria outra pessoa que necessitava. O meu corpo
estava amortecido e eu sentia a urgência de chorar.
23. As minhas despedidas
são a celebração de
tudo o que vivi

Acordei com os olhos inchados, culpa do meu choro


noturno que demorou para cessar. Rolei de um lado para
o outro no meu colchão coberto pela rede contra
mosquitos. Às vezes, é inevitável querer entender um
pouco da nossa existência e do porquê as coisas
acontecerem como acontecem, mesmo que eu saiba que
esses questionamentos não caibam a mim.
Não consigo parar de achar que essa tenha sido uma
atitude muito injusta da mãe do Tea. Ela está tirando
desse garoto o direito de ter uma vida como a de todas
as outras crianças. Ele poderia falar com as pessoas,
expressando seus desejos e ideais, comendo sorvete sem
se sujar e colorindo os livros sem babar nas folhas. E ele
não faz a menor idéia de como essa decisão é um divisor
de águas em sua vida. Eu tentei de todas as formas, mas
precisei dar um passo atrás com a consciência de que eu
fiz o que pude.
Com o triste desfecho da história do Tea, eu sentia
que o meu ciclo havia fechado e que precisava partir
para uma nova aventura. Além disso, há mais de duas
semanas, eu sou a única voluntária aqui no interior. Os
meus amigos chineses já haviam deixado o projeto. As
minhas amigas voluntárias estavam na escola da cidade
e, apesar de terem acabado de passar um final de
semana muito divertido comigo, durante a semana toda
eu ficava sozinha.
É claro que tinha a companhia das crianças e dos
professores, mas as semanas estavam passando bem
devagar. Estava feliz por ter sido a voluntária que tinha
ficado mais tempo no projeto e também por ter sido a
primeira e única voluntária brasileira até então.
Conversei com o Jason sobre a minha decisão. Ele
percebeu que ela estava muito mais ligada ao Tea do que
com qualquer outra coisa. Alguns voluntários novos
estavam chegando e a minha saída não traria problemas
ao projeto, já que haveria pessoas para me substituir.
Percebi que ele tinha algo mais a me dizer e, sem jeito,
ele contou que as professoras já vinham falando em
fazer uma grande festa de despedida para mim e que
seria bom se eu já pudesse dar uma data para ele
organizar tudo.
Combinamos que a festa seria em dois dias e, na
manhã seguinte à festa, ele me deixaria na cidade para
pegar o ônibus para Bangkok. Isso significava que faltava
muito pouco para eu deixar a escola, o vilarejo, meus
amigos, minha casa tailandesa, minha bicicleta e minhas
crianças para trás.
Com todos sabendo da minha partida, os dois últimos
dias foram bem movimentados. As crianças que já
escreviam e desenhavam bilhetinhos lindos para a
teacher Lê, agora me enchiam ainda mais deles. Fui até a
casa de uma das professoras de outra escola para me
despedir, a Nani. Ela era mais velha e adorava dizer que
era minha mãe tailandesa, sempre me presenteava com
frutas ou com um café gelado. Nani tinha um jeito
espontâneo de ser que me conquistou, estava sempre
bem-vestida e cheia de energia. Morava em uma
residência na área militar, onde eu vi pela primeira vez
muitos tanques de guerra que são usados para proteger
a fronteira da Tailândia com o Camboja.
As alunas faziam tranças no meu cabelo antes de
iniciar as aulas e se despediam dizendo “Teacher Lê, go
home”, seguida de uma cara de choro.
Eu confesso que sempre adorei despedidas e já perdi
as contas de quantas já fiz. Me lembro de cada uma
delas com muito carinho. Poderia dizer que as três coisas
que eu mais gosto de comemorar são o ano novo, meu
aniversário e minhas despedidas. Elas são a celebração
de tudo o que eu vivi em cada lugar que eu passei e são
também a preparação para as aventuras e experiências
que me aguardam num futuro desconhecido. É o
momento de abraçar as pessoas que não sei se um dia
reencontrarei e de me sentir grata por ter tido a sorte de
ter cada uma delas no meu caminho.
As minhas roommates fizeram questão de me ajudar a
me arrumar para a minha festa. A Katy me emprestou
uma saia longa preta que eu vestiria com uma blusinha
vermelha e a Kob fez uma trança linda no meu cabelo.
Quando chegamos na escola, na sala dos professores,
fiquei surpresa com a grandiosidade da festa. Até a Pim e
a família vieram da cidade e trouxeram as minhas
amigas, a Bai e a Pepi. Estava faltando a Joana, com
quem me encontraria no outro dia em Bangkok e a Lucy,
com a qual eu encontraria nas ilhas.
Ao todo, éramos mais de vinte pessoas, com uma
quantidade de comida que dava para alimentar o dobro
disso. Como sempre, comemos muito bem. Mas a minha
surpresa maior ficou por conta da presença ilustre do
Diretor da escola, que até então só tinha visto no
primeiro dia, e a sua esposa.
Eles fizeram questão de fazer um pequeno discurso de
agradecimento e a entrega de um certificado de
reconhecimento pelo meu trabalho como voluntária, que
foi cuidadosamente entregue a mim em um quadro com
uma linda moldura dourada. Para completar, ganhei
também um Buda e uma garrafa de Black Label. Isso
mesmo, a esposa do diretor me deu uma garrafa de
whisky e, o melhor de tudo, foi a cara do Jason quando
viu essa cena acontecendo. Segundo ele, eu estava
quebrando paradigmas.
E, de igual para igual, em um lugar onde beber é coisa
de homem, eu tomei um copo de whisky com o diretor da
escola para finalizar a minha experiência no vilarejo.
24. A falta de dinheiro me
leva a viver aventuras que
o dinheiro não compra

A minha parada em Bangkok foi estratégica para


encontrar a Joana e, já no dia seguinte, seguir viagem
para as Ilhas. Eu gostava muito da minha amiga polonesa
e era visível a evolução da nossa amizade: no princípio,
ela tinha uma expressão bastante fechada e eu a achava
mal-humorada. Conforme fomos nos aproximando e a
confiança crescendo, ela foi se abrindo e se mostrando
cada vez mais uma pessoa muito doce. Nos despedimos
em um longo abraço em meio a confusão das ruas da
cidade, com a certeza de que nos encontraríamos
novamente em algum lugar do mundo.
Deixei Bangkok para seguir a longa jornada até Koh
Tao, o que incluiria trem, ônibus e barco. Vi algumas
pessoas reclamando da simplicidade do trem, mas eu
estava achando tudo um luxo: tinha até uma cama para
dormir. A cama e a minha playlist no iPhone fizeram a
viagem de sete horas passar muito rápido. Depois, um
ônibus me levou da estação de trem até o pier e, de lá,
segui de barco em uma viagem de menos de duas horas
até o meu destino final, onde minha amiga alemã estaria
me aguardando.
Koh Tao é incrível. Eu e a Lucy alugamos um bungalow
por nove dólares a diária para as duas. Por dentro, ele
era péssimo, mas, pelo menos, era pé na areia e isso era
o mais importante no momento. Não ter muito dinheiro
numa viagem como essa é a chave para conhecer
pessoas e se divertir muito mais. Andamos
excessivamente, pegamos caronas, fizemos amizades,
mergulhamos de snorkel e curtimos muito as festas à
beira da praia.
Mas eu confesso que fiquei um pouco desapontada
com a maneira com a qual o turismo está sendo
desenvolvido. O número de turistas era muito acima do
recomendável para uma ilha. No dia em que cheguei no
Pier, eu me senti praticamente entrando em um
shopping center: havia centenas de pessoas
desembarcando e outros tantos barcos ainda por chegar,
todos abarrotados de turistas em busca dos cursos de
mergulho, conhecidos por serem um dos mais baratos do
mundo. Essa superlotação gera muito lixo e um turismo
de massa que não tem comprometimento nenhum com a
natureza. Percebi que muitos ali estão pensando
somente no presente, fazendo o máximo de dinheiro sem
se preocupar com o futuro da ilha.
Essa minha observação foi o que eu precisava para
tirar a minha dúvida. Estava decidida a abrir mão de
conhecer Koh Phi Phi e companhia, as ilhas mais famosas
do outro lado da península. Eu não me importava em
deixar de ver a ilha onde foi gravado “A Praia”, afinal de
contas, Leonardo de Caprio não estaria mais lá. Eu queria
ir para uma ilha paradisíaca para relaxar e não me
estressar com uma centena de turistas sem noção. Essa
coisa de lutar pelo melhor ângulo para aquela foto
famosa já não fazia mais a minha cabeça.
Koh Tao fica a leste da península, no Golfo da
Tailândia. O mais sensato seria conhecer as ilhas
próximas dali: Koh Samui e Koh Phangan. É em Koh
Phangan que rola a Full Moon Party e a data para a festa
estava próxima. Decidi que acabaria conhecendo esse
lado da península e abriria mão das ilhas queridinhas do
outro lado. Depois de experimentar o gostinho da
superlotação de Koh Tao e sentir os dólares voando da
minha mão, essa seria a decisão mais sábia.
Ficamos somente dois dias na ilha, o que pode parecer
pouco, mas já era muito para o nosso orçamento
apertado. Tínhamos planos de ir para Koh Samui. A Lucy
já tinha entrado em contato com uma mulher que é dona
do tal abrigo de cães e gatos: ela precisava de ajuda com
o administrativo da instituição e em troca poderíamos
dormir lá. Estava feliz com a notícia, viajar essa parte
turística da Tailândia estava afundando o meu
orçamento.
Saímos de Koh Tao com destino a Koh Samui às 10
horas da manhã. Pegamos carona na carroceria de
caminhonetes, mais quatro horas de barco, uma hora de
táxi e uma hora esperando a chuva passar para chegar
ao tal abrigo. Isso sem contar a mochila de 17kg nas
costas e o calor absurdo!
Chegar no abrigo tinha tudo para ser o momento
perfeito: largar o mochilão, tomar um banho, comer e
dormir. Pena que, em breve, eu descobriria que estava
enganada.
Eu não sabia muito sobre a mulher que nos
apresentava o funcionamento do abrigo para animais,
apenas que era uma alemã. Não precisou muito para
perceber que ela já vivia há tempo demais com os
animais. Assim que pisei porta a dentro, me deparei com
uns 30 cachorros e gatos andando livremente dentro da
casa e fazendo xixi por todo lado, inclusive no meio do
quarto em que ficaríamos. Aguardei por alguma reação
dela que fizesse referência a limpar o líquido amarelo
que se espalhava pelo chão.
Aguardei em vão. Enquanto isso outro cachorro já
passava por cima, aumentando a bagunça. Fomos
avisadas de que aquele era o quarto do gato mimado da
casa. Isso mesmo, compartilharíamos o quarto com o
astro principal, com direito a um pedido de que
respeitássemos o espaço dele. Fiquei observando o felino
que andava com maestria sobre os móveis e que
rapidamente pulou para a cozinha, em cima da pia, ao
lado dos pães, que pouco antes havíamos sido avisadas
que eram para o nosso café-da-manhã. O cheiro era
insuportável.
Eu amo animais, mas acho que existe um limite entre
o espaço deles e o nosso. O sonho da minha vida é poder
ter um cachorro, mas, por causa das inúmeras mudanças
que sempre fizemos, meus pais nunca me deixaram ter
um. E olha que eu pentelhava muito eles. Cheguei a
ganhar um em um sorteio de uma revista – devo ter sido
a única a enviar o cupom pelo correio. Inicialmente,
minha mãe alegou que ele era muito grande e que não
era ideal para o apartamento. Fiz algumas ligações
secretas para a revista e estava negociando a troca por
um cachorro menor quando minha mãe descobriu e
pediu para eles darem o cachorro a outra pessoa.
Fora a vez que eu consegui comprar um com seis
reais que eu tinha economizado, achando que minha
mãe não teria coragem de dizer “não” ao novo
amiguinho, mas, logo na entrada, ele fez suas fezes no
tapete da vizinha e vomitou. Ele não conseguiu
conquistar minha mãe e tive que devolvê-lo: pedi pro
meu primo devolver e pedir meu dinheiro de volta,
enquanto esperava na esquina. E, quando finalmente os
convenci a pegar um cachorro para cuidar da empresa,
eu saí de casa para fazer faculdade e entendi de uma vez
por todas que meu estilo de vida não me permite ter um
bichinho.
E mesmo com todo o meu amor pelos animais, era
insuportável estar naquele lugar. Infelizmente, não dava
para mim. A Lucy me pediu desculpas, já que ela não
sabia que as condições higiênicas eram tão precárias.
Mas optou por ficar, já que tinha combinado com a
mulher e o trabalho era no escritório e não na casa.
Do céu ao inferno em apenas alguns minutos.
Lucy me acompanhou até o centrinho de Koh Samui e
sentamos em um café para eu usar o wi-fi e tentar achar
um lugar para dormir. Todos os hostels estavam cheios e
os valores estavam absurdos. Liguei em muitos lugares
até encontrar uma desistência de uma cama em um
hostel meio afastado, onde, pelo menos, eu poderia
descansar para pensar em alguma solução no outro dia.
Mesmo que tivesse vaga, eu não teria dinheiro para
pagar.
Peguei uma moto-táxi com o meu mochilão e o
motorista não conseguia achar o hostel. Rodamos,
rodamos e nada dele encontrar. Começou a garoar. Já
estava começando a achar que ele estava me dando um
golpe, então pedi a ele que parasse a moto e liguei no
hostel. Passei para o motorista, que falou com a
recepcionista. Não estávamos muito longe, mas a rua
realmente era complicada de achar.
Negociamos o valor da corrida e fui fazer o meu
check-in. Eu estava com fome, dor nas costas, cansada e
de saco cheio. Cheguei no quarto e um grupo de gringos
me ofereceu uma cerveja. Neguei com tanto mal humor
que eles nem insistiram. Eu, negando uma cerveja e uma
possibilidade de festa! O meu estado era grave. Mas
naquele momento só existia uma coisa que eu queria:
uma bela noite de sono.

...

Acordei me sentindo outra pessoa. O dia anterior


realmente tinha sido muito cansativo e tinha acabado
com o meu humor. Fui direto para a área comum do
hostel para usar o wi-fi e procurar um lugar para ficar.
Nada melhor do que o CouchSurfing em um momento
como esse. O website funciona como uma rede social
que conecta pessoas que gostariam de receber
gratuitamente viajantes em sua casa a esses viajantes
que estão em busca de um cantinho para dormir. A
minha primeira experiência foi para hospedar o Paul, um
americano, no meu sofá em Balneário Camboriú.
Ele estava viajando o mundo fazia um ano e aquela
era uma das suas últimas paradas. Pedi para as minhas
amigas dormirem em casa, pois não queria ficar sozinha
com um estranho. Paul tinha planos de ficar três dias e
acabou ficando uma semana. Lembro-me de que o
levamos para todas as praias e todas as festas possíveis.
Ensinamos a ele que uma gíria para garota bonita no
Brasil era “biscatinha” e nos divertíamos com a confusão
causada. Ele nos acordava com o almoço pronto e
marcou de forma muito positiva o meu primeiro contato
com essa maneira de viajar.
Comecei atualizando todas as informações do meu
perfil, tentando parecer o mais legal possível. Enviei
cinco pedidos e cruzei os dedos. Alguém teria que
responder. Em menos de meia hora, recebi uma resposta
positiva um tanto inusitada. O meu potencial anfitrião, o
polonês Mariusz, estava em observação no hospital e me
pediu para passar no quarto 112 para pegar as chaves
da casa. Não sei se estava mais surpresa por ele me
responder diretamente do hospital ou por ele
simplesmente entregar para uma desconhecida as
chaves de sua casa. De qualquer maneira, eu não podia
deixar a oferta passar e, com a maior animação, fui
rapidamente arrumar a minha mala e fazer o check-out
rumo ao Thai International Hospital.
O prédio parecia mais um hotel do que um hospital.
Eu me dirigi a recepção com meu documento e falei que
estava ali para fazer uma visita ao quarto 112.
“Você é da família?”. – Me perguntou a recepcionista,
enquanto colocava meus dados no sistema.
“Não, sou uma amiga”. – Uma amiga virtual. Não
deixava de ser verdade.
“Tudo bem, se dirija por aqui que alguém vai te
acompanhar” – E me apontou em direção a um longo
corredor.
Foi só o tempo de tirar a mochila das costas e um
homem alto e muito forte se aproximou, apontou para a
mochila e antes que eu pudesse falar alguma coisa, a
arrastou pela alça enquanto caminhava pelo corredor.
Parou em frente ao quarto de número 112 e abriu a
porta, me dando a preferência para entrar.
Havia duas camas, uma mais próxima da porta e outra
da janela, onde estava meu mais novo amigo. Ele devia
ter uns trinta e poucos anos, parecia ser descolado e com
um jeito de maluco-beleza. Ele se mostrou feliz em me
ver e eu logo perguntei o que havia acontecido, como se
já nos conhecêssemos a tempo. Me contou que é
mergulhador e que havia levado um soco de um nativo
que não gostou da presença dele e de seus alunos na
praia e partiu para a porrada. Como o soco tinha sido na
cabeça, o levaram para o hospital para ficar em
observação.
“Não se preocupe, está tudo bem comigo. Na verdade
só estou preocupado com uma coisa. Estou sem o meu
passaporte aqui e eles precisam dele para dar a entrada
correta no sistema do hospital. Podemos ir juntos lá em
casa, assim, eu já te mostro como funciona tudo. E é
bom porque você já vai de carona e economiza com o
transporte”
Para quem até pouco tempo estava sem ter onde
dormir, eu estava achando toda e qualquer oferta
excelente, ainda mais se incluía carona. No entanto, eu
não imaginava que a carona seria na ambulância do
hospital! Essa história ficava cada vez mais hilária.
O enfermeiro que nos acompanhava colocou o meu
mochilão com todo o cuidado na parte de trás da
ambulância, como se ela fosse o paciente e foi a
acompanhando. Eu e o Mariusz fomos na frente
conversando juntamente com o motorista.
O Mariusz morava em uma casa muito simples e
pequena, mas muito próxima da praia. Eram
basicamente três cômodos sem muita mobília: cozinha,
quarto e sala. A sala estava completamente vazia até ele
me alcançar um tapete de yoga, onde eu dormiria.
O tapete parecia muito fino para que uma pessoa
pudesse dormir confortavelmente, mas era melhor do
que dormir com os gatos e cachorros. Estava achando
tudo ótimo. Mariusz pegou o passaporte e voltou para o
hospital, dizendo que tentaria voltar ainda hoje.
Para minha surpresa, ele me enviou mensagem antes
do escurecer, dizendo que assinou um termo no hospital
se responsabilizando por qualquer coisa que viesse
acontecer com ele. Combinamos de nos encontrar em
uma feira de rua para que me apresentasse a culinária
local. Tomamos uma cerveja. Mas a história ainda ficaria
mais inusitada. Mariusz me explicou que tinha um curso
de mergulho para dar em Koh Tao e que partiria no dia
seguinte, ficando os próximos dias por lá.
Então, deixou as chaves da casa e da sua moto
comigo, para que eu pudesse aproveitar melhor a ilha.
Ele também me pediu para anotar o telefone de amigos
para que eu tivesse com quem sair e disse para que eu
ficasse em seu quarto, pois seria mais confortável.
Não sei se o defino como corajoso ou maluco.
Nessa noite, quando deitei para dormir, tive a
sensação de que tudo o que tinha acontecido nas últimas
24 horas era apenas um sonho maluco. Em pouco tempo,
eu estava desabrigada e agora tinha uma casa e uma
moto em uma ilha paradisíaca da Tailândia, além de um
amigo que me levava para andar de ambulância. E
quando eu digo que a falta de dinheiro me leva a viver
aventuras que o dinheiro não compra, algumas pessoas
ainda duvidam.
25. Cada viagem
deveria ser uma
experiência ímpar

Uma das minhas maiores paixões? Explorar uma ilha


asiática de moto. Sem exagero nenhum, essa era uma
das combinações que mais alegrava o meu eu viajante
desde a primeira vez que senti o gostinho dessa
aventura em Bali. Primeiro, pelas ruas caóticas de Kuta e,
depois, pelas estradas de chão da paradisíaca ilha de
Nusa Lembongan.
A primeira peripécia do dia foi pegar a moto e um
mapa e sair rodando a ilha de Koh Samui, deixando que
meu instinto e minha curiosidade me guiassem. É
recomendável também uma pitada de coordenação e
atenção para dirigir na mão inglesa, já que a Tailândia
optou pela mão contrária, mesmo não sendo uma colônia
britânica.
A minha primeira experiência dirigindo assim tinha
sido na Nova Zelândia. Tinha a sensação de que alguém
havia feito uma pegadinha e invertido tudo de lugar,
principalmente quando dirigia por uma avenida e
precisava virar em alguma rua à direita ou à esquerda,
confundindo sempre qual era a minha pista e precisando
estar ciente de que o certo era invadir a pista contrária.
Porém, o trânsito em uma ilha na Tailândia é simples e
funciona meio sem lei – um lugar onde nem o capacete é
de uso obrigatório – tornando a brincadeira mais fácil.
Koh Samui é uma ilha bem desenvolvida e
relativamente grande, levando em torno de duas horas
para dar a volta de moto na ilha toda. As praias são
conhecidas pelo contraste da faixa de areia branca com o
azul cristalino em degradé. Com a moto, eu pude
explorar praias paradisíacas, trilhas, lugares isolados,
restaurantes perdidos e mercados locais.
Sentia a falta da comida do vilarejo e achava os
restaurantes muito turísticos, com menus totalmente
adaptados para nós, farangs, a palavra tailandesa para
gringos. Eu não queria comer spaguetti ou hamburguer e
o meu orçamento não dava para frutos do mar
grelhados. Ficava chateada quando pedia a minha
comida “mai pet” e ela realmente vinha sem pimenta
nenhuma. Por isso, aproveitava quando dava a sorte de
encontrar um local fazendo um prato de comida na beira
da estrada que, além de ser saboroso, custava apenas 60
baths (1,50 dólares).
Quero deixar claro que existem muitas maneiras de
fazer turismo em Koh Samui, lugar que vive quase que
exclusivamente do turismo. As ilhas são realmente
baratas e você pode ficar em um hotel cinco estrelas,
com piscina de frente pra praia por apenas 30 dólares e
comer frutos do mar em um restaurante fino por 20.
Existem também inúmeras opções de massagens, spas,
lojas de decoração e Starbucks. Existem passeios de
barco e até um aeroporto caso você opte por voar
diretamente de Bangkok para cá.
Mas eu não estava aqui com esse objetivo: eu
realmente estava em busca de experiências únicas,
queria conhecer a vida local, fazer amigos e explorar
sabores e lugares. Estava ali para me colocar no limite e
me autoconhecer e não me contentaria com uma
desculpa esfarrapada de que eu não tinha dinheiro para
viajar. Não existe maneira certa ou errada de viajar, mas
eu incentivo sim as pessoas a não viajarem somente em
busca desse conforto e luxo. Acaba sendo uma
experiência similar em lugares que tem muito mais a te
oferecer do que uma piscina e um café da manhã
requintado.
Outro ponto é que cada viagem deveria ser uma
experiência ímpar. Desconfie se você foi para algum
lugar e sempre que encontra outras pessoas que
também foram para lá, eles relatam a mesma
experiência que você teve. A partir do momento em que
você, um ser humano único, se desloca para outro país,
você deve viver a sua experiência e não aquela do guia
de viagens.
Nada contra o guia de viagens. Eu também o uso de
vez em quando. O problema aqui é o extremismo ou o
muito do mesmo. Eu não me denomino uma mochileira
roots e que, por isso, repudio o luxo e os pontos
turísticos. Bem pelo contrário, eu prezo pela diversidade
de experiências e pela ausência de definições.
A Letícia que dorme no colchonete de yoga de um
desconhecido é a mesma que dorme em um hotel cinco
estrelas e passeia de veleiro. E quando eu digo isso, eu
nem sequer penso no valor dessas coisas, porque eu
acredito que quando você está aberto a deixar as coisas
acontecerem, elas simplesmente acontecem.
Eu vivi durante a minha vida inteira experiências que
somente pessoas muito ricas têm a oportunidade de
viver, mesmo sem ter nem um puto na carteira. E já vivi
experiências das mais simples quando eu tinha dinheiro
sobrando no bolso.
Por que não fazer alguma coisa inusitada na sua
próxima viagem e fazer disso um hábito?
26. De novo, não!

Além do Mariusz, outro membro do Couchsurfing


respondeu à minha solicitação, o Anthony. Como eu já
tinha um lugar para ficar, ele ofereceu o que tinha de
melhor: a sua amizade, dicas sobre a ilha e uns drinks
em um bar onde ele trabalhava de fotógrafo. Era tudo o
que eu precisava. Passei o dia todo rodando com a minha
motoca, já me sentindo local, e, na metade da tarde,
combinei de encontrar o Tony na região Nordeste da ilha,
próximo da sua casa, onde havia alguns pontos turísticos
interessantes que ele gostaria de me mostrar. Além de
ser um ótimo lugar para assistir ao pôr-do-sol.
Adoro conhecer pessoas, mas é claro que eu sempre
ficava um pouco desconfiada antes de me encontrar com
desconhecidos. Contudo, o bom senso e o meu instinto
poucas vezes haviam falhado. Durante essa viagem, já
havia se tornado rotineiro eu me encontrar com pessoas
desconhecidas e criar uma conexão quase que
instantânea. Tony é um australiano que já mora há dois
anos em Koh Samui, está próximo dos 40 anos muito
bem vividos e refletidos no bronzeado na pele e no jeito
charmosão de ser. Ele veio acompanhado pela Soda, sua
grande companheira de quatro patas, além do Black, que
tinha ficado em casa.
A Soda e o Tony me levaram primeiro no Wat Plai
Laem, o templo budista mais colorido que eu já tinha
visitado. Depois de algum tempo na Tailândia, eu passei
a perder o interesse pelos templos (Wat em tailandês).
Existem milhares deles e, muitas vezes, eles são muito
parecidos. Porém esse era muito especial: ele foi
construído numa plataforma sobre a água com muitos
detalhes e desenhos.
Duas grandes estátuas se destacam: uma do Buda
Sorridente e a outra da Guanyin, a deusa da compaixão e
misericórdia, que se torna a atração principal com seus
18 braços. O melhor de tudo é que o templo é
frequentado mais por locais do que por turistas,
tornando-se um ambiente de paz e tranquilidade.
Entre estátuas e cafunés na Soda, fui conhecendo
mais sobre o Tony. Ele me contou que o trabalho no bar
era mais por diversão e que trabalhava em um negócio
próprio online, desenvolvendo aplicativos para telefone.
Ele gostava da vida que levava na Tailândia e não tinha
planos de voltar para a Austrália.
Contei sobre a minha viagem e dos planos que tinha
para ela. Tony queria me ajudar dando dicas de como
utilizar a internet para monetizar minhas viagens. Claro
que isso era um sonho, o famoso “ganhar dinheiro para
viajar”, mas eu não me via fazendo isso propositalmente.
Essa história de "vou fazer isso para vender aquilo” não
combinava muito comigo. Eu sentia que, de alguma
maneira, eu estava no caminho certo. Acreditava que
fazendo por amor eu chegaria lá.
Seguimos andando para outro templo, o Wat Phra Yai,
mais conhecido como Big Buddah, uma estátua dourada
de Buda com aproximadamente 12 metros que fica em
um ponto mais elevado, onde uma escadaria dá acesso.
Depois de um breve passeio e muita conversa fomos
para a praia. Para mim, assistir ao pôr-do-sol era como ir
a uma cerimônia religiosa. Eu observava com o coração o
espetáculo do poder da natureza.
Era o meu momento sagrado de agradecer diante de
tanta grandeza. Agradecia repetidamente, como se não
importasse quantas vezes o fizesse, já que meus
agradecimentos jamais seriam suficientes. A natureza
como um todo tinha um status divino para mim,
principalmente o sol, a lua e o mar.
Começamos a noite com uma Chang bem gelada no
barzinho da praia e seguimos para o bar do Tony, onde
encontraríamos Lucy, que estava trabalhando bastante
no abrigo, fazendo planilhas e ajudando em diversas
tarefas administrativas.
Assim que chegamos no Ark Bar, descobri que era um
dos mais famosos da ilha e de bar não tinha nada.
Parecia mais uma balada frenética de frente para a praia,
com direito a piscina, iluminação neon e malabares
dançando com fogo na areia. Tinha uma festa na piscina
todas as tardes. Uma galera jovem, muito bonita, do
mundo todo tomava conta da areia, se aglomerando
perto do DJ e na fila do bar. Tinha também um resort,
com suas villas supermodernas e bem decoradas.
Estávamos em Chaweng, a praia mais popular da ilha.
Balneário Camboriú ficaria com inveja desse lugar. Eu
adoro fazer festa e gosto de estar com meus amigos me
divertindo. Mas, quando estou viajando e tenho poucos
dias em algum lugar, a primeira coisa da qual eu abro
mão facilmente são as festas. Acordar tarde e de ressaca
numa ilha paradisíaca me causava um remorso
gigantesco. Por isso, eu e a Lucy nos limitamos a um
drink cada, dançamos algumas músicas, nos divertimos
fingindo ser assistentes do Tony e partimos.
Fazia uma noite de céu estrelado e batia uma brisa
leve. Em menos de 20 minutos na moto, eu já estava em
casa. Achei a entrada um pouco escura e percebi que os
vizinhos eram todos tailandeses. Depois de tantas
histórias que ouvi de furtos e roubos, me bateu um medo
de que alguém pudesse ter entrado na casa.
Estacionei a moto e abri a porta com precaução, mas
lá estava o meu mochilão intocado. Senti um alívio. Dei
uma segunda olhada para confirmar se meus
documentos e dinheiro estavam lá. Tudo certo! Passei
reto pelo tapete de yoga e, sorrindo, fui dormir na cama.
A vida era boa.

...

Acordei, tomei uma ducha e coloquei meu uniforme


favorito: biquíni, shorts e havaianas. Fiz o checklist: água,
mapa, celular, carregador portátil, protetor e livro na
bolsa. Era tanta coisa que acabei levando a bolsa toda. E
era melhor estar com meus documentos e dinheiro do
que deixar na casa. Lá eu ia novamente com minha
motoca desbravar a ilha. Sempre fui de dizer que odiava
rotina, mas estou começando a mudar de ideia. Algumas
rotinas valem muito a pena.
Parei no 7-Eleven, logo na esquina da rua da casa com
a avenida principal. Essa é uma rede internacional de loja
de conveniência que parece brotar da terra em cada
esquina da Tailândia. Muitas vezes chega a ter um na
frente do outro. Confesso aqui o meu ponto fraco: o misto
quente do 7-Eleven. Queijo, presunto e pão de forma era
uma raridade de ser encontrada e o meu café da manhã
favorito. O melhor é que, enquanto você paga os 30
baths (1 dólar), a menina do caixa tira o pão da
embalagem e o coloca em uma sanduicheira.
Em dois minutos, ela o entrega quentinho, com o
queijo derretido. Uns mochileiros americanos me
relataram com tristeza que o 7-Eleven não comercializa
esse misto quente nos Estados Unidos. Me arrisco a dizer
então, que ele faz parte da culinária tailandesa.
Dois mistos quentes e um chocolate gelado depois, eu
estava pronta para mais um dia de aventuras. Estava
sozinha novamente, já que Lucy estava trabalhando no
abrigo. Viajar sozinha nunca foi um problema para mim:
na verdade, eu gostava até mais do que viajar
acompanhada. Viajar sozinha é ter a liberdade de ir a
qualquer lugar, na hora que te dá vontade e ainda
conhecer pessoas pelo caminho. Mas, mais do que isso, é
a oportunidade de se autoconhecer. Eu sempre gostei da
solidão para refletir.
E sozinha mesmo rodei muitos quilômetros com a
minha motoca. Mais praias paradisíacas, mais visuais
inesquecíveis. Céu azul, muito calor e coqueiros. Fiquei
curiosa para conhecer um desses Beach Resorts que até
então eu só tinha visto na TV.
Escolhi o que parecia mais caro, estacionei na frente,
ajeitei o cabelo, a roupa e, com ar de quem estava
hospedada ali, tentei passar pela recepção fingindo não
estar encantada com a piscina de frente pra praia e a
decoração. Molambenta do jeito que eu estava, é claro
que o recepcionista me barrou. Mas eu não me daria por
vencida.
“Olá! A senhora é hóspede?”.
“Olá! Não, desculpe. Deixa eu me apresentar, eu
escrevo para um site brasileiro de viagens e estava
entrando para conhecer o resort de vocês e de repente
escrever uma matéria. Como devo proceder?”.
“Seja bem-vinda. Eu vou te transferir para o setor
comercial e você pode falar diretamente com o
responsável. Você se importa de aguardar no bar da
piscina?”
Claro que não, já estava ótimo só de ir até lá! Estudei
tanto sobre hotelaria e hospitalidade na faculdade que
não perderia essa pesquisa in loco. Sentei no bar, com
cara de blogueira que está achando tudo normal,
enquanto observava. Tinha um DJ tocando em um
quiosque na beira da piscina, que era da mesma cor que
o mar à sua frente, e havia guarda-sóis brancos e
pessoas elegantes tomando sol. Concluí que quanto mais
chique a mulher fosse, mais recortado era o maiô que
vestia. O lugar era deslumbrante, mas faltava vida. O
bartender interrompeu minha análise:
“Está servida?”. – Perguntou o sorridente tailandês.
“Estou só aguardando alguém. Muito obrigada!”. –
Educadamente dei aquela resposta padrão de quem está
morrendo de vontade de pedir uma água, mas com medo
que fosse custar o valor das três refeições do dia.
Logo em seguida, um homem de camisa se
aproximou. Com a educação e sorriso dignos de alguém
da área de hospitalidade, ele se apresentou como
gerente e foi muito gentil diante das abobrinhas que eu
contava. Para uma matéria oficial, eu teria que enviar um
e-mail para a pessoa responsável e ela me daria uma
autorização. Mas me deixou à vontade para conhecer as
áreas comuns do resort e até fazer uso da piscina. Já
satisfeita e com minha curiosidade saciada, agradeci e
fui embora.
Rodei mais algumas praias, tirei fotos e encontrei um
restaurante com comida local. Mais do que os lugares em
si, eu gostava das pessoas. Os tailandeses das ilhas eram
bem diferentes dos meus amigos do vilarejo: era notável
que eles tinham uma ligação muito mais de compra e
venda com os turistas. Isso diz muito da habilidade do
ser humano se adaptar. Mas eu sempre conseguia a
simpatia deles quando falava que tinha morado na
província de Sakeo, que em tailandês tem uma pronúncia
dificílima devido à língua ter cinco tons fonêmicos:
médio, baixo, alto, ascendente e descendente. Essa
diferenciação é muito difícil para nós e, às vezes, levava
muito tempo até eles entenderem o que a farang estava
tentando dizer.
Um exemplo corriqueiro é que ovo é Khai e frango é
Kai, isso usando uma transcrição para o nosso alfabeto.
Ovo se pronuncia mais como se escreve mesmo e frango
fica algo como Gaai, com a letra "a" levemente
prolongada. Assim que cheguei, por várias vezes eu
pedia um prato com frango e ao invés do frango, vinha
um ovo frito em cima. Demorei até entender a diferença
e parar de culpar a garçonete pelo erro.
Fiz questão de pedir um dos meus pratos favoritos em
Thai, que soa algo como: Kra Pao Gai. Descrever esse
prato como frango com manjericão seria uma ofensa: a
variedade de especiarias, molhos e sabores que estão
em cada prato tailandês é uma combinação explosiva de
sabor. Mesmo pedindo “Mai Pet”, comi chorando,
literalmente. A essa altura da viagem, pedir sem pimenta
e vir apimentado era um atestado de excelência.
Já passava de metade da tarde e era hora de procurar
um lugar para o pôr-do-sol para os agradecimentos do
dia. Um restaurante aconchegante na beira da praia me
chamou a atenção e parei. O lugar era muito charmoso,
com sua decoração praiana e tendas na beira do mar
azul cristalino.
Resolvi mudar e hoje pedi uma Asahi, me lembrando
que a última vez que eu havia tomado a cerveja
japonesa foi na Austrália. Assisti ao pôr-do-sol em mais
uma cerimônia de gratidão. Sentia que em breve me
despediria da ilha, já pensando em ir para a festa da Full
Moon em Koh Phangan.
O restaurante era tão agradável que cogitei me fazer
um agrado e jantar ali, mas fiz uns cálculos e achei que
ainda não era hora de extravagâncias. Pedi mais uma
cerveja e continuei admirando a pintura que tomava
forma, agora com tons de um vermelho alaranjado, que
chegava a parecer roxo em alguns pontos.
O garçom chegou com a cerveja e pedi que tirasse
uma foto minha, o que nos levou a puxar papo. Quando
digo que sou brasileira a reação é sempre a mesma:
“Ronaldinho, Pelé, Neymar”. Os tailandeses são
apaixonados pelo esporte tanto quanto os brasileiros e
inclusive muitos profissionais jogavam na Tailândia. Eu
tinha até conhecido um deles, o Gustavo, um baiano que
já mora há alguns anos em Bangkok.
Já era noite e eu tinha combinado de encontrar a Lucy
e o Tony em um barzinho mais tranquilo ao lado do Ark
Bar, já que hoje era a noite de folga do nosso amigo.
Como era caminho, passei em casa para tomar uma
ducha e trocar de roupa e segui ao encontro deles em
Chaweng. O bar tocava reggae e tinha várias almofadas
confortáveis para sentar na areia, com uma fogueira no
centro.
Foi uma noite divertida! Tony contou sobre seus casos
amorosos, eu contei do meu não-romance com o moreno
e Lucy também fez o seu relato. Ríamos das histórias uns
dos outros. Falamos de sonhos, viagens e Tony nos
contou mais da vida na Tailândia. Mas novamente a noite
não se estenderia por muito tempo, pois eu tinha planos
de acordar cedo para ver o sol nascer e queria conhecer
o interior da ilha, ir em algumas cachoeiras e em outros
lugares que tinha marcado no meu mapa. Tony deu uma
carona para Lucy e eu segui com a minha motoca no
caminho para casa.
Enquanto dirigia e sentia o vento no meu rosto,
lembrei de quando andava de bicicleta no vilarejo. A
sensação era muito parecida e a mesma felicidade me
invadia. Queria viver assim para o resto da minha vida.
Pensava no que iria fazer no outro dia e qual seria a
melhor data para seguir viagem a Koh Phangan. Hoje, a
brisa batia mais fria ou, quem sabe, eu estava muito
queimada do sol e sentia calafrios.
Parei a moto, tirei a bolsa do meu ombro, que ardia do
sol, vesti o meu casaquinho e joguei a bolsa na cestinha
na frente da moto. Faltava pouco para chegar. Assim que
retomei a velocidade na avenida deserta senti a
presença de outra moto do meu lado direito, mas estava
próxima demais. No mesmo momento em que olhei para
entender o que estava acontecendo, vi dois tailandeses
jovens na moto e o que estava na garupa puxou a minha
bolsa, que estava meio presa na cestinha.
Com o solavanco, eu quase perdi o controle da moto.
Continuamos lado a lado, quase encostando uma moto
na outra. Assim que retomei o equilíbrio, ele deu mais
uma puxada, conseguiu o que queria, e acelerou.
Com a imagem nítida daquele homem segurando a
minha bolsa de couro marrom, eu acelerei ainda mais e
consegui alcançá-los. Ficamos lado a lado a uns 80km/h.
No meu desespero, com a voz trêmula da adrenalina que
corria no meu corpo, eu implorava: “Give me my
passport! Please, my passport!”, pedindo repetidamente
em inglês para que devolvessem meu passaporte. Era
nítido, na expressão de pavor deles, que não esperavam
a minha reação e, para se livrar de mim, o motorista
freou bruscamente a moto para seguir no sentido
contrário.
Levei um susto e, em resposta, freei para continuar a
perseguição – eu não deixaria dois vagabundos levarem
tudo o que eu tinha – mas, assim que freei, me confundi
com as marchas manuais e a moto apagou. Perdi o
equilíbrio, ou as forças, não sei, e a moto foi ao chão. Um
cheiro forte de gasolina que vazava completou a cena,
enquanto eu via a moto se distanciando rapidamente,
com os dois tailandeses e a minha bolsa na mão de um
deles.
De novo não. Por favor, de novo não.
27. Meu mundo
de certezas
dE ponta-cabeça

Era exatamente assim que eu me sentia: confusa,


incrédula, como se tivessem virado meu mundo de
certezas de ponta-cabeça. Gritei com toda a força que
me restava até esvaziar completamente meus pulmões.
Com o ar, se foi toda a minha força e uma exaustão física
e emocional tomou conta de mim. Eu estava sozinha no
meio de uma avenida escura, com minha moto caída no
chão e não havia ninguém por perto para me ajudar.
A única coisa que havia me restado era a chave da
moto e a chave de casa, que, por muita sorte, eu não
deixei na bolsa. Mas o resto todo havia se ido. Meu
iPhone, passaporte, cartões de crédito e dinheiro. Só
pensava no meu celular e me lembrei de que poderia
rastreá-lo. Levantei a moto do chão e retornei para
Chaweng lentamente, observando a marginal da avenida
e das ruas para ver se não encontrava a minha bolsa.
Tinha esperanças de que eles a tivessem abandonado
em algum canto, com os meus documentos. Segui até a
polícia. A porta estava fechada, bati insistentemente na
porta e nada. Gritei e bati novamente. Quando estava
prestes a desistir um policial apareceu com cara de sono
e mal-humorado.
“No speak English. Tomorrow”. (Não falar inglês.
Amanhã).
Em resposta ao inglês de índio, eu tentei me
expressar com palavras simples, dizendo que tinha sido
furtada e que precisava usar a internet. Ele não fazia
questão de entender e repetiu irritado a informação:
“Come back tomorrow”. (Volte amanhã).
Nem o meu choro e o meu desespero mudaram a
opinião dele. Quando alguma coisa assim acontece, a
primeira segurança que temos é de encontrar um
policial, mas aquele inútil não estava com boa vontade.
Estava estampado na cara dele que o único interesse era
de voltar a dormir. Larguei uns palavrões em português e
fui para a rua.
Lembrei da Lucy e dirigi até o abrigo. Chegando lá, os
cachorros começaram a latir e a minha primeira reação
foi pegar meu celular para mandar mensagem. Não tinha
celular, fiquei ainda mais frustrada. Mesmo com medo de
algum dos cachorros estar solto, arrisquei e pulei o muro
para bater na janela dela. Parecia que Lucy tinha visto
uma assombração quando me viu ali.
Depois de contar brevemente o que aconteceu, ela
veio junto comigo. O wi-fi do abrigo não estava
funcionando. Tudo resolveu dar errado. Fomos para o
centro e paramos em um hotel simples que tinha um
tailandês trabalhando na recepção. Contei o que
aconteceu e implorei que me deixasse usar o
computador. Mesmo dizendo ser proibido o uso por
terceiros, ele se solidarizou e me deixou usar.
Entrei no iCloud. iPhone indisponível. Eles já haviam
desativado o meu celular. A única esperança que eu
tinha havia morrido ali mesmo. A tragédia se
materializou naquele momento: não tinha nada que
pudesse ser feito. Respirei, retomei a calma e fiz o que
tinha que ser feito: liguei para os meus cartões de crédito
para cancelar. Isso tudo levou quase uma hora.
Enquanto isso, Lucy me fazia companhia e tentava me
acalmar. Me questionava quantas vezes mais eu seria
assaltada na Tailândia e porque isso estava se repetindo.
Uma vez, tudo bem. Mas duas vezes em menos de dois
meses já era demais. Lucy me deu 300 baths pedindo
desculpas por não poder me dar mais, já que o seu
dinheiro estava contado. Agradeci o gesto dela, já que
novamente não poderia recusar.
O dia amanheceria em breve. Deixei Lucy no abrigo e
fui para casa. Já deitada na cama me sentia agitada e
exausta ao mesmo tempo:

O que eu fiz de errado?


Por que comigo, de novo?
Isso é um sinal para eu desistir?
Atordoada, entre perguntas sem respostas, caí no
sono.

...

Acordei ainda meio sonolenta com as imagens do


pesadelo que tive naquela noite na minha cabeça:
sonhara que minha bolsa tinha sido furtada por um
tailandês enquanto dirigia minha motoca de volta pra
casa. Que coisa louca, virei para o lado para pegar meu
celular e ver as horas, quando percebi que o celular não
estava ali. Foi quando a realidade recaiu sobre mim e me
dei conta de que era tudo real.
Fechei os olhos e apertei meu rosto bem forte contra o
travesseiro. Eu não queria acreditar, mas vários flashs da
noite anterior começaram a me perturbar: lembrava em
detalhes da expressão de pavor do tailandês que
segurava a minha bolsa, enquanto estávamos lado a lado
e ele viu que eu estava disposta a segui-los. E, agora,
relembrando a cena, me dei conta de que estava
próxima o suficiente para ter dado um chute na moto. Por
mais que eu soubesse que não faria isso, senti raiva por
essa não ter sido a minha reação. Lembrava da sensação
de impotência enquanto via eles indo embora.
Fui tentando me lembrar do que mais havia na bolsa.
A minha carteira de motorista brasileira estava lá. Eu
nunca fui de comprar ou de ter muitas coisas materiais e
nem era muito apegada, mas os objetos que eu
comprava durante as minhas viagens tinham um valor
sentimental. A bolsa que eles tinham levado já me
acompanhava há dois anos, desde que a escolhi lá na
Austrália.
Dentro da bolsa, estava a única pulseira de prata que
eu tinha, comprada depois de muita pechincha em Bali. A
minha tornozeleira de prata era minha paixão: a escolhi a
dedo em uma feirinha em Pirenópolis. O meu relógio
também estava na bolsa: o único relógio que eu havia
comprado na vida inteira, quando ainda morava na Nova
Zelândia, e que viajava comigo há mais de três anos.
Mas, tudo bem, fiquei feliz em ver que a minha máquina
a prova d’água tinha ficado sem querer na casa.
Abri o meu computador para tentar falar com alguém.
Eu sempre me virava bem sozinha quando tragédias
aconteciam nas minhas viagens, mas hoje eu me sentia
mal. Sentia uma dor na alma e uma impotência. Parecia
que a minha maré de azar não ia embora: o wi-fi não
estava funcionando. Fiquei irritada e chorei. Estava
cansada de ser a durona forte. Queria falar com meus
pais, mas eu nunca fazia isso. Só falava com eles depois
que estava calma e tudo resolvido.
O que eu faço agora?
A moto estava quase sem gasolina e sentia pânico só
de pensar em dirigi-la. Sentia fome e me sentia perdida
sem meu celular para pesquisar alguma coisa. Tinha 300
baths que a Lucy me deu. Teria que fazer cálculos para
decidir como usá-los com sabedoria. Já tinha visto essa
cena acontecer, na delegacia em Bangkok. Senti falta do
Doug. Será que faria um amigo legal na delegacia dessa
vez?
Sem uma bolsa para usar, coloquei o computador em
uma sacola de plástico e saí em direção à avenida
principal. Segurava a sacola bem forte debaixo do meu
braço, com medo da minha maré de azar se perpetuar.
Andei por um bom tempo debaixo do sol para achar uma
cafeteria com wi-fi.
Pedi um sanduíche e conectei. Assim que o abri, meu
Facebook bipou com uma mensagem do Tony. Lucy já o
tinha avisado do ocorrido e ele estava preocupado
comigo. Aceitei o conforto de ter alguém para me ajudar.
Em pouco tempo, Tony me encontrou e foi como um
anjo na minha vida. Ele me levou na carona da sua moto
até a polícia de turistas, que era diferente da que eu
havia ido durante a noite. Todos os policiais falavam
inglês e foram muito gentis.
Fiz um boletim de ocorrência que eu teria que enviar
para o meu seguro de viagens, que cobriria todas as
minhas perdas e gastos. Eu sempre viajei com seguro de
viagem e ele nunca tinha sido útil, mas, dessa vez, ele
valeu por todas as outras vezes que já tinha pago e não
utilizado. Por sorte, eu tinha pago um valor adicional e
meu iPhone também estava segurado.
“Pronto, agora que você já tem o seu boletim de
ocorrência, vamos ao Tesco comprar um telefone para
você” – avisou Tony.
“Mas Tony, eu não tenho dinheiro pra comprar um
telefone. Vou deixar isso para depois, não se preocupa”
“Você não pode ficar sem comunicação aqui. Vou
comprar um telefone para você e depois acertamos.”. –
Falou, enquanto colocava seu capacete e entregava o
meu para mim.
“Obrigada por me ajudar, Tony!”. – Eu realmente
estava grata.
Mas mesmo com a ajuda do Tony, eu me sentia
perdida. Nós, seres humanos, pensamos que temos
controle de alguma coisa, mas não controlamos nada. Eu
acredito que existe um plano muito maior e que as coisas
acontecem como tem que ser. Sabia que tudo isso tinha
que acontecer para me preparar para algo ainda maior.
Alguma coisa eu tinha que aprender. Provavelmente,
alguma coisa que eu não aprendi quando fui furtada da
primeira vez. Mesmo assim, eu achava injusto e me
questionava. Estava cheia de planos e, em questão de
segundos, todas as minhas certezas viraram
interrogações. Eu sentia um calafrio toda hora que uma
moto passava do meu lado.
Compramos um telefone bem simples e um chip novo,
jantamos e o Tony me deixou em casa. Eu precisava falar
com a minha família, mas o wi-fi continuava sem
funcionar. Comecei a chorar, me sentia sozinha e não
queria mais estar ali. Saí andando novamente pela
avenida com o meu computador, me sentindo a pessoa
mais sem esperança do mundo.
Depois de andar umas quatro quadras, achei um bar,
entrei e fui direto falar com quem parecia a dona do
estabelecimento. Foi fácil identificá-la por ser a única
farang entre as funcionárias tailandesas.
“Olá, será que eu posso usar o seu wi-fi? Eu fui furtada
hoje e não tenho dinheiro para consumir nada, mas
preciso falar com a minha família.”. – Falei com os olhos
cheios de lágrimas, mas sendo forte para não chorar.
Muito gentilmente, ela me disse para ficar à vontade.
Escolhi a mesa mais ao canto e isolada, apesar do bar
estar praticamente vazio. Era um ambiente
aconchegante, todo aberto e com vários quiosques.
Sempre que viajo e algum imprevisto acontece, eu
não aviso meus pais até que eu tenha resolvido tudo.
Porque eu sei que ligar desesperada para eles só vai
piorar a situação e deixá-los preocupados. Mas dessa vez
foi diferente: eu sentia a necessidade de falar com meus
pais para desabafar. Eu precisava de colo. Liguei pelo
Skype para a minha mãe.
“Alô”. – Como era bom ouvir a voz dela.
“Oi, mãe, sou eu. Tudo bem?”.
“Oi, minha filha amada. Eu estou bem e você, como
está?”.
“Fui furtada de novo mãe” – E comecei um choro
seguido de soluços e falta de ar. Não conseguia
responder nenhuma pergunta dela e só a ouvia falar.
“Calma, minha filha! Respira fundo e fica calma. Me
diz se está tudo bem. Fizeram alguma coisa com você?”.
– Enquanto ouvia sua voz de preocupação, senti
arrependimento por ter ligado. Não queria que ela ficasse
preocupada.
Segurei o choro por alguns segundos, mas quando
começava a falar novamente, a tristeza se transformava
em choro e as palavras não saiam.
“Não fizeram nada comigo, mãe. Eu estou bem. É só
que eu não consigo entender porque isso aconteceu de
novo.”.
Uma das garçonetes se aproximou e largou um
guardanapo e uma garrafa de água. Antes que eu
pudesse negar, ela falou baixinho, enquanto piscava:
“Por conta da casa”. Sorriu e continuou seu trabalho.
Assoei o nariz e tomei um gole d’água, enquanto
ouvia um pedido inédito vindo de minha mãe:
“Filha, não tem problema você desistir e voltar pra
casa. Vem pra casa se você acha que aí não é seguro pra
você”.
A minha resposta foi automática:
“Eu não vou desistir de nada por causa de um filho da
puta. Ele que leve o que quiser de mim, mas eu não vou
desistir de um sonho por causa desse infeliz. Eu vou ser
forte, mãe, e aguentar mais essa. Se acontecer mais uma
vez, daí sim eu penso em voltar. Mas ainda não. Eu vou
continuar para o Camboja e fazer meu voluntariado lá.”.
– Desabafei.
“Filha, você que sabe. A única coisa que eu digo é
para você seguir o seu coração. Faz o que você acha que
é o certo. Mas agora, me conta o que aconteceu…”.
E continuamos uma conversa de meia hora. Minha
mãe pediu para eu agradecer o Tony por ela e ficou
muito feliz em saber que tinha alguém para me auxiliar.
Meu pai estava viajando e ela disse que contaria tudo
para ele no dia seguinte.
Depois de desligar com minha mãe, eu senti um alívio
e já me sentia mais forte para retomar os planos e
colocar meus pensamentos no lugar. Finalmente, prestei
atenção à minha volta. Reparei que o bar tinha ganho um
clima diferente. Os poucos clientes eram todos homens,
farangs de mais idade, e achei as garçonetes muito
próximas deles.
Reparei melhor nelas e me dei conta de que eram
prostitutas. Percebendo que eu tinha terminado o choro e
a ligação, a dona do bar se aproximou e, antes que
falasse comigo, percebi que ela era a cafetina das
meninas. Muito gentilmente me perguntou se eu queria
mais alguma coisa, que hoje eu era convidada da casa.
Agradeci a gentileza. Conversamos sobre o que
aconteceu e ela me acalmou com suas palavras. Me senti
bem conversando com ela. Nunca imaginei que uma
cafetina seria a pessoa que me confortaria naquela noite.
A Tailândia não parava de me surpreender.
28. Mais amigos que eu
deixaria
para trás, com a incerteza
de um futuro reencontro

Já havia mandado mensagem para o Mariusz para


atualizá-lo dos acontecimentos. Quando ele soube, se
colocou totalmente à disposição para me ajudar com o
que eu precisasse e pensou até em voltar para casa.
Tranquilizei-o falando que não estava sozinha e tinha um
amigo australiano já me ajudando. Mesmo assim, ele me
mandava mensagem todos os dias para saber como eu
estava. Cansada do stress emocional dos últimos dias e
sem o celular para colocar para despertar, consegui
finalmente ter uma noite de sono merecida.
Primeira superação do dia foi pegar a moto e dirigir
até o café onde eu estive no dia anterior, já que eu
continuava sem wi-fi e o calor estava extremo para ir
andando novamente. Continuava sentindo calafrios
quando uma moto passava por mim, mas eu não deixaria
todos os momentos bons que vivi com a minha motoca
serem apagados por causa daqueles dois tailandeses. O
meu dinheiro deu certinho para comer alguma coisa no
café e assim pude usar o wi-fi.
A primeira mensagem do dia foi para o moreno. Um
dos únicos investimentos que eu havia feito para a
viagem foi o iPhone, já que antes eu tinha um telefone
velho que mal tirava fotos. O moreno pediu gentilmente
para o irmão comprar um iPhone para mim, em uma
viagem que fez aos Estados Unidos com a esposa e os
filhos, já que no Brasil era muito caro. E, agora, precisava
enviar toda a documentação para o seguro de viagem,
incluindo a nota fiscal do telefone e a data da compra,
que eu preferi fingir que não fazia a menor ideia somente
para puxar assunto com o moreno. Eu sabia que se
olhasse as nossas conversas, eu descobriria a data.
Percebi que a última mensagem havia sido minha um
mês e meio atrás. Nós realmente nos afastamos. Escrevi
a mensagem, dizendo que fui furtada e que precisava de
um favor. Era sábado à noite no Brasil e estava certa de
que ele não responderia.
Para minha surpresa, ele respondeu na hora, dizendo
que teria que olhar em casa. Assim que chegou em casa,
ele me enviou foto da nota e me confirmou a data da
compra olhando a conversa dele com o irmão. Agradeci e
perguntei como ele estava, na intenção de puxar
assunto. Não obtive resposta. Ele deixou claro que só
estava disposto a conversar o essencial comigo. Como
ele preferisse.
Escrevi para o Doug, contando o que tinha acontecido
e ele usou a empatia para me consolar, dizendo que
também tinha sido furtado novamente no Vietnã. Rimos
da nossa desgraça.
Passei as próximas horas anexando papéis e
preenchendo formulários para o seguro. Depois eu
poderia acrescentar os valores que gastaria com a taxa
do passaporte. Como já havia feito isso antes uma vez, já
sabia tudo o que poderia ser incluso.
Eu estava a apenas quatro horas de barco da ilha de
Koh Phangan e a Full Moon Party seria em três dias. Tão
perto, mas, ao mesmo tempo, tão distante. Eu tinha
razões suficientes para desistir dos meus planos de
viagem e retornar a Bangkok. Todo e qualquer meio de
hospedagem na Tailândia requer que você apresente um
documento, pois o estabelecimento tem que fazer um
relatório e enviar para a polícia local. Até mesmo lá no
vilarejo esse procedimento era obrigatório.
Isso significava que nenhum lugar me aceitaria como
hóspede em Bangkok. Mas eu tinha um conhecido na
cidade, o menino brasileiro que jogava futebol. Conheci
ele da última vez que estive em Bangkok com a Joana e
ele era uma pessoa muito humilde, se demonstrando
muito aberto caso eu precisasse de ajuda. E eu
definitivamente precisava agora. Além de um lugar para
dormir, eu precisava de um endereço para receber os
meus cartões de crédito. Então, entrei em contato com o
Gustavo e ele foi super gentil: assim que chegasse em
Bangkok, eu poderia ficar em sua casa até resolver tudo.
Liguei para a operadora do cartão e pedi que
enviassem os cartões para o endereço dele. Assim, até
que eu chegasse lá, os cartões já estariam próximos de
chegar também.
A única coisa boa de passar o dia inteiro na frente do
computador era ganhar um descanso do sol e do calor
absurdo que fazia do lado de fora. Mas estava em uma
ilha e, sabendo que em breve iria embora, eu queria
aproveitar. Combinei de encontrar com o Tony para ver o
pôr-do-sol no mesmo lugar da primeira vez que nos
encontramos. Com tudo o que tinha acontecido comigo
nos últimos dias eu sentia que tinha mais a agradecer do
que a reclamar.
Jantamos com a Lucy, no qual seria o nosso jantar de
despedida. O Tony me emprestou dinheiro para comprar
a passagem de barco, ônibus e trem de volta a Bangkok.
E também me deu uns baths extras para a viagem. Eu
brincava dizendo que, a partir de agora, o chamaria de
pai.
A Lucy me deu de presente uma bolsa de pano
pequena que era dela para eu usar na viagem. Eu podia
ver em seu rosto que estava triste com a minha partida.
Mais uma despedida, mais amigos que eu deixaria para
trás com a incerteza de um futuro reencontro.
29. Bangkok, uma
relação de amor
ou ódio

Sem passaporte, sem cartão de crédito e com pouco


dinheiro no bolso, eu me aventurava sem medo pelas
ruas de Bangkok. Não gosto de cidades caóticas, mas o
caos de Bangkok tinha uma personalidade excêntrica. Eu
adorava ver mais e mais do que ela tinha a me mostrar.
Durante o dia, eu caminhava pelas ruas e observava
tudo. Carros, motos e tuk-tuks em número excessivo
tomam conta das ruas. As calçadas são tomadas por
vendedores que comercializam os mais variados
produtos, desde eletrônicos, a roupas, decoração, flores,
frutas cortadas prontas para consumo, sucos naturais de
frutas desconhecidas, doces, espetinhos exóticos, insetos
fritos e até comidas que eu não fazia idéia do que eram.
Pessoas com deformidades e doenças pediam esmola,
enquanto asiáticos vestidos com roupas finas
caminhavam apressados. Tailandeses, expatriados,
mochileiros e turistas achavam seu caminho em meio ao
caos. Propagandas com asiáticos brancos e sorridentes
vendem produtos de beleza que garantem uma pele
branca e bonita como a deles. Eu tinha a sensação de
que todas as línguas estavam sendo faladas ao mesmo
tempo, enquanto motos buzinavam ao fundo.
Andei vários quilômetros por dia, simplesmente
observando e experimentando toda comida que fosse
diferente e atrativa. Regra número um: sempre perguntar
o preço antes de comprar qualquer produto ou serviço.
Regra número dois: sempre pechinchar. Quanto mais eu
conhecia a cidade, mais eu percebia que tinha muito
ainda a ser visto.
E quando a noite cai, uma Bangkok depravada se
revela. Tailandeses segurando menus repetem em voz
alta insistentemente “Ping Pong show”, fazendo
referência a uma das atrações turísticas mais bizarras da
cidade, onde mulheres arremessam bolinhas de pingue
pongue sem usar as mãos. Se elas não usam as mãos, o
que usam então? Isso mesmo, o órgão genital. Dei uma
olhada no menu para matar a curiosidade e descobri que
as bolinhas eram só uma parte do show que contava com
dardos, cigarro, bananas, assovios, desenhos e até
apagavam velinhas, caso fosse o seu aniversário.
Foi um motorista de tuk-tuk que me apresentou a
expressão em inglês mais usada na Tailândia. Ele era
muito divertido e se sentia na necessidade de ir me
apresentando a cidade. Passamos por uma mulher muito
bonita parada em uma esquina, ele apontou para ela e
depois para mim, como que comparando as duas e disse:
“Same, same, but different”, que em português quer
dizer “Igual, igual, mas diferente”.
Na hora eu não entendi e olhei novamente para a
mulher. Analisei o pomo de adão e percebi que era um
Lady Boy. Comecei a rir incessantemente quando entendi
o que ele quis dizer com a frase. Éramos duas mulheres,
só que não!
Passei a ouvir essa expressão quase todos os dias em
contextos diversos. Quando perguntava o porquê da
diferença de preço entre duas rotas de ônibus com o
mesmo destino final eu ouviria “Same, same, but
different” seguido de um sorriso. Essa expressão explica
muita coisa que muitas vezes a falta do inglês não
conseguiria explicar e entendi porque tantas camisetas
são vendidas com a expressão.
Estava ficando na casa do Gustavo, que era a
generosidade em pessoa. Ele tinha um estilo de vida
muito peculiar, que só o mundo do futebol proporciona.
Seus amigos, todos jogadores de futebol, adoravam fazer
festa e até me colocaram na lista de uma balada famosa
de Bangkok, um lugar que provavelmente nenhum
mochileiro conheceria.
Ambientes sofisticados e sem muita personalidade
onde modelos e jogadores de futebol interagiam. Eu, com
pouco mais de um metro e meio, vestindo minhas roupas
de mochileira e sem salto alto, passava quase que
imperceptível ao lado daquelas mulheres de quase dois
metros de altura, que perdiam a elegância à medida que
se entorpeciam.
Eu gostava de estar ali para observar: era uma
oportunidade de acessar um mundo a parte que muitas
vezes é vendido como sinônimo de sucesso e requinte.
Eu não tinha muita paciência para aquele ambiente e
para as conversas sobre Rolex, mulheres e festas. Mas
me divertia com a capacidade dos amigos do Gustavo de
formular piadas com absolutamente tudo que acontecia
ao nosso redor.
A Khao Sao Road era a antítese dessas baladas.
Requinte não tinha vez ali. Mochileiros do mundo inteiro
se aglomeravam nas ruas iluminadas por seus letreiros,
enquanto tailandeses tentam vender tudo o que pode ser
atraente a um turista: cerveja gelada, escorpião frito,
camisetas, massagem, mais insetos fritos e passeios.
Uma gama sem fim de opções. Documentos falsificados
te tornam agente da CIA ou até te proporcionam um
diploma em Harvard. Perguntei se eram verdadeiros e
recebi a boa e velha explicação “Same, same, but
different”. Chegando próximo ao começo ou ao final da
rua, a oferta por tuk-tuks era interminável.
Bangkok é uma relação de amor ou ódio. E eu
definitivamente amava os contrastes daquele lugar.

...

Depois de três dias andando como anônima em


Bangkok, devido à falta de dinheiro para pagar a taxa do
passaporte, finalmente fui à Embaixada do Brasil.
Assim que apareci no guichê, o funcionário me
perguntou sem nem ao menos me olhar:
“Bom dia, como posso te ajudar?”.
“Eu tive o meu passaporte furtado. Posso usar o
computador para acessar o meu e-mail para te enviar a
cópia do antigo passaporte e dos outros documentos que
você precisa?”. – Perguntei demonstrando familiaridade
com o processo.
O funcionário finalmente tirou os olhos da tela a sua
frente e me olhou fixamente por uns 10 segundos
enquanto eu aguardava uma reação.
“Você por aqui de novo, garotinha?! Você precisa ficar
mais atenta, não pode ficar perdendo o seu passaporte a
cada mês. O que foi dessa vez?”. – Indagou ele,
enquanto eu segurava uma risada de canto de boca por
achar engraçado o fato dele me reconhecer. Ele tinha me
atendido também da primeira vez.
“Pois é, fui furtada novamente.”. – Concluí, sem
acrescentar detalhes.
“Você sabia que cada vez que perde o passaporte,
você perde um ano de validade nele?”.
Para de dizer que eu perdi o meu passaporte, porque
eu não perdi. Eu fui FURTADA.
“Não sabia. Então agora meu passaporte vai ser
válido por apenas 3 anos?”. – Lembrei-me de que o meu
atual já tinha validade reduzida, de apenas 4.
“Exatamente. E se você continuar perdendo o
passaporte, vamos te dar uma autorização de retorno ao
Brasil. Por isso você deve ser mais cuidadosa.”. –
Advertiu o rapaz, em tom de sermão.
“Tudo bem, eu serei.”. – Concordei, sabendo que ele
estava certo.
Depois de perceber que o recado tinha sido dado, ele
foi muito atencioso e me ajudou com todo o processo do
novo passaporte. Peguei o boleto, fui no banco pagar
com o dinheiro que o Gustavo tinha gentilmente me
emprestado, retornei para entregar o comprovante de
pagamento e retirar meu passaporte, que ficaria pronto
na hora.
“Tudo certo então?”. – Perguntei feliz, já em posse do
novo passaporte.
“Tudo certo. E depois de hoje, não quero te ver mais
aqui na embaixada, hein?”. – Ele falou isso com um
sorriso afetuoso, de quem na verdade só quer o meu
bem.
“Se o atendimento da Embaixada não fosse tão bom,
eu não retornaria tantas vezes” – Eu disse sorrindo.
Como de costume, fui até a Imigração Tailandesa, que
tinha um dos prédios modernos mais bonitos que eu já
tinha visto em Bangkok: cercado por um lago. Depois de
muita fila e burocracia consegui a cópia da cópia do meu
visto de turista, que estreou uma página inteira do meu
passaporte com carimbos com letras inteligíveis em
tailandês. O sonho de ver o meu passaporte repleto de
estampas estava mais longe a cada furto.
Agora que eu tinha documento, cartões e dinheiro
novamente, a vida tinha até perdido um pouco da graça.
Sentia que tinham me devolvido a responsabilidade de
ser alguém e de saber administrar a minha vida.
Com isso, comprei uma carteira nova e um money
belt, que é aquela pochete fininha para usar por dentro
da roupa, ideal para carregar dinheiro e passaporte.
Finalmente, eu estava fazendo o que era certo.
Quitei todas as dívidas que precisei fazer nesses
últimos dias. O Gustavo fez uma transferência para o
Tony do valor que estava devendo para ele. Mandei uma
mensagem para o meu amigo australiano, agradecendo-
o mais uma vez por toda a sua ajuda e também o
tranquilizei, dizendo que já tinha resolvido tudo.
Comecei a fazer pesquisa de instituições para
voluntariar no Camboja e também li um pouco sobre a
Guerra Civil recente, me preparando para o que estava
por vir. Estava ansiosa para voltar a voluntariar e pisar
em território desconhecido novamente. Fiz contato com
uma escola que fica em uma ilha e precisa de voluntários
para ajudar em um programa de conservação ambiental
e também para dar aulas de inglês para as crianças
locais. Era tentadora a ideia de viver e me voluntariar em
uma ilha Cambojana. Estava pronta para seguir viagem.
30. Praticamente tudo
na fronteira era falso,
incluindo os próprios
policiais…

Novamente, eu estava chacoalhando em uma minivan,


mas que, dessa vez, me deixaria em uma das fronteiras
mais perigosas do mundo. Rumo ao Camboja, um país
corrupto e sem leis que, até então, era um total
desconhecido e isso me fascinava. Começava a criar
expectativas do que encontraria pela frente, desejando
que os lances de azar fossem deixados para trás.
Dessa vez, eu havia aprendido a lição: eu acreditava
que as dificuldades tinham vindo para me fortalecer e
não para me fazer desistir. Nunca fui muito cuidadosa
com os meus pertences, não por não dar valor ao que
tenho, mas por viver com a cabeça em um mundo
paralelo, de questionamentos e sentimentos aguçados,
esse mundo que relato agora em palavras.
Seriam aproximadamente sete horas de viagem até a
fronteira mais ao sul da Tailândia, Koh Kong, que eu
atravessaria a pé. Já em solo cambojano, pegaria um
ônibus que me deixaria na cidade de Sihanoukville em
quatro horas.
Estava sentindo falta do meu smartphone para
acompanhar onde estávamos, garantindo assim que não
perderia a minha parada. Começava a me arrepender de
não ter feito uma pesquisa mais detalhada desse trajeto.
Era estranho não ter meu telefone para tirar minhas
dúvidas. Viajando pela Ásia, é sempre necessário fazer
pesquisas antes de ir a algum lugar, evitando assim
golpes e furadas.
A viagem começou a ficar fora do planejado quando,
com menos de seis horas de viagem, o ônibus parou e
todo mundo desceu no que parecia ser o ponto final.
Tentei perguntar para alguém, mas ninguém falava
inglês. Pela pesquisa rápida que eu havia feito, eu tinha
que estar na fronteira, mas não existia nada ao meu
redor que indicasse. Comecei a procurar por placas,
mapas ou qualquer informação que fizesse referência
sobre onde eu estava. Trat, eu estava em Trat. Mas onde
seria Trat? Sem entender nada, vi uma mulher sentada
em uma mesa improvisada e perguntei como chegaria
até Koh Kong.
“Koh Kong? 2.000 baths!”. – Repetia essa informação
que para mim era absurda.
Ela colocava pressão, tentando justificar o valor alto:
“Último ônibus do dia para Koh Kong. Senão vai ter
que dormir aqui” – Repetia com a mão estendida em
minha direção, aguardando o meu pagamento, que
jamais aconteceria. Ela estava me cobrando 60 dólares
por uma viagem de uma hora, sendo que eu tinha pago o
equivalente a seis dólares pela minha viagem de seis
horas até ali.
Saí andando e perguntando a todas as pessoas se
havia um ônibus até Koh Kong. Parecia que ninguém
além da mulher caloteira falava inglês. Eu nem sequer
tinha esse valor: estava com um resto de dinheiro e
aguardava o depósito do Brasil entrar no dia seguinte,
para sacar direto na moeda local do Camboja.
Uma garota tailandesa, percebendo que eu estava
perdida se aproximou.
“Você, Koh Kong?”. – Ela disse, apontando para mim.
“Sim. Eu, Koh Kong”. – Respondi na mesma gramática
que ela havia usado, na esperança de nos entendermos.
Ela me pegou pela mão e começou a andar comigo
pela rua até encontrar um ônibus. Apontando para ele,
disse “Koh Kong”. Agradeci a minha salvadora com um
“kokunka” e muitos sorrisos enquanto o motorista me
mandava entrar no ônibus. Paguei 120 baths e entrei
rezando para que ele me levasse ao lugar certo.
Uma hora depois, foi um alívio ver a placa indicando
Koh Kong. Seria impossível continuar essa viagem sem
um smartphone. Precisava de um urgente. Ao descer na
fronteira, fui avisada que deveria correr, pois ela fecharia
em meia hora. Saí correndo desviando barracas, pessoas,
frutas e cachorros. Ao chegar na fila para a fronteira, o
homem que estava a minha frente percebeu a minha
agitação e interagiu.
“Bem na hora! Primeira vez passando por essa
fronteira?” – Ele me perguntou com um sotaque leve,
mas que deduzi que era alemão.
“Sim, minha primeira vez, como você pode ver. E,
para piorar, estou sem telefone para checar as
informações. Ainda bem que deu tempo. Pretendo pegar
um ônibus para Sihanoukvile ainda hoje e você?”. –
Perguntei com a certeza de que havia um ônibus até a
cidade.
“A essa hora, não tem mais nenhum ônibus, mas eu
também estou indo para lá. Se você quiser, podemos
dividir um táxi. Porque eu não quero dormir nesse fim de
mundo.”.
Um táxi para uma viagem de 4 horas era a última
opção para o meu orçamento. Me restava pouco mais do
que eu precisava em baths para pagar a taxa do meu
visto de 30 dias de turista que tiraria ali na fronteira
mesmo. Eu poderia ter feito um visto eletrônico
diretamente no site, mas como custava praticamente o
mesmo valor, acabei deixando para fazer na hora. Levei
até uma foto, para evitar taxas extras.
“A propósito, meu nome é Billy. Eu sou alemão, mas
moro no Camboja há muitos anos. Sou motociclista. Fique
à vontade para passar junto comigo pela imigração. Eles
são conhecidos pelos golpes e corrupção. Não pague
nenhuma taxa a mais, mesmo que o policial esteja
fardado e existam placas e panfletos explicativos. São
todos falsos.”. – Enquanto ele falava, eu o analisava. Ele
deveria ter quase uns 40 anos, mas o corpo enxuto, o
cabelo comprido quase no ombro e a regata que usava
fazia parecer que era mais novo.
“Obrigada, vou aceitar a sua oferta.”. – Sorri, em
agradecimento.
Depois de receber o carimbo de saída na Tailândia,
sigo para o lado Cambojano. Praticamente tudo na
fronteira era falso, incluindo os próprios policiais, que
tinham vários golpes que te levavam a pagar alguma
taxa adicional. O clima era um pouco tenso, já que você
não sabe em quem pode ou não acreditar.
Um policial se ofereceu a preencher o meu formulário
e, antes que eu pudesse reagir, o meu amigo alemão
disse que não era preciso. Havia também uma mesa com
uma placa indicando “quarentena”, onde eles tiram a sua
temperatura com um termômetro e cobram uma taxa
pelo formulário que não será preciso em momento
nenhum.
Outro policial estava me cobrando um valor mais alto
pelo meu visto, sem nenhuma razão. Queria 300 baths a
mais. Falei que não pagaria e ele me mandou esperar
debaixo de uma árvore. Eu sabia que a fronteira estava
fechando e duvidei que ele levaria muito tempo com
aquele teatro sem escrúpulos.
O Billy finalizou o visto dele e voltou para me ajudar.
Depois de negociar por algum tempo com o policial
alterado, pagamos a taxa, que correspondia a tudo o que
eu tinha, e fomos liberados junto com o pôr-do-sol.
Finalmente estava em solo Cambojano, novamente
sem dinheiro e com um amigo alemão para me
acompanhar. Parecia um dejà vu.
31. Realizando o sonho
de conhecer uma terra
que parecia tão distante

Essa era a primeira vez que eu atravessava uma


fronteira a pé e minhas expectativas para ver o que me
aguardava do outro lado eram grandes. Aguardava uma
mudança de paisagem, uma cidade diferente ou
qualquer indício de que estava “do outro lado”. Uma
placa, quem sabe? Para minha decepção, tudo o que via
era campo, táxis e tuk-tuks. E foi então que descobri que
a cidade de Koh Kong estava a 15km de distância.
Ainda tinha esperança de achar um ônibus até
Sihanoukville, mas a informação era única: somente no
dia seguinte, já que o último ônibus sai às 13 horas todos
os dias. Eu não queria acreditar e cheguei a desconfiar
de que os motoristas estivessem me dando a informação
errada, visto que eles se tornariam a nossa única opção.
Essa desconfiança era resultado da minha recém-
experiência com os policiais na fronteira e eu tinha a
impressão que os cambojanos não viam turistas, mas sim
notas verdinhas.
Billy perguntou para um taxista quanto sairia a corrida
e ele foi categórico: 100 dólares. O desespero ficou maior
em mim: mesmo dividindo entre dois, eu não tinha essa
grana toda para pagar um táxi. Com o meu orçamento
apertado, eu não podia me dar o luxo de andar de táxi
por quatro horas, sendo que havia um ônibus para fazer
o trajeto.
Eu não esperava que o lado cambojano da fronteira
fosse esse deserto onde o primeiro caixa eletrônico
estaria a quilômetros de distância. Cogitei a hipótese de
dormir na cidade, mas, assim que o motorista do tuk-tuk
me disse o valor da corrida, eu percebi que ficar na
cidade, naquela situação, era um prato cheio para os
locais se aproveitarem e cobrarem o quanto quisessem,
já que as opções eram limitadas.
Enquanto o Billy aguardava uma decisão minha, eu
perguntei a todos os taxistas da rua o valor da corrida
até o nosso destino final e consegui fazer um deles
baixar o preço para 60 dólares. Tentei 50, mas ele até
achou desrespeitosa a minha oferta e disse que era
muito pouco. E usou as palavras “longe” e “perigoso”
para descrever o trecho.
Olhei para o Billy, já me dando por vencida. Teria que
ir de táxi:
“Quer uma carona até Sihanoukville?”. – Brinquei.
Aceitei a ajuda do motorista para colocar o meu
mochilão no porta malas e o Billy colocou junto sua
mochila pequena preta, revelando que tinha ficado pouco
tempo no país vizinho. Nos acomodamos no banco de
trás do carro enquanto eu constatava que essa era a
primeira vez que fazia uma viagem longa de táxi,
esperando ser uma das viagens mais cômodas que faria
no continente Asiático.
Escutei as muitas histórias que Billy tinha para contar,
todas envolvendo sua moto, uma Royal Enfield que ele
comprou na Índia, onde a moto é fabricada. Quando
afirmei que não conhecia a marca, ele fez questão de
explicar como ela era especial e rara.
Enquanto ele falava, não conseguia deixar de pensar
no quanto ele e meu pai teriam o que conversar. Eu
também tinha vontade de pegar uma moto de verdade
para viajar, mas eu nunca tinha pilotado uma. Quando
tirei a carteira de motorista, meu pai não deixou que eu
tirasse para moto. Ele disse que seria perigoso demais. E
talvez fosse. Eu nunca tive muita noção de perigo e
gostava de velocidade e vento no rosto.
Enquanto conversava com o Billy, eu prestava
atenção na estrada. Quanto mais o taxista dirigia, mais
tinha a sensação de que estávamos cada vez mais
próximos do fim do mundo. Não havia iluminação
nenhuma e muito menos sinalização. Quando olhava pela
janela, não via nada: era difícil definir os limites da
estrada de chão. Mas a situação ficou pior quando as
estradas viraram buracos imensos cheios de água.
“Estamos no ápice da estação das monções. A chuva
destruiu as estradas. É por isso que não vim de moto”. –
Explicou o meu amigo motociclista. Já tinha aprendido
com o meu pai que a maior ofensa é chamar um
motociclista de motoqueiro.
Os buracos foram ficando cada vez maiores, ao ponto
de serem do tamanho do carro. Quando o motorista
parou diante de um deles, eu tive a certeza que aquele
era o fim da nossa viagem. Precisaríamos retornar.
“E agora, Ary?”. – Perguntei ao nosso motorista.
“Não se preocupe. Vamos conseguir passar.”. – Falou
Ary enquanto analisava o buraco, quase ficando em pé
dentro do carro.
Nunca duvide de um local. Desconfio que eles têm
superpoderes. Devagar e com muita habilidade, Ary
conseguiu desviar de todos os buracos, mesmo que
muitas vezes tivesse de entrar neles. Fiquei até com
remorso de ter pedido tanto desconto na corrida, porque
ele ainda teria que voltar por esse mesmo caminho. O
nosso motorista disse que morava com sua esposa e
duas filhas próximo a Kong e que uma corrida até
Sihanoukville era muito boa. Parecia feliz com o dinheiro
que faria hoje.
Ele disse que gosta de trabalhar como taxista porque
encontra pessoas do mundo todo e mal pôde acreditar
quando eu disse que era do Brasil. Aparentemente, eu
era a primeira cliente brasileira. Ele contou que perdeu
um irmão para as minas terrestres e aprendeu inglês
com sua irmã, que teve a oportunidade de estudar em
uma escola na qual voluntários ensinavam inglês. Além
disso, o constante contato com os Barangs (a palavra em
cambojano para Farang) o ajudava a melhorar cada dia
mais. Encontrar pessoas como o Ary na minha viagem
dava mais sentido a ela.
Resolvemos fazer uma parada rápida para os homens
usarem o banheiro natural. Enquanto aguardava,
coloquei a cabeça pra fora do carro e olhei para o céu. O
que faltava de luz na estrada, sobrava lá em cima. Que
presente de boas-vindas! Agradeci à natureza por
tamanha perfeição. Eu nunca tinha visto antes um céu
tão estrelado e iluminado como aquele. Era um sinal de
que tudo daria certo.

...

Acordei e fiquei observando o teto: mais um que


entraria para a minha coleção, o primeiro do Camboja.
Tomei banho e me dirigi rumo às conversas e risadas que
vinham da sala para dar bom dia aos meus novos
amigos. Lá estavam eles, todos na mesma faixa de
idade: Billy, vestindo outra regata e o cabelo longo
desarrumado; George, vestindo uma roupa que parecia
de escoteiro, era alto, tinha um sorriso doce e um
cavanhaque que contrastava ainda mais com sua careca
brilhante; e Louis, moreno e magro, vestia uma samba-
canção e fumava seu cigarro. Três pessoas totalmente
diferentes que em comum tinham o amor pelas
aventuras de moto, a nacionalidade e o gosto por pintar
as unhas dos pés.
Na verdade, elas não eram pintadas, mas sim
decoradas. A de Louis era perfeitamente desenhada com
os pássaros do Angry Birds. Quando reparei nesse
detalhe, não pude evitar de fazer perguntas e uma longa
conversa se iniciou. Eles me deram uma xícara de café e
uns biscoitos e conversamos por algum tempo.
Gostavam da falta de leis e de policiais no Camboja e
diziam estar ficando velhos para continuar vivendo sob a
opinião das pessoas: queriam fazer o que tivessem
vontade, inclusive pintar as unhas dos pés. Vindos de um
país tão regrado, queriam viver o oposto do que lhes
ensinaram como padrão. Mas reclamavam da corrupção
quando tinham de receber as peças de moto pelo correio,
que sempre cobrava taxas altíssimas para a retirada.
Enquanto conversávamos, a esposa cambojana de
Louis telefonou e eu acompanhei o que conseguia ouvir
desse lado:
“Sim, meu amor, Billy está aqui. Fez uma boa viagem
e trouxe junto com ele uma menina. Ela dormiu aqui em
casa. Quando você volta?”.
A explicação dele deixava espaço para perguntas.
“Não, não é dessa vez que ele consegue uma
namorada. Ela está viajando e dando aula de inglês para
crianças carentes. Ele dividiu o táxi com essa menina e
chegaram muito tarde por conta dos buracos na estrada.
Acredita que levaram oito horas para percorrer os 230
km? Cada dia fica pior. O Billy a convidou para dormir
aqui, sem nem me avisar. Levei um susto quando ele
chegou com a garota.”.
Mais perguntas.
“Sim, amor. Eu troquei o lençol para ela e deixei uma
toalha limpa no quarto.”.
“Sim, já comemos os biscoitos também. Mas, me diz:
quando você volta?”.
Eles continuaram a conversa, enquanto Billy e George
faziam planos para o dia. Avisaram que me levariam até
o centro de Sihanoukville, onde eu poderia achar um
hostel para me hospedar. Eu já tinha feito uma breve
pesquisa com algumas opções de hostel em uma praia
mais isolada, mas não queria abusar da boa vontade
deles e uma carona até lá já seria um ótimo começo.
Quando Louis desligou com a esposa, pedi para tirar
uma foto com os alemães-motociclistas-malucos na
frente da casa, para comprovar a veracidade da minha
história. Não resisti e também pedi para tirar uma foto
das unhas decoradas, que eles exibiram com orgulho.
Considerando que George era alto e grande, me
surpreendi quando vi que o carro dele parecia o do Mr.
Bean: um quadrado pequeno no qual ele mal cabia. Louis
não nos acompanharia. Era a primeira vez que via o
Camboja sob a luz do dia. Tudo parecia abandonado e
sujo, mas mesmo assim continuava atraente. Fazia muito
calor, mas pelo menos não chovia. Pedi para que
parassem em um caixa eletrônico, pois ainda estava
devendo para o Billy o dinheiro da corrida do táxi.
Para a minha surpresa, os saques no Camboja eram
realizados em dólar e não em riel cambojano, que, no
momento, era cotado em torno de 4000 para cada dólar.
Escolhi o valor máximo, uma vez que é cobrada uma
taxa a cada saque. Aguardava o dinheiro quando reparei
na mensagem da tela: Dinheiro insuficiente.
Momento de pânico. Tentei mais uma vez e a
mensagem foi a mesma. O dinheiro enviado do Brasil
ainda não estava disponível. Eu tinha certeza que tinha
pelo menos uns 40 dólares naquele cartão, sobra do mês
anterior, então tentei um saque no valor de 30. Saque
realizado com sucesso. Estava oficialmente sem dinheiro,
pois esse era o valor que estava devendo ao meu amigo.
Entreguei os dólares para o Billy e continuamos rumo
à área turística da cidade. Foi fácil perceber que
havíamos chegado, porque o ambiente era outro: cheio
de mochileiros, hotéis, scooters e tuk-tuks. Agradeci de
todo coração por me receberem tão bem! O Billy anotou
o seu número em um papel e me entregou, garantindo
que agora eu tinha amigos na cidade. Nos despedimos e
lá se foram Billy e George no pequeno carro. Comecei a
caminhar e observar.
Estava extasiada! Eu finalmente estava no Camboja,
realizando o sonho de conhecer uma terra que parecia
tão distante! Comecei a andar pela rua e foi fácil
perceber que havia muito mais ali do que turistas e
produtos à venda. Existiam vítimas também. Muitos
homens que tiveram braços e pernas amputadas pelas
minas terrestres pediam esmolas nas ruas. Eles eram os
personagens reais de histórias que até então eu só havia
lido nos livros de História. E, agora, eles me pediam
ajuda.
Fazia muito calor e estava com sede, então, pensei
imediatamente em parar para comprar uma água. Antes
que pudesse abrir a bolsa, me lembrei de que não tinha
dinheiro. Mais uma vez sem dinheiro! Já começava até a
me acostumar. É uma situação à qual dificilmente nos
expomos em nosso dia a dia. Ter algum dinheiro na
carteira dá a sensação de segurança, pois sabemos que
ele compra as nossas necessidades básicas. Se temos
fome ou sede, a saciamos instantaneamente, sem
percebermos como somos felizardos. Mas e se não
pudermos pagar por isso? O básico e o mínimo não são
mais uma garantia nesse momento e eu aprendia muito
com isso. Inclusive, aprendendo a me deixar levar.
32. Você
conhece a lei
do viajante?

Com jeitinho, consegui dar check-in em um hostel sem


pagar o depósito da chave. Escolhi um quarto
compartilhado com 12 pessoas que me custaria 6 dólares
a noite, a serem pagos no check-out. Gastei os meus
últimos 10 dólares que sobraram no cartão de crédito
com um kit de sobrevivência que incluía água, biscoito,
miojo e banana. Não era o melhor hostel e nem a melhor
praia, mas eu estava somente de passagem, uma vez
que aquele era o ponto de partida para a ilha de Koh
Rong, onde eu iniciaria o meu voluntariado.
Passei boa parte do dia no hostel, fazendo amigos de
vários cantos do mundo. A cada novo encontro, uma
sucessão de perguntas e respostas, que incluía
obrigatoriamente “De que país você é?”, “De onde você
veio?” e “Para onde você vai?”. Em pouco tempo, já tinha
conhecido um pouco das histórias de viajantes de Israel,
Inglaterra e França.
Já à noite, enquanto eu usava o meu computador na
área comum do hostel, um garoto se aproximou. Vendo
que eu estava sozinha, ele me chamou para jantar com o
seu grupo de amigos. Eu disse que já havia jantado e
agradeci, mentindo, já que meu miojo ainda me
aguardava no quarto. Continuei mexendo no computador.
O garoto retornou em menos de dois minutos.
“Ouvi dizer que você foi furtada na Tailândia. Janta
conosco! Eu pago e você me dá o dinheiro quando
puder”. – Ofereceu gentilmente.
Olhei para a mesa em que ele estava e percebi que já
havia conversado com alguns de seus amigos. A essa
altura, eu não negaria uma oferta como essa.
“Obrigada pela gentileza. Te pago assim que tiver o
dinheiro. Fechado?”. – Falei, enquanto ele levantou a mão
aberta e bateu na minha.
Depois de uma noite divertida, um prato de comida
delicioso e algumas cervejas, fui agradecer a gentileza
do menino, que me disse estar indo embora no dia
seguinte.
“Você vai embora a que horas amanhã? Como vou
fazer para te pagar?”. – Indaguei-o, preocupada.
“Você conhece a lei do viajante?”. – Ele me perguntou.
“Lei do viajante? Não.”. – Eu estava curiosa para saber
do que se tratava.
“Somos todos viajantes e precisamos ajudar uns aos
outros. Hoje, eu ajudei você e, ao invés de me pagar de
volta, use esse dinheiro para ajudar outro viajante no seu
caminho. Com certeza você vai encontrar pessoas que
precisam, assim como hoje você precisou.”.
Essa atitude altruísta do garoto desconhecido me fez
refletir, pensando em todas as vezes que fui ajudada ou
que ajudei pensando na retribuição do favor. Quando
pensamos assim, a generosidade de ajudar alguém
acaba ficando limitada a apenas aquelas duas pessoas
envolvidas, fechando um círculo, que não envolve mais
ninguém. Mas, nesse caso, além de não estar em busca
de benefício próprio, ele estava fazendo com que mais
pessoas fossem tocadas pela sua generosidade. Se cada
pessoa ajudada retribuísse a uma terceira pessoa,
criaríamos um processo infinito de boas ações e de
empatia.
Não via a hora de dar continuidade à “Lei do
Viajante”.
33. Um paraíso
na terra

Na ilha de Koh Rong, não existem caixas eletrônicos e


nem estradas. Poucas são as trilhas que te levam para
algum lugar e o mar azul cristalino é a melhor maneira
de se locomover. A eletricidade é cortada durante a noite
e a escuridão é tanta que torna possível a observação de
plânctons, tornando o banho de mar noturno uma das
principais atrações da ilha. A praia principal é muito
pequena, sendo a areia a principal via de acesso para
qualquer lugar, dado que todos os hotéis e restaurantes
são à beira-mar.
Um pouco mais ao fundo, entre as construções, é
possível observar casas de locais, onde a realidade é
outra. Entre mochileiros em busca de diversão, estão
crianças cambojanas que brincam, nuas, com pedaços de
madeira ou qualquer objeto que conseguem transformar
em brinquedo. Elas têm o sorriso doce e aceitam
facilmente a interação dos Barangs.
Eu passava a maior parte do meu tempo com o Luke,
o britânico que conheci no hostel, ainda em
Sihanoukville. Juntos desbravamos as praias mais
isoladas da cidade e andamos muitos quilômetros pelas
areias, jogando muita conversa fora. Eu adorava o
sotaque britânico dele e a maneira como sempre me
chamava de “buddy”, uma palavra carinhosa para
chamar alguém de camarada.
Viemos juntos para a ilha em uma viagem de três
horas de barco e estávamos no hostel mais barato que
encontramos: ele custava três dólares a noite, por uma
cama em um quarto compartilhado com seis pessoas. A
qualidade era duvidosa, mas o valor era tentador para o
nosso orçamento.
O americano Daniel e o holandês Rob também se
juntaram a nós. Passamos o dia todo conhecendo as
praias, jogando vôlei e tomando a cerveja local, Ankgor,
por 50 centavos. Conheci pessoas do mundo inteiro com
as mais diferentes histórias. Entre eles, um homem que
já estava viajando o mundo há cinco anos e tinha um
discurso cativante de como ele via a vida. Entre as
amizades que fizemos, conhecemos o Chan, um local
dono de um barco que nos levou para um passeio incrível
pela ilha e assim pudemos conhecer as praias realmente
paradisíacas.
Paramos em alguns pontos de snorkel e também para
pescar, mas não tivemos sorte naquele dia e não
conseguimos pegar o nosso almoço. Na ausência de
peixe, o nosso amigo cambojano parou em um vilarejo
onde todas as casas são flutuantes na beira de um píer.
Como a maré estava um pouco baixa, dava para ver os
pedaços de madeira que elevam as casas, garantindo
assim a localização exclusiva de suas residências.
Nós éramos os únicos mochileiros no pequeno vilarejo
e andávamos observando as casas e o modo de vida
local em troca de sorrisos e olhares curiosos. Em uma
das casas, havia um restaurante improvisado e, por meio
de um buraco no chão que dava direto no mar, a família
mantinha alguns peixes em uma espécie de cesta de
arame, sendo possível comer peixe fresco a qualquer
instante.
Acompanhamos todo o processo de preparação do
nosso peixe, que foi servido grelhado, com arroz. O prato
era simples e saboroso. Esse era o tipo de experiência
que me alegrava como viajante, pois me permitia
participar da vida local e, de alguma maneira, ajudá-los
ao consumir seu produto. Eles vivem da pesca e são os
principais fornecedores dos restaurantes da praia onde
estávamos hospedados.
Quando pensamos que o passeio havia acabado, o
nosso guia nos levou por uma trilha morro acima. Ao
chegarmos no topo, avistamos o que parecia um paraíso
perdido. A água tinha um tom de azul esverdeado e tudo
o que podíamos ver para o interior da ilha era floresta
nativa. Na beira da praia, havia areia branca e coqueiros.
“Essa é Coconut Beach, muito bonita. Vocês seguem
até a praia e eu volto sozinho para buscar o barco no
píer. Nos encontramos na praia, eu vou lá buscar vocês.”.
– Explicou Chan para nós quatro.
Olhamos uns para os outros sabendo do risco que
corríamos de o local desaparecer com as nossas coisas
no barco. Eu, que agora já estava preparada, tinha o meu
passaporte e dinheiro no meu money belt. Então, não
estava muito preocupada.
“Vamos lá. Se o Chan não voltar para buscar a gente,
pelo menos estamos no paraíso.”. – Disse Daniel, com a
sua animação e espírito aventureiro de quem está
sempre viajando o mundo.
Chan riu e afirmou que voltaria.
Fizemos a trilha até a praia e cada vez mais ficamos
mais encantados. A primeira coisa a fazer foi dar um
mergulho na água que, agora, de perto, parecia verde e
era extremamente límpida. Olhando do mar para a praia,
não se via nenhuma construção e nenhuma pessoa além
de nós quatro. Boiei na água enquanto observava o azul
do céu.
Eu finalmente estava realizando o sonho de conhecer
um paraíso na terra e me alegrava por existirem lugares
onde o turismo ainda não havia chegado. Pensava em
todas as outras ilhas da região e no que poderia ser visto
nelas, sendo que a que estávamos era a mais turística de
todas.
São mais de 12 ilhas. Se não fosse o meu orçamento
curto, eu faria um investimento e exploraria todas elas.
Algumas não possuem sequer estrutura de hospedagem,
sendo acessíveis por barco durante o dia, enquanto
outras foram tomadas por redes milionárias de resorts.
Pensava no porquê das ilhas da Tailândia levarem toda a
fama: eu jamais soube que havia ilhas paradisíacas no
Camboja.
Perdemos a noção do tempo enquanto exploramos a
praia e jogamos partidas de vôlei dentro do mar, para
aliviar o calor. Chan retornou em seguida com o barco,
mas ficamos até quase escurecer e retornamos para a
nossa praia, que já tinha o clima de curtição. Mochileiros
sentados em bares e restaurantes na beira da praia
escutavam música ao vivo, enquanto perdiam as contas
de quantas Ankgor já haviam tomado.
Eles aproveitavam para beber cerveja gelada até que
o estoque diário de gelo dos restaurantes acabasse ou a
eletricidade fosse cortada, dando o sinal de que era hora
de pular no mar e nadar com os plânctons sob o céu
estrelado. Já era a minha segunda noite na ilha e eu
ainda levava um susto quando, por volta da meia noite, a
luz acabava e o silêncio se instaurava. Retornar para o
hostel só era possível com a ajuda da lanterna do celular,
mas a volta só aconteceria depois de eu dar um
mergulho no mar e ficar mexendo as mãos e os pés para
ver os pontos verdes luminosos florescendo do mar.
Não havia pressa. O continente estava há 23 km de
distância e existia uma imensidão azul que me protegia
de tudo o que estava acontecendo lá. Tudo o que eu
sentia era a temperatura agradável da água batendo no
meu corpo e os constantes pontos verdes que
perseguiam meus movimentos. O céu era o mesmo que
tinha me recebido no primeiro dia e estrelas cadentes
rasgavam o céu.
Na pressa de cair na água, entrei de roupa mesmo.
Não havia tempo para protocolos e ninguém para me
julgar. Eu mesma já não me julgava e aceitava as minhas
vontades e desejos como únicos, não permitindo
interferências externas. A liberdade daquele momento
pertencia a mim e cada vez mais não daria o direito de
ela ser limitada pelos anseios de outras pessoas.
34. Eu queria uma
causa que realmente
tocasse em mim

Depois de um final de semana incrível explorando as


belezas da ilha, era hora de começar o meu voluntariado.
Estava em êxtase por ter achado um lugar tão único para
voluntariar! Eu me encontrei com as duas garotas
responsáveis pelo programa, uma canadense e uma
australiana, que chegaram na ilha sem a intenção de
ficar e acabaram criando a primeira e única organização
não governamental do local, chamada Friends of Koh
Rong. Elas me explicaram que o principal objetivo é
educar e qualificar tanto as crianças como os adultos
para trabalharem em comunidade e de forma
sustentável. Os locais podem se beneficiar do turismo,
que é uma atividade recente na ilha, para mudar as suas
vidas. E um dos primeiros passos era o ensino da língua
inglesa.
Por enquanto, tudo estava sendo improvisado e as
aulas aconteciam com poucos recursos em uma casa de
madeira no píer. Kelly e Fran estavam bastante ocupadas
com as atuais mudanças que estavam prestes a
acontecer: a comunidade local queria juntar esforços e
trabalhar junto com a ONG numa união que resultaria na
reforma da antiga escola, um incentivo para que seus
filhos fossem estudar, e em uma participação mais ativa
da comunidade. Esse pequeno passo prometia um novo
futuro para os moradores da ilha.
A aula estava prestes a começar e o fluxo de crianças
aumentava em direção à escola improvisada. As garotas
haviam feito uma forte divulgação na praia sobre as
aulas de inglês e, por isso, muitos voluntários estavam
presentes. Dessa forma, elas selecionaram um voluntário
para cada duas crianças para ajudá-las a ler um livro e
depois fazer algumas atividades.
Mali e Dara foram selecionadas para serem minhas
alunas. Ambas tinham oito anos. Peguei um livro para
lermos juntas e percebi que Dara tinha mais dificuldades,
enquanto Mali nem precisava prestar atenção para
entender tudo. Mudei de ideia e peguei um segundo livro,
alternando a minha atenção entre as duas.
Mali era extremamente esperta e foi a primeira da
turma a terminar a leitura. Ela me fazia perguntas sobre
o Brasil, sobre a minha viagem, de onde eu vinha e para
onde eu iria. Me contou sobre seu irmão, sua família e
sobre como gostava de ver muitos turistas na ilha. Dara
era tímida e não consegui arrancar muitas palavras dela,
apenas risadas quando fazia cócegas.
No final da aula, uma das garotas falou para os
voluntários sobre a importância da consciência da
comunidade local. Os pais deveriam ser os primeiros a
serem conscientizados da importância da educação a
longo prazo, pois são eles que têm o papel fundamental
de incentivar os filhos a irem para a escola, ao invés de
vender braceletes para os turistas na praia, uma renda
provisória que comprometia o futuro das crianças. Ela
também se mostrou preocupada ao falar para nós sobre
os boatos que estavam correndo, de que a ilha teria sido
vendida para um grupo de investidores com planos de
criar um resort ecológico e um aeroporto.
Eu via nos olhos dela a tristeza e o medo do futuro
incerto, de alguém que acredita e que está colocando
todos os seus esforços para o desenvolvimento de um
turismo mais sustentável e consciente. Isso porquê
grandes investidores se preocupam somente com os
dólares, sem planejar de maneira responsável o futuro da
comunidade local.
No próximo dia, eu estava no píer novamente, para
mais uma aula que aconteceria todos os dias da semana,
sempre no mesmo horário. De novo, um grande número
de voluntários se apresentou e a aula aconteceu.
Kelly e Fran estavam agitadas com as reuniões que
estavam sendo marcadas com os líderes da comunidade
e não conseguiam atender a todo mundo. Contudo, elas
rapidamente explicaram algumas regras para os
voluntários que decidissem ficar, deixaram claro que
nenhuma ajuda com acomodação ou alimentação seria
providenciada e elas pediam um comprometimento
mínimo de dois meses, que não parecia ser obrigatório,
mas era o ideal.
Fiquei pensativa enquanto ela falava e, ao final, saí da
escola para uma caminhada solitária molhando os pés na
beira da água. Aquela vozinha interior estava falando
comigo e eu precisava de silêncio para escutá-la.
Observei como eu me sentia agora. Depois tentei
entender por que não estava satisfeita e o que me
faltava.
Fui para o meu voluntariado em Koh Rong com a
ambição de viver uma experiência mais local e conhecer
o Camboja de verdade, que eram os propósitos do meu
projeto e do que eu tinha ido fazer naqueles países. Eu
não estava satisfeita porque eu não queria voluntariar
apenas uma hora do meu dia em um lugar onde as
crianças têm a chance de estar em contato direto com os
turistas a todo momento.
A ilha era incrível, mas ela não me colocava nos meus
limites. Eu queria mais. Decidi então que seguiria meus
instintos, mesmo que sem saber ao certo para onde ir. Eu
deixaria a ilha rumo a Siem Riep, onde procuraria alguma
escola em uma região afastada. Não ficaria em Koh Rong,
mas levaria comigo todo o ensinamento e o exemplo do
que as garotas estavam fazendo pelo desenvolvimento
da ilha e da comunidade.

...

Dessa forma, foram quase três horas de barco para


retornar a Sihanouville e 12 horas de ônibus noturno por
estradas precárias para sair do sul do país e ir em
direção norte para chegar em Siem Reap, uma das
principais cidades turísticas por ser a base para quem
quer conhecer o Angkor Wat, um complexo de templos
considerado um dos principais sítios arqueológicos do
Sudeste Asiático e símbolo do país. A viagem ficou mais
agradável com a companhia do livro que acabara de
adquirir, “First they killed my father”, que em tradução
literal em português seria “Primeiro, eles mataram meu
pai”. Estava fascinada pela história real da menina Loung
Ung, que, antes do Khmer Vermelho, vivia uma vida
privilegiada no Camboja e que, de repente, foi forçada a
se separar de sua família e ser treinada como soldado no
campo. E sob a perspectiva da personagem, eu comecei
a compreender os horrores do genocídio cambojano,
enquanto chacoalhava no ônibus em direção a Siem
Reap.
Durante o dia, Siem Reap é uma cidade tranquila,
enquanto os turistas se dispersam para conhecer os
inúmeros templos, museus, fazer compras e massagens.
Mas, à noite, é uma cidade cheia de vida, onde tudo
parece acontecer simultaneamente no aglomerado de
turistas, crianças e tuk-tuks. E fica ainda mais intensa
quando todos se reúnem na Pub Street, o ponto de
referência no centrinho da cidade com diversas lojas,
restaurantes, baladas e bares, famosos pela cerveja
vendida a 50 centavos.
Os cambojanos tinham uma abordagem insistente que
era cansativa e vinha sempre acompanhada de preços
inflacionados. Andava a todo momento dizendo “não”:
não aos tuk-tuks, às massagens, aos passeios e às
drogas.
No entanto, o que mais me chamava a atenção era o
número excessivo de crianças nas ruas: algumas
vendendo rosas ou braceletes, outras simplesmente
pedindo dinheiro. Crianças lindas e inteligentes. Com
certeza, os vendedores mais persuasivos que eu já tinha
visto na minha vida. Falavam inglês melhor do que eu,
tinham piadinhas prontas, expressões engraçadas,
passos de dança ensaiados e tudo o mais que atraísse os
turistas e alguns dólares.
A moeda oficial é o riel cambojano, mas, na prática, o
dólar é largamente utilizado, inclusive em saques, e o riel
serve como assistente, sendo ótimo para o troco. Por
exemplo, se alguma coisa custasse quatro dólares e eu
pagasse com uma nota de cinco, eu receberia 4000 rieis
cambojanos que são equivalentes ao meu troco de 1
dólar. Um tanto confuso, mas na prática funcionava.
A língua do Camboja é o Khmer, que tinha pouco em
comum com o tailandês. Mesmo não sendo uma língua
tonal, eu encontrava dificuldade em aprender, me
limitando a dar “oi” e agradecer. Ficava surpresa com o
nível de inglês não somente das crianças, mas da
população como um todo. Além do inglês, muitas vezes
dominavam outras línguas também, como o francês, pelo
fato do país ser uma ex-colônia francesa. Eu estava
gostando da comida, apesar de sentir falta de uma
gastronomia cambojana mais presente.
As pessoas nascidas no Camboja também são
chamadas de Khmer. Eu aguardava na recepção de mais
um hostel barato o meu primeiro contato próximo com
um Khmer, que contaria mais sobre o seu projeto de
aulas de inglês para as crianças de um vilarejo. Quando
ele apareceu na recepção, foi fácil distingui-lo: no lugar
da perna direita, uma prótese de plástico. Esse era Moe,
de 27 anos, que se sentou ao meu lado para contar sua
história.
“As plantações de arroz sempre foram o meu lugar
favorito quando era criança. Gostava de ir lá com os
meus irmãos. Meus pais sempre nos levaram para
brincar e jamais imaginariam o que estava prestes a
acontecer naquele dia. Eu tinha 10 anos e estava com
meu irmão e minha irmã. Meus pais nos observavam
quando a explosão repentina matou os meus irmãos. Eu
tenho muita sorte de ter perdido apenas uma perna.”. –
Contou ele, com um inglês quase perfeito, uma das
muitas tragédias causadas pelas minas terrestres.
Ele me explicou que, devido ao preconceito das
pessoas, ele não consegue um emprego na cidade,
mesmo tendo um inglês muito bom, que, segundo ele, é
fruto de seu estudo autodidata. Com as dificuldades que
enfrentava, começou um projeto em seu vilarejo para
acomodar voluntários e me convidou para que fosse até
lá conhecer o lugar.
No estilo “vida louca cambojano de ser”, subi na
garupa da moto sem capacete para uma viagem de uma
hora até o vilarejo. Moe dirigia devagar por causa da
perna de plástico e a ausência do capacete nos permitiu
conversar durante todo o trajeto. Ele respondeu às
minhas inúmeras perguntas, agora focadas na vida local.
Ele disse que as famílias ganham em torno de dois
dólares ao dia, renda proveniente da pesca e da
plantação de arroz.
Levam uma vida muito simples, com uma dieta a base
dos próprios produtos que produzem e confessou que a
maioria das pessoas bebem bastante porque conseguem
produzir um vinho de arroz caseiro extremamente barato.
Segundo ele, essa era a realidade não somente do
vilarejo, mas de praticamente todas as famílias que
vivem na zona rural.
Saímos da estrada principal e entramos em uma rua
de terra. Aos poucos, algumas casas foram aparecendo.
Elas eram elevadas com pedaços de madeira, evitando
que a água entrasse nas casas na estação das chuvas,
necessitando de uma escada improvisada para entrar.
Paramos em frente à casa de Moe e de sua família, que
seria a minha hospedagem.
Fomos logo entrando para conhecê-la. Havia somente
um cômodo, com um retângulo separado por cortinas,
que, por coincidência, seria meu quarto. Não havia muito
mais do que colchonetes no chão, onde dormiam.
Descemos a escada e agora estávamos debaixo da
casa, que era elevada. A mãe de Moe tecia uma linha e
sorriu quando me viu. Puxei assunto, mas só recebi um
sorriso em troca. Ela não falava inglês, assim como todas
as pessoas que encontrei. Moe me deixou sentada na
sombra enquanto ia avisar as crianças que hoje elas
teriam aula.
Não podia deixar de observar as condições precárias.
Crianças brincavam em meio às galinhas, gatos e
cachorros. Todos tinham acesso livre à casa.
Quando Moe retornou, me avisando de que a aula
começaria em duas horas, a sua mãe tratou de servir o
almoço. Finalmente eu comi uma comida extremamente
deliciosa, que não tinha nada a ver com o que vinha
comendo nos restaurantes.
Seguimos para a escola, que era uma simples casa de
um só cômodo, construída de alvenaria, com três fileiras
de mesas de cadeiras duplas e um quadro branco à
frente. Estava surpresa pela quantidade de crianças que
chegavam mesmo com o aviso de última hora. Pelo que
via, tínhamos em torno de 40 crianças na sala que
traziam na mão um caderno, lápis e caneta. Estavam
ávidos pelo que eu tinha para ensinar e assim se seguiu
quase duas horas de aula.
Retornamos à casa de Moe e aproveitei a conversa
para tirar algumas dúvidas. Ele me disse que faziam mais
de seis meses que a escola não recebia nenhum
voluntário e isso me preocupou. Um período longo sem
voluntários é prejudicial para o aprendizado das crianças
e sem consistência. Nada do que eu ensinasse seria
benéfico.
No site no qual encontrei as informações
anteriormente, nada constava sobre valores a serem
pagos. Mas, assim que retornamos da escola, ele pegou
uma folha e começou a me explicar como funcionaria.
Seria cobrado cinco dólares ao dia pela acomodação e
mais seis dólares pelas refeições. Corridas de moto até a
cidade sairiam por 10 dólares.
Reagi de forma negativa as novas informações,
porque faltava transparência. Não estava esperando
nada disso. Os valores que ele cobrava eram os mesmos
que eu gastava na cidade. Não havia nada por perto,
ninguém falava inglês, havia muito tempo ocioso e
nenhum voluntário para dividir essa experiência. Faltava
dedicação e achava estranha a ausência de voluntários
por um período tão longo. Alguma coisa parecia errada.
O Camboja é um dos países com o maior número de
ONGs per capita no mundo e muitas delas se aproveitam
da situação para gerar lucro para o próprio bolso. Não sei
se era o caso, mas a falta de comprometimento era
nítida. Não me sentia ficando ali por muito mais tempo,
mas me culpava por saber que eles precisavam de ajuda.
O Camboja não estava tornando essa busca fácil,
então comecei a ser dura também. Precisava fazer
escolhas conscientes. São tantas as pessoas vivendo na
miséria que, infelizmente, eu não poderia abraçar todas
as causas. Eu queria uma causa que realmente tocasse
em mim e essa ainda não era a escolhida, mas com
certeza já era a experiência mais marcante que vivi em
terras cambojanas. Pelo menos, até agora.
35. A minha conexão
com a dor e a alegria
do povo cambojano

A Guerra Civil no Camboja teve início em 1967 e


terminou em 1975, marcando o início do regime
sangrento do Khmer Vermelho liderado por Pol Pot, o
responsável pelo genocídio de mais de 2 milhões de
cambojanos, valor correspondente a quase 1/3 da
população na época. O ditador queria tornar o Camboja
um país agrícola e comunista, acreditando que a
sociedade urbana estava contaminada pelo capitalismo e
que toda forma de inteligência deveria ser exterminada.
E foi assim que todos que possuíam algum nível de
instrução e educação foram mortos, incluindo
professores, advogados, engenheiros, estrangeiros,
médicos, pessoas ligadas ao antigo governo, artistas,
monges, jornalistas e até mesmo pessoas que sabiam
outra língua ou que usavam óculos.
Seguiu-se então um êxodo urbano. Pol Pot queria que
as crianças fossem a base do novo país. Destruiu livros e
escolas para garantir que as crianças fossem doutrinadas
nos princípios comunistas e elas se tornaram os novos
soldados, aprendendo a manipular armas, matar pessoas
e servir ao governo.
Aqueles que sobreviveram trabalhavam no campo,
sob regras restritas, por mais de 12 horas diárias e a
comida era fracionada de forma desumana, o que foi a
causa de muitas mortes, juntamente com a proliferação
de doenças, visto que hospitais tinham sido fechados e
médicos mortos.
O regime acabou em 1979, porém, as sequelas
deixadas eram severas. Consequências que refletiriam
ainda por muitas gerações. Filhos do caos, crianças que
teriam que aprender a sobreviver nesse cenário de
guerra.
E, dentre essas vidas, estava Rady.
Rady nasceu em um pequeno vilarejo próximo a Siem
Reap no ano de 1981. Seus pais conseguiram sobreviver
ao massacre porque trabalhavam para o exército e,
quando Rady fez 6 anos, seus pais o abandonaram,
forçados a continuar servindo o Khmer Vermelho, que,
apesar de não estar mais no poder, ainda era muito
forte.
Rady e o seu irmão um ano mais velho foram
obrigados a trabalhar no vilarejo e passaram a morar no
meio do mato, dormindo embaixo de tendas ou junto
com as vacas, para se aquecer do frio. Os dois juntos
aprenderam a cuidar de si mesmos e um do outro, já que
muitos dos vizinhos pertenciam ao Khmer Vermelho e
eram horrendamente cruéis. Rady chegou a comer fezes
dessas pessoas, simplesmente por medo das ameaças
de que seria jogado no lago com centenas de
sanguessugas.
Rady tinha nove anos quando ouviu boatos de que sua
mãe havia retornado e estaria vivendo em outro vilarejo.
Ele e seu irmão não tinham nada a perder e caminharam
por dois dias os 60 quilômetros do trajeto. Chegando lá
não encontraram a mãe, mas a avó. Por meio dela,
souberam que sua mãe já tinha um outro homem e que o
pai havia se tornado um alcoólatra.
No novo vilarejo, as crianças iam para a escola e Rady
resolveu segui-las. A professora impediu que ele entrasse
na sala, mas um buraco na parede de madeira permitia
que Rady assistisse as aulas do lado de fora. Essa
situação durou um mês, até que um dos diretores o
liberasse para fazer parte da turma. Seu irmão não
estudava e passava o dia todo caminhando pelos arrozais
para coletar o arroz que ficava no chão, garantindo assim
que não morreriam de fome.
Pequeno e ágil, Rady descobriu ser muito bom em
escalar coqueiros. E essa se tornou a maneira de
conseguir alguns trocados para pagar suas despesas e
também a escola.
A sua vida mudaria novamente aos 15 anos, com a
morte da sua avó e o fim do ensino fundamental. Rady
teria que fazer o Ensino Médio em outra escola, mas,
novamente, não tinha uma casa para morar. Seu irmão
conseguiu encontrar a mãe e o padrasto e decidiu ficar
com eles.
Rady também teria ficado se não fosse o padrinho,
que, influenciado pela mentalidade do Khmer Vermelho,
não o permitia ir à escola. Ele tem até hoje a cicatriz
dessa proibição na canela, quando seu padrinho quebrou
a sua perna com um pedaço de bambu no dia em que
Rady o enfrentou e saiu andando em direção à escola.
Ir para a escola era o seu único desejo. Gostava dos
colegas, dos conselhos dos professores e do amor que
recebia. Tinha o sonho de se tornar um político: queria
melhorar o país. E foi com seus desejos e ambições que
Rady foi morar com sua tia. Ele sentia falta da avó, já
que a tia o fazia alimentar 40 porcos antes de ir para a
escola. Se terminasse, poderia comer, caso contrário ia
para a escola de estômago vazio. Enquanto caminhava
os sete quilômetros até a escola, Rady chegou próximo
de morrer de fome.
A sorte de Rady mudou quando encontrou um dos
poucos objetos que sobreviveram à crueldade do Khmer
Vermelho: um livro de inglês. Passou a estudar sozinho o
livro, aprendeu o novo alfabeto, conseguiu soletrar,
escrever e falar algumas palavras. Ninguém mais detinha
tal conhecimento.
Aos 17 anos, passou a dar aulas de inglês. A escola
lhe dava um pouco de dinheiro e os colegas, comida.
Depois de dois anos morando com sua tia, pôde
finalmente morar sozinho, estudar e se alimentar. Com
tanta mudança em sua vida, seus sonhos também
mudaram. Já não queria ser político, consciente de que a
corrupção não o deixaria fazer muito pelo seu país.
Sonhava em estudar em uma universidade e trabalhar
como guia de turismo na cidade.
No ano de 2002, Rady fez 21 anos e morava na cidade
de Siem Reap, estudando turismo na universidade local e
trabalhando como motorista de tuk-tuk para os turistas.
A sua fama como um dos melhores motoristas da cidade
fez com que cursasse somente dois dos quatro anos do
seu curso e passasse o dia inteiro atendendo turistas,
falando inglês e guardando dinheiro.
Reencontrou seu pai, que, assim como a maioria das
pessoas, já tinha uma nova esposa e uma nova vida. Ele
e muitas outras pessoas se forçaram a reiniciar, tentando
deixar o passado doloroso para trás.
Enquanto dirigia pelas ruas da cidade, vestindo uma
roupa social em seu tuk-tuk, falando inglês e ganhando
em dólares, Rady via as crianças nas ruas sem escola ou
perspectivas. Isso o remetia ao seu passado não muito
distante e que ele estava disposto a não esquecer. Ele
queria trazer esperança ao seu povo. Um novo sonho
nascia em seu coração.
Hoje, Rady é diretor da CESHE, que quer dizer Escola
de Inglês de Ensino Superior do Camboja. A escola foi
estabelecida em 2010, quando Rady era o único
professor e dava aulas no meio de um terreno sem
estrutura alguma. Está localizada num vilarejo a menos
de 10 km do centro de Siem Reap e atende quase 300
alunos, com idade entre 6 e 20 anos, que têm acesso a
aulas gratuitas de inglês todos os dias.
E assim eu encontrei não somente o meu
voluntariado, mas também a minha conexão com a dor e
a alegria do povo cambojano.
36. O que
eu estava
fazendo ali?

Assim como na Tailândia, eu era a primeira voluntária


brasileira que o projeto recebia. Eu e os demais
voluntários do mundo inteiro dormíamos no segundo
andar da casa de Rady. É um cômodo único, com
colchonetes espalhados pelo chão e redes contra
mosquitos pendendo sobre eles, redes que são
amarradas às pilastras de concreto que sustentam a
estrutura da casa. Ao lado de cada colchonete, um
mochilão, livros e um ventilador, indicando que alguém
havia largado o conforto do seu lar. Em cada pilastra,
frases escritas pelos voluntários que já passaram por ali.
No primeiro andar, os cômodos onde Rady mora com
sua esposa e seu filho. Havia duas portas na lateral da
casa que eram de uso comunitário. Comparando com o
modelo ocidental, uma porta seria o lavabo e a outra o
chuveiro, mas para explicar o modelo cambojano, preciso
ser mais específica.
O lavabo era todo de azulejo laranja escuro e muito
pequeno. Metade dele era ocupado por aquela mesma
caixa de concreto cheia de água que tinha no meu
banheiro na Tailândia. Entre a caixa e a parede sobrava
um vão para um buraco no chão onde parecia haver uma
pia, mas era a privada. Pelo menos agora, eu já sabia
como dar a descarga manual.
Na borda da caixa de concreto, estava a tigela de
plástico a ser utilizada para tal função. Na outra porta
que seria o chuveiro, uma versão simplificada do lavabo.
Nada de azulejo, somente uma grande caixa de concreto
cheia de água, com a tigela na borda. Havia também um
banco bem baixinho que me deixava curiosa. Por via das
dúvidas, nunca usei.
Na varanda, em frente à casa, uma pequena mesa
que era o ponto de encontro diário dos voluntários para
as refeições servidas pela esposa de Rady, que, por sinal,
cozinhava muito bem. Todos os dias, às 7 horas, era ali
que nos encontrávamos para iniciar o dia e, juntos,
pegarmos o tuk-tuk que nos levaria até a escola, que
ficava a menos de cinco minutos dali.
Havia uma taxa semanal de 60 dólares para cobrir os
gastos com acomodação, manutenção da casa, água
potável, três refeições ao dia e o transporte diário de ida
e volta da escola.
O tuk-tuk nos deixava na beira da estrada e
seguíamos a pé uns 800 metros para dentro dos arrozais,
passando pelas casas de alguns vizinhos até chegar na
escola. A estrutura principal era um grande galpão
construído de madeira, bambu e palha dividido em três
classes, cada uma com os alunos de acordo com o nível
de inglês: A, B e C. As letras foram pintadas nas paredes
por voluntários e alunos, juntamente com nuvens, sol,
corações e elefantes.
Ao lado, existe uma biblioteca que serve também
como base para os voluntários e como sala de aula,
quando preciso. A estrutura mais recente é uma sala de
informática, ainda em construção. A escola sobrevive de
doações e teve cada parte da sua estrutura construída
por meio da generosidade de diversas pessoas de
diversas partes do mundo inteiro. Muitos deles foram
voluntários que passaram por ali e deixaram mais do que
conhecimento.
O projeto é muito bem estruturado e, por esse motivo,
consegue manter uma rotação constante de voluntários,
garantindo que os alunos sempre tenham professores. As
aulas acontecem de segunda-feira a sexta-feira das 8h às
10h, das 14h às 16h e das 17h às 18h.
Na prática, o sistema de educação pública no
Camboja é praticamente inexistente, uma vez que os
alunos precisam pagar taxas e não existe transporte
público para levá-los até as escolas. As famílias lutam
para alimentar suas crianças e pagar por estudo é um
luxo ao qual poucos têm acesso. Para a maioria das
crianças, a CESHE é a única fonte de educação que
possuem.

...

Foi uma semana intensa de voluntariado. As crianças


tailandesas haviam me deixado mal-acostumada e
finalmente eu estava pagando por todos os anos que eu
infernizei a vida dos professores na escola. As aulas eram
divididas em duas partes: na primeira, conteúdo e na
segunda, jogos.
Era a maneira que encontrávamos de lidar com tanta
energia. Ensinava as partes do corpo, sentimentos, cores
e palavras úteis para o turismo. Mas o que eles mais
gostavam era dos jogos. Dividíamos a turma em dois
grupos e a gritaria se iniciava em forma de competição
saudável. Eles tinham malícia: pegavam dicionário
escondido para ajudar o seu time, falavam palavras em
khmer e fingiam não entender quando brigávamos.
Apesar do meu orçamento ter ficado muito apertado,
eu decidi passar o final de semana na cidade, porque
precisava atualizar a minha vida online. Encontrei um
café com sofás confortáveis e o melhor do menu
ocidental: Bolo, chocolate gelado e wi-fi. Já fazia três
meses que estava na estrada e começava a sentir falta
das regalias mundanas.
Era estranho olhar as redes sociais. Era como se eu já
tivesse visto tudo aquilo antes. As mesmas pessoas
fazendo as mesmas coisas, só que com roupas
diferentes, apesar da maioria ser da mesma marca.
Corpos, cabelos, pratos gourmet, praia e filtros. Aquilo
nunca tinha sido motivo de questionamento para mim,
mas eu olhava ao meu redor e não entendia se
estávamos no mesmo mundo.
Era confuso. E acredito que mais confuso ainda para
aqueles que eu havia deixado para trás e
acompanhavam o que eu estava fazendo naqueles
países distantes. Imaginei o que pensavam de mim.
Onde essa garota está? Por quê? Já não está na hora dela
voltar para o mundo real?
Nesse momento, foquei em uma foto de uma menina
em uma piscina segurando uma taça de champagne e na
legenda uma frase de Clarice Lispector. O
questionamento veio automático e inevitável. Onde essa
garota está? Por quê? Já não está na hora dela voltar
para o mundo real?
Tudo nessa vida é uma questão de ponto de vista.
Eu gostava de andar pelas ruas de Siem Reap à noite
para observar. Entendi um pouco mais da história
daquele país tão sofrido e passei a ver aquelas crianças
na rua com outros olhos. Me lembrava dos trechos da
história de Loung Ung que estava lendo. As crianças
eram as maiores vítimas da história do Camboja, elas
deveriam estar na escola e aqueles inofensivos dólares
que os turistas lhes davam eram a fonte que alimentava
um ciclo vicioso.
Enquanto analisava as crianças, um grupo delas se
aproximou e como reflexo eu rapidamente puxei minha
bolsa para mais perto de mim. Aquele movimento partiu
o meu coração. Eu não queria tratá-las como uma
ameaça, mas, infelizmente, muitas vezes elas eram.
Muitas foram ensinadas por adultos a furtar os turistas
enquanto rodeiam eles de histórias e brincadeiras.
Já tinha passado da meia-noite. Eu voltava para o
hotel quando fui abordada. A cena era forte. Uma mulher
muito jovem segurava um bebê envolvido em um pano e
em uma das mãos uma mamadeira vazia, duas crianças
na faixa dos 4 aos 5 anos a acompanhavam. A criança
menor dizia que não queria dinheiro, apenas leite para
matar sua fome. A mãe concordou mostrando o pequeno
em seu colo.
“Não queremos esmolas, apenas leite. Estamos
famintos.”. – Repetia aquela criança com roupas sujas e
pés descalços à minha frente.
Me comovi na mesma hora. Estávamos na porta de
uma conveniência. Rapidamente, a criança me atraiu
para dentro da loja e foi direto ao produto que parecia já
ter sido escolhido de antemão, uma grande lata de leite
em pó que indicava o valor de 20 dólares.
Eu não tinha dinheiro para tanto. Perguntei se não
poderia ser algo menor. Ela insistiu, mas não com a
urgência de quem tem fome, era uma insistência um
tanto arrogante. Reagi com estranheza. Ela insistia que
eu comprasse enquanto a suposta mãe me lançava um
olhar ameaçador do lado de fora da loja. Alguma coisa
estava errada e desisti de ajudar, alegando que não tinha
dinheiro. E, na sequência, a criança me deixou sem
reação com a sua resposta.
“Fuck you.”. – Ela disse isso olhando nos meus olhos e
saiu bufando da loja.
Uma criança de cinco anos tinha acabado de mandar
que eu me fodesse. Estava atônita.
“É um golpe” – Disse um jovem turista que comprava
cigarros baratos na loja.
“Como assim um golpe?”. – Eu definitivamente não
estava entendendo nada.
“Você não leu a Lonely Planet antes de vir para o
Camboja?”. – Perguntou com ar de deboche e me indicou
para sair da loja, quando me explicou o que havia
acontecido. “A criança tem um acordo com o dono da
loja. Eles atraem turistas usando o argumento de que
não querem dinheiro, somente leite para matar a fome.
Para os turistas, 20 dólares para ajudar uma criança
faminta parece razoável, então compram o leite para a
criança ou para a mãe. O que acontece depois é que a
criança retorna o produto superfaturado e divide o
dinheiro com o dono do estabelecimento. Os dois
faturam e o turista vai embora com o sentimento de que
salvou uma vida, quando, na verdade, está ajudando a
manter esse ciclo que mantém as crianças longe da
escola. Muitas mães cambojanas tem filhos para que eles
sejam fonte de renda da família, lembrando que nem
eles mesmos tiveram acesso à educação e não
entendem a importância da escola.”
“Estou pasma com isso tudo. Como você sabe disso?”.
– Indaguei.
“Eu estou trabalhando em uma ONG na cidade e esse
golpe é famoso. Se você procurar na internet, vai
encontrar bastante informação a respeito. Esse é mais
um dos muitos problemas que esse país enfrenta.”.
O rapaz se despediu e seguiu sua vida fumando seu
cigarro rumo à Pub Street. Segui meu caminho em
direção ao hotel, contudo, eu não conseguia esquecer a
imagem daquela criança de cinco anos mandando eu me
foder. Sentia uma angústia no peito. Não conseguia
esquecer do ódio estampado em seus olhos. Ele era
apenas uma criança.
Entrei no quarto de hotel que tinha me dado o luxo de
ficar por uma noite, já que a presença de ratos no quarto
dos voluntários estava tirando minhas noites de sono.
Sentei na cama e comecei a chorar, pois não conseguia
tirar a imagem daquela criança da minha cabeça.
Eu também sentia ódio. Sentia ódio pela miséria que
eu via e por me sentir incapaz de fazer alguma coisa.
Sentia ódio de mim mesma cada vez que eu olhava com
desconfiança para uma criança. Sentia ódio dos tuk-tuks
que sempre cobravam o triplo do valor e de sempre ter
que entrar em longas discussões para que me cobrassem
um valor justo.
Sentia ódio do Pol Pot. Sentia ódio do padrasto do
Rady quando me lembrava da cicatriz em sua canela.
Sentia ódio pelas crianças estarem nas ruas e não na
escola. Eu derramava em lágrimas a dor que me
consumia por dentro. A minha tristeza e descrença no ser
humano cresciam, mesmo que eu não quisesse que isso
acontecesse. Não tinha esquecido das duas vezes que
tinha sido furtada. Segui misturando lembranças e
sentimentos.
Olhei no espelho e analisei o que via. Estava com as
pálpebras inchadas e o rosto vermelho. Meu rosto estava
redondo e era visível que tinha ganhado alguns quilos.
Vestia calças largas e as mesmas blusas de sempre.
Estava de chinelos e os pés sujos. Meu cabelo estava
oleoso do calor e o mantinha sempre preso, devido ao
número de lavagens reduzidas pelo fato de não haver
chuveiro. Continuei olhando fixamente para minha
imagem refletida e o aperto dentro de mim ficava cada
vez maior e eu chorava ainda mais.
O que eu estava fazendo ali? Como eu poderia ajudar
aquelas pessoas?
Eu queria ser útil, mas me sentia impotente. Uma
realidade que até pouco tempo era tão distante havia
tomado conta de mim. O meu mundo de fantasias estava
se evaporando e eu finalmente acordava para um mundo
de verdade. Sentia a urgência de fazer alguma coisa,
porém, não tinha ninguém para me dizer como fazer.
Onde estariam todas aquelas pessoas que passaram a
vida inteira me dizendo o que fazer? Cadê eles nessas
horas? Como se eles soubessem de alguma coisa. Agora,
era eu comigo mesma.
Tudo tem o seu tempo para acontecer, mas a resposta
sempre vem…
37. "Eu sou uma
criança diferente
das outras"

Nada como uma noite de sono em uma cama com


lençóis e travesseiros, seguido de uma boa chuveirada.
Tomei um bom café da manhã com pão francês e ovos
mexidos. Precisava organizar a minha vida que, desde o
assalto, estava de cabeça pra baixo. Deixei minhas
roupas sujas na lavanderia, comprei uma carteira nova,
um vestido longo, repelente e uma toalha de banho.
Me tornei consciente de um dos meus maiores
problemas: eu não podia trazer a dor das outras pessoas
para mim. Eu jamais conseguiria abraçar o mundo e teria
que aprender a separar a dor do outro da minha. Passei a
tentar entender aquelas pessoas. É difícil de explicar,
mas eles tinham uma razão para fazer o que faziam. Não
era uma justificativa, contudo, eles tinham motivações
mais fortes que eles mesmos. Tentei parar de julgá-los
por tentar me enganar ou por me cobrar a mais. Eu não
podia mudar a atitude das outras pessoas comigo, mas
poderia mudar a minha em relação às pessoas.
Quando o tuk-tuk tentava me cobrar a mais eu
mostrava uma nota de um dólar e perguntava se ele
queria fazer a corrida ou não. Geralmente eles
aceitavam, porque esse era o preço regular. As crianças
continuariam nas ruas pedindo dinheiro, mas comecei a
ficar ciente de que minha parte eu já estava fazendo
dando aulas como voluntária na escola. Parecia pouco,
mas se cada pessoa fizesse o mesmo pouco, todas as
crianças do Camboja estariam na escola.
Em uma dessas minhas caminhadas perdidas pela
cidade, eu conheci Linda, uma menina de 12 anos que
me abordou vendendo braceletes. Ela tinha uma
maturidade diferente das outras crianças, como se
estivesse consciente do porquê estava ali. Além do mais,
era extremamente inteligente e educada.
Não me deixei entregar a seus encantos de primeira,
sabendo que havia a possibilidade de tudo aquilo ser um
enorme teatro que só acabaria bem se eu lhe desse
alguns dólares. Elogiei os braceletes, que eram muito
bonitos. Todos os mochileiros tinham o pulso repleto
deles e eu mesma já tinha dois que adquiri na Tailândia.
Fazia parte do ritual de encontro dos viajantes contar as
histórias de cada bracelete e dos países por onde
passou. Resolvi aprofundar a nossa conversa.
“Você quem faz os braceletes?”. – Perguntei,
apontando para a cesta de plástico que ela apoiava em
sua cintura.
“Não, a minha mãe quem faz e eu os vendo, já que
ela não fala inglês.”. – Ela justificou.
“E onde está a sua mãe? Ela te acompanha durante as
vendas?”. – Eu tentava entender melhor a realidade de
Linda.
“Não, ela tem uma loja de souvenires e trabalha lá. Às
vezes, eu ajudo ela na loja, mas geralmente eu saio para
vender os braceletes, porque consigo vender muitos.”
“Me conta uma coisa, Linda. Você vai pra escola?”.
“Sim. Eu tenho aula em duas escolas diferentes.
Trabalho na loja da minha mãe e vendo os braceletes
para os turistas para poder estudar.”.
Fiquei surpresa com a resposta, mas ainda tinha
dúvidas se aquela não era uma conversa ensaiada.
“E as outras crianças? Elas também trabalham e vão à
escola?”. – Insisti no assunto.
“A maioria, não. Eu sou uma criança diferente das
outras” – Ela falou, em tom de compaixão.
“Por que você é diferente, Linda?”
“Eu sou diferente porque tenho família. A maioria das
crianças não tem tempo para pensar nelas mesmas. Eu
posso pensar nos meus sonhos e estudar.”
“E qual é o seu sonho?”.
“Eu quero ser uma mulher de negócios. Ter um hotel
talvez. Quero conectar pessoas, vê-las felizes.” – Ela
disse, com um sorriso em seu rosto tão jovem.
“Quanto custa o seu bracelete?”. – Ela me ganhou.
“Para você, eu faço bem barato. Me diz de qual você
gosta que acertamos um valor. O vermelho vai ficar
bonito em você, ou esse aqui escrito “Camboja”, já que
você tem um escrito “Tailândia”. Escolhe quantos você
quiser.”. – Ela dizia, demonstrando a sua habilidade com
vendas que não tinha aprendido na escola, mas nas ruas
da cidade.
Histórias que somente as ruas de países distantes
poderiam proporcionar. Eu falo muito e acabei
começando a escutar mais para compreender.
Compreender mais o mundo, a mim e ao mesmo tempo
aceitar que eu compreenderia sempre o mínimo, pois a
força maior viria simplesmente da minha fé na vida e não
na compreensão e definição.
Quanto mais eu conhecia países, pessoas e religiões,
mais eu percebia que sabia muito pouco e maior era o
meu desejo de conhecer mais. Eu não me sentia
intelectualmente mais elevada, até mesmo porque eu
nunca fui muito de teorias, política e história. O meu
conhecimento não era intelectual, complexo, com
números ou palavras difíceis. Ele era simples. Ele
acontecia dentro de mim.
Estamos acostumados à nossa cultura, achamos que a
nossa verdade é universal e, quando pensamos em uma
cama, em uma escola, em um banho, todos nós temos
uma imagem muito similar em nossas mentes. Porque
vivemos isso, a televisão nos mostra isso, nos ensinaram
que é assim e ponto final. Não fomos ensinados a
questionar.
Aí, você viaja para um país diferente e descobre que
nem todo banho é de chuveiro, nem toda escola tem
livros, nem toda cama tem lençol. Quando isso acontece
você para de achar que para ser feliz precisa de uma
cama king-size, que o seu lençol precisa ter a maciez do
algodão egípcio ou que os livros usados não prestam. E
começa a perceber que o importante é a tranquilidade do
seu sono, a maciez das suas palavras e a qualidade da
sua leitura.
Quanto mais eu conhecia o Camboja, mais ele me
surpreendia. Esqueci do garotinho da noite anterior e
substituí aquela lembrança dolorosa pelo sorriso de
Linda.
38. Vamos construir
uma casa

Assim que acordei na segunda-feira, desci para o café-


da-manhã sempre na expectativa do que seria. Pão com
ovo, sopa ou arroz frito? Eu e os voluntários sempre
torcíamos para ser pão. Sentada na mesa ao lado de
Celine, a voluntária da França que era minha amiga mais
próxima, reparei que Don, o filho de Rady de 2 anos,
brincava com mais uma criança no terreno da casa.
Tinha chovido muito naquela noite e muitas poças de
água se formaram. Os dois, pelados, pulavam
incontáveis vezes de bunda, na poça de água cheia de
lama, e riam sem parar. Estavam sujos dos pés à cabeça
na mesma proporção que pareciam felizes. Celine e eu
assistíamos juntas aquela cena hilária e sincera enquanto
os outros voluntários se juntavam a nós.
Rady chegou para o café-da-manhã com uma criança
de 7 anos e pediu para que o levássemos junto conosco
para a escola todos os dias. O pequeno sorria e parecia
feliz com o anúncio de Rady. Fiquei curiosa com a
presença das duas crianças e perguntei quem eram.
“Eu os adotei. Uma mulher veio até a nossa casa
chorando e pediu se eu não poderia alimentar e cuidar
dos seus filhos. Ela não conseguia mais alimentá-los e
não queria que passassem fome. Eu aceitei ficar com
eles por tempo indeterminado. O maior irá para a escola
com vocês e o pequeno pode ficar brincando com o Don.
Ele tem apenas três anos e pode esperar para começar.”.
Eu não sabia o quanto os outros voluntários sabiam da
história de Rady, mas para mim, aquele gesto fazia todo
o sentido.
“E onde está a mãe das crianças agora?”. – Eu estava
intrigada com a situação.
“Ela deve estar morando nas ruas, tentando
sobreviver de alguma forma. Sozinha será mais fácil. Mas
me disse que passaria aqui em casa ou na escola
durante a semana.”. – Dizia Rady, com naturalidade.
As crianças acabaram ficando muito próximas dos
voluntários. Sem pai e sem mãe, acabávamos sendo as
pessoas que davam atenção a eles e ajudávamos com
pequenas tarefas cotidianas. O maior era um pestinha e
dava trabalho cuidar dele todos os dias na escola. O
pequeno era o nosso mascote, sempre fazendo alguma
coisa para alegrar o nosso dia. Ele e Don se tornaram
bons amigos e viviam pelados aprontando alguma coisa
pelos arredores da casa.
Os nossos dias eram cheios: saíamos cedo e
passávamos a manhã toda dando aulas. Voltávamos para
o almoço em casa e depois retornávamos para mais uma
jornada até o fim do dia. Algumas vezes eu passava mal,
o calor baixava a minha pressão e me sentia fraca e
tonta, precisando sentar e colocar um gelo na nuca para
melhorar.
As chuvas começaram a ficar mais constantes, o que
era um alívio para mim, porque a brisa fresca me fazia
sentir mais disposta. No entanto, o caminho até a escola
ficava todo enlameado, ao ponto de não termos como
andar o pequeno trecho até a escola. Íamos de moto por
uma pequena estrada, que nos deixava ao lado da
escola, até o dia em que Celine teve um acidente e caiu
da moto, queimando a perna no cano de escape.
O nosso esforço só não era maior do que o das
crianças: muitos andavam quilômetros em meio ao barro
e chegavam cheios de lama para a aula. Cancelar a aula
era a nossa última alternativa.
Voltávamos no final do dia sempre pensando no
jantar. Enquanto no café-da-manhã torcíamos pelo pão,
no almoço e no jantar comíamos absolutamente tudo. Eu,
particularmente, adorava o amok que a esposa de Rady
fazia. Amok é um prato típico e sempre mencionado
como um dos preferidos da culinária khmer. São
inúmeros os ingredientes que adicionam todo o sabor ao
prato, mas, basicamente, ele é feito de peixe cozido, com
leite de coco e curry, geralmente servido em uma folha
de bananeira.
De vez em quando, eu me arriscava a ajudar na
cozinha para aprender um pouco mais. E não ficava mais
surpresa quando via um pássaro ou um sapo sendo
preparado para Rady, resquício da sua infância
sobrevivendo na floresta.
Um dia desses, eu aguardava o jantar sentada na
calçada de casa, observando as crianças brincarem.
Celine sentou-se ao meu lado para me fazer companhia.
Compartilhei com ela meus pensamentos.
“Eu fico olhando essas crianças e me lembro de um
menininho que conheci no meu voluntariado na Tailândia,
o Tea. Juntei um dinheiro para ajudá-lo a fazer uma
cirurgia, mas a sua mãe desistiu. Eu ainda tenho esse
dinheiro comigo, não é muito, mas queria ajudar alguém
que precisasse. Talvez pudesse ajudar essas crianças,
mas não sei exatamente como” – Desabafei.
“Por que você não fala com o Rady? Talvez ele saiba a
melhor maneira de ajudá-los. Seria incrível se você
pudesse fazer alguma coisa por eles.”.
Realmente, a melhor coisa a fazer seria conversar
com Rady e ver o que ele tinha a me dizer. No outro dia,
aguardei o momento oportuno e chamei-o para
conversarmos a sós, na escola.
“Rady, eu tenho muita vontade de ajudar alguém que
precise. Mas não queria que fosse um simples
assistencialismo. Queria que fosse algo que pudesse
impactar de verdade a vida das pessoas. Eu tenho um
pouco de dinheiro comigo que amigos doaram para que
eu ajudasse alguém na minha viagem.”.
“Por que você não ajuda aquela mulher?”.
“Qual mulher, Rady?”
“A mãe das crianças que não tem como cuidar deles.
Você pode reunir essa família novamente”.
“Mas como eu vou fazer isso?”.
“Vamos construir uma casa pra eles.”.
“Não, Rady, eu não tenho tanto dinheiro assim. Eu
tenho apenas 400 dólares.”.
“Ótimo, é suficiente. Podemos construir uma casa
simples de bambu, aqui, no terreno da escola, e ela
também vai ser uma lojinha. Ela pode vender sucos,
lanches e refrigerantes para os alunos e para os
voluntários. Os filhos dela frequentarão a escola todos os
dias e ela terá uma fonte de renda. Ela pode me ajudar
também na limpeza da escola. Você vai mudar a vida
dessa família.”. – As palavras de Rady soavam como
mágica para mim.
“Que ótima ideia, Rady! Eu nunca imaginei que com
tão pouco seria possível construir uma casa! Mas
precisamos ter uma conversa com ela. Precisamos saber
se ela quer ser ajudada”.
“Com certeza. Eu vou tentar ligar pra ela e pedir que
venha até a escola.”.
No final do dia, a mulher apareceu. Eu, ela e Rady nos
sentamos em cadeiras de plástico em uma sombra na
escola para conversar. Eu queria saber mais sobre sua
história e fazia muitas perguntas, enquanto Rady
traduzia as perguntas e respostas.
Ela se chama Li, tem 30 anos e foi abandonada por
seus pais ainda criança, sendo criada por vizinhos até
encontrar o seu marido, com quem teve dois filhos.
Devido à dificuldade de conseguir emprego no Camboja,
o marido dela passou ilegalmente a fronteira para a
Tailândia para cortar árvores.
No ano passado, ele foi morto pela polícia tailandesa.
Desde então, ela anda pelas ruas, tentando encontrar
uma maneira de alimentar seus filhos. Ela não consegue
emprego, pois não fala inglês, tem um problema em uma
das pernas que limita os seus movimentos e, por não se
enquadrar nos padrões de beleza daqui, fica difícil de
conseguir algum emprego como atendente ou garçonete
de estabelecimentos locais. Li chegou ao ponto de ficar
na porta de restaurantes esperando os clientes
terminarem suas refeições para que ela pudesse dar os
restos às crianças.
Ela chorou enquanto me contava a sua história. Mas
chorou mais ainda quando falamos da possibilidade de
construirmos uma casa para ela. Explicamos que, em
troca, Li teria que ajudar na limpeza e manutenção da
escola e que a lojinha seria a sua fonte de renda. Ela
dizia não saber como agradecer o que estávamos
fazendo por sua família.
Rady permitiu que ela ficasse em sua casa com as
crianças até que o novo lar ficasse pronto. Além de
barato, era muito rápido construir uma casa no Camboja:
em duas ou três semanas estaria pronta. Fizemos alguns
cálculos e chegamos à conclusão de que precisaríamos
de mais 300 dólares para fazer a casa com chão de
cimento, que ficaria mais resistente e confortável.
Eu fiz um pedido no meu Facebook e consegui
arrecadar mais 400 dólares. Com isso, foi possível fazer o
chão de cimento, comprar todos os utensílios para a
cozinha e comprar todos os produtos para que Li já
começasse a lucrar.
Aos poucos, a casa ia tomando forma. No dia em que
a primeira leva de material chegou, todos os voluntários
e as crianças nos ajudaram a carregar os tijolos e a areia.
Com esse material, seria construída a base da casa, feita
de tijolos e cimento. Para a minha surpresa, o telhado é
erguido antes das paredes, sendo sustentado por fortes
pedaços de madeira.
As paredes eram uma obra de arte a parte, um
trabalho manual delicado resultado do entrelaçamento
perfeito de folhas de palmeira e pedaços de bambu.
Enquanto a casa era construída, eu tirava fotos e
mantinha as pessoas no Brasil atualizadas das
novidades. Com a sua bondade, eles eram os
responsáveis pelo que estava acontecendo ali. Eu era
somente um meio de comunicação entre meu país e o
Camboja.
Um dia desses, quando cheguei da escola, vi que Li
estava dando banho nas crianças, que estavam
peladinhas no terreno de chão batido, do lado de fora da
casa, enquanto a mãe os esfregava. Era visível a alegria
dela de estar finalmente junto aos seus filhos e ainda
maior a minha alegria por poder fazer parte disso.
39. O plano é
não ter plano

Enquanto a casa estava sendo construída, eu fiz uma


breve viagem a Bangkok para sair do Camboja antes que
o meu visto expirasse. Assim, daria uma nova entrada
quando retornasse e teria mais um mês de visto.
Também encontraria com Lucas, um amigo brasileiro que
vinha da Austrália. Ele me fez o favor de comprar um
iPhone novo, o que me salvaria de futuras roubadas e me
traria de volta as postagens na página. Teria um celular
novo de graça, já que o seguro havia reembolsado todas
as minhas perdas.
Estar em Bangkok era como estar em casa. Nessa
viagem, conheci muitas pessoas que fizeram dessa
simples parada em Bangkok uma incrível jornada. Jackie,
uma tailandesa que cresceu na Nova Zelândia foi uma
delas. A família kiwi a adotou ainda pequena e, depois de
anos sem ver a sua família de sangue, agora retornava
para ter um contato maior com as suas origens. Eu
passava a maior parte dos meus dias com ela, enquanto
aguardava Lucas chegar de viagem para voltarmos ao
Camboja juntos.
O Gustavo, o jogador de futebol que havia me ajudado
na minha última estada em Bangkok, conseguiu convites
para mim e para Jackie para uma festa na piscina, no
topo de um hotel super badalado na cidade. Me sentia
em Tokyo ou Londres, mesmo sem nunca ter estado em
nenhuma dessas cidades.
O pôr-do-sol refletia nos prédios espelhados e me
mostrava que há beleza no caos. Foi nessa festa que
conheci Fran, uma brasileira incrível que se tornaria
também uma das pessoas mais especiais de toda a
minha viagem. Fran viaja o mundo trabalhando em
diversas empresas de tecnologia e tinha um perfil super
empreendedor.
Ela falava mais línguas do que uma mão minha pode
contar e tinha um namorado metade italiano, metade
australiano com quem jantava pelo Skype nos sábados à
noite. A conexão foi instantânea e me fez prometer que,
quando voltasse à cidade, eu ficaria em sua casa. Uma
promessa que para mim era muito fácil de ser cumprida.
Teve também o Daniel, que conheci no hostel em que
eu estava ficando, um britânico supersimpático com o
qual eu dividia os mesmos gostos culinários.
Começávamos o dia comendo misto quente no 7-Eleven
e terminávamos explorando alguma barraquinha de rua.
Quando Lucas chegou em Bangkok, aproveitamos
para tomar drinks em lugares sujos e rodar Bangkok de
tuk-tuk à noite, um dos meus passeios preferidos na
cidade. Daniel ficou ainda mais próximo de nós,
mudando seus planos de viagem e seguindo rumo ao
Camboja conosco.
Essa viagem de apenas cinco dias havia me
conectado ainda mais a Bangkok. Eu me sentia em casa,
conhecia muitos lugares, pegava ônibus somente com
locais, sabia a melhor parada do metrô, tinha meus
restaurantes baratos favoritos e, o mais importante,
sempre tinha um amigo para encontrar.
Mas, por alguma razão, comecei a pensar no futuro da
minha viagem. Cogitava ir para as Filipinas, ajudar na
construção de casas, ou para o Nepal, ensinar inglês.
Mas começava a perceber que esses destinos não se
encaixavam no meu pequeno orçamento.
Também sentia que existia um limite físico e
emocional para uma aventura como essa. Três meses
atrás, eu estava no meu país, cercada pelo conforto e
pelo conhecido, preparando o meu mochilão para uma
viagem que nem eu mesma sabia para onde me levaria e
que eu nem sequer sabia se daria certo.
Segui os meus instintos sabendo que muitas vezes é
necessário simplesmente partir, sem esperar o momento
perfeito. Eu sabia que, em meio a planejamentos, muitos
sonhos são deixados para trás.
E repetindo minha frase favorita “o plano é não ter
plano”, de minha própria autoria, eu voei rumo ao
desconhecido. E foi tudo muito mais intenso do que eu
inicialmente imaginei, uma característica da minha
personalidade que se refletia agora na minha viagem.
Vivi experiências que estavam muito além do que eu
imaginei ser possível realizar.
Fui forte nos meus momentos mais fracos. Sorri da
forma mais pura e sincera. Chorei sozinha à noite e
sentia a dor de finalmente me aprofundar em meu
próprio silêncio. Aprendi o que é não ter nada. Aprendi o
que é ter tudo. Cheguei aos meus extremos. Aprendi na
pele a importância do agora e do valorizar.
E assim, como quem partiu sem destinos e certezas,
decidi que estava chegando a hora de voltar. Mudanças
de plano fazem parte do fato de você não ter plano
algum. Decidi que viajaria por mais três meses,
completando assim seis meses de viagem. Com o
orçamento curto, planejei fazer os países vizinhos: Vietnã
e Laos. Se eu fosse teimosa em continuar, estaria
correndo o risco de pôr tudo a perder.
Essa decisão me fez ter ainda mais pressa para voltar
ao Camboja. Estava ansiosa para voltar ao vilarejo para
ver a casa pronta e para dar continuidade à minha
viagem rumo ao Vietnã.
Da última vez, eu havia atravessado a fronteira mais
perigosa da Tailândia com o Camboja sozinha e sem
telefone. Dessa vez, a travessia foi um luxo. Daniel e
Lucas me faziam companhia, um smartphone com
internet e a fronteira era uma das mais comuns entre os
viajantes. Uma tentativa de suborno aqui e ali que já
faziam parte do roteiro. Mais um carimbo no passaporte,
mais estradas e mais histórias pela frente.
40. A Casa da
Esperança

Alguma coisa mudara em mim naquele momento. Eu


sempre soube que com pouco era possível fazer muito,
mas, nesse meu discurso, eu jamais imaginei que seria
possível construir uma casa no Camboja. Cheguei de
surpresa e de longe já vi Li sorrindo, fazendo salada de
mamão verde, enquanto os vizinhos aguardavam para
comprar a salada fresquinha.
Pacotes de bolacha, salgadinhos e frutas estavam
pendurados pela parede. Uma caixa de gelo fazia a
função da geladeira. Em uma bacia, peixes que ela
pegou no laguinho bem ao lado da casa. Em um balde,
alguns caranguejos retirados das plantações de arroz.
Seu filho mais novo dormia no chão, em um cantinho,
enquanto o outro brincava em algum lugar. Reparei na
placa que havia sido colocada em frente à casa e fiquei
orgulhosa por ver estampada ali a bandeira do meu país.
Comecei a ler o que a placa dizia:
“A Casa da Esperança foi construída em setembro de 2013 para
ajudar aqueles em necessidade extrema, para ajudar na sua luta e
para dar-lhes uma nova chance na vida. A Casa da Esperança foi
financiada pelo Brasil por meio da sua generosidade, bondade e
auxílio para a nossa comunidade. Os esforços de angariação de
fundos para construir a Casa da Esperança foram liderados por
Letícia Mello.”
A casa foi construída em um espaço onde antes não
existia nada. A generosidade de 25 pessoas somou
R$1.930, que foram convertidos em aproximadamente
800 dólares, suficientes para mudar vidas. Estava muito
grata pela generosidade e pela confiança de cada pessoa
que doou, fazendo com que esse sonho se tornasse
realidade.
Me questionava sobre o papel do governo, que tem
em suas mãos a capacidade de mudança e de renovação
para mudar muitas vidas, mas que prefere o poder e a
centralização de recursos para poucos. A minha viagem
por si só já me provara que com pouco podemos fazer
muito. Então, imagina com muito, o quanto não pode ser
feito!
O Camboja havia sido tão marcante nessa minha
caminhada que me deu a possibilidade de deixar um
pedacinho de mim e de meus amigos ali. Sentia um
orgulho imenso ao ver aquela casa. Estava feliz por
poder usar as minhas viagens para ser intermédio de
histórias como essa. Além da casa em si, estava
deixando também um pouco do conhecimento que tive o
privilégio de adquirir durante a minha vida.
Mesmo que o inglês não fosse a minha língua
materna, eu me esforçava em ensinar o máximo que
sabia. E é com um pouquinho do conhecimento de cada
voluntário que passa por ali que o futuro dessas crianças
toma outro rumo. A língua inglesa traz esperanças de um
futuro melhor: eles não precisarão trabalhar na lavoura,
ganhando um dólar ao dia. A maioria sonha em ir para a
cidade que fica a 10 km do vilarejo e que nunca tiveram
a oportunidade de conhecer.
O voluntariado vale a pena porque as pessoas têm
sonhos. Eu sonhei em estar ali um dia e as crianças
sonham com um futuro melhor. Sem sonhos, nada disso
existiria.
O Camboja foi, para mim, o meu grande mestre. Ele
não me poupou da dor dos seus ensinamentos, mas me
mostrou que o amor é a resposta universal para todas as
dores.
Me despedi de Li, de Rady, das crianças e dos
voluntários com abraços e promessas de que um dia
voltaria.
Me despedi de Siem Reap vendo o sol nascer no
Angkor Wat.
Me despedi dos meus parceiros de viagem com um
shot de vinho de arroz na Pub Street.
Eu estava pronta para a próxima aventura. Entrei
sozinha em um ônibus noturno que me levaria até a
capital, a cidade de Phnom Penh, para depois seguir
rumo ao meu próximo destino: Vietnã.
41. Os cenários reais
que foram palco dessa
tragédia cambojana

Da janela de mais um ônibus velho, eu observava a


paisagem, pensava na vida e ouvia música. Chovia
muito, mas ainda assim conseguia observar as palmeiras
típicas da paisagem cambojana. Tive sorte de uma jovem
simpática deitar-se ao meu lado. Isso mesmo: deitar-se. A
maioria dos ônibus que eu pegava no Camboja não
tinham poltronas, mas sim camas sem divisória nenhuma
entre os dois passageiros.
As seis horas de viagem, que me custaram apenas 9
dólares, passaram rápido enquanto eu analisava tudo o
que estava vivendo e começava também a pensar no
meu retorno ao Brasil. Ainda tinha muita estrada pela
frente, mas voltar sempre foi a parte mais difícil das
minhas viagens.
Era assustadora a ideia de retornar, cheia de
bagagem recém-adquirida, para um lugar que estaria me
esperando do mesmo velho jeito. Eu não voltaria a
mesma e isso me assustava, pois voltaria sem dinheiro
nenhum e precisaria recomeçar de novo até que eu
tivesse condições financeiras de sair de lá novamente.
Eu sempre voltava pensando em como sairia. Mas é
claro que seria bom rever meus amigos, meus pais e ter
um pouco de conforto, até porque dormir em uma cama
e tomar banho quente de chuveiro passariam a ter um
gosto especial. No meio disso tudo, voltei a pensar no
moreno e na possibilidade de um possível reencontro.
Mandei uma mensagem avisando a data que eu
voltaria. Não conseguia perceber se ainda estávamos
conectados e nem sequer se ele ainda estaria no Brasil
ou em Nova York até a minha data de retorno. Eu nunca
sonhei em casar, ter uma casa e filhos. A minha ideia de
relacionamento é muito mais ligada à capacidade de
alguém respeitar a minha liberdade: jamais poderia ser
feliz sem ser livre.
Cada um com a sua felicidade, mas a minha,
particularmente, não estava em um vestido de noiva ou
na decoração de um apartamento novo. O que eu
esperava de um relacionamento era tão singelo que
chegava a ser complexo.
Talvez nem eu mesma ainda soubesse o que eu queria
e já não via mais nisso um problema. Eu me sentia leve
quando assumia que não sabia e passei a desconfiar de
pessoas muito cheias de certezas no amor e na vida.
Recebi a resposta do moreno um pouco antes de
chegar ao meu destino final: “Eeeeeee! Meus sonhos
estão se tornando realidade!! Boa, Lele. Nos vemos em
breve então. Aproveita o final da viagem! Se precisar de
alguma coisa me fala. Bjss”. Sorri com a resposta. Eu
estava feliz em saber que poderíamos nos reencontrar.
Mas meu coração estava dividido entre a alegria e o
medo de retornar para aquele território tão familiar.
Existia a possibilidade de as pessoas não gostarem mais
da Letícia que retornaria ou da Letícia já não se sentir
parte do que havia deixado para trás.
O ônibus chegou. Hora de voltar à realidade.
Phnom Penh seria uma parada estratégica e rápida,
somente para conhecer os pontos turísticos e aplicar
para o meu visto do Vietnã. A capital era muito diferente
das outras cidades cambojanas pelas quais eu havia
passado: ela era real.
Nada de inúmeros turistas e clima de férias. Estava ali
uma grande cidade com quase dois milhões de
habitantes se esbarrando em suas motos e tuk-tuks em
meio à poluição e a um trânsito muito intenso.
Era uma cidade repleta de mazelas, mas de um povo
trabalhador e sorridente. Ruas sujas e empoeiradas se
misturavam a prédios de arquitetura colonial francesa.
Dias quentes com pancadas de chuva que aliviavam um
pouco o calor. Um grande calçadão de frente para o rio
garante uma caminhada tranquila enquanto do outro
lado da rua restaurantes e cafés lutam pela atenção dos
turistas.
Eu caminhava quilômetros todos os dias com um
mapa na mão, no qual havia marcado os inúmeros locais
que queria conhecer. Devido à grana curta e à
curiosidade extrema, raras vezes pegava um tuk-tuk.
Gostava de descobrir ruas, cafés, pessoas e prédios
que jamais poderei nomear ou especificar sua
localização. Lugares que somente longas caminhadas
sem rumo em uma cidade intrigante podem oferecer.
Havia muitos templos, palácios, praças, mercados locais
e lojas.
À noite fui conhecer o Night Market, um mercado bem
famoso entre os turistas. Observei os produtos, roupas e
bolsas enquanto caminhava em direção à seção de
comida. Entre inúmeros pratos, achei um macarrão frito
de um dólar, que comi contente, sentada sobre uma
canga no chão enquanto observava a rua.
No meu terceiro dia na cidade, Lucas e Daniel
chegaram. Eu tinha decidido seguir viagem sozinha
porque estava com um cronograma mais apertado e
ainda tinha um longo caminho pela frente até chegar em
Hanói, onde seria o meu próximo voluntariado.
Os meninos estavam em clima de curtição, enquanto
eu queria aproveitar cada dia intensamente para
conhecer um pouco das cidades pelas quais passaria.
Com a chegada deles dividimos um tuk-tuk e partimos
para os dois pontos turísticos mais importantes da
cidade. Seguindo sugestões de outros viajantes do
hostel, visitamos primeiro o Museu do Genocídio Tuol
Sleng e depois o Killing Fields.
Eu já tinha tido boas aulas sobre a história do
Camboja por meio dos personagens da vida real que
conheci até então, mas agora eu estava sendo colocada
nos cenários reais que foram palco dessa tragédia.
Começamos pelo museu, mais conhecido como prisão
S21, uma antiga escola que, durante o regime do Khmer
Vermelho, foi transformada em um centro de tortura,
interrogatório e execução de opositores do regime. Ainda
mais intrigante é saber que o líder dessa brutalidade, Pol
Pot, foi professor durante alguns anos de sua vida.
Entro no primeiro prédio sem saber o que esperar. Há
salas de azulejo xadrez branco, encardido com amarelo,
com paredes cruas em tom amarelado e uma janela por
onde entra a luz do dia. A luz ilumina uma cama, que é
uma simples estrutura de ferro, posicionada bem ao
centro da antiga sala de aula. Sobre ela, instrumentos de
tortura.
Por enquanto, o ambiente era repleto de silêncio e
vazio, até eu me dar por conta do quadro na parede, bem
em frente à cama, uma foto daquela exata sala no
momento em que um fotógrafo descobriu a prisão, pouco
depois da queda do regime, quando todos fugiram e
abandonaram o prédio.
No quadro, a foto de um corpo praticamente
decomposto, torturado e ensanguentado pelo ódio do
Khmer Vermelho deitado sobre aquela cama, naquela
mesma sala em que eu estava. Começo a comparar a
cena real com a foto e percebo manchas de sangue no
chão, próximas de onde estou. O silêncio e o vazio se
foram em minha mente. O ambiente ficou tomado por
gritos e choros imaginários enquanto observava a foto.
Havia mais salas como essa e o chão de azulejo
xadrez se tornou uma característica do ambiente. Em
algumas delas, havia também uma mesa e uma cadeira,
típicas de uma sala de aula, que eram usadas pelo
interrogador do Khmer Vermelho. Cada prisioneiro era
inicialmente fotografado e depois enviado para a tortura:
era acorrentado à cama de ferro e questionado até que
confessasse os seus crimes, muitas vezes tendo que
mentir ser um agente secreto da CIA para ser liberado da
tortura. Essas fotos e confissões eram enviadas para as
autoridades como uma prova de que os traidores
estavam sendo executados.
Do lado de fora, no pátio da antiga escola, há uma
placa com as 10 regras de segurança da prisão. Todas
pedem obediência e ordem por parte dos prisioneiros e
principalmente respeito ao regime do Khmer Vermelho.
Mas a de número seis é a que mais me chama a atenção:
enquanto leva chicotadas ou eletrificação, você não pode
chorar de maneira nenhuma.
Foram preservadas em torno de 6000 fotografias e
20.000 páginas de documentos encontrados na prisão.
Muitos desses retratos e confissões estão expostos em
algumas salas do museu. São crianças, mulheres e
homens com um número de identificação no peito.
Algumas mulheres seguravam um bebê no colo.
Observando os retratos, é possível perceber que
alguns tinham a expressão de pavor e medo, enquanto
outros não faziam ideia do porquê estavam ali. Fotos de
corpos executados, rostos retalhados e pinturas de
torturas.
Aproximadamente 14.000 pessoas foram torturadas
no S21 e, dos poucos sobreviventes, apenas dois estão
vivos: Bou Meng e Chum Mey. E é assim que a
caminhada pelo museu acabou, com a presença dos dois
sobreviventes vendendo o livro sobre sua história e
tirando fotos.
A minha reação foi a mais estranha possível ao ver na
minha frente os dois únicos sobreviventes daquela
carnificina. Observei-os com estranheza, sem saber o
que deveria fazer. Estava perplexa e atônita: eles sim
eram super-heróis e figuras que deveriam ser veneradas.
A experiência como um todo teve uma grande carga
emocional e simplesmente me dirigi para a saída,
tentando me recuperar.
Mais tarde, eu olharia na internet como eles
sobreviveram: um era artista e foi escolhido para pintar
quadros com a imagem de Pol Pot e de outros líderes e o
outro era mecânico e sabia consertar máquinas. As suas
habilidades os salvaram e os tornaram memórias vivas
de um momento histórico que não deve ser esquecido,
mas sim ensinado e relembrado para as futuras
gerações.
Com frequência, caminhões paravam no pátio da
prisão durante à noite e prisioneiros eram algemados em
filas e jogados dentro dos caminhões. Sem saber para
onde estavam sendo levados, seguiam para o seu
destino final a pouco mais de 10 quilômetros dali:
Choeung Ek Killing Fields.
Foi aí que eu entendi porque me sugeriram conhecer
primeiro a escola e depois os campos de extermínio. É
como percorrer o mesmo caminho feito pelos
prisioneiros.
O passeio pelos Killing Fields durou pouco mais de
uma hora em uma caminhada silenciosa, enquanto o
áudio-guia explicava sobre o local e a sua história. O
ambiente parece um imenso bosque, cheio de árvores,
pássaros e flores.
Achei incrível a maneira como a experiência acontece,
incentivando que ali seja um local de silêncio e reflexão.
Nada de pessoas falando alto e tirando fotos: todos
andam silenciosamente a passos curtos, prestando
atenção nas histórias que são contadas ao pé do ouvido.
A paz do ambiente é quebrada quando fragmentos de
ossos, dentes e pedaços de roupas são avistados. Junto
com essas lembranças, a voz continua revelando todas
as crueldades. Os prisioneiros eram levados à morte de
maneiras cruéis, utilizando pá, machado e foice para
economizar balas. Seus corpos eram arremessados em
grandes sepulturas coletivas.
De tantos momentos brutais ali relatados, dois foram
os mais dolorosos para mim. O primeiro, uma grande
árvore centenária recebe o nome de Árvore Mágica e,
assim que o áudio começou a relatar sua história, a sua
beleza se esvaiu. Músicas tocadas no volume máximo
saiam de caixas de som penduradas na árvore para
silenciar a matança que ocorria ali todas as noites.
No áudio, eles reproduzem o que seria o último som
que os prisioneiros escutariam antes da sua morte. A
música em khmer era um tanto perturbadora e era ela
que tocava agora no meu ouvido: o som que abafou os
choros e gritos de milhares de inocentes.
O segundo, uma árvore que era usada para matar os
bebês e as crianças que segurados pelas pernas eram
golpeados contra o tronco até serem esmagados e
mortos. Matavam as crianças para evitar uma possível
vingança pela execução de seus pais.
A parada final foi em um memorial que está repleto de
ossos humanos e crânios das vítimas que serve como um
tributo e como um lembrete das atrocidades que
aconteceram nos Killing Fields.
Um dia que poderia ter sido mais um dia qualquer de
turismo, mas, ao invés disso, ele me marcaria para
sempre. Eu me indagava: como uma história tão recente
era pouco conhecida e quantas mais haviam pelo mundo
e até mesmo dentro do meu próprio país?
O que haviam me ensinado em tantos anos de escola?
Por que muitos países eram esquecidos pela mídia
internacional? Que Angelina Jolie tinha adotado um filho
no Camboja, todos nós sabíamos. Eu me sentia rasa
como ser humano e isso só aumentava o meu desejo de
desbravar o mundo, de entendê-lo com os meus próprios
olhos e com o coração.
O turismo que estudei por tantos anos na faculdade
era muito mais do que os grandes autores e apostilas
definem. O turismo deveria ser usado como uma
ferramenta de conhecimento e de empatia com o mundo.
Ele não deve ser banal, mas, sim, nobre.
Obrigada, Camboja!
Os teus ensinamentos
estarão sempre comigo
e os compartilharei
para que mais pessoas
estejam cientes da tua batalha.
subcapa
42. Cruzando o
Vietnã do Sul
ao Norte

Assim que cheguei no Vietnã, fiz um saque no valor


máximo que o caixa eletrônico me permitiu e coloquei os
5 milhões de dongs vietnamitas no money belt. Fui ficar
milionária justamente em um país comunista.
Brincadeiras à parte, os milhões eram uma mera ilusão,
pois equivaliam a pouco mais de 200 dólares. Cruzei a
fronteira do Camboja com o Vietnã em uma simples
viagem de seis horas de ônibus e entrei não somente em
um outro país, mas em outro mundo.
A sensação de dormir em um país e acordar em outro
era fascinante. Em um piscar de olhos, as pessoas
estavam falando outra língua, a comida era diferente, a
conversão da moeda era penosa e a cidade era ainda
mais visceral com suas milhares de motos que tomavam
conta de ruas e até de calçadas.
Eu estava na cidade de Ho Chi Minh, também
chamada de Saigon, uma alteração no nome que ocorreu
com o fim da guerra. É impossível falar do Vietnã sem
entender um pouco do que aconteceu no país.
A vida inteira eu ouvi sobre a Guerra do Vietnã, que os
vietnamitas chamam de Guerra Americana, uma maneira
de alfinetar o envolvimento dos Estados Unidos na
guerra. O país estava separado em Vietnã do Norte, com
uma forte ideologia comunista liderada por Ho Chi Minh,
e Vietnã do Sul, que era pró capitalista. A guerra foi um
conflito armado entre o Vietnã do Norte, com o apoio dos
Vietcongues, um exército comunista localizado no Vietnã
do Sul, e o Vietnã do Sul, que teve o apoio efetivo dos
Estados Unidos e de alguns outros países. Os Estados
Unidos entraram na guerra porque queriam impedir a
expansão do comunismo naquela região.
O forte armamento militar e o uso de armas químicas
dos Estados Unidos não foram suficientes para combater
os Vietcongues, porque esses usavam táticas de
guerrilha nas selvas e tinham um conhecimento do
território muito superior.
Isso causou a retirada das tropas americanas e
consequentemente o domínio do Norte sobre o Sul,
reunificando o país em um só sob o regime comunista.
Para celebrar a reunificação e o fim da Guerra do Vietnã,
o nome da cidade de Saigon mudou para Ho Chi Minh, o
nome do líder comunista que é visto como herói em
grande parte do país.
Usar Ho Chi Minh ou Saigon pode significar um
posicionamento particular sobre o que aconteceu
durante a guerra, mas como uma estrangeira no país, eu
não sentia que os vietnamitas levavam muito em
consideração como eu a chamava, apesar de achar que
ela tinha uma essência muito mais Saigon capitalista do
que Ho Chi Minh comunista. Eu jamais esperava
encontrar um Vietnã tão desenvolvido, principalmente
por causa da ligação que sempre fiz do país com a guerra
e pelo fato de ser comunista. Mas, para minha surpresa,
a primeira impressão foi totalmente contrária.
Ho Chi Minh é uma grande metrópole, com um ritmo
de vida agitado e uma intensa vida noturna. A
arquitetura tem muita influência da sua colonização
francesa, mas, como uma boa metrópole, conta também
com arranha-céus e com prédios velhos e super fininhos.
Para mim, eles eram muito curiosos. No entanto, a sua
característica mais marcante era o trânsito intenso. Nada
de tuk-tuks, mas sim um mar de motocicletas no qual
seus ocupantes usam máscaras para se proteger da
poluição e, supreendentemente, a maioria usa até
capacete.
Com uma população de aproximadamente 8 milhões
de pessoas, dizem que existe cerca de 4 milhões de
motocicletas e eu não me surpreenderia se esse número
fosse ainda maior. Esse cenário ficou ainda mais
interessante quando comecei a reparar em cada uma
delas. Uma das mais surpreendentes foi um pai, a mãe,
três crianças e o cachorro todos empilhados
tranquilamente em uma moto. Mulheres de saia
sentavam de lado na garupa, sem segurança nenhuma.
O fluxo intenso de motocicletas e de bizarrices é
constante e se mistura a bicicletas, carros e ônibus por
todos os lados. Sem esquecer de mencionar os “cyclos”,
uma bicicleta adaptada com duas rodas na frente e um
assento. Eu morria de pena de ver os vietnamitas
magrelinhos pedalando pela cidade com os turistas
sentadões.
Tudo parece um caos, até você perceber a magia
existente. Esse trânsito sem leis flui de uma forma
natural, como se existisse uma força maior que
controlasse aquilo tudo. Das primeiras vezes, eu esperei
muito tempo, aguardando que, em algum momento, eu
poderia atravessar em segurança.
Aguardei em vão, pois esse momento não existe em
Ho Chi Minh. O que existe é técnica e ela é muito
simples: tenha fé e caminhe tranquilamente. Como
mágica, você vai atravessando e as motocicletas vão
desviando naturalmente. Tudo acontece em constante
movimento. O segredo é não correr e nem parar, só
continuar em frente. Eu listaria “atravessar a rua” como
uma das experiências mais interessantes da cidade.
Eu também gostava de ficar analisando uma famosa
rotatória que havia próximo ao meu hostel. Era como
testemunhar um milagre na terra o fato de nenhum
acidente acontecer. Tudo é permitido, andar na
contramão, na calçada, mudar bruscamente de direção,
não usar capacete, carregar animais, troncos, plantas e o
que mais fosse necessário.
Durante dois dias, conheci parques, museus,
shoppings e mercados locais. Fugi do óbvio e matei a
minha vontade de comer comida japonesa em uma
barraquinha de rua e acabei repetindo, de tão deliciosa
que era. Andava o dia todo, observando, e me
maravilhava com os detalhes daquele novo país.
E não pude deixar de fazer o passeio mais famoso da
cidade, os túneis Cu Chi, um sistema muito complexo de
túneis usados pelos Vietcongues durante a guerra que
serviam não somente de esconderijo, mas
principalmente como rotas de comunicação e transporte
de suprimentos, comida e armas. Havia ali diversas
armadilhas muito bem engenhadas, tanques de guerra e
bombas completavam o passeio muito bem guiado por
um vietnamita sorridente e bem humorado.
Somente com o que eu vi, ficou muito simples de
entender como os Vietcongues derrotaram os
americanos, mas foi quando entrei em um dos
minúsculos túneis que a história ficou ainda mais real e
fiquei perplexa.
Como eles conseguiram viver naqueles túneis? Os
túneis eram muito apertados e tive que praticamente
engatinhar por um ambiente iluminado por poucas luzes
improvisadas. Assim que comecei a me movimentar, um
calor extremo tomou conta daquele buraco de terra.
Em segundos, eu estava suando e me sentindo
agoniada, com medo de me perder ou de que a saída
estivesse muito longe. Ao meu redor, somente terra.
Totalmente não recomendado para claustrofóbicos!
No final, fiquei sabendo que aquela parte do túnel foi
adaptada para os turistas, sendo o real ainda mais
estreito que aquele ali. O passeio teria sido ainda melhor
se não fossem as americanas tirando fotos sensuais nos
tanques de guerra, demonstrando que não faziam ideia
do que estavam fazendo ali.
Mas o meu objetivo era chegar em Hanói, onde eu já
tinha contatado uma instituição para participar de um
programa chamado “Construindo Capacitação para
Jovens Adultos”. Fiquei tentada a ensinar inglês para
crianças em um vilarejo nas montanhas vietnamitas,
mas, quando fiquei sabendo que fazia muito frio lá, eu
acabei desistindo. Além do mais, queria fazer algo
diferente do que eu já tinha feito na Tailândia e no
Camboja e achei que trabalhar com jovens em uma
cidade como Hanói seria uma experiência enriquecedora.
O Vietnã é um país estreito e comprido, tornando a
viagem de Ho Chi Minh (Sul) a Hanói (Norte) um trajeto
de aproximadamente 2 mil quilômetros. Inicialmente,
pensei em fazer de trem até descobrir as maravilhosas
passagens de ônibus chamadas de “Open Bus Tickets”. A
última coisa que importa nessa passagem é a data da
sua viagem, o que já deixa fascinados os mochileiros
guiados pelo instinto. Elas são vendidas com a data em
aberto e se escolhe quantas paradas você fará até o seu
destino final. É um trecho litorâneo com as cidades pré-
estabelecidas, basta escolher quantas delas você quer
conhecer. A solução perfeita para longas viagens de
ônibus, ainda mais para mim que já pretendia viajar à
noite para economizar na hospedagem. Essa facilidade
toda acabava tornando esse trecho o mais popular pelos
mochileiros.
Escolhi a minha passagem com três paradas no
caminho para conhecer as cidades litorâneas de Nha
Trang, Hoi An e Hue. A melhor parte é que todos os
trechos me custaram pouco mais que 30 dólares, depois
de muita pesquisa nas ruas e muita pechincha.
Ainda estava me adaptando com os valores do país e
fazia muita pesquisa online para ficar ciente dos golpes,
que continuavam a existir na mesma frequência. A
mulher que me vendeu a passagem dos sonhos também
afirmou que as poltronas eram camas, mas não me iludi
e me preparei para o pior, lembrando da vez que
praticamente dormi com um cambojano desconhecido
em um desses ônibus.
Daniel e Lucas chegaram em Ho Chi Minh a tempo de
embarcarmos juntos até Hanói. Compraram o mesmo
Open Bus Ticket e embarcamos no primeiro trecho da
nossa viagem de ônibus até Nha Trang.
Eu estava com o meu boleto de passagens em mãos,
pronta para apresentar a primeira página e pular para
dentro do ônibus, sedenta por mais aventuras, quando
um vietnamita que estava parado na porta me pede, em
tom um tanto irritado, que eu tire os meus sapatos e, na
sequência, me entrega uma sacola de plástico.
Ele ficou ainda mais irritado quando percebeu que eu
não tinha entendido a razão da sacola. Juro que pensei
que fosse um daqueles de emergência, para vomitar.
“Seus sapatos na sacola” – Ele disse com pressa, em
um inglês difícil de entender.
Fiz o que ele me pediu. Foi quando reparei que era um
procedimento padrão entrar de pés descalços no ônibus,
o que para mim era uma novidade. Quando olho para
dentro do ônibus, me deparo com algo totalmente fora
do convencional. Três fileiras de beliches individuais, sob
uma luz azul neon no teto e uma música vietnamita de
fundo.
Fui em direção à minha cama/poltrona que, por muita
sorte, era a de cima, do lado da janela. Simplesmente
por esse fato já achava que estava com sorte, mas,
quando subi a pequena escadinha que dava acesso à
minha cama, ficou ainda melhor: havia um travesseiro,
um edredom e uma garrafinha de água.
Cada pessoa no ônibus tinha uma reação diferente: o
cara alto lá na frente estava indignado porque ele não
cabia no espaço. Uma menina pegou o edredom na ponta
dos dedos e arremessou pro lado, alegando não saber a
procedência. Outra questionava se a água era potável.
Quanto a mim, tomei um gole da água, ajeitei o
travesseiro, desdobrei o edredom, me encaixei na cama
e me cobri.
Olhei para o Daniel e o Lucas, que se sentaram
próximos a mim, e os dois estavam tão surpresos quanto
eu e logo começamos os comentários. Rapidamente,
fizemos três novas amizades: Andrea, John e Johana.
Andrea nasceu na Alemanha, mas cresceu no Canadá.
John e Johana eram suecos: bons amigos e viajavam
juntos. E assim se formou o grupo que viajaria unido até
Hanói.
Assim que partimos, o som ambiente ganhou mais um
elemento: a buzina. Foram 12 horas de buzinadas
intensas, fosse na curva, na reta e até mesmo com a
estrada vazia. Ela só cessou quando chegamos em Nha
Trang na manhã seguinte.
Foi divertido estar em um grupo grande de pessoas e
tivemos dificuldades para encontrar um hostel que
tivesse vaga para todo mundo. O lado bom era que não
dormíamos com estranhos, pois fechávamos o quarto
todo. As praias eram bonitas, mas nada de espetacular:
nesse ponto da viagem eu já estava com parâmetros
bem rigorosos.
Aproveitamos as festas, a bagunça no hostel e o clima
descontraído. Mas quando eu falo festas, esqueça a
típica festa brasileira que todo mundo sai arrumado,
bebe, mas não alucina (geralmente), e está sempre de
olho em quem vai beijar na noite. Eram pessoas de todas
as partes do mundo, inclusive de lugares que eu não
sabia que existiam. Havia uma variedade de roupas,
comportamentos e gostos somada a bebida barata em
um país desconhecido.
Essa combinação fica ainda mais perigosa quando
você chega no bar mais conhecido e ele se chama Por
que não? O lado bom disso tudo é que ninguém está nem
aí para você. Ninguém espera que você seja o mais
pegador ou a mais linda. O importante é você ser
divertido e meio porra louca. O lado ruim é que alguns
exageravam na dose. Ninguém ali sabe o seu nome,
quem é sua família ou qual a sua profissão. Tanto faz
qual é a sua opção sexual, o quanto você ganha ou que
marca de roupa você usa. Percebi que você pode usar
esse ambiente para se conhecer ou para se perder.
No meu caso, aproveitei o clima para matar uma
vontade que eu vinha tendo. Toda vez que via um
daqueles “cyclos”, a tal da bicicleta adaptada onde os
vietnamitas carregam os turistas de um lado para o
outro, eu morria de pena deles pelo trabalho pesado.
Tudo bem que alguém vai defender e dizer que é o
trabalho deles ou que é bom para os idosos, não importa,
eu não conseguia deixar de ter pena, principalmente
porque eles são muito pequenos e magros. Então, saindo
do Por que não?, um vietnamita em um cyclo me aborda
oferecendo seu serviço e decidi não o ignorar.
“Você já foi carregado por alguém no seu cyclo?” – Foi
uma das minhas perguntas depois de perguntar nome,
cidade e preparação física para o trabalho.
Ele achou a minha pergunta estranha e, entre muitas
risadas, disse que não.
“Então, hoje vai ser a primeira vez. Vou te levar pra
dar uma volta. Deixa eu sentar aí” – Falei séria, enquanto
se formava uma platéia que gritava palavras de apoio.
O meu recém-amigo entrou no clima e sentou na
cadeirinha, enquanto eu dei umas voltas com ele pela
rua movimentada rindo e me divertindo tanto quanto ele.
Tudo bem que não durou muito tempo: o excesso de
arroz e o pouco exercício físico nesses últimos meses não
me permitiram ir muito longe.
Voltei ao ponto inicial ainda sob gritos e risadas da
platéia. Meu amigo vietnamita desceu e eu o abordei.
“50 dólares pela sua corrida, já que não perguntou o
preço antes” – Ria, em meio à tentativa de parecer séria.
Ele gargalhou muito quando ouviu isso. O vietnamita
sabia do que eu estava falando e tinha se identificado.
Somente no dia seguinte, comecei a questionar a
procedência daquelas bebidas baratas que causaram
uma dor de cabeça forte e fazia todos parecerem zumbis
na praia. Havia muitos restaurantes com placas em russo
e poucas opções de comida local. Mas um carrinho de
comida me chamou atenção e foi ali que eu descobri um
dos sanduíches mais saborosos de toda a minha viagem,
o famoso Banh Mi.
Os franceses deixaram de herança a melhor receita
de cassetinho do mundo. Cassetinho para mim que sou
gaúcha, dependendo da região do Brasil pode ser pão
francês, pão de sal, pãozinho e por aí vai. Falar desse pão
é igual falar bergamota e mandioca, é relativo e já sofri
muito bullying quando criança por conta desses nomes
que mudam de Estado para Estado. Não queria citar, mas
Curitiba foi a grande culpada. A cidade onde estojo é
penal e salsicha é vina deixou marcas.
Mas de volta ao Banh Mi. O segredo dele está no pão
e no preço: custa menos de um dólar. Havia várias
opções de carne, mas eu preferia o baratinho de ovo
mesmo, que era divino! Tinha cenoura, nabo, pepino,
coentro e algum tempero que deixava o simples pão
maravilhoso. Era bom voltar a comer pão depois de tanto
tempo sem.
Pretendíamos ficar somente dois dias e continuar
viagem, mas deixamos para fazer a reserva em cima da
hora e o ônibus estava lotado, nos obrigando a ficar mais
um dia em Nha Trang. Foi quando decidimos nos render a
um “Booze Cruise”, um passeio de barco que custa
menos de 10 dólares e promete te levar para conhecer
várias ilhas, fazer snorkel, almoço em alto mar e o mais
importante, muita diversão e bebidas inclusas.
Novamente, nada de glamour, mas muita diversão.
Os vietnamitas que cuidavam do passeio pareciam
estar fazendo aquilo pela primeira vez, tamanha era a
energia e disposição deles para dançar, rebolar, cantar e
nos animar enquanto navegávamos em um mar
cristalino, vendo paisagens lindas de coqueiros e areia
branca. Mas o ponto alto do passeio acontece quando
eles lançam uma hora de bebida liberada no bar.
Parece comum, se não fosse o fato de que o bar é um
vietnamita cercado de uma estrutura de bóias flutuando
em alto mar com garrafas pet cheias de algum veneno
alcóolico. Todos são convidados a pular do deck no mar e
pegar uma câmara-de-ar para ficar flutuando ao redor do
bar, enquanto o vietnamita enche os copos de cada um
ou, dependendo da sede do cliente, vai servindo direto
na boca mesmo. Um dos passeios mais infames que fiz,
mas confesso que foi um dos mais divertidos.
Passou a ser muito comum reencontrar pessoas que já
tinham passado por mim em algum momento da viagem.
Encontrei alguns meninos que estavam no meu hostel
em Koh Rong, no Camboja, e até outros que esbarrei em
Bangkok. E foi com essas coincidências que passei a
entender o quão popular essa rota era entre os
mochileiros. Tão popular que passei a vê-la como batida.
Encontrei uma menina que comprou uma moto e estava
cortando o país em ziguezague e concluí que aquele sim
era o melhor jeito de conhecer o verdadeiro Vietnã.
Era divertido mochilar com várias pessoas e curtir um
pouco, mas eu não me encaixava mais no estilo
mochileira. Muitas daquelas pessoas estavam viajando
há meses ou anos, fazendo exatamente as mesmas
coisas todos os dias. As conversas eram limitadas às
festas, aos restaurantes baratos e às histórias estúpidas.
Eu sentia falta do meu voluntariado, das pessoas, da
comida, de estar aprendendo algo novo todos os dias e,
principalmente, da sinceridade que eu tinha aprendido a
encontrar nesses lugares. Mais do que tudo, sentia falta
das crianças, da força, da coragem, do amor, da pureza
que emanam. Não me via viajando novamente só por
viajar e não via a hora de chegar em Hanói.
Foram 10 horas de viagem de ônibus para chegar em
Hoi An que prometia ser uma das mais charmosas
cidades vietnamitas com casinhas amarelas, lanternas
coloridas, ruas decoradas e um lindo centro histórico.
Estava animada para conhecer a cidade, mas não
imaginava a surpresa que nos aguardava: um aviso de
que um tufão estava a caminho.
43. O tufão
Nari havia
chegado

O barulho vindo do lado de fora era assustador. Eram 4


horas da manhã e ninguém conseguia dormir. O tufão
Nari havia chegado. Ventos fortes e uma mistura de
medo e curiosidade me levavam a olhar pela janela: via
árvores caindo e telhados de casas simples sendo
destruídos. Pensava nas pessoas que estavam lá dentro,
agora sem proteção. No meio da madrugada, recebemos
um aviso para deixar as nossas malas prontas, caso
precisássemos evacuar o hostel. Dormi abraçada ao meu
mochilão na cama de cima do beliche.
Estávamos no terceiro andar e, mesmo assim, o chão
estava inundado pela água que entrava pelas frestas das
janelas e sacadas com a força do vento. Colocamos
toalhas nas frestas das portas e não sabíamos ao certo o
que fazer. A luz acabava e voltava constantemente.
A noite foi longa. Não havia o que ser feito. Eu me
assustava com o barulho de janelas se estilhaçando e
ficava apreensiva sabendo que a nossa podia ser a
próxima. Estávamos vulneráveis ao poder da natureza, o
medo não era exatamente do que estava acontecendo,
mas sim do que poderia vir a acontecer a qualquer
momento. Desci para a recepção, onde quase um metro
de água invadia o primeiro andar.
E, para a minha surpresa, muitos dos mochileiros se
divertiam, bêbados, com a situação. Alguns saíram de
moto para uma festa, somente para sentir a adrenalina
de enfrentar as forças de um tufão.
Eu achava todos imbecis, pois não faziam ideia da
seriedade do que estava acontecendo, que pessoas
estavam morrendo e outras ficando sem suas casas.
Colocavam suas vidas em risco somente para ter uma
história inusitada para contar. Um dos funcionários do
hostel me garantiu que o pior já tinha passado, então,
resolvi voltar para o quarto. Consegui dormir, apesar de
ter acordado seguidas vezes com o barulho do vento,
que parecia ainda mais forte.
Pela manhã, descobrimos que estávamos presos na
cidade. Árvores bloqueavam as ruas, uma ponte foi
destruída e o hotel estava sem água. Para acalmar os
ânimos, a recepção avisou que poderíamos ficar
hospedados sem pagar a diária até a situação melhorar.
Sentia um aperto no peito pelas pessoas que sofreram
sérios danos e pelos que perderam suas vidas. Por sorte,
o tufão não atingiu a costa com toda a força esperada,
mas passou antes pelas Filipinas, onde fez um estrago
muito maior. Pensava na fragilidade da vida e das nossas
certezas tão incertas, sempre acreditando que haverá
um amanhã, desperdiçando nossa vida com desculpas,
aguardando o momento perfeito que nunca existirá.
No dia seguinte, saiu um ônibus que iria direto para
Hanói, já que Hue havia sido seriamente afetada. Nos
avisaram dos riscos da viagem, pois nem a companhia
de ônibus sabia ao certo a situação das estradas, mas,
mesmo assim, resolvemos arriscar. Foram 24 horas de
ônibus, com inúmeras paradas e árvores no caminho,
vendo pela janela a destruição causada pelo tufão.
Esperar não era problema. Eu só torcia para que a cada
parada não chegasse a notícia de que não
conseguiríamos prosseguir viagem.
Chegamos em Hanói pela manhã, extremamente
cansados. Assim que saímos do ônibus, nos dividimos em
dois táxis que nos levariam até o hostel. Como estava
muito cedo, resolvi esperar no hostel até que alguém do
voluntariado fosse me buscar.
Acompanhamos pelo GPS do celular o caminho que o
motorista fazia, para ter certeza de que não estávamos
dando voltas. O caminho estava certo, mas,
surpreendentemente, o taxímetro dava saltos quânticos.
Uma corrida que deveria dar no máximo 100 mil dongs
acabou em absurdos 300 mil. Mais um golpe vietnamita:
eles conseguem alterar o valor do taxímetro e
geralmente pegam turistas que acabaram de chegar na
cidade. Mas não estávamos dispostos a cair em mais um
golpe, já colecionávamos muitos e, a essa altura da
viagem, não nos permitíamos sermos enganados mais
uma vez.
Chegando na rua do hostel, começou uma discussão
generalizada sobre a tarifa cobrada. Gustavo retirou os
mochilões do porta-malas para garantir que o taxista não
daria no pé com as nossas coisas.
Entregamos 200 mil dongs para o taxista, o que seria
um preço mais do que justo pelas duas corridas, ao invés
dos 600 mil que ele estava cobrando. O taxista
continuava pedindo por mais dinheiro e discutindo em
um inglês difícil de entender.
Foi uma ação imediata e automática: olhamos uns
para os outros e fizemos sinal para correr. Corremos com
os mochilões nas costas uns 200 metros em direção ao
hostel, que ficava em uma ruazinha estreita onde não
entravam carros. Corríamos e ríamos perguntando uns
aos outros se o vietnamita estava atrás de nós, mas
como era de se esperar, ele ficou satisfeito com os 200
mil e não se incomodou em correr atrás de um grupo de
mochileiros.
E foi assim, correndo de um taxista golpista, que a
minha aventura em Hanói começou!!!
44. Eu sabia que ela
estava orgulhosa
de mim

Comparado a tudo o que fiz até agora, esse voluntariado


é um luxo. Já vou começar contando vantagem: há um
banheiro com direito à descarga e um chuveiro que tem
até água quente. É um apartamento pequeno de dois
quartos, onde a sala serve como base do projeto e
também como sala de aula. Em um dos quartos, mora
Duc, um vietnamita simpático e tímido que colabora com
a organização do projeto em troca de morar ali.
É ele quem cozinha, todos os dias, os melhores pratos
vietnamitas para nós. O outro quarto é o dos voluntários,
com duas camas de solteiro. Existem outras
acomodações e, ao todo, éramos em torno de 6
voluntários espalhados por diferentes partes da cidade.
As aulas também aconteciam em lugares distintos.
Son é o idealizador do projeto “Construindo
capacitação para jovens adultos”, um vietnamita de
meia-idade muito engraçado e meio atrapalhado.
Aparecia com pouca frequência no escritório, mas,
quando aparecia, nos divertia com suas histórias.
O meu horário de aula era das 15h às 20h e minha
turma geralmente tinha apenas cinco ou seis alunos,
todos na faixa etária de 20 a 30 anos. Aqui, eu não estou
ensinando crianças carentes, mas jovens que estão na
universidade ou que já se formaram e estão em busca de
um futuro, de um emprego. A história deles é parecida
com a de muitos jovens no Brasil. Apesar de todas as
dificuldades, eles saíram da casa dos pais, que moram
em pequenos vilarejos, e dividem entre eles minúsculos
apartamentos em subúrbios para dar continuidade aos
estudos ou para conseguir um emprego.
A maioria das minhas aulas era em um prédio no
centro da cidade, então, todo dia depois do almoço, eu
aguardava a minha carona, um vietnamita simpático que
não falava nada de inglês mas que me acolhia sempre
com um sorriso. E foi assim que fui apresentada a Hanói,
na garupa da moto, enfrentando um trânsito tão caótico
como o de Ho Chi Minh. Passei a usar máscara por causa
da poluição e meus olhos não paravam quietos durante o
caminho todo, de quase meia hora.
Agora, eu fazia parte daquele labirinto de humanos
motorizados e podia observar tudo de perto. Era como se
em cada moto daquelas houvesse um mundo à parte e
eu ficava fascinada quando olhava pelo retrovisor e via
uma vietnamita de bicicleta, usando o famoso chapéu
cônico. Eu sentia que eram personagens de lindos
quadros que ganharam vida e que agora andavam em
meio à desordem vietnamita.
Com frequência, alguma moto esbarrava na minha
perna, mesmo que eu fizesse toda a força possível para
mantê-la grudada à moto. Ficava imaginando como seria
essa imagem vista de cima: um formigueiro de
motocicletas, ônibus, carros, bicicletas, chapéus cônicos
e pessoas entrelaçadas em meio ao concreto.
Eu gostava do contraste de cores e luzes que a cidade
tinha entre o dia, na minha ida, e a noite, na minha volta
para casa, fazendo parecer dois caminhos diferentes. Eu
adorava dar aulas, mas aquele momento na garupa da
moto se tornou instantaneamente o meu favorito.
Havia sempre alguma coisa a ver com o vento que
batia no meu rosto, me dando a sensação de liberdade, a
certeza de que eu estava em movimento. Pensava em
mim, garotinha, brincando na casa da minha avó,
subindo em alguma árvore, chutando bola com meus
primos ou lendo algum dos meus livros favoritos de
infância. Aquela garotinha era sonhadora e adorava
aventuras, mas nunca imaginou que um dia a sua versão
adulta estaria na garupa de um vietnamita em Hanói
para dar aulas de inglês como voluntária. Eu sabia que
ela estava orgulhosa de mim, realizando sonhos
incalculavelmente maiores do que a imaginação dela
pôde um dia sonhar. Nesses momentos, o meu coração
se expandia, tamanha era a gratidão dentro de mim.
Meus alunos me explicaram que o inglês está se
tornando obrigatório para qualquer jovem que queira
entrar no mercado de trabalho. Um deles ainda criticou,
falando que até nas vagas de emprego nas quais você
jamais precisará falar inglês estão cobrando fluência dos
candidatos.
Existe um esforço nacional para que o Vietnã continue
crescendo economicamente. Assim que o país se
reunificou em 1975 e se tornou comunista, viveu 10 anos
totalmente fechado para o resto do mundo, um período
marcado pela coletivização das terras e campos de
reeducação forçada que levaram o país à falência. Foi
quando optou-se pela liberação da economia, que, desde
então, apresenta um crescimento exponencial. E hoje
combina o autoritarismo político do comunismo com o
liberalismo econômico.
Pelo fato dos alunos serem mais velhos e por já terem
uma boa base da língua inglesa, eu achava muito mais
desafiador ensiná-los, uma vez que eles têm dúvidas
mais difíceis de responder e eu tenho que planejar
cuidadosamente as aulas, organizar tópicos e pensar em
atividades.
Os alunos não são acostumados com atividades que
incentivam um pensamento crítico e muitas vezes fui
surpreendida com informações tendenciosas que
aprendem na escola. Sentia que era um sistema de
educação engessado no qual não foram ensinados a
questionar.
Apesar do acesso à internet ser liberado, o conteúdo
ainda é censurado pelo governo. Quando comentei que
eu tinha uma página no Facebook onde falava das
minhas viagens, uma das alunas me advertiu para não
criticar o governo ou o regime comunista como um todo,
correndo o risco de ser presa por isso.
Existia algo único entre os vietnamitas que eu estava
conhecendo: eles tinham uma essência pura e virtuosa,
independentemente da idade. Eu tinha a impressão de
que mantinham muito da pureza de uma criança, me
surpreendendo com gestos genuínos e sempre
preocupados com o meu bem estar.
Já no segundo dia do voluntariado, assim que me
levantei, um lindo buquê de flores roxas e amarelas em
um papel rosa me aguardava. Fiquei sem reação, pois
não via nenhum motivo para receber flores, mas logo me
explicaram que era em comemoração ao dia da mulher e
que todas as mulheres deveriam ser presenteadas, por
todas serem especiais.
45. Mais uma vez, eu tinha a
clara
sensação de estar aprendendo
muito mais do que ensinando

“Você pode falar em inglês comigo para eu praticar?”.


Essa seria a frase que eu mais ouviria toda vez que
um dos meus alunos me apresentava para alguém. Eles
queriam ter a certeza de que não perderiam a
oportunidade ímpar de praticar inglês com um
estrangeiro. Admirava o desejo deles em aprender, mas
confesso que sempre achava um pouco engraçado,
porque a única maneira de falar comigo seria em inglês,
então eles não precisavam necessariamente me
perguntar. E eram nesses detalhes que eu percebia cada
vez mais a pureza de seus gestos. Aproveitava para
aprender algumas palavras em vietnamita também,
apesar de ter me dedicado muito mais na Tailândia, me
arriscava com algumas palavras básicas para a
conversação.
Todas as terças-feiras os alunos tinham que levar o
seu professor para um passeio pela cidade: o primeiro foi
ao Museu de Etimologia Vietnamita. Os alunos e alguns
amigos deles cuidaram de todos os detalhes, um me
buscou de moto, o outro antecipou a compra dos
ingressos e Dang foi o guia oficial do nosso passeio.
Dang se tornou o meu melhor amigo vietnamita. Ele
era tão generoso, que às vezes eu me questionava se
não estava abusando da boa vontade dele. Ele fazia
questão de me mostrar tudo o que Hanói tinha a oferecer
e me levou até mesmo para conhecer sua casa. Eu
aproveitava a oportunidade para mergulhar na cultura e
estreitar meus laços com o meu mais novo amigo.
Ele me levou de moto para conhecer o seu
apartamento e me surpreendi o quão pequeno era.
Basicamente, um quarto de 3m x 3m, com esteiras no
chão, onde ele e mais duas primas dormiam. Nada de
camas, somente esteiras.
Assim que cheguei, ele e uma de suas primas me
convidaram para sentar no chão, ao redor de um
banquinho, no qual eles colocaram um prato repleto de
frutas cortadas, para que as comêssemos juntos
enquanto conversávamos. Eles carregam algo de muito
especial na maneira como se relacionam e eu ficava
admirada. Eu refletia sobre as minhas relações pessoais
e como poderia melhorá-las, a começar pelo simples ato
de demonstrar o quanto me importo.
Fomos até lá para que eu pudesse pegar a bicicleta,
que Dang prometeu não estar fazendo uso, e que eu
poderia usar para pedalar em torno do grande lago que
havia perto de casa: uma boa opção para começar a
queimar todo o arroz consumido.
Já fui preparada para voltar os 15 quilômetros
pedalando sozinha, à noite, mas, para a minha surpresa,
Dang optou por fazer a minha escolta, o que tornou o
retorno engraçadíssimo. Ele me acompanhou na sua
moto em baixa velocidade durante o caminho todo, me
protegendo de todo aquele trânsito maluco e me
mostrando o caminho.
Às vezes, eu chegava em algumas rotatórias e meu
coração acelerava sem saber para onde ir, em meio a
tantas motocicletas e buzinas constantes. Ria sozinha da
situação que me metia. Dang se divertia mais ainda
quando percebia que eu estava adorando a brincadeira
de ser escoltada pelas ruas de Hanói.
Pedalar os 17 quilômetros ao redor do lago todo dia de
manhã se tornou um ritual para mim. Pela primeira vez
na viagem, precisei tirar do fundo da mala o único
moletom velho que trazia comigo. A temperatura caía um
pouco pela manhã e ao anoitecer, tornando o clima
muito agradável, principalmente depois de passar cinco
meses suando debaixo de sol e calor extremo. Eu
colocava a mesma playlist de sempre tocando no meu
telefone e estava pronta para uma aventura diferente
todo dia. Mudava a direção que tomava, andava em
ziguezague pelas ruas, parava para observar as pessoas,
ou para ler um livro sentada nos banquinhos de frente
para o lago.
A qualidade do ar não era das melhores, mas eu
gostava de simplesmente deixar a minha mente vagar de
acordo com os estímulos das novas paisagens. Prestava
atenção em cada palavra das letras das músicas e
gostava quando o Foo Fighters sussurrava no meu
ouvido, como alguém que questiona as minhas decisões
daqui para frente: “Were you born to resist or be abused?
Is someone getting the best of you?”[3]
Quando eu não estava refletindo sobre a vida
andando de bicicleta, eu estava andando de moto na
garupa de Dang, que me levava a todos os lugares que
ele achava que uma estrangeira deveria conhecer.
Algumas vezes, eu gostava de inverter e colocar Dang na
minha garupa, me arriscando a pilotar pela cidade. Os
meus melhores passeios em Hanói foram com o meu
amigo vietnamita.
Às vezes, ganhávamos a companhia de Emílio, o
voluntário que estava dividindo o quarto comigo, um
australiano muito educado e gentil. Eu gostava quando
ele ia com a gente para os lugares com muitos locais. Ele
tinha uma barba grande e o cabelo meio bagunçado, o
que fazia com que as vietnamitas ficassem loucas com
ele. A cada cinco minutos, precisávamos parar para ele
atender os pedidos de fotos com as meninas. Andar com
Emílio era como andar com um rockstar desejado.
Conheci muitos amigos de Dang e fui à casa de
muitos deles, sempre sendo muito bem recebida com um
prato de frutas frescas e com o desejo incansável de eles
falarem inglês comigo, me apresentando o melhor de
Hanói. Depois de um desses passeios, eles decidiram que
me levariam para jantar em algum restaurante local e eu
fiquei superanimada com a ideia.
“Precisamos decidir onde te levar. O que você gosta
de comer?”. – Uma das garotas me perguntou,
preocupada em me agradar.
“Não se preocupa comigo, eu como qualquer coisa.”. –
Eu respondi educadamente, como minha mãe me
ensinou.
À minha resposta se seguiu uma comemoração
animada. Continuei sorrindo, feliz que eles gostaram do
que eu havia dito.
“Que ótimo. Então vamos te levar para comer
cachorro, você vai gostar”. – Falou a garota,
animadíssima.
“Não, desculpa, mas cachorro eu não como. Eu não
sei se vocês sabem, mas no país de onde eu venho os
cachorros são bichinhos de estimação, amamos eles e
eles são parte da família. Então é muito estranho para
nós a ideia de comer cachorro.”. – Eu tentei
contextualizar a minha explicação que deveria ser meio
óbvia, mas aparentemente não era.
Todos eles riram, como se eu tivesse confundido
alguma informação. Fiquei aguardando o término das
risadas e uma explicação.
“Le, você não está entendendo. Aqui no Vietnã nós
também temos cachorros como animais de estimação e
também os amamos. Mas os cachorros que comemos são
outros cachorros, não comemos o nosso de estimação.
São cachorros de fazendas, cachorros estranhos que não
conhecemos” – Eles me explicaram com tanta certeza do
que estavam falando que eu desisti de me prolongar
muito.
“Mesmo assim, eu prefiro não comer cachorro. Vocês
se importam?”. – E, por fim, decidimos comer pato.
Eles me levaram em lugares únicos, onde geralmente
eu era a única estrangeira. Um dos lugares que mais me
surpreendeu foi a cafeteria onde se vende o café com
gemada mais original de Hanói, com quase 100 anos de
existência. Andei com Dang e seus amigos pela rua
principal em uma área turística.
Ali, eles me indicaram para entrar em uma lojinha que
vende malas e mochilas falsificadas. Como nem sempre
entendia o que eles me diziam, os segui loja adentro
achando que queriam comprar alguma coisa. Mas eles
não pararam para ver nenhum produto, continuaram
andando até um corredor estreito e escuro.
Dang ria da minha cara de quem não estava
entendendo nada. Subimos uma escada de madeira
caindo aos pedaços e, surpreendentemente, no final da
escada havia uma cafeteria.
Mas não era uma cafeteria qualquer: tocava música
vietnamita dos anos 80 e 90. Era a trilha sonora de
estudantes e artistas locais que conversavam, fumavam,
liam ou mexiam no celular. Os bancos eram pequenos e
muito próximos uns dos outros, havendo uma pequena
sacada com vista para o famoso lago Hoan Kiem.
A cafeteria parecia um reduto de vietnamitas
descolados e eu era a única estrangeira naquele
esconderijo, tomando café com gemada em meio a eles.
O Vietnã é o segundo maior produtor de café do mundo,
perdendo somente para o Brasil. Os vietnamitas têm
muito orgulho do seu café e agora podia dizer que já
havia experimentado as duas formas mais vietnamitas
de tomá-lo: com gemada e com leite condensado. A
versão dele gelado com leite condensado era uma das
minhas favoritas.
Hanói me presenteava com uma sucessão de pratos
deliciosos, desde coisas que eu provava nas ruas que eu
nem sequer sabia o nome, até os tradicionais Pho e Bun
Cha, sendo o segundo um dos meus favoritos. Pho é o
prato nacional mais conhecido e amado. Mas por ser uma
sopa, eu acabava comendo com pouca frequência.
Os meus alunos me explicaram que o segredo do Pho
está no caldo que demora muitas horas para ser
preparado e é obtido pelo cozimento de ossos bovinos e
de diversas especiarias. Para complementar, macarrão
de arroz, alguma opção de carne ou a versão vegetariana
e guarnições com as mais diversas folhas verdes e broto
de feijão.
O que faz do Bun Cha o meu queridinho é a junção de
cada ingrediente em uma mordida repleta de sabores.
Tudo chega à mesa em pratos separados: carne de porco,
macarrão de arroz e uma montanha de diversas folhas
verdes e ervas, que não me arriscaria nomeá-las devido
à diversidade. E, para complementar, um molhinho
especial, pimenta e alho. O segredo é pegar um pedaço
de cada ingrediente com o hashi e mergulhar no molho
antes de devorar.
Para tornar o roteiro culinário ainda mais interessante,
tínhamos aulas de culinária com nossos alunos no
apartamento. Sinceramente, mais comíamos do que
aprendíamos alguma coisa, mas um dos pratos que me
diverti montando junto com Emílio foram os rolinhos de
primavera frescos.
Mais uma vez, eu tinha a clara sensação de estar
aprendendo muito mais do que ensinando. Estar ali, em
meio a alunos mais velhos e em uma cidade grande, era
uma experiência totalmente diferente das outras que eu
havia vivido na Tailândia e no Camboja e ela me
possibilitou conhecer um mundo muito diferente: aquele
dos jovens que vivem em um dos poucos países sob
regime comunista no mundo e que é fortemente
marcado pela história da guerra.
Dos jovens que abriram a porta das suas casas para
me apresentar as suas vidas. Ser apresentada a um país
por quem vive nele é uma experiência totalmente
diferente, uma outra perspectiva que eu jamais teria se
não fosse pelo olhar que eles me ensinaram.
Eles eram tão genuínos em seus gestos que, quando
me ofereciam as frutas cortadas e sentávamos no chão
para conversar e comer, eu pensava em todas as vezes
que deixara de receber alguém por não ter o que
oferecer, ou pela casa não estar em ordem. Eu não
trocava nenhum banquete em uma grande casa por
aquele gesto genuíno e era muito grata por me
receberem e por me oferecerem o que tinham de melhor.
Em troca de tudo o que os meus alunos faziam por
mim, eu dividia experiências, falava sobre futebol, sobre
países onde já estive, explicava milhares de vezes
porque não sou casada e até tentava relatar como era
um beijo, um dos tópicos favoritos de Dang que, apesar
de ter quase a minha idade, me confidenciou nunca ter
beijado uma menina. Eu servia como fonte de
informações de muitas coisas que eles tinham
curiosidade em conhecer.
Às vezes, sentia vontade de levá-los em um avião
junto comigo para apresentá-los a esse mundo tão
desconhecido. Mas, infelizmente, isso não era possível,
então eu fazia o que estava ao meu alcance, dando a
ferramenta da língua inglesa para que, um dia, eles
tenham a oportunidade de fazê-lo por conta própria.
46. Toque
de recolher na
capital comunista

Quanto mais eu conhecia Hanói, maior era a sensação de


viver em uma Ásia antiga que me encantava com os seus
pequenos detalhes. Eu adorava quando saía de casa e
me deparava com as bicicletas que vendem flores,
repletas de cores e perfumes. Outra entre as minhas
cenas favoritas, era aquela de ver os barbeiros que
atendem nas calçadas das ruas, com um espelho
pendurado no muro, uma cadeira para o cliente e muito
cabelo no chão. Quando o barbeiro era bom, se formava
uma fila de motos em cima da calçada que aguardavam
a sua vez.
Outro aspecto único da paisagem da cidade eram as
vendedoras locais, que, vestindo o tradicional chapéu
cônico, carregam as suas mercadorias em duas cestas
equilibradas nas pontas de um pedaço de bambu
apoiada em um dos ombros. Um dia, parei para comprar
umas bananas com uma delas e pedi se podia tirar uma
foto segurando o apetrecho. Mal pude acreditar como
elas o carregam, de tão pesado que era!
Aos poucos, fui conhecendo os outros voluntários e
fomos nos unindo para fazer passeios e tomar cerveja, o
que era claramente a atividade favorita de todos os
voluntários pelo Sudeste Asiático. Conhecer pessoas de
todo o mundo era fantástico! Aprendi que o inglês mais
difícil de entender era o escocês; que entre britânicos,
irlandeses e australianos, é difícil dizer qual deles bebem
mais; e que o inglês sul-africano tem características
singulares.
Éramos pessoas com origens e costumes totalmente
diferentes, mas tínhamos como desejo comum
voluntariar e, de alguma forma, esse desejo nos
conectava. Estávamos ali para criarmos as melhores
lembranças de uma viagem que era para todos a
realização de um sonho e uma superação.
A maioria dos voluntários eram casais, com exceção
de mim e Oliver. Emílio foi embora e Oliver chegou para
substituí-lo: o australiano mais educado foi substituído
pelo inglês mais maluco. Ele tinha sido soldado no
Afeganistão, estava viajando o mundo há anos e tinha o
sonho de ser vaqueiro na Mongólia.
Ainda assim, o mais incrível foi descobrir que ele tinha
sido voluntário no projeto do Jason, lá na Tailândia, pouco
depois que eu fui embora. Dividimos o quarto, damos
aula na mesma escola e nos tornamos bons amigos. Os
casais de voluntários eram muito parceiros e a diversão
era garantida quando todos se juntavam para algum
passeio. Laura e Alex eram da Escócia, Laura e Willie,
americanos. Viajamos para vilarejos próximos, fizemos
aula de cerâmica e visitamos museus e bares.
O lugar que mais gostávamos era uma esquina muito
movimentada, cheia de botecos no estilo pé-sujo, com
banquinhos de plástico invadindo parte da rua e com
estrangeiros com sede aglomerados. Era ali que diziam
ser vendida a cerveja mais barata do mundo: Bia Hoi, a
20 centavos de dólar. Ela só é encontrada em botequins
duvidosos e tem uma característica muito peculiar: não
contém aditivos ou conservantes e deve ser consumida
no mesmo dia em que é produzida.
Por esse motivo, não existe estoque da cerveja, que
não vem em lata e nem em garrafa, mas, sim, servida
diretamente das mais variadas fontes, desde barris de
metais a garrafas de plástico, direto nos copos de vidro
dos seus consumidores.
Ambientalmente falando, era uma ideia genial.
Higienicamente falando, era um processo discutível. Os
botecos fazem uma previsão para comprar o suficiente
que venderão no dia, recebendo diariamente um estoque
fresquinho. É uma cerveja com baixo teor alcóolico, em
torno de 3%, sendo um pouco aguada, mas é refrescante
e vale à pena tanto pela cerveja como pela experiência
em si. O ambiente acaba se tornando uma boa maneira
de fazer amigos ou, pelo menos, companheiros de bar.
Dizem que quanto mais cedo você beber Bia Hoi, mais
saborosa ela será, e a outra razão para começar cedo é
que em Hanói existe toque de recolher, o momento de
maior adrenalina da noite. À meia-noite, a polícia faz
uma ronda em carros e caminhões e forçam todos os
bares a fechar.
A maioria fecha muito antes do horário, mas os
botecos que frequentamos garantiam os dólares dos
turistas até o último momento. Na primeira noite em que
bebemos nesses bares, perto das 23 horas, os
atendentes vietnamitas começaram a fechar todas as
contas dos seus clientes e a recolher todas as cadeiras.
Contudo, a venda de Bia Hoi continuava no dinheiro à
vista e o consumo dela, de pé, próximo ao boteco.
Quando a polícia chegava, era uma correria e a
brincadeira geralmente acabava ali. Depois da meia-
noite, Hanói ficava morta, o oposto da badalada Ho Chi
Minh. Nas ruas, somente mochileiros perambulavam,
tentando encontrar alguns dos bares que aceitam
turistas escondidos. Uma vez, conseguimos ficar até uma
hora da manhã escondidos, no segundo andar de um bar,
quando a polícia nos descobriu.
Mas uma noite se tornou lendária. Eu e os dois casais
de voluntários vagávamos pelas ruas de Hanói, na
esperança de achar um lugar aberto, e decidimos ir até
um hostel famoso, onde cogitamos que poderia ter
algum agito. Bar fechado, ninguém nas ruas. Mas um
vietnamita que estava por ali nos aconselhou que havia
um bar que ficava aberto 24 horas. Ficamos interessados
e escutamos atentos as suas instruções.
“Virem à direita nessa rua e vocês vão chegar a uma
grande rodovia. Tenham cuidado ao atravessar porque
não tem passarela e vocês precisam pular uma grade.
Chegando do outro lado, continuem na pequena rua e
depois virem à esquerda. Vai parecer que estarão
perdidos. Continuem até o fim e vocês verão pessoas.
Sempre há pessoas lá”. – Ele explicou detalhadamente,
com tanta boa vontade, que desconfiamos.
Agradecemos e continuamos caminhando. Quando
tomamos uma distância segura do vietnamita, nos
questionamos se deveríamos arriscar. O mais sensato
seria pegar um táxi, mas queríamos um pouco de
adrenalina na noite vietnamita.
Decidimos ir pelo menos até uma parte do caminho.
Atravessar a rodovia pareceu ser a parte mais insana do
plano, até chegarmos nas ruelas vietnamitas que à noite
eram amedrontadoras. Cogitamos desistir, assustados
com as casas velhas que, vez ou outra, revelavam uma
pessoa suspeita parada no escuro fumando um cigarro.
Em um ponto, a rua ficou extremamente escura e foi
uma das poucas vezes que senti medo nessa viagem.
Chegamos à conclusão que tínhamos entrado na rua
errada, andamos sem direção e acabamos em um beco
escuro. Parecia uma favela, com casas velhas e mal-
acabadas. Vez ou outra, um local nos observava da
janela.
Não sei exatamente qual caminho tomamos, mas
tentamos retornar para a rodovia quando, de repente,
vimos um fluxo de mochileiros vindo por outra rua
distante e corremos para alcançá-los. Eles também não
sabiam para onde estavam indo e nos falaram que
estavam seguindo as orientações de um vietnamita que
encontraram na rua. Aos poucos, mais pessoas foram
aparecendo e finalmente chegamos: um barracão com
cara de abandonado na beira do rio.
O que nos indicava que aquele era o local certo eram
os vietnamitas vendendo espetinho em frente e a música
que vinha de dentro. Decadente definiria bem aquele
lugar. Tão decadente que o momento se tornou inusitado
e nos divertimos a noite toda. Uma experiência única dos
voluntários quebrando o toque de recolher na capital
comunista.
47. Meu coração
me pedia
para ficar

Faltavam menos de 10 dias para o meu visto vencer e eu


ainda queria conhecer Sapa e Halong Bay, dois pontos
turísticos imperdíveis. Chegava a hora de dar
continuidade à minha viagem. Planejei três dias em Sapa
e três em Halong Bay para, depois, seguir em direção à
fronteira do Vietnã com o Laos, o que não seria uma
travessia de fronteira fácil. Eu mantinha contato com
outros viajantes que conheci no caminho e eles me
atualizavam conforme atravessavam.
Hong não era minha aluna, mas ela tinha aulas no
apartamento onde eu morava e acabei ficando muito
próxima dela. Uma vietnamita da minha idade que falava
inglês muito bem, era inteligente e muito amorosa. Ela
se ofereceu para me levar a algumas feiras locais, a fim
de me ajudar a comprar roupas de inverno a um preço
justo. Eu precisava me preparar para o frio das
montanhas vietnamitas, já que Sapa fica ao norte, quase
na fronteira do Vietnã com a China, e está a 1.500m de
altitude. Durante o inverno, de dezembro a fevereiro,
chega a nevar em algumas regiões. Estávamos no
começo de novembro e as temperaturas prometiam ser
baixas.
Comprei uma lã muito quente, um cachecol, um gorro
e luvas. Hong me emprestou uma mochila pequena, na
qual coloquei as poucas coisas de que precisaria para os
próximos dias de passeio. Planejava ir para Sapa,
retornar a Hanói, para refazer a mala com itens de verão,
e ir direto para Halong Bay, que ficava no litoral. Meu
aniversário se aproximava e meus pais me deram o
melhor presente de todos os tempos: um passeio de
barco de três dias em Halong Bay, a minha grande
comemoração. Deixei meu mochilão no apartamento,
peguei a minha mochilinha e parti mais uma vez.
Comprei a passagem de trem mais barata disponível,
mesmo com Dang me falando que eu viajaria junto com
as galinhas e as mercadorias. Assim que escureceu,
peguei um ônibus até a estação. Eu ainda não tinha me
habituado com esse costume vietnamita do silêncio ser
altamente respeitado no ônibus. Não dava para falar ao
telefone e muito menos falar alto ou rir: a repressão
vinha imediatamente, por meio de olhares fulminantes
ou uma bronca do cobrador, que ameaçava alguma coisa
muito ruim em vietnamita. O cobrador andava pelo
ônibus, abordando cada pessoa e pedindo pela
passagem ou recebendo dinheiro. E, assim como a minha
mãe manda em casa, o cobrador era autoridade máxima
dentro de um ônibus vietnamita.
Cheguei à estação e, enquanto todos os turistas iam
para o vagão com camas, eu segui junto com os locais
para o vagão com poltronas simples, definidas na minha
passagem como categoria “assento duro”. Eu nem sabia
dizer se a minha opinião ainda era válida. Depois de
cinco meses chacoalhando em transporte público de um
país para outro no Sudeste Asiático, eu achei o trem bem
confortável e as poltronas não reclinavam muito, mas
eram melhores do que a classe econômica de um avião.
Foram 10 horas de viagem muito bem dormidas. Só
acordei quando o dia amanheceu e, então, pude
contemplar a linda paisagem desconhecida. Estava em
Lao Cai, onde desembarcaria, e, depois, pegaria um
ônibus montanha acima até chegar em Sapa. Eram 40
km feitos em uma hora por mais um motorista
vietnamita descontrolado, com sua companheira
inseparável, a buzina. Só a paisagem que eu via pela
janela durante o percurso já valia a pena a minha ida até
lá.
Minha paixão por Sapa foi instantânea. E isso seria
previsível se estivéssemos falando de uma pessoa que
ama as montanhas, mas a minha grande paixão sempre
foi o litoral. Confesso que estava muito mais empolgada
em ir para Halong Bay, mas Sapa era encantadora e
charmosa, com suas ruas estreitas e prédios baixos, com
um constante fluxo de pessoas subindo e descendo suas
ladeiras, que sempre guardam um visual deslumbrante
das montanhas e dos arrozais.
As ruas são tomadas pelas mulheres das diversas
minorias étnicas que vivem nos vilarejos ao redor da
cidade. Elas usam roupas típicas coloridas e passam o
dia todo caminhando pelas ruas, vendendo o artesanato
que produzem.
Minoria étnica é um grupo que tem uma nacionalidade
ou cultura diferente da maioria da população. No Brasil,
podemos citar os índios como um exemplo claro. Em
Sapa, existem diversos desses grupos, sendo o H’Mong,
Red Dao e Tay os mais conhecidos: eles se diferenciam
pelas roupas que vestem, costumes, língua e até pelo
método de cultivo da terra. Essas mulheres podem ser
bem insistentes e simpáticas, tentando chamar sua
atenção para vender algum dos seus produtos. Tem que
ter jogo de cintura para saber interagir com elas sem ter
que sempre comprar algo.
Sapa é famosa por suas caminhadas e trilhas para
conhecer os pequenos vilarejos, onde as tribos moram.
Muitas agências de turismo oferecem diversas opções de
pacotes e é comum ver grupos de turistas sendo guiados
por uma das mulheres locais vestindo roupas coloridas.
Me encontrei com Andrea assim que cheguei. A
canadense fazia parte do grupo que atravessou o Vietnã
de ônibus comigo. É difícil descrever essa sensação de
encontrar pessoas em lugares diferentes a todo o
momento e cada vez mais eu sentia que o mundo era a
minha casa.
Andrea estava com uma amiga e decidimos alugar
duas motocas para desbravarmos os vilarejos mais
distantes. Tivemos sorte de pegar dias ensolarados com
o céu limpo, já que um dia com névoa ou de chuva pode
atrapalhar o passeio para conhecer as belezas do lugar.
Novembro é época da colheita e me encantava ver os
locais trabalhando nos lindos terraços de plantações de
arroz, uma sequência de degraus verdes no terreno
íngreme das montanhas. Uma paisagem tão rica em
todos os seus detalhes que parecia ser uma pintura,
tamanha a perfeição. Andamos muitos quilômetros de
moto nas estradinhas de terra estreitas. Dirigimos
devagar, tanto por ser um caminho perigoso, como pelos
obstáculos que a estrada nos revelava a todo momento.
Vaca, porco, galinha e bode frequentemente decidiam
descansar no meio do caminho. Algumas motos com
locais carregavam longos troncos de árvores
atravessados na garupa da moto, bloqueando metade da
pista. Todos eram detalhes únicos que faziam do nosso
passeio ainda mais especial. Eu gostava dos contrastes
das roupas das mulheres quando mudávamos de um
vilarejo para outro e tirei algumas das melhores fotos da
minha viagem durante esse passeio. Crianças fofas
paradas na beira da estrada acenavam sorridentes para
nós.
Para entrar em alguns vilarejos, era necessário pagar
entrada. Demos meia volta e dirigimos ainda mais longe,
simplesmente para encontrar lugares remotos.
Encontramos muitos viajantes que alugaram motos para
atravessar o país. Eu estava fascinada com essa ideia e
ficava ainda mais quando ouvia as histórias incríveis
dessa jornada fantástica sobre duas rodas.
No dia seguinte, resolvi sair para uma caminhada
sozinha para conhecer um lindo lago. Eu me senti na
Suíça: eu e minhas sensações de lugares que nem
conheço. Havia casas lindas em torno do lago
desenhadas pelas montanhas ao fundo. Enquanto
caminhava em torno do lago, me deparei com uma
dessas mulheres locais e estranhei por ela estar sozinha
e longe do centrinho. Aproveitei a oportunidade para
conversar. Ela se apresentou como Mamma Lilly e disse
que era assim que os turistas a chamavam.
Deixei claro que não compraria nada, mas, mesmo
assim, ela continuou o papo. Ela me disse que mora com
seus cinco netinhos em um vilarejo chamado Hau Thao.
Estava curiosa pela oportunidade de saber mais sobre a
vida dela e continuei fazendo perguntas. Ela disse que,
para chegar em sua casa, ela andava três horas pelas
trilhas, mas que pegava uma moto quando as vendas
eram boas.
Enquanto conversávamos, uma das suas netinhas
chegou, uma garotinha linda de nove anos, com traços
asiáticos misturados aos indígenas. Puxei assunto, mas
percebi que ela não falava inglês. Reparei que Mamma
Lilly tinha um caderno na bolsa e perguntei o que era. Ela
me mostrou com orgulho o caderninho que continha
recados de pessoas do mundo inteiro agradecendo pelo
passeio até a casa dela.
“Eu também quero ir na sua casa. Você está livre para
fazermos a trilha amanhã?”. – Eu não perderia essa
oportunidade.
“Sim, claro. Amanhã eu levo você. Qual o seu nome?
Vou anotar o seu número.”. – Ela falou isso enquanto
pegava um celular tijolinho, demonstrando pouca
habilidade com o aparelho.
“Pode anotar. Meu nome é Letícia.”. – Falei
naturalmente, mas Mamma Lilly me olhava como se
tivesse alguma coisa de errado.
“Você não tem um apelido?”. – Mamma Lily não
conseguia pronunciar meu nome.
“Tenho. Pode me chamar de Lele.”. – Quanto mais
informal, melhor.
“Perfeito. Vou te chamar de Lucy. Você é Lucy pra
Mamma Lilly, tudo bem?”.
É claro que não tinha problema. Justo eu, que sou a
pior pessoa com nomes, seria a última a me importar.
Ficou combinado que nos encontraríamos no outro dia.
No dia seguinte, pontualmente às 8 horas da manhã,
eu estava aguardando Mamma Lilly na igreja. Comigo
estava Richard, um irlandês que conheci na noite
anterior e que adorou a ideia de fazer a trilha sem ser
com uma das agências. Mamma Lilly chegou um pouco
depois, com a cestinha rígida de palha trançada em suas
costas cheia de compras do mercadinho local. Ela disse
que eram os ingredientes para o nosso almoço. Enquanto
eu me preocupei com o frango fora da geladeira durante
a trilha, Richard foi gentil e perguntou se ela precisava
de ajuda.
Foram três horas de paisagens arrebatadoras,
encontrando casas isoladas no meio da montanha e
algumas pessoas de outras minorias que sorriam ao nos
ver. A trilha não era das mais difíceis e foi um passeio
agradável enquanto Mamma Lilly nos explicava as
diferenças entre as tribos, os vilarejos e os costumes.
Descobri que ela perdeu seu marido e suas duas filhas ao
longo da vida, sobrando-lhe um único filho, que lhe deu 4
netas e um netinho recém-nascido.
Assim que chegamos em sua casa, fiquei admirada
com a sua localização: isolada do mundo em um paraíso
perdido. As crianças brincavam pelas plantações de arroz
quando nos viram chegar e vieram correndo nos receber
com ternura. Foi muito fácil perceber que elas eram a
razão de viver de Mamma Lilly, pois, mesmo com tantas
perdas trágicas em sua vida, encontrava em suas
netinhas a razão para sorrir, trabalhar e acreditar.
Depois de três horas de trilha, eu e Richard estávamos
famintos e Mamma Lilly foi direto preparar o nosso
almoço. Foi um banquete, repleto de comida fresca que
ela mesma planta em sua horta. Um dos meus favoritos
foi o tofu com tomate, extremamente saboroso.
Comemos dentro da sua casa simples feita de madeira,
com chão de terra batido, uma mesa de madeira
pequena com duas cadeiras de plástico, para mim e
Richard.
Na cozinha, tudo foi preparado em um fogareiro de
ferro no próprio chão da cozinha, com o fogo aceso com
pedaços de madeira. A pia da cozinha era oposta ao
fogo, no chão também. Apesar de ser simples, era tudo
limpo e organizado. O banheiro era uma casinha de
madeira que ficava do lado de fora da casa e não tinha
chuveiro.
Depois do almoço, Mamma Lilly nos serviu um
chazinho. Reparei que todas as pequenas xícaras de
porcelana branca estavam com a alça quebrada, com a
exceção de uma delas, que foi escolhida para ser servida
a mim. As meninas ajudavam Mamma Lilly nas tarefas de
casa, retirando os pratos e arrumando a cozinha.
Reparei também em um mural na parede com as fotos
de muitos dos turistas que passaram por ali. Todos
estavam sorrindo ao lado de Mamma Lilly. Ela estava
sempre vestindo as roupas típicas da sua tribo H’Mong
com muitos acessórios: usava muitas das pulseiras de
prata que fazia, galochas roxas, roupas coloridas, brincos
de prata bonitos e uma bolsa artesanal atravessada em
seu peito.
Vista do lado de fora, a casa era extremamente
simples e isolada. O visual das montanhas e dos arrozais
era cinematográfico. Eu e Richard passamos o resto da
tarde brincando com as crianças: elas se enfiavam em
sacos plásticos e rolavam ladeira abaixo. Os pedaços de
madeira se tornavam brinquedos improvisados.
Elas falavam muito pouco inglês, mas, a todo
momento, repetiam o que eu falava. A mais velha, que
eu já tinha conhecido no dia anterior, era Sí, de 9 anos.
Depois vinha Zô, com 8, Gá, com 7, Tí, com 3 anos, e o
bebezinho, de alguns meses. As meninas revezavam o
irmão pequeno amarrado a panos coloridos em suas
costas. Elas brincavam e pulavam com o irmãozinho
balançando e ele parecia já estar acostumado. Apesar de
serem muito brincalhonas, elas tinham muita
responsabilidade e cuidavam do irmão pequeno e delas
mesmas com muita cautela. Antes de irmos embora, elas
fizeram buquês com plantas e flores e nos entregaram.
Eu estava apaixonada pelas crianças, pelo lugar, pela
oportunidade de conhecer mais de perto uma minoria
étnica e pela forma de amor que eu havia encontrado ali.
“Mamma Lilly, por que as crianças não falam inglês?
Elas não aprendem na escola?”. – Eu sabia da
importância do inglês em uma área turística como Sapa.
“Não, elas vão aprender igual a mim. Falando com os
turistas e estudando nos livros. Eu aprendi sozinha, por
isso não falo muito bem. Seria muito bom se tivessem
aulas, mas não existem professores de inglês nessa
região isolada” – Ela falou desanimada.
“Mamma Lilly, e se eu viesse passar uma semana aqui
na sua casa para ensinar as crianças? Posso fazer um
caderno de inglês para elas continuarem estudando
depois. O que você acha?”. – Eu perguntei meio sem
jeito, sem saber como ela reagiria.
“Você? Lucy? Você vai ensinar inglês para meus
bebês? Você é igual uma filha para mim!! Seria muito
bom. Você vai morar comigo? Mora aqui e ensina.
Mamma Lilly muito feliz com isso” – falou em palavras
emocionadas. Ela carinhosamente chamava suas netas
de bebês ou de macaquinhas, que no dialeto deles era
algo parecido com “Milá”. Ela as chamava assim por
nunca pararem quietas.
“Sim. Eu te ajudo com as despesas e fico aqui. Mas eu
preciso refazer meus planos de viagem. Vou voltar para
Hanói e te ligo quando estiver pronta para vir. O que
você acha?”. – O inglês de Mamma Lilly era básico para
uma conversação, então eu sabia que não adiantava dar
muitos detalhes.
“Ok, Lucy! Você me liga e eu te encontro na igreja.
Você igual uma filha para mim. Mamma Lilly muito feliz.
Você bem-vinda em minha casa” – Ela repetia com tanta
emoção que meus olhos se encheram de lágrimas em
ver que ela recebeu com tanta euforia a minha sugestão.
As três horas de trilha para chegar até ali tinham sido
suficientes para o dia. Voltaríamos de carona na moto de
alguns vizinhos que faziam esse serviço. Depois de uma
trilha de 20 minutos, chegamos na beira da estrada,
onde duas motos nos aguardavam. Richard estava tão
encantado pelo nosso passeio quanto eu.
Voltando de carona na moto, eu me sentia em êxtase.
Laos ficaria para uma próxima viagem, me dando mais
uma razão para um dia retornar e explorar mais as
riquezas asiáticas. Meu coração me pedia para ficar e eu
estava orgulhosa de mim por deixar que ele falasse mais
alto. Me sentia conectada comigo mesma mais do que
nunca, sentindo que estava fazendo as pazes com o meu
coração e me desculpando por todas as vezes que eu o
havia reprimido.
Eu sentia uma força vinda de dentro de mim que
gritava para eu acreditar. Eu não sentia a necessidade de
que as minhas decisões fossem aceitas ou bem vistas.
Agora era comigo mesma, trilhando o caminho que eu
desejasse. Pensava também em tudo o que eu teria que
replanejar. O principal era aplicar para uma renovação do
meu visto assim que chegasse em Hanói, já que em Sapa
não havia ninguém que fizesse esse serviço.
Entre um pensamento e outro, eu me lembrava da
alegria de Mamma Lilly e da mágica que havia
encontrado naquelas crianças. Como eu imaginaria que
essa viagem me daria essa linda oportunidade? Eu ficaria
isolada em uma casinha de madeira com chão de terra
batida no alto das montanhas vietnamitas, vivendo e
compartilhando o estilo de vida com uma família de uma
minoria étnica, dormiria em um colchão no chão, não
teria acesso à internet ou telefone. Me isolaria de um
mundo para mergulhar em outro tão distante,
aumentando ainda mais o meu desejo de me deixar
surpreender.
48. A vida é feita
de lugares
e pessoas

Durante a viagem de volta no trem, comecei a sentir,


repentinamente, muita ardência no meu olho. Assim que
cheguei em Hanói, a dor e o incômodo aumentaram.
Entrei em um banheiro e me assustei quando vi a
imagem refletida no espelho: meu olho estava vermelho
e inchado. Substituí as lentes de contato pelos óculos, o
que aliviou um pouco a dor. Mantinha a mão sobre o
olho, fechado, para aliviar a irritação que sentia. Tudo
parecia acontecer comigo nessa viagem. Mas justo na
véspera do meu aniversário?
Peguei um ônibus direto para o apartamento dos
voluntários e mandei uma mensagem para Hong,
pedindo para ela me encontrar lá. Eu evitava ao máximo
atrapalhar as outras pessoas, mas a agonia aumentava
junto com a dor e sabia que precisava de ajuda para ir a
um médico. Quando cheguei, Hong já estava me
esperando.
Ela chamou um táxi e me levou para uma clínica
médica, contabilizando mais uma experiência minha com
o sistema de saúde asiático. O incômodo que sentia era
tanto que não consegui manter um diálogo com Hong no
trajeto de táxi.
Paramos em frente à clínica, muito bonita, com uma
placa dizendo ser especializada em atendimento para
estrangeiros. Fui colocada na lista de emergência e, em
menos de meia hora, fui atendida por um médico russo
que não falava inglês.
Aconteceu ali o telefone sem fio com o maior número
de línguas estrangeiras faladas que eu já vi. Funcionava
assim: o médico falava em russo, a sua assistente
vietnamita traduzia para minha amiga Hong, que
traduzia o que escutava em vietnamita para o inglês e eu
traduzia na minha cabeça do inglês para a minha língua
materna, o português. Isso tudo acontecia em meio a
risadas e confesso que até me fez esquecer um pouco da
dor, tamanha era a confusão de línguas faladas dentro
da pequena sala.
Com esperança de que as traduções foram feitas
corretamente, fui diagnosticada com uma conjuntivite
alérgica não-contagiosa e precisei de vários remédios:
pomada, dois colírios e comprimidos. Dentro de uma
semana, eu deveria melhorar.
Hong falou com Son e todos fizeram questão que eu
ficasse no apartamento até melhorar, ainda mais que a
minha cama estava vaga e os voluntários que
chegassem poderiam ser realocados em outras
acomodações. Me ofereci para ajudar com as despesas,
uma vez que não poderia dar aulas em troca das
instalações, mas Son recusou a minha oferta, fazendo
questão que eu ficasse e que contasse com toda a ajuda
necessária até que eu melhorasse. Era véspera do meu
aniversário e combinamos que faríamos um jantar no dia
seguinte, se eu estivesse me sentindo melhor.
Nunca segui tão corretamente ordens médicas como
nesse dia. Eu queria muito melhorar para poder
comemorar o meu aniversário, que, para mim, era uma
data muito importante. Nunca liguei para essa conversa
fiada de ficar velha. Quanto mais velha eu ficava, mais
sentia que evoluía e uma versão melhor de mim poderia
celebrar mais um ano de vida, mais viagens e mais
experiências.
Eu adorava celebrar. E, para isso acontecer, fiquei de
molho na cama, cheia de pomada no olho o resto do dia
e até acordei de madrugada para reaplicar a pomada e
os colírios.
Meu olho acordou com tanta pomada que mal
conseguia ler as mensagens de parabéns no meu celular.
Continuei em repouso, tomando os medicamentos e, à
tarde, comecei a me sentir melhor. Ao menos, a dor já
havia aliviado. Talvez fosse o meu psicológico me
forçando a melhorar, porque eu não me permitiria ficar
de cama naquela noite. Pedi para Hong confirmar o
jantar: uma despedida antecipada e a comemoração do
meu aniversário.
Chamei Andrea e Daniel para o jantar, que junto com
os outros voluntários, já tinham planejado de transformá-
lo em uma festa. Andrea havia retornado de Sapa com
suspeita de malária e não poderia comparecer. Daniel
estava apaixonado pelo Vietnã, namorando um garoto
vietnamita e procurando emprego como professor em
Hanói. Eu nem sequer sabia que Daniel era gay e fiquei
muito feliz pelas decisões que estava tomando. Ele
parecia mais feliz do que nunca com a vida nova.
Liguei para Dang e juntos fomos em um mercado para
comprar cerveja e bolo. Quando retornamos, perto das
19 horas, o apartamento já estava lotado. Fiquei feliz em
rever tantos rostos conhecidos. As duas Lauras, Willie e
Alex, que sempre foram meus companheiros de
aventuras pelas noites em Hanói, estavam lá.
Outro casal recém-chegado, a Yvonne e o Andi,
também se juntaram a nós, já no espírito de bagunça dos
outros casais. Oliver não poderia faltar: eu o achava
maluco e talvez fosse por isso mesmo que o adorava.
Dang e Hong não só estavam presentes como
organizaram tudo. Os alunos Chikarin, Phi e Mai fizeram
questão de aparecer.
Daniel também estava lá com o seu sorriso e bom
humor de sempre. Fiquei tão feliz em revê-lo e mal podia
acreditar que o havia conhecido em um hostel em
Bangkok e que, hoje, ele estava em Hanói para
comemorar o meu aniversário. Eu tinha uma afinidade
com ele maior do que com muita gente que eu já
conhecia há anos.
O jantar foi um grande banquete com todos os meus
pratos vietnamitas favoritos e muitas frutas. Os
voluntários ficaram felizes quando viram que tinha
cerveja, Hanoi Beer, para complementar o cardápio. De
sobremesa, havia muito sorvete e um lindo bolo de
surpresa. Acabamos ficando com dois bolos, já que eu
tinha me antecipado e comprado um também.
Cantamos parabéns em duas línguas e com dois bolos
diferentes e eu aproveitei para fazer um pedido duplo de
aniversário ao assoprar as velinhas. Desde que eu era
criança e me ensinaram essa tradição, eu venho pedindo
a mesma coisa. Não que o meu desejo não tenha se
realizado até hoje, bem pelo contrário, eu peço sempre a
mesma coisa para ter a certeza de que ele vai continuar
se realizando para sempre, pois, desde criança, isso era
tudo o que eu sempre desejei. Fechei os olhos e
mentalizei em forma de um pedido para o universo: “Eu
quero ser feliz”. Continuar sendo feliz me bastaria.
Teve guerra de cobertura de bolo e recebi presentes.
Hong sabia que eu queria um chapéu cônico para levar
para o Brasil como lembrança e foi esse o presente de
aniversário e de agradecimento pelo meu trabalho
voluntário que eu recebi. Um chapéu lindo que usei a
noite toda. Ganhei flores, uma camiseta e cartões.
Apesar do olho estar inchado e vermelho, nem me
lembrava mais da infecção que tanto me incomodou na
véspera.
Acabamos com a cerveja e com a comida. Para os
vietnamitas, a festa tinha acabado, mas para a
aniversariante e os voluntários ainda era cedo. Seguimos
rumo à rua principal até encontrar um karaokê. Parecia a
entrada de uma casa noturna, mas a pompa toda era
para alugar uma das diversas salas de karaokê como se
cada uma fosse um espaço para eventos privados.
E foi isso o que fizemos. Eu, Dong, Oliver e os três
casais cantamos e bebemos noite adentro, a maneira
mais vietnamita de se comemorar um aniversário.
Quando voltei para o apartamento, já deitada na
cama, pronta para dormir e cheia de pomada no olho, me
sentia realizada. Estava feliz em comemorar meu
aniversário no Vietnã. Fiz uma retrospectiva e constatei
que tinha passado meus últimos aniversários
praticamente em um país diferente a cada ano.
Às vezes, parece muito para uma vida só. Eu me
sentia feliz pelas escolhas que fiz e pela intensidade que
vinha vivendo esses 25 anos. Prometia para mim mesma
que manteria esse ritmo, agregando cada vez mais
propósito às minhas buscas.
Hoje, eu tenho muito mais medo de não viver do que
de morrer, já que a morte é inevitável e imprevisível,
enquanto a vida é uma escolha diária. Pensando nisso
tudo, de uma coisa eu tinha certeza: a vida é feita de
lugares e pessoas. Os lugares abrem a nossa cabeça e as
pessoas, o nosso coração. Viver é uma troca de
sentimentos e me pego todos os dias tentando ser uma
pessoa melhor, pois, sem evolução, a vida não faz
sentido. Eu me sentia grata por tudo o que vivi até aqui.
Muitas pessoas me perguntam se eu não sinto falta de
casa. Eu sinto que tenho tantas casas por esse mundo
que me sinto em casa quando estou em busca do
desconhecido. Eu estava imensamente bem por ter
desenvolvido a capacidade de estar em casa aonde quer
que eu fosse e, principalmente, por ser muito abençoada
por ter sempre pessoas especiais por perto. Eu estava
constantemente somando pessoas à minha história e
sentia como se meu caminho fosse guiado por anjos.
Como diria a minha mãe: “Essa menina tem mais sorte
que juízo”. Começava a acreditar que ela estava certa.
49. Um dia
eu voltaria

Depois de uma semana de repouso, finalmente o meu


olho melhorou. Foi um alívio quando esse dia chegou,
porque eu não aguentava mais ficar de repouso e estava
apreensiva para continuar viagem. Liguei para a Mamma
Lilly para confirmar que estava a caminho: pegaria o
trem naquela noite e chegaria em Sapa no dia seguinte
de manhã. Como demorei para ligar, percebi que ela
achava que eu tinha desistido e ela ficou imensamente
feliz com a ligação confirmando que eu iria.
“Lucy, você como minha filha. Você bem-vinda na
casa da Mamma Lilly.” – Ela sempre deixava o verbo
auxiliar fora das suas frases, tornando ainda mais
afetuosa a forma como se expressava.
Me despedi dos meus amigos, organizei meu mochilão
e parti para fazer novamente o trajeto de trem e ônibus
que me levaria de volta à encantadora Sapa. Sentei na
frente da igreja para aguardar Mamma Lilly. Era uma
sensação estranha estar novamente no mesmo lugar,
pois eu não costumo retornar a lugares onde já estive em
minhas viagens.
Vi Mamma Lilly de longe, com sua baixa estatura,
vestindo as mesmas roupas típicas e o sorriso acolhedor.
Quando chegou perto de mim, me abraçou sem parar,
como que para ter certeza de que eu estava ali.
Passamos no mercado e eu acertei que a ajudaria com
60 dólares para as despesas, os quais ela aceitou
satisfeita. Seguimos para a sua casa de carona na moto
de um dos locais até o ponto mais próximo que a moto
conseguia chegar. Eu adorava aqueles 20 minutos de
trilha com paisagens arrebatadoras para chegar em sua
casa. As crianças estavam me esperando e fizeram festa
quando cheguei. Brincavam com um pedaço de barbante
que já havia sido remendado pelo menos umas 20 vezes.
O meu quarto era muito simples: havia uma
escadinha que levava para uma espécie de mezanino e
lá estava um colchão com uma rede contra mosquitos
me esperando, com edredons, lençóis e travesseiro. Uma
cena que já tinha sido desconhecida, mas que agora era
muito familiar.
Levei comigo um caderno, lápis e canetas. As aulas
aconteciam durante toda a manhã, religiosamente, e, à
tarde, fazíamos revisões ou saíamos para passear e
treinar os nomes de animais e outros elementos da
natureza. Estranhava o fato de não estarem indo para a
escola. Mamma Lilly disse que elas haviam implorado
para não irem essa semana, pois queriam ficar comigo.
Aquilo estava muito errado, mas quando acordava de
manhã e já as escutava lendo as palavras em inglês no
caderno, eu esquecia do que era certo ou errado. Descia
as escadas e elas estavam sempre prontas na pequena
mesa de madeira, aguardando o meu comando para
começar o mais rápido possível nossa aula.
Elas eram muito maduras para a idade delas, tinham
consciência de que aquela era uma grande oportunidade
e queriam aproveitá-la ao máximo. As meninas foram as
minhas alunas mais dedicadas: por elas, estudaríamos o
dia inteiro. Algumas crianças da vizinhança começaram a
se juntar a nós para as aulas.
Eu me sentava com elas e a comunicação acontecia
naturalmente. Queria pedir para que desenhassem no
caderno, mas não tinha como usar palavras, então
pegava o caderno e desenhava uma flor e depois
escrevia ao lado o nome em inglês. Sí era muito esperta
e a mais velha, então geralmente a escolhia para ser a
primeira. Entregava a caneta a ela e apontava para o
caderno, como quem diz: “Agora é a sua vez”. Ela me
olhava com estranheza e começava timidamente a
desenhar.
Eu mostrava sinais de aprovação e ela continuava. Sí
me devolvia a caneta, eu escrevia em inglês o nome e as
fazia repetir, depois perguntava como era na língua delas
a palavra e toda vez que eu repetia o nome, elas riam
muito de mim. Devia ser engraçado ver uma branquela
tentando falar a língua delas.
Mamma Lilly me ensinou algumas palavras básicas e
eu gostava de usá-las para fazê-las se sentirem
confortáveis. Eu não fazia ideia de como escrever as
palavras, mas anotava no meu telefone a maneira como
eu deveria pronunciar, tornando mais fácil na hora de
falar. As chamava de milá (macaquinhas) e elas
adoravam.
Aprendi no dialeto local algumas frases básicas de
conversação e os dias da semana, usando-as para
ensinar as mesmas frases em inglês. Conseguimos
montar uma conversação básica no caderno e
treinávamos a pronúncia das palavras.
De noite, antes de servir o jantar, elas se sentavam ao
redor do fogo no chão da cozinha e treinavam perguntas
e respostas umas com as outras. Zô era tímida, falava as
frases bem devagarinho, tentando se lembrar da forma
correta da pronúncia e, quando completava a frase, me
olhava rindo com as sobrancelhas erguidas, como quem
diz “Você viu que eu consegui?”. Aquela cena fazia meu
coração se desmanchar.
Mamma Lilly não as permitia comer junto comigo e
passei a perceber que a minha comida sempre tinha
carne e outros ingredientes exclusivos. Elas comiam na
cozinha e eu e Mamma Lilly na sala. Aquilo cortava o
meu coração, mas se tinha uma coisa que Mamma Lilly
era restrita era com essa ordem.
A comida de Mamma Lilly era incrivelmente deliciosa:
ela pegava aspargos frescos da sua horta para
complementar os meus pratos. Quando Mamma Lilly se
afastava, eu chamava as meninas escondido e dava
parte da minha comida a elas. Depois, passei a dizer que
estava satisfeita e dizia para Mamma Lilly que não tinha
problema chamá-las para terminar de comer comigo.
Elas adoravam e me olhavam com aquele olhar de quem
sabia que éramos cúmplices do crime.
Quando não estávamos estudando, elas me levavam
para conhecer os arredores. Conheci a escola onde
estudavam e os animais dos quais gostavam, sempre
admirada com a paisagem única das montanhas e dos
arrozais.
Achava engraçado porque para elas aquela paisagem
era a única que conheciam, cresceriam em meio àquela
natureza exuberante, cuidando umas das outras, como
se não existisse mais nada no mundo. Eu me sentia
assim ali. Era como se o mundo todo tivesse sido deixado
para trás.
Percebia que a rotina de Mamma Lilly era toda voltada
para atender as necessidades básicas dela e de sua
família: ela precisava buscar madeira para o fogo,
plantar, colher alimentos da horta, cozinhar, deixar as
folhas de ervas secar ao sol para virarem chá, lavar a
roupa a mão e deixar o tempo secar.
Sobrava tempo para dar atenção às crianças, escutá-
las, brincar, rir, contar histórias e também dividir um
pouco de silêncio. O oposto do que vivemos. Em que
momento enlataram os nossos alimentos e roubaram o
nosso tempo para o que realmente tem valor? A
simplicidade e o amor que eu via constantemente
naquela casa mexeram muito comigo.
Às vezes, Mamma Lilly me deixava sozinha com as
crianças e eu as observava. Brincavam por tudo, mas
sempre cautelosas umas com as outras e com o
irmãozinho bebê, que continuava sacudindo nas costas
delas de um canto para o outro. Elas lembravam de lhe
dar comida e bastava ele começar a chorar que elas o
levavam para dentro de casa e brincavam com o
pequeno. A menor delas era Tí e ela se tornou a minha
modelo favorita.
Eu ficava encantada com seu sorriso, fazia vídeos das
primeiras palavras que estava falando em inglês e tirava
fotos espontâneas dela sorrindo ou brincando. Um dia,
ela enfiou a caneta que usávamos para estudar no dedão
do pé de Gá, abrindo um buraco. Gá a repreendeu
seriamente e depois olhou para mim rindo. Com papel
higiênico, improvisei um curativo.
Fazia muito frio nas montanhas e eu adorava quando
Mamma Lilly fazia o fogo no chão da cozinha. À noite,
nós nos sentávamos todas juntas ao redor para nos
esquentarmos. Não havia brinquedos, ou melhor, nunca
houve brinquedos, então, não existia a necessidade
deles. Então, ensinei para Sí uma dessas brincadeiras de
cantar uma música e bater na palma da mão. As crianças
formavam fila atrás de Sí para aprender. Elas liam o
caderno de inglês e eu fazia correções na pronúncia.
Mamma Lilly sorria à toa enquanto as ouvia e olhava
para mim com cara de aprovação e surpresa com a
facilidade com que aprendiam.
Por causa do fogo que era feito dentro de casa, eu me
tornei a minha versão defumada. Minhas roupas e meu
cabelo estavam sempre com cheiro de fumaça. Eu tinha
poucas mudas de roupa para o frio, então, colocava tudo
o que tinha uma por cima da outra para me esquentar.
Quanto ao cabelo, não tive coragem de lavar. O banho
era na cozinha mesmo: Mamma Lilly colocava um
edredom para impedir a passagem da cozinha para a
sala e eu tomava banho ali. Ela esquentava uma chaleira
de água e enchia um balde, esquentava mais uma e
deixava ao lado de reserva. Eu tirava a roupa em um
cantinho e jogava aquela água quente em mim enquanto
me ensaboava.
No meu primeiro banho, comecei a escutar risadas
abafadas. Eram das meninas do lado de fora me
espiando pelas frestas das madeiras da casa. Eu comecei
a rir e falar que as estava escutando e Mamma Lilly
percebeu, indo lá fora brigar com elas. Elas saíram
correndo para escapar de algum castigo. Eu ria sozinha
daquela cena.
Não tinha como brigar com elas, afinal, ver uma
branquela pelada tomando banho na sua cozinha era
uma cena inusitada. Eu adorava incomodar as meninas
falando que eu as vi me espiando no banho. Elas riam
até doer a barriga e faziam cara de que sabiam que
tinham aprontado.
Quando terminava o banho, Mamma Lilly guardava
todas as coisas e eu me sentava à beira do fogo. Tirava o
chinelo e apoiava meus pés próximos às chamas para
que secassem, enquanto tomava um chá fresquinho.
Toda vez que percebia que a minha xícara era sempre a
única que tinha alça, meu coração se aquecia junto com
o corpo. Gestos simples, mas generosos e sinceros.
Mamma Lilly me agradecia a todo momento pelo que
estava fazendo pelas crianças, mesmo que eu achasse
que ainda fosse tão pouco. Ela passou a me presentear
com seus artesanatos: uma bolsa, uma pulseira de prata
e outras coloridas. Nem ela e nem as crianças faziam
ideia de que eu havia ensinado muito pouco se
comparado a tudo que aprendi convivendo com elas.

...
Era hora de ir embora. Mamma Lilly e as crianças me
aguardavam. Estranhei a falta de Sí e descobri que ela
tinha acordado antes do sol nascer e foi andando os
muitos quilômetros de terra para me encontrar na
cidade. Ela disse para Mamma Lilly que queria ser a
última a se despedir de mim.
Me despedi com beijos, abraços e algumas fotos.
Escrevi uma recomendação no caderninho da Mamma
Lilly para os futuros estrangeiros que a encontrariam,
dizendo o quanto eles seriam sortudos de ter a
oportunidade de conhecer aquela família encantadora.
Subimos a trilha até a estrada principal onde um
grupo de mulheres da mesma etnia H’Mong estavam
reunidas. Todas conheciam Mamma Lilly. Eu disse “olá”
no dialeto delas e todas ficaram surpresas, perguntando
sobre mim. Mamma Lilly explicou quem eu era enquanto
eu sorria. Elas sorriam de volta e pareceram felizes com
o que ouviam.
Somente uma moto havia chegado e aguardávamos a
outra, quando as mulheres fizeram um sinal óbvio de que
fossemos todos em uma moto apenas. Eu não achei que
seria uma boa ideia, mas elas insistiram com frases que
eu não entendia e gestos, como se fosse a coisa mais
normal do mundo uma moto com uma branquela com
um mochilão de 17kg nas costas no meio de um
motorista vietnamita e uma mulher H’Mong com sua
cestinha de palha.
Nós nos equilibramos todos na moto sob os aplausos
das mulheres com suas roupas coloridas, enquanto gotas
de chuva começaram a cair. Eu pedi para ser a última,
para que pudesse segurar no ferro atrás, mas acho que
eles estavam com medo de me perder no caminho e
insistiram que eu fosse no meio. Achei um pedaço de um
suporte e segurei o objeto como quem segura a vida.
Morro acima, morro abaixo e a estrada sumia em meio
à névoa. Com o vento, um bafinho de álcool se revelou
vindo do motorista, que acelerava em meio àquela névoa
e desviava porcos e galinhas que apareciam na estrada.
Tinha esquecido de ajustar o meu capacete, que
estava quase caindo e levava junto meus óculos. Fechei
os olhos e rezei. Senti uma leve freada e, quando abri os
olhos, vi um caminhão bloqueando a estrada.
O vietnamita jogou para a estreita faixa de terra entre
o caminhão e o morro e passou tirando fininho. Vi uma
placa mostrando que Sapa estava a apenas 1,8km.
Calma, falta pouco, falta pouco. Minha mão doía de
segurar o ferro.
Nunca foi tão bom chegar em algum lugar como
chegar em Sapa nesse dia. Quando desci da moto,
estava atordoada, o cabelo todo embaraçado e a chuva
havia aumentado. Sentia alívio por ter chego inteira
depois dessa aventura não planejada.
Encontramos com Sí no mercado local. Ali, levei-as
para um almoço de despedida e aproveitei para comprar
botas de inverno para Sí, já que ela usava a sua única
sandália de plástico rasgada, que com certeza não a
protegia do frio. Queria comprar mais presentes para as
outras meninas, mas não aceitavam cartão e o meu
dinheiro não dava para mais nada.
Fiquei chateada e tentei várias lojas em vão. Mamma
Lilly me acalmou dizendo que não tinha problema, pois Sí
era a mais velha de todas e assim ela poderia passar a
bota para as mais novas quando não a servisse mais.
Agradeci o carinho.
Sí e Mamma Lilly esperaram junto comigo o ônibus,
que dessa vez me levaria direto até Hanói. Apesar de ser
uma viagem mais perigosa, era mais rápida do que o
trem e eu precisava chegar bem cedo para embarcar
direto no meu tour para Halong Bay.
O ônibus chegou e com ele a nossa despedida. Não
haveria internet ou telefone para nos conectar. Perguntei
se havia algum endereço para enviar presentes ou
cartas, mas não havia. Aquela era uma despedida
diferente. Assim que entrei no ônibus, Mamma Lilly me
pediu para um dia voltar. Sí me olhava sorridente
segurando sua bota nova contra o peito.
Pela janela do ônibus, eu dava tchau para elas, que
aguardaram ali até o ônibus partir. Quando o ônibus
acelerou, Sí correu por alguns metros, me mandando
beijos e se despedindo. A perdi de vista quando fizemos
a curva, mas essa memória ficaria guardada comigo. Um
dia eu voltaria. Um dia.

imagem1
50. Para cada
tristeza uma
alegria

Os três dias embarcada em Halong Bay foram


inesquecíveis. Foi o melhor presente de aniversário que
eu poderia ter ganho e o único tour que eu fiz durante
toda a minha viagem. Acertei na escolha e no momento.
O tour incluía acomodação no barco, refeições, festas e
passeios. Estava precisando descansar e de não me
preocupar em pegar ônibus, aonde ia comer e os cálculos
constantes de quanto dos meus 500 dólares mensais eu
podia gastar.
Dividi minha cabine com Simon, um francês da minha
idade que falava espanhol, era apaixonado por Floripa e
sabia cantar músicas de axé. Mais uma boa amizade e
um lugar para dormir pelo mundo foi somada à minha
extensa lista dessa viagem. Éramos um grupo de 15
pessoas no barco e, entre eles, três coroas australianos
motociclistas que nos divertiam com suas histórias.
A baía de Halong é um dos pontos turísticos mais
conhecidos do Vietnã, uma obra de arte da natureza,
perfeita nos seus detalhes e beleza. É um patrimônio
mundial da UNESCO com milhares de ilhotas compridas
de rocha calcária que emergem do mar repletas de
vegetação, formando um labirinto de rochas e uma
paisagem magnífica e única.
Navegamos pelas águas parando em alguns famosos
pontos turísticos, algumas cavernas, mirantes e ilhas
com praias. Apesar de serem lugares absurdamente
lindos, o excesso de pessoas, de navios e de lixo é
preocupante. Infelizmente, mais um exemplo de como o
turismo vem sendo explorado sem um devido
planejamento, comprometendo o futuro dessa beleza
natural.
O visual mudou drasticamente quando fomos levados
para uma ilha privada, uma espécie de paraíso na terra.
Água cristalina e uma faixa de areia de não mais que 500
metros protegida por um imenso paredão de pedra
esculpido pela natureza.
Mais pessoas de outros tours se juntaram a nós e
fomos divididos em bangalôs. Caiaques estavam à nossa
disposição a qualquer momento para desbravar os outros
lados da ilha. Sol, praia, campeonato de vôlei, fogueira,
festa, lua cheia e um buffet delicioso de comida
marcaram bons momentos em Halong Bay.
Foram três dias incríveis e o meu sentimento era de
missão cumprida. Saí do Brasil com um desejo que
parecia até impossível, o desejo de voluntariar em países
distantes. O orçamento curto, os perrengues, os furtos e
a falta de conforto agora se tornavam histórias e
lembranças que nem eu mesma sabia como tinha
superado.
Eu tinha certeza de que as dificuldades tinham me
fortalecido. Tailândia, Camboja e Vietnã agora eram parte
de mim e da minha história, cada um me trazendo um
aprendizado e me deixando lembranças das quais eu
jamais me esqueceria.
De noite, no barco, eu gostava de sentar no deck e
ver a lua cheia. Eu jamais imaginei que um dia estaria
em Halong Bay e ainda tentava entender quem eu tinha
me tornado. Cada dia naquela viagem me transformava
um pouquinho. Em um desses dias, acordei com o
despertador para ver o sol nascer do barco, levei meu
edredom e, enrolada nele, observei o espetáculo.
Quando voltei a Hanói, me encontrei com Daniel, que
agora era praticamente um nativo da cidade. Ele tinha
dicas únicas e preciosas, principalmente de restaurantes
vietnamitas frequentados por locais. Ele e o namorado
me ajudaram a comprar alguns presentes e depois nos
despedimos em um jantar delicioso em um restaurante
de rua, com um cardápio um tanto inusitado. Se
estivesse na França, o prato se chamaria algo como sopa
cremosa de scargot à base de leite de coco e custaria
muitos euros. No Brasil, adicionariam a palavra gourmet
e custaria tão caro quanto, mas como eu estava sentada
em cadeiras de plástico no meio da rua em Hanói, eu
diria que era uma sopa de caramujo com leite de coco e
que me custou um valor irrisório.
Aprendi a técnica certa de puxar na boca a lesminha
de dentro da concha, precisando ser sugada com força
de uma vez só. As primeiras eu engoli direto goela abaixo
pela força excessiva que usei, mas aos poucos fui
aprendendo. A melhor parte era molhar o pão francês
fresquinho no leite de coco muito bem temperado.
Surpreendentemente, foi um dos melhores pratos que
experimentei na minha viagem. Quando estivesse
comendo arroz com feijão novamente, eu sentiria falta
daqueles pratos raros.
No dia seguinte, segui para o aeroporto, mais um luxo
do final da minha viagem. Como tinha trocado o Laos
pela Mamma Lilly, agora eu não tinha mais tempo para
viajar por terra e por isso voaria até Bangkok. Chegando
lá, usaria como base a casa da Fran, a brasileira que eu
conheci da última vez que estive em Bangkok.
O plano já estava todo armado: deixaria o meu
mochilão e passaporte na casa dela e, com uma malinha
pequena, iria para Koh Phangan. Mas, agora, com uma
motivação diferente, já que não tinha mais interesse em
ir na famosa festa da Full Moon Party.
Me lembrava exatamente dos planos que fazia quando
fui furtada em Koh Samui. Dirigindo a moto, eu me sentia
feliz com o vento batendo em meu rosto e planejava
entusiasmada a minha ida para Koh Phangan, quando os
dois tailandeses levaram a minha bolsa e os meus planos
junto com eles.
Eu diria que, de forma até inconsciente, sentia que
precisava fechar a minha viagem lá, como uma maneira
de afirmar para mim mesma que jamais deixaria as
dificuldades atrapalharem os meus sonhos. Também
sabia que tudo acontece por alguma razão e acredito
muito que a vida nos prepara para o que vamos viver.
Existem nossos desejos e o tempo certo para que eles
aconteçam.
E, agora, eu estava pronta para finalizar a minha
viagem lá. Depois da ilha, retornaria para Bangkok onde
ficaria dois dias para comprar alguns presentes e pegar
meu voo rumo à Europa, fazendo ali uma parada rápida
antes de retornar à terra verde e amarela.
Em Paris, visitaria Celine, minha amiga francesa que
conheci no voluntariado no Camboja, e depois seguiria
de trem para Colônia, para visitar uma amiga brasileira
que não via há anos e acabara de casar. O mundo
realmente era a minha casa e era grata por estar cheia
de amigos para me receber.
Aguardei o horário do meu voo em uma lanchonete do
aeroporto, enquanto comia e carregava o meu telefone.
Aguardei o horário certinho do embarque e fui para o
portão, mas chegando lá fui avisada que o embarque já
estava encerrado e a aeronave já estava taxiando.
“Como assim a aeronave já está partindo? Não estou
atrasada, cheguei exatamente no horário de embarque
do cartão. Por favor, eu preciso entrar nesse voo.” –
Implorei para a vietnamita da companhia aérea. Ela me
pediu para aguardar e fez uma ligação.
De repente chega mais uma menina, tão tranquila e
desavisada quanto eu.
“É aqui o embarque para Bangkok?” – Ela perguntou,
percebendo que alguma coisa estava errada.
“Ela está falando que o embarque foi encerrado” –
Falei desanimada, fazendo referência à mulher que
estava ao telefone.
A mulher retorna e nos pede para segui-la. Eu e a
menina seguimos os passos apressados da vietnamita
pelo aeroporto, descemos uma escada e ela pediu que
esperássemos ali.
“Um ônibus está a caminho para buscá-las. Ele as
levará até o avião, que está aguardando na pista” – Ela
sorriu, sabendo que acabara de salvar o nosso dia.
Olhei para a menina ao meu lado e comemoramos
com muita animação. E foi assim que conheci Jana, da
Finlândia, que tinha tantas histórias de viagens quanto
eu. Quando entramos no voo, todos os passageiros nos
olhavam de canto de olho, demonstrando reprovação
pelo atraso causado. Eu estava feliz em ter Jana ali para
dividir a atenção.
O voo estava vazio e sentamos juntas para continuar
conversando sobre nossas viagens. A empresa era uma
dessas de voos baratérrimos que não incluem nada.
Quando a aeromoça começou a circular com o carrinho
de comida, Jana comentou:
“Estou torcendo para ter alguma coisa de graça para
comer. Foi um dia corrido, não comi nada, estou
morrendo de fome. Para piorar, troquei todo o meu
dinheiro para baths e esqueci totalmente de separar
alguns dongs. Com sorte eles tem um amendoim, né?”. –
Falou esperançosa, enquanto tentava ver o que tinha no
carrinho de comida.
Na hora eu me lembrei que não havia trocado todo o
meu dinheiro vietnamita porque sempre deixo um pouco
para guardar ou dar de lembrança de viagem. Abri a
carteira e contei exatos 100.000 dongs, quantidade
suficiente para um sanduíche.
“Ei, Jana, pega esse dinheiro aqui para comer, eu não
vou usar.”. – Eu falei enquanto estendia as notas em sua
direção.
“Não, imagina, eu não quis dizer isso. Te agradeço
pela gentileza”. – Ela falou sem jeito pela minha oferta
inesperada.
“Pega, Jana, eu não vou precisar.”. – E não precisaria
mesmo.
“Podemos fazer assim: eu te dou o equivalente em
baths. O que você acha?”. – Ela sugeriu.
“Jana, você nunca ouviu falar na lei do viajante?”. –
Finalmente, o meu momento havia chegado.
“Não”. – Ela falou com a mesma expressão que eu
havia feito quando ouvi aquela pergunta pela primeira
vez no Camboja.
“Um garoto me pagou um prato de comida lá no
Camboja quando eu fiquei totalmente sem dinheiro. E ele
me falou disso, me pediu para ajudar outra pessoa
quando eu pudesse. Eu já passei por tanto perrengue
nessa viagem e tantas pessoas me ajudaram. Deixa eu
te ajudar agora. Pega o meu dinheiro para comer e ao
invés de me pagar de volta, usa esse dinheiro para
ajudar outra pessoa. O que você acha?”.
“Eu acho perfeito. Obrigada não só pelo empréstimo,
mas por ter sido a escolhida. Ajudarei outras pessoas
com certeza.”. – Afirmou ela, emocionada.
“É um prazer poder dar continuidade pelo bem que
tantas pessoas fizeram por mim. Você sabia que fui
furtada duas vezes na Tailândia? Tenho tanta história pra
contar.”. – Eu falei rindo enquanto ela me perguntava
mais.
Jana usava muitas peças de prata. Falamos sobre isso
e comentei com tristeza que a minha pulseira de prata
favorita, que havia comprado em Bali, estava na bolsa
furtada.
Ela tirou um anel lindo de prata do seu dedo e
estendeu em minha direção.
“O que foi?”. – Perguntei, sem entender o que ela
queria.
“Fica pra você, um presente meu. Para lembrarmos
que o que é material pode ser substituído, para cada
tristeza uma alegria. Vou ficar feliz se você aceitar.”. –
Ela falou em um tom sincero.
Sem rodeios, coloquei o anel no dedo e agradeci com
um sorriso. Nunca mais veria Jana, mas para sempre
lembraria do seu gesto.
51. A minha imagem
refletida no
espelho

Os meus dias em Koh Phangan foram decisivos para eu


olhar para trás e compreender tudo o que eu tinha vivido
durante essa viagem. Assim que cheguei no hostel e
larguei minha mala, me olhei no espelho novamente e
me observei. Eu já tinha feito isso outras vezes durante a
viagem, mas acho que finalmente eu conseguia olhar e
me ver com verdade. Até aquele momento, eu só
conseguia ver o que era palpável: via minhas roupas
ficando velhas e apertadas, meu cabelo ressecado e
minha pele oleosa. Mas viver tudo o que eu vivi e
continuar vendo somente aquilo seria muito previsível:
essa seria a visão daquela Letícia que eu deixei meses
atrás no aeroporto do Rio. Como eu fui sábia em me
despedir dela, mesmo com a incerteza de quem ela se
tornaria.
Hoje, olhando no espelho, eu sentia uma luz
refletindo, como se uma estrela forte brilhasse dentro de
mim. Percebi que todas as minhas escolhas durante essa
viagem foram para que eu abandonasse tudo o que eu
pensava ser. Eu não era mais as roupas que eu vestia, o
carro que eu dirigia ou o que me diziam ser.
Eu havia assumido a versão nua de mim mesma. Eu
olhava para a minha imagem e não me sentia atraída
pelo que via, mas por quem eu era. Mesmo que
colocasse a roupa mais cara e a maquiagem mais bonita,
agora eu entendia que eu não era nada daquilo. Eu
poderia perfeitamente usá-las, porque o material deixou
de me possuir. Eu era muito mais, eu era todas as
experiências que havia sentido. Sentir. As experiências
que senti com o coração, as dores, as pessoas, os
sabores e tudo mais que eu tive a sensibilidade de sentir,
é que fizeram a mudança dentro de mim. Eu me sentia
atraída pelo que eu havia me tornado e grande parte do
que eu havia me tornado se resumia em uma palavra
comumente usada por nós como amor.
Mas o amor do qual eu falo não é o amor como
pensamos, baseado na posse, no apego e na
necessidade de ser amado. Eu era uma garota de sorte,
porque desde cedo fui apresentada a um amor
verdadeiro, que veio dos meus pais. Eu tive a sorte dos
meus pais me amarem em liberdade, em me mostrarem
o caminho e saberem que, em algum momento, eles
teriam de me deixar partir.
Eles me criaram e me deram a base para sentir o
mundo, para criar minhas próprias possibilidades e os
meus próprios caminhos. Amor não tem nada a ver com
superproteção. Os meus pais me amaram tanto, mas
tanto, que me deixaram livre. Eles me ensinaram,
educaram, deram carinho e entenderam o ponto da
ruptura, mesmo que aquela ruptura causasse medo
neles. Mas confiaram no amor que me deram, porque só
por meio do amor é que nos tornamos fortes.
Hoje, eu via toda a trajetória da minha viagem como
uma busca pelo amor. Eu queria tirar as amarras que me
foram dadas e finalmente amar a mim mesma. Comecei
a me questionar porque aquelas pessoas tão simples
viviam em uma forma de amor tão genuína, na qual
sempre havia mais para ser compartilhado.
No meu mundo, isso era tão diferente: eu via pessoas
isoladas preocupadas com sua própria existência e
apesar de haver fartura material, não havia amor para
ser doado. Não havia tempo para um sorriso de bom dia
ou para um chá com bolo no meio da tarde. E
observando esses dois mundos tão distintos, percebi que
o que faltava no mundo de onde eu vinha era amor
próprio.
As pessoas não se amam mais pelo que são, essa
essência foi perdida. Elas amam o carro do ano que
dirigem, o brilho do sapato recém comprado e o valor da
roupa que vestem. Elas amam números. Amam
celebridades, marcas, deuses e religiões. Se apegam ao
externo. Estão externalizando um amor que deveria ser a
si mesmo. Durante minha viagem, por todos os países
que passei, sempre sobrava amor para doar.
Quando eu digo que voluntariei na Tailândia, Camboja
e Vietnã, as pessoas me olham com admiração, quase
que me santificando pelo que eu fiz. Não há nada disso.
No fundo, eu fiz tudo isso por mim mesma, porque me
coloquei no desafio de aprender a me amar e quando
amamos a nós mesmos é que damos a possibilidade para
que os outros nos amem e, ainda, entendemos a
importância de amarmos e compartilharmos.
Há um longo caminho de aprendizado pela frente e
sempre haverá, mas, hoje, eu entendi que o amor não é
uma troca. Você não ama ao outro, você primeiro ama e
respeita a si mesmo para depois deixar que esse amor
naturalmente transborde para os que te rodeiam. O amor
não espera nada em troca. Se você não ama a si mesmo,
você não vê valor na vida do outro, você magoa, destrói,
aprisiona e até mata.
Amar a si mesmo é a resposta para as guerras. Muitas
das guerras que estão acontecendo no mundo estão
ligadas à religião, porque a religião pede que uma pessoa
ame um Deus superior e oferece recompensas por isso.
Isso é uma barbárie. Se as religiões nos ensinassem a
amar a nós mesmos, não haveria guerras. Ninguém
destrói a vida a partir do momento que aprende a amá-
la.
Quando eu vim para essa viagem, parti com o desejo
de ensinar e ajudar. Ironicamente, o resultado foi que eu
aprendi e fui ajudada. Não existe nada de extraordinário
na minha viagem. Eu não sou Malala, eu sou uma garota
comum. Eu sou você, homem ou mulher, cheio de
medos, desejos e sonhos. Eu não sofri os horrores da
guerra, eu não estudei em Harvard e não sou filha de
pessoas influentes. A minha jornada poderia ser sua. Eu
precisei largar as minhas vaidades para me encontrar,
para me respeitar e escutar aquela vozinha interior.
Eu acredito que o turismo tem esse poder: de nos
ensinar por meio da experiência vivida. Mas para isso
acontecer, ele deve ser vivenciado e explorado de outra
forma. Ele tem de deixar de ser esse símbolo de vaidade.
O turismo é uma das maiores ferramentas para nos
libertamos: de nada adianta trabalhar um ano inteiro
acorrentado às nossas vaidades e medos e simplesmente
mudar o local das nossas correntes. Estar acorrentado
em um resort nas Bahamas não vai afrouxá-las. As
viagens precisam ser usadas como uma ferramenta de
autoconhecimento, de empatia e de amor. Elas podem
nos levar a outros mundos, para que entendamos o
nosso próprio. Elas podem nos ensinar a deixar de lado
nossas vaidades, tão mesquinhas e prejudiciais.
Hoje, eu sentia mais do que nunca a necessidade de
encontrar o equilíbrio e de me desapegar das definições.
As pessoas querem sempre colar uma etiqueta na sua
testa que te identifique e nós fazemos isso o tempo todo.
Eu quero muito me tornar uma pessoa melhor, me
conhecer, me amar cada dia mais e compartilhar esse
amor. Quero estar aberta ao conhecimento, às culturas e
às pessoas. Quero encontrar um equilíbrio que não tem
nada a ver com ser uma pessoa neutra.
Bem pelo contrário, quero ter um equilíbrio no qual eu
seja intensa para vivê-lo de forma plena. Não, eu não vou
me tornar hippie, não me defina. Sim, eu vou continuar
consumindo, mas vou me preocupar em ser uma
consumidora racional e valorizar a produção local.
Não, a minha busca não havia acabado e acho que ela
nunca acaba de fato. Sim, eu tinha muito para aprender,
quanto mais eu conhecia mais eu entendia que nada
sabia. Continuarei dizendo não a tudo que me limita.
Hoje mais do que nunca me sinto em constante evolução
e quero continuar viajando, voluntariando e me
conectando a pessoas, porque é somente fazendo por
amor que eu posso impactar o mundo.
Me sentia tão plena nessa reta final da viagem que eu
atraí todas as certezas que eu precisava. Conheci três
britânicas com as quais criei uma conexão instantânea.
Charlotte, Katy e Louise eram amigas de infância e
viajavam o mundo juntas, sem data para voltar para a
Inglaterra. Elas eram divertidas, aventureiras e me
acolheram como parte do grupo. Por serem amigas há
muito tempo, deram o nome da amizade delas de
triângulo, uma referência pelo triângulo ter três lados
que o completa.
Conheci-as no hostel, no qual, por coincidência ou
não, fui parar lá por um erro do motorista. Juntas,
alugamos motocas e explorávamos a ilha toda juntas,
parando em praias, cachoeiras e comendo em
restaurantes beira de estrada.
A ilha é conhecida pelas suas festas e juntos fomos na
Half Moon, que era o oposto da outra famosa. Essa festa
foi no meio de uma floresta. Pintadas de tinta neon, nos
divertimos a noite toda e conhecemos ainda mais
pessoas.
Comemos misto quente do 7-Eleven de café da
manhã, invadimos resorts para usar a piscina e víamos o
pôr-do-sol da frente do nosso hostel, que apesar de não
ser dos melhores, era pé na areia e custava cinco
dólares. Elas me convenceram a ficar mais dias, já que o
último dia delas coincidia em ser um dia antes do meu
voo. Mudei meus planos e decidi que ficaria.
Contei a elas sobre as minhas aventuras, os
voluntariados e as pessoas que conheci. Elas gostaram
tanto que decidiram se voluntariar no projeto do Jason
durante a viagem delas. E falávamos também de
amores.
Amores passou a ser um dos nossos temas favoritos.
Confidenciei a minha história com o moreno. Eu sabia
que acabaríamos nos reencontrando, mas, mais do que
nunca, eu estava aprendendo a viver um momento de
cada vez. Aprendendo a deixar de sofrer pelo que ainda
estava por vir.
Eu sempre achei que um amor desses de cinema era
algo obrigatório na vida de qualquer garota que largasse
tudo para viajar pelo mundo. E olha que eu não sou das
mais românticas, mas todas as histórias de viagem que
eu leio envolvem um encontro com o cara dos sonhos em
alguma ilha paradisíaca, onde eles se apaixonam e vivem
felizes para sempre. Até a Elizabeth Gilbert descolou um
brasileiro dos sonhos em Bali. Nós passamos a vida
inteira no Brasil e já é difícil, como ela conseguiu essa
proeza? O segredo só podia ser viajar o mundo por aí e
contar com a força do acaso.
As meninas concordavam com a minha opinião e
falaram que elas mesmas tinham essa sensação de que a
qualquer momento um amor para a vida poderia
aparecer. Analisando a minha situação, de quem em uma
semana estaria pegando o voo de volta para casa,
concluí que a minha relação com o arroz branco seria a
coisa mais próxima de uma paixão que eu viveria na
Ásia.
Eu não conseguia nem imaginar a possibilidade de
conhecer alguém que se interessasse por mim, afinal, o
meu estilo largada há seis meses não era muito atraente:
garotos não se interessavam por roupas rasgadas, quilos
a mais, unhas mal cortadas e pé encardido. Sim,
confesso que meu pé estava encardido de tanto andar de
pés descalços.
Mas, em meio a esse pensamento tão superficial, eu
não imaginava que conheceria alguém que se
apaixonaria por quem eu era, alguém que, assim como
eu, conseguia ver minha estrela que brilhava.
52. O que vivemos aqui,
poucas pessoas viverão
em uma vida inteira

“Alguém vai gostar de você pelo que você é”. Parece tão
simples, mas estamos sempre nos enganando, usando
fórmulas prontas para agradar. Em um mundo cheio de
vaidades, com garotas lindas, com o cabelo perfeito e a
pose impecável do Instagram, como alguém que não se
encaixa nesse perfil entra nesse jogo desleal? Garotos
que querem a gata dos sonhos e que tem como
referência fotos alteradas no Photoshop. Se ninguém está
querendo conhecer a fundo ninguém, parece muito difícil
você ser quem você é.
Para isso, precisamos partir do princípio de que
sentimos medo, porque, mais do que tudo, queremos ser
aceitos e amados. A mudança só será possível a partir do
momento em que enfrentamos nossos medos e
acreditamos em nós mesmos. Não há nada de errado
com o medo, o problema é a falta de coragem para
agirmos.
Se tomarmos como referência o que há de ruim ao
nosso redor, vamos nos tornar pessoas fúteis, previsíveis
e indiferentes usando a desculpa de que são todos assim.
Mas, a partir do momento em que mudamos e amamos a
nós mesmos, atraímos amor. Passamos a ter luz própria.
Passamos a ser fonte de ideias e inspirações, nos
tornamos seres viscerais.
Eu tinha aprendido que a minha vaidade não me
definia, que eu não dependia dela para ser quem eu era.
Não precisava dela para me auto afirmar. O cabelo que
eu fazia questão de pintar, as curvas do meu corpo e o
esmalte da unha não diziam nada a meu respeito. Eu
tinha aprendido a viver bem com ou sem esses
elementos. Quando estivesse com eles, eu saberia que
esses apetrechos não deveriam jamais alimentar o meu
ego, porque eu não sou eles, eu sou as experiências que
vivi, as ideias que acredito e o amor que sinto. E isso
ninguém tira de mim.
E foi em Koh Phangan que um britânico charmoso
confirmou todas essas minhas teorias. Ele, ao contrário
de mim, estava apenas começando a sua viagem pelo
mundo e mantinha toda a sua vaidade.
Estava sempre vestindo roupas bonitas em um corpo
no qual eu via músculos que eu nem sequer sabia que
existiam. Olhos azuis, cabelo loiro bem cortado, deixando
os cachinhos caírem perfeitamente na altura dos olhos.
Nos conhecemos a caminho de uma cachoeira em Koh
Phangan e não, não foi amor à primeira vista.
Ele me chamou a atenção pela sua beleza, digna de
uma capa da Men’s Health, mas no mesmo momento eu
o julguei pelo que vi. Considerei que alguém com tanta
vaidade jamais seria interessante, que ele era mais um
daqueles caras que comem frango com batata doce a
cada três horas e procuram a versão humana da Barbie.
Eu estava infinitamente enganada.
Ele viajava com o irmão e os dois se juntaram ao
nosso grupo, que era predominantemente britânico.
Seguimos todos juntos para diversas praias, exploramos
outras cachoeiras e passamos o dia todo juntos andando
de motoca pela ilha.
Nos perdemos, comemos em lugares estranhos e não
tínhamos pressa para nada. A sensação era de que nós
seis já nos conhecíamos há anos tamanha a afinidade
que existia entre nós. Por ser a única brasileira, em
pouco tempo me familiarizei com as piadas e o sotaque.
As meninas diziam que eu estava fazendo um intensivo
de “como me tornar britânica” e que já poderia me
considerar uma também.
De forma muito natural, eu e o britânico nos
aproximamos em conversas longas que duravam muitas
horas. Ele me contou que havia deixado um emprego
estável em um banco para viajar pelo mundo e estava
investindo em um negócio online para que pudesse ter a
flexibilidade de viajar e trabalhar de qualquer lugar.
Eu falei das aventuras da minha viagem, do meu
interesse em voluntariar e do meu sonho de escrever um
livro. Falamos sobre os relacionamentos atuais, baseados
na posse e dependência. Questionamos o medo das
pessoas de viver um momento de cada vez. Na
dificuldade que temos em acreditarmos em nós mesmos.
Ele me incentivou a escrever o livro. Nenhuma
conversa nossa terminava em menos de duas horas e
gostávamos de reflexões profundas e de piadas
inteligentes. Seu humor me atraía. Nem sempre
concordávamos, mas sempre aprendia ou ensinava algo.
Via nele o desapego com a opinião dos outros: ele
sinceramente não se importava. Via nele tanta coisa que
ainda precisava aprender.
Entre tantas conversas, nos aproximamos e fazíamos
tudo juntos. Durante o dia, nos divertíamos explorando a
ilha, fazíamos lutinhas dentro da água, jogávamos bola,
tirávamos fotos engraçadas, tomávamos banho de
chuva. Toda noite, tínhamos uma programação diferente.
Ele e o irmão vinham até o nosso hostel ou nós íamos até
a praia deles, que era a praia mais badalada.
Me sentia à vontade na companhia do britânico:
fazíamos coisas idiotas o tempo todo e ele me fazia rir
com suas tiradas. Era como se tivéssemos nos tornado
melhores amigos. À noite, saíamos para os bares e nos
divertíamos pela praia.
Corríamos pela praia enquanto brincávamos de
carregar um ao outro nas costas. Quando paramos por
um instante, percebi que estava toda suada e com calor.
Lembrei-me de que aquela era a praia que tinha
plânctons e que minha viagem chegava ao fim.
Sem avisar, fiquei de calcinha e sutiã e corri em
direção ao mar chutando a água e a sentindo gelar meu
corpo. A garotinha dentro de mim vibrava com a
sensação. Eu estava me permitindo viver e sentir: não
queria me importar mais com o que os outros
pensassem.
Mergulhei. Mexia os braços e as pernas para ver os
pontos verdes luminosos aparecerem. A natureza era
perfeita. De repente, o britânico se juntou a mim.
Pulamos ondas juntos, jogamos água um no outro,
mostrei para ele os plânctons e continuamos as nossas
conversas intermináveis.
Saímos da água porque já estava tarde e as meninas
estavam me esperando para irmos embora. Colocamos
as roupas escondidos, rindo sem parar, quando o vento
levou a minha blusa embora em direção as pedras e um
tailandês que andava pela redondeza me ajudou a achá-
la com uma lanterna.
O riso do britânico me fazia bem. Eu me sentia livre ao
lado dele como poucas pessoas já haviam feito eu me
sentir. Eu sempre vivi muitas aventuras sozinha, porque
poucas vezes as pessoas têm coragem de pegar a minha
mão e de vivê-las comigo.
“Sinto como se eu não precisasse de mais nada na
minha vida além disso” – Disse ele, enquanto analisava o
horizonte.
Olhei para ele e reparei como estava bonito com os
cachinhos molhados.
“Os últimos dias da minha viagem não poderiam estar
sendo melhores.”. – Eu realmente me sentia feliz e
realizada.
Eu não imaginei que nos envolveríamos, até ele me
olhar fixamente por alguns segundos e me beijar.

...

Eu e o britânico passávamos mais tempo do que


nunca juntos. Cada dia que se passava tornava os dias
na ilha ainda mais intensos: íamos a mais praias,
fazíamos mais festas e nos divertíamos cada vez mais.
Ele gostava do meu jeito brasileiro de ser carinhosa e eu
estranhava a sua pontualidade britânica quando ele me
mandava mensagem dizendo que estava cinco minutos
atrasado. Ríamos das nossas diferenças e tornamos
aqueles dias inesquecíveis.
Fomos todos juntos em uma festa que ficava em um
lugar isolado. Pretendíamos chegar de barco até
descobrir que o mar estava muito agitado e o serviço foi
cancelado. Como alternativa, enfrentamos mais de 30
minutos na carroceria de uma caminhonete: adrenalina
pura.
Éramos quase arremessados para fora da 4x4 a cada
buraco imenso morro a cima. Macacos nos
acompanhavam nas árvores. O excesso de lama nos fez
ter que descer do carro para podermos continuar em
alguns trajetos. Mas, como sempre, a recompensava nos
esperava. Uma festa incrível em um lugar absolutamente
bonito no alto de uma montanha. Muitas pessoas se
divertiam ao som da música eletrônica, dançando
livremente.
Antes de amanhecer o dia descemos a trilha até a
praia. Tudo naquela ilha era sinônimo de intensidade e
beleza. Eu e o britânico deitamos nas pedras para ver o
sol nascer e pela primeira vez o assunto das nossas
conversas mudou, faltava apenas um dia para eu e as
meninas deixarmos a ilha.
“Você tem certeza que vai voltar para o Brasil?”. – Ele
perguntou enquanto olhava para o céu.
“Momentos como esse fazem a minha escolha mais
difícil. Mas eu sinto que é hora de voltar, minha família
me espera e eu quero trabalhar no meu projeto.”.
“Vai pra Bali comigo?”. – Eu não conseguia decifrar se
ele estava falando sério ou brincando.
“Que pergunta injusta. Deixa eu te fazer uma
pergunta também. Vai para o Brasil me visitar? Eu
preciso de um final feliz para o meu livro”. – Inverti a
situação.
“Justo você preocupada com o final, isso não combina
com o seu jeito de viver a vida.”. – Ele finalmente me
olhou e tive a sensação de me ver refletida em seus
olhos azuis.
Ele me beijou na testa e continuou.
“O que vivemos aqui, nesses poucos dias, poucas
pessoas viverão em uma vida inteira. Você é a garota
mais incrível que eu já conheci.”.
“Ser incrível de férias em uma ilha paradisíaca é fácil.
Na vida real eu não sou tão incrível assim” – Ri da minha
sinceridade.
“Pode ser, mas eu continuo achando você incrível.
Nem todo amor nasce para ser colocado à prova. E
justamente por isso você vai ser sempre o meu amor
mais bonito, que jamais se desgastará pelas brigas
diárias, mas que vai viver em mim por meio das
memórias que somente nós dois compartilhamos. Amor
não é necessariamente aquele que tem um final feliz,
amor é aquele que existe em plenitude, que sabe
admirar e respeitar, que sabe deixar livre. Não somos o
tipo de pessoa que vai aprisionar uma à outra. Talvez
sejamos mais completos separados.”. – Ele continuava
me olhando com uma delicadeza difícil de ser explicada.
“Nos conhecemos no final da minha viagem e no
começo da sua. Você ainda tem meses de estrada pela
frente e muita coisa vai acontecer ainda. O mundo te
espera. Será que é certo deixar que quatro dias
marquem tanto uma vida? Qualquer pessoa sensata me
diria que não.”. – Eu já sabia a resposta da minha
pergunta.
“Acho que já não temos mais essa opção, já está
marcado. É difícil de explicar e talvez as pessoas jamais
entendam. Me apaixonei por quem você é, pelo seu jeito
livre.”.
“Do que vivemos, só nós sabemos. Vamos ficar em
contato! Quero sempre ter pessoas como você por perto,
mesmo que longe, essa é minha especialidade. Você me
faz acreditar no impossível. Estou muito feliz por ter te
conhecido.”
“Eu também estou. Você é uma garota que não se
contenta com pouco, você sabe do que você precisa para
ser feliz e isso me dá a certeza de que você vai realizar
todos os seus sonhos”. – Ele não tinha problemas em
falar de sentimentos.
“Por que as nossas conversas são sempre longas e
profundas? Chega disso, vamos aproveitar o que nos
resta. O sol nasceu, mas a festa ainda não acabou.
Vamos voltar lá para cima.” – Já que tínhamos pouco
tempo, deveríamos aproveitar.
“Tá vendo, é disso que eu estou falando. Vamos lá.” –
Ele me pegou pela mão e seguimos em direção à trilha
que nos levaria de volta à festa.
Subimos a trilha e nos encontramos com as meninas,
que também estavam em clima de despedida. Todos nós
sabíamos que em breve seguiríamos rumos diferentes.
Aproveitamos até o último minuto para celebrarmos a
sorte de termos nos conhecido.
53. O meu
projeto
de vida

Eu não sabia dizer se o britânico realmente ficou doente


no dia de eu partir ou se ele preferiu não se despedir.
Nem todo mundo gosta tanto de despedidas como eu.
Nós nos despedimos por mensagens e acho que foi
melhor assim. A minha viagem tinha chegado ao fim. Eu
ainda tentava encontrar espaço dentro de mim para
acomodar tudo o que havia vivido. Parecia tanto para
uma pessoa tão pequena. Procurava espaço para abrigar
tantos sentimentos bons que me invadiam. Pela primeira
vez na vida, eu sentia a necessidade de gravar na pele
algo que me lembrasse para sempre o que tinha vivido
nesses seis meses.
Pouco antes de irmos embora da ilha, eu e as meninas
dirigimos quase meia hora com nossas motocas até uma
pequena casa de madeira, na beira da estrada. Deitada
em uma maca, escutava o reggae que tocava ao fundo e
reparava na decoração nada minimalista do ambiente,
uma foto do Bob Marley, pôsters, o símbolo da paz e
muitas fotos do meu tatuador.
Ele era muito engraçado: parecia a reencarnação de
alguma figura hippie dos anos 70. Ele era baixinho,
magro, tinha o cabelo um pouco ondulado bem escuro e
comprido, uma faixa grossa atravessada na testa, vestia
uma camisa floral que só começava a ser abotoada na
metade do peito e calças vermelhas.
Era ele quem sorria para mim enquanto preparava as
agulhas que iriam presas em uma vara de bambu. Essa
era uma técnica muito antiga e tradicionalmente
asiática.
Katy apoiava minha perna em seu colo, Louise
segurava a minha mão e Charlotte ajudava o nosso
amigo segurando minha boca. Quando o nosso amigo fez
sinal, ela puxou o meu lábio inferior que já tinha uma
prévia do desenho, transferida de um papel-manteiga
para a minha pele.
Eu senti muita dor. Era a primeira vez que o tatuador
fazia uma tatuagem de bambu dentro da boca. Ele
segurava com muita precisão o bambu e, de tempos em
tempos, molhava a ponta das agulhas em um potinho
com a tinta preta.
Charlotte continuava firme e forte segurando o lábio.
Inesperadamente, começou a tocar uma música do
Natiruts, uma das minhas preferidas de quando era
adolescente. Me trouxe calma escutar o verso que dizia
“…quero ser feliz também…”. Qual era a probabilidade
de tocar uma música do Natiruts bem no momento em
que eu fazia uma tatuagem em uma ilha da Tailândia?
Muito, mas muito baixa. Katy já tinha abandonado a
minha perna e fazia vídeos daquele momento.
Essa era a minha primeira tatuagem, então não sabia
comparar com a dor de uma tatuagem tradicional. Mas
doeu muito e eu não podia nem gritar. Meus pais iam me
matar quando eu contasse.
E foi assim que eu gravei a palavra LOVE em mim.
Não conseguia imaginar nenhuma outra palavra que
definisse melhor essa minha jornada em terras asiáticas.
Ela me lembraria para sempre de toda a experiência que
eu vivi, por não estar visível a ninguém, era como um
lembrete para mim mesma, de que o amor começa de
dentro para fora.
Para mim, ela representava uma busca, uma vitória, a
conquista de um grande sonho. Ela me ajudaria a nunca
mais esquecer de cada um dos sorrisos, pessoas,
lugares, lágrimas, despedidas, dores e gargalhadas que
fariam do Do For Love o meu projeto de vida.
SIM, É POSSÍVEL…

Eu lembro de estar perambulando pelas ruas de São


Francisco, vagando sem rumo, quando entrei
aleatoriamente em uma loja que vendia objetos criativos.
Como sempre, a sessão de livros me atraiu. Na verdade,
um livro em especial. Eu não me lembro do título
exatamente, mas era algo como “100 coisas para você
fazer antes de morrer”. Sim, um clichê, mas eu tinha 18
anos e estava fascinada com a liberdade do meu
primeiro mochilão.
Folheei o livro e li grande parte das dicas. Fiquei feliz
ao perceber que algumas coisas eu já tinha realizado,
como aprender uma nova língua, enquanto outras
pareciam impossíveis, pois nem todo mundo sonhava em
ganhar o Oscar. Mas uma delas me chamou a atenção: a
que dizia em letras garrafais ESCREVA UM LIVRO.
Desde criança, fui apaixonada por livros. Mas pela
primeira vez, estava questionando o meu hábito de
leitura. Ao invés de passar o resto da vida lendo e
comprando livros que contam histórias de outras
pessoas, eu poderia escrever a minha própria história.
Poderia ser a protagonista das minhas aventuras. Nunca
ninguém havia me ensinado que eu poderia ir além da
leitura daquelas páginas.
Quando estava na segunda série, a professora
entregou uma folha com três gravuras e pediu para
escrevermos uma história. Eu escrevi frente e verso e
ainda anexei uma folha extra, criando uma imensa
aventura para a garotinha das gravuras. Meus pais foram
chamados na escola.
Mas agora aquela mensagem no livro me trazia um
novo mundo de possibilidades. Continuei minha viagem.
Uma sementinha tinha sido plantada em mim.
Já de volta ao Brasil, eu decidi que iria escrever um
livro, mas que não contaria para ninguém. Se eu
contasse para as pessoas que eu queria ser uma
escritora, elas zombariam de mim. Ser escritor era coisa
de gente sonhadora, era escolher ficar pobre para o resto
da vida. Eu não queria escrever ficção, não queria me
esconder por trás de personagens, eu queria escrever
sobre as coisas que eu acreditava.
Com 18 anos, eu me sentia diferente das outras
pessoas. Queria escrever o que eu não conseguia falar
com ninguém. Eu não fazia a menor ideia de qual seria a
minha profissão, mas eu tinha comigo uma certeza de
que algum dia alguém me descobriria. Eu não sabia bem
ao certo, mas era como se, de surpresa, um olheiro me
encontraria e minha vida se resolveria.
Escrevi sobre mim, sobre o meu desejo incansável de
querer viajar e de como era difícil me adaptar à maneira
míope de como as pessoas viam a vida. Eu tinha uma
urgência em mim que não via nas outras pessoas.
Escrevi algumas poucas páginas, salvei em uma pasta
que ninguém acharia e, com o tempo, eu mesma não a
achei mais. Eu tinha vergonha de alguém descobrir que
eu escrevia sobre mim: escrever era uma grande
besteira e eu era somente mais uma pessoa que deveria
seguir o modelo de vida imposto.
Tudo o que eu ouvia era que eu precisava me formar e
conseguir um emprego, precisava achar uma maneira de
me tornar financeiramente independente dos meus pais,
precisava pagar as minhas próprias contas.
Durante muitos anos, eu continuaria nessa briga
interna: a minha verdade contra a verdade alheia. Eu não
me encaixava nos moldes, mas também não era uma
rebelde. Eu queria viver um equilíbrio que parecia não
existir. Não conseguia encontrar aquela etiqueta que me
definiria.
Foi durante a viagem para o Sudeste Asiático que
comecei timidamente a publicar meus textos. Não os
publicava porque os achava excelentes, publicava porque
eu tinha a necessidade de compartilhar o que eu sentia
com o mundo, alguma coisa começava a transbordar em
mim. Aos poucos, fui gostando de me expor, porque
percebi que não estava sozinha naquela busca e mais
pessoas me acompanhavam.
Conforme escrevia mais relatos, comecei a receber
algumas mensagens pedindo para que um livro fosse
publicado. Eu tenho certeza que nenhuma daquelas
pessoas que me fizeram esse pedido imaginavam o
quanto ele mexeria comigo.
Ele me levou de volta para aquela página do livro que
eu vi em São Francisco que me dizia: ESCREVA UM LIVRO.
A diferença é que agora essa frase se repetia nas
palavras de outras pessoas, elas acreditavam que a
minha história valia a pena ser contada, elas estavam
acreditando em mim.
Mas ainda haveria um longo caminho a ser percorrido.
Eu precisava acreditar em mim mesma. Em algum
momento eu entendi que aquele olheiro, aquela pessoa
que eu esperava me descobrir, aquela pessoa era, na
verdade, eu mesma. A partir do momento em que eu me
descobri, eu me amei e acreditei em mim. Eu me
encontrei na soma da minha paixão por viajar com o meu
desejo por ajudar, mas cada um percorre o seu próprio
caminho e vai se transformando ao longo da jornada.
Independentemente de qual caminho seja, o mais
importante é que façamos por amor e que sejamos fiel a
nossa essência, a quem somos. Sempre lembrando que o
amor nasce dentro de cada um e só podemos doar aquilo
que transborda em nós.
Eu sempre tive muitos sonhos, mas não queria ser
uma simples sonhadora. Eu queria ser uma sonhadora
que realiza, eu queria poder falar com a prioridade de
quem concretiza um sonho que é preciso acreditar com
todo o coração, é preciso ter força para seguir em frente,
é preciso confiar na grandiosidade da vida e lutar pelo
que acreditamos, pelo que sonhamos.
E nesse momento, este livro em suas mãos representa
o meu sonho realizado.
Ele começou pequeno, tímido, facilmente teria sido
deixado de lado diante das “urgências” da vida. Mas esse
sonho se tornou possível com a ajuda de quase 400
pessoas por meio de um financiamento coletivo que
atingiu 130% da meta. Isso foi em 2016, quando a minha
presença online era quase inexistente e eu trabalhava
como garçonete em Nova York. Esse pequeno passo na
direção do que eu acreditava me levou a dar outros
passos que cada vez mais me guiam na direção do que
eu realmente sonho para mim.
Logo depois de lançar o livro, fui chamada para a
segunda palestra da minha vida: um TEDx. O Ted Talk é
uma plataforma mundialmente conhecida e um sonho
para muitas pessoas. A minha fala teve o tema “Pratique
a lei do viajante” e foi emocionante ver como as pessoas
se conectaram com o que eu tinha para compartilhar
naquele momento.
Poucos meses depois de lançar o livro, marcando 3
anos dessa viagem para a Ásia, eu retornei em todos os
países e reencontrei os principais personagens que você
acabou de ler nessas páginas e em parceria com um dos
diretores mais talentosos da sua geração, Lucas Bogo,
gravamos um documentário independente, sem nenhum
apoio ou patrocínio. O documentário foi financiado pela
venda de livros e camisetas, o que nos possibilitou dar
vida a um filme inspirador e verdadeiro. Eu mesma
organizei exibições do documentário em 14 cidades
brasileiras seguido de sessões em Los Angeles, San
Diego e um tour pela Europa que encheu salas de cinema
em Londres, Lisboa, Barcelona, Berlin e Dublin.
Por ser uma produção independente, tivemos que
explorar cada janela de distribuição do filme antes de
finalmente disponibilizá-lo na internet. Mas depois de
rodar o Brasil, a Califórnia, a Europa e estrear no Canal
Futura para todo o Brasil, finalmente ele estará
disponível online. Ler o livro e assistir ao filme,
independente da ordem, é uma experiência única, pois
permite ao leitor conhecer os personagens reais dessa
história. O livro ganha cores, vozes, música e as histórias
se complementam. Te convido a procurar nas redes
sociais informações atuais de como você pode assistir ao
filme! E se você já assistiu ao filme e acaba de ler o livro,
fico feliz em saber que você viveu a experiência por
completo.
E foi assim que a ex-garçonete perdida pelo mundo foi
aos poucos encontrando seu espaço. Hoje me vejo sendo
escritora, documentarista, protagonista do documentário,
produtora dos meus eventos, empreendedora,
palestrante, viajante, roteirista e curiosa por todas as
novas experiências, destinos e descobertas que estão
por vir. Sigo desconstruindo muitos padrões do modelo
tradicional que me foi apresentado, sigo me
questionando e cada vez mais me aceitando como um
ser múltiplo, errante, curioso e acima de tudo,
apaixonada pelo desconhecido.
E eu espero de todo meu coração que esse livro seja
fonte de inspiração na sua vida, que ele te inspire a ser
você mesmo, a viver o seu “Do For Love” e a ter certeza
de que vale a pena lutar e acreditar.
Saiba que todos os seus sonhos são possíveis!
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PUBLISHER
Leticia Mello

CAPA
Arthur Brognoli

FOTO DA CAPA
Victoria Shao

DIAGRAMAÇÃO
Arthur Brognoli

REVISÃO
Claudio Mello
Arthur Leite de Godoy
Notas

[1]
Lady boy é uma gíria comumente utilizada na Tailândia que se refere aos
transexuais asiáticos.[Voltar]
[2]
GAARDEN, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo, Cia. das Letras, 4 ed., 1995.
[Voltar]
[3]
“Você nasceu para resistir ou para ser abusado? Tem alguém tirando o
melhor de você?"[Voltar]
[4]
Agora que você faz parte do meu mundo, te faço um convite super especial:
traga essas experiências da leitura para sua vida. O capítulo de ponta-
cabeça é um convite para te tirar do lugar comum, pensar fora do padrão e
não se importar com o que os outros vão pensar; as fotos ao final do livro
tem uma linha pontilhada para você cortar as fotos e usá-las, uma maneira
divertida de colocar o desapego em prática. As mudanças que desejamos na
nossa vida começam com desafios pequenos e gostaria que essa leitura te
ajudasse de alguma forma. Esse livro tem vida própria e acredito muito que
ele chega até cada pessoa na hora certa. Então fique a vontade: empreste o
livro, passe-o adiante ou presenteie alguém especial com um exemplar.
Precisamos de cada vez mais pessoas vivendo suas verdades e
influenciando de forma positiva o mundo ao seu redor. Meu desejo é que
essa leitura te faça refletir, questionar e realizar seus sonhos. Afinal, qual é
o seu Do For Love? [Voltar]

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