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ORTNER, Sherry B. A antropologia sombria e seus outros: Teoria desde os anos oitenta. Tradução e revisão
Jainara Oliveira & Chiara Albino. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v4, n11, p.
27-50, julho de 2020. ISSN 2526-4702.
DOSSIÊ
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O trabalho acadêmico, pelos menos nas ciências sociais, não pode ser separado das
condições do mundo real em que se desenvolve. Os marcos teóricos que usamos e os fenômenos
que escolhemos explorar são afetados de inúmeras maneiras pelas circunstâncias políticas,
econômicas e culturais nas quais realizamos nossa pesquisa, mesmo que essa pesquisa seja
sobre o passado distante ou lugares longínquos. Como os estudiosos em ciências sociais têm
argumentado durante décadas, até mesmo o estudo de objetos físicos e de forças remotas dos
assuntos humanos está condicionado pelas circunstâncias históricas que circundam a pesquisa.
O caso em questão neste artigo é a transformação da antropologia contemporânea em
relação, entre outras coisas, ao início da ordem sócio-econômico-política chamada
“neoliberalismo”. Embora definirei especificamente o termo mais adiante no artigo, necessito
dizer algumas palavras sobre isso aqui. No período em discussão - aproximadamente desde
meados de 1980 até meados de 2010 - o neoliberalismo como uma forma nova e mais brutal de
capitalismo se expandia rapidamente pelo mundo. Na frente interna, a economia norte-
americana na década de 1980 começou o que o historiador Robert Brenner (2006) chamou de
“a longa crise”, que culminou no quase colapso da bolsa de valores em 2008, seguido por uma
1
Publicação original disponível em: ORTNER, Sherry B. Dark anthropology and its others: Theory since the
eighties. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 6, n. 1, 2016, pp. 47-73. As tradutoras agradecem à Sherry B.
Ortner e à Lisa McKamy, editora-chefe da revista HAU, a autorização para traduzir e publicar este artigo.
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recessão profunda. Os bancos, que se tornaram “grandes demais para quebrar”, foram
socorridos depois da crise com o dinheiro dos contribuintes e rapidamente recompensaram seus
executivos de alto nível com bônus gigantescos. Além disso, a lacuna entre ricos e pobres nos
Estados Unidos cresceu constantemente durante este período, eventualmente superando a
lacuna existente antes da Grande Depressão na década de 1930 - e os economistas estão cada
vez mais pessimistas sobre a reversão desta tendência (PIKETTY, 2014). Enquanto isso, na
frente internacional, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial impulsionaram
políticas econômicas neoliberais que essencialmente esmagaram as economias das nações
menores e pobres do mundo (FERGUSON, 1999; DUMÉNIL; LÉVY, 2004; HARVEY, 2005;
KLEIN 2007; ORTNER, 2011).
Escrevo, admito, a partir da perspectiva dos Estados Unidos, onde a situação tem sido
extrema, particularmente no que diz respeito às transferências ascendentes de riquezas e seu
impacto na política norte-americana, e no que se refere ao crescimento de uma profunda
desigualdade. É claro que há uma grande variação entre os casos locais e nacionais. Aihwa Ong
nos adverte que não devemos ver o neoliberalismo “como uma maré... que se estende dos países
dominantes para os menores” (2006, p. 12) e, ao invés disso, nos incita a olhar as assembleias
complexas (ONG; COLLIER, 2005), nas quais o neoliberalismo entra em diferentes tempos e
lugares. Além desse tipo de variações, a situação está evoluindo ativamente em diferentes partes
do mundo, inclusive enquanto escrevo. Os antropólogos estão começando a documentar
adaptações criativas ao neoliberalismo, bem como movimentos de resistência contra ele - e, em
qualquer caso, alguns países claramente estão se saindo melhor do que outros. Assim, mais uma
vez, as discussões neste artigo não assumem desdobramento uniforme do neoliberalismo em
todas partes, mas são escritas no contexto de caso norte-americano, e em um período em que as
condições foram particularmente “sombrias”.
Este artigo não intenta sugerir que o neoliberalismo explica todas as coisas ruins que
acontecem nos Estados Unidos e no mundo. As questões de raça e gênero, e violência religiosa
e étnica, têm suas próprias histórias locais e suas próprias dinâmicas internas, ainda que não
escapem de seus enredamentos com as formas neoliberais de economia e governança onde estas
aparecem.
E, finalmente, este artigo não pretende cobrir todos os desenvolvimentos em
antropologia no período em discussão. Muitos desenvolvimentos interessantes e importantes
não são discutidos, incluindo a “virada ontológica” (por exemplo, COSTA; FAUSTO, 2010;
GRAEBER, 2015; SALMOND, 2014; TSING, 2015), a “virada afetiva” (por exemplo,
MANKEKAR, 2015; MAZZARELLA, 2009; RUTHERFORD, 2016), e a virada para a “teoria
etnográfica” (da COL; GRAEBER, 2011), entre outros. Em vez disso, este ensaio concentra-se
em um grupo de três áreas interrelacionadas de trabalho que vejo como vinculadas aos
funcionamentos problemáticos do neoliberalismo: (1) a emergência do que chamo de
“antropologia sombria”, incluindo tanto a teoria quanto a etnografia; (2) a emergência
dialeticamente vinculada do que tenho chamado de “antropologias do ‘bem’”; e (3) a re-
emergência do estudo da “resistência”, que trato como um termo guarda-chuva para um
conjunto de novos trabalhos críticos, etnográficos e teóricos.
O triunfo da antropologia sombria
Como já discuti em um ensaio anterior (ORTNER, 1984), nas décadas de 1960 e 1970
a antropologia norte-americana foi dominada por uma divisão entre uma ala “culturalista”,
liderada por Clifford Geertz (por exemplo, 1973) e seus alunos, e uma ala marxista ou
materialista, liderada por Eric Wolf (por exemplo, 1982) e seus colegas (por exemplo, HYMES,
1972). Inspirado principalmente por Max Weber, Geertz e seus seguidores estavam interessados
em novas maneiras de pensar sobre a cultura - sobre como a cultura provê significado à vida
das pessoas, e como os antropólogos podem chegar a entender esses significados. Wolf e
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companhia, por outro lado, estavam inspirados principalmente por Marx, e estavam
interessados nas maneiras pelas quais as vidas das pessoas estão menos moldadas pela sua
cultura e mais pelas forças econômicas e políticas em jogo, tanto local quanto globalmente. Do
ponto de vista dos culturalistas, o trabalho dos estudiosos em economia política era
reducionista: os motivos das pessoas eram reduzidos a “interesses” simplistas, e suas vidas eram
vistas como reflexos de forças mecânicas. Do ponto de vista dos materialistas, por outro lado,
o trabalho dos culturalistas era basicamente insuficiente: ao tratar a cultura como textos
literários, ignoravam as adversas realidades de poder que impulsionaram grande parte da
história humana.
A perspectiva culturalista prevaleceu durante boa parte das décadas de 1960 e 1970, ao
menos nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, e em parte se sobrepondo à abordagem da
economia política marxista, tomavam forma novas críticas que também insistiam na
importância de considerar questões de poder, desigualdade, dominação e exploração. Foi de
particular importância a emergência da teoria pós-colonial, que atravessou uma ampla gama de
disciplinas. Na antropologia, uma publicação antiga e muito importante foi a coleção
Anthropology and the colonial encounter (1973) de Talal Asad.2 O início de 1970 também viu
o crescimento dos estudos feministas, novamente em uma ampla gama de disciplinas. As
entradas principais neste campo em antropologia foram Woman, culture and society (1974) de
Michelle Rosaldo e Louise Lamphere, e Toward an antropology of women (1975) de Rayna
(Rapp) Reiter. Embora a raça não estivesse em primeiro plano da mesma maneira até um tempo
depois (mas veja SZWED, 1972), os estudos críticos do colonialismo e do pós-colonialismo
continham uma forte dimensão da crítica racial.
Os praticantes destes novos tipos de trabalho não necessariamente concordavam uns
com os outros: as pessoas da economia política tendiam a ignorar o gênero (se não a raça); os
estudiosos do colonialismo muitas vezes tinham problemas com economia política; e os
estudiosos de gênero não concordavam necessariamente entre si. Mas todos concordavam, ao
menos implicitamente, que a antropologia tinha que começar a prestar atenção às questões de
poder e desigualdade, e a longo prazo, a partir de 1980, estes começaram para prevalecer. As
questões de poder e desigualdade passaram a dominar a paisagem teórica, tanto no âmbito dos
“ancestrais” teóricos (MARX, WEBER, etc.), quanto no âmbito dos assuntos mais
proeminentes da pesquisa contemporânea (colonialismo, neoliberalismo, patriarcado,
desigualdade racial, etc.). Chamo isso de ascensão da “antropologia sombria”: isto é, a
antropologia que enfatiza as dimensões duras e brutais da experiência humana, e as condições
estruturais e históricas que as produzem. Essa mudança para a antropologia sombria (incluindo
tanto a “teoria sombria” quanto a “etnografia sombria”) é, ao menos em parte, uma resposta às
críticas internas que acabamos de delinear, mas também uma resposta - eu argumentaria - às
condições crescentemente problemáticas do mundo real sob o neoliberalismo.3
Vejamos primeiro a mudança nos ancestrais teóricos. Em 1971, Anthony Giddens
publicou um dos livros mais vendidos de todos os tempos da literatura de ciências sociais,
Capitalism and modern social theory. Giddens argumentou que a teoria social moderna foi
inaugurada pelo trabalho de Karl Marx, e pelos de Émile Durkheim e Max Weber, respondendo
em parte à obra de Marx. Isto representou uma ruptura significativa com convenções prévias
nas ciências sociais, as quais, por razões diversas nos dois lados do Atlântico, deixaram em sua
maior parte a obra de Marx fora do cânone da teoria. Provavelmente o conjunto de Marx–
2
Cinco anos depois, Edward Said publicou o Orientalismo (1978), que foi aclamado como uma obra de grande
originalidade, embora ele estivesse fazendo pontos praticamente idênticos aos de Asad.
3
Obviamente, existem muitos outros fatores por trás dessa mudança nesse momento. Entre outras coisas, se poderia
observar mais de perto outras tensões dentro do campo, particularmente aquelas que cercam a publicação de
Writing Culture (CLIFFORD; MARCUS, 1986). Estou em dívida para com Johnny Parry por enfatizar este ponto,
mas infelizmente não pode ser tratado dentro dos limites deste artigo.
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Mas, na esteira do trabalho de Talal Asad, Edward Said e, eventualmente, muitos outros, o
campo como um todo se transformou radicalmente. Tornou-se impossível olhar para o chamado
Terceiro Mundo sem entendê-lo como parte de uma história de expansão colonial (e, para os
marxistas, capitalista). A divisão do mundo em nações ricas e pobres que temos hoje se tornou
inteligível como resultado de, entre outras coisas, a extração de riqueza das colônias no passado.
Muitas formações sociais e culturais que apareceram em trabalhos antropológicos anteriores
como “atemporais” vieram a aparecer sob uma luz diferente quando confrontadas com um pano
de fundo da história colonial (ver, por exemplo, MAMDANI (1996) sobre conflito étnico; e
DIRKS (2001) sobre castas). Histórias refinadas do encontro colonial (COMAROFF;
COMAROFF, 1991, 1997, na África; MERRY, 2000, no Havaí) contam relatos da reconstrução
implacável de povos e culturas sob as condições de penetração e dominação ocidentais (i.e.,
missionárias e coloniais), que simplesmente não estavam na agenda quando eu era estudante de
antropologia e que representam uma das tantas transformações sombrias do campo aqui em
discussão.
Em última instância, os marcos pós-colonial e neoliberal começarão a convergir, já que
a maioria das pós-colônias será neoliberalizada, por meio de um ou outro mecanismo. Aqui,
então, me volto para o fenômeno do neoliberalismo.
Neoliberalismo no mundo e na antropologia
Se o neoliberalismo (entre outras coisas) está por trás do surgimento da teoria sombria,
então podemos dizer que também está à sua frente: o neoliberalismo e seus efeitos se tornaram
objetos de estudo e marcos para entender outros objetos de estudo em uma ampla gama de
trabalho antropológico (para começar, ver GREENHOUSE, 2010; GUSTERSON;
BESTEMAN, 2010). Como com o colonialismo, é difícil exagerar o grau em que essas questões
passaram a dominar o campo. Concentro-me aqui em dois dos maiores grupos de trabalho que
se acumularam sobre esse assunto desde 1980. Um deles começa com o neoliberalismo como
um tipo específico de sistema econômico e traça o impacto das políticas econômicas neoliberais
tanto no Norte Global como no Sul Global. O outro começa com o neoliberalismo como uma
forma específica de governamentalidade e rastreia a variedade de formas que assume em
diferentes contextos. Examinarei essas duas áreas separadamente, mas destaco aqui que não se
trata de uma distinção rígida e rápida, e que há muita sobreposição entre os dois tipos de
trabalho. Destaco também que não se trata de uma análise exaustiva do neoliberalismo como
tal, mas sim uma tentativa de distinguir algumas das linhas de trabalho mais proeminentes que
os antropólogos têm desenvolvido sobre o assunto.
Economia: Acumulação por despossessão
David Harvey começa sua breve e indispensável história do neoliberalismo com a
seguinte definição básica:
O neoliberalismo é, em primeiro lugar, uma teoria de práticas político-econômicas
que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as
capacidades e liberdades empresarias do indivíduo dentro de uma estrutura
institucional caracterizada por fortes direitos de propriedade privada, livres mercados
e livre comércio. O papel do estado é criar e preservar uma estrutura institucional
apropriada a tais práticas. (2005, p. 2).
Esse marco institucional inclui, entre outras coisas, a remoção das regulamentações
governamentais sobre os negócios; a redução do poder dos trabalhadores para fazer demandas;
o enxugamento da própria força de trabalho; a privatização dos bens públicos e instituições; e
a redução radical de programas de assistência social para pessoas pobres. O efeito de tudo isso
tem sido o crescimento da desigualdade extrema dentro e entre as nações, com um punhado de
indivíduos ricos tornando-se dramaticamente mais ricos, as massas de pobres tornando-se
significativamente mais pobres, e a classe média resistindo - onde o faz - a uma força de trabalho
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Da mesma forma, o documentário Roger and me (1989) de Michael Moore registra a devastação de sua cidade
natal, Flint, Michigan, como resultado do fechamento da fábrica de automóveis da General Motors que se situava
ali.
5
Esses “mercados de trabalho mais baratos” também foram estudados por antropólogos, começando com Ong
(1987), e incluindo estudos das condições dos trabalhadores ao largo da fronteira México e Estados Unidos
(FERNÁNDEZ-KELLY, 1983; SKLAIR, 1993; SKLAIR, 1993; WRIGHT, 2001).
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ilustra com fotografias - uma “estética da segurança” que se expandiu pela cidade (ibid., p.
291).
Qual é a lógica que conecta a proliferação de prisões e a construção de um ambiente a
partir de modelos que copiam as prisões à teoria econômica neoliberal? Como com todo o resto
sobre o neoliberalismo, existe uma lógica de cima para baixo e outra lógica de baixo para cima.
Do ponto de vista do estado e de outras entidades de governança, a proliferação de prisões é
parte da guerra contra os pobres e os que são racialmente marginalizados: por meio de uma
lógica que consiste em culpar a vítima, são estereotipados como sujeitos neoliberais
irresponsáveis (se fossem responsáveis, não seriam pobres) e encarcerados ao menor indício de
delito, e às vezes sem sequer um indício. De baixo para cima - isto é, do ponto de vista nativo
- por outro lado, a lógica emerge da atmosfera mais ampla de insegurança alimentada pelo risco
nos trabalhos e sua cultura associada de precariedade. A precariedade da vida sob o
neoliberalismo é projetada para fora como uma ameaça dos pobres e outros racializados; a
emergência histórica de condomínios fechados corresponde, como muitos observadores
notaram (por exemplo, CALDEIRA, 2001; ORTNER, 2013a), não a um aumento na taxa de
crimes - na verdade, a taxa de crimes violentos tem diminuído ao longo desse período - mas à
implantação da economia neoliberal.7 E como uma coda a essa história, notamos que prisões
em si mesmas não escapam à neoliberalização; muitas prisões nos Estados Unidos foram
privatizadas e são agora administradas como negócios com fins lucrativos.8
Finalmente, pode-se ver que a governança punitiva engloba a racionalidade econômica
discutida na seção anterior, e podemos ver isso etnograficamente também. Observei
anteriormente que, apesar de que os cortes na força de trabalho norte-americana foram
representados como uma espécie de mal econômico necessário em relação à concorrência
global, na verdade, às vezes parecia ter uma motivação mais irracional e quase cruel, por trás
disso, que discuti em termos de vários exemplos da guerra contra os pobres. Mas as
irracionalidades punitivas dos cortes também podem ser vistas no topo da escala das ocupações,
como, por exemplo, no estudo de Karen Ho (2009) sobre banqueiros de Wall Street. Ho
apresenta um retrato dos bancos de investimento de Wall Street envolvidos em ciclos de
contratações e demissões que estão relacionados em partes com as flutuações do mercado. Em
vez disso, a ideia de insegurança no emprego é profundamente normalizada e até valorizada
como uma maneira de fazer com que as empresas pareçam flexíveis e dinâmicas.
De fato, os trabalhadores ao longo da nova economia foram forçados a se adaptar a uma
vida em que os empregos são precários, o desemprego é familiar, e passar longos períodos como
“contratados independentes” é normal. Richard Sennett (1998) chamou isso de a lógica de
“nada a longo prazo”; todo trabalho hoje em dia é profundamente inseguro e pode ser cortado
em qualquer momento. E, como com a pessoa autogerenciada e a estética da prisão, isso foi
generalizado para a cultura em sua totalidade. Assim, David Harvey começa sua breve história
do neoliberalismo com uma citação nesse sentido de Jean-François Lyotard (1984) sobre a
condição pós-moderna “como aquela em que ‘o contrato temporário’ suplanta as ‘instituições
permanentes nos domínios profissionais, emocionais, sexuais, culturais, familiares e
internacionais, bem como nas questões políticas” (HARVEY, 2005, p. 4).
7
A disseminação de condomínios fechados também pode ser interpretada em relação à demanda por “privatização”
na lógica econômica neoliberal. No entanto, o termo “privatização” no contexto econômico não se refere à
“privacidade” pessoal, mas à venda de bens públicos para empresas privadas. Ainda assim, de certa forma, o
resultado é o mesmo: quando a propriedade pública é vendida ou quando as pessoas se retiram para condomínios
fechados, o resultado é o enfraquecimento da esfera pública.
8
Esta é uma história triste por si mesma, mas foi levada ao extremo em um, agora famoso, esquema de propina na
Pensilvânia, onde dois juízes conspiraram com os proprietários de um centro privado de detenção juvenil local
para enviar milhares de crianças à prisão, para que os proprietários/carcereiros pudessem cobrar as taxas per capita
(MOORE, 2009; ECENBARGER, 2012).
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Antropologia do bem
Tenho fornecido um panorama do que chamei a virada para a “antropologia sombria” -
a teorias do poder ubíquo e da desigualdade, e a estudos etnográficos de, na melhor das
hipóteses, insegurança econômica e governamentalidade punitiva. Mas a virada para a
antropologia sombria não passou despercebida e, de fato, provocou fortes reações em alguns
espaços. Notando o “marcado aumento no trabalho antropológico que analisa experiências de
violência e crueldade”, por exemplo, Tobias Kelly pergunta: “Até que ponto a etnografia do
sofrimento não se tornou em uma quase pornografia voyeurística?” (2013, p. 213). Na verdade,
há vários tipos de trabalhos que podem ser considerados como uma forma de resistência à virada
sombria; vou revê-los brevemente aqui.
Em um influente artigo intitulado “Beyond the suffering subject: Toward an
anthropology of the good,” Joel Robbins argumenta que “o sujeito sofredor... que vive na dor,
na pobreza ou sob condições de violência ou opressão muitas vezes está no centro do trabalho
antropológico atual” (2013, p. 448). Robbins procura estabelecer, em seu lugar, “uma
antropologia do bem... focada em tópicos como valor, moralidade, bem-estar, imaginação,
empatia, cuidado, dom, esperança, tempo e mudança” (ibid.).
Entre esses termos, “bem-estar” tornou-se um dos maiores focos de pesquisa. Por
exemplo, The good life: Aspiration, dignity, and the anthropology of wellbeing (2014) de
Edward F. Fischer, é um estudo sobre as ideias de bem-estar entre os alemães de classe média
e os produtores de café guatemaltecos. Tal como na “antropologia do bem” de Robbins, Fischer
considera seu livro como parte e - contribuindo para - o que ele chama de “antropologia
positiva” (ibid., p. 17). Intimamente relacionada à ideia de bem-estar está a de “felicidade”. No
ano seguinte, HAU publicou uma edição especial intitulada “Happiness: Horizons of purpose”
(v. 5, n. 3), que consistia em uma série de artigos sobre a felicidade em uma ampla gama de
casos etnográficos. Na introdução, os editores se referem à “recente ‘virada da felicidade’ nas
ciências sociais” (WALKER; KAVEDŽIJA, 2015, p. 2), e chamam os antropólogos a
contribuírem mais com essa tendência. Eles especulam sobre as razões da relativa ausência
desta área de trabalho na antropologia: para os antropólogos “há uma certa suspeita sobre a
felicidade como uma preocupação essencialmente burguesa, cada vez mais associada a uma
agenda neoliberal e potencialmente em desacordo com as políticas emancipatórias” (ibid., p.
4); e que “a disciplina tem muitas vezes gravitado para formas de experiência humana mais
‘negativas’, tais como o sofrimento, a dor ou a pobreza” (ibid.). Assim, eles pedem uma
antropologia mais positiva, embora deva ser dito que as discussões nos artigos específicos
mostram a felicidade como um fenômeno muito mais complexo e ambivalente do que a própria
palavra tende a evocar, pelo menos no inglês norte-americano.
Estes corpos de trabalhos são interessantes e importantes. Concordo que é importante
investigar de perto “sobre o que dá um sentido de propósito ou direção na vida, ou como as
pessoas buscam a melhor maneira de viver - mesmo em circunstâncias terríveis e hostis” (ibid.,
p. 17), e que a “felicidade” parece fornecer uma entrada poderosa nesta questão. Também
concordo que os antropólogos quase sempre estão melhor preparados para fazer esses tipos de
perguntas, e pensar profundamente sobre as respostas do que os pesquisadores, que parecem
controlar grande parte da pesquisa sobre felicidade hoje em dia. Mas confesso que me
surpreendi com “a virada da felicidade” no meio de toda a obscuridade discutida na seção
anterior deste artigo. Refletindo, no entanto, faz sentido precisamente como uma reação a esse
trabalho.
A outra grande área de trabalho que responde, pelo menos em parte, à virada sombria é
a produção sobre moralidade e ética. Michael Lambek abre sua importante coleção Ordinary
ethics com a seguinte afirmação:
Os etnógrafos comumente descobrem que as pessoas que encontram intentam fazer o
que consideram como correto ou bom, e estão sendo avaliadas de acordo com critérios
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do que é correto e está bem, ou estão em algum debate sobre o que constitui o bem
humano. No entanto, a teoria antropológica tende a ignorar tudo isso em favor de
análises que enfatizam a estrutura, o poder e o interesse. (2010a, p. 1)
Lambek apresenta uma lista de temas cobertos na coleção que talvez tenha sido a
inspiração para a lista de Robbins, acima citada: “liberdade, julgamento, responsabilidade,
dignidade, autoformação, cuidado, empatia, caráter, virtude, verdade, raciocínio, justiça e a boa
vida para a humanidade” (ibid., p. 6).
A antropologia da moralidade e da ética é hoje um subcampo de pesquisa e teorização
grande, extenso e algo controverso, que inclui tanto um lado mais social, proveniente pelo
menos em parte do trabalho de Durkheim, quanto um lado mais individual, construído em
grande parte em oposição ao paradigma durkheimiano. Noto isso primeiro em relação ao meu
ponto anterior de que a posição de Durkheim entre os teóricos ancestrais se desvaneceu muito.
Durkheim certamente desvaneceu com a passagem do funcionalismo e da visão holística da
sociedade que prevaleceu na antropologia no início de meados do século XX. Também
desvaneceu em relação à ascensão de teorias do poder, da dominação e da exploração sobre as
quais tinha pouco a dizer. Por outro lado, como um teórico da sociedade como um universo
moral, adquiriu uma relevância renovada neste corpo de trabalho, tanto a favor como contra
(LAMBEK, 2010b; YAN, 2011; FASSIN, 2014).
O movimento moralidade/ética apresenta outro importante complemento à virada
sombria na teoria antropológica e no trabalho etnográfico discutido na primeira parte deste
artigo. O foco nas tentativas de atores reais de lidar com dilemas morais e fazer escolhas éticas
pode ser visto como um contraponto positivo e humano à obscuridade do trabalho sobre a
opressão neoliberal e a restrição governamental. Similarmente, o foco em temas como cuidado,
amor, empatia, responsabilidade, e sobre tratar - mesmo que fracassando - de fazer a coisa certa,
é um contraponto refrescante e edificante a uma dieta estrita do (primeiro) Foucault, na qual
nenhuma boa ação fica impune e em que cada ação potencialmente positiva poderia
simplesmente ampliar as teias de poder nas quais vivemos.
Minha única preocupação sobre todo esse (novamente, valioso) trabalho, incluindo tanto
a versão mais psicológica/médica com sua ênfase na (busca da) felicidade e/ou bem-estar,
quanto a versão mais ética/moral com sua ênfase na (busca da) virtude e do bem, é a cortante
linha que às vezes é traçada entre este trabalho e o trabalho sobre poder, desigualdade e
violência discutido anteriormente. Em vez de postular uma relação oposta entre os dois, será
útil aqui considerar os trabalhos que tentam integrá-los. Um bom ponto de partida seria o ensaio
de Veena Das no volume de Lambek intitulado “Engaging the life of the other: Love and
everyday life” (2010). O artigo trata sobre o casamento de um homem hindu e uma mulher
muçulmana em um bairro de baixa renda em Nova Délhi, e a maneira em que isso lentamente
foi trabalhado à sombra de uma história longa e contínua de violência e inimizade hindu-
muçulmana. Ao longo do artigo, Das vai e volta entre, por um lado, a formação de relações
cotidianas entre a noiva, o noivo e suas respectivas famílias e, por outro lado, as implicações
políticas maiores e o potencial para a violência que circunda os casamentos entre castas e
religiões. Ela nos insta a “prestar atenção à maneira na qual o esforço moral se manifesta nos
trabalhos cotidianos de cuidar do outro, mesmo em contextos em que o antagonismo mútuo
define a relação” (ibid., pp. 398-99).
Didier Fassin também dedicou um extenso trabalho a explorar as complexidades da ética
no contexto de situações políticas de desigualdade e violência. Em sua palestra/ensaio
“Troubled waters: At the confluence of ethics and politics” (2015), por exemplo, ele considera
três casos, em diferentes níveis de escala: as intervenções militares europeias e norte-
americanas na Líbia sob o princípio da “Responsabilidade de Proteger” das Nações Unidas; a
resposta nacional francesa aos atentados terroristas em Charlie Hebdo e em um supermercado
kosher em Paris; e as maneiras nas quais a polícia trata os jovens nas áreas densamente
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Distinguiria pelo menos três grandes áreas nas quais se está realizando um trabalho
importante: (1) “crítica cultural” (pace Hale), que inclui escritos etnográficos críticos sobre
condições de desigualdade, poder e violência em várias partes do mundo; (2) uma série de
trabalhos, em sua maioria, teóricos, voltados para repensar o capitalismo como um sistema; e
finalmente (3) um conjunto de trabalhos sobre movimentos sociais que tomaram forma no
período neoliberal. Direi algumas palavras sobre cada uma.
Sob a rubrica de “crítica cultural”, gostaria de voltar aos estudos empíricos críticos
revisados na primeira parte deste artigo, incluindo tanto os estudos etno-históricos no caso do
colonialismo, e estudos mais estritamente etnográficos. Estes últimos incluem etnografias de
comunidades impactadas economicamente pelo neoliberalismo, mostrando as muitas maneiras
pelas quais os indivíduos e as comunidades experimentaram as consequências da
desindustrialização, da globalização e da perda de empregos e de oportunidades. Este grupo
também inclui estudos de empresas e indústrias que são organizadas para lucrar com esses tipos
de perdas. Além do econômico, consideramos os estudos da governamentalidade neoliberal,
incluindo a proliferação das prisões, o crescimento do “estado carcerário”, e a disseminação da
“estética da prisão”. Trago tudo isso de volta aqui porque é importante reconhecer esses
trabalhos não como exemplos de uma “pornografia miserável” (por mais sombrios que sejam),
mas como exemplos de um gênero etnográfico crítico novo e importante, lançando luz sobre o
mundo em que vivemos hoje e revelando seu funcionamento interno.
Também incluiria neste grupo um conjunto de trabalhos críticos que são realizados na
ampla área da antropologia da mídia. Por exemplo, a coleção de referência Media worlds:
Anthropology on new terrain editada por Faye D. Ginsburg, Lila Abu-Lughod e Brian Larkin
(2002), inclui ensaios sobre este assunto que vão desde o uso das mídias na política indígena,
passando pelo uso das mídias pelos estados-nação em projetos culturais e ideológicos de grande
escala, até a circulação sobre o terreno das tecnologias midiáticas entre grupos diaspóricos, e
mais. Também incluiria aqui meu próprio estudo sobre o mundo do cinema independente, que
usa explicitamente o conceito de crítica cultural para pensar como os cineastas norte-
americanos e outros cineastas independentes usam os filmes para lidar com as novas condições
de vida na ordem neoliberal (ORTNER, 2013a).
Sob a rubrica de “repensar o capitalismo”, em seguida, há em primeiro lugar um
conjunto de trabalhos teóricos recentes fora da antropologia, dos quais alguns exemplos podem
ser mencionados aqui: Empire (2000) do crítico literário Michael Hardt e do sociólogo Antonio
Negri, argumenta que devemos entender o mundo atual em termos de novas configurações de
dinheiro, poder e leis que são quase completamente pós-nacionais; The new spirit of capitalism
dos sociólogos Luc Boltanski e Eve Chiapello (2005) considera as maneiras em que o
capitalismo como sistema sempre foi, e continua sendo, suscetível de crítica interna; e
Rethinking capitalist development: Primitive accumulation, governmentality, and post-colonial
capitalism (2007) do economista Kalyan Sanyal explora as implicações da crescente exclusão
de uma vasta quantidade de pessoas pobres das estruturas centrais das economias capitalistas.
Os antropólogos também estão “repensando o capitalismo” e de maneira mais geral
repensando as “economias” no mundo contemporâneo. Este trabalho inclui uma coleção
importante de Keith Hart, Jean-Louis Laville e Antonio David Cattani (2010) intitulada The
human economy, que argumenta que devemos olhar para o mundo real de práticas econômicas
variadas, em vez de simplesmente para o “capitalismo” como uma entidade monolítica, e inclui
uma grande quantidade de artigos sobre, entre outras coisas, “economia com uma face humana”
e “políticas morais”. Uma linha similar de pensamento pode ser encontrada no trabalho do
grupo “Generating Capitalism” (BEAR et al., 2015). Este grupo produziu “um manifesto
feminista para o estudo do capitalismo”, que defende a importância de reconhecer que o
capitalismo não se trata apenas de “economia”, mas que todos os locais da produção de valor
são internos ao próprio capitalismo. Elas procuram construir a “crítica feminista de Marx, que
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David Graeber é um estudo do trabalho de um grupo chamado Direct Action Network, com
sede na cidade de Nova York, à medida que desenvolviam e levavam adiante uma grande
campanha de ação direta contra a Cúpula das Américas na cidade de Quebec em 2001.
Finalmente, temos vários ensaios de Arjun Appadurai (2013) sobre seu trabalho em Mumbai,
na Índia, com uma organização transnacional chamada Shack/Slum Dwellers International, que
trabalha com questões de habitação para os pobres.
O que há de novo em muitos desses estudos é a virada para a “antropologia ativista”:
isto é, um trabalho no qual os próprios antropólogos não estão simplesmente fazendo a pesquisa,
mas estão diretamente envolvidos nos movimentos. Os antropólogos que estudavam
movimentos sociais no passado eram muitas vezes levados a se envolverem em certo nível, mas
em muitos casos agora o antropólogo é tanto um participante completo como um observador.
Isto produziu uma literatura animada e fascinante sobre as contradições e os dilemas
experimentados durante o trabalho de campo, mas também reflexões mais amplas sobre o que
toda essa resistência esperaria alcançar realisticamente. Para um exemplo deste ponto, vejamos
as respostas antropológicas a Occupy Wall Street em 2011. Os eventos em Nova York
produziram uma série de publicações antropológicas, começando com a edição de maio de 2012
da American Ethnologist. A revista mostrava uma foto dos manifestantes do Occupy na capa,
como também dois artigos e um comentário sobre os eventos (JURIS, 2012; RAZSA;
KURNIK, 2012). Em outra revista, Hannah Appel (2012) publicou notas etnográficas sobre a
ocupação e em 2014 publicou um artigo, “Occupy Wall Street and the economic imagination”.
Nesse caso (e em muitos dos outros mencionados anteriormente), a participação/observação do
etnógrafo não fornece simplesmente uma etnografia “densa” das demonstrações, embora
certamente faça isso, também dá aberturas para reflexões teóricas mais amplas - sobre a
natureza da democracia e da participação política, de maneira geral e, nesse caso, sobre o que
Appel chama de “imaginação econômica”.
Para outro exemplo, voltemos ao trabalho de Arjun Appadurai sobre os grupos situados
na Índia que fazem parte da rede transnacional Shack/Slum Dwellers International. As pessoas
envolvidas estão entre as mais pobres dos pobres, as massas de pessoas que Kalyan Sanyal
descreve como estando não apenas no fundo do capitalismo, mas produzidas continuamente
fora dele. Appadurai descreve uma série de ações nas quais o grupo estava envolvido e também
uma iniciativa que ele desenvolveu colaborativamente com o grupo envolvendo um treinamento
em métodos básicos de pesquisa, com o slogan “Documentation is Intervention” (2013, p. 280).
Além disso, Appadurai usa tudo isso para refletir mais amplamente sobre o significado do
ativismo, tanto para as pessoas envolvidas como para a antropologia contemporânea. Dirigindo-
se diretamente à obscuridade do longo momento contemporâneo, ele faz um contraste entre o
que chama de uma ética da probabilidade e uma ética da possibilidade. A ética da probabilidade
aposta no que chamamos o lado sombrio do mundo e da antropologia (Appadurai aponta
especificamente o trabalho de Naomi Klein sobre “capitalismo de desastre”), enquanto a ética
da possibilidade está fundamentada “naquelas maneiras de pensar, de sentir e de agir que
ampliam os horizontes da esperança” (ibid., p. 295). Appadurai chama os antropólogos “a serem
mediadores, facilitadores e promotores da ética da possibilidade... a qual pode oferecer uma
plataforma mais inclusiva para melhorar a qualidade de vida do planeta e acomodar uma
pluralidade de visões da boa vida” (ibid., p. 299).
Breve conclusões
Antes de avançar às conclusões propriamente ditas, vale a pena repetir o meu
reconhecimento anterior de que este artigo não foi escrito desde nenhuma outra perspectiva que
não a norte-americana, em termos da sua abordagem tanto do neoliberalismo como da
antropologia. Outros terão visões diferentes, seja porque as coisas são genuinamente diferentes
em outros lugares ou, porque as pessoas sempre terão, é claro, visões diferentes. Tampouco
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quis sugerir que o neoliberalismo é a causa de todas as coisas ruins no mundo e há vários outros
tipos de eixos de desigualdade, conflito e violência - gênero, raça, etnia, religião - que têm suas
próprias dinâmicas, mesmo quando se articulam com uma ordem neoliberal agressiva.
Este artigo começou com a virada à “antropologia sombria”, argumentando que, desde
1980, mais ou menos, a emergência do capitalismo neoliberal teve profundos efeitos no campo,
tanto na teoria quanto na etnografia. Marx (incluindo vários pós e neo-marxismos) e Foucault,
com suas teorias que enfatizam a exploração, a desigualdade e o funcionamento do poder,
passaram a dominar o campo teoricamente. Além disso, tem emergido uma grande quantidade
de estudos etnográficos que observam o impacto do neoliberalismo como sistema econômico e
sistema de governamentalidade. Como a teoria, a etnografia é muitas vezes sombria,
enfatizando a natureza dura, violenta e punitiva do neoliberalismo, e a depressão e a
desesperança em que estão envolvidas as pessoas sob regimes neoliberais.
Na seguinte seção, observei o trabalho sobre as “antropologias do bem”, com a ideia de
que “o bem” inclui tanto o bem-estar (“a boa vida”, “a felicidade”) como a moralidade e a ética.
Este trabalho forma um contraponto importante às antropologias sombrias discutidas na
primeira parte do artigo, mas sua relação com esses trabalhos pode, às vezes, ser problemática.
Em alguns casos, os autores enquadram o trabalho sobre o bem em oposição ao trabalho sobre
a opressão e a desigualdade (rejeitado como “pornografia da miséria”), em outros casos
simplesmente ignoram os contextos mais amplos de poder e de desigualdade em jogo. Em
resposta a isso, tratei de enfatizar a importância de manter estes dois tipos de trabalho ou, mais
amplamente, estas duas perspectivas em ativa interação uma com a outra, ao invés de em
oposição. Pois, a violência do poder e a desigualdade não é simplesmente força física e/ou
privação, mas também as maneiras nas quais limita e deforma projetos do que Veena Das
chamou de “o cotidiano”: projetos de cuidado e amor, felicidade e a boa vida.
Na seção final do artigo, observei o novo trabalho emergente sobre resistência e
ativismo. Usei o termo “resistência” amplamente para incluir diferentes tipos de trabalho: a
etnografia crítica, incluindo a etnografia crítica dos meios de comunicação, agrupada na
categoria de “crítica cultural”; o novo trabalho teórico e etnográfico tentando repensar a
categoria aparentemente monolítica de “capitalismo”, e abrindo assim novas visões de
economias políticas alternativas; e, finalmente, o estudo etnográfico dos movimentos sociais,
incluindo um amplo subconjunto no qual o antropólogo é um participante ativo. As descrições
etnograficamente densas da resistência em todas estas categorias são importantes não apenas
para entender a extraordinária variedade de maneiras criativas em que os desafios à ordem
existente podem ser construídos, mas também para entender as visões alternativas do futuro
embutidas em tais movimentos.
Quero concluir apontando que a antropologia da resistência, ao menos tal como a defino
aqui, inclui tanto a “crítica cultural” - isto é, o estudo crítico da ordem existente - quanto os
estudos que enfatizam o pensamento sobre futuros políticos e econômicos alternativos (tanto
“repensando o capitalismo”, como os movimentos sociais). A crítica cultural tende a estar no
lado sombrio, enfatizando o que Arjun Appadurai chama de “ética da probabilidade”, enquanto
esses outros tipos de trabalho estão, pelo menos em parte, orientados a vislumbrar alternativas
mais positivas, incorporando o que Appadurai chama de “ética da possibilidade”. Parece
provável que a antropologia sempre necessitará dos dois. É apropriado assim terminar com a
famosa frase de Antonio Gramsci: “pessimismo da razão, otimismo da vontade”.
Agradecimentos
Agradeço profundamente a Timothy D. Taylor as várias leituras deste ensaio e os seus
comentários sempre perspicazes. Por excelentes comentários e feedback, também agradeço à
minha anfitriã Angelica Wehrli, da Universidade de Lucerna, e a outros lugares na Suíça; aos
meus anfitriões na London School of Economics, Rita Astuti e Charles Stafford; aos alunos do
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