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Livro II – Marinheiros
As Cartas de Freddy
ÍNDICE
ÍNDICE
As Linhas Secundárias
16 de Outubro de 1714
Novembro de 1714
2 de Dezembro de 1714
8 de Janeiro de 1715
Fevereiro e Março de 1715
O Espírito do Mar
15 de Agosto de 1699
A Festa de Casamento
29 de Fevereiro de 1716
17 de Março de 1716
Tarumã, Legislador dos Mares
1718 /...\ 1715
Uma Volta no Relógio
Demônios Alados
Três Verdades
Sobre a Autora
As Linhas Secundárias
Jennifer Dhursaille
As Cartas de Fred
16 de Outubro de 1714
‘Atraca, atraca que lá vem Nanã, ê ê
Cork Harbour
October, 16th, 1714
My Dear Isobel *
Sei que pediste que te acordaste antes de partir, mas mais uma vez não tive coragem. Sei que
teu dia é duro em terra firme, como o meu é duro no mar. Tens os meninos para cuidar e tudo o
mais, além de toda minha vida em terra, que sois vós e a minha, a nossa, família. Escrevo-te para
contar as boas novas que tive ao chegar no arranje dos barcos **: com os três serviços
encomendados será suficiente para que possas já comprar o tecido e mandar fazer o vestido que
tanto quer nossa Suzette. Sei que vais dizer que não é preciso, que reformas um anterior, mas da
parte de nossa vida que é regida no mar, cuido eu, então obedece, mulher, e compra o tecido
para a guria!
Não te preocupes demais, nem com nossa filha, nem com teus sobrinhos; tudo
há de se ajeitar e nossa família ficará bem.
Pedirei ao mensageiro que te entregue esta antes de eu partir, pois sei que
amanhã leva ele encomendas para todo o interior e passa também por Kilkenny.
Teu Fred
Alfred P. Thompkins
Novembro de 1714
My Sweet Isobel *
Esta será curta pois o deão tem pressa e em 11 de novembro já parte para
Kilkenny e não perde a chance de enviar-te esta, pois soube há pouco que poderemos nos demorar
fora de casa, aportando do lado oeste da ilha, indo e vindo a meio mar do Atlântico. Se tens
dúvida para entender direito o que é isto, pergunta a Suzette que desde pequenina me ouve ela
explicar – de fato aprendeu sobre navegação melhor do que os meninos! Pena não puderem ser
as mulheres capitãs!
Mas enfim, se rilhar contigo é meu prazer e sei que estás agora mesmo a me
amaldiçoar, não me preocupo, pois que Llyr é meu protetor!
Mas veja que tens de sobra motivos para rir: teus sobrinhos gêmeos encetaram
como aprendiz e creio que dali terão sustento digno e boa profissão – melhor que a de um velho
do mar, se queres saber – em menos de um ano em que perderam a mãe. Tua irmã se foi mas
podes descansar tua cabeça tranquila no travesseiro: deste bom rumo a teus sobrinhos. E o outro
logo há que se encontrar!
Fred
2 de Dezembro de 1714
E já mandei que fizesses um novo casaco para ti, que o inverno será brabo, e não
te quero ver a assoar o nariz todo vermelho que nem uma rena na missa do galo!
Podes gritar à vontade que não estou aí mesmo pra te ouvir, mas vê se deixas
antes o deão partir, velha rabugenta!
Amo-te!
8 de Janeiro de 1715
Ai quem me dera poder ter passado este janeiro tão frio inteiro aí, como havia
planejado... O frio está um inferno, mulher, nem imaginas!
Deixas que quando voltar converso direito com teu sobrinho Scott. Dessa viagem
às pressas não pude escapar por ser ‘ordem real’, mas se tudo correr como planejo volto no fim
do mês e passo fevereiro quase todo aí. As Festas de Fim de Ano são sempre corridas e não pude
conversar com o garoto direito; acho que ele precisa da orientação de um pai nesse momento, e
como isto ele não tem, serei eu o melhor tio que puder.
Dear Isobel*
Scott pegou de cara uma viagem longa, mas devemos voltar do Mar do Norte
antes de março, mais provável que tu o vejas somente entre a primeira e a segunda semana, mas
estará ele aí em Kilkenny para a Festa de São Patrício, pois prometi a ele, e o enviarei com o deão.
Mas não estarei aí com vocês nesta data. Ainda sinto vergonha de mim mesmo e não me
apresentarei diante do meu santo de batismo antes de me redimir devidamente. Nesta data **
estarei em Galway, repensando minha vida e decidindo sobre algumas atitudes que pretendo
tomar antes de aparecer diante de ti e de Suzette novamente. Se quiserem escrever-me carta,
enviem-na para lá. Se puderes, gostaria que me dissesses a verdade, se nossa filha realmente já
me perdoou...
Teu Alfred
* Querida Isobel
§§§
- Toma, garoto, arranja com o deão tua carona de volta a Kilkenny. Toma isto –
disse-lhe entregando uma bolsinha com algumas moedas de peso – e não gastes tudo com as
garotas nem com bebidas na festa. Lembra-te: é uma festa de um homem santo, um missionário
de Deus, então há que reserves um tempo para pensar no Senhor e pedir bom conselho para a
tua vida!
- É um trabalho pesado como você viu, garoto. Mas se estás disposto, te mando
buscar quando já tiver a data marcada para deixar terra.
- Tio, o senhor não virá mesmo para ter conosco na festa? – perguntou o menino
ressabiado, sem querer fazer muitas perguntas diretas, o que achei muito bom sinal de juízo dele.
- Não, leve essa bolsa com o dinheiro para tua tia e... entrega essa carta para tua
prima, me faz o favor.
My Beloved Daughter*
Teu pai não estará contigo e tua mãe por ocasião desta festa de São Patrício,
pois que um homem envergonhado não tem o que comemorar na presença de Deus e dos seus
Santos Anjos. Antes deveria ele ir procurar meios de se redimir para só então, de posse novamente
de sua honra, ir ter com Deus e com os Seus. E é isto que estou a fazer neste momento em que,
espero, leias esta missiva.
Se precisares de algo, pede a tua mãe, que enviei dinheiro suficiente a ela por
teu primo Scott.
Quero voltar a te dar motivos para que te orgulhes de mim, como tinhas quando
eras só uma pequena menina e te trazia aos navios em que trabalhava para que te maravilhasses
com tua inocência e imaginação infantil.
Nunca duvides, minha filha, que teu pai te ama mais do que tudo nesta vida
desde que tua mãe me disse que finalmente teríamos uma criança, depois de tantos anos de
espera e de orações.
E saibas, Suzette, que se tivesse meu braço decido em violência insana causada
por uma desgraçada bebedeira e minha mão tocado teu rosto para alguma dor causar, teria eu
me atirado ao mar para morrer após cortar o punho da amaldiçoada destra que ousara te
ofender.
§§§
Teimoso Alfred
Sei que me dizes que a bebida torna suportável a vida dos homens no mar, e que
por causa dela tivemos as poucas discussões que macularam nosso casamento ao longo desses
anos todos de nossa união perante os sagrados laços do matrimônio. Porém de alguns anos para
cá tens exagerado – e muito – e foges de nossas conversas quando esse assunto procuro abordar.
Mas agora viste com teus próprios olhos o mal que este vício maldito pode causar, pois por muito
pouco não agrediste tua própria filha, sangue do teu sangue.
As palavras duras que ela te disse, infelizmente, são a verdade, meu marido. De
esposo e pai exemplar, homem do mar digno e trabalhador, quando bebes, te tornas uma farrapo
humano, caricatura grotesca de qualquer bêbado de bar, uma figura irreconhecível para nós.
Falaste-me uma vez sobre os homens que vivem no norte da África e cuja religião
lhes proíbe de beber álcool. Desejei naquela noite infeliz que morássemos todos naquele país, que
tivéssemos nascido de pele mais escura como me dissestes que eles eram, e que nossa família
pertencesse àquela religião. A Virgem Maria há de me perdoar por dizer isto, posto que é mãe e
também foi esposa de José, e compreenderá porque preferiria eu a isto do que a ver minha
família, meu marido e minha filha outra vez, a encenarem cena tão grotesca e horrível que não
consigo apagar de minha mente até agora, embora todas as noites peça ao Arcanjo Miguel que
me conceda essa graça.
Lamento ter de dizer-te essas palavras duras, pois reconheço teu esforço e como
lutas por nosso sustento e para que nada nos falte, mas é preciso que compreendas que por causa
unicamente de uma garrafa, estivemos eu e Suzette sozinhas durante a missa e as celebrações
na igreja: eu sem marido e ela sem o pai, sem aquele que sempre foi nosso orgulho, esteio e
proteção. Esta é a verdade, Alfred.
Ainda assim, fizeste mal em não vir, posto que somos família, e o amor e o
perdão devem estar acima dos erros. Isto tratei de ensinar à nossa filha, portanto não há que
temeres estar na presença dela, pois não levantará ela palavra para te acusar, ainda que possa
ficar quieta, no canto dela, sem maiores expansões. Sei que isto te doerá, pelo teu imenso amor
por ela e pelo muito que sempre a mimastes.
O tempo sempre conserta tudo, desde que o homem não incorra em repetição.
Sou eu, tua esposa, que te pede: volta, sem receio e sem demora, pois esta casa sem tua
presença é só metade de um lar e eu sou só metade de mim.
O Espírito do Mar
Scott dera para tomar gosto em ouvir as histórias dos marujos, sobretudo as
mais bizarras, afinal são essas que dá gosto de se ouvir no mar.
Meu silêncio não sossegou o garoto, nem iria, eu já sabia, nas três pitadas que
no meu cachimbo iria dar, pois desse prazer não larguei, nem poderia alguma válvula de escape
negar aos meus homens, depois que proibi qualquer ‘espírito*’ que não fosse alma de vivente
no meu barco entrar. Tripulação minha, bebida não podia carregar, ainda que eu soubesse que
uma garrafa e outra, ora ou outra, um fosse contrabandear.
Mas promessa que se faz pra mulher, seja mãe, irmã, mulher ou filha, homem
que tem valor não quebra. E a minha eu não ia quebrar.
- Ó, guri – disse eu entre as baforadas – isso foi há muito tempo. Não te esfalfes
para escavar sombra...
- Mas, tio, me responda apenas se ‘sim’ ou se ‘não’, pois isso que quero saber.
Se existem mesmo coisas como espíritos ou assombrações.
Olhei sério para o menino. Era inteligente, tinha fogo no fundo dos olhos, era dos valentes, se é
que me entende. E estava tomando gosto, cada dia mais pela vida no mar. De primeiro eu o
trouxe apenas como experiência; sabia que a irmã de Isobel não ia querer outro moleque da
família a viver do mar... Mas ela tentou, tentou e até agora o garoto só dera mostras de se achar
entre as ondas. “Feito para maresia”, meu primeiro contramestre diria.
- Olhe, filho, o mar, a vida no mar, é assim que nem se você fosse viver na Lua,
sabe... Todo mundo olha pra ela e acha linda, inspiradora. Escrevem poesias e canções sobre ela,
mas ninguém de fato mora lá, ninguém vai lá, mas se fosse não ia gostar, ia perder a graça,
entende, porque ia achar solitário, vazio, sem aqueles romances todos que as histórias contam
sobre ela e que fazem os namorados sonharem. Tem uma luneta bem boa lá nos observatórios
de Kilkenny, no Ulster também. Tem os estudados que observam os astros por essas lunetas.
Coisa boa! Não essas fraquinhas com dois vidrinhos que você vê em Cork pra vender, não! E eles
dizem que é tudo seco, tudo árido lá. Que não tem vida. Não tem gente, não tem bicho, não tem
floresta. Então só é bonito daqui de baixo a gente olhando e imaginando. Entendeu? O mar é
meio desse jeito também, só que tem vida, e vida até demais debaixo dos nossos pés, só que a
gente não vê! Lá na cidade as pessoas, principalmente os jovens e as moças acham lindo o mar!
Faz pensar em aventuras, lugares exóticos, tesouros... Mas não é nada disso...
O garoto arregalou os olhos quando subi meu tom de voz. Eu não estava bravo,
mas gostava que ele pensasse que eu tivesse!
- Tá, tá, tá! Tá bom, moleque, vou contar logo essa história que é pra você me
deixar em paz. Segura esse leme aí que eu não gosto de contar rumando. Você leva e eu cuido
da prosa.
Ele não gostou muito, mas já que queria ouvir, a minha atenção tinha que estar
livre pra poder relembrar direito e contar! Ele que era novo que usasse o cérebro para tocar navio
e me escutar!
- Foi assim – pausei para por mais fumo no cachimbo – foi num dia de todos dos santos que a
gente não foi em terra. Muitos homens estavam zangados, dizendo que era mau-agouro não
parar o barco pra visitar os mortos, prestar as homenagens um dia a quem já não está mais aqui.
O dono do barco era um inglês protestante e disse que se nós quiséssemos prestar alguma
homenagem aos nossos falecidos, podíamos visitar seus túmulos em qualquer data do ano, não
precisava ser no meio de uma ‘festa pagã’. Daí na véspera, no dia 31, a gente estava virando a
vela sul lá pela Ilha de Man, e quando puxamos a rede pra dentro do barco, um velho caolho
gritou: “Pára, pára que tem uma menina!”
- Não é, não, mas se tu me interromperes de novo sou bem capaz de não contar!
- Naquela noite eu bebi muito. Mas muito mesmo, enchi a cara! Daí saí de noite,
já passava das horas, já era perto de 1, 2 da manhã... Fui olhar a noite, tomar um ar fresco pra
resfriar a cabeça de tanto destilado. Daí eu subi, tonto e encostei entre a porta e a escada e fiquei
olhando as estrelas na escuridão. Daí eu ouvi um soluço, um tipo de choro baixinho... Fui procurar
e perto das redes e dos arpões estava uma moça nua com os cabelos molhados, cheios de plantas,
como algas... Eu fiquei parado, olhando e pensando o que é que uma bebedeira é capaz de fazer
com um homem de família... Daí ela levantou a cabeça, olhou-me e falou assim:
Eu não disse nada porque afinal eu não ia falar com uma alucinação alcoólica, mas ela repetiu o
pedido. Eu pensei em dizer: “Pode voltar se você quiser, eu não vou te segurar”, mas daí, num sei
como, se ela estava ali na minha frente, eu, na minha cabeça, achei que ela era a foca que estava
lá embaixo, morta. Não tem lógica essa história, por isso que eu não queria te contar. Eu desci,
bêbado que nem um porco, procurei o corpo da foca, subi e joguei no ar. Na minha cabeça eu
ouvi até um ‘obrigada’, mas fui deitar e não pensei mais nisso. Na manhã seguinte, contei para
os colegas, como curiosidade, mais uma história de bebuns em alto mar. Mas daí o velho e o
outro que disse terem visto a menina me contaram sobre uma lenda, da mulher foca que abençoa
ou amaldiçoa os barcos, de acordo com o que faz o futuro capitão, libertando-a ou não – porque
dizem que ela só aparece pra quem vai ser capitão, inclusive muitos inventam histórias de que a
viram para conseguir o respeito da tripulação, mas eu nem sabia de nada, então acreditaram em
mim. Fato é que depois de 10 meses eu me tornei capitão e quando finalmente voltamos a Cork
para reverenciar o Dia de Finados atrasado, disseram que três navios haviam sucumbido, dois no
Mar do Norte, um no Mar da Irlanda. E em todos haviam pescado um filhote de foca.
- Mas...
- É outra e eu não vou contar essa história hoje porque não estou com vontade.
Dei uma pitada funda e outra rasa enquanto meu sobrinho fazia uma expressão
maravilhosa de incrédulo.
- E me passa esse leme aqui que eu não quero ir parar na África hoje.
15 de Agosto de 1699
15 de Agosto de 1699
Que me importa se a Marinha não me reconheça capitão, nem cause meu barco
maior afetação? Pelo menos é meu, pago com meu suor e é mais que o primeiro bem de minha
família. É um palácio encantado de aventuras infinitas para minha filha, que hoje faz sete anos,
e já quase que escreve e lê tudo, sim senhor! Minha Suzette é danada de esperta, e tem sangue
do mar correndo nas veias! Não enjoa a pequena nem tem medo dos balanços; muito mais se
diverte a gargalhar quanto mais o barco se movimenta no mar. Há tempos me pede que a deixe
vir comigo, mas evito para Isobel não ralhar, pois não é, de fato, ambiente para uma menina, mas
prometi-lhe que em seu aniversário lhe traria. Já se julga muito grande a guria! Fala isso o tempo
todo: “Eu posso fazer, papai, pois eu já sou grande!” Ora, ora, pois veja isso...
Meu Deus, Deus meu... O que são essas crianças que o Senhor nos dá para que
delas nos apaixonemos e nos tornemos escravos eternos desse amar que é sem fim.
Eu sempre achava que bonito era uma família, e queria ter uma só para mim,
mas não achava, bem lá no fundo, que teria essa sorte um dia assim... Mas não é que Isobel foi
dar bola para as minhas conversas e acabou por gostar de mim!? Deus foi muito bom para mim
e me deu o amor de uma boa mulher, e um dia, enfim, nossa casa floresceu nesse amor e o nosso
bebê tão desejado chegou. Nossa Suzette... minha filha!
Eu não sei se eu tivesse tido 5, 6 filhos homens, se teria sido assim... esse amor
tão intensivo, essa vontade louca de proteger... Minha filha é para mim como uma flor que eu
tento a todo custo evitar que o vento venha a despetalar. Mas ela não se faz de frágil! É corajosa
e insolente. Não fosse Isobel manter a corda curta, eu que não ia conseguir dominá-la! Falta-me
coração duro e pulso para brigar com ela ou castigá-la. Penso que foi um presente que demorou
tanto para Deus me dar, que não quero jamais parecer ingrato ou desvalorizar.
Que seja a mãe a exigir-lhe os modos. Para isso minha Isobel é perfeita. Eu irei
me ocupar de conseguir para ela o melhor que o trabalho dos meus braços puder lhe arrumar,
para que ela tenha uma boa infância, uma boa vida, um bom futuro e um bom marido, quando
chegar a hora de ela se casar... E doces para casa para ela levar quando de cada viagem voltar.
Afinal é essa também a ‘função do capitão’ segundo ela; trazer doces para casa em cada volta do
mar. Deve achar que existe um jardim de doces, guloseimas em alto mar, a maluquinha!
Mas tudo bem, afinal cabe ao capitão fazer sempre o melhor pela sua tripulação.
E eu sou seu capitão.
Reli o relato escrito com as tintas do coração há mais de 15 anos atrás, no diário
que guardei pelo mesmo e único motivo que o iniciei: registrar em suas páginas cada passo da
vida de Suzette, cada sua história, seus progressos, seu amadurecimento. E de cada momento,
tão lindo, me reabastecer na solidão amargosa da ausência em tanta noite que por elas, as duas
mulheres de minha vida, passei em alto mar.
Mas hoje o fiz de modo diferente, sem mais a falsa alegria da bebida a me
acompanhar, nem o falso calor do álcool a me aconchegar. O fiz cônscio e lúcido e com o peito
contrito de desconfiança sem par. Uma carta chegara por Scott, de minha Isobel sem jeito a me
explicar que a nossa filha pretendia se casar nos próximos seis meses após o feriado de Lughnasad
– não importa que nome deem ao festival minha esposa e o padre, pois eu aprendera com minha
avó os feriados todos com os nomes antigos dos deuses da região – quando se daria o seu
noivado.
Entretanto, nenhuma fé animava meu coração agora. Pois ela sabia, minha filha,
pois a mãe lhe explicara, sucessivamente ao longo dos últimos três meses, que após o contrato
com a marinha britânica eu estaria, impreterivelmente, por seis meses direto em alto mar, entre
janeiro e julho. Logo, e também pelo tom e pelas palavras que minha esposa tentara, mas não
pudera de todo disfarçar, demonstravam indignação e desconsolo porque não pudera de seu
intento nossa filha demover. Eu concluía, vazio, oco por tudo dentro de mim, que a verdade era
crua e uma só.
A Festa de Casamento
A festa teve gente rica e apareci por fim à porta da recepção, entregando à
mulher um colar – meu último presente de pai a uma filha, que agora, Deus o quisesse, fosse
abençoada em sua vida de casada. Isobel se desgostou muito com toda essa situação e sei que
não fora a própria filha a nubente, jamais teria ido ela mesma à cerimônia, e a parte que foi só
dor sentiu e desolação porque eu não estava ali.
“Mulher, não é de bom agouro que um filho ou filha se case sem ser com a bênção de pelo menos
um dos pais. Se eu não posso ir, vade tu e a abençoa por nós dois. Não te consumas demais por
isto, visto que a Bíblia já prevê que os filhos deixarão a casa dos pais e com outro se tornarão uma
só carne, portanto, comemora nessa noite o bom papel que fizemos eu e tu trazendo nossa filha
sã e criada até aqui. Que ela seja feliz e nós sejamos abençoados com muitos netos!”
Mas Isobel sofria e também sofri eu, e combinei de partir dia seguinte, para o
caso de ela vir me convidar a entrar em sua nova casa, mas não veio. Parti então na mesma noite
para o porto de Cork rumo às inusitadas aventuras que esperavam esse marujo velho.
Por ocasião da festa, Scott não estava alistado para vir, mas dia seguinte, para
minha surpresa, sem nem uma gota de álcool aparecera o rapaz, pronto para seguir viagem; e
soube por ele que Isobel chorara a noite inteira depois que chegou em casa. Mandou-me muito
o que comer e Scott e eu passamos em clima de festa, pelo menos à hora das refeições, por quase
uma semana inteira.
29 de Fevereiro de 1716
29 de Fevereiro de 1716
Era um dia por si só já esquisito, pois que outro como aquele não se repetiria
em menos de 4 anos. É da natureza dos marujos ser desconfiado com qualquer coisa que lhes
fuja à rotina ou pareça pouco natural, fruto de anos trabalhados no mar e desenvolvimento de
instintos que lhes facultariam a sobrevivência. Mesmo um marinheiro bêbado, preguiçoso e
desatento é capaz de ter uma percepção quase sobrenatural das coisas que estão acontecendo
ao seu redor e tem a habilidade de reagir com reflexos mais rápidos que qualquer doutor da
capital. O lado ruim é que isso lhes faz muito supersticiosos também, e por ser o dia 29 do mês
de Bridhe algo incomum, já amanheceram ressabiados e passaram o dia receosos, com um
silêncio e uma ‘expectativa’ que por diversas vezes me incomodou vê-los relatar.
Eu sabia que os corsários pagos pelos ingleses haviam varrido para longe a maior
parte das ameaças, mas ainda persistiam algumas bem terríveis e concretas.
A visão que eu tinha não me deixava dúvida: a ameaça que teríamos à nossa
frente era dessa categoria, bem terrível e concreta. De uma forma que não sei dizer, eu
simplesmente sabia que quem estava à nossa frente, e ele já nos vira, vinha diretamente em
nossa direção.
Não éramos o mais tentador dos navios, mas tampouco éramos desprezíveis. Nossa carga
prioritária era arenque, mas levávamos também valores em três caixas-cofres próprias para isso,
dos bancos franco-irlandeses que negociavam com a Dinamarca, e o próprio navio em si não era
de ser desprezado por saqueadores. Tínhamos três canhões a bombordo e 2 a estibordo, por isso
ordenei que nos mantivesse à direita dele sempre, a fim de ter maior poder de fogo quando da
aproximação fatídica. Avisei a tripulação e internamente lamentei que talvez morresse sem ter
visto de noiva a minha filha, e por Scott, na flor da juventude. Mas mantive-me frio e confiante
quanto ao que podia ser feito, que aliás não era muito. Expliquei aos comandados, entre
irritantes lamentos de “Eu sabia que o dia de hoje não iria acabar sem algo acontecer!” que era
quase certo que seríamos atacados, e muito certo que não teríamos poder de fogo para combater
um navio pirata da envergadura do que eu acreditava que aquele era, provavelmente
comandado por um dos novos terrores marinhos daquela atualidade.
“- Teremos duas únicas chances e com a primeira não devemos de contar, que é o caso do pirata
estar cansado demais para querer lutar, ou carregado demais em seus porões para encher as
burras ainda mais e não dispor de porto clandestino para onde o nosso navio levar para atracar.
Portanto mantenhamos nosso navio a bombordo e bem antes do que seria esperado, ao meu
sinal, disparem a primeira bala de canhão na direção da artilharia deles. Se tivermos sorte, ou
causamos dano considerável ou pensarão que temos muito mais poder de fogo do que realmente
temos. Com isso poderemos, talvez, afugentá-los. Se encetarem sinal de fogo, disparem ainda
mais duas balas, mas errem por muito pouco, para que pensem que foi por solavanco de vento.”
Por muito tempo depois julguei que “milagres acontecem” e “a oração do jovem
bom há sempre de ser atendida”. Até fiquei encasquetado em descobrir qual fora o cristão livre
de pecados que nos granjeara o milagre. Até julguei que fosse O’Reilly, o mais bisonho, feio, sem
mulher, sem tutano e sem dinheiro entre nós, que talvez tivesse a ingenuidade suficiente pra
obter o favor da intercessão da Virgem Maria.
No começo era uma luz, ao oposto do poente, tal qual uma versão em exagero
da estrela polar ou matutina, mas depois seu brilho subiu demais no céu para não causar espanto.
Fenômeno astrológico como aquele não conhecíamos, nem reconhecíamos de ninguém os
relatos. Tornou-se bem maior que o sol e em seu meio algo como uma meia lua escarlate se via.
Dali saíram como que de um conta gotas faíscas em forma de camafeus, lágrimas achatadas que
depois cresceram no céu, em tamanho, brilho e nitidez, permitindo ver, sem seu interior, uma
forma divisível anular de cor sólida. A noite que caía se incendiou, e o espetáculo fazia dó aos
fogos de artifício de qualquer catedral das maiores cidades. Nem em Escócia se viu algo igual.
Algumas se movimentavam aleatoriamente e outras estacionadas no céu ficavam. Ao fim de um
certo tempo que depois ninguém conseguiu explicar, elas sumiram, se desvaneceram.
E com elas o navio ao longe foi deixando de ser avistado. Talvez pensassem que
fôramos nós os autores de tal proeza. Era dito à boca pequena que a Marinha Inglesa equipava
seus corsários com as mais modernas ferramentas de artilharia.
Mas eu sabia que não foram eles, nem nós, nem os ingleses, nem os vikings
noruegueses.
17 de Março de 1716
17 de Março de 1716
Nosso navio fora trocado por um novo da frota inglesa, maior e mais adequado
aos propósitos que o comissariado Stanton tinha para nós. O mastro principal tinha uma imagem
da santa que dava o nome ao navio que era uma verdadeira obra de arte: os cabelos encimados
por uma coroa espalhavam-se pelos lados, assim como a barra das vestes, perfeitas em cada
dobra, até as unhas dos pés descalços na pose de seu arrebatamento era representações
perfeitas de um real pé feminino. A mão direita, estendida aos céus acompanhava o mastro
principal terminado na ponta de seu dedo indicador enquanto a outra trazia o cálice bento junto
ao peito.
“Sim, meus irmãos, a imaginação do homem, não é de hoje, pode ser hiperativa,
sobretudo em se tratando de servir de lenha aos fornos insaciáveis da fofoca!”
O problema é que uma inverdade deixa de ser uma aparente mentira na medida em que
é repetida à exaustão, e embora muitos de meus homens velhos fossem culpados por espalhar a
notícia da fuga do navio pirata de nós, era claro que eles próprios andaram espalhando essa
notícia em portos mais distantes, visto que quando neles chegávamos, as tramas já estavam
feitas e era com muita curiosidade e até certo temor que se aproximavam de nós, sempre a fim
de descobrir nossa versão da história, quantos segredos guardávamos no convés e qual milagre
ou truque usáramos para marcar o céu, fenômeno para o qual não tinham explicação e que, se
dizia, apavorara o pirata.
Na volta a Irlanda, num porto antes de Cork, em Belfast, uma senhora veio me procurar
com um bebê nos braços. Pôs-me o pequeno embrulho no colo, dizendo estar febril e sem
dinheiro para pagar um médico, e que sendo seu marido marinheiro, ouvira falar que eu, capitão
há mais de 30 anos em barco pesqueiro, largara a bebida num ato de fé, após avistar a Santa em
pessoa, e que em sua homenagem mandara gravar em ouro sua imagem no alto do mastro
principal, como prova de minha devoção, e que fora a intercessão Dela que espantara os piratas,
coalhando o céu com carinhas dos querubins que cercavam no berço o menino Jesus... Curasse
então eu sua filhinha, por amor a Deus e minha fé em Santa Maria Magdalena.
Com a pequenina no colo e a mãe de mão postas ao meu lado, certa de que eu era alguma
espécie de pecador redimido intercessor, me deu uma incrível vontade de puxar meu cachimbo
do bolso, encher de fumo até entuchar e puxar a fumava bem fundo até meu cérebro se entender
diante de tudo aquilo que estava se desenvolvendo ao meu redor, da fama inapropriada – por
todos os motivos nos portos por onde passava até a cena bizarra da mulher à minha frente. Só
não fumei porque julguei que se já estava doente a fumaça decerto não lhe faria bem. Olhei para
criança e para mãe e pensei que um pai faz mesmo qualquer coisa pra curar um filho. Desejei ter
o poder que ela me atribuía para pelo menos curar a pobre criança, mas duvidava que minha
mais fervorosa oração fosse capaz sequer de baixar meio grau à febre da pequenina. Entretanto
quis orar... ou melhor, tentei, mas na hora nem um padre nosso se me vinha... Já não era bom
católico nem decorava oração, fugi quando novo da função de ajudante de sacristão. Mas com a
melhor intenção e todo meu coração, fiz o sinal da cruz à testa, boca e peito da menininha
enquanto pronunciava minha oração misturada de frase daqui, frase dali, verso de outrora, só
desejando um bom desfecho pra filha e mãe se concluir:
Com dois, três e nove laços te benzo para que não te percas
Amém”
Devolvi a infante aos braços da mãe e procurei nos bolsos três tostões bons que a ela
entreguei:
E parti antes que ela tivesse muito tempo para me agradecer. Voltei meio soturno para
o navio, obstinado a chegar o quanto antes em Cork. Se não fosse um homem de palavra e que
não quebra as suas promessas, nesse dia, eu teria me encerrado no meu convés e bebido.
#§§§#
18 de setembro de 1716
Aye! Esse é um dos momentos que me dá gosto de contar, dentre todas as minhas
experiências terrenas, porque, além é claro das boas consequências advindas para minha
evolução, é uma história muito ilustrativa para se contar, pois se derrama, a despeito de minha
bebedeira, sobre o que os mortais também denominam como “mares do desconhecido”, pois
esbarra na fronteira do paranormal.
Bom, vamos começar pela parte ruim, e que é comum: a grande maioria dos marinheiros
de fato bebia – e muito – quando encarnados, apesar de vocês hoje estarem mais do que
conhecedores do fato de que a falange dos marinheiros bamboleia quando em terra devido às
vibrações em que estamos imersos e que trazemos para o terreiro, envolvendo os médiuns, que
são vibrações energéticas da água, e não porque estejamos bêbados! Porém é sabido que a
maioria dos marinheiros bebia quando encarnado, quase que como parte do “folclore ético” da
vida no mar e, bom, o que eu quero dizer é que, até hoje, se o cara bebe é porque tem problema
emocional, não é mesmo? Hoje em dia há outros vícios tão ou mais devastadores do que o da
bebida, mas a origem de tudo continua a mesma: o cara se acha uma porcaria, um infeliz, ou
culpa a mãe, o pai, a mulher, ou qualquer outro membro da família pelos seus infortúnios e vai
procurar esquecer das próprias fraquezas dentro de uma garrafa num líquido qualquer
alucinante ou anestesiante, enfim, qualquer coisa que o leve, por alguns momentos – para ele o
viciado, extremamente preciosos – para longe de si mesmo e das lembranças dos seus fracassos.
Assim estava eu, às vésperas do aniversário de minha filha, cuja relação comigo
continuava abalada, ou melhor ainda dizendo, “rompida” e, apesar de minhas promessas,
sentidas e verdadeiras no momento em que as fiz, tranquei-me em meu escritório, na minha
cabina no convés do navio e abri não uma, mas três garrafas de “líquidos esquecedores” em
busca de não pensar, por alguns instantes na situação que me angustiava. Rum, gin e absinto em
dois copos e uma taça diferentes que ordenadamente organizei antes de dar início à maratona
de “vamos por fim ao fígado e aos rins”.
Uma hora e meia depois eu já havia caído da cadeira e ao lado do pé da mesa sentado, quase
estendido estava, a garrafa de rum caída por cima da mesa, havia molhado meu cabelo, pescoço
e colarinho da camisa, além de manchado o tapete e o chão. Do absinto só tomei três goles
grandes! – mas os restos da garrafa de gin aninhava em meu colo e cantava: “Lucy, how’d you
feel”* alternada com imprecações contra a força da gravidade que não me permitia levantar para
aliviar as águas que se acumulavam nos joelhos. Subitamente, então, reparei num homem que
me olhava do canto da cabine, silencioso, sério e muito bem vestido, numa casaca azul profundo
e brilhante, uma faixa prateada sobre o colete branco e amplo cinto de ouro de onde espadim, 1
corda que parecia um chicote e outros objetos que não identifiquei, todos também dourados,
pendiam em brilho de ofuscar a vista. Como ele nada dizia e eu estava sob amplo aspecto da
bebida, de início demorei a cair em mim, de alguma forma minha mente registrou a presença
dele como se ele fosse assim um quadro, um retrato, sem se alarmar; somente depois de uns seis
minutos, calculo, minha mente foi capaz de somar 2+2=4 e raciocinar que se aquele homem
estava ali dentro da porta que eu havia trancado, e eu não sabia quem ele era, já que era um
estranho, eu, especialmente sendo o capitão, deveria me preocupar...
- Edgar...
- Não sou Edgar, mas eu estava sempre perto dele e muitas vezes minha
presença você conseguiu registrar, em outra terra, em outros tempos, quando não era nem este
corpo que seu espírito estava a habitar.
Então percebi que eu não conhecia nenhum Edgar, mas imagens de homens diferentes, com
feições distintas vieram à minha memória, onde eu e outros homens, dentre eles Edgar,
deparávamos com enormes estátuas semelhantes aos cairns ou menires, mas dotadas de
peculiares feições. Era a Ilha de Páscoa, que nessa época ainda não era conhecida na Europa.
- Não é meu desejo que nesse caminho ingresses, mas teus méritos te permitem os avisos
que te posso conferir, a fim de que retornes são e salvo quando o risco te advir.
- Aceito o nobre conselho, não precisamos nem daqui sair! – bati a mão direita
sobre a mesa e o pé esquerdo no chão, a fim de conferir certeza à minha decisão. Sou marinheiro
experiente e sei dos perigos do mar. Se o nobre cavalheiro concede-me a honra de vir até aqui
me advertir, eu também posso me curvar em agradecimento e dobrar minha teimosia quando o
assunto é sério e se faz necessário!
#§§§#
#§§§#
Volta a contar o comandante Tarumã:
O conteúdo dos avisos que dei a Alfred naquela ocasião se farão conhecer no
prosseguimento desta história. Mas creio, tão importante quanto a veracidade dos eventos que
serão narrados, seja a possibilidade de ampliar a compreensão geral do leitor sobre os fatos
relativos à comunicação mediúnica, uma vez que as qualidades da verdade permanecem
imutáveis: desmistificar, esclarecer e simplificar. Palavras de ordem para a Umbanda e toda
forma de espiritualidade do Terceiro Milênio.
Abril de 1715
Só destroços havia, escombros boiavam no mar ao meu redor. A água era fria,
mas a maior parte de mim ainda permanecia a seco, graças a alguma força superior... Meus olhos
tentavam com dificuldade manterem-se abertos, queimados como se as pestanas estivessem
queimadas era como sentia. Lentamente a consciência foi-se me voltando e o choque pela
realidade que me circundava, tomando lugar. Eu boiava, preso pela roupa, dentro de um barril,
à lasca de couro que mantinha as peças de madeira coesamente firmes; o carvalho encerado de
excelente qualidade evitara que houvesse morrido por hipotermia. Meu barril salva-vidas
flutuava entre placas e tábuas de madeira, que pareciam precárias balsas vagando em alto-mar,
que a todo instante chocavam-se entre si. Procurei vivalma entre os escombros, mas somente
um gorro vermelho de lã, passando por mim, vi. Pertencia ao MacRoy, mas ele eu não via... Mais
assustador ainda do que encontrar-me naquela situação, entretanto, era não me lembrar de
nada do que houvera acontecido.
Isobel se angustiava porque eu não conseguia lhe dar detalhes nem nada lhe
acrescentar. Entre minhas coisas estava o gorro de MacRoy que lhe pedi levasse para que o
devolvesse quando lhe encontrasse – e por dentro tremi ao pensar: “Ou à família”.
- Meu querido, Scott veio com a mãe e os irmãos ontem, domingo, para a missa
de eucaristia especial. Decerto os veremos somente no mês que vem. Mas por quê estás a
perguntar dele?
Quem desabou fui eu, naquele que foi o primeiro de uma série de choques entre
a realidade por mim conhecida e aquela que naquele momento me cincundaria. Nem as
lembranças de minha esposa, nem as minhas se equivaleriam; nem certo estava de que minha
cunhada morreria ou que minha filha em três anos se casaria. Só por certa uma coisa tinha:
Sentado à beira do cais ficava eu, olhando as marolas, o fluxo e refluxo das forças
do mar enquanto Isobel fazia compras. Muitos passavam e de longe cumprimentavam, poucos
aproximavam-se para me dirigir palavra. A maioria me julgava fora de juízo; olhavam o homem
já grisalho, a barba quase toda branca com o olhar perdido nas águas. Nem fumar fazia mais,
coisa que antes tanto gosto me dera. Na cabeça ostentava o símbolo daquilo que um dia fora:
um oficial comandatário da Marinha mercante e patrocinado pela rainha. Mas meu coração
estava oco e nada mais fazia sentido.
Suzette, minha filha, veio com meu primeiro neto na barriga me ver, junto com
meu genro. Ela me olhou apiedada; pude ver em seus olhos que do fundo de sua alma condoía-
se pelo acontecido a mim, e em outros tempos eu exultaria, pulando por enfim obter um perdão
genuíno e uma prova inconteste de seu amor por mim. Sim, ela se importava com seu velho pai.
Mas eu já não me importava mais, pois nada daquilo havia de fato acontecido. Eu com ela jamais
brigara, nem nunca fora nossa relação de pai e filha estremecida. No banco da igreja, na primeira
fila, assisti ao casamento de minha única herdeira, e recebi às portas da casa santa os
cumprimentos de todos por ter casado minha menina. Ouvi a sogra lhe dizer: “Agradeça ao
Senhor por ter tido a oportunidade de ser entregue a seu noivo na igreja por seu próprio pai. É
um verdadeiro milagre que ele tenha sobrevivido em tão precárias condições em alto-mar!”
Susie, como a família do marido agora a chamava, acedeu com a cabeça, os olhos apiedados
jogados num relance em minha direção. Mas eu não pedira por esse milagre. Para mim ele não
era divino, mas sim uma maldição.
Cada dia acordado um castigo à espera daquilo que lembrava que iria ocorrer, como a
morte de minha cunhada e a vinda para nossa casa de meus sobrinhos. Scott, dessa vez, logo se
apegou a mim; tudo fazia por me agradar. Preocupado se eu tinha meias o suficiente para manter
meus pés aquecidos, se desejava mais chá ou pedindo que lhe contasse alguma história sobre o
mar. Era curioso, mas mesmo assim angustiante, observar as variações entre minhas lembranças
e a forma como agora as coisas se discorriam. Ver o quanto fora alterado. Mas mesmo obtendo
o que mais houvera desejado – jamais ter envergonhado e brigado com minha filha – nada
consolava o meu horror de me ver preso numa versão antiga e alternativa de uma passado já
vivido. E se cabo não dava de minha existência, era por um único motivo: pavor de ver-me voltar
novamente ao mesmo ponto, ao mesmo lugar.
Por vezes considerara: “Morri e fui para o inferno. Esse é meu castigo por beber!” Mas
nem no céu nem no inferno eu poderia estar com as mesmas pessoas que conhecia, comendo,
bebendo e sentindo todas as necessidades do corpo. Ainda que fosse tudo uma ilusão, não
poderiam de ter todos comigo morrido, principalmente aqueles que estavam em terra. Se era
um castigo, era por demais cruel... Fogo e enxofre fariam menos dano à minh’alma, disso estava
certo, mas não cria ter causado em uma única vida tanto mal para merecer tamanha pena. De
Deus também esse presente de grego não era, visto que temia perder o juízo a cada quinze
minutos, bastava que olhasse para o relógio ou ouvisse um tique-taque; irrompia por vezes em
choro compulsivo. Isobel baniu para longe todos os relógios da sala e do quarto, somente um
pequenino na despensa havia, pelo qual ela se seguia nos afazeres e lides domésticas.
Eu nada dizia quando na rua dos outros isso ouvia. Nem me animava a discorrer sobre
nada, nem a provar que não estava fora do meu juízo. Calado me preservava de maior agonia;
explicar o inexplicável para aquelas gentes que jamais ouvira disparate de tal calibre de um velho
homem do mar que fora um dia quase uma autoridade local.
Só Scott me perseguia, como se estivesse a todo momento esperando que eu lhe falasse
algo que o encantaria. Olhávamos nos olhos um do outro por vários instantes, sem piscar. Ele me
analisando, e eu mirando-o de volta sem hesitar. Então invariavelmente me fazia uma pergunta
sobre o mar, e eu lhe respondia que estava cansado demais para falar.
Ele insistia, outro dia, trazendo minha comida e dizendo que gostaria que eu lhe contasse
algum dia, quando estivesse me sentindo melhor, histórias do mar. Um dia me cansei e lhe
inquiri:
- Por que você perde seu tempo comigo, rapaz? Vá arrumar que fazer na cidade. Há
trabalho e moças para o entreter de forma bem mais útil e eficiente do que eu!
- Não vá.
- Eu só queria que o senhor me contasse alguma história das suas viagens pelo Mar do
Norte. Eu sempre quis ouvir essa história de alguém que de fato a tivesse vivido! História de
baleia, de piratas e de tempestades em alto-mar. Eu espero o tempo que for preciso o senhor se
recuperar para me contar. Eu sei que as suas histórias devem de ser muito boas! Das melhores
que há para se contar!
- Scott, você não tem medo de perder seu tempo ouvindo as histórias de um homem
louco?
- O senhor não é louco! Disso tenho certeza. Assim como tia Isobel também tem. O senhor
só está precisando de um tempo para se recuperar do acidente.
Ele repetia as palavras que minha mulher sempre dizia, e que para mim representavam a
esperança dos tolos – aquela que jamais se deve quebrar.
Ele se levantou meio magoado e saiu da sala de estar. Do meio do corredor ouvi seus
passos retornarem até o batente, de onde ele me olhou e falou, com a seriedade do homem
nascente dentro de um menino:
- Eu sei que o senhor não é louco. O senhor pode me contar o que aconteceu. Eu juro que
não vou contar pra ninguém. E eu vou acreditar.
As Cartas de Fred
Demônios Alados
Em alto mar as luzes vieram. Eram muitas. Brilhavam como mil sóis ao meio-dia, mas era
princípio de dia, quase o fim de uma madrugada fria, quando que McCawley levantou de sua
cama mais cedo para ver o brilho de fogo no convés. Eu na verdade já estava acordado, há alguns
minutos inerte, sem pensar propriamente em nada, cogitando me mexer para logo em seguida
desistir. Foi quando ele quase derrubou a porta junto com o batente, lívido tal qual fantasma;
sua voz nem saía da garganta e ele só roucamente gritava:
Subi sem nem fechar o cinto ou o casaco para me proteger do frio úmido da
manhã. A princípio julguei ter estado doente para nem reparar que já era hora do sol forte ao
meio-dia, mas depois logo percebi que MacCawley também parecia estranho, meio perturbado...
Estaríamos todos adoentados no barco? A luz era tão forte que cegava, clareando as coisas com
tal brilho como se fora de dentro para fora; nem os talhos ou vincos das madeiras se viam mais
– apenas um cetim ceroso que fazia a madeira assemelhar-se a uma barra de manteiga. As cordas
pareciam emitir um brilho amarelado forte assim como os metais, como se a luz às bordas da
embarcação fosse se aquecendo, ou se diluindo, para se tornar avermelhada no casco e sobre as
águas ao redor das imediações do navio. O imediato estava completamente branco, seu casaco
marinho como se fora desbotado e só os cabelos, que eram brancos, pareciam azulados, assim
como sua barba, que eu bem via, pois que ele tinha a cabeça para trás bem jogada, como se para
ver melhor o astro tão brilhoso que sobre nós sua luz incidia.
Sabendo que Isobel não estava em casa, dessa vez lhe respondi:
- Apareceram assim do nada dentro do barco. Eles têm engenhocas que voam,
e dentro trazem instrumentos de tortura. Quando acham uma vítima, eles a imobilizam e ela não
consegue reagir.
- Não são vermelhos! Isso é mentira dos padres! – Falei irritado, e em seguida
sussurrei em voz baixa: - Eles não têm cor. São descorados com se não tivessem vida. Não se
parecem com gente, embora andem sobre duas pernas e tenham braços e membros que se
assemelham aos humanos. Mas são esquisitos, mais finos... só que têm muita força. Ninguém
pode com eles, Scott. Se um dia você vir uma luz muito forte, num horário que não poderia haver,
você não fique para olhar! Se olhar, eles te prendem! Você corre! Corre até não poder mais, até
não conseguir mais ver nenhum vestígio dessa luz pelo canto do seu olho. Mas não olhe para
trás! Lembra bem das palavras que seu tio está lhe dizendo: não olhe, não se deixe fascinar nem
iludir, apenas corra, pois é quando a gente pára para olhar que eles pegam a gente!
- Credo, tio! Mas não tem como a gente se proteger? Fazer alguma oração de
proteção no mar?
- Não sei – dei de ombros – nunca fui muito de rezar. Só sei que pro mar não
volto mais. Lá não há como se fugir deles. Se tivesse terra, poderia ter corrido para dentro de
uma igreja, talvez. Não sei... Só sei que no mar não tem para onde correr.
- Mas o senhor acha que eles vão vir atrás do senhor? Aqui?
- Não sei. Acho que aqui não... Mas se eu for para o mar, acho que eles me
encontram novamente, por isso não vou.
- Mas o que o senhor fez que fez o capeta mandar os diabos dele pessoalmente
contra o senhor?
Fiquei quieto pensando. Não era santo, mas com certeza havia gente bem pior
do que eu para merecer tal castigo, e no entanto andavam por aí, intactos. Até meu sobrinho
parecia pensar assim:
- Ou talvez, quem sabe, foi algo que alguém da tripulação fez e que irritou a Deus
ou desafiou ao diabo? Alguém fez alguma aposta na tripulação que o senhor se lembre?
- Não que eu saiba... mas acredito que todos os homens ali eram almas tementes
a Deus; não iriam profanar com palavras nem ao Senhor, nem ao Seu filho nem a Virgem. Nem a
São Patrício nem a Santa Brigita, isso estou bem certo. Quanto a desafiar o capeta, já não sei...
- Não, Scott, eles não falam. Não usam roupas nem têm luz nos olhos. Isso é o
mais apavorante. Você olha para eles e não vê uma alma ali, e ao mesmo tempo sabe que não é
um bicho. Não se parecem com nenhuma outra criatura de Deus. E são frios, parecem pegajosos
embora eu acho que não fossem; têm dedos longos, compridos e que causam dores físicas
intensas, mesmo sem penetrarem na sua carne. O toque deles pode te queimar, também pode
te cegar...
- Não quero mais falar disso! Nem quero mais me lembrar. Basta você saber,
não vá para o mar e fique longe de tudo o que brilhar e for esquisito.
- Está bem... Mas, tio, só mais uma pergunta: onde o senhor acha que estão os
outros? O McCawley, o Flannigan, o Hillst? O senhor acha que os demônios os mataram e
jogaram os corpos no mar?
- Não...
- Porque na bíblia está escrito que o Senhor Deus deu permissão ao diabo de
fazer toda sorte de maldade ao homem e para tentá-lo, menos tirar sua vida. E eu acho que é por
isso que eu ainda estou aqui.
Três Verdades
Uma noite saí da cama agoniado numa incomum noite de calor. Isobel dormia, e não quis
acordá-la com minha inquietação. Levantei-me e me dirigi até a sala, onde a janela entreaberta
permitia a brisa, ainda que longínqua do mar, vir adentrar a sala de estar. Acendi meu cachimbo
pretendendo fumar para me acalmar, sentado em minha poltrona, a escura quietude da noite a
contemplar, mas parei em pé à soleira da janela; o som dos grilos a cricrilar. As estrelas todas
visíveis no céu.
“Quando foi que eu me perdi a ponto de não mais me lembrar quais as constelações levam
a salvo um homem para longe do mar?”
Assim aprendera com meu avô ainda menino, quando a vida no mar parecia uma
promessa de aventuras que me levariam para longe do tédio da vida em Kilkenny. Naquela noite,
ouvindo as estrelas e os grilos a se misturar, pensava em meu avô e se alguma vez ele precisara
encontrar uma constelação que o conduzisse para um porto seguro como este que eu agora tão
desesperadamente buscava: para fora da minha própria mente.
Ao lembrar dos meus ‘fantasmas’ o corpo logo reagiu: uma onda de adrenalina,
taquicardia e suor frio me embalavam em lágrimas mesmo em meio ao verão.
Homem feito chorar sem nem mesmo entender bem o porquê. Isso doía mais do que o
corte da lâmina do papel chinês que uma vez um marinheiro estrangeiro me ensinara.
As lágrimas aumentaram quando pensei em Isobel. Nunca quisera fazê-la sofrer tanto
assim – a cada dia sua dúvida aumentava se teria ou não seu companheiro de vida de volta. Com
a única filha já casada, e outros tempos, era difícil para uma mulher já de meia-idade se
responsabilizar por tudo. Fios de água viraram rios de angústia a escorrer por minha face. Não
fosse por mim, por ela então, Deus meu! Fazei um algo que interrompa todo esse meu
sofrimento!
Do lado oposto da sala, um pequeno altar, com as imagens dos santos a quem minha
esposa dedicava especial devoção: Santa Brígida que lhe fizera engravidar, Santa Apolônia que
do vício do álcool tanto pedira para me livrar, Santa Gertrudes que ela invocava amiúde para
problemas de saúde e para livrá-la de suas varizes nas pernas, e entre os 4 arcanjos, uma imagem
cara de Nossa Senhora Estrela do Mar a quem nunca, em nenhum ano de nossas vidas juntos
como um casal, deixara jamais de acender uma vela a cada dia em que eu estivera fora, no mar,
em busca do nosso sustento.
Entre choro convulsivo entremeei palavras de vários padre-nossos, aves-marias sem fim.
Era aqui, e não agarrado aos escombros no mar, que lançava aos céus meu brado de socorro
desesperado. Se o céu me ouvisse saberia ao amanhecer, pois adormeci ali no chão.
Sem ver as luzes das estrelas que baixaram até a altura dos arbustos do meu quintal, nem
perceber quando a cantoria dos grilos silenciou.
~~*~~
O que narro a seguir são minhas lembranças de visões que recuperei somente após meu
desencarne, acompanhadas de parte das explicações que tive ao ingressar nas fileiras de trabalho
que atuam no mar profundo.
Hoje sou um ‘marinheiro’ mas meu trabalho não se resume ao que entende o mundo
como ‘o mar’. Além do meu posto determinado junto ao Povo d´Água, regido pelo Grande
Oriente, atravesso as ‘marés do tempo’ em meu serviço na administração de demandas. Muito
mais não me é permitido dizer, mas que apreenda cada um de acordo com seu conhecimento.
Alguns interpretarão o que me aconteceu em alto-mar nos idos de 1716 como um fenômeno de
origem extraterrestre. Não digo nem que sim e nem que não, mas assevero tratar-se, antes de
tudo, de uma anomalia relativamente comum que ocorre em nosso mundo, de causas físicas,
eletro-magnéticas, eletrônicas, que tal qual os mecanismos de um relógio repetir-se-ão em
determinados momentos e lugares. Poder-se-ia dizer que eu estava no local errado na hora
errada, mas de acordo com o ponto de vista karmático (no sentido oriental e não no
‘ocidentalizado’ dessa palavra) digo que estava na hora certa e no local exato, que me permitiram
não somente atuar enquanto ainda na matéria, como ainda hoje, nos campos onde minha
atuação se fez e ainda se faz necessária.
A 1ª verdade é a que para o mundo ficou:
Na manhã seguinte à súplica que fiz aos pés do altar doméstico, acordei ‘bom’, ‘curado’
nas palavras de todos e muitas missas de louvor e graças foram feitas, das quais tomei parte
ativamente e a partir do que passei a ser visto como homem convertido à fé, o que de fato
ocorreu, pois me tornei muito religioso realmente, instintivamente me sentindo ‘seguro’ através
da perseverança dentro de uma disciplina espiritualizante. Tornar-me um católico praticante fez-
me muito bem, principalmente porque as pessoas vinham ver-me e pedir-me oração para muitas
coisas, e eu orava por elas de coração. Além disso, dentro dos antigos costumes irlandeses pude
praticar um dom latente que sentia agora jorrar pelas palmas das mãos e pelas pontas dos dedos
cada vez que eu orava por um enfermo: era o dom da cura se manifestando. Até o fim dos meus
dias, que foram muitos desde esse ocorrido, segui atendendo pessoas diariamente à porta
pedindo por uma oração. O padre local não se incomodava pois era meu amigo, e após sua morte,
mais de década depois, tanto o povo soube fazer sigilo quanto eu, de minhas atividades no
oratório montado nos fundos do jardim especialmente para essa função; além disso a
providência sempre nos beneficiava com uma transferência oportuna para uma paróquia
longínqua quando algum padre mais irritadiço começava a se envolver demais com a vida privada
de seus paroquianos.
Scott foi quem mais estranhou minha transformação, e vez por outra, desconfiado, me
indagava o que eu havia visto no mar. Eu sinceramente lhe respondia:
- Meu filho, seja lá o que fosse, a Virgem apagou da minha lembrança e me curou da
doença que eu tinha. Graças a Santíssima Trindade eu não me lembro de nada além de ser
resgatado nos destroços do navio e depois ser acordado por sua tia aos pés do altar. Nem do que
aconteceu no mar e nem do meu período de doença nada me lembro. E se Deus quis assim, é
porque há de ser melhor assim.
Essa era a 2ª verdade, que ofereci a Scott e a que me foi oferecida enquanto encarnado.
A 3ª verdade é a que lhe conto agora e que me foi explicada e mostrada por meu mentor
após meu passamento desse mundo para o próximo.
Do dia em que fomos capturados pela ‘anomalia’ até a data em que o calendário onde
‘acordei’ retornou ao mesmo ponto, combati o pirata que tentara nos atacar por três vezes até
ele desistir da ‘carreira’ assustado por ver meu navio ‘brilhar’ surgindo do ar acompanhado de
outras naus desconhecidas que emitiam luzes no céu. Em pontos distantes contava o que vira, e
que seus canhões arremessavam tiros que passavam pelas naus sem contudo atingi-las. Tornou-
se muito confuso ao ouvir dizer que não poderia ser eu, uma vez que eu estivera muito doente e
em casa, aposentado da marinha que ele julgava ter-me empossado de poderoso navio. Por fim
abandonou a vida no mar para tornar-se mercador – não muito honesto - primeiramente em
terra da América Central, e por fim fixou-se na Colômbia.
Os seres não consigo descrever, nunca vi seus rostos, ainda que inúmeras vezes estivesse
rodeado por eles e recebendo deles as instruções de ‘combate’ e as ‘ordens’ para repassar à
minha tripulação. Posso dizer que eram esguios, luminosos e manipuladores de consciências
tanto quanto da matéria.
Meu mentor explicou-me que quando os dois calendários novamente chegaram à mesma
data, a data do naufrágio, minha equipe foi conduzida a outro destino e eu entrei ‘na porta’ que
me conduziu ao cenário doméstico em que Isobel me acordava no chão da sala aos pés da Virgem.
No mundo dos que partiram isso me foi relembrado e mostrado para que eu atingisse a
compreensão do trabalho que viria a fazer naquilo que vocês chamam de ‘Astral’. Trabalhei
muitos anos e ainda trabalho no fundo do mar, onde a vida é ainda mais múltipla do que na
superfície da Terra. Por conta da minha farda negra e de meu quepe com detalhes dourados,
diferentes nomes me deram: O Marinheiro Negro, O Comandante do Chapéu Dourado. Para os
que em vida me conheceram, o Capitão Fred.
Este é um relato que, como quando estava em vida, poucos me acreditarão. Disto eu sei
e acho até bom. Ajuda a manter a lenda da família espiritual a qual me afinizei.
Meu objetivo, assim como da equipe que me permitiu contá-la, é despertar indagações
sobre as marés da vida, seus refluxos e ensinamentos.
Se servir somente para o entretenimento, que seja então, só mais uma história de
marinheiro.
Sobre a Autora