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Paralelas da Umbanda

Livro II – Marinheiros 
As Cartas de Freddy
ÍNDICE
ÍNDICE
As Linhas Secundárias
16 de Outubro de 1714
Novembro de 1714
2 de Dezembro de 1714
8 de Janeiro de 1715
Fevereiro e Março de 1715
O Espírito do Mar
15 de Agosto de 1699
A Festa de Casamento
29 de Fevereiro de 1716
17 de Março de 1716
Tarumã, Legislador dos Mares
1718 /...\ 1715
Uma Volta no Relógio
Demônios Alados
Três Verdades
Sobre a Autora
As Linhas Secundárias

Esta série de livros, psicografados entre 20/07/2011 e 04/01/2015


apresentam uma história principal mais longa sobre cada Corrente de Trabalho
Secundária e, no caso do livro I – Baianos, e no livro III – Boiadeiros, algumas
psicografias mais curtas, de autorias diversas.
São chamadas Linhas ou Correntes de Trabalho Secundárias da
Umbanda aquelas que não são as 3 primárias (Caboclos, Pretos-Velhos e Crianças) nem
Esquerda (Exus e Pombogiras), e são considerados por alguns intermediárias entre esses
dois polos.
Nessa categoria se encontram os Baianos, Marinheiros, Boiadeiros e
Ciganos (que serão tratados em outro livro), porém na medida em que a Umbanda
amadurece e se expande novas ramificações surgem e outras frentes de trabalho
espiritual podem emergir. Um agrupamento de espíritos se une para trabalho conjunto
norteados pelos mesmos ideais, objetivos e métodos de trabalho.
Os Baianos se caracterizam por demonstrarem quando em terra trejeitos
e vocabulários típicos do povo da região nordeste do Brasil; muitos alegam ter sido
quando em vida sacerdotes ou praticantes de cultos de origem africana ou da pajelança,
como Catimbó, Jurema e Xangô.
Os Boiadeiros, como o próprio nome já indica, apresentam o arquétipo
do ‘cowboy’, do homem trabalhador do campo, habituado a lida com os animais e o
pastoreio, e são muito famosos pelo uso do ‘laço’ com o qual trabalham no astral,
livrando aqueles que procuram sua ajuda de demandas e obsessões, assim como
conduzem seus ‘filhos’ não lhes deixando fugirem dos caminhos que lhes são devidos.
Os Marinheiros são uma falange que trabalha junto ao Povo d’Água, na
vibração de Iemanjá, e auxiliam muito na limpeza do terreiro e da assistência, além de
cuidarem de assuntos que lhes são próprios como especialistas na vida marinha, caiçara
e nos mistérios que competem à junção de terra e mar. Muitos os têm por bêbados por
pedirem álcool para trabalhar quando chegam em terra, mas assim como nas demais
correntes de trabalho que também fazem uso do álcool e do fumo, este é um item de
limpeza, necessário para o trabalho e um estabilizador, nivelador vibratório que
somente deve ser reprimido quando o médium manifestar ingerência de seus próprios
vícios, contabilizando a entidade pelos seu descontrole.
Em todas as linhas secundárias, as entidades caracterizam-se por dar
consultas em que sua alegria, dinamismo e solidariedade para com as questões
mundanas levadas a eles por seus assistidos são contagiantes. Sempre têm um conselho
de ordem prática que oferecem com bom humor e quando necessário fazem trabalhos
utilizando os elementos próprios de seus domínios vibratórios.

Jennifer Dhursaille
As Cartas de Fred

16 de Outubro de 1714
‘Atraca, atraca que lá vem Nanã, ê ê

Atraca, atraca que lá vem Nanã, ê ah”

Cork Harbour
October, 16th, 1714
My Dear Isobel *

Sei que pediste que te acordaste antes de partir, mas mais uma vez não tive coragem. Sei que
teu dia é duro em terra firme, como o meu é duro no mar. Tens os meninos para cuidar e tudo o
mais, além de toda minha vida em terra, que sois vós e a minha, a nossa, família. Escrevo-te para
contar as boas novas que tive ao chegar no arranje dos barcos **: com os três serviços
encomendados será suficiente para que possas já comprar o tecido e mandar fazer o vestido que
tanto quer nossa Suzette. Sei que vais dizer que não é preciso, que reformas um anterior, mas da
parte de nossa vida que é regida no mar, cuido eu, então obedece, mulher, e compra o tecido
para a guria!

Se quiseres compra para ti também algo de que te agrades, pois também és


mulher e sei que esses panos todos têm o poder de enfeitiçar mulher em loja; parecem até as
sereias que, cantam, seduzem os homens no mar – embora eu nada disto sei, pois só tenho olhos
para ti!; na cidade são as lojas que seduzem as moças, as senhoras e as raparigas.

Os meninos tu os deixa como aprendizes na carpintaria, para ver se nisso levam


jeito... Vamos ver... Mas não sejas tão dura com Scott; se ele quer estudar, que estude. Basta que
cumpra seu meio-dia lá com o sapateiro.

Não te preocupes demais, nem com nossa filha, nem com teus sobrinhos; tudo
há de se ajeitar e nossa família ficará bem.

Nem comigo te apoquentes, pois Llyr *** há de me proteger.

Pedirei ao mensageiro que te entregue esta antes de eu partir, pois sei que
amanhã leva ele encomendas para todo o interior e passa também por Kilkenny.

Teu Fred

Alfred P. Thompkins

* Minha Querida Isobel

** Local onde se contratam os serviços de um navio e sua tripulação, marinheiros, etc

*** Deus celta do mar


As Cartas de Fred

Novembro de 1714

My Sweet Isobel *

Esta será curta pois o deão tem pressa e em 11 de novembro já parte para
Kilkenny e não perde a chance de enviar-te esta, pois soube há pouco que poderemos nos demorar
fora de casa, aportando do lado oeste da ilha, indo e vindo a meio mar do Atlântico. Se tens
dúvida para entender direito o que é isto, pergunta a Suzette que desde pequenina me ouve ela
explicar – de fato aprendeu sobre navegação melhor do que os meninos! Pena não puderem ser
as mulheres capitãs!

Como te disse, há serviço de sobra e até falam em viagem ao Mar do Norte de


janeiro a março do ano que vem, então pára de te preocupar que para o ano fazemos o
casamento de Suzette. Scott não quis a sapataria – deixa-o pensar no que fará da vida até o natal.
Para o ano lhe cobramos decisão, mas por ora, deixa o menino a sós com as ideias dele. Já se está
fazendo homem e a um homem é preciso que lhe dêem tempo para estar a sós com seus próprios
pensamentos. (Quisera eu um dia tu entendesses isso de uma vez, mulher!!!)

Mas enfim, se rilhar contigo é meu prazer e sei que estás agora mesmo a me
amaldiçoar, não me preocupo, pois que Llyr é meu protetor!

Mas veja que tens de sobra motivos para rir: teus sobrinhos gêmeos encetaram
como aprendiz e creio que dali terão sustento digno e boa profissão – melhor que a de um velho
do mar, se queres saber – em menos de um ano em que perderam a mãe. Tua irmã se foi mas
podes descansar tua cabeça tranquila no travesseiro: deste bom rumo a teus sobrinhos. E o outro
logo há que se encontrar!

Não gastes todas as moedas que te mandar!

Teu marujo fedorento

Fred

Alfred Patrick Thompkins

* Minha Doce Isobel


As Cartas de Fred

2 de Dezembro de 1714

December, 2nd, 1714

Minha agridoce e impaciente Isobel

Não adianta reclamar do que não muda, mulher! Se em quase 28 anos de


casados nunca te acordei de manhã, não é agora que estou a ficar velho que começarei a fazê-lo,
oras! Aproveita o tempo que tens a mais nas manhãs escuras de nossa Éire e dorme por mim, que
aqui valente vou ao mar para os nossos tostões conquistar!

E pares de dizer imprecações sobre meu nome ao sacerdote ou ao deão quando


eles lhe vão minhas cartas ou as moedas te levar! Vai me dobrar as rezas e eu que já quase não
durmo hei de roncar no meio do padre-nosso por tua culpa, mulher descabida.

E já mandei que fizesses um novo casaco para ti, que o inverno será brabo, e não
te quero ver a assoar o nariz todo vermelho que nem uma rena na missa do galo!

Podes gritar à vontade que não estou aí mesmo pra te ouvir, mas vê se deixas
antes o deão partir, velha rabugenta!

Amo-te!

Volto para o natal!

Beija Suzette por mim

Captain Alfred P Thompkins


As Cartas de Fred

8 de Janeiro de 1715

January, 8th, 1715

Amada Esposa Isobel

Ai quem me dera poder ter passado este janeiro tão frio inteiro aí, como havia
planejado... O frio está um inferno, mulher, nem imaginas!

Deixas que quando voltar converso direito com teu sobrinho Scott. Dessa viagem
às pressas não pude escapar por ser ‘ordem real’, mas se tudo correr como planejo volto no fim
do mês e passo fevereiro quase todo aí. As Festas de Fim de Ano são sempre corridas e não pude
conversar com o garoto direito; acho que ele precisa da orientação de um pai nesse momento, e
como isto ele não tem, serei eu o melhor tio que puder.

Não te preocupes, que de pensamentos tristes morreu a cobra, e eu não quero


ficar viúvo!

Teu incorrigível marido

Cap. Alfred P. Thompkins


As Cartas de Fred

Fevereiro e Março de 1715

Dear Isobel*

Scott pegou de cara uma viagem longa, mas devemos voltar do Mar do Norte
antes de março, mais provável que tu o vejas somente entre a primeira e a segunda semana, mas
estará ele aí em Kilkenny para a Festa de São Patrício, pois prometi a ele, e o enviarei com o deão.
Mas não estarei aí com vocês nesta data. Ainda sinto vergonha de mim mesmo e não me
apresentarei diante do meu santo de batismo antes de me redimir devidamente. Nesta data **
estarei em Galway, repensando minha vida e decidindo sobre algumas atitudes que pretendo
tomar antes de aparecer diante de ti e de Suzette novamente. Se quiserem escrever-me carta,
enviem-na para lá. Se puderes, gostaria que me dissesses a verdade, se nossa filha realmente já
me perdoou...

Teu Alfred

* Querida Isobel

** N. A.: 17 de março – dia de São Patrício, padroeiro da Irlanda

§§§

- Toma, garoto, arranja com o deão tua carona de volta a Kilkenny. Toma isto –
disse-lhe entregando uma bolsinha com algumas moedas de peso – e não gastes tudo com as
garotas nem com bebidas na festa. Lembra-te: é uma festa de um homem santo, um missionário
de Deus, então há que reserves um tempo para pensar no Senhor e pedir bom conselho para a
tua vida!

- Tio Alfred, eu gostei de trabalhar no barco. O senhor vai me levar junto da


próxima vez?

- É um trabalho pesado como você viu, garoto. Mas se estás disposto, te mando
buscar quando já tiver a data marcada para deixar terra.

- Tio, o senhor não virá mesmo para ter conosco na festa? – perguntou o menino
ressabiado, sem querer fazer muitas perguntas diretas, o que achei muito bom sinal de juízo dele.

- Não, leve essa bolsa com o dinheiro para tua tia e... entrega essa carta para tua
prima, me faz o favor.

- Sua bênção, tio?

A atitude do menino me espantou, e também me emocionou.


- Que Deus, a Trindade e as Três forças do Mar te protejam, em terra e em alto-
mar, meu filho.
§§§

March, 16th, 1715


Saint Patrick’s Day Eve #

My Beloved Daughter*

Teu pai não estará contigo e tua mãe por ocasião desta festa de São Patrício,
pois que um homem envergonhado não tem o que comemorar na presença de Deus e dos seus
Santos Anjos. Antes deveria ele ir procurar meios de se redimir para só então, de posse novamente
de sua honra, ir ter com Deus e com os Seus. E é isto que estou a fazer neste momento em que,
espero, leias esta missiva.

Se precisares de algo, pede a tua mãe, que enviei dinheiro suficiente a ela por
teu primo Scott.

Quero voltar a te dar motivos para que te orgulhes de mim, como tinhas quando
eras só uma pequena menina e te trazia aos navios em que trabalhava para que te maravilhasses
com tua inocência e imaginação infantil.

Nunca duvides, minha filha, que teu pai te ama mais do que tudo nesta vida
desde que tua mãe me disse que finalmente teríamos uma criança, depois de tantos anos de
espera e de orações.

E saibas, Suzette, que se tivesse meu braço decido em violência insana causada
por uma desgraçada bebedeira e minha mão tocado teu rosto para alguma dor causar, teria eu
me atirado ao mar para morrer após cortar o punho da amaldiçoada destra que ousara te
ofender.

Teu velho, falível e cheio de defeitos pai

# Véspera do Dia de São Patrício


* Minha Amada Filha

§§§

Kilkenny, 15 de Março de 1715

Teimoso Alfred

Espero que esta te encontre com saúde e dotado de melhores juízos.

Tenho com frequência em minhas orações, e especialmente durante as


proximidades da Festa de São Patrício, questionado Nosso Senhor o que teria feito eu para
merecer marido tão teimoso.
Desde que nos conhecemos jamais estivemos distantes um do outro durante as
celebrações do nosso padroeiro. Era nosso contrato, não importava o que ocorresse: se vida
tivesses, comigo estarias no Natal, na Páscoa, no aniversário de nossa filha e no dia de São
Patrício; e quebraste essa promessa somente uma vez, por ocasião de uma tempestade. Agora a
quebraste de novo, por culpa de um vício enviado pessoalmente pelo Diabo à Terra para
corromper os homens!

Sei que me dizes que a bebida torna suportável a vida dos homens no mar, e que
por causa dela tivemos as poucas discussões que macularam nosso casamento ao longo desses
anos todos de nossa união perante os sagrados laços do matrimônio. Porém de alguns anos para
cá tens exagerado – e muito – e foges de nossas conversas quando esse assunto procuro abordar.
Mas agora viste com teus próprios olhos o mal que este vício maldito pode causar, pois por muito
pouco não agrediste tua própria filha, sangue do teu sangue.

As palavras duras que ela te disse, infelizmente, são a verdade, meu marido. De
esposo e pai exemplar, homem do mar digno e trabalhador, quando bebes, te tornas uma farrapo
humano, caricatura grotesca de qualquer bêbado de bar, uma figura irreconhecível para nós.

Falaste-me uma vez sobre os homens que vivem no norte da África e cuja religião
lhes proíbe de beber álcool. Desejei naquela noite infeliz que morássemos todos naquele país, que
tivéssemos nascido de pele mais escura como me dissestes que eles eram, e que nossa família
pertencesse àquela religião. A Virgem Maria há de me perdoar por dizer isto, posto que é mãe e
também foi esposa de José, e compreenderá porque preferiria eu a isto do que a ver minha
família, meu marido e minha filha outra vez, a encenarem cena tão grotesca e horrível que não
consigo apagar de minha mente até agora, embora todas as noites peça ao Arcanjo Miguel que
me conceda essa graça.

Lamento ter de dizer-te essas palavras duras, pois reconheço teu esforço e como
lutas por nosso sustento e para que nada nos falte, mas é preciso que compreendas que por causa
unicamente de uma garrafa, estivemos eu e Suzette sozinhas durante a missa e as celebrações
na igreja: eu sem marido e ela sem o pai, sem aquele que sempre foi nosso orgulho, esteio e
proteção. Esta é a verdade, Alfred.

Ainda assim, fizeste mal em não vir, posto que somos família, e o amor e o
perdão devem estar acima dos erros. Isto tratei de ensinar à nossa filha, portanto não há que
temeres estar na presença dela, pois não levantará ela palavra para te acusar, ainda que possa
ficar quieta, no canto dela, sem maiores expansões. Sei que isto te doerá, pelo teu imenso amor
por ela e pelo muito que sempre a mimastes.

O tempo sempre conserta tudo, desde que o homem não incorra em repetição.

Sou eu, tua esposa, que te pede: volta, sem receio e sem demora, pois esta casa sem tua
presença é só metade de um lar e eu sou só metade de mim.

Tua esposa Isobel


As Cartas de Fred

O Espírito do Mar

- Tio, o senhor viu o espírito do mar?

Scott dera para tomar gosto em ouvir as histórias dos marujos, sobretudo as
mais bizarras, afinal são essas que dá gosto de se ouvir no mar.

O mar é um território estrangeiro, um mundo aparte, habitado por seres


estranhos e regido por outras leis. Não cabiam ali, onde se anda no mole, montanha não se vê e
os viventes respiram debaixo d’água, os assuntos do universo terrestre, de impostos ou da
monarquia, nem de família – que é assunto velado, posto que dói demais no peito, e se entregue
à depressão, marinheiro é coisa que não presta, perde a serventia o sujeito – ou de economia,
pois que a ganância afundou muitos barcos. Ali no nosso microcosmo à deriva (e olhe que esse
termo aprendi recentemente... Acho que tô usando bonito!) caíam melhor histórias sem a poeira
das estradas, só das estrelas; sob elas, aquelas ancoradas em outras realidades. Gente que viu,
ouviu e principalmente que ‘ouviu contar’, sempre teve e sempre há de ter. E é bom que seja
assim, pois sonho que vaga de boca em boca mantém a fornalha do coração acesa.

- Conta, tio, por favor!

Meu silêncio não sossegou o garoto, nem iria, eu já sabia, nas três pitadas que
no meu cachimbo iria dar, pois desse prazer não larguei, nem poderia alguma válvula de escape
negar aos meus homens, depois que proibi qualquer ‘espírito*’ que não fosse alma de vivente
no meu barco entrar. Tripulação minha, bebida não podia carregar, ainda que eu soubesse que
uma garrafa e outra, ora ou outra, um fosse contrabandear.

Mas promessa que se faz pra mulher, seja mãe, irmã, mulher ou filha, homem
que tem valor não quebra. E a minha eu não ia quebrar.

- Ó, guri – disse eu entre as baforadas – isso foi há muito tempo. Não te esfalfes
para escavar sombra...

- Mas, tio, me responda apenas se ‘sim’ ou se ‘não’, pois isso que quero saber.
Se existem mesmo coisas como espíritos ou assombrações.

Olhei sério para o menino. Era inteligente, tinha fogo no fundo dos olhos, era dos valentes, se é
que me entende. E estava tomando gosto, cada dia mais pela vida no mar. De primeiro eu o
trouxe apenas como experiência; sabia que a irmã de Isobel não ia querer outro moleque da
família a viver do mar... Mas ela tentou, tentou e até agora o garoto só dera mostras de se achar
entre as ondas. “Feito para maresia”, meu primeiro contramestre diria.

- Olhe, filho, o mar, a vida no mar, é assim que nem se você fosse viver na Lua,
sabe... Todo mundo olha pra ela e acha linda, inspiradora. Escrevem poesias e canções sobre ela,
mas ninguém de fato mora lá, ninguém vai lá, mas se fosse não ia gostar, ia perder a graça,
entende, porque ia achar solitário, vazio, sem aqueles romances todos que as histórias contam
sobre ela e que fazem os namorados sonharem. Tem uma luneta bem boa lá nos observatórios
de Kilkenny, no Ulster também. Tem os estudados que observam os astros por essas lunetas.
Coisa boa! Não essas fraquinhas com dois vidrinhos que você vê em Cork pra vender, não! E eles
dizem que é tudo seco, tudo árido lá. Que não tem vida. Não tem gente, não tem bicho, não tem
floresta. Então só é bonito daqui de baixo a gente olhando e imaginando. Entendeu? O mar é
meio desse jeito também, só que tem vida, e vida até demais debaixo dos nossos pés, só que a
gente não vê! Lá na cidade as pessoas, principalmente os jovens e as moças acham lindo o mar!
Faz pensar em aventuras, lugares exóticos, tesouros... Mas não é nada disso...

- Eu sei, tio, o senhor já me explicou...

- Mas eu vou repetir porque eu quero que você entenda bem!

O garoto arregalou os olhos quando subi meu tom de voz. Eu não estava bravo,
mas gostava que ele pensasse que eu tivesse!

- O mar é solitário ao ponto de enlouquecer um homem. Aventura é só nos


livros: a realidade do homem que vive no mar é trabalhar muito, feder muito e ganhar menos do
que podia – principalmente se ele não tiver seu próprio barco. Então trabalhe muito e beba pouco
– ou melhor, não beba! – que é pra sobrar mais e você poder ter seu próprio barco antes de se
engraçar com alguma moça da cidade que consigo resolva se casar. E quando esse dia vier você
vai perceber que o ‘tesouro’ do marinheiro é o que ele deixa em casa e não o que ele sai mar
adentro para encontrar.

- Tá bom, tio, mas será que o senhor podia me contar...

- Tá, tá, tá! Tá bom, moleque, vou contar logo essa história que é pra você me
deixar em paz. Segura esse leme aí que eu não gosto de contar rumando. Você leva e eu cuido
da prosa.

Ele não gostou muito, mas já que queria ouvir, a minha atenção tinha que estar
livre pra poder relembrar direito e contar! Ele que era novo que usasse o cérebro para tocar navio
e me escutar!

- Foi assim – pausei para por mais fumo no cachimbo – foi num dia de todos dos santos que a
gente não foi em terra. Muitos homens estavam zangados, dizendo que era mau-agouro não
parar o barco pra visitar os mortos, prestar as homenagens um dia a quem já não está mais aqui.
O dono do barco era um inglês protestante e disse que se nós quiséssemos prestar alguma
homenagem aos nossos falecidos, podíamos visitar seus túmulos em qualquer data do ano, não
precisava ser no meio de uma ‘festa pagã’. Daí na véspera, no dia 31, a gente estava virando a
vela sul lá pela Ilha de Man, e quando puxamos a rede pra dentro do barco, um velho caolho
gritou: “Pára, pára que tem uma menina!”

- Aonde? Dentro da rede?


- Era, dentro da rede! Eu estava embaixo contando mantimentos junto com o
cozinheiro. Quando subi, pelo alvoroço, o velho dizia que tinha visto a menina se mexendo e
fazendo sinais com a mão pra fora da rede; tinha mais um que jurava que tinha visto a menina
também, e um outro assim da sua idade que disse que não tinha certeza... Mas a razão venceu e
todos concordaram que era impossível. Então, descarregaram a rede no porão e no meio tinha
uma foca, branca, filhote. E todo mundo riu do velho bêbado e caolho que confundiu foca com
criança. Disseram que se ele visse um leão marinho, era capaz de cumprimentar e pedir a bênção,
julgando ser um padre.

- É só isso? – perguntou meu sobrinho com ar indignado.

- Não é, não, mas se tu me interromperes de novo sou bem capaz de não contar!

Três pitadas depois, continuei:

- Naquela noite eu bebi muito. Mas muito mesmo, enchi a cara! Daí saí de noite,
já passava das horas, já era perto de 1, 2 da manhã... Fui olhar a noite, tomar um ar fresco pra
resfriar a cabeça de tanto destilado. Daí eu subi, tonto e encostei entre a porta e a escada e fiquei
olhando as estrelas na escuridão. Daí eu ouvi um soluço, um tipo de choro baixinho... Fui procurar
e perto das redes e dos arpões estava uma moça nua com os cabelos molhados, cheios de plantas,
como algas... Eu fiquei parado, olhando e pensando o que é que uma bebedeira é capaz de fazer
com um homem de família... Daí ela levantou a cabeça, olhou-me e falou assim:

- Por favor, devolva-me para o mar.

Eu não disse nada porque afinal eu não ia falar com uma alucinação alcoólica, mas ela repetiu o
pedido. Eu pensei em dizer: “Pode voltar se você quiser, eu não vou te segurar”, mas daí, num sei
como, se ela estava ali na minha frente, eu, na minha cabeça, achei que ela era a foca que estava
lá embaixo, morta. Não tem lógica essa história, por isso que eu não queria te contar. Eu desci,
bêbado que nem um porco, procurei o corpo da foca, subi e joguei no ar. Na minha cabeça eu
ouvi até um ‘obrigada’, mas fui deitar e não pensei mais nisso. Na manhã seguinte, contei para
os colegas, como curiosidade, mais uma história de bebuns em alto mar. Mas daí o velho e o
outro que disse terem visto a menina me contaram sobre uma lenda, da mulher foca que abençoa
ou amaldiçoa os barcos, de acordo com o que faz o futuro capitão, libertando-a ou não – porque
dizem que ela só aparece pra quem vai ser capitão, inclusive muitos inventam histórias de que a
viram para conseguir o respeito da tripulação, mas eu nem sabia de nada, então acreditaram em
mim. Fato é que depois de 10 meses eu me tornei capitão e quando finalmente voltamos a Cork
para reverenciar o Dia de Finados atrasado, disseram que três navios haviam sucumbido, dois no
Mar do Norte, um no Mar da Irlanda. E em todos haviam pescado um filhote de foca.

- E eles viram a mulher à noite, como o senhor viu ?

- Isso eu não sei, porque a maioria da tripulação morreu e ninguém ia ficar


fazendo esse tipo de pergunta impertinente, não é Scott? Faltou até cova naquele Halloween de
tanto defunto novo!

- E essa mulher foca... É essa que dizem que é o espírito do mar?


- Não é outra.

- Mas...

- É outra e eu não vou contar essa história hoje porque não estou com vontade.

Dei uma pitada funda e outra rasa enquanto meu sobrinho fazia uma expressão
maravilhosa de incrédulo.

- E me passa esse leme aqui que eu não quero ir parar na África hoje.

*spirit é também uma designação para bebidas alcoólicas, especialmente as destiladas


As Cartas de Fred

15 de Agosto de 1699

The Captain’s entry journal *

15 de Agosto de 1699

Que me importa se a Marinha não me reconheça capitão, nem cause meu barco
maior afetação? Pelo menos é meu, pago com meu suor e é mais que o primeiro bem de minha
família. É um palácio encantado de aventuras infinitas para minha filha, que hoje faz sete anos,
e já quase que escreve e lê tudo, sim senhor! Minha Suzette é danada de esperta, e tem sangue
do mar correndo nas veias! Não enjoa a pequena nem tem medo dos balanços; muito mais se
diverte a gargalhar quanto mais o barco se movimenta no mar. Há tempos me pede que a deixe
vir comigo, mas evito para Isobel não ralhar, pois não é, de fato, ambiente para uma menina, mas
prometi-lhe que em seu aniversário lhe traria. Já se julga muito grande a guria! Fala isso o tempo
todo: “Eu posso fazer, papai, pois eu já sou grande!” Ora, ora, pois veja isso...

Meu Deus, Deus meu... O que são essas crianças que o Senhor nos dá para que
delas nos apaixonemos e nos tornemos escravos eternos desse amar que é sem fim.

Eu sempre achava que bonito era uma família, e queria ter uma só para mim,
mas não achava, bem lá no fundo, que teria essa sorte um dia assim... Mas não é que Isobel foi
dar bola para as minhas conversas e acabou por gostar de mim!? Deus foi muito bom para mim
e me deu o amor de uma boa mulher, e um dia, enfim, nossa casa floresceu nesse amor e o nosso
bebê tão desejado chegou. Nossa Suzette... minha filha!

Eu não sei se eu tivesse tido 5, 6 filhos homens, se teria sido assim... esse amor
tão intensivo, essa vontade louca de proteger... Minha filha é para mim como uma flor que eu
tento a todo custo evitar que o vento venha a despetalar. Mas ela não se faz de frágil! É corajosa
e insolente. Não fosse Isobel manter a corda curta, eu que não ia conseguir dominá-la! Falta-me
coração duro e pulso para brigar com ela ou castigá-la. Penso que foi um presente que demorou
tanto para Deus me dar, que não quero jamais parecer ingrato ou desvalorizar.

Que seja a mãe a exigir-lhe os modos. Para isso minha Isobel é perfeita. Eu irei
me ocupar de conseguir para ela o melhor que o trabalho dos meus braços puder lhe arrumar,
para que ela tenha uma boa infância, uma boa vida, um bom futuro e um bom marido, quando
chegar a hora de ela se casar... E doces para casa para ela levar quando de cada viagem voltar.
Afinal é essa também a ‘função do capitão’ segundo ela; trazer doces para casa em cada volta do
mar. Deve achar que existe um jardim de doces, guloseimas em alto mar, a maluquinha!

Mas tudo bem, afinal cabe ao capitão fazer sempre o melhor pela sua tripulação.
E eu sou seu capitão.

Alfred, Suzette’s captain and a proud father**


§#*#§

Reli o relato escrito com as tintas do coração há mais de 15 anos atrás, no diário
que guardei pelo mesmo e único motivo que o iniciei: registrar em suas páginas cada passo da
vida de Suzette, cada sua história, seus progressos, seu amadurecimento. E de cada momento,
tão lindo, me reabastecer na solidão amargosa da ausência em tanta noite que por elas, as duas
mulheres de minha vida, passei em alto mar.

Mas hoje o fiz de modo diferente, sem mais a falsa alegria da bebida a me
acompanhar, nem o falso calor do álcool a me aconchegar. O fiz cônscio e lúcido e com o peito
contrito de desconfiança sem par. Uma carta chegara por Scott, de minha Isobel sem jeito a me
explicar que a nossa filha pretendia se casar nos próximos seis meses após o feriado de Lughnasad
– não importa que nome deem ao festival minha esposa e o padre, pois eu aprendera com minha
avó os feriados todos com os nomes antigos dos deuses da região – quando se daria o seu
noivado.

Entretanto, nenhuma fé animava meu coração agora. Pois ela sabia, minha filha,
pois a mãe lhe explicara, sucessivamente ao longo dos últimos três meses, que após o contrato
com a marinha britânica eu estaria, impreterivelmente, por seis meses direto em alto mar, entre
janeiro e julho. Logo, e também pelo tom e pelas palavras que minha esposa tentara, mas não
pudera de todo disfarçar, demonstravam indignação e desconsolo porque não pudera de seu
intento nossa filha demover. Eu concluía, vazio, oco por tudo dentro de mim, que a verdade era
crua e uma só.

Minha filha não me queria em seu próprio casamento.


* do diário do capitão

** capitão da Suzette e pai orgulhoso


As Cartas de Fred

A Festa de Casamento

A festa teve gente rica e apareci por fim à porta da recepção, entregando à
mulher um colar – meu último presente de pai a uma filha, que agora, Deus o quisesse, fosse
abençoada em sua vida de casada. Isobel se desgostou muito com toda essa situação e sei que
não fora a própria filha a nubente, jamais teria ido ela mesma à cerimônia, e a parte que foi só
dor sentiu e desolação porque eu não estava ali.

Mas disse-lhe eu:

“Mulher, não é de bom agouro que um filho ou filha se case sem ser com a bênção de pelo menos
um dos pais. Se eu não posso ir, vade tu e a abençoa por nós dois. Não te consumas demais por
isto, visto que a Bíblia já prevê que os filhos deixarão a casa dos pais e com outro se tornarão uma
só carne, portanto, comemora nessa noite o bom papel que fizemos eu e tu trazendo nossa filha
sã e criada até aqui. Que ela seja feliz e nós sejamos abençoados com muitos netos!”

Mas Isobel sofria e também sofri eu, e combinei de partir dia seguinte, para o
caso de ela vir me convidar a entrar em sua nova casa, mas não veio. Parti então na mesma noite
para o porto de Cork rumo às inusitadas aventuras que esperavam esse marujo velho.

Por ocasião da festa, Scott não estava alistado para vir, mas dia seguinte, para
minha surpresa, sem nem uma gota de álcool aparecera o rapaz, pronto para seguir viagem; e
soube por ele que Isobel chorara a noite inteira depois que chegou em casa. Mandou-me muito
o que comer e Scott e eu passamos em clima de festa, pelo menos à hora das refeições, por quase
uma semana inteira.

O Mar do Norte nos esperava. E com ele mistérios sem fim.


As Cartas de Fred

29 de Fevereiro de 1716

29 de Fevereiro de 1716

Era um dia por si só já esquisito, pois que outro como aquele não se repetiria
em menos de 4 anos. É da natureza dos marujos ser desconfiado com qualquer coisa que lhes
fuja à rotina ou pareça pouco natural, fruto de anos trabalhados no mar e desenvolvimento de
instintos que lhes facultariam a sobrevivência. Mesmo um marinheiro bêbado, preguiçoso e
desatento é capaz de ter uma percepção quase sobrenatural das coisas que estão acontecendo
ao seu redor e tem a habilidade de reagir com reflexos mais rápidos que qualquer doutor da
capital. O lado ruim é que isso lhes faz muito supersticiosos também, e por ser o dia 29 do mês
de Bridhe algo incomum, já amanheceram ressabiados e passaram o dia receosos, com um
silêncio e uma ‘expectativa’ que por diversas vezes me incomodou vê-los relatar.

“Parece que algo está para acontecer”, diziam.

Próximo ao pôr-do-sol já começava a dar graças que nada de anormal saíra do


controle, posto que embora não desse o braço a torcer, por dentro também me inquietava. Foi
então que Scott resolveu subir na gávea para ver até onde pudesse os últimos raios de sol de um
inverno que ele ansiava por ver logo partir. O menino desceu lívido, e espantou-me a presença
de espírito do moleque, pois apesar dos olhos esbugalhados, alarde não causou; aproximou-se
de mim bem perto e falou baixo:

- Tio, eu acho que o senhor deveria subir e observar o quadrante a noroeste.

Uma comunicação silenciosa passou-se entre nós, e em nenhum momento


duvidei que o que eu iria avistar lá de cima seria algo muito grave. De posse da luneta me aboletei
acima do cesto da gávea e fiz a terrível constatação: navio pirata a estibordo.

Eu sabia que os corsários pagos pelos ingleses haviam varrido para longe a maior
parte das ameaças, mas ainda persistiam algumas bem terríveis e concretas.

A visão que eu tinha não me deixava dúvida: a ameaça que teríamos à nossa
frente era dessa categoria, bem terrível e concreta. De uma forma que não sei dizer, eu
simplesmente sabia que quem estava à nossa frente, e ele já nos vira, vinha diretamente em
nossa direção.

Não éramos o mais tentador dos navios, mas tampouco éramos desprezíveis. Nossa carga
prioritária era arenque, mas levávamos também valores em três caixas-cofres próprias para isso,
dos bancos franco-irlandeses que negociavam com a Dinamarca, e o próprio navio em si não era
de ser desprezado por saqueadores. Tínhamos três canhões a bombordo e 2 a estibordo, por isso
ordenei que nos mantivesse à direita dele sempre, a fim de ter maior poder de fogo quando da
aproximação fatídica. Avisei a tripulação e internamente lamentei que talvez morresse sem ter
visto de noiva a minha filha, e por Scott, na flor da juventude. Mas mantive-me frio e confiante
quanto ao que podia ser feito, que aliás não era muito. Expliquei aos comandados, entre
irritantes lamentos de “Eu sabia que o dia de hoje não iria acabar sem algo acontecer!” que era
quase certo que seríamos atacados, e muito certo que não teríamos poder de fogo para combater
um navio pirata da envergadura do que eu acreditava que aquele era, provavelmente
comandado por um dos novos terrores marinhos daquela atualidade.

“- Teremos duas únicas chances e com a primeira não devemos de contar, que é o caso do pirata
estar cansado demais para querer lutar, ou carregado demais em seus porões para encher as
burras ainda mais e não dispor de porto clandestino para onde o nosso navio levar para atracar.
Portanto mantenhamos nosso navio a bombordo e bem antes do que seria esperado, ao meu
sinal, disparem a primeira bala de canhão na direção da artilharia deles. Se tivermos sorte, ou
causamos dano considerável ou pensarão que temos muito mais poder de fogo do que realmente
temos. Com isso poderemos, talvez, afugentá-los. Se encetarem sinal de fogo, disparem ainda
mais duas balas, mas errem por muito pouco, para que pensem que foi por solavanco de vento.”

Respirei fundo e prossegui:

“- Para o caso de termos êxito, ou não, o momento de orar é agora.”

Olhos desgovernados fixaram-se em sua missão, e como bactérias a favor de um


mesmo corpo, todos harmoniosamente, apesar da tensão, prepararam-se para dar o melhor de
si – talvez pela última vez - em seus respectivos postos. A coragem de Scott me tocou e vi que o
menino olhara para o bote salva-vidas por um instante, para em seguida buscar fôlego e engolir
uma quase lágrima do olho direito, antes de ir ajudar com as solturas das cordas.

Por muito tempo depois julguei que “milagres acontecem” e “a oração do jovem
bom há sempre de ser atendida”. Até fiquei encasquetado em descobrir qual fora o cristão livre
de pecados que nos granjeara o milagre. Até julguei que fosse O’Reilly, o mais bisonho, feio, sem
mulher, sem tutano e sem dinheiro entre nós, que talvez tivesse a ingenuidade suficiente pra
obter o favor da intercessão da Virgem Maria.

Mas de verdade, nem eu nem ninguém soube o que de fato aconteceu.

No começo era uma luz, ao oposto do poente, tal qual uma versão em exagero
da estrela polar ou matutina, mas depois seu brilho subiu demais no céu para não causar espanto.
Fenômeno astrológico como aquele não conhecíamos, nem reconhecíamos de ninguém os
relatos. Tornou-se bem maior que o sol e em seu meio algo como uma meia lua escarlate se via.
Dali saíram como que de um conta gotas faíscas em forma de camafeus, lágrimas achatadas que
depois cresceram no céu, em tamanho, brilho e nitidez, permitindo ver, sem seu interior, uma
forma divisível anular de cor sólida. A noite que caía se incendiou, e o espetáculo fazia dó aos
fogos de artifício de qualquer catedral das maiores cidades. Nem em Escócia se viu algo igual.
Algumas se movimentavam aleatoriamente e outras estacionadas no céu ficavam. Ao fim de um
certo tempo que depois ninguém conseguiu explicar, elas sumiram, se desvaneceram.
E com elas o navio ao longe foi deixando de ser avistado. Talvez pensassem que
fôramos nós os autores de tal proeza. Era dito à boca pequena que a Marinha Inglesa equipava
seus corsários com as mais modernas ferramentas de artilharia.

Mas eu sabia que não foram eles, nem nós, nem os ingleses, nem os vikings
noruegueses.

Talvez fossem os deuses, ou a Virgem Maria. Ou quem sabe o milagre sem


autoria que todo filho homem de Eva almeja um dia de se fazer serventia.
As Cartas de Fred

17 de Março de 1716

17 de Março de 1716

Nosso navio fora trocado por um novo da frota inglesa, maior e mais adequado
aos propósitos que o comissariado Stanton tinha para nós. O mastro principal tinha uma imagem
da santa que dava o nome ao navio que era uma verdadeira obra de arte: os cabelos encimados
por uma coroa espalhavam-se pelos lados, assim como a barra das vestes, perfeitas em cada
dobra, até as unhas dos pés descalços na pose de seu arrebatamento era representações
perfeitas de um real pé feminino. A mão direita, estendida aos céus acompanhava o mastro
principal terminado na ponta de seu dedo indicador enquanto a outra trazia o cálice bento junto
ao peito.

O Saint Marie-Magdaleine, eu e nossa tripulação aumentada zarpamos para longa viagem


com passagem pré-estabelecida em 8 portos para cumprir em 18 dias – que se tornariam 18 em
45 pois que vieram a ser complementados segundo ordens que receberíamos de acordo com as
necessidades dos contratadores via comissariado na medida em que fôssemos cumprindo o
roteiro de atracação nestes portos. Por vezes fazíamos o caminho inverso, retornando a 1 ou 2
portos anteriores antes de seguir viagem para os mais distantes, e assim, íamos nos inteirando
das fofocas que corriam às nossas costas, e que versavam indubitavelmente sobre a fuga do
pirata, de nossa relativamente humilde antiga nau. Muitos inclusive atribuíam a este involuntário
êxito o empenho de S. Majestade a Rainha em ordenar a nossa equipe barco maior e mais bem
equipado a fim de resguardarmos seus interesses – o que não era em absoluto verdade! Diziam
até que teríamos sido contratados como corsários e que o status de navio mercador era somente
um disfarce, e que estaríamos armados até os dentes para enfrentá-los, com canhões que se
elevariam dos porões até o convés através de sistemas de polias avançadíssimos desenvolvidos
em Edinburgh, que seriam nossa verdadeira carga ao invés de sacos falsos de especiarias que nos
julgavam camuflar.

“Sim, meus irmãos, a imaginação do homem, não é de hoje, pode ser hiperativa,
sobretudo em se tratando de servir de lenha aos fornos insaciáveis da fofoca!”

O problema é que uma inverdade deixa de ser uma aparente mentira na medida em que
é repetida à exaustão, e embora muitos de meus homens velhos fossem culpados por espalhar a
notícia da fuga do navio pirata de nós, era claro que eles próprios andaram espalhando essa
notícia em portos mais distantes, visto que quando neles chegávamos, as tramas já estavam
feitas e era com muita curiosidade e até certo temor que se aproximavam de nós, sempre a fim
de descobrir nossa versão da história, quantos segredos guardávamos no convés e qual milagre
ou truque usáramos para marcar o céu, fenômeno para o qual não tinham explicação e que, se
dizia, apavorara o pirata.
Na volta a Irlanda, num porto antes de Cork, em Belfast, uma senhora veio me procurar
com um bebê nos braços. Pôs-me o pequeno embrulho no colo, dizendo estar febril e sem
dinheiro para pagar um médico, e que sendo seu marido marinheiro, ouvira falar que eu, capitão
há mais de 30 anos em barco pesqueiro, largara a bebida num ato de fé, após avistar a Santa em
pessoa, e que em sua homenagem mandara gravar em ouro sua imagem no alto do mastro
principal, como prova de minha devoção, e que fora a intercessão Dela que espantara os piratas,
coalhando o céu com carinhas dos querubins que cercavam no berço o menino Jesus... Curasse
então eu sua filhinha, por amor a Deus e minha fé em Santa Maria Magdalena.

Com a pequenina no colo e a mãe de mão postas ao meu lado, certa de que eu era alguma
espécie de pecador redimido intercessor, me deu uma incrível vontade de puxar meu cachimbo
do bolso, encher de fumo até entuchar e puxar a fumava bem fundo até meu cérebro se entender
diante de tudo aquilo que estava se desenvolvendo ao meu redor, da fama inapropriada – por
todos os motivos nos portos por onde passava até a cena bizarra da mulher à minha frente. Só
não fumei porque julguei que se já estava doente a fumaça decerto não lhe faria bem. Olhei para
criança e para mãe e pensei que um pai faz mesmo qualquer coisa pra curar um filho. Desejei ter
o poder que ela me atribuía para pelo menos curar a pobre criança, mas duvidava que minha
mais fervorosa oração fosse capaz sequer de baixar meio grau à febre da pequenina. Entretanto
quis orar... ou melhor, tentei, mas na hora nem um padre nosso se me vinha... Já não era bom
católico nem decorava oração, fugi quando novo da função de ajudante de sacristão. Mas com a
melhor intenção e todo meu coração, fiz o sinal da cruz à testa, boca e peito da menininha
enquanto pronunciava minha oração misturada de frase daqui, frase dali, verso de outrora, só
desejando um bom desfecho pra filha e mãe se concluir:

“Em nome da Santíssima Trindade

Deu Pai, Deus Filho e Mãe Senhora de Todos Nós

Te proteja a cabeça te baixando a febre

E os lábios de algum dia pronunciarem de todo mal

Que o teu coração te guarde da cilada do inimigo

E com Seu manto te cubra a pureza da Virgem Maria

Com dois, três e nove laços te benzo para que não te percas

Nem tua vida dê nó

Com São Miguel Arcanjo na frente, São Patrício por detrás

São Jorge na direita e Santo Amâncio no cós.

Amém”
Devolvi a infante aos braços da mãe e procurei nos bolsos três tostões bons que a ela
entreguei:

“- Leva a menina ao médico. Que Deus as abençoe!”

E parti antes que ela tivesse muito tempo para me agradecer. Voltei meio soturno para
o navio, obstinado a chegar o quanto antes em Cork. Se não fosse um homem de palavra e que
não quebra as suas promessas, nesse dia, eu teria me encerrado no meu convés e bebido.

Sim, sem dúvida eu teria bebido!


As Cartas de Fred

Tarumã, Legislador dos Mares

Tarumã é um dos muitos nomes pelo qual sou conhecido.

Já missionei entre muitos povos, índios, maias, em Crotona, Krakatoa, entre


chiprenses, onde adquiri diferentes codinomes e hoje atuo junto aos mestres ascensos em
assuntos relativos aos oceanos e aos destinos dos mares da Terra – e consequentemente dos
homens banhados nessas águas sobre as quais se estende os domínios de minha legislação.

Aqui relatarei minha visão do espírito denominado Alfred no momento em que


o resgatei, a fim de oferecer contrapartida ao próprio relato dele quanto ao nosso encontro, pois
cremos que disto se beneficiará uma maior compreensão para o leitor.

Com a palavra, inicia sua história o nosso bom marinheiro:

#§§§#

18 de setembro de 1716

180 milhas náuticas a oeste de Hornby Dock

Aye! Esse é um dos momentos que me dá gosto de contar, dentre todas as minhas
experiências terrenas, porque, além é claro das boas consequências advindas para minha
evolução, é uma história muito ilustrativa para se contar, pois se derrama, a despeito de minha
bebedeira, sobre o que os mortais também denominam como “mares do desconhecido”, pois
esbarra na fronteira do paranormal.

Bom, vamos começar pela parte ruim, e que é comum: a grande maioria dos marinheiros
de fato bebia – e muito – quando encarnados, apesar de vocês hoje estarem mais do que
conhecedores do fato de que a falange dos marinheiros bamboleia quando em terra devido às
vibrações em que estamos imersos e que trazemos para o terreiro, envolvendo os médiuns, que
são vibrações energéticas da água, e não porque estejamos bêbados! Porém é sabido que a
maioria dos marinheiros bebia quando encarnado, quase que como parte do “folclore ético” da
vida no mar e, bom, o que eu quero dizer é que, até hoje, se o cara bebe é porque tem problema
emocional, não é mesmo? Hoje em dia há outros vícios tão ou mais devastadores do que o da
bebida, mas a origem de tudo continua a mesma: o cara se acha uma porcaria, um infeliz, ou
culpa a mãe, o pai, a mulher, ou qualquer outro membro da família pelos seus infortúnios e vai
procurar esquecer das próprias fraquezas dentro de uma garrafa num líquido qualquer
alucinante ou anestesiante, enfim, qualquer coisa que o leve, por alguns momentos – para ele o
viciado, extremamente preciosos – para longe de si mesmo e das lembranças dos seus fracassos.
Assim estava eu, às vésperas do aniversário de minha filha, cuja relação comigo
continuava abalada, ou melhor ainda dizendo, “rompida” e, apesar de minhas promessas,
sentidas e verdadeiras no momento em que as fiz, tranquei-me em meu escritório, na minha
cabina no convés do navio e abri não uma, mas três garrafas de “líquidos esquecedores” em
busca de não pensar, por alguns instantes na situação que me angustiava. Rum, gin e absinto em
dois copos e uma taça diferentes que ordenadamente organizei antes de dar início à maratona
de “vamos por fim ao fígado e aos rins”.

Uma hora e meia depois eu já havia caído da cadeira e ao lado do pé da mesa sentado, quase
estendido estava, a garrafa de rum caída por cima da mesa, havia molhado meu cabelo, pescoço
e colarinho da camisa, além de manchado o tapete e o chão. Do absinto só tomei três goles
grandes! – mas os restos da garrafa de gin aninhava em meu colo e cantava: “Lucy, how’d you
feel”* alternada com imprecações contra a força da gravidade que não me permitia levantar para
aliviar as águas que se acumulavam nos joelhos. Subitamente, então, reparei num homem que
me olhava do canto da cabine, silencioso, sério e muito bem vestido, numa casaca azul profundo
e brilhante, uma faixa prateada sobre o colete branco e amplo cinto de ouro de onde espadim, 1
corda que parecia um chicote e outros objetos que não identifiquei, todos também dourados,
pendiam em brilho de ofuscar a vista. Como ele nada dizia e eu estava sob amplo aspecto da
bebida, de início demorei a cair em mim, de alguma forma minha mente registrou a presença
dele como se ele fosse assim um quadro, um retrato, sem se alarmar; somente depois de uns seis
minutos, calculo, minha mente foi capaz de somar 2+2=4 e raciocinar que se aquele homem
estava ali dentro da porta que eu havia trancado, e eu não sabia quem ele era, já que era um
estranho, eu, especialmente sendo o capitão, deveria me preocupar...

- Quem és tu? – gritei. – Pirata?

- Não roubo almas, somente as reconduzo para Nosso Senhor.

- Senhor de que? – inquiri desconfiado. Inglaterra ou França, qual a tua


bandeira? Exijo agora que me fales!

- Minha bandeira e a tua hão de ser a mesma amparadas nos estandartes do


Evangelho cristão.

-Aliança? Não soube de aliança nenhuma! Quer saber? Eu sou é irlandês, se a


marinha britânica quer se aliar com Deus e o Diabo o problema é dela! Eu já estou por conta
dessas coisas. Vou para casa – disse me levantando – quer tomar o barco, tome! Só me larga no
primeiro porto que eu vou ver minha mulher! Se depois também quiser me prender, que
prendam, não estou nem me importando, tudo o que tinha para perder eu já perdi mesmo... – E
fui esbarrando num móvel e noutro e entre palavrões balbuciando tolices sob efeito da bebida,
quando então o homem estava em minha frente e estendeu a mão sobre a minha testa. Senti
um calor e um formigar, uma fisgada na nuca e de repente estava sóbrio. Olhei nos olhos do
estranho cavalheiro e um lampejo de lembrança pareceu invadir minha cabeça. Por um segundo
pensei reconhecê-lo e fui chamá-lo por um nome do qual eu nem sabia me lembrar:

- Edgar...
- Não sou Edgar, mas eu estava sempre perto dele e muitas vezes minha
presença você conseguiu registrar, em outra terra, em outros tempos, quando não era nem este
corpo que seu espírito estava a habitar.

Então percebi que eu não conhecia nenhum Edgar, mas imagens de homens diferentes, com
feições distintas vieram à minha memória, onde eu e outros homens, dentre eles Edgar,
deparávamos com enormes estátuas semelhantes aos cairns ou menires, mas dotadas de
peculiares feições. Era a Ilha de Páscoa, que nessa época ainda não era conhecida na Europa.

- Quem é o senhor? – indaguei mais respeitoso.

- Um amigo, e neste momento um mentor, se me permitir acompanhar-te no


roteiro de um caminho, que se faz importante que tu conheças antes de ir por ti mesmo nele te
aventurares.

- Para onde queres levar-me?

- Não é meu desejo que nesse caminho ingresses, mas teus méritos te permitem os avisos
que te posso conferir, a fim de que retornes são e salvo quando o risco te advir.

- Aceito o nobre conselho, não precisamos nem daqui sair! – bati a mão direita
sobre a mesa e o pé esquerdo no chão, a fim de conferir certeza à minha decisão. Sou marinheiro
experiente e sei dos perigos do mar. Se o nobre cavalheiro concede-me a honra de vir até aqui
me advertir, eu também posso me curvar em agradecimento e dobrar minha teimosia quando o
assunto é sério e se faz necessário!

Na verdade aquela fala não era em nada característica da minha pessoa, de


velho ranheta de tão teimoso, mas eu agira com linguajar mais cuidadoso que consegui pois de
alguma forma sabia ou pressentia a importância e a hierarquia de meu ilustre visitante. Embora
não compreendesse, não duvidava de suas palavras, e sabia que deveria acatá-las, para meu
próprio bem – e de minha tripulação.

- Não há escolha! Mares desconhecidos te aguardam. Vinde comigo agora que


te revelarei os ritmos das marés, de ida e da volta, a fim de que retornes em segurança.

#§§§#

Quando acordei na manhã seguinte não conseguia me recordar do momento


exato em que deixara o navio, nem como retornara da deslumbrante nau de prata e brilhantes
do comandante reluzente que instruções me dera sobre os perigos que encontraria no mar. Eu
não anotei em lugar algum, nem em meu diário, por medo de um confisco das autoridades
britânicas pudessem achar que me aliava a poderes estrangeiros, mas gravei em minha mente
cada palavra, aviso e instrução, certo de que momento chegaria em que não somente minha
vida, mas também de outros, unicamente daquilo dependeria.

#§§§#
Volta a contar o comandante Tarumã:

Há dias seu barco eu mantinha sob vigilância estrita e planejava o momento


certo para nossa comunicação. Seu instante de fraqueza aos meus propósitos veio a calhar, pois
que mais facilmente desdobrado foi, e após a imposição de mãos sobre seu frontal eliminando
os efeitos mais nocivos da bebedeira a fim de que se recordasse de nossa conversa
posteriormente. Em nenhum momento Alfred percebeu que sonhava ou que seu corpo físico não
mais tinha, por efeito do absinto, principalmente. Curioso é notar como sua mente registrava
minha presença e nossa conversa, totalmente telepática, em que em momento algum referi-me
ao evangelho ou à doutrina cristã, mas sendo ele desta fé, dentro de seus conceitos de paz e
bem, sua própria mente tratou de ‘imaginar’ ou ‘traduzir’ um diálogo mental entre nós que ele
pudesse racionalizar como motivacional para a segurança que sentia. Fosse um muçulmano, a
seus colegas diria que eu lhe falara em nome de Alá e jurara trazê-lo em segurança pelo nome
do profeta, ou ainda que me identificara como enviado de Maomé, e que por isso ele em mim
confiara. Mas tudo o que fiz foi transmitir-lhe multidimensionalmente um pacote de informações
e dados, energética e vibracionalmente, algo que hoje, no mundo eletrônico em que os humanos
já vivem, já começa a ser possível se compreender. Creio que pode o leitor perceber que por
ocasião de um encontro interdimensional no qual nós, no papel de guias, temos permissão para
interferir na percepção de vós que estais encarnados, esse encontro será comumente ‘traduzido’
por vós dentro do conjunto de crenças de que dispõe o individuo e por meio do qual sua fé terá
meios mais efetivos de manifestar-se a partir de uma interpretação lógica e em conformidade
emocional à memória já adquirida a fim de prover a necessária segurança na aceitação da
mensagem-motivo desse encontro.

O conteúdo dos avisos que dei a Alfred naquela ocasião se farão conhecer no
prosseguimento desta história. Mas creio, tão importante quanto a veracidade dos eventos que
serão narrados, seja a possibilidade de ampliar a compreensão geral do leitor sobre os fatos
relativos à comunicação mediúnica, uma vez que as qualidades da verdade permanecem
imutáveis: desmistificar, esclarecer e simplificar. Palavras de ordem para a Umbanda e toda
forma de espiritualidade do Terceiro Milênio.

*” Lucy, como você se sentiria”


As Cartas de Fred

1718 /...\ 1715

Irlanda – Mar do Norte

Divisa entre o Reino Unido e Eire

Abril de 1715

Só destroços havia, escombros boiavam no mar ao meu redor. A água era fria,
mas a maior parte de mim ainda permanecia a seco, graças a alguma força superior... Meus olhos
tentavam com dificuldade manterem-se abertos, queimados como se as pestanas estivessem
queimadas era como sentia. Lentamente a consciência foi-se me voltando e o choque pela
realidade que me circundava, tomando lugar. Eu boiava, preso pela roupa, dentro de um barril,
à lasca de couro que mantinha as peças de madeira coesamente firmes; o carvalho encerado de
excelente qualidade evitara que houvesse morrido por hipotermia. Meu barril salva-vidas
flutuava entre placas e tábuas de madeira, que pareciam precárias balsas vagando em alto-mar,
que a todo instante chocavam-se entre si. Procurei vivalma entre os escombros, mas somente
um gorro vermelho de lã, passando por mim, vi. Pertencia ao MacRoy, mas ele eu não via... Mais
assustador ainda do que encontrar-me naquela situação, entretanto, era não me lembrar de
nada do que houvera acontecido.

Poucos instantes depois, o apito de um navio ouvi, e em seguida um barco


pesqueiro, de porte médio, me resgatou e de volta à Cork me levou. À bordo, muitos cuidados;
muitos dos marujos me conheciam; agasalharam-me, deram-me de comer, um pouco de rum,
whisky e um catre para descansar. Dormi. Acordei por pouco durante o trajeto na carruagem
negra do comissário do rei, acompanhado por um médico, mas os sentidos só plenamente
recobrei ao chegar em casa, onde às portas do meu lar Isobel se desesperava. Mal ouvi o que
disse o médico, só registrei a parte em que a proibiu de me deixar partir para o mar navegar até
que tivesse certeza de que eu estava bem; e a parte em que citou as palavras ‘soçobrou’,
‘desastre’ e ‘investigação real’.

Isobel se angustiava porque eu não conseguia lhe dar detalhes nem nada lhe
acrescentar. Entre minhas coisas estava o gorro de MacRoy que lhe pedi levasse para que o
devolvesse quando lhe encontrasse – e por dentro tremi ao pensar: “Ou à família”.

Sentado na sala, enquanto Isobel me preparava comidas, o pânico começou a


me bater. Mais do que as implicâncias de não saber o destino de meus homens, desesperava não
saber o que havia acontecido. Enquanto cogitava quantos haveriam de ter sobrevivido, e
procurava lembrar quantos barris iguais àquele que me salvara a vida em nosso barco havia,
imaginava “tempestade”, “ataque pirata”, “obstáculo imprevisto”, “fogo amigo”... tentando
aleatoriamente me recordar qual a natureza e a identidade do triste evento, do acidente que
sobre nós houvera ocorrido. Então de súbito me desesperei:
- Mulher! Scott? Onde está Scott? Ele não foi encontrado?

Isobel veio correndo de dentro da cozinha segurando ainda a faca e o pedaço


de pão envolto no avental, para me olhar assustada como se nada estivesse a entender. Temi
que se esquecera de que o sobrinho estava no navio comigo, e agora, consciente da notícia, em
lágrimas desesperadas desabaria.

- Meu querido, Scott veio com a mãe e os irmãos ontem, domingo, para a missa
de eucaristia especial. Decerto os veremos somente no mês que vem. Mas por quê estás a
perguntar dele?

Quem desabou fui eu, naquele que foi o primeiro de uma série de choques entre
a realidade por mim conhecida e aquela que naquele momento me cincundaria. Nem as
lembranças de minha esposa, nem as minhas se equivaleriam; nem certo estava de que minha
cunhada morreria ou que minha filha em três anos se casaria. Só por certa uma coisa tinha:

Antes do acidente do qual nada lembrava, eu estava em 1718, e após o ocorrido


reencontrei minha esposa em 1715.
As Cartas de Fred

Uma Volta no Relógio

Sentado à beira do cais ficava eu, olhando as marolas, o fluxo e refluxo das forças
do mar enquanto Isobel fazia compras. Muitos passavam e de longe cumprimentavam, poucos
aproximavam-se para me dirigir palavra. A maioria me julgava fora de juízo; olhavam o homem
já grisalho, a barba quase toda branca com o olhar perdido nas águas. Nem fumar fazia mais,
coisa que antes tanto gosto me dera. Na cabeça ostentava o símbolo daquilo que um dia fora:
um oficial comandatário da Marinha mercante e patrocinado pela rainha. Mas meu coração
estava oco e nada mais fazia sentido.

Suzette, minha filha, veio com meu primeiro neto na barriga me ver, junto com
meu genro. Ela me olhou apiedada; pude ver em seus olhos que do fundo de sua alma condoía-
se pelo acontecido a mim, e em outros tempos eu exultaria, pulando por enfim obter um perdão
genuíno e uma prova inconteste de seu amor por mim. Sim, ela se importava com seu velho pai.
Mas eu já não me importava mais, pois nada daquilo havia de fato acontecido. Eu com ela jamais
brigara, nem nunca fora nossa relação de pai e filha estremecida. No banco da igreja, na primeira
fila, assisti ao casamento de minha única herdeira, e recebi às portas da casa santa os
cumprimentos de todos por ter casado minha menina. Ouvi a sogra lhe dizer: “Agradeça ao
Senhor por ter tido a oportunidade de ser entregue a seu noivo na igreja por seu próprio pai. É
um verdadeiro milagre que ele tenha sobrevivido em tão precárias condições em alto-mar!”
Susie, como a família do marido agora a chamava, acedeu com a cabeça, os olhos apiedados
jogados num relance em minha direção. Mas eu não pedira por esse milagre. Para mim ele não
era divino, mas sim uma maldição.

Cada dia acordado um castigo à espera daquilo que lembrava que iria ocorrer, como a
morte de minha cunhada e a vinda para nossa casa de meus sobrinhos. Scott, dessa vez, logo se
apegou a mim; tudo fazia por me agradar. Preocupado se eu tinha meias o suficiente para manter
meus pés aquecidos, se desejava mais chá ou pedindo que lhe contasse alguma história sobre o
mar. Era curioso, mas mesmo assim angustiante, observar as variações entre minhas lembranças
e a forma como agora as coisas se discorriam. Ver o quanto fora alterado. Mas mesmo obtendo
o que mais houvera desejado – jamais ter envergonhado e brigado com minha filha – nada
consolava o meu horror de me ver preso numa versão antiga e alternativa de uma passado já
vivido. E se cabo não dava de minha existência, era por um único motivo: pavor de ver-me voltar
novamente ao mesmo ponto, ao mesmo lugar.

Por vezes considerara: “Morri e fui para o inferno. Esse é meu castigo por beber!” Mas
nem no céu nem no inferno eu poderia estar com as mesmas pessoas que conhecia, comendo,
bebendo e sentindo todas as necessidades do corpo. Ainda que fosse tudo uma ilusão, não
poderiam de ter todos comigo morrido, principalmente aqueles que estavam em terra. Se era
um castigo, era por demais cruel... Fogo e enxofre fariam menos dano à minh’alma, disso estava
certo, mas não cria ter causado em uma única vida tanto mal para merecer tamanha pena. De
Deus também esse presente de grego não era, visto que temia perder o juízo a cada quinze
minutos, bastava que olhasse para o relógio ou ouvisse um tique-taque; irrompia por vezes em
choro compulsivo. Isobel baniu para longe todos os relógios da sala e do quarto, somente um
pequenino na despensa havia, pelo qual ela se seguia nos afazeres e lides domésticas.

“Sobreviveu, mas fraco da cabeça o velho Fred ficou.”

Eu nada dizia quando na rua dos outros isso ouvia. Nem me animava a discorrer sobre
nada, nem a provar que não estava fora do meu juízo. Calado me preservava de maior agonia;
explicar o inexplicável para aquelas gentes que jamais ouvira disparate de tal calibre de um velho
homem do mar que fora um dia quase uma autoridade local.

Só Scott me perseguia, como se estivesse a todo momento esperando que eu lhe falasse
algo que o encantaria. Olhávamos nos olhos um do outro por vários instantes, sem piscar. Ele me
analisando, e eu mirando-o de volta sem hesitar. Então invariavelmente me fazia uma pergunta
sobre o mar, e eu lhe respondia que estava cansado demais para falar.

Ele insistia, outro dia, trazendo minha comida e dizendo que gostaria que eu lhe contasse
algum dia, quando estivesse me sentindo melhor, histórias do mar. Um dia me cansei e lhe
inquiri:

- Por que você perde seu tempo comigo, rapaz? Vá arrumar que fazer na cidade. Há
trabalho e moças para o entreter de forma bem mais útil e eficiente do que eu!

Ajoelhado no tapete ao meu lado ele me diz:

- Eu quero ir para o mar.

- Não vá.

- Mas é um sonho antigo...

-Pode se tornar um pesadelo. Arrume serviço em terra.

- Mas o senhor sempre foi feliz sendo marinheiro!

Eu nada respondi. Nem poderia.

- Eu só queria que o senhor me contasse alguma história das suas viagens pelo Mar do
Norte. Eu sempre quis ouvir essa história de alguém que de fato a tivesse vivido! História de
baleia, de piratas e de tempestades em alto-mar. Eu espero o tempo que for preciso o senhor se
recuperar para me contar. Eu sei que as suas histórias devem de ser muito boas! Das melhores
que há para se contar!

Retornei o entusiasmo do menino com um frio olhar:

- Scott, você não tem medo de perder seu tempo ouvindo as histórias de um homem
louco?

- O senhor não é louco! Disso tenho certeza. Assim como tia Isobel também tem. O senhor
só está precisando de um tempo para se recuperar do acidente.
Ele repetia as palavras que minha mulher sempre dizia, e que para mim representavam a
esperança dos tolos – aquela que jamais se deve quebrar.

- Vá lá para fora, garoto! Deixe-me terminar meu almoço em paz.

Ele se levantou meio magoado e saiu da sala de estar. Do meio do corredor ouvi seus
passos retornarem até o batente, de onde ele me olhou e falou, com a seriedade do homem
nascente dentro de um menino:

- Eu sei que o senhor não é louco. O senhor pode me contar o que aconteceu. Eu juro que
não vou contar pra ninguém. E eu vou acreditar.
As Cartas de Fred

Demônios Alados

Em alto mar as luzes vieram. Eram muitas. Brilhavam como mil sóis ao meio-dia, mas era
princípio de dia, quase o fim de uma madrugada fria, quando que McCawley levantou de sua
cama mais cedo para ver o brilho de fogo no convés. Eu na verdade já estava acordado, há alguns
minutos inerte, sem pensar propriamente em nada, cogitando me mexer para logo em seguida
desistir. Foi quando ele quase derrubou a porta junto com o batente, lívido tal qual fantasma;
sua voz nem saía da garganta e ele só roucamente gritava:

- Lá em cima, lá em cima! Corra, capitão! Não sei o que fazer!

Subi sem nem fechar o cinto ou o casaco para me proteger do frio úmido da
manhã. A princípio julguei ter estado doente para nem reparar que já era hora do sol forte ao
meio-dia, mas depois logo percebi que MacCawley também parecia estranho, meio perturbado...
Estaríamos todos adoentados no barco? A luz era tão forte que cegava, clareando as coisas com
tal brilho como se fora de dentro para fora; nem os talhos ou vincos das madeiras se viam mais
– apenas um cetim ceroso que fazia a madeira assemelhar-se a uma barra de manteiga. As cordas
pareciam emitir um brilho amarelado forte assim como os metais, como se a luz às bordas da
embarcação fosse se aquecendo, ou se diluindo, para se tornar avermelhada no casco e sobre as
águas ao redor das imediações do navio. O imediato estava completamente branco, seu casaco
marinho como se fora desbotado e só os cabelos, que eram brancos, pareciam azulados, assim
como sua barba, que eu bem via, pois que ele tinha a cabeça para trás bem jogada, como se para
ver melhor o astro tão brilhoso que sobre nós sua luz incidia.

Imitei-lhe o gesto e me transtornei. Que nação maldita criara um barco que


sobre as naus comuns se exibia, navegando ares em vez de céus e sobrepondo-se a nós em
magnitude e força, porque as ondas se lhe obedeciam e paravam de bater, tudo era silêncio
imposto por sua presença enquanto o sol verdadeiro ela nos roubou? Qual engenheiro cínico lhe
criara os contornos para se exibir ao sol, posto que redonda era a nau, mas que com muitas
outras cores brilhava além do amarelo do astro rei? Que potência bélica invejável para fazer
temer Netuno e todo poder do mar que sob si não mais se mexia? E, finalmente, que poder
maldito o de desafiar ao Deus que pelo verbo nos criara e que agora, verbo e tudo nos tirava:
ação, defesa, reação, compreensão e por fim lucidez? A última lembrança que me vem dessa
experiência é a visão dos soldados desse exército atroz, que nem roupa precisava, nem mesmo
fortes músculos tinha, apenas os cérebros avantajados e olhos negros a luzir sem luar, que sem
emitir nenhum som conseguia uma tripulação inteira subjugar.

Muitas vezes seriam essas cenas somente o que me lembrava, na cadeira de


balanço, e chorava. Minha mulher às vezes vinha ver, punha-me a cabeça encostada a seu avental
e murmurava como se eu fosse nossa filhinha:

- Você ainda está doente, mas logo irá melhorar.


E era pior, pois eu nada lhe diria. Como poderia? Só a faria também chorar e
concluir que de nada adiantou ter o marido salvo do mar para um louco em casa ter de cuidar.
Condoída ao me ver soluçar e com medo de que me alterasse e a saúde piorasse, pois por vezes
ficava de fato muito nervoso e agitado por essas lembranças, dava-me uma generosa dose de
whisky, pois que a bebida me fazia adormecer.

Uma noite, lustrando-nos os sapatos, os dele e os meus, sentado a meus pés


perguntou Scott:

- Tio, o senhor viu algum monstro no mar?

Sabendo que Isobel não estava em casa, dessa vez lhe respondi:

- Um monstro, não. Mas vi monstrinhos, e talvez eram os servos dele, digo, de


um monstro bem maior.

- E como eles eram, tio?

- Demoníacos. Acredito que eram das hostes de Satã, o próprio.

- Mas de onde eles vieram? – perguntou Scott desconfiado.

- Apareceram assim do nada dentro do barco. Eles têm engenhocas que voam,
e dentro trazem instrumentos de tortura. Quando acham uma vítima, eles a imobilizam e ela não
consegue reagir.

- E como são esses demônios?

- Não são vermelhos! Isso é mentira dos padres! – Falei irritado, e em seguida
sussurrei em voz baixa: - Eles não têm cor. São descorados com se não tivessem vida. Não se
parecem com gente, embora andem sobre duas pernas e tenham braços e membros que se
assemelham aos humanos. Mas são esquisitos, mais finos... só que têm muita força. Ninguém
pode com eles, Scott. Se um dia você vir uma luz muito forte, num horário que não poderia haver,
você não fique para olhar! Se olhar, eles te prendem! Você corre! Corre até não poder mais, até
não conseguir mais ver nenhum vestígio dessa luz pelo canto do seu olho. Mas não olhe para
trás! Lembra bem das palavras que seu tio está lhe dizendo: não olhe, não se deixe fascinar nem
iludir, apenas corra, pois é quando a gente pára para olhar que eles pegam a gente!

- Credo, tio! Mas não tem como a gente se proteger? Fazer alguma oração de
proteção no mar?

- Não sei – dei de ombros – nunca fui muito de rezar. Só sei que pro mar não
volto mais. Lá não há como se fugir deles. Se tivesse terra, poderia ter corrido para dentro de
uma igreja, talvez. Não sei... Só sei que no mar não tem para onde correr.

- Mas o senhor acha que eles vão vir atrás do senhor? Aqui?
- Não sei. Acho que aqui não... Mas se eu for para o mar, acho que eles me
encontram novamente, por isso não vou.

- Mas o que o senhor fez que fez o capeta mandar os diabos dele pessoalmente
contra o senhor?

Fiquei quieto pensando. Não era santo, mas com certeza havia gente bem pior
do que eu para merecer tal castigo, e no entanto andavam por aí, intactos. Até meu sobrinho
parecia pensar assim:

- Ou talvez, quem sabe, foi algo que alguém da tripulação fez e que irritou a Deus
ou desafiou ao diabo? Alguém fez alguma aposta na tripulação que o senhor se lembre?

- Não que eu saiba... mas acredito que todos os homens ali eram almas tementes
a Deus; não iriam profanar com palavras nem ao Senhor, nem ao Seu filho nem a Virgem. Nem a
São Patrício nem a Santa Brigita, isso estou bem certo. Quanto a desafiar o capeta, já não sei...

- Os demônios, quando chegaram no barco, não falaram nada? O motivo de


estarem ali? Não mencionaram se alguém os chamou ou que vinham em nome do tinhoso?

- Não, Scott, eles não falam. Não usam roupas nem têm luz nos olhos. Isso é o
mais apavorante. Você olha para eles e não vê uma alma ali, e ao mesmo tempo sabe que não é
um bicho. Não se parecem com nenhuma outra criatura de Deus. E são frios, parecem pegajosos
embora eu acho que não fossem; têm dedos longos, compridos e que causam dores físicas
intensas, mesmo sem penetrarem na sua carne. O toque deles pode te queimar, também pode
te cegar...

Scott me olhava com os olhos arregalados.

- Não quero mais falar disso! Nem quero mais me lembrar. Basta você saber,
não vá para o mar e fique longe de tudo o que brilhar e for esquisito.

- Está bem... Mas, tio, só mais uma pergunta: onde o senhor acha que estão os
outros? O McCawley, o Flannigan, o Hillst? O senhor acha que os demônios os mataram e
jogaram os corpos no mar?

- Não...

- Por quê não?

- Porque na bíblia está escrito que o Senhor Deus deu permissão ao diabo de
fazer toda sorte de maldade ao homem e para tentá-lo, menos tirar sua vida. E eu acho que é por
isso que eu ainda estou aqui.

- Mas e outros, tio? Onde é que estão?

- Presos, talvez, reféns do inferno.

“Ou como eu” – pensei – “reféns de suas próprias consciências e lembranças”.


As Cartas de Fred

Três Verdades

Uma noite saí da cama agoniado numa incomum noite de calor. Isobel dormia, e não quis
acordá-la com minha inquietação. Levantei-me e me dirigi até a sala, onde a janela entreaberta
permitia a brisa, ainda que longínqua do mar, vir adentrar a sala de estar. Acendi meu cachimbo
pretendendo fumar para me acalmar, sentado em minha poltrona, a escura quietude da noite a
contemplar, mas parei em pé à soleira da janela; o som dos grilos a cricrilar. As estrelas todas
visíveis no céu.

“Quando foi que eu me perdi a ponto de não mais me lembrar quais as constelações levam
a salvo um homem para longe do mar?”

Assim aprendera com meu avô ainda menino, quando a vida no mar parecia uma
promessa de aventuras que me levariam para longe do tédio da vida em Kilkenny. Naquela noite,
ouvindo as estrelas e os grilos a se misturar, pensava em meu avô e se alguma vez ele precisara
encontrar uma constelação que o conduzisse para um porto seguro como este que eu agora tão
desesperadamente buscava: para fora da minha própria mente.

A lembrança do fato em si já não me angustiava tanto quanto a necessidade de não me


lembrar justamente de que não conseguia me lembrar do que havia acontecido. Todo homem
tem a angústia da impotência como um fantasma bem pior do que a visão dos mortos em si.

Ao lembrar dos meus ‘fantasmas’ o corpo logo reagiu: uma onda de adrenalina,
taquicardia e suor frio me embalavam em lágrimas mesmo em meio ao verão.

Homem feito chorar sem nem mesmo entender bem o porquê. Isso doía mais do que o
corte da lâmina do papel chinês que uma vez um marinheiro estrangeiro me ensinara.

O som dos grilos aumentava. Ou seria minha imaginação?

As lágrimas aumentaram quando pensei em Isobel. Nunca quisera fazê-la sofrer tanto
assim – a cada dia sua dúvida aumentava se teria ou não seu companheiro de vida de volta. Com
a única filha já casada, e outros tempos, era difícil para uma mulher já de meia-idade se
responsabilizar por tudo. Fios de água viraram rios de angústia a escorrer por minha face. Não
fosse por mim, por ela então, Deus meu! Fazei um algo que interrompa todo esse meu
sofrimento!

Do lado oposto da sala, um pequeno altar, com as imagens dos santos a quem minha
esposa dedicava especial devoção: Santa Brígida que lhe fizera engravidar, Santa Apolônia que
do vício do álcool tanto pedira para me livrar, Santa Gertrudes que ela invocava amiúde para
problemas de saúde e para livrá-la de suas varizes nas pernas, e entre os 4 arcanjos, uma imagem
cara de Nossa Senhora Estrela do Mar a quem nunca, em nenhum ano de nossas vidas juntos
como um casal, deixara jamais de acender uma vela a cada dia em que eu estivera fora, no mar,
em busca do nosso sustento.

Imbuído de emoção incomum, causada pela avalanche de sentimentos represados que


àquela madrugada decidiram me assaltar, fiz o que jamais fizera, e atirei-me – não de joelhos,
mas prostrado, mãos acima da cabeça – a implorar a misericórdia da santa, senão por mim, por
Isobel, sua devota tão fiel, que com certeza era merecedora de todas as bênçãos do céu.

- Livrai-me de minha angústia, de minha doença desconhecida, por amor à Fé de Isobel.


Mesmo que eu não seja merecedor, mesmo que esteja perdido para os anjos do céu, curai-me,
nem que seja provisório, e levai-me pelos braços da morte assim que tenha eu preparado tudo
para garantir a velhice de Isobel. Concedei-me apenas poucos dias que sejam para que eu tudo
resolva e possa dar-lhe os últimos momentos de alegria, para que ela se lembre do marido são,
e não que me tenha partido inválido, dependente dos cuidados de suas mãos. Que eu possa lhes
ser uma lembrança alegre, antes de ceifar-me a vida Aquela que jamais de homem algum se
esquece. Minha Nossa Senhora da Barca, rogai pela minha alma e intercedei junto ao poderoso
Deus e ao seu filho, que carregaste em teu ventre bendito. Estenda tua mão sobre minha pobre
alma e que me alcance a tua misericórdia.

Entre choro convulsivo entremeei palavras de vários padre-nossos, aves-marias sem fim.
Era aqui, e não agarrado aos escombros no mar, que lançava aos céus meu brado de socorro
desesperado. Se o céu me ouvisse saberia ao amanhecer, pois adormeci ali no chão.

Sem ver as luzes das estrelas que baixaram até a altura dos arbustos do meu quintal, nem
perceber quando a cantoria dos grilos silenciou.

~~*~~
O que narro a seguir são minhas lembranças de visões que recuperei somente após meu
desencarne, acompanhadas de parte das explicações que tive ao ingressar nas fileiras de trabalho
que atuam no mar profundo.

Hoje sou um ‘marinheiro’ mas meu trabalho não se resume ao que entende o mundo
como ‘o mar’. Além do meu posto determinado junto ao Povo d´Água, regido pelo Grande
Oriente, atravesso as ‘marés do tempo’ em meu serviço na administração de demandas. Muito
mais não me é permitido dizer, mas que apreenda cada um de acordo com seu conhecimento.
Alguns interpretarão o que me aconteceu em alto-mar nos idos de 1716 como um fenômeno de
origem extraterrestre. Não digo nem que sim e nem que não, mas assevero tratar-se, antes de
tudo, de uma anomalia relativamente comum que ocorre em nosso mundo, de causas físicas,
eletro-magnéticas, eletrônicas, que tal qual os mecanismos de um relógio repetir-se-ão em
determinados momentos e lugares. Poder-se-ia dizer que eu estava no local errado na hora
errada, mas de acordo com o ponto de vista karmático (no sentido oriental e não no
‘ocidentalizado’ dessa palavra) digo que estava na hora certa e no local exato, que me permitiram
não somente atuar enquanto ainda na matéria, como ainda hoje, nos campos onde minha
atuação se fez e ainda se faz necessária.
A 1ª verdade é a que para o mundo ficou:

Na manhã seguinte à súplica que fiz aos pés do altar doméstico, acordei ‘bom’, ‘curado’
nas palavras de todos e muitas missas de louvor e graças foram feitas, das quais tomei parte
ativamente e a partir do que passei a ser visto como homem convertido à fé, o que de fato
ocorreu, pois me tornei muito religioso realmente, instintivamente me sentindo ‘seguro’ através
da perseverança dentro de uma disciplina espiritualizante. Tornar-me um católico praticante fez-
me muito bem, principalmente porque as pessoas vinham ver-me e pedir-me oração para muitas
coisas, e eu orava por elas de coração. Além disso, dentro dos antigos costumes irlandeses pude
praticar um dom latente que sentia agora jorrar pelas palmas das mãos e pelas pontas dos dedos
cada vez que eu orava por um enfermo: era o dom da cura se manifestando. Até o fim dos meus
dias, que foram muitos desde esse ocorrido, segui atendendo pessoas diariamente à porta
pedindo por uma oração. O padre local não se incomodava pois era meu amigo, e após sua morte,
mais de década depois, tanto o povo soube fazer sigilo quanto eu, de minhas atividades no
oratório montado nos fundos do jardim especialmente para essa função; além disso a
providência sempre nos beneficiava com uma transferência oportuna para uma paróquia
longínqua quando algum padre mais irritadiço começava a se envolver demais com a vida privada
de seus paroquianos.

Scott foi quem mais estranhou minha transformação, e vez por outra, desconfiado, me
indagava o que eu havia visto no mar. Eu sinceramente lhe respondia:

- Meu filho, seja lá o que fosse, a Virgem apagou da minha lembrança e me curou da
doença que eu tinha. Graças a Santíssima Trindade eu não me lembro de nada além de ser
resgatado nos destroços do navio e depois ser acordado por sua tia aos pés do altar. Nem do que
aconteceu no mar e nem do meu período de doença nada me lembro. E se Deus quis assim, é
porque há de ser melhor assim.

Essa era a 2ª verdade, que ofereci a Scott e a que me foi oferecida enquanto encarnado.

A 3ª verdade é a que lhe conto agora e que me foi explicada e mostrada por meu mentor
após meu passamento desse mundo para o próximo.

Do dia em que fomos capturados pela ‘anomalia’ até a data em que o calendário onde
‘acordei’ retornou ao mesmo ponto, combati o pirata que tentara nos atacar por três vezes até
ele desistir da ‘carreira’ assustado por ver meu navio ‘brilhar’ surgindo do ar acompanhado de
outras naus desconhecidas que emitiam luzes no céu. Em pontos distantes contava o que vira, e
que seus canhões arremessavam tiros que passavam pelas naus sem contudo atingi-las. Tornou-
se muito confuso ao ouvir dizer que não poderia ser eu, uma vez que eu estivera muito doente e
em casa, aposentado da marinha que ele julgava ter-me empossado de poderoso navio. Por fim
abandonou a vida no mar para tornar-se mercador – não muito honesto - primeiramente em
terra da América Central, e por fim fixou-se na Colômbia.

Eu e outros ‘marinheiros’ dados como mortos no naufrágio vestíamos roupas ‘especiais’,


diferentes, mas que lembravam uniformes da marinha, embora com ‘tecidos’ mais leves e
brilhantes. Haviam entretanto outros ‘comandantes’ da nau, ainda que eu pelas roupas e pela
voz de comando fosse o capitão, porém as ‘ordens’ não vinham de mim, mas desses ‘seres’ que
a maioria dos demais marinheiros, que não sabiam bem o que lhes acontecera, não percebiam
estarem entre nós no navio. Para a minha percepção e de cerca de mais 3 ou 4 homens, um
complexo de naus ou até mesmo uma ‘cidade brilhante’ havia se acoplado ao nosso barco e dava
ordens para combatermos navios especiais. Além daquele mais dois foram navios piratas
conhecidos daquele tempo, outras vezes porém, para um espanto só não maior porque a
realidade e a necessidade da ação se sobrepunham ao deslumbramento, eram naus que
pensávamos extintas, com tripulação selvagem, até mesmo uma de guerreiros vikings, outras
pareciam de povos ainda mais antigos de um passado distante. Nestas batalhas nosso navio era
envolto em uma luz especial, dourada porém sutil, como o dourado do anoitecer ou do
amanhecer, e as armas que nos eram indicadas para disparar contra essas naus eram totalmente
desconhecidas para nós e acionadas pela vontade, ou pelo pensamento. Emitiam luzes e
adormeciam a tripulação atingida. Os ‘soldados’ da ‘cidadela’ que nos mantinham sob controle
invadiam a nau inimiga, levava os membros adormecidos para outra de suas naus brilhantes
anexas, e a ‘embarcação inimiga’ ou talvez melhor dizendo, que julgávamos inimiga,
desintegrava-se diante de nossos olhos.

Os seres não consigo descrever, nunca vi seus rostos, ainda que inúmeras vezes estivesse
rodeado por eles e recebendo deles as instruções de ‘combate’ e as ‘ordens’ para repassar à
minha tripulação. Posso dizer que eram esguios, luminosos e manipuladores de consciências
tanto quanto da matéria.

Meu mentor explicou-me que quando os dois calendários novamente chegaram à mesma
data, a data do naufrágio, minha equipe foi conduzida a outro destino e eu entrei ‘na porta’ que
me conduziu ao cenário doméstico em que Isobel me acordava no chão da sala aos pés da Virgem.

No mundo dos que partiram isso me foi relembrado e mostrado para que eu atingisse a
compreensão do trabalho que viria a fazer naquilo que vocês chamam de ‘Astral’. Trabalhei
muitos anos e ainda trabalho no fundo do mar, onde a vida é ainda mais múltipla do que na
superfície da Terra. Por conta da minha farda negra e de meu quepe com detalhes dourados,
diferentes nomes me deram: O Marinheiro Negro, O Comandante do Chapéu Dourado. Para os
que em vida me conheceram, o Capitão Fred.

Este é um relato que, como quando estava em vida, poucos me acreditarão. Disto eu sei
e acho até bom. Ajuda a manter a lenda da família espiritual a qual me afinizei.

Meu objetivo, assim como da equipe que me permitiu contá-la, é despertar indagações
sobre as marés da vida, seus refluxos e ensinamentos.

Se servir somente para o entretenimento, que seja então, só mais uma história de
marinheiro.
Sobre a Autora

Jennifer Dhursaille nasceu em 1973 na cidade de Itajaí, Santa Catarina, e desde


criança demonstrou interesse pelas áreas que desafiam o pensamento humano, tais como a
Espiritualidade, as Ciências Ocultas, a Paranormalidade e a Ufologia. Autodidata, iniciou os
estudos que vieram a fundamentar seu trabalho de aconselhamento metafísico aos onze anos
de idade, buscando ainda na juventude ter contato com doutrinas e vivências das mais diversas
formas de religiosidade, do kardecismo ao Druidismo, passando pela Wicca, Hinduismo, Budismo
até por fim ter sua missão definida pelos seus guias espirituais junto à Umbanda e ao Xamanismo.

Além de suas atividades como escritora e professora de inglês, dedica-se


atualmente às consultas oraculares com foco terapêutico aliando disciplinas como reiki, florais,
aromaterapia e xamanismo buscando a cura através da ampliação de consciência e dos estados
alterados de transe leve via meditações e visualizações conduzidas, um trabalho totalmente
baseado nos ensinamentos de mentores tanto espirituais como extraterrestres.

Outros Livros da Autora:

A História de Pai Arruda Editora do Conhecimento outubro/2013

Série Paralelas de Umbanda Livro I – Baianos Amazon agosto/2015

Série Paralelas de Umbanda Livro II – Marinheiros Amazon novembro/2015

Série Paralelas de Umbanda Livro III – Boiadeiros Amazon novembro/2015

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