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EM TEMPOS DE INFÂNCIAS APRISIONADAS E CRIANÇAS

PRIVATIZADAS, O QUE FAZER?


As demandas do mundo moderno contemporâneo colocam em pauta uma outra maneira de
conceber os homens, suas organizações sociais e suas formas de se relacionar. Uma nova
lógica relacional tem provocado sofrimento humano e, no caso da relação entre pais e filhos,
tem exigido um posicionamento do adulto diante da criança, ao mesmo tempo firme e afetivo,
frente às frustrações naturais do ser, do conviver e do devir humano.

Neste contexto, vale ressaltar que o adulto: pai, mãe, professores e cuidadores, são sujeitos
que sofrem por se sentirem perdidos, sem os parâmetros asseguradores das normas e
regras da educação que um dia receberam e que já não cabem mais na atualidade. Tendo
que lidar com a velocidade das mudanças de paradigmas, das incertezas e da necessidade
de escolher e assumir o melhor caminho para promover o desenvolvimento integral de sua
criança, nem sempre eles se sentem seguros e confortáveis para se manterem na posição
adulta. Por consequência, diante de sua própria dor e também das dúvidas sobre como
responder melhor às exigências imperiosas da criança, acabam por sucumbir às suas
ordens, deixando à ela, a falsa mensagem de que está no comando de tudo e de que nada
lhe pode ser negado.

Por outro lado, este ser em plena descoberta do viver, necessita da segurança de limites
assertivos e cheios de afeto para que possa ser encorajado a seguir descobrindo com prazer
as diversas possibilidades de ser, conviver e aprender. A inconsistência dos nãos DEvidos
e dos sim INdevidos fortalece, na criança, a prepotência em seus pedidos e reforça
sentimentos de incompreensão, insegurança e falta de amor, mola mestra potencializadora
do desenvolvimento humano.

Neste sentido o educador Leopoldo Vieira, que é mestre em Educação Especial,


Especialista em Movimento Humano pela Boston University, Doutor Honoris Causa em
Psicomotricidade Relacional, pela ABMPDF e diretor do CIAR – Centro Internacional de
Análise Relacional afirma que
hoje é como se as crianças não pudessem mais receber limites, elas crescem sem saber
ouvir um ‘não’. Os pais não sabem o que fazer e a criança fica perdida. Quando chega na
adolescência ou fase adulta podem ter vários problemas por não saber lidar com as
frustrações (VIEIRA, 2011).

Nesta perspectiva, aponta-se a urgência de investimento no conhecimento, reconhecimento


e apropriação dos elementos de um novo paradigma relacional, o qual exige investimento
naquilo que é essencialmente da ordem do humano, como, por exemplo, em relações de
amor e cuidado, sustentado pela aceitação das diferenças, pelo respeito às singularidades,
pela capacidade de se colocar no lugar do outro, pela relação interpessoal e pelo
compartilhamento que tem na empatia natural dos homens, sua raiz mais profunda.

Como responder às demandas que são da ordem do que nos constitui humanos – a emoção,
o movimento, o desejo, a agressividade, o medo, a coragem de agir, o domínio, a
competição, a confiança em si e no outro, a presença sensível, o acordo, as alianças, o
afeto, o poder ser e viver com identidade própria – sem se perder no caos coletivo? Que
projeção futura de adulto é possível esperar se a criança, em seu tempo de infância, não
pode vivenciar umas com as outras, por meio do jogo livre e das brincadeiras espontâneas
que colocam seus corpos em movimento, essas nuances da vida humana, sem o peso e as
consequências da vida real?

Como aprender a correr riscos, a descobrir que pode partilhar e a se importar com o que o
sente ou deseja o outro; se em suas relações lhes é ensinado que só ela importa, porque
só ela “é a minha criança”, e só para ela nada pode faltar ou tocar negativamente? E, ainda,
que ela deve aprender a esconder sentimentos, a engolir o choro, a raiva e a deixar pra lá o
que deseja diante do menor obstáculo?

Tenho observado que um foco especial tem sido dado à primeira infância como medida
potencializadora do devir humano, fato que certamente poderá influenciar sobremaneira o
futuro da criança e da sociedade. Mas afinal quem é a criança-sujeito desses novos tempos?
Como a volubilidade, característica da pós-modernidade, tem afetado os parâmetros
relacionais que regem o viver neste período da vida nomeado de infâncias em sua natural
diversidade?

Considero oportuno, antes, discorrer um pouco sobre as infâncias e suas vivências a partir
da concepção da Psicomotricidade Relacional, esclarecendo de antemão que esta é uma
das abordagens da Psicomotricidade enquanto ciência. Trata-se de um método com base
psicanalítica, porém com uma teoria de desenvolvimento humano própria. Esta teoria norteia
uma intervenção singular em que o discurso é evidenciado pelo dinamismo do corpo em
suas relações com os outros. Deste modo, ressalta a comunicação não verbal, destacando
que são, sobretudo, as tensões tônicas involuntárias, e não somente a palavra verbalizada,
que revelam desejos inconscientes.

Vivencia-se no espaço simbólico da intervenção psicomotora relacional condições


favoráveis aos dizeres conscientes e inconscientes de modo livre, possibilitando à criança,
por meio dessa vivencia, a regulação de suas emoções, de sua agressividade, das relações
com o prazer, com as regras, com o desejo, com os limites, fortalecendo a expressão de
afirmação da sua identidade e de sua liberdade de ser (BATISTA, 2017).

O profissional psicomotricista relacional, com formação especializada, codifica e interpreta


as mensagens do inconsciente que se expressam por meio do brincar, de forma analógica,
simbólica e metafórica e possibilita a elaboração e ressignificação de suas vivências
primárias (BATISTA, 2017). Nesta mesma direção, Guerra (2015) destaca que a implicação
corporal e a disponibilidade do psicomotricista nos jogos desencadeia nas crianças o desejo
de brincar e marca um encontro em que tanto ela quanto o adulto crescem juntos.

Contudo, não é a relação corporal em si mesma o que interessa, mas sim a compreensão
sensível possibilitada pela escuta, leitura e decodificação dos comportamentos corporais
que embasam as estratégias relacionais habitualmente colocadas em ação pelo sujeito em
sua vida relacional. Esta presença sensível é essencial à intervenção ao nível da
comunicação tônica proposta nesta abordagem. É a qualidade vivida nesta ação em comum
(comunicação) que facilitará a aprendizagem sobre si e os ajustes positivos frente à vida do
sujeito. Na intervenção Psicomotora Relacional o profissional interroga ao participante do
grupo por meio de atitudes e atos corporais e utiliza-se da linguagem corporal em seus
matizes infinitos.

A comunicação corporal é uma comunicação carregada de valores e componentes


emocionais. O gesto, o olhar, o tônus muscular falam de nossos sentimentos, de nossos
medos, desejos, conflitos, isto é, da expressão do imaginário consciente e inconsciente
(VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2013, p. 42).

A simplicidade dos meios utilizados nesta proposta contrasta com a profundidade e


intensidade emocional do que é vivido pelo sujeito. A abordagem faz emergir à consciência,
por meio de atos e atitudes vividos no jogo espontâneo, emoções e sentimentos que a
pessoa tem dentro de si sem saber e que modulam suas relações pessoais e interpessoais.
O psicomotricista relacional em sua ação joga com a relação transferencial positiva e
negativa projetada nele e nos outros participantes do grupo, identificados provisoriamente,
como imagens parentais (BATISTA, 2017)

Neste sentido, Vieira (2019) refere que o profissional posiciona-se como um parceiro
simbólico da criança, durante o jogo espontâneo, possibilitando-lhe viver experiências
organizadoras nas quais ela se sente autorizada a expressar seu imaginário, sua criatividade
e sua ousadia para jogar espontaneamente na liberdade plena do simples prazer de brincar,
fortalecendo suas competências socioemocionais, a afirmação de sua identidade e do seu
poder frente ao outro.

Voltando à questão das infâncias e da criança, sabemos que existem em todo o mundo, e
que estão sujeitas a diversas influências sociais, culturais e políticas, fatores que certamente
interferem na sua formação. Para Sarmento (2009), a criança é o sujeito das infâncias que
se apresentam em realidades atravessadas por desiguais oportunidades de
desenvolvimento.

Tanto os meninos quanto as meninas, de norte a sul do país, vítimas de violência,


negligência ou abandono, crianças trabalhadoras, com seu corpo marcado e suas mãos
calejadas, como também aquelas de classe social média e alta com suas agendas diárias
preenchidas pelos horários da escola, do inglês, do balé e da natação, são sujeitos que
vivem submetidos aos ditames de muitos compromissos e sonham poder desfrutar da
liberdade para relaxar dos desgastes que as rotinas e as obrigações lhes impõem.

Entretanto, submetidas às mesmas etapas de evolução psicológica e às mesmas


dificuldades inerentes à essa evolução, independente do meio ambiente, das características
pessoais e dos diagnósticos, uma criança, é antes de tudo, uma criança.
Destaca-se, também, que não existe uma única infância, por ser uma concepção construída
em cada sociedade de acordo com suas diversidades culturais, que envolvem os fatores
políticos e econômicos e variam no tempo e no espaço, em uma construção histórica. Neste
sentido, o documentário: A Invenção da Infância (2000) salienta que “ser criança não
significa ter infância” e nos apresenta exemplos de realidades contemporâneas com
diferentes formas de viver as infâncias.

Para além disso, vale ressaltar que, independente de suas diferenças e especificidades, o
tempo livre para brincar é o sonho de infância de todas as crianças em todas as sociedades
contemporâneas.
Ademais, estudiosos sobre o assunto são unânimes ao lecionar que a infância é um tempo
precioso da vida humana que se caracteriza pelo intenso processo de aprendizagem e
desenvolvimento da criança. Certamente, é indiscutível a importância das vivências de
nossa infância para o resto de nossas vidas. É neste período da vida que o ser humano se
subjetiva como sujeito e constrói sua identidade.

Desse modo a criança constrói sua personalidade na interação com o meio social, físico,
histórico e cultural no qual ocupa um lugar diante do outro, na existência e no mundo e que
ninguém pode lhe tirar nem ocupar. Seu modo de ser, enxergar-se, ver o outro e vivenciar
o mundo, no espaço, no tempo, nas condições materiais e psicológicas é singular e único.
E, essencialmente, é na relação com adultos, referência de afeto ou desafeto, que são
geradas experiências de vida distintas de criança para criança, que se particularizam e
produzem para cada uma, identidades diferentes das demais.

Por conseguinte, alguns aspectos que caracterizam as relações adulto e criança neste
tempo da vida, merecem ser vistos sob a luz da mutabilidade característica da modernidade
atual. Sobre esta perspectiva, considerando a infância um tempo especial do processo de
iniciação do ser humano, somos instigados a refletir também sobre a importante implicação
que os limites e impactos das tecnologias e do modo contemporâneo de organização social
vem provocando na infância. Esta inquietação tem desencadeado a busca por soluções
ativas e criativas que possam ampliar as competências do adulto para garantir a saúde da
infância.

Outra observação da vida contemporânea merece atenção e se refere à crescente tendência


dos adultos cuidadores, sob a desculpa de que é preciso cuidar e educar as crianças,
evitarem sua vivência do prazer, da frustração e da dor, tendendo a superprotegê-las,
cedendo às suas demandas impositivas o que, ao contrário de proteger, acaba por tirar delas
a possibilidade de descoberta lúdica e natural sobre como lidar com a frustração, enfrentar
obstáculos, resolver conflitos, criar melhores estratégias para realizar seus desejos,
negando-lhes a oportunidade de aprender com seus erros de forma autônoma.

Isso parece ser consequência de uma época caracterizada pela instabilidade em todos os
âmbitos da vida, fazendo com que estes pequenos seres amados e desejados se
transformem na principal fonte de energia emocional dos adultos próximos a eles.
Frente à tal realidade líquida preconizada por Bauman (2004) que escorre entre os dedos,
em que nada mais dura perante um mundo imprevisível e em constante mudança, onde as
relações de trabalho, familiares e sociais são cada vez mais instáveis e precárias, o vínculo
emocional entre pais e filhos se configura como a mais estável relação para os adultos.

Por consequência, a estas pequenas pessoinhas de aparência frágil é delegado um imenso


poder, que é o de responder às necessidades afetivas dos adultos. Evidencia-se, assim, que
o medo excessivo do adulto diante da possibilidade de as crianças correrem qualquer
mínimo risco é muito mais uma necessidade emocional dele que uma boa ação em prol do
bem estar da criança. E, ainda, que o que realmente importa é “a minha criança, o meu filho”
e a prevalência do privado sobre o coletivo, o esvaziamento do espaço público, o que, por
sua vez, dá lugar ao medo e à percepção de insegurança. Tudo isto, tem reforçado uma
perspectiva relacional com um viés de privatização da criança e desencadeado, em função
disso, um processo de restrição social.

Com efeito, uma rede social de cuidadores, antes partilhado com vizinhos, amigos ou
parentes perdem seu lugar, desde que apenas familiares diretos e, de forma secundária,
outros profissionais - tais como motoristas, empregados domésticos e professores
particulares - submetidos à ordem direta da família e da educação, são hoje legitimados
para cuidar das crianças que são suas. Qualquer coisa relacionada aos menores será
atribuída a algum destes dois âmbitos, a casa ou a escola, sobre os quais recairá todo o
peso e toda a responsabilidade por seu desenvolvimento e cuidado.

Além disso, conforme Guerra (2019), neste contexto, a criança parece viver num presente
suspenso, sem ligação com o seu passado, sem condições saudáveis para construir as asas
e as pontes para o futuro, já que tias, vizinhas, avós, entre outros, não são mais fonte de
saber.
Assim, tem-se revelado um modelo de maternidade e paternidade, “vigilantes desconfiados”,
os quais, movidos por uma ansiedade persecutória, buscam precaver-se dos perigos que
possam atingir suas crianças, ainda que estes sejam mais da ordem do imaginário do que
da realidade.

A partir disso passam a viver suas funções principais como pai e mãe por meio de um
controle rígido e excessivo, ou pela falta de limites sem medida, geradores de sentimento
de incompetência e abandono respectivamente. Longe de gerar segurança, esta forma
privatizada de exercer o cuidado infantil está contribuindo para romper os laços delicados
da responsabilidade compartilhada sobre os cuidados com as crianças.

E o pior é que neste cenário, ninguém se atreve a repreender uma criança que faça algo
errado, diante do risco de um conflito com seus “proprietários”, e o depoimento de
professores e diretores escolares retratam esse constrangimento. Isto produz resultados
nefastos para as próprias crianças, que perdem uma rede variada e necessária de
referências fora do círculo familiar, e será também danoso à sociedade como um todo, que
verá como a autoridade dos adultos se vê deslegitimada pelas próprias famílias.

Como psicomotricista relacional brasileira, tenho percebido a vivência de uma infância


pautada pelo ocorrência abusiva do aprisionamento do corpo da criança, privando-a do
movimento natural e essencial ao ajuste de suas emoções, decorrência da falta de liberdade
no uso de espaços privados e públicos, expressos pelo confinamento em moradias cada vez
menores, em cidades que não acolhem a criança em sua possibilidade de ir e vir em sua
comunidade e desenvolver autonomia, obrigando pais a submeterem seus filhos a vivências
em horário integral em instituições de ensino e redução de convívio com os pares fora da
escola. Neste modo de viver a infância, vai-se imprimindo na relação do adulto diante da
criança, uma marca em forma de uma “presença ausência” dos pais, principais referências
de afeto e limites, de amor e segurança para a criança.

Apesar do sentimento comum sobre a importância da atenção ao desenvolvimento infantil,


ter um filho nos dias de hoje não é tarefa fácil. Pais sentem-se solitários e inseguros nesta
missão. O que antes as ruas forneciam de forma simples e generosa - brincadeiras,
entretenimento, relações, exercício físico, cuidados e apoio mútuo - tem agora que ser
buscado dentro do lar ou na escola. As crianças saem perdendo porque, por mais fantásticos
que sejam os pais, mães e professores, dificilmente eles poderão suprir, com seu tempo,
esforço, imaginação ou dinheiro, tudo o que proporcionava essa diversa e complexa rede
de referências.

Em trinta anos de vivência como Psicóloga e Psicomotricista Relacional tenho constatado a


importância de contatos corporais e motores para as crianças desde o início da vida para
elaborar positivamente a falta original em seu corpo, do corpo do outro (mãe), como
essencial à qualidade da comunicação humana, e primordial à convivência em grupo.
Ademais, tenho confirmado o argumento de que o futuro psicológico das crianças decorre
da qualidade das relações infra verbais, isto é, da comunicação tônica vivida corpo no corpo,
que os adultos estabelecem com elas desde o início de suas vidas. Para Vieira (2019) a
criança é um sujeito que, desde de sua concepção, guarda em sua memória corporal
diferentes registros que a torna singular diante das demais.

Seu corpo tônico-emocional com uma história própria é carregado de marcas afetivas
decorrentes das experiências relacionais vividas com seus pais e cuidadores. Nele se
encontram inscrições oriundas destas experiências prazerosas ou desprazerosas e que
influenciam a formação de seu psiquismo, de forma positiva ou negativa.

De acordo com a abordagem da Psicomotricidade Relacional, considera-se que é a partir


de vivências psicomotoras primárias que se realiza o conhecimento de si, que se
compreende emoções a partir das quais derivam sentimentos que modulam e configuram a
construção do próprio sentido de si, em seu tempo existencial. Sob esta perspectiva o corpo
é uma condição humana de inserção no mundo.

Citando Madeira (1979, p. 26), “o corpo é um complexo substrato de sensação, percepção


e movimento”. Para este teórico, corpo e movimento, além de um sentido intenso, têm um
significado existencial.
Com seu corpo em movimento, em sua mobilidade, a criança vivencia o uso do espaço,
qualquer que seja, e o reconhecimento do seu Eu, do mundo exterior, do outro e da
passagem à açao
̃ .

A partir do que já foi exposto, entende-se que a criança precisa de tempo e espaço para
brincar de forma livre e espontânea, necessita sentir segurança nas atividades e
brincadeiras que realiza, para que o sentimento de confiança emocional, básica e íntima, se
efetive e se traduza em atos cotidianos naturais. Neste contexto, o confronto com situações
naõ comuns do seu dia-a-dia, tais como: o risco, a aventura, o autocontrole, a iniciativa, a
partilha, a resolução de problemas, o saber estar e habitar em e com seu corpo o espaço
individual e o espaço dos outros, são fatores, acontecimentos e açoe
̃ s essenciais para que
a criança desenvolva capacidades de vida em grupo. Tudo isto, de modo sintético, é
importante para que a ela se torne para além de "indiví duo biológico, em homem social"
(LABORIT, 1971).

Assim, defino a criança como um sujeito histórico inserido em um determinado contexto


social, possuidor de direitos, sejam eles humanos ou civis. Ela apreende a realidade,
aprende com seus pares e se desenvolve na interação com o meio sociocultural a partir das
vivências cotidianas, sendo ativa na construção do conhecimento sobre si e sobre o mundo
e na produção de cultura.
Contudo, o que tenho testemunhado é o estimulo midiático do uso de brinquedos
automáticos industrializados, o uso excessivo de brinquedinhos digitais, virtuais, o que torna
as crianças inquietas, agitadas, obesas, opositoras, e, de certo modo, “justifica” a busca pela
medicalização que encaixa e acalma o impulso para a vida, para a descoberta do “como”
ser um humano melhor.

Por outro lado, em minha experiência com a Psicomotricidade Relacional na escola e na


clínica, confirma-se a premissa de que a infância composta por ricas experiências
relacionais não precisa do excesso de brinquedos industrializados ou de tecnologias, mas
sim de vivências sensoriais e lúdicas entre crianças e adultos, entre crianças e crianças,
pautadas pelo cuidado consigo e com o outro, referendado pelo respeito aos limites, ao afeto
e ao dizer espontâneo por meio do brincar, sem pré-condições e que lhes permita o contato
feliz com o mundo natural das relações humanas.

Essa vivência social contemporânea de infância “aprisionada” compartida pela criança com
uma presença ausência do adulto cuidador, certamente rouba do infante a vivência de
situações que propiciam a segurança básica para explorar e viver o exercício da imaginação,
da criatividade, oportunidades de descobrir recursos próprios para lidar com a frustração,
com obstáculos, com o imprevisto, com os medos e com a regulação de emoções, aspectos
tão próprios da condição humana.

Sem falar da perda irreparável da criação de brincadeiras e brinquedos a partir do fazer do


próprio corpo, favorecido pela brincadeira livre entre as crianças, que as levam a
construções criativas com materiais diversos e que podem ser explorados de diferentes
formas, podendo ser transformados naquilo que a brincadeira do momento requer. Enfim,
algo que lhes rouba condições de aprender a viver a vida por meio do prazer da descoberta,
da vivência simbólica leve, sem o peso dos limites da realidade.

Todavia, entende-se a difícil tarefa dos adultos para educar uma criança, promovendo sua
qualidade de vida, seu desenvolvimento pleno, regulando o equilíbrio entre autonomia e
limites. Isso se configura para eles, adultos, na atualidade, um grande desafio fonte geradora
de angústias e ansiedades persecutórias. Deste modo, repensar essa fórmula de segurança
que ameaça o desenvolvimento pleno e natural das crianças, como também daqueles que
lidam com elas, responsabilizando-os por qualquer dano que elas possam sofrer, ainda que
esse dano seja imprevisível e inevitável, se faz não somente necessário, mas
essencialmente, oportuno e urgente.

Observa-se ser imprescindível o investimento cada vez maior na socialização do


conhecimento e na certeza de que para provocar melhores condições de futuro ao ser
humano é preciso ocupar-se, desde muito cedo, não somente em qualificar a atenção e o
cuidado com a criança, mas também desencadear mais atenção à formação dos adultos
detentores do poder de cuidar delas.

Resumindo, pode-se dizer que a qualidade de vida de uma criança e as contribuições que
ela dará quando adulta à sociedade podem remontar aos seus primeiros anos de vida,
decorrentes das relações de cuidado e respeito à sua singularidade. Portanto, com um viés
de prevenção e profilaxia, talvez seja preciso realçar e reforçar o fato de que para melhor
alcançar esse objetivo, o foco precisa no estar dirigido ao trabalho formativo do adulto
cuidador, para que ele possa tratar a criança com o respeito e a autonomia devida para se
desenvolver e crescer.

O adulto cuidador que passa por um processo de formação continuada em Psicomotricidade


Relacional e que se autoriza a reviver com o prazer suas experiências primárias,
proporcionará à criança um espaço seguro para expressar suas demandas afetivas (VIEIRA,
2019).

 O Marco Legal da Primeira Infância (BRASIL, 2016) traz um olhar diferenciado,


no qual o cuidado é definido hoje, segundo a reflexão de Vital Didonet, como:
um conceito que abrange a atenção zelosa para a pessoa inteira, para seu corpo
e seu psiquismo, sua saúde física e mental, para seus gostos e sua alegria, para
sua atividade e seus relacionamentos. É cuidar de seu nome, da formação de
seu autoconceito, dos seus sentimentos e pensamentos, de suas fantasias e
desejos, de suas amizades, brinquedos, aprendizagens. É respeitar sua
privacidade, seus silêncios, seu ritmo de observar, fazer e contar.
Cuidar de uma criança, no século XXI, significa cuidar da qualidade de sua vida
e prezar pela vivência do que a leva a desenvolver-se. (DIDONET, 2016, p.4)

De acordo com esta premissa, conclui-se que “cuidar e educar são inseparáveis, acontecem
nos mesmos atos e se complementam de tal forma que um só tem sentido com o outro”
(DIDONET, 2016, p. 4)
Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (BRASIL, 2013), para a qual
a infância é compreendida como forma específica de se conceber a criança nos seus modos
de ser e estar em uma determinada sociedade, nas suas produções e experiências vividas,
também defendem que as primeira relações que a criança estabelece com o adulto cuidador
certamente irão ter uma influência de capital importância para o seu futuro.

Assim sendo, destaca-se a grande importância sobre a qualidade das bases de cuidado com
a criança por parte dos adultos, visto que toda criança depende destes cuidados. E ressalta-
se a importância de compreender a premissa defendida por Lapierre, desde 1989, porém
hoje muito atual, de que as primeiras formas de comunicação que a criança estabelece com
o adulto cuidador são tônicas, corporais, portanto, acontecem por meio de sinais não
verbais.

Neste sentido, Lapierre e Lapierre (2002) defendem, que nos primeiros meses de existência,
bem antes da aquisição da linguagem verbal, a criança percebe os sentimentos dos adultos,
seus cuidadores, até mesmo aqueles sobre os quais ele, o adulto, não tem consciência. E
que será, portanto, a partir dessas primeiras experiências que o infante vai constituir, pouco
a pouco, seu modo pessoal de ser, de sentir, de agir e de reagir diante dos objetos, dos
outros e do mundo que o rodeia. Esta é uma premissa, defendida por psicomotricistas
relacionais, psicanalistas contemporâneos e outros profissionais humanistas.

Soma-se a estas premissas a constatação da Neurociência sobre o importante enlace entre


fatores genéticos e as relações com o ambiente para o desenvolvimento da criança. Nessa
perspectiva, pode-se dizer, em acordo com Shonkoff (2011), que a qualidade das relações
estabelecidas entre pais e filhos, principalmente no início da vida, condiciona e condicionará,
além de sua saúde mental, o seu desenvolvimento integral, assim como os cuidados
materiais, a higiene e a dietética condicionam a saúde física. Shonkoff (2011) afirma ainda,
com base em dados comprovados por meio de pesquisa científica, que um ambiente de
relacionamentos estáveis, estimulantes e protetores constrói uma base sólida para uma vida
de aprendizagem eficaz.

Por outro lado, afirma que quando crianças pequenas são sobrecarregadas por grandes
adversidades, os sistemas de resposta ao estresse ficam com excesso de atividade, os
circuitos cerebrais em maturação podem ser prejudicados, os sistemas reguladores do
metabolismo e os órgãos em desenvolvimento podem ser afetados, e aumentam as
probabilidades de problemas em longo prazo na aprendizagem, no comportamento e na
saúde física e mental.

Alem disso, observa-se que estudos atuais da Neurociência vêm confirmando que saúde e
desenvolvimento humano são o produto de uma mistura complexa de adaptações e
perturbações biológicas que resultam da interação dinâmica entre predisposições genéticas
e influências ambientais, e que, quanto mais cedo e bem investidas, resultam também numa
vida adulta com salários mais altos, menor criminalidade, melhor estado de saúde, entre
outras condições favoráveis à convivência humana produtiva e colaborativa.
Deste modo, em tempos de infâncias aprisionadas e crianças privatizadas, o que fazer?
A partir de minha vivencia com muitos trabalhos como formadora em cursos e programas
de aperfeiçoamento pessoal para adultos, acredito ser preciso investir de modo massivo, na
socialização do conhecimento sobre infâncias e desenvolvimento da criança, mas
sobretudo, no seu desenvolvimento pessoal e humano, ousando revisitar suas infâncias com
corpos em movimento, que se conectam e se comunicam de modo mais autêntico. Neste
lugar criação e criatividade serão postos à mesa e o brincar acontecerá cheio de imprevistos
e de novas versões, acolhendo a demanda da maioria, em vivências permeadas pela
descoberta, segurança e prazer de viver. Ou seja, revivenciar o tempo de suas infâncias,
quando aprender a ser e a conviver em sociedade era vivido e experienciado não como uma
concessão em pequenos intervalos de tempo com objetivo explícito de aprender, mas como
um direito à vida e à convivência social.

Sob esta perspectiva, com leveza, fluidez e prazer, adultos podem descobrir-se respeitando
direitos, limites pessoais e da convivência em grupo, ajustando sua agressividade
positivamente, vivenciando sua competição de modo construtivo, constatando por meio do
brincar, que melhor que permanecer isolado, sozinho ou aprisionado em desconfianças,
julgamentos infrutíferos e permeados pela inveja, estar junto investindo em relações de
acordo e alianças positivas, propiciam a integração do seu poder pessoal que lhe assegura
construções de relações autenticas, desencadeando melhores perspectivas de bem estar e
sucesso em sua vida pessoal, profissional e social.

Concluo enfatizando que para cuidar da criança e lhe propiciar condições de


desenvolvimento integral, é preciso cuidar do adulto, esse outro do qual ela depende e que
lhe confere identidade.

REFERÊNCIAS

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