Você está na página 1de 10

16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

A desigualdade no Brasil é
medida pelos dentes: ricos
vão ao dentista, e pobres
sentem dor
A dor de dente só massacra os pobres no Brasil, que perdem o direito de sorrir.
O país com mais dentistas no mundo é também país dos banguelas.
Rosana Pinheiro-Machado

14 de Maio de 2019, 0h02

Foto: Image Source/Folhapress

https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 1/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

Maria da Luz teve sua primeira escova de dentes aos 15


anos. Antes disso, usava folhas para limpar os dentes, como era de
praxe em Mulungu do Morro, interior da Bahia, onde nasceu. Aos 14,
sentiu uma dor forte no dente da frente e seu avô a levou ao farma-
cêutico, ordenando que extraísse todos os dentes da frente de uma
vez só — sem anestesia — para que não voltasse a incomodar. Aos 17
anos, depois de muito trabalhar na roça, ela conseguiu juntar di-
nheiro para comprar uma dentadura, com a qual nunca se adaptou.

Maria migrou para São Paulo com os três filhos, priorizando dar o
melhor de saúde e educação para eles com as suadas economias do sa-
lário de auxiliar de serviços gerais. Ela nunca tirava foto. Dizia que
era infeliz com sorriso e que seu sonho era fazer um tratamento den-
tário. Em 2015, conseguiu fazer implantes com a poupança de muitos
anos. Hoje, não coloca mais a mão na boca para sorrir.

Apoie o Intercept
Fazemos jornalismo independente e sem rabo
preso com os poderosos – e existimos graças a
nossos apoiadores.
Insira seu e-mail Enviar ⟶

Ao me cadastrar, aceito receber e-mails concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso do Intercept.

A história de Maria, contada a mim por sua filha Maya, é um pouco


da história de dezenas de milhões de brasileiros que têm suas vidas
atravessadas por dores de dente e falta de autoestima — quadro que
só muda quando as famílias experimentam alguma mobilidade social.

Mas o desfecho positivo do caso de Maria, hoje com 47 anos, é inco-


mum. Os problemas relacionados à saúde bucal tornam miserável o

https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 2/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

cotidiano de pessoas pobres. A dor física latejante e constante se


soma à dor moral – o sentimento de vergonha, a humilhação e o
trauma por não conseguir sorrir.

Apesar da onipresença desse sofrimento do cotidiano brasileiro, sur-


preende o quão invisível é o apartheid bucal que divide o país.

Este texto começou há dez anos, quando vi um estudante rico debo-


char de um porteiro que se queixava de dor de dente. “Que coisa mais
jurássica! Isso ainda existe?”, ele disse. Naqueles dias, eu e a antropó-
loga Lucia Scalco começávamos nossa pesquisa etnográfica sobre con-
sumo e política na periferia do Morro da Cruz, Porto Alegre. Recém
havíamos conhecido Juremir, hoje com 52 anos, que não teve di-
nheiro para pagar um dentista, e a solução encontrada foi colocar ál-
cool na boca para lidar com a dor até o nervo necrosar.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, quatro a cada dez bra-


sileiros perdem todos os dentes depois dos 60 anos. O país que tem
mais dentistas no mundo é também o país dos banguelas. Na terra
em que ricos pagam o preço de um apartamento para colocarem face-
tas reluzentes, milhões de pessoas ainda praticam métodos da Idade
Média para lidar com a dor. Como afirmam os pesquisadores Thiago
Moreira, Marilyn Nations e Maria do Socorro Alves, nesse mundo de
abismos, a questão dentária é chave para compreender a desigual-
dade social e a pobreza no Brasil.

A pobreza é constituída
multidimensionalmente
por meio de uma combina-
O país que tem mais
ção de renda e acesso à edu- dentistas no mundo é
cação e à saúde. A condição também o país dos
dental precária é exemplar
da pobreza porque é resul-
banguelas.
tado de uma falência de
uma série de eixos, como a condição financeira, o local de residência
e o acesso à informação e à odontologia.
https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 3/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

Se a saúde bucal é um fato social por excelência, não é raro escutar


profissionais da saúde culparem as vítimas por sua situação. Durante
a apuração que fiz para a elaboração deste texto, ouvi coisas como
“pobre é acomodado”, “eles têm valores errados, preferem pagar por
um tênis a ir ao dentista”, “hoje em dia qualquer pessoa consegue es-
cova de dente de graça em uma universidade”. Individualizar a res-
ponsabilidade é uma falácia conveniente.

É difícil pensar a longo prazo quem tem que viver com o imediatismo
da sobrevivência. Muitos sujeitos quando conseguem dinheiro preci-
sam comprar comida. Outras vezes, optam por se dar a um pequeno
luxo.

Em nossa pesquisa, coletamos infindáveis casos de pessoas que disse-


ram que, em meio a uma existência precária marcada pela dor e sofri-
mento, permitir-se um pequeno ato hedonista significava uma espé-
cie de “último desejo”– um prazer que será lembrado na memória
para sempre. Podia ser um estrogonofe com batata palha, um book
fotográfico ou um tênis de marca. Curiosamente todos esses auto-pre-
sentinhos foram comprados por pessoas que, aos 40 anos, já não ti-
nham mais nenhum dente na boca.

Muitas crianças crescem em ambientes onde é comum o compartilha-


mento de escova de dentes. “Meu sonho é ter uma só para mim e não
ter que dividir com meus sete irmãos”, escreveu uma menina em
uma cartinha ao Programa Papai Noel dos Correios.

Adolescentes pobres saem da infância acumulando histórias dramáti-


cas, que os prejudicam na socialização. Wellington, oito anos, mora-
dor do Morro da Cruz, tinha oito cáries em dentes de leite. “Podre”
foi como a a dentista definiu a boca do menino. Ele não comia e não
tinha mais alegria de viver. Ainda que existam serviços baratos e até
gratuitos oferecidos por universidades e ONGs, famílias como de
Wellington não sabem sequer como encontrar esses serviços. Minha
colega Lúcia fez a mediação e agora ele está recebendo tratamento.

https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 4/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

Beto, 17 anos, não tinha amigos e sofria bullying dos próprios irmãos por causa dos dentes.
Hoje com o sorriso reabilitado, Beto tem uma nova vida social. Antes e depois de Beto encon-
trar a equipe do SAS Brasil. Fotos: Reprodução/SAS Brasil
https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 5/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

William Estevesom, 34 anos, trabalha como técnico bucal do bairro


mais pobre do município de Alvorada, um dos mais violentos e estig-
matizados da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul. Ele relata que, nas segundas-feiras de manhã, os pacientes che-
gam no posto para pegar ficha no SUS depois de um final de semana
de tormenta em que já tentaram de tudo para passar a dor, como pas-
sar perfume e creolina nos dentes.

As técnicas para lidar com a dor que eu e Lúcia ouvimos nos últimos
anos são muitas. Álcool, sal, cravo, pomada de procedência duvidosa e
até “sangria”: furar o própria gengiva com uma faca para sangrar e
deixar a infecção vazar. Também é comum que as pessoas extraiam
seus próprios dentes, pois pensam que, em última instância, é isso
que muitos postos de saúde irão fazer. Na comunidade de Dendê, em
Fortaleza, os recursos são rezar pelo dente para Santa Apolônia, além
de cachaça, óleo de coco e líquido de bateria para diminuir a dor.
Muitas dessas técnicas trazem riscos graves à saúde. São fruto do de-
sespero. Como disse Juremir: “não é dor, é uma tormenta, uma
angústia”.

Com a ajuda pessoal de Lúcia, Juremir conseguiu colocar uma prótese


nos dentes. Voltou a sorrir depois de muitos anos e não parava de pos-
tar fotos no Facebook. Mas após cinco anos, o dente que segurava a
prótese infeccionou, sua cara inchou e ele recorreu a quase todos os
caminhos acima.

Essas experiências vividas vão deixando marcas que deterioram a


identidade do sujeito. O processo pode ser encarado como parte da
vida: a “sofrência do pobre”. Para muitos, o sofrimento bucal atra-
vessa a vida toda. É uma “sina, um karma de outra vida”, como disse
uma interlocutora. Isso porque, mesmo depois de colocar prótese, a
alegria pode durar pouco. Sem acompanhamento, muitos não se
adaptam e voltam a ser desdentados. “Essa desgraça fica solta, caindo,
me machuca gengiva. Só coloco para tirar selfie,” brincou Rosi, 56
anos, também do Morro da Cruz.

https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 6/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

Colocar a mão na boca para


sorrir é uma cena cotidiana
Ter os dentes da frente que revela a vergonha sen-
é um requisito estético tida por quem tem uma fa-
exigido pela maioria lha na dentição. Por outro
lado, percebemos o orgulho
dos empregadores. que as pessoas têm de mos-
trar os dentes saudáveis
que restam: “esse e esse são bons”.

O técnico do SUS William Estevesom também narrou que, há poucos


dias, uma senhora chegou no posto implorando para colocar um
dente na frente, alegando que precisava trabalhar já que o inverno es-
tava chegando. Ter os dentes da frente é um requisito estético exigido
pela maioria dos empregadores.

Uma amiga, quando soube que eu ia escrever esta coluna, pediu-me


para contar a história de sua mãe. Rosana, uma psicóloga que teve
uma trajetória de sucesso e ascensão social no norte do país, passou a
vida se escondendo das filhas para escovar os dentes. Minha amiga só
descobriu que a mãe usava prótese quando tinha 12 anos. Demorou
muito tempo para que a mãe se sentisse à vontade para comprar
Corega na frente dela. Quando ela faleceu, as filhas tiveram o cuidado
de colocar a prótese para velar seu corpo: “ela não gostaria de ser
vista de outra forma”.

As filhas de Rosana passaram a vida cuidando excessivamente dos


dentes – algo que escutei de muitas pessoas cujas famílias ascendem
socialmente. O trauma da dor e a vergonha social de não poder sorrir
é uma ferida que deixa marcas familiares profundas. Portanto, o cui-
dado com a saúde bucal passa a ser uma questão de dignidade, uma
herança que essas mães, como Maria e Rosana, deixam para seus
filhos.

A estética e a saúde dos dentes dizem muito sobre mobilidade social.


Uma das primeiras medidas que muitas pessoas tomam quando con-
https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 7/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

seguem um emprego é colocar aparelho nos dentes. Quando eu a


Lúcia pesquisávamos os jovens que davam “rolezinhos” nos shop-
pings, percebíamos que eles sonhavam em usar aparelho: era uma
marca de distinção tal como um tênis da Nike. Eles nos contaram que
aparelhos dentários falsos eram vendidos na comunidade para eles
irem “bonitos ao baile funk”. Nunca encontramos esses tais aparelhos
falsificados, mas a existência dessa história já diz muito sobre as aspi-
rações e desejo de status social da juventude das periferias.

https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 8/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

Anna Borges Louzada, 51 anos, trabalha em um centro de especialidades odontológicas (CEO)


em Manaus. Defensora do SUS e preocupada com o governo atual, ela se dedica ao tratamento de
pessoas com necessidades especiais. Foto: Reprodução/Instagram

Apesar do cenário dramático, não são poucas as conquistas individu-


ais e coletivas dos últimos anos. Houve uma significativa expansão
das universidades do Brasil — que oferecem serviços a preço muito
baixo à comunidade — e a proliferação de clínicas populares que fo-
ram impulsionadas pela inclusão financeira da Era Lula. A criação do
https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH1… 9/12
16/05/2022 17:38 A desigualdade no Brasil medida pelos dentes

Programa Brasil Sorridente, que chega a 90% dos municípios brasilei-


ros, já atingiu 100 milhões de pessoas pelo atendimento básico do
SUS. Há também, por todos os lados, profissionais que fazem traba-
lhos na ponta do sistema, superando a falta de recursos de norte a sul
do país, em comunidades ribeirinhas ou em favelas.

Se as conquistas sociais aconteceram a duras penas, o cenário de cor-


tes públicos do atual governo alerta para uma situação de calamidade.
Quem começou a sorrir nos últimos anos pode voltar a se esconder.

Mastigar, gargalhar e ter uma vida sem dor são direitos humanos fun-
damentais. Sorrir é o gesto que expressa a felicidade. Por isso, a inclu-
são bucal, associada a um projeto de transformação social, deve ser
uma pauta prioritária em qualquer projeto de reconstrução do campo
progressista.

*Os nomes dos personagens deste texto foram omitidos para preservar sua
identidade.

ANTES QUE VOCÊ SAIA… Este é o ano das mais importantes eleições de
nossa História. É um daqueles momentos em que fazer jornalismo demanda
mais recursos, equipe, segurança física e jurídica, dinheiro e atenção. É um
daqueles momentos em que fazer jornalismo com relevância pode transformar
a realidade — e moldar o futuro no qual vamos viver. Como você sabe, fazemos
jornalismo independente graças à nossa comunidade de apoiadores.
Agradecemos imensamente aos que acreditam no nosso trabalho e fazemos um
convite para os que ainda não estão conosco. Precisamos de mais apoiadores
para seguir com autonomia e independência na cobertura eleitoral. Pense no
que podemos fazer, com a sua ajuda, no ano em que políticos, empresários e
lobistas vão tentar defender seus próprios interesses e manter o país no caos,
em detrimento do que é de interesse público. O Brasil não pode perder a
chance que este ano nos traz. Seu apoio é fundamental para que o Intercept
siga em frente – e para que 2023 seja, finalmente, um ano de esperança.

Faça parte do TIB ⟶

https://theintercept.com/2019/05/13/desigualdade-no-brasil-dentes/?fbclid=IwAR1zYwQ2mMdjvPQol1Xmcz0gtpzKwVAkkVVwBLvf9BGIuonGH… 10/12

Você também pode gostar