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NASCIMENTO

Nasceu um homem
entre muitos
que nasceram,
vivi entre muitos homens
que viveram,
e isto não tem história
mas terra,
terra central do Chile, onde
as vinhas encresparam suas cabeleiras verdes,
a uva se alimenta da luz,
e o vinho nasce dos pés do seu povo.

Parral* se chama o lugar


do que nasceu
no inverno.

Já não existe
a casa nem a rua:
soltou a cordilheira
seus cavalos,
acumulou-se
o profundo
poderio,
brincaram as montanhas
e caiu a vila
envolta
em terremoto.

E assim muros de adobe,


os retratos nos muros,
os móveis separados
pelas salas escuras,
silêncio entrecortado pelas moscas,
tudo voltou,
a ser pó:
* Cidade onde nasceu Pablo Neruda, localizada na região do Maule, cuja capital
é Talca. (N.T.)
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somente alguns guardamos
forma e sangue,
somente alguns, e o vinho.

Seguiu o vinho vivendo


subindo até às uvas,
debulhadas
pelo outono
errante,
baixou a lagares surdos,
a barricas
que se tingiram com o suave sangue,
e ali embaixo do espanto
da terra mais terrível
seguiu desnudo e vivo.

Eu não tenho memória


de paisagem nem tempo,
nem rostos, nem figuras,
só o pó impalpável,
ou a cauda do verão
e no cemitério onde
levaram-me
para ver entre as tumbas
o sonho da minha mãe.
E como nunca vi
sua face
chamei entre os mortos, para vê-la,
mas como os outros enterrados
não sabe, não ouve, não respondeu nada,
e ali ficou sozinha sem seu filho,
intratável e evasiva
entre as sombras.
E dali sou, daquela
Parral de terra estremecida,
terra carregada de uvas
que nasceram
desde minha mãe morta.

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A PRIMEIRA VIAGEM

Não sei quando chegamos em Temuco*.


Foi impreciso nascer e foi lento
nascer certo, devagar,
e palpar e conhecer, odiar e amar,
e tudo isto tem flor e tem espinhos.
Do peito poeirento da minha pátria
levaram-me sem fala
até à densa chuva da Araucânia.
As tábuas desta casa
cheiravam como bosque,
à selva pura.
Desde então o meu amor
foi madeireiro,
tudo o que toco se converte em bosque.
Em mim confundo
olhos e folhas,
certas mulheres com a primavera
da aveleira, confundo o homem com a árvore,
amo o mundo do vento e da folhagem,
e não distingo entre lábios e raízes.

Do machado e da chuva foi crescendo


a cidade madeireira
recém-cortada como
nova estrela com gotas de resina,
e o serrote e a serra
amavam noite e dia
cantando,
trabalhando,
sonoridade aguda de cigarra
levantando um lamento
e, na obstinada solidão, regressa
* Cidade onde o pai de Pablo Neruda casa com Trinidad Marverde, a mamadre,
e onde passam a viver quando o poeta tinha dois anos de idade. Capital da
região de Cautín. (N.T.)
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ao próprio canto meu:
meu coração segue cortando o bosque,
cantando com as serras pela chuva,
a moer o frio, serragem e o aroma.

A MAMADRE*

A mamadre vem aí,


com tamancos de madeira. À noite
soprou o vento do Pólo, romperam-se
os telhados e caíram
os muros e as pontes,
uivou a noite toda com seus pumas,
e agora, na manhã
de sol gelado, chega
a mamadre, dona
Trinidad Marverde,
doce como a tímida frescura
do sol nessas regiões de tempestade,
lampadazinha
pequena, se apagando,
incendiando-se,
para que todos vejam o caminho.

Ó doce mamadre
– nunca pude
dizer madrasta –
agora
a minha boca treme ao te definir,
porque apenas
conheci o entendimento
* Palavra inventada por Neruda para evitar a palavra madrasta, de que não
gostava. (N.T.)
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vi a bondade vestida de pobre trapo escuro,
a santidade mais útil:
a da água e da farinha,
e isso foste: a vida te fez pão
e ali te consumimos,
inverno longo a inverno desolado
com as goteiras dentro
da casa
e tua humildade ubíqua
debulhando
o áspero
cereal da pobreza
como se tivesses ido
repartindo
um rio de diamantes.

Mamadre, ai, como pude


viver sem te recordar
cada minuto meu?
Não é possível. Eu levo
teu Marverde em meu sangue,
o sobrenome
do pão que se reparte,
daquelas
doces mãos
que cortaram do saco de farinha
a roupa de baixo da minha infância,
da que cozinhou, passou e lavou,
semeou, acalmou a febre,
e ao estar tudo feito
e já podia
eu me sustentar com os pés seguros,
foi-se, completa e obscura,
ao pequeno ataúde
onde pela primeira vez foi ociosa
sob esta dura chuva de Temuco.

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O PAI

O pai brusco retorna


dos seus trens:
reconhecemos
na noite
o apito
da locomotiva
perfurando a chuva
com um uivo errante
um lamento noturno,
e logo
a porta que tremia;
numa rajada, o vento
entrava com meu pai
e entre as duas pisadas e pressões
a casa
sacudia-se
as portas assustadas
batiam como seco
disparo de pistolas,
as escadas gemiam
e uma alta voz
recriminava, hostil,
enquanto a tempestuosa
sombra, a chuva como catarata
despenhada nos tetos
afogava pouco a pouco
o mundo
e não se ouvia nada mais que o vento
brigando com a chuva.

No entanto, era diurno.


Capitão do seu trem, da manhã fria,
apenas despontava
o vago sol, ali estava sua barba,
suas bandeiras,
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verdes, vermelhas, prontos os faróis,
carvão da máquina no pleno inferno,
a Estação com os trens dentro da bruma
e sua obrigação para a geografia.

O ferroviário é marinheiro em terra


e nos pequenos portos sem marinha
– povos do bosque – o trem corre que corre
desenfreando toda a natureza,
cumprindo sua navegação terrestre.
Quando descansa o grande trem
juntam-se os amigos,
entram, abrem portas da minha infância,
a mesa é sacudida,
ao golpe de uma mão ferroviária
batem os grossos copos do irmão
e faísca
o fulgor
dos olhos do vinho,
o meu pobre pai duro
ele ali estava, no centro da vida,
a viril amizade, a taça cheia.
Sua vida foi um rápido serviço
e entre seu madrugar e seus caminhos,
entre o chegar para sair correndo,
um dia com mais chuva que em outros dias
o condutor José del Carmen Reys
subiu no trem da morte e nunca mais voltou.

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