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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS (IFCH)

MARCELLA UCEDA BETTI

“Voltando às raízes”: política, corpo e consumo na


valorização dos cabelos cacheados e crespos

CAMPINAS
2022
2

MARCELLA UCEDA BETTI

“Voltando às raízes”: política, corpo e consumo na


valorização dos cabelos cacheados e crespos

Tese apresentada ao Instituto de


Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas
como parte dos requisitos exigidos para
a obtenção do título de Doutora em
Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Isadora Lins França

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA
MARCELLA UCEDA BETTI, E ORIENTADA
PELA PROFA. DRA. ISADORA LINS FRANÇA.

CAMPINAS
2022
3
4

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado,


composta pelas Professoras Doutoras a seguir descritas, em sessão pública
realizada em 24 de junho de 2022, considerou a candidata Marcella Uceda
Betti aprovada.

Profa. Dra. Isadora Lins França (Presidente)


Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida
Profa. Dra. Gleicy Mailly da Silva
Profa. Dra. Regina Facchini
Profa. Dra. Laura Moutinho da Silva

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se


no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas.
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AGRADECIMENTOS

A minhas interlocutoras e interlocutores, que foram essenciais para esta pesquisa.


Sem a colaboração e a disposição delas e deles este trabalho certamente não teria sido
realizado.
A minha orientadora, Isadora Lins França, que apoiou não apenas o
desenvolvimento e a conclusão deste trabalho, mas que tem acompanhado e incentivado,
com muita dedicação, paciência e amizade, minha trajetória acadêmica e profissional.
A Heloisa Buarque de Almeida, que tem feito parte de minha formação desde a
graduação na USP e que fez contribuições generosas a este trabalho na ocasião do Exame
de Qualificação e da Defesa de Tese.
A Luiz Gustavo Freitas Rossi, pela leitura cuidadosa e pelas críticas e sugestões
pertinentes que fez em meu Exame de Qualificação.
As professoras Gleicy Mailly da Silva, Laura Moutinho e Regina Facchini, por
aceitarem o convite para a composição da banca da Defesa de Tese e pelas contribuições,
críticas e leituras generosas que fizeram nesta ocasião.
Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais do IFCH/UNICAMP, que contribuíram não apenas para minha formação como
pesquisadora nestes últimos anos, como também fizeram parte do desenvolvimento deste
trabalho: Regina Facchini, José Maurício Arruti, Adriana Piscitelli, Guita Grin Debert e
Maria Filomena Gregori.
Ao professor Franklin Gil Hernandez, que carinhosamente me recebeu, orientou
e apoiou, à distância, com as limitações impostas pela pandemia a um processo de
doutorado-sanduíche realizado remotamente, no âmbito da Escuela de Estudios de
Género da Universidad Nacional de Colombia.
A Fernanda Kalianny Martins Sousa, colega e amiga muito querida que me
acompanhou de perto durante esta jornada. Agradeço-a não apenas pelas contribuições
acadêmicas, mas, principalmente, pelas conversas e risadas, pelo suporte e carinho.
Aos colegas de orientação e do grupo de estudos das professoras Isadora Lins
França e Regina Facchini, pelas contribuições que fizeram a este trabalho e,
especialmente, pelo compartilhamento de ideias, dilemas, leituras e críticas.
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As pesquisadoras e pesquisadores integrantes do PAGU – Núcleo de Estudos de


Gênero, pelas leituras, comentários e críticas a meu trabalho e pelo compartilhamento de
experiências, conhecimentos e inquietações.
Ao suporte e apoio técnico fornecido pelo PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero
e pela secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do
IFCH/UNICAMP.
Aos meus familiares, por sempre permanecerem como um porto seguro em
qualquer situação.
Aos amigos e pessoas queridas que acompanharam minhas angústias, meus
questionamentos e minhas alegrias durante todo este processo: Pedro Lopes, Laís Miwa
Higa, Felipe Joaquim, Karina Fasson, Patrick Cunha Silva, André Moreira, Luiza Weber,
Almir Oliveira, Alex Caíres, Giovani Mendes Pacheco, Beatriz Carvalho dos Santos,
Patrícia Cristine Pereira, Fabiana Ferreira Alves e Gabriela Nardy de Vasconcelos Leitão.
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cujo
financiamento tornou este trabalho possível (Processo número 2017/08760-5).
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RESUMO

Esta pesquisa tratou de investigar processos de subjetivação e produção de identidades


relacionados a gênero, raça, política e estética, elegendo como recorte empírico o mercado
de beleza voltado para cabelos crespos e cacheados e a produção de discursos que
valorizam estes tipos de cabelos. Nos últimos anos, mulheres que se identificam como
crespas e cacheadas estão abandonando os alisamentos e engajando-se na experiência da
transição capilar, voltando aos seus cabelos naturais. Nas redes sociais, proliferam
grupos no Facebook, canais no Youtube e perfis no Instagram dedicados ao assunto.
Marcas de cosméticos têm investido maciçamente em novos produtos para cabelos
crespos e cacheados e muitos cabeleireiros têm buscado cursos específicos voltados para
o tratamento destes cabelos. Neste cenário, a relação tensa e complexa entre mercado e
política é reforçada, pois os cabelos naturais levantam debates sobre racismo,
ancestralidade, empoderamento, representatividade e padrões de beleza. A investigação
teve como base o trabalho de campo realizado em espaços online e offline, seguindo os
trânsitos das interlocutoras e as relações entre marcas, consumidoras, profissionais da
beleza, influenciadoras digitais e ativistas do cabelo natural.

Palavras-chave: Estudos de Gênero, Relações Raciais, Interseccionalidade, Consumo,


Mercado.
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ABSTRACT

This research investigated processes of subjectivation and production of identities related


to gender, race, politics and aesthetics, choosing as an empirical focus the beauty market
focused on curly and kinky hair and the production of discourses that value these types
of hair. In recent years, women who identify as "crespas" (people who have kinky hair)
and "cacheadas" (people who have curly hair) are abandoning the straightening methods
and engaging themselves in the hair transition experience, returning to their natural hair.
In social networks as Facebook, Youtube and Instagram, groups, channels and profiles
dedicated to the subject are growing. Cosmetic brands have been investing massively in
new products for curly and kinky hair and many hairdressers have been looking for
specific courses that teach how to treat these types of hair. In this scenario, the tense and
complex relation between market and politics is reinforced, as natural hair raises debates
about racism, ancestry, empowerment, representation and beauty standards. The
investigation was based on fieldwork carried out in online and offline spaces, following
the conversations of the interlocutors and the relations between brands, consumers,
beauty professionals, digital influencers and natural hair activists.

Keywords: Gender Studies, Race Relations, Intersectionality, Consumption, Market.


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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Propaganda do sabonete Aristolino


Figura 2: Propaganda do sabonete Dove
Figura 3: Linha Seda Hidraloe
Figura 4: Linha Seda Keraforce
Figura 5: Linha Seda Anti Sponge
Figura 6: Linhas Seda Co-Criações
Figura 7: Linhas Seda Boom e Cachos Definidos
Figura 8: Postagem sobre a linha Seda Boom
Figura 9: Postagem #10YearsChallenge da Seda
Figura 10: Linhas #todecacho
Figura 11: Números das redes sociais da Salon Line
Figura 12: Produtos Salon Line à venda
Figura 13: Produtos Salon Line à venda
Figura 14: Propaganda da linha Meu Liso
Figura 15: Produtos Deva Curl à venda
Figura 16: Postagem sobre o projeto Makeda Terapeuta
Figura 17: Postagem sobre a linha Pitanga
Figura 18: Linha assinada por Ana Paula Xongani
Figura 19: Texto sobre a linha assinada por Ana Paula Xongani
Figura 20: Postagem da marca NV Scalp
Figura 21: Postagem da marca NV Scalp
Figura 22: Campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 23: Campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 24: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 25: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 26: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 27: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 28: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 29: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
Figura 30: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas
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Figura 31: Resposta de Salon Line aos comentários


Figura 32: Linha Orgulho Crespo
Figura 33: Linha Orgulho Crespo
Figura 34: Vídeo de Xan Ravelli sobre feminismo negro
Figura 35: Vídeo de Gleici Duarte sobre livro de Djamila Ribeiro
Figura 36: Vídeo de Gabi Oliveira sobre a importância da estética
Figura 37: Linha Seda by Gabi Oliveira
Figura 38: Texto de divulgação da linha Seda by Gabi Oliveira
Figura 39: Parte 1 da postagem de Fleury Johnson
Figura 40: Parte 2 da postagem de Fleury Johnson
Figura 41: Parte 3 da postagem de Fleury Johnson
Figura 42: Parte 4 da postagem de Fleury Johnson
Figura 43: Parte 5 da postagem de Fleury Johnson
Figura 44: Cabelo cacheado em transição, apresentando duas texturas
Figura 45: Cabelo crespo em transição, apresentando duas texturas
Figura 46: Charge de Ster Nascimento sobre a transição capilar
Figura 47: Charge de Ster Nascimento sobre a transição capilar
Figura 48: “Antes e depois” da transição da influenciadora Amanda Mendes
Figura 49: “Antes e depois” da transição da influenciadora Thammy Slot
Figura 50: “Antes e depois” em corte de cabelo cacheado
Figura 51: Ilustração de Malena Flores sobre os tipos de cabelo
Figura 52: O sistema de classificação criado por Andre Walker
Figura 53: Rótulo de produto da Salon Line
Figura 54: Rótulo de produto da Seda
Figura 55: Rótulo de produto da Soul Power
Figura 56: 2ª Marcha do Orgulho Crespo em São Paulo
Figura 57: 2ª Marcha do Orgulho Crespo em São Paulo
Figura 58: 2ª Marcha do Orgulho Crespo em São Paulo
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................p.14
“Quando você vai parar de alisar esse cabelo?”.............................................................p.14
Crespas e cacheadas: entre técnicas, diferenças e desigualdades..................................p.18
Recortando o problema de pesquisa..............................................................................p.23
Questões éticas e metodológicas...................................................................................p.29
a) Espaços online: influenciadoras, marcas e salões.............................................p.29
b) Espaços offline: feiras, eventos e cursos............................................................p.34
(Re)pensando meu lugar...............................................................................................p.38
Organização da tese.......................................................................................................p.46

CAPÍTULO 1 – CABELO, ESTÉTICA E DESIGUALDADES.............................p.48


1.1 – O cabelo como objeto do interesse antropológico.................................................p.48
1.2 – Ciência, racismo e a indústria da higiene e da cosmética......................................p.50
1.3 – Cabelos crespos e a produção de uma estética negra no Brasil..............................p.58
1.4 – Cabelo crespo, discriminação racial e mídias digitais...........................................p.63
1.4.1 – O caso Dandara: turbante, racismo e limites da judicialização.................p.64
1.4.2 – Os casos Mayara e Yasmin: racismo e “mimimi”.....................................p.68
1.4.3 – O caso Daiane: racismo, colorismo e repercussão negativa......................p.71
1.4.4 – Debates nas mídias digitais......................................................................p.84

CAPÍTULO 2 - O INTERESSE DO MERCADO...................................................p.87


2.1 – “O racismo atrapalha os lucros” ........................................................................p.87
2.2 – A emergência da classe média negra.....................................................................p.90
2.3 – Problematizando “o” mercado..............................................................................p.95
2.4 – Marcas para cabelos crespos e cacheados no mercado nacional............................p.98
2.4.1 – Seda..........................................................................................................p.98
2.4.2 – Salon Line..............................................................................................p.108
2.4.3 – Deva Curl...............................................................................................p.114
12

2.4.4 – Makeda..................................................................................................p.120

CAPÍTULO 3 – MARCAS E REPRESENTATIVIDADE....................................p.126


3.1 – Da diversidade à representatividade.................................................................p.126
3.2 – “A primeira influenciadora com dreads do Brasil”............................................p.127
3.3 – Cuidando do couro cabeludo..............................................................................p.134
3.4 – Escureceram a modelo?.....................................................................................p.138
3.5 – O lançamento do alisante...................................................................................p.149
3.6 – “Orgulho Crespo”.............................................................................................p.152
3.7 – Representatividade como categoria política em disputa.....................................p.157

CAPÍTULO 4 - AS MÍDIAS DIGITAIS E AS INFLUENCIADORAS CRESPAS E


CACHEADAS............................................................................................................p.160
4.1 – As mídias digitais e o trabalho dos influenciadores............................................p.160
4.2 – Youtubers crespas e cacheadas e o feminismo negro..........................................p.164
4.3 – Youtubers crespas e cacheadas e o mercado da beleza.......................................p.173
4.4 – As influenciadoras crespas e cacheadas e seus empreendimentos.....................p.181
4.4.1 – Seda by Gabi Oliveira............................................................................p.182
4.4.2 – O salão Cor e Cacho...............................................................................p.188
4.5 – Influenciadoras crespas e cacheadas: entre trânsitos e fronteiras.......................p.191

CAPÍTULO 5 – TÉCNICAS, TEXTURAS E CLASSIFICAÇÕES.....................p.194


5.1 – As práticas de alisamento...................................................................................p.194
5.1.1 – Os alisamentos químicos........................................................................p.195
5.1.2 – Os alisamentos físicos ou mecânicos......................................................p.200
5.2 – As críticas aos alisamentos e a transição capilar..............................................p.202
5.2.1 – As questões de saúde e as críticas às químicas.....................................p.202
5.2.2 – Os custos...............................................................................................p.207
5.2.3 – Empoderamento, feminismo e ancestralidade......................................p.209
13

5.2.4 – A transição capilar: técnicas, expectativas e pressões.........................p.210


5.3 – No poo e low poo: narrativas de origem, novas rotinas capilares e a circulação de
ideias, marcas e produtos............................................................................................p.220

5.3.1 – Narrativas de origem: Curly Girl, o guia..............................................p.221


5.3.2 – Recomendações do método Curly Girl.................................................p.222
5.3.3 – Produtos e marcas viajam......................................................................p.224
5.4 – Técnicas de corte e finalização para crespos e cacheados ..................................p.227
5.5 – “Qual é o seu tipo de cacho?” ............................................................................p.232
5.6 – O cabelo natural como estética insubordinada...................................................p.241

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................p.248

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................p.251

ANEXOS...................................................................................................................p.270
Nota da Marcha do Orgulho Crespo à marca Hoka.....................................................p.270
Glossário do Campo....................................................................................................p.272
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INTRODUÇÃO

“Quando você vai parar de alisar esse cabelo?”

Esta era uma pergunta que, nos idos de 2012 e 2013, era constantemente feita a
mim por alguns amigos próximos. De início, esta pergunta me gerava certo incômodo e
soava um pouco impertinente, pois parecia que as pessoas estavam querendo ditar o que
eu deveria ou não fazer em meu cabelo. Mas a verdade era que nesta época eu, uma
mulher branca com cabelos castanhos e cacheados que utilizava métodos alisantes desde
os 14 anos de idade, estava em uma situação de conflito com meus próprios fios, cansada
de utilizar químicas1 em meu cabelo.
Durante a infância e o início da adolescência meu grande desejo era ter cabelos
mais lisos e menos volumosos. Minha família sempre conta como, na época da primeira
infância, eu brincava de colocar fitas de tecido na cabeça para fingir que meus cabelos
eram lisos e compridos. Várias de minhas lembranças envolvendo o cabelo estão
relacionadas aos cuidados que minha mãe dispendia em meus fios quando eu era criança.
Ela, que não possui cabelos cacheados como os meus, se preocupava em buscar produtos
e acessórios que tratassem meus cabelos de forma adequada, em uma época em que a
variedade de produtos destinados a cabelos cacheados no mercado era pequena.
Adultos que eram meus parentes, amigos de meus pais e outras pessoas
conhecidas davam dicas – nem sempre solicitadas – de produtos que teriam,
supostamente, um efeito milagroso em meus fios, diminuindo o volume que eles
possuíam. O volume era, inclusive, uma grande fonte de incômodo para mim, e eu em
geral utilizava os cabelos sempre presos. Em certa ocasião, quando eu tinha por volta de
8 ou 9 anos, uma prima recomendou à minha mãe que me levasse em um salão do bairro
que ela frequentava, onde o cabeleireiro, supostamente, realizava cortes que “tiravam” o
volume do cabelo. Neste salão, o cabeleireiro, antes do corte, insistiu que era necessário
aplicar um produto alisante em meu cabelo, o que não foi permitido por minha mãe. O

1
Categorias êmicas, falas de interlocutores, nomes de marcas e empresas, títulos de eventos, sites, canais
do Youtube e estrangeirismos serão marcados em itálico. O termo químicas é uma categoria êmica e diz
respeito a qualquer produto ou procedimento que mude de modo permanente a estrutura dos fios,
modificando sua textura original.
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corte de cabelo que ele realizou em mim, no final, foi desastroso e deixou o meu
cabelo com um comprimento desigual em várias regiões da cabeça, sem um formato
definido.
No início da adolescência, comecei a frequentar salões de beleza para fazer escova
e chapinha, ou seja, para alisar o cabelo através de métodos que envolvem o uso de calor
e cujo efeito liso é temporário. Eu só utilizava os cabelos soltos quando fazia estes
procedimentos. Sempre que havia uma oportunidade para ir a uma festa de aniversário de
colegas da escola, eu corria para marcar, com antecedência, um horário para escovar e
pranchar2 meus cabelos. Em minha mente, não era cabível comparecer a uma festa sem
arrumar – leia-se alisar – os cabelos.
O primeiro salão em que fui realizar uma escova rendeu-me uma experiência nada
positiva, que marcou minha memória. O cabeleireiro, ao olhar para meus cabelos longos
e cacheados, não disfarçou o desagrado. Enquanto penteava meus cabelos à seco, puxando
e esticando fios sem nenhum cuidado, jogando o jato de ar quente do secador sobre eles,
dizia que era impossível deixar um cabelo como o meu completamente liso.
Como eu queria resultados mais permanentes, em determinado momento aderi à
técnica do relaxamento. Trata-se de um procedimento químico que altera a estrutura dos
fios, esticando a fibra capilar e promovendo uma diminuição no volume do cabelo. Esse
procedimento foi realizado em meu cabelo, pela primeira vez, quando completei 14 anos,
sob recomendação de um cabeleireiro que atuava em uma rede de salões que na época era
muito conhecida em São Paulo. O profissional, meses antes desta ocasião, havia me
explicado que eu precisava tratar e fortalecer meu cabelo com produtos profissionais antes
de submeter-me ao relaxamento, recomendação que segui à risca, dada a minha vontade
de ter fios mais lisos e menos volumosos.
O relaxamento, no entanto, não conseguiu alisar completamente meus fios. Meu
cabelo tornou-se menos cacheado, ganhando mais comprimento, e teve seu volume
diminuído. Se eu quisesse exibir fios completamente lisos, ainda tinha que escovar e
pranchar os cabelos. Assim, esforcei-me para aprender a fazer escova e chapinha sozinha,
e passei a realizar estes procedimentos em casa com alguma frequência, especialmente
quando tinha compromissos nos finais de semana.
Recordo que após algumas semanas do primeiro relaxamento, tive que cortar
alguns centímetros de cabelo pois as pontas haviam ficado irremediavelmente danificadas

2
A chapinha também é formalmente conhecida como prancha, e ato de aplicar este instrumento nos cabelos
é chamado de “pranchar”.
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e quebradiças. Passei a utilizar produtos específicos para cabelos quimicamente tratados


e a tonalizar os fios de castanho ou preto, pois o relaxamento desbotava meu cabelo e
deixava os fios com um aspecto avermelhado. O uso frequente de secador e chapinha
também contribuía para intensificar estes efeitos colaterais. De modo a combater os danos
causados pelas técnicas alisantes, eu cuidava do cabelo de forma intensa, fazendo
tratamentos periodicamente em minha própria casa e indo ao salão algumas vezes ao ano.
Entre 2011 e 2012, cansada de ter que retocar a química a cada três meses, decidi
parar com o relaxamento. Aguentei uns bons meses – não lembro exatamente quantos –
com as raízes cacheadas crescendo, mas acabei sucumbindo ao relaxamento novamente,
pois não sabia como lidar com um cabelo com duas texturas diferentes. Voltei a realizar
o procedimento periodicamente, mas comecei a ter a impressão de que a química não
estava mais funcionando em meus fios como antes. Eles não respondiam mais como o
esperado e as pontas estavam cada vez mais quebradiças.
Em busca de uma solução mais efetiva, aderi à técnica da escova progressiva.
Muitos salões vendiam esse procedimento como uma química mais suave, menos danosa
que os alisamentos e relaxamentos tradicionais. Alegavam que efeito alisante era gradual
e que os produtos utilizados hidratavam e reconstruíam os fios, pois possuíam queratina
na fórmula. Calculo que submeti meus cabelos às progressivas por pelo menos três vezes,
em diferentes salões de cabeleireiro.
A escova progressiva, aplicada nos fios já relaxados, de fato conseguiu alisar o
comprimento do meu cabelo, como nenhum relaxamento havia antes conseguido.
Todavia, ao contrário do prometido, o procedimento piorou a condição dos meus fios,
reforçando sua fragilidade, especialmente na região das pontas. Mesmo tratando meu
cabelo com produtos mais caros, nada funcionava, e sua aparência não exibia um aspecto
saudável.
Foi neste período que meus amigos começaram a questionar o modo como eu
estava tratando meu cabelo. Pediam para que eu parasse com a progressiva e deixasse o
cabelo cacheado – que deveria ser lindo, segundo eles – crescer. Em algum momento, um
deles chegou a me fazer o seguinte questionamento: “Você estuda padrões de beleza e
mesmo assim alisa o cabelo?”. Eu estudava questões relacionadas aos chamados padrões
de beleza desde a iniciação científica, quando fiz um estudo sobre uma campanha
publicitária da marca de cosméticos Dove (BETTI, 2011), e de 2012 a 2014 realizei minha
pesquisa de mestrado sobre a emergência do mercado de moda plus-size (BETTI, 2014),
um segmento direcionado a pessoas gordas.
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Na Internet, encontrei alguns blogs escritos por mulheres com cabelos crespos e
cacheados que haviam parado de alisar os cabelos. A iniciativa destas mulheres me
estimulou a pensar em como seria ter um visual que não fosse dependente de químicas e
despertou minha curiosidade a respeito de como seria me olhar no espelho utilizando
cabelos cacheados novamente. Deparei-me então o termo transição capilar, que se refere
ao processo de interromper o uso de técnicas alisantes para que o cabelo cresça em sua
textura natural. Munida de algumas dicas e informações, decidi parar com os
procedimentos químicos e iniciei o processo de transição. Isto se deu pouco tempo após
a última aplicação da progressiva, que realizei em meados de 2013.
Através da Internet, encontrei uma cabeleireira especialista em cabelos cacheados
que trabalhava com cabelos em transição e com cabelos naturais. No blog desta
profissional, passei a ler artigos sobre cabelos cacheados e a acompanhar os cortes que
ela realizava nas clientes que haviam abandonado as químicas. Criei coragem para
realizar o big chop, ou “grande corte”, em português, procedimento em que o cabelo
alisado é completamente eliminado através do corte. Assim, em uma tarde de agosto de
2014, fui ao salão desta cabeleireira com o meu cabelo comprido em transição – metade
cacheado e metade alisado – e saí de lá com o cabelo totalmente cacheado e em um
comprimento consideravelmente mais curto, na altura do queixo, algo que era novo para
mim.
A cabeleireira executou um serviço muito diferente em relação ao que eu estava
acostumada nos salões de cabeleireiro mais tradicionais. Os fios foram cortados a seco,
lavados e condicionados com produtos especialmente desenvolvidos para cabelos crespos
e cacheados. Ela utilizou um xampu que não fazia espuma, parecido com um creme.
Depois da lavagem fui orientada a me curvar em direção ao chão, deixando a cabeça para
baixo, enquanto a cabeleireira aplicava em meus cabelos molhados um gel modelador de
cachos. Ela apertava e amassava com cuidado os meus fios, de modo a estimular a
formação de cachos definidos. Logo em seguida, colocou-me em um secador vertical,
semelhante a um capacete, para que meu cabelo secasse mais rapidamente e eu pudesse
visualizar melhor o resultado.
O resultado me agradou muito. Meus cabelos voltaram ao formato encaracolado
e aos poucos fui aprendendo a cuidar deles de outra forma, utilizando produtos específicos
para fios cacheados e testando novos penteados e acessórios. Conforme meus fios
cresciam, mais encaracolados ficavam. Passei a receber muitos elogios de amigos,
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familiares e de outras pessoas próximas, que notavam a transformação pela qual eu tinha
passado.
Após a defesa do mestrado, que ocorreu em dezembro de 2014, comecei a pensar
em uma futura proposta de pesquisa para o doutorado. Embora as reflexões sobre a
mercado de moda plus-size não tivessem se esgotado, questionei-me, por algum tempo,
se de fato era minha vontade continuar com aquele objeto de pesquisa. A minha
experiência particular com o processo de transição capilar e a adesão ao cabelo natural
descortinaram um novo cenário para meu olhar. Parecia-me, inicialmente, que este objeto
proporcionaria um outro recorte para questões que eu havia trabalhado anteriormente, que
envolviam a articulação entre gênero, corpo, mercado e consumo, além de processos de
racialização, que não haviam sido trabalhados de modo prioritário na pesquisa de
mestrado. Assim, embarquei em novo projeto de pesquisa, que resultou nesta tese.
Esta tese tem como pano de fundo um cenário em que mulheres negras e brancas,
em sua maioria jovens, estão abandonando as técnicas de alisamento e aderindo a um
visual considerado natural, que ressalta a forma crespa ou cacheada dos fios.
Alisamentos, relaxamentos, escovas progressivas e uma série de outros procedimentos
que esticam os fios e diminuem seu volume estão sendo deixados de lado em favor da
adoção de técnicas de tratamento e de produtos que não alteram a estrutura dos cabelos.
Estas mulheres, que se autodenominam como crespas e cacheadas, atribuem
sentidos políticos ao cabelo e à estética em uma discussão que articula gênero e raça,
trazendo questões relacionadas à discriminação racial, aos padrões de beleza e ao controle
sobre seus próprios corpos. Cabelo e estética são, portanto, politizados e compreendidos
como mais que mera aparência.

Crespas e cacheadas: entre técnicas, diferenças e desigualdades

Os termos crespas e cacheadas são categorias que também foram adotadas pelo
mercado da beleza e elas expressam uma diferenciação que prioriza marcar as distintas
texturas capilares3. Ainda que o termo crespa seja comumente mais associado às mulheres
que se identificam como negras ou pretas, as categorias crespas e cacheadas referem-se

3
Em certos contextos, a categorização pode incluir também os cabelos ditos ondulados, considerados um
tipo intermediário entre os cabelos lisos e os cacheados e crespos.
19

a mulheres de distintos pertencimentos raciais, não se limitando a uma única


identificação.
Na perspectiva êmica, aderir ao cabelo natural, aos cabelos crespos ou cacheados,
não é uma moda, e sim uma questão de identidade. Enquanto a moda é tida como algo
passageiro, uma tendência difundida pelo mercado que pode ser (ou não) adotada pelos
indivíduos e que provavelmente será descartada dentro de algum tempo, identidade é uma
categoria acionada em campo em referência a modos de se posicionar, de ser e estar no
mundo. Compreende-se que passar pelos processos trabalhosos da transição capilar e do
big chop envolve um tipo de mudança profunda e permanente, que significa, entre outras
coisas, uma (re)construção de si e de sua estética.
As interlocutoras desta pesquisa acompanham conteúdos sobre cabelos crespos e
cacheados produzidos na Internet, em diversas redes sociais e plataformas de
compartilhamento, como o Youtube e o Instagram, constituindo um importante público-
alvo para as marcas e lojas de cosméticos, para os salões de cabeleireiro e eventos do
mercado da beleza bem como para as influenciadoras digitais4 que produzem conteúdos
sobre cabelos crespos e cacheados.
Nos últimos anos, o mercado de beleza brasileiro tem investido de maneira
significativa em novas técnicas e produtos especificamente dirigidos a estas
consumidoras. Marcas de cosméticos, incluindo aquelas conhecidas no mercado por seus
produtos de alisamento, têm lançado linhas de produtos exclusivos para cabelos
cacheados e crespos. As prateleiras de produtos destinados aos cabelos crespos e
cacheados nas lojas de cosméticos, antes pequenas e mais focadas nos produtos para alisar
e diminuir o volume, ampliaram-se e agora apresentam uma infinidade de produtos para
definir cachos. Cabeleireiros têm aderido a técnicas de corte específicas para estes tipos
de cabelos – como os cortes a seco5 – e cursos de formação profissional que ensinam estas
técnicas estão se difundido.
Na Internet têm-se proliferado de maneira significativa as redes de informação e
de apoio para quem deseja passar pela transição capilar, pelo big chop ou para quem tem

4
O termo influenciador digital é uma categoria de uso recente, que serve para designar as pessoas que
trabalham produzindo conteúdos (como vídeos, textos e imagens) sobre os mais variados temas em
plataformas digitais como o Youtube e Instagram. Para uma discussão mais aprofundada sobre este tema,
ver o Capítulo 4.
5
Cabeleireiros especializados em cabelos crespos e cacheados defendem que estes não devem ser cortados
da maneira convencional – molhados e previamente lavados – e sim com os fios completamente secos e
com o máximo de definição de cachos que a cliente conseguir com os produtos que utiliza, para
posteriormente serem lavados e finalizados.
20

interesse em praticar as técnicas de no e low poo6, cada vez mais popularizadas. Grupos
no Facebook, blogs, perfis no Instagram e canais no Youtube dedicados aos cabelos
crespos e cacheados constituem em grande medida estas redes.
No poo, abreviação da expressão “no shampoo” (em português, “sem xampu”), é
uma técnica em que os xampus são abolidos, lavando-se os cabelos com condicionadores
higienizantes. As pessoas adeptas a este regime de tratamento acreditam que os xampus
comuns, em geral formulados com sulfatos e outros agentes de limpeza considerados
fortes, ressecam os cabelos crespos e cacheados em demasia, danificando os fios com seu
uso contínuo. Já o low poo (abreviação de “low shampoo”, em português, “pouco
xampu”) é uma técnica que permite o uso esporádico de xampus sem sulfatos, formulados
com agentes de limpeza considerados mais suaves.
Ambas as técnicas preconizam o uso de produtos com ingredientes tidos como
mais naturais, como óleo vegetais e extratos de flores e frutas, desaconselhando silicones,
petrolatos, óleo mineral e parafina líquida. A marca Deva Curl, focada em cabelos crespos
e cacheados, alega ser a criadora destas técnicas e as registrou como marcas, mas os
termos no poo e low poo se difundiram a ponto de serem descolados da marca e tornarem-
se categorias êmicas.
Os espaços online, mais que discutir sobre técnicas e produtos, trazem reflexões
acerca das pressões e expectativas sociais em torno do cabelo. Crespas e cacheadas
compartilham experiências de vida marcadas por uma relação conturbada com o próprio
cabelo e pela tentativa de se aproximar de ideais estéticos e morais divulgados pela mídia
e pelo mercado. Nestes ideais, reforçados pelo contexto familiar, escolar e profissional, o
cabelo liso, brilhante e com um volume controlado é associado à beleza, à feminilidade,
à limpeza, à elegância, à disciplina e até mesmo ao profissionalismo.
Os cabelos crespos, em particular, são os cabelos socialmente vistos como um
problema, como algo que deve ser disciplinado e modificado, que não pode permanecer
em seu estado natural. Os relatos de mulheres negras mostram que a iniciação nos
processos de alisamento muitas vezes começa cedo, quando os cabelos crespos da menina
são submetidos ao pente quente ou aos cremes relaxantes pelas mãos da mãe ou de outras
parentes. Como bell hooks argumenta, em seu clássico texto “Alisando nosso cabelo”, o
cabelo crespo é, para muitas mulheres negras,

6
Utilizo também os termos “rotinas” e “métodos” como sinônimos de “técnicas” quando me refiro ao no e
low poo.
21

[...] um problema que devemos resolver, um território que deve ser


conquistado […] é uma parte de nosso corpo […] que deve ser
controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais
aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito,
em um estado não processado.

Embora mulheres brancas com cabelos cacheados também realizem práticas de


alisamento, é preciso enfatizar as desigualdades entre estas e as mulheres negras,
politizando o olhar. Em seu estudo sobre as práticas de alisamento, Adriana Quintão
(2013) explica que, enquanto para as mulheres negras as primeiras experiências com os
alisamentos ocorrem na infância, as mulheres brancas costumam aderir aos métodos
alisantes mais tarde, na adolescência ou mesmo na vida adulta – minha própria trajetória,
nesse sentido, é um exemplo desta distinção. Da mesma maneira, as pressões sociais para
o alisamento carregam sentidos distintos entre meninas e mulheres negras e brancas e, no
caso das primeiras, estarão articulados a outras experiências, que em geral envolvem o
racismo.
A oposição entre cabelo “bom” e cabelo “ruim”, comumente acionada em
discursos cotidianos sobre estética, longe de ser uma simples avaliação sobre os diferentes
tipos de texturas capilares, é profundamente racializada: é fruto de discursos raciais
hierarquizantes, que atribuem diferentes qualidades a sujeitos brancos e negros, como se
houvesse uma conexão entre características físicas e características morais (TODOROV,
1993; MUNANGA, 2004). O cabelo “bom”, representado pelo liso, é associado à maciez,
à maleabilidade, à disciplina e à limpeza, enquanto o cabelo “ruim”, representado pelo
crespo, é associado à dureza, à indisciplina e à sujeira. Nesta oposição, cabelo crespo e
negritude são profundamente estigmatizados.
Longe de significar algo menor, supérfluo e despolitizado, os discursos sobre o
cabelo e sua manipulação no campo estudado vão muito além das técnicas e produtos
disponíveis no mercado, enunciando reivindicações relacionadas à construção de
identidades e à atuação política. Tais posicionamentos se traduzem também nas diversas
motivações mobilizadas em torno da adesão ao cabelo natural e da decisão de passar pela
transição capilar e pelo big chop.
Entre as interlocutoras que se percebem como mulheres negras, especialmente
aquelas que de algum modo se identificam com pautas antirracistas e dos feminismos
negros, o abandono do alisamento pode ser significado como uma “volta às raízes”, não
só porque a raiz do cabelo natural começa a aparecer quando se interrompe os processos
22

de alisamento, criando uma diferença de textura com relação à parte alisada, mas porque
esta raiz crescendo remete ao cultivo de uma ancestralidade africana, de uma conexão
com a origem e a cultura de seus antepassados. Contudo, o abandono das técnicas de
alisamento e relaxamento pode estar simplesmente relacionado a um processo de
afirmação de uma identidade negra marcada pelo posicionamento estético-político.
Reconhecer-se como negra, nesse caso, incluiria o abandono do alisamento e a
valorização de uma estética dos crespos e cacheados. Da mesma forma, o empoderamento
ao qual referi acima pode articular raça e gênero no modo como os cabelos são acionados
por mulheres negras como expressão de processos subjetivos.
Para além dessa articulação, há ainda outras motivações e significados
mobilizados pelas interlocutoras desta pesquisa que não são mutuamente excludentes e
nem contraditórios entre si. Mais de uma razão podendo ser elencada em torno da adesão
ao cabelo natural. Para algumas mulheres, por exemplo, a saúde também pode ser
mobilizada, já que alguns dos principais métodos alisantes disponíveis no mercado
envolvem a utilização de substâncias que podem provocar queimaduras, descamações e
alergias no couro cabeludo e nas mãos. As químicas, especialmente com a repetição das
aplicações, também podem danificar os cabelos, provocando quebra, queda, alteração na
cor e na porosidade dos fios, tornando-os mais frágeis e ressecados. No campo, há quem
ressalte, inclusive, que as consumidoras não têm informações suficientes a respeito dos
efeitos que estes produtos causam no organismo. Assim, o abandono dos alisamentos
pode ser uma busca por um couro cabeludo e fios mais saudáveis e por tratamentos
considerados mais seguros e com menores riscos à saúde.
Outra questão que aparece como motivação são o tempo e o dinheiro investidos
nos processos de alisamento. Uma única aplicação de química, a depender do tipo de
produto, pode chegar a consumir algumas horas do dia de uma pessoa em casa ou em um
salão. A manutenção das químicas pode variar, mas em geral recomenda-se que o
procedimento seja realizado na raiz crescida algumas vezes por ano, para que o visual do
cabelo fique uniforme, sem diferença de textura entre as raízes e o comprimento. Para
algumas pessoas, torna-se cansativo e custoso manter esta rotina, que exige disciplina,
paciência, disponibilidade de tempo, habilidades específicas e dinheiro investido.
Como vemos, são diversas as motivações relacionadas à adesão ao cabelo natural
no campo da pesquisa. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que muito comumente
essas motivações e o processo para se chegar no cabelo natural são muitas vezes
compreendidos pelas mulheres como um ato de empoderamento e como uma atitude
23

feminista. O argumento se relaciona à ideia de retomar o controle sobre o próprio corpo


e valorizá-lo, e à contestação de padrões de beleza vigentes, sentidos como artificiais e
opressores, que privilegiam os cabelos lisos e longos. Tais argumentos são acionados em
meio às narrativas usualmente produzidas pelas interlocutoras da pesquisa sobre sua
relação com o cabelo ao longo de suas trajetórias de vida.

Recortando o problema de pesquisa

Este trabalho buscou investigar os processos de subjetivação e produção de


identidades relacionados a gênero, raça, política e estética, elegendo como recorte
empírico o mercado de beleza voltado para mulheres com cabelos crespos e cacheados e
a produção de discursos que valorizam estes tipos de cabelos. Nesta seção, busco articular
diferentes conjuntos de trabalhos que permitiram dar um enquadramento ao problema de
pesquisa, dos estudos sobre salões étnicos e processos de racialização àqueles voltados
para as relações entre consumo e política, passando também pelos trabalhos dedicados à
Internet e mídias digitais.
Desde o início da pesquisa, frisar a dimensão política do objeto empírico foi uma
preocupação e uma prioridade. Ainda que as Ciências Sociais e Antropologia tenham
passado por um processo de alargamento em relação aos objetos de pesquisa considerados
legítimos (PONTES, 2004), temas como moda, estética e beleza, em geral associados a
um pretenso “universo feminino”, ainda podem ser vistos como questões menores e
secundárias, que não merecem tratamento analítico. Reforço que a estética, e mais
particularmente, o cabelo, são objetos que nos permitem pensar sobre as relações entre
gênero, raça, consumo e produção de identidades e subjetividades, iluminando questões
políticas contemporâneas que dizem respeito a novas formas de atuação e demandas por
reconhecimento e representação e que perpassam as mídias digitais e as relações de
mercado.
O cabelo, em diversos contextos históricos e políticos, configura um dos
principais aspectos que materializa e corporifica o pertencimento étnico-racial dos
sujeitos. As diferentes texturas capilares, junto à cor da pele e as características faciais,
são vistas como sinais que marcam e diferenciam os corpos, racializando-os (GOMES,
2008). Esta operação cultural, longe de ser simétrica em termos de produção de
diferenças, está ligada a processos de racialização em meio a relações de poder desiguais.
24

No Brasil, as pesquisas sobre os salões étnicos realizadas por Ângela Figueiredo


(1994), Jocélio dos Santos (2000) e Nilma Gomes (2008) evidenciam as conexões entre
cabelos, raça e a produção de identidades e pertencimentos raciais. Estes
estabelecimentos, criados por e para pessoas negras, oferecem uma gama de
procedimentos e serviços aos cabelos crespos partindo da compreensão de que o cabelo
é elemento que eleva autoestima e a consciência racial da população negra. Esta
percepção dialoga com a militância negra, que toma o cabelo crespo símbolo de afirmação
de identidades negras.
Como vemos, a dimensão política da estética e dos cabelos não é exatamente um
aspecto academicamente intocado, sobretudo no âmbito dos estudos sobre relações raciais
e de gênero. No entanto, os estudos mencionados, realizados nos anos 90 e no início dos
anos 2000, não se debruçaram sobre o papel da Internet e das mídias digitais em relação
as discussões sobre estética e política. Isto porque, além de o acesso da população
brasileira à Internet e aos computadores pessoais ter sido muito restrito neste período, é
só mais recentemente os usuários adquiriram um papel mais participativo no
desenvolvimento de conteúdos online, com a criação de redes sociais como o Facebook,
Instagram e Youtube, plataformas de compartilhamento de textos, imagens e vídeos que
foram adaptadas para serem facilmente acessadas a partir de dispositivos móveis, como
celulares e tablets.
Desde o início dos anos 2000 até o presente momento, a Internet tornou-se um
espaço fundamental no que concerne ao debate público e à atuação política, especialmente
no que está relacionado à produção de identidades7. Tornou-se, também, um terreno
central para a proliferação de estilos e para a experimentação estética, possibilitando a
circulação de referências nesse âmbito e o surgimento de iniciativas de mercado voltadas
para determinados públicos consumidores8. Nesta tese, busco acompanhar as
transformações mais recentes relacionadas ao papel da Internet e das mídias digitais, que
assumem aqui um lugar central para a análise, distintamente dos trabalhos anteriormente
citados.

7
Pesquisas voltadas para o campo da Internet (HINE, 2000; MILLER, 2004b; RIFIOTIS, 2010; BELELI,
2012) ressaltam o caráter produtivo das interações online, destacando a relação de proximidade e
continuidade entre contextos online e offline. Sobre internet e produção de identidades e sujeitos políticos,
ver Carolina Parreiras (2007), Carolina Ferreira (2015) e Thiago Falcão (2017).
8
Pesquisas recentes produzidas no âmbito do Pagu - Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP e do
Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da USP apontam para esta proliferação. Em meu
mestrado (BETTI, 2014) observei como a Internet proporciona um espaço de discussão e reconhecimento
para pessoas que não se identificam com os padrões estéticos relacionados à forma física propagados pelas
mídias mais tradicionais.
25

Outro aspecto que coloca esta tese em diálogo com os estudos anteriormente
realizados sobre o tema desde uma perspectiva singular reside sobre o fato de que os
estudos sobre os salões étnicos debruçaram-se sobre a produção de uma estética negra e,
principalmente, sobre as experiências de mulheres negras com seus cabelos e com as
técnicas de cuidado e transformação dos fios crespos. Nesta tese, compartilho das mesmas
preocupações, sendo as mulheres negras, crespas ou cacheadas, personagens centrais no
campo analisado: suas experiências e dilemas, as questões políticas que colocam, bem
como as práticas que exercem sobre seus cabelos, são fundamentais.
Contudo, as mulheres brancas também aparecem como personagens no campo
analisado. Para além do fato de mulheres brancas também manipularem seus cabelos,
muitas interlocutoras cacheadas se identificam como brancas, e o mercado dirigido aos
cabelos crespos e cacheados também produz produtos e serviços dirigidos a elas, ainda
que não de forma explicitamente nomeada ou exclusiva.
Da mesma maneira, muitos salões especializados em cabelos crespos e cacheados
que surgiram nos últimos anos não se definem como salões étnicos e não são lidos pelo
público deste modo, mas, antes, como salões especializados em cabelos cacheados e
crespos naturais. É preciso dizer que os salões étnicos, ainda que focados nos cabelos
crespos, oferecem também serviços de alisamento e relaxamento.
Já os salões especializados em cabelos crespos e cacheados naturais alegam
oferecer serviços diferenciados em relação aos salões de cabeleireiro convencionais, onde
as técnicas dirigidas ao tratamento de cabelos lisos são aplicadas em quaisquer texturas
capilares, sem distinção. O marcador aqui, ou seja, o aspecto que os diferencia dentro do
mercado da beleza, não é o foco exclusivo na estética negra, mas sim a especialização em
texturas capilares crespas e cacheadas e a rejeição às técnicas de alisamento dos fios.
Os rótulos de produtos e ações de publicidade mais tradicionais da maioria das
marcas também trazem imagens de modelos brancas com cabelos cacheados. As
campanhas digitais das marcas, divulgadas em redes sociais como Instagram e Youtube,
são realizadas em parceria com influenciadoras digitais negras e brancas, que apresentam
diferentes texturas de cabelo, passando pelo crespo e cacheado, muitas vezes também
incluindo o ondulado. Ademais, alguns dos profissionais cabeleireiros que se tornaram
referência no mercado da beleza direcionado aos cabelos crespos e cacheados são
mulheres ou homens brancos que, além de serem proprietários de salões especializados,
ministram cursos de formação profissional para quem deseja trabalhar com cabelos
crespos e cacheados.
26

Essa particularidade da pesquisa permite tomar analiticamente dinâmicas de


conflito e de deslizamento entre categorias classificatórias relacionadas a cor e a raça,
seja no âmbito do mercado ou das consumidoras. Parte das interlocutoras desta pesquisa,
especialmente as que se identificam como negras e pretas, apontam por exemplo para a
existência de uma hierarquização das texturas capilares. Esta hierarquização, baseada em
uma racialização dos tipos de cabelos, se faz presente não só no contexto mais amplo da
sociedade brasileira, mas também nos próprios discursos de valorização do cabelo
natural.
O cabelo mais valorizado e desejado, e que aparece na maioria dos rótulos dos
produtos, nas ações publicitárias e nas campanhas digitais das marcas, é o que apresenta
cachos perfeitos e definidos, e não os cabelos crespos que não formam cachos e que
costumam ser mais volumosos. Ainda que a presença de mulheres negras tenha se tornado
mais comum nos espaços relativos ao mercado da beleza, em geral estas mulheres
possuem um tom de pele mais claro e cabelos que formam cachos – o que evidencia uma
preterição pelas mulheres que podem ser identificadas como pretas9 – e disputam o espaço
de visibilidade e reconhecimento com mulheres brancas.
Esta disputa é apontada, denunciada e tematizada por diversos atores que
compõem o campo analisado. Parte das consumidoras, influenciadoras digitais,
profissionais da beleza e ativistas pelo cabelo natural criticam as marcas e cobram, nos
espaços das mídias e dos eventos promovidos pelo mercado, uma maior presença ou
representatividade de mulheres negras com pele mais escura e cabelos crespos nas
campanhas publicitárias e ações de marketing criadas pelas marcas.
A disputa e a cobrança revelam não só uma hierarquia entre mulheres brancas e
negras, desafiando a ideia de que gênero é o único marcador que define a condição de
desigualdade das mulheres, mas coloca em cena deslizamentos e problemas de
classificação racial que envolvem pessoas cuja negritude é colocada sob suspeição ou
cuja aparência é lida como branca. No campo analisado, mulheres negras, embora
permaneçam personagens centrais, dividem a cena, especialmente no que concerne ao
mercado da beleza, com mulheres que são lidas como não-negras10 e como brancas.

9
A preterição das mulheres lidas como pretas é discutida mais amplamente em Mariza Correa (1996).
10
Utilizo o termo “não-negras”, ao lado do termo “brancas”, para atrair a atenção para os problemas de
classificação racial do mundo social que atravessam o campo da pesquisa: há pessoas, que, embora tenham
sua negritude colocada sob suspeição pelo olhar alheio, não se veem como brancas.
27

Se na esfera da política, as mulheres negras corporificam a autoridade da


experiência e se constituíram como os sujeitos politicamente autorizados a falar sobre
cabelo crespo e estética negra, no presente contexto, as mulheres brancas e não-negras se
tornaram interlocutoras das marcas que fabricam produtos para cabelos crespos e
cacheados. Do ponto de vista do mercado, o foco não são as mulheres negras, mas as
consumidoras que, a despeito da identificação racial, possuem texturas capilares que
variam entre o ondulado, o cacheado e o crespo.
Dessa maneira, interessou-me, nesta pesquisa, compreender não apenas a
construção de uma estética negra, mas também os deslizamentos entre mercado e política,
as ambiguidades e contradições entre a autoridade política e o lugar do consumo, e a
produção e difusão de categorias pelo mercado e pelas mídias digitais que se baseiam em
texturas capilares. Tratou-se de investigar processos que, ao mesmo tempo, marcam e
“desmarcam” pertencimentos raciais, que politizam e despolitizam diferenças,
classificações e identidades.
A dimensão política do objeto de pesquisa, longe de ser autônoma, não pode ser
compreendida como estando separada ou necessariamente em oposição aos atores do
mercado e às práticas de consumo empreendidas pelas distintas interlocutoras do estudo.
O fenômeno em questão perde sua complexidade se for analisado a partir de uma única
perspectiva: trata-se de um objeto que se constitui a partir de complexas relações entre
mercado, consumo e política, operadas por meio de articulações e tensões. O tema dos
cabelos e sua manipulação, no campo observado, também está relacionado à construção
de uma estética atrelada ao consumo de certos bens, à proliferação de marcas, produtos e
serviços especializados ou segmentados.
A perspectiva antropológica a respeito do consumo é um ponto de partida
fundamental para qualquer análise que pretenda se distanciar de leituras superficiais sobre
as motivações e as relações entre atores do mercado e consumidores. Mary Douglas e
Baron Isherwood (2009) foram pioneiros neste sentido, destacando a dimensão social do
desejo por bens e a existência de pressões e expectativas coletivas por trás dos padrões de
consumo. Marshall Sahlins (2000) também trouxe contribuições fundamentais ao elucidar
a relação dialética entre produtores e consumidores.
Mais recentemente, os debates em torno da construção de identidades, que
questionam concepções essencialistas em torno do conceito e a noção de sujeito
autocentrado (BUTLER, 2003; BRAH, 2006), têm interpelado as análises sobre o
28

consumo, possibilitando o desenvolvimento de pesquisas voltadas para processos de


produção e cristalização de diferenças por parte de consumidores e atores do mercado.
A partir do início dos anos 2000, diversos pesquisadores, como Livio Sansone
(2000), Peter Fry (2002), Isadora França (2007), Marcella Betti (2014), Mylene Mizrahi
(2015) e Gleicy Silva (2017), têm produzido reflexões relevantes a respeito da articulação
entre mercado, política e identidades. Abordando as práticas de consumo ou a emergência
de mercados específicos, tais pesquisas apontam para a proliferação de discursos que se
centram na autoestima, na possibilidade de visibilidade e inserção social e no
compartilhamento de identidades entre grupos discriminados ou socialmente
desvalorizados.
Em determinados contextos, como aquele da aproximação entre o movimento
LGBT+ e o mercado voltado a esse público analisada por Isadora França (2007) e do
trabalho das empreendedoras negras observadas Gleicy Silva (2019), os próprios atores
do mercado passam a se ver e a serem vistos como articuladores políticos, que, além de
compartilharem identidades com seu público consumidor, se engajam em ações
relacionadas à uma ideia de inclusão e à reinvindicação de cidadania.
Susannah Walker (2000) e Ayana Byrd e Lori Tharps (2014) explicam que, no
contexto estadunidense, do ponto de vista das cabeleireiras e empreendedoras negras, não
há uma contradição entre atuar no mercado da beleza e apoiar os movimentos negros11.
Da mesma forma, Nilma Gomes (2008) assinala que, no Brasil, muitas cabeleireiras
negras também se engajam em projetos de valorização da estética negra, em ações
filantrópicas e educacionais e têm seu trabalho reconhecido pela militância negra.
Ainda que o mercado e as práticas de consumo muitas vezes sejam abordados sob
uma crítica moral, que ressalta a apropriação de pautas políticas, a busca por lucro e o
incentivo a um consumo desenfreado, é preciso compreender que a atuação política,
especialmente com a popularização da Internet e das mídias digitais, não está limitada
apenas ao diálogo direto com o Estado e os movimentos sociais, uma vez que “[...] as
esferas do consumo também constituem cenários públicos em que nossa capacidade de
agência e ação política é exercida” (BRAZ, FACCHINI e FRANÇA, 2014).

11
Nos Estados Unidos, conhecidas profissionais da beleza negras, como Madam C. J. Walker e Annie
Malone, construíram uma atuação política importante no que concerne ao apoio que forneceram Movimento
pelos Direitos Civis e às ações filantrópicas e projetos educacionais que encabeçaram nas comunidades
onde estavam inseridas. Giovana Xavier (2021) aponta que Walker e Malone se utilizaram criativamente
de sua posição social de marginalidade e das conexões entre estética e política, transformando as práticas
de cuidado capilar em negócios altamente lucrativos.
29

Da mesma forma, não se trata de adotar um olhar inocente ou acrítico em relação


as práticas mercadológicas, pois o mercado, aqui, é também arena de circulação de
imagens que mobilizam fortemente convenções e hierarquias de raça e de gênero,
desafiando-as ou reforçando-as. Este é um importante aspecto que norteia as análises
deste estudo.

Questões éticas e metodológicas

Esta pesquisa utilizou-se, primordialmente, do método etnográfico. Como é cada


vez mais comum e imperativo aos estudos antropológicos contemporâneos, esta pesquisa
teve como base múltiplos locais e eventos de atuação e contextos em que as observações
e interações se deram presencial e remotamente, offline e online, dialogando com a
conceitualização de eventos de campo (AHLIN e LI, 2019)12. A investigação foi
realizada, de agosto de 2017 a outubro de 202113, em diversos espaços online e offline,
seguindo os trânsitos das interlocutoras e interlocutores e as relações entre marcas,
consumidoras, profissionais da beleza, influenciadoras digitais e pessoas que se
denominam como ativistas do cabelo natural.

a) Espaços online: influenciadoras, marcas e salões

A etnografia conduzida em espaços online abrangeu a observação e a análise de


canais no Youtube e de perfis no Instagram que produzem conteúdo sobre cabelos crespos
e cacheados. No Youtube, priorizei a análise dos canais de influenciadoras crespas e
cacheadas e no Instagram, priorizei acompanhar os perfis de marcas, de cabeleireiros e
salões especializados em cabelos crespos e cacheados.
As influenciadoras crespas e cacheadas que pude acompanhar durante a pesquisa
são mulheres jovens negras e brancas, na faixa dos 20 e 30 anos, que possuem canais no
Youtube e perfis no Instagram. Elas produzem vídeos e postagens com orientações e

12
As autoras propõem a noção de field events ao se darem conta de que noções como as de etnografia
multisituada (MARCUS, 1995) e de etnografia virtual ou digital (HINE, 2000) não eram suficientes para
explicar a complexidade do trabalho de campo desenvolvido em suas pesquisas.
13
Agosto de 2017 foi o mês em que iniciei o trabalho de campo comparecendo presencialmente a um evento
promovido por uma marca de produtos para cabelo e outubro de 2021 foi o período em que concluí o
acompanhamento de um curso online ministrado por um cabeleireiro.
30

tutoriais sobre como cuidar dos cabelos crespos e cacheados e com dicas a respeito de
produtos, técnicas e acessórios que podem ser utilizados para obter os melhores resultados
nos fios. Também fazem resenhas de produtos novos no mercado, apresentam os produtos
que recebem gratuitamente das marcas de cosméticos e fazem parcerias comerciais com
empresas e eventos do mercado da beleza, divulgando produtos e serviços às suas
seguidoras14.
Durante a pesquisa acompanhei diversos canais no Youtube produzidos por
mulheres crespas e cacheadas, como os de Gabi Oliveira15, Gleici Duarte16, Xan
Ravelli17, Rose Hapuque18, Sarah Oliveira19, Mari Vasconi 20, Mari Morena21, Jacy
Carvalho22, Rayza Nicácio23, Natály Neri24 e Ana Paula Xongani25. Ainda que nem todas
estas influenciadoras tenham como foco apenas o assunto cabelos, este tema está presente
de maneira relevante nos conteúdos que produzem e elas são publicamente reconhecidas,
no campo analisado, como referências importantes no quesito estética e cabelos. Estas
mulheres também possuem perfis em outras plataformas digitais, como o Instagram, onde
também as acompanhei.
Gabi Oliveira, Xan Ravelli, Rose Hapuque, Mari Morena, Jacy Carvalho, Rayza
Nicácio, Natály Neri e Ana Paula Xongani são mulheres que se identificam como negras
ou pretas e que possuem cabelos que variam do crespo ao cacheado. Sarah Oliveira, Mari
Vasconi e Gleici Duarte são mulheres que se identificam como brancas e que possuem
cabelos que variam do cacheado ao ondulado.
Embora seja possível analisar os conteúdos e as trajetórias das influenciadoras
crespas e cacheadas de modo individual, considerei fundamental, tendo em vista os
objetivos traçados para esta pesquisa, observar o trabalho produzido pelas
influenciadoras de um ponto de vista mais amplo. As influenciadoras constroem uma
espécie de rede a partir de suas atuações, produzindo conteúdos juntas, indicando os

14
Seguidores é um termo que se refere às pessoas que acompanham de perto o trabalho de influenciadores
digitais. Formam uma espécie de comunidade de fãs que seguem ou se inscrevem nos perfis e canais que
os influenciadores possuem nas plataformas digitais.
15
Disponível em <https://www.youtube.com/c/GabiDePretas>. Último acesso em 29/03/22.
16
Disponível em <https://www.youtube.com/c/gleiciduarte>. Último acesso em 29/03/22.
17
Disponível em <https://www.youtube.com/c/SoulVaidosa>. Último acesso em 29/03/22.
18
Disponível em <https://www.youtube.com/c/RoseHapuque>. Último acesso em 29/03/22.
19
Disponível em <https://www.youtube.com/user/SarahB612>. Último acesso em 29/03/22.
20
Disponível em <https://www.youtube.com/c/MariVasconi>. Último acesso em 29/03/22.
21
Disponível em <https://www.youtube.com/c/MariMorenaM>. Último acesso em 29/03/22.
22
Disponível em <https://www.youtube.com/c/JacyCarvalho>. Último acesso em 29/03/22.
23
Disponível em <https://www.youtube.com/c/Rayzanicacio>. Último acesso em 29/03/22.
24
Disponível em <https://www.youtube.com/c/NatalyNeri>. Último acesso em 29/03/22.
25
Disponível em <https://www.youtube.com/c/AnaPaulaXongani>. Último acesso em 29/03/22.
31

canais e perfis de umas das outras às suas seguidoras, fazendo parcerias comerciais com
as mesmas marcas e trabalhando nos mesmos eventos do mercado da beleza e campanhas
publicitárias de cosméticos.
O Youtube, plataforma online de hospedagem e compartilhamento de vídeos, não
exige que os usuários tenham um cadastro 26, um convite ou realizem algum pagamento
para acessar os conteúdos publicados. Qualquer pessoa com uma conexão de Internet
pode acessar o site ou o aplicativo da plataforma do computador, tablet ou celular, digitar
um assunto ou um nome no mecanismo de busca e encontrar uma infinidade vídeos sobre
o que deseja saber. Os vídeos de um canal em particular podem ser encontrados e
acessados através deste mecanismo de busca, por meio de uma sugestão da própria
plataforma ou ainda por meio de um link compartilhado.
Publicar um vídeo no Youtube, assim, significa colocar no ar um conteúdo de
caráter público e de fácil acesso. As pessoas que possuem canais no Youtube têm a
possibilidade de ganhar dinheiro, fama e reconhecimento público com a visualização de
seus vídeos e com as inscrições das pessoas que acompanham seus canais: quanto mais
visualizações e inscritos27, melhores resultados. A lógica da plataforma não é a
privacidade, e sim a visibilização, a divulgação e a publicidade dos conteúdos.
Por conta destes fatores, acompanhei os vídeos produzidos pelas youtubers
mencionadas considerando que estes conteúdos são públicos e que não seria necessária
nenhuma autorização especial para a realização de minhas análises. No caso de vídeos
que tiveram seu conteúdo analisado de maneira mais minuciosa, realizei procedimentos
como transcrição de áudio e screenshots da tela. Nos casos em que os screenshots exibiam
perfis e comentários de terceiros, de seguidoras dos canais, fotos, nomes e dados sensíveis
que poderiam identificar as pessoas foram ocultados, de modo a preservar suas
identidades.

26
Não é exigido cadastro exceto se a plataforma considerar que o conteúdo seja impróprio para menores
de 18 anos. Neste caso, para conseguir o acesso, é preciso realizar um login, para que a idade do usuário
seja verificada. Não discutirei aqui os critérios da empresa para estabelecer esta conduta, mas destaco que
em nenhum momento da pesquisa deparei-me com esta exigência.
27
Inscritos são os seguidores que assinam o canal. Esta assinatura não requer pagamento e possibilita que
que os inscritos recebam, por exemplo, alertas sobre quando novos conteúdos são publicados.
32

As marcas de cosméticos para cabelos cujos perfis no Instagram acompanhei mais


de perto foram Salon Line28, Seda29, Deva Curl30, Makeda31, Soul Power32, Inoar33, e
Lola Cosmetics34. Elas apresentam um perfil variado em relação à nacionalidade, atuação
no mercado e variedade e acessibilidade dos produtos fabricados, e por isso foram
selecionadas por mim.
Os conteúdos publicados pelas marcas em seus perfis nas mídias digitais
concentram-se, de modo geral, em apresentar suas campanhas e ações publicitárias, em
chamar a atenção para seus lançamentos, em ensinar às consumidoras como utilizar seus
produtos e em mostrar os resultados que seus produtos proporcionam aos cabelos crespos
e cacheados. Frequentemente as marcas também realizam publicações que não falam
diretamente sobre seus produtos, mas que procuram comunicar mensagens sobre seu
posicionamento de mercado, ressaltando sua identidade de marca e seus valores. Estas
publicações são variadas e podem mostrar apoio a causas e datas específicas, como, por
exemplo, o Dia Internacional das Mulheres, o Dia da Consciência Negra ou mesmo a
rejeição aos testes em animais realizados pela indústria da beleza. Há também as
postagens genéricas, que por vezes assumem um discurso de tom motivacional,
incentivando as consumidoras a amarem seus cabelos, sua aparência e a cultivarem sua
autoestima.
Algumas destas marcas investem pesadamente nas parcerias comerciais com
influenciadoras digitais crespas e cacheadas, convidando-as para serem suas

28
Salon Line é uma marca brasileira, que pratica preços populares, sendo facilmente encontrada em lojas
de cosméticos, supermercados e farmácias. Possui linhas de produtos destinados a diversos tipos de cabelos.
29
Seda é uma grande marca da companhia multinacional Unilever e pratica preços populares. É facilmente
encontrada em lojas de cosméticos, supermercados e farmácias e possui linhas de produtos destinados a
diversos tipos de cabelos.
30
Deva Curl é uma marca criada no Estados Unidos que desenvolve produtos exclusivamente voltados para
cabelos crespos, cacheados e ondulados. Seus preços são bastante elevados e ela é muito utilizada em salões
de cabeleireiro, embora também seja vendida para as consumidoras.
31
Makeda é uma marca nacional que fabrica produtos pensados para cabelos crespos e cacheados e que
possui preços um pouco elevados. Seus produtos podem ser comprados através da loja virtual própria ou
por meio de revendedoras que atuam em diversos estados do país.
32
Soul Power é uma marca nacional que desenvolve produtos exclusivamente voltados para cabelos
crespos, cacheados e ondulados. Ela é facilmente encontrada em lojas de cosméticos e pratica preços que
são considerados acessíveis por muitas consumidoras crespas e cacheadas.
33
Inoar é uma marca brasileira que fabrica produtos destinados a vários tipos de cabelos. Ela é facilmente
encontrada em lojas de cosméticos, farmácias e em algumas redes de supermercados. Trata-se de uma marca
que pratica preços considerados acessíveis. Ela exporta algumas de suas linhas para outros países do
continente americano e também para países da Europa.
34
Lola Cosmetics é uma marca brasileira que desenvolve produtos para diversos tipos de cabelos. Seus
produtos são facilmente encontrados em lojas de cosméticos, e, embora ela possua algumas linhas que
objetivam ser mais acessíveis, seus preços não são considerados populares pelas consumidoras.
33

representantes, contratando-as para apresentarem e resenharem seus produtos e, em


algumas ocasiões, chamando-as para colaborarem mais diretamente na elaboração de
novas linhas. Estas parcerias são compartilhadas tanto através dos perfis e canais das
próprias marcas quanto por meio dos perfis e canais das influenciadoras.
Embora não tenha sido uma prioridade acompanhar eventos relacionados
especificamente ao mercado da influência ao longo da pesquisa, tive a oportunidade de
observar, em 2020, um evento do gênero, produzido pela empresa Youpix, consultoria de
negócios relacionados à influência digital, denominado de Youpix Summit. O termo
mercado da influência refere-se, especificamente, às relações entre influenciadores,
marcas e atores que intermediam estas relações, como as agências que trabalham com
marketing e consultoria digitais. Como se tratou de um evento ocorrido durante o primeiro
ano da pandemia de COVID-19, foi realizado totalmente online e transmitido via
Youtube, o que me possibilitou acompanhar algumas de suas sessões.
No que se refere à pesquisa de campo nas mídias digitais, também merecem
menção os perfis de cabeleireiros e cabelereiras e de salões especializados em cabelos
crespos e cacheados. Durante a pesquisa observei, no Instagram, o trabalho de salões e
profissionais como: Garagem dos Cachos (da cabeleireira Sabrinah Giampá), Studio dos
Cachos (da cabeleireira Alessandra Feminella), Clínica dos Cachos (dos cabeleireiros
Rodrigo Nakamura e Denis da Silva), Paula Breder, Bianca Hulmann, Bruno Dantte e
Rodrigo Vizu. É preciso destacar que, em alguns casos, o profissional e seu salão se
confundem e integram um único perfil aberto na plataforma. Com exceção de Paula
Breder e do Studio dos Cachos, que atuam, respectivamente, no Espírito Santo e em Santa
Catarina, os outros profissionais e salões atuam em São Paulo ou no Rio de Janeiro.
Em seus perfis e produção de conteúdo na plataforma, os profissionais e salões
divulgam os tipos de cortes, tratamentos e outros serviços que executam nos cabelos
crespos e cacheados, publicando muitas fotos no estilo “antes e depois”, mostrando como
o cabelo da cliente chegou ao salão e como ficou após os procedimentos executados. Os
profissionais que ministram cursos sobre técnicas específicas para cabelos crespos e
cacheados também utilizam seus perfis para divulgarem estes cursos.
O tema da autoidentificação ou do pertencimento racial nem sempre é abordado
por estes profissionais, que em sua maioria – refiro-me aos profissionais aqui
mencionados – podem ser socialmente identificados como pessoas brancas ou não-
negras. Elas e eles, ainda que possam mencionar questões raciais e de gênero ligadas à
34

estética, realizam um esforço maior em ressaltar suas habilidades em trabalhar com as


diferentes texturas capilares crespas e cacheadas.
A mesma questão ética e metodológica relacionada aos vídeos e canais do Youtube
também se aplica em relação à plataforma Instagram. O Instagram é uma plataforma
online de compartilhamento de imagens, textos e pequenos vídeos que podem ser
facilmente acessados por meio de computadores, celulares e tablets conectados à Internet.
As marcas criam perfis abertos35 nesta rede com o objetivo de se tornarem ainda mais
visíveis aos consumidores, publicando informações sobre seus produtos, lançamentos,
realizando campanhas publicitárias, divulgando seus valores e reforçando (e disputando)
seu posicionamento do mercado. Os cabeleireiros e salões também criam perfis abertos
para divulgarem seu trabalho, procurando montar uma espécie de catálogo dos cortes e
procedimentos que executam para atrair mais clientes.

b) Espaços offline: feiras, eventos e cursos

A pesquisa etnográfica conduzida em espaços offline priorizou os eventos


relacionados ao mercado da beleza, como a Beauty Fair e os encontros promovidos por
marcas que produzem cosméticos para cabelos crespos e cacheados. A Beauty Fair, feira
de beleza dirigida aos profissionais do setor, é considerada o maior evento do gênero no
continente americano36 e ocorre uma vez por ano em São Paulo, normalmente no segundo
semestre, no centro de convenções Expo Center Norte, localizado na zona norte da cidade.
O evento reúne empresas e profissionais dos mais variados setores da indústria da beleza,
voltados aos cabelos, maquiagem, unhas e tratamentos estéticos para o rosto e corpo.
Durante os quatro dias de duração, os profissionais da área da beleza, mediante
um convite, pagamento de um ingresso ou compra de um dos cursos oferecidos, podem
circular pelos stands das marcas de cosméticos, conhecer os novos lançamentos de
produtos e as tendências do mercado da beleza, assistir palestras e conversar e fazer
negócios com os representantes e executivos das marcas presentes. Os cursos oferecidos
em geral são no formato de workshops teóricos e práticos, ministrados por profissionais
reconhecidos pelo mercado.

35
Um perfil aberto no Instagram significa um perfil que pode ser visualizado por qualquer pessoa. Um
perfil privado, fechado, por outro lado, significa que o conteúdo só pode ser visualizado se o perfil em
questão permitir, aceitando uma espécie de solicitação de amizade enviada pela pessoa.
36
Os números da Beauty Fair são impressionantes. Em 2018, por exemplo, a feira reuniu cerca 2 mil
marcas, foi visitada por mais de 182 mil pessoas e gerou 690 milhões de reais em negócios.
35

Realizei observação participante em duas edições da feira, nos anos de 2017 e


2018, e tive a oportunidade conhecer as marcas, assistir a apresentações sobre produtos,
conversar brevemente com alguns representantes das empresas e participar de cursos
ministrados por cabeleireiras especialistas em cabelos crespos e cacheados. Em 2017,
acompanhei o Workshop Cabelos Étnicos, ministrado pela cabeleireira Chris Oliveira, e
em 2018 acompanhei a Masterclass Cachos e Crespos, ministrada pela cabeleireira Kelly
Lopes: foi por meio da participação nestes cursos que pude circular pela feira. Em 2018
também participei de um evento adjacente promovido pela Beauty Fair, o Fórum Digital
para Profissionais da Beleza, um encontro destinado aos profissionais da beleza que tratou
da relação entre redes sociais, marcas e serviços de beleza.
Os stands das marcas, na Beauty Fair, nem sempre são acessíveis a todos os tipos
de público que frequentam a feira. Enquanto alguns locais são pensados para que
consumidoras possam circular livremente, outros são voltados para a visita de
cabeleireiros e lojistas, possuindo um espaço de negócios com os/as executivos/as da
marca. Há também os espaços onde só é permitida a entrada de influenciadoras digitais,
que em geral ganham sacolas repletas de produtos das marcas. É comum que nos espaços
de entrada mais restrita, o local é cercado por paredes, opacas ou de vidro, e as portas são
guardadas por seguranças e outros funcionários da marca, que controlam a entrada de
pessoas.
Embora minha circulação pela feira em si e pelos cursos que fiz tenha sido
relativamente fácil nos dois anos em que realizei pesquisa de campo no evento, minha
presença nos stands das marcas teve alguns percalços que valem a pena ser mencionados.
Em alguns espaços destinados a negócios, não pude entrar ou não consegui manter um
diálogo muito extenso com as pessoas presentes, que estavam focadas no atendimento de
clientes em potencial para sua marca. Nos espaços destinados às influenciadoras digitais
de uma marca específica, muito conhecida entre consumidoras crespas e cacheadas, fui
abordada pelos funcionários da marca por diversas vezes, de maneira um pouco ríspida
em algumas ocasiões. Eles me questionavam se eu também era influenciadora, pediam
para que eu mostrasse meu blog ou perfil no Instagram, e, quando eu explicava que era
pesquisadora, me respondiam vagamente que eu deveria falar com outra pessoa da marca
para ter minha presença autorizada. Como não me diziam com precisão quem seria esta
outra pessoa, ou só citavam um nome, eu acabava sendo obrigada a abordar diversas
pessoas com o uniforme da marca até conseguir uma autorização verbal. Consegui
contornar o problema nestas ocasiões, explicando, de maneira cuidadosa e paciente, que
36

minha pesquisa se tratava de um estudo acadêmico sobre o mercado para cabelos crespos
e cacheados, que a intenção era apenas acompanhar as palestras e não ganhar as sacolas
com produtos da marca.
Os encontros realizados ou patrocinados pelas marcas de cosméticos que fabricam
produtos para cabelos crespos e cacheados dos quais pude participar foram eventos muito
menores em comparação à Beauty Fair. O objetivo destes eventos é, a partir de uma
atmosfera de maior proximidade e intimidade, apresentar a marca e os produtos às
consumidoras, influenciadoras ou aos cabeleireiros, mostrando os lançamentos e
ensinando a como utilizar os produtos no salão ou em casa. Os encontros direcionados às
influenciadoras e consumidoras costumam ser divulgados nas redes sociais das marcas e
em geral têm a entrada franca, bastando solicitar uma vaga preenchendo um formulário
virtual ou enviando um email. Já os encontros pensados para atrair os profissionais, ao
contrário, muitas vezes pedem o pagamento de uma taxa de inscrição, requerendo uma
compra realizada via Internet. Durante a pesquisa tive a oportunidade de participar de
alguns eventos desta natureza, alguns deles promovidos pelas marcas mencionadas
anteriormente: não os menciono aqui porque, em algumas passagens da tese, os nomes
das marcas e dos eventos foram trocados por questões éticas.
Em adição aos eventos relacionados ao mercado da beleza, me mantive atenta, na
medida do possível, aos encontros promovidos por influenciadoras digitais e aos eventos
sobre diversidade racial e consumo da população negra promovidos por outros atores do
mercado, não necessariamente ligados ao mercado da beleza de forma direta.
Em fevereiro de 2019 pude participar de um pequeno encontro promovido pela
influenciadora Gleici Duarte e pela loja de produtos para cabelos ruivos Beleza Ruiva,
em Mogi das Cruzes. Alguns dias antes deste encontro, entrei em contato com Gleici por
meio de seu perfil no Instagram – onde ela anunciou o evento – e enviei-lhe mensagem
perguntando se ela concordava com minha presença no encontro. Gleici foi solícita e
disse-me que eu seria muito bem-vinda. O encontro durou poucas horas e foi difícil
manter uma conversa com Gleici, que tinha um tempo curto para ficar no local e
permaneceu cercada de seguidoras. Este foi o único encontro do qual pude participar,
uma vez que as influenciadoras digitais crespas e cacheadas são de diversos estados do
Brasil e nem sempre possuem agenda para marcarem encontros com seguidoras que
moram no estado de São Paulo.
Quanto aos eventos promovidos que tratam dos temas diversidade racial e/ou
consumo da população negra, eles foram importantes para a pesquisa na medida em que
37

me permitiram ter uma visão mais ampla das discussões sobre questões raciais
empreendidas por atores do mercado. Em 2018 e 2019 participei de quatro eventos deste
gênero. O primeiro deles foi lançamento da pesquisa “A Voz e a Vez – Diversidade no
Mercado de Consumo e Empreendedorismo”, realizado em novembro de 2018 na Praça
das Artes, no centro de São Paulo. O segundo, o Fórum Diversifique - Afro Consumo e
Inclusão Racial, também realizado em novembro de 2018, no Teatro Santander,
localizado no bairro da Vila Olímpia, região nobre da cidade. O terceiro evento foi o
seminário Raça e Mercado: uma transformação econômica, apresentado da Fundação
Getúlio Vargas, no âmbito da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, em
maio de 2019. Por fim, também compareci, em dezembro de 2019, à décima sétima edição
da Feira Preta, evento de caráter cultural, artístico e comercial direcionado a pessoas
negras, realizada no Memorial da América Latina. Em todos estes eventos, de alguma
maneira, discussões relacionadas aos cabelos e ao mercado da beleza acabaram
emergindo durante os debates. Ainda, em novembro de 2017 pude acompanhar um
encontro de dois dias promovido por Nanda Cury e Neomísia Silvestre, idealizadoras da
Marcha do Orgulho Crespo, no Sesc Interlagos, quando tive a oportunidade de conversar
com elas37.
Desde o início da investigação estava prevista a etnografia em salões
especializados em cabelos crespos e cacheados. A ideia era iniciar esta entrada em campo
nos primeiros meses de 2020, através dos contatos que eu vinha construindo com alguns
profissionais de salões especializados em cabelos crespos e cacheados. Todavia, este
processo foi interrompido pela pandemia de COVID-19, que obrigou pesquisadores a
pararem suas pesquisas de campo e cabeleireiros a fecharem seus salões a partir de março
de 2020 por conta das medidas sanitárias restritivas determinadas pelos governos.
De modo a tentar lidar com esta situação da melhor maneira possível, procurando
outros caminhos frente às limitações impostas, decidi participar, em 2020 e 2021, de
cursos online ministrado por alguns cabeleireiros que iniciaram empreendimentos
educacionais na área. Assisti a algumas aulas gratuitas, temporariamente hospedadas em

37
No início da pesquisa minha intenção era acompanhar de perto as edições da Marcha do Orgulho Crespo
na cidade de São Paulo, o que infelizmente não foi possível. Na ocasião da edição de 2017, estive presente
do Seminário Internacional Fazendo Gênero, em Florianópolis, apresentando uma comunicação relativa à
esta pesquisa. Nos anos de 2018 e 2019, não foram realizadas edições na cidade de São Paulo: no ano de
2018, a organização da Marcha comemorou a aprovação do projeto de lei que criou o Dia do Orgulho
Crespo e não saiu às ruas, e no ano de 2019 a página da Marcha no Facebook focou-se na divulgação da
Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, que ocorreu no fim do mês de julho e tratou de questões
relativas ao desmonte de direitos e violação de direitos humanos.
38

plataformas como o Youtube, e posteriormente participei de quatro cursos online pagos.


Por questões éticas, não explicito quais foram estes cursos e quais profissionais os
ministraram pois, em alguns casos foi solicitado, no momento da compra, uma
concordância em relação à não divulgar as técnicas e tratamentos específicos
desenvolvidos e ensinados por estes profissionais.
Dois destes cursos são direcionados às consumidoras e, em suas aulas, os
profissionais ensinam como estas devem cuidar dos cabelos crespos e cacheados, quais
tratamentos elas devem buscar junto aos seus cabeleireiros e quais produtos devem
utilizar em casa para obter bons resultados e um cabelo saudável. Tratam-se de cursos
mais simples, que não tratam de tópicos considerados avançados ou de técnicas de corte.
Ainda assim, eles contam com a assinatura dos profissionais e com a presença destes em
aulas gravadas e encontros síncronos.
Os outros dois cursos, por sua vez, são direcionados à formação de profissionais
cabeleireiros especializados em cabelos cacheados. Eles trazem aulas, gravadas e ao vivo,
ensinando e demonstrando técnicas de corte específicas para crespos e cacheados,
informações sobre as rotinas de cuidados e tratamentos direcionados estes tipos de
cabelos e também apresentam conteúdos sobre como montar e gerir o próprio salão e
como atrair mais clientes através do uso das mídias digitais. São cursos que abordam
tópicos considerados dos mais básicos aos mais avançados, que abrangem desde como
utilizar corretamente uma tesoura de corte a executar cortes de cabelo considerados mais
complexos. Cabe destacar que estes cursos profissionalizantes emitem certificados
assinados pelos profissionais e prometem ensinar tudo do zero, aceitando, inclusive,
alunos que nunca atuaram na profissão anteriormente.

(Re)pensando meu lugar

Minha experiência particular com algumas técnicas de alisamento, com o processo


de transição capilar e com o big chop despertaram meu interesse analítico para o tema e
impulsionaram o exercício de construir reflexões mais profundas. Ter experienciado
intimamente alguns dos processos aqui descritos, ser praticante de determinadas rotinas
de cuidados com o cabelo, ter tido contato prévio com repertórios caros ao campo
estudado e ter alguma familiaridade com parte das categorias êmicas me colocaram em
39

uma relação de proximidade com uma série de questões que foram fundamentais para o
desenvolvimento desta investigação.
Eu já tinha voltado aos cachos anos antes de ter iniciado a pesquisa e já era uma
praticante experiente das rotinas no poo e low poo, sendo também uma espécie de
consultora amadora para amigas que me pediam dicas sobre como cuidar dos cabelos
cacheados, como passar pela transição capilar e como iniciar as rotinas. Em campo, eu
consegui navegar com certa facilidade nos cursos, eventos e palestras e por vezes
auxiliava outras pessoas a compreenderem os tópicos que eram abordados nestas
ocasiões. Desde o início da pesquisa eu já tinha um repertório considerável quando o
assunto eram os métodos de alisamento, os produtos e técnicas específicos para cabelos
cacheados e as marcas atuantes no mercado brasileiro. Esta proximidade, certamente
vantajosa para que a pesquisa pudesse ser desenvolvida da maneira como feita, contudo,
também gerou dificuldades específicas, sobretudo no que diz respeito à escrita desta tese.
A proximidade e a familiaridade com determinadas categorias êmicas me obrigou
a rever e a reelaborar meu trabalho por diversas vezes. Em primeiro lugar, procurei
produzir um texto que explicasse, adequada e didaticamente, um universo de técnicas e
práticas com o qual uma parte das leitoras e leitores deste trabalho, ao contrário de mim,
não possuem familiaridade, contato ou mesmo interesse. Como tornar interessante e
instigante um diálogo sobre alisantes, técnicas de finalização e formulações de produtos
para cabelos? Como explicar as detalhadas classificações sobre os diferentes tipos de
cabelos não-lisos sem que isso pareça maçante ou irrelevante? Questões como estas me
assombraram durante a escrita deste trabalho e, de certa forma, ainda me rodeiam.
Em segundo lugar, procurei ao máximo definir limites entre minha voz e as vozes
do campo. Falar sobre temas que permeiam minhas experiências e conhecimentos prévios
foi difícil na medida em que, em muitos momentos, meus argumentos e explicações
confundiram-se com os discursos êmicos, como se eu estivesse automaticamente
encampando as narrativas produzidas em campo. Esta é uma questão que creio não ter
sido completamente resolvida, mas que procurei problematizar da maneira que foi
possível.
As questões e dificuldades decorrentes proximidade a familiaridade, todavia, não
esgotam as reflexões que pretendo realizar aqui. Durante a investigação outras questões
relevantes emergiram a partir dos trânsitos e das relações estabelecidas com os diferentes
interlocutores de pesquisa. Neste sentido, quem sou, minha aparência, minha figura
enquanto pesquisadora e minha posição em termos de gênero, raça e classe são dimensões
40

que estruturaram tanto o meu olhar para o campo quanto os olhares do campo dirigidos a
mim.
A posição do pesquisador/a, é preciso ressaltar, não é neutra e que o corpo do/a
pesquisador/a não é mero acessório, mas, ao contrário, é marcado em campo. O modo
como o/a pesquisador/a é percebido em termos de gênero, sexualidade, raça, classe e
geração é parte constituinte da pesquisa, de sua inserção no campo analisado e de sua
interação com os interlocutores.
Na pesquisa que realizei no mestrado (BETTI, 2014), com interlocutoras que se
identificavam como gordinhas ou gordas, minha forma física era objeto de comentários,
especulações e questionamentos e interferiu significativamente na maneira como fui
recebida e tratada durante a realização da investigação. Uma interferência que, longe de
ser impeditiva ou restritiva, atuou de maneira produtiva, possibilitando-me realizar o
estudo a partir de um lugar determinado, afastado de pretensões irreais de neutralidade.
As interlocutoras desta época, em sua maioria mulheres brancas, jovens e de classe
média como eu, me caracterizavam como magrinha, e embora esta marcação não tenha
atuado de forma negativa, tendo, com o passar do tempo, deixado de ocupar um lugar tão
primordial nas relações em que construí em campo, ela nunca foi esquecida em nenhum
momento da pesquisa – nem por mim, nem por elas. Durante a realização da pesquisa,
distanciamentos e proximidades marcaram meus trânsitos e relações neste campo.
Todavia, especialmente em relação à questão do pertencimento racial, olhando
retrospectivamente, realizei a pesquisa de mestrado e experimentei aquele campo a partir
de um lugar racial não-marcado. O fato de eu me perceber e ser socialmente percebida
como uma pessoa branca não foi problematizado por mim ou pelas interlocutoras. Minha
experiência pessoal com a interrupção dos alisamentos e a transição capilar, inclusive,
ocorreu durante a realização desta pesquisa, e este processo não foi tão marcante no
contexto dos trânsitos e relações que estabeleci neste campo.
Ainda que desde o mestrado eu estivesse familiarizada com a abordagem
construcionista das interseccionalidades (PISCITELLI, 2008; PRINS, 2006), sobretudo
abordagens como as de Anne McClintock (2010), que priorizam a análise da articulação
entre múltiplas categorias sociais de diferenciação, na construção do projeto de doutorado
percebi que tinha pouca familiaridade com as análises empreendidas por intelectuais
negras e com a crítica a um suposto caráter universal da categoria “mulher”.
Reconhecendo uma lacuna importante em minha formação e em minha atuação
como pesquisadora, considerei que o meu conhecimento com relação às perspectivas
41

interseccionais construcionistas estava muito longe de ser suficiente para o


aprofundamento da pesquisa de doutorado e para o desenvolvimento das questões de
pesquisa que viriam emergir ao longo do tempo.
No primeiro semestre de 2017, primeiro ano do doutorado, fiz a disciplina
“Fundamentos em Estudos de Gênero I: pensamento pós-colonial, decolonial e
feminismos”, ministrada pela professora Adriana Piscitelli e pelas pesquisadoras Natália
Corazza Padovani e Carolina Branco de Castro Ferreira, que trouxe ao debate as
produções intelectuais diversas feministas negras brasileiras e estadunidenses. Neste
período, paralelamente à leitura da bibliografia indicada na disciplina, também iniciei um
processo de revisão bibliográfica sobre gênero, raça e feminismos negros.
No semestre seguinte, assisti a dois debates do evento Gritem-me negra!,
promovido pelo Sesc Pompeia, que trouxe como convidadas ativistas e intelectuais negras
cujo engajamento nos debates sobre desigualdades de gênero e raça nas mídias digitais é
relevante. O primeiro deles, “Mídias sociais como ampliação dos lugares de fala”, contou
com a participação das arquitetas Joice Berth e Stephanie Ribeiro, da assistente social
Lúcia Xavier e da cientista social Juliana Borges, e suscitou um debate sobre a atuação
política de mulheres negras no âmbito das redes sociais, destacando a questão da
visibilidade que os espaços online trazem. O segundo debate, “Empreendedoras negras e
redes de solidariedade entre mulheres negras”, teve como participantes a empresária
Adriana Barbosa e as estilistas Loo Nascimento e Ana Paula Xongani. A conversa
priorizou a relação entre população negra, mercado e consumo, problematizando questões
como as dificuldades enfrentadas pelas empreendedoras negras em seus negócios.
Adriana é uma figura que, embora não atue diretamente com a questão do cabelo, se faz
presente em diversas discussões que permeiam meu campo de pesquisa e participou de
alguns eventos em que fiz trabalho de campo. Ana Paula, criadora de uma marca de
roupas que leva seu nome, também é youtuber, fala sobre estética negra em suas mídias
digitais e em 2019 tornou-se embaixadora da marca de cosméticos para cabelos Salon
Line.
A partir de diferentes recortes, a leitura de obras de feministas negras e os debates
mencionados que pude acompanhar presencialmente colocaram-me provocações em
relação ao modo como eu me posicionava enquanto pesquisadora e ao modo como eu
percebia e tratava as questões que emergiam a partir da pesquisa de campo. De início,
este movimento me causou bastante desconforto, obrigando-me a pensar sobre aspectos
42

a respeito de minha presença, minha formação e atuação enquanto pesquisadora sobre os


quais eu ainda não havia problematizado seriamente.
Autoras como Patricia Hill Collins (2012), Angela Davis (2016), bell hooks
(2015), Lélia Gonzales (1984) e Sueli Carneiro (2003), apontam para os limites das
perspectivas mais universalizantes no interior dos feminismos, que pouco reconhecem as
articulações entre gênero e outras categorias, como raça e classe social, na produção de
diferenças e de desigualdades, e sublinham a necessidade de problematizar as posições
sociais estruturalmente hegemônicas, desnaturalizando-as e situando-as enquanto
posições particulares, que não necessariamente representam as demandas e reivindicações
de mulheres racializadas.
Por sua vez, Suzana Maia (2012), Valeria Corossacz (2014) e Lia Schucman
(2014) demonstram como a condição de ser branco/a ainda é pouco problematizada e
interpelada em pesquisas realizadas no âmbito das Ciências Sociais e da Psicologia
Social. As autoras apontam que a condição de branco/a, que constitui uma posição
estrutural de privilégios sociais, econômicos e políticos no Brasil, em geral é tida como
norma, ou seja, como uma condição social transparente e não interrogada pelos próprios
sujeitos, e assinalam a importância de se colocar tal posição como objeto de
questionamento e de análise.
Nesta pesquisa sobre o mercado para cabelos crespos e cacheados, minha
experiência como pesquisadora foi construída de maneira diferente em relação à minha
pesquisa anterior, trazendo um foco sobre meu pertencimento racial, que, do ponto de
vista analítico e político, não é uma posição de neutralidade. Atribuo esta experiência
“diferenciada” a pelo menos duas questões, que estão imbricadas. Em primeiro lugar, o
objeto de pesquisa é bastante politizado, evidenciando a importância da estética negra e
a desigualdade entre mulheres negras e brancas. Em segundo lugar, o cenário em que esta
pesquisa se desenrolou trata de contexto político particular, marcado por uma maior
visibilidade da atuação ativistas negras e feministas dentro e fora das universidades,
sobretudo em espaços de discussão pública como as mídias digitais (RIOS e MACIEL,
2017).
Este conjunto de questões obrigou-me a (re)pensar, de modo mais ativo e
comprometido, minha posição social de mulher branca enquanto pesquisadora que
escolheu investigar um tema caro a ativistas negras e feministas. Este exercício, posso
afirmar seguramente, de maneira alguma é fácil ou confortável, mas é mais do que
necessário analítica e politicamente. Ele não pode ser feito apenas pelas pesquisadoras
43

que são racialmente marcadas no ambiente da universidade e em seus campos de


pesquisa.
De início tive muita dificuldade de inserir minha própria presença nos textos que
estava produzindo sobre a pesquisa. Era como se eu fosse transparente diante do campo
e das relações nas quais eu estava me inserindo. Parecia que eu não estava presente nos
cenários que estava descrevendo. Embora não fosse minha intenção posicionar-me desta
maneira, como se tivesse observando tudo à distância, isto acabou acontecendo.
Na realidade eu temia, de modo não-verbalizado, que meu interesse a respeito do
tema fosse lido como uma tentativa de (mais) uma pessoa branca falar sobre um tema que
não lhe pertence. Pensando na maneira como o conceito de lugar de fala às vezes é
acionado nas discussões empreendidas nas mídias digitais, meu temor era de que eu fosse,
de alguma maneira, apontada como alguém que estaria ultrapassando o próprio lugar de
fala. Ironicamente, isto me levou, durante algum tempo, para um lugar de paralisia, e não
de reflexividade, como é o desejável.
Isabela Oliveira e Fernanda Sousa (2020), ao compartilharem sua experiência de
ministrar um curso sobre masculinidades, assinalam que é preciso cuidar para não
esvaziar categorias como lugar de fala, conceito hoje popularizado a partir de reflexões
como as de Djamila Ribeiro (2017). Sousa e Oliveira alertam sobre os problemas em
considerar que certos temas só podem ser discutidos por determinados sujeitos,
argumentando que a ideia de lugar de fala, longe de interditar a participação nos debates,
demanda que os sujeitos se situem e se posicionem, promovendo a diversificação e o
reconhecimento de múltiplas vozes.
O conceito assim, está relacionado a um empreendimento reflexivo, que demanda
questionamentos sobre como falar, como se posicionar e em que momentos é prudente se
colocar em uma postura de escuta. A elaboração conceitual de Eric Fassin (2021) sobre o
que ele denomina de paradoxo majoritário é bastante produtiva para compreender no que
consiste este empreendimento reflexivo. A ideia de paradoxo majoritário foi inspirada
pelo conceito de paradoxo minoritário, de Joan Scott (1996): as mulheres e outras
minorias, em suas demandas políticas, se colocam publicamente enquanto sujeitos
minoritários para justamente poder sair deste lugar. No caso do paradoxo majoritário,
trata-se de, ao contrário, nomear a posição majoritária para jogar luz sobre ela e questioná-
la.
Apoiando-se em algumas propostas da epistemologia feminista (HARAWAY,
1995; SCOTT, 1996) e do feminismo negro (COLLINS, 2016), Fassin mostra como é
44

possível discutir sobre questões minoritárias desde uma posição majoritária, situando-se
enquanto sujeito e desnaturalizando os aspectos políticos de tal posição. Não se trata de
falar pelos grupos minoritários ou de ocupar o lugar destes, e sim de levar a sério as
propostas feministas e feministas negras a partir de uma perspectiva que é, a princípio,
majoritária.
A dificuldade em me situar em meus próprios textos foi aos poucos sendo
amenizada principalmente a partir dos diálogos empreendidos com minha orientadora e
com as/os pesquisadoras/es negras/os que são parte do grupo de orientação, cujas análises,
sugestões e problematizações foram essenciais no desenvolvimento desta pesquisa. Estas
análises, sugestões e problematizações me ajudaram a sair do lugar de paralisia e a pensar
mais criticamente sobre minha atuação e presença em campo, bem como sobre as
questões de pesquisa que se apresentavam a mim.
As oportunidades de trabalho em grupo e de diálogo entre pesquisadoras/es com
pertencimentos distintos, particularmente no que se relaciona a raça, são em parte também
um resultado positivo das políticas de ação afirmativa na universidade, e particularmente,
do estabelecimento de cotas étnico-raciais nos programas de pós-graduação do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. É preciso frisar como esta reivindicação
política traz um potencial transformador não apenas para os próprios estudantes e
pesquisadores que são colocados em posições racializadas, mas também para todo o
contexto de produção de conhecimento e de interlocução acadêmica e política entre
estudantes, docentes, pesquisadores e outros atores no âmbito da universidade.
A importância das cotas étnico-raciais em programas de pós-graduação vai muito
além de possibilitar a mera presença física de estudantes e pesquisadores negros/as. Grada
Kilomba (2018), ao problematizar os conceitos de conhecimento e ciência, argumenta
que as universidades e a academia não são espaços neutros, e sim espaços de poder e
autoridade racial das pessoas brancas. Historicamente, acadêmicos/as brancos/as têm
elaborado discursos que circunscrevem as pessoas negras como “o outro”,
desqualificando as vozes de intelectuais negros/as e controlando as estruturas que validam
e legitimam o conhecimento científico.
Trata-se de uma operação de caráter relacional em que vozes negras são
desqualificadas e julgadas como “pouco científicas”, “parciais” e “específicas”, sendo,
consequentemente, silenciadas, enquanto vozes brancas, por oposição, são definidas e
legitimadas como “neutras”, “imparciais” e “universais”. Stephanie Lima (2019), em sua
tese de doutorado sobre as recentes formas de atuação política entre estudantes e
45

pesquisadores negros/as no contexto da universidade pública, aponta como a noção de


epistemicídio (CARNEIRO, 2018) – que problematiza a desqualificação e o
silenciamento de vozes negras – e a luta pelo protagonismo na produção de conhecimento
são pautas fundamentais no que concerne à atuação político-acadêmica de seus
interlocutores.
Assim, a política de cotas étnico-raciais, bem como, consequentemente, a atuação
e produção acadêmica de pesquisadores/as negros/as, desestabilizam as ideias de
neutralidade, imparcialidade e objetividade científicas, promovendo o reconhecimento de
que todos falam a partir de um tempo e lugar específicos e sofisticando os debates sobre
política, academia e produção de conhecimento. Trata-se de um esforço coletivo de
ampliar olhares, metodologias de pesquisa e perspectivas teóricas, que evidencia
processos de silenciamento e resistência.
Na medida em que pesquisadores/as negro/as intensificam sua atuação,
tensionando as estruturas tradicionais de legitimidade e validação do conhecimento,
pesquisadores/as brancos também são interpelados a se posicionarem e a reverem o modo
como teorizam, escrevem e produzem. Esta revisão instiga a reflexão sobre a
interseccionalidade entre as categorias de diferença e desigualdade não apenas com
relação aos temas de pesquisa, mas em relação à sua própria atuação enquanto
pesquisador/a e produtor/a de conhecimento científico.
Conversando com colegas pesquisadores/as, percebemos o quanto uma noção
instrumentalizada do conceito de lugar de fala e uma enunciação pura e simples do lugar
racial, de gênero e de classe do indivíduo tornou-se comum em variados contextos
acadêmicos, como eventos, congressos e publicações. Homens e mulheres, em geral
brancos, e especialmente aqueles que se encontram em posições mais proeminentes ou
tradicionais da estrutura acadêmica – mas não só – parecem pensar que é suficiente fazer,
no início de suas falas ou textos, declarações como “eu, como mulher/homem
branca/branco, falando deste lugar...”, como se o ato de assinalar sua posição produzisse
um efeito imediato de transformação.
Enunciar o lugar de onde se fala, pura e simplesmente, apesar de ser um ato
importante e novo para muitos, não pode ser um fim em si mesmo e nem esgotar um
exame crítico sobre as relações entre política, academia e produção de conhecimento.
Como Eric Fassin (2021) argumenta, não se trata de uma confissão de culpa ou da
expiação de privilégios, e sim de produzir um pensamento crítico em primeira pessoa,
tornando os desconfortos sentidos em desconfortos produtivos e responsáveis – a ideia de
46

responsabilidade, aqui, é trazida pelas reflexões de Donna Haraway (1995) sobre a


produção de conhecimentos situados.
A enunciação, por si só, não responde adequadamente aos tensionamentos,
provocações e questionamentos que emergem dos debates e não desestabiliza as
estruturas de validação e autoridade que ainda regem os espaços acadêmicos. O modo
como se desenha as pesquisas, as metodologias, as perspectivas teóricas e o valor
atribuído à experiência e à subjetividade precisam ser criticamente analisados, bem como
as relações de pesquisadores/as brancos/as com pesquisadores/as e interlocutores/as
negros/as deve ser de interlocução (no sentido de diálogo), não de objetificação 38.

Organização da tese

Este trabalho encontra-se organizado a partir de cinco capítulos temáticos e de


uma conclusão geral em Considerações Finais.
O Capítulo 1, denominado “CABELO, ESTÉTICA E DESIGUALDADES”, situa
a questão dos cabelos e da estética em relação aos sistemas de desigualdade, como o
racismo, discutindo que lugar os cabelos crespos ocupam nos discursos científicos,
técnicos e mercadológicos, bem como nos discursos de valorização da estética negra.
Ainda, este capítulo discute a questão da discriminação racial relacionada aos cabelos
crespos, discutindo casos específicos analisados durante a pesquisa e o papel das mídias
digitais no espraiamento dos debates sobre racismo e desigualdades.
O Capítulo 2, denominado “O INTERESSE DO MERCADO”, situa o mercado
de produtos para cabelos dentro de um cenário mais amplo, em que parte do mercado em
geral tem mobilizado debates sobre temas raciais e a noção de classe média negra para
discutir consumo e diversidade. Este capítulo também problematiza a questão da
heterogeneidade do mercado voltado para os cabelos crespos e cacheados e traz uma
comparação entre quatro marcas que compõem este segmento: Seda, Salon Line, Deva
Curl e Makeda.
O Capítulo 3, intitulado “MARCAS E REPRESENTATIVIDADE”, trata de
analisar como certas categorias chave do campo, como representatividade, transitam de
maneira tensa e complexa entre mercado e política, sendo disputadas e compartilhadas

38
Compreendo, a partir da leitura de Grada Kilomba (2018), que o processo de objetificação compreende
descrever, classificar e desqualificar - ou mesmo desumanizar - o interlocutor.
47

por diferentes atores do campo, como marcas, profissionais da beleza, consumidoras,


influenciadoras digitais e ativistas pelo cabelo natural. Discuto esta problemática à luz
de cinco casos específicos, a saber: “A primeira influenciadora com dreads do Brasil”,
“Cuidando do couro cabeludo”, “Escureceram a modelo?”, “O lançamento do alisante” e
“Orgulho Crespo?”.
O Capítulo 4, intitulado “AS MÍDIAS DIGITAIS E AS INFLUENCIADORAS
CRESPAS E CACHEADAS”, traz para a discussão o papel proeminente das
influenciadoras digitais crespas e cacheadas no campo estudado. Abordo aspectos gerais
de seu trabalho, sua relação com o feminismo negro e com o mercado da beleza e os
empreendimentos nos quais se engajam.
O Capítulo 5, denominado “TÉCNICAS, TEXTURAS E CLASSIFICAÇÕES”,
busca apresentar e problematizar as práticas, técnicas e saberes relativos aos cabelos
crespos e cacheados que são produzidos e que circulam entre os distintos atores do campo
estudado, como as práticas de alisamento, a transição capilar, as novas rotinas capilares
e as classificações dos tipos de cabelos. Este capítulo também discute a importância
política da ideia de cabelo natural e da produção de uma estética negra particular.
48

CAPÍTULO 1 – CABELO, ESTÉTICA E DESIGUALDADES

1.1 – O cabelo como objeto do interesse antropológico

O cabelo não é somente um fato biológico. Ainda que pareça ser apenas um mero
aspecto natural dos corpos, eles mesmos artefatos humanos (MOORE, 1997), o cabelo é
sempre manipulado e modificado por meio de práticas cotidianas de higiene,
embelezamento e ornamentação. Estas práticas socializam o cabelo, tornando-o um meio
que comunica declarações sobre o “eu” e a sociedade (MERCER, 1987).
O cabelo é um elemento do corpo humano de fácil manipulação. Pode ser cortado,
trançado, preso, tingido, raspado, ocultado por véus e turbantes, adornado com extensões
e perucas ou mesmo deixado crescer por longos períodos. Os modos de usar o cabelo
muitas vezes sinalizam distinções entre os gêneros, a posição social ocupada, a faixa
etária, a religião e as mudanças de status ao longo da vida.
Os significados suscitados pelos penteados são múltiplos e contextuais. Cabelos
longos podem ser associados à feminilidade e à sensualidade, mas podem também
simbolizar a masculinidade e força dos guerreiros. Cabelos raspados podem sinalizar uma
conexão com o sagrado, processos de purificação, abnegação religiosa ou ainda o
apagamento de identidades subjetivas e coletivas. Cabelos podem ser cobertos com
toucas, véus e turbantes para sinalizar modéstia, para expressar o pertencimento étnico-
racial ou para facilitar a higiene em determinadas atividades. Os significados aqui
mencionados não esgotam todos os sentidos associados a estes modos de se utilizar os
cabelos, mas nos trazem uma breve ideia da diversidade de usos, funções e simbologias
historicamente construídas.
O tema dos cabelos está presente em autores clássicos da Antropologia, que
compreendem, de modo geral, o cabelo e o ato de manipulá-lo como carregados de
simbolismos e como marcadores de determinados status e fronteiras socialmente
relevantes. Para Edmund Leach (1983) a manipulação dos cabelos está ligada a
comportamentos rituais que perpetuam simbolismos de ordem pública: os penteados e
rituais do cabelo, longe de expressarem estados individuais dos sujeitos envolvidos,
transmitem significados socialmente compartilhados, em geral marcando rituais de
passagem e de mudança de status. Mary Douglas (2010), em seu trabalho sobre rituais de
pureza, argumenta que o cabelo - junto a outros fragmentos ou fluidos corporais, como
49

as unhas e o sangue - é investido de poder e perigo por se tratar de um elemento marginal


que pode colocar em risco os limites do corpo e os limites da própria ordem social.
De acordo com Ayana Byrd e Lori Tharps (2014), o cabelo era considerado um
elemento sagrado entre diversos povos da costa oeste do continente africano, como os
Yoruba, os Mende e os Wolof39, sobretudo no que tange ao período pré-invasão europeia.
Por ser o ponto mais alto do corpo, em conjunto com a cabeça, o cabelo era considerado
como mais próximo do divino e portador de qualidades espirituais. Os cabeleireiros
possuíam um papel proeminente nestas sociedades justamente por cuidarem de uma parte
do corpo tão importante e revestida de significados:

Porque o espírito de uma pessoa supostamente está aninhado no cabelo,


o cabeleireiro sempre tem um papel especial na vida em comunidade.
O cabeleireiro frequentemente era considerado o indivíduo mais
confiável em uma sociedade. A complicada e demorada tarefa de
arrumar o cabelo incluía lavar, desembaraçar, aplicar óleos, trançar,
torcer e/ou decorar o cabelo com diversos adornos como tecidos,
miçangas e conchas. O processo podia levar inúmeras horas, às vezes
vários dias. (p.5)

O cabelo, para além das práticas de manipulação e dos significados ligados ao


sagrado, é também um dos principais aspectos que materializa e corporifica o
pertencimento étnico-racial dos sujeitos em diversos contextos históricos, sociais e
políticos. Nilma Gomes (2008) destaca que “no caso dos negros, o cabelo crespo é visto
como um sinal diacrítico que imprime a marca da negritude no corpo” (p.25). Esta
operação cultural, longe de ser neutra ou de unicamente marcar diferenças, está ligada a
processos de racialização em meio a relações sociais de poder.
O cabelo crespo, valorizado e alvo de uma série de cuidados desenvolvidos pelas
mais variadas sociedades africanas ao longo dos séculos, é tornado, pela visão colonialista
europeia, um elemento indesejado e um sinal de uma suposta inferioridade racial. Tratam-
se de visões e percepções opostas sobre os cabelos crespos que, longe de serem questões

39
Ainda que as autoras mencionem estes e outros povos da costa oeste da África, em diversos momentos
elas simplesmente utilizam o termo “africanos” para fazerem afirmações mais genéricas sobre a questão da
proeminência social, cultural e religiosa do cabelo entre as distintas sociedades africanas. Ressalto que
menções genéricas à “África” e às “sociedades africanas”, ainda que possam parecer pouco precisas à
primeira vista, são politicamente relevantes no campo estudado. Elas possibilitam a (re)construção de
narrativas de origem e ancestralidade, que são mobilizadas, sobretudo, pelas interlocutoras negras que se
identificam com pautas relacionadas ao antirracismo e ao feminismo negro.
50

de gosto ou de opinião, são parte de processos que devem ser localizados historicamente
e compreendidos a partir de seus usos políticos.
O racismo científico e a indústria da higiene, neste cenário, são discursos que
importam na medida em que endossaram a visão colonialista, produzindo estigmas em
torno dos cabelos crespos e da pele negra, estigmas que ainda persistem e que podem
aparecer sob uma outra roupagem no contexto contemporâneo, como discuto na próxima
seção.

1.2 – Ciência, racismo e a indústria da higiene e da cosmética

O racismo científico, doutrina que foi desenvolvida na Europa entre os séculos


XVIII e XIX, tomava certas diferenças anatômicas, como a cor da pele, o formato do
crânio e a textura do cabelo, como sinais de superioridade ou inferioridade racial. Esta
doutrina acreditava na existência de uma escala hierárquica de raças humanas, onde os
brancos europeus estavam na posição mais evoluída e os povos colonizados – ameríndios,
aborígenes, africanos e asiáticos – nas posições mais inferiores.
Nas teorias raciais contrastava-se, em especial, a posição de brancos europeus e
negros africanos. Enquanto os primeiros representavam a superioridade racial, a
civilização, o valor humano e a referência da verdadeira beleza, os segundos
representavam, em oposição, a inferioridade racial, a animalidade, a degeneração e a
negação absoluta da beleza.
Nesta hierarquia, as mulheres negras eram particularmente retratadas como a
figura mais inferiorizada, associada à anormalidade, ao atavismo e à hipersexualização
(AHMED, 2002; BRAGA, 2015; GILMAN, 1985; MCCLINTOCK, 2010). As mulheres
negras, neste contexto, foram retratadas como a alteridade radical em relação ao corpo
masculino branco e europeu e também foram utilizadas para definir a posição ambígua
das mulheres brancas, especialmente as de classes privilegiadas: ainda que a mulher
branca fosse considerada inferior ao homem branco, era considerada como parte da raça
superior e seu corpo encarnava valores como a beleza, a castidade, a virtude e a modéstia
(AHMED, 2002).
As características físicas de pessoas negras, como a pele escura e os cabelos
crespos, foram profundamente estigmatizadas pelo o olhar branco colonizador. Isto
evidencia como o racismo não pode ser separado de sua dimensão estética, na medida em
51

que “distinções de valor estético, 'bonito/feio', sempre foram centrais para a forma como
o racismo divide o mundo em oposições binárias em seu julgamento do valor humano.”
(MERCER, 1987, p.35, tradução livre).
O racismo científico, como argumenta Anne McClintock (2010), proliferou-se
através da literatura médica, científica e antropológica, dos relatos de viajantes e dos
romances. Isto significa que seu alcance não era tão amplo, pois tais obras eram acessíveis
apenas às elites letradas das metrópoles e das colônias. A doutrina que se massificou de
verdade foi o que a autora denomina como racismo mercantil, o qual se traduz na
divulgação das ideias de superioridade e inferioridade racial através das propagandas e
mercadorias de uso cotidiano, mais acessíveis à massa de trabalhadores. Esta operação,
realizada no decorrer do século XIX através das propagandas e das mercadorias advindas
dos impérios, distribuiu o racismo evolucionista numa escala inimaginável até aquele
momento.
McClintock explica que o principal produto neste contexto de mercantilização e
massificação do discurso racista foi o sabão. É na Inglaterra do século XIX que explodem
a produção e a venda do sabão, um item até então escasso e pouco valorizado. Neste
período, com a concorrência de outras nações que estavam se industrializando, a
Inglaterra passa a comercializar seus produtos industriais adotando estratégias
consideradas mais agressivas, como a propaganda massiva, que era divulgada não apenas
em seu próprio território como também em suas colônias.
As propagandas de sabão de marcas inglesas apresentavam uma narrativa e uma
iconografia racistas em que pessoas negras eram associadas à sujeira e à selvageria e as
pessoas brancas, em oposição, eram associadas à limpeza e à civilização. McClintock
realiza um trabalho de análise destas propagandas apontando que o sabão é apresentado
como item mágico capaz de “limpar a raça” e de transformar “selvageria” em
“civilização”: em algumas destas propagandas, esta narrativa aparece de maneira mais
explícita, pois mostram crianças negras tornando-se brancas após o ritual de limpeza com
o sabão.
Os discursos racistas, contudo, não se limitam às propagandas de sabão do século
XIX. Há uma continuidade entre o passado e o presente, e uma certa permeabilidade entre
as concepções da indústria da higiene e da limpeza e as concepções da indústria da beleza.
Higiene, limpeza e beleza têm suas fronteiras borradas e seus significados podem se
aproximar: estas qualidades são todas associadas à brancura. Ainda em sua análise sobre
as propagandas de sabão do século XIX, Anne McClintock (2010) ressalta como a
52

narrativa de transformação mágica prenuncia os anúncios de produtos de beleza do século


XX, que apresentam imagens de “antes e depois” às consumidoras mulheres.
A associação entre brancura, beleza e limpeza atravessa o século XIX,
continuando a aparecer de maneira particular nos anúncios de determinados produtos de
higiene e de beleza, especialmente aqueles que apresentam sabonetes, cremes e loções
que prometem clarear a pele. O anúncio do sabão brasileiro Aristolino (Figura 1), datado
das primeiras do século XX40, apresenta três mulheres brancas jovens recomendando o
produto por que ele “suaviza a cútis e faz adquirir fina brancura”, tornando as mulheres
mais atraentes. O anúncio afirma que “quem quiser ser formosa e cortejada” deve o usar
o produto, reforçando a associação entre branquitude, limpeza e feminilidade.

40
Não consegui encontrar informações precisas a respeito da época em que o anúncio foi criado e divulgado,
mas o estilo das mulheres desenhadas me faz crer que anúncio é possivelmente da década de 30 ou 40 do
século XX.
53

Figura 1: Propaganda do sabonete Aristolino.


Fonte: Disponível em < https://br.pinterest.com/pin/323766660695096488/>. Último acesso em
12/01/2022.

Recentemente, em 2017, a marca Dove41, fabricante de produtos de higiene e


beleza da companhia Unilever, foi acusada de racismo ao exibir, em uma propaganda
veiculada nos Estados Unidos, uma modelo negra despindo-se e transformando-se em
uma modelo branca, como se observa na Figura 2.

41
Este caso também repercutiu negativamente sobretudo porque, nos anos 2000, a marca protagonizou uma
campanha publicitária chamada Campanha pela Real Beleza, que prometia mostrar corpos de “mulheres
reais” em seus anúncios, contrapondo-se ao padrão hegemônico de magreza (BETTI, 2011).
54

Embora a propaganda tenha mostrado mulheres de variados pertencimentos


étnico-raciais tirando uma camiseta e se transformando em outras mulheres, com
aparências distintas da inicial, o que poderia sugerir um aspecto de neutralidade, sem a
intenção de hierarquização, é preciso dizer que as propagandas, em especial as feitas para
grandes marcas, não são frutos de criações feitas ao acaso, mas antes, resultado de um
trabalho que procura acionar significados que dialogam com o público, com o contexto
histórico, político e cultural na qual são produzidas e veiculadas. Nas agências de
publicidade e nos departamentos de marketing das marcas as propagandas em geral
passam por muitas mãos, e estes setores costumam ser dominados por profissionais que
são homens brancos. Assim, é preciso evitar um olhar inocente quando se analisa peças
publicitárias.

Figura 2: Propaganda do sabonete Dove.


Fonte: Disponível em <https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/10/economia/589920-dove-
pede-desculpas-por-propaganda-acusada-de-racismo.html>. Último acesso em 12/01/2022.

A cena, que inclui a presença do sabonete da marca, lembra as narrativas das


propagandas de sabão do século XIX, pois remete à ideia de que uma pessoa negra, ao
passar pelo processo de limpeza, transforma-se em uma pessoa branca. Parte do público
que teve acesso à esta propaganda fez esta leitura, notando a presença desta ideia como
pano de fundo da peça publicitária, a despeito da intencionalidade que a marca possa ter
55

tido ou não. Diante das inúmeras críticas que recebeu nas mídias digitais, a marca
removeu a propaganda do ar e pediu desculpas, alegando que queria mostrar que seu
sabonete é “para todas as mulheres” e que é uma “celebração da diversidade”42.
As teorias raciais do século XIX, ainda que consideradas um discurso
pseudocientífico atualmente, infelizmente deixaram um legado. Isso é observável não
apenas na publicidade dos produtos de higiene e beleza, mas também no próprio processo
de concepção destes produtos. Nos contextos de desenvolvimento e fabricação de
produtos pela indústria da beleza, bem como em publicações da área médica, química e
farmacêutica que tratam dos temas pele e cabelos, ainda são utilizados termos que foram
difundidos pelas teorias raciais. Nos bastidores das marcas, onde se discutem as
formulações dos produtos e as substâncias que estarão ou não presentes nas diferentes
composições cosméticas, entram em cena discursos que possuem uma roupagem de
autoridade científica e que difundem uma interpretação sobre os cabelos que está,
historicamente, relacionada a uma noção de tipos raciais humanos.
Nestes discursos, de caráter médico e técnico, proliferam termos como
caucasiano, asiático, oriental, mongol, afro, africano e negróide. Estes termos pretendem
caracterizar diferentes tipos de cabelos, associando-os a diferentes tipos humanos e
ressaltando distinções de caráter fisiológico e anatômico. Tratam-se de termos
explicitamente racializados: a ideia de raça é mobilizada privilegiando seu sentido
biologizante e naturalizante, e não seu sentido identitário, político e estético.
O website da Sociedade Brasileira de Dermatologia apresenta a seguinte
explicação a respeito dos tipos de cabelos:

Cabelos apresentam diferentes características, de acordo com o grupo


étnico ao qual a pessoa pertence e da genética de cada um. As
variações raciais e individuais irão determinar o padrão de
crescimento e também forma e textura. Cabelos lisos são típicos de
etnias mongólicas, orientais, esquimós e indígenas. Cabelos
ondulados são típicos dos caucasianos, mas podem ser encontrados em
diversas etnias. Cabelos crespos, comuns na etnia negra, possuem
formato elíptico e achatado helicoidal, o que lhe confere aspecto
encaracolado.43

42
Ver mais em <https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/10/economia/589920-dove-pede-
desculpas-por-propaganda-acusada-de-racismo.html>. Último acesso em 13/01/2022.
43
Disponível em <https://www.sbd.org.br/dermatologia/cabelo/cuidados/tipos-de-cabelos/>. Último
acesso em 31/08/2021.
56

A página da dermatologista Denise Steiner também traz um discurso semelhante


em sua seção sobre Dermatologia Capilar:

A aparência ou fenótipo dos cabelos é a tradução visual da


programação genética ou genótipo de cada indivíduo. Porém este
processo é complexo e não totalmente conhecido. Uma das principais
variáveis que determinam as diferenças raciais dos cabelos é a
pigmentação que, de maneira espectral, define a coloração dos fios
entre mais claros e mais escuros. [...] A constante miscigenação das
raças e migração dos povos primitivos também foi determinante. Os
três grandes grupos étnicos humanos, o africano, o asiático e o
caucasiano possuem características estruturais próprias e,
consequentemente, cuidados específicos.44

Chama a atenção, nos excertos, a escolha da categoria etnia para caracterizar e


diferenciar tipos humanos. Se em geral a categoria é acionada para enfatizar o
pertencimento ancestral e cultural, afastando-se do determinismo biológico (GOMES,
2005), aqui, especialmente no primeiro excerto, seu uso parece dar conta de substituir a
noção de raça, atuando como um eufemismo para a ideia de raça enquanto entidade
biológica, rejeitada pela ciência desde o final da II Guerra. Trata-se de uma forma de
expressar um sentido biologizante, sem, no entanto, mobilizar de forma direta “raça”
enquanto categoria de análise: preserva-se o discurso naturalizante sobre tipos humanos
diferenciados sem se basear exclusivamente na categoria que expressa esse sentido de
forma mais explícita.
Os tipos humanos, no primeiro excerto, são agrupados e associados a diferentes
tipos de cabelos. Mongóis, orientais, esquimós e indígenas são os grupos que, em
conjunto, normalmente apresentam cabelos lisos. Caucasianos e negros são os grupos
que, respectivamente, costumam apresentar cabelos ondulados e crespos. No segundo
excerto, os tipos humanos africano, caucasiano e asiático são descritos como portadores
de “características estruturais próprias”, remetendo a uma diferenciação de cunho
essencialista.
Estes termos, é preciso reforçar, não foram criados pelos estudos contemporâneos
sobre cabelos, e sim são originários das teorias raciais desenvolvidas no século XIX, que
dividiam a humanidade em tipos raciais distintos e forneciam uma base pretensamente

44
Disponível em <https://denisesteiner.com.br/dermatologia-capilar/a-etnia-dos-cabelos-e-seus-
cuidados/>. Último acesso em 31/08/2021.
57

científica ao racismo e ao colonialismo, colocando as desigualdades de raça, gênero e


classe como fatos biológicos.
Os termos mencionados, que aparecem em trabalhos de cientistas como o
antropólogo Johann Friedrich Blumenbach, o médico Samuel George Morton, e o
naturalista Louis Agassiz (GOULD, 2014), não apenas diferenciavam tipos humanos,
como criavam hierarquias entre eles. As qualidades morais, intelectuais e estéticas eram
atribuídas apenas aos brancos europeus – os caucasianos45 – enquanto os outros grupos
eram associados à inferioridade intelectual, à feiúra e à degeneração moral e biológica.
Características como o tamanho e projeção do crânio, cor da pele, formato dos cabelos e
traços faciais eram interpretadas como sinais da desigualdade inscritos nos corpos, como
evidências anatômicas de superioridade ou de inferioridade racial.
Ainda que estes termos sejam carregados de sentidos problemáticos, cuja história
está diretamente ligada às teorias raciais, hoje consideradas racistas e pseudocientíficas,
eles permanecem sendo utilizados por profissionais e pesquisadores da área médica,
química e farmacêutica. Esta permanência, ao que parece, está ligada a uma necessidade
de se diferenciar a variedade de texturas capilares existentes, fornecendo um vocabulário
que se pretende técnico aos profissionais que elaboram formulações de produtos e aos
pesquisadores que estudam os efeitos de ativos e substâncias nos diferentes tipos de
cabelo. É com base neste trabalho e neste repertório que muitas marcas desenvolvem suas
linhas de produtos diferenciadas, destinadas a cabelos lisos, crespos, cacheados e
ondulados.
Em 2018 presenciei uma cena durante o trabalho de campo que demonstra com
precisão como o processo de formulação de produtos relaciona-se ao uso de um
vocabulário e de um repertório científico que se baseia em leituras racializantes. Na cena
em questão, ocorrida em um evento promovido por uma marca de produtos capilares,
uma engenheira química fez uma apresentação sobre as diferenças entre os tipos de
cabelos. Sua fala foi acompanhada pela exibição de ilustrações da estrutura interna do
cabelo humano, de imagens de fios de cabelo feitas em microscópio e de gráficos que
mostravam resultados de testes laboratoriais realizados em diferentes tipos de cabelos.
A engenheira fez uma crítica às classificações mais comumente utilizadas para
diferenciar cabelos lisos, ondulados, crespos e cacheados, argumentando que a aparência
dos fios é um critério insuficiente para se realizar uma análise completa do fio de cabelo.

45
Segundo Kobena Mercer (1987), os brancos europeus eram chamados de caucasianos porque supunha-
se que eram descendentes de povos da cordilheira do Cáucaso, localizada no Leste Europeu.
58

Em sua visão, deve-se levar em conta a etnia do fio de cabelo, pois há distinções
importantes na composição interna de cada tipo de fio, que fazem com que o cabelo
caucasiano seja essencialmente diferente do cabelo afro.
Estas distinções, de acordo com a engenheira, fazem com que cada tipo de fio
necessite de tratamentos diferenciados e individualizados. Em sua visão, o ideal é que as
marcas elaborem produtos de coloração e alisamento específicos para cada tipo de
cabelo, levando em conta as particularidades estruturais de cada textura capilar. Assim,
uma tintura ou um alisante direcionado ao público que possui cabelos crespos, do tipo
afro, não devem, em tese, serem formulados da mesma maneira que uma tintura ou um
alisante direcionados aos fios cacheados e ondulados, que são cabelos do tipo caucasiano.
A ideia de etnia do fio de cabelo, em seu sentido biologizante, trata da fisiologia
dos fios de cabelo, de aspectos que dizem respeito a um conhecimento que não é, a
princípio, acessível e visível às consumidoras: se a textura capilar, um critério mais
“superficial”, é algo acessível e visível à percepção cotidiana, os aspectos estruturais dos
fios, a sua composição interna, com diferentes proporções de queratina e matriz, é
acessível apenas ao cientista e ao profissional que formula cosméticos.
Assim, os diferentes tipos de cabelos, no âmbito da produção dos saberes
biomédicos e da formulação de produtos cosméticos, ainda são classificados e
categorizados a partir de um conjunto de termos cuja origem pode ser historicamente
localizada no racismo científico. E isto em um cenário onde diversas marcas de
cosméticos têm voltado sua atenção aos cabelos cacheados e crespos, procurando dialogar
– ou ao menos parecer que estão dialogando – com os discursos de valorização destes
tipos de cabelos.

1.3 – Cabelos crespos e a produção de uma estética negra no Brasil

Se, de um lado, importa compreender a historicidade da estigmatização do cabelo


crespo, discutindo como suas bases se assentam sobre concepções científicas, técnicas e
mercadológicas, importa também compreender o processo contrário, ou seja, o de
valorização do cabelo crespo, ligado sobretudo à produção de uma estética negra a partir
de meados do século XX.
Nas décadas de 60 e 70 o cabelo crespo sem intervenções alisantes emerge como
um ícone do black pride (orgulho negro, em português) entre pessoas negras
59

estadunidenses. Se até este momento, a norma para as mulheres negras eram os cabelos
alisados e para os homens negros eram os cabelos cortados bem curtos, surgem outras
referências, que politizam a questão a partir de um outro olhar, que procura marcar a
diferença e se contrapor aos referenciais brancos: o movimento dos Panteras Negras traz
o penteado Afro como um símbolo de resistência e afirmação política. A intenção era se
posicionar contra as normas vigentes, construindo um outro referencial estético e político.
O Afro, que consistia nos cabelos crespos cortados em formato arredondado e
armados pelo pente garfo, foi adotado por universitários, ativistas e artistas negros e
posteriormente popularizou-se como uma opção de penteado fashion nas décadas
seguintes. A partir dos anos 80, passa a ser divulgado pela indústria de cosméticos e pelas
mídias hegemônicas, sofrendo um processo de despolitização (BYRD e THARPS, 2014;
MERCER, 1987; WALKER, 2000). O argumento era de que o cabelo Afro, tal como os
cabelos submetidos aos procedimentos alisantes, era apenas uma escolha estética e
também merecia manutenção e cuidados profissionais.
No Brasil, a partir da década de 70, a construção de uma estética negra a partir da
valorização dos cabelos crespos se torna central para os ativistas e coletividades negras.
Ainda que os modelos de estética negra brasileiros tenham suas singularidades e sejam
múltiplos, é importante dizer que estabelecem diálogos com as referências afro-
americanas, pois estamos tratando de um contexto transnacional em que penteados,
técnicas, produtos e discursos estético-políticos viajam.
Assim, em paralelo à movimentação afro-americana, começam a surgir, no Brasil,
salões de cabeleireiro que se denominam como étnicos, pensados por e para pessoas
negras. Nestes estabelecimentos, os serviços oferecidos englobam desde o penteado Afro
ao alisamento dos fios e seus profissionais difundem um discurso que coloca o cabelo
crespo como elemento que eleva autoestima e a consciência racial da população negra
(FIGUEIREDO, 1994; GOMES, 2008 e SANTOS, 2000). São espaços pensados por e
para pessoas negras que tornam acessíveis aos seus clientes possibilidades de cuidado de
si, modos criativos de manipular o cabelo crespo e práticas de consumo que
historicamente foram negadas às pessoas negras.
Os bailes black realizados nas grandes metrópoles como São Paulo e Rio de
Janeiro, e os blocos afro de carnaval, como o Ilê Ayê em Salvador, também exercem um
papel fundamental no que concerne à elaboração e à celebração da ideia de beleza negra
e de valorização dos cabelos crespos. Partindo de distintos referenciais, estas iniciativas
60

colaboram, de maneira significativa, para a ampliação de repertórios estéticos para


pessoas negras.
Os bailes, como os realizados no Clube Renascença, objeto de estudo de Sonia
Giacomini (2006), mobilizavam as referências culturais e estéticas estadunidenses,
trazendo o cabelo crespo armado, no estilo Afro, as vestimentas utilizadas pelos atores
negros nos filmes blaxploitation46 e a música soul. Já o Ilê Ayê, com a Noite da Beleza
Negra, concurso de beleza específico para mulheres negras, criado em 1975, insere-se no
contexto do processo de reafricanização e de ascensão dos movimentos negros feministas,
conforme pontuado por Osmundo Pinho (2004), valorizando as tranças e turbantes como
possibilidades estéticas para o cabelo crespo.
Os anos 80 e 90, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, são marcados,
principalmente, pela difusão do permanente, dos alisantes e relaxantes com princípios
ativos mais modernos, das chapinhas e das extensões capilares. O permanente, um
procedimento que cacheia os cabelos, popularizou-se durante os anos 80, gerando uma
proliferação de cabelos ondulados e cacheados volumosos nos filmes, séries, videoclipes
e telenovelas. No caso específico dos cabelos crespos, o procedimento do permanente,
que ficou mais conhecido como permanente afro no Brasil, primeiro promove um
alisamento dos fios, para posteriormente moldar os cabelos no formato cacheado.
Ainda que o cabelo mais volumoso e com algum grau de curvatura fosse
valorizado neste período, isso não significou, em si, uma valorização dos cabelos crespos.
É preciso frisar que, se para pessoas brancas a adesão ao permanente podia significar uma
forma diferente de estar na moda e de parecer descolado, possibilitando que elas
utilizassem cabelos volumosos e com cachos, para pessoas negras o procedimento era
mais uma química destinada a modificar os cabelos crespos, exigindo uma série de
cuidados para que o penteado e a saúde dos fios fossem mantidos.
Nos anos 90 e no início dos anos 2000, o uso das extensões capilares e laces torna-
se mais conhecido com as cantoras negras estadunidenses de rap, r&b e pop. Estas
artistas, que atingiram sucesso internacional, faziam uso de uma diversidade de visuais
construídos a partir destes recursos, exibindo cabelos em diversos comprimentos, texturas
e cores. As extensões e as laces, confeccionadas a partir de cabelos humanos ou de fios

46
Conforme Marcio Macedo (2007), os filmes blaxploitation foram os “Filmes norte-americanos com
temática e atores negros classificados como “produções B” nos anos 1970 que foram as primeiras tentativas
de um “cinema negro” no país estadunidense.” (p.407). Estes filmes, ainda que reconhecidos por trazerem
uma iniciativa positiva na época, também foram alvos de críticas por conta das representações
estereotipadas dos personagens negros que divulgavam.
61

artificiais, além de possibilitarem uma maior experimentação estética, também permitem


que os cabelos crespos, com ou sem intervenções alisantes, ganhem mais comprimento e
volume.
A década de 90 também é marcada pelo que a mídia, os profissionais da beleza e
o senso comum denominam de “ditadura do liso”. O cabelo visto como desejável,
elegante e em conformidade com as tendências da moda não é apenas um cabelo liso, mas
sim fios completamente esticados, das raízes até as pontas, pelos alisamentos e
relaxamentos com princípios ativos mais modernos e pelas chapinhas elétricas. É no final
de década que surge, inclusive, o chamado alisamento definitivo, técnica criada pelo
cabeleireiro japonês Satoru Nagata (SALON LINE, 2018), que proporcionava um
resultado de “liso perfeito”.
Mais recentemente, especialmente a partir de meados da década de 2000,
iniciativas de caráter cultural, estético e político, tem atuado no sentido de valorizar os
cabelos crespos sem intervenções alisantes. Os blogs e as mídias digitais tornam-se
espaços públicos onde mulheres negras discutem sobre cabelos, tratamentos e
alisamentos, abrindo espaço para que o padrão hegemônico de cabelo liso seja
questionado e o cabelo natural seja valorizado e celebrado. Este movimento, que se inicia
primeiramente nos Estados Unidos, espraia-se também pelo Brasil e por outros países da
América Latina, como a Colômbia.
No Brasil, especificamente, surgem algumas iniciativas de caráter artístico,
cultural e político que também fazem parte deste cenário. Em 2005, surge o grupo teatral
Os Crespos, estudado por Terra Johari Terra (2019) em sua dissertação de mestrado.
Fundado por estudantes negros da Escola de Artes Dramáticas da ECA-USP, o grupo, tal
como outros núcleos de teatro negro brasileiros, trabalha a partir de referências à cultura
e estética negras. O próprio nome escolhido, Os Crespos47, reconhece o cabelo enquanto
elemento de distinção, identidade e resistência para pessoas negras e pauta a atuação do
grupo em suas produções teatrais e em sua publicação, a revista Legítima Defesa.
Na metade da década de 2010, eventos realizados por coletividades negras LGBT,
como as festas Batekoo e Amem, estudadas por Bruno Nzinga Ribeiro (2021), também
apontam para a centralidade da estética negra e seu caráter político, corporificados por
pessoas negras jovens que utilizam roupas e maquiagens coloridas, acessórios

47
Inicialmente, o grupo foi batizado como Filhos de Olorum, em referência à uma divindade de algumas
religiões de matriz africana. O nome foi modificado para Os Crespos em 2007, pouco antes da estreia do
espetáculo “Ensaio sobre Carolina” (TERRA, 2019).
62

chamativos, cabelos crespos armados, tingidos em cores fantasia ou trançados em


diversos estilos. Estes jovens têm sido constantemente associados ao fenômeno da
geração tombamento, uma iniciativa cultural, estética e política impulsionada por
cantoras como Karol Conka, Linn da Quebrada e Liniker.
Em 2015, o projeto Hot Pente48 e pelo Blog das Cabeludas49 criaram a Marcha do
Orgulho Crespo na cidade de São Paulo. Trata-se de uma iniciativa que propõe a
valorização da estética negra e o combate ao racismo e que se disseminou nacionalmente,
surgindo também em outras cidades brasileiras como Curitiba, Vitória, Porto Alegre, Rio
de Janeiro e Salvador50. Em São Paulo, além de promover uma passeata pela Avenida
Paulista, o evento inclui ciclos de debates e oficinas sobre estética e racismo, projetos de
educação e empreendedorismo realizados por mulheres negras e performances teatrais e
musicais de artistas negras.
Ainda em 2015, a cantora Leci Brandão, eleita deputada estadual em São Paulo
em 201051, em diálogo com as criadoras da Marcha, propôs um projeto de lei para
estabelecer o dia 26 de julho como o Dia do Orgulho Crespo no estado de São Paulo. O
projeto foi sancionado em 20 de março de 2018 pelo então governador Geraldo Alckmin,
tornando-se a lei 16.682/2018. Em comentário a respeito desta aprovação, a deputada
destaca o caráter racista da estigmatização do cabelo crespo e convida as pessoas a
refletirem sobre a relação entre estética e política, chamando a atenção para e para a
importância que a valorização deste cabelo possui para o enfrentamento do racismo, como
se pode observar no seguinte trecho:

Nossa intenção com essa Lei é pautar politicamente a sociedade sobre


a importância de compreender de que forma a negação do cabelo
crespo está associada ao racismo e à discriminação. [...]
Muitos olham essa questão das datas com reservas e questionam o
impacto delas na vida das pessoas. Em relação ao Dia do Orgulho
Crespo, podemos dizer que esta é uma forma de mostrar que impor um
padrão estético também é oprimir, é discriminar, é tratar os cidadãos

48
O projeto Hot Pente é uma festa itinerante de hip hop criada em 2014, em São Paulo, pela jornalista
Neomísia Silvestre e pela produtora de moda Thaiane Almeida. A festa teve algumas edições durante o ano
de 2014, porém, não consegui encontrar informações na Internet a respeito de edições mais recentes. Hot
Pente, em uma tradução literal, significa “pente quente”.
49
O Blog das Cabeludas, criado em 2009 pela consultora de marketing digital Nanda Cury, é um blog que
reúne fotos de mulheres com cabelos crespos e cacheados. Seus últimos posts datam de 2015. Disponível
em <http://blogdascabeludas.blogspot.com/>. Último acesso em 26/10/18.
50
Em Salvador, o evento chama-se Marcha do Empoderamento Crespo, mas, apesar da diferença no nome,
trata-se do mesmo tipo de iniciativa.
51
Filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Leci foi reeleita deputada nas duas eleições
subsequentes, em 2014 e 2018. Para mais informações sobre sua trajetória, ver Fernanda K. M. Sousa
(2016).
63

de forma desigual. Ou seja, não se trata apenas de estética. Nós


estamos falando de política e de poder. Nossos cabelos crespos são
símbolo de luta!52 [meus grifos]

Para Leci Brandão, a estigmatização do cabelo crespo não trata “apenas de


estética”, e sim de uma questão política e de assimetria de poder. Ela justifica a criação
do Dia do Orgulho Crespo afirmando que “impor um padrão estético também é oprimir,
é discriminar, é tratar os cidadãos de forma desigual”. A produção de uma estética negra
que valoriza os cabelos crespos, celebrada pelo Dia do Orgulho Crespo é, assim, não
apenas uma reação à discriminação racial, mas também a própria denúncia desta
discriminação.
Compreendo ser fundamental discutir a dimensão da discriminação racial cujo
foco recai sobre a estética negra e sobre os cabelos crespos. Se importa falar sobre o
processo histórico de estigmatização do cabelo crespo e sobre o processo de construção
de uma estética negra afirmativa, é preciso também discutir como o campo desta pesquisa
é atravessado pela materialidade da discriminação racial, por episódios que atravessam
sujeitos e experiências e que, de algum modo, repercutem nos espaços digitais onde se
movimentam as interlocutoras e interlocutores desta pesquisa.

1.4 – Cabelo crespo, discriminação racial e mídias digitais

Desde o início desta pesquisa de doutorado, em 2017, acompanhei a repercussão


de casos envolvendo denúncias e acusações de racismo em mídias digitais como o
Facebook, o Instagram e Youtube, atentando-me aos que envolviam discriminação
relacionada à estética negra, especialmente quando o aspecto central da questão eram os
cabelos crespos e os seus usos.
Foram muitos os casos de discriminação racial que se centraram em torno do
cabelo crespo e do uso de turbantes, e seria inviável comentar sobre todos eles. Contudo,
selecionei alguns casos que, penso, merecem uma discussão mais detalhada na medida
em que ilustram a reprodução da estigmatização do cabelo crespo e o modo como debates

52
Disponível em <http://deputadalecibrandao.com.br/noticias-e-novidades/item/331-deputada-leci-
brandao-comemora-dia-do-orgulho-crespo-de-sao-paulo-e-lei>. Último acesso em 11/09/18.
64

em torno de gênero, raça, estética e política tem se espraiado em contextos on e offline.


Estes casos, em minha visão, condensam as questões em torno da rejeição do cabelo
crespo, da politização da estética e da ampliação dos debates a respeito de pautas
antirracistas e feministas na Internet. Nas próximas subseções, discuto então os casos de
Dandara Tonantzin Castro, Mayara Leonel, Yasmin Stevam e Daiane Nascimento.

1.4.1 - O caso Dandara: turbante, racismo e limites da judicialização

Em abril de 2017, a pedagoga Dandara Tonantzin Castro, uma jovem mulher


negra, teve seu turbante arrancado durante uma festa de formatura do curso de Engenharia
Civil da Universidade Federal de Uberlândia. De acordo com seu relato no Facebook e
com as entrevistas que concedeu a diferentes veículos de comunicação, seu turbante foi,
a princípio, puxado por um homem presente na festa. Quando reagiu pedindo para que
não encostasse nela, as agressões escalonaram: Dandara teve seu turbante arrancado e
jogado no chão por um segundo homem e outros dois homens, que estavam juntos à dupla,
jogaram cerveja em sua cabeça. A pedagoga, pedindo auxílio de amigos, dirigiu-se a uma
delegacia para registrar um Boletim de Ocorrência e acionou um advogado.
Em vídeo divulgado no Facebook, na página da plataforma de comunicação Fala
Sil53, Dandara diz:

Nós entendemos que a estética é um elemento muito importante da


resistência e do empoderamento. Quando nós nos afirmamos negros e
negras e usamos o nosso turbante, o nosso cabelo crespo, é pra dizer
que nós temos orgulho de ser negro e de ser negra no Brasil. Gente
preta e empoderada incomoda os racistas e é por isso que eles se
acharam no direito de tirar o meu turbante. Porque, certamente, na
cabeça deles, uma festa de formatura de Engenharia não seria um
lugar pra mim. [meus grifos]

Dandara, em sua fala, traz a estética como um instrumento de resistência e de


empoderamento para pessoas negras. Os cabelos crespos e o uso do turbante, em seu
discurso, são associados à afirmação e ao orgulho de ser negra(o) no Brasil. A
manifestação pública deste orgulho, através do uso do turbante ou de outros recursos

53
O vídeo foi publicado, em modo público, em 27/04/17. Último acesso em 11/12/17:
https://www.facebook.com/FalaSill/videos/1024084261057694/.
65

estéticos, nem sempre é compreendida ou bem-vista por pessoas brancas. Como


destacado no relato de Dandara, os homens que a abordaram, incomodados com sua
postura de empoderamento, se sentiram no direito de tirar seu turbante, sinalizando que
aquela festa não era um lugar para ela, uma mulher negra.
Para muitas mulheres negras, o processo da transição capilar e a adesão ao cabelo
crespo natural abrem novas possibilidades expressivas e estéticas, que podem incluir a
modificação da cor dos cabelos e a experimentação de diferentes penteados, como as
tranças em estilos africanos e a utilização de turbantes. No Youtube, especialmente nos
canais de beleza de mulheres negras, é possível encontrar tutoriais ensinando penteados,
mostrando como fazer diferentes tipos de tranças e diferentes amarrações de turbantes.
Os tecidos utilizados para fazer as amarrações podem apresentar diversas cores e
estampas, mas em geral são mostrados os tecidos de cores vivas ou os do tipo capulana,
que são tecidos africanos ricamente estampados.
As razões para se utilizar um turbante podem variar entre querer um visual
diferente do cotidiano, não exibir o cabelo em determinadas ocasiões, proteger os fios e
a cabeça, seguir uma recomendação religiosa ou utilizar o acessório como uma maneira
de expressar a valorização e a afirmação de uma identidade e uma ancestralidade
africanas. Dulcilei Lima (2017) discorre sobre os usos e significados históricos do
turbante entre a população negra brasileira, focando-se principalmente nas dimensões
religiosas e políticas do adorno. Explica que as pessoas negras, no contexto da diáspora,
defendem a exclusividade do uso do turbante como modo de reinvindicar “[...] o direito
à sua identidade e a todo esse arcabouço histórico e simbólico que narra as lutas [...]
contra a discriminação racial.” (p.37).
Nas redes sociais, quando a discussão se volta para a questão de quem pode utilizar
um turbante, em geral a última razão é mobilizada, em especial pelas mulheres negras
que se identificam com os feminismos negros. Não raro, no contexto destas discussões,
surgem relatos de mulheres negras que são hostilizadas nas ruas por utilizarem turbantes,
sendo chamadas, em tom pejorativo e discriminatório, de “macumbeiras”, o que evidencia
a intolerância religiosa e o racismo por trás do julgamento.
No caso de Dandara, chama a atenção a maneira como a hostilidade foi
expressada. Seu turbante não provocou apenas uma reação verbal, mas foi tocado sem
sua permissão, arrancado e jogado no chão. Tocar o corpo do/a “outro/a”, do sujeito
marcado como diferente, constitui uma invasão (KILOMBA, 2018). O que pode ser visto,
por alguns, como uma brincadeira ou ato banal, é na realidade, um ato racista: a negritude
66

é operada como marca da diferença que permite que corpos negros sejam tocados,
avaliados e invadidos.
Como Adilson Moreira (2019) explica, práticas discriminatórias que operam sob
a forma de humor ou que aparentam ser banais – que autor denomina de racismo
recreativo – reforçam os estereótipos negativos sobre pessoas negras, especialmente
aqueles em torno da estética e do cabelo, legitimam a desigualdade entre pessoas brancas
e negras e em geral são perpetradas por pessoas que não se creem racistas e que não
aceitam acusações de racismo.
Meses após o episódio, em novembro de 2017, o caso, que havia se transformado
em um inquérito, foi arquivado pelo Ministério Público de Minas Gerais, o que gerou
uma nova manifestação de Dandara nas redes sociais e a repercussão desta decisão em
alguns veículos de comunicação, como os portais Geledés 54 e O Globo55. No pedido de
arquivamento56, o ato praticado pelos indiciados não foi reconhecido como crime de
racismo e a fala de Dandara foi deslegitimada, com a insinuação de que o preconceito
racial alegado havia partido dela mesma, e não dos indiciados.
Casos de discriminação como o da jovem com frequência são compreendidos pela
justiça como ressentimento por parte das vítimas ou como consequência de uma espécie
de complexo de inferioridade das pessoas negras (GUIMARÃES, 2004). As pessoas
vitimadas pelo racismo, inclusive, são julgadas como racistas simplesmente por
chamarem a atenção para o tema. Como Mara Viveros Vigoya (2020) escreve, “as vítimas
do racismo são apontadas como racistas por enfatizar “demais” o tema racial.
Frequentemente se reduz e deslegitima a posição moral e psicológica daqueles quem
denunciam o racismo, acusando-os de complexados, ressentidos, hipersensíveis,
paranoicos, vingativos, violentos e instáveis.” (p.41).
Nesta perspectiva, a discriminação, a desigualdade e a violência são
perversamente colocadas como questões de ordem individual e privada, como “problemas
de falta de confiança e autoestima dos oprimidos” (DEBERT e GREGORI, 2008, p.168).
A ideia de que o preconceito racial parte de seus próprios alvos (ou é reforçado por estes),

54
Ver mais em <https://www.geledes.org.br/nao-foi-racismo-foi-deselegancia-diz-promotor-em-caso-do-
turbante/>. Último acesso em 17/12/17.
55
Ver mais em <https://oglobo.globo.com/sociedade/justica-arquiva-denuncia-de-racismo-feita-por-
jovem-que-teve-turbante-arrancado-em-festa-22095747>.Último acesso em 17/12/17.
56
Trechos do documento podem ser encontrados na reportagem do jornal O Globo, mencionada na nota
anterior, e também em um link divulgado por Dandara em sua página do Facebook, em que disponibilizou
online uma cópia de todas as páginas do documento. Disponível em: <https://imgur.com/a/Mtvhj>. Último
acesso em 18/12/17.
67

muito presente no senso-comum, atribui o racismo às próprias pessoas negras,


equiparando a denúncia do racismo à manifestação deste. No caso analisado, as
autoridades judiciais reproduziram e legitimaram esta percepção do senso-comum,
desqualificando a queixa registrada.
No vídeo que gravou e divulgou em seu perfil pessoal do Facebook57, Dandara
comenta, em tom de indignação, a decisão judicial:

Muito se fala no Brasil em justiça, fazer justiça. Mas eu pergunto a


vocês: que justiça é essa? Recentemente, eu tive meu turbante
arrancado em uma festa de formatura. [...] A Polícia Civil instaurou
um inquérito, ouviu os caras, indiciou eles. E agora, recentemente, saiu
a decisão do promotor. Sabe o que ele disse? Decidiu pelo
arquivamento do caso! Ele fala que eles foram simplesmente
deselegantes com uma dama na festa de formatura. [...] Racismo é
crime no Brasil desde 1989, mas infelizmente nossa justiça é seletiva.
A nossa justiça tem um lado, e não é o nosso. [meus grifos]

Neste vídeo, a jovem se apoia na legislação brasileira vigente – “Racismo é crime


no Brasil desde 1989” – ao mesmo tempo em questiona a própria ideia de justiça,
apontando que esta não é neutra, mas, ao contrário, possui um viés que desfavorece
pessoas negras e que contribui para a reprodução e a legitimação das desigualdades –
“[...] nossa justiça é seletiva. A nossa justiça tem um lado, e não é o nosso”.
A queixa prestada na delegacia tornou-se um inquérito e um processo judicial cujo
desfecho não foi o pretendido ou o esperado. A alegação de racismo não foi acolhida
pelas autoridades judiciais subsequentes, que desqualificaram a fala de Dandara,
evidenciando os limites do tratamento penal e a assimetria de poder e de legitimidade
entre os atores envolvidos no processo58. Ainda que houvesse testemunhas e a
possibilidade de tipificar o caso como crime segundo a legislação vigente, a reparação
buscada não se concretizou.

57
O vídeo foi publicado, em modo público, no dia 20/11/17 em seu perfil pessoal do Facebook, mas foi
replicado pelo jornal O Globo na reportagem já mencionada.
58
Para uma discussão sobre o funcionamento das leis brasileiras antirracismo e os problemas em torno de
sua aplicação, ver Márcia Lima, Marta R. de Assis Machado e Natália Néris (2016).
68

1.4.2 – Os casos Mayara e Yasmin: racismo e “mimimi”

Outro caso ocorrido no ano de 2017 que captou minha atenção foi a situação
vivenciada por Mayara Leonel em seu ambiente de trabalho. A jovem estudante negra
também publicizou o ocorrido por meio de um relato no Facebook. Durante seis meses,
ela trabalhou em um conhecido laboratório de análises clínicas de São Paulo e acabou
sendo demitida por se recusar a continuar usando seus cabelos crespos presos.
Segundo Mayara, a empresa possuía um código de apresentação pessoal
específico para as funcionárias da recepção do laboratório. As recepcionistas que tivessem
os cabelos em um comprimento acima dos ombros e sem franja poderiam trabalhar com
os cabelos soltos, enquanto que as que tivessem os cabelos longos, em um comprimento
abaixo dos ombros, deveriam prender os cabelos durante o horário de trabalho. Ainda que
Mayara se encaixasse no primeiro caso, pois seus cabelos estavam em uma altura acima
dos ombros e não possuíam franja, ela foi pressionada durante o período em que trabalhou
no laboratório a manter seus cabelos sempre presos, amarrados de modo apertado para
trás. A empresa alegava que seu cabelo solto desagradaria os “clientes criteriosos” e que
poderia ser demitida caso não cumprisse com a ordem.
Em entrevista ao site Buzzfeed59, a jovem diz que usou os cabelos presos, da
maneira como exigiram, por algum tempo, mas que isto lhe causou desconforto físico e a
quebra dos fios. Além da exigência em torno do cabelo, Mayara relatou também ter sido
alvo de comentários e piadas racistas por parte de colegas de trabalho, sem que a empresa
tenha tomado qualquer atitude com relação a isso. Em seu relato publicado no Facebook,
e reproduzido pelo Buzzfeed, ela explica:

A regra sempre foi muito clara: CABELOS ABAIXO DOS OMBROS:


PRESOS. E ACIMA DOS OMBROS: SOLTOS, DESDE QUE NÃO
TENHAM FRANJA. Mas isso não serve para a preta de Black Power.
Fui obrigada sob ameaça de demissão ir com ele “bem presinho, da
forma mais discreta possível” [...] cabelo black na recepção, NÃO [...]
MESMO QUE SEU CABELO ESTEJA DENTRO DOS CRITÉRIOS
ESTABELECIDOS, se for black power, não serve.60

59
Disponível em <https://www.buzzfeed.com/br/tatianafarah/mulher-acusa-laboratorio-fleury-de-racismo-
por-causa-de#.ljX4xQ3Gk>. Último acesso em 20/04/19.
60
Disponível em
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=880282048797288&set=a.107956739363160.18051.100004
465032659&type=3>. Último acesso em 20/04/19.
69

Este trecho do relato evidencia que a questão não tratava do comprimento do


cabelo, mas sim da textura crespa e volumosa do cabelo de Mayara, que ela mesma define
como black power61. Seu cabelo crespo só era considerado adequado ao ambiente de
trabalho quando estava “presinho” e “discreto”, ou seja, contido e disfarçado aos olhares
alheios. Esta exigência ecoa a percepção, ainda presente no senso comum, de que o cabelo
crespo, especialmente quando em seu estado natural, sem intervenções alisantes, não está
em acordo com um visual profissional.
Em sua página no Facebook, Mayara recebeu apoio de pessoas que se
solidarizaram com seu relato, mas também foi criticada e atacada por pessoas que
desqualificaram sua denúncia. As mensagens de apoio a parabenizavam-na por ter
exposto o caso, elogiavam seu cabelo, criticavam a empresa e reconheciam o cabelo
crespo enquanto elemento importante da identidade negra e de expressão individual. As
mensagens em tom de crítica ou de ataque, em oposição, não consideravam que a situação
vivenciada por Mayara configurava uma situação de racismo e defendiam o
posicionamento da empresa.
Em alguns comentários, foi mobilizado um argumento em torno do suposto direito
de as empresas criarem regras sobre a aparência de seus funcionários, estabelecendo
comparações falsamente simétricas. De acordo com esta visão, a situação vivenciada por
Mayara não configuraria racismo porque toda empresa e todo empresário podem decidir
o que é permitido ou não em relação à aparência dos funcionários, estabelecendo que tipo
de cabelo, vestimenta e acessórios devem ser ou não usados, cabendo aos funcionários
obedecerem às regras ou, se não concordarem com as exigências, pedirem demissão.
Como exemplo disto, alguns comentários traziam a questão da proibição de piercings e
tatuagens por parte de algumas empresas.
Este argumento, para além de desconsiderar as assimetrias entre empregadores e
empregados, como se ambos compartilhassem do mesmo poder de escolha e de
negociação, não reconhece as distinções e particularidades entre os usos de diferentes
penteados, estilos e intervenções corporais, como se estes fossem neutros e despidos de
quaisquer conotações étnico-raciais e políticas. Ignorando o viés racista que persiste em

61
O termo tem suas origens no penteado Afro, um estilo de cabelo adotado por pessoas negras
estadunidenses nos anos 60 e 70, que utilizavam o penteado como símbolo de resistência ao racismo.
Embora o termo black power constituísse uma palavra de ordem do movimento negro estadunidense, no
Brasil o termo tornou-se também um sinônimo de cabelos crespos naturais e volumosos.
70

torno das percepções negativas sobre os cabelos crespos, esta visão considera o cabelo a
partir de uma ótica individualista e despolitizada.
Em outros comentários não havia a elaboração de nenhum tipo de crítica ou de
argumento. Estas mensagens, em tom mais agressivo, irônico ou desrespeitoso,
classificavam a denúncia de Mayara como mais um exemplo de “mimimi” e de
“vitimismo” por parte de pessoas negras. Estes termos se popularizaram nos últimos anos,
especialmente nas mídias digitais, como formas de deslegitimar e desqualificar denúncias
e reflexões sobre racismo, machismo e as várias formas de preconceito e discriminação
contra a comunidade LGBTQIA+, procurando silenciar e tumultuar as discussões em
torno destas problemáticas.
Frente às críticas e ataques que recebeu, Mayara, uma semana após o primeiro
relato, teve que se posicionar novamente e publicou outro texto em sua página no
Facebook62, explicando com mais detalhes o contexto de sua demissão e a postura que a
empresa tomou, anexando uma cópia de um projeto de combate ao racismo corporativo
que ela havia apresentado ao laboratório antes de ser demitida.
Um segundo caso relacionando cabelos crespos e mercado de trabalho merece
atenção. Em fevereiro de 2018 o relato de discriminação da empreendedora negra
Yasmin Stevam no programa da apresentadora Fátima Bernardes63, na Rede Globo, gerou
discussão nas mídias sociais e comentários e memes64 racistas contra a jovem foram
publicados.
O programa, que abordava o assunto aparência e mercado de trabalho, em
determinado momento trouxe Yasmin ao palco para que ela contasse a respeito da
discriminação que sofreu por conta de seu cabelo em situações de entrevistas de emprego,
sendo preterida por empresas da área da moda. Embora no momento do programa Yasmin
exibisse cabelos crespos longos, muito volumosos e soltos, ela explicou que na época
destas entrevistas não tinha este estilo de cabelo, pois usava-o trançado, e acrescentou que
havia abraçado o estilo atual quando iniciou seu próprio negócio na área da moda.

62
Disponível em
<https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=883842821774544&id=100004465032659>. Último
acesso em 21/04/19.
63
A participação de Yasmin Stevam no programa de Fátima Bernardes pode ser vista no link a seguir:
<https://www.youtube.com/watch?v=8OZbMB72mFA>. Último acesso em 20/04/19.
64
Seguindo Thiago Falcão (2017), que parte da definição do termo feita pelo biólogo Richard Dawkins, o
meme é um fragmento de informação - compreendendo uma imagem e/ou pequenas frases e expressões -
que se torna viral nas redes sociais e que pode ser rapidamente entendido, pois aciona significados culturais
circulantes. Os memes, inicialmente, podem ser compreendidos como forma de humor.
71

O relato de Yasmin gerou repercussão nas mídias digitais e, perversamente, uma


onda de comentários e vídeos no Youtube65 criticando-a e atacando-a, afirmando que seu
cabelo era “feio” e “inadequado” a um ambiente de trabalho. Surgiram também memes
em que sua imagem era propositalmente distorcida para que o cabelo parecesse muito
maior do que de fato era. Do mesmo modo que Mayara Leonel, Yasmin Stevam também
fui acusada de fazer “mimimi” e ser “vitimista”. A própria Rede Globo e o programa de
Fátima Bernardes também não foram poupados: havia comentários que acusavam a
emissora e a apresentadora de querer enganar o público do programa ao retratar uma
jovem empresária como “coitada”.
Em reação ao relato da jovem no programa, e a estes ataques perpetrados nas redes
sociais, a página de Yasmin no Facebook também recebeu comentários positivos, que lhe
demonstraram apoio, carinho e admiração: elogios à sua beleza, ao seu cabelo, ao fato de
ser dona de seu próprio negócio, bem como mensagens repudiando veementemente o
racismo de que foi alvo. A empreendedora chegou a publicar, em seu perfil no site, um
texto onde contava sobre a discriminação sofrida em entrevistas de emprego, procurando
se defender de críticas que haviam distorcido seu relato na televisão. Foram publicadas
matérias no portal UOL e no site da revista Raça a respeito do caso e da repercussão
gerada nas redes sociais.

1.4.3 - O caso Daiane: racismo, colorismo e repercussão negativa

Por fim, comento sobre um último caso. Em meados de dezembro de 2018, o


conteúdo de um vídeo da influenciadora cacheada Daiane Nascimento movimentou parte
dos grupos, canais e perfis de mulheres crespas e cacheadas que eu acompanhava nas
mídias digitais. Este caso difere dos anteriores porque não trata, propriamente, de um
episódio de agressão ou cerceamento relativo ao uso dos cabelos crespos e não resulta,
até onde tive conhecimento, em medidas judicializantes. Entretanto, este caso retoma
elementos discutidos nas subseções anteriores, na medida em que coloca em jogo a
estigmatização dos cabelos crespos e que coloca a Internet como uma arena para a
publicização e o debate público. Ele é produtivo para análise porque, além destes
aspectos, está diretamente relacionado ao campo de pesquisa, tendo repercutido entre

65
Chamou-me a atenção o fato de que, no Youtube, alguns vídeos feitos contra Yasmin eram de youtubers
que se identificam com posições políticas de direita.
72

interlocutoras crespas e cacheadas que são relevantes no universo do Youtube e das


mídias digitais.
No vídeo em questão, que Daiane publicou em dezembro de 2018 para
comemorar os 200 mil inscritos de seu canal no Youtube66, ela aparecia tirando a
definição de seus cachos em frente ao espelho e fazendo comentários pejorativos sobre o
resultado, utilizando-se de termos depreciativos para descrever e avaliar os cabelos
crespos. Importa mencionar que Daiane é uma mulher jovem, de pele clara e exibe
cabelos cacheados compridos e castanhos.
Com os cabelos secos e sem nenhum tipo de produto de finalização nos fios,
munida de uma escova e de um secador, Daiane penteava e secava seus cachos, esticando-
os e aumentando o volume e o comprimento dos fios, até ficar com um cabelo sem cachos
definidos e bastante volumoso, próximo ao aspecto de um cabelo crespo. Enquanto
realizava o processo, pegando suas mechas e exibindo-as para a câmera, mostrava-se
negativamente surpresa por seu cabelo adquirir esta textura, qualificando-o como um
cabelo “black”, de “nega maluca”, de “palhaço”, “horrível” e que parecia um “bombril”.
Em determinado momento, um recurso de edição digital colocou, no lado esquerdo da
tela, a imagem de uma palha de aço, ilustrando seus comentários.
Sem conter o riso, a influenciadora diz que usaria este cabelo, semelhante a um
crespo do tipo 4C67, apenas se fosse para ir a uma festa à fantasia, deixando claro que, em
sua visão, esse cabelo não seria usável ou digno de exibição no cotidiano. Ela conclui o
vídeo explicando que prefere seus cabelos mais definidos do que volumosos, e enfatiza
seu choque ao perceber que, a depender da técnica de finalização utilizada, a textura de
seu cabelo se modifica e torna mais crespa.
Este conteúdo gerou repercussão negativa entre algumas influenciadoras e
seguidoras crespas e cacheadas. Esta repercussão se deu não porque Daiane se mostrava
surpresa com o resultado do procedimento de escovação à seco ou por conta de sua
preferência por um cabelo mais definido, e sim por conta do tom debochado e dos termos
e comparações pejorativas que utilizou para qualificar os cabelos crespos. Exceto pelo
termo “black”, em geral utilizado em contextos mais positivos para se referir aos cabelos
crespos volumosos, as outras palavras mencionadas, longe de serem apenas descritivos,

66
O canal, que leva seu nome, foi criado em 2015 e é focado em dicas para cabelos cacheados e em
transição. Em fevereiro de 2022 seu canal já contava com cerca de 445 mil inscritos. Disponível em
<https://www.youtube.com/c/DaianeNascimentooficial>. Último acesso em 29/03/22.
67
O termo 4C, parte de uma classificação que categoriza cabelos crespos e cacheados, refere-se ao tipo de
cabelo crespo com a textura mais acentuada, sem cachos definidos e com muito volume.
73

são comumente utilizadas para estigmatizar os cabelos crespos no Brasil, qualificando-os


como cabelos indesejáveis, que precisam ser modificados e arrumados para adquirirem
uma aparência socialmente aceitável.
Qualificar o cabelo crespo com adjetivos negativos e compará-lo cabelo à palha
de aço e ao cabelo de um palhaço reforça a percepção de que este tipo de cabelo é “ruim”.
Estas comparações muitas vezes aparecem, nos discursos cotidianos, na forma de humor
e de piadas, como se fossem algo inocente. Kia Caldwell (2004), ao analisar a aceitação
popular do humor racista, mostra como o humor e as piadas envolvendo o cabelo crespo,
longe de serem inofensivas, perpetuam certas noções de superioridade e inferioridade
racial, reforçando e reproduzindo o racismo.
Algo que também merece uma análise é o fato de Daiane se surpreender com a
textura adquirida pelo seu cabelo durante o processo executado no vídeo. Ela afirma-se
cacheada (diz ter o cabelo 3B e 3C), mas, ao secar seus cabelos sem produtos
finalizadores, parece descobrir que a ausência de finalização modifica seu cabelo,
transformando-o em um cabelo de outro tipo (4C), tornando-o um cabelo crespo. Quando
diz “me ver assim, com o cabelo sem definição, com a textura bem crespa, que é a textura
mesmo do meu cabelo”, Daiane parece entender que a ausência de finalização, na
verdade, não apenas modifica seu cabelo, mas sim revela uma textura crespa ocultada
pelas técnicas de finalização.
A youtuber demonstra surpresa em relação à textura que seu cabelo aparenta após
o procedimento executado. Esta surpresa evidencia o quanto os diversos visuais crespos
e cacheados que são difundidos no campo, longe de representarem naturalidade e ausência
de intervenções, são frutos de um trabalho de construção minucioso que requer
determinadas habilidades, uso de cosméticos e de instrumentos capilares. O cabelo que
Daiane considera o “seu” – em suas palavras, o “jeito como costuma deixá-lo” – não se
encontra pronto, mas requer uma repetição rotineira de técnicas para que fique com o
aspecto desejado. Da mesma maneira, o visual crespo que ela rejeita também só é
alcançado a partir de um processo que envolve outro tipo de habilidades e técnicas, que
enfatizam o volume e a uma textura sem cachos definidos.
Embora Daiane, em determinado ponto do vídeo, explique que considera o
volume bonito e que algumas mulheres com cabelo 4C ficam “poderosas” com o cabelo
black, o tom geral foi de ridicularização do cabelo crespo. Isto provocou incômodo e
revolta entre mulheres crespas e cacheadas que assistiram ao vídeo e entre outras
influenciadoras, que fizeram comentários, postagens e vídeos em resposta, posicionando-
74

se em suas mídias digitais. A repercussão negativa em relação ao vídeo fez com que
Daiane, poucos dias após a publicação do mesmo, o retirasse do ar, impedindo o acesso
do público ao conteúdo.
É comum que os youtubers se refiram ao conteúdo produzido por outros
influenciadores em seus vídeos, e às vezes utiliza-se o recurso de colocar, em seu próprio
vídeo, trechos de vídeos gravados por outras pessoas, para que eles sejam analisados junto
ao público – este tipo de conteúdo é comumente nomeado como “Reagindo ao vídeo de/a
fulano/a” ou “Resposta ao/à fulano/a”. Assim, embora Daiane tenha retirado do ar o
conteúdo, é possível acessar parte do conteúdo através de canais de terceiros, que
publicaram trechos do vídeo do original, utilizando-se do recurso explicado.
A youtuber Gabi Oliveira, do canal DePretas, publicou um vídeo-resposta a
Daiane, intitulado “Cabelo 4C igual bombril e responsabilidade | Papo DePretas”, no
dia 23 de dezembro de 201868. Os primeiros minutos mostram alguns trechos retirados
do vídeo original de Daiane, enfatizando as falas em que Daiane diz que o próprio cabelo
está “horroroso”, parecendo um “palhaço”, um “bombril” e um “cabelo 4C”.
Posteriormente, Gabi entra com sua argumentação, tentando provocar um diálogo com
suas seguidoras sobre os limites da aceitação do cabelo natural e sobre a responsabilidade
dos youtubers:

A primeira coisa que eu acredito que vale a pena a gente conversar é


que sim, esse discurso da aceitação do cabelo natural, a gente sabe que
tem um limite. E esse limite tem sim terminado nos cabelos cacheados.
Você olha campanhas, e você percebe que algumas delas somente têm
meninas com cabelos cacheados. Não colocam meninas crespas nem
pra disfarçar.
A gente já conversou algumas, muitas vezes aqui, sobre a questão do
colorismo, onde a gente discute que quanto mais escura a cor da pele,
quanto mais traços negroides uma pessoa tem, maior é o nível de
exclusão, principalmente falando de mídia. E a gente só pode pautar o
colorismo porque sim, existem várias escalas de tonalidades de pessoas
negras, mas a gente precisa deixar claro que o colorismo é um dos
braços do racismo, e a gente quer combater o racismo em sua
totalidade.
[...]
Por causa dessa imposição, desse mercado de cachos perfeitos, eu vejo
muitas meninas desistindo da transição, ou só utilizando sem tranças,
sem coragem de deixar os apliques porque afinal o cabelo delas não
vai ser igual ao cabelo de fulana de tal. E, pior ainda, muitas meninas
voltando a usar químicas transformadoras[...]E aí a Daiane, que é uma
menina cacheada não-negra decide fazer esse vídeo ridicularizando o

68
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=v93tX36gLaA&t=36s>. Último acesso em
18/06/19.
75

cabelo crespo, chamando de bombril, falando todas as palavras


ofensivas possíveis, falando que é feio, ridículo etc. [...]

Então assim, eu acho que pessoas como a Daiane precisam ter


responsabilidade, precisam ser responsabilizadas. Sim, a gente tem que
denunciar o vídeo, a gente tem que negativar o vídeo e mostrar que nós
não vamos aceitar mais esse tipo de discurso. Mas a gente também tem
que fazer a nossa parte. Quem vocês estão seguindo? [...] Eu acho
muito necessário a gente entender o poder que a gente tem nas mãos.
Eu já falei isso aqui em outros vídeos: a gente precisa parar de fazer
gente idiota se tornar gente famosa! A gente saiu da televisão, onde os
famosos eram empurrados goela abaixo, não importava o discurso,
porque a TV escolhia quem ia se tornar famoso, e aí a gente entra na
Internet, onde a gente tem o poder de escolha de quem a gente vai
seguir, do que a gente vai ver no nosso feed, do que a gente vai ver no
Youtube, no Facebook, e mesmo assim a gente escolhe seguir pessoas
que nos afetam negativamente, que deixam nossa autoestima lá
embaixo [...]

Para Gabi, que se reconhece enquanto uma mulher preta de cabelos crespos, o
discurso de aceitação do cabelo natural exclui os cabelos crespos, pois só os cacheados
de fato são socialmente aceitos e abraçados pela indústria cosmética. O cabelo natural só
é bem visto quando possui cachos aparentes. Ela enfatiza que as campanhas das marcas
dificilmente trazem mulheres de cabelos crespos e que o mercado impõe um padrão de
cachos perfeitos, atribuindo esta preterição ou esta exclusão ao colorismo.
A influenciadora define o colorismo como “um dos braços do racismo”,
explicando que, quanto mais “traços negroides” uma pessoa tem, ou seja, quanto mais
escura for a tonalidade da pele e mais crespo é o cabelo, maior é o nível de exclusão nos
espaços midiáticos. O colorismo é uma ideologia racial, produto da escravidão, que
favorece os indivíduos negros com pele mais clara e cabelos menos crespos, mais
próximos à textura lisa. No Brasil, ao longo do regime escravista, os senhores
estabeleceram um sistema hierárquico para separar e selecionar homens e mulheres
negras para determinados tipos de trabalho forçado. Este sistema hierárquico era baseado
em critérios anatômicos, como a textura do cabelo e tom de pele. Enquanto os homens e
mulheres que possuíam um tom de pele mais claro e o cabelo cacheado eram selecionados
para trabalhar no contexto da casa-grande, em serviços e atividades domésticas, os
homens e mulheres retintos e com cabelos crespos eram colocados nos trabalhos mais
pesados e desvalorizados, nas lavouras e engenhos. Segundo Amanda Braga (2015):

[...] o cabelo e o tom de pele eram critérios que estabeleciam a


classificação do escravo no interior do sistema, definindo suas
76

atribuições e atividades. Estamos tratando [...] da seleção eugênica [...]


já que as representações estéticas inspiradas no modelo europeu se
destacavam com autenticidade e beleza superiores. Essa seleção criaria
não apenas a preferência por um tipo de cabelo que já não era o crespo,
mas cacheado, herança da miscigenação, como também a prática – o
desejo – de alisar os cabelos, além de uma hierarquização entre os
escravos. Nascia, aqui, um olhar sobre sua estética que partia não de
sua origem, de sua identidade, como antes, mas partia do olhar do
outro.” (p.82-83)

Esta seleção eugênica de homens e mulheres negras escravizados deu origem a


um sistema de diferenciação e hierarquização entre pessoas negras dentro de sua própria
comunidade, valorizando as pessoas negras que possuem pele mais clara e cabelos menos
crespos e reforçando seu lugar em posições um pouco mais vantajosas.
Falar sobre o colorismo não significa equipará-lo ao racismo ou culpabilizar as
pessoas negras pelas opressões de raça, classe e gênero das quais são alvos. Significa
olhar mais detidamente para as consequências da política eugênica e do processo histórico
de desvalorização da estética negra. É preciso levar estas consequências a sério para
compreender as movimentações em torno do cabelo crespo do passado e do presente e o
lugar da estética nas lutas contra a racismo. Isto permite que nos orientemos diante dos
debates contemporâneos sobre a importância do cabelo crespo, sobretudo no que diz
respeito ao que é discutido na arena da Internet, onde conceitos e categorias circulam de
maneira rápida.
Na perspectiva de Gabi Oliveira, pessoas que perpetuam o discurso de rejeição ao
cabelo crespo, por conta do poder de alcance que possuem na Internet – ressalta que
Daiane possui 200 mil inscritos – devem ter mais responsabilidade sobre o conteúdo que
produzem e ser responsabilizadas pelo que dizem. Gabi se coloca a favor de denunciar o
vídeo ao Youtube e de negativá-lo como forma de demonstrar que o discurso propagado
nele não é mais aceito.
Negativar, no universo do Youtube, significa o contrário de dar um like. Enquanto
no primeiro caso o usuário clica no botão “não gostei”, simbolizado por uma mão fechada
com o polegar voltado para baixo, o que indica uma avaliação negativa sobre o conteúdo
publicado, no segundo caso o usuário clica no botão “gostei”, representado pela figura
oposta, ou seja, uma mão fechada com o polegar voltado para cima. Tratam-se de recursos
que o Youtube disponibiliza aos usuários para que estes possam expressar sua aprovação
77

ou desaprovação em relação aos conteúdos publicados e para que os youtubers possam


avaliar que tipo de conteúdo é (ou não) bem recebido por seus seguidores.
Aqui, cabe uma observação a respeito do impacto que estes recursos podem gerar.
Dar um like em um vídeo impulsiona o conteúdo dentro da plataforma, fazendo com estes
seja mais difundido pelos algoritmos. Negativar um vídeo, no entanto, pode gerar efeitos
ambíguos e contraditórios para além da simples desaprovação. Um vídeo que esteja sendo
muito comentado e negativado pode despertar a curiosidade das pessoas, atraindo um
público para além do público habitual do canal. O próprio ato de negativar o vídeo,
inclusive, implica em gerar uma visualização, contribuindo para a monetização69 do
conteúdo. Isso nos leva a pensar se, de fato, iniciar um movimento para negativar um
conteúdo acaba por ter os efeitos críticos pretendidos.
Gabi questiona as seguidoras a respeito das influenciadoras e do conteúdo que
seguem, chamando o público que consome vídeos da plataforma à uma reflexão sobre sua
responsabilidade na difusão de certos conteúdos: “Quem vocês seguem? A gente precisa
parar de fazer gente idiota se tornar famosa!”. A Internet possibilita, em sua visão, que
as pessoas escolham quem acompanhar, e, por isso, estas podem deixar de seguir os
conteúdos que as afetam negativamente e procurar referências positivas e mais próximas
de si mesmas. Nesse sentido, justamente pela maior possibilidade de escolha em relação
à outras mídias, as redes sociais permitem que as pessoas tornem alguém famoso,
aumentando a visibilidade de pessoas que nem sempre estão preocupadas com as
responsabilidades implicadas em torno da publicação de conteúdos.
Jacy Carvalho, do mesmo modo que Gabi Oliveira, também publicou um vídeo
em reação ao conteúdo de Daiane Nascimento, expressando seu desagrado e suas críticas.
No vídeo intitulado “Disseram que meu cabelo 4C é de bombril”70, a youtuber, uma
jovem mulher negra de pele retinta e com cabelos crespos, também traz uma reflexão
sobre a exclusão dos cabelos crespos e sobre a responsabilidade em torno de conteúdos
publicados na Internet:

Ninguém é obrigado a ter contato com esse tipo de conteúdo, ninguém


é obrigado a se ferir assistindo esse tipo de conteúdo. Todos nós,
crespos e crespas, sabemos o quanto o nosso cabelo, desse tipo [toca
nos próprios cabelos], 4C, é hostilizado em qualquer ambiente. Se a

69
Monetizar é um termo comumente utilizado pelos influenciadores para se referir ao retorno financeiro
gerado pelo número de visualizações que os vídeos atingem no Youtube.
70
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mTPlEjUjoh8&t=311s>. Último acesso em
20/03/22.
78

gente estiver num ambiente de trabalho, se a gente tiver na família, se


a gente tiver na Internet, se a gente for participar de uma campanha de
alguma marca, o quanto o nosso tipo de cabelo é hostilizado. Sempre
foi, e aparentemente sempre vai ser, porque a gente tá no fim de 2018
e a gente ainda é obrigado a ouvir esse tipo de comentário. [...] Todo
dia a gente acorda e passa por um teste de autoestima. Um teste de
autoconfiança. Esse foi um deles. Eu poderia ter me derrubado
assistindo esse vídeo, porque as coisas que ela fala são tão horríveis.
Pra mim, eu, Jacy, nesse momento de 2018, assisto aquele vídeo e ele
não me atinge tanto quanto me atingiria no início de 2017, por
exemplo. Mas atinge muita gente que me segue. [...]
Qual é a moral da história, qual é o resumo da ópera? Acompanhe
pessoas que tenham a ver contigo! Que não se apropriam de um
discurso pra poder bombar na Internet. Porque a gente tá vendo “as
cacheadas estão muito em voga”, “as cacheadas estão muito em alta”.
Que tipo de cacheada você quer seguir? Não to dizendo que todas as
meninas cacheadas têm esse tipo de discurso que ela teve. Mas que tipo
de discurso você quer apoiar?[...]Uma pessoa que prega autoestima,
que prega “vamos amar a nossa textura”...desde que a nossa textura
seja cacheada! Desde que a nossa textura forme cachos. Essa pedra já
tava cantada aí, ó, desde 2016 quando começou esse hype aí de
cacheada, já estava sendo cantada essa pedra de que a gente continua
na exclusão. Nós, crespas, continuamos na exclusão, porque antes era
“amor ao liso”, depois, “amor aos cachos” e agora continua sendo, se
você cachear, é melhor, se você alisar, é melhor. A gente continua
ouvindo as mesmas coisas. Então pra gente esse discurso de
amorzinho, de vamos amar a nossa textura ainda não chegou. É por
isso que é muito importante você fortalecer, você acompanhar, você
apoiar meninas e meninos crespos que tão aí na Internet, porque não é
fácil! A sociedade não compra a nossa imagem, a sociedade não
compra a nossa estética. Porque o padrão estético, no Brasil, não é o
nosso. Quanto mais largo o seu nariz, quanto mais grosso for os seus
lábios, quanto mais crespo for o seu cabelo, mais hostilizado você vai
ser em qualquer ambiente.

Jacy, ainda que não utilize o termo colorismo em seu vídeo, também faz uma
referência ao conceito ao enfatizar em seu discurso que a exclusão e a rejeição social são
maiores em relação às pessoas negras que possuem cabelos mais crespos e traços faciais
associados à negritude, como nariz largo e lábios grossos. Referindo-se a si mesma e a
outras pessoas que possuem uma aparência semelhante, ela afirma que o cabelo crespo é
hostilizado nos mais diversos ambientes e que a sociedade brasileira rejeita a estética
negra.
Ela também avalia criticamente a tendência de valorização do cabelo natural,
apontando que a ideia de “amar os cachos” não mudou as experiências vividas pelas
pessoas que possuem cabelos crespos, que continuam sofrendo com a exclusão: “A gente
continua ouvindo as mesmas coisas. Então pra gente esse discurso de amorzinho, de
79

vamos amar a nossa textura ainda não chegou.”. É com base nisso que Jacy convoca
suas seguidoras a acompanharem o trabalho de outras pessoas com cabelos crespos que
produzem conteúdos na Internet, ressaltando que é preciso avaliar criticamente quem
deve ou não ser seguido e que tipo de discurso deve ou não apoiado.
A youtuber Gleici Duarte, assim como Gabi Oliveira e Jacy Carvalho, também
postou um vídeo-resposta para se contrapor ao conteúdo publicado por Daiane. No vídeo,
intitulado “Tirei a definição do meu cabelo kkkkkk - caso Daiane Nascimento”, publicado
em 26 de dezembro de 201871, Gleici apresenta alguns argumentos muito semelhantes
aos de Gabi e de Jacy, como os limites do discurso de aceitação do cabelo natural e o
papel da indústria de impor um padrão de cachos definidos.
No entanto, diferentemente das outras youtubers, Gleici inicia o vídeo imitando
Daiane, aparecendo com seu próprio cabelo sem definição e repetindo algumas das frases
ditas pela youtuber. Ao parar com a imitação, Gleici modifica seu tom de voz e expressão
facial, demonstrando indignação, e explica que fez isso para chamar a atenção para uma
conversa sobre racismo, trazendo a seguinte reflexão:

Eu não acredito que em pleno 2018, porque eu tô gravando esse vídeo


no dia 25, dia de natal, eu ainda tenho que fazer um vídeo pra gritar o
óbvio. Obviamente, longe do meu local de fala. Mas que é
extremamente necessário. [...] A gente tem que conversar muito sério
sobre o racismo, sobre a discriminação em geral, do peso dessas
palavras, o peso que essas palavras podem ter, o impacto delas na vida
das pessoas negras, na vida das pessoas crespas.
[...]
E a gente tem que pensar na representação, quando a gente fala nessa
coisa de empoderamento, de que hoje em dia tem a transição capilar,
que hoje em dia tem a questão da aceitação, as marcas começaram a
prestar a atenção nas meninas cacheadas, vamos assumir o cabelo
cacheado...gente, o cabelo cacheado, o cabelo natural, ele só é
aceitável até o ponto do cacheado, o crespo nunca foi e não é visto
como padrão, pra ninguém! E inclusive pras meninas que são crespas
e que procuram uma representatividade, procuram uma maneira de se
identificar, e elas não encontram. Não encontram nas propagandas,
não encontram nos rótulos de produto pra cabelo cacheado, elas não
se encontram, não se veem. Por quê? Porque a própria indústria de
cosmético mesmo prega a definição a todo custo. Ela prega o cabelo
definido, o cabelo bonito.
[...]
É isso gente, a gente precisa, precisa, precisa falar sobre racismo,
precisa falar sobre exclusão de padrões, de cabelos crespos, a gente
precisa trazer isso. Mesmo eu não sendo negra, mesmo eu não tendo
cabelo crespo, mesmo eu...sabe? Sendo aqui, ó, a materialização de
todo tipo de privilégio, eu branca, padrão e tudo mais. O mínimo que

71
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ePWKAo_RA2A>. Último acesso em 18/06/19.
80

eu posso fazer, como influenciadora, o mínimo que eu posso fazer é dar


voz e chamar atenção pra essas demandas e fazer com que vocês
também tenham essa vontade de crescer e de abrir a cabeça, de lutar
por condições iguais.

Diferentemente de Gabi Oliveira e Jacy Carvalho, que são mulheres negras com
cabelos crespos e pele retinta e que se identificam diretamente com a questão tratada,
Gleici Duarte é uma mulher branca, de pele bastante clara e cabelos cacheados e constrói
seu discurso a partir de um ponto de vista diferente. Reconhecendo sua posição singular
em relação à questão, ela afirma que está longe de seu “local de fala” e que “mesmo
sendo a materialização de todo tipo de privilégio”, considera fundamental falar sobre
racismo, padrões estéticos e exclusão. Seu papel, nesse contexto, é o de “dar voz e chamar
atenção para essas demandas”, contribuindo para o debate enquanto influenciadora que
fala sobre cabelos.
Local (ou lugar) de fala e privilégio são categorias que têm se difundido nas
mídias digitais nos últimos anos. Em parte, elas têm sido disseminadas com base em
determinadas leituras do ativismo e das produções intelectuais de algumas feministas
negras contemporâneas que se tornaram mais popularmente conhecidas, como Djamila
Ribeiro. A ideia de local ou lugar de fala, nos contextos digitais, costuma ser mobilizada
no sentido de frisar a importância da experiência como uma espécie de autoridade política
para discutir determinados assuntos, sobretudo questões que tangenciam desigualdades
de gênero e raça. Privilégio, por sua vez, refere-se a certas vantagens, benefícios ou
direitos associados a posições hegemônicas em termos de raça, gênero e outros
marcadores sociais de diferença, mas também pode referir-se a uma identidade de gênero
ou de raça em particular, no sentido de que estas materializam as dinâmicas das
desigualdades.
Estas categorias, é preciso pontuar, são politicamente disputadas no contexto das
mídias digitais. Elas nem sempre são reconhecidas como legítimas por todos os atores e
atrizes envolvidos nas discussões, e nem sempre elas são acionadas em seu sentido
estrutural, sendo interpretadas, às vezes, como questões de ordem mais subjetiva e moral,
relacionadas ao que os agentes devem ou não fazer ao se posicionarem a respeito de
questões que envolvem desigualdades de gênero e raça.
Assim como Jacy e Gabi, Gleici também faz uma crítica em relação às iniciativas
de valorização do cabelo natural, apontando que os cabelos crespos continuam a ser
81

excluídos e rejeitados. Ela enfatiza que a indústria de cosméticos para cabelos tem um
papel importante neste cenário, na medida em que “prega a definição a todo custo” – ou
seja, que coloca os cabelos com cachos definidos como referencial de beleza. – e que não
coloca mulheres com cabelos crespos nas propagandas e nos rótulos dos produtos.
No fim de seu vídeo, Gleici indica influenciadoras negras para suas seguidoras
acompanharem. Ela menciona Jacy Carvalho, Gabi Oliveira, Rose Hapuque e Michele
Passa, acrescentando que estas mulheres, em suas redes, falam sobre conteúdos
relacionados a cabelo crespo, feminismo negro e empoderamento. Também deixa, na
caixa de informações do vídeo, uma lista de perfis do Instagram de influenciadoras
negras que considera exemplos afirmativos e cujos trabalhos acredita que merecem maior
destaque.
As críticas elaboradas ao vídeo de Daiane Nascimento, para além de se
posicionarem contra a atitude da influenciadora e rebaterem suas falas, tocaram em
questões mais amplas, abordando aspectos importantes no contexto do campo estudado,
como a estigmatização do cabelo crespo, o colorismo, os limites do discurso que abraça
o cabelo natural, o papel da indústria cosmética e a relação entre youtubers, seguidores
e a responsabilidade sobre o conteúdo produzido e a divulgação deste.
Dos vídeos-resposta que tive acesso, Gabi é a única influenciadora que, ao se
referir à Daiane, a marca racialmente de maneira mais explícita, qualificando-a como uma
pessoa cacheada não-branca. Outras youtubers, tanto brancas quanto negras, não
utilizam um termo de classificação racial para se referir à Daiane, optando por descrevê-
la apenas como cacheada, sem se referir a percepções de cor ou raça.
Ainda que não seja possível saber, a partir dos conteúdos analisados, como Daiane
se identifica racialmente, o modo como Gabi Oliveira se refere a ela e o modo como as
outras duas youtubers deixam de fazer menção direta à raça quando a descrevem –
descrevendo-a simplesmente como cacheada – é algo significativo. Isto porque a
discussão acerca de quem pode ser classificado ou não como uma pessoa negra ou como
uma pessoa branca pode adquirir contornos delicados, envolvendo questões como a
autoclassificação, a origem familiar e a percepção social sobre a aparência do indivíduo.
Com o volume de críticas e as acusações de racismo recebidas, Daiane retirou o
conteúdo do ar e publicou um vídeo, no dia 23 de dezembro de 2018, em que aparece
junto ao seu noivo pedindo desculpas às seguidoras, intitulado “Errar é humano! Meu
82

pedido de desculpas”72. Esta retirada do vídeo a princípio dificultou meu acesso ao


conteúdo completo e a determinação da data exata em que foi postado73: de início só
consegui assistir aos pequenos trechos do vídeo de Daiane que haviam sido colocados
nos vídeos-resposta críticos produzidos por outras youtubers. Somente após fazer uma
pesquisa mais minuciosa pelo Youtube, no início de janeiro de 2019, consegui encontrar
um pequeno canal de beleza em que a youtuber74 postou na íntegra o vídeo original de
Daiane, com cerca de 12 minutos de duração.
Algumas youtubers que criticaram o discurso de ridicularização do cabelo crespo,
como Gleici Duarte e Jacy Carvalho, alegaram que a primeira atitude de Daiane, ao
receber as críticas, não foi a de tirar o vídeo do ar. Segundo elas, Daiane, num primeiro
momento em que recebeu as críticas colocou o vídeo como privado75, restringindo o
acesso ao conteúdo, e depois o postou novamente com mais propagandas, de modo a obter
mais monetização com um conteúdo que estava crescendo em visualizações justamente
por causa das críticas. Num segundo momento, talvez após perceber que as críticas não
cessaram e que a repercussão negativa estava crescendo, Daiane efetivamente excluiu o
conteúdo do Youtube e postou um vídeo pedindo desculpas às suas seguidoras.
Neste vídeo, de aproximadamente 30 minutos, Daiane alega que comparou o
cabelo crespo à palha de aço e ao cabelo de palhaço “na inocência”, com o objetivo de
ser engraçada e espontânea. Ela pede desculpas às pessoas que “se ofenderam” com o
vídeo, explica que não soube se expressar bem e que se tivesse imaginado a repercussão
que o vídeo poderia ter não o teria publicado. Frisa que não acha o cabelo tipo 4C feio, e
que o objetivo de seu canal é levar autoestima e ajudar as “meninas crespas se
aceitarem”.
Chama a atenção o modo como o cabelo de Daiane aparece aqui, diferente do que
foi exibido no vídeo em que tirou a definição. O volume é menor, os cachos são bastante
definidos e as mechas de cabelo caem verticalmente, emoldurando seu rosto e crescendo
em direção aos ombros. O visual apresentado é muito semelhante ao de certos tipos de

72
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=-70FbgPrHfQ&t=9s>. Último acesso em 18/06/19.
73
Pela sequência de reações no Youtube, com a postagem de alguns vídeos resposta, acredito que o vídeo
“Tirei a definição do meu cabelo #Especial200K” tenha sido originalmente postado no dia 21 ou 22 de
dezembro.
74
Não menciono o nome do canal ou o endereço da publicação de modo a preservar a identidade de alguém
que não faz parte do recorte etnográfico estabelecido: a youtuber em questão possui cabelos lisos e faz
vídeos focando-se neste tipo de cabelo.
75
Um vídeo marcado como “privado” só é visível para o/a proprietário/a do canal.
83

cabelos cacheados, que possuem mechas em um formato de mola e um volume não tão
proeminente.
Desde o início do vídeo há um rapaz posicionado ao seu lado, que ela apresenta
como noivo. Ele explica sua presença no vídeo dizendo que, como faz o trabalho de
filmagem e de edição do canal, se sentiu no dever de falar publicamente sobre a polêmica.
Seu discurso é ambíguo e não faz, talvez propositalmente, uma menção clara às questões
raciais: ele diz apoiar as pessoas que “lutam por seus direitos”, mas acredita que algumas
pessoas criticaram Daiane para “aparecer” e “ganhar visualizações” em seus canais.
Daiane e o noivo complementam a si mesmos e repetem o que o outro diz,
reforçando alguns pontos colocados. Ambos, em seu discurso, procuram se afastar da
responsabilidade sobre o que foi dito. As desculpas são dirigidas a quem “se ofendeu”
com o conteúdo, e eles ressaltam que várias seguidoras crespas de Daiane “entenderam
a brincadeira” e “se divertiram”, demonstrando apoio. Relatam também que receberam
muitos comentários ofensivos e xingamentos em seus perfis pessoais do Instagram.
Em determinado momento, os dois acionam argumentos que comumente são
levantados quando acusações de discriminação racial são feitas. Enquanto Daiane afirma
não ser preconceituosa ou racista, o rapaz reforça esta afirmação argumentando que a
maioria das pessoas, assim como eles próprios, possuem pelo menos uma pessoa negra
em sua família. Este discurso, muito comum quando surgem acusações de racismo,
pretende suavizar ou eliminar acusações de preconceito ou discriminação ao apontar a
proximidade ou familiaridade das pessoas acusadas com pessoas negras, como se estas
tornassem alguém automaticamente incapaz de reproduzir as percepções racistas e
hierarquizantes que comumente circulam em sociedade. A proximidade é, na realidade,
um elemento chave do chamado racismo à brasileira, pois, além de ser um aspecto
característico do fenômeno, também é utilizada como uma justificativa para despolitizar
a questão, colocando-a na esfera privada – como se tal esfera privada fosse
completamente separada do espaço público.
Assim, ainda que o vídeo seja apresentado como um pedido de desculpas, Daiane
não se enxerga como responsável pelos termos pejorativos utilizados e pelas reações e
emoções que estes despertaram nas pessoas que assistiram ao conteúdo. Admite que
cometeu um erro, mas que este foi despido de uma intencionalidade negativa. O tom muda
um pouco com o passar dos minutos: se de início Daiane pede desculpas e diz que não
soube se expressar adequadamente, com o desenrolar do vídeo, ela e seu noivo parecem
84

identificar as pessoas que se sentiram ofendidas como o problema de fato, pois estas não
teriam entendido a “brincadeira”.
Na perspectiva do casal, não só a acusação de racismo é infundada, como o
racismo estaria “no olhar de quem reclamou”: aqui também é acionado um discurso
muito comum, que trata a própria acusação como racismo e como um problema de
autoestima do acusador. Eles ainda vislumbram um saldo positivo após o episódio,
frisando que, apesar de terem perdido alguns inscritos, a polêmica acabou por trazer
outros interessados no canal.
O vídeo de Daiane Nascimento gerou uma série de reações. Primeiro, das pessoas
que assistiram, posteriormente, de outras youtubers crespas e cacheadas e, por fim, sua
atitude de apagar o vídeo e postar um pedido de desculpas. A repercussão negativa do
conteúdo obrigou não apenas ela mesma a se explicar, mas, de certa forma, influiu na
decisão de outras youtubers publicarem vídeos-resposta, criticando a postura da
influenciadora.

1.4.4 – Debates nas mídias digitais

Os casos discutidos nesta seção, a despeito da singularidade de cada situação e


das diferenças entre as pessoas envolvidas, mostram o quanto os debates envolvendo
gênero, raça, estética e política estão cada vez mais intensos nas mídias digitais, em
plataformas como o Facebook, o Youtube e o Instagram, e o quanto a noção de racismo
e os debates a seu respeito têm se alargado e ganhado maior visibilidade pública nos mais
diferentes espaços sociais. Conforme John B. Thompson (2008) argumenta, a disputa por
visibilidade, mais que levar ao conhecimento público certos aspectos da vida social e
política, “[...] se tornou o fundamento pelo qual as lutas sociais e políticas são articuladas
e se desenrolam.” (p.37).
É claro que os debates sobre racismo, gênero e estética têm sido feitos pelas
feministas negras e por setores do movimento negro há décadas. Mas o que me interessa
propriamente é olhar para a disseminação mais recente que têm ocorrido nos e através
dos espaços online, especialmente as mídias digitais mencionadas, que trazem um acesso
mais facilitado até mesmo a quem tinha pouco contato com os assuntos em questão.
A maior facilidade de acesso à Internet e a possibilidade de usuárias produzirem
conteúdos têm sido um campo fértil para a disseminação e popularização de repertórios
85

feministas (FACCHINI e FERREIRA, 2016) e antirracistas. A atuação política por meio


de redes sociais enfatiza certos temas e ajuda a traduzir determinadas lutas, ideias e
termos, tendo como foco a atração de pessoas mais jovens (FERREIRA, 2015).
Inspirada na análise de Regina Facchini e Carolina Ferreira (2016) sobre as
mudanças que têm ocorrido “nas convenções que implicam a percepção, reconhecimento
e enfrentamento à violência de gênero” (p.4), compreendo que os casos analisados são
sintomáticos da mudança de sensibilidades quanto ao que pode ser considerado violência,
machismo e racismo e quanto à forma de visibilizá-los que têm ocorrido recentemente no
Brasil. As acusações de racismo, as denúncias relativas às situações discriminatórias
vivenciada por mulheres negras são partes deste cenário, de alargamento e espraiamento
das semânticas referentes ao machismo e ao racismo. E não por acaso estas acusações e
denúncias, ainda que nem sempre reconhecidas pelas instituições e pelo Estado, são
disseminadas e debatidas nas redes sociais.
A estética, e mais especificamente o cabelo crespo, mostra-se como um elemento
central neste processo de alargamento e espraiamento. E aqui menciono o cabelo crespo
por compreender que há diferenças fundamentais, no modo como cabelos crespos e
cacheados são valorizados, manipulados, racializados, retratados e mercantilizados.
Mesmo em um contexto social de maior abertura às críticas ao alisamento e ao
ideal de beleza embranquecido, as classificações, hierarquias e desigualdades continuam
presentes e são reconfiguradas, colocando os cabelos cacheados como os cabelos bonitos,
desejáveis e saudáveis, enquanto os cabelos crespos, apesar dos discursos de afirmação,
ainda permanecem, para muitos, como os cabelos indesejáveis, que devem ser
necessariamente modificados e arrumados.

***

Iniciei este capítulo com uma discussão sobre o cabelo enquanto objeto de
interesse antropológico e a relação entre racismo, ciência e indústria da higiene. Minha
intenção foi historicizar o processo de estigmatização do cabelo crespo, situando como
percebo, nesta tese, as relações entre o cabelo e sistemas de desigualdade, como o
racismo, por meio do qual se conectam distintos universos, da ciência ao mercado dos
cosméticos – busquei, neste sentido, evidenciar circulações e conexões entre distintos
campos.
86

Posteriormente, abordei os movimentos políticos, estéticos e culturais de


valorização do crespo no Brasil contemporâneo, mostrando como também há circulações
conexões aqui, sobretudo com movimentos de caráter semelhante nos Estados Unidos.
Os cabelos crespos aparecem como centrais na produção de uma estética negra que é
afirmativa e politizada, que pretende contestar as normas vigentes e ampliar as referências
estéticas para as pessoas negras.
Por fim, considerando que é preciso enfatizar como o campo estudado é
atravessado pela materialidade da discriminação racial, discuti alguns casos de acusações
e denúncias de racismo relacionados aos cabelos crespos, que acompanhei durante a
pesquisa, situando os ambientes digitais como espaços de amplificação de denúncias e de
contestação do racismo, bem como da reconfiguração de classificações, hierarquias e
desigualdades. Compreendo ser fundamental não ignorar como os movimentos
afirmativos que constroem a estética negra ainda disputam espaço em um cenário onde o
racismo, sobretudo em sua dimensão estética, permanece.
87

CAPÍTULO 2 - O INTERESSE DO MERCADO

2.1 – “O racismo atrapalha os lucros”

“Meu nome é Renato Meirelles, sou homem, branco, paulistano com curso
superior e tenho 41 anos de idade. E pelo simples fato de ser branco, ganho 34% a mais
do que um homem negro, paulistano, de 41 anos de idade com curso superior.” É deste
modo que Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisa Locomotiva, se
apresentou às plateias que acompanharam eventos de caráter empresarial76 dedicados a
discutir a questão do afroconsumo77. Enfatizando seu lugar enquanto homem branco na
sociedade brasileira, chamou a atenção para a desigualdade racial quando comparou sua
renda à de um perfil de homem negro com as mesmas características em termos de idade,
escolaridade e local de nascimento.
O reconhecimento de sua posição social privilegiada foi utilizado como um
pontapé para iniciar uma discussão sobre racismo, mercado e consumo da população
negra brasileira baseada nos dados de uma pesquisa realizada pelo instituto Locomotiva.
A pesquisa em questão, intitulada “A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo
e Empreendedorismo”, foi encomendada pelo Instituto Feira Preta, em parceria com o
banco Itaú, e divulgada no final de 2018. Em todas as ocasiões em que pude assistir
Renato falando sobre estes temas, ele apresentou os dados desta pesquisa de maneira clara
e objetiva, focando-se principalmente na questão do poder de consumo e nas preferências
da população negra brasileira.
Alguns dos dados mencionados nas apresentações impressionam pelos números.
De acordo com a pesquisa, a população negra não constitui apenas um nicho de mercado,
pois movimenta cerca de R$1,7 trilhões de renda própria no país e formaria, sozinha, o

76
Os eventos foram o lançamento da pesquisa “A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo e
Empreendedorismo”, realizado em novembro de 2018 na Praça das Artes, no centro de São Paulo, o Fórum
Diversifique - Afro Consumo e Inclusão Racial, também realizado em novembro de 2018, no Teatro
Santander, localizado no bairro da Vila Olímpia, região nobre da cidade, e o evento Raça e Mercado: uma
transformação econômica, apresentado da Fundação Getúlio Vargas, no âmbito da Escola de
Administração de Empresas de São Paulo, em maio de 2019.
77
Categoria êmica empregada para se referir às múltiplas relações entre os(as) consumidores(as) negros(as)
e o mercado. A união dos termos afro e consumo, mais que indicar uma mera especificidade ou
segmentação, carrega uma marca racial que raramente é enunciada quando se fala a respeito do consumo
de outros grupos étnico-raciais.
88

17º país com maior mercado consumidor do mundo. Quando o assunto são as preferências
de consumo, a pesquisa afirma que “81% dos negros brasileiros gostam de produtos que
melhorem sua autoestima” – esta frase, talvez não por acaso, foi acompanhada da imagem
de uma mulher negra jovem e bela, exibindo cabelos trançados.
A respeito das percepções das mulheres negras, o estudo diz que a maioria delas
gostaria de ver mais mulheres com cabelos crespos e cacheados nas propagandas
televisivas. Foi destacado que as mulheres negras “não querem se tornar brancas”, e sim
se verem melhor representadas nas mídias, ou seja, desejam referências próprias.
Estes números, segundo Renato, mostram que as empresas que não dialogam com
os consumidores negros estão perdendo um mercado consumidor gigantesco e maiores
oportunidades de ganhos. Ele argumenta que, para construir este diálogo, não basta a
empresa colocar uma modelo negra em uma peça publicitária. Em sua visão, é preciso ter
profissionais negros criando produtos e propagandas, pois estes sabem, efetivamente,
como se comunicar com o público consumidor constituído por pessoas negras.
Em todas as vezes que pude acompanhar a apresentação dos dados da pesquisa “A
Voz e a Vez”, Renato encerrou suas falas, apesar das pequenas variações na escolha de
palavras, com a seguinte conclusão: “se não for por uma questão de justiça, que seja por
uma questão de inteligência, pois o racismo atrapalha os lucros”. O final das
apresentações, assim, tentou convencer o público da importância do combate ao racismo
de um modo peculiar, defendendo que tal questão não é apenas moral, mas também
financeira.
Em dos eventos nos quais Renato se apresentou, outra palestrante também
abordou o racismo sob as lentes dos ganhos e perdas financeiras. Luanna Teofillo, jovem
mulher negra fundadora do Painel Bap, dedicado à pesquisa sobre consumo e
empreendedorismo negro, foi intensamente aplaudida quando questionou aos presentes
“vocês preferem ser racistas ou ganhar dinheiro?”. Luana argumentou que o sistema
econômico brasileiro não é o capitalismo, e sim o racismo econômico: não se trata de
capitalismo porque o país não oferece três condições básicas do sistema capitalista à
população negra, a saber, a propriedade privada, a livre iniciativa e a livre concorrência78.

78
Do ponto de vista histórico e sociológico, pode-se criticar este argumento a partir de diversos parâmetros,
apontando, por exemplo, que o sistema capitalista desenvolveu-se justamente através da escravização e
desumanização de populações africanas, despindo-as de qualquer posse material e simbólica. Contudo, meu
objetivo aqui é compreender porque determinados atores acionam determinados argumentos em certas
circunstâncias, ou seja, porque produzem certos discursos, e para quem.
89

Em sua visão, o mercado brasileiro não atende às demandas da população negra,


pois não produz produtos e serviços que pessoas negras certamente comprariam.
Exemplificando seu ponto, trouxe a questão dos produtos relacionados à filmes: enquanto
é possível comprar quaisquer produtos do desenho Frozen79 no comércio popular de São
Paulo, não se encontra produtos relacionados ao filme Pantera Negra80. Relatando que
não conseguiu encontrar sequer copos plásticos do filme, concluiu que “se fosse
capitalismo, o mercado atenderia à demanda. Capitalismo é plástico!”.
Embora Renato Meirelles e Luanna Teofillo sejam sujeitos em posições
estruturalmente desiguais em termos de gênero e raça, que provocam o público a partir
de lugares diferentes, suas falas ecoam o entendimento comum de que o racismo é um
problema para o desenvolvimento da economia e para a busca do lucro. Há um apelo à
uma presumida racionalidade econômica dos empresários e outros profissionais do
mercado, como os publicitários: o racismo deveria incomodá-los, em última instância,
porque impede ganhos monetários maiores. Neste sentido, o cálculo “objetivo” dos lucros
supostamente levaria em conta questões como racismo e desigualdade.
É curioso que este tipo de argumento seja mobilizado para persuadir plateias
compostas por empresários, publicitários e outros atores do mercado. Livio Sansone
(2000) assinala a exclusão histórica da população negra da esfera do consumo explicando
que, enquanto esta população sempre foi essencial do ponto de vista da produção – ao
menos quando se considera os postos de trabalho menos prestigiados econômica e
socialmente – seu potencial de consumo nunca foi tratado como tal, e sim colocado à
margem.
O autor, assim como Angela Figueiredo (2004), traz uma discussão sobre a relação
entre pessoas negras e o acesso à bens de consumo relacionados à ideia de modernidade,
mostrando como prevalece a percepção social de que esta relação é contraditória. Pessoas
negras que demonstrem ter um poder aquisitivo mais alto ou que possuam algum bem de

79
O desenho Frozen, produzido e distribuído pelos estúdios Disney, lançado no ano de 2013, conta a
história de uma princesa, branca e loira, cujo poder de congelamento transformou seu reino em um eterno
inverno. Ainda em 2020 é possível encontrar uma infinidade de produtos relacionados ao desenho, como
bonecas, roupas, mochilas, materiais escolares, produtos de higiene para crianças e todo tipo de acessório
de plástico.
80
O filme Pantera Negra, produzido pelos estúdios Marvel e distribuído pela Disney, lançado em 2018,
traz a história de um super herói negro, T’Challa, que torna-se rei de Wakanda, um poderoso reinado
africano cujo controle é alvo de disputa.
90

consumo socialmente desejado são vistos com desconfiança, como sujeitos “fora de seu
lugar” (FIGUEIREDO, 2004), quando não com desdém.
A respeito da população negra com menor poder aquisitivo, Rosana Pinheiro-
Machado (2019) pontua que o uso de certos bens por homens negros jovens e pobres,
como roupas, tênis e óculos de marcas caras, é socialmente encarado sob a ótica do
desprezo e do deboche, gerando incômodo especialmente entre pessoas brancas de classes
sociais privilegiadas. Isto mostra como o consumo por parte de pessoas negras,
independentemente de sua posição de classe, é visto com estranhamento e desconfiança.
É preciso interrogar os discursos produzidos pelos atores do mercado, analisando-
os de forma crítica e buscando compreendê-los frente a mudanças sociais mais amplas,
que dizem respeito ao conjunto da sociedade brasileira nos últimos anos. Não se trata de
questionar a intenção pessoal ou a legitimidade das falas aqui transcritas, mas sim de
situar as preocupações e os interesses de uma fatia do mercado que tem discutido questões
raciais.
A ideia de que o “racismo atrapalha os lucros” precisa ser posta em perspectiva,
uma vez que, historicamente, do ponto de vista de fatias importantes do mercado, o
racismo sequer era discutido ou considerado um problema para os lucros. Creio que, em
conjunto com a amplificação do debate sobre racismo que tem recentemente ocorrido no
Brasil, especialmente no âmbito das redes sociais, a ideia de classe média negra, que não
é nova, tem provocado movimentações na esfera do mercado, espraiando-se para além
dos debates acadêmicos e de alguns segmentos específicos do mercado.

2.2 – A emergência da classe média negra

Os discursos sobre o consumo da população negra, suas preferências e percepções


e sobre os lucros e estratégias das empresas não foram uma exceção nos eventos
empresariais que pude acompanhar. Em um deles, Fernando Montenegro, um jovem
homem negro fundador do Think Etnus, instituto de pesquisa dedicado a estudar os
hábitos de consumo da população negra, também trouxe dados semelhantes sobre
percepções, intenções e preferências dos(as) consumidores(as) negros(as).
Fernando iniciou a apresentação conceituando o termo afroconsumo:
91

Movimento de contracultura, que considera a influência direta ou


indireta das características étnico-raciais sobre as experiências do
consumidor, consciente ou inconscientemente, conduzindo as
características estéticas e raciais (biológicas) e culturais intrínsecas
aos afrodescendentes.

A definição mostrada ao público marca a especificidade do conceito e traz a ideia


de que o consumo significa mais que a mera aquisição de bens, envolvendo dimensões
culturais e políticas relacionadas à raça.
Em seguida, trouxe um panorama geral a respeito da população negra brasileira,
ressaltando alguns dados relacionados à classe e ascensão social no país. Referindo-se a
dados divulgados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da
República em 2012, apontou que na última década 35 milhões de brasileiros ascenderam
economicamente e que 80% dos integrantes da chamada “nova classe média” brasileira são
pessoas negras.
A apresentação destes dados a um público majoritariamente empresarial certamente
não foi casual. A produção de um discurso, pelo mercado, sobre a relação entre a população
negra brasileira e o consumo não é exatamente algo novo. Peter Fry (2002), ao estudar a
publicidade voltada para a população negra e o surgimento da revista Raça81 na década de
1990, mostra o crescente interesse de determinados atores do mercado na chamada “classe
média negra”, até então pouco reconhecida como consumidora. Inspirando-se em Marshall
Sahlins (2000), Fry argumenta que, embora os atores do mercado acreditem estar respondendo
a uma demanda dos consumidores negros, as iniciativas do mercado são parte fundamental do
próprio processo de constituição desta “classe média negra” consumidora. É possível, ainda,
traçar um paralelo entre esta ideia de uma classe média negra e o discurso a respeito dos
consumidores homossexuais, observado por Isadora França (2006): do ponto de vista de atores
do mercado voltado para gays e lésbicas, os homossexuais constituíam um público com renda
e estilo de vida compatíveis com um grande potencial de consumo, e até então não eram
adequadamente contemplados enquanto consumidores.
Mais recentemente, com a construção de um discurso governamental82 sobre a
ascensão socioeconômica dos setores mais desprivilegiados da população brasileira, a ideia de
uma “classe média negra” acabou, em certa medida, associando-se à noção de “nova classe

81
Publicação dedicada ao público negro de periodicidade mensal.
82
Refiro-me aos governos dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011-
2016).
92

média” (ou “nova classe C”). A ideia desta “nova classe média”, bastante controversa nos
meios acadêmicos, sendo objeto de críticas por sociólogos como Marcio Pochmann (2014) e
Jessé Souza (2017), tem sido endossada por diversos atores do mercado, que enxergam neste
discurso um terreno favorável para se aproximar de determinados segmentos, notadamente
daqueles que, anteriormente, não eram reconhecidos como consumidores.
Do ponto de vista do mercado, a noção de classe social e as distinções de classe
baseiam-se não em critérios sociológicos, mas na capacidade de consumo dos indivíduos e das
famílias dos diferentes segmentos sociais. Como Heloisa B. de Almeida (2015) retoma, se
entre as décadas de 70 e 90 o mercado privilegiou a comunicação com as “classes AB”, a partir
da década de 2000 começou-se a olhar para as camadas populares. Neste período,
pesquisadores e institutos como o Data Popular83 chamavam a atenção para a expansão do
mercado consumidor nacional e para as crescentes oportunidades de acesso a bens de consumo
industrializados por parte dos setores mais pobres da população brasileira.
A questão dos cabelos foi tratada de maneira mais detida pelo fundador da Think
Etnus. Mencionando o dado de que o consumo de alisantes caiu 26% no Brasil, Fernando
Montenegro criticou a justificativa apresentada pelo presidente-executivo da Associação
Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC) em um
programa de televisão – o trecho do programa inclusive foi exibido no telão do auditório.
Enquanto o presidente da ABIHPEC atribuiu a queda do consumo de alisantes à
crise econômica e ao menor tempo gasto no banho pelos consumidores, Fernando
explicou que as mulheres negras não deixaram de consumir produtos de beleza, e sim que
estão procurando produtos para cabelos crespos naturais, e que, quando não os encontram
no mercado, recorrem às receitas caseiras para os cabelos, utilizando ingredientes como
ovo, abacate e azeite de oliva.
Assim como Renato Meirelles, Fernando Montenegro também apontou como
problema a postura das empresas. Para ele, colocar pessoas negras nas propagandas é
insuficiente, pois é fundamental que as marcas tenham em seus quadros funcionários
negros desenvolvendo produtos para pessoas negras, pensando em todas as pontas do
processo produtivo, ou seja, desde a criação do produto até a comunicação com os
consumidores.
Em determinado momento de sua fala, o fundador da Think Etnus mencionou uma
pesquisa realizada pelo Google BrandLab São Paulo em 2017. As principais conclusões

83
O Data Popular foi fundado em 2002 por João Augusto Palhares Neto e Renato Meirelles, e desde o
início de coloca como observador do comportamento da “classe C”.
93

da pesquisa, divulgadas na Internet através do documento “Dossiê BrandLab: A


Revolução dos Cachos”84, apontam para um crescimento de 309% no interesse por
cabelos afro e de 232% nas buscas por “cabelo cacheado” no Google. O texto de
apresentação do Dossiê deixa explícita a intenção de dialogar com as empresas:

O interesse por cabelos afro cresceu nada menos que 309% nos últimos
dois anos e, pela primeira vez, o interesse por cabelos cacheados
superou o por cabelos lisos nas buscas. Esta tendência nasceu do
underground e tornou-se mainstream com a força de símbolo do amor
próprio e do fortalecimento da identidade negra e afrodescendente. Sua
marca está preparada para essa revolução?

Chama a atenção a adoção de discurso que enfatiza as ideias de identidade e de


autoestima, frequentemente presentes nas falas de interlocutoras adeptas ao cabelo
natural. No trecho, o Google Brandlab apresenta dados e tendências que identificou,
introduzindo ao(à) leitor(a) uma linguagem comum entre as consumidoras, para logo sem
seguida interpelá-lo(a): “sua marca está preparada para essa revolução?”.
Embora o dossiê não recomende de forma explícita as parcerias com
influenciadoras crespas e cacheadas, é possível dizer que isto é indiretamente sugerido,
uma vez que o documento apresenta as youtubers como “as novas especialistas” e
“referências” quando o assunto são os cachos, pois são tidas como fonte de conhecimento
sobre cabelos cacheados pela maioria das mulheres que possuem este tipo de cabelo.
Nos eventos mencionados, os palestrantes, de modo geral, trouxeram dados a
respeito de como pessoas negras enxergam as iniciativas e as omissões das marcas,
explicando que estes não se sentem adequadamente contemplados pelas empresas e que
buscam produtos com os quais possam se identificar e se reconhecer neles. A visão dos
consumidores, filtradas pelas pesquisas e pelos olhares dos palestrantes, foi apresentada
ao público, de modo a revelar percepções, preferências e avaliações que talvez não sejam
evidentes a determinados atores do mercado.
Estes eventos foram patrocinados ou apoiados por uma variedade de empresas
como bancos, indústrias de cosméticos e higiene pessoal, companhias farmacêuticas e
empresas da área da comunicação. Em todos os debates a questão em torno dos cabelos
crespos e cacheados emergiu em diversos momentos, ainda que este não tenha sido o

84
Disponível em <https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/advertising-
channels/v%C3%ADdeo/revolucao-dos-cachos/>. Último acesso em 26/06/19.
94

assunto prioritariamente enunciado em nenhum deles. Não se trata de um assunto restrito


ao universo da estética e das marcas de cosméticos, mas de um aspecto que se estende a
uma variedade de setores que pretendem dialogar de maneira mais efetiva com as(os)
consumidoras(es) negras(os): isto porque, de acordo com alguns publicitários,
empresários e pesquisadores, o público negro espera ver pessoas negras com cabelos não
alisados nos rótulos dos produtos, nas propagandas e nas mídias.
Os discursos analisados evidenciam que a questão da diversidade racial e a
necessidade de se pensar produtos e linguagens específicas para os(as) consumidores(as)
negros(as) tornou-se uma pauta de discussão na agenda de uma parcela dos atores do
mercado. Em um contexto em que o Estado brasileiro, sob o governo de Jair Bolsonaro,
iniciado em 2019, se mostra cada vez mais avesso à promoção de políticas de igualdade
racial e inclusão social, é singular que determinadas fatias do mercado se mostrem mais
engajadas na elaboração de um discurso sobre diferença, diversidade e inclusão, que
reconhece e legitima a população negra enquanto consumidora.
A ideia de uma classe média negra, que precisa ser mais bem atendida pelo
mercado, é um operador fundamental. Para certos atores do mercado, esta parcela da
população possuiria um enorme potencial de consumo e um desejo de ser reconhecida
pelas marcas e de se reconhecer nos produtos e serviços oferecidos. Isto constituiria um
atrativo para empresas fabricantes dos mais variados bens e serviços, como as indústrias
de beleza e higiene pessoal, os bancos, as montadoras, as farmacêuticas, as empresas de
telefonia, entre outras.
Também foi enfatizado, por diferentes palestrantes além dos citados, o quão
importante é para as marcas e empresas contratarem e manterem em seu quadro de
funcionários profissionais negros das mais diversas atividades e níveis hierárquicos.
Ainda que argumentos sobre justiça, igualdade e combate ao racismo tenham sido
mobilizados, as argumentações se apoiaram primordialmente em aspectos como o valor
e a imagem institucional da empresa, a criação e produção de produtos e a comunicação
com o público consumidor.
A título de exemplo, o relatório “Black In – Como engajar as empresas com a
diversidade racial”, produzido pela empresa de consultoria Santo Caos, elenca os
benefícios gerados por um ambiente de trabalho com maior diversidade racial, chamando
a atenção para vantagens como maior produtividade, maior lucratividade, melhor
entendimento do público consumidor, fortalecimento da imagem institucional da marca
e maior reconhecimento de seu papel social.
95

Minha análise não pretende retratar o mercado enquanto um agente promotor de


igualdade social mais eficiente que o Estado e os movimentos sociais ou ignorar as
assimetrias entre os diversos atores envolvidos e os eventuais processos de despolitização
que possam estar envolvidos neste cenário. Todavia, o objetivo tampouco é reduzir as
relações observadas a uma avaliação moralista do mercado e do consumo (MILLER,
2004a), que tende a situar os atores do mercado no papel de manipuladores e as práticas
de consumo como pura superficialidade, promovendo um corte radical entre as instâncias
de produção e de consumo e dificultando a análise de situações complexas.
Trata-se de considerar as complexas interações entre iniciativas do mercado,
práticas de consumo e processos mais amplos de construções de identidades e
subjetividades relacionadas à raça, gênero, estética e política. Como Isadora França
(2007a; 2007b) pontua, investigações sobre iniciativas do mercado e comportamento dos
consumidores não podem ser interpretadas descoladas de processos sociais maiores, ou
perde-se a profundidade da análise. Minha intenção é trazer para o centro do debate as
maneiras pelas quais, ao menos em seus discursos públicos, determinados atores do
mercado têm se debruçado, ainda que de modo ambíguo e descompassado, sobre questões
que envolvem desigualdades e a produção de diferenças e identidades.
Em um cenário onde as redes sociais permitem que as pessoas publiquem
comentários, críticas e sugestões nas páginas das empresas, cobrando o desenvolvimento
de produtos específicos, uma maior presença e variedade de modelos negros nas
campanhas publicitárias e o posicionamento das marcas com relação às polêmicas
envolvendo acusações de racismo, determinados atores compreendem que as marcas, em
algum nível, precisam repensar a maneira como criam, produzem e vendem. Isto inclui
repensar os produtos, suas matérias-primas, suas embalagens, as campanhas publicitárias,
os posts publicados nos perfis de redes sociais, entre outros aspectos elementares.

2.3 – Problematizando “o” mercado

É preciso compreender que o mercado não é uma entidade homogênea, constituída


por atores que ocupam posições semelhantes e que competem em igualdade de condições.
Em seu artigo sobre as atividades de empreendedorismo da Feira Preta85, evento de

85
A Feira Preta “trata-se de um evento que promove que promove atividades culturais – de música, artes
plásticas, cinema, dança, literatura, moda – e comércio de produtos segmentados voltados à ‘comunidade
96

caráter comercial e cultural dirigido à população negra, Gleicy Silva (2018) frisa que a
competição entre pequenos/as empreendedores/as negros/as e grandes empresas é
desigual.
A autora mostra que, enquanto os/as pequenos/as empreendedores/as em geral não
conseguem produzir e distribuir seus produtos e serviços em grande escala e atingir preços
mais competitivos, enfrentando dificuldades até mesmo para conseguir empréstimos e
financiamentos para ampliar seus negócios, as grandes empresas que começam a atuar no
mercado segmentado, além de já possuírem previamente os recursos para produzir e
distribuir em grande quantidade e a um baixo custo, acabam por agregar ainda mais valor
à suas marcas ao adotarem um discurso que valoriza a identidade a autoestima do público
consumidor.
Esta condição de competição desigual é particularmente sobressalente quando o
setor analisado é o de cosméticos e higiene pessoal direcionados à população negra, que
inclui os produtos para cabelo. Em um dos eventos empresariais que pude acompanhar, a
fundadora da Feira Preta, Adriana Barbosa, destacou que os preços praticados pelas
empreendedoras negras da área da beleza costumam ser maiores porque elas “não têm
escala” e não possuem o poder das grandes marcas: “a mana que faz os cremes de cabelo,
de madrugada, com a ajuda da família” não teria como competir em igualdade de
condições com as grandes companhias do setor de cosméticos.
A fala de Adriana complementada por outras mulheres negras empreendedoras
que estavam participando do debate, que, dirigindo-se às mulheres negras presentes na
plateia que acompanhava o evento, sugeriram que estas, se puderem, deveriam trocar os
cremes de cabelo baratos das grandes empresas por produtos de marcas criadas por
empreendedoras negras, ainda que estes sejam comparativamente mais caros. As marcas
mencionadas como exemplos foram, respectivamente, a Salon Line – a grande empresa –
e a Makeda – a marca criada por um empreendedora negra. Mais à frente, neste mesmo
capítulo, falarei a respeito destas marcas.
Esta problemática relacionada à posição dos/as empreendedores/as negros/as em
um mercado desigual também está presente no contexto estadunidense, que pode ajudar
a iluminar as questões que permeiam o contexto brasileiro atual. Ayana Byrd e Lori

negra’. Nascida em 2002, esta feira ocorre uma vez ao ano, geralmente no mês de dezembro, na cidade de
São Paulo, em grandes espaços de exposição como o pavilhão do Anhembi [...] desde 2009 esse evento tem
sido promovido pelo Instituto Feira Preta, uma organização social sem fins lucrativos que atua na promoção
de eventos e espaços de debates sobre diferentes temas que relacionam cultura, mercado e política enquanto
reivindicações políticas da população negra.” (SILVA, 2017, p.23).
97

Tharps (2014) mostram que nos Estados Unidos, a partir da década de 40, com o sucesso
dos produtos de marcas criadas por empreendedores/as negros/as e com a ressaca
econômica provocada pela crise da década de 30, que prejudicou estas marcas, grandes
empresas geridas por pessoas brancas, tais como Vaseline, Revlon e Clairol, começaram
a se infiltrar no mercado dirigido aos cabelos crespos, tornando-se atores importantes do
segmento. Estas grandes companhias atuavam a partir de duas estratégias: desenvolviam
produtos para cabelos crespos ou compravam empresas menores que eram geridas por
pessoas negras, tornando-se donas de marcas já conhecidas e estabelecidas no mercado.
Este cenário fez com que produtores negros fossem obrigados a repensar seus produtos e
sua comunicação com os/as consumidores/as.
Em meio a essas dinâmicas, Byrd e Tharps (2014) destacam a iniciativa
organizada por dez empresas de cosméticos geridas por pessoas negras na década de
1980, quando nasce a American Health and Beauty Aids Institute (AHBAI) e a campanha
Buy Black! (em tradução livre, “compre negro!”). A AHBAI criou um selo, “the proud
lady”, que exibia a silhueta estilizada de uma mulher negra com cabelos cacheados, para
identificar os produtos fabricados pelas empresas participantes da associação, de maneira
a orientar a escolha dos consumidores no momento da decisão de compra. O selo, junto
à campanha Buy Black!, com o objetivo de fortalecer as empresas geridas por pessoas
negras, buscava provocar uma identificação entre consumidores/as e empresas,
conscientizar os/as consumidores/as a respeito da concorrência e das condições de
competição desiguais no mercado e incentivar o engajamento através do consumo.
Mais recentemente, já nos anos 2000, Byrd e Tharps avaliam que, embora grandes
empresas geridas por pessoas negras, como a Johnson Products, e pequenas marcas
criadas por empreendedoras negras, como a Oyin Handmade, tenham conquistado e
mantido sua fatia no mercado, a concorrência de companhias gigantes como a L’oreal e
a Procter & Gamble é bastante agressiva. Como as autoras reforçam, tais companhias
conseguem oferecer às consumidoras produtos muito similares aos fabricados pelas
marcas criadas por pessoas negras, mas a preços substancialmente menores: o volume de
produção e a capacidade de cortar custos seriam fatores decisivos que favorecem as
companhias multinacionais.
É possível afirmar que o cenário atual do mercado brasileiro de cosméticos
dirigidos aos cabelos crespos e cacheados é semelhante a este. A avaliação de Adriana
Barbosa, criadora da Feira Preta, quanto à posição das marcas de cosméticos criadas por
empreendedoras negras, e a sugestão de que as mulheres negras devem investir nos
98

produtos um pouco mais caros destas marcas, de modo a apoiar o trabalho das
empreendedoras negras e a consumir de maneira engajada, apontam justamente para as
diferentes – e desiguais – posições ocupadas pelas marcas dentro do segmento.

2.4 – Marcas para cabelos crespos e cacheados no mercado nacional

De modo a traçar um breve panorama do mercado dirigido aos cabelos crespos e


cacheados no Brasil, apresentarei quatro marcas inseridas neste segmento nas próximas
sessões: Seda, Salon Line, Deva Curl e Makeda Cosméticos. Como explicado na
Introdução, selecionei estas marcas procurando abarcar uma variedade de condições e
características: o país de origem, se produzem produtos apenas para cabelos crespos e
cacheados ou se abrangem outras texturas capilares, se praticam ou não preços
considerados acessíveis, se os seus produtos se destinam às consumidoras finais ou se são
pensados prioritariamente para uso profissional, em salões, e, por fim, se as marcas
investem ou não em parcerias comerciais com influenciadoras digitais.
Compreendo que não é possível olhar para o mercado dirigido às crespas e
cacheadas sem estabelecer comparações e sem avaliar as diferenças e assimetrias entre
as marcas que fazem parte do cenário e que dialogam com as interlocutoras desta
pesquisa. Isto torna-se ainda mais importante na medida em que, nos últimos anos, marcas
antes conhecidas por seus produtos alisantes ou que pouco investiam nos produtos para
fios crespos e cacheados passaram a investir maciçamente na elaboração de novos
produtos e na comunicação com as consumidoras crespas e cacheadas.

2.4.1 - Seda

A marca Seda, conhecida por praticar preços populares e por ter seus produtos
amplamente distribuídos por todo o Brasil, pertence à Unilever, companhia multinacional
europeia de origem holandesa e britânica. Conforme o próprio site da marca86, a Unilever
é proprietária de mais de 400 marcas compradas em 190 países, e seus produtos, que

86
Disponível em <https://www.unilever.com.br/about/who-we-are/>. Último acesso em 15/06/20.
99

englobam artigos de limpeza, higiene pessoal, bebidas e alimentos, são utilizados por 2,5
bilhões de pessoas diariamente.
A Unilever surgiu em 1929 a partir da fusão da empresa holandesa Margarine
Unie, produtora de margarina, e da britânica Lever Brothers, fabricante de sabão. Neste
mesmo ano, sob o nome Irmãos Lever, abriu escritório em São Paulo e iniciou as
atividades com a importação dos sabões Sunlight e Flocos Lux, ambas marcas
pertencentes à companhia. Em 1960, ao adquirir a empresa brasileira Gessy, fabricante
de produtos de higiene pessoal, a Irmãos Lever tornou-se a Gessy Lever. Foi apenas em
2001 que a companhia mudou de nome, transformando-se em Unilever.
A Unilever, ao longo de sua história no Brasil, sempre investiu pesadamente em
propaganda, anunciando seus produtos no rádio e na televisão ao longo do século XX. Já
na década de 1940, a companhia possuía um Departamento de Propaganda equipado com
um núcleo de Contatos Diretos com o Consumidor, criado para promover o uso de
sabonetes e sabões em flocos e em pó. Como Heloisa B. de Almeida (2015) afirma, a
Unilever, diferentemente de outras grandes companhias presentes no Brasil,
historicamente apostou na comunicação com os consumidores das camadas populares,
criando produtos e campanhas publicitárias dirigidas ao público que o mercado qualifica
como classes C, D e E87.
A companhia trouxe a marca Seda –no exterior, chamada Sunsilk – para o Brasil
em 1968, e começou a comercializar xampus em garrafas de plástico e sachês individuais,
em uma época onde era comum lavar e tratar os cabelos com sabão e com receitas feitas
a partir de ingredientes caseiros. De início, a marca lançou xampus para quatro tipos de
cabelos - oleosos, secos, opacos e normais -, investindo também em produtos como spray
fixador, creme rinse e condicionador nos anos seguintes.
A linha Seda Hidraloe (Figura 3), destinada ao cuidado dos cabelos cacheados,
foi lançada em 1998 e apresentava quatro produtos: xampu, condicionador, máscara de
hidratação e creme de pentear. A marca afirma que esta linha foi criada para atender ao
pedido de consumidoras, considerando o biótipo da maioria das brasileiras. Os rótulos
dos produtos, as propagandas impressas e os filmes para a televisão eram protagonizados
por mulheres brancas com cabelos cacheados, que exibiam cachos mais abertos e
brilhantes, muito semelhantes ao efeito causado pelo babyliss, ferramenta de metal
aquecido utilizada para modelar cabelos lisos.

87
Trata-se, aqui, de um critério mercadológico de classes, com base na capacidade de consumo por
domicílio, distante da análise sociológica sobre classes sociais.
100

Figura 3: Linha Seda Hidraloe


Fonte: Disponível em <https://www.novomilenio.inf.br/real/ed139s.htm>. Último acesso em
15/06/20.

Dois anos depois, em 2000, a marca lança a linha Keraforce (Figura 4),
desenvolvida para cabelos crespos quimicamente tratados, que também apresentava os
quatro tipos de produtos da linha Hidraloe. É preciso frisar que os produtos não são
simplesmente pensados para cabelos crespos, mas sim para cabelos crespos submetidos a
processos de alisamento. Aqui, as modelos protagonistas são mulheres negras que não
são retintas e seus cabelos variam entre o liso e o cacheado – ao menos no material que
pude encontrar na Internet, não há mulheres negras com cabelos crespos que aparentam
ser naturais nas campanhas de divulgação da linha.
101

Figura 4: Linha Seda Keraforce


Fonte: Disponível em <https://www.novomilenio.inf.br/real/ed122u.htm>. Último acesso em
15/06/20.

Mais tarde, em 2006, Seda lança no mercado nacional uma linha denominada Anti-
Sponge, que prometia transformar cabelos armados e com frizz em cabelos com volume
controlado e sem fios arrepiados. As peças publicitárias que divulgaram os produtos
chamam a atenção por serem protagonizadas por um leão, e não uma mulher, como
tradicionalmente ocorre em propagandas de produtos de beleza.
102

Figura 5: Linha Seda Anti Sponge


Fonte: Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/agenciaupbrasil/7296563304/in/photostream/>. Último acesso em
15/06/20.

Seguindo o formato “antes e depois”, os anúncios impressos dos produtos Anti-


Sponge (Figura 5) mostram a transformação que a juba do leão sofre com o uso dos
produtos: se na primeira imagem o animal exibe uma juba volumosa e arrepiada, na
segunda, com o uso dos produtos, ele apresenta uma juba caída, lisa e com uma espécie
de franja lateral, remetendo a um corte e a uma textura de cabelo, extremamente lisa, que
foi moda durante a década de 2000, e que em geral necessitava do uso de pranchas ou
alisantes químicos para se chegar ao efeito desejado.
No início da década de 2010 a marca investiu em um grande número lançamentos,
criando diferentes linhas de produtos em parceria com sete cabeleireiros de diversos
países, apresentados aos consumidores como cocriadores. O slogan desta nova fase da
marca, “Seus cabelos com um toque de expert!”, procurava comunicar que os produtos,
ainda que vendidos a preços populares em supermercados e farmácias, apresentavam
qualidade profissional. Os rótulos dos produtos apresentavam não apenas o nome dos
cabeleireiros cocriadores, mas também a assinatura destes, adicionado um toque de
aprovação pessoal aos produtos. As embalagens, em cores sólidas como roxo, verde, azul,
rosa e laranja, permitiam a fácil diferenciação entre as linhas e tipos de cabelos (Figura
6).
103

Figura 6: Linhas Seda Co-Criações


Fonte: Disponível em <https://www.amda.org.br/index.php/comunicacao/noticias/3828-seda-
troca-embalagens-de-shampoo-por-creditos-para-celular-em-sao-paulo>. Último acesso em 15/06/20.

Dentre as parcerias estabelecidas para a elaboração de novos produtos, chamam a


atenção as seguintes: a parceria com Yuko Yamashita, cabeleireira japonesa que difundiu
a técnica do alisamento definitivo, que resultou nas linhas Liso Perfeito e Liso Extremo,
a parceria com Ouidad, cabeleireira estadunidense especialista em cabelos cacheados, que
resultou nas linhas Cachos Comportados e Ondas Definidas, e, por fim, a parceria com o
cabeleireiro brasileiro Mauro Freire, que lançou a linha Pós-Alisamento Químico,
destinada a cabelos modificados por processos de alisamento químico, como o próprio
nome sugere. Nos comerciais destas linhas, além da imagem ou assinatura dos
cabeleireiros serem utilizadas, a marca lança mão da presença de algumas atrizes famosas
das telenovelas da Rede Globo, como Ísis Valverde e Débora Nascimento.
Mais próximo ao final da década de 2010, a partir de 2016, a marca redireciona
sua comunicação com as consumidoras crespas e cacheadas e, embora mantenha em seu
portfólio de produtos as linhas Cachos Definidos, Keraforce, Liso Perfeito e Liso
Extremo, traz lançamentos pensados para dialogar com a ideia de diferentes texturas de
cabelos cacheados e crespos.
104

Figura 7: Linhas Seda Boom e Cachos Definidos


Fonte: Screenshot da página <https://www.seda.com.br/linha-de-produtos.html>. Último acesso
em 15/06/20.

A Figura 7 mostra os novos produtos direcionados às consumidoras crespas e


cacheadas ao lado dos produtos para cachos que já existiam anteriormente e que
continuam no mercado. Enquanto a linha Cachos Definidos, criada na década de 2010,
mantém a identidade visual anterior, com embalagens em uma única cor sólida, de aspecto
mais sóbrio, os produtos novos, batizados de Seda Boom, apresentam rótulos
extremamente coloridos e chamativos, com desenhos de mulheres com cabelos crespos e
cacheados, em uma proposta de identidade visual mais lúdica, que transmite ideias como
jovialidade e diversão.
Esses novos produtos, cocriados com blogueiras crespas e cacheadas famosas
nas redes sociais, englobam as linhas apaixonadas por ondas, apaixonadas por cachos,
apaixonadas por crespos, apaixonadas por crespíssimos, boom volumão, boom definição
e boom transição. Os diferentes nomes referem-se à textura dos cabelos – se são
ondulados, cacheados, crespos ou muito crespos -, ao estado em que se encontram – se
estão ou não na fase de transição capilar – e ao desejo das consumidoras – se querem
mais definição ou mais volumão.
105

Figura 8: Postagem sobre a linha Seda Boom


Fonte: Screenshot de publicação da marca Seda no Instagram

A postagem da Figura 8, publicada em setembro de 2017 no Instagram oficial de


Seda, anuncia a linha Seda Boom trazendo blogueiras como garotas propaganda.
Diferentemente das campanhas da marca de anos anteriores, que mostravam modelos
brancas e negras apenas com cabelos cacheados, que em geral apresentavam um aspecto
mais artificial, como se tivessem sido modelados por babyliss, aqui os cabelos
apresentados variam entre texturas cacheadas e crespas, e chama a atenção a presença da
modelo negra com cabelos crespos, volumosos e cortados em formato arredondado, no
estilo black.
O texto que acompanha a imagem destaca a participação das blogueiras na criação
da linha, as diversas possibilidades oferecidas pelos novos produtos – cremes para quem
quer definição, volume, ou para quem está em transição – e os ingredientes presentes nas
fórmulas, utilizando termos de conotação positiva – crespowers e crespo pura ostentação
– para descrever os cabelos crespos:

Atenção, CachoLovers, CresPowers e Divas da Transição! O poder é


nosso e o nome dele é Seda Boom: os novos cremes para pentear de
Seda cocriados com quem? Quem?? Blogueiras! Isso mesmo! Dos
ingredientes às embalagens, essa linha tem tudo o que a gente sempre
usou e pediu, como Óleos (de Coco, de Argan, de Macadâmia e de
Granada!), D-Panthenol, Manteiga de Karité, Filtro UV, Nutri-
Keratin, Água de Coco, cremes liberados. Tem Boom pra dar definição
106

e volume, pra quem tá na transição, pra soltar os cachinhos também


pra deixar o crespo pura ostentação! É ou não é motivo de orgulho?
São tantas opções que você nem sabe por onde começar?

Se no início da década de 2010 foram estabelecidas parcerias com cabeleireiros


famosos de diversos países, no final da mesma década a marca modifica sua estratégia e
aposta em parcerias com blogueiras conhecidas nas redes sociais. Além de ganharem o
título de cocriadoras, anteriormente atribuído aos cabeleireiros mencionados, são
também apresentadas como embaixadoras da marca.
O termo embaixadora, utilizado também por outras marcas, não foi escolhido
fortuitamente: a palavra remete à representação diplomática e a um sentido de missão
pública. Ser embaixadora significa comparecer aos eventos de divulgação da marca,
divulgar os lançamentos da marca em suas redes sociais, como Youtube e Instagram, e
produzir resenhas e avaliações dos produtos, explicando como usá-los a suas seguidoras
através de textos, imagens e vídeos. Estas atribuições significam, em resumo, participar
de um contrato em que se empresta a imagem pessoal e profissional à empresa.
Outra evidência do reposicionamento da marca em relação à questão dos cabelos
crespos e cacheados diz respeito a uma postagem, publicada em sua conta oficial do
Instagram em janeiro de 2019, em que a marca repensa sua postura no que concerne ao
alisamento como padrão de beleza desejado, recuperando o antigo anúncio da linha Anti-
Sponge que trazia um leão como protagonista.
107

Figura 9: Postagem #10YearsChallenge da Seda


Fonte: Screenshot de publicação da marca Seda no Instagram

A postagem da Figura 9, marcada com a hashtag 10YearsChallenge (desafio dos


10 anos), seguiu uma brincadeira popular entre 2018 e 2019, em que usuários de redes
sociais como Facebook e Instagram publicaram postagens com fotos recentes e de 10
anos antes para fazer uma comparação entre seu “eu” atual e o “eu” da década anterior.
O texto publicado junto à imagem diz:

Há 10 anos, apoiamos a ideia de que o certo era alisar a própria juba.


Ainda bem que o tempo passa! Hoje, sabemos que padrões são
bobagens e que o que vale mesmo é se sentir bem! Por isso, oferecemos
tudo o que você precisa pra ter seus cabelos hidratados, nutridos e o
principal: como você quer! #10YearsChallenge #JuntasArrasamos

Em uma jogada hábil, a marca recupera um antigo anúncio que promovia os


cabelos com volume controlado e sem frizz para dizer que hoje mudou de perspectiva e
que “padrões são bobagens”. Chama a atenção a inversão em relação ao anúncio
anterior: se na comunicação do Seda Anti-Sponge a juba natural do leão, volumosa e
arrepiada, é colocada como o “antes”, ou seja, o cabelo que precisa ser melhorado e
108

modificado, na postagem de 2019 é colocada como o “depois”, ou seja, como o resultado


esperado e desejado, simbolizando uma evolução do posicionamento da empresa. Aqui,
a marca se adianta a possíveis críticas que poderiam surgir por parte das consumidoras e
mostra como, em tese, se transformou ao longo dos anos, difundindo outras concepções
sobre os cabelos com volume, diferente das anteriores.
Seda, portanto, embora não seja uma marca voltada exclusivamente para cabelos
crespos e cacheados, buscou se firmar neste segmento em particular desde o final da
década de 1990, criando linhas voltadas para cabelos cacheados e crespos e atualizando-
as ao longo tempo. Mais recentemente, passou a criar conteúdos, produtos e propagandas
a partir da imagem das blogueiras e influenciadoras, mirando aprofundar ainda mais a
sua atuação no mercado dos cabelos crespos e cacheados.

2.4.2 - Salon Line

A marca Salon Line é uma empresa brasileira fundada no final da década de 1990
que se tornou conhecida no mercado de beleza nacional por fabricar diferentes tipos de
alisantes, relaxantes e produtos de tratamento para a manutenção para cabelos com
química. Embora a marca sempre tenha elaborado produtos para consumidoras com
cabelos crespos e cacheados, foi apenas a partir da década de 2010 que passou a elaborar
fórmulas que não se focassem nas técnicas de alisamento, criando inúmeras linhas
específicas para as distintas texturas capilares.
Diferentemente de Seda, trata-se de uma marca de dimensões um pouco menores,
criada em território brasileiro e cuja atuação em relação aos cabelos crespos e cacheados,
no que tange aos produtos que não se destinam ao alisamento, é mais recente. No entanto,
assim como Seda, trata-se de uma marca que pratica preços considerados populares e
acessíveis e que é facilmente encontrada em supermercados, perfumarias e farmácias.
Ainda que a fabricação dos alisantes e relaxantes não tenha sido interrompida,
Salon Line direcionou maciçamente seus investimentos de publicidade para os produtos
dirigidos às consumidoras crespas e cacheadas com cabelos naturais. Os comerciais
feitos para a Internet, os anúncios colocados em estações de metrô em São Paulo, a
contratação de influenciadoras digitais como embaixadoras da marca, a criação de canal
próprio no Youtube e de perfil oficial no Instagram são exemplos desta concentração de
109

esforços em se comunicar com as consumidoras de cabelos crespos e cacheados. Em


todas estas estratégias de divulgação, mulheres negras e brancas, com cabelos cacheados
e crespos, são colocadas em destaque e associadas à imagem da marca.
A Figura 10, copiada do site da marca, traz algumas das linhas desenvolvidas
para cabelos crespos e cacheados, colocando como protagonistas, na maior parte dos
quadros, mulheres negras jovens com cabelos que variam entre texturas cacheadas e
crespas. Os quadros, dispostos lado a lado, apresentando uma notável variação de cores e
personagens sorrindo, transmitindo uma imagem lúdica de juventude, alegria e
espontaneidade. Trata-se, em realidade, de um banner da submarca #todecacho, que
possui diversas linhas e produtos voltadas para cabelos crespos e cacheados.

Figura 10: Produtos #todecacho


Fonte: Screenshot da página <https://salonline.com.br/marcas/todecacho/>. Último acesso em
15/06/20.

A partir da etnografia realizada em 2017 e 2018 na Beauty Fair, maior feira de


beleza da América, pude observar de perto o grande aparato de comunicação
desenvolvido pela marca nos últimos anos. Ocupando dois grandes stands da feira, um
dedicado à blogueiras e outro dedicado a lojistas, a Salon Line mobilizou um grande
público de consumidoras e influenciadoras digitais que queriam acompanhar as palestras
110

das embaixadoras da marca, assistir de perto os pequenos shows das cantoras Ludmilla e
Iza e ganhar os brindes distribuídos nos stands destinados às blogueiras.
Os stands dedicados aos lojistas, embora tenham reunido um número menor de
pessoas, também chamaram minha atenção porque exibiam, em suas vitrines, uma grande
quantidade de produtos da marca. O catálogo de produtos da marca distribuído aos lojistas
em 2018 informa com precisão a dimensão da produção em questão: a Salon Line possui
um portfólio de 16 linhas e mais de 400 produtos, que engloba xampus, condicionadores,
cremes de tratamento, produtos de finalização, equipamentos elétricos para os cabelos,
alisantes, relaxantes, tinturas e óleos. Além de apresentar detalhadamente cada produto
fabricado, o catálogo traz os números acumulados pela marca nas redes sociais,
reforçando aos possíveis lojistas compradores a popularidade e rentabilidade que os
produtos Salon Line podem proporcionar, como se vê na Figura 11:

Figura 11: Números das redes sociais da Salon Line


Fonte: Acervo da pesquisadora

Na segunda página do catálogo, a marca anuncia que possui mais de 4,5 milhões
de seguidores no Facebook, 2 milhões de seguidores no perfil do Instagram e 300 mil
111

inscritos em seu canal de Youtube88. Os números, bastante expressivos no contexto das


redes sociais, mostram, do ponto de vista mercadológico, o grande número de
consumidoras que a marca consegue engajar na Internet. A modelo escolhida para ilustrar
os dados exibe cabelos cacheados e volumosos tingidos de azul e maquiagem colorida,
remetendo à juventude e à contestação das convenções de beleza mais tradicionais. Sua
imagem é muito semelhante ao estilo das jovens influenciadoras digitais de beleza
famosas na Internet e parceiras da marca, que são, em sua maioria, mulheres jovens com
cabelos crespos e cacheados exuberantes.
Desde que esta pesquisa de doutorado foi iniciada, em 2017, a Salon Line tem
realizado um número incontável de lançamentos de produtos, o que torna difícil
acompanhar todos os passos da marca. Ainda assim, quero chamar a atenção para alguns
lançamentos específicos, que considero ilustrativos da posição de mercado que a empresa
vem tentando desenhar nos últimos anos.
Pensando principalmente nas consumidoras com cabelos crespos e cacheados, a
marca lançou diversos produtos inspirados em ingredientes caseiros para cuidar dos
cabelos. Cremes com amido de milho, babosa, óleo de coco, abacate, vinagre de maçã e
mel, bem como embalagens que imitam as de margarina e maionese inundaram as
prateleiras de perfumarias, supermercados e farmácias. Estes lançamentos da marca,
intensamente divulgados nas redes sociais, foram inclusive alvos de crítica por parte de
consumidoras e ativistas, que argumentaram que a marca estaria lucrando a partir de
antigas receitas caseiras desenvolvidas por mulheres negras: em décadas onde os produtos
para cabelos crespos e cacheados eram escassos, ingredientes baratos, de uso culinário ou
medicinal, eram utilizados para tratar os cabelos, hidratando-os e recuperando-os dos
processos químicos de alisamento.
Outros lançamentos importantes da marca nos últimos anos foram os produtos
destinados aos cabelos lisos, cujas linhas foram nomeadas de Meu Liso. Englobando
diferentes tipos de produtos e de princípios ativos - como limão, goji berry, extrato de
pérola, d-pantenol e amido de milho – as linhas para cabelos lisos também são divulgadas
através dos perfis oficiais da marca nas redes sociais e do conteúdo produzido pelas
embaixadoras da marca que possuem cabelos lisos.

88
Dados de agosto de 2018. Em março de 2022, a marca contava com 3,6 milhões de seguidores do
Instagram e 625 mil inscritos em seu canal no Youtube.
112

Figura 12: Produtos Salon Line à venda


Fonte: Acervo da pesquisadora

Figura 13: Produtos Salon Line à venda


Fonte: Acervo da pesquisadora

As fotos acima (Figuras 12 e 13), tiradas por mim em uma grande perfumaria do
centro de São Paulo, exibem as prateleiras reservadas aos produtos Salon Line. Os
produtos destacam-se por apresentarem rótulos extremamente coloridos e repletos de
informações escritas e desenhos, e cada linha de produtos diferencia-se por uma
determinada combinação de cores. Além de as embalagens destacarem o nome da marca,
113

da linha e o ingrediente principal dos produtos, elas também informam à consumidora a


qual tipo de textura capilar os produtos se direcionam.
Os preços, que em 2019 variavam, aproximadamente, entre 10 e 16 reais, eram
acessíveis e atraentes às consumidoras de classes médias e populares que consomem uma
grande quantidade de produtos mensalmente. Embora as fotos mostrem apenas
embalagens em tamanhos regulares, que giram em torno de 300 ml, a marca também
comercializa alguns destes produtos em versões de 500 ml e 1 litro, procurando atingir as
consumidoras que consomem uma grande quantidade de creme ou que dividem os
produtos com outras pessoas da casa.

Figura 14: Propaganda da linha Meu Liso


Fonte: Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=HDKYeoxPOYM>. Último acesso em
15/06/20.

A Figura 14, que compõe a divulgação dos produtos Meu Liso, traz a
influenciadora digital Thais Carla como protagonista, conhecida nas redes sociais por se
colocar como militante gorda em seus perfis do Facebook e do Instagram e em seu canal
no Youtube. A escolha de uma modelo como Thais, uma mulher gorda cujo manequim é
considerado grande até mesmo para o segmento de moda plus-size (BETTI, 2014), é algo
que coloca a marca em uma posição singular no mercado da beleza, que quase nunca
escolhe mulheres gordas como estrelas das campanhas de cosméticos.
Junto a Thais, outra influenciadora digital que também é embaixadora Salon Line
e garota propaganda das linhas Meu Liso é a youtuber Thiessa, uma jovem mulher branca,
com longos cabelos lisos castanhos, que se coloca publicamente como mulher
114

transsexual, produzindo, entre outros assuntos, conteúdo sobre transexualidade em seu


canal. Da mesma maneira que no caso de Thais, a marca também se destaca no campo
mercadológico por esta escolha, uma vez que mulheres transsexuais, ou ao menos
mulheres que se reconhecem publicamente como tais, raramente são contratadas para
protagonizar anúncios de marcas de beleza.
O desenvolvimento de produtos para diferentes texturas de cabelo, bem como a
escolha de modelos que representem não apenas a diversidade racial, mas também em
termos de forma física e identidade de gênero, evidencia o trabalho de se construir, junto
ao público consumidor e ao mercado da beleza, uma imagem de marca que se
compromete com a diversidade enquanto valor.
Ao mesmo tempo que a marca dispende um grande esforço, em termos simbólicos
e materiais, em dialogar com as consumidoras com cabelos crespos e cacheados,
procurando marcar sua posição em um mercado cada vez mais atento a este público, ela
também acena as consumidoras com cabelos lisos, de forma a comunicar que, mesmo em
um universo da beleza cada vez mais povoado por cabelos crespos e cacheados, as lisas
não foram esquecidas.
A Salon Line, no que diz respeito ao segmento de mercado voltado aos cabelos
crespos e cacheados, hoje ocupa uma fatia muito visível do mercado. Da mesma maneira
que Seda, Salon Line também se reposicionou no mercado ao longo do tempo e conseguiu
se firmar como uma marca que se tornou sinônimo de produtos para cabelos crespos e
cacheados com preço acessível. Ainda assim, como visto, trata-se de uma empresa que
quer construir uma imagem de marca que produz produtos “para todos”, haja vista suas
linhas para cabelos lisos e as influenciadoras escolhidas como protagonistas de suas
campanhas.

2.4.3 - Deva Curl

A marca Deva Curl nasceu nos Estados Unidos, em 2002, quando seu primeiro
produto, o condicionador higienizante No Poo foi lançado. Seus fundadores, a americana
Lorraine Massey e o brasileiro Denis da Silva, eram os cabeleireiros proprietários do salão
Deva Chan, fundado em Nova York em 1994 e dedicado a cuidar de cabelos cacheados.
Lorraine e Denis criaram a marca a partir de receitas que elaboravam em seu salão, pois
115

não encontravam no mercado produtos que tratassem adequadamente dos cabelos das
clientes: eles buscavam fórmulas que limpassem os cabelos cacheados sem ressecar
demasiadamente os fios.
Em comparação à Seda e Salon Line, Deva Curl é uma marca menor em termos
do tamanho de sua atuação e da distribuição dos seus produtos. Diferentemente destas
duas marcas, Deva Curl possui um foco muito específico, pois já nasceu como uma
empresa exclusivamente voltada para os cabelos crespos e cacheados.
A marca afirma ser a criadora das técnicas de tratamento no poo (sem xampu) e
low poo (pouco xampu), que em realidade são os nomes de dois produtos e marcas
registradas da empresa. No Brasil, os termos no poo e low poo, comumente mencionados
nas redes sociais por consumidoras e influenciadoras digitais crespas e cacheadas,
popularizaram-se com tanta intensidade nos últimos anos que foram descolados da marca,
tornando-se sinônimos de um jeito particular de cuidar dos cabelos crespos e cacheados.
De início, a marca compreendeu tal popularização como um problema, chegando
a cobrar a retirada dos nomes no poo e low poo, presentes nos nomes de grupos de
Facebook e em nomes de lojas de cosméticos virtuais, das administradoras dos grupos e
das proprietárias das lojas, ameaçando processá-las judicialmente. Em 2016, esta atitude
da marca gerou uma repercussão bastante negativa nas redes sociais, com consumidoras
e influenciadoras digitais crespas e cacheadas alegando que a empresa estava querendo
prejudicar pequenas empreendedoras e influenciadoras que faziam um trabalho de
divulgação dos produtos sem nada cobrar. Com esta repercussão negativa, a marca retirou
as cobranças e passou a se focar em ações judiciais contra marcas de cosméticos
brasileiras que têm colocado os termos em seus rótulos, justificando que os nomes são de
sua propriedade.
Dado que no campo estudado os termos no poo e low poo são tratados como nomes
de técnicas, tornando-se categorias êmicas de uso frequente, opto por utilizá-los no texto
desta maneira, grafados em itálico e em inglês, sem tradução. Compreender o significado
e o uso destes termos é fundamental, uma vez que eles expressam uma pedagogia de
cuidados e um conjunto de técnicas específicas desenvolvidas e compartilhadas por
diferentes interlocutoras.
A Deva Curl chegou ao Brasil no final da década de 2000, e a princípio, era de
difícil acesso, pois os produtos eram importados dos EUA, possuíam um preço elevado e
eram prioritariamente comercializados para salões de cabeleireiro. Posteriormente, os
produtos começaram a ser fabricados no país, o que ampliou um pouco mais a sua
116

distribuição para perfumarias e lojas de cosméticos online. Os preços, no entanto,


continuam a ser elevados, e a marca explica este posicionamento afirmando que, para
fabricar seus produtos, utiliza apenas matérias primas de alta qualidade, muitas vezes
importadas, necessitando de dezenas de fornecedores diferentes.
Diferentemente de Seda e Salon Line, a Deva Curl não se constrói enquanto marca
popular, que pode ser encontrada em perfumarias, farmácias e supermercados a preços
baixos, e sim enquanto marca de perfil profissional, destinada a cabeleireiros e a
consumidoras que buscam um tratamento de salão que possa ser realizado em casa.
Diferentemente das duas empresas, que produzem um discurso direcionado à
consumidora final, o discurso de Deva foca-se, prioritariamente, na relação entre o
profissional cabeleireiro e a cliente crespa ou cacheada, pontuando que é o cabeleireiro
quem deve apresentar os produtos da marca à cliente e ensiná-la a como cuidar de seu
próprio cabelo cotidianamente.
Contrariamente às marcas Seda e Salon Line, Deva não investe pesadamente na
comunicação feita através de influenciadoras digitais. Nos perfis de Instagram da marca,
são comuns as imagens de mulheres crespas e cacheadas que passaram pelas mãos dos
cabeleireiros que utilizam os produtos da marca, e uma parte significativa das imagens
publicadas são no formato “antes e depois”, demonstrando a ação e eficácia dos produtos
da marca quando aplicados por mãos profissionais. Na maioria dos vídeos de
influenciadoras digitais experimentando os produtos da marca que assisti, elas explicam
que adquiriram os produtos por conta própria, que os receberam de alguma loja ou que os
estão utilizando por recomendação de algum cabeleireiro.
Denis da Silva, um dos fundadores da marca, explica que a Deva Curl prefere
investir em encontros com consumidoras em vez de anunciar em grandes veículos de
mídia ou de pagar blogueiras para que falem de seus produtos. Ele justifica tal estratégia
argumentando que o espaço para anúncios publicitários é muito caro e é dominado por
companhias gigantes, como a L’oreal, e que a relação comercial com blogueiras é
problemática, uma vez que “você sempre terá que continuar pagando, caso contrário a
pessoa romperá o contrato com a sua marca e poderá vender sua opinião para quem
paga mais”.
Pude participar de alguns encontros promovidos pela Deva Curl ao longo da
realização da pesquisa, dois deles promovidos por Denis, em 2017 e 2019. No encontro
de 2017, a marca anunciou, em seu perfil no Facebook, que o evento seria gratuito e
direcionado a consumidoras e influenciadoras. No caso do encontro de 2019, a
117

divulgação foi feita através do perfil da Academia Deva Curl, escola de cabeleireiros em
São Paulo que forma profissionais segundo métodos próprios, administrada pelo
cabeleireiro Rodrigo Nakamura, irmão de Denis. De fato, nesses encontros, pude notar
uma presença maior de consumidoras e influenciadoras no primeiro, enquanto, no
segundo, em que Denis fez demonstrações de cortes em modelos cacheadas e crespas, a
maioria das pessoas presentes eram cabeleireiras ou aspirantes a cabeleireiras.
Ainda que os encontros promovidos pela Deva Curl possam, em alguns
momentos, ter o objetivo de atrair consumidoras e influenciadoras, as figuras do salão e
do cabeleireiro profissional sempre estão presentes, por vezes materializando-se na figura
de Denis, que sempre se apoia em sua trajetória profissional para apresentar a marca e a
funcionalidade dos produtos. Mesmo nos eventos em que Denis não esteve presente, o
encontro foi conduzido por cabeleireiros treinados pela marca, que explicaram
detalhadamente os usos e aplicações dos produtos, realizando demonstrações em
modelos.
O posicionamento da marca em priorizar a relação entre marca, cabeleireiro e
consumidora fica clara no seguinte texto, publicado no site brasileiro da empresa89:

Pergunte a uma cacheada sobre o seu cabelo...E ELA VAI TE CONTAR


SOBRE A VIDA DELA!
Vai falar sobre sua infância, sua família, seus amigos, e da forma como
ela se vê no espelho. Passamos duas décadas no centro desta conversa.
É enrolado, é complicado, é divertido, e nós entendemos.
É por isso que os nossos produtos são inspirados pelas conversas com
pessoas reais. E os nossos estilistas não vão apenas te dar cachos
incríveis, eles vão te ensinar como você mesma pode criá-los.
Acreditamos em uma ideia muito simples de amar os cachos da sua
forma. Não é dogma, é Deva!
O cabelo cacheado é ousado, natural, bonito e é nossa missão valorizar
seus cachos únicos.
ISSO INSPIRA TUDO O QUE FAZEMOS.

O texto, além de ressaltar a importância do cabeleireiro – chamado de estilista –


enquanto mediador fundamental entre a marca e as consumidoras, traz uma ideia sempre
repetida nos eventos da marca que pude acompanhar: “pergunte a uma cacheada sobre
o seu cabelo, e ela te contará sobre a vida dela!”. Tal como em outros discursos presentes

89
Disponível em < https://devacurl.com.br/sobre-nos/>. Último acesso em 15/06/20.
118

no campo estudado, o cabelo é associado à trajetória de vida, às memórias da infância e


adolescência, aos cuidados aprendidos com mães, avós e irmãs, às experiências
vivenciadas na escola, em casa e no trabalho e aos relacionamentos com familiares,
amigos e parceiros/as amorosos. Pontua-se que os cabelos crespos e cacheados não são
uma tendência de moda, mas sim uma identidade, um resgate do verdadeiro “eu” da
consumidora.
No Brasil, a marca comercializa três linhas de produtos: a Original, destinada aos
cabelos cacheados, a Decadence, destinada aos cabelos crespos, e a Delight, desenvolvida
para cabelos ondulados. Cada uma das linhas é composta por ingredientes específicos,
selecionados para limpar, condicionar e modelar os diferentes tipos de cabelo. Chama a
atenção o fato de que nos EUA o número de produtos comercializados pela marca é muito
maior que no Brasil: nos eventos que pude acompanhar, isto foi explicado a partir das
diferenças no custo das matérias primas em cada país.
A identidade visual dos produtos é bastante diferente em comparação a outras
marcas, notadamente as de caráter mais popular, presentes no mercado brasileiro. As
embalagens de todos os produtos são transparentes, o que permite visualizar com
facilidade a quantidade e o aspecto dos produtos, os rótulos apresentam as cores branco
e verde claro, e apenas pequenos detalhes, que servem para diferenciar a função de cada
produto (lavagem ou finalização), estão em outras cores – tratam-se das faixas, de
pequena espessura, nos tons rosa, roxo e azul claro.
119

Figura 15: Produtos Deva Curl à venda


Fonte: Acervo da pesquisadora

Como se vê na Figura 15, nos produtos enfileirados nas prateleiras de uma grande
perfumaria no centro de São Paulo, predominam as cores mais suaves e o número de
informações nos rótulos é mínimo. Alguns dos produtos são comercializados em
embalagens de litro, com válvulas pump, pensadas para o uso em salão, embora
consumidoras também possam comprá-las. O preço da maioria dos produtos é bastante
elevado: as versões em embalagens maiores, de um litro, que apresentam uma relação
custo-benefício melhor que as embalagens regulares custam, aproximadamente, entre 150
e 230 reais90. Apesar de elevados, esses preços, no entanto, não são diferentes dos

90
Preços praticados no ano de 2019.
120

praticados por outras marcas que fabricam produtos para cabeleireiros, como L’oreal
Professionnel, Redken e Schwarzkopf Professional .
Deva Curl, assim, ocupa uma fatia bastante específica e limitada do mercado
dirigido aos cabelos crespos e cacheados, ainda que seja uma marca conhecida por contas
de seus produtos No Poo e Low Poo. Este posicionamento não é fortuito e é ativamente
construído pela empresa, que objetiva manter uma imagem de marca que fabrica produtos
profissionais e de custo mais elevado, destinado a consumidoras que, em tese, querem um
tipo de tratamento mais exclusivo para seus cabelos crespos e cacheados.

2.4.4 - Makeda

A Makeda Cosméticos, empresa brasileira voltada para cabelos crespos e


cacheados, foi criada pelas cabeleireiras e irmãs Sheila Makeda e Shirley Leela em 2012,
época em que eram proprietárias de um pequeno salão na zona leste de São Paulo. Makeda
é o nome de uma deusa e rainha africana da Etiópia, que, de acordo com as fundadoras,
foi uma mulher negra “forte e soberana”, que representa os valores da marca.
Tal como no caso de Deva Curl, e diferentemente de Seda e de Salon Line,
Makeda já nasceu como uma marca exclusivamente voltada para cabelos crespos e
cacheados. Trata-se, também, de uma marca criada por profissionais da beleza: assim
como Lorraine Massey e Denis da Silva, Sheila Makeda e Shirley Leela também são
cabeleireiras especialistas em cabelos crespos e cacheados que narram a história de
fundação de sua marca a partir de uma busca pelos produtos ideais para tratar dos cabelos
crespos e cacheados.
A história da marca é sempre narrada por Sheila e Shirley a partir de uma trajetória
de empreendedorismo familiar. Na década de 90, junto com a mãe, Sandra, as irmãs
trabalharam em uma empresa estadunidense que fabricava produtos para cabelos crespos,
e, posteriormente, com o fechamento desta empresa no Brasil, criaram o salão Arte Axé,
onde puderam aplicar seus conhecimentos sobre cabelos crespos. No final da década de
2000, Sheila passou por um processo de transição capilar e começou a desenvolver
fórmulas próprias para tratar cabelos crespos naturais, pois sentia dificuldade em
encontrar produtos que se adequassem às necessidades deste tipo de cabelo. Foi desta
121

maneira que, segundo as irmãs Makeda, que a marca nasceu, a partir desta necessidade
que não era atendida pelo mercado convencional.
Sheila e Shirley já concederam entrevistas a diversos veículos de comunicação,
como as revistas Marie Claire91 e Claudia92 e os jornais Huff Post Brasil93 e Folha de
São Paulo94. Em geral elas são apresentadas nas reportagens como empreendedoras
negras de sucesso. As irmãs, nas entrevistas, sempre ressaltam a importância da trajetória
de empreendedorismo da mãe em suas vidas e comentam que esta foi a verdadeira rainha
as a inspirar na criação da marca.
Em 2012, a marca fez sua primeira participação na Feira Preta, apresentando dois
produtos ao público: um ativador de cachos e um umidificador. Cinco anos depois, em
2017, com um catálogo de 17 produtos, abrangendo diferentes tipos de xampus,
condicionadores, máscaras de tratamento e finalizadores, as irmãs Sheila e Shirley
abriram uma loja da marca no Shopping Light95, localizado no centro de São Paulo. Nesta
loja as consumidoras têm a possibilidade de não apenas comprar os produtos, mas de
experimentá-los através das aplicações realizadas pelas vendedoras.
A venda dos produtos é realizada também através da loja virtual da marca e de
revendedoras credenciadas. Não há informações sobre a venda dos produtos em
perfumarias e lojas para cabeleireiros. Em minhas incursões por perfumarias e lojas para
cabeleireiros na cidade de São Paulo, nunca encontrei os produtos Makeda à venda nas
prateleiras. A estratégia de distribuição e comercialização dos produtos Makeda, em
comparação à das outras marcas analisadas, é, portanto, bastante singular.
Em 2019 a marca iniciou o projeto Makeda Terapeuta, que visa formar
especialistas em cabelos crespos e cacheados através dos métodos de tratamento criados
pela marca. A intenção é que as alunas – o projeto é pensado principalmente para
capacitar mulheres – atuem como cabeleireiras que atendem as clientes à domicílio. Além
da formação, o projeto também permite que as profissionais se tornem revendedoras dos
produtos Makeda, fornecendo os produtos às suas clientes. O site da marca diz que o

91
Disponível em <https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2018/09/negras-
empreendedoras-mulher-por-tras-da-marca-referencia-em-cabelos-crespos.html>. Último acesso em
15/06/20.
92
Disponível em <https://claudia.abril.com.br/carreira/sheila-makeda-desafios/>. Último acesso
em 15/06/20.
93
Disponível em <https://www.huffpostbrasil.com/2018/12/28/shirley-sandra-e-sheila-as-donas-
da-veia-empreendedora-que-vem-de-berco_a_23626916/>. Último acesso em 15/06/20.
94
Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2019/10/nosso-sucesso-e-
um-farol-diz-dona-de-marca-de-produtos-para-cabelo-afro.shtml>. Último acesso em 15/06/20.
95
A loja foi fechada nos primeiros meses de 2020.
122

projeto Makeda Terapeuta pretende “proporcionar empoderamento, empreendedorismo


e impacto social positivo”96.

Figura 16: Postagem sobre o projeto Makeda Terapeuta


Fonte: Screenshot de publicação da marca Makeda no Instagram

No perfil da marca no Instagram, também há algumas postagens apresentando o


projeto Makeda Terapeuta e informando seu objetivo, como na Figura 16. A foto
publicada mostra Sheila Makeda – a mulher de blazer branco – orientando as alunas do
projeto, enquanto uma destas lava os cabelos de uma cliente que está sentada no lavatório.
Chama a atenção o fato de todas as alunas estarem utilizando um avental amarelo, onde
está estampado o nome da marca. O texto que acompanha a imagem diz:

96
Disponível em <https://www.makedacosmeticos.com.br/>. Último acesso em 15/06/2020.
123

Quero ser uma Makeda Terapeuta! Venha se especializar e se tornar


uma Makeda Terapeuta de sucesso! Você vai fazer parte de um projeto
inovador criado por Sheila Makeda junto com sua irmã Shirley Leela
#irmasmakeda podendo ser uma representante licenciada Makeda
Cosméticos e se tornar uma profissional especializada em cabelos
crespos, cacheados e ondulados e utilizar os #metodossheilamakeda e
produtos profissionais da marca!

Os produtos Makeda têm como princípios ativos os óleos e manteigas vegetais,


como os óleos de coco e argan e a manteiga de karité, e extratos de plantas, como pitanga,
açaí e jaborandi. As três principais linhas de produtos são a Coconut, Pitanga e Argan. A
marca também fabrica um xampu indicado para quem utiliza tranças, dreads e extensões
capilares, chamado Shampoo Refrescante. Os ativadores de cachos das linhas Pitanga e
Argan são vendidos nas versões de 300 ml e 1 litro e, embora os produtos sejam
recomendados também para uso profissional, os xampus, condicionadores e máscaras são
vendidos apenas nas embalagens regulares, de 300 ml.
A postagem abaixo (Figura 17) traz uma foto dos produtos da linha Pitanga:

Figura 17: Postagem sobre a linha Pitanga


Fonte: Screenshot de publicação da marca Makeda no Instagram
124

Os produtos da linha Pitanga trazem um rótulo que apresentam,


predominantemente, as cores vermelho, laranja e marrom. Chamam a atenção o logo da
marca e a faixa que se encontra logo abaixo deste, elaborados a partir de grafismos que
remetem a pinturas africanas – tal como na campanha da marca Salon Line, aqui estes
desenhos também são utilizados com o intuito de remeter à uma ideia de África ancestral.
A imagem é acompanhada do seguinte texto: “Linha Pitanga. Mais Hidratante.
Sem óleo mineral. Sem sulfato. Sem sal. Sem parabenos. Super hidratante e cheiroso. Nos
conte nos comentários o que acha de nosso queridinho?”. São informadas as
propriedades e características dos produtos, e as consumidoras são convidadas a opinarem
sobre os produtos nos comentários.
As características dos produtos são, curiosamente, enunciadas a partir dos
ingredientes que não estão nas fórmulas: óleo mineral, sulfato, sal e parabenos. Com a
popularização das técnicas no poo e low poo nos últimos anos, que prescrevem o uso de
produtos sem estes componentes, tornou-se comum que diversas marcas destaquem em
seus rótulos não apenas os ingredientes presentes nos produtos, mas também, e
principalmente, os ingredientes ausentes.
Embora seja possível encontrar algumas poucas resenhas sobre os produtos
Makeda no Youtube, um olhar mais atento às redes sociais da marca demonstra que a
empresa não parece investir muito em parcerias com influenciadoras digitais. Seu perfil
no Instagram investe nas publicações protagonizadas pelas clientes da marca, que
aparecem atestando os efeitos positivos dos produtos.
Do mesmo modo que Deva Curl, Makeda é uma marca de dimensões menores,
que atua em uma fatia específica do mercado de cabelos e cuja distribuição de seus
produtos é mais limitada. Assim como Deva, também é uma marca criada por
cabeleireiros e é focada em tratamentos que são comercializados como produtos
profissionais, que possuem um custo mais elevado.

***

Iniciei este capítulo com uma discussão sobre como a amplificação do debate
público sobre o racismo e a ideia de classe média negra têm movimentado algumas esferas
do mercado. Pontuei esta discussão mais geral para então compreender a posição do
mercado da beleza diante destas questões, pois, em meu entendimento, não é possível
125

analisar o mercado voltado para os cabelos crespos e cacheados sem situá-lo em um


cenário maior. O mercado da beleza e dos cabelos não atua de maneira isolada, mas
também, do mesmo modo, responde às questões que articulam inclusão, discriminação,
mercado, política, consumo e ativismo.
Procurei discutir, em seguida, como é preciso problematizar aquilo que
denominamos como “mercado”, mostrando como não se trata de uma entidade
homogênea, e sim de um campo constituído por diferentes atores, que atuam a partir de
condições distintas e desiguais. Isto é fundamental porque evidencia como determinados
atores, especialmente aqueles ligados ao empreendedorismo negro e ao mercado da
beleza, enfrentam condições que ao mesmo tempo possibilitam e limitam sua atuação.
Por fim, falei mais especificamente do mercado brasileiro voltado para cabelos
crespos e cacheados a partir de uma comparação entre quatro marcas específicas: Seda,
Salon Line, Deva Curl e Makeda. Esta comparação é importante na medida em que mostra
como parte do mercado de produtos para cabelos tem se transformado nos últimos anos,
acomodando uma variedade de marcas (grandes e pequenas, nacionais e multinacionais,
exclusivamente voltadas para cabelos crespos e cacheados ou não) e mostrando como a
Internet é um campo importante, por instaurar um espaço dialógico com as consumidoras,
através, por exemplo, da atuação das influenciadoras digitais.
126

CAPÍTULO 3 – MARCAS E REPRESENTATIVIDADE

3.1 – Da diversidade à representatividade

Se no discurso de alguns atores do mercado a categoria diversidade aparece como


central, sendo associada à maior produtividade e lucratividade, ao reconhecimento de um
pretenso papel social das marcas e a uma tentativa de dialogar de maneira mais próxima
com os consumidores, nas discussões que envolvem estética e política empreendidas por
variados atores sociais nas mídias digitais salta aos olhos uma segunda categoria:
consumidores e ativistas cobram das marcas uma maior representatividade.
No contexto estudado, representatividade é uma categoria que transita entre
política e mercado, e este trânsito se dá, frequentemente, de maneiras tensas e ambíguas,
sendo objeto de disputas por diversos atores. Isto porque certos temas, que antes eram
mais discutidos no interior dos movimentos sociais, ganham uma centralidade que nunca
tiveram, passando a circular pelo mercado e pelas mídias digitais.
As marcas que fabricam produtos para cabelos crespos e cacheados, para além de
afirmarem que se preocupam com questões ligadas à diversidade e à representatividade,
precisam fazer com que estes valores se materializem, de maneiras específicas, em seus
produtos, em suas campanhas publicitárias, em suas parcerias com influenciadoras
digitais e em seus bastidores. Estes valores precisam aparecer, sobretudo, materializados
em certos corpos e em certos sujeitos que entram em cena.
Estas questões são discutidas aqui através na análise de cinco casos específicos,
que acredito condensarem problemas importantes para esta tese. O primeiro caso,
denominado “A primeira influenciadora com dreads do Brasil”, aborda as parcerias entre
a estilista e influenciadora digital Ana Paula Xongani e a marca Salon Line. O segundo
caso, nomeado como “Cuidando do couro cabeludo”, discute o lançamento da marca
Negra Vaidosa Scalp, fundada pela cosmetóloga Josi Helena. O terceiro caso,
“Escureceram a modelo?”, analisa algumas publicações da campanha Celebrando
Rainhas Crespas e Cacheadas, da marca Salon Line. Já o quarto caso, denominado “O
lançamento do alisante”, problematiza questões relativas ao lançamento de um alisante
da marca Niara Cosméticos. Por fim, o quinto e último caso, nomeado “Orgulho
127

Crespo?”, aborda um episódio de conflito envolvendo a marca Hoka Professional e a


Marcha do Orgulho Crespo.
Enfatizo que, embora em nem todos os casos a palavra representatividade seja
explicitamente mencionada pelos atores envolvidos, seus significados são acionados e
tensionados, aparecendo como elementos importantes nos discursos produzidos.

3.2 – “A primeira influenciadora com dreads do Brasil”

A estilista e influenciadora digital Ana Paula Xongani97 apresenta-se como uma


mulher preta e endredada em seu canal no Youtube. Ana e sua mãe, Cris Mendonça, são
proprietárias do Ateliê Xongani, localizado na região da República, no centro da cidade
de São Paulo. O Ateliê é especializado na criação e produção de roupas e acessórios,
sobretudo no que tange às peças fabricadas a partir de tecidos africanos.
Em alguns dos vídeos publicados no canal, que leva seu nome, Ana conta sua
trajetória capilar, explicando como construiu, ao longo de sua vida, uma relação positiva
com seu cabelo crespo e como passou a utilizar os fios endredados. O termo endredado
refere-se ao penteado popularmente conhecido como dreadlocks ou dreads98. Trata-se de
uma técnica em que, com o auxílio de uma agulha, as mechas são manipuladas e
embaraçadas de modo a formarem cilindros de cabelo. O cabelo endredado constitui uma
estética politicamente construída99, junto ao penteado Afro, como uma contestação e um
ato de resistência em relação ao padrão branco hegemônico (MERCER, 1987; GOMES,
2008 e WALKER, 2000).
No vídeo “Dente branco todo mundo tem”, Ana traz um desabafo a respeito dos
estereótipos em torno dos cabelos endredados:

É muito triste as pessoas estranharem, associarem esse cabelo a um


cabelo sujo, malcuidado, um cabelo que eu tanto cuido! [...] É muito
triste um dia ouvir, dos colegas da minha filhinha de 4 anos, dizer que
eu não podia ser professora porque eu tinha esse cabelo aqui. É muito

97
Ana é uma figura identificada como empreendedora negra ou afroempreendedora.
98
Há uma discussão sobre o significado do termo dread, que apontaria para uma origem racista: dread viria
do termo dreadful, que significa horrível ou desagradável. Todavia, opto por empregá-lo aqui seguindo o
discurso da interlocutora.
99
O cabelo endredado, utilizado pelos adeptos da religião rastafári, de origem afro-caribenha, tornou-se
um penteado popularizado a partir dos anos 70, época em que o cantor jamaicano Bob Marley, que exibia
longos dreadlocks, tornou-se mundialmente conhecido.
128

triste quando as pessoas querem colocar a mão no meu cabelo sem


perguntar. Não! Esse é o meu cabelo, é minha expressão de amor, de
autocuidado, de resistência [...] Tenha respeito.100

Se pessoas brancas que utilizam dreads podem ser lidas como pessoas descoladas,
que gostam de um estilo alternativo ou que praticam esportes como o surf, no caso de
pessoas negras que utilizam o penteado a leitura costuma ser diferente. Pessoas negras
que utilizam dreadlocks em geral têm sua imagem associada à sujeira, ao desleixo, ao uso
de drogas ilícitas e à uma postura pouco profissional ou mesmo moralmente duvidosa.
Isto fica evidente no trecho transcrito acima, em que Ana diz que, na visão das crianças
que são colegas de sua filha pequena, uma pessoa com dreads não poderia ser professora,
como se um cabelo endredado fosse incompatível com uma posição de respeito e
autoridade.
As atitudes negativas com relação aos dreads não se esgotam no sentimento de
repugnância e desconfiança, mas também incluem as situações, como mencionado por
Ana Paula, em que pessoas se sentem autorizadas a tocar o cabelo endredado sem a
permissão do usuário do penteado. Como a youtuber ressalta, o cabelo endredado não é
apenas uma parte do corpo, mas é, em sua perspectiva, um elemento político e subjetivo
relevante: “é minha expressão de amor, de autocuidado, de resistência”.
Aqui, penso ser importante problematizar o ato de tocar, seguindo as reflexões de
Grada Kilomba (2018) e Sara Ahmed (2002). Kilomba, ao narrar situações vivenciadas
por mulheres negras que tiveram seus cabelos tocados sem permissão, caracteriza o ato
de tocar como uma invasão, onde a diferença, encarnada pelos cabelos crespos, é utilizada
como marca para que corpos negros sejam tratados como objetos públicos. Ahmed, por
sua vez, argumenta no sentido de uma ambivalência, mostrando como a rejeição e
distanciamento em relação aos corpos racializados, como os corpos de pessoas negras,
dividem espaço com um outro tipo de desejo: o desejo de se aproximar, de tocar e de
“comer” o outro101, visto também como exótico e desejável.
Contudo, não apenas o ato de tocar o cabelo é problemático, uma vez que, em
certos aspectos, a própria “curiosidade” em torno da limpeza dos cabelos endredados e a
falta de informações acerca da manutenção dreads estão ligadas a concepções coloniais
e racializadas de limpeza e sujeira. Frequentemente as pessoas negras que utilizam dreads

100
Trecho transcrito do vídeo “Dente branco todo mundo tem!”. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=JiPUaVhGrDE>. Último acesso em 06/05/20.
101
Como Ahmed aponta, o desejo de “comer” o outro é tratado por bell hooks (2019).
129

são assaltadas por perguntas, realizadas em um tom intrusivo, como “você lava seu
cabelo?”, “como você faz para lavar?” e “você penteia?”.
O cabelo crespo, seja em sua textura natural ou penteado em dreadlocks ou
tranças, é historicamente associado à sujeira e à selvageria pelo pensamento colonial e
eurocentrado. Anne McClintock (2010) e Grada Kilomba (2018), problematizam os
binarismos limpeza/sujeira, penteado/indisciplinado e civilização/selvageria, que
orientam estas percepções. Lavar e pentear são operações tematizadas pelo pensamento
colonial, que associa o sujo e o selvagem aos sujeitos colonizados, especialmente às
pessoas negras.
No contexto da escravização dos povos africanos, o cabelo crespo, em suas várias
apresentações – solto, trançado, endredado, etc. – tornou-se elemento central para a
definição de noções de limpeza, sujeira, civilização e selvageria. Apenas os modos
eurocêntricos de lavar, pentear e cuidar dos cabelos foram legitimados, reforçando uma
ordem racial hierárquica e justificando o medo do contágio racial por parte dos sujeitos
brancos, que não reconhecem os rituais de limpeza e de cuidados estéticos dos povos
colonizados.
Ainda que mencione os aspectos negativos das experiências de quem utiliza o
cabelo endredado, Ana cultiva, em seu canal, um discurso generoso a respeito de seu
cabelo. Palavras como palavras como amor, cuidado e resistência são mobilizadas para
descrever a relação que construiu com seus dreads ao longo dos anos. Em alguns vídeos,
ela apresenta os produtos que usa em seu cabelo e explica detalhadamente como eles
devem ser utilizados nos dreads. A marca Salon Line, da qual Ana Paula tornou-se
embaixadora, é frequentemente mencionada.
No vídeo “Xongs, tá acontecendo!!!!”, publicado no início de 2019 em seu canal,
Ana anuncia o início de uma parceria com Salon Line, sublinhando, de modo efusivo, que
é primeira embaixadora de dreads a representar a marca. Segue um trecho transcrito do
vídeo em questão:

Eu fiz os meus dreads há 9 anos atrás, e eu fui pra Moçambique pra


fazer esses dreads porque eu não tinha referências no meu entorno de
um cabelo que fosse crespo, natural, comprido, e de novas
possibilidades. E aí gente, passa 9 anos, a gente chega em 2019 e eu
me torno a primeira embaixadora de dreads da Salon Line, sem dúvida,
a marca que acompanha a trajetória de muitas mulheres negras com
seus cabelos crespos, com seus cabelos naturais e que nesse ano tem
um slogan que faz muito sentido pra mim, que é “transforme-se em
você”. Na boa, xongs, a Salon Line deu um passo muito a frente,
130

contando, ali, pra tanta gente, que essa é sim uma possibilidade de
cabelo, valorizando e ampliando as belezas negras e, sem dúvida, me
dando uma grande oportunidade de compartilhar tudo o que eu sei
sobre dreads e sobre cabelo crespo nas redes sociais.
E tinha que ser a Salon Line, por um motivo simples de ser os produtos
que eu uso de fato! De ser os produtos que me contemplam, contemplam
o meu cabelo, o cabelo da minha filha. De ser os produtos que estão
em muitas partes do Brasil, que estão nas periferias de São Paulo, de
fácil acesso, que têm preço acessível pra mim, pros xongs. Tinha que
ser a Salon Line! E eu fico muito feliz de eles acreditarem nisso
também!102

No trecho, Ana explica os motivos pelos quais aceitou o convite da marca,


mobilizando sua experiência pessoal com os produtos, o posicionamento da empresa no
que concerne ao relacionamento com as consumidoras negras e o fácil acesso e
disponibilidade dos produtos. Isto é relevante na medida em que, em seu posicionamento
de mercado, nem todas as marcas que fabricam produtos para cabelos crespos e cacheados
têm a intenção de se posicionar como populares e acessíveis em termos de preço e
disponibilidade dos produtos.
Como já discutido, as marcas que acompanhei durante a investigação possuem
perfis distintos entre si, e as consumidoras também as percebem de maneiras
diferenciadas, julgando quais marcas são baratas, quais são acessíveis, quais são caras,
quais são mais fáceis de encontrar e quais apresentam produtos que possuem um bom
rendimento. A Salon Line se constrói e é percebida pelo público consumidor como uma
marca que pratica preços considerados mais baratos, que é facilmente encontrada em
diversos tipos de estabelecimentos comerciais.
A youtuber argumenta que a marca acompanha a trajetória de muitas mulheres
negras e que realiza um trabalho de ampliação das concepções de beleza negra ao colocar
os dreads como uma “possibilidade de cabelo”. No que concerne à questão da trajetória,
é preciso destacar um paralelo entre a narrativa da marca e de suas consumidoras: assim
como muitas consumidoras negras começaram a utilizar as linhas para cabelos crespos
quando interromperam o uso de alisantes e iniciaram a transição capilar, a marca, antes
focada na produção de alisantes, tornou-se reconhecida no mercado e nas redes sociais
por suas novas e inúmeras linhas destinadas ao cuidado dos cabelos crespos naturais.

102
Trecho transcrito do vídeo “Xongs, tá acontecendo!!!!”. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=zvTgERTsr5I>. Último acesso em 06/05/20.
131

Em relação às concepções de beleza negra, é fato que mulheres negras com


cabelos endredados raramente protagonizam campanhas publicitárias de quaisquer tipo,
e o cabelo endredado dificilmente é apresentado a meninas e mulheres negras como uma
opção de técnica ou penteado tal como ocorre com os alisamentos e as tranças.
Ana também ressalta que a Salon Line fabrica produtos acessíveis em termos de
valor e disponibilidade, pois são os produtos que estão “em muitas partes do Brasil” e
“nas periferias de São Paulo”. Aqui a relação entre gênero, raça e classe é evidenciada
na medida em que as localidades alcançadas pelos produtos e o preço destes são
discursivamente relacionados: a marca objetiva atingir consumidoras negras e de classes
populares.
Ana é uma figura que incorpora o que podemos nomear como uma “autoridade da
experiência” para se dirigir às consumidoras negras com cabelos crespos e para mediar a
relação destas com a marca. Ela tangencia o argumento da experiência ao retomar sua
história pessoal com o cabelo endredado, já contada em outros vídeos, e ao afirmar que
os produtos Salon Line são os que ela usa em seu próprio cabelo e no cabelo de sua filha.
Em 2021 a parceria com a marca deu mais um passo. Ana e sua mãe, Cris
Mendonça, assinaram um conjunto de produtos lançados pela linha S.O.S Cachos (Figura
18). Os produtos, formulados a partir do óleo de abacate, prometem restaurar, nutrir e
hidratar couro cabeludo e cabelos secos de fragilizados e incluem xampu, condicionador,
gel ativador de cachos e máscara de tratamento. Eles são indicados para cabelos
ondulados, cacheados e crespos.
132

Figura 18: Linha assinada por Ana Paula Xongani


Fonte: Screenshot de publicação da marca Salon Line no Instagram

As embalagens e os rótulos apresentam, de forma predominante, tons verdes e


terrosos, e trazem estampas que remetem às capulanas, nome dado aos tecidos africanos
estampados, muito utilizados na confecção das peças do Ateliê Xongani. A seleção destas
cores e estampas não é fortuita: elas dialogam com certas leituras de uma estética africana
e negra. Os rótulos dos produtos trazem uma foto de Ana e sua mãe, e ambas apresentam
cabelos crespos e curtos em seu estado natural, sem intervenções que modificam a
estrutura dos fios.
Ainda que os produtos sejam indicados para vários tipos de cabelos, a referência
direta aqui é aos cabelos crespos, o que inverte uma lógica muito comum no mercado da
beleza: não é tão comum que as marcas elejam os cabelos crespos como referência para
ilustrar um produto indicado para vários tipos de curvaturas.
133

Figura 19: Texto sobre a linha assinada por Ana Paula Xongani
Fonte: Screenshot de publicação da marca Salon Line no Instagram

Para trazer a importância das raízes e da nossa ancestralidade, chegou


S.O.S. Cachos Abacate Ritual de Cuidado, uma linha de tratamento
cocriada com a nossa embaixadora @anapaulaxongani e sua mãe
@crismendoncacris. Composta por Shampoo, Máscara,
Condicionador, Gel Ativador de Cachos e Tônico Nutritivo para um
cuidado desde a raiz, ela merece ser fortalecida com uma linha
poderosa, né? Por isso, é indicada para todas as curvaturas com fios
fragilizados e ressecados. Quer mais? Ela tem óleo de abacate, extrato
de alecrim e cafeína – a fórmula perfeita para um autocuidado divino.
Para valorizar as suas raízes, o seu poder.

O texto acima (Figura 19) foi publicado junto à imagem de divulgação da linha
no Instagram de Salon Line, em agosto de 2021. Nele, chama a atenção a ambiguidade
em torno da palavra “raiz”. Ao mesmo tempo em que o termo é utilizado para se referir
aos cabelos, é também acionado para se referir as ideias de origem e ancestralidade: a
mãe de Ana Paula, Cris Mendonça, reforça estas ideias com sua presença. A conexão
entre mãe e filha não é apenas sanguínea, mas é estética e política, pois ambas cultivam
um visual parecido, carregado de sentidos políticos e culturais específicos. “Fortalecer
134

as raízes”, aqui, significa não apenas cuidar das raízes dos cabelos, mas também valorizar
as conexões entre as mulheres negras.
Ana Paula Xongani, sozinha ou junto de sua mãe, é uma figura que incorpora uma
autoridade política e uma certa legitimidade para falar sobre cabelos crespos e estética
negra. Sua presença em determinados contextos e espaços e suas parcerias com a marca
Salon Line, de alguma forma, parecem materializar certos anseios por representatividade,
pois, para além de sua atuação enquanto estilista e influenciadora digital, Ana é uma
mulher que se identifica como preta e que utiliza estilos de cabelo crespo que se
contrapõem ao padrão eurocêntrico de beleza, como os dreadlocks e os cabelos naturais
cortados em um corte curto.

3.3 – Cuidando do couro cabeludo

Em maio de 2021 foi lançada a marca Negra Vaidosa Scalp (ou NV Scalp), criada
por Josi Helena, que se apresenta nas redes sociais e no website da marca como uma
mulher negra especialista em estética da pessoa negra, atuante como cabeleireira e
maquiadora há 15 anos.
Na live de lançamento da marca, realizada em maio de 2021 em seu perfil no
Instagram, Josi falou sobre a principal motivação que a levou a criar a empresa: oferecer
produtos específicos para cuidar do couro cabeludo de quem utiliza tranças,
entrelaçamentos103 e dreads, combatendo os possíveis problemas que podem ser gerados
por estas técnicas, como irritações e inflamações.
Os produtos que a marca produz e comercializa são dois tipos de tônicos para o
couro cabeludo, o Scalp Calm e o Force Scalp. O Scalp Calm é um produto destinado a
acalmar o couro cabeludo, evitando que um processo inflamatório, que gera coceira e
prurido no couro cabeludo, seja desencadeado após a realização de tranças e
entrelaçamentos. Já o Force Scalp foi desenvolvido para fortalecer o couro cabeludo,
estimular a produção de novos fios de cabelo e proteger os fios já existentes que estão
trançados, entrelaçados ou endredados.

103
O entrelaçamento é uma técnica utilizada para a fixação de extensões capilares, que podem ser de fios
naturais ou artificiais. O cabelo da pessoa é inteiro trançado rente ao couro cabeludo, formando o desenho
de uma espiral na cabeça. Feito este procedimento, as extensões capilares são costuradas ou presas nas
tranças. Esta técnica é utilizada para que o couro cabeludo e as emendas das extensões não fiquem
aparentes.
135

Josi constrói a narrativa de que sua marca objetiva suprir necessidades não
contempladas pelo mercado de cosméticos para cabelos. Estas necessidades envolvem o
uso saudável de tranças e o alívio das dores das mulheres negras que aderem a estes
penteados. Em oposição aos profissionais da beleza e da saúde que desaconselham o uso
de tranças por considerarem a prática danosa ao couro cabeludo e aos fios, Josi defende
que é possível utilizar tranças e manter o couro cabeludo e os fios de cabelo saudáveis
quando cuidados específicos são tomados em relação à higiene e à execução das
tranças104.
A respeito desta discussão, a marca publicou a seguinte postagem no Instagram
em maio de 2021, exibida nas Figuras 20 e 21:

Figura 20: Postagem da marca NV Scalp


Fonte: Screenshot de publicação da marca NV Scalp no Instagram

104
Josi orienta que o couro cabeludo e os fios devem ser higienizados com frequência, que não se deve
utilizar produtos e ingredientes caseiros sem orientação profissional e que o processo de trançar os cabelos
não deve puxar e tracionar excessivamente os fios, fazendo com que a pessoa sinta dor e desconforto.
136

Figura 21: Postagem da marca NV Scalp


Fonte: Screenshot de publicação da marca NV Scalp no Instagram

Vemos muitos profissionais da área da tricologia condenando o uso de


penteados protetores. Não preciso dizer que a área acadêmica é
majoritariamente branca. Na tricologia não é diferente, portanto,
esses profissionais não levam em consideração dados históricos sobre
essa prática, e muito menos pesquisam as melhores opções para que
eles possam ser feitos sem causar os danos que eles tanto apontam e
usam como justificativa para condena-los. Fato é que: é possível
utilizar penteados protetores e manter a saúde e conforto do couro
cabeludo e cabelos. Para isso boa técnica da profissional
trancista/trançadeira e cuidados adequados com cosméticos
específicos é o segredo. Foi com esse objetivo que nasceu a Negra
Vaidosa Scalp. [meus grifos]

O termo penteados protetores se refere a todo tipo de técnica, especialmente as


tranças, que diminui a exposição do cabelo aos fatores ambientais e às intervenções
mecânicas que podem agredir os fios. Os penteados protetores também possuem uma
função estética, cultural e política: para algumas mulheres negras, o uso destes penteados,
além de embelezar e ornamentar a cabeça, é experienciado como uma forma de resgate
ou contato com sua ancestralidade africana. A ancestralidade africana é uma
137

reivindicação política e cultural de pessoas negras que a compreendem como parte


fundamental da construção de uma identidade negra. Considerando que toda
ancestralidade é, de alguma forma, cultivada, lembrada e reproduzida, trata-se de apontar
que muitas pessoas negras, por conta do processo de escravização e da diáspora, não têm
a possibilidade de traçar suas origens geográficas, culturais e familiares com precisão e
procuram construir essa relação de outras formas.
Estas formas podem envolver, por exemplo, o estudo e a experimentação de
intervenções estéticas sobre os cabelos crespos, como as tranças. De acordo com Nilma
Gomes (2008), a recriação de penteados feitos artesanalmente nos cabelos crespos são
parte de um processo de recomposição de uma memória corporal e estética coletiva, que
desafia o processo de apagamento cultural decorrente da escravidão, da diáspora e da
mistura racial105.
Em países como Moçambique, as tranças permanecem como uma possibilidade
estética muito popular e que faz parte do cotidiano das mulheres negras, que dedicam
tempo, técnica e afeto no processo de realizar as tranças nas cabeças umas das outras
(CRUZ, 2017). No Brasil, além destes aspectos, a tranças também estão relacionadas ao
processo de transição capilar, uma vez que a adesão ao cabelo natural muitas vezes serve
como estímulo para que algumas mulheres negras se sintam impulsionadas a
experimentar mais estilos e possibilidades que o cabelo crespo permite.
A publicação no Instagram da marca Negra Vaidosa Scalp enfatiza problemas
relacionados à Tricologia, um campo de conhecimento que atua como base para médicos
dermatologistas especializados em cabelos, farmacêuticos, cabeleireiros, terapeutas
capilares, esteticistas e cosmetólogos106. O texto argumenta que este campo, por ser
produzido majoritariamente por pessoas brancas, ignora a importância histórica das
tranças e não realiza estudos para solucionar os danos que ele mesmo aponta que as
tranças causam. Isto significa que a Tricologia, segundo esta perspectiva, produz
conhecimentos e tratamentos que não dialogam com as práticas, expectativas e
necessidades de pessoas negras.

105
A autora destaca que podemos encontrar semelhanças entre os penteados representados em estátuas
africanas e os atuais e entre os instrumentos utilizados no passado e no presente para construí-los, como o
pente garfo.
106
Uma rápida busca na Internet mostra que a formação na área se dá, majoritariamente, através de
especializações e pós-graduações direcionadas a profissionais da saúde e a profissionais da beleza em
instituições públicas e privadas de Ensino Superior.
138

O posicionamento de Josi Helena e de sua marca procura pontuar, assim, que para
além da elaboração de produtos específicos para cabelos crespos, é preciso pensar nas
necessidades de mulheres negras que se engajam em práticas específicas como as tranças,
necessidades essas que dificilmente são contempladas pelo mercado de produtos para
cabelos. Além disso, este posicionamento traz um outro aspecto relevante: a produção de
determinados conhecimentos, como os relativos ao campo da Tricologia, e o processo de
formulação de produtos precisam ser modificados para que possam dialogar com as
práticas e as necessidades de mulheres negras.

3.4 – Escureceram a modelo?

A marca Salon Line lançou, em setembro de 2019, a campanha Celebrando


Rainhas Crespas e Cacheadas, produzida pelo Movimento Observador Criativo
(MOOC)107. A campanha, que contou com a participação de influenciadoras digitais
negras, abrangeu um filme lançado no Youtube e anúncios publicados nos perfis da marca
no Facebook e no Instagram. Ainda que o título da campanha não faça nenhuma
referência específica ao pertencimento racial de suas protagonistas e de seu público alvo,
isto fica evidente nos anúncios veiculados pela marca e no filme divulgado no Youtube.
Em matéria publicada no Portal Press108, o diretor de criação da Salon Line,
Alexandre Manisck, concedeu a seguinte declaração a respeito da campanha:

Existe uma discrepância entre a população e o que a publicidade do


segmento de beleza apresenta. Poucas marcas têm uma representação
fiel e proporcional das mulheres negras, e quando olhamos para o
nosso mercado consumidor elas são maioria. Queremos causar essa
reflexão. Temos produtos para todos os tipos de mulheres, mas cabelos
crespos e cacheados são a nossa origem e o momento é pertinente para
essa declaração, que é um reconhecimento e agradecimento da Salon
Line a essas consumidoras.

107
O MOOC, criado em 2016, foi fundado por Catarina Martins, Lídia Thays, Suyane Ynaya, Raphael
Fidelis, Louis Rodrigues, Kevin David, Vinni Tex, Aimée Regina e Levis Novaes. Desde 2017 é membro
da produtora audiovisual Conspiração Filmes. Em publicada no portal Vice, os fundadores são descritos
como “jovens negros moradores da periferia paulistana”. Disponível em
<https://www.vice.com/pt_br/article/xyk47w/conheca-o-coletivo-de-arte-moda-e-design-mooc>. Último
acesso em 07/05/20.
108
Disponível em <http://revistapress.com.br/advertising/nova-campanha-da-salon-line-homenageia-
mulheres-negras-maior-mercado-da-empresa/>. Último acesso em 16/06/20.
139

Em sua fala, Alexandre trata da relação entre o mercado da beleza e as


consumidoras negras, fazendo uma comparação entre a posição do mercado em geral e a
posição da Salon Line. A partir da constatação de que as mulheres negras constituem a
maioria das consumidoras da marca, ele afirma que, enquanto a maioria das marcas não
as representa de maneira “fiel” e “proporcional” em suas campanhas publicitárias, a Salon
Line, compreendendo que os cabelos crespos e cacheados são sua “origem”109, tem
produzido um conteúdo para reconhecer e agradecer as mulheres negras que consomem
seus produtos.
Embora não fique claro o que o diretor de criação da marca quis dizer com “fiel”
e “proporcional”, é possível deduzir, ao acessar os materiais audiovisuais da campanha,
que ele se refere a representações que procuram se opor a estereótipos em torno das
mulheres negras e que procuram retratar a diversidade existente entre estas mulheres,
trazendo modelos com variados tons de pele e texturas capilares entre o crespo e o
cacheado, não se limitando a colocar apenas uma única mulher negra na campanha.
O discurso do diretor de criação da Salon Line é bastante semelhante aos
argumentos de certos atores do mercado que foram analisados no primeiro capítulo. Do
ponto de vista do mercado, avalia-se que a população negra, maioria no país, possui um
grande potencial de consumo desperdiçado pelas empresas, que não sabem como
estabelecer um diálogo com esta fatia do público consumidor. Embora o termo “racismo”
não seja mencionado, o diretor utiliza um vocabulário comum a certos segmentos ativistas
e presentes em discussões nas redes sociais ao apontar a representação e o
reconhecimento das mulheres negras enquanto consumidoras como questões centrais para
o mercado.

109
Como mencionado no capítulo anterior, a Salon Line, criada no final da década de 90, iniciou sua atuação
com produtos de alisamento para cabelos crespos e cacheados.
140

Figura 22: Campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação da marca Salon Line no Instagram

A postagem acima (Figura 22), publicada no perfil da Salon Line no Instagram


em setembro de 2019, traz a cantora Erika Januza como protagonista de um anúncio da
campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas. O nome da campanha traz duas
ideias muito populares entre parcelas do movimento negro e do feminismo negro, entre a
produção cultural de artistas negros/as e também entre os conteúdos sobre cabelos crespos
produzidos no âmbito das redes sociais: o cabelo crespo como coroa e as mulheres negras
brasileiras como descendentes de antigas rainhas africanas.
É interessante examinar mais detidamente estas duas ideias, mobilizadas de
maneira estratégica. O cabelo crespo, historicamente visto como um traço físico de
141

inferioridade racial pelos discursos eurocêntricos e como marca da diferença, é colocado


como símbolo de nobreza. As características dos fios – a textura e o sentido do
crescimento – e os sentidos sagrados atribuídos às cabeças nas religiões de matriz africana
permitem que o cabelo crespo possa ser lido enquanto uma coroa. As mulheres negras,
retratadas como descendentes de rainhas africanas, ocupam, neste imaginário positivo,
uma posição de herdeiras de um legado histórico invisibilizado pelo colonialismo e pela
escravidão.
Tais ideias, ao confrontarem estereótipos negativos sobre as mulheres negras,
procuram construir representações e significados que desafiem os estigmas da
escravização e da subalternidade. Patricia Hill Collins (2019) e Lelia Gonzales (1984), ao
tratarem, respectivamente, dos contextos estadunidense e brasileiro, chamam a atenção
para o papel ideológico dos estereótipos negativos sobre as mulheres negras – papel este
de naturalizar e justificar desigualdades de gênero, raça e classe – e para a importância da
mobilização das mulheres negras de se definirem em seus próprios termos – o que Collins,
especificamente, qualifica como autodefinição.
Neste sentido, a figura da rainha se contrapõe ao imaginário social sobre as
mulheres negras comum no Brasil, que reserva às estas os lugares sociais subalternos,
como o de empregada doméstica. A rainha, encarnada por Erika no anúncio, é o oposto
da subalternidade: se destaca por sua beleza e altivez e, ao exibir uma postura de orgulho,
dirige um olhar de cima ao público, com o queixo levemente erguido e os lábios cerrados.
Erika exibe cabelos volumosos, na altura dos ombros e com uma franja na altura
das sobrancelhas. A textura de seu cabelo, entre o crespo e o cacheado, pode ser lida como
um cabelo cacheado com cachos mais fechados ou como um cabelo crespo que forma
cachos, abrindo espaço para a ambiguidade. A maquiagem é, ao mesmo tempo, nude e
colorida, pois enquanto lábios, olhos e bochechas foram maquiados em tons próximos à
pele da modelo, em algumas áreas do rosto da modelo foram desenhados traços e pontos
coloridos - a maquiagem nude parece ter sido utilizada de modo proposital, para
concentrar o olhar do público nestes últimos.
Nude é um termo utilizado pelos maquiadores para nomear as maquiagens que
utilizam batons, sombras e blushs em tons próximos à pele da pessoa, de maneira a
parecer que se está usando pouca ou nenhuma maquiagem. O maquiador Tássio Santos110,
especialista em peles negras, ressalta que nude é um conceito, e não uma cor específica.

110
Tássio Santos possui um canal no Youtube denominado Herdeira da Beleza e presta consultoria para
marcas de maquiagem, focando-se no desenvolvimento de tons e produtos para peles negras.
142

Nude é, portanto, diferente da antiga ideia de “cor da pele”, que era utilizada, por
exemplo, para nomear curativos e lápis de cor que mimetizavam apenas os tons de peles
brancas, como se estas fossem sinônimos de “pele”.
Os traços e pontos verdes e azuis em seu rosto lembram os desenhos gráficos
tradicionalmente utilizados em pinturas corporais e faciais de sociedade africanas. Aqui,
no entanto, eles aparecem em tons vivos, que substituem a tinta branca. Novamente, esta
é uma escolha que não parece ser fortuita. Como analisado no capítulo anterior, em suas
comunicações, a marca faz uso do colorido de modo a reforçar uma imagem lúdica de
juventude, espontaneidade e diversidade, e aqui, parece que as tintas coloridas procuram
adicionar, também, um ar de modernidade à prática da pintura corporal – pintura que, no
imaginário social, remete a uma África ancestral.
O texto acompanhando o anúncio diz:

Identidade, força e ancestralidade. Os crespos e os cachos trazem


história, referência e poder. Afinal, somos rainhas, e nosso cabelo...é
nossa herança! Vem celebrar sua raiz, vem celebrar todo o seu poder,
vem celebrar com Salon Line a nova campanha que já está no ar. Salon
Line, celebrando rainhas crespas e cacheadas.

O texto reforça os significados trazidos pela imagem, e, ao mobilizar termos como


herança, ancestralidade, raiz e identidade, dialoga diretamente com alguns discursos
comuns em campo, produzidos por interlocutoras negras que se identificam com pautas
antirracistas e do feminismo negro e que compreendem o abandono do alisamento como
uma “volta às raízes”, como um processo de valorizar a diferença e resgatar (ou construir)
uma relação com sua ancestralidade africana.
Os cabelos crespos e cacheados, conforme o texto da postagem, reconectam
passado, presente e futuro, posto que remetem não apenas à uma nobreza ancestral, mas
situam as mulheres negras no tempo e no espaço atuais, projetando também a imagem de
suas filhas e netas, ou seja, construindo referências positivas para as próximas gerações –
trata-se, precisamente, de uma herança, transmitida entre as gerações.
Além da cantora Erika Januza, outras mulheres foram escolhidas pela marca para
estrelarem os anúncios da campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas. A
youtuber Steffany Borges também foi protagonista de outros anúncios compartilhados
143

nos perfis da marca no Instagram111 (Figura 23). De modo semelhante à Erika, Steffany
também é retratada em uma postura de orgulho, com o queixo levemente erguido, olhar
firme e lábios cerrados. Seus cabelos são longos, alcançando os braços, sem franja,
possuem cachos mais abertos e um volume menor. A maquiagem utilizada também
combina tons nudes e coloridos, de modo a destacar os últimos: enquanto olhos,
bochechas e lábios encontram-se em tons próximos à pele da modelo, os pontos e traços
estão em azul.

Figura 23: Campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação da marca Salon Line no Instagram

111
Durante a pesquisa acompanhei as publicações de dois perfis da marca no Instagram: o perfil
@salonlinebrasil e o perfil @todecacho. O primeiro é perfil oficial da marca, onde são publicadas
campanhas e informações a respeito de todas as linhas da marca. O segundo é exclusivo da linha para
cabelos crespos e cacheados #todecacho, cujo nome, que contém uma hashtag, faz referência direta ao
universo das redes sociais.
144

O texto publicado diz:

“Nossas raízes são fortes, na vida e na cabeça”...a nova campanha


“Salon Line. Celebrando rainhas crespas e cacheadas” está um
sucesso! Afinal, é repleta de representatividade, história, significado e
poder. Aproveite para conferir: www.youtube.com/Salonlinebrasil.
Celebre sua raiz, celebre com Salon Line.

Ligeiramente diferente do texto publicado junto ao anúncio com Erika Januza, o


trecho que acompanha o anúncio com Steffany Borges aciona categorias semelhantes e
traz o mesmo sentido de exaltar as mulheres negras e seu legado. Força,
representatividade, raízes, história e poder são os termos mobilizados para construir uma
narrativa positiva sobre as mulheres negras, procurando marcar a posição da marca
enquanto empresa que dialoga com questões relativas ao ativismo das mulheres negras.
Contudo, apesar deste discurso, a presença de Steffany na campanha Celebrando Rainhas
Crespas e Cacheadas foi questionada por algumas seguidoras da Salon Line no
Instagram.

Figura 24: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação no Instagram de Salon Line

Figura 25: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação no Instagram de Salon Line
145

Figura 26: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação no Instagram de Salon Line

Algumas seguidoras, tal como nos comentários acima (Figuras 24, 25 e 26),
alegaram que a marca havia escurecido a pele de Steffany nas imagens da campanha
Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas, protestando que nas fotos publicadas em seu
perfil pessoal no Instagram, Steffany exibe um tom de pele mais claro, diferente do que
foi apresentado no anúncio da Salon Line.
Não cabe, aqui, determinar em que medida a marca alterou ou não seu tom de pele
propositalmente ou quais fotografias representam a “real” tonalidade de pele da
influenciadora. Interessa-me, sobretudo, olhar para a controvérsia, para o modo como a
marca foi interpelada pelas consumidoras, e quais sentidos foram acionados por ambas
na construção de seus argumentos.
É curioso que uma marca seja acusada de escurecer o tom de pele de uma modelo
quando o contrário é o mais comum. Em geral, quando se fala em campanhas publicitárias
alterando a aparência de mulheres negras, há conhecidos casos de modelos ou
celebridades negras que tiveram suas peles clareadas e/ou acinzentadas em anúncios
publicitários, seja por conta do uso indiscriminado de programas de edição digital, de
recursos fotográficos inadequados ou por conta da aplicação de maquiagem em tons
inadequados às peles negras112. No contexto atual, em que as demandas por
representatividade de pessoas negras aumentaram e que as marcas estão sob um intenso

112
Em 2008, por exemplo, a companhia francesa L’oreal foi acusada de ter clareado a pele da cantora
Beyoncé em um anúncio de tinta para cabelos. Já em 2014, a cantora Preta Gil reclamou em seu perfil no
Facebook que a revista Moda Moldes havia clareado sua pele na capa que protagonizou. Recentemente, em
2019, a modelo Júnia Evaristo apontou, em seu perfil no Instagram, que sua pele havia sido clareada,
ficando com um aspecto acinzentado, em um anúncio da marca da maquiagem da youtuber Mari Maria.
146

escrutínio dos consumidores nas redes sociais, determinadas alterações no tom de pele
das modelos, realizadas de maneira intencional ou não, são alvos de críticas e
questionamentos por parte do público.
Outros comentários acerca da presença de Steffany, no entanto, levantaram de
forma explícita uma suspeição em relação à sua negritude, argumentando que ela não
seria uma representante adequada das mulheres negras que a marca pretendia atingir com
a campanha, como se vê nas Figuras 27 a 30:

Figura 27: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação no Instagram de Salon Line

Figura 28: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação no Instagram de Salon Line

Figura 29: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação da marca no Instagram
147

Figura 30: Comentário sobre a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas


Fonte: Screenshot de publicação no Instagram de Salon Line

O incômodo de algumas seguidoras da marca, que reivindicaram a presença de


uma modelo “negra de verdade”, “preta de verdade” e “negra retinta”, qualificando
Steffany como branca – em outros comentários, termos como parda, mestiça e morena
também foram mobilizados –, expressam algumas disputas e ambiguidades relativas à
classificação racial e à representação das mulheres negras.
Se a marca Salon Line colocou Steffany enquanto mulher negra, incluindo-a como
uma das protagonistas de uma campanha dirigida às suas consumidoras negras, parte do
público não compartilhou desta leitura, avaliando que a marca, por intenções comerciais,
enegreceu a pele da modelo, de modo a encaixá-la junto às outras modelos da campanha,
como Erika Januza. Do ponto de vista desta crítica, a marca, para agir de maneira honesta
e coerente com seu público, deveria ter mantido o tom de pele “correto” da modelo no
anúncio, ou ainda, deveria tê-la substituído por uma modelo com a pele mais escura.
Historicamente, no Brasil, mulheres negras de pele retinta e cabelos crespos, em
geral lidas socialmente como pretas, são preteridas nos mais diversos espaços sociais de
prestígio e visibilidade, mesmo naqueles em que as mulheres negras construíram um lugar
de maior protagonismo. Neste sentido, alguns dos comentários defenderam que a marca
deveria ter priorizado modelos negras retintas na campanha Celebrando Rainhas Crespas
e Cacheadas, de modo a se manter coerente com a proposta da campanha, que traz
elementos visuais e textuais – como as pinturas realizadas no rosto das modelos e uso do
próprio termo rainha – que se referem a ideias de herança, ancestralidade, raiz e
identidade, relacionadas à reinvindicação de uma origem africana.
A Salon Line, diante das críticas recebidas, elaborou uma justificativa
padronizada, que foi postada como resposta aos comentários que criticaram a presença de
Steffany na campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas. Na justificativa
(Figura 31), a marca explica que a foto não foi alterada por programas de edição e que a
148

maquiagem aplicada na pele da modelo estava em acordo com sua tonalidade, procurando
defender-se da acusação de que teria escurecido a pele da youtuber.

Figura 31: Resposta de Salon Line aos comentários


Fonte: Screenshot de publicação da marca Salon Line no Instagram

Na justificativa, a marca também faz um aceno às consumidoras, convidando-as


a conhecer a equipe responsável pela produção de suas campanhas publicitárias,
utilizando a metáfora de uma “porta aberta”. No entanto, nenhuma informação sobre
como fazer isso, ou sobre quem compõe esse time é fornecida. O convite, mais que uma
oportunidade concreta, é uma forma de expressar que a marca está atenta às reações das
consumidoras e as possíveis repercussões negativas que suas iniciativas possam gerar.
O texto explica que a campanha Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas é
“composta por negras de cabelos cacheados e crespos” e “foi direcionada ao público
afro”, explicitando a intenção da campanha, marcando o público ao qual ela se dirige e
149

reforçando a leitura de que as protagonistas da campanha são todas mulheres negras, ao


menos do ponto de vista da marca e da produção da campanha.
Neste caso, o que podemos observar é que, do ponto de vista de parte do público
consumidor, uma marca que aciona a ideia de ancestralidade africana e identidade negra
em seu material publicitário precisa materializar tais ideias através de corpos e sujeitos
que não despertem “dúvidas” sobre seu pertencimento racial. A marca foi cobrada, nesse
sentido, a colocar em cena mais modelos que sejam lidas como mulheres negras retintas,
que representam e legitimam, no entendimento do público, as ideias mobilizadas.

3.5 – O lançamento do alisante

O Seminário Científico sobre Cabelo – Representatividade, Mercado e a Beleza


Afro, foi promovido pela Niara Cosméticos113 em 2018 em um salão localizado em um
bairro de classe alta da cidade de São Paulo. A marca brasileira Niara Cosméticos foi
fundada no início dos anos 2000. Nos primeiros anos de existência, o foco da empresa
foram os produtos para alisamento, e ela tornou-se famosa no mercado justamente por
isso. Só muito recentemente a marca passou a desenvolver linhas voltadas para cabelos
crespos e cacheados que não utilizam químicas.
Na ocasião do evento, ao entrar no salão, deparei-me com algumas representantes
da marca, vestidas com camisetas da empresa, presentes ali para recepcionar o público.
Quase todas elas eram mulheres jovens, brancas, com cabelos lisos e compridos, com
exceção de uma jovem mulher negra com os cabelos trançados. Em contraste, a maior
parte do público presente era de mulheres negras de diversas idades que apresentavam
cabelos crespos e cacheados.
O evento contou com a participação de Amanda, empresária do ramo da moda, e
de Vânia, engenheira especializada em diagnóstico capilar. Além disso, o evento também
apresentou o lançamento de dois produtos da marca Niara Cosméticos. Amanda, uma
mulher negra com cabelos longos e trançados, abordou sua trajetória de vida e o contexto
de criação e crescimento de sua marca de roupas. Ao tocar na questão do consumo e do

113
Por questões éticas, o nome real da marca foi ocultado e substituído por um nome fictício. Outros nomes
e dados relativos ao episódio narrado também foram modificados.
150

desenvolvimento de produtos direcionados às mulheres negras, frisou que estas vêm


fazendo uma revolução a partir da estética ao utilizarem o cabelo crespo natural.
Quando Amanda terminou sua fala, uma senhora negra com os cabelos curtos e
crespos, que se identificou como militante, pediu o microfone para expressar seu
descontentamento com a Niara, dizendo que a marca, no evento em questão, colocou
mulheres brancas para apresentar produtos para mulheres negras. Outra mulher, uma
jovem negra com cabelos crespos e volumosos, que se identificou como cabeleireira e
ativista, endossou a fala, acrescentando que era desrespeitoso não se ver representada no
evento. Estas falas foram acompanhadas de sinais de aprovação de parte da plateia.
Os questionamentos levantados pelas participantes foram no sentido de cobrar
uma determinada posição da marca: na visão delas, não basta mobilizar as categorias afro
e representatividade nos materiais de divulgação e idealizar um evento voltado para um
público específico, mas é preciso se comprometer a cumprir uma agenda interna voltada
à pluralidade em termos de gênero e raça, é necessário promover representatividade em
todos os setores e funções de uma empresa.
Amanda comentou, em resposta às manifestações das participantes, que é preciso
questionar e pressionar as empresas, uma vez que os produtos e campanhas direcionados
ao público negro não significam que as marcas têm pessoas negras em seus quadros de
funcionários. Seu comentário destacou a responsabilidade das consumidoras no que se
refere às cobranças direcionadas as marcas.
Após estes comentários, a representante da Niara que estava conduzindo o evento
– uma mulher branca com cabelos lisos e compridos, que posteriormente se identificou
como farmacêutica da empresa – deu início à apresentação de dois novos produtos, à base
de ácido glioxílico, que estavam sendo lançados pela marca. Disse que a questão da
liberação do ácido glioxílico no Brasil é uma “questão política”, relacionada à uma
“minoria que impede a venda e que não representa a população brasileira”. Esta
afirmação, dita de maneira contundente, a princípio me deixou confusa, pois não entendi
seu significado, porém, conforme sua explicação avançou, seu contexto foi melhor
delineado.
O primeiro produto, o Vegan Straightening, seria lançado apenas no exterior por
apresentar uma concentração de ácido glioxílico maior que a permitida pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O segundo, chamado Alisante Vegano
Profissional, já à venda no Brasil, contém uma porcentagem do ácido menor que o
pretendido pela marca. A representante comentou que, apesar de ambos os produtos
151

serem inovadores e frutos de intensas pesquisas realizadas pela marca, o primeiro seria
mais eficiente por conta de sua fórmula específica, proibida pela ANVISA – ou seja, de
acordo com a marca, seu melhor produto estaria com a venda impedida no país.
Os alisantes vendidos no Brasil, segundo a farmacêutica, são inadequados aos
cabelos afro, servindo apenas para cabelos caucasianos, e as empresas que fabricam estes
produtos, com o objetivo de não perderem mercado, são as responsáveis por impedirem
a Niara de lançar o Vegan Straightening no país. Neste momento compreendi o que ela
estava querendo dizer com “questão política”: estava se referindo à disputa por mercado
e à uma suposta influência de outras marcas contra a Niara.
A apresentação do produto aprovado para venda no Brasil, o Alisante Vegano
Profissional, foi acompanhada de explicações técnicas e da exibição de imagens de “antes
e depois” no telão que estava posicionado à frente da plateia. As fotografias mostravam
a ação do produto nos cabelos de diversas mulheres, brancas e negras: primeiro, as
mulheres apareciam com seus cabelos originais, crespos e cacheados, e as imagens
seguintes mostravam como seus cabelos haviam sido radicalmente modificados pelo
produto, transformados em cabelos muito lisos e brilhosos.
Neste momento, uma jovem mulher negra com cabelos crespos, sentada algumas
fileiras atrás de mim, pediu a palavra e disse, no microfone que lhe foi emprestado, que
não esperava ver um produto para alisamento em um evento sobre beleza afro e
representatividade. Disse que a situação parecia ser resultado de um erro de marketing
da marca, que não compreendeu as expectativas do público ali presente.
Diante deste questionamento e das reações audíveis do público, a farmacêutica
explicou que o produto não é apenas um alisante, mas sim um “tratamento” que pode ser
utilizado somente para hidratar o cabelo ou para ajudar na transição capilar. A mulher
que fez o questionamento, ao terminar de ouvir a explicação, argumentou que a transição
capilar é um processo para parar de alisar o cabelo e usar o cabelo natural, e que o uso
de um produto com potencial alisante durante este processo não era adequado.
Parte significativa do público acompanhou de maneira afirmativa os
questionamentos e posicionamentos desta jovem mulher negra e esboçou reações de
espanto e de indignação com o fato da marca apresentar um produto alisante – eu mesma
também fiquei bastante surpresa com o evento apresentar um alisante. Para esta fatia do
público, simplesmente não fazia sentido apresentar produtos alisantes a pessoas que estão
engajadas em iniciativas de valorização dos cabelos crespos naturais.
152

Se, de um lado, a marca mobilizou os termos representatividade e afro para


divulgar o evento e atrair um determinado público consumidor, parte das mulheres negras
presentes, em especial aquelas que se identificaram como militantes ou ativistas,
contestaram o uso destes termos, tensionando e disputando as categorias e os significados
mobilizados pela empresa e trazendo questionamentos a partir de seu ponto de vista
enquanto ativistas e consumidoras. Do ponto de vista destas mulheres, as ideias de beleza
afro e de representatividade não dialogam com a prática do alisamento.

3.6 – “Orgulho Crespo”

A marca brasileira Hoka Professional, em setembro de 2019, lançou uma linha de


produtos destinada aos cabelos cacheados, crespos e ondulados – denominada Orgulho
Crespo – na Beauty Fair, feira internacional do mercado da beleza que ocorre anualmente
em São Paulo. A linha conta com xampu, máscara de tratamento e creme de pentear e é
composta por ingredientes como óleo de coco, extrato glicólico de coco, queratina e óleo
de jojoba. As embalagens são em formato de bisnaga, nas cores verde e branca, e
apresentam cerca de 500 ml de produto cada, pois são direcionadas tanto aos salões de
beleza quanto ao uso doméstico, pelas clientes.
153

Figura 32: Linha Orgulho Crespo


Fonte: Screenshot de publicação da marca Hoka no Instagram

Como se pode ver na Figura 32, no perfil da marca no Instagram os produtos são
apresentados sob hashtags como #orgulhocrespo, #crespo, #orgulho, #cabelocacheado e
#megahaircacheado114. O texto postado junto à imagem diz “Cachos perfeitos! Então
conheça a nossa linha Orgulho Crespo!”. A marca, apesar de ter batizado a linha
referindo-se diretamente aos cabelos crespos, não se foca unicamente neste tipo de cabelo
e promete cachos perfeitos.
Esta promessa, para parte do público de crespas e cacheadas que podem vir a ser
potenciais consumidoras da marca, é vista como um problema. Em primeiro lugar, os
cabelos crespos e cacheados não são considerados iguais, apresentando distintas
necessidades e especificidades, o que requer que as marcas, neste ponto de vista,
desenvolvam produtos específicos para cada tipo de cabelo, procurando atender às

114
Megahair é um tipo de extensão ou alongamento capilar.
154

diferentes demandas das consumidoras crespas e cacheadas. Em segundo lugar, nem


todos os tipos de cabelos crespos formam cachos, o que torna inviável, para muitas
mulheres crespas, a ideia de exibir cachos perfeitos, a menos que façam uso de algum
procedimento químico para modificar o formato capilar.
Como pontuado anteriormente, especialmente as interlocutoras negras que
possuem cabelos crespos questionam a ideia de cachos perfeitos ou definidos, pois esta
ideia exclui os cabelos crespos e perpetua um padrão de cabelo onde apenas os cachos
são aceitáveis e desejados.

Figura 33: Linha Orgulho Crespo


Fonte: Screenshot de publicação da marca Hoka no Instagram

A Figura 33 trata-se de um story postado pela marca em seu perfil no Instagram


para continuar a divulgação da linha Orgulho Crespo. O texto da postagem diz: “Quer
realçar ainda mais a beleza dos seus cachos? Conheça os produtos da linha “orgulho
crespo” que vai transformar os seus fios!”. Aqui novamente, a marca se refere aos cachos,
155

focando-se em um tipo de cabelo que não é o que está no nome da linha. A imagem que
acompanha o texto merece destaque, pois trata-se de uma modelo negra que exibe longos
cabelos cacheados que, para o olho mais treinado, não aparentam ser completamente
naturais – é possível que sejam resultado do uso de relaxamento ou de babyliss. A mesma
problemática da figura anterior é reforçada aqui, pois um produto que, em teoria, é
dirigido a cabelos crespos, tem sua comunicação voltada para cabelos cacheados.
O uso do termo Orgulho Crespo no nome dos produtos e nas hashtags de
divulgação gerou uma reação por parte do Movimento Orgulho Crespo Brasil, movimento
a favor do cabelo crespo natural construído por mulheres negras desde 2015, responsável
pelos eventos denominados Marcha do Orgulho Crespo, que ocorrem anualmente em
várias cidades do país. Em meados de outubro de 2019, semanas após a participação da
marca Hoka Professional na Beauty Fair, integrantes da Movimento Orgulho Crespo se
manifestaram no Facebook, publicando uma nota direcionada aos seus seguidores e à
marca. Aqui analiso trechos da nota, que se encontra na íntegra na parte de Anexos:

Este comunicado visa informar que o Movimento Orgulho Crespo


Brasil não tem nenhuma relação com a “linha orgulho crespo”, da
Hoka Professional.

Contactamos [o diretor da marca] via instagram e o questionamos se


havia entrado em contato conosco para falar sobre a nova linha. O
mesmo afirmou que “ainda não, mas quero muito apoiar a causa e
fazer uma parceria bacana”.

Diante da resposta, duas questões merecem atenção: o que significa


uma “parceria bacana”?/ Quais e o quão realmente interessadas
estão as marcas em apoiar causas como a do Movimento Orgulho
Crespo Brasil?

Quando as pessoas perguntam porque a Marcha de São Paulo não mais


acontece (2018 e 2019) esta também é uma resposta plausível. Não
acontece porque, uma vez sem incentivo financeiro, nos recusamos a
mobilizar uma equipe de profissionais que trabalhe gratuitamente e
se dedique a produzir e pensar um evento que atingiu proporções
nacionais (com articulações em SP, RJ, MG, BA, GO, RS, PR, MA e
ES) e que demanda staff, estudiosos sobre o assunto, oficineiros e
programação artística.

O que uma marca – já há alguns anos de “suposta” estrada e mercado


– que se diz fabricar produtos exclusivos e que tem como “missão” a
qualidade, a confiança e a satisfação de seus clientes entende por uma
“parceria bacana”? O que uma marca liderada por um homem
branco que lança sua linha “Orgulho Crespo” com uma equipe de
venda inteiramente branca entendem por representatividade,
consumo e empreendedorismo negro?
156

Criar um produto e batizá-lo de “Orgulho Crespo”, no mínimo sem


qualquer responsabilidade no que tange essa escolha, é literalmente
vestir a camisa de uma pauta que não é a sua. Vale dizer que a marca
criou camisetas “Orgulho Crespo” e vestiu sua equipe para a
promoção do produto durante a feira; além de sublinhar que o mesmo
serve para “reduzir o volume”. O cinismo e a distorção de propósito
pegam carona em um Movimento que vem tentando questionar
padrões de beleza e, sobretudo, discutir discriminação e racismo a
partir da estética num país majoritariamente de população negra.

É aquela velha e conhecida problemática e suas consequências:


quantos profissionais negros ocupam cargos na sua empresa? Quão
diferente seria se tais profissionais estivessem envolvidos no processo
da ideia inicial ao produto final? Quantos questionam sua ausência?

Chega de querer vender e aparecer às custas de iniciativas negras sem


incluir negros. Não compactuamos.

No comunicado, o Movimento Orgulho Crespo alega que a marca, ao não ter


estabelecido nenhum tipo de diálogo com o movimento e as pessoas que o constroem,
acabou por se apropriar do termo e da pauta do Orgulho Crespo, “vestindo uma camisa
que não é sua” e “pegando carona em um Movimento vem tentando questionar padrões
de beleza e, sobretudo, discutir discriminação e racismo a partir da estética num país
majoritariamente de população negra”. É destacada a ausência de familiaridade da marca
com as pautas relativas ao racismo e à estética negra e a falta de uma iniciativa em
construir uma relação com o movimento. Estas ausências, que são extremamente
relevantes quando se pensa na relação tensa entre mercado e ativismo, são duramente
criticadas.
O Movimento explica que a ausência de diálogo com as marcas, que se traduz na
falta de parcerias comerciais que possam impulsionar a produção e a execução da Marcha
do Orgulho Crespo anualmente em várias cidades do Brasil, é o que vem dificultando a
realização dos eventos nos últimos anos: “uma vez sem incentivo financeiro, nos
recusamos a mobilizar uma equipe de profissionais que trabalhe gratuitamente e se
dedique a produzir e pensar um evento que atingiu proporções nacionais (com
articulações em SP, RJ, MG, BA, GO, RS, PR, MA e ES) e que demanda staff, estudiosos
sobre o assunto, oficineiros e programação artística.”. O texto procura destacar que os
eventos realizados em diversos estados brasileiros necessitam de recursos humanos e
157

materiais indispensáveis e questiona quais marcas estariam de fato interessadas em apoiar


a causa.
O texto questiona que noção de representatividade está por trás das iniciativas da
marca e das empresas em geral. Ainda que o comunicado cite especificamente a marca
Hoka Professional, os questionamentos que ele traz não se limitam a apenas esse episódio
e fazem eco a outras reflexões que testemunhei durante o trabalho o campo, colocadas
por consumidoras e profissionais negros. Nestas reflexões, como discutido no Capítulo 2,
são apontadas não apenas a necessidade de desenvolver produtos específicos para a
população negra, mas também a necessidade de que as equipes profissionais que atuam
nas empresas sejam racialmente diversas e incluam pessoas negras em todas as etapas de
criação, produção e venda de bens e serviços.
O Movimento, ao comentar sobre a presença marcante de pessoas brancas entre os
profissionais que trabalham junto à marca, questiona qual é o lugar de pessoas negras
neste cenário: “quantos profissionais negros ocupam cargos na sua empresa? Quão
diferente seria se tais profissionais estivessem envolvidos no processo da ideia inicial ao
produto final? Quantos questionam sua ausência?”. Estes questionamentos apontam
justamente para a composição da equipe profissional da marca, pautando que um valor
como a representatividade deve estar incluído em todos os processos de uma empresa,
não apenas no momento da venda de um produto.
Este episódio envolvendo a marca Hoka Professional e a Marcha do Orgulho
Crespo mostra que, no contexto do campo estudado, não basta que as marcas formulem
produtos supostamente dirigidos aos cabelos crespos. Especialmente do ponto de vista
ativista, é preciso que as marcas demonstrem publicamente que se esforçam em construir
um diálogo com as consumidoras negras e com a ideia de estética negra, bem como é
necessário que incorporem profissionais negros em seus quadros internos.

3.7 – Representatividade como categoria política em disputa

Representatividade é uma categoria disputada por diversos atores, sobretudo


quando estamos falando de ativismos políticos nos contextos online. Trata-se de uma
categoria política em construção, em geral associada à discursos progressistas, que se
colocam a favor de políticas e iniciativas inclusivas. É uma noção ampla, que diz respeito
158

à diversas esferas do mundo social. Questiona-se, por exemplo, a representatividade de


mulheres e pessoas negras na política, nas câmaras legislativas.
Contudo, quando a categoria representatividade começa a transitar entre o
mercado e a política, sua validade é interrogada: pode o mercado de fato promover uma
representatividade real? Representatividade importa? Há apontamentos, sobretudo
vindos de pessoas que participam de movimentos sociais e de partidos políticos, sobre as
possibilidades ou perigos da categoria ter seu conteúdo político esvaziado quando é
mobilizada pelo mercado e pelas marcas. Esta tese, em adição, mostra como tais
apontamentos também podem partir de pessoas que se encontram na posição de
consumidoras de determinadas marcas.
Os casos analisados neste capítulo evidenciam como a relação entre mercado e
política, longe de ser simples e linear, é permeada por articulações e tensões complexas,
que envolvem aproximações, distanciamentos e negociações entre os diferentes atores e
discursos que constituem o campo estudado. Como destacado por Nilma Gomes (2008),
“Estética, política, identidade, mercado e moda são, hoje, inseparáveis e mantem entre si
relações complexas e, por vezes, tensas.” (p.201).
A categoria representatividade, que é chave para entender as dinâmicas, tensões
e circulações que constituem o campo estudado, transita entre diferentes contextos e
suscita, ao mesmo tempo, conexões, colaborações, disputas e conflitos.
Conforme evidenciado neste capítulo, representatividade, aqui, traz em seu bojo
outras categorias relevantes para os discursos êmicos, tais como ancestralidade africana,
identidade negra e afro. Estas categorias são compartilhadas e disputadas, de maneira
mais ou menos intensa, por diversos interlocutores, como as marcas, os profissionais da
beleza, as consumidoras, as influenciadoras digitais e as ativistas pelo cabelo natural.
Como visto nos casos discutidos, se de um lado, a mobilização destas categorias
parece provocar um diálogo com ao menos parte das consumidoras, especialmente as
consumidoras negras, de outro, há também questionamentos direcionados às marcas e a
determinados atores do mercado, que são interpelados a respeito de sua legitimidade e
autoridade política para acionar certas categorias ou mobilizar determinadas narrativas.
As marcas e os atores do mercado muitas vezes são confrontados em relação aos limites
do seu comprometimento com as iniciativas compreendidas como ativistas.
O que os conflitos problematizados mostram é que, do ponto de vista político, a
inclusão de pessoas negras precisa se refletir não apenas em termos de números, mas em
qualidade de representação nas propagandas, nas ações de marketing e nas criações de
159

produtos e conteúdos das empresas de cosméticos. Representatividade não é apenas sobre


números, mas sobre como pessoas negras são retratadas: sua aparição é marcada de que
maneira? Como elas aparecem e em quais condições?
Os debates em torno da categoria representatividade (e das categorias que
aparecem em seu bojo) também colocam cena os deslizamentos e problemas de
classificação envolvendo pessoas cuja aparência está sob suspeição ou cuja aparência é
considerada não-negra ou mesmo branca. Isto é tematizado particularmente pelo caso
“Escureceram a modelo?”. O incômodo expressado por algumas consumidoras da marca
Salon Line é parte de uma questão maior, que ultrapassa as iniciativas do mercado.
Se, por um lado, nas últimas décadas houve um esforço do movimento negro e
dos intelectuais negros em estimular as pessoas que se viam (e eram vistas) como pardas,
mestiças ou morenas a se reconhecerem como negras (GUIMARÃES, 2003 e
MUNANGA, 2019), esforço esse que procurava combater a ideologia de branqueamento
e a invisibilização de pessoas negras, por outro, as ambiguidades e disputas em torno das
classificações raciais no Brasil permanecem vivas, trazendo à tona problemas de
classificação em torno da aparência de determinados indivíduos, que podem ser
socialmente lidos a partir de uma classificação racial popular que é cromática, ou seja,
que compreende “várias cores intermediárias entre a preta e a branca” (MUNANGA,
2019).
Além disso, o incômodo expressado também faz referência a uma discussão sobre
o colorismo e o protagonismo de mulheres negras retintas nas mídias hegemônicas e
digitais. Parte das interlocutoras desta pesquisa apontam que as empresas de cosméticos,
mesmo em iniciativas dirigidas às mulheres negras, preferem contratar modelos negras
com pele mais clara e cabelos cacheados, preterindo mulheres negras de pele mais escura
e com cabelos crespos. Elas alegam que as mulheres negras retintas e com cabelos crespos
não são adequadamente representadas nas campanhas publicitárias das marcas, ainda que
estas campanhas procurem comunicar que as marcas estão comprometidas com a
diversidade e a representatividade.
160

CAPÍTULO 4 - AS MÍDIAS DIGITAIS E AS INFLUENCIADORAS CRESPAS E


CACHEADAS

4.1 – As mídias digitais e o trabalho dos influenciadores

As mídias digitais como o Facebook, o Instagram e Youtube não são apenas


veículos para as pessoas trocarem mensagens, se comunicarem e difundirem
informações115. Elas se tornaram, especialmente nesta última década, espaços de
formação de comunidades, de aprendizado político e de debates dos mais variados temas
do cotidiano e da vida social.
Estas mídias, ainda que sejam propriedades de empresas privadas, têm
funcionado, sobretudo nos últimos anos, como espaços públicos de discussão. Elas
proporcionam uma comunicação de caráter amplo e coletivo e trazem a possibilidade de
que cada usuário tenha um microfone virado para si, a qualquer hora e lugar, bastando
uma conexão com a Internet e um smartphone em mãos. Clay Shirky (2011) argumenta
que este momento é caracterizado pela maior inclusão dos usuários, que passam a
participar de maneira mais ativa e colaborativa nos espaços online.
As pessoas que atuam como influenciadores digitais116 são fruto deste contexto
específico, de difusão, popularização e ampliação das chamadas mídias digitais. São
profissionais que atuam em múltiplas plataformas digitais produzindo conteúdo, de forma
regular e consistente, em formato de vídeos, fotos e textos, sobre os mais diversos
assuntos: filmes, música, beleza, moda, saúde, games, humor e política são alguns dos
temas discutidos pelos influenciadores. Nas diversas plataformas em que atuam, buscam

115
O Facebook é uma rede social virtual criada em 2004 por Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin
Moskovitz e Chris Hughes e que hoje pertence à Meta Platforms, conglomerado de tecnologia e mídia
digitais sediado nos Estados Unidos. O Instagram é uma plataforma de compartilhamento de fotos e vídeos
criada em 2010 por Kevin Systrom e Mike Krieger e que também pertence à Meta Platforms. O Youtube,
por sua vez, é uma rede de compartilhamento de vídeos criada em 2005 por Chad Hurley, Steve Chen e
Jawed Karim e que pertence ao grupo Alphabet Inc, sediado nos Estados Unidos e originalmente criado,
em 2015, para reestruturar a companhia Google e suas subsidiárias.
116
A categoria é uma tradução direta da expressão em inglês digital influencers e, segundo Issaaf Karhawi
(2017), passou a ser utilizada no contexto brasileiro, pelo mercado e pela área da Comunicação a partir da
segunda metade da década passada. Embora a categoria seja recente, a atuação dos influenciadores digitais
tem suas raízes em um momento imediatamente anterior, assemelhando-se ao trabalho que costumava ser
produzido pelos blogueiros. Antes da criação das mídias digitais mencionadas, a produção de conteúdo
concentrava-se nos blogs, sites que inicialmente funcionavam como uma espécie de diário virtual de seus
autores e que, com o tempo, passaram a ser canais de informação e de compartilhamento de opiniões,
impressões e posicionamentos sobre diversos temas.
161

construir um perfil de legitimidade e credibilidade publicamente reconhecidas em relação


ao assunto de que tratam. Este reconhecimento se expressa e se aprofunda na medida em
que conseguem construir comunidades de seguidores ou inscritos que acompanham seu
conteúdo e que levam suas opiniões e posicionamentos em consideração.
É com base neste processo que se torna possível monetizar sua produção de
conteúdo e estabelecer parcerias comerciais com marcas que dialoguem com seu tema e
com seu público. Esta monetização, contudo, não se expressa apenas em relação ao
conteúdo ou em relação às parcerias comerciais estabelecidas com marcas. A própria
imagem pessoal do influenciador, pode-se dizer, é monetizada e transformada em uma
marca (KARHAWI, 2016).
As parcerias comerciais entre marcas e influenciadores podem se dar através de
diversas maneiras. Os influenciadores podem ser contratados para apresentarem ou
elaborarem resenhas de produtos e serviços em seus perfis e canais, e este trabalho é
comumente chamado de publi, uma categoria êmica utilizada para se referir às
publicações pagas pelas marcas. Em termos éticos, o ideal é que os publis sejam sempre
sinalizados117 e que as opiniões emitidas nas resenhas sejam genuínas, ou seja, é esperado,
especialmente por parte do público, que elas apresentem a avaliação real do influenciador,
mesmo que ela não seja positiva. Outros tipos de parcerias comerciais englobam o
comparecimento a eventos promovidos pelas marcas, com a posterior publicação de
vídeos, textos e imagens sobre a ocasião, e a elaboração de produtos que apresentam a
assinatura do influenciador.
Um aspecto importante relativo ao trabalho dos influenciadores é a criação e
manutenção de uma relação de proximidade e de intimidade com seu público (ABIDIN,
2015). Essa relação demanda a utilização de uma linguagem em primeira pessoa, focada
nas experiências, opiniões, valores, impressões e sentimentos. Os influenciadores não
costumam se apresentar como as celebridades clássicas, que parecem intocáveis e
distantes do cotidiano dos fãs, e sim como pessoas cujo cotidiano se aproxima mais de
uma vida comum. Mesmo os influenciadores que atingem fama e dinheiro significativos
procuram cultivar este aspecto, que se mostra essencial para o sucesso do trabalho de
produção de conteúdo.

117
É comum que os influenciadores, ao realizarem publis, deixem sinalizado, por meio de frases, hashtags
ou falando sem seus vídeos que se trata de uma parceria paga ou de um conteúdo encomendado por uma
marca.
162

E o que é propriamente o trabalho de influência, exercido por estes profissionais?


Do ponto de vista do mercado e da área da Comunicação, a influência refere-se a
conseguir exercer algum poder sobre as decisões de compra de seus seguidores, conseguir
pautar certas discussões de relevância social que estão em circulação e influir, de algum
modo, na construção dos estilos de vida e no consumo de bens culturais das pessoas que
estão em sua rede (KARHAWI, 2017), acompanhando sua produção de conteúdo.
As características e potencialidades atribuídas ao trabalho de influência são
cruciais para se entender até que ponto os números atingidos por um influenciador são
importantes. Do ponto de vista mercadológico, contratar o influenciador que possui o
maior número de seguidores ou de inscritos para dar visibilidade a uma marca ou a uma
campanha publicitária não é necessariamente a melhor estratégia de marketing. Um
influenciador com números muito expressivos nem sempre é o ideal para atingir uma
comunidade específica de pessoas, com interesses, comportamentos e impressões muito
distintas de um público mais amplo. Influenciadores considerados menores, mas que
conseguem construir e manter uma relação próxima com uma comunidade em particular
podem ser mais adequados: do ponto de vista mercadológico, considera-se que a
influência que eles conseguem exercer sobre seu público é muito maior.
O trabalho dos influenciadores é uma atividade atravessada por exigências de
diversas ordens. Além da produção de conteúdo precisar ser regular e consistente, da
tarefa de construir e manter uma comunidade de seguidores, da gestão de sua própria
imagem e da relação com as marcas, os influenciadores lidam com os algoritmos e com
as regras estabelecidas pelo Youtube, pelo Instagram e pelas outras plataformas onde
atuam. Em certos períodos, as regras e os algoritmos são modificados pelas companhias,
e estas mudanças não costumam ser previamente discutidas com os produtores de
conteúdo ou com os usuários que utilizam as plataformas. É importante frisar isto na
medida em que, ao mesmo tempo em que as mídias digitais tornaram-se espaços para
debates públicos, as possibilidades de construir e de tornar estes debates mais acessíveis
é, de certa forma, moldada e controlada pelas empresas que são proprietárias destes
espaços.
163

Dado que as plataformas são propriedades de empresas privadas, os critérios de


distribuição e avaliação dos conteúdos publicados mudam com alguma frequência118,
afetando sensivelmente o trabalho do influenciador, obrigando-o a repensar em outras
estratégias para driblar os algoritmos que regem as plataformas, ou mesmo para continuar
a publicar seu trabalho e gerar monetização. As plataformas às vezes são vendidas para
outras empresas ou sofrem uma queda no número de usuários devido ao surgimento de
outras concorrentes, perdendo sua posição competitiva do mercado119, fator que também
deve ser considerado pelos influenciadores. Estes profissionais precisam se mover entre
as redes ou mudar suas estratégias de comunicação para que continuem a alcançar seus
públicos de maneira efetiva.
A complexidade do trabalho exercido pelos influenciadores e a qualidade de sua
influência, sobretudo no que diz respeito ao diálogo com o público e ao relacionamento
comercial com outras marcas, têm impulsionado, nos últimos anos, o surgimento de
empresas que os agenciam, prestando serviços de assessoria de imagem, de publicidade
e de gestão de projetos120. Isto nos demonstra como construiu-se uma espécie de mercado
da influência, com diversos atores orbitando em torno do trabalho desses profissionais.
Embora o senso comum nem sempre considere a atuação dos influenciadores –
especialmente no que se refere ao trabalho de influência em moda e beleza – como um
trabalho legítimo, trata-se de um trabalho que não apenas permite em alguns casos uma
remuneração significativa, mas que sobretudo envolve o estabelecimento de uma série de
parcerias e relações no mercado, que vão além dos presentes recebidos pelas marcas –
justamente chamados de recebidos.
As influenciadoras crespas e cacheadas inserem-se dentro das dinâmicas
descritas nesta seção. Seu trabalho e atuação também são guiados pelas mesmas questões,
critérios e problemáticas aqui apresentados. Trata-se, assim, de um papel ambíguo: ao

118
Em julho de 2019, o Instagram realizou uma mudança com relação à exibição dos likes. As curtidas que
uma foto recebe foram ocultadas do público e só podiam ser visualizadas pelo(a) proprietário(a) do perfil.
A mudança gerou um debate acalorado nas redes sociais: enquanto alguns influenciadores consideraram a
mudança positiva, argumentando que os likes não são o único critério que define o sucesso de seu trabalho,
outros a consideraram prejudicial e tentaram driblá-la, procurando informar o número de likes de outra
maneira aos seus públicos.
119
Este parece ter sido o caso da plataforma Snapchat, dedicada ao compartilhamento temporário de textos,
fotos e vídeos. Desde o início de 2019, portais de notícias têm divulgado uma grande queda no número de
usuários.
120
Durante o trabalho de campo, deparei-me com algumas empresas desta natureza, como a Youpix, o Dia
Estúdio, a Play 9 e a Squid. Todas elas oferecem serviços voltados para a atuação dos influenciadores, para
a produção de conteúdo e para os negócios entre influenciadores e marcas.
164

mesmo tempo em que se aproximam do lugar ocupado pelas consumidoras, também


atuam junto aos atores do mercado.

4.2 – Youtubers crespas e cacheadas e o feminismo negro

As influenciadoras crespas e cacheadas produzem vídeos e postagens com dicas,


orientações e tutoriais sobre como cuidar dos cabelos crespos e cacheados, como passar
pelos processos da transição capilar e do big chop, e apresentam os produtos, técnicas e
acessórios que utilizam em seus cabelos. Trazem informações e explicações sobre os
diferentes tipos de cabelos crespos e cacheados, ensinando as seguidoras a como
identificar seu tipo de cabelo e a como escolher os tratamentos mais adequados para cada
tipo. Elas produzem uma espécie de pedagogia de cuidados com os cabelos crespos e
cacheados.
Estas influenciadoras também fazem resenhas de produtos novos no mercado,
mostram os produtos que recebem gratuitamente das marcas de cosméticos – os chamados
recebidos – e fazem parcerias comerciais com empresas e eventos do mercado da beleza,
divulgando produtos e serviços às suas seguidoras. Algumas influenciadoras, por meio
destas parcerias comerciais, assinam contratos para participarem de campanhas
publicitárias das marcas de cosméticos para cabelo e, em alguns casos, chegam a
participar da elaboração de linhas de produtos específicos para cabelos crespos e
cacheados.
Entretanto, o conteúdo produzido pelas influenciadoras crespas e cacheadas não
se restringe apenas a estes aspectos relacionados à pedagogia de cuidados com os cabelos
e ao mercado. As discussões sobre cabelos muitas vezes suscitam debates sobre padrões
de beleza, feminismo, machismo e racismo, temas que são abordados pelas
influenciadoras que procuram, sobretudo, trazer uma discussão mais acessível sobre estes
temas. Cabelo e estética acabam por levar algumas influenciadoras crespas e cacheadas
e seus públicos a discutirem de maneira mais aberta questões que se interseccionam com
a política, que extrapolam os discursos dos movimentos sociais e do ambiente acadêmico.
Isto não significa, é claro, que todas as pessoas que produzem conteúdo sobre
cabelos crespos e cacheados nas mídias digitais façam vídeos e postagens discutindo
temas como padrões de beleza, feminismo, machismo e racismo. O que quero ressaltar é
165

que estas discussões, ainda que não sejam explicitadas ou acionadas por todos os atores
do campo, emergem com frequência e consistência, mobilizando redes de influenciadoras
e seguidoras, pautando debates sobre desigualdades de gênero e raça a partir do ponto de
vista estético-político.
As influenciadoras que acompanhei durante a pesquisa, quando produzem
conteúdos abordando temas mais politizados ou quando fazem menção a questões
relacionadas às desigualdades de gênero e raça buscam trazer reflexões e indicações que
dialoguem com o cotidiano e as experiências de suas seguidoras. Elas, com alguma
frequência, indicam às suas seguidoras livros, textos, vídeos e perfis relacionados,
principalmente, aos ativismos feministas e feministas negros.
Um exemplo que ilustra bem esse tema é o do vídeo “5 pontos fundamentais do
Feminismo Negro”121 (Figura 34), publicado por Xan Ravelli em outubro de 2017 em
seu canal, o Soul Vaidosa122. Xan é uma mulher negra, na faixa dos 30 anos e com cabelos
crespos na altura dos ombros. Em suas redes sociais, ela se define como “preta, crespa,
mãe de 2 e feminista”, e seu canal no Youtube, criado em 2013, conta com
aproximadamente 60 mil inscritos e 372 vídeos publicados123, abordando temas como
cabelo crespo, maquiagem, maternidade, feminismo, racismo e relacionamentos
amorosos.

121
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UWcWzo5Xy-w>. Último acesso em 08/10/19.
122
O nome do canal é uma espécie de brincadeira com a sonoridade da palavra em inglês soul: o termo
significa “alma” e sua pronúncia se assemelha à palavra em português “sou”.
123
Números de outubro de 2019.
166

Figura 34: Vídeo de Xan Ravelli sobre feminismo negro


Fonte: Screenshot da página <https://www.youtube.com/watch?v=UWcWzo5Xy-w>. Último acesso em
08/10/19.

No vídeo em questão, Xan fala, de maneira didática e descontraída, sobre questões


que diferenciam o feminismo negro em relação à outras vertentes feministas. Ela faz
comparações entre as distintas demandas e necessidades de mulheres brancas e negras,
ressaltando a importância de reconhecer as especificidades e desigualdades relacionadas
à raça no interior do debate feminista. A youtuber traz alguns exemplos a respeito destas
especificidades. Referindo-se à questão do trabalho, Xan compara a condição desigual de
mulheres brancas e negras, argumentando que se as mulheres brancas tiveram que lutar
para ingressar no mercado de trabalho em meados do século XX, as mulheres negras,
historicamente, sempre tiveram que trabalhar durante todo seu tempo de vida:

Enquanto nos anos 40, 50, que as mulheres estavam lutando pelo
direito de trabalhar, a minha mãe, que era jovem nessa época, já
trabalhava, trabalhou a vida inteira, a minha avó trabalhou a vida
inteira também, e a escravidão foi abolida quando a minha bisavó tinha
9 anos – ela também trabalhou a vida inteira.

Mais adiante, contrasta as demandas das mulheres brancas pela liberdade sexual
– expressadas pela Marcha das Vadias – com o processo histórico de sexualização dos
167

corpos das mulheres negras124, explicando que o termo “vadia”, que algumas mulheres
brancas estão tentando ressignificar, possui um outro peso e um outro significado para as
mulheres negras.
A respeito da estética, Xan comenta que enquanto as mulheres brancas contestam
padrões de beleza impostos pela indústria da beleza, questionando se devem utilizar
maquiagem ou não, as mulheres negras nunca foram contempladas pela indústria da
beleza, ou seja, sequer tiveram a opção de utilizar ou não os produtos125.
Xan ainda complementa suas observações mencionando feministas negras que
considera importantes, como Djamila Ribeiro, filósofa e feminista negra brasileira e
Sojourner Truth, uma mulher negra, ex-escravizada, que viveu nos Estados Unidos do
século XIX. Também indica a quem está assistindo o vídeo que observe as sugestões de
textos e vídeos que colocou na caixa de informações, pontuando que é importante se
aprofundar nos debates trazidos pelo feminismo negro:

Esse é um daqueles vídeos que é importantíssimo vocês olharem aqui


embaixo o box de informação, porque eu vou deixar muita bibliografia,
vídeo, texto, tudo pra vocês darem uma olhada e se aprofundar por esse
assunto, tá bom? [...] Eu vou deixar aqui embaixo também, pra vocês
darem uma olhada, no discurso de Sojourner Truth, que é uma ex-
escrava americana, que fez esse discurso maravilhoso, gente! Eu acho
que é super atual, ainda hoje!

Djamila Ribeiro, autora dos livros O que é lugar de fala? (2017) e Quem tem
medo do feminismo negro? (2018), tem se destacado nos últimos anos como uma
importante referência de intelectual pública ligada ao feminismo negro contemporâneo e
acumula inúmeras aparições em programas de TV e palestras ministradas em
universidades brasileiras e estrangeiras. A figura de Djamila tem inclusive se
popularizado de maneira significativa no contexto das mídias hegemônicas e do mercado:
no fim de 2018, a filósofa protagonizou uma campanha publicitária da marca de

124
Carla Gomes (2017), em seu trabalho sobre a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, discute sobre a
tensão as feministas brancas e as feministas negras com relação às implicações raciais do termo “vadia”,
ressignificado pelas mulheres brancas como “transgressão”, “libertação” e “autonomia”, ao mesmo tempo
em que para as mulheres negras reforçaria um estigma de “hiperssexualização” e ‘inferioridade”.
125
Sueli Carneiro (2018) aponta para o caráter de exclusão racial dos ideais de beleza e de feminilidade
hegemônicos, que colocam a mulher branca enquanto referência. Coloco “mulher branca” no singular
propositalmente, para frisar que também se trata se uma imagem idealizada das mulheres brancas, também
marcada por aspectos excludentes em termos de idade, forma física, entre outros aspectos. Para uma
discussão sobre a forma física, ver Marcella Betti (2014).
168

cosméticos Avon e alguns dos eventos de lançamento de seu livro O que é lugar de fala?
– em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro entre 2017 e 2019 – foram patrocinados
pela marca Lola Cosmetics – que, entre outras coisas, fabrica produtos destinados a
cabelos crespos e cacheados naturais e em transição.
Sojourner Truth, mulher negra ex-escravizada que viveu durante o século XIX,
foi uma importante ativista abolicionista e dos direitos das mulheres nos Estados Unidos,
sendo considerada uma precursora do feminismo negro contemporâneo e atualmente
bastante mencionada pelo seu discurso “Ain’t I a woman?” (em tradução livre “E eu não
sou mulher?”), proferido em 1851 durante uma convenção pelos direitos das mulheres
em Ohio. Neste discurso, ela desafia os homens brancos presentes no local a questionarem
a ideia de fragilidade feminina, alegando que em sua vida como mulher negra nunca foi
considerada delicada e frágil e sempre trabalhou duramente (TRUTH, 2012).
Na caixa de informações do vídeo, Xan coloca outras sugestões de conteúdos,
indicando textos e vídeos produzidos por outras feministas negras às suas seguidoras: a
palestra TED “Todos nós deveríamos ser feministas” 126, da escritora nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie, os textos “Vivendo de amor” (1994)127, de bell hooks, e “A
Transformação do Silêncio em linguagem e ação” (1977)128, de Audre Lorde e os perfis
no Facebook das ativistas brasileiras Stephanie Ribeiro e Joice Berth.
Adichie, autora de obras fictícias como Hibisco Roxo (2011) e Americanah
(2013), também é uma ativista que se dedica a falar sobre feminismo e na palestra
indicada, que posteriormente foi editada na forma de livro, discursa sobre o temor em
torno da palavra “feminista” e sobre a necessidade de se difundir o feminismo para
melhorar a vida de homens e mulheres.
Audre Lorde e bell hooks, feministas negras estadunidenses, são importantes
referências no que concerne à crítica aos feminismos universalizantes. Lorde, falecida no
início dos anos 90, foi autora de obras de romance e poesia, e em “A Transformação do
Silêncio em linguagem e ação” (1977), fala sobre a tarefa urgente das mulheres quebrarem
seus silêncios e falarem, tornando-se visíveis. Hooks é autora de livros de diversos
gêneros, que incluem obras infantis e obras influentes na área da Educação, e em
“Vivendo de amor” (1994), problematiza a questão do amor e da afetividade entre as

126
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc>. Último acesso em 03/10/19.
127
Disponível em <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/>. Último acesso em 03/10/19.
128
Disponível em <https://transformativa.wordpress.com/2017/01/31/a-transformacao-do-silencio-em-
linguagem-e-acao-audre-lorde/>. Último acesso em 03/10/19.
169

pessoas negras estadunidenses, defendendo que amar, no contexto histórico e político


desta comunidade, significa um ato de resistência.
Stephanie Ribeiro e Joice Berth, por sua vez, são ativistas brasileiras que têm sido
reconhecidas, sobretudo no contexto das plataformas digitais, como porta-vozes públicas
ligadas ao feminismo negro contemporâneo. Stephanie é arquiteta, apresentadora do
programa Decora no canal de TV paga GNT e participou da conferência de 2017 do TEDx
São Paulo com a fala “Eu quero poder ser fraca”129, em que problematiza o estereótipo
de que as mulheres negras são fortes. Joice, também arquiteta, é colunista do site
Justificando, autora do livro O que é empoderamento? (2018) e já atuou como assessora
parlamentar no âmbito da Câmara Municipal da cidade de São Paulo.
Xan também indica o blog colaborativo Blogueiras Negras130. Criado em 2012, o
blog funciona como uma espécie de plataforma que reúne conteúdo produzido por mais
de 200 autoras e traz uma diversidade de reflexões – sobre saúde, beleza, moda, mídia,
violência, racismo, feminismo, juventude e religião, entre outros – que articulam gênero,
raça, classe e sexualidade. Seu objetivo é ser um espaço de publicação para mulheres
negras e uma comunidade para todos que apoiem a luta feminista e antirracista. Novos
conteúdos são publicados quase que diariamente e a página do blog no Facebook reúne
mais de 220 mil curtidas131. Assim como outros blogs feministas, o Blogueiras Negras se
desenvolveu em um contexto de democratização do acesso às universidades públicas, de
proliferação de atoras que se identificam com campo feminista, de popularização dos
feminismos e de multiplicação dos feminismos populares (ALVAREZ, 2014).
A youtuber, assim, constrói sua argumentação acionando referências que
transitam entre a produção acadêmica, a literatura, o ativismo e os espaços online, com o
objetivo de alargar as perspectivas políticas de sua audiência. Este trânsito, além de ser
próprio do contexto das plataformas digitais, é um aspecto muito presente nos debates do
feminismo negro. As feministas negras mencionadas no vídeo, ainda que se situem em
diferentes contextos históricos e culturais, são colocadas em conjunto na medida em que
suas reflexões constroem, de certa forma, uma base comum de conhecimentos,
experiências e estratégias políticas.
Este não é o único vídeo de Xan sobre feminismo negro. Em seu canal é possível
assistir a vídeos com discussões semelhantes agrupados na playlist “Sobre negritude e

129
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=2EpIZVU-N3Y>. Último acesso em 07/10/19.
130
Disponível em <http://blogueirasnegras.org/>. Último acesso em 20/04/19.
131
Números de junho de 2019.
170

feminismo negro”. Dentre os títulos elencados na lista, encontram-se “De onde vem esse
orgulho de ser crespa?”, “RESPEITA MEU CRESPO”, “3 estereótipos sobre mulheres
negras que precisam acabar” e “5 coisas sobre o racismo”. A conexão entre feminismo,
racismo e estética é presente em seus discursos, aparecendo no conteúdo falado, nos
títulos dos vídeos e no modo como estes são organizados em playlists.
A discussão de temas como feminismos, feminismo negro e racismo e a referência
ao trabalho de intelectuais e escritoras ligadas ao feminismo negro aparecem com
frequência significativa em alguns dos canais de youtubers que falam sobre cabelos
crespos e cacheados que acompanhei durante a pesquisa. A discussão, embora
majoritariamente realizada por influenciadoras negras, também aparece ocasionalmente
em alguns canais produzidos por influenciadoras brancas, como o canal da brasiliense
Gleici Duarte.
Gleici é uma mulher branca, perto dos 30 anos, com longos cabelos cacheados
ruivos. Seu canal, que leva seu nome, foi criado em 2011 e, em outubro de 2019, contava
com aproximadamente 165 mil inscritos e mais de 400 vídeos publicados. A maioria dos
vídeos tratam de temas como cabelos cacheados, cabelos ruivos e maquiagem, mas há
conteúdos sobre outras temáticas, como saúde das mulheres, sexualidade, alimentação e
exercícios físicos e feminismo. Um de seus vídeos sobre feminismo (Figura 35),
publicado em outubro de 2018, trata do livro Quem tem medo do feminismo negro?
(2018)132, de Djamila Ribeiro.

132
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=lmucynNrzSw&t=588s>. Último acesso em
23/10/2019.
171

Figura 35: Vídeo de Gleici Duarte sobre livro de Djamila Ribeiro


Fonte: Screenshot da página <https://www.youtube.com/watch?v=lmucynNrzSw&t=588s>. Último
acesso em 23/10/2019.

Na introdução do livro, Djamila traz sua experiência pessoal com relação ao


cabelo, relatando os diversos métodos de alisamento aos quais se submeteu durante sua
infância e juventude, tais como o pente quente, a chapinha, a escova e os alisamentos
químicos. O relato é tocante, pois a filósofa comenta sobre o sofrimento físico e
emocional provocado pelas diferentes técnicas, o desejo de ser socialmente aceita e
encaixar-se em padrões eurocêntricos de beleza e o processo de abandonar o alisamento
e, em suas palavras, “recuperar o orgulho das raízes”.
Gleici lê alguns trechos deste relato no vídeo e explica que se sente afetada pelo
texto não por conta de sua experiência pessoal com relação ao próprio cabelo – ela reforça
que nunca foi discriminada por ter cabelo cacheado – mas sim porque têm ciência das
situações vivenciadas por amigas, influenciadoras e seguidoras negras.

Fiquei extremamente tocada com esse texto porque é um assunto que


eu trago aqui no canal. Falo muito sobre cabelo, e é óbvio que nunca
sofri racismo, bullying ou qualquer coisa porque meu cabelo é
cacheado. Mas eu me senti muito tocada com essa narrativa porque as
minhas amigas passaram por isso, as pessoas com quem eu trabalho,
as influenciadoras que são negras e que têm o cabelo crespo
provavelmente passaram por coisas parecidas, vocês que me assistem
também podem ter passado.
172

O vídeo é uma espécie de resenha do livro em questão. Nos primeiros minutos ela
explica que acompanha o trabalho de Djamila Ribeiro há alguns anos e que gosta de ler
sobre feminismo negro porque acredita que a leitura a torna mais empática, fazendo-a
compreender que as mulheres negras trazem demandas diferentes das mulheres brancas
– sem suas palavras, as vivências das mulheres brancas não são iguais às das mulheres
negras. Em sua opinião, as mulheres brancas devem apoiar, defender e dar espaço para as
mulheres negras. Estas observações condizem com a maneira como reage ao relato,
justificando que, embora nunca tenha sofrido racismo, reconhece o impacto negativo que
atinge as mulheres negras.
Gleici, além de recomendar às seguidoras a leitura da obra de Djamila Ribeiro,
sugere que também assistam aos vídeos que fez em colaboração com a youtuber e
feminista negra Lorena Monique, que se apresenta como Neggata. Neggata é uma jovem
negra, com cabelos crespos, brasiliense e apresenta-se como estudante de Ciências
Sociais na Universidade de Brasília. Seu canal, com aproximadamente 64 mil inscritos e
69 vídeos publicados, trata de discussões relacionadas a feminismo e racismo e traz
alguns vídeos sobre cabelo e maquiagem, ensinando as seguidoras, por exemplo, a como
amarrar um turbante. Em 2019, ela estrelou uma campanha publicitária de maquiagem da
empresa Avon.
Os vídeos que são resultado da colaboração entre Gleici e Neggata foram
publicados em 2016 no canal de Gleici e intitulam-se respectivamente “Feminismo Negro
e Visibilidade na Internet pt I - Participação Especial Neggata”133 e “Solidão da Mulher
Negra, Aborto, Demandas Feminismo Negro, etc. - Participação Especial Neggata”134.
Os vídeos apresentam uma conversa entre as duas youtubers a respeito da importância do
feminismo negro e da forma específica como mulheres negras compreendem pautas como
aborto, liberdade sexual, relacionamentos afetivo-sexuais e maternidade. Termos como
empatia, sororidade e privilégio são mobilizados no diálogo de maneira a comparar as
distintas condições de mulheres brancas e negras e a criticar o feminismo hegemônico e
branco.
O ativismo de mulheres negras nas redes sociais, especialmente o de jovens que
se identificam como feministas negras e/ou feministas interseccionais, tem cada vez mais
pautado o debate público a respeito de questões relacionadas à gênero, raça, classe e

133
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=j1DJKEar-KQ&t=42s>. Último acesso em
23/10/19.
134
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=RCZGrGwIT-M>. Último acesso em 23/10/19.
173

sexualidade na sociedade brasileira, colocando em relevo posicionamentos políticos


historicamente invisibilizados nos espaços acadêmicos e midiáticos. Nesse sentido, os
espaços online, mais que possibilitarem a circulação de informações, permitem a
construção de mobilizações, e as redes sociais, de maneira especial, apresentam-se como
“espaço de formação de comunidades políticas, cuja atuação não se restringe ao ambiente
da Internet” (RIOS e MACIEL, 2017, p.3). Protestos e debates que se iniciam nas redes
espraiam-se para outros espaços públicos e podem se desdobrar em diferentes formas de
iniciativa, como a formação de grupos de discussão e de acolhimento presenciais, cursos
em instituições educacionais, pautas em programas televisivos, manifestações nas ruas e
publicação de livros.
No caso do feminismo negro, não tem sido diferente. As mídias digitais têm sido
centrais para seu crescimento e para a diversificação e visibilização de suas pautas. Trata-
se de um tipo de engajamento mais plural e descentralizado, a exemplo do que permite
observar a atuação de influenciadoras como Xan, Gleici e Neggata. Ao mesmo tempo,
esse engajamento plural coloca uma série de desafios para as influenciadoras que
precisam traduzir esses temas para seu público e, mais do que isso, equilibrar a presença
de temas mais imediatamente percebidos como ativistas com aqueles mais relacionados
a beleza, de modo a não perderem também seu interesse para o público interessado nos
produtos e técnicas capilares e, principalmente, para as marcas que investem nos canais.
Na próxima seção, trato dessas ambiguidades.

4.3 – Youtubers crespas e cacheadas e o mercado da beleza

Nesta seção, o foco recai sobre a relação entre as youtubers crespas e cacheadas
e o mercado da beleza, tomando como exemplos alguns aspectos da produção de
conteúdo de duas influenciadoras: Gleici Duarte e Gabi Oliveira. A escolha destes canais
não é aleatória, pois acredito que as questões relativas aos trânsitos e tensões entre
mercado e política aparecem de maneira muito evidente no trabalho exercido por estas
duas mulheres, possibilitando uma discussão produtiva a respeito destes temas. Ao
mesmo tempo, essas questões, é importante sublinhar, permeiam todo o campo, e não se
limitam apenas ao trabalho destas influenciadoras.
174

Como já apresentado no item anterior, Gleici Duarte se identifica como branca e


cacheada. Seu canal no Youtube, em março de 2022, contava com 256 mil inscritos e 425
vídeos publicados. Gabi Oliveira é uma mulher que se identifica como preta e crespa. Seu
canal no Youtube, em março de 2022, contava com 663 mil inscritos e 296 vídeos
publicados. Ambas são mulheres jovens, com menos de 30 anos, que cursaram o ensino
superior e que já estabelecem parcerias com marcas de cosméticos conhecidas no
mercado da beleza em seu trabalho como influenciadoras.
O canal de Gleici tem priorizado, desde sua criação, em 2010, conteúdos
relacionados a cabelos e maquiagem, focando, particularmente, nos cuidados
relacionados à coloração e cabelos ruivos. Gleici gravou diversos tutoriais ensinando a
colorir os cabelos e a manter o tom desejado, mostrando as tinturas e tonalizantes
necessários para adquirir um tom de ruivo vibrante. Devido a este trabalho, tornou-se
reconhecida como uma “especialista em ruivos” nas plataformas digitais e em 2018
lançou um tonalizante para cabelos ruivos em parceria com a marca Kamaleão: o produto,
batizado de “capivara” é uma referência ao modo bem-humorado como Gleici chama suas
seguidoras135.
Entretanto, embora o canal priorize conteúdos relacionados a beleza, entre 2015 e
2016, Gleici publicou uma série de vídeos com conteúdos ou pontos de vista
declaradamente feministas, abordando temas como relacionamentos amorosos,
sexualidade, violência contra as mulheres, métodos anticoncepcionais, feminismo negro,
gordofobia136, entre outros. Alguns destes vídeos foram gravados com convidadas (como
Neggata, mencionada anteriormente), com mulheres que, na perspectiva de Gleici de seu
público, teriam mais propriedade para falar de determinados assuntos. Durante este
período, então, os tutoriais e resenhas relacionados a cabelos e maquiagem passaram a
dividir espaço com vídeos sobre temas relacionados a pautas feministas.
Todavia, em 2017, novos vídeos apresentando temas ou abordagens
declaradamente feministas tiveram uma significativa queda de publicações no canal, que

135
Gleici chama a atenção por seus cabelos cacheados longos e tingidos de ruivo: seu histórico de vídeos
mostra que ela já utilizou diversos tons avermelhados e acobreados, e as mudanças são constantes. Ainda,
se nos primeiros anos do canal Gleici sempre aparecia com os cabelos lisos ou levemente ondulados, a
partir do final de 2016 seus cabelos começaram a exibir cachos definidos. Tal transformação se deve, em
suas palavras, à descoberta de ser cacheada e da adesão às técnicas de tratamento específicas para este tipo
de cabelo.
136
Gordofobia é um termo que tem sido usado nas redes sociais para caracterizar o preconceito e a
discriminação contra pessoas gordas. Durante minha pesquisa de mestrado (BETTI, 2014), este termo ainda
não era tão popularizado quanto é hoje, embora seu significado já circulasse. Chama a atenção o uso do
sufixo fobia, que remete à ideia de medo ou aversão.
175

passou a ter outros conteúdos. Gleici começou a publicar vídeos sobre sua nova casa,
vídeos com sua irmã e vídeos onde respondia perguntas variadas de suas seguidoras.
Como resultado, no início de abril de 2018, Gleici publicou um vídeo, intitulado
“DEIXEI DE SER FEMINISTA? Por que não falo mais sobre?” 137, explicando porque
não estava mais falando diretamente sobre feminismo: contou que cansou de receber
comentários agressivos de haters138, que “é complicado” falar sobre o tema, mas que
ainda assim continua falando sobre empoderamento e autoestima para mulheres em seus
vídeos.
Aqui, a fala de Gleici ressoa um contexto em que, embora exista um maior
interesse público e midiático pelo feminismo, este interesse convive, ao mesmo tempo,
com um processo em que a palavra “feminismo” por vezes sai de cena para dar lugar a
outras categorias, em tese mais palatáveis para o campo do mercado e das mídias
hegemônicas: determinados temas e pautas, historicamente caros aos feminismos, são
diluídos e descolados de sua base mais “política”, sendo abordados a partir de outras
categorias, como empoderamento e autoestima139.
O afastamento de Gleici com relação a temas ou pontos de vista declaradamente
feministas parece ter sido paralelo a uma maior aproximação com certos atores do
mercado de beleza – mais especificamente, com algumas marcas de cosméticos, como a
Soul Power. No final de maio de 2018, Gleici Duarte publicou um pequeno vídeo em seu
perfil no Instagram140 onde fez uma avaliação a respeito da marca Soul Power, com a
qual trabalhava na época, explicando que esta, na grande maioria de seus produtos, coloca
rótulos com modelos negras. Segundo a youtuber, a marca possui um bom custo
benefício, pois ainda que os preços não sejam baixos (entre 25 e 30 reais), as embalagens
são grandes (cerca de 500 ml) e os produtos possuem fórmulas únicas, com uma boa
consistência, que rendem muitas aplicações.
Ainda que o foco do canal sempre tenha sido cabelos, com a publicação de
resenhas de produtos e de tutoriais sobre como cuidar dos fios, é notável que ao longo

137
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=LaW_9QhCUWU>. Último acesso em 22/10/19.
138
Haters, um termo em inglês que pode ser traduzido grosseiramente como “odiadores”, é uma categoria
êmica utilizada para nomear usuários que apresentam um comportamento agressivo na Internet, em geral
expressado por meio de comentários e postagens feitas em redes sociais que promovem ataques pessoais
contra outros usuários, figuras públicas ou influenciadores digitais.
139
Não se trata aqui, de julgar o posicionamento da influenciadora, mas de observar como este
posicionamento é fruto de um contexto maior. Ver mais em Sarah Banet-Weiser (2018), que trata da noção
de pós-feminismo.
176

dos anos Gleici passou a fazer mais parcerias com marcas, sendo convidada para festas e
eventos, fazendo mais publis e gravando com outras youtubers que também trabalham
com beleza e moda. Após o fim do contrato com a Soul Power, que ocorreu nos últimos
meses de 2018, Gleici estabeleceu uma nova parceria, desta vez com uma marca de
cosméticos maior: a Seda, da companhia Unilever.
O exemplo de Gleici Duarte, no que tange ao seu posicionamento em relação às
marcas e aos conteúdos considerados mais “políticos”, possui alguns pontos de conexão
com o caso de Gabi Oliveira, a despeito das diferenças que existem entre o perfil e o
trabalho das duas influenciadoras. Como veremos, a relação de Gabi com grandes marcas
também provoca alterações e movimentações, de certo modo, nos conteúdos de seu canal.
Gabi Oliveira é uma mulher que possui cabelos crespos e que constantemente
muda seu visual: um breve passeio por seu canal mostra cabelos crespos curtos, tranças
em estilos africanos de variados comprimento e cores, perucas, dreadlocks e turbantes.
Ela é uma figura que incorpora, de maneira muito interessante e produtiva, a distintas
possibilidades estéticas para os cabelos crespos e, de certa forma, incorpora também o
que podemos chamar de uma “autoridade da experiência” quando se trata dos cabelos
crespos e da estética negra.
Seu canal, intitulado DePretas, desde sua criação, em 2015, é focado em falar
sobre cabelos, maquiagem e questões raciais. Junto aos conteúdos sobre produtos para o
cabelo e resenhas de bases para pele negra sempre estiveram presentes os vídeos sobre
racismo e sobre as experiências de mulheres negras em relação a diversos temas, como
gordofobia, maternidade e relacionamentos amorosos, por exemplo.
No vídeo intitulado “Estética é menos importante?”141 (Figura 36), publicado em
novembro de 2017, a youtuber comenta que recebe muitas críticas por falar de beleza,
como se a estética fosse algo “menos importante”, “inútil” ou “fútil”. Contestando este
tipo de julgamento, Gabi comenta sobre a importância de se falar sobre a estética para as
mulheres negras, que atualmente estão em “um processo de quebra de padrões e de
autocuidado”. Chama a atenção o seguinte trecho do vídeo, onde ela justifica seu
posicionamento, explicando porque considera o debate sobre beleza fundamental:

141
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VTpO76KzO08>. Último acesso em 07/10/19.
177

[...] quando penso no histórico de exclusão das mulheres negras, eu


acho essencial falar sobre estética também. Nós passamos anos sem
nos olharmos, sem entendermos as nossas características e também
sendo muito mal representadas nas mídias tradicionais. Foram anos de
negligência, de campanhas totalmente estereotipadas e isso fazia com
que nossa autoestima ficasse aonde? Lá embaixo! Por isso pra mim
não faz o menor sentido essa demonização do tema beleza. Porque a
gente precisa falar, e falar sobre tudo que está relacionado a nós,
inclusive beleza, estética! Porque, por exemplo, hoje em dia, quando eu
falo a palavra beleza, pra muitos de vocês, que me assistem aqui, a
imagem que se forma na cabeça talvez seja a de uma mulher negra.
Mas há alguns anos atrás isso era praticamente impossível! Nós
éramos ligadas somente a coisas ruins, sabe? Cabelo duro, mulher feia.

Gabi, ao falar sobre estética, faz um recorte, destacando as particularidades que


envolvem a questão quando o debate é pautado pelas mulheres negras. Embora muitas
vezes o senso comum considere a beleza como uma futilidade ou um tema menor, isto
não pode ser universalizado, uma vez que para mulheres negras este tema se relaciona ao
combate à estereótipos racistas e à construção de referências estéticas plurais e de uma
autoestima mais positiva. Ela ainda complementa que as mulheres negras costumavam
ser “mal representadas nas mídias tradicionais”, sendo retratadas de maneira
estereotipada em campanhas publicitárias142.

142
Sueli Carneiro (2018) problematiza o papel central que os meios de comunicação desempenham “[...]
na cristalização de imagens e sentidos sobre a mulher negra”, pontuando que, além das mulheres negras
participarem de forma minoritária nos espaços midiáticos, em geral são retratadas em categorias específicas
e estereotipadas, como “mulatas” ou empregadas domésticas. As mídias, na realidade, reforçam
determinados sentidos simbólicos em detrimento de outros, tornando certas representações mais
hegemônicas (LAURETIS, 1987; ALMEIDA, 2007).
178

Figura 36: Vídeo de Gabi Oliveira sobre a importância da estética


Fonte: Screenshot da página <https://www.youtube.com/watch?v=VTpO76KzO08>. Último acesso em
07/10/19.

É preciso destacar que o vídeo, embora trate de questões discutidas por Gabi em
diversas outras publicações do canal, é uma colaboração da youtuber para a campanha
Juntas Arrasamos, da marca de cosméticos para cabelo Seda, do grupo Unilever. Durante
toda a exibição é possível notar um logo da marca fixado no canto direito da tela, que diz
Seda Embaixadora: durante o ano de 2018, Gabi foi uma das influenciadoras digitais que
a marca selecionou como representante nas redes sociais. A escolha do termo
embaixadora pela marca não parece ser fortuita, uma vez que a palavra remete à ideia de
representação e diplomacia, no sentido de que um/a embaixador/a exerce uma missão
pública. Ao selecionar influenciadoras para este papel, marcas como a Seda – que não é
a única a se utilizar desta estratégia de comunicação – objetivam, através do trabalho das
influenciadoras, estabelecer uma relação de maior proximidade e confiança com as
consumidoras.
Embora o canal de Gabi não tenha tanto tempo de existência quanto o de Gleici,
é possível perceber, ao assistir seus vídeos, que as publicações sobre cabelo, maquiagem
e questões raciais passaram a dividir espaço, a partir de 2017, com vídeos sobre sua
mudança de casa, sobre o intercâmbio que fez nos Estados Unidos para estudar inglês e
com um maior número de parcerias com marcas de cosméticos que a youtuber vêm
179

realizando. Mais recentemente, Gabi passou a publicar também conteúdos a respeito do


processo de adoção de seus filhos, mostrando mais aspectos de seu cotidiano e discutindo
o tema da adoção com suas seguidoras.
Comparando os casos de Gleici e de Gabi, é possível perceber que a aproximação
com grandes marcas está associada a uma mudança também no conteúdo dos vídeos, que
passam a se diversificar ou a “suavizar” o tom mais politizado. Assim, a maior
aproximação da youtuber Gleici com o mercado parece coincidir com seu afastamento
com relação a discussões e posicionamentos declaradamente “mais ativistas”: não são
feitos novos vídeos com temáticas nomeadas como feministas e ela, na tentativa de
responder às perguntas de seguidoras que estavam lhe cobrando um posicionamento,
explica o porquê de sua nova atitude. Gleici também, neste mesmo período, entra em um
processo de emagrecimento publicizado em seu canal e em um de seus perfis no
Instagram, além de “descobrir-se cacheada” e começar a produzir conteúdos sobre outros
aspectos de sua vida pessoal. Gabi Oliveira, por sua vez, ainda que continue abordando
questões raciais em seu canal e em seus perfis nas mídias digitais, torna-se embaixadora
de uma grande marca de cosméticos e passa a publicar vídeos sobre outras experiências
que não têm diretamente a ver com a questão estética, mostrando aspectos mais
detalhados de seu intercâmbio, de sua mudança de casa, do processo de adoção de seus
filhos, entre outros assuntos.
É fundamental pontuar que no caso das influenciadoras digitais, que muitas vezes
se encontram na encruzilhada entre mercado e política – pois ao mesmo tempo em que
monetizam sua própria imagem também sentem a necessidade de se (ou são cobradas pelo
público a se) posicionarem quanto à questões políticas diversas 143 – a decisão sobre que
tipo de linguagem e abordagem utilizar para falar de questões ligadas à raça e gênero não
é tão simples, pois fatores como o relacionamento com o público, a possibilidade de
ganhar ou perder parcerias comerciais, a exposição de sua imagem e até mesmo a sua
segurança pessoal e sua saúde mental entram em jogo. Como mencionado, Gleici, por
exemplo, fala sobre como os comentários agressivos que recebeu por conta de seus vídeos
sobre temáticas feministas a afetaram negativamente. Gabi, por questões de segurança e
de saúde mental, toma algumas precauções ao discutir com seu público questões
relacionadas ao cotidiano com seus filhos: ela sempre evita mostrar as crianças (sobretudo

143
Um exemplo claro de cobrança realizada por parte das seguidoras foi o que ocorreu durante as eleições
presidenciais de 2018: muitos influenciadores digitais, o que inclui as influenciadoras de beleza e
especializadas em cabelos, foram questionados por seus públicos sobre em quem votariam.
180

seus rostos), pois julga que pode ser inconveniente ou mesmo perigoso publicar fotos e
vídeos de seus filhos nas plataformas digitais. Estes são exemplos de como aspectos
bastante sérios podem entrar em jogo e atravessar o trabalho das influenciadoras.
Além disso, uma parceria com uma empresa de cosméticos para cabelos costuma
ser um trabalho temporário, que não necessariamente possui uma remuneração
tabelada144 e que depende de uma produção de vídeos e publicações com determinada
regularidade e consistência. As influenciadoras, ainda que em alguns momentos gravem
vídeos sem maquiagem e sem os cabelos arrumados, têm sua aparência como foco de
atração de seus canais, e precisam mantê-la, despendendo tempo e dinheiro com produtos
e técnicas embelezadoras. Gleici Duarte, por exemplo, é reconhecida como
influenciadora especializada em cabelos ruivos, e precisa manter seus cabelos no tom
com constantes aplicações de tintas e tratamentos. Já Gabi Oliveira, por sua vez, é
reconhecida como alguém que apresenta uma variedade de visuais possíveis aos cabelos
crespos, e a manutenção de penteados como tranças e dreadlocks é algo que demanda
investimentos.
Apesar dos custos pessoais e financeiros envolvidos nesse trabalho, a exposição
de aspectos cotidianos e da vida pessoal e de outros projetos não necessariamente é
encarada de forma negativa, pois ser influenciadora, neste contexto, significa envolver-
se em um processo de construção de si tornado público: mostrar-se é parte essencial do
processo de construir uma relação de intimidade e pessoalidade com as seguidoras, não
bastando falar de produtos e técnicas para o cabelo para manter o sucesso do canal.
Compartilhar nas redes sociais alguns aspectos da rotina diária, sentimentos,
frustrações, fotos e vídeos em que não estão maquiadas e penteadas não causam
estranheza sua audiência, mas, ao contrário, auxiliam na criação de uma atmosfera de
proximidade e espontaneidade, que podem contribuir, inclusive, para o aumento do
número de seguidoras. Nesta relação, as influenciadoras digitais, de certo modo,
negociam (ou tentam negociar) sua visibilidade, podendo se beneficiar comercialmente
disto quando esta relação é valorizada pelas empresas.
Como vemos, trata-se de um terreno que depende de um manejo hábil de muitas
variáveis para que uma influenciadora consiga se firmar como uma profissional de
sucesso. Ao mesmo tempo, é importante atentar para as assimetrias que marcam a relação

144
As remunerações recebidas por influenciadores digitais podem variar enormemente. Um influenciador-
celebridade, com milhões de seguidores, pode cobrar centenas de milhares de reais por um único vídeo de
poucos minutos.
181

entre marcas, empresas e influenciadoras. Ainda que as influenciadoras possam ser


consideradas (e se considerarem) marcas145, nem sempre é possível dialogar em pé de
igualdade com as empresas que oferecem parcerias e outros tipos de trabalhos e com o
próprio Youtube, que também é uma empresa146. Apesar disso, não se pode considerar
que as profissionais não desempenhem nenhuma agência frente a essas assimetrias e às
instabilidades delas decorrentes: é na intenção de reduzi-las que outros passos podem
decorrer da atuação inicial como influenciadora, envolvendo a própria transformação
dessa consumidora-produtora em alguém que também é responsável por marcas e
produtos próprios, como vemos na próxima seção.

4.4 – As influenciadoras crespas e cacheadas e seus empreendimentos

Nesta seção discutirei outros empreendimentos e ações desenvolvidos por


influenciadoras crespas e cacheadas que vão além de seus canais no Youtube e de seus
perfis em redes como o Instagram. Algumas das influenciadoras mais reconhecidas no
meio acabam por lançar produtos assinados, em parcerias com marcas de cosméticos, há
outras que lançam sua própria marca e outras que abrem suas lojas ou salões de
cabeleireiro.
Se, por um lado, lançar um produto, uma marca ou um serviço pode ser uma
espécie de reconhecimento do trabalho da youtuber, reforçando a legitimidade que elas
têm construído através de seu trabalho no contexto digital, por outro, estes
empreendimentos parecem ser essenciais para que estas profissionais não só continuem o
trabalho nas mídias digitais, como para que adquiram fontes de rendimento mais estáveis
e sólidas, traçando caminhos para que possam continuar a trabalhar junto ao mercado da
beleza.
Seguimos nesta seção junto a Gabi Oliveira e Gleici Duarte, com a linha assinada
em parceria com a Seda pela primeira e o salão de cabeleireiro criado pela segunda. Essa

145
O trabalho de criar os conteúdos, filmar e editar os vídeos, comunicar-se com seguidoras e clientes nem
sempre é feito apenas pelas influenciadoras digitais: uma maior profissionalização da atividade implica na
abertura de uma empresa e na contratação de funcionários para executar estas atividades.
146
No caso do Youtube, por exemplo, as mudanças dos algoritmos que distribuem os vídeos provocam
consequências aos influenciadores digitais de modo geral, que são difíceis de serem previstas e geridas
182

escolha se deve a questões de economia do texto, mas lembro também que há outros
exemplos que revelam essa circulação entre influenciadora-consumidora-empresária147.

4.4.1 – Seda by Gabi Oliveira

A marca Seda lançou, em setembro de 2020, a linha de produtos Crespoforce,


assinada pela influenciadora crespa Gabi Oliveira. A linha, também chamada de Seda by
Gabi Oliveira, é direcionada aos cabelos crespos e entrou como substituta da antiga linha
Keraforce. A linha Keraforce, lançada em 2000, era direcionada aos cabelos crespos
quimicamente tratados, ou seja, cabelos crespos submetidos a diferentes tipos de
alisamentos, e sua embalagem era na cor marrom. Os produtos assinados por Gabi
Oliveira, por sua vez, mantêm a embalagem na cor marrom, apresentando detalhes em
rosa e em dourado (Figura 37), e são direcionados aos cabelos crespos em geral, sejam
eles naturais ou submetidos a intervenções alisantes.
As embalagens na cor marrom, em ambos os casos, trazem uma identidade
particular às linhas, remetendo não apenas ao aspecto das sementes da manteiga de karité
– ingrediente presente em ambas as linhas, Keraforce e Crespoforce – mas sobretudo à
pele negra, dado que os produtos são direcionados aos cabelos crespos. A marca, assim,
reforça a relação, histórica e politicamente construída, entre cabelos crespos, processos
de racialização e negritude, imprimindo uma espécie de “identidade racial” ao produto.
Este aspecto certamente não é fortuito.

147
A trajetória da influenciadora cacheada Mari Morena é um destes exemplos. Mari, que possui um canal
no Youtube que fala sobre cabelos crespos e cacheados desde 2014, lançou sua própria marca de cosméticos
em 2016. Sua marca, também chamada Mari Morena, hoje comercializa produtos destinados a limpar, tratar
e finalizar cabelos crespos e cacheados. Estes produtos são apresentados às consumidoras como produtos
idealizados “por quem entende do assunto”: é acionada, como estratégia de vendas, a autoridade e
legitimidade construídas pela influenciadora em relação ao tema cabelos crespos e cacheados.
183

Figura 37: Linha Seda by Gabi Oliveira


Fonte: Screenshot de publicação da marca Seda no Instagram

Figura 38: Texto de divulgação da linha Seda by Gabi Oliveira


Fonte: Screenshot de publicação da marca Seda no Instagram
184

Em texto publicado no Instagram (Figura 38), em 17 de setembro de 2020, para


divulgar a linha Seda By Gabi Oliveira, a marca escreve:

Primeiro mistério revelado: bem-vinda ao time de cocriadoras,


@gabidepretas! O queridinho Keraforce é relançado, agora mais
poderoso do que nunca: Seda by Gabi Oliveira Crespoforce! Depois de
muita troca e várias ideias, cocriamos com a Gabi uma linha perfeita
dedicada às crespas, com Manteiga de Karité e Óleo de Marula, que é
pra não faltar hidratação! E olha que demais: a linha pode ser usada
em crianças. Afinal, nossos crespos são incríveis demais pra não
mostrarmos pro mundo desde cedo, né? Quem aqui vai testar essa
novidade? Deixa nos comentários suas dúvidas!
#CabeloIncrívelDemais #JuntasArrasamos

No texto, a marca pontua a substituição da linha Keraforce pela linha Crespoforce,


assinada por Gabi Oliveira. Essa substituição não é acidental e não se trata se uma simples
mudança na composição dos produtos. Trata-se de um redirecionamento da marca, que
está buscando dialogar com um público maior e fazer eco nas mídias digitais, trazendo
uma influenciadora crespa que se considera uma mulher negra retinta e que é conhecida
e legitimada no debate sobre cabelos naturais na Internet. Não à toa, o foco passa dos
cabelos crespos quimicamente tratados para cabelos crespos em geral, abarcando também
os cabelos crespos naturais e os cabelos das crianças.
O fato de o produto poder ser usado em crianças é significativo por dois motivos.
Em primeiro lugar, nos debates empreendidos no campo, a manipulação dos cabelos na
infância quase sempre aparece nos relatos de mulheres crespas e cacheadas, sobretudo
nos relatos das mulheres negras que possuem estes tipos de cabelos. É na infância, muitas
vezes, que se desenvolve sentimentos ambíguos a respeito do próprio cabelo, aprendendo-
o a manipulá-lo com mães, tias e irmãs, e, na trajetória de vida de parte destas mulheres,
é na infância que se tem o cabelo alisado pela primeira vez. Assim, torna-se interessante
um produto que possa cuidar dos cabelos crespos infantis, desviando o foco do
alisamento.
Em segundo lugar, do ponto de vista cotidiano, um produto que possa ser
utilizado, ao mesmo tempo, em cabelos de adultos e crianças torna-se um produto prático,
especialmente para pais e mães que possuem cabelos crespos e cujos filhos e filhas
também possuem o mesmo tipo de cabelo. Para a marca, é comercialmente favorável
apresentar um produto que possibilita um uso ampliado, que possa ser vendido como um
produto suficiente para atender a uma família satisfatoriamente. Isto é reforçado pelo
185

baixo custo do produto, que pode ser facilmente encontrado em farmácias,


supermercados, lojas de departamento e perfumarias a preços que variam entre 8 a 12
reais, em média148.
Gabi Oliveira, em seu canal no Youtube, publicou o vídeo, intitulado “Tudo sobre
o Seda by Gabi” em 24 de setembro de 2020149, falando sobre o desenvolvimento da linha
e trazendo informações detalhadas sobre os produtos, procurando responder às perguntas
e comentários que algumas seguidoras lhe enviaram a respeito dos produtos. Segundo ela,
a escolha dos ingredientes foi resultado de uma decisão feita junto à marca, e o objetivo
foi apresentar produtos compostos por um ingrediente considerado tradicional entre as
crespas, a manteiga de karité, e por um ingrediente menos conhecido e menos utilizado
pelo mercado da beleza, o óleo de marula. Nesta escolha, a junção entre uma manteiga e
um óleo foi considerada como ideal para proporcionar hidratação e nutrição para os
cabelos crespos.
Gabi também elabora um discurso sobre seu papel ativo na elaboração dos
produtos, colocando-se como protagonista do processo:

Eu lancei a minha linha junto com Seda, Seda by Gabi Oliveira! Uma
linha pensada e desenvolvida para os cabelos crespos. [...] A primeira
coisa que eu quero responder, que eu recebi muito, é sobre como a
linha foi pensada e desenvolvida e porque essa pode ser considerada
uma linha voltada para os cabelos crespos. [...] Gente, eu recebi esse
convite há mais de um ano! E desde então a gente tá trabalhando no
desenvolvimento da linha Seda by Gabi Crespoforce. [...] Desde já eu
quero que vocês saibam que tudo foi feito com muito carinho e eu
participei ativamente do desenvolvimento desse produto, não estou só
dando meu nome, eu tava lá mesmo! Tava lá participando, testando,
pedindo alteração, porque eu queria que o produto ficasse um produto
que eu compraria! [...]

Gabi explica que sua colaboração não se restringiu a assinar a linha Crespoforce,
e sim que ela participou, por mais de um ano, da escolha de ingredientes, do
desenvolvimento da fórmula e da testagem do produto: “[...] tudo foi feito com muito
carinho e eu participei ativamente do desenvolvimento desse produto, não estou só dando

148
Estes preços foram pesquisados por mim na cidade de São Paulo, e em lojas online que fazem entregas
por todo o país nos anos de 2020 a 2022.
149
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=FcpP8g_L0rU>. Último acesso em 13/03/22.
186

meu nome, eu tava lá mesmo!”. Ela conclui que seu objetivo foi elaborar um produto que
ela mesma compraria, imprimindo um tom de pessoalidade e legitimidade e reforçando
seu conhecimento e sua dedicação no papel de influenciadora crespa pensando em
produtos para cabelos como os seus.
Aqui, penso ser importante demarcar uma diferença entre o papel de
influenciadoras e o papel de artistas e celebridades quando o assunto é a presença destas
na publicidade de produtos de beleza. Se antigas propagandas de produtos para cabelo de
grandes marcas utilizavam atrizes e cantoras famosas para divulgar os produtos, gerando
uma desconfiança em parte do público consumidor, que questionava se fato estas pessoas
faziam uso dos produtos em sua vida cotidiana, as propagandas e ações de marketing mais
recentes, estreladas por influenciadoras digitais, procuram passar a impressão oposta,
pois é ressaltada a proximidade entre a pessoa, o produto e público consumidor. Como
ressaltado anteriormente, as influenciadoras digitais constroem uma relação de
intimidade com suas seguidoras e apresentam-se como pessoas comuns – ainda que
conhecidas na Internet – que também utilizam e testam produtos em seu cotidiano.
Umas das perguntas enviadas por seguidoras que Gabi procurou responder no
vídeo foi a respeito da possibilidade de os produtos poderem ser utilizados – ou não – por
quem segue os métodos no e low poo. Estes métodos, discutidos com mais detalhes no
Capítulo 5, desaconselham o uso de xampus elaborados com sulfatos e de produtos
capilares que contenham silicones, petrolato, óleo mineral e parafina. As pessoas que
seguem estas rotinas capilares consideram que os sulfatos – também chamados de
surfactantes – presentes nos xampus convencionais ressecam em demasia os cabelos
crespos e cacheados, prejudicando a saúde e o aspecto dos fios. Além disso, também
consideram que ingredientes como o petrolato, o óleo mineral, a parafina e alguns tipos
de silicones não tratam os cabelos de fato, formando apenas uma película em torno dos
fios, que não proporciona real hidratação e nutrição.
Sobre o uso de seus produtos por quem pratica as rotinas capilares no e low poo,
Gabi argumenta:

Uma outra pergunta que vocês fizeram demais foi sobre ser liberado.
Condicionador e creme de pentear, liberados para low poo. Eu acho
que o creme de pentear também é liberado pra no poo, mas eu não
tenho certeza porque eu não sigo mais a técnica já faz algum tempo,
gente! E o xampu, ele tem surfactante, mas escutem aqui o que eu estou
falando...já tem resenhas aqui no Youtube falando sobre isso, e eu vou
reforçar pra vocês! Gente, sério, a gente fez um xampu hidratante! A
gente fez! Esse xampu me deu muito trabalho! [...] Um xampu
187

surfactante e hidratante! As meninas já estão falando sobre essa


característica do xampu, porque realmente é maravilhoso. [...] E por
que que tem surfactante? Porque, gente, assim que eu recebi o convite,
uma das coisas que me deixou muito feliz foi o fato de saber que o
produto ia chegar no Brasil todo e alcançar muitas pessoas crespas
que não estão necessariamente dentro dessa bolha de conversas da
Internet. E a realidade é que eu queria fazer um produto, um xampu
mais plural, que alcançasse mais pessoas e que conseguisse ser um
xampu muito bom pras crespas que não seguem as técnicas e que
testam produtos que não são liberados. Essa foi uma escolha minha
mesmo, de ter surfactante [...]

Conforme se observa no trecho transcrito, Gabi Oliveira, ao elaborar com a marca


Seda a linha Crespoforce, não se focou nas rotinas no e low poo. Ainda que destaque que
o condicionador e o creme de pentear sejam liberados para quem pratica as técnicas150 ,
ela explica que o xampu da linha, por sua escolha, foi elaborado com sulfatos. A youtuber
argumenta que o xampu, mesmo sendo à base de sulfatos, proporciona um efeito muito
hidratante nos fios crespos.
Em sua visão, um xampu elaborado com sulfatos é um produto “plural”, capaz de
alcançar mais consumidoras. Aqui ela traz um argumento interessante: seus produtos
querem atingir as consumidoras crespas que não são adeptas das novas rotinas de cuidado
e que “[...] não estão necessariamente dentro dessa bolha de conversas da Internet”. Os
métodos no e low poo, ainda que tenham se popularizado nos últimos anos, sendo
adotados por consumidoras, influenciadoras e até mesmo cabeleireiros, não
necessariamente atingem todas as pessoas que possuem cabelos crespos e cacheados. O
que Gabi traz de maneira crítica, ao falar em “bolha da Internet”, é que os debates sobre
cabelos naturais e cabelos crespos e cacheados que se espraiam pelas mídias digitais não
atingem todas as pessoas – ou, talvez, atingem as pessoas de maneira desigual, não
provocando os mesmos efeitos.
Esta parceria entre Gabi Oliveira e a marca Seda tratou-se, assim, de uma
continuidade e de um aprofundamento na relação entre as duas marcas – considerando
que a própria figura de Gabi, enquanto influenciadora, também é uma marca. Se de início
Gabi atuou como embaixadora da marca nas redes sociais, aqui é dado mais um passo,
em que ela passa a ser protagonista no desenvolvimento de um produto, assinado por ela

150
O termo liberado é muito utilizado no campo para descrever produtos considerados adequados às
técnicas, ou seja, para descrever produtos que, do ponto de vista êmico, podem ser utilizados por quem
pratica no poo ou low poo.
188

mesma. Ainda que o produto esteja atrelado a uma outra marca, Gabi se coloca como
protagonista e mediadora neste episódio, explicando como quis elaborar produtos que
chegassem a mais pessoas e que “furassem a bolha da Internet”: sua própria imagem,
enquanto marca, é consolidada aqui.

4.4.2 – O salão Cor e Cacho

Eu já trabalhava com as redes sociais, já era influenciadora, digamos


assim...vivia tendo crise de ansiedade, porque quando você é
influenciadora tem mês que você tem, tem mês que você tem nada, e eu
vivia mais no mês que eu não tinha nada. Quando encerrou um clico
de trabalho importante pra mim, de uma marca importante, eu me vi
muito desnorteada, tipo assim, e agora, o que que eu vou fazer da
minha vida? Comecei a entregar currículo, comecei a tentar trabalhar
na área como farmacêutica. Fiz duas seletivas, não passei. E aí
começou a me dar medo de fato [...] O pagamento da marca que eu
fechei, eles tinham pagado assim, como se fosse o contrato de um ano,
eles tinham pagado cerca de 20 mil reais pra mim, pra ficar um ano
trabalhando com eles. Se você parar pra fazer as contas, assim, é um
pouquinho mais de um salário mínimo que eu recebia. Não é lá grandes
coisas, e eram muitas entregas, era muito trabalho, mas era um
trabalho muito importante pra mim, muito importante pra minha
carreira. E eu tinha muitas contas pra pagar. Fui pagando conta, fui
me organizando, eu não sou o tipo de pessoa que tinha como recorrer
pro meu pai e pra minha mãe, meu pai e minha mãe são pessoas pobres
[...] Enfim, desse montante desse contrato que eu fiz, eu tinha
conseguido juntar 8 mil reais. Tinha conseguido pagar o que eu tinha
pra pagar e eu tinha esse montantezinho de 8 mil reais. Aí vocês
pensam, ai mas é 8 mil reais, eu não tenho 8 mil reais! Gente, era tudo
o que eu tinha! Toda a economia que eu tinha, era tudo assim....eu
ainda tinha aluguel pra pagar, tinha outras coisas, contas que iam
vencer, e 8 mil reais era tudo o que eu tinha na conta.

O relato acima, da influenciadora cacheada Gleici Duarte, conta o início de sua


trajetória como cabeleireira e proprietária de salão e loja de cosméticos. Este relato é um
trecho do vídeo “Minha história: Como construí 4 empresas e ampliei minha marca”,
publicado em seu canal em outubro de 2021. O pontapé inicial para se engajar nestes
projetos foi quando seu contrato como embaixadora de uma marca de cosméticos para
cabelos encerrou-se, deixando-a com dúvidas sobre como seria possível dar continuidade
ao seu trabalho como influenciadora.
189

Seu relato traz algumas dificuldades significativas relativas a este trabalho,


mostrando como, em alguns casos, há uma falta de estabilidade e solidez na profissão,
em que não há renda garantida para todos os meses e cujos contratos que as marcas
oferecem não geram uma renda anual substancial – como ela conta, o contrato temporário
com uma marca rendia-lhe pouco mais de um salário mínimo por mês. Em sua narrativa,
ela frisa por diversas vezes que, após o encerramento do contrato com esta marca em
questão, ela possuía 8 mil reais para investir em outros projetos.
O relato continua:

Na época, eu tinha uma ideia de querer ter uma loja específica pra
cacheadas aqui em Brasília. Eu pensava assim, nossa, ia ser muito
legal se tivesse uma loja específica pra cacheadas. E nessa loja eu
podia ter alguma coisa pra ruiva também. Eu pensava que ter uma loja
física seria uma coisa legal. E na época, eu tinha uma amiga que era
cabeleireira e ela queria expandir, sair lá da garagem da casa dela e
ela falou assim, porque que você, a gente não monta uma coisa juntas?
Eu saio daqui, a gente vai pra um lugar maior e você cria a sua loja.
Eu falei beleza, porque com 8 mil reais eu tinha poder de barganha, eu
tinha poder de comprar alguma coisinha. Daí eu bati na porta de várias
marcas pedindo ajuda. Porque como eu era influenciadora, tudo o que
eu tinha de networking, de contato, eu fui atrás. [...] Pra quem não
sabe, quando você abre um comércio, gente, você não consegue
comprar as coisas no boleto. Tipo assim, abri um CNPJ e vou comprar
as coisas no boleto e alguém vai gostar da minha cara e vai parcelar
pra mim. Não é assim que funciona, é tipo crediário. Se você não tem
nome na praça, se você não tem histórico, não acontece. As coisas
foram acontecendo, eu bati na porta da Soul Power, bati na porta da
Kamaleão, bati na porta da Keune, bati na porta da Igora, da
distribuidora da Schwarzkopf daqui de Brasília. 151

Inicialmente, sua ideia era montar uma loja de cosméticos que vendesse produtos
específicos para ruivas e para cacheadas em Brasília. Conversando com uma amiga
cabeleireira sobre sua intenção de abrir uma loja, recebeu a proposta de formar uma
sociedade onde as duas alugariam um espaço para estabelecer um salão e uma loja de
cosméticos. Aproveitando os contatos profissionais que vinha construindo por conta de
seu trabalho como influenciadora, Gleici também começou a procurar marcas de
cosméticos para cabelos para que pudesse adquirir os produtos para abrir sua loja. Dentre
as marcas citadas, três delas comercializam, prioritariamente, tinturas para o cabelo –

151
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=B1IQ3mnOFJ8>. Último acesso em 16/03/22.
190

Kamaleão, Keune e Igora – e uma delas produz cosméticos para cabelos crespos e
cacheados.
No segundo semestre de 2019, Gleici e sua então sócia abriram um salão em
Brasília, batizado de Cor e Cacho, especializado em colorações avermelhadas e
acobreadas e em cabelos crespos e cacheados. Gleici explica que, além de se utilizar de
seus conhecimentos sobre cabelos tingidos em tons de ruivo, para ampliar seus
atendimentos no salão, também fez um curso de corte específico para cabelos cacheados
em São Paulo, utilizando, para isso, parte do dinheiro que havia economizado. Assim, a
influenciadora tornou-se também uma cabeleireira especialista em cabelos crespos e
cacheados.
No início da pandemia de COVID-19, em 2020, a parceria com a sócia foi
encerrada e o salão Cor e Cacho teve que ser fechado por conta das medidas sanitárias
restritivas determinadas pelo governo do Distrito Federal. Nesta época, Gleici decidiu
abrir a loja de cosméticos no formato e-commerce: a loja, batizada de Amor Acobreado,
passou a vender online, para todo o país, tinturas, tonalizantes e produtos para cabelos
tingidos, cacheados, crespos e ondulados. Com o sucesso das vendas desta loja, que
deslanchou durante o primeiro ano de pandemia, a influenciadora retomou seu projeto do
salão Cor e Cacho e o reabriu em novembro de 2020, em um novo espaço, na região de
Águas Claras, cidade satélite de Brasília. Ela conta que chamou novamente as
funcionárias que já haviam trabalhado com ela no espaço anterior, quando ainda existia a
parceria com a ex-sócia.
No vídeo intitulado “Vendo Meu Meu Novo Salão Pela Primeira Vez - Detalhes
do projeto”152, publicado em seu canal em setembro de 2020, quando o novo espaço ainda
estava sendo montado, Gleici mostra, com riqueza de detalhes, como o novo salão foi
pensado em conjunto com uma empresa de arquitetura, como foram escolhidos os móveis
e equipamentos e quais cores de revestimentos e pisos foram oferecidas como opção. Em
determinado momento, os arquitetos emprestam a Gleici um par de óculos de realidade
virtual, que exibe uma simulação do projeto relativo ao salão. Este vídeo, mais que uma
mera exibição de paredes, móveis e catálogos de pisos, procura mostrar às suas
seguidoras como foi investido tempo e dinheiro no novo salão, e, sobretudo, evidencia
como sua atuação como cabeleireira e empreendedora se aprofundou e se firmou.

152
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wxCrvR7mJ58>. Último acesso em 16/03/22.
191

Já em 2021, Gleici expandiu seus empreendimentos, lançando um curso online


sobre cabelos ruivos e abrindo uma filial de seu salão na cidade de São Paulo. O curso,
denominado “Eu, especialista em ruivos”, tem como objetivo formar cabeleireiros
especialistas em tinturas de tons avermelhados e acobreados, e promete ensinar, até
mesmo para iniciantes, diversas técnicas de coloração e tonalização e tópicos
relacionados às finanças e à divulgação de um salão de beleza na Internet. A filial do
salão Cor e Cacho, aberta em São Paulo, está localizada em um casarão na Vila Mariana,
bairro de classe média e média alta da cidade, próximo à estação de metrô Ana Rosa.
Os empreendimentos de Gleici Duarte nos mostram, assim, que a influenciadora
também procurou ampliar sua marca, engajando-se em outros projetos para além de seu
canal no Youtube e suas parcerias com outras marcas. Ela também se coloca como
protagonista e mediadora deste processo, contando como utilizou um capital pequeno e
sua rede de contatos com outras marcas para dar início ao seu próprio salão de beleza,
tornando-se também cabeleireira especialista em crespos e cacheados. Sua narrativa, em
adição, procura trazer um tom de esforço individual e a mostra como uma mulher
“batalhadora”, que procurou maior estabilidade financeira e iniciou novos projetos em
meio a dificuldades.

4.5 – Influenciadoras crespas e cacheadas: entre trânsitos e fronteiras

As influenciadoras digitais crespas e cacheadas são sujeitos que borram


fronteiras e que transitam entre diversos campos. Elas circulam entre mercado e política,
navegam pelos discursos técnicos e pedagógicos sobre os cabelos e pelos discursos
ativistas, em que conteúdos considerados políticos são mais evidentes, e atuam, ao mesmo
tempo, junto aos atores do mercado e junto às consumidoras.
As influenciadoras crespas e cacheadas fazem circular em seus perfis e canais
não apenas as categorias e temas relacionados aos cabelos, mas também repertórios
relacionados aos feminismos negros. Neste sentido, também acabam exercendo um papel
educativo interessante ao amplificar esses debates para um público que eventualmente
não chegaria neles via movimento social ou via contexto acadêmico. Assim como as
influenciadoras contribuem para produzir espaços onde circulam marcas, produtos,
técnicas e referências estéticas dirigidas aos cabelos, elas também contribuem com a
circulação de ideias, autoras, categorias e pautas políticas.
192

Elas procuram abordar os temas dos feminismos negros e do racismo


recomendando livros, artigos, vídeos e reflexões de feministas negras publicamente
conhecidas, e, assim como estas intelectuais e ativistas, também fazem uso de
perspectivas subjetivas e atreladas à ideia de experiência. Flávia Rios e Regimeire Maciel
(2017) argumentam que as discussões empreendidas pelas feministas negras têm se
construído, de modo significativo, a partir da mobilização de uma linguagem relacionada
à ideia de experiência. Temas como corporalidade, sexualidade, afetividade e formas de
cuidado e de apresentação de si são debatidos a partir de uma ótica subjetiva, que prioriza
as narrativas de construção de subjetividades para problematizar questões sociais e
politizar o debate – como mencionado, estes temas aparecem nos canais das
influenciadoras crespas e cacheadas apresentadas aqui.
A valorização da experiência dos sujeitos e os relatos em primeira pessoa, segundo
as autoras, relacionam-se à influência das leituras de feministas negras estadunidenses e
ao ambiente das redes sociais. Nas comunidades e plataformas online, como o Facebook,
o Youtube e o Instagram, a linguagem pessoal é dominante e confere uma qualidade de
autenticidade ao conteúdo produzido pelos usuários – e as ativistas e influenciadoras,
como usuárias destas redes, também se utilizam deste tipo de linguagem, construindo suas
trajetórias a partir desta estratégia.
A discussão empreendida neste capítulo reforça um aspecto importante do campo
estudado, discutido ao longo desta tese: a circulação de categorias e ideias entre mercado
e ativismo não ocorre de maneira contínua, mas sim de forma tensa e conflituosa em
diversos momentos. As influenciadoras crespas e cacheadas, como sujeitos que transitam
entre diferentes dimensões do campo, são atravessadas por estas problemáticas. Ao
mesmo tempo em que elas monetizam sua própria imagem, também sentem a necessidade
de se (ou são cobradas pelo público a se) posicionarem quanto a questões políticas
diversas. Elas precisam equilibrar a presença de temas mais imediatamente percebidos
como ativistas com aqueles mais relacionados à beleza, de modo a não perderem o
interesse do público que procura mais os conteúdos relacionados aos produtos e técnicas
capilares e, principalmente, de modo a não perderem oportunidades de parcerias
comerciais junto às marcas de cosméticos para cabelos.
As influenciadoras realizam um trabalho de mediação entre seu público seguidor
(as consumidoras) e as marcas, e neste trabalho elas se valem da própria imagem pessoal,
produzindo um embaralhamento das fronteiras entre sua atuação como marca e sua
trajetória pessoal, entre seu papel como consumidora e seu papel como profissional do
193

mercado. Como demonstrado, as influenciadoras crespas e cacheadas também são elas


mesmas marcas e são, a um só tempo, consumidoras e produtoras. Em sua construção de
marca, as influenciadoras também manejam e negociam seus pertencimentos em termos
de gênero e raça, pois eles mediam, de certa maneira, a relação de intimidade e
legitimidade com suas seguidoras.
O trabalho de mediar diálogos entre marcas e consumidoras e de transformar sua
própria imagem em marca é bastante interessante e estratégico para as marcas que atuam
no segmento da beleza e dos cabelos. Nicolas Wasser (2015) apresenta um caminho
produtivo para problematizar este interesse por parte das marcas: ao estudar uma empresa
de moda específica, aponta que algumas empresas, sob a aparência de valorizarem a
diversidade, na verdade intensificam seus lucros a partir da construção da subjetividade
e do trabalho emocional de seus vendedores. A ideia de “diversity management” é
abraçada por estas empresas, que passam a propagandear a valorização da diversidade
por meio não só da construção da imagem da marca, mas principalmente por meio da
imagem e da produção subjetiva de seus funcionários. Aqui, no caso das influenciadoras
do campo desta pesquisa, a imagem destas, sua produção subjetiva e seu processo de
construir a própria visibilidade parecem ser ingredientes indispensáveis aos interesses
corporativos.
Por fim, os casos discutidos relacionados aos outros empreendimentos criados
pelas influenciadoras mostram como os limites colocados pelo mercado e pelas marcas
impulsionam as influenciadoras a ampliarem sua atuação por meio da criação de produtos
assinados, de marcas próprias e de estabelecimentos comerciais próprios. Elas procuram,
assim, construir um protagonismo no mercado para além do trabalho que já exercem
como influenciadoras. Isto, de certo modo, amplifica a ambiguidade dos papeis que
exercem e borra ainda mais as fronteiras, colocando-as como influenciadoras-
consumidoras-empresárias.
194

CAPÍTULO 5 – TÉCNICAS, TEXTURAS E CLASSIFICAÇÕES

5.1 – As práticas de alisamento

Compreender o movimento de valorização dos cabelos crespos e cacheados em


todas as suas nuances e ambiguidades requer que se olhe para outras práticas estéticas
socialmente relevantes. É preciso falar sobre os diversos métodos de alisamento, técnicas
e cuidados capilares desenvolvidos antes das iniciativas que são o objeto de estudo deste
trabalho. É fundamental examinar o contexto no qual os discursos sobre o cabelo natural
emergem, entendendo de que maneira – ou até que ponto - eles se diferenciam frente ao
conjunto de práticas em relação às quais pretendem se contrapor.
Algumas das práticas explicadas neste capítulo não foram completamente
abandonadas e ainda são seguidas por muitas mulheres brasileiras que possuem cabelos
crespos e cacheados. Os salões de cabeleireiro, perfumarias e farmácias não aboliram os
produtos, instrumentos e serviços destinados ao alisamento dos cabelos, e as marcas
brasileiras de cosméticos continuam a lançar novos produtos para esta finalidade. Esta
fatia do mercado, embora abalada pelo recente interesse nos cabelos crespos e cacheados
naturais, continua existindo e lançando novos produtos, inclusive exportando-os para
outros países.

Embora os termos químicas e alisamentos muitas vezes apareçam como sinônimos


no campo, há diferenças que necessitam ser pontuadas. Alisamentos são procedimentos
que esticam os fios, de maneira completa ou parcial, e podem ser realizados por meio de
produtos que modificam permanentemente a estrutura da fibra capilar – caso dos
alisamentos químicos, também chamados de químicas – ou através do uso de
instrumentos que remodelam temporariamente a fibra capilar através do calor, como os
secadores e as pranchas – caso dos alisamentos mecânicos ou físicos. Assim, embora as
químicas sejam categorizadas como um tipo de alisamento, nem todo tipo de alisamento
é uma química.
A escolha por um tipo de alisamento não significa a exclusão do outro tipo. É
comum que mulheres que façam uso dos alisamentos químicos recorram ao alisamento
mecânico com secador e prancha para realçar o efeito liso em determinadas ocasiões, e
que mulheres adeptas do alisamento mecânico se cansem de ter que repetir o
195

procedimento quase que diariamente e recorram às químicas para obterem um resultado


mais duradouro.
Este é um bom exemplo sobre como o uso de algumas das categorias do universo
analisado pressupõe um mínimo de conhecimento relativo às técnicas, práticas e saberes
relacionados aos cabelos crespos e cacheados. Cabeleireiros, consumidoras,
influenciadoras digitais e marcas, a um só tempo, coproduzem e compartilham este
vocabulário, difundindo-o e atualizando-o.

5.1.1 – Os alisamentos químicos

O termo químicas se refere tanto ao procedimento em si quanto aos produtos


utilizados para realizá-lo. Os produtos que realizam o alisamento químico modificam de
maneira permanente o fio de cabelo, alterando sua estrutura original, pois rompem e
rearranjam em um novo formato as pontes de dissulfeto da fibra capilar, conhecidas como
ligações fortes. No Brasil, as químicas comumente mais utilizadas são os alisamentos153,
os relaxamentos, os permanentes afro e as escovas progressivas.
Os alisamentos e relaxamentos em geral são formulados a base de hidróxidos –
de sódio, de lítio e de cálcio154– ou à base de tioglicolato de amônia. Embora os
alisamentos e relaxamentos sejam métodos muito parecidos, são comercializados a partir
de diferentes apelos às consumidoras. Enquanto o primeiro é vendido como um método
que estica por completo os fios, submetendo-os a um processamento mais intenso, o
segundo é vendido como um método mais suave, que supostamente age apenas
diminuindo o volume e abrindo os cachos, sem esticá-los completamente.
Na prática, alisar ou relaxar os fios depende menos da promessa alegada nos
rótulos e mais da concentração de ativos alisantes na fórmula, do período de tempo em
que o produto é deixado nos fios e de como a aplicação é realizada. A consumidora ou o
cabeleireiro devem avaliar as características dos fios e o resultado desejado para escolher
o produto e decidir como será feito o procedimento. São cabelos crespos, cacheados ou
ondulados que receberão a química? Os fios têm espessura fina, média ou grossa? O

153
Aqui, o termo alisamento aparece em itálico para marcar que se trata de uma das técnicas que faz parte
dos alisamentos químicos. Em outros momentos, o termo alisamento aparece em sua grafia regular porque
estou me referindo ao alisamento de modo geral, enquanto um conjunto de procedimentos que variam do
químico ao mecânico ou físico.
154
O hidróxido de cálcio também é chamado de guanidina no mercado de cosméticos para cabelos.
196

resultado desejado é o liso total ou a abertura dos cachos e a redução do volume? Estes
fatores devem ser considerados de modo a realizar um procedimento seguro e que
provoque o mínimo possível de danos aos fios.
O permanente afro é um produto que merece uma menção à parte. Trata-se de um
produto à base de tioglicolato de amônia pensado não para alisar ou relaxar, e sim para
criar cachos nos cabelos crespos. É o único produto cujo nome traz um marcador
explicitamente racial. Se os alisamentos e relaxamentos são procedimentos realizados por
mulheres negras e brancas, indistintamente, o permanente afro parece ser sempre um
procedimento mencionado ou praticado majoritariamente por mulheres negras com
cabelos crespos que desejam ter cachos definidos.
Os fabricantes e os cabeleireiros comumente recomendam que as clientes adeptas
dos alisamentos, relaxamentos e permanentes afro optem sempre por utilizar produtos
que contenham os mesmos ativos alisantes. Isto porque a mistura de diferentes ativos
pode acabar provocando a quebra dos fios, popularmente conhecida como corte químico.
Cabelos que passaram por um corte químico em geral possuem um aspecto ressecado e
fragilizado, pontas afinadas e regiões da cabeça onde os fios estão mais curtos ou ralos.
As marcas que fabricam estes produtos orientam os cabeleireiros e as
consumidoras a refazerem os procedimentos aplicando o produto apenas nas raízes
crescidas, e não no comprimento do cabelo, que já foi quimicamente processado
anteriormente. A reaplicação dos alisamentos, relaxamentos ou permanentes afro no
comprimento do cabelo muitas vezes resulta em um corte químico, pois a fibra capilar
nem sempre suporta um novo processamento.
Os retoques podem ser particularmente trabalhosos no caso dos cabelos crespos,
que requerem uma manutenção mais frequente para que não haja diferença de textura
entre as raízes e o comprimento. A alta frequência de retoques, contudo, aumenta o risco
de danos ao couro cabeludo e aos fios. Ainda que o uso de ativos como os hidróxidos e o
tioglicolato, em concentrações limitadas, seja permitido e regulamentado pela ANVISA,
tais substâncias, mesmo quando manipuladas cuidadosamente, ainda assim podem irritar
e ferir o couro cabeludo e provocar a quebra dos fios.
As outras químicas disponíveis no mercado brasileiro são as escovas progressivas.
Estes produtos são fabricados a partir de uma variedade de ácidos, como o ascórbico, o
glioxílico, o tanino, o lático e o cítrico, em geral associados a proteínas que promovem
um efeito reconstrutor nos fios, como a queratina e a carbocisteína. São bastante populares
no país e também são conhecidas no exterior.
197

As escovas progressivas, criadas no Brasil no início dos anos 2000, foram


inicialmente anunciadas por cabeleireiros e marcas de cosméticos como procedimentos
inovadores, alternativos aos alisamentos e relaxamentos tradicionais. A promessa destes
produtos é alisar os fios progressivamente, conforme o número de aplicações, mantendo
os cabelos saudáveis e hidratados. A depender do tipo de cabelo, são recomendadas
algumas aplicações para que os fios atinjam o resultado de liso completo, pois nem todos
os cabelos tornam-se completamente lisos com uma única aplicação. Retoques periódicos
nas raízes e também em toda a extensão dos fios são aconselhados.
As primeiras progressivas, desenvolvidas por marcas de cosméticos ou
produzidas por cabeleireiros de modo amador no início dos anos 2000, continham um
princípio ativo alisante diferente dos mencionados acima: o formol, substância
considerada potencialmente cancerígena e danosa ao corpo humano. O contato do formol
com a pele pode provocar coceira, irritação, vermelhidão, queimaduras e descamação no
couro cabeludo, e a fumaça ou vapor produzidos pela substância pode ocasionar enjoo,
vômito, dor de cabeça, ardência nos olhos, tosse e falta de ar, afetando as mucosas e outras
partes do sistema respiratório.
Apesar dos riscos associados à substância, as escovas progressivas à base de
formol se popularizaram com muita rapidez neste período e as propagandas destes
produtos mostravam mulheres brancas e negras exibindo cabelos longos, extremamente
lisos e brilhantes. Junto ao sucesso da técnica, entretanto, surgiram casos, tornados
públicos por meio de reportagens na televisão, na mídia impressa e na Internet, de clientes
que sofreram graves danos colaterais causados pelo formol presente nas progressivas.
Estas reportagens destacavam que, além dos sintomas de intoxicação pelo formol e
reações no couro cabeludo, estas mulheres haviam sofrido a perda parcial ou total dos
fios de cabelo, e algumas necessitaram de hospitalização para tratar da intoxicação
causada pelo formol. Além das clientes afetadas, havia também cabeleireiros e manicures
que relatavam efeitos colaterais causados pela exposição indireta à escova progressiva:
estes profissionais, no ambiente dos salões de beleza, estavam em contato permanente
com o vapor e os odores emitidos pelo formol.
Como resposta a estes casos, ainda na década de 2000 a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), restringiu a porcentagem de formol permitida nos
produtos de higiene pessoal e cosméticos a 0,2% e proibiu a comercialização da
substância pura em estabelecimentos como supermercados, farmácias e lojas de
conveniência. Isto porque cabeleireiros e consumidoras, à época, compravam a substância
198

pura para fazer misturas alisantes caseiras sem qualquer orientação profissional,
conhecimento sobre formulações de cosméticos ou procedimentos de segurança.
Cabeleireiros que realizavam estas misturas irregulares, inclusive, nem sempre
comunicavam o fato às clientes: eram comuns relatos de mulheres que, nos salões, não
tinham acesso às embalagens dos produtos e apenas viam o profissional sair de uma sala
localizada nos fundos com uma mistura de forte odor já pronta em mãos, preparada longe
de seu campo de visão.
Dado que a porcentagem de 0,2% de formol em produtos para cabelos serve
apenas para conservar as fórmulas e não possui poder alisante, marcas de cosméticos para
cabelos criaram algumas estratégias para continuar vendendo as escovas progressivas.
Surgiram, no mercado, produtos com nomes diferentes, como selagem e botox capilar,
que diziam ter como base outras substâncias que não o formol, como, por exemplo, os
ácidos mencionados mais acima. Surgiram também produtos que prometiam o efeito liso
ou a diminuição do volume sem conter nenhum tipo de química, apenas “ingredientes
naturais” – estes produtos muitas vezes eram nomeados como escova orgânica ou
inteligente.
Cabeleireiros, farmacêuticos e químicos, à época, apontaram problemas sérios em
relação a estes produtos. Em primeiro lugar, denunciaram que quaisquer produtos que
prometiam efeito alisante e redução de volume continham sim algum tipo de química,
pois seria impossível atingir tais efeitos apenas com o uso de “ingredientes naturais”. Em
segundo lugar, explicaram que alguns produtos, mesmo com as fórmulas aparentemente
modificadas, sem a presença explícita do formol na lista de ingredientes, ainda assim
apresentavam riscos à saúde, pois as substâncias presentes nas fórmulas, quando
aquecidas pelo secador e pela prancha, liberavam formol sob a forma de fumaça ou vapor
– o formol estaria “escondido” na fórmula, “camuflado” através de outro componente.
Ainda que as escovas progressivas e suas variações tenham gerado muitas dúvidas
e desconfianças nas décadas de 2000 e 2010, elas ainda continuam populares e é possível
encontrar estes produtos em lojas de cosméticos e salões de beleza. Elas permanecem
sendo utilizadas por mulheres com cabelos crespos e cacheados e também por mulheres
com cabelos lisos que desejam fios mais alinhados e com pouco volume. Marcas
brasileiras exportam escovas progressivas, e, no exterior, o método é conhecido Brazilian
Blowout (“escova brasileira”) ou Brazilian Hair Straightening (“alisamento brasileiro”).
Apesar da interferência da ANVISA e dos alertas de especialistas, os casos de
intoxicação por formol e de danos ao couro cabeludo e aos cabelos causados por escovas
199

progressivas também seguem acontecendo. Uma rápida busca na Internet revela que,
desde a década de 2010 até o presente momento, ainda há mulheres e meninas sofrendo
com descamação severa do couro cabeludo, perda dos cabelos e intoxicação causadas por
este tipo de procedimento capilar.
Os danos muitas vezes são causados por produtos irregulares ou pela negligência
por parte de quem realizou o procedimento. Há inclusive casos de mortes de mulheres
associadas ao uso de escovas progressivas. É possível encontrar reportagens sobre as
investigações policiais realizadas, que procuravam saber se teria havido uso indevido de
formol e se o atendimento hospitalar às vítimas havia sido adequado.
Chama atenção o fato de a maioria das vítimas dos procedimentos mal sucedidos
ser de mulheres negras ou não-brancas. Este dado não é acidental e mostra que estas
mulheres, que constituem a fatia da população que mais consome produtos alisantes, têm
seus corpos vulnerabilizados por práticas estéticas que podem apresentar riscos à saúde e
à vida. O ideal do liso compulsório (CRUZ, 2017), mais que impor um padrão estético às
mulheres, atinge e vulnerabiliza corpos específicos, marcados racialmente.
Dito isto, não estou afirmando que os corpos de mulheres brancas não possam ser
afetados pelas químicas, mas estou chamando a atenção para o fato de que são as mulheres
negras e não-brancas que têm seus cabelos e corpos submetidos a produtos não
regularizados, a misturas duvidosas, a concentrações acima das permitidas e uma prática
negligente por parte de alguns profissionais, que ignoram o tempo de ação correto dos
produtos ou as reações adversas que as clientes estão sentindo.
Considero fundamental, portanto, discutir as práticas alisantes não apenas de um
ponto de vista simbólico, mas de um ponto de vista material. Corpos são modificados e
afetados desigualmente por estas práticas, e por isso é importante falar sobre substâncias
químicas, protocolos de uso e potenciais efeitos colaterais tendo em vista como há
consequências diretas, visíveis e assimétricas relacionadas a estas questões.
Além dos casos que envolvem graves danos à saúde, durante a pesquisa também
tomei conhecimento de casos em que os profissionais alisaram os cabelos das clientes
sem o consentimento destas, seja porque prometeram realizar apenas uma hidratação ou
uma escova comum, quando na realidade aplicaram uma progressiva, ou porque
utilizaram instrumentos com resquícios de químicas155. Ainda que estes casos não tenham

155
Um caso muito comum é quando a cliente pede uma escova e o profissional, aparentemente, utiliza
instrumentos “contaminados” por resquícios de progressiva, que acabam promovendo, mesmo sem
intenção, um efeito alisante permanente no cabelo da cliente. Outros casos, no entanto, mostram
200

resultado em prejuízos à saúde, eles também precisam ser mencionados pois demonstram
como as práticas de alisamento são normalizadas e generalizadas, ao ponto de afetarem
corpos de maneira não consentida.

5.1.2 – Os alisamentos físicos ou mecânicos

Os alisamentos físicos ou mecânicos são procedimentos que alisam


temporariamente os fios, quebrando as pontes de hidrogênio da fibra capilar através da
ação de uma fonte de calor, como os secadores e chapinhas. Estas pontes de hidrogênio,
chamadas de ligações fracas, são novamente reestabelecidas quando os fios entram em
contato com a água, retornando ao formato original.
No caso do uso do secador, os fios de cabelo, preferencialmente úmidos ou
molhados, devem ser repetidamente enrolados em uma escova cilíndrica e esticados,
recebendo o ar quente do aparelho até que estejam completamente secos e esticados ao
final deste processo, denominado escova. A prancha, popularmente conhecida como
chapinha, é um instrumento elétrico que pode ser utilizado sozinho ou como coadjuvante
ao final do processo da escova, reforçando o efeito liso.
Os secadores e pranchas disponíveis no mercado brasileiro são comercializados a
preços que variam em função de fatores como marca, material utilizado, potência e
temperatura máxima alcançada. Os modelos fabricados a partir dos anos 2000 utilizam
materiais como cerâmica, porcelana e turmalina e prometem danificar menos os cabelos,
promover mais brilho e menos frizz. Os secadores recomendados para uso profissional
costumam possuir a partir de 1.800 watts de potência e as pranchas profissionais,
especialmente as utilizadas nas escovas progressivas, atingem ao menos 200°C.
Diferentemente dos alisamentos químicos, a escova e a prancha não mudam
permanentemente a estrutura dos cabelos nem criam uma película em volta dos fios que
conserva a forma lisa. Os alisamentos mecânicos são procedimentos reversíveis, pois o
efeito liso desaparece quando os cabelos são lavados, molhados ou submetidos ao clima
úmido: a água faz com que as ligações de hidrogênio dos fios se reestabeleçam.

intencionalidade, pois o profissional promete um alisamento mecânico e executa uma química, e, quando
confrontado, alega que a química é utilizada apenas para “facilitar” a escova.
201

Este ao menos era o consenso predominante até então entre cabeleireiros. Nos
últimos anos, entre alguns dos profissionais especialistas em cabelos crespos e cacheados,
tem ocorrido um crescente debate a respeito dos efeitos a longo prazo provocados pela
repetição dos alisamentos mecânicos. Estes cabeleireiros alegam que a repetição
constante dos procedimentos, por meses ou anos, pode ser sim capaz de esticar
permanentemente parte das mechas de cabelo das usuárias destes métodos, o que faz com
que elas também tenham que passar por uma espécie de transição capilar quando
abandonam tais práticas. Este alisamento permanente seria um tipo de dano causado pelo
uso constante de instrumentos que atingem temperaturas muito altas, especialmente as
chapinhas que atingem 200ºC ou mais: o calor excessivo seria capaz de afetar não apenas
as ligações fracas, mas também as ligações fortes da fibra capilar.
O alisamento mecânico pode ser eficiente e prático para quem pontualmente busca
um visual liso, sem desejar um efeito prolongado, mas também pode se tornar cansativo
e trabalhoso para quem sempre deseja exibir cabelos lisos, pois requer que os
procedimentos sejam repetidos com muita frequência e que a usuária evite a umidade e
atividades que geram suor ou que molham os cabelos. Muitas mulheres crespas e
cacheadas relatam que, ao longo de suas vidas, já gastaram inúmeras horas realizando
escovas e pranchando os cabelos, em casa ou no salão, e também evitaram a prática de
exercícios físicos, idas à praia ou à piscina porque queriam preservar o efeito liso
temporário nos cabelos. Os procedimentos de alisamento mecânico, portanto, são capazes
de modificar o cotidiano e os momentos de lazer das mulheres que os utilizam, gerando
interferências e restrições em algumas atividades.
Em adição, as técnicas de alisamento mecânico também têm o potencial de
danificar os cabelos e o couro cabeludo. A tração realizada pelo procedimento da escova,
o calor do secador e as altas temperaturas das chapinhas podem desidratar e fragilizar os
fios, levando-os à quebra. Os secadores e chapinhas, se manipulados com pouco cuidado,
podem atingir o couro cabeludo, a testa e as orelhas, queimando a pele destas regiões.
Os alisamentos químicos e mecânicos, em suas variadas versões, são muito
presentes nos relatos das interlocutoras desta pesquisa, bem como nas trajetórias de
muitos cabeleireiros, que em algum momento de suas vidas trabalharam realizando
alisamentos, ainda que hoje não o façam mais ou realizem tais procedimentos com menor
frequência. No caso dos cabeleireiros, os alisamentos químicos e mecânicos fazem parte
dos currículos básicos das escolas e cursos de beleza profissionalizantes.
202

Muitas mulheres negras e brancas, com cabelos que variam do ondulado ao


crespo, passaram e passam por diversos procedimentos de alisamento ao longo da vida,
aderindo a diversos métodos de alisamento capilar, tanto físicos quanto químicos.
Especialmente as mulheres negras relatam ter iniciado as jornadas de transformação
capilar ainda na infância, com os procedimentos de alisamento sendo executados pelas
mães, familiares e vizinhas, que justificavam o uso destes procedimentos argumentando
que eles facilitavam a lida com os cabelos das meninas, tornando mais práticos os
cuidados e o ato de desembaraçar os fios.
Ainda que as práticas de alisamento no Brasil sejam plurais e muito difundidas,
no sentido de atingirem pessoas de distintos pertencimentos raciais, não se pode perder
de vista a dimensão racista que estrutura os ideais de beleza e a indústria cosmética.
Mesmo que algumas semelhanças possam ser encontradas entre os relatos de mulheres
negras e brancas, não se pode desconsiderar o peso simbólico e material fundamental das
práticas de alisamento na vida de muitas mulheres negras brasileiras, peso este que não é
igualmente sentido pelas mulheres brancas que também se engajam nestas práticas.

5.2 – As críticas aos alisamentos e a transição capilar

Interromper o uso de químicas e iniciar o processo de transição capilar é uma


decisão que esbarra em debates complexos que vão muito além de questões técnicas a
respeito dos processos de alisamento. Modificar a aparência dos cabelos envolve mais
que uma escolha de produtos e serviços disponíveis no mercado e suscita reflexões sobre
os entrelaçamentos entre gênero, raça, sexualidade e saúde. As motivações para
abandonar as intervenções alisantes são múltiplas e tocam em diferentes dimensões da
subjetividade e da trajetória de vida das mulheres que decidem se engajar neste processo.
Discutirei aqui algumas das razões mobilizadas pelas interlocutoras de pesquisa,
salientando em que contextos elas emergem.

5.2.1 – As questões de saúde e as críticas às químicas

Como discutido, as químicas são formuladas a partir de substâncias que podem


provocar efeitos adversos no couro cabelo e na fibra capilar, como a quebra dos fios, a
203

irritação, vermelhidão, coceira e descamação do couro cabeludo. Especialmente no que


se refere ao aspecto dos fios de cabelo, os problemas podem não se limitar apenas ao
momento de aplicação da química, gerando transtornos posteriores. Muitas interlocutoras
que alisavam seus cabelos no passado contam que, mesmo cuidando dos cabelos com
condicionadores e máscaras caras ou realizando tratamentos no salão nos meses
subsequentes à aplicação da química, ainda assim observavam que seus cabelos se
tornavam irremediavelmente mais ressecados, ralos e quebradiços. Os danos causados
pelos alisamentos à fibra capilar podem acontecer em períodos de médio e longo prazo,
mesmo que a usuária ou o cabeleireiro tomem as todas as medidas de cuidado necessárias
para preservar a saúde e a beleza dos cabelos.
Há quem também alerte que as consumidoras – em especial as mulheres negras,
que são as que mais consomem alisantes – não têm informações suficientes a respeito dos
efeitos colaterais que estes produtos podem causar para além dos cabelos e do couro
cabeludo. Alega-se que os alisantes apresentam em sua composição substâncias químicas
tóxicas e irritantes, pouco seguras para o uso no corpo humano. O problema não seria
apenas o formol, mas sim todos os ativos alisantes presentes em alisamentos,
relaxamentos, permanentes afro e progressivas comercializados: haveria evidências
científicas associando os ativos alisantes a um risco aumentado de certos tipos de câncer
e de alterações hormonais.
Critica-se a ética das marcas de cosméticos para cabelo, pois elas estariam
colocando substâncias potencialmente perigosas em seus produtos e não informando as
consumidoras sobre os riscos à saúde que estes produtos, em tese, ocasionam. A presença
destas substâncias nos alisantes também seria prejudicial aos cabeleireiros, uma vez que
estes profissionais estão, em seu cotidiano, em contato permanente com estes agentes,
seja através da manipulação dos alisantes ou da inalação de vapores, fumaças e odores
liberados por estes produtos.
O alerta tem se difundido cada vez mais nas redes sociais, inclusive se espraiando
para além dos grupos e perfis que tratam do tema cabelos, chegando às páginas de saúde
e Medicina com conteúdo educativo. Não se trata de apontar somente os danos que os
alisamentos podem causar aos cabelos e ao couro cabeludo, mas sim de alertar para algo
maior, para efeitos colaterais sistêmicos no corpo humano. As imagens abaixo (Figuras
204

39 a 43), que são printscreens de uma postagem feita pelo médico Fleury Johnson156 em
seu perfil no Instagram, em 30 de agosto de 2021, são um bom exemplo a respeito desta
discussão:

Figura 39: Parte 1 da postagem de Fleury Johnson


Fonte: Screenshot de publicação do perfil do Instagram @drfleuryjohson. Último acesso em 05/01/22.

156
Fleury Johnson é natural do Togo e graduou-se em Medicina pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) em 2018. Ele atua na área da Clínica Geral e se apresenta como educador e pesquisador em
saúde da população negra.
205

Figura 40: Parte 2 da postagem de Fleury Johnson


Fonte: Screenshot de publicação do perfil do Instagram @drfleuryjohson. Último acesso em 05/01/22.

Figura 41: Parte 3 da postagem de Fleury Johnson


Fonte: Screenshot de publicação do perfil do Instagram @drfleuryjohson. Último acesso em 05/01/22.
206

Figura 42: Parte 4 da postagem de Fleury Johnson


Fonte: Screenshot de publicação do perfil do Instagram @drfleuryjohson. Último acesso em 05/01/22.

Figura 43: Parte 5 da postagem de Fleury Johnson


Fonte: Screenshot de publicação do perfil do Instagram @drfleuryjohson. Último acesso em 05/01/22.

Na postagem, o médico, afirmando se apoiar em dados científicos, mostra uma


associação entre o uso de alisantes e uma maior incidência de câncer de mama, miomas
e puberdade precoce entre mulheres e meninas negras. O conteúdo da postagem não é
apenas técnico, pois não se limita a explicar o que são os problemas de saúde
207

mencionados. Ele traz um importante aspecto politizante e antirracista ao dizer “(...) em


um sistema racista, pesquise sobre produtos utilizados em nossa saúde. Compartilhe com
outras mulheres negras”. Coloco estes grifos para ressaltar que a linguagem utilizada
indica que o médico, um jovem homem negro que se apresenta como educador e
pesquisador em saúde da população negra, procura se aproximar das mulheres negras que
seguem seu perfil, pedindo para que elas se atentem ao que consomem e que divulguem
as informações sobre os riscos associados aos alisantes.
Novamente, o que está em jogo é a vulnerabilização dos corpos das mulheres
negras, que são os alvos preferenciais de práticas estéticas que podem causar danos à
saúde. Estas práticas estéticas possuem o potencial de vulnerabilizar ainda mais os corpos
já vulnerabilizados pelo racismo e o sexismo que estruturam os sistemas de saúde, que
prestam uma menor atenção sobre a saúde reprodutiva e sexual das mulheres negras.
Ainda que os produtos alisantes também sejam utilizados por mulheres com
outros pertencimentos raciais, os riscos e efeitos adversos recaem com muito mais força
sobre as mulheres negras, que são os alvos preferenciais destes procedimentos. Como
dito, não é incomum que mulheres negras iniciem o uso de químicas ainda na infância e
que repitam estes processos com muita frequência, com um espaço de tempo pequeno
entre os retoques, para que as raízes do cabelo permaneçam lisas. Assim, pode-se afirmar
que o processo de vulnerabilização se inicia cedo e se prolonga por muito tempo: este
fenômeno deveria ser observado mais de perto pelas pesquisas científicas.

5.2.2 – Os custos

Além das questões relativas à saúde, outro motivo para se abandonar as práticas
de alisamento diz respeito aos custos que estas representam. A aplicação das químicas em
geral demanda investimentos consideráveis de tempo e dinheiro de suas adeptas. A correta
execução de qualquer procedimento alisante, em casa ou no salão de cabeleireiro, requer
que um detalhado passo a passo seja seguido. Este passo a passo demanda habilidades
para manipular produtos químicos, um rígido controle de tempo e pode ocupar algumas
horas do dia da consumidora e do cabeleireiro.
A manutenção das químicas pode variar, mas em geral recomenda-se que o
procedimento seja realizado na raiz crescida algumas vezes por ano, para que o visual do
cabelo fique uniforme, sem diferença de textura entre as raízes e o comprimento.
208

Aplicações e manutenções podem ser feitas a preços variados, a depender se são feitas
em casa, pela própria consumidora, ou no salão, por um profissional, sendo influenciadas
também pelo custo do produto utilizado.
O uso frequente das químicas muitas vezes também demanda uma série de
tratamentos de hidratação e reconstrução157 para recuperar a fibra capilar, feitos a partir
de produtos que possuem um custo mais elevado. Para algumas pessoas, torna-se
cansativo e custoso manter esta rotina de manutenções e tratamentos, pois isto exige
disciplina, paciência, disponibilidade de tempo, aprendizado de habilidades específicas e
muito dinheiro investido.
É relativamente comum que algumas mulheres adeptas ou ex-adeptas de químicas
afirmem se sentir ou ter sentido escravas ou dependentes dos alisamentos em algum
momento de suas vidas. A dependência ou escravidão em relação à química diz respeito,
em um primeiro olhar, ao fato de a pessoa ter que organizar parte de seu cotidiano em
torno da agenda de manutenções e cuidados com os cabelos. No entanto, há algo mais
profundo em relação a estes sentimentos: muitas mulheres dizem ser ou ter sido escravas
da química no sentido de perceberem ou terem percebido que sua autoestima, sua
confiança e sua beleza parecem ou pareciam estar atreladas ao uso dos alisamentos e a
um cabelo sempre perfeitamente retocado.
Estes sentimentos, é preciso frisar, não são meramente sensações ou problemas
individuais, e sim construções subjetivas e coletivas diretamente relacionadas ao padrão
do liso compulsório (CRUZ, 2017). Um cabelo alisado cujas raízes naturais estejam muito
visíveis, criando um contraste em relação ao comprimento dos fios, é socialmente
interpretado como desleixo e como sinal de que a pessoa não cuida de si mesma.
A metáfora da dependência e do vício em relação aos alisamentos por vezes
assume um tom pesado, como no documentário sobre cabelos crespos produzido pelo ator
estadunidense Chris Rock: em Good Hair, o relaxamento é chamado de creamy crack,
que significa, em português, “crack cremoso”. Algumas das mulheres negras
entrevistadas pelo ator não só chamam os produtos alisantes de “creamy crack” como
também caracterizam a si mesmas enquanto “viciadas” nestes produtos.

157
O tratamento de hidratação objetiva repor a água perdida pelos fios de cabelos, enquanto que a
reconstrução pretende repor a proteína perdida pelos fios, tornando-os mais resistentes.
209

5.2.3 – Empoderamento, feminismo e ancestralidade

Além das questões relativas à saúde e ao dispêndio de tempo e dinheiro, uma


motivação para abandonar os alisamentos que também aparece no campo pesquisado é a
proximidade com noções de empoderamento e feminismo. Estes termos, especialmente
no contexto das mídias digitais, muitas vezes aparecem como sinônimos ou conceitos
intercambiáveis, interpretados como uma tomada de atitude das mulheres na direção de
controlar seus próprios corpos quando o assunto são as práticas embelezadoras e de
autocuidado corporal e o consumo de produtos cosméticos.
Deixar de alisar o cabelo, na visão de muitas interlocutoras, significa questionar
um padrão de beleza racista e sexista e (re)aprender a se olhar no espelho e a cuidar da
aparência de outras formas, respeitando e valorizando a textura natural de seus cabelos.
Trata-se de confrontar a ideia de que apenas o cabelo liso e “comportado” (com volume
e frizz controlados) é bonito, elegante e profissional, trazendo referenciais mais amplos
de beleza, elegância e profissionalismo para as mulheres.
É preciso pontuar que estas reflexões em torno dos cabelos se inserem em um
contexto maior de questionamento e ressignificação de práticas estéticas e corporais.
Práticas como a depilação, a maquiagem, o uso de sutiãs, as cirurgias plásticas e as dietas
emagrecedoras restritivas também entram em cena neste debate, impulsionado
especialmente por mulheres jovens nas mídias digitais. Empoderamento e feminismo são
categorias acionadas para falar criticamente sobre a compulsoriedade de práticas estéticas
e corporais generificadas: procura-se estimular as mulheres realizarem escolhas, a
expressarem seus desejos e a questionarem a si mesmas porque reproduzem certas
práticas.
Outra razão para abandonar os alisamentos que observei entre as interlocutoras da
pesquisa se refere particularmente às mulheres negras, especialmente aquelas que de
algum modo se identificam com as pautas antirracistas e dos feminismos negros, que
compreendem o abandono do alisamento como uma “volta às raízes”. Esta ideia aparece
com um duplo sentido: trata-se de uma “volta às raízes” porque a raiz do cabelo natural
começa a aparecer quando se interrompe os processos de alisamento, criando uma
diferença de textura com relação à parte alisada, e porque esta raiz crescendo remete a
uma conexão com a origem e a cultura de seus antepassados africanos. Aqui, o cabelo
crespo, utilizado sem intervenções alisantes, é um elemento que corporifica a valorização
e o orgulho em torno da ancestralidade africana.
210

Entretanto, não necessariamente a questão das raízes e da ancestralidade é sempre


mobilizada pelas interlocutoras que se identificam como negras ou pretas. O abandono
das práticas de alisamento pode estar simplesmente relacionado a um processo de
afirmação de uma identidade negra marcada pelo posicionamento estético-político.
Reconhecer-se como negra, nesse caso, incluiria o abandono do alisamento e a
valorização de uma estética dos crespos e cacheados. Da mesma forma, o empoderamento
ao qual referi mais acima pode articular raça e gênero no modo como os cabelos são
acionados por mulheres negras como expressão de processos subjetivos.

5.2.4 – A transição capilar: técnicas, expectativas e pressões

Abandonar as intervenções alisantes significa, na prática, aderir ao processo de


transição capilar. A transição capilar é um dos assuntos mais discutidos nos grupos e
perfis sobre cabelos crespos e cacheados nas mídias digitais. Ela consiste no processo de
interromper o uso de métodos alisantes e deixar o cabelo crescer em sua forma original
até que a parte alisada seja completamente eliminada através do corte158.
O processo de transição tem duração variável, a depender da frequência com que
a pessoa se dispõe a cortar os fios alisados. De um lado, há quem prefira ir cortando as
pontas alisadas aos poucos, prolongando o processo por meses ou mesmo anos e
convivendo com um cabelo com duas texturas diferentes. De outro, há quem opte por
logo realizar o big chop (o “grande corte”), que consiste em um corte ou uma raspagem
que elimina toda a parte alisada de uma vez, abreviando o processo. Seguem imagens
(Figuras 44 e 45) que exemplificam o que significa um cabelo com duas texturas:

158
Como cabeleireiros especializados e influenciadoras crespas e cacheadas ressaltam, a única maneira de
se livrar da parte alisada é cortando, pois nenhum tratamento oferecido no mercado é capaz de recuperar
integralmente. Ainda que se possa encontrar profissionais que aleguem realizar procedimentos como
desprogressiva ou cacheamento, é preciso ressaltar que estes serviços também são químicas e que não são
capazes de reestabelecer a forma original do cabelo, podendo, inclusive enfraquecer os fios e levá-los à
quebra.
211

Figura 44: Cabelo cacheado em transição, apresentando duas texturas.


Fonte: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/beleza/noticia/2017/07/dicas-para-disfarcar-a-
diferenca-de-texturas-na-transicao-capilar-cjpk6v5xh001ic2cnv7ij3url.html>. Último acesso em
05/01/22.

Figura 45: Cabelo crespo em transição, apresentando duas texturas.


Fonte: <http://cachosefatos.com.br/2016/09/as-5-perguntas-mais-comuns-sobre-transicao-
capilar.html>. Último acesso em 05/01/22.

A transição capilar, especialmente quando se opta por cortar os cabelos


quimicamente processados aos poucos, costuma ser vivenciada como um processo que
exige muita paciência e resiliência. Tempo é um fator chave neste processo: não se volta
a ser crespa ou cacheada rapidamente (CRUZ, 2017). É preciso aprender a lidar com um
212

cabelo que possui duas texturas diferentes e que nem sempre responde adequadamente
aos tratamentos de recuperação capilar. Muitas vezes é preciso enfrentar críticas de
familiares, cônjuges e de outras pessoas do convívio social. É necessário também
negociar com o padrão dos cabelos longos, considerado sinônimo de feminilidade e
sensualidade.
A maioria das mulheres com cabelos crespos e cacheados que passam pelo
processo da transição relatam como torna-se complicado cuidar de um cabelo com duas
texturas, a alisada e a raiz natural que está crescendo. Frequentemente o cabelo alisado
encontra-se mais ressecado e quebradiço, enquanto o cabelo natural crescendo apresenta
um aspecto mais saudável e forte. A sensação é que as pontas alisadas fazem peso ao
restante do cabelo, impedindo que os fios que estão crescendo atinjam sua curvatura
original. Esta sensação apareceu com frequência nos relatos de minhas interlocutoras, e
foi experienciada por mim em meu próprio processo de transição: meu cabelo só
começou a apresentar os cachos mais fechados que eu possuía na infância após cortar
toda a parte alisada.
Larisse Gomes (2017), com base em uma leitura de Van Gennep (2013),
caracteriza a transição capilar como um período de margem, em que a pessoa que está
passando pelo processo encontra-se deslocada, pois não é mais lisa, mas também não é
completamente crespa ou cacheada. Trata-se de um período intermediário, de uma fase
que antecede a ruptura – o corte de toda a parte alisada – e que leva a agregação de um
novo estado – o cabelo natural, que não apresenta mais resquícios de intervenções
alisantes.
Para disfarçar ou ocultar a diferença de texturas – ou seja, para amenizar a
sensação de deslocamento – as mulheres que passam pela transição lançam mão de várias
técnicas e recursos. Para algumas mulheres este período de margem torna-se algo
incômodo, pois o manejo do cabelo em várias situações, especialmente aquelas que
constituem ocasiões especiais, como festas, viagens e entrevistas de emprego, torna-se
mais trabalhoso e a pessoa sente a necessidade de utilizar alguma técnica ou produto que
permita modificar a aparência do cabelo. Uma primeira opção, que é bastante simples, é
utilizar com maior frequência tiaras, faixas, lenços, bandanas, presilhas e outros
acessórios para o cabelo que desviam o foco da textura e chamam a atenção para o
penteado.
Uma segunda opção é realizar diferentes técnicas de texturização, de modo a criar
cachos temporários na parte alisada, que irão se desfazer na próxima lavagem. Trata-se
213

de mudar temporiamente a forma do cabelo sem utilizar substâncias químicas, modelando


o cabelo molhado ou úmido a partir da realização de tranças, twists (mechas de cabelo
torcidas), pequenos coques (bantu knots) ou com o uso de bigudinhos flexíveis (também
chamados de flex rods). Embora estas técnicas funcionem para muitas pessoas, elas são
trabalhosas e demandam tempo e paciência para serem executadas.
Uma terceira opção é tentar igualar as texturas através do uso de modeladores
térmicos, como a prancha ou o babyliss. O uso da prancha consiste em alisar
mecanicamente a raiz crespa ou cacheada, de modo a aproximá-la da textura alisada do
comprimento. O uso do babyliss consiste em modelar apenas a parte alisada, tentando
criar cachos que se aproximem do cabelo natural que está crescendo. Ambos os
procedimentos costumam ser desaconselhados por cabeleireiros, pois as altas
temperaturas destes aparelhos podem danificar e enfraquecer os fios. Além disso, o uso
da prancha aponta para um contrassenso: se a intenção é voltar à textura natural, por que
continuar a alisar a raiz?
Além das dificuldades que podem aparecer em relação à lida com o cabelo que
apresenta duas texturas diferentes, há também as questões relativas às interações e
expectativas sociais. O cabelo em transição muitas vezes é alvo de comentários
pejorativos por parte de familiares, cônjuges, amigos e de outras pessoas do convívio
social. As raízes crescidas, sem retoques, são vistas como indícios de desleixo e de falta
de cuidados consigo mesma. O cabelo impecavelmente retocado, com textura lisa e
uniforme das raízes as pontas, é valorizado e associado a qualidades estéticas e morais.
Há mulheres que inclusive relatam ouvir comentários como “você era mais bonita lisa”
e “seu cabelo está horrível”, “seu cabelo era bonito antes, porque você está fazendo
isso?”.
Estas experiências trazidas pelas mulheres que estão em transição ou que já
passaram por ela nos trazem dimensão da pressão que o ideal de cabelo liso exerce sobre
a construção subjetiva de muitas mulheres. Interromper as intervenções alisantes e aderir
ao processo de transição implica não apenas em (re)aprender a manipular e tratar o
próprio cabelo, mas principalmente, implica em ter que enfrentar julgamentos que afetam
a autoestima e o processo de construção uma nova imagem para si mesma e para os outros.
Outro aspecto fundamental do processo de transição capilar que também esbarra
nas interações e expectativas sociais é o comprimento do cabelo. Colocar um ponto final
no processo muitas vezes significa cortar uma grande porção dos cabelos. Muitas
mulheres, por não conseguirem se enxergar com cabelos curtos, adiam o processo do big
214

chop o máximo possível, tentando fazer com que a raiz natural cresça o suficiente para
ultrapassar a altura do queixo ou dos ombros. Isto pode assumir contornos mais
dramáticos para as mulheres que possuem cabelos crespos ou com cachos mais fechados,
pois o fator encolhimento159 faz com que o crescimento dos fios seja menos visível – os
métodos alisantes, inclusive, às vezes são utilizados como uma forma de “ganhar” mais
comprimento e exibir cabelos mais longos.
O temor em torno de cortar os cabelos não é fortuito e não é meramente uma
questão psicológica ou individual. O modelo de feminilidade hegemônico associa os
cabelos longos à feminilidade, à beleza, à sensualidade e à heterossexualidade. O cabelo
longo é visto como belo e desejável nas mais variadas esferas da vida cotidiana, como no
mercado de trabalho e no mercado matrimonial. Como Nilma Gomes destaca,

[...] ainda há no imaginário das mulheres brasileiras uma cultura do


cabelo longo, em que o ato de cortar o cabelo é motivo de pânico para
muitas mulheres negras e brancas. [...] importa ter o cabelo longo,
mesmo que seja danificado. Essa recusa não é só estética, mas tem
relação com o significado social e sexual do cabelo. Além de ser vista
socialmente como mais bonita, uma mulher de cabelos longos acredita
estar mais próxima de um clima de sensualidade. (2008, p.94)

Assim, o processo de transição capilar e o big chop podem se tornar mais


complicados para aquelas mulheres que não querem abrir mão dos cabelos longos, mesmo
que isso implique em continuar a tratar um cabelo danificado pelas intervenções alisantes
– um cabelo longo danificado, neste contexto, é visto como melhor que um cabelo curto
saudável.
Em relação à questão da heterossexualidade, trata-se de um temor que nem sempre
é verbalizado. Em minha pesquisa de campo esta questão raramente foi colocada de
maneira direta, ainda que permeasse, em alguns momentos e de maneira sub-reptícia, as
conversas, desabafos e relatos. Como pontua Denise Cruz (2017), com base em pesquisa
realizada no Brasil e em Moçambique, os cabelos curtos, vistos como “pouco femininos”,
são associados à estética das mulheres lésbicas. É como se os cabelos curtos
masculinizassem as mulheres, distanciando-as daquilo que é socialmente esperado:

159
O fator encolhimento diz respeito ao quanto o fio de cabelo se retrai quando ele é esticado e logo em
seguida solto, retornando ao seu caimento original. Esta característica varia conforme o grau de ondulação,
cacheamento ou encrespamento dos fios: quanto mais cacheado e crespo é um fio, maior é o fator
encolhimento.
215

conforme a autora ressalta, no imaginário social, mulheres devem “ter cabelos”, e, por
“cabelos”, leia-se fios em um comprimento longo. Aqui, gênero e sexualidade se cruzam
de maneira muito evidente, pois os cortes de cabelo são associados a determinadas
expressões de gênero e, por consequência, a determinadas práticas e desejos sexuais.
As charges da série “Desventuras de Uma Cacheada”, de autoria da artista e
influenciadora digital Ster Nascimento, ilustram muito bem algumas das dificuldades,
dilemas e possibilidades experimentados pelas mulheres que aderem à transição capilar.
Ster, uma jovem mulher negra com cabelos cacheados, procura retratar as experiências
em torno do cabelo crespo e cacheado em um tom bem-humorado e reflexivo.

Figura 46: Charge de Ster Nascimento sobre a transição capilar.


Fonte: Screenshot de publicação do perfil Desventuras de Uma Cacheada no Pinterest. Último
acesso em 05/01/22.

Na charge acima (Figura 46) a transição capilar é retratada como uma sequência
de etapas: paciência, liberdade, aceitação, cuidado e resistência. A personagem aparece
sorrindo em toda a sequência, ressaltando um sentimento positivo em relação ao processo.
A etapa da paciência é ilustrada por um personagem que apresenta um cabelo com duas
texturas diferentes, cacheada na raiz e lisa no comprimento. A etapa da liberdade é
representada pelo cabelo curto e sem volume, resultado de um big chop. As etapas da
216

aceitação e do cuidado mostram um cabelo curto que está em crescimento e que está
adquirindo mais volume. Por fim, a última passagem, a da resistência, é representada por
um cabelo mais longo, que já ultrapassou a altura do queixo e que ganhou bastante
volume, emoldurando a cabeça da personagem.
A maneira como o cabelo curto é colocado na charge nos apresenta uma outra
interpretação, diferente da usual. Se, de um lado, o cabelo curto pode despertar temores e
ser associado a um visual “pouco feminino” e indesejado, de outro, ele traz novas
possibilidades ao propiciar uma sensação de liberdade e de aceitação, pavimentando um
caminho para outras formas de cuidado e um novo olhar para si mesma. O cabelo curto
também pode ser potente, pois amplia referenciais de beleza e feminilidade e possibilita
outras experimentações e sensações, que de outro modo seriam difíceis de serem
vivenciadas com um cabelo longo.
217

Figura 47: Charge de Ster Nascimento sobre a transição capilar


Fonte: Screenshot de publicação do perfil Desventuras de Uma Cacheada no Pinterest. Último
acesso em 05/01/22.

Esta segunda charge de “Desventuras de Uma Cacheada” (Figura 47) traz, além
dos aspectos subjetivos, as dificuldades vivenciadas por quem está em transição e a
questão das interações e expectativas sociais em torno dos cabelos. A personagem aparece
chateada e triste em dois momentos: na lida com o cabelo que apresenta duas texturas e
na interação com uma pessoa que critica seu cabelo.
O cabelo curto, aqui, é apresentado de outra maneira, diferente da primeira charge
analisada. É um cabelo com o qual se deve se acostumar, pois é uma etapa necessária para
218

se atingir o objetivo final: “aprender a se amar do jeitinho que é!”. Embora o cabelo curto
não seja criticado ou caracterizado de maneira negativa, é retratado de maneira ambígua,
pois o verbo “acostumar” remete à ideia de convivermos com algo que não
necessariamente é o que desejamos ou que nos faz sentir confortáveis.
Nos grupos sobre transição capilar do Facebook e nos blogs e perfis do Instagram
sobre cabelos crespos e cacheados destacam-se as postagens que apresentam fotos de
“antes e depois” do processo de transição de mulheres crespas e cacheadas, como as
Figuras 48 e 49.

Figura 48: “Antes e depois” da transição da influenciadora Amanda Mendes


Fonte: < https://todecacho.com.br/transicao-capilar-momento-de-autoafirmacao-descobertas/>.
Último acesso em 05/01/22.
219

Figura 49: “Antes e depois” da transição da influenciadora Thammy Slot


Fonte: < https://todecacho.com.br/transicao-capilar-momento-de-autoafirmacao-descobertas/>.
Último acesso em 05/01/22.

Estas fotos costumam ser compartilhadas nas mídias digitais com o objetivo de
receber elogios e comentários e de incentivar outras mulheres a aderirem ao processo,
enfatizando como vale a pena passar pela transição para chegar ao cabelo natural.
Enquanto as imagens correspondentes ao “antes” trazem cabelos quimicamente
processados, que nem sempre possuem um aspecto saudável 160, as imagens
correspondentes ao “depois” mostram cabelos crespos e cacheados bem cuidados, com
volume acentuado e/ou com cachos definidos.
Para além da discussão sobre o processo em si da transição capilar, com o
compartilhamento de dicas de texturização e de produtos que podem ser utilizados para
recuperar os cabelos, importa dizer também o quanto resultado final do processo é
recompensador. Trata-se de uma maneira de mostrar, às outras mulheres que estão em
transição, que vale a pena superar as possíveis dificuldades do processo para se atingir o
objetivo final, que é retornar aos cabelos naturais.
Cabe questionar o quanto estas imagens, ainda que positivas, também podem
reforçar a busca por cabelos volumosos e com cachos perfeitos. Nem todas as mulheres
crespas e cacheadas que interrompem o uso de intervenções alisantes e passam pela
transição conseguem atingir estes resultados, e isto acontece por diversos motivos, que
podem inclusive englobar características genéticas. É preciso frisar que nem todos os

160
Aqui, refiro-me a cabelos quimicamente processados que possuem pontas esticadas e ralas, que
apresentam um aspecto quebradiço e ressecado.
220

cabelos crespos e cacheados conseguem ter volume e definição, ainda mais quando a
expectativa é que os cabelos apresentem estas duas características ao mesmo tempo.

5.3 – No poo e low poo: narrativas de origem, novas rotinas capilares e a circulação
de ideias, marcas e produtos

Os questionamentos em torno dos alisamentos e a adesão à transição capilar e ao


cabelo natural são acompanhados de um debate em torno dos produtos utilizados para
limpar, tratar e modelar os cabelos. Ganha força a ideia de que é preciso cuidar dos
cabelos de outra forma, atentando-se aos ingredientes dos produtos e à função de cada um
deles, ressaltando as especificidades das fórmulas dirigidas aos cabelos crespos e aos
cabelos cacheados.
Nas redes sociais e plataformas digitais como Facebook, Instagram e Youtube os
conteúdos compartilhados sobre cabelos crespos e cacheados frequentemente mencionam
produtos, rotinas e técnicas de cuidado específicas desenvolvidas para estes tipos de
cabelos. As rotinas que se popularizaram de maneira rápida nos últimos anos foram as
técnicas conhecidas como no poo e low poo.
No poo, abreviação de no shampoo (sem xampu), é uma rotina de cuidados em
que os xampus são abolidos e a limpeza do cabelo é realizada com condicionadores e
produtos em creme. Já a low poo, abreviação de low shampoo (pouco xampu), é uma
técnica que admite o uso de xampus formulados com detergentes considerados mais
suaves, que produzem pouca espuma. Ainda que as duas rotinas sejam ligeiramente
diferentes, compartilham entre si uma característica em comum: as adeptas de ambas
consideram os xampus tradicionais danosos aos cabelos crespos e cacheados por conta
dos sulfatos presentes em suas fórmulas161.

161
Os sulfatos são agentes de limpeza presentes na maioria dos xampus disponíveis no mercado. As crespas
e cacheadas adeptas das rotinas argumentam que a ação detergente dos sulfatos é muito forte, pois a
substância seria responsável pela retirada excessiva da oleosidade produzida pelo couro cabeludo e pelo
consequente ressecamento dos fios.
221

5.3.1 – Narrativas de origem: Curly Girl, o guia

A rotinas de cuidado que preconizam a abolição dos xampus ou o uso de xampus


com agentes de limpeza considerados mais suaves têm sua origem no livro Curly Girl:
the handbook, escrito pela cabeleireira inglesa Lorraine Massey e lançado nos Estados
Unidos em 2002. A segunda edição estadunidense, versão ampliada, foi lançada em 2010,
mas o livro chegou no Brasil apenas em 2015, quando foi traduzido e lançado pela Editora
Best Seller sob o nome O manual da garota cacheada: o método Curly Girl.
Lorraine, uma mulher branca com cabelos cacheados compridos e loiros, afirma
que decidiu tornar-se cabeleireira porque queria aprender a arrumar seus próprios cachos.
Ela trabalhou em diversos países até chegar em Nova York. Lá, em parceria com Denis
da Silva, cabeleireiro brasileiro, ela abriu, na década de 90, o salão Deva Chan, dedicado
a atender clientes com cabelos cacheados.
Baseando-se nas experiências de cuidados com o próprio cabelo e no
conhecimento adquirido em sua prática profissional, Lorraine constrói em O manual da
garota cacheada uma narrativa a respeito de como criou novos métodos de tratamento
para cabelos cacheados e sua própria marca de cosméticos, a Deva Curl. Ela explica que
em determinado ponto de sua vida se deu conta de que só achava seus cabelos bonitos
quando eles estavam sujos, pois, no dia em que os lavava, ficavam ressecados e
arrepiados. Foi a partir desta constatação que decidiu realizar um experimento e lavar
seus cachos utilizando apenas um condicionador: foi deste modo que nasceu o método
que ela batizou como conditioner washing (co-wash)162.
Em sua narrativa, Lorraine alega que, nesta época, não existia no mercado de
cosméticos condicionadores que limpassem os cabelos de maneira eficiente, sem deixar
os fios com um aspecto pesado e oleoso no longo prazo. Em busca de um produto que
atendesse às suas expectativas, ela começou, junto a Denis da Silva, a produzir diferentes
receitas de higienizadores em creme, testando-as nos cabelos das clientes que
frequentavam o salão Deva Chan.
No início dos anos 2000, após muita experimentação, Lorraine e Denis chegaram
a uma fórmula de higienizador em creme que consideraram adequada às suas expectativas
e à função pretendida. O produto, batizado de No Poo, não continha sulfatos, não fazia
espuma e possuía extratos botânicos em sua composição, como os extratos de alecrim,

162
Conditioner washing, em tradução para o português, significa “lavagem com condicionador”.
222

camomila e menta, e óleos vegetais, como o óleo de semente de uva. Este produto deu
início às atividades da Deva Curl, marca de produtos para cabelos crespos, cacheados e
ondulados fundada pela dupla de cabeleireiros.
Em um segundo momento, Deva Curl também decidiu lançar um produto
higienizante que fosse capaz de gerar uma espuma suave, mas que ainda assim excluísse
os sulfatos de sua composição. Este produto, nomeado de Low Poo, pretendia ser uma
espécie de meio-termo para as clientes que ainda sentissem muita falta do sensorial do
xampu convencional, uma etapa de transição para que elas conseguissem se acostumar a
uma nova forma de limpeza antes de aderirem ao uso do higienizador No Poo.
No livro O Manual da Garota Cacheada os sulfatos, excluídos das formulações
da Deva Curl, são apresentados como vilões para os cabelos crespos e cacheados.
Lorraine argumenta que estas substâncias, presentes em produtos de limpeza para a
cozinha e a lavanderia, são utilizadas pela indústria cosmética porque possuem baixo
custo e porque as consumidoras associam à limpeza aos produtos que geram espuma. E
por que trazem prejuízos aos cabelos cacheados? De acordo com ela, os fios
encaracolados, naturalmente mais porosos que os cabelos lisos, absorvem o agente
detergente como se fossem uma esponja, tornando o enxágue mais difícil e deixando as
cutículas dos fios abertas.
Os sulfatos também seriam os responsáveis pela remoção excessiva do sebo
produzido pelo couro cabeludo, tornando os cabelos crespos e cacheados ainda mais secos
e fragilizados. Por conta do formato espiralado, o sebo produzido pelo couro cabeludo,
que possui função lubrificante, tem dificuldade de chegar até as pontas, o que torna o
cabelo cacheado um tipo de cabelo com tendência ao ressecamento. Seguindo esta lógica,
o uso de um produto que contém detergentes considerados fortes, como os sulfatos, faz
com que esta condição piore, visto que a pouca lubrificação naturalmente produzida que
consegue descer pela extensão dos fios é removida.

5.3.2 – Recomendações do método Curly Girl

As instruções dos métodos de lavagem e condicionamento propostos pelo livro O


manual da garota cacheada podem soar, a princípio, um tanto heterodoxas, visto que
contrariam não só os hábitos mais comuns de consumidoras e cabeleireiros como também
os conselhos de utilização estabelecidos pelos fabricantes de cosméticos para cabelos. Em
223

primeiro lugar, Lorraine recomenda que os cabelos e o couro cabeludo sejam limpos não
com um xampu, e sim com um creme higienizante. Este tipo de produto, em sua visão, é
o ideal para os cabelos crespos e cacheados pois limpa sem agredir, preservando o óleo
natural produzido pelo couro cabeludo.
Na lavagem, o cabelo deve ser molhado e o produto que não faz espuma deve
aplicado e massageado no couro cabeludo, com a ponta dos dedos, em movimentos
circulares, posteriormente sendo arrastado para a extensão dos fios. O procedimento de
fricção é considerado como suficiente para remover a poeira e os resíduos de produtos do
couro cabeludo e dos fios, não necessitando do uso de uma espuma detergente.
Após a limpeza, os cabelos ainda molhados devem receber um condicionador,
específico para o tipo de cacho da consumidora ou cliente, e este produto, se a pessoa
considerar que que seu cabelo necessita de maior hidratação, não precisa ser totalmente
enxaguado. Este condicionador deve ser formulado com extratos botânicos e óleos
vegetais e não deve conter derivados de petróleo (como o óleo mineral, a parafina líquida
e o petrolato) e silicones.
Embora isto não fique claro no livro, ou ao menos não em sua versão traduzida, a
razão para se rejeitar os silicones e os derivados de petróleo repousa no argumento de que
eles tendem a se acumular nos fios, formando uma espécie de película que pode prejudicar
a absorção de água e nutrientes pela fibra capilar, tornando os cabelos desidratados. Por
conta deste efeito de acumulação, chamado de build-up, estes ingredientes, para serem
completamente removidos na lavagem, demandam xampus formulados com agentes de
limpeza mais fortes, como os sulfatos. Assim, para que a adoção de uma rotina sem
xampu seja bem sucedida, é preciso abolir o uso de produtos condicionantes formulados
com ingredientes que só podem ser removidos pelos sulfatos e aderir aos produtos cujos
componentes são facilmente removidos com uma limpeza suave.
Por fim, a cabeleireira explica como a etapa de modelagem ou finalização do
cabelo deve ser realizada. Terminada a limpeza e o condicionamento, deve-se aplicar, nos
cabelos ainda bem molhados, uma camada de gel modelador, cuja fórmula não deve
conter álcool, silicones e derivados de petróleo. Os cachos molhados devem ser
estimulados pelo movimento de “amassar e apertar” feito apenas com as mãos, de baixo
para cima, com o auxílio de um tecido de microfibra, camiseta de algodão ou papel
toalha163.

163
Lorraine desaconselha o uso de toalhas, pentes e escovas, por considerar que estes acessórios
“desestruturam” os cachos.
224

Durante a secagem dos fios, deve-se evitar ao máximo tocar nos cabelos, de modo
a deixá-los secarem por completo com a camada de gel intacta. Após a secagem, pode-se
novamente realizar, com cuidado, o movimento de “amassar e apertar” os cabelos,
quebrando a camada de gel que endureceu durante a secagem e colocando as mãos entre
as raízes, sacudindo-as delicadamente para soltar as mechas de cabelo e conferir mais
volume.
Ainda que O Manual da Garota Cacheada explique com detalhes as rotinas de
lavagem, condicionamento e finalização para cada tipo de cabelo, dedicando seções
separadas para explicar detalhadamente as rotinas diferenciadas para cabelos crespos,
cacheados e ondulados, as instruções acima são comuns a todas elas. Trata-se de um livro
que se pretende como uma espécie de manual básico para todos os cabelos que não são
lisos e as recomendações são muito semelhantes aos conselhos de uso presentes nos
rótulos dos produtos Deva Curl.

5.3.3 – Produtos e marcas viajam

Os produtos Deva Curl possuem um custo alto e embora sua comercialização


tenha se ampliado de maneira significativa no Brasil nos últimos anos, a marca permanece
sendo pouco acessível em termos financeiros à maioria das consumidoras. Ainda que os
pontos de venda do produto tenham se ampliado significativamente, chegando às
perfumarias convencionais e às lojas de cosméticos virtuais, os preços não acompanharam
tal acessibilidade.
Quando a divulgação das rotinas no e low poo começou a emergir nas plataformas
digitais no início da década de 2010, as consumidoras crespas e cacheadas
compartilhavam na Internet dicas de produtos acessíveis que pudessem atuar como
substitutos aos produtos da Deva Curl. As instruções e recomendações contidas em Curly
Girl: the handbook já circulavam antes mesmo do lançamento tardio do livro no Brasil:
influenciadoras e consumidoras crespas e cacheadas traduziam informalmente e
compartilhavam os conteúdos do livro no Youtube e no Facebook.
225

Nos grupos de Facebook dedicados às novas rotinas capilares, como o No e Low


Poo Iniciantes, grupo com mais de 270 mil membros criado em janeiro de 2015164,
mulheres com cabelos crespos e cacheados postavam fotos dos produtos e receitas
caseiras que utilizavam como alternativa aos produtos Deva Curl, apontando quais
xampus, condicionadores, cremes de pentear, óleos e máscaras de tratamento não
possuíam sulfatos, silicones e derivados de petróleo em suas fórmulas.
Blogs e canais no Youtube mantidos por mulheres com cabelos crespos e
cacheados também começaram a produzir conteúdo sobre as rotinas no e low poo, como
os blogs Cacheia165 e Cachos & Fatos166 e o canal de Mari Morena. O blog Cacheia foi
criado em 2013 por quatro mulheres de diferentes regiões do país, as mineiras Ana
Catarina e Raysa, a paulistana Mariana e a baiana Maressa. O blog Cachos & Fatos,
criado no mesmo ano, é de autoria da jornalista e cabeleireira especialista em cabelos
cacheados e crespos Sabrinah Giampá, também proprietária do salão Garagem dos
Cachos. Já a youtuber Mari Morena, cujo canal leva seu nome, começou a gravar vídeos
com dicas e informações sobre as rotinas no e low poo em 2014, e afirma ter sido a
primeira pessoa na plataforma a produzir conteúdo em português sobre o assunto 167.
O compartilhamento de dicas, informações e experiências nas plataformas digitais
ajudou a construir um conjunto relativamente organizado de conhecimentos práticos a
respeito das rotinas no e low poo. Atentas a esta movimentação, algumas marcas de
cosméticos nacionais, como por exemplo, a Salon Line, a Soul Power e a Lola Cosmetics,
passaram a lançar produtos dedicados às novas rotinas para cabelos crespos e cacheados,
sinalizando em suas embalagens que os novos produtos não continham sulfatos, silicones,
óleo mineral e outros derivados de petróleo168. Em um cenário em mudança, esta foi a
forma que algumas marcas encontraram para continuarem a ser competitivas no mercado,
procurando estabelecer um diálogo com as consumidoras e com a linguagem utilizada nas
mídias digitais que abordam o tema dos cabelos crespos e cacheados.

164
Número de membros do grupo em julho de 2021. Disponível em
<https://www.facebook.com/groups/noelowpooiniciantes>. Último acesso em 15/07/2021.
165
Disponível em <www.cacheia.com>. Último acesso em 16/03/22.
166
Disponível em <www.cachosefatos.com.br>. Último acesso em 16/03/22.
167
Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=upsOsxPT5fU&list=PL5g_SuwUkXTUfFXgiQDXI36XewIfT_hQ6
&index=2&t=27s>. Último acesso em 15/07/2021.
168
Trata-se de uma estratégia curiosa adotada por algumas marcas. Nos rótulos de alguns produtos para
cabelos crespos e cacheados o que aparece em maior destaque são os ingredientes que não estão presentes
na fórmula.
226

Os métodos de tratamento propostos por Lorraine Massey no Manual da Garota


Cacheada foram flexibilizados e adaptados ao contexto brasileiro. Se nos métodos
originais a proposta era abolir o uso de silicones, no Brasil estabeleceu-se um outro tipo
de discussão em torno destes componentes. Muitas marcas de cosméticos, cabeleireiros
especializados, influenciadoras e consumidoras crespas e cacheadas passaram a fazer
uma distinção entre silicones solúveis e insolúveis em água, considerando que os
primeiros poderiam ser utilizados com segurança por quem segue a rotina low poo,
enquanto os segundos, de fato, deveriam ser abolidos por quem segue qualquer um dos
métodos. Isto porque os xampus low poo, que fazem um pouco de espuma, seriam capazes
de remover plenamente os silicones que se diluem na água. Os silicones insolúveis, por
sua vez, não devem ser utilizados, pois os agentes limpantes dos produtos low poo, por
serem mais suaves, não seriam capazes de remover completamente estas substâncias dos
fios, gerando o efeito build-up.
Ainda que algumas pessoas continuem a considerar todos os silicones prejudiciais
aos cabelos crespos e cacheados, a distinção em relação à solubilidade destes ingredientes
se popularizou e, de certa forma, permitiu que muitas adeptas da rotina low poo pudessem
ampliar a gama de produtos que utilizam em seus cabelos, incluindo aqueles que, segundo
o método original de Lorraine Massey, não poderiam ser utilizados. Dessa forma,
produtos como condicionadores, cremes de pentear e máscaras de tratamento contendo
silicones solúveis passaram a ser recomendados entre muitas adeptas do low poo.
Nos grupos de Facebook e blogs, principalmente, crespas e cacheadas iniciaram
a circulação de listas com dezenas de nomes dos silicones solúveis e insolúveis mais
utilizados pela indústria cosmética – estes nomes, é preciso frisar, são termos técnicos de
difícil memorização. A ideia era que, munidas destas listas no momento da compra, as
consumidoras pudessem avaliar os silicones presentes nas fórmulas de cada produto,
determinando se o comprariam ou não com base na presença ou ausência de determinados
tipos de silicones.
Outra discussão que também emergiu foi o debate sobre os diferentes agentes de
limpeza contidos nos produtos no e low poo e a eficácia da limpeza promovida por estes
métodos. Se de início o sulfato era colocado como prejudicial aos cabelos crespos e
cacheados, mais recentemente, ao menos no Brasil, tem-se reconhecido uma distinção
entre sulfatos “leves” ou “fracos”, que podem ser utilizados por quem segue o método
low poo, e os sulfatos “fortes”, que devem ser evitados em ambos os métodos. Aqui
227

novamente as listas compartilhadas nas redes entram em cena, pois é preciso aprender e
decorar quais substâncias são ou não recomendadas.
A questão da eficácia da limpeza proporcionada pelos métodos tem-se tornado,
cada vez mais, alvo de dissenso entre cabeleireiros. De um lado, há os cabeleireiros que
defendem o método no poo, argumentando que esta rotina pode ser boa para quem tem
cabelos ou couro cabeludo que tendem ao ressecamento: eles explicam que uma boa
massagem realizada com um higienizador em creme é o suficiente para limpar os fios. De
outro, há os cabeleireiros que são contra este método, alegando que ele é, em qualquer
circunstância, insuficiente para promover a limpeza adequada do couro cabeludo e dos
fios: eles argumentam que uma higiene inadequada dos cabelos e do couro cabeludo pode
gerar disfunções no couro, como caspa e seborreia, e o efeito de build-up nos fios.

5.4 – Técnicas de corte e finalização para crespos e cacheados

As novas rotinas capilares desenvolvidas para cabelos crespos e cacheados são


acompanhadas de um conjunto de métodos, práticas e conhecimentos diferenciados
relativos ao corte e à finalização destes tipos de cabelo. Este conjunto, pelo menos em
parte, aparece em O Manual da Garota da Cacheada (2015) e difundiu-se entre
cabeleireiros especializados, consumidoras e influenciadoras digitais crespas e
cacheadas.
Alguns cabeleireiros especialistas em cabelos crespos e cacheados contam, em
suas mídias digitais e nas palestras e cursos que promovem pelo país, que não tiveram a
oportunidade de aprender a cortar adequadamente cabelos crespos e cacheados nos cursos
de cabeleireiro convencionais. Nestes cursos são ensinadas técnicas de corte
universalizantes que só servem para cabelos lisos e sequer há bonecas com cabelos
crespos ou cacheados para que possam treinar os cortes. Tudo o que é ensinado toma o
cabelo liso como o referencial padrão: as técnicas de corte, de coloração e mechas, os
métodos de alisamento e de modelagem dos fios.
Cabeleireiros mais experientes e muito conhecidos no meio, especialmente os que
atuam nas regiões Sudeste do país, relatam ter aprendido técnicas específicas apenas em
cursos focados em cabelos crespos e cacheados realizados no exterior. Estes cabeleireiros,
inclusive, têm se engajado em construir seus próprios cursos, ensinando outras pessoas a
228

cortarem e tratarem adequadamente cabelos crespos e cacheados 169. Nestes cursos são
ensinadas técnicas de corte específicas para cabelos crespos cacheados, técnicas de
tratamento e finalização para cada tipo de cabelo e em alguns há módulos dedicados a
lições introdutórias de empreendedorismo, finanças e marketing digital para
cabeleireiros. Nestas lições, é ensinado o básico sobre como construir e gerir um salão de
beleza e sobre como divulgá-lo nas mídias digitais, atraindo mais clientes.
Tornou-se uma convenção, no campo estudado, a ideia de que os cabelos crespos
e cacheados devem ser cortados a seco. Isto significa que o cabelo da cliente não deve ser
cortado molhado, após a higienização no lavatório, e sim que a cliente deve ter seu cabelo
cortado seco, da maneira como ele chega ao salão. O procedimento mais convencional é
invertido: se nos salões convencionais, a cliente tem seu cabelo lavado, cortado molhado
e posteriormente é realizado o processo de secagem, nos salões para cabelos crespos e
cacheados a cliente tem seu cabelo cortado seco, e os fios só são higienizados após a
execução do corte.
A razão para se cortar os cabelos crespos e cacheados secos é bastante simples:
segundo os profissionais especializados, quando estes cabelos são molhados, perde-se a
noção do fator encolhimento, dos tipos de cachos que a cliente tem170, do volume e do
caimento das mechas. Com o cabelo da cliente permanecendo seco, é possível observar
quantas texturas a pessoa têm, o quanto as mechas encolhem quando são puxadas e soltas,
se o volume é ou não pronunciado e qual é o direcionamento das mechas, ou seja, em
qual direção elas nascem e crescem.
É comum, entre as mulheres com cabelos crespos e cacheados, histórias de cortes
malsucedidos, onde terminaram com os cabelos mais curtos do que pediram ou com os
cabelos no formato piramidal. Tais histórias não se referem apenas ao período da infância
e da adolescência, onde muitas vezes não se tem autonomia suficiente para escolher um
salão ou um profissional para o atendimento, mas também à vida adulta. Crespas e
cacheadas contam ser difícil encontrar um profissional que saiba cuidar de seus cabelos,
que saiba cortar e tratar cabelos cacheados e crespos adequadamente, sem induzir a cliente

169
Como pontuado na Introdução, estes cursos não são dirigidos apenas às pessoas que já atuam como
cabeleireiros. Eles também são oferecidos a quem não possui experiência prévia, pois a promessa é ensinar
tudo relativo aos cabelos crespos e cacheados “do zero”. Alguns destes cursos ensinam, inclusive, a como
segurar corretamente uma tesoura para cortar cabelos.
170
De acordo com os saberes do campo, é muito difícil que uma pessoa com cabelos crespos e cacheados
tenha o cabelo completamente uniforme, com as mechas todas iguais, no mesmo padrão de curvatura. No
caso das pessoas com cabelos cacheados, por exemplo, é comum que uma pessoa tenha, ao mesmo tempo,
mechas de cabelo que apresentam cachos bem definidos e mechas menos curvadas, com cachos mais
abertos e que se desfazem mais facilmente.
229

a realizar uma intervenção alisante: muitas vezes os profissionais, por não saberem como
tratar dos cabelos crespos e cacheados, oferecem rapidamente um serviço de química,
propondo relaxamentos e escovas progressivas.
Segundo os cabeleireiros especialistas, isso ocorre por conta da falta de
conhecimentos e treinamentos específicos, desenvolvidos a partir das características
particulares dos cabelos cacheados e crespos. Como estes profissionais destacam, não se
pode tratar um cabelo crespo ou cacheado como se ele fosse liso. Em adição, a pesquisa
me permite afirmar que isto também acontece, para além da falta de aprendizados
técnicos, porque ainda predomina a visão de que os cabelos crespos e cacheados precisam
ser necessariamente modificados para que se tornem mais disciplinados e alinhados. Não
se trata de responsabilizar apenas os profissionais ou as escolas de beleza, mas de apontar
que ainda predomina uma certa visão, socialmente legitimada, a respeito dos cabelos
crespos e cacheados.
O formato piramidal, ou efeito pirâmide, ocorre quando os cabelos crespos e
cacheados têm todas as suas mechas cortadas retas, o que provoca volume apenas nas
pontas do cabelo, “tirando” o volume necessário da parte superior da cabeça e provocando
um efeito mais achatado nas raízes. O recomendado pelos profissionais especializados,
de maneira geral, é cortar os cabelos crespos e cacheados em camadas, distribuindo o
volume por toda a cabeça e evitando que o volume se concentre apenas em um pedaço.

Figura 50: “Antes e depois” em corte de cabelo cacheado


Fonte: < https://morenaraizblog.com.br/importancia-corte-cabelo-cacheado/>. Último acesso em
07/01/2022.
230

A Figura 50 mostra a distinção entre o formato piramidal – o cabelo antes do


corte, à esquerda – e o cabelo cortado em camadas, resultado de um corte feito com
técnica específica para cabelo cacheado – à direta. Na imagem à esquerda pode-se
observar o efeito pirâmide, onde o volume do cabelo está concentrado nas pontas,
promovendo um efeito “achatado” nas raízes, enquanto na imagem à direita o cabelo
apresenta um volume melhor distribuído, sem o aspecto de pontas “pesadas” e raízes
“achatadas”.
Além das técnicas de corte, importam também as técnicas de finalização
utilizadas. Finalização é o nome dado para as técnicas empregadas para modelar e secar
o cabelo após a lavagem e o condicionamento. É possível encontrar instruções sobre como
executar as diferentes técnicas em blogs, grupos no Facebook, canais no Youtube e perfis
do Instagram dedicados aos cabelos crespos e cacheados. Mais recentemente, as marcas
de produtos para cabelo também têm feito publicações em seus websites e perfis em
mídias digitais ensinando as consumidoras a aplicarem estas técnicas. Muitos
cabeleireiros especialistas, em seus atendimentos nos salões, também costumam ensinar
as suas clientes a como reproduzirem as técnicas em casa, de modo a sempre obterem o
efeito atingido no salão.
As finalizações mais conhecidas englobam a fitagem, o dedoliss e o plopping171.
A fitagem consiste em separar o cabelo molhado em mechas finas, com os dedos ou uma
escova, aplicando um creme de pentear e/ou uma gelatina definidora de cachos em cada
mecha e penteando os fios com os dedos de forma a criar “fitas” de cabelo, posteriormente
amassando as mechas de cabelo, com cuidado, em direção ao couro cabeludo. O dedoliss
repete uma parte dos procedimentos da fitagem, com a diferença que as mechas finas
envoltas em creme e/ou gelatina não serão amassadas, e sim torcidas e enroladas em volta
dos dedos, como se estes fossem um babyliss. Já o plopping envolve o uso de um tecido
amplo de algodão: o cabelo molhado e envolto em creme deve ser colocado sobre o tecido
aberto, que deve ser fechado e torcido como uma embalagem de bombom e preso no alto
ou atrás da cabeça, sendo solto apenas quando os cabelos estiverem quase secos.
É fácil encontrar, em plataformas como Youtube, inúmeros vídeos de
influenciadoras crespas, cacheadas e onduladas ensinando, passo a passo, como executar
cada técnica, indicando quais produtos e acessórios utilizar para obter o melhor efeito
possível e o maior número de day-afters. Estas influenciadoras, em geral mulheres jovens

171
Existem diversas técnicas, mas optei por tratar destas três porque são as mais conhecidas na Internet.
231

negras e brancas, costumam exibir cabelos muito bem tratados, com cortes bem
executados e com cachos definidos e/ou volume acentuado que chamam a atenção pela
beleza e pela aparência saudável172.
As três técnicas de finalização para cabelos crespos e cacheados mencionadas
exigem um trabalho minucioso, habilidades manuais e conhecimento sobre os produtos
utilizados. Quanto mais volumoso e comprido for o cabelo, mais tempo é demandado
para executar estas técnicas. É preciso ter destreza com as mãos e aprender a realizar os
movimentos corretos, sem apertar, torcer ou esticar os cabelos em demasia. É possível
esperar os cabelos secarem naturalmente, o que pode levar várias horas de um dia, ou
utilizar um secador e um difusor para acelerar o processo. Estas técnicas demandam,
portanto, tempo, paciência e trabalho para serem executadas corretamente, para que se
atinja o efeito esperado.
É necessário também ter conhecimento sobre os tipos de produtos para finalização
e qual a quantidade destes para aplicar em cada mecha de cabelo, de modo a obter os
efeitos desejados. Existem uma infinidade de cremes para pentear, ativadores de cachos,
gelatinas e géis definidores, sprays, manteigas e loções para cabelos crespos, cacheados
e ondulados, e estes produtos podem ser utilizados sozinhos ou combinados entre si, de
forma a potencializar os efeitos. A quantidade de produto a ser aplicado em cada mecha
depende do tipo de cabelo da consumidora e de qual é o efeito buscado, se é um cabelo
com cachos definidos ou se é um cabelo com mais volume. Cada pessoa deve descobrir,
em seu cotidiano, quais produtos se adaptam melhor ao seu cabelo, como eles devem ser
utilizados e em quais quantidades. Esta tarefa pode até parecer trivial, mas demanda
pesquisa e testagem de produtos, dispêndio de dinheiro nas compras e uma certa dose de
autoconhecimento sobre o próprio cabelo.9
Assim, voltar ao cabelo natural e aderir às novas rotinas de tratamento e às
técnicas de finalização não necessariamente torna a manipulação dos cabelos mais fácil
ou mais barata. Cuidar dos cabelos crespos e cacheados, de acordo com os critérios
êmicos, é uma tarefa complexa. O custo dos produtos utilizados pelas crespas e
cacheadas e dos cortes específicos para estes tipos de cabelos não é insignificante, ainda
que, especialmente no caso dos produtos, haja uma grande variação de preços, dos mais
acessíveis aos mais caros. Os cuidados com os cabelos ainda tomam uma fatia

172
Quando digo aparência saudável, me refiro a cabelos que não aparentam ressecamento, quebra e queda,
que não apresentam pontas ralas e quebradiças, características de cabelos muito processados por químicas.
232

significativa da renda das mulheres, especialmente daquelas pertencentes às classes


populares.
Algo fundamental a respeito das técnicas de finalização é a duração de seus
efeitos. Não apenas a execução importa, como importa ainda mais por quanto tempo as
finalizações são capazes de sustentar o resultado atingido inicialmente. Dado que a
execução destas técnicas é trabalhosa e toma tempo, é preciso fazer com que elas durem
mais de um dia, pois torna-se quase que inviável repetir os procedimentos com tanta
frequência. É preciso aprender quais finalizações – e quais combinações de produtos –
permitem ter mais day-afters (em tradução para o português, “dias seguintes”), ou seja, é
preciso aprender qual tipo de finalização proporciona mais dias de duração, sem que seja
preciso executar todo o procedimento novamente.
Assim, os visuais crespos e cacheados mais desejados nas mídias digitais, que
mostram cabelos bonitos, saudáveis e exuberantes, com muito volume e/ou definição de
cachos, embora claramente rejeitem as intervenções alisantes, são resultados de técnicas
que exigem tempo, paciência, habilidades manuais e conhecimentos sobre produtos. Por
vezes são cabelos tingidos nos mais variados tons, que incluem desde os tons que
mimetizam cores naturais de cabelo (como loiro e ruivo) até os tons coloridos e
chamativos, como rosa, roxo, azul, entre outras. O cabelo natural, compartilhado e
valorizado nas redes e desejado por muitas mulheres com cabelos crespos e cacheados,
não é, portanto, resultado da ausência de técnicas e artifícios, mas sim efeito de um
conjunto de métodos, práticas e saberes específicos.

5.5 – “Qual é o seu tipo de cacho?”

Os saberes sobre cabelos crespos e cacheados produzidos e compartilhados em


campo por cabeleireiros, marcas, consumidoras e influenciadoras digitais atribuem uma
importância significativa às distinções entre os diferentes tipos de cabelos. Juntamente às
discussões sobre transição capilar, novas rotinas de tratamento e finalizações, circulam
classificações que dividem os cabelos em tipos e subtipos, estabelecendo diferentes
características e recomendações de tratamentos a cada categoria.
Em o Livro dos Cachos, escrito pela cabeleireira Sabrinah Giampá, é apresentada
uma categorização dos cabelos cacheados, crespos e ondulados que se organiza a partir
de números e letras, que indicam, respectivamente, tipos e subtipos. Embora esta
233

categorização não seja criação da cabeleireira, esta realiza o esforço de apresentá-la


minuciosamente em seu livro. A Figura 51 traz uma ideia a respeito de como é a
aparência de cada textura capilar.

Figura 51: Ilustração de Malena Flores sobre os tipos de cabelo


Fonte: Página 72 de O Livro dos Cachos

Os cabelos ondulados são o tipo 2, os cacheados, o tipo 3, e os crespos são o tipo


4. Os números aumentam conforme a textura ou o grau de curvatura dos fios é mais
pronunciado. Ainda que não estejam presentes na ilustração, a autora pontua que os
cabelos lisos constituem o tipo 1, que não possui nenhuma ondulação ou cacheamento.
A ilustração mostra que cada uma das categorias numéricas, por sua vez, é
dividida em subtipos diferenciados por letras, que variam conforme o grau de intensidade
da curvatura ou da textura em questão. Dentro de um tipo, a classificação secundária em
A, B e C indica o quão ondulado, cacheado ou crespo um cabelo é, marcando uma textura
ou curvatura capilar mais ou menos acentuada. Em geral, os cabelos classificados no
subtipo C se aproximam mais da categoria numérica seguinte: um cabelo ondulado 2C se
234

parece com um cacheado (tipo 3) e um cabelo cacheado 3C se aparece com um crespo


(tipo 4).
De forma a facilitar a compreensão a respeito das características de cada categoria
e as suas diferenciações, o livro também traz descrições detalhas sobre todos os subtipos
de cabelos ondulados, cacheados e crespos, com orientações sobre como cuidar de cada
tipo e fotos de conhecidas blogueiras para exemplificar visualmente as explicações.
Os cabelos ondulados, que constituem o tipo 2, podem ser levemente ondulados
(subtipo A), ondulados curvilíneos (subtipo B) e ondulados cacheados (subtipo C). A
cabeleireira explica que os cabelos ondulados, em geral, são tidos como cabelos
“esquisitos”: ao mesmo tempo em que não são completamente lisos, também não formam
cachos, possuem frizz e muitas vezes apresentam um aspecto “armado”, com volume. O
formato das ondas só se destacaria com os cuidados e tratamentos corretos, como as
hidratações e o uso de finalizadores em gel e mousse.
Os cabelos cacheados, de tipo 3, subdividem-se em cacheados em S (subtipo A),
cacheados em espiral (subtipo B) e cacheados crespos (subtipo C). De acordo com a
autora, os cabelos cacheados são fios mais frágeis, que podem exigir um uso mais
constante de higienizadores sem espuma, intercalados com os xampus de espuma leve, e
que respondem melhor aos finalizadores em creme e aos produtos que contém manteigas
e óleos vegetais em sua composição.
Os cabelos crespos, que constituem o tipo 4, podem ser crespos em S (subtipo A),
crespos em Z (subtipo B) e crespos poderosos (subtipo C). Os fios crespos são os mais
finos e frágeis e pedem higienizadores em creme, manteigas e óleos vegetais. Enquanto
alguns fios crespos podem apresentar espirais bem pequenas e apertadas ou um formato
em zig zag, outros podem não apresentar uma forma definida, especialmente quando se
trata dos cabelos crespos 4C.
Estas classificações que compreendem letras e números tornaram-se bastantes
populares e são mencionados com muita frequência em publicações feitas por
influenciadoras e consumidoras nas redes sociais, nos rótulos de produtos para cabelos
crespos, cacheados e ondulados e também nos discursos de alguns cabeleireiros
especializados nestes tipos de cabelos.
A criação desta classificação que diferencia os cabelos a partir da combinação de
letras e números é, na realidade, atribuída ao cabeleireiro estadunidense Andre Walker,
235

que durante décadas cuidou dos fios da apresentadora de TV Oprah Winfrey173. Walker,
na década de 1990, criou o Hair Typing System e o fez com o objetivo de orientar suas
clientes sobre como cuidar dos fios e de divulgar sua própria marca de produtos para
cabelos.
Segundo o cabeleireiro estadunidense, não há nenhum grande segredo sobre como
cuidar do cabelo. Comparando os cabelos aos tecidos, ele explica que é necessário cuidar
dos diferentes tipos de cabelo tal como cuidamos das roupas de diferentes tecidos,
dispensando abordagens únicas e reconhecendo especificidades:

Não importa o que os gurus do cabelo te digam, não há nada misterioso


sobre o cabelo. É um tecido, pura e simplesmente. E assim como outros
tecidos, não existe uma abordagem universal ou tamanho único para seu
cuidado. Você cuida de uma blusa de seda de modo diferente de como
faz com um suéter de cashemira. Ambos são fabulosos: ambos
demandam diferentes fórmulas para manter sua aparência incrível. O
mesmo é verdade para os cabelos. (WALKER, 1997, p.25) (tradução
livre)

A Figura 52 traz uma tabela com a classificação dos tipos e subtipos de cabelos
criada por Walker. É possível notar algumas diferenças em relação à classificação em
números e letras que se popularizou no Brasil, ainda que a lógica de distinção seja a
mesma: os números e letras aumentam conforme a curvatura ou textura do cabelo é mais
pronunciada.

173
Oprah Winfrey, nascida em 1954, é um ícone afro-americano e foi comandou o programa de televisão
Oprah Winfrey Show, sucesso de audiência nos EUA, por mais de 2 décadas.
236

Figura 52: O sistema de classificação criado por Andre Walker


Fonte: Screenshot da página < https://andrewalkerhair.com/#andre-walker>. Último acesso em 25/08/21.

Em primeiro lugar, Walker também dispende atenção aos cabelos lisos (straight
hair), classificando-os nos subtipos A, B e C. Em segundo, os cabelos cacheados (curly
hair) e crespos (kinky hair), são diferenciados em apenas 2 subtipos em seus respectivos
contextos: não há subtipo C para fios crespos e cacheados, apenas o A e B.
Walker explica que os cabelos lisos não formam nenhuma onda ou cacho,
possuem mais camadas de cutículas e tendem a brilhar bastante. Os subtipos de cabelo
liso referem-se à espessura dos fios: o subtipo A é fino, o subtipo B possui um calibre
médio e o subtipo C é grosso, sendo o que mais resiste às técnicas de modelagem.
Os cabelos ondulados são descritos como um tipo de cabelo relativamente
incomum, que se localiza entre o liso e o cacheado. São cabelos cujo formato se parece
com a letra S e seus fios tendem permanecer mais próximos a cabeça, especialmente nas
raízes. Do mesmo modo que os cabelos lisos, seus subtipos se referem à espessura dos
fios, variando do mais fino (subtipo A), mais fácil de modelar, ao mais grosso (subtipo
C), que possui mais frizz e é mais resistente as técnicas de modelagem.
Os cabelos cacheados são caracterizados pelo formato semelhante à uma mola.
Quando molhados, os cabelos cacheados se esticam de maneira significativa, ganhando
uma aparência de quase lisos, e conforme secam, encolhem e diminuem de tamanho. Os
237

fios cacheados brilham menos que os cabelos lisos e ondulados porque suas camadas de
cutículas não formam uma superfície uniforme, capaz de refletir a luz da mesma maneira
que ocorre com os outros tipos mencionados. O cacheado de subtipo A corresponde ao
cabelo que forma cachos frouxos e mais largos. Já o cacheado de subtipo B corresponde
ao cabelo que apresenta cachos parecidos com um saca-rolhas, mais apertados e bem
definidos.
Por último, Walker descreve os cabelos crespos como cabelos com fios angulosos
ou com cachos muito apertados e estreitos. Os crespos são bastante finos e frágeis, pois
são o tipo de cabelo que possui menos camadas de cutículas. O subtipo A corresponde
aos fios crespos que seguem um padrão mola, com cachos bem pequenos. O subtipo B
corresponde aos fios crespos que apresentam um padrão semelhante ao formato da letra
Z, que formam ângulos agudos.
A categorização dos cabelos crespos, cacheados e ondulados em tipos e subtipos
organizados por números e letras, que se popularizou de maneira significativa, merece
algumas considerações. Ressalto que, embora esta classificação seja utilizada por
influenciadoras digitais, marcas de cosméticos, consumidoras e cabeleireiros, ela também
é alvo de críticas por parte de diferentes atores que constituem o campo dos cabelos
naturais.
É preciso frisar que esta categorização particular é uma invenção muito
interessante para o mercado. Ainda que as classificações em letras e números já
circulassem nas redes sociais antes das empresas as utilizarem para vender seus produtos,
é inegável que as marcas cumpriram um papel crucial para popularizá-la. Uma crespa,
cacheada ou ondulada pouco afeita ao contexto digital ainda assim pode se deparar com
o detalhado sistema de classificação ao simplesmente observar os rótulos de produtos
para cabelos presentes em farmácias, perfumarias e supermercados.
Do ponto de vista de algumas marcas de cosméticos para cabelos, parece ter se
tornado um negócio lucrativo lançar incontáveis linhas de produtos destinadas aos
diferentes tipos e subtipos de cabelos, indicando nas embalagens destes produtos a quais
categorias eles se destinam. Esta informação, inclusive, é destacada no rótulo, e às vezes
é acompanhada de uma pequena tabela com desenhos dos diferentes tipos de texturas.
Marcas como Seda, Salon Line e Soul Power fazem uso deste recurso, como ilustrado
pelas Figuras 53, 54 e 55.
238

Figura 53: Rótulo de produto da Salon Line


Fonte: Acervo da pesquisadora

Figura 54: Rótulo de produto da Seda


Fonte: Acervo da pesquisadora
239

Figura 55: Rótulo de produto da Soul Power


Fonte: Acervo da pesquisadora

Os produtos da Salon Line, Seda e Soul Power apresentam rótulos que informam
as consumidoras as quais tipos e subtipos de cabelos eles se destinam. A gelatina da Salon
Line (Figura 53) e o creme de pentear da Soul Power (Figura 55), são produtos mais
abrangentes, pensados para todos os subtipos de cabelos ondulados, cacheados e crespos,
abrangendo as categorias 2ABC, 3ABC e 4ABC. O creme de pentear da Seda (Figura
54), ao contrário, é um produto muito mais específico, que se direciona às consumidoras
que possuem dois subtipos de cabelos crespos, as categorias 4B e 4C.
Em todos os rótulos, além desta indicação por escrito, também há os desenhos que
ilustram os tipos e subtipos de cabelos aos quais os produtos são destinados: assumindo
que nem todas as consumidoras podem compreender de imediato o que significam as
letras e números das categorias utilizadas, as marcas procuram explicitar,
imageticamente, o tipo de cabelo ao qual se referem. Trata-se de um recurso pedagógico,
que pretende educar a consumidora ou reforçar o seu conhecimento prático a respeito de
sua textura capilar e dos produtos que ela pode escolher durante suas compras. As
informações e recursos mobilizados, longe de serem acidentais, são estratégias
cuidadosamente pensados para vender mais e para atingir determinados nichos de
consumidoras.
240

Alguns cabeleireiros e influenciadoras digitais argumentam que a classificação


dos tipos de cabelos a partir de números e letras pode atrapalhar a vida das crespas e
cacheadas se levada em suas últimas consequências. Argumenta-se que, apesar da
classificação poder servir de base para compreender seu tipo de cabelo e escolher
produtos, ela não dá conta de todas as características que afetam a aparência e a saúde
dos cabelos174.
A tentativa de buscar uma exata correspondência de seu cabelo na tabela de
texturas geraria nas consumidoras ansiedades sobre o próprio cabelo e sobre os efeitos
que os produtos disponíveis no mercado realmente podem proporcionar. Cabeleireiros e
influenciadoras explicam que não é preciso se preocupar tanto com o subtipo dos fios e
que este esforço seria inócuo, uma vez que as pessoas, em geral, possuem mais de uma
textura capilar na cabeça. Algumas influenciadoras, inclusive, quando perguntadas sobre
qual tipo de cabelo têm, se limitam a responder, em tom crítico, “Meu cabelo é do tipo
lindo” e orientam suas seguidoras a não gastarem tempo com isso.
Outra crítica feita à classificação que envolve tipos e subtipos de cabelos crespos,
cacheados e ondulados aponta que os números e letras, do modo como são utilizados,
reforçam uma hierarquização entre as texturas capilares. Ainda que Andre Walker e
outros profissionais argumentem que os números são utilizados apenas para expressar o
crescente grau de curvatura capilar do liso ao crespo, os questionamentos emergem, uma
vez que, em sociedades marcadas pela herança escravocrata e pelo racismo, ainda
permanecem as percepções hierarquizantes de cabelo “bom” e “ruim”, associadas,
respectivamente, aos cabelos lisos e crespos.
Questiona-se, por exemplo, o fato de os cabelos crespos serem colocados como o
tipo 4, e não como o tipo 1. Porque o ponto de partida ou a referência inicial para a
classificação são os cabelos lisos, e não os crespos? Para alguns críticos, associar os
cabelos crespos ao número 4 não seria algo acidental, e sim uma escolha que pode reforçar
a imagem do cabelo crespo como um cabelo indesejado, que ocupa o último lugar da fila.
A classificação por letras e números difundida pelo mercado, ainda que se
pretenda neutra e técnica, uma vez que fala de texturas e formas, também aciona noções
de raça e determinados pertencimentos raciais, reforçando e reelaborando distinções.
Raça, aqui, aparece principalmente em um sentido estetizante, ligada à apresentação dos
cabelos, à performance corporal e à diversidade estética. Em alguns momentos, esta noção

174
Segundo os cabeleireiros e os formuladores de produtos, fatores como a porosidade a densidade dos fios
também importam, e estes fatores variam individualmente.
241

de raça aparece de modo mais sub-reptício, mas, em outros, aparece de modo mais
evidente, como quando os produtos trazem desenhos e fotos de mulheres.
Os cabelos ondulados, denominados tipo 2, são frequentemente associados às
pessoas brancas. Os cabelos cacheados, denominados tipo 3, são associados a pessoas
brancas e negras, abrindo um espaço para ambiguidade e para os deslizamentos 175. Os
cabelos crespos, de tipo 4, são quase sempre relacionados às pessoas negras. Os cabelos
crespos, de uma maneira muito marcada, racializam e enegrecem: no Brasil, ter cabelo
crespo significa “ter um negro na família”, ou seja, significa ter ascendência negra
(CRUZ, 2017), mesmo que a pessoa não possua um tom de pele retinto.

5.6 – O cabelo natural como estética insubordinada

Como visto, o cabelo natural celebrado pelo campo estudado não significa um
cabelo sem nenhum tipo de intervenção, pois uma série de cuidados, técnicas e artifícios
são incentivados. A ideia de cabelo natural em questão preconiza que não se utilize
nenhuma intervenção alisante, ou seja, nenhuma intervenção cujo objetivo é esticar os
fios e diminuir seu volume, especialmente se este efeito for permanente, provocado por
químicas.
O objetivo das rotinas capilares, dos cortes específicos, das técnicas de finalização
e dos produtos para cabelos crespos e cacheados descritos neste trabalho é ressaltar a
forma crespa ou cacheada dos fios, ajudando na definição dos cachos e/ou enfatizando o
volume dos cabelos. Trata-se de abandonar as intervenções alisantes, de aderir a métodos
e cuidados especificamente desenvolvidos para cabelos crespos e cacheados e de, em
alguns casos, experimentar outros tipos de intervenção, como colorações e
descolorações, que em geral são incompatíveis com as químicas. Trata-se também de um
processo de reconstrução da subjetividade, que envolve outra maneira de se olhar, de
exercitar a autoestima e o autocuidado e de se posicionar diante de padrões e percepções
sociais que envolvem estética, gênero, raça e saúde.
Para algumas mulheres negras com cabelos crespos e cacheados, este processo
também pode levar às experimentações com tranças, dreadlocks e turbantes. Embora o

175
Embora no Brasil isto não seja tão evidente, em países como Estados Unidos, por exemplo, os cabelos
cacheados não representam apenas a dualidade “branco-negro”, mas também são associados aos judeus,
que nem sempre são vistos como pessoas brancas.
242

uso destes penteados ou acessórios não esteja necessariamente condicionado à


interrupção de técnicas alisantes, nos últimos anos a adesão ao cabelo natural tem
incentivado estas mulheres, especialmente as mais jovens, a considerarem mais
possibilidades de penteados, acessórios e intervenções em seus cabelos.
De início, nos primeiros meses de pesquisa, eu não conseguia compreender como
as tranças dialogavam com a ideia de cabelo natural. Reproduzindo uma ideia muito
comum entre pessoas brancas, eu questionava em que medida as tranças também não
seriam uma tentativa de modificar ou de “ocultar” os cabelos crespos. Não conseguia
compreender totalmente a importância e a relevância cultural e política deste penteado
para muitas mulheres negras, que enxergam nas tranças possibilidades de experimentar
visuais diferentes, de celebrar sua ancestralidade e de valorizar a estética negra.
A pluralidade de práticas, técnicas e intervenções sobre os cabelos crespos é um
fato histórico. No continente africano, ao longo dos séculos, os cabelos crespos sempre
foram manipulados, tratados com óleos, manteigas e argilas, e submetidos a uma série de
penteados elaborados, que requeriam as mãos habilidosas e os conhecimentos específicos
de pessoas que se dedicavam ao cuidado dos cabelos. Em diversas sociedades africanas,
ontem e hoje, a visão europeia que opõe a naturalidade ao artifício simplesmente não faz
sentido, não encontra um terreno culturalmente fértil para proliferar, pois a manipulação
dos cabelos não toma esta oposição como fator chave de entendimento (MERCER, 1987;
WALKER, 2000).
No contexto da diáspora, também são plurais os estilos e os métodos de
manipulação do cabelo crespo, o que inclui os alisamentos e a raspagem dos cabelos.
Estes foram desenvolvidos, ao longo do tempo, como respostas possíveis à situação de
escassez e à experiência da violência e da opressão racial (MERCER, 1987). No contexto
recente do século XX, há também as técnicas e penteados adotados como símbolos de
resistência, como o afro e os dreadlocks, que também constituem uma maneira de reagir
a um sistema racista.
Assim, é preciso considerar as formas plurais e contextuais de manipulação dos
cabelos crespos e compreender o que se quer dizer com “naturalidade”. É preciso colocar
sob suspeição, no sentido de interpelar ou inquirir, a ideia de “naturalidade” que está por
trás da noção de cabelo natural. O cabelo natural, no contexto estudado, é um cabelo
cuidadosamente construído e moldado, seja em termos simbólicos como em termos
materiais – trata-se de um natural construído. É um cabelo que faz parte de uma estética
que deve ser compreendida não como aquilo que rejeita quaisquer intervenções e
243

artifícios, mas sim como uma estética insubordinada e politizada, que pretende se opor à
norma vigente, que é o cabelo liso/alisado, disciplinado e domado. A “naturalidade”,
neste contexto, tem a ver com construir respostas aos padrões estéticos sexistas, racistas
e colonizadores.
Os cabelos cacheados e crespos naturais, especialmente quando estão nas cabeças
de mulheres que se identificam como negras ou pretas, transformam seus corpos em
corpos-bandeira (GOMES e SORJ, 2014). Bila Sorj e Carla Gomes (2014), em sua análise
sobre a Marcha das Vadias – um protesto feminista contra o assédio e a violência sexuais
que acontece em diversas cidades do mundo desde 2011 – escrevem o seguinte a respeito
da ideia:

O corpo tem um importante e duplo papel na marcha: é objeto de


reivindicação (autonomia das mulheres sobre seus corpos) e é também
o principal instrumento de protesto, suporte de comunicação. É um
corpo-bandeira. Ao subverter o uso acusatório do termo “vadia”, a
marcha reivindica o termo para si e o ressignifica positivamente como
“empoderamento”. O slogan “Se ser livre é ser vadia, então somos todas
vadias”, comum às marchas em diversas cidades, ilustra esta ideia
central. Para expressá-la, as/os participantes lançam mão de roupas
sensuais, batom vermelho e topless nas marchas. Palavras de ordem são
escritas em seus corpos, como “meu corpo, minhas regras”, “meu corpo
não é um convite”, “puta livre”, “útero laico”, “sem padrão”. Pelo
artifício da provocação, o corpo é usado para questionar as normas de
gênero, em especial as regras de apresentação do corpo feminino no
espaço público. Ao mesmo tempo, o corpo é um artefato no qual cada
participante procura expressar alguma mensagem que o particulariza.”
(p.38)

O corpo-bandeira significa, portanto, o corpo que, além de ser o principal objeto


da reivindicação, é também o principal instrumento de protesto. No caso do protesto da
Marcha das Vadias, o corpo é provocativamente despido e marcado com tinta e batom
vermelho, trazendo mensagens prioritariamente relacionadas à direitos sexuais e
reprodutivos. As autoras também destacam como o corpo, para as gerações feministas
mais recentes, é um elemento importante não só porque encarna as problemáticas relativas
aos direitos reprodutivos e sexuais e a relação do movimento social com o Estado, mas
porque ele traz a importância dos processos de subjetivação, das experiências corporais
vivenciadas a partir de um ponto de vista subjetivo.
244

No campo estudado, guardadas as devidas diferenças 176, os cabelos crespos e


cacheados naturais também podem ser compreendidos à luz do conceito de corpo-
bandeira, pois os cabelos crespos e cacheados e sua estética constituem o principal objeto
de reivindicação e o principal suporte de comunicação política no contexto em questão.
A construção de uma estética insubordinada é também vivida enquanto um processo de
subjetivação, que não necessariamente dialoga com as reivindicações feministas mais
tradicionais. Isto fica muito evidente em eventos como a Marcha do Orgulho Crespo, um
protesto criado em 2015, na cidade de São Paulo, que reivindica a valorização da estética
negra e o combate ao racismo.
Seguem algumas imagens da segunda edição da Marcha do Orgulho Crespo
realizadas na cidade de São Paulo (Figuras 56 a 58):

Figura 56: 2ª Marcha do Orgulho Crespo em São Paulo


Fonte: <https://vejasp.abril.com.br/cidades/marcha-do-orgulho-crespo-toma-parte-da-paulista/>. Último
acesso em 12/01/2022.

176
Sublinho que, enquanto a Marcha das Vadias, vista como um movimento de feministas jovens e brancas,
é um movimento por vezes criticado por mulheres negras, a Marcha do Orgulho Crespo abre diálogos mais
próximos com os feminismos negros, que reconhecem a importância da subjetividade e da construção de
uma estética própria no embate político.
245

Figura 57: 2ª Marcha do Orgulho Crespo em São Paulo


Fonte: < https://ponte.org/veja-fotos-da-2a-marcha-do-orgulho-crespo-de-sao-paulo/>. Último acesso em
12/01/2022.

Figura 58: 2ª Marcha do Orgulho Crespo em São Paulo


Fonte: < https://ponte.org/veja-fotos-da-2a-marcha-do-orgulho-crespo-de-sao-paulo/>. Último acesso em
12/01/2022.

Como as imagens demonstram, as participantes da Marcha do Orgulho Crespo


ostentam, orgulhosamente, belos cabelos crespos volumosos, às vezes coloridos,
246

trançados ou adornados com acessórios. Esta estética capilar é acompanhada de outros


elementos visuais, como roupas coloridas e estampadas, brincos grandes, maquiagem
colorida e palavras de ordem escritas em cartazes e vestimentas. O corpo e os cabelos são
adornados e manipulados de maneira intencional e procuram visibilizar e valorizar a
estética negra: tornam-se então os objetos da reivindicação e os veículos do protesto.
A Figura 58, em particular, merece uma análise mais detida. A jovem mulher
negra de cabelos crespos aparece ao lado de uma capa de revista, e seus braços estão
cruzados, imitando a pose da modelo que está na capa. Em sua camiseta lê-se
“Bioextratus”, que é uma marca de produtos voltados para os cabelos: pode-se inclusive
inferir que talvez ela seja promotora ou algum tipo de funcionária da marca. A revista em
questão não é uma publicação qualquer, e sim a Vogue, uma revista de moda
estadunidense criada no final século XIX, famosa por exibir em suas páginas imagens de
modelos estadunidenses e europeias brancas, magras e jovens.
O contraste não passa despercebido: enquanto a pessoa na capa da revista é uma
jovem mulher branca com cabelos lisos e olhos azuis, que ostenta uma maquiagem pouco
visível e uma expressão facial de seriedade e o rosto posicionado levemente inclinado
para frente, a mulher de cabelos crespos ostenta um batom colorido, brincos grandes e
uma expressão facial de orgulho, com o queixo levemente erguido. Ainda que ambas
estejam com os braços cruzados, estes parecem enunciar significados diferentes, pois
enquanto reforçam a postura séria na mulher branca e destacam o relógio em seu punho,
na mulher negra os braços cruzados, adornados com uma pulseira delicada, emolduram
sua postura de orgulho e positividade.
Estes contrastes chamam a atenção para as diferenças que estão em jogo: enquanto
a revista materializa o padrão de beleza hegemônico, que traz a pele branca, os olhos
claros e os cabelos lisos como referenciais universalizantes e sinônimos de elegância e
distinção, a mulher negra com cabelos crespos corporifica a contestação deste padrão
excludente, trazendo a resistência aos referenciais de beleza embranquecidos e as palavras
de ordem e reivindicações da Marcha do Orgulho Crespo. O que a imagem nos comunica
são as diferenças entre uma estética dominante e dominada e uma estética insubordinada
e politizada.
247

***

Neste capítulo, procurei não apenas fornecer explicações sobre quais são e como
são executadas as práticas realizadas nos cabelos crespos e cacheados, mas busquei dar
destaque aos saberes constituídos em torno destas práticas. Procurei também discutir,
sobretudo, os sentidos construídos e atribuídos à estas práticas e a estes saberes,
mostrando como eles são mobilizados e negociados em um universo marcado por
diferenças e desigualdades de gênero e raça. Enfatizei como determinadas práticas e
saberes, sobretudo os ligados aos alisamentos, atravessam e vulnerabilizam corpos
racialmente marcados.
As práticas e saberes aqui descritos e problematizados navegam por contextos
transnacionais e transitam entre o mercado e a política, circulam entre profissionais,
marcas, consumidoras, ativistas e influenciadoras digitais. Estas práticas e saberes, longe
de serem estáticos, são capturados e readaptados, endossados e contestados. As novas
rotinas capilares, que preconizam cuidados diferenciados para cabelos crespos e
cacheados, viajam entre países e são readaptadas no contexto brasileiro. A transição
capilar e as técnicas de finalização, ao mesmo tempo que apresentam outras
possibilidades para os cabelos crespos e cacheados, também são atravessadas por um ideal
de cachos perfeitos.
Os métodos de alisamento, a rejeição ao alisamento, a transição capilar, as novas
rotinas, os produtos, as finalizações, as classificações dos tipos de cabelos e as técnicas
de corte apresentadas não são questões meramente técnicas e que interessam apenas às
consumidoras e aos profissionais relacionados à área da beleza. Muito ao contrário, estas
questões evidenciam as articulações entre gênero e raça que perpassam de maneira
desigual corpos negros e brancos, que apontam para diferentes processos de
(re)construção estética e subjetiva e que nos permitem compreender o impacto cultural e
político de uma estética que se coloca como insubordinada.
248

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar uma pesquisa sobre temáticas como cabelo, estética e padrões de beleza
traz alguns desafios. Um deles, em particular, é o desafio de se contrapor aos discursos
que qualificam estes temas como algo menor, supérfluo e despolitizado. Como “coisa de
mulher”, como se temas socialmente atrelados ao “universo feminino” fossem
secundários. Estas percepções, longe de estarem presentes apenas no senso comum,
também atravessam, em parte, a academia e os movimentos sociais.
Desde o início de minha atuação enquanto pesquisadora, meu trabalho tem sido
interpelado, de várias maneiras, por estas percepções. Sempre foi minha preocupação e
minha prioridade frisar os aspectos políticos dos temas que escolhi estudar, demonstrando
como estes merecem tratamento analítico e como condensam questões de interesse
acadêmico e público.
A iniciativa de politizar e analisar criticamente temas como cabelo e estética,
contudo, não é algo novo. Sobretudo as mulheres negras, especialmente as que atuam
como intelectuais, ativistas e porta-vozes públicas do feminismo negro, chamam a
atenção para estes temas e trazem perspectivas analíticas e políticas que abordam estas
questões de maneira consistente e produtiva. Seus trabalhos e reflexões inspiraram em
larga medida as análises aqui empreendidas.
Nesta tese, em particular, procurei demonstrar como a estética, e mais
particularmente, o cabelo, são objetos que nos permitem pensar sobre as relações entre
gênero, raça, consumo e produção de identidades e subjetividades, iluminando questões
políticas contemporâneas que dizem respeito a novas formas de atuação e demandas por
reconhecimento e representação, que perpassam os ativismos, as mídias digitais e as
relações de mercado.
O campo estudado é marcado pela relação tensa e complexa entre mercado e
política. O mercado dirigido aos cabelos crespos e cacheados dialoga com processos
sociais e políticos muito mais amplos, que nos obrigam a olhar para as relações entre
inclusão, discriminação, empresas, consumo e ativismo. Estes aspectos, no cenário em
questão, não podem ser compreendidos separadamente.
Categorias como representatividade, empoderamento, ancestralidade e
identidade transitam entre mercado e política, circulando entre marcas, profissionais da
beleza, consumidoras, influenciadoras digitais e ativistas pelo cabelo natural. Estas
249

categorias são chaves para se entender as dinâmicas e tensões que constituem o campo
estudado, e seus trânsitos entre diferentes contextos e sujeitos suscita, ao mesmo tempo,
conexões, colaborações, disputas e conflitos.
O campo estudado também é marcado pelos trânsitos transnacionais. A circulação
de referências estéticas e políticas, de marcas, produtos, técnicas, práticas, classificações
e saberes relativos aos cabelos crespos e cacheados se dá, sobretudo, entre Brasil e
Estados Unidos. Este aspecto merece um aprofundamento a ser realizado por outros
estudos, e seria pertinente também olhar para como estes trânsitos transnacionais também
têm ocorrido em relação a outros países da América Latina.
Elementos como as críticas aos alisamentos, a transição capilar, as técnicas de
cuidado dos fios crespos e cacheados e as classificações dos tipos de cabelos não são
temas que interessam somente às marcas, às consumidoras e aos profissionais da beleza.
Como demonstrado, estas questões evidenciam as articulações entre gênero e raça que
atravessam de maneira desigual corpos negros e brancos, que apontam para diferentes
processos de (re)construção estética e subjetiva e que nos permitem compreender o
impacto cultural e político de uma estética que se coloca como insubordinada. Esta
estética insubordinada, relacionada a ideia de cabelo natural, é especialmente visível nos
usos criativos e afirmativos dos cabelos crespos.
O cabelo natural não implica, necessariamente, na rejeição aos produtos e
serviços promovidos pela indústria da beleza – até porque esta ideia trata de um natural
estética e politicamente construído. Parte da indústria da beleza, sobretudo, tem se
apropriado da ideia com bastante desenvoltura, tornando-a um negócio lucrativo,
oferecendo produtos e serviços para a manutenção e o cuidado dos cabelos crespos e
cacheados naturais. Esta estratégia, para além de aumentar as vendas e o número de
consumidoras adeptas, também promove um reposicionamento das marcas. Como pode-
se pensar à uma primeira vista, o cabelo natural não significa a ruína das marcas de
produtos para o cabelo, pelo contrário.
As dinâmicas e tensões que constituem o mercado da beleza direcionado aos
cabelos crespos e cacheados também colocam em evidência certos deslizamentos e
problemas de classificação racial que ocorrem no contexto brasileiro. O cabelo, por ser
um elemento central nos processos de racialização, é um objeto de estudo que nos
permite, justamente, olhar mais de perto para estes deslizamentos e problemas. Ele traz
consigo, em seu bojo, discussões que abordam o racismo e o colorismo, como
argumentado ao longo desta tese.
250

Chama a atenção, na intersecção entre mercado e ciência, a permanência de um


repertório oriundo das teorias raciais do século XIX. Sobretudo no que diz respeito aos
bastidores das marcas, onde são elaboradas as formulações cosméticas, são
(re)produzidos discursos de caráter biomédico e técnico que ainda se baseiam em noções
de tipos raciais humanos. Termos explicitamente racializados são mobilizados, a partir de
uma roupagem de autoridade científica, para nomear e classificar características físicas,
reforçando uma concepção naturalizante de raça – ainda que este termo seja por vezes
seja evitado e substituído por outros.
Por fim, reforço que o contexto abordado nesta tese destaca o lugar proeminente
das mídias digitais no que concerne ao debate público e à circulação de categorias. As
mídias digitais têm amplificado, de certa forma, os debates e o interesse público sobre
pautas antirracistas e feministas, para além da academia e dos movimentos sociais. Os
ambientes online, no que concerne ao escopo deste trabalho, também têm privilegiado
uma linguagem de caráter mais subjetivo, atrelada à ideia de experiência.
251

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270

ANEXOS

Nota da Marcha do Orgulho Crespo à marca Hoka:

Este comunicado visa informar que o Movimento Orgulho Crespo Brasil não
tem nenhuma relação com a “linha orgulho crespo”, da Hoka Professional.

No dia 6 de setembro de 2019, durante a Feira Internacional de Beleza


Profissional, a Beauty Fair SP, a marca Hoka Professional, do Espírito Santo,
lançou uma linha de cosméticos chamada “Orgulho Crespo”. Só tivemos
conhecimento da existência desses produtos (shampoo cremoso, máscara
nutritiva e leave-in modelador de cachos) por meio das hashtags
#OrgulhoCrespo #MovimentoOrgulhoCrespo #MarchadoOrgulhoCrespo no
instagram do diretor da marca [...].

É preciso salientar que em nenhum momento o movimento foi informado por


parte da Hoka sobre a utilização do nome “Orgulho Crespo”, tampouco que
ele estamparia a embalagem de uma mercadoria que não dialoga em
absolutamente nada com a proposta do Orgulho Crespo, um movimento
independente criado em 2015, pelo Blog das Cabeludas e pela Hot Pente, que
se propõe a refletir e valorizar a estética negra por meio dos cabelos
crespos/cacheados.

Contactamos [o diretor da marca] via instagram e o questionamos se havia


entrado em contato conosco para falar sobre a nova linha. O mesmo afirmou
que “ainda não, mas quero muito apoiar a causa e fazer uma parceria
bacana”.

Diante da resposta, duas questões merecem atenção: o que significa uma


“parceria bacana”?/ Quais e o quão realmente interessadas estão as marcas
em apoiar causas como a do Movimento Orgulho Crespo Brasil?

Quando as pessoas perguntam porque a Marcha de São Paulo não mais


acontece (2018 e 2019) esta também é uma resposta plausível. Não acontece
porque, uma vez sem incentivo financeiro, nos recusamos a mobilizar uma
equipe de profissionais que trabalhe gratuitamente e se dedique a produzir e
pensar um evento que atingiu proporções nacionais (com articulações em SP,
RJ, MG, BA, GO, RS, PR, MA e ES) e que demanda staff, estudiosos sobre o
assunto, oficineiros e programação artística.

O que uma marca – já há alguns anos de “suposta” estrada e mercado – que


se diz fabricar produtos exclusivos e que tem como “missão” a qualidade, a
confiança e a satisfação de seus clientes entende por uma “parceria
bacana”? O que uma marca liderada por um homem branco que lança sua
linha “Orgulho Crespo” com uma equipe de venda inteiramente branca
entendem por representatividade, consumo e empreendedorismo negro?

Criar um produto e batizá-lo de “Orgulho Crespo”, no mínimo sem qualquer


responsabilidade no que tange essa escolha, é literalmente vestir a camisa de
uma pauta que não é a sua. Vale dizer que a marca criou camisetas “Orgulho
Crespo” e vestiu sua equipe para a promoção do produto durante a feira;
além de sublinhar que o mesmo serve para “reduzir o volume”. O cinismo e
271

a distorção de propósito pegam carona em um Movimento que vem tentando


questionar padrões de beleza e, sobretudo, discutir discriminação e racismo
a partir da estética num país majoritariamente de população negra.

É aquela velha e conhecida problemática e suas consequências: quantos


profissionais negros ocupam cargos na sua empresa? Quão diferente seria se
tais profissionais estivessem envolvidos no processo da ideia inicial ao
produto final? Quantos questionam sua ausência?

Novamente o privilégio branco e toda sua artimanha fantasiada de


ingenuidade ou de “eu não sabia”, seguido de “pedimos desculpas pelo
ocorrido”, dando continuidade e movendo a engrenagem com todos os seus
recursos, capitais e estratégias anti-éticas com o intuito de obter todo tipo de
proveito a partir de uma ideia que não é sua, e que sequer tem a intenção de
ser compartilhada com quem, teoricamente, deveria ser o primeiro a saber e
a participar.

É lamentável e desgastante ter que, de novo, explicar o óbvio. Atitudes e ações


deste tipo, cotidianamente, estacionam projetos pulsantes como o da Marcha
do Orgulho Crespo Brasil e de tantos outros, além de comprometer o
crescimento de iniciativas de protagonismo negro numa tentativa constante
de anular e diminuir tais profissionais, além de seguir nos reduzindo a meras
mercadorias, literalmente.

Definitivamente, isso não caracteriza ingenuidade, o desmantelo desta


estrutura racista e cheia de mau-caratismo de faz urgente e necessário. Chega
de querer vender e aparecer às custas de iniciativas negras sem incluir
negros. Não compactuamos.

Melhorem.

Movimento Orgulho Crespo Brasil


16 de outubro de 2019
272

Glossário do campo:

Alisamento – termo que designa os procedimentos que alisam os fios de maneira


permanente, alterando a estrutura destes. Para isto, são utilizados cosméticos, na forma
de creme ou pasta, que contém substâncias químicas como o tioglicolato de amônia, a
guanidina e os hidróxidos de sódio, cálcio ou lítio. O tempo de pausa varia conforme o
tipo de cabelo e o grau de alisamento desejado. O procedimento deve ser repetido
conforme o crescimento do cabelo, apenas retocando-se a raiz.

Ativador de Cachos – produto que pode vir na forma de creme, loção ou spray, utilizado
após a limpeza e condicionamento dos fios, para ressaltar o formato cacheado. Não deve
ser enxaguado.

Big Chop – significa, em português, “grande corte”. É o procedimento que se faz para
cortar todo cabelo processado por qualquer tipo de alisamento, relaxamento ou escova
progressiva. Pode ser realizado com uma tesoura ou com uma máquina de raspagem.

Cabelo tipo 1 – classificação utilizada para designar cabelos lisos.

Cabelo tipo 2 – classificação utilizada para designar cabelos ondulados, que pode ser
subdividida em 2A, 2B e 2C, indicando a intensidade da ondulação dos fios.

Cabelo tipo 3 – classificação utilizada para designar cabelos cacheados, que pode ser
subdividida em 3A, 3B e 3C, indicando o grau de cacheamento dos fios.

Cabelo tipo 4 – classificação utilizada para designar cabelos crespos, que pode ser
subdividida em 4A, 4B e 4C, indicando o grau de encrespamento dos fios.

Condicionador Higienizante – produto, em geral numa textura que varia do líquido ao


mais cremoso, elaborado para limpar os cabelos sem fazer espuma e sem retirar
excessivamente o óleo produzido pelo couro cabeludo.

Co-Wash – método de lavagem e limpeza que utiliza o condicionador higienizante em


vez do xampu comum. Os cabelos devem ser molhados e massageados com o produto da
mesma maneira que na lavagem tradicional.

Creme de Pentear – produto em textura creme utilizado após a limpeza e


condicionamento dos fios, para auxiliar no desembaraçar e na hidratação dos fios. Não
deve ser enxaguado.
273

Cronograma Capilar – programa de tratamento para o cabelo que segue 3 passos: a


hidratação, a nutrição e a reconstrução. Estes diferentes passos são realizados, em geral,
em distintos dias de lavagem, e sua frequência varia conforme o tipo de cabelo e o estado
dos fios (se são tingidos, descoloridos, se estão ressecados ou danificados).

Day After – significa, em português, “dia seguinte”. Refere-se ao dia consecutivo à


lavagem dos cabelos.

Escova Progressiva – método que alisa os fios gradualmente, por meio da aplicação de
um produto à base de formol (ainda que uso da substância não seja recomendado e
proibido pela ANVISA), carbocisteína ou ácido glioxílico. O cabelo, sob a ação do
produto, deve ser escovado com secador e posteriormente submetido ao uso da chapinha,
para reforçar o efeito liso. Em geral o procedimento é repetido no cabelo todo após alguns
meses, necessitando ser refeito com alguma constância.

Fator encolhimento – característica que varia conforme o grau de ondulação,


cacheamento ou encrespamento dos fios. Refere-se à diferença de comprimento que o fio
adquire quando é esticado. Os cabelos crespos, assim, são os que apresentam um fator
encolhimento maior.

Finalização – termo que designa as diferentes técnicas aplicadas no cabelo após a limpeza
e o condicionamento, com a função de modelar e secar os fios. Em geral as finalizações
envolvem a aplicação de um creme para pentear, ativador de cachos ou gel, algum tipo
de movimento com as mãos e às vezes o uso de instrumentos como secador e difusor.

Fitagem – técnica de finalização específica, que compreende o uso de algum creme ou


gel nos cabelos molhados, a separação das mechas de cabelo em “fitas” (passando-se os
dedos entre os cabelos ou uma escova para esticá-los), e a secagem do cabelo, com ou
sem o secador, após as “fitas” de cabelo serem cuidadosamente apertadas ou amassadas
com mãos, em um movimento de baixo para cima, de modo a formar cachos.

Gel (industrializado ou caseiro) – produto em textura gel ou gelatinosa, cuja função é


modelar e fixar o formato de cabelo (ondas, cachos ou crespos) por mais tempo. É
aplicado nos cabelos molhados após a limpeza e o condicionamento.

Hidratação – consiste em repor a água dos fios através da aplicação de máscaras de


tratamento destinadas a esta função.

Gelatina – produto semelhante ao gel.


274

Low Poo – embora a expressão seja uma marca registrada pela empresa Deva Curl,
tornou-se uma categoria corrente no campo para designar um tipo de lavagem e
tratamento dos cabelos. Low poo, abreviação de “low shampoo”, significa, em português,
“pouco xampu”: trata-se de substituir o uso de xampus com sulfato por xampus sem
sulfato, com substâncias limpantes mais suaves.

Máscara de Tratamento – produto, em textura creme, desenvolvido para tratar os cabelos


mais profundamente que o condicionador. Em geral envolve um tempo de pausa maior
que o do condicionador e uma frequência de uso menor, embora algumas pessoas façam
uso de máscaras toda vez que lavam os cabelos.

No Poo – embora a expressão seja uma marca registrada pela empresa Deva Curl, tornou-
se uma categoria corrente no campo para designar um tipo de lavagem e tratamento dos
cabelos. No poo, abreviação de “no shampoo”, significa, em português, “sem xampu”:
trata-se de abolir o uso de xampu e limpar os cabelos apenas com condicionadores
higienizantes.

Nutrição – consiste em repor certos nutrientes do cabelo por meio do uso de óleos vegetais
(como o óleo de coco e o azeite de oliva), manteigas vegetais (como a manteiga de karité)
ou de máscaras de tratamento produzidas para esta finalidade, que em geral contém os
ingredientes mencionados.

Óleo Mineral – é um óleo derivado do petróleo, que pode aparecer também sob os nomes
parafina líquida e vaselina líquida. É comumente usado pela indústria cosmética em
produtos para cabelo e para a pele com a alegação de que fornece hidratação e proteção
dos fios e da pele. Entretanto, de acordo com os saberes do campo, o óleo mineral não
hidrata os cabelos eficientemente e tende a se acumular nos fios, só sendo retirado por
xampus com sulfato.

Parabenos – são substâncias utilizadas como conservantes para prolongar a duração de


produtos e evitar a proliferação de microorganismos. De acordo com os saberes do campo,
há uma suspeita em torno dessas substâncias, que podem ser carcinogênicas. Por conta
desta suspeita, algumas marcas de cosméticos, especialmente aquelas que se denominam
verdes, naturais ou veganas, dizem não utilizar estas substâncias em suas formulações.
275

Permanente Afro – procedimento que envolve o uso de produtos à base de substâncias


químicas que transformam, de maneira permanente, os cabelos crespos em cabelos
cacheados.

Petrolatos – substâncias derivadas do petróleo muito utilizadas pela indústria cosmética


em produtos para cabelo e para a pele. De acordo com os saberes do campo, os petrolatos
não trazem benefícios reais aos cabelos e tendem a se acumular nos fios, só sendo
retirados por xampus com sulfato.

Produto Liberado – produtos que podem ser utilizados por quem segue as técnicas no
poo e/ou low poo, pois não contém nenhuma substância desaconselhada a quem as segue.

Química(s) – termo comumente usado para se referir a qualquer tipo de alisamento,


relaxamento e escova progressiva.

Reconstrução – consiste em repor certas proteínas do cabelo através do uso de máscaras


de tratamento ou de loções à base de queratina, ceramidas e outros ingredientes com
propriedades semelhantes.

Relaxamento – trata-se de uma técnica de transformação permanente da estrutura dos fios


que é bastante semelhante ao alisamento. Em geral as mesmas substâncias químicas são
utilizadas, variando o tempo de aplicação no cabelo da cliente conforme o tipo de cabelo
e o efeito desejado. As marcas e os cabeleireiros muitas vezes alegam que o relaxamento
é uma técnica mais suave que o alisamento, pois apenas “abre os cachos” e “reduz o
volume”.

Scab Hair – o termo, em inglês, é utilizado, em alguns casos, para designar o cabelo que
começa a nascer a partir do momento em que se interrompe o uso de química ou que se
corta a parte alisada. Segundo algumas interlocutoras do campo, não é raro que o cabelo
“novo”, que está nascendo, pareça ser difícil de tratar, de absorver hidratação e de tomar
forma, demorando alguns meses para retornar ao seu formato original. É difícil precisar
o significado da expressão, mas poderia ser grosseiramente traduzido, em meu
entendimento, como “cabelo em cicatrização”, uma vez que se refere a um cabelo que
está nascendo e que ainda irá se recuperar e se modificar após a interrupção das químicas.

Silicones insolúveis – tipo de silicone que não pode ser diluído em água. De acordo com
os saberes do campo, produtos que contêm estas substâncias só podem ser adequadamente
removidos dos fios por meio da limpeza com xampus com sulfatos.
276

Silicones solúveis – tipo de silicone que pode ser diluído em água. De acordo com os
saberes do campo, produtos que contêm estas substâncias podem ser removidos com uma
limpeza mais suave, feita com xampus sem sulfato ou com condicionador higienizantes.
Entretanto, há quem não recomende o uso destas substâncias por quem pratica no poo,
low poo e co-wash, por acreditar que todos os silicones devem ser evitados.

Sulfatos – substâncias limpantes, que fazem espuma abundante, comumente presentes em


xampus, sabonetes, detergentes e sabões em pó (em diferentes quantidades conforme a
função do produto).

Texturização – técnica de finalização específica, em geral utilizada para mudar o formato


do cabelo temporariamente, sem o uso de substâncias químicas. Pode envolver o uso de
secador, elásticos de cabelo e bigudinhos flexíveis (também chamados de flex rods). É
comumente utilizada por mulheres negras com cabelos crespos quando querem um visual
com cachos definidos.

Transição Capilar – processo em que se interrompe o uso de qualquer química para que
o cabelo cresça sem interferências em seu formato, seja ele crespo ou cacheado (ou até
ondulado). Este processo pode durar meses ou anos, a depender da paciência e da
disposição da pessoa, até que ela decida cortar toda a parte alisada do cabelo.

Umectação – consiste em aplicar óleos vegetais, como o óleo de coco ou o azeite de oliva,
nos cabelos secos e sujos, deixá-los agindo por algumas horas (podem ser as horas de
sono) e posteriormente higienizar e condicionar os cabelos.

Xampu sem sulfato – xampus fabricados com substâncias limpantes diferentes dos
sulfatos. Os sulfatos estão presentes na grande maioria das fórmulas de xampus e
sabonetes vendidos no mercado brasileiro, abrangendo marcas que praticam os mais
variados preços, desde os produtos mais baratos aos mais caros. De acordos com os
saberes do campo, os sulfatos, responsáveis pela formação de espuma abundante, são
substâncias que realizam uma limpeza forte demais nos cabelos crespos e cacheados,
ressecando-os. Assim, os xampus sem sulfato limpam os cabelos de forma mais suave e
fazem pouca ou nenhuma espuma.

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