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CAMPINAS
2022
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CAMPINAS
2022
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................p.14
“Quando você vai parar de alisar esse cabelo?”.............................................................p.14
Crespas e cacheadas: entre técnicas, diferenças e desigualdades..................................p.18
Recortando o problema de pesquisa..............................................................................p.23
Questões éticas e metodológicas...................................................................................p.29
a) Espaços online: influenciadoras, marcas e salões.............................................p.29
b) Espaços offline: feiras, eventos e cursos............................................................p.34
(Re)pensando meu lugar...............................................................................................p.38
Organização da tese.......................................................................................................p.46
2.4.4 – Makeda..................................................................................................p.120
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................p.248
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................p.251
ANEXOS...................................................................................................................p.270
Nota da Marcha do Orgulho Crespo à marca Hoka.....................................................p.270
Glossário do Campo....................................................................................................p.272
14
INTRODUÇÃO
Esta era uma pergunta que, nos idos de 2012 e 2013, era constantemente feita a
mim por alguns amigos próximos. De início, esta pergunta me gerava certo incômodo e
soava um pouco impertinente, pois parecia que as pessoas estavam querendo ditar o que
eu deveria ou não fazer em meu cabelo. Mas a verdade era que nesta época eu, uma
mulher branca com cabelos castanhos e cacheados que utilizava métodos alisantes desde
os 14 anos de idade, estava em uma situação de conflito com meus próprios fios, cansada
de utilizar químicas1 em meu cabelo.
Durante a infância e o início da adolescência meu grande desejo era ter cabelos
mais lisos e menos volumosos. Minha família sempre conta como, na época da primeira
infância, eu brincava de colocar fitas de tecido na cabeça para fingir que meus cabelos
eram lisos e compridos. Várias de minhas lembranças envolvendo o cabelo estão
relacionadas aos cuidados que minha mãe dispendia em meus fios quando eu era criança.
Ela, que não possui cabelos cacheados como os meus, se preocupava em buscar produtos
e acessórios que tratassem meus cabelos de forma adequada, em uma época em que a
variedade de produtos destinados a cabelos cacheados no mercado era pequena.
Adultos que eram meus parentes, amigos de meus pais e outras pessoas
conhecidas davam dicas – nem sempre solicitadas – de produtos que teriam,
supostamente, um efeito milagroso em meus fios, diminuindo o volume que eles
possuíam. O volume era, inclusive, uma grande fonte de incômodo para mim, e eu em
geral utilizava os cabelos sempre presos. Em certa ocasião, quando eu tinha por volta de
8 ou 9 anos, uma prima recomendou à minha mãe que me levasse em um salão do bairro
que ela frequentava, onde o cabeleireiro, supostamente, realizava cortes que “tiravam” o
volume do cabelo. Neste salão, o cabeleireiro, antes do corte, insistiu que era necessário
aplicar um produto alisante em meu cabelo, o que não foi permitido por minha mãe. O
1
Categorias êmicas, falas de interlocutores, nomes de marcas e empresas, títulos de eventos, sites, canais
do Youtube e estrangeirismos serão marcados em itálico. O termo químicas é uma categoria êmica e diz
respeito a qualquer produto ou procedimento que mude de modo permanente a estrutura dos fios,
modificando sua textura original.
15
corte de cabelo que ele realizou em mim, no final, foi desastroso e deixou o meu
cabelo com um comprimento desigual em várias regiões da cabeça, sem um formato
definido.
No início da adolescência, comecei a frequentar salões de beleza para fazer escova
e chapinha, ou seja, para alisar o cabelo através de métodos que envolvem o uso de calor
e cujo efeito liso é temporário. Eu só utilizava os cabelos soltos quando fazia estes
procedimentos. Sempre que havia uma oportunidade para ir a uma festa de aniversário de
colegas da escola, eu corria para marcar, com antecedência, um horário para escovar e
pranchar2 meus cabelos. Em minha mente, não era cabível comparecer a uma festa sem
arrumar – leia-se alisar – os cabelos.
O primeiro salão em que fui realizar uma escova rendeu-me uma experiência nada
positiva, que marcou minha memória. O cabeleireiro, ao olhar para meus cabelos longos
e cacheados, não disfarçou o desagrado. Enquanto penteava meus cabelos à seco, puxando
e esticando fios sem nenhum cuidado, jogando o jato de ar quente do secador sobre eles,
dizia que era impossível deixar um cabelo como o meu completamente liso.
Como eu queria resultados mais permanentes, em determinado momento aderi à
técnica do relaxamento. Trata-se de um procedimento químico que altera a estrutura dos
fios, esticando a fibra capilar e promovendo uma diminuição no volume do cabelo. Esse
procedimento foi realizado em meu cabelo, pela primeira vez, quando completei 14 anos,
sob recomendação de um cabeleireiro que atuava em uma rede de salões que na época era
muito conhecida em São Paulo. O profissional, meses antes desta ocasião, havia me
explicado que eu precisava tratar e fortalecer meu cabelo com produtos profissionais antes
de submeter-me ao relaxamento, recomendação que segui à risca, dada a minha vontade
de ter fios mais lisos e menos volumosos.
O relaxamento, no entanto, não conseguiu alisar completamente meus fios. Meu
cabelo tornou-se menos cacheado, ganhando mais comprimento, e teve seu volume
diminuído. Se eu quisesse exibir fios completamente lisos, ainda tinha que escovar e
pranchar os cabelos. Assim, esforcei-me para aprender a fazer escova e chapinha sozinha,
e passei a realizar estes procedimentos em casa com alguma frequência, especialmente
quando tinha compromissos nos finais de semana.
Recordo que após algumas semanas do primeiro relaxamento, tive que cortar
alguns centímetros de cabelo pois as pontas haviam ficado irremediavelmente danificadas
2
A chapinha também é formalmente conhecida como prancha, e ato de aplicar este instrumento nos cabelos
é chamado de “pranchar”.
16
Na Internet, encontrei alguns blogs escritos por mulheres com cabelos crespos e
cacheados que haviam parado de alisar os cabelos. A iniciativa destas mulheres me
estimulou a pensar em como seria ter um visual que não fosse dependente de químicas e
despertou minha curiosidade a respeito de como seria me olhar no espelho utilizando
cabelos cacheados novamente. Deparei-me então o termo transição capilar, que se refere
ao processo de interromper o uso de técnicas alisantes para que o cabelo cresça em sua
textura natural. Munida de algumas dicas e informações, decidi parar com os
procedimentos químicos e iniciei o processo de transição. Isto se deu pouco tempo após
a última aplicação da progressiva, que realizei em meados de 2013.
Através da Internet, encontrei uma cabeleireira especialista em cabelos cacheados
que trabalhava com cabelos em transição e com cabelos naturais. No blog desta
profissional, passei a ler artigos sobre cabelos cacheados e a acompanhar os cortes que
ela realizava nas clientes que haviam abandonado as químicas. Criei coragem para
realizar o big chop, ou “grande corte”, em português, procedimento em que o cabelo
alisado é completamente eliminado através do corte. Assim, em uma tarde de agosto de
2014, fui ao salão desta cabeleireira com o meu cabelo comprido em transição – metade
cacheado e metade alisado – e saí de lá com o cabelo totalmente cacheado e em um
comprimento consideravelmente mais curto, na altura do queixo, algo que era novo para
mim.
A cabeleireira executou um serviço muito diferente em relação ao que eu estava
acostumada nos salões de cabeleireiro mais tradicionais. Os fios foram cortados a seco,
lavados e condicionados com produtos especialmente desenvolvidos para cabelos crespos
e cacheados. Ela utilizou um xampu que não fazia espuma, parecido com um creme.
Depois da lavagem fui orientada a me curvar em direção ao chão, deixando a cabeça para
baixo, enquanto a cabeleireira aplicava em meus cabelos molhados um gel modelador de
cachos. Ela apertava e amassava com cuidado os meus fios, de modo a estimular a
formação de cachos definidos. Logo em seguida, colocou-me em um secador vertical,
semelhante a um capacete, para que meu cabelo secasse mais rapidamente e eu pudesse
visualizar melhor o resultado.
O resultado me agradou muito. Meus cabelos voltaram ao formato encaracolado
e aos poucos fui aprendendo a cuidar deles de outra forma, utilizando produtos específicos
para fios cacheados e testando novos penteados e acessórios. Conforme meus fios
cresciam, mais encaracolados ficavam. Passei a receber muitos elogios de amigos,
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familiares e de outras pessoas próximas, que notavam a transformação pela qual eu tinha
passado.
Após a defesa do mestrado, que ocorreu em dezembro de 2014, comecei a pensar
em uma futura proposta de pesquisa para o doutorado. Embora as reflexões sobre a
mercado de moda plus-size não tivessem se esgotado, questionei-me, por algum tempo,
se de fato era minha vontade continuar com aquele objeto de pesquisa. A minha
experiência particular com o processo de transição capilar e a adesão ao cabelo natural
descortinaram um novo cenário para meu olhar. Parecia-me, inicialmente, que este objeto
proporcionaria um outro recorte para questões que eu havia trabalhado anteriormente, que
envolviam a articulação entre gênero, corpo, mercado e consumo, além de processos de
racialização, que não haviam sido trabalhados de modo prioritário na pesquisa de
mestrado. Assim, embarquei em novo projeto de pesquisa, que resultou nesta tese.
Esta tese tem como pano de fundo um cenário em que mulheres negras e brancas,
em sua maioria jovens, estão abandonando as técnicas de alisamento e aderindo a um
visual considerado natural, que ressalta a forma crespa ou cacheada dos fios.
Alisamentos, relaxamentos, escovas progressivas e uma série de outros procedimentos
que esticam os fios e diminuem seu volume estão sendo deixados de lado em favor da
adoção de técnicas de tratamento e de produtos que não alteram a estrutura dos cabelos.
Estas mulheres, que se autodenominam como crespas e cacheadas, atribuem
sentidos políticos ao cabelo e à estética em uma discussão que articula gênero e raça,
trazendo questões relacionadas à discriminação racial, aos padrões de beleza e ao controle
sobre seus próprios corpos. Cabelo e estética são, portanto, politizados e compreendidos
como mais que mera aparência.
Os termos crespas e cacheadas são categorias que também foram adotadas pelo
mercado da beleza e elas expressam uma diferenciação que prioriza marcar as distintas
texturas capilares3. Ainda que o termo crespa seja comumente mais associado às mulheres
que se identificam como negras ou pretas, as categorias crespas e cacheadas referem-se
3
Em certos contextos, a categorização pode incluir também os cabelos ditos ondulados, considerados um
tipo intermediário entre os cabelos lisos e os cacheados e crespos.
19
4
O termo influenciador digital é uma categoria de uso recente, que serve para designar as pessoas que
trabalham produzindo conteúdos (como vídeos, textos e imagens) sobre os mais variados temas em
plataformas digitais como o Youtube e Instagram. Para uma discussão mais aprofundada sobre este tema,
ver o Capítulo 4.
5
Cabeleireiros especializados em cabelos crespos e cacheados defendem que estes não devem ser cortados
da maneira convencional – molhados e previamente lavados – e sim com os fios completamente secos e
com o máximo de definição de cachos que a cliente conseguir com os produtos que utiliza, para
posteriormente serem lavados e finalizados.
20
interesse em praticar as técnicas de no e low poo6, cada vez mais popularizadas. Grupos
no Facebook, blogs, perfis no Instagram e canais no Youtube dedicados aos cabelos
crespos e cacheados constituem em grande medida estas redes.
No poo, abreviação da expressão “no shampoo” (em português, “sem xampu”), é
uma técnica em que os xampus são abolidos, lavando-se os cabelos com condicionadores
higienizantes. As pessoas adeptas a este regime de tratamento acreditam que os xampus
comuns, em geral formulados com sulfatos e outros agentes de limpeza considerados
fortes, ressecam os cabelos crespos e cacheados em demasia, danificando os fios com seu
uso contínuo. Já o low poo (abreviação de “low shampoo”, em português, “pouco
xampu”) é uma técnica que permite o uso esporádico de xampus sem sulfatos, formulados
com agentes de limpeza considerados mais suaves.
Ambas as técnicas preconizam o uso de produtos com ingredientes tidos como
mais naturais, como óleo vegetais e extratos de flores e frutas, desaconselhando silicones,
petrolatos, óleo mineral e parafina líquida. A marca Deva Curl, focada em cabelos crespos
e cacheados, alega ser a criadora destas técnicas e as registrou como marcas, mas os
termos no poo e low poo se difundiram a ponto de serem descolados da marca e tornarem-
se categorias êmicas.
Os espaços online, mais que discutir sobre técnicas e produtos, trazem reflexões
acerca das pressões e expectativas sociais em torno do cabelo. Crespas e cacheadas
compartilham experiências de vida marcadas por uma relação conturbada com o próprio
cabelo e pela tentativa de se aproximar de ideais estéticos e morais divulgados pela mídia
e pelo mercado. Nestes ideais, reforçados pelo contexto familiar, escolar e profissional, o
cabelo liso, brilhante e com um volume controlado é associado à beleza, à feminilidade,
à limpeza, à elegância, à disciplina e até mesmo ao profissionalismo.
Os cabelos crespos, em particular, são os cabelos socialmente vistos como um
problema, como algo que deve ser disciplinado e modificado, que não pode permanecer
em seu estado natural. Os relatos de mulheres negras mostram que a iniciação nos
processos de alisamento muitas vezes começa cedo, quando os cabelos crespos da menina
são submetidos ao pente quente ou aos cremes relaxantes pelas mãos da mãe ou de outras
parentes. Como bell hooks argumenta, em seu clássico texto “Alisando nosso cabelo”, o
cabelo crespo é, para muitas mulheres negras,
6
Utilizo também os termos “rotinas” e “métodos” como sinônimos de “técnicas” quando me refiro ao no e
low poo.
21
de alisamento, criando uma diferença de textura com relação à parte alisada, mas porque
esta raiz crescendo remete ao cultivo de uma ancestralidade africana, de uma conexão
com a origem e a cultura de seus antepassados. Contudo, o abandono das técnicas de
alisamento e relaxamento pode estar simplesmente relacionado a um processo de
afirmação de uma identidade negra marcada pelo posicionamento estético-político.
Reconhecer-se como negra, nesse caso, incluiria o abandono do alisamento e a
valorização de uma estética dos crespos e cacheados. Da mesma forma, o empoderamento
ao qual referi acima pode articular raça e gênero no modo como os cabelos são acionados
por mulheres negras como expressão de processos subjetivos.
Para além dessa articulação, há ainda outras motivações e significados
mobilizados pelas interlocutoras desta pesquisa que não são mutuamente excludentes e
nem contraditórios entre si. Mais de uma razão podendo ser elencada em torno da adesão
ao cabelo natural. Para algumas mulheres, por exemplo, a saúde também pode ser
mobilizada, já que alguns dos principais métodos alisantes disponíveis no mercado
envolvem a utilização de substâncias que podem provocar queimaduras, descamações e
alergias no couro cabeludo e nas mãos. As químicas, especialmente com a repetição das
aplicações, também podem danificar os cabelos, provocando quebra, queda, alteração na
cor e na porosidade dos fios, tornando-os mais frágeis e ressecados. No campo, há quem
ressalte, inclusive, que as consumidoras não têm informações suficientes a respeito dos
efeitos que estes produtos causam no organismo. Assim, o abandono dos alisamentos
pode ser uma busca por um couro cabeludo e fios mais saudáveis e por tratamentos
considerados mais seguros e com menores riscos à saúde.
Outra questão que aparece como motivação são o tempo e o dinheiro investidos
nos processos de alisamento. Uma única aplicação de química, a depender do tipo de
produto, pode chegar a consumir algumas horas do dia de uma pessoa em casa ou em um
salão. A manutenção das químicas pode variar, mas em geral recomenda-se que o
procedimento seja realizado na raiz crescida algumas vezes por ano, para que o visual do
cabelo fique uniforme, sem diferença de textura entre as raízes e o comprimento. Para
algumas pessoas, torna-se cansativo e custoso manter esta rotina, que exige disciplina,
paciência, disponibilidade de tempo, habilidades específicas e dinheiro investido.
Como vemos, são diversas as motivações relacionadas à adesão ao cabelo natural
no campo da pesquisa. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que muito comumente
essas motivações e o processo para se chegar no cabelo natural são muitas vezes
compreendidos pelas mulheres como um ato de empoderamento e como uma atitude
23
7
Pesquisas voltadas para o campo da Internet (HINE, 2000; MILLER, 2004b; RIFIOTIS, 2010; BELELI,
2012) ressaltam o caráter produtivo das interações online, destacando a relação de proximidade e
continuidade entre contextos online e offline. Sobre internet e produção de identidades e sujeitos políticos,
ver Carolina Parreiras (2007), Carolina Ferreira (2015) e Thiago Falcão (2017).
8
Pesquisas recentes produzidas no âmbito do Pagu - Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP e do
Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da USP apontam para esta proliferação. Em meu
mestrado (BETTI, 2014) observei como a Internet proporciona um espaço de discussão e reconhecimento
para pessoas que não se identificam com os padrões estéticos relacionados à forma física propagados pelas
mídias mais tradicionais.
25
Outro aspecto que coloca esta tese em diálogo com os estudos anteriormente
realizados sobre o tema desde uma perspectiva singular reside sobre o fato de que os
estudos sobre os salões étnicos debruçaram-se sobre a produção de uma estética negra e,
principalmente, sobre as experiências de mulheres negras com seus cabelos e com as
técnicas de cuidado e transformação dos fios crespos. Nesta tese, compartilho das mesmas
preocupações, sendo as mulheres negras, crespas ou cacheadas, personagens centrais no
campo analisado: suas experiências e dilemas, as questões políticas que colocam, bem
como as práticas que exercem sobre seus cabelos, são fundamentais.
Contudo, as mulheres brancas também aparecem como personagens no campo
analisado. Para além do fato de mulheres brancas também manipularem seus cabelos,
muitas interlocutoras cacheadas se identificam como brancas, e o mercado dirigido aos
cabelos crespos e cacheados também produz produtos e serviços dirigidos a elas, ainda
que não de forma explicitamente nomeada ou exclusiva.
Da mesma maneira, muitos salões especializados em cabelos crespos e cacheados
que surgiram nos últimos anos não se definem como salões étnicos e não são lidos pelo
público deste modo, mas, antes, como salões especializados em cabelos cacheados e
crespos naturais. É preciso dizer que os salões étnicos, ainda que focados nos cabelos
crespos, oferecem também serviços de alisamento e relaxamento.
Já os salões especializados em cabelos crespos e cacheados naturais alegam
oferecer serviços diferenciados em relação aos salões de cabeleireiro convencionais, onde
as técnicas dirigidas ao tratamento de cabelos lisos são aplicadas em quaisquer texturas
capilares, sem distinção. O marcador aqui, ou seja, o aspecto que os diferencia dentro do
mercado da beleza, não é o foco exclusivo na estética negra, mas sim a especialização em
texturas capilares crespas e cacheadas e a rejeição às técnicas de alisamento dos fios.
Os rótulos de produtos e ações de publicidade mais tradicionais da maioria das
marcas também trazem imagens de modelos brancas com cabelos cacheados. As
campanhas digitais das marcas, divulgadas em redes sociais como Instagram e Youtube,
são realizadas em parceria com influenciadoras digitais negras e brancas, que apresentam
diferentes texturas de cabelo, passando pelo crespo e cacheado, muitas vezes também
incluindo o ondulado. Ademais, alguns dos profissionais cabeleireiros que se tornaram
referência no mercado da beleza direcionado aos cabelos crespos e cacheados são
mulheres ou homens brancos que, além de serem proprietários de salões especializados,
ministram cursos de formação profissional para quem deseja trabalhar com cabelos
crespos e cacheados.
26
9
A preterição das mulheres lidas como pretas é discutida mais amplamente em Mariza Correa (1996).
10
Utilizo o termo “não-negras”, ao lado do termo “brancas”, para atrair a atenção para os problemas de
classificação racial do mundo social que atravessam o campo da pesquisa: há pessoas, que, embora tenham
sua negritude colocada sob suspeição pelo olhar alheio, não se veem como brancas.
27
11
Nos Estados Unidos, conhecidas profissionais da beleza negras, como Madam C. J. Walker e Annie
Malone, construíram uma atuação política importante no que concerne ao apoio que forneceram Movimento
pelos Direitos Civis e às ações filantrópicas e projetos educacionais que encabeçaram nas comunidades
onde estavam inseridas. Giovana Xavier (2021) aponta que Walker e Malone se utilizaram criativamente
de sua posição social de marginalidade e das conexões entre estética e política, transformando as práticas
de cuidado capilar em negócios altamente lucrativos.
29
12
As autoras propõem a noção de field events ao se darem conta de que noções como as de etnografia
multisituada (MARCUS, 1995) e de etnografia virtual ou digital (HINE, 2000) não eram suficientes para
explicar a complexidade do trabalho de campo desenvolvido em suas pesquisas.
13
Agosto de 2017 foi o mês em que iniciei o trabalho de campo comparecendo presencialmente a um evento
promovido por uma marca de produtos para cabelo e outubro de 2021 foi o período em que concluí o
acompanhamento de um curso online ministrado por um cabeleireiro.
30
tutoriais sobre como cuidar dos cabelos crespos e cacheados e com dicas a respeito de
produtos, técnicas e acessórios que podem ser utilizados para obter os melhores resultados
nos fios. Também fazem resenhas de produtos novos no mercado, apresentam os produtos
que recebem gratuitamente das marcas de cosméticos e fazem parcerias comerciais com
empresas e eventos do mercado da beleza, divulgando produtos e serviços às suas
seguidoras14.
Durante a pesquisa acompanhei diversos canais no Youtube produzidos por
mulheres crespas e cacheadas, como os de Gabi Oliveira15, Gleici Duarte16, Xan
Ravelli17, Rose Hapuque18, Sarah Oliveira19, Mari Vasconi 20, Mari Morena21, Jacy
Carvalho22, Rayza Nicácio23, Natály Neri24 e Ana Paula Xongani25. Ainda que nem todas
estas influenciadoras tenham como foco apenas o assunto cabelos, este tema está presente
de maneira relevante nos conteúdos que produzem e elas são publicamente reconhecidas,
no campo analisado, como referências importantes no quesito estética e cabelos. Estas
mulheres também possuem perfis em outras plataformas digitais, como o Instagram, onde
também as acompanhei.
Gabi Oliveira, Xan Ravelli, Rose Hapuque, Mari Morena, Jacy Carvalho, Rayza
Nicácio, Natály Neri e Ana Paula Xongani são mulheres que se identificam como negras
ou pretas e que possuem cabelos que variam do crespo ao cacheado. Sarah Oliveira, Mari
Vasconi e Gleici Duarte são mulheres que se identificam como brancas e que possuem
cabelos que variam do cacheado ao ondulado.
Embora seja possível analisar os conteúdos e as trajetórias das influenciadoras
crespas e cacheadas de modo individual, considerei fundamental, tendo em vista os
objetivos traçados para esta pesquisa, observar o trabalho produzido pelas
influenciadoras de um ponto de vista mais amplo. As influenciadoras constroem uma
espécie de rede a partir de suas atuações, produzindo conteúdos juntas, indicando os
14
Seguidores é um termo que se refere às pessoas que acompanham de perto o trabalho de influenciadores
digitais. Formam uma espécie de comunidade de fãs que seguem ou se inscrevem nos perfis e canais que
os influenciadores possuem nas plataformas digitais.
15
Disponível em <https://www.youtube.com/c/GabiDePretas>. Último acesso em 29/03/22.
16
Disponível em <https://www.youtube.com/c/gleiciduarte>. Último acesso em 29/03/22.
17
Disponível em <https://www.youtube.com/c/SoulVaidosa>. Último acesso em 29/03/22.
18
Disponível em <https://www.youtube.com/c/RoseHapuque>. Último acesso em 29/03/22.
19
Disponível em <https://www.youtube.com/user/SarahB612>. Último acesso em 29/03/22.
20
Disponível em <https://www.youtube.com/c/MariVasconi>. Último acesso em 29/03/22.
21
Disponível em <https://www.youtube.com/c/MariMorenaM>. Último acesso em 29/03/22.
22
Disponível em <https://www.youtube.com/c/JacyCarvalho>. Último acesso em 29/03/22.
23
Disponível em <https://www.youtube.com/c/Rayzanicacio>. Último acesso em 29/03/22.
24
Disponível em <https://www.youtube.com/c/NatalyNeri>. Último acesso em 29/03/22.
25
Disponível em <https://www.youtube.com/c/AnaPaulaXongani>. Último acesso em 29/03/22.
31
canais e perfis de umas das outras às suas seguidoras, fazendo parcerias comerciais com
as mesmas marcas e trabalhando nos mesmos eventos do mercado da beleza e campanhas
publicitárias de cosméticos.
O Youtube, plataforma online de hospedagem e compartilhamento de vídeos, não
exige que os usuários tenham um cadastro 26, um convite ou realizem algum pagamento
para acessar os conteúdos publicados. Qualquer pessoa com uma conexão de Internet
pode acessar o site ou o aplicativo da plataforma do computador, tablet ou celular, digitar
um assunto ou um nome no mecanismo de busca e encontrar uma infinidade vídeos sobre
o que deseja saber. Os vídeos de um canal em particular podem ser encontrados e
acessados através deste mecanismo de busca, por meio de uma sugestão da própria
plataforma ou ainda por meio de um link compartilhado.
Publicar um vídeo no Youtube, assim, significa colocar no ar um conteúdo de
caráter público e de fácil acesso. As pessoas que possuem canais no Youtube têm a
possibilidade de ganhar dinheiro, fama e reconhecimento público com a visualização de
seus vídeos e com as inscrições das pessoas que acompanham seus canais: quanto mais
visualizações e inscritos27, melhores resultados. A lógica da plataforma não é a
privacidade, e sim a visibilização, a divulgação e a publicidade dos conteúdos.
Por conta destes fatores, acompanhei os vídeos produzidos pelas youtubers
mencionadas considerando que estes conteúdos são públicos e que não seria necessária
nenhuma autorização especial para a realização de minhas análises. No caso de vídeos
que tiveram seu conteúdo analisado de maneira mais minuciosa, realizei procedimentos
como transcrição de áudio e screenshots da tela. Nos casos em que os screenshots exibiam
perfis e comentários de terceiros, de seguidoras dos canais, fotos, nomes e dados sensíveis
que poderiam identificar as pessoas foram ocultados, de modo a preservar suas
identidades.
26
Não é exigido cadastro exceto se a plataforma considerar que o conteúdo seja impróprio para menores
de 18 anos. Neste caso, para conseguir o acesso, é preciso realizar um login, para que a idade do usuário
seja verificada. Não discutirei aqui os critérios da empresa para estabelecer esta conduta, mas destaco que
em nenhum momento da pesquisa deparei-me com esta exigência.
27
Inscritos são os seguidores que assinam o canal. Esta assinatura não requer pagamento e possibilita que
que os inscritos recebam, por exemplo, alertas sobre quando novos conteúdos são publicados.
32
28
Salon Line é uma marca brasileira, que pratica preços populares, sendo facilmente encontrada em lojas
de cosméticos, supermercados e farmácias. Possui linhas de produtos destinados a diversos tipos de cabelos.
29
Seda é uma grande marca da companhia multinacional Unilever e pratica preços populares. É facilmente
encontrada em lojas de cosméticos, supermercados e farmácias e possui linhas de produtos destinados a
diversos tipos de cabelos.
30
Deva Curl é uma marca criada no Estados Unidos que desenvolve produtos exclusivamente voltados para
cabelos crespos, cacheados e ondulados. Seus preços são bastante elevados e ela é muito utilizada em salões
de cabeleireiro, embora também seja vendida para as consumidoras.
31
Makeda é uma marca nacional que fabrica produtos pensados para cabelos crespos e cacheados e que
possui preços um pouco elevados. Seus produtos podem ser comprados através da loja virtual própria ou
por meio de revendedoras que atuam em diversos estados do país.
32
Soul Power é uma marca nacional que desenvolve produtos exclusivamente voltados para cabelos
crespos, cacheados e ondulados. Ela é facilmente encontrada em lojas de cosméticos e pratica preços que
são considerados acessíveis por muitas consumidoras crespas e cacheadas.
33
Inoar é uma marca brasileira que fabrica produtos destinados a vários tipos de cabelos. Ela é facilmente
encontrada em lojas de cosméticos, farmácias e em algumas redes de supermercados. Trata-se de uma marca
que pratica preços considerados acessíveis. Ela exporta algumas de suas linhas para outros países do
continente americano e também para países da Europa.
34
Lola Cosmetics é uma marca brasileira que desenvolve produtos para diversos tipos de cabelos. Seus
produtos são facilmente encontrados em lojas de cosméticos, e, embora ela possua algumas linhas que
objetivam ser mais acessíveis, seus preços não são considerados populares pelas consumidoras.
33
35
Um perfil aberto no Instagram significa um perfil que pode ser visualizado por qualquer pessoa. Um
perfil privado, fechado, por outro lado, significa que o conteúdo só pode ser visualizado se o perfil em
questão permitir, aceitando uma espécie de solicitação de amizade enviada pela pessoa.
36
Os números da Beauty Fair são impressionantes. Em 2018, por exemplo, a feira reuniu cerca 2 mil
marcas, foi visitada por mais de 182 mil pessoas e gerou 690 milhões de reais em negócios.
35
minha pesquisa se tratava de um estudo acadêmico sobre o mercado para cabelos crespos
e cacheados, que a intenção era apenas acompanhar as palestras e não ganhar as sacolas
com produtos da marca.
Os encontros realizados ou patrocinados pelas marcas de cosméticos que fabricam
produtos para cabelos crespos e cacheados dos quais pude participar foram eventos muito
menores em comparação à Beauty Fair. O objetivo destes eventos é, a partir de uma
atmosfera de maior proximidade e intimidade, apresentar a marca e os produtos às
consumidoras, influenciadoras ou aos cabeleireiros, mostrando os lançamentos e
ensinando a como utilizar os produtos no salão ou em casa. Os encontros direcionados às
influenciadoras e consumidoras costumam ser divulgados nas redes sociais das marcas e
em geral têm a entrada franca, bastando solicitar uma vaga preenchendo um formulário
virtual ou enviando um email. Já os encontros pensados para atrair os profissionais, ao
contrário, muitas vezes pedem o pagamento de uma taxa de inscrição, requerendo uma
compra realizada via Internet. Durante a pesquisa tive a oportunidade de participar de
alguns eventos desta natureza, alguns deles promovidos pelas marcas mencionadas
anteriormente: não os menciono aqui porque, em algumas passagens da tese, os nomes
das marcas e dos eventos foram trocados por questões éticas.
Em adição aos eventos relacionados ao mercado da beleza, me mantive atenta, na
medida do possível, aos encontros promovidos por influenciadoras digitais e aos eventos
sobre diversidade racial e consumo da população negra promovidos por outros atores do
mercado, não necessariamente ligados ao mercado da beleza de forma direta.
Em fevereiro de 2019 pude participar de um pequeno encontro promovido pela
influenciadora Gleici Duarte e pela loja de produtos para cabelos ruivos Beleza Ruiva,
em Mogi das Cruzes. Alguns dias antes deste encontro, entrei em contato com Gleici por
meio de seu perfil no Instagram – onde ela anunciou o evento – e enviei-lhe mensagem
perguntando se ela concordava com minha presença no encontro. Gleici foi solícita e
disse-me que eu seria muito bem-vinda. O encontro durou poucas horas e foi difícil
manter uma conversa com Gleici, que tinha um tempo curto para ficar no local e
permaneceu cercada de seguidoras. Este foi o único encontro do qual pude participar,
uma vez que as influenciadoras digitais crespas e cacheadas são de diversos estados do
Brasil e nem sempre possuem agenda para marcarem encontros com seguidoras que
moram no estado de São Paulo.
Quanto aos eventos promovidos que tratam dos temas diversidade racial e/ou
consumo da população negra, eles foram importantes para a pesquisa na medida em que
37
me permitiram ter uma visão mais ampla das discussões sobre questões raciais
empreendidas por atores do mercado. Em 2018 e 2019 participei de quatro eventos deste
gênero. O primeiro deles foi lançamento da pesquisa “A Voz e a Vez – Diversidade no
Mercado de Consumo e Empreendedorismo”, realizado em novembro de 2018 na Praça
das Artes, no centro de São Paulo. O segundo, o Fórum Diversifique - Afro Consumo e
Inclusão Racial, também realizado em novembro de 2018, no Teatro Santander,
localizado no bairro da Vila Olímpia, região nobre da cidade. O terceiro evento foi o
seminário Raça e Mercado: uma transformação econômica, apresentado da Fundação
Getúlio Vargas, no âmbito da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, em
maio de 2019. Por fim, também compareci, em dezembro de 2019, à décima sétima edição
da Feira Preta, evento de caráter cultural, artístico e comercial direcionado a pessoas
negras, realizada no Memorial da América Latina. Em todos estes eventos, de alguma
maneira, discussões relacionadas aos cabelos e ao mercado da beleza acabaram
emergindo durante os debates. Ainda, em novembro de 2017 pude acompanhar um
encontro de dois dias promovido por Nanda Cury e Neomísia Silvestre, idealizadoras da
Marcha do Orgulho Crespo, no Sesc Interlagos, quando tive a oportunidade de conversar
com elas37.
Desde o início da investigação estava prevista a etnografia em salões
especializados em cabelos crespos e cacheados. A ideia era iniciar esta entrada em campo
nos primeiros meses de 2020, através dos contatos que eu vinha construindo com alguns
profissionais de salões especializados em cabelos crespos e cacheados. Todavia, este
processo foi interrompido pela pandemia de COVID-19, que obrigou pesquisadores a
pararem suas pesquisas de campo e cabeleireiros a fecharem seus salões a partir de março
de 2020 por conta das medidas sanitárias restritivas determinadas pelos governos.
De modo a tentar lidar com esta situação da melhor maneira possível, procurando
outros caminhos frente às limitações impostas, decidi participar, em 2020 e 2021, de
cursos online ministrado por alguns cabeleireiros que iniciaram empreendimentos
educacionais na área. Assisti a algumas aulas gratuitas, temporariamente hospedadas em
37
No início da pesquisa minha intenção era acompanhar de perto as edições da Marcha do Orgulho Crespo
na cidade de São Paulo, o que infelizmente não foi possível. Na ocasião da edição de 2017, estive presente
do Seminário Internacional Fazendo Gênero, em Florianópolis, apresentando uma comunicação relativa à
esta pesquisa. Nos anos de 2018 e 2019, não foram realizadas edições na cidade de São Paulo: no ano de
2018, a organização da Marcha comemorou a aprovação do projeto de lei que criou o Dia do Orgulho
Crespo e não saiu às ruas, e no ano de 2019 a página da Marcha no Facebook focou-se na divulgação da
Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, que ocorreu no fim do mês de julho e tratou de questões
relativas ao desmonte de direitos e violação de direitos humanos.
38
uma relação de proximidade com uma série de questões que foram fundamentais para o
desenvolvimento desta investigação.
Eu já tinha voltado aos cachos anos antes de ter iniciado a pesquisa e já era uma
praticante experiente das rotinas no poo e low poo, sendo também uma espécie de
consultora amadora para amigas que me pediam dicas sobre como cuidar dos cabelos
cacheados, como passar pela transição capilar e como iniciar as rotinas. Em campo, eu
consegui navegar com certa facilidade nos cursos, eventos e palestras e por vezes
auxiliava outras pessoas a compreenderem os tópicos que eram abordados nestas
ocasiões. Desde o início da pesquisa eu já tinha um repertório considerável quando o
assunto eram os métodos de alisamento, os produtos e técnicas específicos para cabelos
cacheados e as marcas atuantes no mercado brasileiro. Esta proximidade, certamente
vantajosa para que a pesquisa pudesse ser desenvolvida da maneira como feita, contudo,
também gerou dificuldades específicas, sobretudo no que diz respeito à escrita desta tese.
A proximidade e a familiaridade com determinadas categorias êmicas me obrigou
a rever e a reelaborar meu trabalho por diversas vezes. Em primeiro lugar, procurei
produzir um texto que explicasse, adequada e didaticamente, um universo de técnicas e
práticas com o qual uma parte das leitoras e leitores deste trabalho, ao contrário de mim,
não possuem familiaridade, contato ou mesmo interesse. Como tornar interessante e
instigante um diálogo sobre alisantes, técnicas de finalização e formulações de produtos
para cabelos? Como explicar as detalhadas classificações sobre os diferentes tipos de
cabelos não-lisos sem que isso pareça maçante ou irrelevante? Questões como estas me
assombraram durante a escrita deste trabalho e, de certa forma, ainda me rodeiam.
Em segundo lugar, procurei ao máximo definir limites entre minha voz e as vozes
do campo. Falar sobre temas que permeiam minhas experiências e conhecimentos prévios
foi difícil na medida em que, em muitos momentos, meus argumentos e explicações
confundiram-se com os discursos êmicos, como se eu estivesse automaticamente
encampando as narrativas produzidas em campo. Esta é uma questão que creio não ter
sido completamente resolvida, mas que procurei problematizar da maneira que foi
possível.
As questões e dificuldades decorrentes proximidade a familiaridade, todavia, não
esgotam as reflexões que pretendo realizar aqui. Durante a investigação outras questões
relevantes emergiram a partir dos trânsitos e das relações estabelecidas com os diferentes
interlocutores de pesquisa. Neste sentido, quem sou, minha aparência, minha figura
enquanto pesquisadora e minha posição em termos de gênero, raça e classe são dimensões
40
que estruturaram tanto o meu olhar para o campo quanto os olhares do campo dirigidos a
mim.
A posição do pesquisador/a, é preciso ressaltar, não é neutra e que o corpo do/a
pesquisador/a não é mero acessório, mas, ao contrário, é marcado em campo. O modo
como o/a pesquisador/a é percebido em termos de gênero, sexualidade, raça, classe e
geração é parte constituinte da pesquisa, de sua inserção no campo analisado e de sua
interação com os interlocutores.
Na pesquisa que realizei no mestrado (BETTI, 2014), com interlocutoras que se
identificavam como gordinhas ou gordas, minha forma física era objeto de comentários,
especulações e questionamentos e interferiu significativamente na maneira como fui
recebida e tratada durante a realização da investigação. Uma interferência que, longe de
ser impeditiva ou restritiva, atuou de maneira produtiva, possibilitando-me realizar o
estudo a partir de um lugar determinado, afastado de pretensões irreais de neutralidade.
As interlocutoras desta época, em sua maioria mulheres brancas, jovens e de classe
média como eu, me caracterizavam como magrinha, e embora esta marcação não tenha
atuado de forma negativa, tendo, com o passar do tempo, deixado de ocupar um lugar tão
primordial nas relações em que construí em campo, ela nunca foi esquecida em nenhum
momento da pesquisa – nem por mim, nem por elas. Durante a realização da pesquisa,
distanciamentos e proximidades marcaram meus trânsitos e relações neste campo.
Todavia, especialmente em relação à questão do pertencimento racial, olhando
retrospectivamente, realizei a pesquisa de mestrado e experimentei aquele campo a partir
de um lugar racial não-marcado. O fato de eu me perceber e ser socialmente percebida
como uma pessoa branca não foi problematizado por mim ou pelas interlocutoras. Minha
experiência pessoal com a interrupção dos alisamentos e a transição capilar, inclusive,
ocorreu durante a realização desta pesquisa, e este processo não foi tão marcante no
contexto dos trânsitos e relações que estabeleci neste campo.
Ainda que desde o mestrado eu estivesse familiarizada com a abordagem
construcionista das interseccionalidades (PISCITELLI, 2008; PRINS, 2006), sobretudo
abordagens como as de Anne McClintock (2010), que priorizam a análise da articulação
entre múltiplas categorias sociais de diferenciação, na construção do projeto de doutorado
percebi que tinha pouca familiaridade com as análises empreendidas por intelectuais
negras e com a crítica a um suposto caráter universal da categoria “mulher”.
Reconhecendo uma lacuna importante em minha formação e em minha atuação
como pesquisadora, considerei que o meu conhecimento com relação às perspectivas
41
possível discutir sobre questões minoritárias desde uma posição majoritária, situando-se
enquanto sujeito e desnaturalizando os aspectos políticos de tal posição. Não se trata de
falar pelos grupos minoritários ou de ocupar o lugar destes, e sim de levar a sério as
propostas feministas e feministas negras a partir de uma perspectiva que é, a princípio,
majoritária.
A dificuldade em me situar em meus próprios textos foi aos poucos sendo
amenizada principalmente a partir dos diálogos empreendidos com minha orientadora e
com as/os pesquisadoras/es negras/os que são parte do grupo de orientação, cujas análises,
sugestões e problematizações foram essenciais no desenvolvimento desta pesquisa. Estas
análises, sugestões e problematizações me ajudaram a sair do lugar de paralisia e a pensar
mais criticamente sobre minha atuação e presença em campo, bem como sobre as
questões de pesquisa que se apresentavam a mim.
As oportunidades de trabalho em grupo e de diálogo entre pesquisadoras/es com
pertencimentos distintos, particularmente no que se relaciona a raça, são em parte também
um resultado positivo das políticas de ação afirmativa na universidade, e particularmente,
do estabelecimento de cotas étnico-raciais nos programas de pós-graduação do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. É preciso frisar como esta reivindicação
política traz um potencial transformador não apenas para os próprios estudantes e
pesquisadores que são colocados em posições racializadas, mas também para todo o
contexto de produção de conhecimento e de interlocução acadêmica e política entre
estudantes, docentes, pesquisadores e outros atores no âmbito da universidade.
A importância das cotas étnico-raciais em programas de pós-graduação vai muito
além de possibilitar a mera presença física de estudantes e pesquisadores negros/as. Grada
Kilomba (2018), ao problematizar os conceitos de conhecimento e ciência, argumenta
que as universidades e a academia não são espaços neutros, e sim espaços de poder e
autoridade racial das pessoas brancas. Historicamente, acadêmicos/as brancos/as têm
elaborado discursos que circunscrevem as pessoas negras como “o outro”,
desqualificando as vozes de intelectuais negros/as e controlando as estruturas que validam
e legitimam o conhecimento científico.
Trata-se de uma operação de caráter relacional em que vozes negras são
desqualificadas e julgadas como “pouco científicas”, “parciais” e “específicas”, sendo,
consequentemente, silenciadas, enquanto vozes brancas, por oposição, são definidas e
legitimadas como “neutras”, “imparciais” e “universais”. Stephanie Lima (2019), em sua
tese de doutorado sobre as recentes formas de atuação política entre estudantes e
45
Organização da tese
38
Compreendo, a partir da leitura de Grada Kilomba (2018), que o processo de objetificação compreende
descrever, classificar e desqualificar - ou mesmo desumanizar - o interlocutor.
47
O cabelo não é somente um fato biológico. Ainda que pareça ser apenas um mero
aspecto natural dos corpos, eles mesmos artefatos humanos (MOORE, 1997), o cabelo é
sempre manipulado e modificado por meio de práticas cotidianas de higiene,
embelezamento e ornamentação. Estas práticas socializam o cabelo, tornando-o um meio
que comunica declarações sobre o “eu” e a sociedade (MERCER, 1987).
O cabelo é um elemento do corpo humano de fácil manipulação. Pode ser cortado,
trançado, preso, tingido, raspado, ocultado por véus e turbantes, adornado com extensões
e perucas ou mesmo deixado crescer por longos períodos. Os modos de usar o cabelo
muitas vezes sinalizam distinções entre os gêneros, a posição social ocupada, a faixa
etária, a religião e as mudanças de status ao longo da vida.
Os significados suscitados pelos penteados são múltiplos e contextuais. Cabelos
longos podem ser associados à feminilidade e à sensualidade, mas podem também
simbolizar a masculinidade e força dos guerreiros. Cabelos raspados podem sinalizar uma
conexão com o sagrado, processos de purificação, abnegação religiosa ou ainda o
apagamento de identidades subjetivas e coletivas. Cabelos podem ser cobertos com
toucas, véus e turbantes para sinalizar modéstia, para expressar o pertencimento étnico-
racial ou para facilitar a higiene em determinadas atividades. Os significados aqui
mencionados não esgotam todos os sentidos associados a estes modos de se utilizar os
cabelos, mas nos trazem uma breve ideia da diversidade de usos, funções e simbologias
historicamente construídas.
O tema dos cabelos está presente em autores clássicos da Antropologia, que
compreendem, de modo geral, o cabelo e o ato de manipulá-lo como carregados de
simbolismos e como marcadores de determinados status e fronteiras socialmente
relevantes. Para Edmund Leach (1983) a manipulação dos cabelos está ligada a
comportamentos rituais que perpetuam simbolismos de ordem pública: os penteados e
rituais do cabelo, longe de expressarem estados individuais dos sujeitos envolvidos,
transmitem significados socialmente compartilhados, em geral marcando rituais de
passagem e de mudança de status. Mary Douglas (2010), em seu trabalho sobre rituais de
pureza, argumenta que o cabelo - junto a outros fragmentos ou fluidos corporais, como
49
39
Ainda que as autoras mencionem estes e outros povos da costa oeste da África, em diversos momentos
elas simplesmente utilizam o termo “africanos” para fazerem afirmações mais genéricas sobre a questão da
proeminência social, cultural e religiosa do cabelo entre as distintas sociedades africanas. Ressalto que
menções genéricas à “África” e às “sociedades africanas”, ainda que possam parecer pouco precisas à
primeira vista, são politicamente relevantes no campo estudado. Elas possibilitam a (re)construção de
narrativas de origem e ancestralidade, que são mobilizadas, sobretudo, pelas interlocutoras negras que se
identificam com pautas relacionadas ao antirracismo e ao feminismo negro.
50
de gosto ou de opinião, são parte de processos que devem ser localizados historicamente
e compreendidos a partir de seus usos políticos.
O racismo científico e a indústria da higiene, neste cenário, são discursos que
importam na medida em que endossaram a visão colonialista, produzindo estigmas em
torno dos cabelos crespos e da pele negra, estigmas que ainda persistem e que podem
aparecer sob uma outra roupagem no contexto contemporâneo, como discuto na próxima
seção.
que “distinções de valor estético, 'bonito/feio', sempre foram centrais para a forma como
o racismo divide o mundo em oposições binárias em seu julgamento do valor humano.”
(MERCER, 1987, p.35, tradução livre).
O racismo científico, como argumenta Anne McClintock (2010), proliferou-se
através da literatura médica, científica e antropológica, dos relatos de viajantes e dos
romances. Isto significa que seu alcance não era tão amplo, pois tais obras eram acessíveis
apenas às elites letradas das metrópoles e das colônias. A doutrina que se massificou de
verdade foi o que a autora denomina como racismo mercantil, o qual se traduz na
divulgação das ideias de superioridade e inferioridade racial através das propagandas e
mercadorias de uso cotidiano, mais acessíveis à massa de trabalhadores. Esta operação,
realizada no decorrer do século XIX através das propagandas e das mercadorias advindas
dos impérios, distribuiu o racismo evolucionista numa escala inimaginável até aquele
momento.
McClintock explica que o principal produto neste contexto de mercantilização e
massificação do discurso racista foi o sabão. É na Inglaterra do século XIX que explodem
a produção e a venda do sabão, um item até então escasso e pouco valorizado. Neste
período, com a concorrência de outras nações que estavam se industrializando, a
Inglaterra passa a comercializar seus produtos industriais adotando estratégias
consideradas mais agressivas, como a propaganda massiva, que era divulgada não apenas
em seu próprio território como também em suas colônias.
As propagandas de sabão de marcas inglesas apresentavam uma narrativa e uma
iconografia racistas em que pessoas negras eram associadas à sujeira e à selvageria e as
pessoas brancas, em oposição, eram associadas à limpeza e à civilização. McClintock
realiza um trabalho de análise destas propagandas apontando que o sabão é apresentado
como item mágico capaz de “limpar a raça” e de transformar “selvageria” em
“civilização”: em algumas destas propagandas, esta narrativa aparece de maneira mais
explícita, pois mostram crianças negras tornando-se brancas após o ritual de limpeza com
o sabão.
Os discursos racistas, contudo, não se limitam às propagandas de sabão do século
XIX. Há uma continuidade entre o passado e o presente, e uma certa permeabilidade entre
as concepções da indústria da higiene e da limpeza e as concepções da indústria da beleza.
Higiene, limpeza e beleza têm suas fronteiras borradas e seus significados podem se
aproximar: estas qualidades são todas associadas à brancura. Ainda em sua análise sobre
as propagandas de sabão do século XIX, Anne McClintock (2010) ressalta como a
52
40
Não consegui encontrar informações precisas a respeito da época em que o anúncio foi criado e divulgado,
mas o estilo das mulheres desenhadas me faz crer que anúncio é possivelmente da década de 30 ou 40 do
século XX.
53
41
Este caso também repercutiu negativamente sobretudo porque, nos anos 2000, a marca protagonizou uma
campanha publicitária chamada Campanha pela Real Beleza, que prometia mostrar corpos de “mulheres
reais” em seus anúncios, contrapondo-se ao padrão hegemônico de magreza (BETTI, 2011).
54
tido ou não. Diante das inúmeras críticas que recebeu nas mídias digitais, a marca
removeu a propaganda do ar e pediu desculpas, alegando que queria mostrar que seu
sabonete é “para todas as mulheres” e que é uma “celebração da diversidade”42.
As teorias raciais do século XIX, ainda que consideradas um discurso
pseudocientífico atualmente, infelizmente deixaram um legado. Isso é observável não
apenas na publicidade dos produtos de higiene e beleza, mas também no próprio processo
de concepção destes produtos. Nos contextos de desenvolvimento e fabricação de
produtos pela indústria da beleza, bem como em publicações da área médica, química e
farmacêutica que tratam dos temas pele e cabelos, ainda são utilizados termos que foram
difundidos pelas teorias raciais. Nos bastidores das marcas, onde se discutem as
formulações dos produtos e as substâncias que estarão ou não presentes nas diferentes
composições cosméticas, entram em cena discursos que possuem uma roupagem de
autoridade científica e que difundem uma interpretação sobre os cabelos que está,
historicamente, relacionada a uma noção de tipos raciais humanos.
Nestes discursos, de caráter médico e técnico, proliferam termos como
caucasiano, asiático, oriental, mongol, afro, africano e negróide. Estes termos pretendem
caracterizar diferentes tipos de cabelos, associando-os a diferentes tipos humanos e
ressaltando distinções de caráter fisiológico e anatômico. Tratam-se de termos
explicitamente racializados: a ideia de raça é mobilizada privilegiando seu sentido
biologizante e naturalizante, e não seu sentido identitário, político e estético.
O website da Sociedade Brasileira de Dermatologia apresenta a seguinte
explicação a respeito dos tipos de cabelos:
42
Ver mais em <https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/10/economia/589920-dove-pede-
desculpas-por-propaganda-acusada-de-racismo.html>. Último acesso em 13/01/2022.
43
Disponível em <https://www.sbd.org.br/dermatologia/cabelo/cuidados/tipos-de-cabelos/>. Último
acesso em 31/08/2021.
56
44
Disponível em <https://denisesteiner.com.br/dermatologia-capilar/a-etnia-dos-cabelos-e-seus-
cuidados/>. Último acesso em 31/08/2021.
57
45
Segundo Kobena Mercer (1987), os brancos europeus eram chamados de caucasianos porque supunha-
se que eram descendentes de povos da cordilheira do Cáucaso, localizada no Leste Europeu.
58
Em sua visão, deve-se levar em conta a etnia do fio de cabelo, pois há distinções
importantes na composição interna de cada tipo de fio, que fazem com que o cabelo
caucasiano seja essencialmente diferente do cabelo afro.
Estas distinções, de acordo com a engenheira, fazem com que cada tipo de fio
necessite de tratamentos diferenciados e individualizados. Em sua visão, o ideal é que as
marcas elaborem produtos de coloração e alisamento específicos para cada tipo de
cabelo, levando em conta as particularidades estruturais de cada textura capilar. Assim,
uma tintura ou um alisante direcionado ao público que possui cabelos crespos, do tipo
afro, não devem, em tese, serem formulados da mesma maneira que uma tintura ou um
alisante direcionados aos fios cacheados e ondulados, que são cabelos do tipo caucasiano.
A ideia de etnia do fio de cabelo, em seu sentido biologizante, trata da fisiologia
dos fios de cabelo, de aspectos que dizem respeito a um conhecimento que não é, a
princípio, acessível e visível às consumidoras: se a textura capilar, um critério mais
“superficial”, é algo acessível e visível à percepção cotidiana, os aspectos estruturais dos
fios, a sua composição interna, com diferentes proporções de queratina e matriz, é
acessível apenas ao cientista e ao profissional que formula cosméticos.
Assim, os diferentes tipos de cabelos, no âmbito da produção dos saberes
biomédicos e da formulação de produtos cosméticos, ainda são classificados e
categorizados a partir de um conjunto de termos cuja origem pode ser historicamente
localizada no racismo científico. E isto em um cenário onde diversas marcas de
cosméticos têm voltado sua atenção aos cabelos cacheados e crespos, procurando dialogar
– ou ao menos parecer que estão dialogando – com os discursos de valorização destes
tipos de cabelos.
estadunidenses. Se até este momento, a norma para as mulheres negras eram os cabelos
alisados e para os homens negros eram os cabelos cortados bem curtos, surgem outras
referências, que politizam a questão a partir de um outro olhar, que procura marcar a
diferença e se contrapor aos referenciais brancos: o movimento dos Panteras Negras traz
o penteado Afro como um símbolo de resistência e afirmação política. A intenção era se
posicionar contra as normas vigentes, construindo um outro referencial estético e político.
O Afro, que consistia nos cabelos crespos cortados em formato arredondado e
armados pelo pente garfo, foi adotado por universitários, ativistas e artistas negros e
posteriormente popularizou-se como uma opção de penteado fashion nas décadas
seguintes. A partir dos anos 80, passa a ser divulgado pela indústria de cosméticos e pelas
mídias hegemônicas, sofrendo um processo de despolitização (BYRD e THARPS, 2014;
MERCER, 1987; WALKER, 2000). O argumento era de que o cabelo Afro, tal como os
cabelos submetidos aos procedimentos alisantes, era apenas uma escolha estética e
também merecia manutenção e cuidados profissionais.
No Brasil, a partir da década de 70, a construção de uma estética negra a partir da
valorização dos cabelos crespos se torna central para os ativistas e coletividades negras.
Ainda que os modelos de estética negra brasileiros tenham suas singularidades e sejam
múltiplos, é importante dizer que estabelecem diálogos com as referências afro-
americanas, pois estamos tratando de um contexto transnacional em que penteados,
técnicas, produtos e discursos estético-políticos viajam.
Assim, em paralelo à movimentação afro-americana, começam a surgir, no Brasil,
salões de cabeleireiro que se denominam como étnicos, pensados por e para pessoas
negras. Nestes estabelecimentos, os serviços oferecidos englobam desde o penteado Afro
ao alisamento dos fios e seus profissionais difundem um discurso que coloca o cabelo
crespo como elemento que eleva autoestima e a consciência racial da população negra
(FIGUEIREDO, 1994; GOMES, 2008 e SANTOS, 2000). São espaços pensados por e
para pessoas negras que tornam acessíveis aos seus clientes possibilidades de cuidado de
si, modos criativos de manipular o cabelo crespo e práticas de consumo que
historicamente foram negadas às pessoas negras.
Os bailes black realizados nas grandes metrópoles como São Paulo e Rio de
Janeiro, e os blocos afro de carnaval, como o Ilê Ayê em Salvador, também exercem um
papel fundamental no que concerne à elaboração e à celebração da ideia de beleza negra
e de valorização dos cabelos crespos. Partindo de distintos referenciais, estas iniciativas
60
46
Conforme Marcio Macedo (2007), os filmes blaxploitation foram os “Filmes norte-americanos com
temática e atores negros classificados como “produções B” nos anos 1970 que foram as primeiras tentativas
de um “cinema negro” no país estadunidense.” (p.407). Estes filmes, ainda que reconhecidos por trazerem
uma iniciativa positiva na época, também foram alvos de críticas por conta das representações
estereotipadas dos personagens negros que divulgavam.
61
47
Inicialmente, o grupo foi batizado como Filhos de Olorum, em referência à uma divindade de algumas
religiões de matriz africana. O nome foi modificado para Os Crespos em 2007, pouco antes da estreia do
espetáculo “Ensaio sobre Carolina” (TERRA, 2019).
62
48
O projeto Hot Pente é uma festa itinerante de hip hop criada em 2014, em São Paulo, pela jornalista
Neomísia Silvestre e pela produtora de moda Thaiane Almeida. A festa teve algumas edições durante o ano
de 2014, porém, não consegui encontrar informações na Internet a respeito de edições mais recentes. Hot
Pente, em uma tradução literal, significa “pente quente”.
49
O Blog das Cabeludas, criado em 2009 pela consultora de marketing digital Nanda Cury, é um blog que
reúne fotos de mulheres com cabelos crespos e cacheados. Seus últimos posts datam de 2015. Disponível
em <http://blogdascabeludas.blogspot.com/>. Último acesso em 26/10/18.
50
Em Salvador, o evento chama-se Marcha do Empoderamento Crespo, mas, apesar da diferença no nome,
trata-se do mesmo tipo de iniciativa.
51
Filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Leci foi reeleita deputada nas duas eleições
subsequentes, em 2014 e 2018. Para mais informações sobre sua trajetória, ver Fernanda K. M. Sousa
(2016).
63
52
Disponível em <http://deputadalecibrandao.com.br/noticias-e-novidades/item/331-deputada-leci-
brandao-comemora-dia-do-orgulho-crespo-de-sao-paulo-e-lei>. Último acesso em 11/09/18.
64
53
O vídeo foi publicado, em modo público, em 27/04/17. Último acesso em 11/12/17:
https://www.facebook.com/FalaSill/videos/1024084261057694/.
65
é operada como marca da diferença que permite que corpos negros sejam tocados,
avaliados e invadidos.
Como Adilson Moreira (2019) explica, práticas discriminatórias que operam sob
a forma de humor ou que aparentam ser banais – que autor denomina de racismo
recreativo – reforçam os estereótipos negativos sobre pessoas negras, especialmente
aqueles em torno da estética e do cabelo, legitimam a desigualdade entre pessoas brancas
e negras e em geral são perpetradas por pessoas que não se creem racistas e que não
aceitam acusações de racismo.
Meses após o episódio, em novembro de 2017, o caso, que havia se transformado
em um inquérito, foi arquivado pelo Ministério Público de Minas Gerais, o que gerou
uma nova manifestação de Dandara nas redes sociais e a repercussão desta decisão em
alguns veículos de comunicação, como os portais Geledés 54 e O Globo55. No pedido de
arquivamento56, o ato praticado pelos indiciados não foi reconhecido como crime de
racismo e a fala de Dandara foi deslegitimada, com a insinuação de que o preconceito
racial alegado havia partido dela mesma, e não dos indiciados.
Casos de discriminação como o da jovem com frequência são compreendidos pela
justiça como ressentimento por parte das vítimas ou como consequência de uma espécie
de complexo de inferioridade das pessoas negras (GUIMARÃES, 2004). As pessoas
vitimadas pelo racismo, inclusive, são julgadas como racistas simplesmente por
chamarem a atenção para o tema. Como Mara Viveros Vigoya (2020) escreve, “as vítimas
do racismo são apontadas como racistas por enfatizar “demais” o tema racial.
Frequentemente se reduz e deslegitima a posição moral e psicológica daqueles quem
denunciam o racismo, acusando-os de complexados, ressentidos, hipersensíveis,
paranoicos, vingativos, violentos e instáveis.” (p.41).
Nesta perspectiva, a discriminação, a desigualdade e a violência são
perversamente colocadas como questões de ordem individual e privada, como “problemas
de falta de confiança e autoestima dos oprimidos” (DEBERT e GREGORI, 2008, p.168).
A ideia de que o preconceito racial parte de seus próprios alvos (ou é reforçado por estes),
54
Ver mais em <https://www.geledes.org.br/nao-foi-racismo-foi-deselegancia-diz-promotor-em-caso-do-
turbante/>. Último acesso em 17/12/17.
55
Ver mais em <https://oglobo.globo.com/sociedade/justica-arquiva-denuncia-de-racismo-feita-por-
jovem-que-teve-turbante-arrancado-em-festa-22095747>.Último acesso em 17/12/17.
56
Trechos do documento podem ser encontrados na reportagem do jornal O Globo, mencionada na nota
anterior, e também em um link divulgado por Dandara em sua página do Facebook, em que disponibilizou
online uma cópia de todas as páginas do documento. Disponível em: <https://imgur.com/a/Mtvhj>. Último
acesso em 18/12/17.
67
57
O vídeo foi publicado, em modo público, no dia 20/11/17 em seu perfil pessoal do Facebook, mas foi
replicado pelo jornal O Globo na reportagem já mencionada.
58
Para uma discussão sobre o funcionamento das leis brasileiras antirracismo e os problemas em torno de
sua aplicação, ver Márcia Lima, Marta R. de Assis Machado e Natália Néris (2016).
68
Outro caso ocorrido no ano de 2017 que captou minha atenção foi a situação
vivenciada por Mayara Leonel em seu ambiente de trabalho. A jovem estudante negra
também publicizou o ocorrido por meio de um relato no Facebook. Durante seis meses,
ela trabalhou em um conhecido laboratório de análises clínicas de São Paulo e acabou
sendo demitida por se recusar a continuar usando seus cabelos crespos presos.
Segundo Mayara, a empresa possuía um código de apresentação pessoal
específico para as funcionárias da recepção do laboratório. As recepcionistas que tivessem
os cabelos em um comprimento acima dos ombros e sem franja poderiam trabalhar com
os cabelos soltos, enquanto que as que tivessem os cabelos longos, em um comprimento
abaixo dos ombros, deveriam prender os cabelos durante o horário de trabalho. Ainda que
Mayara se encaixasse no primeiro caso, pois seus cabelos estavam em uma altura acima
dos ombros e não possuíam franja, ela foi pressionada durante o período em que trabalhou
no laboratório a manter seus cabelos sempre presos, amarrados de modo apertado para
trás. A empresa alegava que seu cabelo solto desagradaria os “clientes criteriosos” e que
poderia ser demitida caso não cumprisse com a ordem.
Em entrevista ao site Buzzfeed59, a jovem diz que usou os cabelos presos, da
maneira como exigiram, por algum tempo, mas que isto lhe causou desconforto físico e a
quebra dos fios. Além da exigência em torno do cabelo, Mayara relatou também ter sido
alvo de comentários e piadas racistas por parte de colegas de trabalho, sem que a empresa
tenha tomado qualquer atitude com relação a isso. Em seu relato publicado no Facebook,
e reproduzido pelo Buzzfeed, ela explica:
59
Disponível em <https://www.buzzfeed.com/br/tatianafarah/mulher-acusa-laboratorio-fleury-de-racismo-
por-causa-de#.ljX4xQ3Gk>. Último acesso em 20/04/19.
60
Disponível em
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=880282048797288&set=a.107956739363160.18051.100004
465032659&type=3>. Último acesso em 20/04/19.
69
61
O termo tem suas origens no penteado Afro, um estilo de cabelo adotado por pessoas negras
estadunidenses nos anos 60 e 70, que utilizavam o penteado como símbolo de resistência ao racismo.
Embora o termo black power constituísse uma palavra de ordem do movimento negro estadunidense, no
Brasil o termo tornou-se também um sinônimo de cabelos crespos naturais e volumosos.
70
torno das percepções negativas sobre os cabelos crespos, esta visão considera o cabelo a
partir de uma ótica individualista e despolitizada.
Em outros comentários não havia a elaboração de nenhum tipo de crítica ou de
argumento. Estas mensagens, em tom mais agressivo, irônico ou desrespeitoso,
classificavam a denúncia de Mayara como mais um exemplo de “mimimi” e de
“vitimismo” por parte de pessoas negras. Estes termos se popularizaram nos últimos anos,
especialmente nas mídias digitais, como formas de deslegitimar e desqualificar denúncias
e reflexões sobre racismo, machismo e as várias formas de preconceito e discriminação
contra a comunidade LGBTQIA+, procurando silenciar e tumultuar as discussões em
torno destas problemáticas.
Frente às críticas e ataques que recebeu, Mayara, uma semana após o primeiro
relato, teve que se posicionar novamente e publicou outro texto em sua página no
Facebook62, explicando com mais detalhes o contexto de sua demissão e a postura que a
empresa tomou, anexando uma cópia de um projeto de combate ao racismo corporativo
que ela havia apresentado ao laboratório antes de ser demitida.
Um segundo caso relacionando cabelos crespos e mercado de trabalho merece
atenção. Em fevereiro de 2018 o relato de discriminação da empreendedora negra
Yasmin Stevam no programa da apresentadora Fátima Bernardes63, na Rede Globo, gerou
discussão nas mídias sociais e comentários e memes64 racistas contra a jovem foram
publicados.
O programa, que abordava o assunto aparência e mercado de trabalho, em
determinado momento trouxe Yasmin ao palco para que ela contasse a respeito da
discriminação que sofreu por conta de seu cabelo em situações de entrevistas de emprego,
sendo preterida por empresas da área da moda. Embora no momento do programa Yasmin
exibisse cabelos crespos longos, muito volumosos e soltos, ela explicou que na época
destas entrevistas não tinha este estilo de cabelo, pois usava-o trançado, e acrescentou que
havia abraçado o estilo atual quando iniciou seu próprio negócio na área da moda.
62
Disponível em
<https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=883842821774544&id=100004465032659>. Último
acesso em 21/04/19.
63
A participação de Yasmin Stevam no programa de Fátima Bernardes pode ser vista no link a seguir:
<https://www.youtube.com/watch?v=8OZbMB72mFA>. Último acesso em 20/04/19.
64
Seguindo Thiago Falcão (2017), que parte da definição do termo feita pelo biólogo Richard Dawkins, o
meme é um fragmento de informação - compreendendo uma imagem e/ou pequenas frases e expressões -
que se torna viral nas redes sociais e que pode ser rapidamente entendido, pois aciona significados culturais
circulantes. Os memes, inicialmente, podem ser compreendidos como forma de humor.
71
65
Chamou-me a atenção o fato de que, no Youtube, alguns vídeos feitos contra Yasmin eram de youtubers
que se identificam com posições políticas de direita.
72
66
O canal, que leva seu nome, foi criado em 2015 e é focado em dicas para cabelos cacheados e em
transição. Em fevereiro de 2022 seu canal já contava com cerca de 445 mil inscritos. Disponível em
<https://www.youtube.com/c/DaianeNascimentooficial>. Último acesso em 29/03/22.
67
O termo 4C, parte de uma classificação que categoriza cabelos crespos e cacheados, refere-se ao tipo de
cabelo crespo com a textura mais acentuada, sem cachos definidos e com muito volume.
73
se em suas mídias digitais. A repercussão negativa em relação ao vídeo fez com que
Daiane, poucos dias após a publicação do mesmo, o retirasse do ar, impedindo o acesso
do público ao conteúdo.
É comum que os youtubers se refiram ao conteúdo produzido por outros
influenciadores em seus vídeos, e às vezes utiliza-se o recurso de colocar, em seu próprio
vídeo, trechos de vídeos gravados por outras pessoas, para que eles sejam analisados junto
ao público – este tipo de conteúdo é comumente nomeado como “Reagindo ao vídeo de/a
fulano/a” ou “Resposta ao/à fulano/a”. Assim, embora Daiane tenha retirado do ar o
conteúdo, é possível acessar parte do conteúdo através de canais de terceiros, que
publicaram trechos do vídeo do original, utilizando-se do recurso explicado.
A youtuber Gabi Oliveira, do canal DePretas, publicou um vídeo-resposta a
Daiane, intitulado “Cabelo 4C igual bombril e responsabilidade | Papo DePretas”, no
dia 23 de dezembro de 201868. Os primeiros minutos mostram alguns trechos retirados
do vídeo original de Daiane, enfatizando as falas em que Daiane diz que o próprio cabelo
está “horroroso”, parecendo um “palhaço”, um “bombril” e um “cabelo 4C”.
Posteriormente, Gabi entra com sua argumentação, tentando provocar um diálogo com
suas seguidoras sobre os limites da aceitação do cabelo natural e sobre a responsabilidade
dos youtubers:
68
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=v93tX36gLaA&t=36s>. Último acesso em
18/06/19.
75
Para Gabi, que se reconhece enquanto uma mulher preta de cabelos crespos, o
discurso de aceitação do cabelo natural exclui os cabelos crespos, pois só os cacheados
de fato são socialmente aceitos e abraçados pela indústria cosmética. O cabelo natural só
é bem visto quando possui cachos aparentes. Ela enfatiza que as campanhas das marcas
dificilmente trazem mulheres de cabelos crespos e que o mercado impõe um padrão de
cachos perfeitos, atribuindo esta preterição ou esta exclusão ao colorismo.
A influenciadora define o colorismo como “um dos braços do racismo”,
explicando que, quanto mais “traços negroides” uma pessoa tem, ou seja, quanto mais
escura for a tonalidade da pele e mais crespo é o cabelo, maior é o nível de exclusão nos
espaços midiáticos. O colorismo é uma ideologia racial, produto da escravidão, que
favorece os indivíduos negros com pele mais clara e cabelos menos crespos, mais
próximos à textura lisa. No Brasil, ao longo do regime escravista, os senhores
estabeleceram um sistema hierárquico para separar e selecionar homens e mulheres
negras para determinados tipos de trabalho forçado. Este sistema hierárquico era baseado
em critérios anatômicos, como a textura do cabelo e tom de pele. Enquanto os homens e
mulheres que possuíam um tom de pele mais claro e o cabelo cacheado eram selecionados
para trabalhar no contexto da casa-grande, em serviços e atividades domésticas, os
homens e mulheres retintos e com cabelos crespos eram colocados nos trabalhos mais
pesados e desvalorizados, nas lavouras e engenhos. Segundo Amanda Braga (2015):
69
Monetizar é um termo comumente utilizado pelos influenciadores para se referir ao retorno financeiro
gerado pelo número de visualizações que os vídeos atingem no Youtube.
70
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mTPlEjUjoh8&t=311s>. Último acesso em
20/03/22.
78
Jacy, ainda que não utilize o termo colorismo em seu vídeo, também faz uma
referência ao conceito ao enfatizar em seu discurso que a exclusão e a rejeição social são
maiores em relação às pessoas negras que possuem cabelos mais crespos e traços faciais
associados à negritude, como nariz largo e lábios grossos. Referindo-se a si mesma e a
outras pessoas que possuem uma aparência semelhante, ela afirma que o cabelo crespo é
hostilizado nos mais diversos ambientes e que a sociedade brasileira rejeita a estética
negra.
Ela também avalia criticamente a tendência de valorização do cabelo natural,
apontando que a ideia de “amar os cachos” não mudou as experiências vividas pelas
pessoas que possuem cabelos crespos, que continuam sofrendo com a exclusão: “A gente
continua ouvindo as mesmas coisas. Então pra gente esse discurso de amorzinho, de
79
vamos amar a nossa textura ainda não chegou.”. É com base nisso que Jacy convoca
suas seguidoras a acompanharem o trabalho de outras pessoas com cabelos crespos que
produzem conteúdos na Internet, ressaltando que é preciso avaliar criticamente quem
deve ou não ser seguido e que tipo de discurso deve ou não apoiado.
A youtuber Gleici Duarte, assim como Gabi Oliveira e Jacy Carvalho, também
postou um vídeo-resposta para se contrapor ao conteúdo publicado por Daiane. No vídeo,
intitulado “Tirei a definição do meu cabelo kkkkkk - caso Daiane Nascimento”, publicado
em 26 de dezembro de 201871, Gleici apresenta alguns argumentos muito semelhantes
aos de Gabi e de Jacy, como os limites do discurso de aceitação do cabelo natural e o
papel da indústria de impor um padrão de cachos definidos.
No entanto, diferentemente das outras youtubers, Gleici inicia o vídeo imitando
Daiane, aparecendo com seu próprio cabelo sem definição e repetindo algumas das frases
ditas pela youtuber. Ao parar com a imitação, Gleici modifica seu tom de voz e expressão
facial, demonstrando indignação, e explica que fez isso para chamar a atenção para uma
conversa sobre racismo, trazendo a seguinte reflexão:
71
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ePWKAo_RA2A>. Último acesso em 18/06/19.
80
Diferentemente de Gabi Oliveira e Jacy Carvalho, que são mulheres negras com
cabelos crespos e pele retinta e que se identificam diretamente com a questão tratada,
Gleici Duarte é uma mulher branca, de pele bastante clara e cabelos cacheados e constrói
seu discurso a partir de um ponto de vista diferente. Reconhecendo sua posição singular
em relação à questão, ela afirma que está longe de seu “local de fala” e que “mesmo
sendo a materialização de todo tipo de privilégio”, considera fundamental falar sobre
racismo, padrões estéticos e exclusão. Seu papel, nesse contexto, é o de “dar voz e chamar
atenção para essas demandas”, contribuindo para o debate enquanto influenciadora que
fala sobre cabelos.
Local (ou lugar) de fala e privilégio são categorias que têm se difundido nas
mídias digitais nos últimos anos. Em parte, elas têm sido disseminadas com base em
determinadas leituras do ativismo e das produções intelectuais de algumas feministas
negras contemporâneas que se tornaram mais popularmente conhecidas, como Djamila
Ribeiro. A ideia de local ou lugar de fala, nos contextos digitais, costuma ser mobilizada
no sentido de frisar a importância da experiência como uma espécie de autoridade política
para discutir determinados assuntos, sobretudo questões que tangenciam desigualdades
de gênero e raça. Privilégio, por sua vez, refere-se a certas vantagens, benefícios ou
direitos associados a posições hegemônicas em termos de raça, gênero e outros
marcadores sociais de diferença, mas também pode referir-se a uma identidade de gênero
ou de raça em particular, no sentido de que estas materializam as dinâmicas das
desigualdades.
Estas categorias, é preciso pontuar, são politicamente disputadas no contexto das
mídias digitais. Elas nem sempre são reconhecidas como legítimas por todos os atores e
atrizes envolvidos nas discussões, e nem sempre elas são acionadas em seu sentido
estrutural, sendo interpretadas, às vezes, como questões de ordem mais subjetiva e moral,
relacionadas ao que os agentes devem ou não fazer ao se posicionarem a respeito de
questões que envolvem desigualdades de gênero e raça.
Assim como Jacy e Gabi, Gleici também faz uma crítica em relação às iniciativas
de valorização do cabelo natural, apontando que os cabelos crespos continuam a ser
81
excluídos e rejeitados. Ela enfatiza que a indústria de cosméticos para cabelos tem um
papel importante neste cenário, na medida em que “prega a definição a todo custo” – ou
seja, que coloca os cabelos com cachos definidos como referencial de beleza. – e que não
coloca mulheres com cabelos crespos nas propagandas e nos rótulos dos produtos.
No fim de seu vídeo, Gleici indica influenciadoras negras para suas seguidoras
acompanharem. Ela menciona Jacy Carvalho, Gabi Oliveira, Rose Hapuque e Michele
Passa, acrescentando que estas mulheres, em suas redes, falam sobre conteúdos
relacionados a cabelo crespo, feminismo negro e empoderamento. Também deixa, na
caixa de informações do vídeo, uma lista de perfis do Instagram de influenciadoras
negras que considera exemplos afirmativos e cujos trabalhos acredita que merecem maior
destaque.
As críticas elaboradas ao vídeo de Daiane Nascimento, para além de se
posicionarem contra a atitude da influenciadora e rebaterem suas falas, tocaram em
questões mais amplas, abordando aspectos importantes no contexto do campo estudado,
como a estigmatização do cabelo crespo, o colorismo, os limites do discurso que abraça
o cabelo natural, o papel da indústria cosmética e a relação entre youtubers, seguidores
e a responsabilidade sobre o conteúdo produzido e a divulgação deste.
Dos vídeos-resposta que tive acesso, Gabi é a única influenciadora que, ao se
referir à Daiane, a marca racialmente de maneira mais explícita, qualificando-a como uma
pessoa cacheada não-branca. Outras youtubers, tanto brancas quanto negras, não
utilizam um termo de classificação racial para se referir à Daiane, optando por descrevê-
la apenas como cacheada, sem se referir a percepções de cor ou raça.
Ainda que não seja possível saber, a partir dos conteúdos analisados, como Daiane
se identifica racialmente, o modo como Gabi Oliveira se refere a ela e o modo como as
outras duas youtubers deixam de fazer menção direta à raça quando a descrevem –
descrevendo-a simplesmente como cacheada – é algo significativo. Isto porque a
discussão acerca de quem pode ser classificado ou não como uma pessoa negra ou como
uma pessoa branca pode adquirir contornos delicados, envolvendo questões como a
autoclassificação, a origem familiar e a percepção social sobre a aparência do indivíduo.
Com o volume de críticas e as acusações de racismo recebidas, Daiane retirou o
conteúdo do ar e publicou um vídeo, no dia 23 de dezembro de 2018, em que aparece
junto ao seu noivo pedindo desculpas às seguidoras, intitulado “Errar é humano! Meu
82
72
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=-70FbgPrHfQ&t=9s>. Último acesso em 18/06/19.
73
Pela sequência de reações no Youtube, com a postagem de alguns vídeos resposta, acredito que o vídeo
“Tirei a definição do meu cabelo #Especial200K” tenha sido originalmente postado no dia 21 ou 22 de
dezembro.
74
Não menciono o nome do canal ou o endereço da publicação de modo a preservar a identidade de alguém
que não faz parte do recorte etnográfico estabelecido: a youtuber em questão possui cabelos lisos e faz
vídeos focando-se neste tipo de cabelo.
75
Um vídeo marcado como “privado” só é visível para o/a proprietário/a do canal.
83
cabelos cacheados, que possuem mechas em um formato de mola e um volume não tão
proeminente.
Desde o início do vídeo há um rapaz posicionado ao seu lado, que ela apresenta
como noivo. Ele explica sua presença no vídeo dizendo que, como faz o trabalho de
filmagem e de edição do canal, se sentiu no dever de falar publicamente sobre a polêmica.
Seu discurso é ambíguo e não faz, talvez propositalmente, uma menção clara às questões
raciais: ele diz apoiar as pessoas que “lutam por seus direitos”, mas acredita que algumas
pessoas criticaram Daiane para “aparecer” e “ganhar visualizações” em seus canais.
Daiane e o noivo complementam a si mesmos e repetem o que o outro diz,
reforçando alguns pontos colocados. Ambos, em seu discurso, procuram se afastar da
responsabilidade sobre o que foi dito. As desculpas são dirigidas a quem “se ofendeu”
com o conteúdo, e eles ressaltam que várias seguidoras crespas de Daiane “entenderam
a brincadeira” e “se divertiram”, demonstrando apoio. Relatam também que receberam
muitos comentários ofensivos e xingamentos em seus perfis pessoais do Instagram.
Em determinado momento, os dois acionam argumentos que comumente são
levantados quando acusações de discriminação racial são feitas. Enquanto Daiane afirma
não ser preconceituosa ou racista, o rapaz reforça esta afirmação argumentando que a
maioria das pessoas, assim como eles próprios, possuem pelo menos uma pessoa negra
em sua família. Este discurso, muito comum quando surgem acusações de racismo,
pretende suavizar ou eliminar acusações de preconceito ou discriminação ao apontar a
proximidade ou familiaridade das pessoas acusadas com pessoas negras, como se estas
tornassem alguém automaticamente incapaz de reproduzir as percepções racistas e
hierarquizantes que comumente circulam em sociedade. A proximidade é, na realidade,
um elemento chave do chamado racismo à brasileira, pois, além de ser um aspecto
característico do fenômeno, também é utilizada como uma justificativa para despolitizar
a questão, colocando-a na esfera privada – como se tal esfera privada fosse
completamente separada do espaço público.
Assim, ainda que o vídeo seja apresentado como um pedido de desculpas, Daiane
não se enxerga como responsável pelos termos pejorativos utilizados e pelas reações e
emoções que estes despertaram nas pessoas que assistiram ao conteúdo. Admite que
cometeu um erro, mas que este foi despido de uma intencionalidade negativa. O tom muda
um pouco com o passar dos minutos: se de início Daiane pede desculpas e diz que não
soube se expressar adequadamente, com o desenrolar do vídeo, ela e seu noivo parecem
84
identificar as pessoas que se sentiram ofendidas como o problema de fato, pois estas não
teriam entendido a “brincadeira”.
Na perspectiva do casal, não só a acusação de racismo é infundada, como o
racismo estaria “no olhar de quem reclamou”: aqui também é acionado um discurso
muito comum, que trata a própria acusação como racismo e como um problema de
autoestima do acusador. Eles ainda vislumbram um saldo positivo após o episódio,
frisando que, apesar de terem perdido alguns inscritos, a polêmica acabou por trazer
outros interessados no canal.
O vídeo de Daiane Nascimento gerou uma série de reações. Primeiro, das pessoas
que assistiram, posteriormente, de outras youtubers crespas e cacheadas e, por fim, sua
atitude de apagar o vídeo e postar um pedido de desculpas. A repercussão negativa do
conteúdo obrigou não apenas ela mesma a se explicar, mas, de certa forma, influiu na
decisão de outras youtubers publicarem vídeos-resposta, criticando a postura da
influenciadora.
***
Iniciei este capítulo com uma discussão sobre o cabelo enquanto objeto de
interesse antropológico e a relação entre racismo, ciência e indústria da higiene. Minha
intenção foi historicizar o processo de estigmatização do cabelo crespo, situando como
percebo, nesta tese, as relações entre o cabelo e sistemas de desigualdade, como o
racismo, por meio do qual se conectam distintos universos, da ciência ao mercado dos
cosméticos – busquei, neste sentido, evidenciar circulações e conexões entre distintos
campos.
86
“Meu nome é Renato Meirelles, sou homem, branco, paulistano com curso
superior e tenho 41 anos de idade. E pelo simples fato de ser branco, ganho 34% a mais
do que um homem negro, paulistano, de 41 anos de idade com curso superior.” É deste
modo que Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisa Locomotiva, se
apresentou às plateias que acompanharam eventos de caráter empresarial76 dedicados a
discutir a questão do afroconsumo77. Enfatizando seu lugar enquanto homem branco na
sociedade brasileira, chamou a atenção para a desigualdade racial quando comparou sua
renda à de um perfil de homem negro com as mesmas características em termos de idade,
escolaridade e local de nascimento.
O reconhecimento de sua posição social privilegiada foi utilizado como um
pontapé para iniciar uma discussão sobre racismo, mercado e consumo da população
negra brasileira baseada nos dados de uma pesquisa realizada pelo instituto Locomotiva.
A pesquisa em questão, intitulada “A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo
e Empreendedorismo”, foi encomendada pelo Instituto Feira Preta, em parceria com o
banco Itaú, e divulgada no final de 2018. Em todas as ocasiões em que pude assistir
Renato falando sobre estes temas, ele apresentou os dados desta pesquisa de maneira clara
e objetiva, focando-se principalmente na questão do poder de consumo e nas preferências
da população negra brasileira.
Alguns dos dados mencionados nas apresentações impressionam pelos números.
De acordo com a pesquisa, a população negra não constitui apenas um nicho de mercado,
pois movimenta cerca de R$1,7 trilhões de renda própria no país e formaria, sozinha, o
76
Os eventos foram o lançamento da pesquisa “A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo e
Empreendedorismo”, realizado em novembro de 2018 na Praça das Artes, no centro de São Paulo, o Fórum
Diversifique - Afro Consumo e Inclusão Racial, também realizado em novembro de 2018, no Teatro
Santander, localizado no bairro da Vila Olímpia, região nobre da cidade, e o evento Raça e Mercado: uma
transformação econômica, apresentado da Fundação Getúlio Vargas, no âmbito da Escola de
Administração de Empresas de São Paulo, em maio de 2019.
77
Categoria êmica empregada para se referir às múltiplas relações entre os(as) consumidores(as) negros(as)
e o mercado. A união dos termos afro e consumo, mais que indicar uma mera especificidade ou
segmentação, carrega uma marca racial que raramente é enunciada quando se fala a respeito do consumo
de outros grupos étnico-raciais.
88
17º país com maior mercado consumidor do mundo. Quando o assunto são as preferências
de consumo, a pesquisa afirma que “81% dos negros brasileiros gostam de produtos que
melhorem sua autoestima” – esta frase, talvez não por acaso, foi acompanhada da imagem
de uma mulher negra jovem e bela, exibindo cabelos trançados.
A respeito das percepções das mulheres negras, o estudo diz que a maioria delas
gostaria de ver mais mulheres com cabelos crespos e cacheados nas propagandas
televisivas. Foi destacado que as mulheres negras “não querem se tornar brancas”, e sim
se verem melhor representadas nas mídias, ou seja, desejam referências próprias.
Estes números, segundo Renato, mostram que as empresas que não dialogam com
os consumidores negros estão perdendo um mercado consumidor gigantesco e maiores
oportunidades de ganhos. Ele argumenta que, para construir este diálogo, não basta a
empresa colocar uma modelo negra em uma peça publicitária. Em sua visão, é preciso ter
profissionais negros criando produtos e propagandas, pois estes sabem, efetivamente,
como se comunicar com o público consumidor constituído por pessoas negras.
Em todas as vezes que pude acompanhar a apresentação dos dados da pesquisa “A
Voz e a Vez”, Renato encerrou suas falas, apesar das pequenas variações na escolha de
palavras, com a seguinte conclusão: “se não for por uma questão de justiça, que seja por
uma questão de inteligência, pois o racismo atrapalha os lucros”. O final das
apresentações, assim, tentou convencer o público da importância do combate ao racismo
de um modo peculiar, defendendo que tal questão não é apenas moral, mas também
financeira.
Em dos eventos nos quais Renato se apresentou, outra palestrante também
abordou o racismo sob as lentes dos ganhos e perdas financeiras. Luanna Teofillo, jovem
mulher negra fundadora do Painel Bap, dedicado à pesquisa sobre consumo e
empreendedorismo negro, foi intensamente aplaudida quando questionou aos presentes
“vocês preferem ser racistas ou ganhar dinheiro?”. Luana argumentou que o sistema
econômico brasileiro não é o capitalismo, e sim o racismo econômico: não se trata de
capitalismo porque o país não oferece três condições básicas do sistema capitalista à
população negra, a saber, a propriedade privada, a livre iniciativa e a livre concorrência78.
78
Do ponto de vista histórico e sociológico, pode-se criticar este argumento a partir de diversos parâmetros,
apontando, por exemplo, que o sistema capitalista desenvolveu-se justamente através da escravização e
desumanização de populações africanas, despindo-as de qualquer posse material e simbólica. Contudo, meu
objetivo aqui é compreender porque determinados atores acionam determinados argumentos em certas
circunstâncias, ou seja, porque produzem certos discursos, e para quem.
89
79
O desenho Frozen, produzido e distribuído pelos estúdios Disney, lançado no ano de 2013, conta a
história de uma princesa, branca e loira, cujo poder de congelamento transformou seu reino em um eterno
inverno. Ainda em 2020 é possível encontrar uma infinidade de produtos relacionados ao desenho, como
bonecas, roupas, mochilas, materiais escolares, produtos de higiene para crianças e todo tipo de acessório
de plástico.
80
O filme Pantera Negra, produzido pelos estúdios Marvel e distribuído pela Disney, lançado em 2018,
traz a história de um super herói negro, T’Challa, que torna-se rei de Wakanda, um poderoso reinado
africano cujo controle é alvo de disputa.
90
consumo socialmente desejado são vistos com desconfiança, como sujeitos “fora de seu
lugar” (FIGUEIREDO, 2004), quando não com desdém.
A respeito da população negra com menor poder aquisitivo, Rosana Pinheiro-
Machado (2019) pontua que o uso de certos bens por homens negros jovens e pobres,
como roupas, tênis e óculos de marcas caras, é socialmente encarado sob a ótica do
desprezo e do deboche, gerando incômodo especialmente entre pessoas brancas de classes
sociais privilegiadas. Isto mostra como o consumo por parte de pessoas negras,
independentemente de sua posição de classe, é visto com estranhamento e desconfiança.
É preciso interrogar os discursos produzidos pelos atores do mercado, analisando-
os de forma crítica e buscando compreendê-los frente a mudanças sociais mais amplas,
que dizem respeito ao conjunto da sociedade brasileira nos últimos anos. Não se trata de
questionar a intenção pessoal ou a legitimidade das falas aqui transcritas, mas sim de
situar as preocupações e os interesses de uma fatia do mercado que tem discutido questões
raciais.
A ideia de que o “racismo atrapalha os lucros” precisa ser posta em perspectiva,
uma vez que, historicamente, do ponto de vista de fatias importantes do mercado, o
racismo sequer era discutido ou considerado um problema para os lucros. Creio que, em
conjunto com a amplificação do debate sobre racismo que tem recentemente ocorrido no
Brasil, especialmente no âmbito das redes sociais, a ideia de classe média negra, que não
é nova, tem provocado movimentações na esfera do mercado, espraiando-se para além
dos debates acadêmicos e de alguns segmentos específicos do mercado.
81
Publicação dedicada ao público negro de periodicidade mensal.
82
Refiro-me aos governos dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011-
2016).
92
média” (ou “nova classe C”). A ideia desta “nova classe média”, bastante controversa nos
meios acadêmicos, sendo objeto de críticas por sociólogos como Marcio Pochmann (2014) e
Jessé Souza (2017), tem sido endossada por diversos atores do mercado, que enxergam neste
discurso um terreno favorável para se aproximar de determinados segmentos, notadamente
daqueles que, anteriormente, não eram reconhecidos como consumidores.
Do ponto de vista do mercado, a noção de classe social e as distinções de classe
baseiam-se não em critérios sociológicos, mas na capacidade de consumo dos indivíduos e das
famílias dos diferentes segmentos sociais. Como Heloisa B. de Almeida (2015) retoma, se
entre as décadas de 70 e 90 o mercado privilegiou a comunicação com as “classes AB”, a partir
da década de 2000 começou-se a olhar para as camadas populares. Neste período,
pesquisadores e institutos como o Data Popular83 chamavam a atenção para a expansão do
mercado consumidor nacional e para as crescentes oportunidades de acesso a bens de consumo
industrializados por parte dos setores mais pobres da população brasileira.
A questão dos cabelos foi tratada de maneira mais detida pelo fundador da Think
Etnus. Mencionando o dado de que o consumo de alisantes caiu 26% no Brasil, Fernando
Montenegro criticou a justificativa apresentada pelo presidente-executivo da Associação
Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC) em um
programa de televisão – o trecho do programa inclusive foi exibido no telão do auditório.
Enquanto o presidente da ABIHPEC atribuiu a queda do consumo de alisantes à
crise econômica e ao menor tempo gasto no banho pelos consumidores, Fernando
explicou que as mulheres negras não deixaram de consumir produtos de beleza, e sim que
estão procurando produtos para cabelos crespos naturais, e que, quando não os encontram
no mercado, recorrem às receitas caseiras para os cabelos, utilizando ingredientes como
ovo, abacate e azeite de oliva.
Assim como Renato Meirelles, Fernando Montenegro também apontou como
problema a postura das empresas. Para ele, colocar pessoas negras nas propagandas é
insuficiente, pois é fundamental que as marcas tenham em seus quadros funcionários
negros desenvolvendo produtos para pessoas negras, pensando em todas as pontas do
processo produtivo, ou seja, desde a criação do produto até a comunicação com os
consumidores.
Em determinado momento de sua fala, o fundador da Think Etnus mencionou uma
pesquisa realizada pelo Google BrandLab São Paulo em 2017. As principais conclusões
83
O Data Popular foi fundado em 2002 por João Augusto Palhares Neto e Renato Meirelles, e desde o
início de coloca como observador do comportamento da “classe C”.
93
O interesse por cabelos afro cresceu nada menos que 309% nos últimos
dois anos e, pela primeira vez, o interesse por cabelos cacheados
superou o por cabelos lisos nas buscas. Esta tendência nasceu do
underground e tornou-se mainstream com a força de símbolo do amor
próprio e do fortalecimento da identidade negra e afrodescendente. Sua
marca está preparada para essa revolução?
84
Disponível em <https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/advertising-
channels/v%C3%ADdeo/revolucao-dos-cachos/>. Último acesso em 26/06/19.
94
85
A Feira Preta “trata-se de um evento que promove que promove atividades culturais – de música, artes
plásticas, cinema, dança, literatura, moda – e comércio de produtos segmentados voltados à ‘comunidade
96
caráter comercial e cultural dirigido à população negra, Gleicy Silva (2018) frisa que a
competição entre pequenos/as empreendedores/as negros/as e grandes empresas é
desigual.
A autora mostra que, enquanto os/as pequenos/as empreendedores/as em geral não
conseguem produzir e distribuir seus produtos e serviços em grande escala e atingir preços
mais competitivos, enfrentando dificuldades até mesmo para conseguir empréstimos e
financiamentos para ampliar seus negócios, as grandes empresas que começam a atuar no
mercado segmentado, além de já possuírem previamente os recursos para produzir e
distribuir em grande quantidade e a um baixo custo, acabam por agregar ainda mais valor
à suas marcas ao adotarem um discurso que valoriza a identidade a autoestima do público
consumidor.
Esta condição de competição desigual é particularmente sobressalente quando o
setor analisado é o de cosméticos e higiene pessoal direcionados à população negra, que
inclui os produtos para cabelo. Em um dos eventos empresariais que pude acompanhar, a
fundadora da Feira Preta, Adriana Barbosa, destacou que os preços praticados pelas
empreendedoras negras da área da beleza costumam ser maiores porque elas “não têm
escala” e não possuem o poder das grandes marcas: “a mana que faz os cremes de cabelo,
de madrugada, com a ajuda da família” não teria como competir em igualdade de
condições com as grandes companhias do setor de cosméticos.
A fala de Adriana complementada por outras mulheres negras empreendedoras
que estavam participando do debate, que, dirigindo-se às mulheres negras presentes na
plateia que acompanhava o evento, sugeriram que estas, se puderem, deveriam trocar os
cremes de cabelo baratos das grandes empresas por produtos de marcas criadas por
empreendedoras negras, ainda que estes sejam comparativamente mais caros. As marcas
mencionadas como exemplos foram, respectivamente, a Salon Line – a grande empresa –
e a Makeda – a marca criada por um empreendedora negra. Mais à frente, neste mesmo
capítulo, falarei a respeito destas marcas.
Esta problemática relacionada à posição dos/as empreendedores/as negros/as em
um mercado desigual também está presente no contexto estadunidense, que pode ajudar
a iluminar as questões que permeiam o contexto brasileiro atual. Ayana Byrd e Lori
negra’. Nascida em 2002, esta feira ocorre uma vez ao ano, geralmente no mês de dezembro, na cidade de
São Paulo, em grandes espaços de exposição como o pavilhão do Anhembi [...] desde 2009 esse evento tem
sido promovido pelo Instituto Feira Preta, uma organização social sem fins lucrativos que atua na promoção
de eventos e espaços de debates sobre diferentes temas que relacionam cultura, mercado e política enquanto
reivindicações políticas da população negra.” (SILVA, 2017, p.23).
97
Tharps (2014) mostram que nos Estados Unidos, a partir da década de 40, com o sucesso
dos produtos de marcas criadas por empreendedores/as negros/as e com a ressaca
econômica provocada pela crise da década de 30, que prejudicou estas marcas, grandes
empresas geridas por pessoas brancas, tais como Vaseline, Revlon e Clairol, começaram
a se infiltrar no mercado dirigido aos cabelos crespos, tornando-se atores importantes do
segmento. Estas grandes companhias atuavam a partir de duas estratégias: desenvolviam
produtos para cabelos crespos ou compravam empresas menores que eram geridas por
pessoas negras, tornando-se donas de marcas já conhecidas e estabelecidas no mercado.
Este cenário fez com que produtores negros fossem obrigados a repensar seus produtos e
sua comunicação com os/as consumidores/as.
Em meio a essas dinâmicas, Byrd e Tharps (2014) destacam a iniciativa
organizada por dez empresas de cosméticos geridas por pessoas negras na década de
1980, quando nasce a American Health and Beauty Aids Institute (AHBAI) e a campanha
Buy Black! (em tradução livre, “compre negro!”). A AHBAI criou um selo, “the proud
lady”, que exibia a silhueta estilizada de uma mulher negra com cabelos cacheados, para
identificar os produtos fabricados pelas empresas participantes da associação, de maneira
a orientar a escolha dos consumidores no momento da decisão de compra. O selo, junto
à campanha Buy Black!, com o objetivo de fortalecer as empresas geridas por pessoas
negras, buscava provocar uma identificação entre consumidores/as e empresas,
conscientizar os/as consumidores/as a respeito da concorrência e das condições de
competição desiguais no mercado e incentivar o engajamento através do consumo.
Mais recentemente, já nos anos 2000, Byrd e Tharps avaliam que, embora grandes
empresas geridas por pessoas negras, como a Johnson Products, e pequenas marcas
criadas por empreendedoras negras, como a Oyin Handmade, tenham conquistado e
mantido sua fatia no mercado, a concorrência de companhias gigantes como a L’oreal e
a Procter & Gamble é bastante agressiva. Como as autoras reforçam, tais companhias
conseguem oferecer às consumidoras produtos muito similares aos fabricados pelas
marcas criadas por pessoas negras, mas a preços substancialmente menores: o volume de
produção e a capacidade de cortar custos seriam fatores decisivos que favorecem as
companhias multinacionais.
É possível afirmar que o cenário atual do mercado brasileiro de cosméticos
dirigidos aos cabelos crespos e cacheados é semelhante a este. A avaliação de Adriana
Barbosa, criadora da Feira Preta, quanto à posição das marcas de cosméticos criadas por
empreendedoras negras, e a sugestão de que as mulheres negras devem investir nos
98
produtos um pouco mais caros destas marcas, de modo a apoiar o trabalho das
empreendedoras negras e a consumir de maneira engajada, apontam justamente para as
diferentes – e desiguais – posições ocupadas pelas marcas dentro do segmento.
2.4.1 - Seda
A marca Seda, conhecida por praticar preços populares e por ter seus produtos
amplamente distribuídos por todo o Brasil, pertence à Unilever, companhia multinacional
europeia de origem holandesa e britânica. Conforme o próprio site da marca86, a Unilever
é proprietária de mais de 400 marcas compradas em 190 países, e seus produtos, que
86
Disponível em <https://www.unilever.com.br/about/who-we-are/>. Último acesso em 15/06/20.
99
englobam artigos de limpeza, higiene pessoal, bebidas e alimentos, são utilizados por 2,5
bilhões de pessoas diariamente.
A Unilever surgiu em 1929 a partir da fusão da empresa holandesa Margarine
Unie, produtora de margarina, e da britânica Lever Brothers, fabricante de sabão. Neste
mesmo ano, sob o nome Irmãos Lever, abriu escritório em São Paulo e iniciou as
atividades com a importação dos sabões Sunlight e Flocos Lux, ambas marcas
pertencentes à companhia. Em 1960, ao adquirir a empresa brasileira Gessy, fabricante
de produtos de higiene pessoal, a Irmãos Lever tornou-se a Gessy Lever. Foi apenas em
2001 que a companhia mudou de nome, transformando-se em Unilever.
A Unilever, ao longo de sua história no Brasil, sempre investiu pesadamente em
propaganda, anunciando seus produtos no rádio e na televisão ao longo do século XX. Já
na década de 1940, a companhia possuía um Departamento de Propaganda equipado com
um núcleo de Contatos Diretos com o Consumidor, criado para promover o uso de
sabonetes e sabões em flocos e em pó. Como Heloisa B. de Almeida (2015) afirma, a
Unilever, diferentemente de outras grandes companhias presentes no Brasil,
historicamente apostou na comunicação com os consumidores das camadas populares,
criando produtos e campanhas publicitárias dirigidas ao público que o mercado qualifica
como classes C, D e E87.
A companhia trouxe a marca Seda –no exterior, chamada Sunsilk – para o Brasil
em 1968, e começou a comercializar xampus em garrafas de plástico e sachês individuais,
em uma época onde era comum lavar e tratar os cabelos com sabão e com receitas feitas
a partir de ingredientes caseiros. De início, a marca lançou xampus para quatro tipos de
cabelos - oleosos, secos, opacos e normais -, investindo também em produtos como spray
fixador, creme rinse e condicionador nos anos seguintes.
A linha Seda Hidraloe (Figura 3), destinada ao cuidado dos cabelos cacheados,
foi lançada em 1998 e apresentava quatro produtos: xampu, condicionador, máscara de
hidratação e creme de pentear. A marca afirma que esta linha foi criada para atender ao
pedido de consumidoras, considerando o biótipo da maioria das brasileiras. Os rótulos
dos produtos, as propagandas impressas e os filmes para a televisão eram protagonizados
por mulheres brancas com cabelos cacheados, que exibiam cachos mais abertos e
brilhantes, muito semelhantes ao efeito causado pelo babyliss, ferramenta de metal
aquecido utilizada para modelar cabelos lisos.
87
Trata-se, aqui, de um critério mercadológico de classes, com base na capacidade de consumo por
domicílio, distante da análise sociológica sobre classes sociais.
100
Dois anos depois, em 2000, a marca lança a linha Keraforce (Figura 4),
desenvolvida para cabelos crespos quimicamente tratados, que também apresentava os
quatro tipos de produtos da linha Hidraloe. É preciso frisar que os produtos não são
simplesmente pensados para cabelos crespos, mas sim para cabelos crespos submetidos a
processos de alisamento. Aqui, as modelos protagonistas são mulheres negras que não
são retintas e seus cabelos variam entre o liso e o cacheado – ao menos no material que
pude encontrar na Internet, não há mulheres negras com cabelos crespos que aparentam
ser naturais nas campanhas de divulgação da linha.
101
Mais tarde, em 2006, Seda lança no mercado nacional uma linha denominada Anti-
Sponge, que prometia transformar cabelos armados e com frizz em cabelos com volume
controlado e sem fios arrepiados. As peças publicitárias que divulgaram os produtos
chamam a atenção por serem protagonizadas por um leão, e não uma mulher, como
tradicionalmente ocorre em propagandas de produtos de beleza.
102
A marca Salon Line é uma empresa brasileira fundada no final da década de 1990
que se tornou conhecida no mercado de beleza nacional por fabricar diferentes tipos de
alisantes, relaxantes e produtos de tratamento para a manutenção para cabelos com
química. Embora a marca sempre tenha elaborado produtos para consumidoras com
cabelos crespos e cacheados, foi apenas a partir da década de 2010 que passou a elaborar
fórmulas que não se focassem nas técnicas de alisamento, criando inúmeras linhas
específicas para as distintas texturas capilares.
Diferentemente de Seda, trata-se de uma marca de dimensões um pouco menores,
criada em território brasileiro e cuja atuação em relação aos cabelos crespos e cacheados,
no que tange aos produtos que não se destinam ao alisamento, é mais recente. No entanto,
assim como Seda, trata-se de uma marca que pratica preços considerados populares e
acessíveis e que é facilmente encontrada em supermercados, perfumarias e farmácias.
Ainda que a fabricação dos alisantes e relaxantes não tenha sido interrompida,
Salon Line direcionou maciçamente seus investimentos de publicidade para os produtos
dirigidos às consumidoras crespas e cacheadas com cabelos naturais. Os comerciais
feitos para a Internet, os anúncios colocados em estações de metrô em São Paulo, a
contratação de influenciadoras digitais como embaixadoras da marca, a criação de canal
próprio no Youtube e de perfil oficial no Instagram são exemplos desta concentração de
109
das embaixadoras da marca, assistir de perto os pequenos shows das cantoras Ludmilla e
Iza e ganhar os brindes distribuídos nos stands destinados às blogueiras.
Os stands dedicados aos lojistas, embora tenham reunido um número menor de
pessoas, também chamaram minha atenção porque exibiam, em suas vitrines, uma grande
quantidade de produtos da marca. O catálogo de produtos da marca distribuído aos lojistas
em 2018 informa com precisão a dimensão da produção em questão: a Salon Line possui
um portfólio de 16 linhas e mais de 400 produtos, que engloba xampus, condicionadores,
cremes de tratamento, produtos de finalização, equipamentos elétricos para os cabelos,
alisantes, relaxantes, tinturas e óleos. Além de apresentar detalhadamente cada produto
fabricado, o catálogo traz os números acumulados pela marca nas redes sociais,
reforçando aos possíveis lojistas compradores a popularidade e rentabilidade que os
produtos Salon Line podem proporcionar, como se vê na Figura 11:
Na segunda página do catálogo, a marca anuncia que possui mais de 4,5 milhões
de seguidores no Facebook, 2 milhões de seguidores no perfil do Instagram e 300 mil
111
88
Dados de agosto de 2018. Em março de 2022, a marca contava com 3,6 milhões de seguidores do
Instagram e 625 mil inscritos em seu canal no Youtube.
112
As fotos acima (Figuras 12 e 13), tiradas por mim em uma grande perfumaria do
centro de São Paulo, exibem as prateleiras reservadas aos produtos Salon Line. Os
produtos destacam-se por apresentarem rótulos extremamente coloridos e repletos de
informações escritas e desenhos, e cada linha de produtos diferencia-se por uma
determinada combinação de cores. Além de as embalagens destacarem o nome da marca,
113
A Figura 14, que compõe a divulgação dos produtos Meu Liso, traz a
influenciadora digital Thais Carla como protagonista, conhecida nas redes sociais por se
colocar como militante gorda em seus perfis do Facebook e do Instagram e em seu canal
no Youtube. A escolha de uma modelo como Thais, uma mulher gorda cujo manequim é
considerado grande até mesmo para o segmento de moda plus-size (BETTI, 2014), é algo
que coloca a marca em uma posição singular no mercado da beleza, que quase nunca
escolhe mulheres gordas como estrelas das campanhas de cosméticos.
Junto a Thais, outra influenciadora digital que também é embaixadora Salon Line
e garota propaganda das linhas Meu Liso é a youtuber Thiessa, uma jovem mulher branca,
com longos cabelos lisos castanhos, que se coloca publicamente como mulher
114
A marca Deva Curl nasceu nos Estados Unidos, em 2002, quando seu primeiro
produto, o condicionador higienizante No Poo foi lançado. Seus fundadores, a americana
Lorraine Massey e o brasileiro Denis da Silva, eram os cabeleireiros proprietários do salão
Deva Chan, fundado em Nova York em 1994 e dedicado a cuidar de cabelos cacheados.
Lorraine e Denis criaram a marca a partir de receitas que elaboravam em seu salão, pois
115
não encontravam no mercado produtos que tratassem adequadamente dos cabelos das
clientes: eles buscavam fórmulas que limpassem os cabelos cacheados sem ressecar
demasiadamente os fios.
Em comparação à Seda e Salon Line, Deva Curl é uma marca menor em termos
do tamanho de sua atuação e da distribuição dos seus produtos. Diferentemente destas
duas marcas, Deva Curl possui um foco muito específico, pois já nasceu como uma
empresa exclusivamente voltada para os cabelos crespos e cacheados.
A marca afirma ser a criadora das técnicas de tratamento no poo (sem xampu) e
low poo (pouco xampu), que em realidade são os nomes de dois produtos e marcas
registradas da empresa. No Brasil, os termos no poo e low poo, comumente mencionados
nas redes sociais por consumidoras e influenciadoras digitais crespas e cacheadas,
popularizaram-se com tanta intensidade nos últimos anos que foram descolados da marca,
tornando-se sinônimos de um jeito particular de cuidar dos cabelos crespos e cacheados.
De início, a marca compreendeu tal popularização como um problema, chegando
a cobrar a retirada dos nomes no poo e low poo, presentes nos nomes de grupos de
Facebook e em nomes de lojas de cosméticos virtuais, das administradoras dos grupos e
das proprietárias das lojas, ameaçando processá-las judicialmente. Em 2016, esta atitude
da marca gerou uma repercussão bastante negativa nas redes sociais, com consumidoras
e influenciadoras digitais crespas e cacheadas alegando que a empresa estava querendo
prejudicar pequenas empreendedoras e influenciadoras que faziam um trabalho de
divulgação dos produtos sem nada cobrar. Com esta repercussão negativa, a marca retirou
as cobranças e passou a se focar em ações judiciais contra marcas de cosméticos
brasileiras que têm colocado os termos em seus rótulos, justificando que os nomes são de
sua propriedade.
Dado que no campo estudado os termos no poo e low poo são tratados como nomes
de técnicas, tornando-se categorias êmicas de uso frequente, opto por utilizá-los no texto
desta maneira, grafados em itálico e em inglês, sem tradução. Compreender o significado
e o uso destes termos é fundamental, uma vez que eles expressam uma pedagogia de
cuidados e um conjunto de técnicas específicas desenvolvidas e compartilhadas por
diferentes interlocutoras.
A Deva Curl chegou ao Brasil no final da década de 2000, e a princípio, era de
difícil acesso, pois os produtos eram importados dos EUA, possuíam um preço elevado e
eram prioritariamente comercializados para salões de cabeleireiro. Posteriormente, os
produtos começaram a ser fabricados no país, o que ampliou um pouco mais a sua
116
divulgação foi feita através do perfil da Academia Deva Curl, escola de cabeleireiros em
São Paulo que forma profissionais segundo métodos próprios, administrada pelo
cabeleireiro Rodrigo Nakamura, irmão de Denis. De fato, nesses encontros, pude notar
uma presença maior de consumidoras e influenciadoras no primeiro, enquanto, no
segundo, em que Denis fez demonstrações de cortes em modelos cacheadas e crespas, a
maioria das pessoas presentes eram cabeleireiras ou aspirantes a cabeleireiras.
Ainda que os encontros promovidos pela Deva Curl possam, em alguns
momentos, ter o objetivo de atrair consumidoras e influenciadoras, as figuras do salão e
do cabeleireiro profissional sempre estão presentes, por vezes materializando-se na figura
de Denis, que sempre se apoia em sua trajetória profissional para apresentar a marca e a
funcionalidade dos produtos. Mesmo nos eventos em que Denis não esteve presente, o
encontro foi conduzido por cabeleireiros treinados pela marca, que explicaram
detalhadamente os usos e aplicações dos produtos, realizando demonstrações em
modelos.
O posicionamento da marca em priorizar a relação entre marca, cabeleireiro e
consumidora fica clara no seguinte texto, publicado no site brasileiro da empresa89:
89
Disponível em < https://devacurl.com.br/sobre-nos/>. Último acesso em 15/06/20.
118
Como se vê na Figura 15, nos produtos enfileirados nas prateleiras de uma grande
perfumaria no centro de São Paulo, predominam as cores mais suaves e o número de
informações nos rótulos é mínimo. Alguns dos produtos são comercializados em
embalagens de litro, com válvulas pump, pensadas para o uso em salão, embora
consumidoras também possam comprá-las. O preço da maioria dos produtos é bastante
elevado: as versões em embalagens maiores, de um litro, que apresentam uma relação
custo-benefício melhor que as embalagens regulares custam, aproximadamente, entre 150
e 230 reais90. Apesar de elevados, esses preços, no entanto, não são diferentes dos
90
Preços praticados no ano de 2019.
120
praticados por outras marcas que fabricam produtos para cabeleireiros, como L’oreal
Professionnel, Redken e Schwarzkopf Professional .
Deva Curl, assim, ocupa uma fatia bastante específica e limitada do mercado
dirigido aos cabelos crespos e cacheados, ainda que seja uma marca conhecida por contas
de seus produtos No Poo e Low Poo. Este posicionamento não é fortuito e é ativamente
construído pela empresa, que objetiva manter uma imagem de marca que fabrica produtos
profissionais e de custo mais elevado, destinado a consumidoras que, em tese, querem um
tipo de tratamento mais exclusivo para seus cabelos crespos e cacheados.
2.4.4 - Makeda
maneira que, segundo as irmãs Makeda, que a marca nasceu, a partir desta necessidade
que não era atendida pelo mercado convencional.
Sheila e Shirley já concederam entrevistas a diversos veículos de comunicação,
como as revistas Marie Claire91 e Claudia92 e os jornais Huff Post Brasil93 e Folha de
São Paulo94. Em geral elas são apresentadas nas reportagens como empreendedoras
negras de sucesso. As irmãs, nas entrevistas, sempre ressaltam a importância da trajetória
de empreendedorismo da mãe em suas vidas e comentam que esta foi a verdadeira rainha
as a inspirar na criação da marca.
Em 2012, a marca fez sua primeira participação na Feira Preta, apresentando dois
produtos ao público: um ativador de cachos e um umidificador. Cinco anos depois, em
2017, com um catálogo de 17 produtos, abrangendo diferentes tipos de xampus,
condicionadores, máscaras de tratamento e finalizadores, as irmãs Sheila e Shirley
abriram uma loja da marca no Shopping Light95, localizado no centro de São Paulo. Nesta
loja as consumidoras têm a possibilidade de não apenas comprar os produtos, mas de
experimentá-los através das aplicações realizadas pelas vendedoras.
A venda dos produtos é realizada também através da loja virtual da marca e de
revendedoras credenciadas. Não há informações sobre a venda dos produtos em
perfumarias e lojas para cabeleireiros. Em minhas incursões por perfumarias e lojas para
cabeleireiros na cidade de São Paulo, nunca encontrei os produtos Makeda à venda nas
prateleiras. A estratégia de distribuição e comercialização dos produtos Makeda, em
comparação à das outras marcas analisadas, é, portanto, bastante singular.
Em 2019 a marca iniciou o projeto Makeda Terapeuta, que visa formar
especialistas em cabelos crespos e cacheados através dos métodos de tratamento criados
pela marca. A intenção é que as alunas – o projeto é pensado principalmente para
capacitar mulheres – atuem como cabeleireiras que atendem as clientes à domicílio. Além
da formação, o projeto também permite que as profissionais se tornem revendedoras dos
produtos Makeda, fornecendo os produtos às suas clientes. O site da marca diz que o
91
Disponível em <https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2018/09/negras-
empreendedoras-mulher-por-tras-da-marca-referencia-em-cabelos-crespos.html>. Último acesso em
15/06/20.
92
Disponível em <https://claudia.abril.com.br/carreira/sheila-makeda-desafios/>. Último acesso
em 15/06/20.
93
Disponível em <https://www.huffpostbrasil.com/2018/12/28/shirley-sandra-e-sheila-as-donas-
da-veia-empreendedora-que-vem-de-berco_a_23626916/>. Último acesso em 15/06/20.
94
Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2019/10/nosso-sucesso-e-
um-farol-diz-dona-de-marca-de-produtos-para-cabelo-afro.shtml>. Último acesso em 15/06/20.
95
A loja foi fechada nos primeiros meses de 2020.
122
96
Disponível em <https://www.makedacosmeticos.com.br/>. Último acesso em 15/06/2020.
123
***
Iniciei este capítulo com uma discussão sobre como a amplificação do debate
público sobre o racismo e a ideia de classe média negra têm movimentado algumas esferas
do mercado. Pontuei esta discussão mais geral para então compreender a posição do
mercado da beleza diante destas questões, pois, em meu entendimento, não é possível
125
97
Ana é uma figura identificada como empreendedora negra ou afroempreendedora.
98
Há uma discussão sobre o significado do termo dread, que apontaria para uma origem racista: dread viria
do termo dreadful, que significa horrível ou desagradável. Todavia, opto por empregá-lo aqui seguindo o
discurso da interlocutora.
99
O cabelo endredado, utilizado pelos adeptos da religião rastafári, de origem afro-caribenha, tornou-se
um penteado popularizado a partir dos anos 70, época em que o cantor jamaicano Bob Marley, que exibia
longos dreadlocks, tornou-se mundialmente conhecido.
128
Se pessoas brancas que utilizam dreads podem ser lidas como pessoas descoladas,
que gostam de um estilo alternativo ou que praticam esportes como o surf, no caso de
pessoas negras que utilizam o penteado a leitura costuma ser diferente. Pessoas negras
que utilizam dreadlocks em geral têm sua imagem associada à sujeira, ao desleixo, ao uso
de drogas ilícitas e à uma postura pouco profissional ou mesmo moralmente duvidosa.
Isto fica evidente no trecho transcrito acima, em que Ana diz que, na visão das crianças
que são colegas de sua filha pequena, uma pessoa com dreads não poderia ser professora,
como se um cabelo endredado fosse incompatível com uma posição de respeito e
autoridade.
As atitudes negativas com relação aos dreads não se esgotam no sentimento de
repugnância e desconfiança, mas também incluem as situações, como mencionado por
Ana Paula, em que pessoas se sentem autorizadas a tocar o cabelo endredado sem a
permissão do usuário do penteado. Como a youtuber ressalta, o cabelo endredado não é
apenas uma parte do corpo, mas é, em sua perspectiva, um elemento político e subjetivo
relevante: “é minha expressão de amor, de autocuidado, de resistência”.
Aqui, penso ser importante problematizar o ato de tocar, seguindo as reflexões de
Grada Kilomba (2018) e Sara Ahmed (2002). Kilomba, ao narrar situações vivenciadas
por mulheres negras que tiveram seus cabelos tocados sem permissão, caracteriza o ato
de tocar como uma invasão, onde a diferença, encarnada pelos cabelos crespos, é utilizada
como marca para que corpos negros sejam tratados como objetos públicos. Ahmed, por
sua vez, argumenta no sentido de uma ambivalência, mostrando como a rejeição e
distanciamento em relação aos corpos racializados, como os corpos de pessoas negras,
dividem espaço com um outro tipo de desejo: o desejo de se aproximar, de tocar e de
“comer” o outro101, visto também como exótico e desejável.
Contudo, não apenas o ato de tocar o cabelo é problemático, uma vez que, em
certos aspectos, a própria “curiosidade” em torno da limpeza dos cabelos endredados e a
falta de informações acerca da manutenção dreads estão ligadas a concepções coloniais
e racializadas de limpeza e sujeira. Frequentemente as pessoas negras que utilizam dreads
100
Trecho transcrito do vídeo “Dente branco todo mundo tem!”. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=JiPUaVhGrDE>. Último acesso em 06/05/20.
101
Como Ahmed aponta, o desejo de “comer” o outro é tratado por bell hooks (2019).
129
são assaltadas por perguntas, realizadas em um tom intrusivo, como “você lava seu
cabelo?”, “como você faz para lavar?” e “você penteia?”.
O cabelo crespo, seja em sua textura natural ou penteado em dreadlocks ou
tranças, é historicamente associado à sujeira e à selvageria pelo pensamento colonial e
eurocentrado. Anne McClintock (2010) e Grada Kilomba (2018), problematizam os
binarismos limpeza/sujeira, penteado/indisciplinado e civilização/selvageria, que
orientam estas percepções. Lavar e pentear são operações tematizadas pelo pensamento
colonial, que associa o sujo e o selvagem aos sujeitos colonizados, especialmente às
pessoas negras.
No contexto da escravização dos povos africanos, o cabelo crespo, em suas várias
apresentações – solto, trançado, endredado, etc. – tornou-se elemento central para a
definição de noções de limpeza, sujeira, civilização e selvageria. Apenas os modos
eurocêntricos de lavar, pentear e cuidar dos cabelos foram legitimados, reforçando uma
ordem racial hierárquica e justificando o medo do contágio racial por parte dos sujeitos
brancos, que não reconhecem os rituais de limpeza e de cuidados estéticos dos povos
colonizados.
Ainda que mencione os aspectos negativos das experiências de quem utiliza o
cabelo endredado, Ana cultiva, em seu canal, um discurso generoso a respeito de seu
cabelo. Palavras como palavras como amor, cuidado e resistência são mobilizadas para
descrever a relação que construiu com seus dreads ao longo dos anos. Em alguns vídeos,
ela apresenta os produtos que usa em seu cabelo e explica detalhadamente como eles
devem ser utilizados nos dreads. A marca Salon Line, da qual Ana Paula tornou-se
embaixadora, é frequentemente mencionada.
No vídeo “Xongs, tá acontecendo!!!!”, publicado no início de 2019 em seu canal,
Ana anuncia o início de uma parceria com Salon Line, sublinhando, de modo efusivo, que
é primeira embaixadora de dreads a representar a marca. Segue um trecho transcrito do
vídeo em questão:
contando, ali, pra tanta gente, que essa é sim uma possibilidade de
cabelo, valorizando e ampliando as belezas negras e, sem dúvida, me
dando uma grande oportunidade de compartilhar tudo o que eu sei
sobre dreads e sobre cabelo crespo nas redes sociais.
E tinha que ser a Salon Line, por um motivo simples de ser os produtos
que eu uso de fato! De ser os produtos que me contemplam, contemplam
o meu cabelo, o cabelo da minha filha. De ser os produtos que estão
em muitas partes do Brasil, que estão nas periferias de São Paulo, de
fácil acesso, que têm preço acessível pra mim, pros xongs. Tinha que
ser a Salon Line! E eu fico muito feliz de eles acreditarem nisso
também!102
102
Trecho transcrito do vídeo “Xongs, tá acontecendo!!!!”. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=zvTgERTsr5I>. Último acesso em 06/05/20.
131
Figura 19: Texto sobre a linha assinada por Ana Paula Xongani
Fonte: Screenshot de publicação da marca Salon Line no Instagram
O texto acima (Figura 19) foi publicado junto à imagem de divulgação da linha
no Instagram de Salon Line, em agosto de 2021. Nele, chama a atenção a ambiguidade
em torno da palavra “raiz”. Ao mesmo tempo em que o termo é utilizado para se referir
aos cabelos, é também acionado para se referir as ideias de origem e ancestralidade: a
mãe de Ana Paula, Cris Mendonça, reforça estas ideias com sua presença. A conexão
entre mãe e filha não é apenas sanguínea, mas é estética e política, pois ambas cultivam
um visual parecido, carregado de sentidos políticos e culturais específicos. “Fortalecer
134
as raízes”, aqui, significa não apenas cuidar das raízes dos cabelos, mas também valorizar
as conexões entre as mulheres negras.
Ana Paula Xongani, sozinha ou junto de sua mãe, é uma figura que incorpora uma
autoridade política e uma certa legitimidade para falar sobre cabelos crespos e estética
negra. Sua presença em determinados contextos e espaços e suas parcerias com a marca
Salon Line, de alguma forma, parecem materializar certos anseios por representatividade,
pois, para além de sua atuação enquanto estilista e influenciadora digital, Ana é uma
mulher que se identifica como preta e que utiliza estilos de cabelo crespo que se
contrapõem ao padrão eurocêntrico de beleza, como os dreadlocks e os cabelos naturais
cortados em um corte curto.
Em maio de 2021 foi lançada a marca Negra Vaidosa Scalp (ou NV Scalp), criada
por Josi Helena, que se apresenta nas redes sociais e no website da marca como uma
mulher negra especialista em estética da pessoa negra, atuante como cabeleireira e
maquiadora há 15 anos.
Na live de lançamento da marca, realizada em maio de 2021 em seu perfil no
Instagram, Josi falou sobre a principal motivação que a levou a criar a empresa: oferecer
produtos específicos para cuidar do couro cabeludo de quem utiliza tranças,
entrelaçamentos103 e dreads, combatendo os possíveis problemas que podem ser gerados
por estas técnicas, como irritações e inflamações.
Os produtos que a marca produz e comercializa são dois tipos de tônicos para o
couro cabeludo, o Scalp Calm e o Force Scalp. O Scalp Calm é um produto destinado a
acalmar o couro cabeludo, evitando que um processo inflamatório, que gera coceira e
prurido no couro cabeludo, seja desencadeado após a realização de tranças e
entrelaçamentos. Já o Force Scalp foi desenvolvido para fortalecer o couro cabeludo,
estimular a produção de novos fios de cabelo e proteger os fios já existentes que estão
trançados, entrelaçados ou endredados.
103
O entrelaçamento é uma técnica utilizada para a fixação de extensões capilares, que podem ser de fios
naturais ou artificiais. O cabelo da pessoa é inteiro trançado rente ao couro cabeludo, formando o desenho
de uma espiral na cabeça. Feito este procedimento, as extensões capilares são costuradas ou presas nas
tranças. Esta técnica é utilizada para que o couro cabeludo e as emendas das extensões não fiquem
aparentes.
135
Josi constrói a narrativa de que sua marca objetiva suprir necessidades não
contempladas pelo mercado de cosméticos para cabelos. Estas necessidades envolvem o
uso saudável de tranças e o alívio das dores das mulheres negras que aderem a estes
penteados. Em oposição aos profissionais da beleza e da saúde que desaconselham o uso
de tranças por considerarem a prática danosa ao couro cabeludo e aos fios, Josi defende
que é possível utilizar tranças e manter o couro cabeludo e os fios de cabelo saudáveis
quando cuidados específicos são tomados em relação à higiene e à execução das
tranças104.
A respeito desta discussão, a marca publicou a seguinte postagem no Instagram
em maio de 2021, exibida nas Figuras 20 e 21:
104
Josi orienta que o couro cabeludo e os fios devem ser higienizados com frequência, que não se deve
utilizar produtos e ingredientes caseiros sem orientação profissional e que o processo de trançar os cabelos
não deve puxar e tracionar excessivamente os fios, fazendo com que a pessoa sinta dor e desconforto.
136
105
A autora destaca que podemos encontrar semelhanças entre os penteados representados em estátuas
africanas e os atuais e entre os instrumentos utilizados no passado e no presente para construí-los, como o
pente garfo.
106
Uma rápida busca na Internet mostra que a formação na área se dá, majoritariamente, através de
especializações e pós-graduações direcionadas a profissionais da saúde e a profissionais da beleza em
instituições públicas e privadas de Ensino Superior.
138
O posicionamento de Josi Helena e de sua marca procura pontuar, assim, que para
além da elaboração de produtos específicos para cabelos crespos, é preciso pensar nas
necessidades de mulheres negras que se engajam em práticas específicas como as tranças,
necessidades essas que dificilmente são contempladas pelo mercado de produtos para
cabelos. Além disso, este posicionamento traz um outro aspecto relevante: a produção de
determinados conhecimentos, como os relativos ao campo da Tricologia, e o processo de
formulação de produtos precisam ser modificados para que possam dialogar com as
práticas e as necessidades de mulheres negras.
107
O MOOC, criado em 2016, foi fundado por Catarina Martins, Lídia Thays, Suyane Ynaya, Raphael
Fidelis, Louis Rodrigues, Kevin David, Vinni Tex, Aimée Regina e Levis Novaes. Desde 2017 é membro
da produtora audiovisual Conspiração Filmes. Em publicada no portal Vice, os fundadores são descritos
como “jovens negros moradores da periferia paulistana”. Disponível em
<https://www.vice.com/pt_br/article/xyk47w/conheca-o-coletivo-de-arte-moda-e-design-mooc>. Último
acesso em 07/05/20.
108
Disponível em <http://revistapress.com.br/advertising/nova-campanha-da-salon-line-homenageia-
mulheres-negras-maior-mercado-da-empresa/>. Último acesso em 16/06/20.
139
109
Como mencionado no capítulo anterior, a Salon Line, criada no final da década de 90, iniciou sua atuação
com produtos de alisamento para cabelos crespos e cacheados.
140
110
Tássio Santos possui um canal no Youtube denominado Herdeira da Beleza e presta consultoria para
marcas de maquiagem, focando-se no desenvolvimento de tons e produtos para peles negras.
142
Nude é, portanto, diferente da antiga ideia de “cor da pele”, que era utilizada, por
exemplo, para nomear curativos e lápis de cor que mimetizavam apenas os tons de peles
brancas, como se estas fossem sinônimos de “pele”.
Os traços e pontos verdes e azuis em seu rosto lembram os desenhos gráficos
tradicionalmente utilizados em pinturas corporais e faciais de sociedade africanas. Aqui,
no entanto, eles aparecem em tons vivos, que substituem a tinta branca. Novamente, esta
é uma escolha que não parece ser fortuita. Como analisado no capítulo anterior, em suas
comunicações, a marca faz uso do colorido de modo a reforçar uma imagem lúdica de
juventude, espontaneidade e diversidade, e aqui, parece que as tintas coloridas procuram
adicionar, também, um ar de modernidade à prática da pintura corporal – pintura que, no
imaginário social, remete a uma África ancestral.
O texto acompanhando o anúncio diz:
nos perfis da marca no Instagram111 (Figura 23). De modo semelhante à Erika, Steffany
também é retratada em uma postura de orgulho, com o queixo levemente erguido, olhar
firme e lábios cerrados. Seus cabelos são longos, alcançando os braços, sem franja,
possuem cachos mais abertos e um volume menor. A maquiagem utilizada também
combina tons nudes e coloridos, de modo a destacar os últimos: enquanto olhos,
bochechas e lábios encontram-se em tons próximos à pele da modelo, os pontos e traços
estão em azul.
111
Durante a pesquisa acompanhei as publicações de dois perfis da marca no Instagram: o perfil
@salonlinebrasil e o perfil @todecacho. O primeiro é perfil oficial da marca, onde são publicadas
campanhas e informações a respeito de todas as linhas da marca. O segundo é exclusivo da linha para
cabelos crespos e cacheados #todecacho, cujo nome, que contém uma hashtag, faz referência direta ao
universo das redes sociais.
144
Algumas seguidoras, tal como nos comentários acima (Figuras 24, 25 e 26),
alegaram que a marca havia escurecido a pele de Steffany nas imagens da campanha
Celebrando Rainhas Crespas e Cacheadas, protestando que nas fotos publicadas em seu
perfil pessoal no Instagram, Steffany exibe um tom de pele mais claro, diferente do que
foi apresentado no anúncio da Salon Line.
Não cabe, aqui, determinar em que medida a marca alterou ou não seu tom de pele
propositalmente ou quais fotografias representam a “real” tonalidade de pele da
influenciadora. Interessa-me, sobretudo, olhar para a controvérsia, para o modo como a
marca foi interpelada pelas consumidoras, e quais sentidos foram acionados por ambas
na construção de seus argumentos.
É curioso que uma marca seja acusada de escurecer o tom de pele de uma modelo
quando o contrário é o mais comum. Em geral, quando se fala em campanhas publicitárias
alterando a aparência de mulheres negras, há conhecidos casos de modelos ou
celebridades negras que tiveram suas peles clareadas e/ou acinzentadas em anúncios
publicitários, seja por conta do uso indiscriminado de programas de edição digital, de
recursos fotográficos inadequados ou por conta da aplicação de maquiagem em tons
inadequados às peles negras112. No contexto atual, em que as demandas por
representatividade de pessoas negras aumentaram e que as marcas estão sob um intenso
112
Em 2008, por exemplo, a companhia francesa L’oreal foi acusada de ter clareado a pele da cantora
Beyoncé em um anúncio de tinta para cabelos. Já em 2014, a cantora Preta Gil reclamou em seu perfil no
Facebook que a revista Moda Moldes havia clareado sua pele na capa que protagonizou. Recentemente, em
2019, a modelo Júnia Evaristo apontou, em seu perfil no Instagram, que sua pele havia sido clareada,
ficando com um aspecto acinzentado, em um anúncio da marca da maquiagem da youtuber Mari Maria.
146
escrutínio dos consumidores nas redes sociais, determinadas alterações no tom de pele
das modelos, realizadas de maneira intencional ou não, são alvos de críticas e
questionamentos por parte do público.
Outros comentários acerca da presença de Steffany, no entanto, levantaram de
forma explícita uma suspeição em relação à sua negritude, argumentando que ela não
seria uma representante adequada das mulheres negras que a marca pretendia atingir com
a campanha, como se vê nas Figuras 27 a 30:
maquiagem aplicada na pele da modelo estava em acordo com sua tonalidade, procurando
defender-se da acusação de que teria escurecido a pele da youtuber.
113
Por questões éticas, o nome real da marca foi ocultado e substituído por um nome fictício. Outros nomes
e dados relativos ao episódio narrado também foram modificados.
150
serem inovadores e frutos de intensas pesquisas realizadas pela marca, o primeiro seria
mais eficiente por conta de sua fórmula específica, proibida pela ANVISA – ou seja, de
acordo com a marca, seu melhor produto estaria com a venda impedida no país.
Os alisantes vendidos no Brasil, segundo a farmacêutica, são inadequados aos
cabelos afro, servindo apenas para cabelos caucasianos, e as empresas que fabricam estes
produtos, com o objetivo de não perderem mercado, são as responsáveis por impedirem
a Niara de lançar o Vegan Straightening no país. Neste momento compreendi o que ela
estava querendo dizer com “questão política”: estava se referindo à disputa por mercado
e à uma suposta influência de outras marcas contra a Niara.
A apresentação do produto aprovado para venda no Brasil, o Alisante Vegano
Profissional, foi acompanhada de explicações técnicas e da exibição de imagens de “antes
e depois” no telão que estava posicionado à frente da plateia. As fotografias mostravam
a ação do produto nos cabelos de diversas mulheres, brancas e negras: primeiro, as
mulheres apareciam com seus cabelos originais, crespos e cacheados, e as imagens
seguintes mostravam como seus cabelos haviam sido radicalmente modificados pelo
produto, transformados em cabelos muito lisos e brilhosos.
Neste momento, uma jovem mulher negra com cabelos crespos, sentada algumas
fileiras atrás de mim, pediu a palavra e disse, no microfone que lhe foi emprestado, que
não esperava ver um produto para alisamento em um evento sobre beleza afro e
representatividade. Disse que a situação parecia ser resultado de um erro de marketing
da marca, que não compreendeu as expectativas do público ali presente.
Diante deste questionamento e das reações audíveis do público, a farmacêutica
explicou que o produto não é apenas um alisante, mas sim um “tratamento” que pode ser
utilizado somente para hidratar o cabelo ou para ajudar na transição capilar. A mulher
que fez o questionamento, ao terminar de ouvir a explicação, argumentou que a transição
capilar é um processo para parar de alisar o cabelo e usar o cabelo natural, e que o uso
de um produto com potencial alisante durante este processo não era adequado.
Parte significativa do público acompanhou de maneira afirmativa os
questionamentos e posicionamentos desta jovem mulher negra e esboçou reações de
espanto e de indignação com o fato da marca apresentar um produto alisante – eu mesma
também fiquei bastante surpresa com o evento apresentar um alisante. Para esta fatia do
público, simplesmente não fazia sentido apresentar produtos alisantes a pessoas que estão
engajadas em iniciativas de valorização dos cabelos crespos naturais.
152
Como se pode ver na Figura 32, no perfil da marca no Instagram os produtos são
apresentados sob hashtags como #orgulhocrespo, #crespo, #orgulho, #cabelocacheado e
#megahaircacheado114. O texto postado junto à imagem diz “Cachos perfeitos! Então
conheça a nossa linha Orgulho Crespo!”. A marca, apesar de ter batizado a linha
referindo-se diretamente aos cabelos crespos, não se foca unicamente neste tipo de cabelo
e promete cachos perfeitos.
Esta promessa, para parte do público de crespas e cacheadas que podem vir a ser
potenciais consumidoras da marca, é vista como um problema. Em primeiro lugar, os
cabelos crespos e cacheados não são considerados iguais, apresentando distintas
necessidades e especificidades, o que requer que as marcas, neste ponto de vista,
desenvolvam produtos específicos para cada tipo de cabelo, procurando atender às
114
Megahair é um tipo de extensão ou alongamento capilar.
154
focando-se em um tipo de cabelo que não é o que está no nome da linha. A imagem que
acompanha o texto merece destaque, pois trata-se de uma modelo negra que exibe longos
cabelos cacheados que, para o olho mais treinado, não aparentam ser completamente
naturais – é possível que sejam resultado do uso de relaxamento ou de babyliss. A mesma
problemática da figura anterior é reforçada aqui, pois um produto que, em teoria, é
dirigido a cabelos crespos, tem sua comunicação voltada para cabelos cacheados.
O uso do termo Orgulho Crespo no nome dos produtos e nas hashtags de
divulgação gerou uma reação por parte do Movimento Orgulho Crespo Brasil, movimento
a favor do cabelo crespo natural construído por mulheres negras desde 2015, responsável
pelos eventos denominados Marcha do Orgulho Crespo, que ocorrem anualmente em
várias cidades do país. Em meados de outubro de 2019, semanas após a participação da
marca Hoka Professional na Beauty Fair, integrantes da Movimento Orgulho Crespo se
manifestaram no Facebook, publicando uma nota direcionada aos seus seguidores e à
marca. Aqui analiso trechos da nota, que se encontra na íntegra na parte de Anexos:
115
O Facebook é uma rede social virtual criada em 2004 por Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin
Moskovitz e Chris Hughes e que hoje pertence à Meta Platforms, conglomerado de tecnologia e mídia
digitais sediado nos Estados Unidos. O Instagram é uma plataforma de compartilhamento de fotos e vídeos
criada em 2010 por Kevin Systrom e Mike Krieger e que também pertence à Meta Platforms. O Youtube,
por sua vez, é uma rede de compartilhamento de vídeos criada em 2005 por Chad Hurley, Steve Chen e
Jawed Karim e que pertence ao grupo Alphabet Inc, sediado nos Estados Unidos e originalmente criado,
em 2015, para reestruturar a companhia Google e suas subsidiárias.
116
A categoria é uma tradução direta da expressão em inglês digital influencers e, segundo Issaaf Karhawi
(2017), passou a ser utilizada no contexto brasileiro, pelo mercado e pela área da Comunicação a partir da
segunda metade da década passada. Embora a categoria seja recente, a atuação dos influenciadores digitais
tem suas raízes em um momento imediatamente anterior, assemelhando-se ao trabalho que costumava ser
produzido pelos blogueiros. Antes da criação das mídias digitais mencionadas, a produção de conteúdo
concentrava-se nos blogs, sites que inicialmente funcionavam como uma espécie de diário virtual de seus
autores e que, com o tempo, passaram a ser canais de informação e de compartilhamento de opiniões,
impressões e posicionamentos sobre diversos temas.
161
117
É comum que os influenciadores, ao realizarem publis, deixem sinalizado, por meio de frases, hashtags
ou falando sem seus vídeos que se trata de uma parceria paga ou de um conteúdo encomendado por uma
marca.
162
118
Em julho de 2019, o Instagram realizou uma mudança com relação à exibição dos likes. As curtidas que
uma foto recebe foram ocultadas do público e só podiam ser visualizadas pelo(a) proprietário(a) do perfil.
A mudança gerou um debate acalorado nas redes sociais: enquanto alguns influenciadores consideraram a
mudança positiva, argumentando que os likes não são o único critério que define o sucesso de seu trabalho,
outros a consideraram prejudicial e tentaram driblá-la, procurando informar o número de likes de outra
maneira aos seus públicos.
119
Este parece ter sido o caso da plataforma Snapchat, dedicada ao compartilhamento temporário de textos,
fotos e vídeos. Desde o início de 2019, portais de notícias têm divulgado uma grande queda no número de
usuários.
120
Durante o trabalho de campo, deparei-me com algumas empresas desta natureza, como a Youpix, o Dia
Estúdio, a Play 9 e a Squid. Todas elas oferecem serviços voltados para a atuação dos influenciadores, para
a produção de conteúdo e para os negócios entre influenciadores e marcas.
164
que estas discussões, ainda que não sejam explicitadas ou acionadas por todos os atores
do campo, emergem com frequência e consistência, mobilizando redes de influenciadoras
e seguidoras, pautando debates sobre desigualdades de gênero e raça a partir do ponto de
vista estético-político.
As influenciadoras que acompanhei durante a pesquisa, quando produzem
conteúdos abordando temas mais politizados ou quando fazem menção a questões
relacionadas às desigualdades de gênero e raça buscam trazer reflexões e indicações que
dialoguem com o cotidiano e as experiências de suas seguidoras. Elas, com alguma
frequência, indicam às suas seguidoras livros, textos, vídeos e perfis relacionados,
principalmente, aos ativismos feministas e feministas negros.
Um exemplo que ilustra bem esse tema é o do vídeo “5 pontos fundamentais do
Feminismo Negro”121 (Figura 34), publicado por Xan Ravelli em outubro de 2017 em
seu canal, o Soul Vaidosa122. Xan é uma mulher negra, na faixa dos 30 anos e com cabelos
crespos na altura dos ombros. Em suas redes sociais, ela se define como “preta, crespa,
mãe de 2 e feminista”, e seu canal no Youtube, criado em 2013, conta com
aproximadamente 60 mil inscritos e 372 vídeos publicados123, abordando temas como
cabelo crespo, maquiagem, maternidade, feminismo, racismo e relacionamentos
amorosos.
121
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UWcWzo5Xy-w>. Último acesso em 08/10/19.
122
O nome do canal é uma espécie de brincadeira com a sonoridade da palavra em inglês soul: o termo
significa “alma” e sua pronúncia se assemelha à palavra em português “sou”.
123
Números de outubro de 2019.
166
Enquanto nos anos 40, 50, que as mulheres estavam lutando pelo
direito de trabalhar, a minha mãe, que era jovem nessa época, já
trabalhava, trabalhou a vida inteira, a minha avó trabalhou a vida
inteira também, e a escravidão foi abolida quando a minha bisavó tinha
9 anos – ela também trabalhou a vida inteira.
Mais adiante, contrasta as demandas das mulheres brancas pela liberdade sexual
– expressadas pela Marcha das Vadias – com o processo histórico de sexualização dos
167
corpos das mulheres negras124, explicando que o termo “vadia”, que algumas mulheres
brancas estão tentando ressignificar, possui um outro peso e um outro significado para as
mulheres negras.
A respeito da estética, Xan comenta que enquanto as mulheres brancas contestam
padrões de beleza impostos pela indústria da beleza, questionando se devem utilizar
maquiagem ou não, as mulheres negras nunca foram contempladas pela indústria da
beleza, ou seja, sequer tiveram a opção de utilizar ou não os produtos125.
Xan ainda complementa suas observações mencionando feministas negras que
considera importantes, como Djamila Ribeiro, filósofa e feminista negra brasileira e
Sojourner Truth, uma mulher negra, ex-escravizada, que viveu nos Estados Unidos do
século XIX. Também indica a quem está assistindo o vídeo que observe as sugestões de
textos e vídeos que colocou na caixa de informações, pontuando que é importante se
aprofundar nos debates trazidos pelo feminismo negro:
Djamila Ribeiro, autora dos livros O que é lugar de fala? (2017) e Quem tem
medo do feminismo negro? (2018), tem se destacado nos últimos anos como uma
importante referência de intelectual pública ligada ao feminismo negro contemporâneo e
acumula inúmeras aparições em programas de TV e palestras ministradas em
universidades brasileiras e estrangeiras. A figura de Djamila tem inclusive se
popularizado de maneira significativa no contexto das mídias hegemônicas e do mercado:
no fim de 2018, a filósofa protagonizou uma campanha publicitária da marca de
124
Carla Gomes (2017), em seu trabalho sobre a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, discute sobre a
tensão as feministas brancas e as feministas negras com relação às implicações raciais do termo “vadia”,
ressignificado pelas mulheres brancas como “transgressão”, “libertação” e “autonomia”, ao mesmo tempo
em que para as mulheres negras reforçaria um estigma de “hiperssexualização” e ‘inferioridade”.
125
Sueli Carneiro (2018) aponta para o caráter de exclusão racial dos ideais de beleza e de feminilidade
hegemônicos, que colocam a mulher branca enquanto referência. Coloco “mulher branca” no singular
propositalmente, para frisar que também se trata se uma imagem idealizada das mulheres brancas, também
marcada por aspectos excludentes em termos de idade, forma física, entre outros aspectos. Para uma
discussão sobre a forma física, ver Marcella Betti (2014).
168
cosméticos Avon e alguns dos eventos de lançamento de seu livro O que é lugar de fala?
– em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro entre 2017 e 2019 – foram patrocinados
pela marca Lola Cosmetics – que, entre outras coisas, fabrica produtos destinados a
cabelos crespos e cacheados naturais e em transição.
Sojourner Truth, mulher negra ex-escravizada que viveu durante o século XIX,
foi uma importante ativista abolicionista e dos direitos das mulheres nos Estados Unidos,
sendo considerada uma precursora do feminismo negro contemporâneo e atualmente
bastante mencionada pelo seu discurso “Ain’t I a woman?” (em tradução livre “E eu não
sou mulher?”), proferido em 1851 durante uma convenção pelos direitos das mulheres
em Ohio. Neste discurso, ela desafia os homens brancos presentes no local a questionarem
a ideia de fragilidade feminina, alegando que em sua vida como mulher negra nunca foi
considerada delicada e frágil e sempre trabalhou duramente (TRUTH, 2012).
Na caixa de informações do vídeo, Xan coloca outras sugestões de conteúdos,
indicando textos e vídeos produzidos por outras feministas negras às suas seguidoras: a
palestra TED “Todos nós deveríamos ser feministas” 126, da escritora nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie, os textos “Vivendo de amor” (1994)127, de bell hooks, e “A
Transformação do Silêncio em linguagem e ação” (1977)128, de Audre Lorde e os perfis
no Facebook das ativistas brasileiras Stephanie Ribeiro e Joice Berth.
Adichie, autora de obras fictícias como Hibisco Roxo (2011) e Americanah
(2013), também é uma ativista que se dedica a falar sobre feminismo e na palestra
indicada, que posteriormente foi editada na forma de livro, discursa sobre o temor em
torno da palavra “feminista” e sobre a necessidade de se difundir o feminismo para
melhorar a vida de homens e mulheres.
Audre Lorde e bell hooks, feministas negras estadunidenses, são importantes
referências no que concerne à crítica aos feminismos universalizantes. Lorde, falecida no
início dos anos 90, foi autora de obras de romance e poesia, e em “A Transformação do
Silêncio em linguagem e ação” (1977), fala sobre a tarefa urgente das mulheres quebrarem
seus silêncios e falarem, tornando-se visíveis. Hooks é autora de livros de diversos
gêneros, que incluem obras infantis e obras influentes na área da Educação, e em
“Vivendo de amor” (1994), problematiza a questão do amor e da afetividade entre as
126
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc>. Último acesso em 03/10/19.
127
Disponível em <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/>. Último acesso em 03/10/19.
128
Disponível em <https://transformativa.wordpress.com/2017/01/31/a-transformacao-do-silencio-em-
linguagem-e-acao-audre-lorde/>. Último acesso em 03/10/19.
169
129
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=2EpIZVU-N3Y>. Último acesso em 07/10/19.
130
Disponível em <http://blogueirasnegras.org/>. Último acesso em 20/04/19.
131
Números de junho de 2019.
170
feminismo negro”. Dentre os títulos elencados na lista, encontram-se “De onde vem esse
orgulho de ser crespa?”, “RESPEITA MEU CRESPO”, “3 estereótipos sobre mulheres
negras que precisam acabar” e “5 coisas sobre o racismo”. A conexão entre feminismo,
racismo e estética é presente em seus discursos, aparecendo no conteúdo falado, nos
títulos dos vídeos e no modo como estes são organizados em playlists.
A discussão de temas como feminismos, feminismo negro e racismo e a referência
ao trabalho de intelectuais e escritoras ligadas ao feminismo negro aparecem com
frequência significativa em alguns dos canais de youtubers que falam sobre cabelos
crespos e cacheados que acompanhei durante a pesquisa. A discussão, embora
majoritariamente realizada por influenciadoras negras, também aparece ocasionalmente
em alguns canais produzidos por influenciadoras brancas, como o canal da brasiliense
Gleici Duarte.
Gleici é uma mulher branca, perto dos 30 anos, com longos cabelos cacheados
ruivos. Seu canal, que leva seu nome, foi criado em 2011 e, em outubro de 2019, contava
com aproximadamente 165 mil inscritos e mais de 400 vídeos publicados. A maioria dos
vídeos tratam de temas como cabelos cacheados, cabelos ruivos e maquiagem, mas há
conteúdos sobre outras temáticas, como saúde das mulheres, sexualidade, alimentação e
exercícios físicos e feminismo. Um de seus vídeos sobre feminismo (Figura 35),
publicado em outubro de 2018, trata do livro Quem tem medo do feminismo negro?
(2018)132, de Djamila Ribeiro.
132
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=lmucynNrzSw&t=588s>. Último acesso em
23/10/2019.
171
O vídeo é uma espécie de resenha do livro em questão. Nos primeiros minutos ela
explica que acompanha o trabalho de Djamila Ribeiro há alguns anos e que gosta de ler
sobre feminismo negro porque acredita que a leitura a torna mais empática, fazendo-a
compreender que as mulheres negras trazem demandas diferentes das mulheres brancas
– sem suas palavras, as vivências das mulheres brancas não são iguais às das mulheres
negras. Em sua opinião, as mulheres brancas devem apoiar, defender e dar espaço para as
mulheres negras. Estas observações condizem com a maneira como reage ao relato,
justificando que, embora nunca tenha sofrido racismo, reconhece o impacto negativo que
atinge as mulheres negras.
Gleici, além de recomendar às seguidoras a leitura da obra de Djamila Ribeiro,
sugere que também assistam aos vídeos que fez em colaboração com a youtuber e
feminista negra Lorena Monique, que se apresenta como Neggata. Neggata é uma jovem
negra, com cabelos crespos, brasiliense e apresenta-se como estudante de Ciências
Sociais na Universidade de Brasília. Seu canal, com aproximadamente 64 mil inscritos e
69 vídeos publicados, trata de discussões relacionadas a feminismo e racismo e traz
alguns vídeos sobre cabelo e maquiagem, ensinando as seguidoras, por exemplo, a como
amarrar um turbante. Em 2019, ela estrelou uma campanha publicitária de maquiagem da
empresa Avon.
Os vídeos que são resultado da colaboração entre Gleici e Neggata foram
publicados em 2016 no canal de Gleici e intitulam-se respectivamente “Feminismo Negro
e Visibilidade na Internet pt I - Participação Especial Neggata”133 e “Solidão da Mulher
Negra, Aborto, Demandas Feminismo Negro, etc. - Participação Especial Neggata”134.
Os vídeos apresentam uma conversa entre as duas youtubers a respeito da importância do
feminismo negro e da forma específica como mulheres negras compreendem pautas como
aborto, liberdade sexual, relacionamentos afetivo-sexuais e maternidade. Termos como
empatia, sororidade e privilégio são mobilizados no diálogo de maneira a comparar as
distintas condições de mulheres brancas e negras e a criticar o feminismo hegemônico e
branco.
O ativismo de mulheres negras nas redes sociais, especialmente o de jovens que
se identificam como feministas negras e/ou feministas interseccionais, tem cada vez mais
pautado o debate público a respeito de questões relacionadas à gênero, raça, classe e
133
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=j1DJKEar-KQ&t=42s>. Último acesso em
23/10/19.
134
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=RCZGrGwIT-M>. Último acesso em 23/10/19.
173
Nesta seção, o foco recai sobre a relação entre as youtubers crespas e cacheadas
e o mercado da beleza, tomando como exemplos alguns aspectos da produção de
conteúdo de duas influenciadoras: Gleici Duarte e Gabi Oliveira. A escolha destes canais
não é aleatória, pois acredito que as questões relativas aos trânsitos e tensões entre
mercado e política aparecem de maneira muito evidente no trabalho exercido por estas
duas mulheres, possibilitando uma discussão produtiva a respeito destes temas. Ao
mesmo tempo, essas questões, é importante sublinhar, permeiam todo o campo, e não se
limitam apenas ao trabalho destas influenciadoras.
174
135
Gleici chama a atenção por seus cabelos cacheados longos e tingidos de ruivo: seu histórico de vídeos
mostra que ela já utilizou diversos tons avermelhados e acobreados, e as mudanças são constantes. Ainda,
se nos primeiros anos do canal Gleici sempre aparecia com os cabelos lisos ou levemente ondulados, a
partir do final de 2016 seus cabelos começaram a exibir cachos definidos. Tal transformação se deve, em
suas palavras, à descoberta de ser cacheada e da adesão às técnicas de tratamento específicas para este tipo
de cabelo.
136
Gordofobia é um termo que tem sido usado nas redes sociais para caracterizar o preconceito e a
discriminação contra pessoas gordas. Durante minha pesquisa de mestrado (BETTI, 2014), este termo ainda
não era tão popularizado quanto é hoje, embora seu significado já circulasse. Chama a atenção o uso do
sufixo fobia, que remete à ideia de medo ou aversão.
175
passou a ter outros conteúdos. Gleici começou a publicar vídeos sobre sua nova casa,
vídeos com sua irmã e vídeos onde respondia perguntas variadas de suas seguidoras.
Como resultado, no início de abril de 2018, Gleici publicou um vídeo, intitulado
“DEIXEI DE SER FEMINISTA? Por que não falo mais sobre?” 137, explicando porque
não estava mais falando diretamente sobre feminismo: contou que cansou de receber
comentários agressivos de haters138, que “é complicado” falar sobre o tema, mas que
ainda assim continua falando sobre empoderamento e autoestima para mulheres em seus
vídeos.
Aqui, a fala de Gleici ressoa um contexto em que, embora exista um maior
interesse público e midiático pelo feminismo, este interesse convive, ao mesmo tempo,
com um processo em que a palavra “feminismo” por vezes sai de cena para dar lugar a
outras categorias, em tese mais palatáveis para o campo do mercado e das mídias
hegemônicas: determinados temas e pautas, historicamente caros aos feminismos, são
diluídos e descolados de sua base mais “política”, sendo abordados a partir de outras
categorias, como empoderamento e autoestima139.
O afastamento de Gleici com relação a temas ou pontos de vista declaradamente
feministas parece ter sido paralelo a uma maior aproximação com certos atores do
mercado de beleza – mais especificamente, com algumas marcas de cosméticos, como a
Soul Power. No final de maio de 2018, Gleici Duarte publicou um pequeno vídeo em seu
perfil no Instagram140 onde fez uma avaliação a respeito da marca Soul Power, com a
qual trabalhava na época, explicando que esta, na grande maioria de seus produtos, coloca
rótulos com modelos negras. Segundo a youtuber, a marca possui um bom custo
benefício, pois ainda que os preços não sejam baixos (entre 25 e 30 reais), as embalagens
são grandes (cerca de 500 ml) e os produtos possuem fórmulas únicas, com uma boa
consistência, que rendem muitas aplicações.
Ainda que o foco do canal sempre tenha sido cabelos, com a publicação de
resenhas de produtos e de tutoriais sobre como cuidar dos fios, é notável que ao longo
137
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=LaW_9QhCUWU>. Último acesso em 22/10/19.
138
Haters, um termo em inglês que pode ser traduzido grosseiramente como “odiadores”, é uma categoria
êmica utilizada para nomear usuários que apresentam um comportamento agressivo na Internet, em geral
expressado por meio de comentários e postagens feitas em redes sociais que promovem ataques pessoais
contra outros usuários, figuras públicas ou influenciadores digitais.
139
Não se trata aqui, de julgar o posicionamento da influenciadora, mas de observar como este
posicionamento é fruto de um contexto maior. Ver mais em Sarah Banet-Weiser (2018), que trata da noção
de pós-feminismo.
176
dos anos Gleici passou a fazer mais parcerias com marcas, sendo convidada para festas e
eventos, fazendo mais publis e gravando com outras youtubers que também trabalham
com beleza e moda. Após o fim do contrato com a Soul Power, que ocorreu nos últimos
meses de 2018, Gleici estabeleceu uma nova parceria, desta vez com uma marca de
cosméticos maior: a Seda, da companhia Unilever.
O exemplo de Gleici Duarte, no que tange ao seu posicionamento em relação às
marcas e aos conteúdos considerados mais “políticos”, possui alguns pontos de conexão
com o caso de Gabi Oliveira, a despeito das diferenças que existem entre o perfil e o
trabalho das duas influenciadoras. Como veremos, a relação de Gabi com grandes marcas
também provoca alterações e movimentações, de certo modo, nos conteúdos de seu canal.
Gabi Oliveira é uma mulher que possui cabelos crespos e que constantemente
muda seu visual: um breve passeio por seu canal mostra cabelos crespos curtos, tranças
em estilos africanos de variados comprimento e cores, perucas, dreadlocks e turbantes.
Ela é uma figura que incorpora, de maneira muito interessante e produtiva, a distintas
possibilidades estéticas para os cabelos crespos e, de certa forma, incorpora também o
que podemos chamar de uma “autoridade da experiência” quando se trata dos cabelos
crespos e da estética negra.
Seu canal, intitulado DePretas, desde sua criação, em 2015, é focado em falar
sobre cabelos, maquiagem e questões raciais. Junto aos conteúdos sobre produtos para o
cabelo e resenhas de bases para pele negra sempre estiveram presentes os vídeos sobre
racismo e sobre as experiências de mulheres negras em relação a diversos temas, como
gordofobia, maternidade e relacionamentos amorosos, por exemplo.
No vídeo intitulado “Estética é menos importante?”141 (Figura 36), publicado em
novembro de 2017, a youtuber comenta que recebe muitas críticas por falar de beleza,
como se a estética fosse algo “menos importante”, “inútil” ou “fútil”. Contestando este
tipo de julgamento, Gabi comenta sobre a importância de se falar sobre a estética para as
mulheres negras, que atualmente estão em “um processo de quebra de padrões e de
autocuidado”. Chama a atenção o seguinte trecho do vídeo, onde ela justifica seu
posicionamento, explicando porque considera o debate sobre beleza fundamental:
141
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VTpO76KzO08>. Último acesso em 07/10/19.
177
142
Sueli Carneiro (2018) problematiza o papel central que os meios de comunicação desempenham “[...]
na cristalização de imagens e sentidos sobre a mulher negra”, pontuando que, além das mulheres negras
participarem de forma minoritária nos espaços midiáticos, em geral são retratadas em categorias específicas
e estereotipadas, como “mulatas” ou empregadas domésticas. As mídias, na realidade, reforçam
determinados sentidos simbólicos em detrimento de outros, tornando certas representações mais
hegemônicas (LAURETIS, 1987; ALMEIDA, 2007).
178
É preciso destacar que o vídeo, embora trate de questões discutidas por Gabi em
diversas outras publicações do canal, é uma colaboração da youtuber para a campanha
Juntas Arrasamos, da marca de cosméticos para cabelo Seda, do grupo Unilever. Durante
toda a exibição é possível notar um logo da marca fixado no canto direito da tela, que diz
Seda Embaixadora: durante o ano de 2018, Gabi foi uma das influenciadoras digitais que
a marca selecionou como representante nas redes sociais. A escolha do termo
embaixadora pela marca não parece ser fortuita, uma vez que a palavra remete à ideia de
representação e diplomacia, no sentido de que um/a embaixador/a exerce uma missão
pública. Ao selecionar influenciadoras para este papel, marcas como a Seda – que não é
a única a se utilizar desta estratégia de comunicação – objetivam, através do trabalho das
influenciadoras, estabelecer uma relação de maior proximidade e confiança com as
consumidoras.
Embora o canal de Gabi não tenha tanto tempo de existência quanto o de Gleici,
é possível perceber, ao assistir seus vídeos, que as publicações sobre cabelo, maquiagem
e questões raciais passaram a dividir espaço, a partir de 2017, com vídeos sobre sua
mudança de casa, sobre o intercâmbio que fez nos Estados Unidos para estudar inglês e
com um maior número de parcerias com marcas de cosméticos que a youtuber vêm
179
143
Um exemplo claro de cobrança realizada por parte das seguidoras foi o que ocorreu durante as eleições
presidenciais de 2018: muitos influenciadores digitais, o que inclui as influenciadoras de beleza e
especializadas em cabelos, foram questionados por seus públicos sobre em quem votariam.
180
seus rostos), pois julga que pode ser inconveniente ou mesmo perigoso publicar fotos e
vídeos de seus filhos nas plataformas digitais. Estes são exemplos de como aspectos
bastante sérios podem entrar em jogo e atravessar o trabalho das influenciadoras.
Além disso, uma parceria com uma empresa de cosméticos para cabelos costuma
ser um trabalho temporário, que não necessariamente possui uma remuneração
tabelada144 e que depende de uma produção de vídeos e publicações com determinada
regularidade e consistência. As influenciadoras, ainda que em alguns momentos gravem
vídeos sem maquiagem e sem os cabelos arrumados, têm sua aparência como foco de
atração de seus canais, e precisam mantê-la, despendendo tempo e dinheiro com produtos
e técnicas embelezadoras. Gleici Duarte, por exemplo, é reconhecida como
influenciadora especializada em cabelos ruivos, e precisa manter seus cabelos no tom
com constantes aplicações de tintas e tratamentos. Já Gabi Oliveira, por sua vez, é
reconhecida como alguém que apresenta uma variedade de visuais possíveis aos cabelos
crespos, e a manutenção de penteados como tranças e dreadlocks é algo que demanda
investimentos.
Apesar dos custos pessoais e financeiros envolvidos nesse trabalho, a exposição
de aspectos cotidianos e da vida pessoal e de outros projetos não necessariamente é
encarada de forma negativa, pois ser influenciadora, neste contexto, significa envolver-
se em um processo de construção de si tornado público: mostrar-se é parte essencial do
processo de construir uma relação de intimidade e pessoalidade com as seguidoras, não
bastando falar de produtos e técnicas para o cabelo para manter o sucesso do canal.
Compartilhar nas redes sociais alguns aspectos da rotina diária, sentimentos,
frustrações, fotos e vídeos em que não estão maquiadas e penteadas não causam
estranheza sua audiência, mas, ao contrário, auxiliam na criação de uma atmosfera de
proximidade e espontaneidade, que podem contribuir, inclusive, para o aumento do
número de seguidoras. Nesta relação, as influenciadoras digitais, de certo modo,
negociam (ou tentam negociar) sua visibilidade, podendo se beneficiar comercialmente
disto quando esta relação é valorizada pelas empresas.
Como vemos, trata-se de um terreno que depende de um manejo hábil de muitas
variáveis para que uma influenciadora consiga se firmar como uma profissional de
sucesso. Ao mesmo tempo, é importante atentar para as assimetrias que marcam a relação
144
As remunerações recebidas por influenciadores digitais podem variar enormemente. Um influenciador-
celebridade, com milhões de seguidores, pode cobrar centenas de milhares de reais por um único vídeo de
poucos minutos.
181
145
O trabalho de criar os conteúdos, filmar e editar os vídeos, comunicar-se com seguidoras e clientes nem
sempre é feito apenas pelas influenciadoras digitais: uma maior profissionalização da atividade implica na
abertura de uma empresa e na contratação de funcionários para executar estas atividades.
146
No caso do Youtube, por exemplo, as mudanças dos algoritmos que distribuem os vídeos provocam
consequências aos influenciadores digitais de modo geral, que são difíceis de serem previstas e geridas
182
escolha se deve a questões de economia do texto, mas lembro também que há outros
exemplos que revelam essa circulação entre influenciadora-consumidora-empresária147.
147
A trajetória da influenciadora cacheada Mari Morena é um destes exemplos. Mari, que possui um canal
no Youtube que fala sobre cabelos crespos e cacheados desde 2014, lançou sua própria marca de cosméticos
em 2016. Sua marca, também chamada Mari Morena, hoje comercializa produtos destinados a limpar, tratar
e finalizar cabelos crespos e cacheados. Estes produtos são apresentados às consumidoras como produtos
idealizados “por quem entende do assunto”: é acionada, como estratégia de vendas, a autoridade e
legitimidade construídas pela influenciadora em relação ao tema cabelos crespos e cacheados.
183
Eu lancei a minha linha junto com Seda, Seda by Gabi Oliveira! Uma
linha pensada e desenvolvida para os cabelos crespos. [...] A primeira
coisa que eu quero responder, que eu recebi muito, é sobre como a
linha foi pensada e desenvolvida e porque essa pode ser considerada
uma linha voltada para os cabelos crespos. [...] Gente, eu recebi esse
convite há mais de um ano! E desde então a gente tá trabalhando no
desenvolvimento da linha Seda by Gabi Crespoforce. [...] Desde já eu
quero que vocês saibam que tudo foi feito com muito carinho e eu
participei ativamente do desenvolvimento desse produto, não estou só
dando meu nome, eu tava lá mesmo! Tava lá participando, testando,
pedindo alteração, porque eu queria que o produto ficasse um produto
que eu compraria! [...]
Gabi explica que sua colaboração não se restringiu a assinar a linha Crespoforce,
e sim que ela participou, por mais de um ano, da escolha de ingredientes, do
desenvolvimento da fórmula e da testagem do produto: “[...] tudo foi feito com muito
carinho e eu participei ativamente do desenvolvimento desse produto, não estou só dando
148
Estes preços foram pesquisados por mim na cidade de São Paulo, e em lojas online que fazem entregas
por todo o país nos anos de 2020 a 2022.
149
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=FcpP8g_L0rU>. Último acesso em 13/03/22.
186
meu nome, eu tava lá mesmo!”. Ela conclui que seu objetivo foi elaborar um produto que
ela mesma compraria, imprimindo um tom de pessoalidade e legitimidade e reforçando
seu conhecimento e sua dedicação no papel de influenciadora crespa pensando em
produtos para cabelos como os seus.
Aqui, penso ser importante demarcar uma diferença entre o papel de
influenciadoras e o papel de artistas e celebridades quando o assunto é a presença destas
na publicidade de produtos de beleza. Se antigas propagandas de produtos para cabelo de
grandes marcas utilizavam atrizes e cantoras famosas para divulgar os produtos, gerando
uma desconfiança em parte do público consumidor, que questionava se fato estas pessoas
faziam uso dos produtos em sua vida cotidiana, as propagandas e ações de marketing mais
recentes, estreladas por influenciadoras digitais, procuram passar a impressão oposta,
pois é ressaltada a proximidade entre a pessoa, o produto e público consumidor. Como
ressaltado anteriormente, as influenciadoras digitais constroem uma relação de
intimidade com suas seguidoras e apresentam-se como pessoas comuns – ainda que
conhecidas na Internet – que também utilizam e testam produtos em seu cotidiano.
Umas das perguntas enviadas por seguidoras que Gabi procurou responder no
vídeo foi a respeito da possibilidade de os produtos poderem ser utilizados – ou não – por
quem segue os métodos no e low poo. Estes métodos, discutidos com mais detalhes no
Capítulo 5, desaconselham o uso de xampus elaborados com sulfatos e de produtos
capilares que contenham silicones, petrolato, óleo mineral e parafina. As pessoas que
seguem estas rotinas capilares consideram que os sulfatos – também chamados de
surfactantes – presentes nos xampus convencionais ressecam em demasia os cabelos
crespos e cacheados, prejudicando a saúde e o aspecto dos fios. Além disso, também
consideram que ingredientes como o petrolato, o óleo mineral, a parafina e alguns tipos
de silicones não tratam os cabelos de fato, formando apenas uma película em torno dos
fios, que não proporciona real hidratação e nutrição.
Sobre o uso de seus produtos por quem pratica as rotinas capilares no e low poo,
Gabi argumenta:
Uma outra pergunta que vocês fizeram demais foi sobre ser liberado.
Condicionador e creme de pentear, liberados para low poo. Eu acho
que o creme de pentear também é liberado pra no poo, mas eu não
tenho certeza porque eu não sigo mais a técnica já faz algum tempo,
gente! E o xampu, ele tem surfactante, mas escutem aqui o que eu estou
falando...já tem resenhas aqui no Youtube falando sobre isso, e eu vou
reforçar pra vocês! Gente, sério, a gente fez um xampu hidratante! A
gente fez! Esse xampu me deu muito trabalho! [...] Um xampu
187
150
O termo liberado é muito utilizado no campo para descrever produtos considerados adequados às
técnicas, ou seja, para descrever produtos que, do ponto de vista êmico, podem ser utilizados por quem
pratica no poo ou low poo.
188
mesma. Ainda que o produto esteja atrelado a uma outra marca, Gabi se coloca como
protagonista e mediadora neste episódio, explicando como quis elaborar produtos que
chegassem a mais pessoas e que “furassem a bolha da Internet”: sua própria imagem,
enquanto marca, é consolidada aqui.
Na época, eu tinha uma ideia de querer ter uma loja específica pra
cacheadas aqui em Brasília. Eu pensava assim, nossa, ia ser muito
legal se tivesse uma loja específica pra cacheadas. E nessa loja eu
podia ter alguma coisa pra ruiva também. Eu pensava que ter uma loja
física seria uma coisa legal. E na época, eu tinha uma amiga que era
cabeleireira e ela queria expandir, sair lá da garagem da casa dela e
ela falou assim, porque que você, a gente não monta uma coisa juntas?
Eu saio daqui, a gente vai pra um lugar maior e você cria a sua loja.
Eu falei beleza, porque com 8 mil reais eu tinha poder de barganha, eu
tinha poder de comprar alguma coisinha. Daí eu bati na porta de várias
marcas pedindo ajuda. Porque como eu era influenciadora, tudo o que
eu tinha de networking, de contato, eu fui atrás. [...] Pra quem não
sabe, quando você abre um comércio, gente, você não consegue
comprar as coisas no boleto. Tipo assim, abri um CNPJ e vou comprar
as coisas no boleto e alguém vai gostar da minha cara e vai parcelar
pra mim. Não é assim que funciona, é tipo crediário. Se você não tem
nome na praça, se você não tem histórico, não acontece. As coisas
foram acontecendo, eu bati na porta da Soul Power, bati na porta da
Kamaleão, bati na porta da Keune, bati na porta da Igora, da
distribuidora da Schwarzkopf daqui de Brasília. 151
Inicialmente, sua ideia era montar uma loja de cosméticos que vendesse produtos
específicos para ruivas e para cacheadas em Brasília. Conversando com uma amiga
cabeleireira sobre sua intenção de abrir uma loja, recebeu a proposta de formar uma
sociedade onde as duas alugariam um espaço para estabelecer um salão e uma loja de
cosméticos. Aproveitando os contatos profissionais que vinha construindo por conta de
seu trabalho como influenciadora, Gleici também começou a procurar marcas de
cosméticos para cabelos para que pudesse adquirir os produtos para abrir sua loja. Dentre
as marcas citadas, três delas comercializam, prioritariamente, tinturas para o cabelo –
151
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=B1IQ3mnOFJ8>. Último acesso em 16/03/22.
190
Kamaleão, Keune e Igora – e uma delas produz cosméticos para cabelos crespos e
cacheados.
No segundo semestre de 2019, Gleici e sua então sócia abriram um salão em
Brasília, batizado de Cor e Cacho, especializado em colorações avermelhadas e
acobreadas e em cabelos crespos e cacheados. Gleici explica que, além de se utilizar de
seus conhecimentos sobre cabelos tingidos em tons de ruivo, para ampliar seus
atendimentos no salão, também fez um curso de corte específico para cabelos cacheados
em São Paulo, utilizando, para isso, parte do dinheiro que havia economizado. Assim, a
influenciadora tornou-se também uma cabeleireira especialista em cabelos crespos e
cacheados.
No início da pandemia de COVID-19, em 2020, a parceria com a sócia foi
encerrada e o salão Cor e Cacho teve que ser fechado por conta das medidas sanitárias
restritivas determinadas pelo governo do Distrito Federal. Nesta época, Gleici decidiu
abrir a loja de cosméticos no formato e-commerce: a loja, batizada de Amor Acobreado,
passou a vender online, para todo o país, tinturas, tonalizantes e produtos para cabelos
tingidos, cacheados, crespos e ondulados. Com o sucesso das vendas desta loja, que
deslanchou durante o primeiro ano de pandemia, a influenciadora retomou seu projeto do
salão Cor e Cacho e o reabriu em novembro de 2020, em um novo espaço, na região de
Águas Claras, cidade satélite de Brasília. Ela conta que chamou novamente as
funcionárias que já haviam trabalhado com ela no espaço anterior, quando ainda existia a
parceria com a ex-sócia.
No vídeo intitulado “Vendo Meu Meu Novo Salão Pela Primeira Vez - Detalhes
do projeto”152, publicado em seu canal em setembro de 2020, quando o novo espaço ainda
estava sendo montado, Gleici mostra, com riqueza de detalhes, como o novo salão foi
pensado em conjunto com uma empresa de arquitetura, como foram escolhidos os móveis
e equipamentos e quais cores de revestimentos e pisos foram oferecidas como opção. Em
determinado momento, os arquitetos emprestam a Gleici um par de óculos de realidade
virtual, que exibe uma simulação do projeto relativo ao salão. Este vídeo, mais que uma
mera exibição de paredes, móveis e catálogos de pisos, procura mostrar às suas
seguidoras como foi investido tempo e dinheiro no novo salão, e, sobretudo, evidencia
como sua atuação como cabeleireira e empreendedora se aprofundou e se firmou.
152
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wxCrvR7mJ58>. Último acesso em 16/03/22.
191
153
Aqui, o termo alisamento aparece em itálico para marcar que se trata de uma das técnicas que faz parte
dos alisamentos químicos. Em outros momentos, o termo alisamento aparece em sua grafia regular porque
estou me referindo ao alisamento de modo geral, enquanto um conjunto de procedimentos que variam do
químico ao mecânico ou físico.
154
O hidróxido de cálcio também é chamado de guanidina no mercado de cosméticos para cabelos.
196
resultado desejado é o liso total ou a abertura dos cachos e a redução do volume? Estes
fatores devem ser considerados de modo a realizar um procedimento seguro e que
provoque o mínimo possível de danos aos fios.
O permanente afro é um produto que merece uma menção à parte. Trata-se de um
produto à base de tioglicolato de amônia pensado não para alisar ou relaxar, e sim para
criar cachos nos cabelos crespos. É o único produto cujo nome traz um marcador
explicitamente racial. Se os alisamentos e relaxamentos são procedimentos realizados por
mulheres negras e brancas, indistintamente, o permanente afro parece ser sempre um
procedimento mencionado ou praticado majoritariamente por mulheres negras com
cabelos crespos que desejam ter cachos definidos.
Os fabricantes e os cabeleireiros comumente recomendam que as clientes adeptas
dos alisamentos, relaxamentos e permanentes afro optem sempre por utilizar produtos
que contenham os mesmos ativos alisantes. Isto porque a mistura de diferentes ativos
pode acabar provocando a quebra dos fios, popularmente conhecida como corte químico.
Cabelos que passaram por um corte químico em geral possuem um aspecto ressecado e
fragilizado, pontas afinadas e regiões da cabeça onde os fios estão mais curtos ou ralos.
As marcas que fabricam estes produtos orientam os cabeleireiros e as
consumidoras a refazerem os procedimentos aplicando o produto apenas nas raízes
crescidas, e não no comprimento do cabelo, que já foi quimicamente processado
anteriormente. A reaplicação dos alisamentos, relaxamentos ou permanentes afro no
comprimento do cabelo muitas vezes resulta em um corte químico, pois a fibra capilar
nem sempre suporta um novo processamento.
Os retoques podem ser particularmente trabalhosos no caso dos cabelos crespos,
que requerem uma manutenção mais frequente para que não haja diferença de textura
entre as raízes e o comprimento. A alta frequência de retoques, contudo, aumenta o risco
de danos ao couro cabeludo e aos fios. Ainda que o uso de ativos como os hidróxidos e o
tioglicolato, em concentrações limitadas, seja permitido e regulamentado pela ANVISA,
tais substâncias, mesmo quando manipuladas cuidadosamente, ainda assim podem irritar
e ferir o couro cabeludo e provocar a quebra dos fios.
As outras químicas disponíveis no mercado brasileiro são as escovas progressivas.
Estes produtos são fabricados a partir de uma variedade de ácidos, como o ascórbico, o
glioxílico, o tanino, o lático e o cítrico, em geral associados a proteínas que promovem
um efeito reconstrutor nos fios, como a queratina e a carbocisteína. São bastante populares
no país e também são conhecidas no exterior.
197
pura para fazer misturas alisantes caseiras sem qualquer orientação profissional,
conhecimento sobre formulações de cosméticos ou procedimentos de segurança.
Cabeleireiros que realizavam estas misturas irregulares, inclusive, nem sempre
comunicavam o fato às clientes: eram comuns relatos de mulheres que, nos salões, não
tinham acesso às embalagens dos produtos e apenas viam o profissional sair de uma sala
localizada nos fundos com uma mistura de forte odor já pronta em mãos, preparada longe
de seu campo de visão.
Dado que a porcentagem de 0,2% de formol em produtos para cabelos serve
apenas para conservar as fórmulas e não possui poder alisante, marcas de cosméticos para
cabelos criaram algumas estratégias para continuar vendendo as escovas progressivas.
Surgiram, no mercado, produtos com nomes diferentes, como selagem e botox capilar,
que diziam ter como base outras substâncias que não o formol, como, por exemplo, os
ácidos mencionados mais acima. Surgiram também produtos que prometiam o efeito liso
ou a diminuição do volume sem conter nenhum tipo de química, apenas “ingredientes
naturais” – estes produtos muitas vezes eram nomeados como escova orgânica ou
inteligente.
Cabeleireiros, farmacêuticos e químicos, à época, apontaram problemas sérios em
relação a estes produtos. Em primeiro lugar, denunciaram que quaisquer produtos que
prometiam efeito alisante e redução de volume continham sim algum tipo de química,
pois seria impossível atingir tais efeitos apenas com o uso de “ingredientes naturais”. Em
segundo lugar, explicaram que alguns produtos, mesmo com as fórmulas aparentemente
modificadas, sem a presença explícita do formol na lista de ingredientes, ainda assim
apresentavam riscos à saúde, pois as substâncias presentes nas fórmulas, quando
aquecidas pelo secador e pela prancha, liberavam formol sob a forma de fumaça ou vapor
– o formol estaria “escondido” na fórmula, “camuflado” através de outro componente.
Ainda que as escovas progressivas e suas variações tenham gerado muitas dúvidas
e desconfianças nas décadas de 2000 e 2010, elas ainda continuam populares e é possível
encontrar estes produtos em lojas de cosméticos e salões de beleza. Elas permanecem
sendo utilizadas por mulheres com cabelos crespos e cacheados e também por mulheres
com cabelos lisos que desejam fios mais alinhados e com pouco volume. Marcas
brasileiras exportam escovas progressivas, e, no exterior, o método é conhecido Brazilian
Blowout (“escova brasileira”) ou Brazilian Hair Straightening (“alisamento brasileiro”).
Apesar da interferência da ANVISA e dos alertas de especialistas, os casos de
intoxicação por formol e de danos ao couro cabeludo e aos cabelos causados por escovas
199
progressivas também seguem acontecendo. Uma rápida busca na Internet revela que,
desde a década de 2010 até o presente momento, ainda há mulheres e meninas sofrendo
com descamação severa do couro cabeludo, perda dos cabelos e intoxicação causadas por
este tipo de procedimento capilar.
Os danos muitas vezes são causados por produtos irregulares ou pela negligência
por parte de quem realizou o procedimento. Há inclusive casos de mortes de mulheres
associadas ao uso de escovas progressivas. É possível encontrar reportagens sobre as
investigações policiais realizadas, que procuravam saber se teria havido uso indevido de
formol e se o atendimento hospitalar às vítimas havia sido adequado.
Chama atenção o fato de a maioria das vítimas dos procedimentos mal sucedidos
ser de mulheres negras ou não-brancas. Este dado não é acidental e mostra que estas
mulheres, que constituem a fatia da população que mais consome produtos alisantes, têm
seus corpos vulnerabilizados por práticas estéticas que podem apresentar riscos à saúde e
à vida. O ideal do liso compulsório (CRUZ, 2017), mais que impor um padrão estético às
mulheres, atinge e vulnerabiliza corpos específicos, marcados racialmente.
Dito isto, não estou afirmando que os corpos de mulheres brancas não possam ser
afetados pelas químicas, mas estou chamando a atenção para o fato de que são as mulheres
negras e não-brancas que têm seus cabelos e corpos submetidos a produtos não
regularizados, a misturas duvidosas, a concentrações acima das permitidas e uma prática
negligente por parte de alguns profissionais, que ignoram o tempo de ação correto dos
produtos ou as reações adversas que as clientes estão sentindo.
Considero fundamental, portanto, discutir as práticas alisantes não apenas de um
ponto de vista simbólico, mas de um ponto de vista material. Corpos são modificados e
afetados desigualmente por estas práticas, e por isso é importante falar sobre substâncias
químicas, protocolos de uso e potenciais efeitos colaterais tendo em vista como há
consequências diretas, visíveis e assimétricas relacionadas a estas questões.
Além dos casos que envolvem graves danos à saúde, durante a pesquisa também
tomei conhecimento de casos em que os profissionais alisaram os cabelos das clientes
sem o consentimento destas, seja porque prometeram realizar apenas uma hidratação ou
uma escova comum, quando na realidade aplicaram uma progressiva, ou porque
utilizaram instrumentos com resquícios de químicas155. Ainda que estes casos não tenham
155
Um caso muito comum é quando a cliente pede uma escova e o profissional, aparentemente, utiliza
instrumentos “contaminados” por resquícios de progressiva, que acabam promovendo, mesmo sem
intenção, um efeito alisante permanente no cabelo da cliente. Outros casos, no entanto, mostram
200
resultado em prejuízos à saúde, eles também precisam ser mencionados pois demonstram
como as práticas de alisamento são normalizadas e generalizadas, ao ponto de afetarem
corpos de maneira não consentida.
intencionalidade, pois o profissional promete um alisamento mecânico e executa uma química, e, quando
confrontado, alega que a química é utilizada apenas para “facilitar” a escova.
201
Este ao menos era o consenso predominante até então entre cabeleireiros. Nos
últimos anos, entre alguns dos profissionais especialistas em cabelos crespos e cacheados,
tem ocorrido um crescente debate a respeito dos efeitos a longo prazo provocados pela
repetição dos alisamentos mecânicos. Estes cabeleireiros alegam que a repetição
constante dos procedimentos, por meses ou anos, pode ser sim capaz de esticar
permanentemente parte das mechas de cabelo das usuárias destes métodos, o que faz com
que elas também tenham que passar por uma espécie de transição capilar quando
abandonam tais práticas. Este alisamento permanente seria um tipo de dano causado pelo
uso constante de instrumentos que atingem temperaturas muito altas, especialmente as
chapinhas que atingem 200ºC ou mais: o calor excessivo seria capaz de afetar não apenas
as ligações fracas, mas também as ligações fortes da fibra capilar.
O alisamento mecânico pode ser eficiente e prático para quem pontualmente busca
um visual liso, sem desejar um efeito prolongado, mas também pode se tornar cansativo
e trabalhoso para quem sempre deseja exibir cabelos lisos, pois requer que os
procedimentos sejam repetidos com muita frequência e que a usuária evite a umidade e
atividades que geram suor ou que molham os cabelos. Muitas mulheres crespas e
cacheadas relatam que, ao longo de suas vidas, já gastaram inúmeras horas realizando
escovas e pranchando os cabelos, em casa ou no salão, e também evitaram a prática de
exercícios físicos, idas à praia ou à piscina porque queriam preservar o efeito liso
temporário nos cabelos. Os procedimentos de alisamento mecânico, portanto, são capazes
de modificar o cotidiano e os momentos de lazer das mulheres que os utilizam, gerando
interferências e restrições em algumas atividades.
Em adição, as técnicas de alisamento mecânico também têm o potencial de
danificar os cabelos e o couro cabeludo. A tração realizada pelo procedimento da escova,
o calor do secador e as altas temperaturas das chapinhas podem desidratar e fragilizar os
fios, levando-os à quebra. Os secadores e chapinhas, se manipulados com pouco cuidado,
podem atingir o couro cabeludo, a testa e as orelhas, queimando a pele destas regiões.
Os alisamentos químicos e mecânicos, em suas variadas versões, são muito
presentes nos relatos das interlocutoras desta pesquisa, bem como nas trajetórias de
muitos cabeleireiros, que em algum momento de suas vidas trabalharam realizando
alisamentos, ainda que hoje não o façam mais ou realizem tais procedimentos com menor
frequência. No caso dos cabeleireiros, os alisamentos químicos e mecânicos fazem parte
dos currículos básicos das escolas e cursos de beleza profissionalizantes.
202
39 a 43), que são printscreens de uma postagem feita pelo médico Fleury Johnson156 em
seu perfil no Instagram, em 30 de agosto de 2021, são um bom exemplo a respeito desta
discussão:
156
Fleury Johnson é natural do Togo e graduou-se em Medicina pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) em 2018. Ele atua na área da Clínica Geral e se apresenta como educador e pesquisador em
saúde da população negra.
205
5.2.2 – Os custos
Além das questões relativas à saúde, outro motivo para se abandonar as práticas
de alisamento diz respeito aos custos que estas representam. A aplicação das químicas em
geral demanda investimentos consideráveis de tempo e dinheiro de suas adeptas. A correta
execução de qualquer procedimento alisante, em casa ou no salão de cabeleireiro, requer
que um detalhado passo a passo seja seguido. Este passo a passo demanda habilidades
para manipular produtos químicos, um rígido controle de tempo e pode ocupar algumas
horas do dia da consumidora e do cabeleireiro.
A manutenção das químicas pode variar, mas em geral recomenda-se que o
procedimento seja realizado na raiz crescida algumas vezes por ano, para que o visual do
cabelo fique uniforme, sem diferença de textura entre as raízes e o comprimento.
208
Aplicações e manutenções podem ser feitas a preços variados, a depender se são feitas
em casa, pela própria consumidora, ou no salão, por um profissional, sendo influenciadas
também pelo custo do produto utilizado.
O uso frequente das químicas muitas vezes também demanda uma série de
tratamentos de hidratação e reconstrução157 para recuperar a fibra capilar, feitos a partir
de produtos que possuem um custo mais elevado. Para algumas pessoas, torna-se
cansativo e custoso manter esta rotina de manutenções e tratamentos, pois isto exige
disciplina, paciência, disponibilidade de tempo, aprendizado de habilidades específicas e
muito dinheiro investido.
É relativamente comum que algumas mulheres adeptas ou ex-adeptas de químicas
afirmem se sentir ou ter sentido escravas ou dependentes dos alisamentos em algum
momento de suas vidas. A dependência ou escravidão em relação à química diz respeito,
em um primeiro olhar, ao fato de a pessoa ter que organizar parte de seu cotidiano em
torno da agenda de manutenções e cuidados com os cabelos. No entanto, há algo mais
profundo em relação a estes sentimentos: muitas mulheres dizem ser ou ter sido escravas
da química no sentido de perceberem ou terem percebido que sua autoestima, sua
confiança e sua beleza parecem ou pareciam estar atreladas ao uso dos alisamentos e a
um cabelo sempre perfeitamente retocado.
Estes sentimentos, é preciso frisar, não são meramente sensações ou problemas
individuais, e sim construções subjetivas e coletivas diretamente relacionadas ao padrão
do liso compulsório (CRUZ, 2017). Um cabelo alisado cujas raízes naturais estejam muito
visíveis, criando um contraste em relação ao comprimento dos fios, é socialmente
interpretado como desleixo e como sinal de que a pessoa não cuida de si mesma.
A metáfora da dependência e do vício em relação aos alisamentos por vezes
assume um tom pesado, como no documentário sobre cabelos crespos produzido pelo ator
estadunidense Chris Rock: em Good Hair, o relaxamento é chamado de creamy crack,
que significa, em português, “crack cremoso”. Algumas das mulheres negras
entrevistadas pelo ator não só chamam os produtos alisantes de “creamy crack” como
também caracterizam a si mesmas enquanto “viciadas” nestes produtos.
157
O tratamento de hidratação objetiva repor a água perdida pelos fios de cabelos, enquanto que a
reconstrução pretende repor a proteína perdida pelos fios, tornando-os mais resistentes.
209
158
Como cabeleireiros especializados e influenciadoras crespas e cacheadas ressaltam, a única maneira de
se livrar da parte alisada é cortando, pois nenhum tratamento oferecido no mercado é capaz de recuperar
integralmente. Ainda que se possa encontrar profissionais que aleguem realizar procedimentos como
desprogressiva ou cacheamento, é preciso ressaltar que estes serviços também são químicas e que não são
capazes de reestabelecer a forma original do cabelo, podendo, inclusive enfraquecer os fios e levá-los à
quebra.
211
cabelo que possui duas texturas diferentes e que nem sempre responde adequadamente
aos tratamentos de recuperação capilar. Muitas vezes é preciso enfrentar críticas de
familiares, cônjuges e de outras pessoas do convívio social. É necessário também
negociar com o padrão dos cabelos longos, considerado sinônimo de feminilidade e
sensualidade.
A maioria das mulheres com cabelos crespos e cacheados que passam pelo
processo da transição relatam como torna-se complicado cuidar de um cabelo com duas
texturas, a alisada e a raiz natural que está crescendo. Frequentemente o cabelo alisado
encontra-se mais ressecado e quebradiço, enquanto o cabelo natural crescendo apresenta
um aspecto mais saudável e forte. A sensação é que as pontas alisadas fazem peso ao
restante do cabelo, impedindo que os fios que estão crescendo atinjam sua curvatura
original. Esta sensação apareceu com frequência nos relatos de minhas interlocutoras, e
foi experienciada por mim em meu próprio processo de transição: meu cabelo só
começou a apresentar os cachos mais fechados que eu possuía na infância após cortar
toda a parte alisada.
Larisse Gomes (2017), com base em uma leitura de Van Gennep (2013),
caracteriza a transição capilar como um período de margem, em que a pessoa que está
passando pelo processo encontra-se deslocada, pois não é mais lisa, mas também não é
completamente crespa ou cacheada. Trata-se de um período intermediário, de uma fase
que antecede a ruptura – o corte de toda a parte alisada – e que leva a agregação de um
novo estado – o cabelo natural, que não apresenta mais resquícios de intervenções
alisantes.
Para disfarçar ou ocultar a diferença de texturas – ou seja, para amenizar a
sensação de deslocamento – as mulheres que passam pela transição lançam mão de várias
técnicas e recursos. Para algumas mulheres este período de margem torna-se algo
incômodo, pois o manejo do cabelo em várias situações, especialmente aquelas que
constituem ocasiões especiais, como festas, viagens e entrevistas de emprego, torna-se
mais trabalhoso e a pessoa sente a necessidade de utilizar alguma técnica ou produto que
permita modificar a aparência do cabelo. Uma primeira opção, que é bastante simples, é
utilizar com maior frequência tiaras, faixas, lenços, bandanas, presilhas e outros
acessórios para o cabelo que desviam o foco da textura e chamam a atenção para o
penteado.
Uma segunda opção é realizar diferentes técnicas de texturização, de modo a criar
cachos temporários na parte alisada, que irão se desfazer na próxima lavagem. Trata-se
213
chop o máximo possível, tentando fazer com que a raiz natural cresça o suficiente para
ultrapassar a altura do queixo ou dos ombros. Isto pode assumir contornos mais
dramáticos para as mulheres que possuem cabelos crespos ou com cachos mais fechados,
pois o fator encolhimento159 faz com que o crescimento dos fios seja menos visível – os
métodos alisantes, inclusive, às vezes são utilizados como uma forma de “ganhar” mais
comprimento e exibir cabelos mais longos.
O temor em torno de cortar os cabelos não é fortuito e não é meramente uma
questão psicológica ou individual. O modelo de feminilidade hegemônico associa os
cabelos longos à feminilidade, à beleza, à sensualidade e à heterossexualidade. O cabelo
longo é visto como belo e desejável nas mais variadas esferas da vida cotidiana, como no
mercado de trabalho e no mercado matrimonial. Como Nilma Gomes destaca,
159
O fator encolhimento diz respeito ao quanto o fio de cabelo se retrai quando ele é esticado e logo em
seguida solto, retornando ao seu caimento original. Esta característica varia conforme o grau de ondulação,
cacheamento ou encrespamento dos fios: quanto mais cacheado e crespo é um fio, maior é o fator
encolhimento.
215
conforme a autora ressalta, no imaginário social, mulheres devem “ter cabelos”, e, por
“cabelos”, leia-se fios em um comprimento longo. Aqui, gênero e sexualidade se cruzam
de maneira muito evidente, pois os cortes de cabelo são associados a determinadas
expressões de gênero e, por consequência, a determinadas práticas e desejos sexuais.
As charges da série “Desventuras de Uma Cacheada”, de autoria da artista e
influenciadora digital Ster Nascimento, ilustram muito bem algumas das dificuldades,
dilemas e possibilidades experimentados pelas mulheres que aderem à transição capilar.
Ster, uma jovem mulher negra com cabelos cacheados, procura retratar as experiências
em torno do cabelo crespo e cacheado em um tom bem-humorado e reflexivo.
Na charge acima (Figura 46) a transição capilar é retratada como uma sequência
de etapas: paciência, liberdade, aceitação, cuidado e resistência. A personagem aparece
sorrindo em toda a sequência, ressaltando um sentimento positivo em relação ao processo.
A etapa da paciência é ilustrada por um personagem que apresenta um cabelo com duas
texturas diferentes, cacheada na raiz e lisa no comprimento. A etapa da liberdade é
representada pelo cabelo curto e sem volume, resultado de um big chop. As etapas da
216
aceitação e do cuidado mostram um cabelo curto que está em crescimento e que está
adquirindo mais volume. Por fim, a última passagem, a da resistência, é representada por
um cabelo mais longo, que já ultrapassou a altura do queixo e que ganhou bastante
volume, emoldurando a cabeça da personagem.
A maneira como o cabelo curto é colocado na charge nos apresenta uma outra
interpretação, diferente da usual. Se, de um lado, o cabelo curto pode despertar temores e
ser associado a um visual “pouco feminino” e indesejado, de outro, ele traz novas
possibilidades ao propiciar uma sensação de liberdade e de aceitação, pavimentando um
caminho para outras formas de cuidado e um novo olhar para si mesma. O cabelo curto
também pode ser potente, pois amplia referenciais de beleza e feminilidade e possibilita
outras experimentações e sensações, que de outro modo seriam difíceis de serem
vivenciadas com um cabelo longo.
217
Esta segunda charge de “Desventuras de Uma Cacheada” (Figura 47) traz, além
dos aspectos subjetivos, as dificuldades vivenciadas por quem está em transição e a
questão das interações e expectativas sociais em torno dos cabelos. A personagem aparece
chateada e triste em dois momentos: na lida com o cabelo que apresenta duas texturas e
na interação com uma pessoa que critica seu cabelo.
O cabelo curto, aqui, é apresentado de outra maneira, diferente da primeira charge
analisada. É um cabelo com o qual se deve se acostumar, pois é uma etapa necessária para
218
se atingir o objetivo final: “aprender a se amar do jeitinho que é!”. Embora o cabelo curto
não seja criticado ou caracterizado de maneira negativa, é retratado de maneira ambígua,
pois o verbo “acostumar” remete à ideia de convivermos com algo que não
necessariamente é o que desejamos ou que nos faz sentir confortáveis.
Nos grupos sobre transição capilar do Facebook e nos blogs e perfis do Instagram
sobre cabelos crespos e cacheados destacam-se as postagens que apresentam fotos de
“antes e depois” do processo de transição de mulheres crespas e cacheadas, como as
Figuras 48 e 49.
Estas fotos costumam ser compartilhadas nas mídias digitais com o objetivo de
receber elogios e comentários e de incentivar outras mulheres a aderirem ao processo,
enfatizando como vale a pena passar pela transição para chegar ao cabelo natural.
Enquanto as imagens correspondentes ao “antes” trazem cabelos quimicamente
processados, que nem sempre possuem um aspecto saudável 160, as imagens
correspondentes ao “depois” mostram cabelos crespos e cacheados bem cuidados, com
volume acentuado e/ou com cachos definidos.
Para além da discussão sobre o processo em si da transição capilar, com o
compartilhamento de dicas de texturização e de produtos que podem ser utilizados para
recuperar os cabelos, importa dizer também o quanto resultado final do processo é
recompensador. Trata-se de uma maneira de mostrar, às outras mulheres que estão em
transição, que vale a pena superar as possíveis dificuldades do processo para se atingir o
objetivo final, que é retornar aos cabelos naturais.
Cabe questionar o quanto estas imagens, ainda que positivas, também podem
reforçar a busca por cabelos volumosos e com cachos perfeitos. Nem todas as mulheres
crespas e cacheadas que interrompem o uso de intervenções alisantes e passam pela
transição conseguem atingir estes resultados, e isto acontece por diversos motivos, que
podem inclusive englobar características genéticas. É preciso frisar que nem todos os
160
Aqui, refiro-me a cabelos quimicamente processados que possuem pontas esticadas e ralas, que
apresentam um aspecto quebradiço e ressecado.
220
cabelos crespos e cacheados conseguem ter volume e definição, ainda mais quando a
expectativa é que os cabelos apresentem estas duas características ao mesmo tempo.
5.3 – No poo e low poo: narrativas de origem, novas rotinas capilares e a circulação
de ideias, marcas e produtos
161
Os sulfatos são agentes de limpeza presentes na maioria dos xampus disponíveis no mercado. As crespas
e cacheadas adeptas das rotinas argumentam que a ação detergente dos sulfatos é muito forte, pois a
substância seria responsável pela retirada excessiva da oleosidade produzida pelo couro cabeludo e pelo
consequente ressecamento dos fios.
221
162
Conditioner washing, em tradução para o português, significa “lavagem com condicionador”.
222
camomila e menta, e óleos vegetais, como o óleo de semente de uva. Este produto deu
início às atividades da Deva Curl, marca de produtos para cabelos crespos, cacheados e
ondulados fundada pela dupla de cabeleireiros.
Em um segundo momento, Deva Curl também decidiu lançar um produto
higienizante que fosse capaz de gerar uma espuma suave, mas que ainda assim excluísse
os sulfatos de sua composição. Este produto, nomeado de Low Poo, pretendia ser uma
espécie de meio-termo para as clientes que ainda sentissem muita falta do sensorial do
xampu convencional, uma etapa de transição para que elas conseguissem se acostumar a
uma nova forma de limpeza antes de aderirem ao uso do higienizador No Poo.
No livro O Manual da Garota Cacheada os sulfatos, excluídos das formulações
da Deva Curl, são apresentados como vilões para os cabelos crespos e cacheados.
Lorraine argumenta que estas substâncias, presentes em produtos de limpeza para a
cozinha e a lavanderia, são utilizadas pela indústria cosmética porque possuem baixo
custo e porque as consumidoras associam à limpeza aos produtos que geram espuma. E
por que trazem prejuízos aos cabelos cacheados? De acordo com ela, os fios
encaracolados, naturalmente mais porosos que os cabelos lisos, absorvem o agente
detergente como se fossem uma esponja, tornando o enxágue mais difícil e deixando as
cutículas dos fios abertas.
Os sulfatos também seriam os responsáveis pela remoção excessiva do sebo
produzido pelo couro cabeludo, tornando os cabelos crespos e cacheados ainda mais secos
e fragilizados. Por conta do formato espiralado, o sebo produzido pelo couro cabeludo,
que possui função lubrificante, tem dificuldade de chegar até as pontas, o que torna o
cabelo cacheado um tipo de cabelo com tendência ao ressecamento. Seguindo esta lógica,
o uso de um produto que contém detergentes considerados fortes, como os sulfatos, faz
com que esta condição piore, visto que a pouca lubrificação naturalmente produzida que
consegue descer pela extensão dos fios é removida.
primeiro lugar, Lorraine recomenda que os cabelos e o couro cabeludo sejam limpos não
com um xampu, e sim com um creme higienizante. Este tipo de produto, em sua visão, é
o ideal para os cabelos crespos e cacheados pois limpa sem agredir, preservando o óleo
natural produzido pelo couro cabeludo.
Na lavagem, o cabelo deve ser molhado e o produto que não faz espuma deve
aplicado e massageado no couro cabeludo, com a ponta dos dedos, em movimentos
circulares, posteriormente sendo arrastado para a extensão dos fios. O procedimento de
fricção é considerado como suficiente para remover a poeira e os resíduos de produtos do
couro cabeludo e dos fios, não necessitando do uso de uma espuma detergente.
Após a limpeza, os cabelos ainda molhados devem receber um condicionador,
específico para o tipo de cacho da consumidora ou cliente, e este produto, se a pessoa
considerar que que seu cabelo necessita de maior hidratação, não precisa ser totalmente
enxaguado. Este condicionador deve ser formulado com extratos botânicos e óleos
vegetais e não deve conter derivados de petróleo (como o óleo mineral, a parafina líquida
e o petrolato) e silicones.
Embora isto não fique claro no livro, ou ao menos não em sua versão traduzida, a
razão para se rejeitar os silicones e os derivados de petróleo repousa no argumento de que
eles tendem a se acumular nos fios, formando uma espécie de película que pode prejudicar
a absorção de água e nutrientes pela fibra capilar, tornando os cabelos desidratados. Por
conta deste efeito de acumulação, chamado de build-up, estes ingredientes, para serem
completamente removidos na lavagem, demandam xampus formulados com agentes de
limpeza mais fortes, como os sulfatos. Assim, para que a adoção de uma rotina sem
xampu seja bem sucedida, é preciso abolir o uso de produtos condicionantes formulados
com ingredientes que só podem ser removidos pelos sulfatos e aderir aos produtos cujos
componentes são facilmente removidos com uma limpeza suave.
Por fim, a cabeleireira explica como a etapa de modelagem ou finalização do
cabelo deve ser realizada. Terminada a limpeza e o condicionamento, deve-se aplicar, nos
cabelos ainda bem molhados, uma camada de gel modelador, cuja fórmula não deve
conter álcool, silicones e derivados de petróleo. Os cachos molhados devem ser
estimulados pelo movimento de “amassar e apertar” feito apenas com as mãos, de baixo
para cima, com o auxílio de um tecido de microfibra, camiseta de algodão ou papel
toalha163.
163
Lorraine desaconselha o uso de toalhas, pentes e escovas, por considerar que estes acessórios
“desestruturam” os cachos.
224
Durante a secagem dos fios, deve-se evitar ao máximo tocar nos cabelos, de modo
a deixá-los secarem por completo com a camada de gel intacta. Após a secagem, pode-se
novamente realizar, com cuidado, o movimento de “amassar e apertar” os cabelos,
quebrando a camada de gel que endureceu durante a secagem e colocando as mãos entre
as raízes, sacudindo-as delicadamente para soltar as mechas de cabelo e conferir mais
volume.
Ainda que O Manual da Garota Cacheada explique com detalhes as rotinas de
lavagem, condicionamento e finalização para cada tipo de cabelo, dedicando seções
separadas para explicar detalhadamente as rotinas diferenciadas para cabelos crespos,
cacheados e ondulados, as instruções acima são comuns a todas elas. Trata-se de um livro
que se pretende como uma espécie de manual básico para todos os cabelos que não são
lisos e as recomendações são muito semelhantes aos conselhos de uso presentes nos
rótulos dos produtos Deva Curl.
164
Número de membros do grupo em julho de 2021. Disponível em
<https://www.facebook.com/groups/noelowpooiniciantes>. Último acesso em 15/07/2021.
165
Disponível em <www.cacheia.com>. Último acesso em 16/03/22.
166
Disponível em <www.cachosefatos.com.br>. Último acesso em 16/03/22.
167
Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=upsOsxPT5fU&list=PL5g_SuwUkXTUfFXgiQDXI36XewIfT_hQ6
&index=2&t=27s>. Último acesso em 15/07/2021.
168
Trata-se de uma estratégia curiosa adotada por algumas marcas. Nos rótulos de alguns produtos para
cabelos crespos e cacheados o que aparece em maior destaque são os ingredientes que não estão presentes
na fórmula.
226
novamente as listas compartilhadas nas redes entram em cena, pois é preciso aprender e
decorar quais substâncias são ou não recomendadas.
A questão da eficácia da limpeza proporcionada pelos métodos tem-se tornado,
cada vez mais, alvo de dissenso entre cabeleireiros. De um lado, há os cabeleireiros que
defendem o método no poo, argumentando que esta rotina pode ser boa para quem tem
cabelos ou couro cabeludo que tendem ao ressecamento: eles explicam que uma boa
massagem realizada com um higienizador em creme é o suficiente para limpar os fios. De
outro, há os cabeleireiros que são contra este método, alegando que ele é, em qualquer
circunstância, insuficiente para promover a limpeza adequada do couro cabeludo e dos
fios: eles argumentam que uma higiene inadequada dos cabelos e do couro cabeludo pode
gerar disfunções no couro, como caspa e seborreia, e o efeito de build-up nos fios.
cortarem e tratarem adequadamente cabelos crespos e cacheados 169. Nestes cursos são
ensinadas técnicas de corte específicas para cabelos crespos cacheados, técnicas de
tratamento e finalização para cada tipo de cabelo e em alguns há módulos dedicados a
lições introdutórias de empreendedorismo, finanças e marketing digital para
cabeleireiros. Nestas lições, é ensinado o básico sobre como construir e gerir um salão de
beleza e sobre como divulgá-lo nas mídias digitais, atraindo mais clientes.
Tornou-se uma convenção, no campo estudado, a ideia de que os cabelos crespos
e cacheados devem ser cortados a seco. Isto significa que o cabelo da cliente não deve ser
cortado molhado, após a higienização no lavatório, e sim que a cliente deve ter seu cabelo
cortado seco, da maneira como ele chega ao salão. O procedimento mais convencional é
invertido: se nos salões convencionais, a cliente tem seu cabelo lavado, cortado molhado
e posteriormente é realizado o processo de secagem, nos salões para cabelos crespos e
cacheados a cliente tem seu cabelo cortado seco, e os fios só são higienizados após a
execução do corte.
A razão para se cortar os cabelos crespos e cacheados secos é bastante simples:
segundo os profissionais especializados, quando estes cabelos são molhados, perde-se a
noção do fator encolhimento, dos tipos de cachos que a cliente tem170, do volume e do
caimento das mechas. Com o cabelo da cliente permanecendo seco, é possível observar
quantas texturas a pessoa têm, o quanto as mechas encolhem quando são puxadas e soltas,
se o volume é ou não pronunciado e qual é o direcionamento das mechas, ou seja, em
qual direção elas nascem e crescem.
É comum, entre as mulheres com cabelos crespos e cacheados, histórias de cortes
malsucedidos, onde terminaram com os cabelos mais curtos do que pediram ou com os
cabelos no formato piramidal. Tais histórias não se referem apenas ao período da infância
e da adolescência, onde muitas vezes não se tem autonomia suficiente para escolher um
salão ou um profissional para o atendimento, mas também à vida adulta. Crespas e
cacheadas contam ser difícil encontrar um profissional que saiba cuidar de seus cabelos,
que saiba cortar e tratar cabelos cacheados e crespos adequadamente, sem induzir a cliente
169
Como pontuado na Introdução, estes cursos não são dirigidos apenas às pessoas que já atuam como
cabeleireiros. Eles também são oferecidos a quem não possui experiência prévia, pois a promessa é ensinar
tudo relativo aos cabelos crespos e cacheados “do zero”. Alguns destes cursos ensinam, inclusive, a como
segurar corretamente uma tesoura para cortar cabelos.
170
De acordo com os saberes do campo, é muito difícil que uma pessoa com cabelos crespos e cacheados
tenha o cabelo completamente uniforme, com as mechas todas iguais, no mesmo padrão de curvatura. No
caso das pessoas com cabelos cacheados, por exemplo, é comum que uma pessoa tenha, ao mesmo tempo,
mechas de cabelo que apresentam cachos bem definidos e mechas menos curvadas, com cachos mais
abertos e que se desfazem mais facilmente.
229
a realizar uma intervenção alisante: muitas vezes os profissionais, por não saberem como
tratar dos cabelos crespos e cacheados, oferecem rapidamente um serviço de química,
propondo relaxamentos e escovas progressivas.
Segundo os cabeleireiros especialistas, isso ocorre por conta da falta de
conhecimentos e treinamentos específicos, desenvolvidos a partir das características
particulares dos cabelos cacheados e crespos. Como estes profissionais destacam, não se
pode tratar um cabelo crespo ou cacheado como se ele fosse liso. Em adição, a pesquisa
me permite afirmar que isto também acontece, para além da falta de aprendizados
técnicos, porque ainda predomina a visão de que os cabelos crespos e cacheados precisam
ser necessariamente modificados para que se tornem mais disciplinados e alinhados. Não
se trata de responsabilizar apenas os profissionais ou as escolas de beleza, mas de apontar
que ainda predomina uma certa visão, socialmente legitimada, a respeito dos cabelos
crespos e cacheados.
O formato piramidal, ou efeito pirâmide, ocorre quando os cabelos crespos e
cacheados têm todas as suas mechas cortadas retas, o que provoca volume apenas nas
pontas do cabelo, “tirando” o volume necessário da parte superior da cabeça e provocando
um efeito mais achatado nas raízes. O recomendado pelos profissionais especializados,
de maneira geral, é cortar os cabelos crespos e cacheados em camadas, distribuindo o
volume por toda a cabeça e evitando que o volume se concentre apenas em um pedaço.
171
Existem diversas técnicas, mas optei por tratar destas três porque são as mais conhecidas na Internet.
231
negras e brancas, costumam exibir cabelos muito bem tratados, com cortes bem
executados e com cachos definidos e/ou volume acentuado que chamam a atenção pela
beleza e pela aparência saudável172.
As três técnicas de finalização para cabelos crespos e cacheados mencionadas
exigem um trabalho minucioso, habilidades manuais e conhecimento sobre os produtos
utilizados. Quanto mais volumoso e comprido for o cabelo, mais tempo é demandado
para executar estas técnicas. É preciso ter destreza com as mãos e aprender a realizar os
movimentos corretos, sem apertar, torcer ou esticar os cabelos em demasia. É possível
esperar os cabelos secarem naturalmente, o que pode levar várias horas de um dia, ou
utilizar um secador e um difusor para acelerar o processo. Estas técnicas demandam,
portanto, tempo, paciência e trabalho para serem executadas corretamente, para que se
atinja o efeito esperado.
É necessário também ter conhecimento sobre os tipos de produtos para finalização
e qual a quantidade destes para aplicar em cada mecha de cabelo, de modo a obter os
efeitos desejados. Existem uma infinidade de cremes para pentear, ativadores de cachos,
gelatinas e géis definidores, sprays, manteigas e loções para cabelos crespos, cacheados
e ondulados, e estes produtos podem ser utilizados sozinhos ou combinados entre si, de
forma a potencializar os efeitos. A quantidade de produto a ser aplicado em cada mecha
depende do tipo de cabelo da consumidora e de qual é o efeito buscado, se é um cabelo
com cachos definidos ou se é um cabelo com mais volume. Cada pessoa deve descobrir,
em seu cotidiano, quais produtos se adaptam melhor ao seu cabelo, como eles devem ser
utilizados e em quais quantidades. Esta tarefa pode até parecer trivial, mas demanda
pesquisa e testagem de produtos, dispêndio de dinheiro nas compras e uma certa dose de
autoconhecimento sobre o próprio cabelo.9
Assim, voltar ao cabelo natural e aderir às novas rotinas de tratamento e às
técnicas de finalização não necessariamente torna a manipulação dos cabelos mais fácil
ou mais barata. Cuidar dos cabelos crespos e cacheados, de acordo com os critérios
êmicos, é uma tarefa complexa. O custo dos produtos utilizados pelas crespas e
cacheadas e dos cortes específicos para estes tipos de cabelos não é insignificante, ainda
que, especialmente no caso dos produtos, haja uma grande variação de preços, dos mais
acessíveis aos mais caros. Os cuidados com os cabelos ainda tomam uma fatia
172
Quando digo aparência saudável, me refiro a cabelos que não aparentam ressecamento, quebra e queda,
que não apresentam pontas ralas e quebradiças, características de cabelos muito processados por químicas.
232
que durante décadas cuidou dos fios da apresentadora de TV Oprah Winfrey173. Walker,
na década de 1990, criou o Hair Typing System e o fez com o objetivo de orientar suas
clientes sobre como cuidar dos fios e de divulgar sua própria marca de produtos para
cabelos.
Segundo o cabeleireiro estadunidense, não há nenhum grande segredo sobre como
cuidar do cabelo. Comparando os cabelos aos tecidos, ele explica que é necessário cuidar
dos diferentes tipos de cabelo tal como cuidamos das roupas de diferentes tecidos,
dispensando abordagens únicas e reconhecendo especificidades:
A Figura 52 traz uma tabela com a classificação dos tipos e subtipos de cabelos
criada por Walker. É possível notar algumas diferenças em relação à classificação em
números e letras que se popularizou no Brasil, ainda que a lógica de distinção seja a
mesma: os números e letras aumentam conforme a curvatura ou textura do cabelo é mais
pronunciada.
173
Oprah Winfrey, nascida em 1954, é um ícone afro-americano e foi comandou o programa de televisão
Oprah Winfrey Show, sucesso de audiência nos EUA, por mais de 2 décadas.
236
Em primeiro lugar, Walker também dispende atenção aos cabelos lisos (straight
hair), classificando-os nos subtipos A, B e C. Em segundo, os cabelos cacheados (curly
hair) e crespos (kinky hair), são diferenciados em apenas 2 subtipos em seus respectivos
contextos: não há subtipo C para fios crespos e cacheados, apenas o A e B.
Walker explica que os cabelos lisos não formam nenhuma onda ou cacho,
possuem mais camadas de cutículas e tendem a brilhar bastante. Os subtipos de cabelo
liso referem-se à espessura dos fios: o subtipo A é fino, o subtipo B possui um calibre
médio e o subtipo C é grosso, sendo o que mais resiste às técnicas de modelagem.
Os cabelos ondulados são descritos como um tipo de cabelo relativamente
incomum, que se localiza entre o liso e o cacheado. São cabelos cujo formato se parece
com a letra S e seus fios tendem permanecer mais próximos a cabeça, especialmente nas
raízes. Do mesmo modo que os cabelos lisos, seus subtipos se referem à espessura dos
fios, variando do mais fino (subtipo A), mais fácil de modelar, ao mais grosso (subtipo
C), que possui mais frizz e é mais resistente as técnicas de modelagem.
Os cabelos cacheados são caracterizados pelo formato semelhante à uma mola.
Quando molhados, os cabelos cacheados se esticam de maneira significativa, ganhando
uma aparência de quase lisos, e conforme secam, encolhem e diminuem de tamanho. Os
237
fios cacheados brilham menos que os cabelos lisos e ondulados porque suas camadas de
cutículas não formam uma superfície uniforme, capaz de refletir a luz da mesma maneira
que ocorre com os outros tipos mencionados. O cacheado de subtipo A corresponde ao
cabelo que forma cachos frouxos e mais largos. Já o cacheado de subtipo B corresponde
ao cabelo que apresenta cachos parecidos com um saca-rolhas, mais apertados e bem
definidos.
Por último, Walker descreve os cabelos crespos como cabelos com fios angulosos
ou com cachos muito apertados e estreitos. Os crespos são bastante finos e frágeis, pois
são o tipo de cabelo que possui menos camadas de cutículas. O subtipo A corresponde
aos fios crespos que seguem um padrão mola, com cachos bem pequenos. O subtipo B
corresponde aos fios crespos que apresentam um padrão semelhante ao formato da letra
Z, que formam ângulos agudos.
A categorização dos cabelos crespos, cacheados e ondulados em tipos e subtipos
organizados por números e letras, que se popularizou de maneira significativa, merece
algumas considerações. Ressalto que, embora esta classificação seja utilizada por
influenciadoras digitais, marcas de cosméticos, consumidoras e cabeleireiros, ela também
é alvo de críticas por parte de diferentes atores que constituem o campo dos cabelos
naturais.
É preciso frisar que esta categorização particular é uma invenção muito
interessante para o mercado. Ainda que as classificações em letras e números já
circulassem nas redes sociais antes das empresas as utilizarem para vender seus produtos,
é inegável que as marcas cumpriram um papel crucial para popularizá-la. Uma crespa,
cacheada ou ondulada pouco afeita ao contexto digital ainda assim pode se deparar com
o detalhado sistema de classificação ao simplesmente observar os rótulos de produtos
para cabelos presentes em farmácias, perfumarias e supermercados.
Do ponto de vista de algumas marcas de cosméticos para cabelos, parece ter se
tornado um negócio lucrativo lançar incontáveis linhas de produtos destinadas aos
diferentes tipos e subtipos de cabelos, indicando nas embalagens destes produtos a quais
categorias eles se destinam. Esta informação, inclusive, é destacada no rótulo, e às vezes
é acompanhada de uma pequena tabela com desenhos dos diferentes tipos de texturas.
Marcas como Seda, Salon Line e Soul Power fazem uso deste recurso, como ilustrado
pelas Figuras 53, 54 e 55.
238
Os produtos da Salon Line, Seda e Soul Power apresentam rótulos que informam
as consumidoras as quais tipos e subtipos de cabelos eles se destinam. A gelatina da Salon
Line (Figura 53) e o creme de pentear da Soul Power (Figura 55), são produtos mais
abrangentes, pensados para todos os subtipos de cabelos ondulados, cacheados e crespos,
abrangendo as categorias 2ABC, 3ABC e 4ABC. O creme de pentear da Seda (Figura
54), ao contrário, é um produto muito mais específico, que se direciona às consumidoras
que possuem dois subtipos de cabelos crespos, as categorias 4B e 4C.
Em todos os rótulos, além desta indicação por escrito, também há os desenhos que
ilustram os tipos e subtipos de cabelos aos quais os produtos são destinados: assumindo
que nem todas as consumidoras podem compreender de imediato o que significam as
letras e números das categorias utilizadas, as marcas procuram explicitar,
imageticamente, o tipo de cabelo ao qual se referem. Trata-se de um recurso pedagógico,
que pretende educar a consumidora ou reforçar o seu conhecimento prático a respeito de
sua textura capilar e dos produtos que ela pode escolher durante suas compras. As
informações e recursos mobilizados, longe de serem acidentais, são estratégias
cuidadosamente pensados para vender mais e para atingir determinados nichos de
consumidoras.
240
174
Segundo os cabeleireiros e os formuladores de produtos, fatores como a porosidade a densidade dos fios
também importam, e estes fatores variam individualmente.
241
de raça aparece de modo mais sub-reptício, mas, em outros, aparece de modo mais
evidente, como quando os produtos trazem desenhos e fotos de mulheres.
Os cabelos ondulados, denominados tipo 2, são frequentemente associados às
pessoas brancas. Os cabelos cacheados, denominados tipo 3, são associados a pessoas
brancas e negras, abrindo um espaço para ambiguidade e para os deslizamentos 175. Os
cabelos crespos, de tipo 4, são quase sempre relacionados às pessoas negras. Os cabelos
crespos, de uma maneira muito marcada, racializam e enegrecem: no Brasil, ter cabelo
crespo significa “ter um negro na família”, ou seja, significa ter ascendência negra
(CRUZ, 2017), mesmo que a pessoa não possua um tom de pele retinto.
Como visto, o cabelo natural celebrado pelo campo estudado não significa um
cabelo sem nenhum tipo de intervenção, pois uma série de cuidados, técnicas e artifícios
são incentivados. A ideia de cabelo natural em questão preconiza que não se utilize
nenhuma intervenção alisante, ou seja, nenhuma intervenção cujo objetivo é esticar os
fios e diminuir seu volume, especialmente se este efeito for permanente, provocado por
químicas.
O objetivo das rotinas capilares, dos cortes específicos, das técnicas de finalização
e dos produtos para cabelos crespos e cacheados descritos neste trabalho é ressaltar a
forma crespa ou cacheada dos fios, ajudando na definição dos cachos e/ou enfatizando o
volume dos cabelos. Trata-se de abandonar as intervenções alisantes, de aderir a métodos
e cuidados especificamente desenvolvidos para cabelos crespos e cacheados e de, em
alguns casos, experimentar outros tipos de intervenção, como colorações e
descolorações, que em geral são incompatíveis com as químicas. Trata-se também de um
processo de reconstrução da subjetividade, que envolve outra maneira de se olhar, de
exercitar a autoestima e o autocuidado e de se posicionar diante de padrões e percepções
sociais que envolvem estética, gênero, raça e saúde.
Para algumas mulheres negras com cabelos crespos e cacheados, este processo
também pode levar às experimentações com tranças, dreadlocks e turbantes. Embora o
175
Embora no Brasil isto não seja tão evidente, em países como Estados Unidos, por exemplo, os cabelos
cacheados não representam apenas a dualidade “branco-negro”, mas também são associados aos judeus,
que nem sempre são vistos como pessoas brancas.
242
artifícios, mas sim como uma estética insubordinada e politizada, que pretende se opor à
norma vigente, que é o cabelo liso/alisado, disciplinado e domado. A “naturalidade”,
neste contexto, tem a ver com construir respostas aos padrões estéticos sexistas, racistas
e colonizadores.
Os cabelos cacheados e crespos naturais, especialmente quando estão nas cabeças
de mulheres que se identificam como negras ou pretas, transformam seus corpos em
corpos-bandeira (GOMES e SORJ, 2014). Bila Sorj e Carla Gomes (2014), em sua análise
sobre a Marcha das Vadias – um protesto feminista contra o assédio e a violência sexuais
que acontece em diversas cidades do mundo desde 2011 – escrevem o seguinte a respeito
da ideia:
176
Sublinho que, enquanto a Marcha das Vadias, vista como um movimento de feministas jovens e brancas,
é um movimento por vezes criticado por mulheres negras, a Marcha do Orgulho Crespo abre diálogos mais
próximos com os feminismos negros, que reconhecem a importância da subjetividade e da construção de
uma estética própria no embate político.
245
***
Neste capítulo, procurei não apenas fornecer explicações sobre quais são e como
são executadas as práticas realizadas nos cabelos crespos e cacheados, mas busquei dar
destaque aos saberes constituídos em torno destas práticas. Procurei também discutir,
sobretudo, os sentidos construídos e atribuídos à estas práticas e a estes saberes,
mostrando como eles são mobilizados e negociados em um universo marcado por
diferenças e desigualdades de gênero e raça. Enfatizei como determinadas práticas e
saberes, sobretudo os ligados aos alisamentos, atravessam e vulnerabilizam corpos
racialmente marcados.
As práticas e saberes aqui descritos e problematizados navegam por contextos
transnacionais e transitam entre o mercado e a política, circulam entre profissionais,
marcas, consumidoras, ativistas e influenciadoras digitais. Estas práticas e saberes, longe
de serem estáticos, são capturados e readaptados, endossados e contestados. As novas
rotinas capilares, que preconizam cuidados diferenciados para cabelos crespos e
cacheados, viajam entre países e são readaptadas no contexto brasileiro. A transição
capilar e as técnicas de finalização, ao mesmo tempo que apresentam outras
possibilidades para os cabelos crespos e cacheados, também são atravessadas por um ideal
de cachos perfeitos.
Os métodos de alisamento, a rejeição ao alisamento, a transição capilar, as novas
rotinas, os produtos, as finalizações, as classificações dos tipos de cabelos e as técnicas
de corte apresentadas não são questões meramente técnicas e que interessam apenas às
consumidoras e aos profissionais relacionados à área da beleza. Muito ao contrário, estas
questões evidenciam as articulações entre gênero e raça que perpassam de maneira
desigual corpos negros e brancos, que apontam para diferentes processos de
(re)construção estética e subjetiva e que nos permitem compreender o impacto cultural e
político de uma estética que se coloca como insubordinada.
248
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realizar uma pesquisa sobre temáticas como cabelo, estética e padrões de beleza
traz alguns desafios. Um deles, em particular, é o desafio de se contrapor aos discursos
que qualificam estes temas como algo menor, supérfluo e despolitizado. Como “coisa de
mulher”, como se temas socialmente atrelados ao “universo feminino” fossem
secundários. Estas percepções, longe de estarem presentes apenas no senso comum,
também atravessam, em parte, a academia e os movimentos sociais.
Desde o início de minha atuação enquanto pesquisadora, meu trabalho tem sido
interpelado, de várias maneiras, por estas percepções. Sempre foi minha preocupação e
minha prioridade frisar os aspectos políticos dos temas que escolhi estudar, demonstrando
como estes merecem tratamento analítico e como condensam questões de interesse
acadêmico e público.
A iniciativa de politizar e analisar criticamente temas como cabelo e estética,
contudo, não é algo novo. Sobretudo as mulheres negras, especialmente as que atuam
como intelectuais, ativistas e porta-vozes públicas do feminismo negro, chamam a
atenção para estes temas e trazem perspectivas analíticas e políticas que abordam estas
questões de maneira consistente e produtiva. Seus trabalhos e reflexões inspiraram em
larga medida as análises aqui empreendidas.
Nesta tese, em particular, procurei demonstrar como a estética, e mais
particularmente, o cabelo, são objetos que nos permitem pensar sobre as relações entre
gênero, raça, consumo e produção de identidades e subjetividades, iluminando questões
políticas contemporâneas que dizem respeito a novas formas de atuação e demandas por
reconhecimento e representação, que perpassam os ativismos, as mídias digitais e as
relações de mercado.
O campo estudado é marcado pela relação tensa e complexa entre mercado e
política. O mercado dirigido aos cabelos crespos e cacheados dialoga com processos
sociais e políticos muito mais amplos, que nos obrigam a olhar para as relações entre
inclusão, discriminação, empresas, consumo e ativismo. Estes aspectos, no cenário em
questão, não podem ser compreendidos separadamente.
Categorias como representatividade, empoderamento, ancestralidade e
identidade transitam entre mercado e política, circulando entre marcas, profissionais da
beleza, consumidoras, influenciadoras digitais e ativistas pelo cabelo natural. Estas
249
categorias são chaves para se entender as dinâmicas e tensões que constituem o campo
estudado, e seus trânsitos entre diferentes contextos e sujeitos suscita, ao mesmo tempo,
conexões, colaborações, disputas e conflitos.
O campo estudado também é marcado pelos trânsitos transnacionais. A circulação
de referências estéticas e políticas, de marcas, produtos, técnicas, práticas, classificações
e saberes relativos aos cabelos crespos e cacheados se dá, sobretudo, entre Brasil e
Estados Unidos. Este aspecto merece um aprofundamento a ser realizado por outros
estudos, e seria pertinente também olhar para como estes trânsitos transnacionais também
têm ocorrido em relação a outros países da América Latina.
Elementos como as críticas aos alisamentos, a transição capilar, as técnicas de
cuidado dos fios crespos e cacheados e as classificações dos tipos de cabelos não são
temas que interessam somente às marcas, às consumidoras e aos profissionais da beleza.
Como demonstrado, estas questões evidenciam as articulações entre gênero e raça que
atravessam de maneira desigual corpos negros e brancos, que apontam para diferentes
processos de (re)construção estética e subjetiva e que nos permitem compreender o
impacto cultural e político de uma estética que se coloca como insubordinada. Esta
estética insubordinada, relacionada a ideia de cabelo natural, é especialmente visível nos
usos criativos e afirmativos dos cabelos crespos.
O cabelo natural não implica, necessariamente, na rejeição aos produtos e
serviços promovidos pela indústria da beleza – até porque esta ideia trata de um natural
estética e politicamente construído. Parte da indústria da beleza, sobretudo, tem se
apropriado da ideia com bastante desenvoltura, tornando-a um negócio lucrativo,
oferecendo produtos e serviços para a manutenção e o cuidado dos cabelos crespos e
cacheados naturais. Esta estratégia, para além de aumentar as vendas e o número de
consumidoras adeptas, também promove um reposicionamento das marcas. Como pode-
se pensar à uma primeira vista, o cabelo natural não significa a ruína das marcas de
produtos para o cabelo, pelo contrário.
As dinâmicas e tensões que constituem o mercado da beleza direcionado aos
cabelos crespos e cacheados também colocam em evidência certos deslizamentos e
problemas de classificação racial que ocorrem no contexto brasileiro. O cabelo, por ser
um elemento central nos processos de racialização, é um objeto de estudo que nos
permite, justamente, olhar mais de perto para estes deslizamentos e problemas. Ele traz
consigo, em seu bojo, discussões que abordam o racismo e o colorismo, como
argumentado ao longo desta tese.
250
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2021.
ANEXOS
Este comunicado visa informar que o Movimento Orgulho Crespo Brasil não
tem nenhuma relação com a “linha orgulho crespo”, da Hoka Professional.
Melhorem.
Glossário do campo:
Ativador de Cachos – produto que pode vir na forma de creme, loção ou spray, utilizado
após a limpeza e condicionamento dos fios, para ressaltar o formato cacheado. Não deve
ser enxaguado.
Big Chop – significa, em português, “grande corte”. É o procedimento que se faz para
cortar todo cabelo processado por qualquer tipo de alisamento, relaxamento ou escova
progressiva. Pode ser realizado com uma tesoura ou com uma máquina de raspagem.
Cabelo tipo 2 – classificação utilizada para designar cabelos ondulados, que pode ser
subdividida em 2A, 2B e 2C, indicando a intensidade da ondulação dos fios.
Cabelo tipo 3 – classificação utilizada para designar cabelos cacheados, que pode ser
subdividida em 3A, 3B e 3C, indicando o grau de cacheamento dos fios.
Cabelo tipo 4 – classificação utilizada para designar cabelos crespos, que pode ser
subdividida em 4A, 4B e 4C, indicando o grau de encrespamento dos fios.
Escova Progressiva – método que alisa os fios gradualmente, por meio da aplicação de
um produto à base de formol (ainda que uso da substância não seja recomendado e
proibido pela ANVISA), carbocisteína ou ácido glioxílico. O cabelo, sob a ação do
produto, deve ser escovado com secador e posteriormente submetido ao uso da chapinha,
para reforçar o efeito liso. Em geral o procedimento é repetido no cabelo todo após alguns
meses, necessitando ser refeito com alguma constância.
Finalização – termo que designa as diferentes técnicas aplicadas no cabelo após a limpeza
e o condicionamento, com a função de modelar e secar os fios. Em geral as finalizações
envolvem a aplicação de um creme para pentear, ativador de cachos ou gel, algum tipo
de movimento com as mãos e às vezes o uso de instrumentos como secador e difusor.
Low Poo – embora a expressão seja uma marca registrada pela empresa Deva Curl,
tornou-se uma categoria corrente no campo para designar um tipo de lavagem e
tratamento dos cabelos. Low poo, abreviação de “low shampoo”, significa, em português,
“pouco xampu”: trata-se de substituir o uso de xampus com sulfato por xampus sem
sulfato, com substâncias limpantes mais suaves.
No Poo – embora a expressão seja uma marca registrada pela empresa Deva Curl, tornou-
se uma categoria corrente no campo para designar um tipo de lavagem e tratamento dos
cabelos. No poo, abreviação de “no shampoo”, significa, em português, “sem xampu”:
trata-se de abolir o uso de xampu e limpar os cabelos apenas com condicionadores
higienizantes.
Nutrição – consiste em repor certos nutrientes do cabelo por meio do uso de óleos vegetais
(como o óleo de coco e o azeite de oliva), manteigas vegetais (como a manteiga de karité)
ou de máscaras de tratamento produzidas para esta finalidade, que em geral contém os
ingredientes mencionados.
Óleo Mineral – é um óleo derivado do petróleo, que pode aparecer também sob os nomes
parafina líquida e vaselina líquida. É comumente usado pela indústria cosmética em
produtos para cabelo e para a pele com a alegação de que fornece hidratação e proteção
dos fios e da pele. Entretanto, de acordo com os saberes do campo, o óleo mineral não
hidrata os cabelos eficientemente e tende a se acumular nos fios, só sendo retirado por
xampus com sulfato.
Produto Liberado – produtos que podem ser utilizados por quem segue as técnicas no
poo e/ou low poo, pois não contém nenhuma substância desaconselhada a quem as segue.
Scab Hair – o termo, em inglês, é utilizado, em alguns casos, para designar o cabelo que
começa a nascer a partir do momento em que se interrompe o uso de química ou que se
corta a parte alisada. Segundo algumas interlocutoras do campo, não é raro que o cabelo
“novo”, que está nascendo, pareça ser difícil de tratar, de absorver hidratação e de tomar
forma, demorando alguns meses para retornar ao seu formato original. É difícil precisar
o significado da expressão, mas poderia ser grosseiramente traduzido, em meu
entendimento, como “cabelo em cicatrização”, uma vez que se refere a um cabelo que
está nascendo e que ainda irá se recuperar e se modificar após a interrupção das químicas.
Silicones insolúveis – tipo de silicone que não pode ser diluído em água. De acordo com
os saberes do campo, produtos que contêm estas substâncias só podem ser adequadamente
removidos dos fios por meio da limpeza com xampus com sulfatos.
276
Silicones solúveis – tipo de silicone que pode ser diluído em água. De acordo com os
saberes do campo, produtos que contêm estas substâncias podem ser removidos com uma
limpeza mais suave, feita com xampus sem sulfato ou com condicionador higienizantes.
Entretanto, há quem não recomende o uso destas substâncias por quem pratica no poo,
low poo e co-wash, por acreditar que todos os silicones devem ser evitados.
Transição Capilar – processo em que se interrompe o uso de qualquer química para que
o cabelo cresça sem interferências em seu formato, seja ele crespo ou cacheado (ou até
ondulado). Este processo pode durar meses ou anos, a depender da paciência e da
disposição da pessoa, até que ela decida cortar toda a parte alisada do cabelo.
Umectação – consiste em aplicar óleos vegetais, como o óleo de coco ou o azeite de oliva,
nos cabelos secos e sujos, deixá-los agindo por algumas horas (podem ser as horas de
sono) e posteriormente higienizar e condicionar os cabelos.
Xampu sem sulfato – xampus fabricados com substâncias limpantes diferentes dos
sulfatos. Os sulfatos estão presentes na grande maioria das fórmulas de xampus e
sabonetes vendidos no mercado brasileiro, abrangendo marcas que praticam os mais
variados preços, desde os produtos mais baratos aos mais caros. De acordos com os
saberes do campo, os sulfatos, responsáveis pela formação de espuma abundante, são
substâncias que realizam uma limpeza forte demais nos cabelos crespos e cacheados,
ressecando-os. Assim, os xampus sem sulfato limpam os cabelos de forma mais suave e
fazem pouca ou nenhuma espuma.