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O caminho que levou Curitiba a

virar a capital da direita


Lava Jato, bolsonarismo e passagem de Olavo
de Carvalho marcaram imagem da cidade na
última década
7.out.2023 às 23h00

Ilustração Adams Carvalho/Folhapress

Fabio Victor none

Repórter especial da Folha, é autor do livro 'Poder Camuflado'


(Companhia das Letras 2022)

[RESUMO] Cidade por décadas reconhecida como modelo de


urbanismo e com papel progressista na redemocratização, Curitiba
emergiu na última década, com a Lava Jato e a maior votação
proporcional de Bolsonaro em uma grande capital, como polo da
direita brasileira. Pendor conservador tem longa tradição por lá,
ligada à imigração europeia, ao pujante movimento integralista local
e, mais recentemente, à influência do jornal Gazeta do Povo e do ex-
morador Olavo de Carvalho.

No auditório da Câmara Municipal de Curitiba, o vereador Eder


Borges (PP) abre o evento festejando o público. "Casa cheia. A
direita está viva, mais viva do que nunca", afirma, sob aplausos.
:
"Essa cerimônia tem um simbolismo especial, porque a direita
brasileira começou a existir por causa do professor Olavo de
Carvalho."

Na noite de 25 de abril passado, o parlamento curitibano abriu as


portas para uma sessão de homenagem ao polemista que se tornou
a principal referência intelectual dos eleitores de Jair Bolsonaro.
Olavo de Carvalho, o "guru do bolsonarismo", havia morrido um ano
antes, aos 74 anos, nos Estados Unidos.

A ideia da homenagem foi de Borges, autor do projeto de lei


aprovado pela Câmara de Vereadores que concedeu cidadania
honorária a Olavo —a lei acabou vetada pelo prefeito Rafael Greca
(PSD). Um dos representantes mais histriônicos da direita radical
curitibana, Borges já teve o mandato cassado pelo Tribunal Regional
Eleitoral (depois recuperado) por publicar uma fotomontagem que
associava estudantes e educadores ao comunismo.

A mesa foi composta de outros quatro homens brancos de meia-


idade. Eles estavam à frente de um mural representando a formação
de Curitiba: as pessoas pintadas são todas brancas e de olhos azuis
(em 2019, a vereadora petista Professora Josete sugeriu incluir no
painel negros e indígenas, que também construíram a cidade, mas a
proposta nem foi apreciada).

Por mais de duas horas, admiradores e ex-alunos deram


depoimentos derramados sobre como o homenageado mudou suas
vidas. Olavo viveu por cerca de cinco anos em Curitiba, de 2000 a
2005, deu incontáveis cursos presenciais e construiu na cidade uma
rede de alunos e admiradores em um momento histórico preliminar
ao renascimento da direita brasileira.

Mesmo sem formação superior, lecionou inclusive em universidades


locais. A PUC-PR, uma delas, informou que Olavo "nunca possuiu
:
vínculo empregatício com a instituição" e foi "convidado por uma
instituição parceira para uma participação pontual no curso 'in
company' gestão de assuntos públicos, em 2004". A Universidade
Tuiuti do Paraná, onde Olavo também teria lecionado, não
respondeu.

Geovani Moretto, atual coordenador dos cursos de filosofia e


ciências sociais da PUC-PR, recorda que desde aquela época Olavo
"tinha um grupo muito fiel, como todo dogmático tem". "Criou uma
espécie de seita. Os cursos livres dele não tinham hora para acabar,
às vezes os debates se estendiam até altas horas." Moretto ensaiou
conhecer esses cursos, mas desistiu sem nem começar, depois de
uma experiência curiosa.

"Um amigo marcou de encontrar Olavo e pediu para eu ir junto. Todo


sábado à tarde ele ia a um bar fumar charuto e tomar uísque.
Quando chegamos, a primeira coisa que ele perguntou foi onde a
gente fazia filosofia", narra Moretto. "Falamos que na PUC. ‘Então
vocês não fazem filosofia, vocês têm consciência disso, né?’, ele
disse de cara. Um colega perguntou onde então teria filosofia no
Brasil. ‘Não tem curso de filosofia no Brasil’, ele rebateu. Mas então o
que tem de filosofia no Brasil?, perguntamos. Aí ele apontou para
ele."

Primogênita dos oito filhos do polemista, Heloísa de Carvalho, que


era rompida com o pai, afirma que uma das explicações para o
período curitibano é que Olavo foi ajudado financeiramente por
alunos milionários da cidade, sobretudo Guilherme Almeida, herdeiro
da construtora CR Almeida.

Em mais de uma ocasião Olavo definiu os paranaenses como os


seus melhores alunos, "notavelmente mais humildes e interessados
em aprender". Três filhos do escritor continuam a viver na cidade.
:
Dois deles foram procurados pela reportagem, mas não
responderam às mensagens.

No fim da homenagem, Eder Borges e um dos seus convidados


anunciaram o desejo de criar uma entidade (o Instituto Pró-
Ocidente) para manter aceso o legado de Olavo. "A esquerda
dominou o Ocidente por causa da escola de Frankfurt. Precisamos
criar a escola de Curitiba", concluiu Borges.

Quatro meses depois, em 25 de agosto, o mesmo espírito animou os


centenas de presentes a um centro de eventos na capital
paranaense para a primeira edição do Foro de Curitiba. O trocadilho
com o Foro de São Paulo, reunião de representantes da esquerda
latino-americana, é um dos apelos de marketing para atrair outra boa
leva de órfãos do governo derrotado em outubro de 2022.

A estrela do evento foi o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). O


primogênito do ex-presidente defende um projeto para retomar o
poder perdido para o PT. Conta ter aprendido com Olavo a usar "um
pouquinho da estratégia do lado de lá". "Não tem outro caminho a
não ser pela política."

Aconselha evitar redes sociais, "senão você vai ser banido". "Um
pouquinho de inteligência. Manda na tua rede de WhatsApp. Não
precisa atacar ninguém, não precisa ofender ninguém [...]. Não tem
que ter ruptura, pancada, cabeça de ninguém na bandeja não,
gente."

A temperança vinda de um Bolsonaro choca alguns. Um homem


berrou da plateia: "Mas se continuar assim daqui três anos seremos
escravos! Ninguém entende isso! O senhor tem que dar uma palavra
de esperança que isso mude".

"A palavra que eu estou dando, comandante, é de organização. Não


:
espere de mim pegar uma espada e enfiar na cabeça dos outros.
Não posso fazer isso. Não vou defender isso", respondeu Flávio.

"Quando nós pegaremos em armas?", questionou aos gritos o


"comandante". "O caminho que eu estou defendendo é o da política.
O senhor tem outro caminho, pode ficar à vontade", retrucou o
senador e foi aplaudido.

Ambos os eventos seriam espasmos naturais da derrota da extrema


direita nas eleições, passíveis de ocorrer em outras cidades
brasileiras: Bolsonaro, afinal, teve 58,2 milhões de votos e venceu
em 13 estados e no Distrito Federal, contra 60,3 milhões de Lula,
ganhador nos outros 13.

Um exame mais detalhado dos números revela, no entanto, que há


algo diferente em Curitiba. Entre as principais capitais brasileiras, ou
as com mais de 1 milhão de habitantes (lá vivem 1,7 milhão), foi a que
deu a maior votação proporcional a Bolsonaro no segundo turno de
2022, 64,78%, mais que os 62,4% obtidos pelo candidato no Paraná
como um todo.

É um raro caso em que, tendo vencido no estado, o candidato do PL


se saiu melhor na capital que no interior. Em São Paulo, Rio Grande
do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina, todos
estados em que Bolsonaro ganhou, ocorreu o inverso —sua votação
na capital foi menor e, em São Paulo e Porto Alegre, ele foi até
derrotado por Lula.

Quem também teve uma votação melhor em Curitiba que no interior


foi o senador Sergio Moro, ex-juiz nascido em Maringá que
comandou a Operação Lava Jato, baseada na capital. Aqui chega-se
a outra força motriz elementar do fenômeno que transformou a
cidade das araucárias na capital da direita brasileira.
:
Ao investigar casos de corrupção na Petrobras durante governos
petistas, Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato,
Deltan Dallagnol à frente, guiaram a onda conservadora que
derrubou Dilma Rousseff, impediram Lula de ser candidato em 2018
e pavimentaram a estrada que levou a Bolsonaro. Com o capitão
reformado eleito, Moro largou a toga, virou ministro da Justiça e,
após romper com o aliado, foi fazer política na arena adequada.
Dallagnol seguiu o mesmo caminho.

Entre as duas aventuras, eclodiu a chamada Vaza Jato: a revelação


de mensagens dos integrantes da operação descortinou
descalabros processuais e uma ação coordenada entre o juiz e os
procuradores da força-tarefa, levando o STF a anular os processos
contra Lula (e boa parte das ações da Lava Jato). Para quem
circulava no mundo jurídico curitibano, não foi surpresa. Moro
sempre trabalhara em conjunto com o Ministério Público e a Polícia
Federal.

Bem antes da reviravolta, e pouco antes de ser preso, Lula se referiu


ao grupo como República de Curitiba, numa alusão à República do
Galeão, que agiu para a derrubada de Getúlio Vargas em 1954. Paulo
Generoso, empresário que hoje vive nos EUA e é sócio de Eduardo
Bolsonaro, batizou com a expressão um movimento de apoio à Lava
Jato, reunindo mais de 1 milhão de seguidores em redes sociais.

O estrago causado pela Vaza Jato respingou na capital paranaense.


O ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou em entrevista em maio:
"Curitiba gerou Bolsonaro. Curitiba tem o germe do fascismo.
Inclusive todas as práticas que desenvolvem. Investigações à
sorrelfa e atípicas. Não precisa dizer mais nada". Foi um
pandemônio.

Gilmar pediu escusas em rede social. "Usei uma metonímia que


:
merece explicitação. Jamais quis ofender o povo curitibano. Não foi
Curitiba o gérmen do facismo; foi a assim chamada ‘República de
Curitiba’ (Operação Lava Jato e os juízes responsáveis por ela na
capital paranaense)."

A própria escolha de Curitiba como sede da operação foi uma


artimanha dos seus líderes, como aponta a juíza federal Fabiana
Alves Rodrigues no livro "Lava Jato: Aprendizado Institucional e
Ação Estratégica na Justiça". Moro, escreveu ela, agiu
estrategicamente para manter em Curitiba os casos da operação,
omitindo o local de vários fatos criminosos. Foi um dos motivos para
a anulação dos processos contra Lula.

Moro trata a acusação como "questões jurídicas muito específicas".


"O próprio STF afirmou a competência de Curitiba, depois é que
mudou de posição, a meu ver influenciado pela política", disse o
senador.

A consolidação de cidade como epicentro da direita lavajatista


reflete, segundo Moro, "essa inspiração que as pessoas têm de mais
:
integridade da política". "É um sentimento que nos últimos anos vem
sendo atacado, mas que permanece ali latente, pronto para aflorar. E
gera um sentimento de orgulho nos curitibanos e paranenses, por
ver que Curitiba se tornou um epicentro mundial de combate à
corrupção."

O ex-juiz aponta também a força do agronegócio no Paraná,


inclusive na região metropolitana de Curitiba, como propulsora do
fenômeno. "É um meio em que essas ideologias conservadoras, os
costumes liberais da economia estão mais presentes, né? O retrato
do empreendedorismo, de uma economia brasileira que deu certo."

Moro se recusou a responder sobre outros temas. Indagado quanto


à possibilidade de ter o mandato cassado, encerrou a entrevista.
Dallagnol não respondeu às mensagens da reportagem. Com o
mandato de deputado federal cassado e em tese inelegível, filiou-se
ao partido Novo junto com a esposa, Fernanda, que poderá
concorrer em seu lugar à Prefeitura de Curitiba em 2024.

Fundador do instituto Paraná Pesquisas, o economista Murilo


Hidalgo relata que levantamentos recentes da empresa mostraram
Dallagnol como favorito na corrida à Prefeitura de Curitiba, e Moro na
mesma posição para o governo estadual em 2026.

Para Hidalgo, a capital paranaense "é mais Lava Jato do que


Bolsonaro". "O curitibano é conservador: contra o aborto, a favor da
família, do trabalho, da propriedade. Mas isso não tem nada a ver
com ser antidemocrático."

O Paraná Pesquisas, que foi contratado pelo PL na última eleição


(mas atende partidos e políticos de vários matizes), cresceu graças
à parceria com a Gazeta do Povo, iniciada em 1992. Segundo
Hidalgo, é impossível entender a cidade sem entender o jornal.
"Curitiba retrata a Gazeta, e a Gazeta retrata Curitiba."
:
Guilherme Döring Cunha Pereira retrata ambos. Presidente do Grupo
Paraense de Comunicação —que reúne, além da Gazeta do Povo,
retransmissoras da TV Globo, rádios e um jornal popular—, liderou a
guinada conservadora da Gazeta em meados da década passada.

Comprado em 1962 pelo pai de Guilherme, Francisco Cunha Pereira,


e um sócio, a Gazeta virou o principal diário do Paraná nos anos
1970. Era um jornal de extração conservadora "light". Com a morte
de Francisco, os filhos Guilherme e Ana Amélia assumem, e inicia-se
uma gradativa transição que ressalta os valores morais do novo
comandante.

Doutor em direito pela USP, Guilherme Cunha Pereira é numerário da


Opus Dei, como se chamam os fiéis celibatários da corrente
ultraconservadora da Igreja Católica que se dedicam a trabalhos
apostólicos e de formação.

Vive em uma casa comunitária da prelazia e, conforme revelou à


reportagem em entrevista na sede do grupo de comunicação, é
adepto das penitências chamadas "mortificações corporais" da
Opus Dei, o cilício e as disciplinas.

O cilício é uma corrente de metal colocada ao redor da coxa com


pontas viradas para dentro, comprimindo a carne, para machucar.
Ele o usa diariamente por duas horas (menos em dias de festa). As
disciplinas são pequenos chicotes, com os quais Cunha Pereira se
fustiga uma vez por semana.

Crítico do que considera ativismo judicial do STF, o executivo


ministra cursos online sobre liberdade de expressão, obrigatórios
aos jornalistas que entram na Gazeta (15 aulas de uma hora e meia)
e gratuitos para o público em geral. Gratuitos em termos: só é
possível se cadastrar se o interessado ticar na caixinha "quero
receber por e-mail reportagens em defesa da liberdade, da vida e de
:
virtudes."

Estes últimos quesitos estão nos cursos e na base das "convicções"


da Gazeta, um conjunto de princípios em que o jornal defende "a
vida desde a concepção", "o valor da família" e "a importância do
casamento", entre muitos outros.

A partir de 2015, a Gazeta reforçou sua orientação antipetista, com


editoriais criticando o partido e mais tarde estimulando o voto em
Bolsonaro sem citar o nome do candidato. Um ano antes, o jornal
extinguira sua edição diária impressa; hoje é 100% digital. Cunha
Pereira, que se define como um "democrata de centro-direita", diz
que nunca pediu voto em Bolsonaro nem nunca visitou o agora ex-
presidente.

A Gazeta, no entanto, tem como colunistas alguns dos mais


fervorosos bolsonaristas, casos do deputado federal Nikolas Ferreira
(PL-MG) e dos jornalistas Alexandre Garcia, Rodrigo Constantino,
Guilherme Fiuza e Luis Ernesto Lacombe, entre outros.

Moro e Dallagnol também integram o time. Ainda hoje um defensor


fervoroso da Lava Jato, Cunha Pereira despreza críticas à operação.
"Pode ter tido efeitos políticos, mas nunca enxerguei motivação
política, continuo a vendo como essencialmente técnica", afirma.
"Tenho esperança de ajudar o Brasil a recuperar o legado da Lava
Jato."

Antes de ruir o castelo lavajatista, a operação e seus líderes


cristalizaram uma imagem heroica pelo país, mas sobretudo em
Curitiba. Moro e Dallagnol eram aplaudidos nas ruas e em
restaurantes, carros circulavam com adesivos em apoio à Lava Jato
e militantes acampavam em frente à 13ª Vara da Justiça Federal, no
centro da capital, pedindo o impeachment de Dilma e exaltando a
operação.
:
"A Lava Jato vem ocupar, na identidade cultural curitibana, o espaço
que no passado foi de cidade modelo de planejamento urbano, que
fica vazio com a saída de cena de Jaime Lerner", interpreta Ricardo
Costa de Oliveira, professor titular de sociologia da UFPR
(Universidade Federal do Paraná).

Oliveira se refere ao arquiteto, engenheiro e urbanista que foi


prefeito de Curitiba e governador do Paraná por vários mandatos, do
fim da ditadura ao começo do século 21, e por longos anos a figura
mais influente e representativa da política curitibana, símbolo de uma
cidade moderna e organizada.

Rafael Greca, atual prefeito curitibano, é uma das crias de Lerner.


Hoje no PSD de Gilberto Kassab, assim como o governador Ratinho
Jr, Greca virou à direita a reboque da onda que assolou o Paraná e o
Brasil. Disse que, certa feita, tinha vomitado ao sentir cheiro de
pobre e elaborou projeto prevendo multa para quem doasse comida
a moradores de rua sem autorização da prefeitura (depois retirou a
multa do texto).

Amigos dizem que votou em Lula no segundo turno, e progressistas


o têm como um bom gestor. Para direitistas radicais, é tido como de
esquerda. Greca não quis dar entrevista.

Oliveira também observa que houve uma sintonia étnico-racial do


curitibano com o líder da extrema direita. "Quando surge Bolsonaro,
com olho claro, sobrenome italiano, a identificação com o fenótipo
europeu é automática." Isso apesar de quase um quarto da
população curitibana ser de pretos e pardos, parcela comumente
invisibilizada pela mística de "cidade europeia" com suas vastas
comunidades de descendentes do Leste Europeu, de japoneses,
árabes e judeus.

"Aqui em Curitiba tem um memorial ucraniano, um polonês, um


:
alemão, um japonês, vários italianos —bairro, clubes—, tem uma
mesquita linda, o Museu do Holocausto. Mas não tem monumento à
história dos pretos", observa o advogado Luiz Carlos da Rocha, o
Rochinha, que foi advogado de Lula e é filho de Espedito Rocha, um
negro pernambucano que se radicou em Curitiba e virou um líder
sindical histórico, além de artista escultor.

A visão de uma cidade de descendentes de europeus trabalhadores


serviu também para plasmar a busca por uma identidade local. É
nela que está assentado o ensaio "Um Brasil Diferente", do crítico
Wilson Martins, que apaga o papel de negros e indígenas na
formação do Paraná e enaltece a contribuição da imigração
europeia.

O fecho do livro fala por si. "Assim é o Paraná. Território que, do


ponto de vista sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova
dimensão, a de uma civilização original construída com pedaços de
todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem português e sem
índio, dir-se-ia que a sua definição humana não é brasileira. [...]
Assim é o Paraná. Terra que substituiu o sempre estéril heroísmo dos
guerreiros pelo humilde e produtivo heroísmo do trabalho quotidiano
e que agora, entre perturbada e feliz, se descobre a si mesma e
começa, enfim, a se compreender."

Anos antes de Martins escrever "Um Brasil Diferente", a busca


sôfrega por uma identidade própria produziu o paranismo,
movimento surgido nos anos 1920 que, nas palavras do prefeito
Rafael Greca no livro "Curitiba, Luz dos Pinhais", foi "uma reação
ética e estética ao apequenamento da nossa terra diante de São
Paulo e de outras regiões do Brasil e do mundo". Dalton Trevisan
criou a lendária revista Joaquim em parte como reação ao
paranismo.
:
Era uma época conturbada. Quando defende que Olavo de Carvalho
"se aproveitou mais do conservadorismo curitibano do que o
contrário", o professor Geovane Moretto tem amparo histórico.
Quase um século antes da Lava Jato, Curitiba e o Paraná tiveram,
nos anos 1930, um pujante movimento integralista, a versão
brasileira do fascismo italiano.

Em 1955, quando Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista


Brasileira, concorreu à Presidência, terminou apenas em quarto, com
8,2% dos votos (atrás de Juscelino Kubitschek, Juarez Távora e
Adhemar de Barros). Mas o líder integralista teve no Paraná sua
melhor votação em todo o país (24%) e terminou em primeiro em
Curitiba (Adhemar foi o segundo, JK ficou em quarto).

A resistência à ditadura militar (1964-1985) e a mobilização pela


abertura democrática marcaram um período progressista no Paraná.
Em 1982, José Richa foi eleito governador pelo MDB, partido de
oposição à ditadura, e governou inclusive com quadros egressos do
velho partidão, o PCB. A Boca Maldita, reduto no centro curitibano,
recebeu o primeiro grande comício das Diretas Já no país, em 12 de
janeiro de 1984.

Os contrapontos de esquerda na terra da Lava Jato são em sua


maioria do PT, como o deputado estadual Renato Freitas e a
deputada federal Carol Dartora. Ela foi a primeira negra eleita
vereadora da cidade em 2020 e, dois anos depois, a segunda
pessoa mais votada na capital para a Câmara dos Deputados (atrás
apenas de Dallagnol). "Curitiba não é só conservadora, é uma cidade
muito complexa, aberta ao novo e à modernização", afirma Dartora,
que tenta se viabilizar como candidata do partido à prefeitura no ano
que vem.

A noite virou outra trincheira da minoria. Durante a pandemia, o Bek’s


:
Bar foi notícia por rejeitar a presença de eleitores de Bolsonaro. Dona
do local, cujas paredes têm bandeiras do MST e a frase "fora,
bolsonaristas", Giovanna Lima assumiu o lugar após a morte do pai.
"Ele votava na esquerda, mas não revelava, para não perder clientes.
Honro sua memória, mas sou diferente, acho que nestes tempos não
dá mais para fazer isso."

O jornalista Rogério Galindo foi demitido da Gazeta do Povo em 2018


—segundo ele, as discordâncias políticas influíram, o que Cunha
Pereira refuta, atribuindo a "questões de gestão". Em 2019, fundou
com dois sócios o jornal digital Plural. "O Plural nasceu porque
Curitiba tem muitas vozes, mas os jornais insistiam em amplificar
sempre as mesmas", diz Galindo. "A gente busca diversificar o
debate, não queremos pregar para convertidos."

Sempre há a arte como espaço libertário e transgressor. Curitiba


abriga desde 1992 um dos principais festivais de teatro do país.
Seus parques têm espaços culturais admiráveis, como o museu
Oscar Niemeyer, a Ópera de Arame e a Pedreira Paulo Leminski.

Para não mencionar a vigorosa cena literária da cidade, que mescla


contemporâneos como Luci Collin, Giovana Madalosso e Caetano
Galindo a cults como Valêncio Xavier (1933-2008) e Manoel Carlos
Karam (1947-2007) e aos consagrados Dalton Trevisan, Paulo
Leminski (1944-1989) e Cristóvão Tezza.

Leminski afirmou que Curitiba era "uma cidade em que a


sexualidade, o Eros da vida, é reprimido", em que vigora "a ‘mística
do trabalho’, herança equivocada dos imigrantes alemães, italianos e
polacos". Mas o "polacolocopaca" também dizia que jamais
conseguira morar em outro lugar por muito tempo.

Numa ode ao seu modo ao torrão natal, escreveu o poema


"Curitibas", que decerto faria corar muitos conservadores. "Conheço
:
esta cidade/ como a palma da minha pica./ Sei onde o palácio/ Sei
onde a fonte fica/ Só não sei da saudade /A fina flor que fabrica / Ser,
eu sei./ Quem sabe,/ esta cidade me significa."
:

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