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MEDICALIZAÇÃO EM PSIQUIATRIA.

Article in Cadernos de saúde pública / Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública · January 2017
DOI: 10.1590/0102-311x00162316

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Luciana Brito
University of Brasília
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RESENHAS 1
BOOK REVIEWS

MEDICALIZAÇÃO EM PSIQUIATRIA. Freitas F, Machado de Assis. Se no conto a personagem


Amarante P. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; médico-alienista conclui que a loucura deve ser
2015. 148 p. ISBN 978-85-7541-472-9. regra no mar de sujeitos apenas aparentemente
normais porque mal examinados, Freitas & Ama-
doi: 10.1590/0102-311X00162316 rante nos mostram que na história da constru-
ção dos sistemas classificatórios dos transtornos
mentais essa realidade não parece se distanciar
Fernando Freitas & Paulo Amarante nos revelam da ficção. A história das várias alterações, em
no livro Medicalização em Psiquiatria uma impor- pouco mais de cinquenta anos de existência, do
tante e urgente discussão sobre como nossas DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtor-
vivências têm se tornado cada vez mais insepa- nos Mentais) produzido pela American Psychia-
ráveis do discurso biomédico. É pela análise do tric Association dos Estados Unidos (APA), bem
fenômeno da medicalização na sociedade oci- como suas controvérsias no campo científico são
dental que os autores discorrem sobre algumas levantadas e discutidas no capítulo. Os autores
das consequências individuais e sociais da alian- nos apresentam um importante desafio em que
ça entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica, o principal sistema classificatório da psiquiatria
sobretudo após meados do século XX quando a é lançado: como lidar com os imperativos cientí-
psiquiatria biológica ganha força no cenário de ficos da confiabilidade e validade em um sistema
tratamento dos chamados transtornos mentais. de classificação de doenças mentais que constrói
O livro é o resultado da uma robusta análi- socialmente suas próprias categorias de normal
se teórica e metodológica dos paradigmas do e patológico? É por meio de estudos publicados
fenômeno da medicalização mediante análise em revistas internacionais de grande prestígio
no campo da saúde mental. Os capítulos do li- que os autores colocam em xeque as afirmações
vro certamente foram planejados para condu- em defesa da variedade crescente de classifica-
zir a leitora às principais práticas discursivas da ções psiquiátricas, bem como da necessidade de
psiquiatria e suas consequências na realização tratamentos manicomiais e do uso de psicofár-
do sistema classificatório das doenças men- macos como regra.
tais, que está intimamente relacionado ao uso No capítulo 3, Medicalização: Incluir ou Ex-
cada vez mais difundido de psicofármacos pa- cluir, os autores trazem dois casos paradigmáti-
ra o tratamento das mais diversas experiências cos – a eliminação diagnóstica da homossexua-
da existência. lidade na terceira revisão do DSM e a luta pela
O capítulo 1, Diversas Faces do Fenômeno, nos inclusão e reconhecimento de um sofrimento em
apresenta alguns dos principais teóricos críti- contexto pós-guerra do Vietnã, transformado
cos ao estatuto da patologia e do controle social em classificação diagnóstica do transtorno de es-
exercido pela medicalização da doença mental. tresse pós-traumático (TEPT). Se um comporta-
Pelos teóricos abordados, os autores fazem re- mento social deixou de ser medicalizado, no caso
flexões sobre como o fenômeno da medicaliza- da homossexualidade, outras tantas vivências e
ção foi desenvolvido na literatura científica até comportamentos passam a ser patologizadas a
a consagração da indústria farmacêutica e o uso cada revisão do sistema classificatório de doen-
de medicamentos como centralidade terapêutica ças, seja para o reconhecimento de um corpo so-
das formas mais variadas de classificação do so- fredor, para garantia de direitos ou mesmo para
frimento mental. o enquadramento de um corpo desviante dentro
O segundo capítulo, intitulado Diagnosticar das normas hegemônicas de poder para o con-
Doenças, se inicia com o conto O Alienista, de trole dos corpos.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a li-


cença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e
reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho
original seja corretamente citado. Cad. Saúde Pública 2017; 33(1):e00162316
2 RESENHAS BOOK REVIEWS

O Mito Científico do Desequilíbrio Psíquico e su- tico não é o mesmo que negar a existência dessas
as Doenças é o quarto capítulo do livro. Os auto- experiências mesmas. Freitas & Amarante reco-
res discutem como, a partir da segunda metade nhecem que tais vivências são reais, mas que há
do século XX, a construção social da doença foi uma variação histórica sobre como elas têm sido
paulatinamente substituída por uma construção descritas. Nesse sentido é que os autores pro-
“corporativa da doença” (p. 77); nesse sentido, as põem “colocar entre aspas o que é apresentado como
doenças mentais foram transformadas pela in- determinado cientificamente para se buscar ma-
dústria farmacêutica em causalidades biológicas. neiras distintas de se aproximar e lidar com tais ex-
Freitas & Amarante nos apresentam o percurso periências” (grifos no original, p. 131-2). E fazem
histórico da introdução dos psicotrópicos no de maneira magistral ao longo deste pequeno e
tratamento da doença mental com base na cons- grande livro.
trução de uma argumentação lógica baseada nas Por último e não menos importante, os au-
premissas da teoria biológica. Os autores discor- tores apresentam sugestões de leituras e filmes.
rem pela perspectiva crítica sobre o paradigma Mas se engana a leitora que imagina apenas uma
da psiquiatria biológica e apresentam, com au- lista com referências numeradas. Os autores fa-
xílio da revisão de resultados de pesquisa, que a zem um diálogo com seus possíveis leitores e
teoria do desequilíbrio psíquico para justificar lançam as sugestões com um parágrafo explica-
o uso de medicamentos e internação faz pouco tivo sobre o contexto das obras sugeridas e por
ou nenhum sentido quando comparado aos tra- que elas poderiam interessar aqueles que dese-
tamentos alternativos à psiquiatria ortodoxa, jam se aprofundar no tema. Vale a pena seguir a
como, por exemplo, o tratamento com aborda- rota proposta. Ela certamente é uma leitura para
gens psicossociais. todas – profissionais de saúde, leigas ou estu-
Se o capítulo 5, Ninguém Pode Escapar, faz um diosas – as interessadas em compreender de que
alerta para a expansão do “mercado da psiquiatria” modo a medicalização afeta cotidianamente a
(p. 105), no qual qualquer experiência humana existência dos sujeitos. Em um contexto em que
poderia ser tornada uma doença mental e, por- a máxima de perto ninguém é normal está sendo
tanto, medicamente tratável; no capítulo 6, A levada cada vez mais a sério pela ciência psiqui-
Desmedicalização é Possível: Experiências, os auto- átrica das classificações, o livro é um convite ao
res não nos deixam desamparados e apresentam conhecimento no tema e reflexão.
experiências exitosas no campo do cuidado em
saúde mental. A experiência de Soteria, o pro-
jeto Open Dialogue de origem finlandesa com Luciana Stoimenoff Brito 1,2
base psicossocial são exemplos trazidos e discu-
tidos em detalhes que revelam a possibilidade de
1 Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
2 Anis – Instituto de Bioética, Brasília, Brasil.
provocar fissuras no fenômeno da medicalização l.brito@anis.org.br
psiquiátrica do sofrimento mental.
Reconhecer a medicalização das experiências
individuais ou coletivas como fenômeno biopolí-

Cad. Saúde Pública 2017; 33(1):e00162316

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