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DOI: 10.1590/0103-1104201711520 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1233-1235, OUT-DEZ 2017
descoberta da penicilina para o tratamento suas histórias de vida ao se darem conta dos
de infecções, acredita-se que os medica- prejuízos decorrentes de tais medicamentos.
mentos psicotrópicos atinjam, com a mesma O próprio autor reconhece os limites desse
precisão de uma bala certeira que alcança método: o fato de pacientes, familiares e
o alvo desejado, a causa da doença que se profissionais de saúde atribuírem determi-
quer combater. No entanto, não se pode nados valores ao uso dos medicamentos não
dizer que eles tenham essa mesma relação é suficiente para conhecer os seus mecanis-
de causa-efeito esperada em outras classes mos de ação. Suas impressões pessoais não
de medicamentos. No lugar de corrigirem são capazes de identificar se os sintomas
desequilíbrios químicos cerebrais, os psico- residuais e persistentes, sobretudo após seu
fármacos os provocam, resultando em uma uso continuado, são um processo típico da
mudança esperada no comportamento, nas doença ou o produto da medicação. De qual-
sensações, na expressão etc. quer maneira, é um recurso que permeia
Whitaker se utiliza de três recursos meto- toda a sua argumentação, exemplificando
dológicos para construir o seu argumento: em com casos reais as consequências – em geral,
um primeiro momento, faz uma comparação negativas – do uso continuado dos psicotró-
histórica de três etapas – pacientes hospitali- picos, em longo prazo.
zados em 1955; adultos e crianças ditas incapa- Whitaker não adota uma postura imper-
citadas por transtornos mentais em 1987; assim meável às contradições e aos dilemas en-
como em 2007. Mostra que os prognósticos dos frentados pelas pessoas (tanto as que sofrem
transtornos mentais pioraram após a revolução com suas condições quanto familiares e pro-
psicofarmacológica, na década de 1950, quando fissionais de saúde). Ao contrário, procura
as internações diminuíram, mas a dita cronifi- mostrar como esses impasses são atravessa-
cação dos quadros aumentou. dos por um discurso científico que justifica e
Além disso, faz uma revisão abrangen- apoia determinadas opções terapêuticas em
te das evidências produzidas ao longo das relação a outras. Assume, ao final, a propo-
últimas décadas, relativizando os benefícios sição de algumas experiências positivas que
dos psicofármacos. Mostra como alguns não adotam a psicofarmacologia como me-
pesquisadores da área tiveram suas carrei- canismo central de suas ações de cuidado,
ras destruídas por apontarem problemas obtendo resultados bastante positivos, como
decorrentes do uso desses medicamentos. a experiência finlandesa do ‘diálogo aberto’.
É o caso de David Healy, cujo convite para Práticas contra-hegemônicas bem sucedidas
trabalhar na Universidade de Toronto foi que nos mostram que é possível ter cami-
retirado depois da publicação de um traba- nhos alternativos para aquilo que se conven-
lho em que mostrava que algumas pessoas cionou chamar de ‘transtorno mental’, e que,
cometeram suicídio após tomar antidepres- nessa redução, não dão conta de explicar a
sivos do tipo Inibidor Seletivo de Receptação diversidade humana.
de Serotonina (ISRS). Apresenta, então, um Dessa forma, o livro traz implicações
quadro geral motivado por fortes conflitos de significativas para a realidade brasileira,
interesse que contribuem para a produção de a partir de diferentes aspectos epidemio-
ciência, que tende mais a apresentar os bene- lógicos e epistemológicos. Por um lado, os
fícios do que os riscos dos psicotrópicos. dados trazidos por Whitaker evidenciam as
Na terceira base do tripé metodológico, grandes lacunas no conhecimento, no Brasil,
realiza entrevistas com cerca de 30 pessoas a respeito do consumo de psicofármacos,
diagnosticadas com transtornos mentais, que informações guardadas a sete chaves pela
fazem ou fizeram uso de diferentes tipos de indústria farmacêutica.
psicotrópicos e que passaram a reinterpretar Por outro lado, mostra como os
Referências
ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêu- WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas
ticos: como somos enganados e o que podemos fazer a mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso
respeito. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.