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RESENHA | CRITICAL REVIEW 1233

WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia:


pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o
aumento assombroso da doença mental. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2017.
Mariana Nogueira Rangel Pande1, Paulo Duarte de Carvalho Amarante2

O recém-publicado livro do jornalista es- problemática da transformação dos diagnós-


tadunidense Robert Whitaker tem todos os ticos nos manuais diagnósticos oficiais, cada
elementos para causar um grande impacto vez mais elásticos e inclusivos, o autor mostra
no Brasil. Lançado em junho deste ano, no III que isso se deve, possivelmente, ao próprio
Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental efeito iatrogênico dos medicamentos.
da Associação Brasileira de Saúde Mental O que a literatura especializada indica é que
(Abrasme), ele aborda, com linguagem aces- as drogas psiquiátricas alteram, muitas vezes
sível a especialistas e não especialistas, o de forma irreversível, o funcionamento do
tema complexo e polêmico que é a relação cérebro, daí a modificação no comportamen-
entre as drogas psiquiátricas, o processo de to de quem as usa. É aí que se apoia o mito do
construção científica e a intervenção da in- desequilíbrio químico cerebral, resultado de
dústria farmacêutica. Se pudéssemos reduzir uma virada incrivelmente sagaz da indústria
em duas frases seu argumento central, assim farmacêutica. Já se constatou, por exemplo,
o diríamos: o autor mostra, com base em que alguns antidepressivos fazem aumentar
pesquisas publicadas em revistas científicas a serotonina no cérebro, assim como alguns
de ponta, que o aumento significativo do uso antipsicóticos bloqueiam a dopamina, efeitos
dos psicofármacos nas últimas décadas está muito conhecidos em diferentes pesquisas.
associado ao mito da teoria do desequilíbrio Mas o curioso é que conseguiu-se convencer
1 Fundação Oswaldo Cruz
químico cerebral, com forte influência da a população de que, se os medicamentos pro-
(Fiocruz), Escola Nacional indústria farmacêutica. Indica, também, os vocam tais alterações, logo, a depressão se dá
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp), Laboratório
efeitos deletérios e iatrogênicos desse uso, pela insuficiência de serotonina no cérebro,
de Estudos e Pesquisas em em médio e longo prazos. assim como a esquizofrenia ocorre em função
Saúde Mental e Atenção
Psicossocial (Laps) – Rio
Numa linha também desenvolvida por do excesso de dopamina.
de Janeiro (RJ), Brasil. Marcia Angell (2010), Whitaker analisa a ques- Daí advém a ideia de ‘pílula mágica’, termo
nogueirarangel@gmail.com
tionável epidemia de transtornos mentais nos que, apesar de sua adequação, é insuficien-
2 Fundação Oswaldo Cruz Estados Unidos. É curioso que, a despeito do te para expressar o equivalente em inglês,
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
aumento significativo de substâncias supos- ‘magic bullet’ (ou ‘bala mágica’, em tradução
Arouca (Ensp), Laboratório tamente capazes de combater os ditos trans- literal para o português). Não se trata aqui
de Estudos e Pesquisas em
Saúde Mental e Atenção
tornos mentais, tem aumentado o número do sentido de magia simbólica dos efeitos
Psicossocial (Laps) – Rio de pessoas com diagnósticos dessa natureza. que produzem, mas de outros pressupostos.
de Janeiro (RJ), Brasil.
pauloamarante@gmail.com
Como explicar esse paradoxo? Para além da De forma similar ao modelo microbiano, e à

DOI: 10.1590/0103-1104201711520 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1233-1235, OUT-DEZ 2017

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descoberta da penicilina para o tratamento suas histórias de vida ao se darem conta dos
de infecções, acredita-se que os medica- prejuízos decorrentes de tais medicamentos.
mentos psicotrópicos atinjam, com a mesma O próprio autor reconhece os limites desse
precisão de uma bala certeira que alcança método: o fato de pacientes, familiares e
o alvo desejado, a causa da doença que se profissionais de saúde atribuírem determi-
quer combater. No entanto, não se pode nados valores ao uso dos medicamentos não
dizer que eles tenham essa mesma relação é suficiente para conhecer os seus mecanis-
de causa-efeito esperada em outras classes mos de ação. Suas impressões pessoais não
de medicamentos. No lugar de corrigirem são capazes de identificar se os sintomas
desequilíbrios químicos cerebrais, os psico- residuais e persistentes, sobretudo após seu
fármacos os provocam, resultando em uma uso continuado, são um processo típico da
mudança esperada no comportamento, nas doença ou o produto da medicação. De qual-
sensações, na expressão etc. quer maneira, é um recurso que permeia
Whitaker se utiliza de três recursos meto- toda a sua argumentação, exemplificando
dológicos para construir o seu argumento: em com casos reais as consequências – em geral,
um primeiro momento, faz uma comparação negativas – do uso continuado dos psicotró-
histórica de três etapas – pacientes hospitali- picos, em longo prazo.
zados em 1955; adultos e crianças ditas incapa- Whitaker não adota uma postura imper-
citadas por transtornos mentais em 1987; assim meável às contradições e aos dilemas en-
como em 2007. Mostra que os prognósticos dos frentados pelas pessoas (tanto as que sofrem
transtornos mentais pioraram após a revolução com suas condições quanto familiares e pro-
psicofarmacológica, na década de 1950, quando fissionais de saúde). Ao contrário, procura
as internações diminuíram, mas a dita cronifi- mostrar como esses impasses são atravessa-
cação dos quadros aumentou. dos por um discurso científico que justifica e
Além disso, faz uma revisão abrangen- apoia determinadas opções terapêuticas em
te das evidências produzidas ao longo das relação a outras. Assume, ao final, a propo-
últimas décadas, relativizando os benefícios sição de algumas experiências positivas que
dos psicofármacos. Mostra como alguns não adotam a psicofarmacologia como me-
pesquisadores da área tiveram suas carrei- canismo central de suas ações de cuidado,
ras destruídas por apontarem problemas obtendo resultados bastante positivos, como
decorrentes do uso desses medicamentos. a experiência finlandesa do ‘diálogo aberto’.
É o caso de David Healy, cujo convite para Práticas contra-hegemônicas bem sucedidas
trabalhar na Universidade de Toronto foi que nos mostram que é possível ter cami-
retirado depois da publicação de um traba- nhos alternativos para aquilo que se conven-
lho em que mostrava que algumas pessoas cionou chamar de ‘transtorno mental’, e que,
cometeram suicídio após tomar antidepres- nessa redução, não dão conta de explicar a
sivos do tipo Inibidor Seletivo de Receptação diversidade humana.
de Serotonina (ISRS). Apresenta, então, um Dessa forma, o livro traz implicações
quadro geral motivado por fortes conflitos de significativas para a realidade brasileira,
interesse que contribuem para a produção de a partir de diferentes aspectos epidemio-
ciência, que tende mais a apresentar os bene- lógicos e epistemológicos. Por um lado, os
fícios do que os riscos dos psicotrópicos. dados trazidos por Whitaker evidenciam as
Na terceira base do tripé metodológico, grandes lacunas no conhecimento, no Brasil,
realiza entrevistas com cerca de 30 pessoas a respeito do consumo de psicofármacos,
diagnosticadas com transtornos mentais, que informações guardadas a sete chaves pela
fazem ou fizeram uso de diferentes tipos de indústria farmacêutica.
psicotrópicos e que passaram a reinterpretar Por outro lado, mostra como os

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argumentos científicos favoráveis ao uso uma pesquisa em que um mesmo artigo


desses medicamentos são hegemônicos e científico foi mostrado para dois grupos de
se sobrepõem a outras possibilidades de pessoas, a fim de que dissessem sua crença
intervenção, embora haja fortes conflitos no resultado das pesquisas. Para um grupo,
de interesse que beneficiem a indústria far- o artigo continha uma imagem cerebral, en-
macêutica. Num interessante paradoxo, a quanto, para o outro, não. Constatou-se que
ciência, quando resumida e explicada para os a crença nos resultados da pesquisa entre
não especialistas, é aceita como num movi- os participantes do primeiro grupo foi bem
mento de fé, de dogma, e torna-se inquestio- maior do que entre os do segundo.
nável. Uma neurocientista norte-americana, Dessa maneira, o livro ‘Anatomia de uma
Molly Crockett (2012), mostra o desfavor que epidemia’ traz uma contribuição importante
a mídia e a indústria fazem ao reduzir as para repensar o papel hegemônico da ciência
descobertas da neurociência a informações e para evidenciar os paradoxos que ela
superficiais e aproximadas, ao mesmo tempo carrega. Só assim é que se poderá não refutá-
que justificam o caráter científico das infor- -la, mas contribuir para as suas produções e
mações transmitidas: é o que ela chama de recolocar o papel do tratamento farmacoló-
‘neurobobagem’. Aponta, por exemplo, para gico em nossa sociedade. s

Referências

ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêu- WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas
ticos: como somos enganados e o que podemos fazer a mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso
respeito. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.

CROCKETT, M. Molly Crockett: cuidado com a


Recebido para publicação em setembro de 2017
neuro-bobagem. 2012. Disponível em: <https:// Versão final em setembro de 2017
Conflito de interesses: inexistente
www.ted.com/talks/molly_crockett_beware_neuro_
Suporte financeiro: não houve
bunk?language=pt-br#t-2709>. Acesso em: 7 jul. 2017.

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