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Ensaio

Medicalização da subjetividade
e fetichismo psicofármaco:
uma análise dos fundamentos
Medicalization of subjectivity and psychotropic drugs
fetishism: an analysis of the fundamentals

Jarbas Oliveiraa Resumo


https://orcid.org/0000-0001-8519-2432
E-mail: jarbas.oliveira@arapiraca.ufal.br, Este trabalho trata dos fundamentos da epidemia
jarbasribeiroo@gmail.com
das drogas psiquiátricas e tem por objetivo
Fillipe Cavalcantib analisar a medicalização da subjetividade e o
https://orcid.org/0000-0002-5624-4587 fetichismo dos psicofármacos em suas bases
E-mail: fillipe.msv@gmail.com
fundamentais. Trata-se de uma reflexão teórica
Sóstenes Ericsona à luz da análise do discurso inaugurada por
https://orcid.org/0000-0003-0905-1376 Michel Pêcheux, a partir da qual se apresenta um
E-mail: sericson.ufal@gmail.com
gesto de interpretação, possibilitando identificar
a epidemia das drogas psiquiátricas como expressão
a
Universidade Federal de Alagoas, Campus de Arapiraca. Curso
da medicalização da vida. Com base na crítica dos
de Enfermagem. Arapiraca, AL, Brasil.
fundamentos da forma capitalista de consumo
b
Faculdade Santa Bárbara. Curso de Enfermagem. Arapiraca,
AL, Brasil. e da prescrição dos psicofármacos, esta análise
demonstrou como o modelo de metabolismo social
do capital impõe aos sujeitos uma terapêutica
fetichizada. Espera-se contribuir com práticas que
lutam pelo legado do movimento antimanicomial
e, com isso, somar aos esforços dos sujeitos
envolvidos na produção de práticas terapêuticas
efetivamente humanizadas e críticas.
Palavras-chave: Subjetividade; Fetichismo
Psicofármaco; Saúde Mental; Capitalismo.

Correspondência
Jarbas Oliveira
Rua Manoel Severino Barbosa, Bom Sucesso. Arapiraca, AL, Brasil.
CEP 57072-970

DOI 10.1590/S0104-12902024220833pt Saúde Soc. São Paulo, v.33, n.1, e220833pt, 2024 1
Abstract Introdução
This study deals with the foundations of the O uso de medicamentos psicotrópicos, 1 ou
psychiatric drug epidemic, aiming to analyze the psicofármacos, vem aumentando de forma
medicalization of subjectivity and the fetishism vertiginosa desde sua introdução ao mercado,
of psychotropic drugs in their fundamental em meados da década de 1950. Nos últimos anos,
bases. It is a theorical reflection in the light of observa-se um crescimento ainda mais expressivo
discourse analysis inaugurated by Michel Pêcheux, no consumo desses produtos. No Brasil, de acordo
from which it presents a gesture of interpretation, com a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização
allowing the identification of the psychiatric drug e Promoção do Uso Racional de Medicamentos
epidemic as an expression of the medicalization no Brasil (PNAUM) de 2016, que analisou os
of life. Based on the critique of the foundations 20 subgrupos farmacológicos mais utilizados
of the capitalist form of consumption and pelos usuários da atenção primária à saúde,
prescription of psychotropic drugs, this analysis os antidepressivos, antiepiléticos e ansiolíticos
demonstrated how the social metabolism model figuraram entre os medicamentos mais consumidos,
of capital imposes a fetishized therapy on the sendo superados apenas pelos anti-inflamatórios não
subjects. We hope to contribute to the practices esteroidais (Aines), pelos anti-hipertensivos e pelos
of those who fight for the legacy of the anti-asylum antidiabéticos (Álvares et al., 2017).
movement and thus add to the efforts of the Em decorrência das implicações sociais da
subjects involved in the production of effectively pandemia da covid-19, essa tendência de uso
humanized and critical practices. medicamentoso se intensificou ainda mais,
Keywords: Subjectivity; Psychotropic Drugs de forma que, segundo o levantamento feito pela
Fetishism; Mental Health; Capitalism. consultoria IQVIA,2 a pedido do Conselho Federal
de Farmácia (CFF), verificou-se que no primeiro
semestre de 2020, em comparação com o mesmo
período de 2019, houve um crescimento de quase
14% nas vendas de antidepressivos e estabilizadores
de humor. O número de unidades vendidas saltou de
56,3 milhões, em 2019, para 64,1 milhões, em 2020
(Venda…, 2020).
O perfil mundial de consumo em escala crescente
de psicofármacos tem preocupado uma série de
pesquisadores e entidades nos últimos anos, a ponto
de tal padrão configurar, segundo Whitaker (2017),
uma epidemia das drogas psiquiátricas. Este artigo
parte da tese que epidêmica, na realidade, é a forma
de a sociedade capitalista lidar com o uso de
medicamentos psicotrópicos.
Partilha-se da noção proposta por Szasz (1980),
ao considerar que a doença/transtorno mental
é uma forma de mito, de ideologia. Tal noção
não nega a existência de diferentes formas de

1 A gama de fármacos que, de diferentes maneiras, afetam o humor e o comportamento (Rang; Dale, 2010).
2 A referida sigla decorre da formulação derivada da associação das empresas Quintiles e IMS Health e do termo “via”, do latim, que
significa “por meio de”. A fusão ocorreu em 2006 e trata-se de uma empresa voltada para a informação e serviços de investigação clínicas
e soluções tecnológicas.

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sofrimento psíquico, tampouco se opõe à ideia semânticos a partir do materialismo histórico,
de que o número de sujeitos com tais problemas da linguística e da psicanálise, enquanto três
esteja aumentando e se reconfigurando nas regiões do saber, sendo esse o ponto nodal
últimas décadas, apenas rejeita o reducionismo de que articula teoricamente a proposta desta
equiparar o sofrimento psíquico aos parâmetros reflexão. Desse modo, este artigo não tem
restritos das doenças orgânicas. como objetivo recontar o que foi dito por esse
Assim, a epidemia das drogas psiquiátricas segmento da crítica da saúde mental, mas
é bem particular, pois está estruturada sobre analisar a medicalização da subjetividade e o
o processo iatrogênico, que funda a psiquiatria fetichismo dos psicofármacos em suas bases
dita científica: a concepção de que as formas de fundamentais à luz da crítica marxiana, e, dessa
sofrimento psíquico possuem causa biológica, maneira, contribuir com outra possibilidade de
estruturadas numa suposta alteração de um ler a questão, numa perspectiva discursiva com
padrão neuroquímico normal. Foi em decorrência base em Michel Pêcheux.
dessa concepção que a captação por parte do
discurso biomédico da subjetividade humana A epidemia das drogas psiquiátricas
e das formas de sofrimento psíquico se tornou
possível. Tal fato reconfigurou toda a terapêutica como expressão da medicalização
psiquiátrica e psicológica, causando a produção da vida
de um número monumental de sujeitos em
sofrimento e com problemas orgânicos induzidos O consumo de drogas psiquiátricas, de forma
pelo uso desses fármacos (Whitaker, 2017).
a ser pensado como uma epidemia, só é possível
Já há mais de 40 anos, algumas pesquisas
devido a um fenômeno ainda mais amplo, perene
desmontam, nos próprios termos positivistas,
e legitimado ideologicamente pela sociedade
as hipóteses biologicistas de causas dos
capitalista: a medicalização da vida. De acordo
ditos transtornos mentais, como apontam
com Freitas e Amarante (2017), medicalizar não se
as revisões de Whitaker (2017) e Coser (2010).
resume a cuidar(se) por medicamentos. De modo
Destacam-se mundialmente, nesse sentido, as
geral, a medicalização da vida se configura como
críticas realizadas por Peter Lehmann e Salam
um processo de “[…] transformar experiências
Gómez (2018), Marcia Angell (2014), além do
consideradas indesejáveis ou perturbadoras em
próprio Robert Whitaker (2017); e, no Brasil, os
professores Fernando Freitas e Paulo Amarante objetos da saúde, permitindo a transposição do que
(2017) também contribuem significativamente originalmente é da ordem social moral ou político
para as análises desse fenômeno. Todos para os domínios da ordem médica e práticas afins”
esses autores apontam, em certa medida, (Freitas; Amarante, 2017, p. 14). Todavia, o processo
as determinações econômicas e políticas de medicalização é indissociável da constituição
exercidas, especialmente pela indústria da medicina moderna, e seu entendimento requer
farmacêutica e por setores do Estado moderno, a análise histórica da reconfiguração do lugar
como fato que condiciona a criação e manutenção do médico, tal como determinado pela sociedade
da epidemia das drogas psiquiátricas. capitalista desde o século XVIII.
A partir desses pressupostos, busca-se Nessa perspectiva, o desenvolvimento das forças
nos dispositivos teórico-analíticos da análise produtivas e do positivismo biologicista tornou
do discurso a necessária ancoragem para possível o conhecimento das bases fisiológicas
uma tomada de posição no jogo dos sentidos do funcionamento corporal, proporcionando
materializados na subjetividade medicalizada. tratamentos médicos mais resolutivos para algumas
Para tanto, cabe ressaltar que o francês Michel doenças da época. Desse modo, a medicina, agora
Pêcheux (2014), filósofo de formação, buscou com base científica, reivindicou a autoridade sobre
formular uma teoria materialista dos processos o adoecimento e seus assuntos, constituindo-se

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como o porta-voz3 da ciência burguesa em relação […] a história da produção dos conhecimentos
aos temas de saúde (Frances, 2013). Nessa direção, não está acima ou separada da história da luta de
Freitas e Amarante (2017, p. 22) afirmam que “não se classes […] isso implica que a produção histórica de
trata simplesmente de uma evolução do saber um conhecimento científico dado não poderia ser
científico – objetivo, neutro e isento dos interesses pensada como uma ‘inovação das mentalidades’,
e conflitos sociais. Trata-se, sobretudo, do saber uma ‘criação da imaginação humana’, ‘um
médico resultante de processos de construção social desarranjo dos hábitos do pensamento’ etc., mas
de um poder sobre os indivíduos”. como efeito (e a parte) de um processo histórico
Por essa via, a problematização da cientificidade determinado, em última instância, pela própria
na psiquiatria conduz à análise das condições produção econômica. (Pêcheux, 2014, p. 172, grifos
de produção dos conhecimentos científicos no do autor)
capitalismo, considerando-as, em grande parte,
como resultado das determinações da exploração A natureza constitutiva da relação entre
do capital sobre o fazer médico. Partindo da noção produção econômica e de conhecimento é do tipo
de espelhamento desenvolvida por Lukács (2013), fundador-fundado; não de maneira historiográfica
afirma-se que o processo de produção científica ou com base em uma hierarquia valorativa, mas sob
uma consideração ontologicamente dialética. Lukács
é uma forma particular de reflexo – o científico.
(2013, p. 30) afirma que “[…] a ciência ascende
Essa forma de espelhamento, que se torna
a partir do pensamento e da práxis da cotidianidade,
conhecimento, é um reflexo dialético e contraditório
em primeiro lugar do trabalho, e sempre a este
da realidade objetiva apreendida, sistematicamente,
retorna, fecundando-o”. Desse modo, trabalho
pela subjetividade. Essa apreensão sistemática
e ciência se articulam em co-determinação
assume a forma de um concreto pensado a partir de
recíproca, fundamentando-se e justificando-se,
sucessivas aproximações (Marx, 2008).
uma vez que “[…] as condições de produção dos
Dizer que a produção do conhecimento é um
conhecimentos científicos estão inscritas nas
processo dialético significa que ele é histórico e
condições de reprodução/transformação das relações
que não há um “[…] ‘estádio’ pré-epistemológico de produção […]” (Pêcheux, 2014, p. 172). Ou seja, dada
em que ‘os homens’ se encontrariam diante do a centralidade do trabalho na reprodução social,
mundo em estado de completa ignorância […]” a esfera econômica vai requisitar do complexo da
(Pêcheux, 2014, p. 174, grifos do autor). Dessa forma, ciência formas compatíveis com seus parâmetros
ao produzir conhecimento – ação humana, ativa, de (re)produção.
posta teleologicamente –, o ser social se debruça Cumpre destacar também que o processo
sobre essa objetividade e apreende, por sucessivas de produção do conhecimento mais amplo,
aproximações e tomadas de posição, suas leis e incluindo o conhecimento médico, ergue-se
fundamentos, a fim de continuar modificando-a a na dinâmica contraditória de constituição das
partir de necessidades sociais (sejam elas do gênero ideologias teóricas, que são, geralmente, mediações
humano ou de reprodução do capital). entre as ideologias práticas e a produção de
Entendendo, a partir do materialismo histórico, conhecimentos (Pêcheux, 2014), com a função
que a centralidade do processo de produção essencial de orientar determinados sentidos,
do conhecimento científico é objetiva, deve-se garantindo a operacionalização da práxis científica.
considerar, então, a determinação fundamental da Tais ideologias aparecem na forma de ideias
luta de classes nesse processo, uma vez que: científicas, concepções gerais e particulares de

3 Numa perspectiva discursiva, a posição do porta-voz consiste naquela que se situa “ao mesmo tempo como ator visível e testemunha
ocular do acontecimento […]” (Pêcheux, 1990, p. 17). Configura-se, antes de tudo, como sujeito que fala “em nome de…”, por um efeito
visual “[…] que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe
ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa e sob seu olhar” (Pêcheux, 1990, p. 17).

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cunho epistemológico regional (Pêcheux, 2014). Uma das consequências dessa nova função social
Como existem objetivamente e desempenham uma assumida pelo médico é a ressignificação do papel
função social, não estão apartadas da história da do doente. Considerando as várias particularidades
luta de classes. históricas das épocas e das sociedades, regularmente,
Nesse processo, exprime-se a relação a função de doente serviu para estabilizar uma noção
indissociável entre produção econômica e produção geral de norma, determinada mediante sua negação
de conhecimento, pois, dialeticamente, as ideologias do que seria normal, sendo o doente a margem
práticas, fundadas no cotidiano e orientadas para constitutiva desse parâmetro. No entanto, com o
o trabalho, atribuem formas e limites às ideologias avanço da sociedade do capital e seu imperativo
teóricas. No entanto, essa condição não anula a ação econômico de reproduzir-se e legitimar-se, a função
do sujeito na produção do conhecimento científico, de doente passou a servir novos e indissociáveis dois
apenas coloca-o em seu devido lugar, uma vez que propósitos: a entrada no circuito de valorização do
“o processo de produção dos conhecimentos se opera capital e a legitimação do poder médico. O doente
através das tomadas de posição (‘demarcações’, passou, então, a ser produzido sob uma perspectiva
etc.) pela objetividade científica” (Pêcheux, 2014, mercantil, tornando-se um dos negócios mais
p. 182, grifo do autor). Ora, quem toma posição por lucrativos da atualidade.
alguma coisa não é a objetividade, mas um sujeito A estruturação dos serviços de saúde sob a
sobre/sob uma objetividade. Marx, e depois Lukács, predominância mundial do caráter curativista,
lembram que o ser social não é passivo, e sim um clínico, hospitalocêntrico e farmacológico
ser que responde dialeticamente, de acordo com produziu um determinado tipo de doente: o doente
as condições objetivas históricas que o determinam. consumidor. Nessa perspectiva, o saber da medicina,
Desse modo, o processo de produção do em sua expressão biomédica, passou a ser o discurso
conhecimento científico “[…] é um ‘corte continuado’; que estrutura e legitima – principalmente por meio
ele é, como tal, coextensivo às ideologias teóricas, de seus manuais diagnósticos e terapêuticos –
das quais ele não cessa de se separar, de modo a margem não somente dos parâmetros de normal
que é absolutamente impossível encontrar um e patológico, mas as condutas fundamentais que
puro ‘discurso científico’ sem ligação com alguma devem ser empregadas nesses sujeitos. Desse
ideologia” (Pêcheux, 2014, p. 182, grifo do autor), modo, o doente desse tempo histórico, em função
o que põe em causa uma suposta neutralidade no da aliança médica com a manutenção da dinâmica
campo da ciência. capitalista, é o doente do capital, (re)produzido
Do ponto de vista ontológico, então, tratando-se fundamentalmente sob suas leis.
de um sistema socialista, por exemplo, a produção De certa forma, esse movimento de
continuaria na articulação dialética determinando reestruturação, na perspectiva de Foucault (2019),
as ideologias teóricas, não sendo a função das foi ensaiado por Philippe Pinel no movimento
ideologias, portanto, restrita às sociedades de conhecido como alienismo, ocorrido na ebulição
classe (Lukács, 2013). Nessa perspectiva, apesar de dos acontecimentos da Revolução Francesa,
atender às demandas sociais de cuidado e de atenção da qual Pinel participou ativamente. Desse contexto,
à saúde, a medicina, como as demais categorias do sob as determinações sociais da época, iniciou-se
setor, é determinada e estruturada dialeticamente uma profunda transformação nas bases do que hoje
com o metabolismo social de sua época. O médico,4 se conhece por hospital.
nesse tempo histórico, é, portanto, o médico do Historicamente, o hospital surgiu como um
capitalismo, forjado sob a hegemonia científica do espaço associado ao ideário cristão de acolhida
positivismo. Tal modelo também comparece na base e solidariedade, como a própria etimologia da palavra
do que se convencionou chamar de socialismo real. sugere – em latim, a palavra hospital significa

4 Neste artigo, o termo “médico” remete a uma posição-sujeito no discurso, historicamente produzida.

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hospedagem, hospitalidade. No século XVII, contudo, na comunidade científica da Alemanha e em
o hospital passou a desempenhar uma função Emil Kraepelin.
social mais explícita, sobretudo no que confere ao Mesmo com a influência das teorias da
papel do louco e da loucura no ocidente europeu. degeneração, o movimento de reconfiguração da
Tal função foi o exercício sistemático da segregação psiquiatria em um saber com bases sustentadas
e isolamento de determinados grupos sociais, fundamentalmente na fisiologia e na bioquímica
principalmente loucos e/ou pobres (Foucault, 2019). foi tardio e ainda é motivo de contestação.
Nesse hiato temporal, situa-se o alienismo, quando, O desenvolvimento da psiquiatria estadunidense
por ocasião da Revolução Francesa, a medicina, com é um exemplo significativo desse panorama.5 No final
a finalidade de humanizar o Hospital Geral e torná-lo do século XIX, no país, as formas de terapia moral
mais coerente com a pregação iluminista, converte-o para os loucos passaram a ser questionadas, cedendo
em uma instituição médica por excelência (Foucault, lugar aos “tratamentos físicos”, que compreendiam
2019). Nesse sentido, o hospital foi, paulatinamente, várias formas de hidroterapia, injeção de extrato de
secundarizando os ideais de caridade e segregação tireoide de ovelha, injeções de sais metálicos, soro
e se configurando como um espaço de tratamento equino e até extração dentária (Whitaker, 2017).
de doentes/enfermos. Na passagem da década de 1930 para 1940,
a psiquiatria manicomial voltou-se a três
De acordo com Amarante (2007, p. 25),
tratamentos diretamente cerebrais: o coma
a medicalização do hospital configurou duas
insulínico, as terapias convulsivas e a lobotomia
consequências dialéticas: “o hospital se tornou
frontal. É salutar registrar que tais formas
a principal instituição médica, ou seja, foi apropriado
contaram, à época, com o apoio de parcela expressiva
pela medicina, absorvido por sua natureza;
da comunidade acadêmica e dos principais meios de
em contrapartida, a medicina se tornou um saber
comunicação, sendo esses tratamentos adjetivados
e uma prática predominantemente hospitalares”.
como inovações milagreiras.
Um dos resultados desse movimento foi a criação
Em contraponto, observava-se o avanço das
de um modelo científico de medicina baseado na psicoterapias da palavra (sobretudo a psicanálise
anatomoclínica. e o behaviorismo) e o crescente questionamento
É importante destacar que Pinel entendia que das fragilidades das técnicas psiquiátricas físicas
as causas da alienação mental não eram redutíveis anteriormente citadas. No entanto, do ponto de
às explicações organicistas. Entretanto, já em vista epistemológico, não há antagonismo entre
Cabanis foi possível observar um direcionamento a psiquiatria moderna e o behaviorismo, uma vez que
à explicação anatomofisiológica da loucura, com a o campo da psiquiatria e a abordagem behaviorista
introdução do conceito de degeneração no campo da têm por fundamento o positivismo.
medicina. A esse respeito, Caponi (2012, p. 60) afirma Em meio a tais questões e a comparação com
que “a psiquiatria que se inicia com os teóricos da o desenvolvimento científico de outras áreas da
degeneração na segunda metade do século XIX medicina, a psiquiatria tradicional entrou numa
manterá e aprofundará as ideias localizacionistas importante crise financeira e de legitimidade
esboçadas por Cabanis, distanciando-se das (Amarante, 2007; Whitaker, 2017; Szasz, 1980).
críticas que Pinel dirigia a esse modelo explicativo A referida crise é uma das marcas primordiais da
de doenças mentais”. A teoria da degeneração, psiquiatria enquanto campo da medicina científica.
oriunda da França, teve impacto mundial, inclusive No contexto europeu, a partir das descobertas

5 O caso norte-americano foi escolhido para exposição por configurar a gênese da articulação entre psiquiatria e indústria farmacêutica.
O desenvolvimento histórico da psiquiatria brasileira, por exemplo, apresenta uma estrutura um pouco distinta da que ocorreu nos
Estados Unidos da América. Para isso, vale lembrar, de acordo com Amarante (2007), a considerável contribuição das ideias de Kraepelin,
e depois, Freud, na organização psiquiátrica. Contudo, apesar de diferenças importantes na sua história, a forma atual da medicalização
capitaneada pela psiquiatria brasileira hegemônica é centrada no tratamento medicamentoso, não diferindo fundamentalmente da
maioria dos países, apesar da reforma psiquiátrica recentemente iniciada nesse país.

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microbianas de Ehrlich, Pasteur e Koch, o saber que esses profissionais passaram a trabalhar na
médico passou a buscar e construir hipóteses mais promoção de novas drogas.8
consistentes de causas biológicas das doenças. Foi no contexto alicerçado sobre esse conchavo
Esse foi, desde então, o paradigma médico que os primeiros medicamentos psicotrópicos
fundamental. Todavia, na psiquiatria, tal iniciativa foram lançados no mercado, na década de 1950.
se deparou com percalços significativos, tanto que Nesse período, “o público estava ansioso por saber
a área foi acusada de estar mais alinhada às ditas dos remédios milagrosos, e era exatamente essa a
ciências humanas do que às biológicas (Amarante, história que a indústria farmacêutica e os médicos
2007; Whitaker, 2017). estavam ansiosos para contar” (Whitaker, 2017, p. 72).
Desse modo, a falta de um paradigma biológico Importa pensar também que o êxito mercadológico
bem definido perpassou a transição do alienismo para da indústria farmacêutica necessitaria da produção
a psiquiatria moderna europeia e norte-americana,6 de um novo tipo de “doente mental”, que não
bem como parte da sua história inicial. A hipótese fosse aquele da primeira metade do século XX.
cerebral para as ditas doenças mentais, que marcou Como já antecipado, a determinação do patológico
o início do século XX, não conseguia articular há muito já era uma prerrogativa da medicina
minimamente seus pressupostos com a terapêutica científica, e, no contexto de inserção dos primeiros
física. Foi nessa época que a indústria farmacêutica, psicofármacos, isso foi ainda mais contundente.
em franco crescimento, despontou para lucrar com Freitas e Amarante (2017, p. 33) afirmam que o
a angústia da crise psiquiátrica e dos sujeitos por papel do médico se estendeu para além da sua
ela atendidos. relação dual com o paciente, afinal a psiquiatria se
A aliança firmada entre a indústria farmacêutica tornou o intermediário fundamental da indústria
e a psiquiatria, em meados da década de 1950, farmacêutica diante do sujeito. Nessa relação, agora
é a chave para o entendimento da ampliação do tríplice, o paciente foi convertido em um doente
processo de medicalização da subjetividade e da agrupado segundo certa construção nosológica,
epidemia das drogas psiquiátricas. Tal aliança, compatível com tais propósitos: tratar-se-á
sob a tutela do Estado, tem sua expressão de re-medicalizar a subjetividade, agora sob
mais fundamental no caso norte-americano. as bases neuroquímicas.
Inicialmente, a American Medical Association Nesse sentido, a medicalização da subjetividade
(AMA) se institui como a organização que faria, é um fenômeno tipicamente contemporâneo,
junto ao Food and Drug Administration (FDA),7 a que se desdobra mediante a requisição do saber
avaliação da segurança e eficácia dos medicamentos psiquiátrico, por meio de compromissos ideológicos
em solo estadunidense. Com isso, a AMA tornou- de sustentação e legitimação dos parâmetros da
se “o cão de guarda da indústria farmacêutica e sociedade do capital. Tal associação se desdobra em
de seus produtos […], promovendo os interesses diversas instâncias da reprodução social, como a
financeiros e de seus membros, porque suas educação, o setor saúde e a economia – com destaque
avaliações davam aos pacientes uma boa razão para o papel da indústria farmacêutica e de
para consultarem um médico” (Whitaker, 2017, tecnologias da saúde.
p. 70). Os médicos passaram a controlar o acesso Faz-se oportuno lembrar que o capital está
do público aos medicamentos, tornando-se presente na história muito antes de constituir
uma espécie privilegiada de vendedores das um sistema em torno de si – o capitalismo (Marx,
farmacêuticas. Essa aliança foi tão oportuna 2013). Na perspectiva marxiana, o capital é uma

6 Guardadas as devidas distinções.


7 FDA é um órgão governamental norte-americano, criado em 1862, com a função de controlar os alimentos e medicamentos da população,
através de testes e pesquisas.
8 A receita da AMA para a publicação de drogas em seus veículos saltou de 2,5 milhões de dólares em 1950 para 10 milhões de dólares em
1960 (Whitaker, 2017).

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relação social erguida na subordinação do trabalho Da biologização da subjetividade ao
vivo, que, uma vez transformado em capital, fetiche psicofármaco
é convertido em trabalho morto, quantificado,
acumulado e alienado. Nessa linha, Mészáros (2002) A epidemia das drogas psiquiátricas não seria
entende que mesmo nos países do socialismo real, possível sem que a reformulação da medicalização
o capital continuou determinando a reprodução da subjetividade se apoiasse na sua biologização.9
econômica. Portanto, a partir desses pressupostos, Isso implica dizer que a indústria farmacêutica, para
consideramos a medicalização como um fenômeno lograr êxito em conceber um grupo consumidor,
típico das sociedades contemporâneas, nas quais o precisaria reduzir a subjetividade, como sua
estrutura mais fundamental, ao funcionamento
capital é (ou foi) a relação produtiva fundamental,
neuronal. Com isso, tornou-se imperativa a produção
expressando-se tanto nas sociedades capitalistas,
de discursos alinhados aos propósitos ideológicos da
quanto naquelas pertencentes ao “campo socialista”.
aliança firmada entre a indústria farmacêutica e a
Não obstante, no período pós-revolução de 1917
“nova” psiquiatria, inclusive na sua faceta acadêmica.
na Rússia, a partir da influência da psicologia Como não existe produção de conhecimento
histórico-cultural desenvolvida por Vigotski, sem processos discursivos, é a função discursiva
baseada no materialismo histórico e dialético, que materializa na linguagem uma determinada
tomou-se o adoecimento psíquico como constituído ideologia teórica, que, por sua vez, orienta a tomada
histórica e socialmente, entendido como produto de posição na produção de saber. Por essa razão,
(não exclusivamente, mas determinado) das relações o sistema de ideologias teóricas, próprio de uma
sociais. No entanto, no dito período de stalinização formação social específica, é acompanhado de
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas formações discursivas que lhes são correspondentes
(URSS) a influência da psicologia histórico-cultural e/ou contrárias. Dessa maneira, “o processo
foi drasticamente secundarizada, dando lugar da produção dos conhecimentos está, pois,
às ideias de condicionamento do fisiólogo Ivan indissociavelmente ligado a uma luta a propósito
Pavlov e só retornando na década de 1960, a partir de nomes e de expressões para aquilo que eles
da patopsicologia experimental desenvolvida por designam […]” (Pêcheux, 2014, p. 180, grifo do autor).
Bluma Zeigarnik, psicóloga lituana e discípula de Conforme Coser (2010) aponta, a forma mais
Vigotski (Silva; Tuleski, 2015). eficiente de simbolizar os interesses coorporativos
Destacamos ainda que a medicalização não deve da indústria farmacêutica e da psiquiatria é por meio
do poder das metáforas. Com isso, produziu-se no
ser reduzida à medicamentalização. A medicalização
imaginário contemporâneo o corpo metaforizado
é um fenômeno estruturado na consideração de
como uma espécie de máquina neuroquímica, cuja
experiências e condutas socialmente indesejáveis
engenharia funcionará no plano farmacoquímico,
como objetos da saúde, logo, não é restrita à
“[…] através da química e física das investigações
terapêutica farmacológica. Já a medicamentalização moleculares; no propagandístico, por ícones,
é uma particularização desta última, tratando-se analogias e metáforas” (Coser, 2010, p. 10). Uma vez
de “[…] um fenômeno cultural amplo que diz que os meios de divulgação reproduzem tais discursos,
respeito às interseções entre droga, medicina “nós criamos ou damos consistência imaginária para
e sociedade e inclui a demanda dos pacientes por essas metáforas, que, encarnadas, são vividas como
[…] medicamento” (Rosa; Winograd, 2011, p. 42). o grande enigma (ou a grande resposta) que governa
No campo da psiquiatria, a medicamentalização só a vida de cada um – a serotonina, a endorfina…,
emergiu como fenômeno significativo a partir da metáforas farmacológicas com as quais se vive”
segunda metade do século XX. (Coser, 2010, p. 10).

9 Esse tem sido propriamente o movimento da psiquiatria hegemônica: atribuir determinado sintoma a uma (des)ordem moral e tentar
apreendê-lo e explicá-lo biologicamente.

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As origens desse empreendimento datam da No positivismo,
metade do século passado. No entanto, a causa que
requisita esse tipo de saber da psiquiatria remonta […] o funcionamento do conhecimento da natureza
às bases históricas da sociedade capitalista, – em cada ciência singular – em sua objetividade
em sua relação com o processo de produção dos prático-imanente, é deixado gnosiologicamente
conhecimentos, mais precisamente com a sua intacto, ao lado de uma rejeição – igualmente
face positivista. gnosiológica – de toda “ontologização” de seus
Mészáros (2004, p. 246) afirma que, com resultados, de todo reconhecimento da existência
a necessidade do capital em fazer ascender o de objetos em si, independentes da consciência
positivismo na primeira metade do século XIX, cognoscente […]. (Lukács, 2013, p. 40, grifo do autor)
“[…] nasceu um novo tipo de relacionamento entre
ciência, tecnologia e indústria, que sustentou Dessa forma, a fragmentação é a consequência
a realização das potencialidades produtivas do reducionismo – nesse caso, biológico/cerebral
da sociedade em uma extensão anteriormente – que caracteriza o edifício positivista enquanto
inimaginável”. Isso ocorreu “[…] em parte devido a um empreendimento metodológico-ideológico-discursivo,
crescimento qualitativo significativo do domínio da no qual se ergue o saber psiquiátrico, sob a
natureza e, em estreita relação com este último, a um determinação da indústria farmacêutica a partir
aumento inimaginável da produtividade do trabalho da segunda metade do século XX. Por sua vez,
[…]” (Lukács, 2013, p. 45-46). Por meio do imperativo a constituição desse funcionamento expressa o que
de expansão e acumulação de capital, as ciências aqui se entende por fetichismo psicofármaco.
naturais se tornaram o modelo básico da produção de A fórmula clássica e fundamental de um fetiche
conhecimento, uma vez que o desenvolvimento dessas é o todo pela parte, funcionando por sinédoque –
últimas é condição elementar para a ampliação de ocorre produção de um efeito de universalização
técnicas e tecnologias que garantam o aumento da do particular, procedimento no qual, em meio a um
produtividade econômica, em níveis compatíveis determinado fenômeno, elege-se uma determinada
com as necessidades do capital. parte deste para ser tomada como denominador
De fato, a relação entre capitalismo e positivismo comum redutivo do complexo em questão. No que
é, por demais, estreita, e sua base se ergue sob duas trata esta análise, o fetichismo psicofármaco opera
razões centrais: a) a manipulação da natureza numa no reducionismo da subjetividade ao funcionamento
eficiência nunca vista e b) a negação à ontologia nervoso e, a partir daí, a subjetividade humana pode
(Lukács, 2013). Essas duas razões são expressas ser reduzida, em última instância, ao funcionamento
em unidade dialética, daí o questionamento de das redes neuronais.
Lukács (2013, p. 39), que indaga se “[…] as verdades Todavia, a forma que a psiquiatria encontrou
das ciências naturais reproduzem efetivamente para estruturar o fetiche psicofármaco já era
a realidade objetiva ou apenas possibilitam a sua pressuposto de outras áreas da medicina. A operação
manipulação prática […]”, é fundamental para o consistia em tornar farmacológica a medicalização,
andamento desta análise. ou seja, patologizar (via reducionismo biológico)
Nascido no contexto capitalista, o positivismo é e fundamentar sua terapêutica, sempre que possível,
considerado, até os dias atuais, a forma científica no uso de medicamentos. No entanto, a sinédoque na
mais eficiente de manipulação da natureza. Esse foco psiquiatria ainda não tinha enredo bem definido, uma
extensivo no domínio da natureza traz consigo vez que os tratamentos físico-químicos anteriores
uma limitação interessante, que exclui a análise da não tinham se sustentado à prova da crítica.
totalidade social, eliminando as categorias decisivas A narrativa moderna da psicofarmacologia
da natureza e da matéria, uma vez que sua atividade surgiu, então, na ironia comum de boa parte das
permanece presa ao imediato da manipulação descobertas farmacológicas do século XX: encontrar
fragmentada, mesmo em se tratando, por exemplo, efeito terapêutico a partir de efeitos inesperados.
da ciência produzida no chamado “campo socialista”. Desse modo, o início da psicofarmacologia é de

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certa forma um acidente”, como expressam os casos as condutas terapêuticas, mas o inverso, as condutas
pioneiros da clorpromazina, do meprobamato e do – acidentais, em sua maioria – que determinaram
clorodiazepóxido (Whitaker, 2017; Coser, 2010). a causa.
Coser (2010), inclusive, salienta que tal regularidade Para explicar o funcionamento discursivo
se deu também com os antidepressivos inibidores característico do fetiche psicofarmacológico,
de monoamina oxidase, outros antidepressivos, recorre-se ao exemplo de um dos psicotrópicos mais
ansiolíticos e as butirofenonas. vendidos e utilizados no Brasil, o antidepressivo
Esses “acidentes” bem-sucedidos permitiram tricíclico (ADT) cloridrato de amitriptilina.
à indústria farmacêutica e à psiquiatria a formulação Sua ação decorre da inibição da captação neuronal
das hipóteses das aminas biogênicas, sua sinédoque de norepinefrina e serotonina no terminal nervoso
fundamental.10 Em suma, tais hipóteses apostam que pré-sináptico (Rang et al., 2010; Whalen; Finkel;
a causa dos sofrimentos psíquicos, transformados Panavelil, 2016). Para os que ainda compartilham
em transtornos/doenças mentais, é um desequilíbrio do mito da causa biológica da depressão, esta
neurobiológico de certos transmissores sinápticos. seria decorrente, sobretudo, de um suposto déficit
Cabe lembrar que a hipótese que entende cerebral de serotonina, mas também de dopamina
a subjetividade como centralmente determinada e/ou norepinefrina. Nesse sentido, o cloridrato de
pelo funcionamento químico e fisiológico do cérebro amitriptilina, ao inibir a recaptação pré-sináptica,
é bem anterior ao desenvolvimento de medicamentos proporciona as quantidades de serotonina
psicotrópicos. Todavia, foi devido ao uso empírico e norepinefrina necessárias para o restabelecimento
dos fármacos que tal concepção se expandiu. das atividades cerebrais “normais”.
Whitaker (2017) aponta que a raiz teórica da Quando a terapêutica para a depressão é centrada
hipótese das aminas biogênicas surgiu na década na atuação biológica medicamentosa, em específico
de 1950, quando ainda se debatia sobre de que no uso do cloridrato de amitriptilina, o sujeito
forma os sinais atravessavam os neurônios. Ao se do cuidado psiquiátrico torna-se redutível à sua
conseguir, contudo, isolar acetilcolina, serotonina, dimensão biológica elementar – suas células
norepinefrina e dopamina, o modelo da sinapse nervosas. A dimensão biológica da subjetividade é,
química rapidamente prevaleceu. Nessa linha, então, deslocada à condição dominante do psíquico,
a partir de 1955, iniciativas como as de Bernard razão pela qual o fetichismo do psicofármaco
Brodie, Arvid Carlsson, Joseph Schildkraut e Jacques expressa seu efeito de sentido elementar na
Van Rossum defenderam hipóteses biológicas sobre produção da afirmativa: somos nosso cérebro.
a causa dos transtornos/doenças mentais. Nessas circunstâncias, o psiquiatra se torna uma
Entretanto, tais postulados padeciam da mesma espécie de engenheiro neuronal.
debilidade metodológica: supor a fisiopatologia da Nessa linha de reflexão, a fetichização dos
pretensa doença a partir do mecanismo de ação do medicamentos psicotrópicos produz um efeito
fármaco (Whitaker, 2007; Coser, 2010). Foi devido de silenciamento da dimensão sócio simbólica.
à descoberta de parte do mecanismo de ação Em outras palavras, a evidência de automação
do psicofármaco – sua resposta biológica – que se fisiológica da subjetividade, criada pela ciência
produziu a explicação, dominante até hoje, que os positivista dos tempos atuais,11 busca esconder
transtornos/doenças mentais são decorrentes de as determinações sociais das formas de sofrimento
desequilíbrios fisiológicos. Dessa forma, as supostas psíquico, das quais a depressão faz parte. Ao ignorar
causas biológicas foram sugeridas pela imagem tais determinações, individualizar e hiper
invertida do funcionamento farmacológico. dimensionar a estrutura biológica da subjetividade,
Em síntese: não foram as causas que determinaram a ideologia psiquiátrica dominante se vale da

10 Atualmente, a teoria das aminas biogênicas perdeu força como modelo acadêmico explicativo principal, o que não significa que não seja
o modelo dominante na prática clínica ou que se tenha abandonado a explicação biológica como causa dos ditos transtornos mentais.
11 Conhecida também sob o título sugestivo de neurociência.

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antiga estratégia burguesa de culpabilizar a vítima. anualmente, vultosas quantias monetárias na
Dessa forma, essa parte da psiquiatria serve aos manutenção da sua aliança com a psiquiatria e nas
propósitos de conservação da sociedade do capital, metáforas que dão materialidade às campanhas de
uma vez que seu proceder implica na limitação marketing de suas “pílulas mágicas” (Whitaker,
da capacidade de apreender a complexidade das 2017; Coser, 2010).
relações sociais contraditórias nesse sistema Todavia, a mercadoria-medicamento
e assim contestá-lo. também satisfaz às necessidades (terapêuticas
Por isso, a forma fetichizada do uso do ou imaginárias) dos seus usuários e alivia
psicofármaco é caracterizada também por sua momentaneamente certos sintomas do sofrimento
capacidade de produzir estranhamento: nesse psíquico, e é por esse motivo que sua demanda
tipo de funcionamento, as sinapses neurais se é crescente. Em função disso, a crítica feita neste
projetam contra o sujeito que as integra, como uma artigo não é à substância farmacológica em si, mas
força hostil que o controla. O sujeito, reduzido ao à maneira capitalista do seu consumo, que, a partir
biológico, perde-se no movimento “autônomo” da determinação mercantil, desloca o fármaco da
do metabolismo das suas aminas. A partir desse condição de aliviador de sintomas, e, pelo efeito
discurso, assumem poderes fantasmagóricos sobre das metáforas produzidas, o elege como núcleo da
a subjetividade. terapêutica, dotando-o de poder para incidir na
Todavia, o poder fantasmagórico do causa do suposto transtorno (Coser, 2010).
psicofármaco não é da ordem do sobrenatural, O efeito dessas metáforas é expresso, por exemplo,
mas advém da ordem material estruturada na forma quando, nas campanhas comerciais e nos dizeres
com que os sujeitos se relacionam na sociedade. dos usuários e dos trabalhadores em saúde,
Desse modo, a função social do fetichismo do os psicofármacos são enunciados sob o título de
medicamento psicotrópico no capitalismo possui antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos.
duas razões complementares e articuladas de Observa-se, com isso, um funcionamento no qual
maneira indissociável: uma econômica, alinhada o usuário passa a depositar no uso da medicação
aos imperativos de reprodução e acumulação do a expectativa de ser cuidado e protegido,
capital (especificamente, os alinhados ao complexo secundarizando o fato desse uso, quando
industrial da saúde); e outra ideológica, decorrente recomendado, ser apenas um dos recursos de
da necessidade de estabelecer um conjunto de tratamento; e que “[…] sua eficácia é dependente
discursos orientados à reprodução e à manutenção das muitas ações outras que são desenvolvidas em
da forma capitalista de sociedade, a partir de uma dada ‘linha do cuidado’ que se processa no
estratégias de controle. O fármaco se torna a nova interior dos serviços de saúde e esta é determinada
alternativa para o silenciamento, isolamento por processos sociais, técnicos e de subjetivação
e controle, antes exercidos hegemonicamente […]” (Franco; Merhy, 2005, p. 3, grifo do autor).
pelo manicômio. Até mesmo a abordagem psicossocial da saúde
Em função disso, o fetichismo do psicofármaco mental, objeto da Reforma Psiquiátrica (RP), não
é estruturado em outro fetiche ainda mais consegue sozinha superar a hegemonia da abordagem
embrionário, o da mercadoria, fundamento da medicamento-centrada, e vem sendo paulatinamente,
sociedade capitalista (Marx, 2013). Dessa forma, não obstante os seus avanços, secundarizada e tomada
é preciso entender o fármaco psicotrópico como complementar à terapêutica farmacológica.
também sob a forma-mercadoria-medicamento. Se bem que, conforme aponta Oliveira (2021), parece não
A consideração da medicação como uma mercadoria haver sequer uma terapêutica medicamentosa, mas um
implica no entendimento de que sua realização processo reduzido de busca da receita-consulta-dispensa
perpassa o momento da produção, da circulação da medicação, constituindo-se, dessa forma, como
e do consumo. Decorrente da necessidade de ter um ciclo do cuidado em saúde mental focado, quase
seu produto comercializado para poder valorizar que exclusivamente, no uso dos psicofármacos. Eis o
o capital, a indústria farmacêutica investe, fenômeno, alvo fundamental da crítica deste trabalho.

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Considerações finais AMARANTE, P. Saúde mental e atenção
psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
A invenção biológica das causas dos transtornos ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios
mentais, como é conhecida atualmente, se deu, farmacêuticos: como somos enganados e o
em grande parte, por ação do complexo industrial que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro:
farmacêutico. Tal processo é coerente com a dinâmica Record, 2014.
fundamental do capital de subjugar os demais
CAPONI, S. Loucos e degenerados: uma genealogia
complexos sociais. Não foi só a psiquiatria, mas
da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro:
a indústria farmacêutica (expressão setorial do
Editora Fiocruz, 2012.
capital) que hegemonizou o discurso biologizante
do sofrimento psíquico, e a psiquiatria não se COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com
ocupou apenas de dizer pela indústria, como foi que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia.
discursivizada por esta. Em uma análise dialética mais Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
ampla, o papel da psiquiatria foi o de ser também um FOUCAULT, M. A história da loucura na idade
suporte na legitimação dos interesses econômicos do clássica. São Paulo: Perspectiva, 2019.
setor farmacêutico.
FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. A produção
Não se nega a capacidade da medicação psicotrópica
imaginária da demanda e o processo de
de satisfazer certas necessidades humanas, tão
trabalho em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS,
menos os benefícios que podem ser oferecidos por
R. A. de (Org.) Construção social da demanda:
elas às pessoas em sofrimento psíquico, afinal, não
direito à saúde, trabalho em equipe, participação
somos somente nosso cérebro, mas o somos em certa
e espaços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro:
medida. Assim, não se teve por finalidade construir
CEPESC/UERJ; ABRASCO, 2005.
um entendimento negativo do desenvolvimento e
aperfeiçoamento farmacológico. O que se buscou FRANCES, A. Saving normal: an insider’s revolt
foi criticar os fundamentos da forma capitalista de against out-of-control psychiatric diagnosis,
consumo e prescrição dos psicofármacos. Por isso, a DSM-5, big pharma, and the medicalization
análise perpassou obrigatoriamente por uma crítica of ordinary life. New York: William Morrow, 2013.
ao modelo de metabolismo social que o capital impõe FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização
aos sujeitos, na expectativa de que se possa ir além em psiquiatria. 2. ed. Rio de Janeiro:
da terapêutica fetichizada e mostrar que os fármacos Editora Fiocruz, 2017.
são produtos sociais e que o sujeito é mais que sua
dimensão biológica. VENDA de medicamentos psiquiátricos
Por fim, espera-se contribuir com as práticas cresce na pandemia. IQVIA – Quintiles &
daqueles que lutam pelo legado do movimento IMS Health e VIA, Teresina, 10 set. 2020.
antimanicomial e, com isso, somar aos esforços Disponível em: <https://cff.org.br/noticia.
dos sujeitos envolvidos na produção de práticas php?id=6015#:~:text=Levantamento%20feito%20
efetivamente humanizadas e críticas, cuja matéria pela%20consultoria%20IQVIA%20a%20
pedido%20d>. Acesso em: 23 nov. 2021.
prima é uma terapêutica com altas doses de acolhimento,
escuta qualificada, afeto, empatia e autonomia. LEHMANN, P; GÓMEZ, S. (Ed.). Dejando los
medicamentos psiquiatricos: estrategias
Referências y vivencias para la retirada exitosa de
antipsicóticos, antidepresivos, estabilizadores
ÁLVARES, J. et al. Pesquisa nacional sobre
del ánimo, psicoestimulantes y tranquilizantes.
acesso, utilização e promoção do uso racional
Berlin: Peter Lehmann Editorial, 2018.
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Contribuição dos autores


Todos os autores foram igualmente responsáveis pela produção
do artigo.

Recebido: 21/7/2023
Aprovado: 19/12/2023

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