Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EPIDEMIA
Pílulas Magnas. Drogas Psiquiátricas e o Aumento Assom-
broso da Doença Mental
Robert Whitaker
Para Lindsay - Que você possa novamente cantar “Seasons of love” e se
encher de alegria
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
O termo disabled pode ser traduzido para o português como inválido, deficiente, incapacitado. No Brasil, tal
terminologia não é empregada no campo da saúde mental, por ser considerada politicamente incorreta.
Nos Estados Unidos, o governo federal, por intermédio da Administração do Seguro Social (Social Security
Administración), tem dois programas para pessoas que se tornam inválidas (disabled) e incapazes para tra-
balhar. Os doentes mentais considerados inválidos mencionados no texto de Whitaker são aquelas pessoas
que se encontram entre os considerados com alguma incapacidade (deficiência, invalidez) devida a doença.
Whitaker utiliza o termo com o sentido muito específico empregado nos Estados Unidos: o número de pes-
soas que recebem o pagamento do governo por invalidez, porque podem ser declaradas incapacitadas por
doença mental. Atualmente, os pesquisadores que buscam rastrear o número de inválidos por doença
mental na era moderna comparam-no com o número de pessoas em hospitais psiquiátricos antes da de-
sinstitucionalização, na medida em que eram vistos como uma população incapaz de cuidar de si própria.
Algo, portanto, muito importante: Whitaker não faz uso de “inválidos por doença mental” com algum tipo
de sentido genérico para descrever o doente mental. Mas usa tal expressão para definir um número de
pessoas que recebem do governo federal pagamentos por incapacidade, porque são considerados incapa-
citados para trabalhar devido à sua doença mental. (N.R.T.)
A Epidemia
Bem, juro que este não será apenas um livro de estatísticas. Estamos
tentando solucionar um mistério neste livro, e isto nos levará a uma explo-
ração da ciência e da história e, em última análise, a uma narrativa com
muitas reviravoltas surpreendentes. Mas esse mistério brota de uma aná-
lise profunda das estatísticas do governo e, portanto, como primeiro passo,
precisamos levantar os números da invalidez nos últimos cinquenta anos,
para ter certeza de que a epidemia é real.
Em 1955, os doentes mentais inválidos eram primordialmente tratados
em manicômios municipais e estaduais. Hoje em dia, é típico receberem
um pagamento mensal da Renda Complementar da Previdência (SSI)1 ou
uma pensão do Seguro da Previdência Social por Invalidez (SSDI)2, e mui-
tos vivem em abrigos residenciais ou em outras instituições residenciais
subsidiadas. Essas duas fontes estatísticas fornecem uma contagem apro-
ximada do número de pessoas sob a assistência do governo por terem sido
incapacitadas por doenças mentais.
Em 1955, havia 566.000 pessoas em hospitais psiquiátricos munici-
pais e estaduais. Entretanto, apenas 355.000 delas tinham um diagnós-
tico psiquiátrico, uma vez que as demais sofriam de alcoolismo, demência
ligada à sífilis, mal de Alzheimer e retardos mentais, população esta que
não figuraria numa contagem dos atuais casos de invalidez por doença
mental.8 Portanto, em 1955, um em cada 468 norte-americanos era hos-
pitalizado por doença mental. Em 1987, havia 1,25 milhão de pessoas re-
cebendo pensões da SSI ou do SSDI por invalidez decorrente de doença
mental, ou um em cada 184 norte-americanos.
Doentes mentais hospitalizados em 1955
Quatro Histórias
George Badillo
Atualmente, George Badillo mora em Sound Beach, em Long Island, e
sua casa caprichosamente arrumada fica a uma pequena distância da
praia. Aos quase 50 anos, ele está em boa forma, penteia o cabelo ligeira-
mente grisalho para trás e tem um sorriso fácil e caloroso. Seu filho de 13
anos, Brandon, mora com ele — “Está no time de futebol americano, na
equipe de luta romana e no time de basquete, e está no quadro de honra”,
disse-me George, com compreensível orgulho -, e a filha de 20 anos, Ma-
delyne, que e aluna da Faculdade de Staten Island, estava lhe fazendo
uma visita no dia em que estive com ele. Mesmo à primeira vista, era pa-
tente que os dois estavam felizes por passarem esse tempo juntos.
Como muitas pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, George se
lembra de ter sido “diferente” na infância. Quando menino, crescendo no
Brooklyn, sentia-se isolado das outras crianças, em parte porque seus
pais porto-riquenhos só falavam espanhol: “Eu me lembro de todos os ou-
tros garotos conversando e sendo camaradas e extrovertidos, convivendo
uns com os outros, mas eu não sabia fazer isso. Sentia vontade de falar
com eles, mas sempre ficava apreensivo”, recordou. George também tinha
um pai alcoólatra que sempre batia nele, e por isso começou a achar que
“as pessoas viviam tramando coisas e querendo me machucar”.
Ainda assim, ele se saiu bem na escola, e só no fim da adolescência,
quando era aluno do Baruch Gollege, foi que sua vida começou a dar er-
rado: “Entrei numa vida de discotecas”, explicou. “Comecei a usar
anfetaminas, maconha e cocaína, e gostei. As drogas me relaxavam. Só
que a coisa fugiu do controle e a cocaína começou a me fazer pensar
numa porção de maluquices. Fiquei paranoico de verdade. Achava que ha-
via conspirações e tudo o mais. As pessoas me perseguiam, e o governo
estava envolvido nisso”. George acabou fugindo para Chicago, onde foi mo-
rar com uma tia e se retirou do mundo que julgava persegui-lo. Assus-
tada, a família o persuadiu a voltar para casa e o levou à unidade psiquiá-
trica do Hospital Judaico de Long Island, onde ele foi diagnosticado como
esquizofrênico paranoide. “Ficaram todos me dizendo que meu cérebro es-
tava estragado e que eu ficaria doente pelo resto da vida”, comentou.
Os nove anos seguintes passaram-se num remoinho caótico. Tal como
Cathy Levin, George detestava o Haldol e os outros antipsicóticos que os
médicos o mandavam tomar e, em parte por esse desespero induzido pelas
drogas, fez múltiplas tentativas de suicídio. Brigou com a família por
causa dos medicamentos, largou as drogas e voltou para elas, passou por
um ciclo de várias hospitalizações e, em 1987, tornou-se pai, quando sua
namorada de 18 anos deu à luz Madelyne. Casou-se com a namorada, de-
cidido a ser um bom pai, mas Madelyne era uma criança doentia, e ele e
sua mulher sofreram crises nervosas na tentativa de cuidar da menina. A
avó dele levou Madelyne para Porto Rico, e George acabou divorciado e
morando num asilo para inválidos. Ali conheceu e se casou com uma mu-
lher igualmente diagnosticada como esquizofrênica paranoide e, após uma
série de aventuras e desventuras em San Francisco, também eles se divor-
ciaram. No começo de 1991, desanimado e novamente paranoide, George
baixou no Centro Psiquiátrico Kings Park, um hospital estadual dilapidado
em Long Island.
E veio então seu mergulho no desamparo completo. Depois de tentar
introduzir clandestinamente uma pistola no hospital, para poder se matar,
ele recebeu uma sentença de dois anos numa ala de acesso restrito. Em
seguida, ao se aproximar o Natal daquele ano, aborreceu-se quando vários
pacientes que eram seus colegas não receberam autorização para passar
as festas em casa e ajudou-os a fugir, quebrando uma janela em seu
quarto e amarrando lençóis uns nos outros para que eles pudessem des-
cer até o chão. O hospital reagiu mandando-o para uma ala destinada a
pessoas que estavam internadas havia décadas. “Fiquei então numa ala
com pessoas que se urinavam”, recordou. “Eu era um perigo para a socie-
dade e fui dopado. A pessoa fica sentada o dia inteiro, vendo televisão. Não
pode nem ir para o lado de fora. Achei que minha vida tinha acabado.”
George passou oito meses nessa ala de doentes mentais incuráveis,
perdido numa névoa de drogas. Entretanto, foi finalmente transferido para
uma unidade em que podia sair dos recintos fechados e, de repente, lá es-
tavam o céu azul para ver e o ar puro para respirar. Ele começou a reter a
medicação antipsicótica na língua e a cuspi-la quando o pessoal hospita-
lar não estava olhando. “Voltei a poder pensar”, contou. “As drogas anti-
psicóticas não me deixavam pensar. Eu parecia um vegetal e não conse-
guia fazer nada. Não tinha emoções. Ficava lá sentado, vendo televisão.
Mas, nessa ocasião, eu me senti com um controle maior. E foi ótimo voltar
a me sentir vivo.”
Por sorte, George não sofreu um retorno dos sintomas psicóticos e, não
mais tendo o corpo amolecido pelos remédios, começou a fazer jogging e
levantamento de peso. Enamorou-se de mais uma paciente do hospital,
Tara McBride, e, em 1995, depois que os dois receberam alta e se transfe-
riram para uma residência comunitária próxima, Tara deu à luz Brandon.
George, que nunca havia perdido inteiramente o contato com a filha, Ma-
delyne, passou a ter um novo objetivo na vida: “Percebi que eu tinha uma
segunda chance. Eu queria ser um bom pai”.
No começo, as coisas não correram bem. Tal como Madelyne, Brandon
nasceu com problemas de saúde - tinha uma anomalia intestinal que pre-
cisou de cirurgia e Tara entrou em crise, em função do estresse, e tornou a
ser hospitalizada. Como George continuava morando numa residência
para doentes mentais, o Estado julgou que ele não tinha condições para
cuidar de Brandon, que foi entregue à irmã de Tara para ser criado. Em
1998, porém, George começou a trabalhar em regime de meio expediente
como facilitador entre pares no Serviço de Saúde Mental do Estado de
Nova York, orientando pacientes internados sobre seus direitos, e, três
anos depois, pôde apresentar-se ao tribunal como alguém capaz de ser um
bom pai para Brandon. “Minha irmã Madeline e eu obtivemos a custódia”,
contou. “Foi a melhor sensação possível. Simplesmente dei pulos de ale-
gria. Parece ter sido a primeira vez que alguém no sistema obteve a custó-
dia dos filhos.”
No ano seguinte, uma das irmãs de George comprou-lhe a casa em que
ele mora atualmente. Embora ainda receba pensão do SSDI, ele trabalha
sob contrato para um órgão federal, a Administração de Serviços de Saúde
Mental e Controle de Abuso de Drogas, e faz trabalhos voluntários com jo-
vens hospitalizados em Long Island. Sua vida é repleta de sentido e, como
atesta o sucesso de Brandon na escola, George tem se revelado o bom pai
que sonhava tornar-se. Madelyne, por sua vez, orgulha-se escancarada-
mente do pai. “Ele queria o Brandon e eu na sua vida”, disse. “Isso o fez
querer dar a volta na sua situação. Ele queria ser um pai para nós. E é a
prova de que uma pessoa pode se recuperar da doença mental.”
Embora a história de George seja claramente inspiradora, ela não
prova nada, em um sentido ou em outro, sobre os méritos globais dos an-
tipsicóticos. Mas instiga uma indagação de ordem clínica: dado que sua
recuperação começou quando ele parou de tomar antipsicóticos, será pos-
sível que algumas pessoas que sofrem de doenças mentais graves, como a
esquizofrenia ou o transtorno bipolar, venham a se recuperar na ausência
de medicação? Porventura a história dele é uma anomalia, ou proporciona
um discernimento do que seria um caminho bastante comum de recupe-
ração? George, que hoje toma Ambien [zolpidem] ou uma dose baixa de
Seroquel [quetiapina], ocasionalmente, para dormir à noite, acredita que,
pelo menos no seu caso, foi o abandono dos medicamentos que lhe permi-
tiu melhorar: “Se cu tivesse continuado a tomar aqueles remédios, não es-
taria onde estou hoje. Estaria preso num asilo para adultos em algum lu-
gar, ou no hospital. Mas estou recuperado. Ainda tenho umas ideias estra-
nhas, mas agora as guardo para mim. E supero qualquer estresse emocio-
nal que apareça. Ele fica comigo algumas semanas, depois vai embora.
Monica Briggs
Monica Briggs é uma mulher alta, marcante e, como tantas pessoas
que atuam no movimento de “recuperação dos pares”, imensamente agra-
dável. No dia em que almocei com ela, num restaurante do bairro de
South Boston, Monica chegou à mesa mancando, apoiada numa bengala,
por ter se machucado em data recente, e, quando lhe perguntei como ti-
nha ido até lá, ela sorriu, discretamente satisfeita consigo mesma: “Vim de
bicicleta”, disse.
Nascida em 1967, Monica é de Wellesley, no estado de Massachusetts,
e, como adolescente criada naquela comunidade abastada, parecia ser a
última pessoa fadada a ter pela frente uma vida de doença mental. Vinha
de uma família culta - a mãe era professora da Universidade de Wellesley e
o pai lecionava em diversas faculdades da área de Boston - e, na infância,
tinha sido uma criança que se sobressaía em tudo que fazia. Era boa
atleta, tirava as mais altas notas e exibia um talento especial para a pin-
tura e a literatura. Ao concluir o curso médio, recebeu vários prêmios sob
a forma de bolsas de estudos e, ao ingressar na Faculdade de Middlebury,
em Vermont, no outono de 1985, acreditou que sua vida seguiria um
rumo muito convencional: “Achei que eu iria para a faculdade, me casaria,
teria um labrador cor de chocolate e uma casa num subúrbio residencial,
com um SUV (...) Eu achava que tudo aconteceria assim”.
Depois de um mês como caloura na Middlebury, Monica foi atingida de
surpresa por um grave episódio depressivo, que pareceu não ter causa al-
guma. Ela nunca tivera problemas afetivos até então, não havia aconte-
cido nada de mau em Middlebury e, ainda assim, a depressão a atingiu
com tal força que ela teve de deixar a faculdade e voltar para casa. “Eu
nunca linha abandonado coisa alguma”, disse. “Achei que minha vida es-
tava acabada. Achei que aquilo era um fracasso de que eu nunca poderia
me recuperar.”
Meses depois, ela regressou a Middlebury. Estava tomando um antide-
pressivo (desipramina) c, com a aproximação da primavera, seu estado de
ânimo começou a melhorar. Mas não melhorou simplesmente num nível
“normal”. Em vez disso, seu ânimo disparou para além do que parecia ser
uma situação muito melhor. Ela ficou com energia para dar e vender. Pas-
sou a fazer longas corridas e se entregou à pintura, produzindo rapida-
mente autorretratos esmerados a carvão e a pastel. Sentia tão pouca ne-
cessidade de sono que abriu uma empresa de camisetas. “Era fantástico,
genial”, disse. “Eu não me achava Deus nem nada, mas me sentia muito
perto de Deus, àquela altura. Isso durava várias semanas, e depois eu de-
sabava durante o que parecia ser uma eternidade.”
Era o começo da longa batalha de Monica com o transtorno bipolar. A
depressão dera lugar à mania, seguida por uma depressão ainda pior.
Apesar de ter conseguido concluir o primeiro ano com média 9, ela come-
çou a passar por episódios cíclicos de depressão e mania e, em maio do
segundo ano, tomou um punhado de comprimidos para dormir, com a in-
tenção de se matar. Nos 15 anos seguintes, foi hospitalizada três vezes.
Embora o lítio mantivesse a mania sob controle, a depressão suicida sem-
pre voltava, e os médicos receitavam um antidepressivo após outro, na
tentativa de encontrar a pílula mágica que a ajudaria a ficar bem.
Entre as internações, houve períodos em que Monica ficou razoavel-
mente estável, e ela os aproveitou ao máximo. Em 1994, bacharelou-se na
Faculdade de Pintura e Desenho de Massachusetts e, depois disso, traba-
lhou para várias agências de publicidade e editoras. Tornou-se membro
atuante da Associação Nacional de Depressivos e Maníaco-Depressivos e
desenhou o logotipo da instituição, o “urso bipolar”. Em 2001, porém, de-
pois de ser demitida do emprego, por haver passado uma semana em casa
por causa da depressão, seus impulsos suicidas voltaram para valer. Ela
comprou um revólver, mas só conseguiu que ele falhasse seis vezes
quando tentou se matar. Passou três noites num viaduto acima de uma
rodovia, querendo desesperadamente atirar-se na autoestrada lá embaixo,
mas se abstendo por achar que poderia causar um acidente que feriria ou-
tras pessoas. Foi internada várias vezes e então, em 2001, sua mãe mor-
reu de um câncer no pâncreas, e suas batalhas mentais tomaram um
rumo ainda pior. “Fiquei psicótica, alucinando, vendo coisas. Achei que ti-
nha superpoderes e podia alterar o curso do tempo. Achei que tinha asas
de três metros e podia voar.”
Foi nesse ano que ela entrou no SSDI. Dezessete anos depois de seu
episódio maníaco inicial, ela se tornou oficialmente inválida, em decorrên-
cia de transtorno bipolar. “Detestei isso”, afirmou. “Eu era uma moça de
Wellesley dependendo da previdência social, e não era isso que se espe-
rava que fizessem as moças de Wellesley. Aquilo era muito corrosivo para
a autoestima.
Como se poderia supor, considerando que Monica chegou ao restau-
rante de bicicleta, havendo pedalado até lá no seu intervalo de almoço no
trabalho, sua vida acabou dando uma guinada para melhor. Em 2006, ela
parou de tomar um antidepressivo e isso desencadeou uma “mudança
drástica. A depressão cedeu e ela começou a trabalhar meio expediente no
Centro de Transformação, uma organização de pares em Boston que ajuda
pessoas com diagnósticos psiquiátricos. Embora o lítio que ela continua a
tomar tenha seus inconvenientes - “minha capacidade de criar trabalhos
artísticos acabou”, disse-me -, ele não lhe cobrou um tributo físico dema-
siadamente grande. Apesar de Monica ter problemas de tireoide e sofrer
tremores, seus rins estão bem. “Agora estou em recuperação”, disse ela, e,
ao nos levantarmos para sair do restaurante, deixou claro que gostaria de
obter um emprego de horário integral e sair do SSDI. “Depender da previ-
dência é uma fase da minha vida”, afirmou em tom enfático, “não um fim.”
Foi esse o arco longo da sua doença. Como estudo clínico, sua história
simplesmente parece falar dos benefícios do lítio. Ao que parece, essa
droga tem mantido sua mania sob controle há décadas e, como monotera-
pia, tem contribuído para mantê-la estável desde 2006. Apesar disso, após
anos de tratamento medicamentoso, Monica acabou no rol do SSDI e, nes-
sas condições, sua história ilustra um dos mistérios centrais da epidemia
de invalidez. Como é que uma pessoa tão inteligente e preparada acabou
nesse programa de governo? E, se retrocedermos o relógio para a prima-
vera de 1986, veremos surgir uma pergunta intrigante: ela sofreu seu pri-
meiro episódio maníaco por ser “bipolar”, ou o antidepressivo induziu a
mania? Será possível que a droga a tenha transformado de alguém que so-
freu um episódio depressivo numa paciente bipolar, e com isso a tenha co-
locado no caminho da doença crônica? E será que o uso posterior de anti-
depressivos alterou para pior o curso de sua “doença bipolar”, por uma ra-
zão ou por outra?
Dito de outra maneira, no mundo das pessoas que frequentam as reu-
niões da DBSA, com que frequência elas falam em ter se tornado bipolares
depois do tratamento inicial com um antidepressivo?
Dorea Vierling-Claassen
Se você tivesse conhecido Dorea Vierling-Glaassen em 2002, quando
ela estava com 25 anos, ela lhe diria que era “bipolar”. Havia recebido esse
diagnóstico em 1998 e ouvido dó psiquiatra a explicação de que sofria de
um desequilíbrio químico no cérebro, e, em 2002, tomava um coquetel de
drogas que incluía um antipsicótico, o Zyprexa. No entanto, no outono de
2008, ela havia suspendido toda a medicação psiquiátrica (já fazia dois
anos), prosperava numa vida que girava em torno do casamento, da ma-
ternidade e de sua pesquisa pós-doutoral no Hospital Geral de Massachu-
setts, e estava convencida de que seus anos de “bipolaridade” tinham sido
um grande erro. Ela acredita ter sido um dos milhões de norte-americanos
apanhados no frenesi de diagnosticar esse distúrbio, o que por muito
pouco não acabou por transformá-la em paciente mental por toda a vida.
“Escapei por um triz”, diz ela.
Dorea contou-me sua história na cozinha de seu apartamento em
Cambridge, no Massachusetts. Sua companheira, Angela, estava presente,
e a filha de 2 anos das duas dormia no quarto ao lado. Com suas sardas e
o cabelo ligeiramente eriçado, além de seu evidente gosto pela vida, Dorea
dá a impressão de ter sido uma criança meio travessa e, em certa medida,
é assim que se lembra de si mesma: “Eu era extremamente inteligente, fi-
cava na ponta desse espectro, e por isso era a menina nerd. Mas tinha
amigos. Era hábil no convívio social, porque era também a garota engra-
çada”.
Se houvera alguma coisa fora de esquadro na sua vida de menina, ti-
nha sido o fato de ela ser sumamente emotiva, propensa a “explosões de
raiva” e a “crises de choro”. “Encantadora, mas esquisita” — foi assim que
resumiu a descrição do que era aos 7 anos.
Como muitas crianças brilhantes e “esquisitas”, Dorea encontrou ativi-
dades em que se destacava. Desenvolveu uma paixão pelo trompete e se
tornou uma musicista consumada. Aluna excelente, tinha especial talento
para a matemática. No segundo ciclo, fez parte da equipe de atletismo e ti-
nha muitos amigos. No entanto, continuava bastante emotiva - essa parte
de sua personalidade não tinha desaparecido - e havia uma fonte muito
real de aflição em sua vida: ela estava começando a compreender que era
lésbica. Seus pais eram “cristãos extremamente conservadores”, e embora
ela os amasse e sentisse profunda admiração pela devoção de ambos à
justiça social - o pai, médico, dedicava metade do seu tempo ao trabalho
voluntário numa clínica que havia fundado em Five Points, um bairro de-
cadente da cidade de Denver —, temia que, por causa das convicções reli-
giosas, eles não aceitassem sua homossexualidade. Terminado o primeiro
ano de seu curso no Instituto Peabody, um prestigiado conservatório de
música em Baltimore, Dorea respirou fundo e revelou seu segredo aos
pais. Foi basicamente tão terrível quanto se poderia esperar”, contou.
“Houve lagrimas e ranger de dentes. Aquilo estava desesperadamente ar-
raigado nas convicções religiosas deles”.
Dorea mal falou com os pais nos dois anos seguintes. Saiu do Peabody
e passou a se dar com uma turma punk que morava no centro de Denver.
A antiga aspirante a trompetista passou a circular pela cidade com a ca-
beça raspada e usando botas de combate. Depois de um ano de trabalho
numa loja de restauração de tapetes, matriculou-se na Faculdade Esta-
dual Metropolitana de Denver, uma instituição em que a maioria dos alu-
nos não morava no campus. Ali, travou uma luta constante com suas
emoções, chorando com frequência em público, e logo começou a consul-
tar um terapeuta, que a diagnosticou como deprimida. A terapia da fala
não trouxe grande alívio e, na semana das provas finais, na primavera de
1998, Dorea descobriu que não conseguia dormir. Quando apareceu agi-
tada e meio maníaca no consultório do terapeuta, ele teve uma nova expli-
cação para tudo que a infernizava: transtorno bipolar. “Fui informada de
que aquilo era uma doença crônica e de que a frequência dos meus episó-
dios aumentaria, e de que eu precisaria tomar remédios pelo resto da
vida”, recordou.
Embora isso prenunciasse um futuro sombrio, Dorea consolou-se com
esse diagnóstico. Ele explicava as razões de ela ser tão emotiva. Era tam-
bém um diagnóstico comum a diversos grandes artistas. Dorea leu Toca-
dos pelo Fogo, de Kay Jamison1,” e pensou: “Sou igualzinha a todos esses
1 Kay R Jamison. Tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico, Pedra
da Lua, 2007. (N.T.)
escritores famosos, que ótimo”. Passou a ter uma nova identidade e, ao re-
tomar sua carreira acadêmica, chegou a cada nova instituição - primeiro à
Universidade de Nebraska, para obter o diploma de bacharel, depois à
Universidade de Boston, para fazer o doutorado em matemática e biologia
- com uma “caixa gigantesca de comprimidos”. O coquetel que ela tomava
costumava incluir um estabilizador do humor, um antidepressivo e um
benzodiazepínico para tratar da ansiedade, embora a combinação exata
fosse sempre mutável. Uma droga a deixava sonolenta, outra lhe causava
tremores, e nenhum dos coquetéis parecia lhe trazer tranquilidade afetiva.
E então, em 2001, ela foi tratada com um antipsicótico, o Zyprexa, que,
em certo sentido, funcionou como um passe de mágica.
“Sabe de uma coisa?”, disse ela, admirada com o que estava prestes a
confessar, “Eu adorava aquele treco. Era como se finalmente eu houvesse
encontrado a resposta. Porque, imagine só, eu não tinha emoções. Era
ótimo. Eu não chorava mais”.
Embora Dorea se saísse bem em termos acadêmicos na Universidade
de Boston, continuou a se sentir “realmente burra” com o Zyprexa. Dor-
mia dez, 12 horas por dia e, como inúmeras pessoas que usam esse medi-
camento, começou a virar um balão, engordando quase 14 quilos. Angela,
que tinha conhecido e se apaixonado por ela antes de Dorea começar a to-
mar Zyprexa, experimentou um sentimento de perda: “Ela já não era tão
animada, não ria”, afirmou.
Mas as duas entendiam que Dorea precisava dos medicamentos, e co-
meçaram a organizar sua vida - e seus planos de futuro — em torno do
transtorno bipolar. Frequentaram reuniões da DBSA e começaram a achar
que Dorea devia reduzir seus objetivos de carreira. Provavelmente, não
conseguiria lidar com o estresse das pesquisas pós-doutorais; seu traba-
lho anterior numa loja de tapetes seria mais ou menos a coisa certa. “Hoje
isso parece loucura”, disse Angela, que é professora de matemática na
Universidade Lesley, “mas, naquela época, ela não era uma pessoa de
grande resiliência, e estava ficando cada vez mais dependente. Eu tinha de
arcar com o peso de cuidar dela.”
As possibilidades de Dorea foram diminuindo e ela poderia ter prosse-
guido nesse caminho, não fosse o fato de, em 2003, haver tropeçado numa
literatura que levantava dúvidas sobre a segurança do Zyprexa a longo
prazo e sobre os méritos das drogas antipsicóticas. Isso a levou a procurar
reduzir esse remédio e, embora o processo tenha sido “um perfeito inferno”
- Dorea sofreu com uma ansiedade terrível, graves ataques de pânico,
paranoia e tremores pavorosos -, ela acabou suspendendo por completo
essa medicação. Em seguida, decidiu ver se poderia suspender a benzodi-
azepina que vinha tomando, o Klonopin [clonazepam], e isso se transfor-
mou em outra experiência terrível de abstinência, com dores de cabeça tão
agudas que ela ia para a cama ao meio-dia. Mesmo assim, aos poucos Do-
rea foi desfazendo seu coquetel de drogas, o que a levou a questionar seu
diagnóstico de bipolaridade. Ela havia procurado um terapeuta, inicial-
mente, porque chorava demais. Não houvera mania - a insônia e a agita-
ção só tinham surgido depois de ela ser medicada com um antidepressivo.
Seria possível que ela tivesse sido apenas uma adolescente instável, que
precisava crescer um pouco?
“Até então, eu sempre havia pensado ser um daqueles casos em que a
doença é claramente biológica”, disse ela. “Não podia ser situacional. Não
havia acontecido nada de terrível na minha vida. Mas então, pensei: bem,
eu assumi que era lésbica e não tive nenhum apoio familiar. Ora, era o ób-
vio. Isso podia ter sido meio estressante.”
Os estabilizadores do humor foram os últimos a ser suspensos e, em
22 de novembro de 2006, Dorea se declarou livre das drogas. “Foi fabu-
loso. Foi uma surpresa descobrir quem eu era, depois de todos aqueles
anos”, disse ela, acrescentando que, ao se livrar mentalmente do rótulo de
bipolar, seu senso de responsabilidade por sua personalidade também
mudou. “Quando eu era ‘bipolar’, tinha uma desculpa para qualquer com-
portamento imprevisível ou instável. Tinha permissão para me portar da-
quela maneira, mas agora me pauto pelos mesmos padrões de comporta-
mento das outras pessoas, e me descubro capaz de satisfazer a esses pa-
drões. Isso não quer dizer que cu não tenha dias ruins. Tenho, e é possível
que ainda me preocupe mais do que a média das pessoas, mas já não
tanto quanto antes.”
A pesquisa feita por Dorea no Hospital Geral de Massachusetts con-
centra-se em averiguar como a atividade vascular afeta o funcionamento
do cérebro, e, dado que suas lutas com a “doença mental” parecem passí-
veis de ser registradas como um caso de erro de diagnóstico - “Tenho uma
fantasia de ser ‘desdiagnosticada’ como bipolar”, diz ela sua história talvez
pareça irrelevante para este livro. Na verdade, porém, levanta uma possibi-
lidade que contribuiria muito para explicar a epidemia de doenças mentais
incapacitantes nos Estados Unidos. Se expandirmos os limites da doença
mental, o que claramente tem acontecido neste país nos últimos 25 anos,
e se tratarmos com drogas psiquiátricas as pessoas que recebem esses di-
agnósticos, será que corremos o risco de transformar um adolescente
angustiado num paciente psiquiátrico vitalício? Dorea, que é uma pessoa
extremamente inteligente e capaz, escapou por pouco de trilhar esse cami-
nho. Sua história é a de um possível processo iatrogênico em ação, a his-
tória de uma pessoa normal que se transforma em doente crônica por
causa de um diagnóstico e do tratamento subsequente. E assim, cabe per-
guntarmos: será que temos um paradigma de tratamento que às vezes
pode criar doenças mentais?
1
Nos Estados Unidos, o(a) enfermeiro(a) clínico(a) (nurse practitioner) é um profissional da saúde com forma-
ção em enfermagem e mestrado (no mínimo) ou doutorado em áreas médicas especializadas, que atua so-
bretudo na atenção primária e na medicina interna. (N.T)
biológico”, disse Jason; mas ele havia trabalhado como técnico em farmá-
cia e sabia que os remédios podiam ter efeitos colaterais potentes. “Fiquei
morto de medo.”
Kelley usou a internet para pesquisar os medicamentos receitados. No
entanto, não conseguiu encontrar nenhum estudo que falasse sobre bons
resultados a longo prazo para crianças medicadas com esses coquetéis de
drogas, e até os efeitos colaterais a curto prazo, recordou ela, “eram assus-
tadores”. Entrementes, a pediatra de Jessica lhes disse achar “um ab-
surdo” tratar a menina com drogas psiquiátricas. Jason lembrou-se de
que, alguns anos antes, a terapia da fala o havia ajudado a lidar com seus
próprios problemas de “controle da raiva”, e achou que, se tinha conse-
guido mudar sem o uso de remédios, será que sua filha também não pode-
ria modificar seu comportamento?
“Simplesmente não quisemos aceitar [o diagnóstico de transtorno bipo-
lar]. A Jessica era uma menina muito extrovertida, e gostávamos de achar
que era talentosa”, disse Kelley. “E ela havia progredido muito desde os 2
anos. Não conseguimos pensar em lhe dar aqueles remédios.
Os pais tomaram essa decisão em 2005 e, três anos depois, segundo
dizem, Jessica está passando bem. Quase só tira notas 10 na escola, e
agora seus professores acham que o diagnóstico anterior de transtorno bi-
polar era “maluquice”. Embora ela brigue com outras crianças, de vez em
quando, e dê respostas malcriadas quando outra criança a provoca, ela
sabe que não pode bater em ninguém. Em casa, ainda tem pitis ocasio-
nais, mas suas explosões afetivas não são extremadas como antes. Jessica
tem até uma recomendação pessoal sobre como os pais devem lidar com
esses chiliques: “Eles devem dizer [à criança] ‘vem cá’, e fazer massagem
nas costas dela, pra ela se sentir melhor e não poder ter um piti, e aí,
quando ela para de ter o piti, é disso que ela se lembra”.
Antes de eu ir embora, Jessica leu para mim o livro The Litlle Old Lady
Who Was Not Afraid of Anything1 e em mais de um momento pulou do
sofá para encenar uma situação. “Mesmo com os problemas de comporta-
mento, todos gostam dela”, disse o pai. “E foi disso que tivemos medo, de
que a medicação a modificasse por completo, a ela e sua personalidade.
Não queríamos prejudicar as faculdades dela. Só queremos que cresça
saudável e tenha sucesso na vida.”
1 Em tradução livre, A Velhinha que Não Tinha Medo de Nada, de Linda D. Williams, com ilustrações
de Megan Lloyd. Nova York: HarperCollins, reimpr. 2002. (N.T.)
Duas famílias diferentes, duas decisões diferentes. As duas viram sua
decisão como a correta, e ambas disseram acreditar que seu filho ou filha
estava num caminho melhor do que estaria, se não fosse assim. Foi ani-
mador, e prometi voltar a falar com ambas mais tarde, ao final de meus le-
vantamentos para este livro. Não obstante, Nathan e Jessica estavam cla-
ramente seguindo rumos distintos e, na viagem de regresso a Boston, tudo
em que consegui pensar foi em como os dois casais de pais haviam preci-
sado tomar sua decisão de medicar ou não um filho cm meio a um vazio
científico. Será que seus filhos realmente sofriam de um desequilíbrio quí-
mico? Havia estudos mostrando que o tratamento medicamentoso do
TDAH ou do transtorno bipolar juvenil é benéfico a longo prazo? Se uma
criança pequena for tratada com um coquetel de drogas que inclua um
antipsicótico, de que modo isso afetará sua saúde física? Pode-se esperar
que essa criança se torne um adolescente saudável, um adulto saudável?
PARTE II.
A CIÊNCIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS
3.
AS RAÍZES DE UMA EPIDEMIA
1 Em 1914, a Lei Harrison sobre Narcóticos havia exigido receitas módicas para o uso de opiáceos e
cocaína. A Lei de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos de 1938 estendeu essa exigência de
venda exclusiva com receita médica a um número maior de medicamentos.
indústria farmacêutica para promover novas drogas. Em 1951, ano em
que foi aprovada a Lei de Durham-Humphrey, a companhia Smith Kline, a
Sociedade Francesa de a Consumir Reports, “não amortece nem embota
os sentidos, além de não criar hábito. Relaxa os músculos, acalma a
mente e dá às pessoas uma nova capacidade de aproveitar a vida”.
Tamanha foi a corrida popular para conseguir o novo medicamento
que a Wallace Laboratories e a Carter Products, que vendiam juntas o me-
probamato, tiveram que fazer um grande esforço para atender à demanda.
As farmácias que tinham a sorte de possuí-lo em estoque exibiam cartazes
que gritavam: sim, Nós temos Miltown! O comediante Milton Berle disse
gostar tanto do remédio que talvez trocasse seu prenome por Miltown. A
Wallace Laboratories contratou Salvador Dalí para ajudar a atiçar a febre
do Miltown, pagando 35.000 dólares ao grande pintor para criar uma ins-
talação numa convenção da AMA, com a intenção de captar a magia dessa
nova droga. Os participantes entravam num túnel escuro e gerador de
claustrofobia, que representava o interior de uma lagarta - seria essa a
sensação da ansiedade -, e ao emergirem de novo na luz deparavam com
uma dourada “borboleta da tranquilidade”, metamorfose que se devia ao
meprobamato. “Ao Nirvana com Miltown”, foi como a revista Time descre-
veu a instalação de Dali.
Houve uma ligeira nota de hesitação surgida em matérias de jornais e
revistas durante a introdução do Thorazine e do Miltown. Na década de
1950, muitos psiquiatras das melhores faculdades de medicina norte-
americanas eram freudianos que acreditavam que os distúrbios mentais
eram causados por conflitos psicológicos, e sua influência levou a Smith
Kline and French, em sua promoção inicial do Thorazine, a alertar os re-
pórteres para o fato de que “não existe a ideia de que a clorpromazina seja
a cura da doença mental, mas ela pode ter enorme valor, se relaxar os pa-
cientes e os tornar acessíveis ao tratamento". Tanto o Thorazine quanto o
Miltown, explicou o New York Times, deviam ser considerados “adjuvantes
da psicoterapia, não a cura”. O Thorazine foi chamado de “tranquilizante
potente” e o Miltown, de “tranquilizante leve”, e, quando a HoíTinann-La
Roche introduziu a iproniazida no mercado, ela foi descrita como “estimu-
lante psíquico”. Esses remédios, embora talvez fossem notáveis em sua
natureza, não eram antibióticos para a mente. Como observou a revista
Life, num artigo de 1956 intitulado “A busca apenas começou”, a psiquia-
tria ainda estava nos estágios iniciais de sua revolução, pois as “bactérias”
dos distúrbios mentais ainda estavam por ser descobertas.
Contudo, em curtíssimo prazo, até esse toque de cautela foi posto de
lado. Em 1957, o New York Times noticiou que agora os pesquisadores
acreditavam que a iproniazida poderia ser um “potente regulador do meta-
bolismo cerebral em desequilíbrio”. Isso sugeria que o remédio, que fora
desenvolvido para combater a tuberculose, poderia consertar algo errado
no cérebro dos pacientes deprimidos. Urna segunda droga para esses pa-
cientes, a imipramina, chegou ao mercado nessa época e, em 1959, o New
York Times referiu-se aos dois pela primeira vez como “antidepressivos”.
Ambos pareciam “reverter estados psíquicos”, disse o jornal. Essas drogas
estavam ganhando um novo status e, finalmente, o psiquiatra Harold
Himwich, num artigo de 1958 na revista Science, explicou que elas “[po-
diam] ser comparadas ao advento da insulina, que neutraliza os sintomas
do diabetes”. Os antidepressivos consertavam alguma coisa errada no cé-
rebro e, quando introduziu o Librium no mercado, em 1960, a Hoffmann-
La Roche retomou essa mensagem curativa. Seu novo remédio não era
apenas mais um tranquilizante, porém “o sucessor de todo esse grupo. (...)
O Librium é o maior passo dado até hoje em direção ao alívio ‘puro’ da an-
siedade, em contraste com a sedação central ou a ação hipnótica”. A
Merck fez o mesmo, comercializando seu Suavitil como “um normalizador
do humor. (...) O Suavitil oferece um tipo novo e específico de tratamento
neuroquímico para o paciente incapacitado pela ansiedade, tensão, de-
pressão ou manifestações obsessivo-compulsivas”.
O último passo nessa recauchutagem da imagem das drogas psiquiá-
tricas veio em 1963. O Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) havia
conduzido um teste de seis semanas com o Thorazine e outros neurolépti-
cos, e quando ficou demonstrado que essas drogas eram mais eficazes que
um placebo para acabar com os sintomas psicóticos, os pesquisadores
concluíram que elas deviam ser vistas “como antiesquizofrénicos em sen-
tido lato. De fato, é questionável se convém conservar o termo ‘tranquili-
zante’”.
Com esse pronunciamento do NIMH, a transformação das drogas psi-
quiátricas estava basicamente concluída. No começo, o Thorazine e outros
neurolépticos tinham sido vistos como agentes que deixavam os pacientes
mais sossegados e emocionalmente indiferentes. Nesse momento, transfor-
maram- se em medicamentos “antipsicóticos”. Relaxantes musculares que
tinham sido desenvolvidos para uso na psiquiatria, por suas propriedades
“domesticadoras”, passaram a ser “normalizadores do humor”. Os estimu-
lantes psíquicos viraram “antidepressivos”. Todas essas drogas pareciam
ser antídotos para distúrbios específicos, e, nesse sentido, mereciam ser
comparadas aos antibióticos. Eram agentes que combatiam doenças, e
não meros tônicos. A única coisa que faltava nessa história da medicina
das pílulas mágicas era a compreensão da biologia das doenças mentais,
mas, reconcebidas as drogas dessa maneira, quando os pesquisadores
chegaram a entender de que modo elas afetavam o cérebro, elaboraram
duas hipóteses que, pelo menos em tese, preenchiam essa lacuna.
1
Os pesquisadores do NIMH também examinaram algumas outras associações possíveis entre níveis variáveis
de neurotransmissores e a resposta a um antidepressivo. Mediram metabólitos da norepinefrina e metabó-
litos da dopamina; dividiram seus pacientes deprimidos em grupos de bipolares e unipolares; e avaliaram a
resposta deles a dois antidepressivos - a imipramina e a amitriptilina. Encontraram associações discretas
entre vários desses subgrupos e sua resposta a uma ou outra das drogas; no texto acima cu me concentrei
nas suas constatações quanto a (a) a depressão dever-sc a níveis baixos de serotonina e (b) o subgrupo de
pacientes com níveis baixos de serotonina responder melhor a uma droga que bloqueia scletivamcnte a
recaptação desse neurotransmissor.
biológico”, escreveu Colin Ross, um professor adjunto de psiquiatria do
Centro Médico Southwest, em Dallas, em seu livro de 1995, Pseudoscience
in BiologicalPsychialiy [Pseudociência na psiquiatria biológica]. Em 2000,
os autores de Essential Psychophannacology [Fundamentos de psicofar-
macologia] disseram a alunos de medicina que “não há nenhuma prova
clara e convincente de que a deficiência de monoamina responda pela de-
pressão, ou seja, não há nenhum déficit ‘real’ de monoaminas”. Entre-
tanto, impulsionada pela propaganda farmacêutica, essa crença conti-
nuou viva e levou o psiquiatra irlandês David Healy, que escreveu vários
livros sobre a história da psiquiatria, a dizer, em 2005, que essa teoria
precisava ser jogada na lata de lixo da medicina, onde era possível encon-
trar outras teorias igualmente desacreditadas. “A teoria serotoninérgica da
depressão”, escreveu ele com evidente exasperação, “é comparável à teoria
masturbatória da loucura”."
O Dejavu da Dopamina
Prozac na Cabeça
1 A longo prazo, parece que a liberação de serotonina cai a um nível anormalmente baixo, pelo me-
nos em algumas regiões do cérebro.
um estado menos reativo. Contudo, depois que os pesquisadores descobri-
ram que a fluoxetina inviabilizava parcialmente o mecanismo de feedback,
Claude de Montigny, da Universidade McGill, afirmou que era isso que
permitia que a droga começasse a funcionar. Esse processo de inviabiliza-
ção também levava de duas a três semanas para ocorrer, e permitia que os
neurônios pré-sinápticos começassem a liberar na sinapse quantidades de
serotonina superiores ao normal. Nesse ponto, com a fluoxetina continu-
ando a bloquear a retirada da serotonina, o neurotransmissor podia real-
mente “acumular-se” na sinapse, e isso levaria “a uma intensificação da
neurotransmissão serotoninérgica central”, escreveu Montigny.
Essa é a história científica de como a fluoxetina altera o cérebro, e é
possível que esse processo ajude as pessoas deprimidas a melhorarem e a
permanecerem bem. Somente a literatura sobre resultados poderá revelar
se é este o caso. Mas o que está claro é que o medicamento não “conserta”
um desequilíbrio químico do cérebro. Na verdade, faz exatamente o in-
verso. Antes de ser medicada, a pessoa deprimida não tem nenhum dese-
quilíbrio químico conhecido. A fluoxetina então atrapalha a retirada nor-
mal de serotonina da sinapse, o que desencadeia uma cascata de mudan-
ças, e, algumas semanas depois, a via serotoninérgica opera de maneira
decididamente anormal. O neurônio pré-sináptico libera mais serotonina
que de hábito. Seus canais de recaptação da serotonina são bloqueados
pela droga. O circuito de realimentação do sistema é parcialmente desli-
gado. Os neurônios pós-sinápticos são “dessensibilizados” para a seroto-
nina. Em termos mecânicos, o sistema serotoninérgico fica bastante ba-
gunçado.
Os cientistas da Eli Lilly estavam bem cônscios disso. Em 1977, Ray
Fuller e David Wong observaram que, por perturbar as vias serotoninérgi-
cas, a fluoxetina poderia ser usada para estudar “o papel dos neurônios
serotoninérgicos em várias funções cerebrais - comportamento, sono, re-
gulação da liberação de hormônio pituitário, termorregulação, reação à dor
e assim por diante”. Para conduzir tais experimentos, os pesquisadores
poderiam administrar fluoxetina a animais e observar quais funções fica-
vam comprometidas. Eles buscariam o surgimento de patologias. Na ver-
dade, esse tipo de pesquisa já vinha sendo feito: em 1977, Fuller e Wong
relataram que a droga provocava “hiperatividade estereotipada” em ratos e
“eliminava o sono REM” em ratos e gatos.
Em 1991, num artigo publicado no Journal of Clinical Psychiatry, Bar-
ryjacobs, neurocientista de Princeton, frisou exatamente isso a respeito
dos ISRS, escrevendo que essas drogas
alteram o nível de transmissão sináptica além da faixa fisiológica alcançada
em condições ambientais/biológicas [normais]. Por isso, seria mais apro-
priado considerar patológica qualquer modificação comportamental ou fisi-
ológica produzida nessas condições, e não um reflexo do papel biológico
normal da 5-HT [serotonina].
Durante as décadas de 1970 e 1980, os pesquisadores que estudavam
os efeitos dos neurolépticos levantaram uma história semelhante. O Tho-
razine e outros antipsicóticos-padrão bloqueiam de 70% a 90% de todos os
receptores D, do cérebro. Em resposta, os neurônios pré-sinápticos come-
çam a bombear mais dopamina e os neurônios pós-sinápticos aumentam
a densidade de seus receptores D1 num total de 30% ou mais. Desse
modo, o cérebro teria de “compensar” os efeitos da droga, para poder man-
ter a transmissão de mensagens em suas vias dopaminérgicas. Contudo,
passadas cerca de três semanas, o mecanismo de realimentação da via co-
meça a falhar e os neurônios pré-sinápticos começam a disparar em pa-
drões irregulares, ou se imobilizam. E essa “inativação” das vias dopami-
nérgicas que “talvez constitua a base da ação antipsicótica”, explicou o
Textbook of Psychopharmacology [Manual de psicofarmacologia] da Socie-
dade Norte- Americana de Psiquiatría.
Mais uma vez, temos aí uma história de vias neurotransmissoras que
são transformadas pela medicação. Passadas algumas semanas, seus cir-
cuitos de realimentação ficam parcialmente inativos, os neurônios pré-si-
nápticos liberam menos dopamina do que o normal, a droga impede os
efeitos da dopamina, bloqueando os receptores D2, e os neurônios pós-si-
nápticos têm uma densidade anormalmente alta desses receptores. As
drogas não normalizam a química do cérebro, mas a transtornam, e, a se-
guirmos o raciocínio de Jacob, fazem isso num grau que poderia ser consi-
derado “patológico”.
Ainda que o artigo do dr. Hyman possa parecer espantoso, ele serve de
coda para uma narrativa científica que, na verdade, é coerente do começo
ao fim. A conclusão dele foi algo que se deva ver não como inesperado,
mas como previsível no capítulo inicial da psicofarmacologia.
Como vimos, o Thorazine, o Miltown e o Marsilid foram todos derivados
de compostos que tinham sido desenvolvidos para outras finalidades -
para uso na cirurgia ou como possíveis “pílulas mágicas” contra doenças
infecciosas. Em seguida, verificou-se que esses compostos causavam alte-
rações nos estados de humor, no comportamento e no pensamento, e es-
sas alterações foram vistas como úteis para pacientes psiquiátricos. Em
síntese, notou-se que as drogas tinham efeitos colaterais benéficos. Elas
perturbavam o funcionamento normal, e essa compreensão se refletiu nos
nomes iniciais que receberam. A clorpromazina era um “tranquilizante po-
tente”, e tida como produtora de uma mudança de identidade que se asse-
melhava à de uma lobotomia frontal. O meprobamato era um “tranquili-
zante leve” e, em estudos com animais, ficara demonstrado que
01470161770 era um relaxante muscular potente, que bloqueava a res-
posta emocional normal aos estressores do ambiente. A iproniazida era
um “estimulante psíquico” e, se foi verdadeira a história dos pacientes tu-
berculosos dançando nas enfermarias, tratava-se de uma droga capaz de
provocar algo semelhante à mania. Posteriormente, porém, a psiquiatria
reconcebeu essas drogas como “pílulas mágicas” para os transtornos men-
tais, ao levantar a hipótese de que as drogas eram antídotos para desequi-
líbrios químicos do cérebro. Contudo, essa teoria, que brotou tanto de
uma racionalização fantasiosa quanto da ciência, foi investigada e não se
confirmou. Em vez disso, como escreveu Hyman, constatou-se que os psi-
cotrópicos eram drogas que perturbavam o funcionamento normal das
vias neuronais do cérebro. A percepção inicial que a psiquiatria tivera de
suas novas drogas revelou-se a que era cientificamente exata.
Tendo agora em mente essa compreensão dos medicamentos psiquiá-
tricos, é possível formularmos a indagação científica que está no cerne
deste livro: essas drogas ajudam ou prejudicam os pacientes, a longo
prazo? O que mostram os resultados de cinquenta anos de pesquisas?
PARTE III.
RESULTADOS
6.
REVELAÇÃO DE UM PARADOXO
1 Durante esse período, a esquizofrenia era um diagnóstico largamente aplicado aos indivíduos hos-
pitalizados. Hoje, muitos desses pacientes seriam diagnosticados como portadores de transtorno
bipolar ou de transtorno esquizoafetivo. Não obstante, esse era o diagnóstico das pessoas mais
“gravemente perturbadas” na sociedade norte-americana daquela época.
Eis os dados. Num estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde
Mental (NIMH), 62% dos pacientes internados após um primeiro episódio
psicótico n0 Hospital Estadual Warren, na Pensilvânia, no período de
1946 a 1950, receberam alta em até 12 meses. Ao fim de três anos, 73%
estavam fora do hospital.4 Um estudo de 216 pacientes esquizofrênicos in-
ternados no Hospital Estadual de Delaware, no período de 1948 a 1950,
produziu resultados semelhantes. Deles, 85% receberam alta em cinco
anos e, em Io de janeiro de 1956 - seis anos ou mais depois da internação
inicial -, 70% viviam com sucesso no seio das comunidades? Enquanto
isso, o Hospital Hillside, no Queens, na cidade de Nova York, fez um levan-
tamento de 87 pacientes esquizofrênicos que tiveram alta em 1950, e de-
terminou que pouco mais da metade deles nunca teve recaídas nos quatro
anos seguintes.6 Durante esse período, as análises de resultados na Ingla-
terra, onde a esquizofrenia era definida com mais rigor, pintaram um qua-
dro similarmente animador: 33% dos pacientes gozaram de “recuperação
completa” e outros 20%, de “recuperação social”, o que significava que po-
diam se sustentar e levar uma vida independente?
Esses estudos fornecem uma visão bastante surpreendente dos resul-
tados da esquizofrenia durante aquele período. Segundo o entendimento
convencional, foi o Thorazine que permitiu que as pessoas esquizofrênicas
vivessem em comunidade. Mas o que constatamos é que a maioria das
que foram internadas após um primeiro episódio esquizofrênico, durante o
fim da década de 1940 e o início da de 1950, recuperou-se a ponto de po-
der, dentro dos primeiros 12 meses, retornar à sociedade. Ao cabo de três
anos, isso se aplicava a 75% dos pacientes. Apenas uma pequena percen-
tagem - cerca de 20% - precisou manter-se continuamente hospitalizada.
Além disso, os que retornaram ao seio da sociedade não foram morar em
abrigos e residências coletivas, uma vez que esse tipo de instituição ainda
não existia. Não recebiam pensões do governo federal por invalidez, e os
programas SSI (Renda Complementar da Previdência) e SSDI (Seguro da
Previdência Social por Invalidez) ainda estavam por ser criados. Na maio-
ria dos casos, as pessoas que recebiam alta dos hospitais estavam vol-
tando para suas famílias e, a julgar pelos dados de recuperação social,
muitas estavam trabalhando. No cômputo geral, havia razão para que as
pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, naquele período do pós-guerra,
fossem otimistas quanto a sua possibilidade de melhora e de um funcio-
namento bastante bom na comunidade.
Também é importante assinalar que a chegada do Thorazine não me-
lhorou os índices de alta na década de 1950 entre as pessoas recém-
diagnosticadas com esquizofrenia, nem tampouco sua chegada desenca-
deou a alta de pacientes crônicos. Em 1961, o Departamento de Higiene
Mental da Califórnia fez um relatório sobre os índices de alta de todos os
1.413 pacientes hospitalizados com um primeiro episódio de esquizofrenia
em 1956, e constatou que 88% dos que não foram tratados com neurolép-
ticos receberam alta no espaço de 18 meses. Os tratados com neurolépti-
cos - cerca de metade dos 1.413 pacientes - tiveram um índice mais baixo
de altas; apenas 74% receberam alta em 18 meses. Esse é o único estudo
em larga escala, na década de 1950, a comparar os índices de alta dos pa-
cientes de primeiro episódio tratados com e sem medicamentos, e os in-
vestigadores concluíram que “os pacientes tratados com medicamentos
tendem a ter períodos de hospitalização mais longos. (...) Os pacientes não
tratados exibem, sistematicamente, uma taxa de internação um pouco
mais baixa”.’
A alta dos pacientes esquizofrênicos crônicos dos hospitais psiquiátri-
cos estaduais - e portanto, o início da desinstitucionalização - teve início
em 1965, com a entrada em vigor da legislação sobre o Medicare e o Medi-
caid. Em 1955 havia 267.000 pacientes esquizofrênicos nos hospitais psi-
quiátricos estaduais e municipais e, oito anos depois, esse número mal se
havia alterado. Ainda havia 253.000 esquizofrênicos residindo nos hospi-
tais.9 Mas houve então uma mudança na economia do atendimento aos
doentes mentais. A legislação de 1965 sobre o Medicare e o Medicaid pre-
via subsídios federais para o tratamento em sanatórios ou clínicas de re-
pouso, mas não subsídios para atendimento em hospitais psiquiátricos es-
taduais, e assim, na tentativa de economizar dinheiro, naturalmente, os
estados começaram a despachar seus pacientes crônicos para sanatórios.
Foi nessa ocasião que o recenseamento dos hospitais psiquiátricos estadu-
ais começou a apresentar uma queda notável, e não em 1955, quando da
introdução do Thorazine. Infelizmente, nossa crença societária de que foi
esse medicamento que esvaziou os manicômios, uma crença tão central
para a narrativa da “revolução da psicofarmacologia”, é desmentida pelos
dados censitários hospitalares.
1
Em 2007, a Cochranc Collaboration, um grupo internacional de cientistas que não recebem financiamento
das empresas farmacêuticas, levantou questões sobre esse histórico de eficácia a curto prazo. Eles conduzi-
ram uma meta-análise de todos os estudos de clorpromazina versus placebo na literatura científica e, de-
pois de identificar cinquenta de qualidade razoável, concluíram que a vantagem da droga cm relação ao
placebo era menor do que se costumava supor. Calcularam que era preciso tratar sete pacientes com clor-
promazina para produzir o benefício líquido de uma única “melhora global”, e que “ate esse resultado pode
ser uma superestimação dos efeitos positivos e uma subestimação dos efeitos negativos da administração
de clorpromazina”. Os investigadores da Cochranc, meio estarrecidos com seus resultados, escreveram que
“as provas confiáveis sobre a eficácia [da clorpromazina] a curto prazo são surprccndcntcmcntc fracas”.
2
A sigla da denominação original da escala, Bricl Psychiatric Rating Scalc, foi mantida nesta tradução. (N.T.)
quanto tempo os pacientes esquizofrênicos deveriam usar essa medicação.
Para investigar essa questão, conduziram estudos que tinham, cm sua
maioria, o seguinte modelo: os pacientes que respondiam bem à medica-
ção continuavam medicados com a droga, ou esta era abruptamente reti-
rada. Em 1995, Patricia Gilbcrt, da Universidade da Califórnia em San Di-
ego, examinou 66 estudos sobre recaídas, envolvendo 4.365 pacientes, e
constatou que 53% dos pacientes dos quais a droga fora retirada tiveram
uma recaída num prazo de dez meses, em contraste com 16% daqueles
em que a medicação foi mantida. “A eficácia desses medicamentos na re-
dução do risco de recaída psicótica foi bem documentada”, concluiu ela.1
São esses os dados científicos que sustentam o uso de medicamentos
antipsicóticos na esquizofrenia, tanto no ambiente hospitalar quanto a
longo prazo. Como escreveu John Geddes, um eminente pesquisador bri-
tânico, num artigo de 2002 publicado no New England Journal of Medi-
cine, “as drogas antipsicóticas são eficazes no tratamento de sintomas psi-
cóticos agudos e na prevenção das recaídas”. Apesar disso, como observa-
ram muitos investigadores, há uma lacuna nessa base de dados compro-
batórios, que é exatamente a que Zubin tinha previsto que surgiria.
“Pouco se pode dizer sobre a eficácia e a eficiência dos antipsicóticos con-
vencionais nos efeitos não clínicos”, confessaram Lisa Dixon e outros psi-
quiatras da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, em
1995. “Praticamente inexistem estudos de longo prazo bem conduzidos, de
modo que o impacto longitudinal do tratamento com antipsicóticos con-
vencionais não é claro.”
Essa dúvida instigou um editorial extraordinário publicado em 2002
na revista European Psychiaby, assinado por Emmanuel Stip, um profes-
sor de psiquiatria da Universidade de Montreal. “Após cinquenta anos de
neurolépticos, será que estamos aptos a responder a esta pergunta sim-
ples: os neurolépticos são eficazes no tratamento da esquizofrenia?” Não
havia, no dizer dele, “nenhuma prova convincente sobre o assunto,
quando se considera o ‘longo prazo’”.
" Há uma falha evidente na meta-análisc de Gilbcrt. Ela não determinou se a velocidade da retirada das dro-
gas afetou o índice de recaídas. Depois da publicação de seu estudo, Adclc Viguera, da Faculdade de Medi-
cina de Harvard, reanalisou os mesmos 66 estudos e determinou que, quando as drogas eram retiradas aos
poucos, o índice de recaída chegava a apenas um terço do constatado nos estudos sobre retirada abrupta.
O modelo de retirada abrupta da maioria dos estudos sobre recaída aumentava drasticamente o risco de
que os pacientes esquizofrênicos tornassem a adoecer. Com efeito, o índice de recaída dos pacientes entre
os quais a droga foi gradualmcntc retirada assemelhou-sc ao observado entre os pacientes que tiveram a
medicação mantida.
Surge um Enigma
1 O termo vem do grego sótêr, -iras, “protetor, salvador”, e de sótêrion, “salvação”; o mesmo radical
originou sotérias, antigas festas de ação de graças para agradecer aos deuses o afastamento de um
residência, a Emanon. Ao todo, o Projeto Soteria funcionou durante 12
anos, com 82 pacientes tratados nas duas casas. Já em 1974, Mosher co-
meçou a relatar que seus pacientes da Soteria passavam melhor do que
uma coorte equiparável de pacientes que vinham sendo convencional-
mente tratados com medicamentos num hospital, e, em 1979, ele anun-
ciou seus resultados após dois anos. Ao cabo de seis semanas, os sinto-
mas psicóticos haviam se atenuado tanto em seus pacientes da Soteria
quanto nos pacientes hospitalizados, e, ao cabo de dois anos, os pacientes
da Soteria tinham “escores psicopatológicos mais baixos, menor número
de reinternações [hospitalares] e melhor adaptação global”.1 Mais tarde, ele
e John Bola, um professor assistente da Universidade da California Meri-
dional, apresentaram um relatório sobre seu uso de medicamentos: 42%
dos pacientes da Casa Soteria nunca tinham sido expostos a remédios,
39% haviam-nos usado temporariamente, e apenas 19% haviam necessi-
tado deles durante todo o período de dois anos de acompanhamento.
“Contrariando a visão popular, o uso mínimo de medicamentos anti-
psicóticos, combinado com uma intervenção psicossocial especialmente
concebida para pacientes recém-identificados com transtornos do espectro
da esquizofrenia, não é prejudicial, mas parece ser vantajoso”, escreveram
Mosher e Bola. “Acreditamos que o balanço dos riscos e benefícios associ-
ados à prática comum de medicar quase todos os episódios iniciais da psi-
cose deve ser reexaminado.”
Três estudos financiados pelo NIMH, e todos apontaram para a mesma
conclusão. Talvez 50% dos pacientes recém-diagnosticados com esquizo-
frenia, se tratados sem antipsicóticos, se recuperassem e continuassem
bem por extensos períodos de acompanhamento. Apenas uma minoria dos
perigo grave, e também soteriologia, a parte da teologia que trata da salvação do Homem. (N.T.)
" No começo da década de 1960, Philip May conduziu um estudo que comparou cinco formas de tratamcnlo
em regime de internação hospitalar: medicamentos, clctroconvulsolerapia (ECT), psicoterapia, psicoterapia
aliada a medicamentos e terapia ambiental (num ambiente de apoio). A curto prazo, os pacientes tratados
com remédios saíram-se muito melhor. Como resultado, o estudo passou a scr citado como prova de que
os pacientes esquizofrênicos não podiam ser tratados sem medicação. Entretanto, os resultados após dois
anos contaram uma história com mais nuanccs. Cinquenta e nove por cento dos pacientes inicialmcnte tra-
tados com terapia ambiental e sem medicação receberam alta, com sucesso, no período inicial do estudo, e
esse grupo “funcionou durante o acompanhamento pelo menos tão bem quanto os casos de sucesso dos
outros tratamentos, se não melhor”. Assim, o estudo de May, que costuma ser citado como prova de que
todos os pacientes psicóticos devem ser medicados, na verdade sugeriu que a maioria dos pacientes num
primeiro episódio se sairia melhor, a longo prazo, se inicialmente tratada com a terapia ambiental, e não
com remédios. Fonte: P. May, “Schizophrcnia: a follow-up study of the results offive forms of
trcatment",zlrcAiwr of General Psychiatry 38 (1981): 776-784.
pacientes parecia necessitar da administração contínua de remédios. A
“síndrome da porta giratória”, que se tornara tão conhecida, devia-se, em
grande parte, aos medicamentos, muito embora, nos testes clínicos, eles
se houvessem provado eficazes para atenuar os sintomas psicóticos. Car-
penter e McGlashan resumiram com clareza o enigma científico então en-
frentado pela psiquiatria:
Não há dúvida de que, quando tratados com medicamentos, os pacientes
mostram- se menos vulneráveis a recaídas, ao se manter a medicação
com neurolépticos. Mas, e se esses pacientes nunca fossem tratados com
remédios, para começar? (...) Levantamos a possibilidade de que a medi-
cação antipsicótica torne alguns pacientes esquizofrênicos mais vulnerá-
veis a recaídas futuras do que aconteceria no curso natural da doença.”
E, se assim fosse, essas drogas estariam aumentando a probabilidade
de a pessoa que sofresse um surto psicótico vir a se tornar um doente crô-
nico.
A Ilusão do Clínico
1 Fonte: M. Harrow, “Factors involved in outcome and recovery in schizophrenia patients not on ant
ip» vr hot ic medication”, The Journal of Nervous and Mental Disease, 195 (2007): 406-414.
Na verdade, não se tratou apenas de haver mais recuperações no
grupo não medicado. Houve também menos desfechos ruins nesse grupo.
Observou-se uma mudança em todo o espectro dos resultados. Dez dos 25
pacientes que pararam de tomar antipsicóticos se recuperaram, 11 tive-
ram resultados razoáveis e apenas quatro (16%) tiveram um “resultado
uniformemente ruim”. Em contraste, apenas dois dos 39 pacientes que
continuaram com a medicação antipsicótica se recuperaram, 18 tiveram
resultados razoáveis e 19 (49%) incluíram-se na categoria dos resultados
“uniformemente ruins”. Os pacientes medicados tiveram 1/8 da taxa de
recuperação dos não medicados e um índice três vezes maior de péssimos
resultados a longo prazo.
Espectro de resultados de pacientes esquizofrênicos
Espectro dos resultados de pacientes medicados e não medicados. Os que tomaram
antipsicóticos tiveram um índice muito menor de recuperação e uma tendência
muito maior a chegar a resultados “uniformemente ruins”.
Foi esse o quadro de resultados revelado no estudo financiado pelo
NIMH, o mais atualizado de que dispomos no momento. Ele também nos
permite discernir quanto tempo demora para que se tornem aparentes os
resultados melhores dos pacientes não medicados. Embora essa diferença
tenha começado a se mostrar ao final de dois anos, só na marca dos 4,5
anos é que se tornou evidente que o grupo não medicado, como um todo,
vinha se saindo muito melhor. Além disso, por meio de seu rastreamento
rigoroso dos pacientes, Harrow descobriu por que os psiquiatras conti-
nuam cegos para esse fato. Os doentes que largam os remédios antipsicó-
ticos saem do sistema, disse ele. Param de frequentar programas ambula-
toriais, param de consultar terapeutas, param de dizer às pessoas que já
foram diagnosticados com esquizofrenia e desaparecem na sociedade. Al-
gumas das pessoas não medicadas do estudo de Harrow chegaram até a
ter “empregos de alto nível” - uma se tornou professora universitária, ou-
tra virou advogada - e várias tinham “empregos de nível médio”. Harrow
explicou: “Nós [clínicos] extraímos nossa experiência da visão daqueles
que nos deixam e depois retomam, por terem uma recaída. Não vemos os
que não têm recaídas. Eles não voltam. Estão muito felizes”.
Mais tarde, perguntei ao dr. Harrow por que ele achava que os pacien-
tes não medicados se saíam muito melhor. Ele não atribuiu esse resultado
ao fato de eles não tomarem antipsicóticos e disse, antes, que os compo-
nentes desse grupo “tinham um senso interno de identidade que era mais
forte” e, depois de inicialmente estabilizados com os medicamentos, esse
“melhor senso de identidade” lhes deu confiança para abandonar a medi-
cação. “Não é que os que ficaram sem remédios tenham se saído melhor, e
sim que aqueles que se saíram melhor [inicialmente] deixaram a medica-
ção, mais tarde.” Quando insisti em indagar se os resultados dele corrobo-
ravam uma interpretação diferente - a de que os remédios pioravam os re-
sultados a longo prazo -, o dr. Harrow ficou meio irritado: “Essa é uma
possibilidade, mas não a estou defendendo”, disse. “As pessoas reconhe-
cem que pode haver efeitos colaterais. (...) Não estou simplesmente ten-
tando evitar a pergunta. Sou uma das poucas pessoas deste campo que
não recebem dinheiro das empresas farmacêuticas.”
Fiz-lhe uma última pergunta: não deveriam os seus resultados, no mí-
nimo, ser incorporados ao paradigma de atendimento usado na nossa so-
ciedade para tratar as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia? “Quanto
a isso, não há dúvida”, foi a resposta. “Nossos dados são uma prova esma-
gadora de que nem todos os pacientes esquizofrênicos precisam tomar an-
tipsicóticos durante a vida inteira.”
Reexaminando as Provas
™ Embora, rigorosamente, seja uma expressão inadequada, porque o desmame propriamente dito é um
psiquiátrica. “Aí fiquei sem remédios, sem nicotina e sem café, e meu
corpo foi entrando em choque. Eu ficava doente com aquilo tudo e chegava
quase a vibrar, porque precisava dos meus cigarros, dos meus remédios.”
Essa decisão também a levou a se desentender com quase todas as
pessoas de sua vida. “Parei de falar com minha família, porque não queria
voltar àquela identidade [de pessoa inválida]. Minha mente era muito deli-
cada, por isso eu tive que me desligar do que conhecia e me desligar do
meu terapeuta.” Em pouco tempo, Kate começou a emagrecer tanto que os
amigos pensaram que devia estar doente. Enquanto lutava para se manter
sã, ela se agarrou à orientação do seu grupo religioso, falando com os ou-
tros de maneira muito formal, e essa conduta convenceu sua mãe de que
ela estava sofrendo uma recaída. “Estranho não é a palavra, meu bem”,
era o que lhe dizia sua mãe, e até Kate temia, no íntimo, estar voltando a
ter um surto psicótico. “Mas eu tinha aquela esperança, aquela fé, e por
isso disse a mim mesma: ‘Vou andar nesta corda bamba para atravessar
esse cânion medonho e, quando chegar ao outro lado, espero que haja um
cume em que eu possa ficar de pé’. Eu tinha de me concentrar em seguir
em frente, para onde quer que aquilo me levasse, porque, se caísse da
corda bamba, voltaria para o hospital.”
Foi nesse momento perigoso, quando parecia prestes a desabar, que
Kate concordou em se encontrar com a mãe para jantar. “Achei que ela es-
tava tendo um surto”, disse a mãe. “Ela se sentou toda certinha, com um
ar disperso e desorganizado. O corpo estava rígido. Vi muitos dos mesmos
sintomas de antes. Os olhos estavam dilatados e ela parecia paranoide.”
Ao saírem do restaurante, a mãe começou a conduzir o carro na direção
do hospital, mas mudou de ideia no último segundo. Kate “não estava tão
maluca” que precisasse ser internada. “Fui para casa e chorei”, recordou a
mãe. “Não sabia o que estava acontecendo.”
Pelos cálculos da mãe, Kate levou seis meses para atravessar esse pro-
cesso de desabituação. Mas emergiu do outro lado transformada. “Vi que o
rosto dela estava cheio de sida e que ela estava mais ligada ao corpo”, con-
tou a mãe. “Sentia-se à vontade no próprio corpo e mais em paz do que
processo natural de desapego do seio materno, de autonomia, de perda da dependência infantil em rela-
ção à mãe, ao passo que com drogas esse processo não ê natural, porque a droga foi artificialmente intro-
duzida na relação do seu usuário com o mundo, ó usual o emprego do termo para sc referir ao processo de
desintoxicação, interrupção, abandono de alguma substância psicoativa. Por isso, ao longo do livro a pala-
vra withdnmml, usada em expressões como drug withdraual, uilhdraual of drugs etc., foi traduzida como
desmame e grafada entre aspas. (N.R.T)
nunca com ela mesma. Estava fisicamente saudável. Eu não sabia que
esse tipo de recuperação era possível.” Em 2007, Kate casou-se com o ho-
mem mais velho que a tinha incentivado a seguir esse caminho; também
logrou êxito em seu trabalho de gerente de uma instituição para pessoas
com problemas psiquiátricos, e a empresa reconheceu seu desempenho
“extraordinário” em 2008 - reconhecimento que veio acompanhado por um
prêmio em dinheiro.
Às vezes, Kate ainda luta. A instituição que ela dirige abriga vários ho-
mens com desvios sexuais - “Já tive gente dizendo que ia atear fogo em
mim, ou que ia urinar na minha boca”, disse -, e suas reações emocionais
a essa tensão já não são embotadas pelos medicamentos. “Faz dois anos
que não tomo remédios e, às vezes, é muito, muito difícil lidar com as mi-
nhas emoções. Tendo a ter uns acessos de raiva. Será que os remédios co-
briram minha mente com uma nuvem tão grande, me deixaram tão coma-
tosa que nunca desenvolvi habilidades para lidar com minhas emoções?
Hoje eu me descubro ficando com mais raiva do que nunca e me sentindo
mais feliz do que nunca. O círculo dos meus afetos está aumentando. E,
sim, é fácil lidar com isso na hora em que a gente está feliz, mas como li-
dar com o afeto quando a gente está furiosa? Tenho me empenhado em
não me deixar ficar defensiva demais e procurado levar as coisas com
calma.”
A história de Kate é de natureza idiossincrática, é claro. Seu êxito ao
deixar os remédios não significa que todos possam largá-los com sucesso.
Kate é uma pessoa admirável - incrivelmente voluntariosa e incrivelmente
corajosa. Com efeito, o que a literatura científica revela é que, depois que a
pessoa começa a tomar antipsicóticos, pode ser muito difícil e arriscado
suspender essa medicação, e que muitas pessoas sofrem recaídas agudas.
Mas a literatura também revela que há pessoas capazes de abandonar
com sucesso os medicamentos, e que é esse grupo que se sai melhor a
longo prazo. Kate conseguiu entrar nesse grupo.
“Aquele dia de 2005 em que eu resolvi melhorar foi o divisor de águas
na minha vida”, diz ela. “Eu era uma pessoa completamente diferente. Era
muito gorda, fumava o tempo todo e era emocionalmente apática. Hoje,
quando topo com pessoas que me conheceram naquela época, elas nem
me reconhecem. Até minha mãe diz: ‘Você não é a mesma’.”
7.
A ARMADILHA DAS BENZODIAZEPINAS
Os Números da Invalidez
A melancolia, é claro, visita quase todo mundo, vez por outra. “Sou ho-
mem, o que é razão suficiente para eu ser infeliz”, escreveu o poeta grego
Menandro no século IV a.C., externando um sentimento que desde então
tem sido ecoado por escritores e filósofos.2 Em seu compêndio seiscentista
intitulado Anatomia da Melancolia, o médico inglês Robert Burton opinou
que todos “sentem sua aguilhoada (...) é sumamente absurdo e ridículo
qualquer mortal buscar a permanência perpetua da felicidade nesta vida”.
Somente quando esses estados melancólicos se tornavam um “hábito”, di-
zia Burton, é que se transformavam em “doença”.
Era a mesma distinção feita por Hipócrates, mais de dois mil anos an-
tes, ao identificar a melancolia persistente como uma doença, atribuindo-a
a um excesso de bile negra (melaina chole, em grego). Os sintomas inclu-
íam “tristeza, ansiedade, abatimento moral [e] tendência ao suicídio”,
acompanhados por um “medo prolongado”. Para limitar o excesso de bile
negra e reequilibrar os quatro humores do corpo, Hipócrates recomendava
a administração de mandrágora e heléboro, mudanças na dieta e uso de
ervas catárticas e eméticas.
Durante a Idade Média, a pessoa profundamente melancólica era con-
siderada possuída por demônios. Padres e exorcistas eram chamados para
expulsá-los. Com a chegada do Renascimento, no século XV, os ensina-
mentos dos gregos foram redescobertos e os médicos voltaram a oferecer
explicações médicas para a melancolia persistente. Depois que William
Harvey descobriu, em 1628, que o sangue circulava por todo o corpo, mui-
tos médicos europeus ponderaram que essa doença provinha da falta de
sangue no cérebro.
A moderna concepção psiquiátrica da depressão tem suas raízes no
trabalho de Emil Kraepelin. Em seu livro de 1899, Lehrbuch der Psychial-
rie [Manual de psiquiatria], Kraepelin dividiu os transtornos psicóticos em
duas categorias amplas: demência precoce e psicose maníaco-depressiva.
Esta última categoria era predominantemente composta por três subtipos:
apenas episódios depressivos, apenas episódios maníacos e episódios dos
dois tipos. Entretanto, enquanto os pacientes com demência precoce se
deterioravam ao longo do tempo, o grupo maníaco-depressivo tinha
resultados bastante bons a longo prazo. “Em geral todas as manifestações
mórbidas desaparecem por completo; todavia, quando não é este o caso,
excepcionalmente, desenvolve-se apenas uma fraqueza psíquica, peculiar
bastante leve”, explicou Kraepelin num texto de 1921.
Hoje em dia, o grupo apenas-depressivo de Kraepelin seria diagnosti-
cado com depressão unipolar, e na década de 1960 e início da de 1970,
psiquiatras proeminentes, em centros médicos acadêmicos e no Instituto
Nacional de Saúde Mental (NIMH), descreveram esse distúrbio como bas-
tante raro e de bom prognóstico a longo prazo. Em seu livro de 1968, The
Epidemiology of Depression [A epidemiologia da depressão], Charlotte Sil-
verman, que dirigiu estudos epidemiológicos para o NIMH, observou que
levantamentos comunitários nas décadas de 1930 e 1940 haviam consta-
tado que menos de um cm cada mil adultos sofria um episódio de depres-
são clínica por ano. Além disso, a maioria das pessoas afetadas não preci-
sava de internação hospitalar. Em 1955, houve apenas 7.250 casos de
“admissão inicial” por depressão em manicômios estaduais e municipais.
O total de pacientes deprimidos nos hospitais psiquiátricos do país na-
quele ano foi de aproximadamente 38.200, ou uma taxa de invalidez de
uma em cada 4.345 pessoas.
A depressão, como observaram Silverman e outros, era primordial-
mente uma “doença de pessoas na meia-idade e mais velhas”. Em 1956,
90% das admissões iniciais por depressão em hospitais públicos e priva-
dos foram de pacientes de 35 anos ou mais.7 Os episódios depressivos,
explicou Frank Ayd Jr., um psiquiatra de Baltimore, em seu livro de 1962,
Recognizing the Depressed Patient [Reconhecendo o paciente deprimido],
“ocorrem quase sempre depois dos 30 anos, têm um pico de incidência en-
tre os 40 e os 60 anos e diminuem acentuadamente depois disso”.
Embora os pacientes maníaco-depressivos estudados por Kraepelin es-
tivessem gravemente enfermos, uma vez que sua mente também cra fusti-
gada por sintomas psicóticos, seus resultados a longo prazo eram bas-
tante bons. Entre os 450 pacientes kraepelinianos “apenas deprimidos”,
60% só experimentaram um único episódio de depressão e apenas 13% ti-
veram três ou mais episódios.’ Outros investigadores da primeira metade
do século XX relataram resultados semelhantes. Em 1931, Horatio Pol-
lock, da Secretaria de Higiene Mental do Estado de Nova York, num es-
tudo a longo prazo de 2.700 pacientes deprimidos, internados entre 1909
e 1920, relatou que mais de 50% das pessoas internadas cm decorrência
de um primeiro episódio tiveram um único ataque, e apenas 17% tiveram
três ou mais episódios. Thomas Rennie, que investigou o destino de 142
depressivos internados no Hospital Johns Hopkins entre 1913 e 1916, de-
terminou que 39% tiveram “recuperações duradouras” de cinco anos ou
mais." Um médico sueco, Gunnar Lundquist, acompanhou 216 pacientes
tratados de depressão durante 18 anos e determinou que 49% nunca vi-
venciaram um segundo ataque, e que outros 21% tiveram apenas um epi-
sódio a mais. Ao todo, 76% dos 216 pacientes tornaram-se “socialmente
sadios” e retomaram seu trabalho habitual. Depois de se recuperar de um
episódio depressivo, escreveu Lundquist, a pessoa “tem a mesma capaci-
dade de trabalho e as mesmas perspectivas de levar adiante a vida que ti-
nha antes do aparecimento da doença”.
Esses bons resultados estenderam-se pelos primeiros anos da era dos
antidepressivos. Em 1972, Samuel Guze e Eli Robins, da Faculdade de
Medicina da Universidade Washington em St. Louis, reexaminaram a lite-
ratura científica e determinaram que, em estudos de acompanhamento
conduzidos ao longo de dez anos, 50% das pessoas hospitalizadas por de-
pressão não tiveram recorrência da doença. Apenas uma pequena minoria
dos diagnosticados com depressão unipolar - um em dez - tornara-se cro-
nicamente doente, concluíram Guze e Robins.
Foram essas as provas científicas que levaram as autoridades do
NIMH, durante as décadas de 1960 e 1970, a falarem com otimismo sobre
o curso da doença a longo prazo. “A depressão, de modo geral, é um dos
problemas psiquiátricos com melhor prognóstico de eventual recuperação,
com ou sem tratamento. Quase todas as depressões são autolimitantes”,
escreveu Jonathan Cole em 1964." “No tratamento da depressão”, explicou
Nathan Kline no mesmo ano, “sempre se encontra um aliado no fato de
que a maioria das depressões termina em remissões espontâneas. Isso sig-
nifica que, em muitos casos, independentemente do que se faça, o paci-
ente acaba começando a melhorar.” George Winokur, um psiquiatra da
Universidade Washington, informou ao público, em 1969, que “pode-se
dar ao paciente e seus familiares a garantia de que os episódios posterio-
res da doença após um primeiro episódio de mania ou até de depressão
não tenderão a assumir um curso mais crônico”.
De fato, como explicou Dean Schuyler, chefe da divisão de depressão
do NIMH, num livro de 1974, os índices de recuperação espontânea eram
tão altos -acima de 50%, num prazo de poucos meses - que era difícil “jul-
gar a eficácia de uma droga, de um tratamento [eletrochoque] ou da psico-
terapia em pacientes deprimidos”. Talvez um medicamento ou o eletrocho-
que pudessem abreviar o tempo de recuperação, uma vez que a remissão
espontânea comumente levava muitos meses para acontecer, mas era
difícil algum tratamento ser melhor do o curso natural da depressão a
longo prazo. A maioria dos episódios depressiva explicou Schuyler, “segue
seu curso e termina com a recuperação praticamente, completa, sem ne-
nhuma intervenção específica”.
Tristeza Abreviada
1
A planta é também conhecida por alguns outros nomes populares, como milfurado, hipericão, macela-de-
são-joão, malfurada, molturado, pclicão etc. (N.T.)
com essa erva medicinal e, em 1996, o British Medical Journal resumiu os
dados obtidos: em 13 testes controlados por placebos, 55% dos pacientes
tratados com a erva-de-são-joão tiveram uma melhora significativa, com-
parados a 22% dos que receberam um placebo. A erva medicinal também
superou os antidepressivos, numa competição acirrada: nesses ensaios,
66% dos sujeitos que receberam a erva medicinal obtiveram melhora,
comparados a 55% dos pacientes tratados com medicamentos. Na Alema-
nha, a erva-de-são-joão revelou-se eficaz. Mas teria um resultado mágico
semelhante entre os norte-americanos? Em 2001, psiquiatras de 11 cen-
tros médicos dos Estados Unidos informaram que ela não surtia o menor
efeito. Apenas 15% dos pacientes ambulatoriais deprimidos tratados com
essa erva apresentaram melhora cm seu ensaio de oito semanas. No en-
tanto - e esta foi a parte curiosa -, apenas 5% dos pacientes tratados com
um placebo melhoraram nesse estudo, o que fica muito abaixo da resposta
usual aos placebos. Ao que parece, os psiquiatras norte-americanos não
estavam ansiosos por ver ninguém melhorar, por medo de que a erva me-
dicinal se revelasse eficaz. Posteriormente, no entanto, o Instituto Nacional
de Saúde [NIH] financiou um segundo ensaio com a erva-de-são-joão, o
qual complicou a situação para qualquer pesquisador que quisesse esco-
lher favoritos. Ele comparou a erva medicinal com o Zoloft e com um pla-
cebo. Uma vez que a erva causa efeitos colaterais, como o ressecamento
da boca, ela agiria, no mínimo, como um placebo ativo. Sendo assim, tra-
tava-se realmente de um ensaio cego, no qual os psiquiatras não poderiam
confiar nos efeitos colaterais como uma pista sobre quais pacientes esta-
vam recebendo o quê, e os resultados foram estes: 24% dos pacientes tra-
tados com a erva-de-são-joão tiveram uma “resposta completa”, 25% dos
pacientes tratados com Zoloft e 32% do grupo que recebeu o placebo tive-
ram essa mesma resposta. “Este estudo não corrobora a eficácia da H.
perforatum na depressão moderadamente grave”, concluíram os investiga-
dores, passando por cima do fato de que seu medicamento também havia
falhado no ensaio.
1 A ressalva a ser feita sobre os estudos naturalistas é que o grupo não medicado, no momento do
diagnóstico inicial, pode não estar tão deprimido quanto os indivíduos que usam medicamentos.
Além disso, aqueles que evitam a medicação lambem podem ter uma “resiliência interna” maior.
Mesmo feitas essas ressalvas, deve ser possível obtermos uma ideia do curso da depressão não
medicada com base nos estudos naturalistas, para ver como ela se compara com o curso da de-
pressão tratada com antidepressivos.
passo que os 53 pacientes tratados com medicamentos tiveram apenas
uma redução de 33% dos sintomas. Os pacientes medicados, concluíram
eles, “continuaram a ter sintomas depressivos ao longo dos seis meses”.
Num estudo retrospectivo dos resultados cm dez anos, abrangendo 222
pessoas que haviam sofrido o primeiro episódio de depressão, investigado-
res holandeses constataram que 76% dos não tratados com antidepressi-
vos recuperaram-se e nunca tiveram recaídas, em comparação com 50%
daqueles a quem foram receitados antidepressivos. Por fim, Scott Patten,
da Universidade de Calgary, esmiuçou um grande banco de dados de sa-
úde canadense, para avaliar os resultados de 9.508 pacientes depressivos
após cinco anos, e determinou que os pacientes medicados ficavam depri-
midos, cm média, 19 semanas por ano, em contraste com 11 semanas, no
caso dos pacientes que não tomavam medicamentos. Esses resultados, es-
creveu Patten, foram compatíveis com a hipótese de Giovanni Fava de que
“o tratamento antidepressivo pode levar a uma deterioração do curso dos
distúrbios do humor a longo prazo”.
Um estudo conduzido pela OMS em 15 cidades do mundo inteiro, para
aferir o valor da triagem para a depressão, levou a resultados semelhan-
tes. Os pesquisadores fizeram um levantamento da depressão em pacien-
tes que apareciam nas clínicas de saúde por outras queixas, e depois, ob-
servando-os em sigilo, acompanharam durante os 12 meses seguintes os
que foram identificados como deprimidos. Seu raciocínio foi que os clínicos
gerais das instituições identificariam a depressão em alguns pacientes,
mas não em todos, e os pesquisadores levantaram a hipótese de que os re-
sultados se enquadrariam cm quatro grupos: as pessoas diagnosticadas e
tratadas com antidepressivos se sairiam melhor; as diagnosticadas e trata-
das com benzodiazepinas teriam o segundo melhor resultado; as diagnos-
ticadas e tratadas sem psicotrópicos seriam o terceiro melhor resultado, e
as não identificadas e não tratadas teriam o pior resultado. Infelizmente, o
que se constatou foi o inverso. Ao todo, os investigadores da OMS identifi-
caram 740 pessoas como deprimidas, e foram as 484 não expostas a me-
dicamentos psicotrópicos (quer fossem diagnosticadas, quer não) que
apresentaram os melhores resultados. Gozavam de “saúde geral” muito
melhor, ao final de um ano, seus sintomas depressivos eram muito mais
brandos, e uma percentagem menor foi considerada como ainda sendo
“doente mental”. O grupo que mais sofreu com a “depressão contínua” foi
o dos pacientes tratados com antidepressivos. O “estudo não corrobora a
ideia de que o não reconhecimento da depressão lenha graves consequên-
cias adversas”, escreveram os investigadores.’’
Resultados, após um ano, do estudo de triagem da depressão condu-
zido pela OMS
1 Esse estudo é uma poderosa ilustração de por que, como sociedade, podemos ser iludidos a res-
peito dos méritos dos antidepressivos. Dos que tomaram um antidepressivo, 73% regressaram ao
trabalho (outros 8% pediram demissão ou se aposentaram), e não há dúvida de que muitos desse
grupo diriam que o tratamento medicamentoso os ajudou. Eles se tornariam voz.es da sociedade
que atestam os benefícios desse paradigma de atendimento e, sem um estudo como o aqui apre-
sentado, não haveria como saber que, na verdade, os medicamentos estavam aumentando u risco
da invalidez a longo prazo.
547 pessoas que haviam sofrido um episódio de depressão, e constataram
que as que receberam tratamento da doença tiveram três vezes mais pro-
babilidade do que o grupo não tratado de sofrer uma “cessação” de seu
“principal papel social”, e uma probabilidade quase sete vezes maior de se
tornarem “inválidas”. Além disso, enquanto muitos dos pacientes tratados
viram sua situação econômica sofrer um declínio acentuado durante o pe-
ríodo de seis anos, apenas 17% do grupo não medicado tiveram uma dimi-
nuição da renda, e 59% viram sua renda aumentar. “Os indivíduos não
tratados descritos neste estudo tiveram uma doença mais branda e de me-
nor duração [que a dos que foram tratados] e, apesar da ausência do tra-
tamento, não exibiram mudanças significativas do status socioeconómico,
a longo prazo”, escreveu Coryell.
Risco de invalidez em pacientes deprimidos
Esse foi um estudo de 1.281 empregados canadenses que estavam cm licença tem-
porária por invalidez, cm decorrência da depressão. Os que tomaram um antide-
pressivo tiveram mais que o dobro da probabilidade de passar para a condição de
licenciados permanentes por invalidez.
Vários países também observaram que, após a chegada dos ISRS, o
número de seus cidadãos incapacitados pela depressão aumentou drasti-
camente. Na Grã- Bretanha, o “número de dias de incapacidade” por de-
pressão e por distúrbios neuróticos saltou de 38 milhões, em 1984, para
117 milhões, em 1995, ou um aumento de três vezes. A Islândia informou
que a percentagem de sua população incapacitada pela depressão quase
duplicou entre 1976 e 2000. Se os antidepressivos fossem realmente úteis,
ponderaram os investigadores islandeses, o uso desses medicamentos, “ao
que seria esperável, teria um impacto na saúde pública, reduzindo a inva-
lidez, a morbidez e a mortalidade decorrentes de transtornos
depressivos’’.1 Nos Estados Unidos, a percentagem de norte-americanos
cm idade economicamente ativa que disseram ter sido incapacitados pela
depressão, ao responderem a levantamentos de saúde, triplicou durante a
década de 1990.
Estudo do NIMH sobre a depressão não tratada
Há um último estudo que precisamos examinar. Em 2006, Michael Posternak, um psiquiatra da Universidade
Brown, confessou que, “infelizmente, temos pouco conhecimento direto a respeito do curso da depressão
aguda em pacientes não tratados”. Os maus resultados a longo prazo, detalhados nos manuais da APA e
nos estudos do NIMH, contavam a história da depressão medicada, que poderia ser um bicho muito dife-
rente. Para estudar como seria a depressão não tratada nos tempos modernos, Posternak e seus colabora-
dores identificaram 84 pacientes inscritos no Programa Psicobiologia da Depressão, do NIMH, os quais, de-
pois de se recuperarem de um episódio inicial de depressão, tiveram uma recaída posterior, mas não volta-
ram a ser medicados nessa ocasião. Embora esses pacientes não fossem um grupo “nunca exposto” às dro-
gas, Posternak ainda pôde acompanhar sua recuperação “sem tratamento” desse segundo episódio de de-
pressão. Eis os resultados: 23% se recuperaram em um mês, 67%, em seis meses e 85%, em um
posterior, mas não voltaram a ser medicados nessa ocasião. Embora esses
pacientes não fossem um grupo “nunca exposto” às drogas, Posternak
ainda pôde acompanhar sua recuperação “sem tratamento” desse segundo
episódio de depressão. Eis os resultados: 23% se recuperaram em um
mês, 67%, em seis meses e 85%, em um ano. Kraepelin, como observou
Posternak, dissera que os episódios depressivos não tratados costumavam
resolver-se no intervalo de seis a oito meses, e os resultados do estudo
atual forneceram “talvez a confirmação mais rigorosa, em termos metodo-
lógicos, dessa estimativa”.
Aparentemente, os antigos estudos epidemiológicos não eram tão fa-
lhos, afinal. 0 estudo de Posternak também mostrou por que os ensaios
dos medicamentos durante seis semanas haviam desviado a psiquiatria do
curso correto. Embora apenas 23% dos pacientes não medicados se recu-
perassem depois de um mês, as remissões espontâneas continuaram de-
pois desse prazo, na proporção de aproximadamente 2% por semana, e as-
sim, ao final de seis meses, dois terços dos pacientes estavam livres da de-
pressão. A depressão não medicada leva tempo para desaparecer, e isso se
perde de vista nos ensaios a curto prazo. “Se até 85% dos indivíduos de-
primidos que não recebem tratamento somático recuperam- se espontane-
amente no prazo de um ano, seria extremamente difícil qualquer interven-
ção demonstrar um resultado superior a esse”, disse Posternak.
Era exatamente o alerta feito por Joseph Zubin em 1955: “Seria teme-
rário afirmar uma vantagem definitiva para uma terapia específica, sem
um acompanhamento de dois a cinco anos”.
Melissa
1
Referencia às duas adolescentes representadas por Patty Duke cm seu programa de televisão, The Patty Duke Show
(1963-1966), Patty e Cathy, cujos pais, Martin e Kcnneth, são gêmeos idênticos, donde a denominação de
“primas idênticas” das meninas. (N.T.)
2
A sigla corresponde à denominação original, National Alliance on Mental Illness. (N.T.)
Sua exposição seria a única exceção à regra, de modo que eu não esperava
ouvir nada de espantoso na tarde de terça-feira em que me espremi para
entrar numa sala apinhada de gente, ligeiramente maior, para assistir a
um fórum intitulado Os Antidepressivos no Transtorno Bipolar. Calculei
que os oradores meramente apresentariam resultados de testes que, de
um modo ou de outro, justificariam o uso desses medicamentos; no en-
tanto, logo me apanhei escrevendo furiosamente. A discussão, conduzida
pelos maiores especialistas do país em transtorno bipolar, o que incluiu os
dois grandes patriarcas da psiquiatria biológica nos Estados Unidos, Fre-
derick Goodwin e Robert Post, concentrou-se nesta pergunta: os antide-
pressivos pioram o curso do transtorno bipolar a longo prazo? E será que
o fazem de maneira significativa?
“A doença se modificou”, disse Goodwin, que, em 1990, fora coautor da
primeira edição de seu livro Doença Maníaco-Depressiva, considerado a
bíblia desse campo. “Temos [hoje] ciclos muito mais rápidos do que des-
crevemos na primeira edição, muito mais estados mistos do que descreve-
mos na primeira edição, muito mais resistência ao lítio e muito mais fra-
casso do tratamento com lítio do que foi registrado na primeira edição. A
doença já não é o que Kraepelin descreveu, e o fator principal, creio eu, é
que a maioria de seus portadores recebe um antidepressivo antes mesmo
de ser exposta a um estabilizador do humor.”
Essa foi a salva inicial do que se transformou numa confissão de uma
hora. Embora nem todos os palestrantes concordassem em que os antide-
pressivos haviam sido desastrosos para os pacientes bipolares, foi essa a
temática geral, e ninguém questionou o resumo final de Goodwin de que
os resultados, na doença bipolar, tinham piorado visivelmente nos vinte
anos anteriores. Os antidepressivos, afirmou Nassir Ghaemim, do Centro
Médico Tufts, podem causar guinadas maníacas e transformar os pacien-
tes em “portadores de ciclos rápidos”, além de aumentar a duração dos
episódios depressivos. A ciclicidade rápida, acrescentou Post, levava a um
desfecho muito ruim.
“O número de episódios, e há uma literatura riquíssima [que docu-
menta isso], está associado a mais déficits cognitivos”, disse ele. “Estamos
construindo mais episódios, mais resistência ao tratamento, mais disfun-
ção cognitiva, e existem dados que demonstram que, se a pessoa tem qua-
tro episódios depressivos, unipolares ou bipolares, isso duplica o risco de
demência numa fase posterior da vida. E, adivinhem só, isto não é nem
metade da história. (...) Nos Estados Unidos, as pessoas com depressão,
com transtorno bipolar e com esquizofrenia estão perdendo de 12 a vinte
anos de expectativa de vida, comparadas a pessoas que não estão no sis-
tema de saúde mental.”
Era um discurso que dizia de um paradigma de atendimento que havia
fracassado por completo, de um tratamento que deixava os pacientes
constantemente sintomáticos e com prejuízos cognitivos, e que também le-
vava à sua morte prematura. “Bem, os senhores acabaram de saber que
uma das coisas que fazemos não funciona muito bem a longo prazo”, Post
praticamente gritou. "Então, que diabos devemos fazer?”
As confissões vieram, rápidas e furiosas. A psiquiatria, é claro, tinha
sua “base de dados” para usar antidepressivos no transtorno bipolar, mas,
no dizer de Post, os ensaios clínicos conduzidos por companhias farma-
cêuticas “são praticamente inúteis para nós como clínicos. (...) Não nos di-
zem o que realmente precisamos saber, a que nossos pacientes responde-
rão e, se não responderem a esse primeiro tratamento, qual deverá ser a
iteração seguinte, e por quanto tempo eles devem ser mantidos com as
medicações”. Apenas uma pequena percentagem de pessoas, acrescentou
ele, efetivamente “responde a esses tratamentos vagabundos, como os an-
tidepressivos”. Quanto aos ensaios recentes, financiados por empresas far-
macêuticas, que haviam mostrado que os pacientes bipolares de quem se
retirava a medicação antipsicótica tinham altos índices de recaída - o que,
teoricamente, servia de prova de que os pacientes precisavam tomar esses
medicamentos a longo prazo-, esses estudos “eram destinados a captar a
recaída [no grupo tratado com placebos]”, disse Goodwin. “Não são prova
de que a droga ainda seja necessária; são prova de que, quando se modi-
fica subitamente um cérebro que se adaptou à droga, vai se chegar a uma
recaída”. Post acrescentou: “Neste momento, cinquenta anos após o ad-
vento dos medicamentos antidepressivos, ainda não sabemos realmente
como tratar a depressão bipolar. Precisamos de novos algoritmos de trata-
mento que não sejam simplesmente inventados”.
Tudo isso foi muito parecido com o momento, em O Mágico de Oz, em
que a cortina é aberta e o poderoso mago é revelado como um velho frágil.
Para qualquer um na plateia que houvesse passado a manhã no centro de
acolhimento da Pfizer, respondendo a perguntas de vídeo game sobre as
maravilhas do Geodon no transtorno bipolar, deve ter sido arrasador.
Trinta anos antes, Guy Chouinard e Barryjones haviam desconcertado
essa classe profissional com seu discurso sobre a “psicose por hipersensi-
bilidade”, e agora os psiquiatras eram instados a encarar o fato de que os
resultados do transtorno bipolar eram piores, hoje, do que tinham sido
trinta anos antes, e de que os antidepressivos eram os prováveis culpados.
Os estimulantes, ao que parecia, também podiam piorar o estado dos pa-
cientes bipolares e, por último, Ghaemi disse à plateia que a psiquiatria
precisava adotar uma abordagem “hipocrática” no uso das drogas psiquiá-
tricas, o que exigiria que parassem de receitá-los, a não ser que tivessem
uma boa comprovação de que eles eram realmente benéficos, a longo
prazo. “Diagnósticos, não drogaria”, disse ele, e, a certa altura, vários inte-
grantes da plateia - que ia ficando cada vez mais agitada com essa discus-
são - o vaiaram.
“Será possível que cinquenta mil psiquiatras estejam errados?”, per-
guntou ele, referindo-se ao uso de antidepressivos pelos médicos como
tratamento do transtorno bipolar. “Creio que a resposta é sim, provavel-
mente.”
Os leitores deste livro, tendo avançado até este ponto do texto, não se
haverão de surpreender ao saber que os resultados referentes ao trans-
torno bipolar sofreram uma piora drástica na era da farmacoterapia. A
única surpresa foi esse fracasso ter sido tão francamente discutido na
conferência da APA. Considerando-se o que a literatura científica revelava
sobre os resultados a longo prazo na esquizofrenia, na ansiedade e na de-
pressão tratadas com medicamentos, era razoável que os coquetéis de dro-
gas usados para tratar o transtorno bipolar não viessem a produzir bons
resultados a longo prazo. O aumento da cronicidade, o declínio funcional,
a deterioração cognitiva e a doença física, tudo isso se esperava que apare-
cesse nas pessoas tratadas com um coquetel que incluía, muitas vezes,
um antidepressivo. um antipsicótico. um estabilizador do humor, uma
benzodiazepina e, quem sabe, também um estimulante. Tratava-se de um
desastre médico que poderia ter sido previsto, e. infelizmente, ao rastrear-
mos o desenrolar dessa história, os detalhes nos parecerão por demais fa-
miliares.
Embora a doença “bipolar” seja um diagnóstico de origem recente, que
apareceu pela primeira vez no Manual de Diagnóstico e Estatística dos
Distúrbios Mentais da APA (DSM-III) em 1980, textos de medicina que re-
montam a Hipócrates contêm descrições de pacientes que sofrem de episó-
dios alternados de mania e melancolia. “A melancolia”, escreveu o médico
alemão Christian Vater no século XVII, “passa com frequência para a ma-
nia, e vice-versa. Ora os melancólicos riem, ora se entristecem, ora expres-
sam inúmeros outros gestos e formas de comportamento absurdos.” O
alienista inglês John Haslam relatou que “os mais furiosos maníacos mer-
gulham de repente numa melancolia profunda, e os pacientes mais depri-
midos e infelizes tornam-se violentos e furiosos”. Em 1854, o médico fran-
cês Jules Baillarger, que trabalhava num manicômio, chamou essa do-
ença de folie à double forme.'" Tratava-se de urna forma incomum, porém
reconhecível, de insanidade.
Quando Emil Kraepelin publicou seus textos diagnósticos, incluiu es-
ses pacientes cm seu grupo de maníaco-depressivos. Essa categoria diag-
nóstica também incluía pacientes que sofriam apenas de depressão ou de
mania (em contraste com padecer de ambas), e Kraepelin ponderou que
todos esses variados estados afetivos provinham da mesma doença subja-
cente. A cisão da psicose maníaco-depressiva em facções separadas de
unipolares e bipolares teve início em 1957, quando um psiquiatra alemão,
Karl Leonhard, determinou que a faceta maníaca da doença parecia ter
maior incidência cm membros de uma mesma família do que a forma de-
pressiva. Chamou os pacientes maníacos de “bipolares” e, a partir daí, ou-
tros pesquisadores identificaram diferenças adicionais entre as formas
unipolar e bipolar da psicose maníaco-depressiva. A instauração ocorria
mais cedo nos pacientes bipolares, amiúde na casa dos 20 anos, e pareceu
também que os pacientes bipolares corriam um risco ligeiramente maior
de se tornarem doentes crônicos.
Em seu livro de 1969, Manic Depressive Illness [Doença maníaco-de-
pressiva], George Winokur. da Universidade Washington em St. Louis, tra-
tou a depressão unipolar e a doença bipolar como entidades separadas e,
uma vez feita essa distinção, ele e outros começaram a reexaminar a lite-
ratura sobre a psicose maníaco-depressiva, a fim de isolar os dados relati-
vos aos pacientes “bipolares”. Em média, nos estudos mais antigos, apro-
ximadamente um quarto do grupo maníaco-depressivo havia sofrido episó-
dios maníacos, sendo, portanto, “bipolar”. Segundo a opinião geral, tra-
tava-se de uma doença rara. Havia, talvez, umas 12.750 pessoas interna-
das com doença bipolar em 1955, o que equivalia a uma taxa de invalidez
de uma em cada 13.000 pessoas.2 Naquele ano, houve apenas cerca de
2.400 “internações iniciais” por transtorno bipolar nos hospitais psiquiá-
tricos do país.
Como descobriu Winokur, os resultados a longo prazo entre os pacien-
tes maníacos, na era pré-fármacos, tinham sido bastante bons. Em seu
estudo de 1931, Horatio Pollock relatou que 50% dos pacientes internados
em hospitais psiquiátricos de Nova York por um primeiro acesso de mania
nunca sofreram um segundo surto (durante um acompanhamento de 11
anos), e apenas 20% tiveram três ou mais episódios. F. I. Wertham, da Fa-
culdade de Medicina Johns Hopkins, num estudo de 1929 sobre dois mil
pacientes maníaco-depressivos, verificou que 80% dos pacientes do grupo
maníaco recuperaram-se no prazo de um ano, e que menos de 1% neces-
sitaram de hospitalização a longo prazo. No estudo de Gunnar Lundquist,
75% de seus 103 pacientes maníacos recuperaram-se em dei meses e, du-
rante os unte anos seguintes, metade dos pacientes nunca teve nutro
surto, e apenas 8% desenvolveram um curso crônico. Desse grupo, 85%
ficaram “socialmente recuperados” e retomaram suas atividades anterio-
res. Por fim, Ming Tsuang da Universidade de Iowa, estudou como 86 pa-
cientes maníacos, internados num hospital psiquiátrico entre 1935 e
1944, saíram-se nos trinta anos seguintes, e constatou que quase 70% ti-
veram bons resultados, o que significou que estavam casados, morando
em suas próprias casas e trabalhando. Metade deles mostrou-se assinto-
mática durante esse longo acompanhamento. No cômputo geral, os paci-
entes maníacos tinham se saído tão bem quanto os pacientes unipolares
do estudo de Tsuang.
Esses resultados, escreveu Winokur, revelavam que "não há base para
se considerar que a psicose maníaco-depressiva afeta permanentemente
os que dela sofrem. Nesse aspecto, é claro, ela é diferente da esquizofre-
nia". Embora algumas pessoas sofressem de múltiplos episódios de mania
e depressão, cada episódio costumava ter "apenas alguns meses de dura-
ção" e, "num número significativo de pacientes, ocorre apenas um episódio
da doença". E o mais importante era que, uma vez recuperados de seus
episódios bipolares, os pacientes não costumavam ter "nenhuma dificul-
dade para retomar suas ocupações habituais”.
Entrada na Bipolaridade
Os Anos do Lítio
Permanentemente Bipolar
O Dano Causado
1 Nesse estudo, os investigadores informaram que os prejuízos cognitivos, do mais leve ao mais
grave, foram registrados na seguinte sequência de tratamentos recebidos: monoterapia à base de
lítio, sem tratamento medicamentoso, monoterapia à base de neurolépticos e terapia com uma
combinação de medicamentos. Entretanto, não foram fornecidos detalhes sobre o grupo “sem tra-
tamento medicamentoso” nem se informou se ele havia sido previamente exposto a drogas psiquiá-
tricas.
que os antipsicóticos podiam levar a mais “episódios depressivos” e a “ín-
dices mais baixos de recuperação funcional”. A deterioração cognitiva era
uma razão primordial de os pacientes esquizofrênicos medicados se saí-
rem tão mal a longo prazo, disseram os investigadores, e “foi sugerido que
os efeitos colaterais dos medicamentos podem explicar, em parte, os défi-
cits cognitivos dos pacientes com transtorno bipolar”. Baldessarini, em
sua resenha de 2007, também reconheceu que “fatores neurofarmacológi-
cos e neurotóxicos” poderiam estar causando “déficits cognitivos em paci-
entes com transtorno bipolar”. Por fim, Kupfer jogou mais lenha na fo-
gueira. Detalhou todas as doenças físicas que agora assolavam os pacien-
tes bipolares - problemas cardiovasculares, diabetes, obesidade, disfunção
da tireoide etc. - e se perguntou se “fatores do tratamento, como a toxici-
dade dos medicamentos”, poderiam estar causando essas doenças devas-
tadoras, ou, pelo menos, contribuindo para elas.
Todos esses autores puseram suas preocupações num contexto condi-
cional afirmando que as drogas poderiam ser causadoras dessa deteriora-
ção mental t física em seus pacientes. Mas é fácil perceber que sua hesita-
ção era injustificada em termos científicos. A esquizofrenia e a psicose ma-
níaco-depressiva haviam nascido como dotadas de naturezas distintas, em
termos de diagnóstico, justamente porque os esquizofrénicos sofriam uma
deterioração cognitiva com o tempo, caminhando para a demência, ao
passo que isso não se dava com o grupo maníaco-depressivo1. A conver-
gência dos resultados desenvolveu-se depois que os dois grupos passaram
a ser tratados com coquetéis semelhantes de medicamentos (os quais cos-
tumam incluir um antipsicótico). “Esta área tem assistido a uma conver-
gência das abordagens farmacológicas do tratamento da esquizofrenia e do
transtorno bipolar”, escreveu Stephen Stahl, autor de Antipsychotics and
Mood Stabilizers [Antipsicóticos e estabilizadores do humor], em 2005. Vi-
nham sendo adotados “tratamentos combinados similares para esses dois
estados patológicos". As drogas psiquiátricas, é claro, perturbam diversas
vias neurotransmissoras no cérebro, e por isso, estando os pacientes es-
quizofrênicos e bipolares recebendo coquetéis similares de medicamentos,
Um Mistério Resolvido
Começamos este livro fazendo uma pergunta: por que temos visto um
aumento tão acentuado do número de doentes mentais inválidos nos Es-
tados Unidos, desde a “descoberta” dos medicamentos psicotrópicos? No
mínimo, creio havermos identificado uma causa fundamental. Em grande
parte, essa epidemia é de natureza iatrogênica.
Ora, talvez haja vários fatores sociais contribuindo para a epidemia.
Talvez nossa sociedade se organize, hoje em dia, de um modo que leva a
um grau maior de tensão e de perturbação emocional. Por exemplo, talvez
nos faltem bairros estreitamente unidos, daqueles que ajudam as pessoas
a se manterem bem. Os relacionamentos são a base da felicidade humana,
ou assim parece, e, como escreveu Robert Putnam no ano 2000, passamos
tempo demais “jogando sozinhos”. Talvez também assistamos demais à te-
levisão e façamos muito pouco exercício, combinação que sabidamente
constitui uma receita para a depressão. A comida que ingerimos - mais
alimentos industrializados etc. - também pode estar desempenhando um
papel. E o uso corriqueiro de drogas ilícitas - maconha, cocaína e alucinó-
genos - contribuiu claramente para a epidemia. Por fim, depois que uma
pessoa começa a receber uma pensão ou uma renda complementar da
Previdência Social, há um enorme desincentivo financeiro para o retorno
ao trabalho. As pessoas que recebem algum auxílio-doença dão a isso o
nome de “armadilha dos direitos individuais”. A menos que obtenham um
emprego que pague o seguro de saúde, elas perdem essa rede de segu-
rança se voltarem ao trabalho, e, depois de começarem a trabalhar, talvez
percam também seu subsídio para o aluguel.
Neste livro, entretanto, temos focalizado o papel que a psiquiatria e
seus medicamentos estariam desempenhando nessa epidemia, e os dados
são bastante claros. Primeiro, por expandir enormemente as fronteiras di-
agnosticas, a psiquiatria convida um número cada vez maior de crianças e
adultos a ingressarem no campo da doença mental. Segundo, as pessoas
assim diagnosticadas são tratadas com medicamentos psiquiátricos que
aumentam sua probabilidade de se transformarem cm doentes crônicos.
Muitos indivíduos tratados com psicotrópicos acabam com sintomas psi-
quiátricos novos e mais graves, indisposições físicas e prejuízos cognitivos.
Essa é a história trágica, escrita de maneira clara e óbvia em cinco déca-
das de literatura científica.
O histórico da incapacitação produzida por medicamentos psiquiátri-
cos é fácil de resumir. Na esquizofrenia, na década anterior à introdução
do Thorazine, cerca de 70% das pessoas que sofriam um primeiro surto
psicótico recebiam alta hospitalar cm até 18 meses, e a maioria não vol-
tava ao hospital durante períodos bem longos de acompanhamento. Pes-
quisadores da era pós-Thorazine relataram resultados semelhantes cm pa-
cientes não medicados. Rappaport, Carpenter e Mosher constataram que
talvez metade dos pacientes com diagnóstico de esquizofrenia se sairia
bastante bem se não tomasse uma medicação contínua. Mas essa é a
norma atual do tratamento, e, como mostrou o estudo de Harrow, apenas
5% dos pacientes medicados se recuperam a longo prazo. Hoje em dia, es-
tima-se que haja dois milhões de adultos incapacitados pela esquizofrenia
nos Estados Unidos, e talvez esse número de inválidos pudesse ser redu-
zido à metade, se adotássemos um paradigma de tratamento que empre-
gasse medicamentos antipsicóticos de maneira seletiva e cautelosa.
Nos transtornos afetivos, os efeitos iatrogênicos do nosso modelo de
atendimento baseado em fármacos são ainda mais visíveis. A ansiedade
costumava ser considerada um transtorno brando, que raramente exigia
internação. Atualmente, 8% dos adultos mais jovens nas listas da Renda
Complementar da Previdência (SSI) e do Seguro da Previdência Social por
Invalidez (SSDI) por invalidez psiquiátrica têm na ansiedade seu diagnós-
tico primário. Similarmente, os resultados referentes à depressão grave
costumavam ser bons. Em 1955, havia apenas 38.000 pessoas hospitali-
zadas por depressão, e havia uma expectativa de remissão da doença.
Hoje, a depressão aguda é a principal causa de invalidez nos Estados Uni-
dos entre pessoas de 15 a 44 anos. Dizem que ela afeta 15 milhões de
adultos e, de acordo com pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade Johns Hopkins, 60% deles têm uma “deterioração grave”.
Quanto ao transtorno bipolar, uma doença extremamente rara tornou-se
corriqueira. Segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), quase
seis milhões de adultos sofrem dela atualmente. Ao passo que, no pas-
sado, 85% dos indivíduos afetados se recuperavam e voltavam ao traba-
lho, hoje apenas cerca de um terço dos pacientes bipolares funciona tão
bem assim, e, a longo prazo, os pacientes bipolares que tomam sistemati-
camente seus remédios acabam tão prejudicados quanto os esquizofrêni-
cos que mantêm o uso de neurolépticos. Os pesquisadores da Johns
Hopkins concluíram que 83% tinham uma “deterioração grave”.
Em suma, havia 56.000 pessoas hospitalizadas com ansiedade e psi-
cose maníaco-depressiva em 1955. Hoje, de acordo com o NIMH, pelo
menos 40 milhões de adultos sofrem de um desses transtornos afetivos.
Mais de 1,5 milhão de pessoas incluem-se como invalidas nas listas da
SSI ou do SSDI, em decorrência de ansiedade, depressão ou transtorno bi-
polar, e, segundo os da Johns Hopkins, mais de 14 milhões dos indivíduos
com esses diagnóstica estão "severamente prejudicados" em sua capaci-
dade de funcionar em sociedade, E esse o espantoso resultado final produ-
zido por uma especialidade médica que expandiu drasticamente as frontei-
ras diagnósticas, nos últimos cinquenta anos, tem tratado seus pacientes
com fármacos que perturbam o funcionamento normal do cérebro.
Além disso, a epidemia continua a avançar. Nos 18 meses que levei
para fazer pesquisas e escrever este livro, a Administração da Seguridade
Social liberou seus relatórios de 2007 sobre os programas da SSI e do
SSDI, e os números foram os esperados: 401.255 crianças e adultos
abaixo de 65 anos foram acrescentados às listas da SSI e do SSDI cm
2007, por invalidez, psiquiátrica. Imagine um grande auditório que se en-
cha todos os dias com 250 crianças e 850 adultos recém- incapacitados
por uma doença mental, e você terá uma ideia visual do terrível tributo co-
brado por essa epidemia.
A Ascensão do TDAH
1 É pelo fato de ter uma ação tão breve que a cocaína vicia mais do que o metilfenidato, pois, assim
que ela deixa o cérebro, o viciado pode querer tornar a experimentar o “barato” que vem quando as
vias dopaminérgicas são levadas a um estado hiperativo pela primeira vez.
nitidamente dóceis em suas reações emocionais. Clinicamente, na totali-
dade dos casos, isso foi uma melhora do ponto de vista social”.13 A Rita-
lina, que a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA)
aprovou para uso infantil em 1961, mostrou ter um efeito moderador se-
melhante. Num estudo duplo-cego conduzido em 1978, o psicólogo Her-
bert Rie, da Universidade do Estado de Ohio, estudou 28 crianças “hipera-
tivas” durante três meses, havendo-se receitado metilfenidato para metade
delas. Eis o que escreveu:
As crianças que estavam em tratamento medicamentoso ativo, como se con-
firmou retrospectivamente, pareceram, nos momentos de avaliação, nitida-
mente mais impassíveis ou “chochas” em termos afetivos, sem a varie-
dade e a frequência de expressão emocional que são típicas da idade. Re-
agiram menos, exibiram pouca ou nenhuma iniciativa ou espontaneidade,
deram pouca indicação de aversão ou interesse, praticamente não de-
monstraram curiosidade, surpresa nem prazer, e pareceram desprovidas
de humor. Os comentários jocosos e as situações cômicas passaram des-
percebidos. Em suma, sob o efeito do tratamento medicamentoso ativo, as
crianças ficaram relativa, mas inconfundivelmente, sem afeto, sem humor
e apáticas."
Numerosos investigadores relataram observações similares. Sob o
efeito da Ritalina, as crianças exibiam “um aumento acentuado das brin-
cadeiras solitárias, relacionado com o medicamento, e uma redução cor-
respondente da iniciativa de interações sociais”, anunciou Russell Barkley,
um psicólogo da Faculdade de Medicina de Wisconsin, em 1978. Esse re-
médio, observou a psicóloga Nancy Fiedler, da Universidade Estadual de
Bowling Green, reduzia a “curiosidade [da criança] sobre o ambiente”. As
vezes a criança medicada “perde o brilho”, escreveu o dr. Till Davy, um pe-
diatra canadense, em 1989. As crianças tratadas com estimulantes, con-
cluiu uma equipe de psicólogos da Universidade da Califórnia em Los An-
geles (UCLA) em 1993, não raro se tornam “passivas, submissas” e “social-
mente retraídas”. Sob o efeito do medicamento, algumas “parecem zum-
bis”, assinalou o psicólogo James Swanson, diretor de um centro de TDAH
na Universidade da Califórnia em Irvine.19 Os estimulantes, explicaram
os editores do Oxford Textbook of Clinical Psychopharmacology and Drug
Therapy (“Manual de psicofarmacologia e terapia medicamentosa de Ox-
ford”) cerceiam a hiperatividade “reduzindo o número de respostas com-
portamentais”.
Todos esses relatórios contavam a mesma história. Com a Ritalina, o(a)
aluno(a) que antes tinha sido um incómodo na sala de aulas, remexendo-
se demais na carteira ou falando com colegas próximos enquanto o profes-
sor escrevia no quadro-negro, aquietava-se. Não se movimentava tanto e
não buscava tanto o contato social com seus pares. Quando recebia uma
tarefa como respondera problemas aritméticos, sabia concentrar-se inten-
samente nela. Charles Bradley tinha achado que essa mudança de com-
portamento era “uma melhora do ponto de vista social”. E é essa a pers-
pectiva que aparece nos testes de eficácia da Ritalina e outros remédios
para o TDAH. Os professores e outros observadores preenchem instru-
mentos de avaliação que veem como positiva a redução da movimentação
da criança e de seu contato com os outros, e, quando os resultados são ta-
belados, considera-se que de 70% a 90% das crianças “respondem bem” à
medicação para o TDAH. Esses fármacos, como escreveram investigadores
do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) em 1995, são altamente efi-
cazes para “reduzir de maneira drástica uma gama de sintomas nucleares
do TDAH, tais como as atividades irrelevantes para a tarefa (por exemplo,
tamborilar dos dedos, irrequietação, movimentos motores finos, [compor-
tamento] desvinculado da tarefa durante a observação direta) e a pertur-
bação da sala de aulas”. Especialistas cm TDAH do Hospital Geral de Mas-
sachusetts resumiram de maneira semelhante a literatura científica: “A li-
teratura existente documenta com clareza que os estimulantes diminuem
os comportamentos prototípicos do TDAH, inclusive a hiperatividade mo-
tora, a impulsividade e a falta de atenção”.
Entretanto, nada disso fala de um tratamento medicamentoso que be-
neficie os jovens. Os estimulantes funcionam bem para os professores,
mas será que ajudam as crianças? Nesse ponto, desde o começo os pes-
quisadores esbarraram numa muralha. “Acima de qualquer outra coisa”,
escreveu Esther Sleator, médica da Universidade de Illinois que perguntou
a 52 crianças o que achavam da Ritalina, “deparamos com uma antipatia
generalizada por tomar estimulantes entre as crianças hiperativas”. As cri-
anças medicadas com Ritalina, relatou cm 1990 a psicóloga Deborah Ja-
cobvitz, da Universidade do Texas, consideravam-se “menos felizes e [me-
nos] satisfeitas com elas mesmas, além de mais disfóricas”. Em matéria de
ajudar as crianças a fazer e preservar amizades, os estimulantes produ-
ziam “poucos efeitos positivos significativos e uma alta incidência de efei-
tos negativos”, disse Jacobvitz. Outros pesquisadores detalharam como a
Ritalina feria a autoestima das crianças, pois estas achavam que deviam
ser “más” ou “burras”, se tinham que tomar esse remédio. “A criança
passa a acreditar não na firmeza de seu cérebro e seu corpo, não em sua
própria capacidade crescente de aprender e de controlar seu comporta-
mento, mas nas ‘minhas pílulas mágicas, que fazem de mim um bom me-
nino’”, disse o psicólogo Alan Sroufe, da Universidade de Minnesota.
Tudo isso falava dos males causados, de uma medicação que deixava a
criança deprimida, solitária e carregada de um sentimento de inadequa-
ção, e, quando os pesquisadores foram examinar se ao menos a Ritalina
ajudava as crianças hiperativas a se saírem bem no plano acadêmico, a ti-
rarem boas notas e terem sucesso como estudantes, constataram que não
era esse o caso. Poder se concentrar intensamente numa prova de mate-
mática, como se revelou, não se traduzia em realizações acadêmicas a
longo prazo. Esse fármaco, explicou Sroufe cm 1973, melhora o desempe-
nho em “tarefas rotineiras repetitivas, que exigem atenção contínua”, mas
“o raciocínio, a resolução de problemas e a aprendizagem não parecem ser
[positivamente] afetados”. Cinco anos depois, Herbert Rie foi muito mais
negativo. Informou que a Ritalina não produzia benefício algum no ‘Voca-
bulário, na leitura, na ortografia ou na matemática” dos estudantes, além
de prejudicar sua capacidade de resolver problemas. “As reações das cri-
anças sugerem fortemente uma redução do tipo de engajamento que pare-
ceria crucial para a aprendizagem.” Naquele mesmo ano, Russell Barkley,
da Faculdade de Medicina de Wisconsin, fez um levantamento da litera-
tura científica pertinente e concluiu: “o efeito principal dos estimulantes
parece ser a melhora no manejo das crianças na sala de aulas, e não no
desempenho acadêmico”. Em seguida, foi a vez de James Swanson fazer
sua avaliação. O fato de as drogas frequentemente deixarem as crianças
“isoladas, retraídas e excessivamente concentradas" podia “prejudicar
mais a aprendizagem do que aprimorá-la”, disse ele. Carol Whalen, psicó-
loga da Universidade da Califórnia em Irvine, assinalou cm 1997 que “tem
sido especialmente preocupante a sugestão de que os efeitos insalubres
[da Ritalina] ocorrem no âmbito de funções cognitivas complexas, de or-
dem superior, como a resolução flexível de problemas ou o pensamento di-
vergente”. Por último, em 2002, investigadores canadenses conduziram
uma meta-análise da literatura, revendo 14 estudos que tinham envolvido
1.379 crianças e adolescentes e durado pelo menos três meses, e determi-
naram que houve “poucos indícios de melhora no desempenho acadê-
mico”.
Houve mais um desapontamento com a Ritalina. Quando os pesquisa-
dores averiguaram se os estimulantes melhoravam o comportamento da
criança a longo prazo, não conseguiram encontrar nenhum benefício.
Quando a criança parava de tomar a Ritalina, era comum eclodirem os
comportamentos ligados ao TDAH, ficando “a excitabilidade, a impulsivi-
dade ou a tagarelice” piores do que nunca. “Muitas vezes, e desanimador
observar a rapidez com que o comportamento se deteriora quando a medi-
cação é suspensa”, confessou Whalen. E também não houve provas de
que manter o uso do estimulante levasse a uma melhora permanente da
conduta. “Os professores e os pais não devem esperar melhorar a longo
prazo no desempenho acadêmico nem redução do comportamento antisso-
cial”, escreveu Swanson em 1993. A edição de 1994 do Manual de Psiquia-
tria da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA) admitiu a mesma
conclusão essencial: “Os estimulantes não produzem melhoras duradou-
ras na agressividade, nos distúrbios da conduta, na criminalidade, nas
conquistas educacionais, no funcionamento no emprego, nas relações
conjugais ou na adaptação a longo prazo". Trinta anos de pesquisas não
conseguiram fornecer nenhuma boa comprovação de que os estimulantes
ajudassem as crianças “hiperativas” a se desenvolver, e, no começo da dé-
cada de 1990, uma equipe de eminentes especialistas cm TDAH, escolhida
para chefiar um estudo de longo prazo do NIMH, conhecido como Estudo
Plurilocalizado e Multimodal do Tratamento de Crianças com TDAH, reco-
nheceu que era essa a situação. “A eficácia a longo prazo da medicação es-
timulante não foi demonstrada em nenhum campo do funcionamento in-
fantil”, escreveu.
Calculando o Prejuízo
Resultados Deprimentes
1 Num laudo de 2008 publicado pelo Colégio Europeu de Neuropsicofarmacologia, investigadores es-
panhóis observaram que “as crianças e adolescentes parecem correr um risco maior que os adul-
tos de sofrer efeitos adversos, como sintomas extrapiramidais [perturbações dos movimentos], ele-
vação da prolactina [altos níveis hormonais], sedação, aumento de peso e efeitos metabólicos, ao
tomarem antipsicóticos”. Os pesquisadores também relataram que esses riscos podem ser maiores
nas meninas que nos meninos.
talvez esteja hiperativa ou deprimida, é tratada com uma medicação que
desencadeia um surto maníaco, ou algum grau de instabilidade afetiva, e
depois é medicada com um coquetel de fármacos que leva a uma vida de
invalidez.
Os Números da Invalidez
Ainda não existem bons estudos sobre a percentagem dos pacientes bi-
polar« “de instauração precoce” que, ao atingir a idade adulta, acabam nas
listas de inválidos da Renda Complementar da Previdência (SSI) e do Se-
guro da Previdência Social por Invalidez (SSDI). No entanto, o salto espan-
toso no número de crianças “doentes mentais graves” que recebem auxílio
ou pensão diz muito sobre a devastação que vem sendo criada. Havia
16.200 jovens abaixo de 18 anos considerados incapacitados por proble-
mas psiquiátricos no rol da SSI em 1987, e eles abrangiam menos de 6%
do número total de crianças inválidas. Vinte anos depois, havia 561.569
crianças e jovens inválidos por doença mental nas listas da SSI, e eles cor-
respondiam a 50% do total. Essa epidemia vem atingindo até crianças pré-
escolares. A prescrição de psicotrópicos a crianças de 2 ou 3 anos come-
çou a se tornar mais comum há cerca de dez anos e, dito e feito, o número
de doentes mentais graves abaixo de 6 anos que recebem auxílio da SSI
triplicou desde então, subindo de 22.453 em 2000 para 65.928 em 2OO7.
A epidemia atinge as crianças e adolescentes dos Estados Unidos. Pen-
sionistas da SSI abaixo de 18 anos incapacitados por doença mental,
1987-2007.
Perdida em Seattle
Estive com a jovem que chamarei de Jasmine apenas por um curto pe-
ríodo, e mesmo esse breve encontro a deixou visivelmente agitada.1 Nas-
cida em 1988, Jasmine reside hoje numa instituição residencial meio dila-
pidada, destinada a doentes mentais graves, num subúrbio de Seattle, e,
já ao nos aproximarmos da casa, a mãe dela e eu pudemos vê-la por uma
janela, andando de um lado para outro. Quando entramos, Jasmine me
olhou de relance e se retraiu depressa, encolhendo-se junto à parede,
igualzinho a um animal selvagem assustado. Usava calças jeans e uma ja-
queta azul-claro, e também manteve distância da mãe – agora Jasmine
não deixa ninguém abraçá-la. Fomos cm dois carros a uma lanchonete
Dairy Qucen das imediações, pois Jasmine não se disporia a ir se cu fi-
casse no mesmo carro que ela; ao chegarmos lá, a moça permaneceu no
banco de trás, com os olhos fixos num ponto adiante e balançando para
frente e para trás. “Se algum dia ela voltar a falar”, disse sua mãe, em voz
1
Como “Jasmine” não pôde dar consentimento para a utilização de seu nome, sua mãe e eu concordamos
em manter sua identidade em sigilo. Também não fomeci o nome da mãe, pela mesma razão.
baixa, “terá uma história e tanto para contar.”
As fotografias de Jasmine quando menina são um bom lugar para ini-
ciarmos sua história. Sua mãe me mostrara essas fotos mais cedo, e todas
falavam de uma infância feliz. Numa delas, Jasmine está alegremente enfi-
leirada com as duas irmãs diante de um brinquedo da Disneylândia; nou-
tra, exibe um sorriso banguela; numa terceira, mostra a língua, com ar
brincalhão. “Ela era muito inteligente e engraçada, era mesmo a luz da
nossa vida”, recordou a mãe. “Ficava brincando do lado de fora, andando
de bicicleta pela rua, para baixo e para cima, como qualquer criança tí-
pica. Chegava até a ir às casas dos vizinhos e lhes dizer que, por cin-
quenta centavos, cantaria ‘Row, row, row your boat’. Era um tremendo di-
abrete - dá para ver por estas fotos como era valente.”
Tudo correu bem na vida de Jasmine até o verão posterior ao quinto
ano. Como ainda urinava ocasionalmente na cama, ela ficou nervosa com
a ideia de ir para uma colônia de férias, e por isso um médico lhe receitou
uma “pílula do xixi na cama”, que vinha a ser um antidepressivo tricíclico.
Em pouquíssimo tempo, Jasmine ficou agitada e hostil e, certa tarde,
disse à mãe: “Estou com uma porção de ideias horríveis. Tenho a sensa-
ção de que vou matar alguém”.
Olhando para trás, é fácil perceber o que estava acontecendo com Jas-
mine. Sua agitação extrema era sinal de que ela estava sofrendo de acati-
sia, um efeito colateral dos antidepressivos que se associa muito estreita-
mente ao suicídio e à violência. “Mas ninguém nunca perguntou se o re-
médio podia ter desencadeado as ideias homicidas”, disse a mãe. “Eu só
vim a saber que a imipramina podia fazer isso anos depois, quando entrei
na internet.” Em vez disso, Jasmine foi encaminhada a um psiquiatra, que
a diagnosticou como portadora de transtorno obsessivo- compulsivo e
transtorno bipolar. Receitou-lhe um coquetel de medicamentos, composto
por Zoloft, Luvox e Zyprexa, e, ao ingressar no segundo ciclo naquele ou-
tono, ela era uma pessoa mudada.
“Foi terrível”, lembrou sua mãe. “Ela engordou mais de 45 quilos com o
Zyprexa, e é miúda, tem 1,60 m de altura. A garotada que a conhecia do
curso primário dizia: ‘O que aconteceu com você?’ Os meninos começaram
a chamá-la de ‘a fera’. Ela acabou sem nenhum amigo, e chorava sem pa-
rar, e pedia para almoçar na sala do diretor, para ficar longe da cantina.”
Enquanto isso, os acessos de raiva de Jasmine continuaram a acontecer
em casa, e o psiquiatra aumentou tanto a dose do Zyprexa que os olhos da
menina reviravam e ficavam presos no alto. “Foi como se ela estivesse
sendo torturada. Ela se deitava na cama e gritava: ‘Por que isso está acon-
tecendo comigo?’”
Depois que o Zoloft foi finalmente retirado, Jasmine acabou por se es-
tabilizar bastante bem com uma combinação de Zyprexa e Depakote. Ape-
sar do seu raro convívio social com os colegas de classe, ela se saiu bem
em termos acadêmicos e, nos primeiros anos do curso médio, era habitual
tirar notas 10 e ter certo prestígio por suas fotos e seu trabalho artístico.
Jasmine também mergulhou no trabalho voluntário, ajudando numa soci-
edade humanitária, num centro para idosos e num banco de alimentos, e
a escola conferiu-lhe o prêmio do “herói anônimo" por esse trabalho. Ela
havia passado a aceitar a ideia de ser bipolar, e chegou até a fazer planos
para escrever um livro que ajudasse outros adolescentes a compreende-
rem a doença. “Ela me dizia: ‘Mãe, quando eu me formar no curso médio,
vou ficar de pé e perguntar: Alguém aí já se perguntou o que aconteceu
comigo?' Ela era muito valente.”
No final do penúltimo ano, Jasmine leu na internet que o Zyprexa po-
dia causar aumento de peso, hipoglicemia e diabetes. Sofria dos dois pri-
meiros problemas, mas, quando perguntou ao psiquiatra quais eram os
efeitos colaterais do Zyprexa. ele descartou suas preocupações. Enfure-
cida, Jasmine o “despediu” e, em junho de 2003, largou os dois medica-
mentos, suspendendo-os de forma bastante abrupta. Dez dias depois de
tomar a última dose de Zyprexa, ela estava numa excursão com a mãe
quando, subitamente, ficou pálida como cera, com o suor brotando acima
do lábio. “Isto está ruim, mesmo”, murmurou. “Mãe, lute por mim.”
Desde então, Jasmine ficou mais ou menos perdida para o mundo.
Quando as duas chegaram ao hospital, naquele dia, Jasmine gritava e pu-
xava os cabelos. Havia mergulhado fundo num surto psicótico por absti-
nência, e os médicos começaram a lhe dar uma droga potente após outra,
na tentativa de fazer aquilo se abrandar. “Eles lhe receitaram 11 remédios
em 13 dias, o que, basicamente, fritou o cérebro dela”, contou a mãe. Jas-
mine começou a entrar e sair de hospitais e, toda vez que recebia alta e
voltava para casa, tudo acabava mal. Às vezes, ela ficava tão psicótica que
ligava para a polícia, para dizer que estava sendo sequestrada ou que ha-
via homens construindo bombas no seu jardim. Em diversas ocasiões, “fu-
giu” de casa e saiu correndo pelas ruas, aos gritos. Noutra ocasião, deu
socos e pontapés na mãe e, mais tarde, rasgou uma lata de refrigerante e
cortou o pulso. “Essa é a pessoa mais psicótica que já vimos na história
deste pronto-socorro”, disse equipe do hospital à mãe de Jasmine, depois
de um desses surtos.
No fim de 2006, um médico passou Jasmine para um único antipsicó-
tico o Clozaril, e isso levou a um breve alívio. Embora raras vezes falasse, a
adolescente acalmou-se e entrou numa escola para crianças deficientes. A
noite, a mãe passava horas lendo para ela, procurando alimentar a cente-
lha de sanidade que agora via na filha. “Também notei que, quando eu
cantava para ela, como se fosse para uma paciente com Alzheimer, ela
cantava de volta, comunicando-se por meio da música. Mas, no início de
2007, Jasmine sofreu outro surto psicótico grave, que terminou com ela
aos gritos no meio de uma rua movimentada. “Não há esperança para ela”,
disseram os médicos, e a jovem logo foi colocada na instituição residencial
onde hoje passa os dias, evitando o contato com outras pessoas e, salvo
por uma ou outra palavra, de vez em quando, muda.
“Os médicos me disseram que ela sempre seria esquizofrênica”, disse-
me a mãe. “Mas nenhum médico jamais perguntou por esta história, por
como era ela antes de lhe darem remédios. E sabe o que é muito difícil de
aceitar? Nós fomos procurar ajuda, naquele verão em que ela estava com
11 anos, por um problema insignificante, que não tinha nada a ver com a
psiquiatria. Na minha cabeça, ainda a escuto rindo, do jeito que ela era
naquela época. Mas a vida dela foi roubada. Nós a perdemos, apesar de
seu corpo continuar aqui. A cada minuto que passa, eu vejo o que perdi.”
Ambivalente em Syracuse
A última série do curso médio foi uma boa época para Andrew Stevens.
Diagnosticado com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade
(TDAH) na primeira série e medicado desde então, ele havia passado por
altos e baixos na escola, até chegar ao último ano. Mas aí, fizera um curso
de mecânica de automóveis e, pimba, tinha se sobressaído como nunca
até então. “Fiquei numa boa”, explicou ele. “Gosto disso. Nem parece es-
cola.”
Na tarde em que nos encontramos, Andrew, que é de estrutura fran-
zina e talvez tenha 1,67 m de altura, levava bem o jeito do esqueitista que
é: cabelo à escovinha, brinco preto, camiseta, short e tênis salpicados por
um caleidoscópio de cores. Eu havia conhecido Ellen, sua mãe, um ano
antes, numa conferência em Albany, no estado de Nova York, e ela havia
expressado um sentimento que, a meu ver, resumia muito bem a faceta
moral da medicação de jovens na nossa sociedade; “0 Andrew tem sido
uma cobaia para o campo da medicina”.
Desde muito cedo, ela e o marido haviam reconhecido que Andrew era
diferente de seus outros dois filhos. Tinha dificuldades de fala, seu com-
portamento parecia excêntrico e ele apresentava “problemas de raiva”. No
primeiro ano da escola, ficava tão tenso que comumente precisava ir para
o corredor e pular numa pequena cama elástica, para recuperar o foco.
“Eu me lembro de ter chorado quando o diagnosticaram com TDAH, e não
foi por estarem rotulando meu filho”, contou a mãe. “Foi tipo ‘Graças a
Deus, sabemos que há uma coisa real acontecendo com ele, e eles sabem
como ajudá-lo. Não é imaginação nossa’.”
Embora Ellen e o marido se inquietassem por dar Ritalina ao filho, os
médicos e as autoridades escolares a levaram a crer que ela seria “relapsa
como mãe” se não lhe desse a medicação. E, no princípio, “pareceu um
milagre”, contou ela. Os medos de Andrew se atenuaram, ele aprendeu a
amarrar os sapatos e os professores elogiaram a melhora do seu compor-
tamento. Após alguns meses, porém, o remédio já não parecia funcionar
tão bem e, toda vez que sua ação passava, havia um “efeito rebote”. An-
drew “se portava como um selvagem fora de controle”. Um médico aumen-
tou a dosagem, só que aí o menino passou a parecer um “zumbi”, e seu
senso de humor só reemergia quando passavam os efeitos do remédio.
Mais adiante, Andrew precisou tomar clonidina para adormecer à noite. O
tratamento medicamentoso não parecia estar realmente ajudando e. por
isso, a Ritalina deu lugar a outros estimulantes, entre eles Adderall, Con-
certa e dextroanfetamina. “Eram sempre mais remédios”, disse sua mãe.
Enquanto isso, o sucesso do garoto na sala de aulas oscilava de acordo
com o talento de cada professor. Na quarta e quinta séries, Andrew teve
professores que sabiam trabalhar com ele e se saiu bastante bem. Mas o
professor da sexta série se impacientava com ele, e a autoestima do me-
nino afundou de tal maneira que a mãe resolveu lhe dar aulas em casa no
ano seguinte. Os temores de Andrew pioraram durante esse período, e era
comum ele ficar “hiperconcentrado”, sempre com medo de que a mãe mor-
resse. “Essa tem sido a parte mais frustrante. Nunca sei o que é o meu fi-
lho e o que é o remédio”, disse Ellen.
Hoje, tamanha é a ambivalência dela em relação aos remédios que ela
gostaria de poder voltar atrás no tempo e tentar um caminho diferente. “0
meu Andrew não é um círculo nem um quadrado, não é nem mesmo um
triângulo”, explicou. “Ele é um quadrilátero trapezoide e nunca vai se en-
caixar nesses outros moldes. E eu acho, sim, que, se nunca o tivéssemos
medicado, ele teria aprendido muito mais mecanismos de enfrentamento,
porque teria tido que aprender. E deveríamos poder ajudar crianças como
o Andrew, sem fazer com que elas se sintam tão diferentes, sem tirar o seu
apetite e sem ter medo dos efeitos dos remédios a longo prazo - todas es-
sas coisas com que eu fico aqui me preocupando.”
Quando era menor, Andrew podia fazer “intervalos da medicação” de
ve2 em quando, e, quando lhe perguntei como era isso, ele recordou como
era bom adormecer sem ter que tomar clonidina. Ficar sem os remédios,
disse, “parece menos forçado, mais livre”. Apesar disso, falou, ele está
prestes a se formar n0 curso médio e terminou numa boa colocação. Tem
namorada, gosta de andar de esqueite e tocar violão e, graças à aula de
mecânica de automóveis, agora tem planos de carreira, já que um dia pre-
tende abrir sua própria oficina. “É difícil lembrar um tempo em que pode-
ria ter sido diferente”, disse ele, dando de ombros ao pensar na sua vida
com os medicamentos. “Não acho que houvesse uma escolha certa ou er-
rada, simplesmente foi assim que aconteceu.”
1 Referência a um experimento médico realizado entre 1932 e 1972 na cidade de Tuskegee, no Ala-
bama, pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, usando centenas de cobaias humanas
para observar a evolução natural da sífilis não tratada, sem que os sujeitos estudados dessem seu
consentimento. A denúncia do estudo à imprensa demonstrou a completa falta de ética do traba-
lho e gerou processos de indenização e pedidos formais de desculpas pelo governo norte-ameri-
cano. (N.T.)
outro quando criança e acabou indo parar na casa do avô, em White Pla-
ins. Aos 7 anos, foi diagnosticado como portador de TDAH e medicado com
Ritalina. Ali pela sétima ou oitava série, começou a ficar rebelde e se me-
teu em algumas brigas, o que levou a um diagnóstico de transtorno bipo-
lar e à prescrição ele Depakote e Rispcrdal. Até aquele momento. Jona-
than tinha sido um adolescente ativo, que passava a maior parte das ho-
ras de folga na quadra de basquete, mas começou então a passar quase
todo o tempo "isolado no quarto”, nas palavras de Clayborn. Passou a re-
ceber pensão da SS1 por invalidez antes de completar 18 anos, ao que pa-
rece com um “grave comprometimento" causado pelo transtorno bipolar, e
continua na SSI até hoje. “Eu fico dopado*, explicou Jonathan, ainda com
as pálpebras meio pesadas depois do cochilo vespertino. “Não gosto dos
remédios. Eles me deixam com sono e é como se eu fosse viciado em dro-
gas.”
Diante disso, Clayborn levantou-se da cadeira, mais agitado que
nunca. “Isso está acontecendo com uma porção de irmãos hoje em dia, e.
depois que eles entram na medicação, esta os rouba de si mesmos. Os ca-
ras perdem toda a força de vontade para lutar, para mudar, para fazer de-
les alguma coisa e ter sucesso. Sucumbem às algemas químicas dos filhos
da puta dos remédios. E uma escravidão médica, é isso que é.”
Não muito depois dessa entrevista, compareci a uma reunião do Con-
selho Consultivo Estadual Juvenil, no Hospital Estadual de Westborough.
no Massachusetts. O conselho é formado por adultos jovens que ingressa-
ram no sistema de saúde mental antes de chegarem aos 18 anos e fornece
orientação à Secretaria de Saúde Mental de Massachusetts sobre o que ela
pode fazer para ajudar os adolescentes com problemas psiquiátricos a
prosperar como adultos. Em 2008, o coordenador do conselho era Mathew
McWade, que fora diagnosticado pela primeira vez quando estava na sé-
tima série e que foi quem possibilitou minha visita.
Na reunião, circulei em volta da mesa e fui perguntando a todos como
haviam entrado no sistema. Achei que ouviria histórias de garotos que pri-
meiro foram medicados com um estimulante ou um antidepressivo e, em
seguida, passados para um diagnóstico de transtorno bipolar, e, apesar de
haver alguns casos desse tipo, vários homens desse grupo racialmente
misto falaram de uma outra rota social para a invalidez psiquiátrica.
Quando tinha 16 anos, Cal Jones1 entrou numa discussão violenta,
1 Cal Jones é um pseudônimo. A equipe hospitalar pediu que eu não revelasse os nomes de
que acabou por levá-lo a ser atendido no pronto-socorro do Hospital Infan-
til de Boston. Lá, ele disse ao pessoal da emergência que “queria matar o
outro garoto”, sentimento que lhe rendeu uma ida a uma instituição psi-
quiátrica, onde recebeu o diagnóstico de doente bipolar. “Não fizeram ne-
nhum exame”, contou-me. “Só me fizeram uma porção de perguntas e me
mandaram começar a tomar uma porção de remédios." Desde então, Cal
esteve internado 25 vezes. Não gosta dos antipsicóticos, de modo que para
regularmente de tomá-los ao receber alta, preferindo fumar maconha, e
isso leva inevitavelmente a problemas. “Vou preso e me mandam de volta
para o hospital (psiquiátrico), e pra mim, tudo bem, é só um negócio.
Quanto mais pacientes eles têm, mais os médicos ganham. Mas eu detesto
este lugar. Não consigo suportá-lo. Eu me sinto um escravo num campo
de concentração nazista.’
Pelo menos outros três participantes da reunião contaram histórias
parecidas. Um rapaz disse que, pouco depois de se formar no curso médio,
em 2002, tinha se aborrecido com um assunto de família e quebrado as
janelas do seu carro. “Eu estava vivendo uma fase ruim. Queriam me ro-
tular de doente mental. Não sei se eu sou isso.” Outro explicou que, seis
meses antes, como havia cometido um pequeno delito, um juiz lhe deu a
opção de ir para o presídio ou para o Hospital Estadual de Westborough.
“E mais seguro aqui do que na prisão”, disse ele, explicando sua escolha.
Um terceiro membro do conselho disse ter sido diagnosticado com trans-
torno bipolar aos 13 anos, “depois que matei alguém”.
As histórias desses rapazes atestaram uma outra via de entrada dos
jovens pobres no sistema de saúde mental. A delinquência e o crime po-
dem levá-los a ser diagnosticados, medicados e encaminhados para uma
instituição manicomial. Embora muitos rapazes do conselho usassem co-
quetéis pesados de medicamentos, tendo os movimentos e a fala arrasta-
dos, o que falou em ter matado alguém estava vivendo em sociedade, sem
tomar nenhuma medicação. “Se o Estado quisesse mesmo nos ajudar, de-
via investir dinheiro num programa de empregos”, disse.
De volta a Syracuse
pacientes internados.
primavera de 2008. Parentes, amigos, terapeutas e médicos tinham dado a
essas duas famílias conselhos conflitantes sobre elas deverem ou não me-
dicar seus filhos e, diante dessa orientação tão desconcertante, as duas
haviam chegado a decisões opostas.
Jessica
Por uma conversa telefônica anterior, eu sabia que Jessica Smith vi-
nha passando bem e, quando cheguei à sua casa, ela veio saltitando me
receber â porta, como havia feito um ano antes. Quando ela fora diagnosti-
cada com transtorno bipolar. aos 4 anos de idade, os pais tinham rejeitado
as recomendações da equipe do Centro de Ciências da Saúde da Universi-
dade Estadual de Nova York de que ela passasse a tomar um coquetel de
três medicamentos, que incluía um antipsicótico. Hoje, eles têm uma me-
nina de 8 anos que faz lembrar o encantador personagem da peça teatral
Really Rosie, de Maurice Sendak. Jessica, que é a típica menina extrover-
tida, estrelou recentemente um musical na escola. “Ela adora isso", disse o
pai, e apontou o comportamento da filha na noite de estreia como prova
do quanto ela melhorou, em termos do controle de suas emoções. “Ela fa-
zia o papel de um personagem que era um crânio, e uma outra menina da
peça pegou a cadeira dela, o que não era para ter feito. Vimos que a Jes-
sica ficou aborrecida. Mas deixou para lá. Isso mostrou que ela está me-
lhorando em matéria de distensionar as situações.’’
Embora Jessica já não se trate com um terapeuta, “ainda há umas ba-
talhas", disse sua mãe. “Ela ainda tem dificuldade com grupos, com brin-
car com mais de uma criança de cada vez. E ainda solta os cachorros
quando alguém a magoa. Ela quer mandar, e sabe ser chamativa e baru-
lhenta. Mas os chutes e mordidas acabaram.”
O pai acrescentou: “Ela tem uma personalidade forte, mas isso é pare-
cido com outras pessoas da minha família. Eu era igualzinho. Era muito
barulhento. Não conseguia parar quieto. Mas virei uma boa pessoa.”
Nathan
Nathan Oates tinha passado por 12 meses mais atrapalhados. Eu ha-
via telefonado para sua mãe várias vezes durante o ano, e, no verão de
2008, Nathan- que recebera o diagnóstico de TDAH aos 4 anos e, posteri-
ormente, o de portador de transtorno bipolar - estava indo bem. Tomava
Concerta para o TDAH e Risperdal para o transtorno bipolar e, nesse ve-
rão, havia descoberto que “adorava pistas de atletismo”, segundo me con-
tara sua mãe. “Agora estão ensinando o Nathan a saltar obstáculos e a
fazer salto em distância.” Ainda mais importante, suas oscilações de hu-
mor tinham se tornado menos agudas, a hostilidade para com a irmã ha-
via diminuído e ele também vinha dormindo melhor. “Ele disse que quer
começar a ser mais responsável”, contara sua mãe. “Levanta de manhã e
faz a cama, e agora está num ponto cm que toma banho sozinho. Está co-
meçando a fazer as coisas sem que cu o persiga. Parece estar meio que
amadurecendo sozinho.”
Era uma narrativa animadora, mas esse período relativamente tran-
quilo havia acabado quando da volta de Nathan à escola, no outono. Ele
ficara muito ansioso e mal-humorado e tinha começado a resistir a ir às
aulas. O assistente do médico que supervisionava seu caso aumentara a
dose do Risperdal, na esperança de que isso aplacasse a ansiedade do me-
nino. “Estão tentando descobrir se a ansiedade dele se relaciona com o
transtorno bipolar, ou se é um distúrbio separado", explicara sua mãe,
numa conversa telefônica no início de 2009. “O TDAH está bem e sob con-
trole. Se isso não funcionar, vão lhe dar uma medicação ansiolítica. Eles
querem se certificar de que ele não fique letárgico demais com a dose mais
alta do Risperdal.”
Quando voltei a Syracuse na primavera, os pais do Nathan estavam
beirando o desespero, diante das dificuldades que ele vinha experimen-
tando. Sua ansiedade não havia diminuído e, para piorar as coisas, ele ti-
nha perdido o controle urinário. Dias antes, a mãe havia testemunhado,
de forma desoladora, como isso vinha afetando seu filho. “Fui buscá-lo na
escola e ele estava sentado no meio da sala, sozinho na sua carteira. Era
quase como se fosse invisível para todo mundo. Os professores juram que
ele tem amigos, mas ele nunca fala de ninguém. Só há um colega de
turma que não implica com ele.” Esse isolamento seguiu Nathan em casa,
acrescentou a mãe. “Ele fica o tempo todo no quarto.”
O pai continuava esperançoso de que outro “ajuste da medicação” aju-
dasse seu filho. Mas, afora isso, ambos os pais confessaram estar sem sa-
ber o que fazer. O psicólogo que orientava Nathan andava ficando sem
ideias; a escola não contribuía muito para aliviar a intensa ansiedade do
menino; e os familiares e amigos do casal não reconheciam como tudo isso
era difícil. “Eu me sinto muito sozinha”, disse a mãe. “E uma droga. E
cansativo. E exaustivo. Eu choro por ele. Simplesmente não sei mais o que
fazer. Não sei como ajudá-lo.”
Antes que eu fosse embora, Nathan desceu do quarto e me mostrou, ti-
midamente, alguns de seus pertences favoritos, inclusive um capacete de
Guena nas Estrelas. Contou-me que Zachariah era seu melhor amigo (o
único colega de turma que não implicava com ele) e, em seguida, me ensi-
nou a dobrar um papel para fazer um avião, que soltou voando pela sala.
“Gosto de fazer filmes" com um gravador de vídeo, contou-me, e acabei lhe
fazendo algumas perguntas sobre uns dois assuntos que ele adora. “O Ti-
tanic afundou em l912, Nathan me informou e, em seguida, identificou or-
gulhosamente vários ossos do corpo humano - sente-se fascinado por de-
senhos de esqueletos. “Todos os professores o adoram", disse sua mãe, e,
naquele momento, foi muito fácil entender por que.
PARTE IV.
EXPLICAÇÃO DE UMA ILUSÃO
13.
A ASCENSÃO DE UMA IDEOLOGIA
1 O Milo da Doença Mental:fundamentos de uma teoria da conduta pessoal, trad. Irley Franco e Carlos Ro-
1 homas Szasz,
berto Oliveira. São Paulo: Círculo do Livro, c. 1982. (N.T.)
grito primal, os retiros em Esalen e um sem-número de outras terapias “al-
ternativas”, (¡das como úteis para curar a alma ferida. Em parte, como re-
sultado dessa concorrência, a renda anual média de um psiquiatra norte-
americano, no fim dos anos 1970, era de apenas 70.600 dólares, o que,
embora fosse um bom salário na época, ainda punha a psiquiatria perto
da base da classe médica. “Profissionais não psiquiátricos de saúde men-
tal estão se apossando de alguns, ou até de todos os domínios de tarefas
da psiquiatria”, escreveu o psiquiatra David Adler, da Universidade Tufts.
Havia razão, afirmou ele, para uma preocupação com a “morte da psiquia-
tria”.
As divisões internas também eram profundas. Embora a classe se hou-
vesse voltado para a psiquiatria biológica desde a chegada do Thorazine,
com a maioria dos psiquiatras ansiando por falar bem dos medicamentos,
os freudianos, que dominavam muitas faculdades de medicina nos anos
1950, nunca haviam entrado completamente nessa onda. Apesar de acha-
rem que os remédios tinham alguma utilidade, eles ainda concebiam a
maioria dos distúrbios como de natureza psicológica. Assim, durante a dé-
cada de 1970, houve uma profunda cisão filosófica entre os freudianos e
os que abraçavam o “modelo médico” dos transtornos psiquiátricos. Além
disso, havia uma terceira facção no campo, composta por “psiquiatras so-
ciais”. Esse grupo achava que a psicose e as angústias afetivas provinham,
com frequência, do conflito do indivíduo com seu meio. Se assim fosse, al-
terar esse meio, ou criar um novo ambiente fornecedor de apoio-como fi-
zera Loren Mosher com seu Projeto Soteria -, seria uma boa maneira de
ajudar a pessoa a se curar. Como os freudianos, os psiquiatras sociais não
viam os fármacos como a peça principal do tratamento, e sim como agen-
tes que ora eram úteis, ora não. Com essas três abordagens em conflito, o
campo estava sofrendo uma “crise de identidade”, no dizer de Sabshin.
No fim dos anos 1970, os dirigentes da APA falavam regularmente de
como seu campo estava numa luta pela “sobrevivência”. Na década de
1950, a psiquiatria havia se tornado a especialidade que crescia mais de-
pressa na medicina, porém, na de 1970, a percentagem de formandos da
faculdade de medicina que optavam por ela caiu de 11% para menos de
4%. Esse desinteresse pela área, afirmou o New York Times numa reporta-
gem intitulada “Os anos ansiosos da psiquiatria”, era “visto como uma
acusação particularmente dolorosa”.
Evitando o Óbvio
1
No original, Insane Liberation Front e NetWork Against Psychiatric Assault. (N.T.)
2 A Lei de Substâncias Controladas, aprovada pelo Congresso norte-americano em 1970, tem cinco
categorias ou classes de drogas lícitas e ilícitas, separadas conforme suas diversas características
químicas e seu potencial gerador de vício. Dois órgãos federais, o Departamento de Repressão às
Drogas (DEA) e a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA), determinam a inclu-
são e/ou exclusão das substâncias nessas categorias. Ocasionalmente, ela também pode ser feita
pelo Congresso. (N.T.)
evitando essa especialidade era o fato de seus tratamentos serem percebi-
dos como “de baixa eficácia”.
Esse era um assunto de que a psiquiatria não gostava de falar e que
não gostava de reconhecer. Ao mesmo tempo, no entanto, todos enten-
diam o que dava aos psiquiatras uma vantagem competitiva no mercado
terapêutico. Arthur Platt, um psiquiatra de Nova Jersey, estava num en-
contro profissional, no fim dos anos 1970, quando o orador que fez o dis-
curso de abertura explicitou tudo: “Ele disse: ‘O que vai nos salvar é que
somos médicos’”, recordou Platt. Eles podiam dar receitas, o que não era
permitido aos psicólogos e assistentes sociais, e esse era um cenário eco-
nômico que apresentava aos profissionais da área uma solução óbvia. Se a
imagem dos psicotrópicos pudesse ser reabilitada, a psiquiatria prospera-
ria.
Os Loucos da Psiquiatria
Uma vez publicado o DSM-III, a APA tratou de vender seu “modelo mé-
dico” ao público. Embora as organizações médicas profissionais sempre
houvessem procurado promover os interesses econômicos de seus
membros, essa foi a primeira vez que uma organização profissional adotou
tão completamente as práticas de mercado conhecidas por qualquer asso-
ciação comercial. Em 1981, a APA criou uma “divisão de publicações e
marketing”, para “aprofundar a identificação medicados psiquiatras”, e,
em pouquíssimo tempo, transformou-se numa máquina comercial muito
eficiente.33 “E tarefa da APA proteger o poder de renda dos psiquiatras”,
disse o vice-presidente da Sociedade, Paul Fink, em 1986.
Como primeiro passo, a APA criou sua própria editora, em 1981, na
expectativa de que ela levasse “os melhores talentos e os conhecimentos
atuais da psiquiatria ao público leitor”. A editora logo passou a publicar
mais de trinta livros por ano e Sabshin teve o prazer de assinalar, em
1983, que os livros “proporcionarão muita educação popular positiva so-
bre a profissão”. A APA também criou comissões para examinar os manu-
ais que publicava, decidida a se certificar de que os autores permaneces-
sem ligados à mensagem. Aliás, em 1986, ao preparar a publicação de
Tratamento de Transtornos Psiquiátricos, Roger Peele, uma das autorida-
des eleitas da organização, voltou a se preocupar com essa questão.
“Como organizar 32.000 membros em defesa de seus direitos?”, indagou.
“Quem deve ser autorizado a se pronunciar sobre a questão do tratamento
das doenças psiquiátricas: somente os pesquisadores? Somente a elite
acadêmica? (...) Apenas os membros indicados por presidentes da APA?”
Desde muito cedo, a APA percebeu que seria valioso desenvolver um
rol nacional de “especialistas” capazes de promover a história do modelo
médico junto aos meios de comunicação. Criou um “instituto de relações
públicas” para supervisionar esse esforço, que envolvia o treinamento dos
membros “em técnicas para lidar com o rádio e a televisão”. Apenas em
1985, a APA conduziu quatro seminários sobre “Como sobreviver a uma
entrevista na televisão”.38 Entrementes, cada filial distrital do país identi-
ficou “representantes de assuntos públicos” aptos a serem chamados a se
pronunciar diante da imprensa. “Temos agora uma rede experiente de lí-
deres treinados, aptos a lidar de modo eficiente com todos os tipos de mí-
dia”, afirmou Sabshin.
Como qualquer organização comercial que vende um produto, a APA
cortejava a imprensa com regularidade e exultava ao receber coberturas
positivas. Em dezembro de 1980, realizou uma conferência de imprensa
de um dia inteiro sobre os “novos avanços da psiquiatria”, à qual “compa-
receram representantes de alguns dos jornais mais prestigiados e de maior
circulação do país”, vangloriou- se Sabshin.40 Em seguida, pôs “inserções
de utilidade pública” na televisão, para contar sua história, num esforço
que incluiu o patrocínio de um programa de duas horas na televisão a
cabo, intitulado Sua Saúde Mental. Criou também “fichas informativas”
para distribuição aos meios de comunicação, as quais diziam da prevalên-
cia dos transtornos mentais e da eficácia dos medicamentos psiquiátricos.
Harvey Rubin, presidente da comissão de assuntos públicos da APA, gra-
vou um programa popular de rádio que levava a mensagem do modelo mé-
dico a ouvintes de todo o país. A APA lançou uma ofensiva midiática em
todos os níveis e com todos os recursos - entregava prêmios aos jornalistas
cujas matérias lhe agradavam - e, ano após ano, Sabshin detalhava a boa
publicidade que esse esforço estava gerando. Em 1983, ele observou que,
“com a ajuda e o incentivo da Divisão de Assuntos Públicos, a U.S. News
and World Report publicou uma grande matéria de capa sobre a depres-
são, a qual incluiu citações substanciais de psiquiatras ilustres”. Dois
anos depois, Sabshin anunciou que “porta-vozes da APA foram colocados
no programa de Phil Donahue, no Nightline e em outros programas cm
rede nacional”. Nesse mesmo ano, ela “ajudou a elaborar um capítulo de
um livro da Reader’s Digest sobre saúde mental”.
Tudo isso gerou grandes lucros. As manchetes de jornais e revistas
passaram a falar com regularidade de uma “revolução” que estaria ocor-
rendo na psiquiatria. Os leitores do New York Times aprenderam que “a
depressão humana está ligada aos genes” e que os cientistas vinham des-
vendando a “biologia do medo e da ansiedade”. Pesquisadores, disse o jor-
nal, haviam descoberto “uma chave química da depressão”.44 A crença da
sociedade na psiquiatria biológica ia se firmando claramente, como espe-
rava a APA, e, em 1984, Jon Franklin, do Baltimore Evening Sun, escre-
veu uma série de reportagens em sete partes, intitulada “Os reparadores
da mente”, sobre os avanços espantosos que vinham sendo obtidos nesse
campo. Franklin situou essa revolução num contexto histórico:
Desde os tempos de Sigmund Freud, a prática da psiquiatria era mais arte
do que ciência. Cercada por uma aura de feitiçaria, trabalhando com base
em impressões e palpites, amiúde ineficaz, ela era a enteada desajeitada
e às vezes divertida da ciência moderna. Todavia, há uma década ou
mais, psiquiatras dedicados à pesquisa têm trabalhado em silêncio nos la-
boratórios, dissecando os cérebros de ratos e homens e desvendando as
fórmulas químicas que revelam os segredos da mente. Agora, na década
de 1980, o trabalho deles começa a compensar. Eles têm identificado com
rapidez as moléculas entrelaçadas que produzem o pensamento e a emo-
ção humanos. (...) Como resultado, a psiquiatria encontra-se hoje no limiar
de sua transformação numa ciência exata, tão precisa e quantificável
quanto a genética molecular. Vem pela frente uma era de engenharia psí-
quica, com o desenvolvimento de drogas e terapias especializadas para
curar as mentes adoecidas.
Franklin, que entrevistou mais de cinquenta psiquiatras ilustres para
sua série, chamou essa nova ciência de “psiquiatria molecular”, “capaz de
curar as doenças mentais que afligem talvez 20% da população”. Foi agra-
ciado com o Prêmio Pulitzer de Reportagem Explicativa por esse trabalho.
Os livros escritos por psiquiatras para a imprensa leiga, nessa época,
contaram uma história semelhante. Em The Good News About Depression
[A boa notícia sobre a depressão], o psiquiatra Mark Gold, da Universidade
Yale, informou aos leitores que “nós que trabalhamos neste novo campo
chamamos nossa ciência de biopsiquiatria, a nova medicina da mente. (...)
Ela devolve a psiquiatria ao modelo médico, incorporando todos os avan-
ços mais recentes da pesquisa científica t, pela primeira vez na história,
fornecendo um método sistemático de diagnóstico tratamento, cura e até
prevenção do sofrimento mental”. Nos últimos ano», acrescentou Gold, a
psiquiatria havia conduzido “algumas das mais incríveis pesquisas médi-
cas já realizadas. (...) Perscrutamos as fronteiras da ciência e da compre-
ensão humana cm que residem a compreensão suprema e a cura de todas
as doenças mentais".
Se houve um livro que consolidou essa crença no pensamento popular,
foi The Broken Brain [O cérebro avariado]. Publicado em 1984 e escrito
por Nane, Andreasen, futura editora do American Journal of Psychiatty,
ele foi alardeado como “a primeira exposição abrangente da revolução bio-
médica no diagnóstico e tratamento da doença mental”. Nele, Andreasen
enunciou sucintamente os dogmas da psiquiatria biológica: “As grandes
doenças psiquiátricas são enfermidades. Devem ser consideradas doenças
médicas, como o diabetes, as cardiopatias e o câncer. A ênfase nesse mo-
delo recai sobre o diagnóstico criterioso de cada mal específico de que so-
fre o paciente, tal como o faria um clínico geral ou um neurologista”.
O Cérebro Avariado: o livro recebeu esse título brilhante, que transmi-
tiu uma mensagem pragmática, passível de ser apreendida e recordada
com facilidade pelo público. Entretanto, o que a maioria dos leitores não
notou foi que Andreasen, em vários pontos de seu livro, confessou que os
pesquisadores ainda não haviam propriamente constatado que as pessoas
diagnosticadas com problemas psiquiátricos tinham o cérebro avariado.
Os pesquisadores dispunham de novos instrumentos para investigar a
função cerebral e tinham esperança de que esse conhecimento chegaria.
“No entanto, o espírito da revolução - a intuição de que modificaremos
drasticamente as coisas, mesmo que este processo exija alguns anos - está
muito presente”, explicou a autora.
Decorridos 25 anos, esse momento da descoberta inovadora ainda está
por vir. Os substratos biológicos da esquizofrenia, da depressão e do
transtorno bipolar continuam desconhecidos. Mas o público se convenceu
há muito tempo do contrário, e agora podemos ver o processo de marke-
ting que desencadeou essa ilusão. No começo dos anos 1980, a psiquiatria
estava preocupada com seu futuro. As vendas de medicamentos psiquiá-
tricos tinham sofrido um declínio marcante nos sete anos anteriores, e
poucos formandos das faculdades de medicina queriam ingressar nesse
campo. Em resposta, a APA montou uma sofisticada campanha de marke-
ting para vender seu modelo médico ao público e, alguns anos depois, só
restou à população ficar boquiaberta ante os aparentes avanços que vi-
nham sendo obtidos. Havia uma revolução em andamento, os psiquiatras
haviam passado a ser “consertadores da mente” e, como disse a Jon Fran-
klin um “químico do cérebro”, Michael Kuhar, da Universidade Johns
Hopkins essa “explosão de novo, conhecimentos” levaria a novos medica-
mentos e a amplas mudanças na sociedade, que seriam “fantásticas!”.
1
Os psiquiatras acadêmicos também começaram regularmente a discursar em jantares para grupos psiquiá-
tricos locais, e em 2000 John Norton, psiquiatra da Universidade do Mississipi, confessou numa carta ao
New EnglandJournal of 'Medicine que, depois de ter escrito sobre os efeitos colaterais do medicamento do
patrocinador, “meus convites para discursar despencaram, de repente, de quatro a seis vezes por mês para
essencialmente nenhuma”. Antes dessa experiência, disse ele, “cu me iludia, achando que estava educando
os médicos, e não sendo dominado pelos patrocinadores”.
coletivamente, começou a dar dinheiro a praticamente todas as figuras re-
nomadas do campo. Em 2000, quando o New England Journal of Medi-
cine tentou encontrar um especialista para escrever um editorial sobre a
depressão, “encontrou pouquíssimos que não tivessem laços financeiros
com as companhias farmacêuticas que fabricam antidepressivos”.
O NIMH também se juntou à coalizão de contadores de histórias. Os
psiquiatras biológicos souberam que haviam conquistado com sucesso o
NIMH quando o Projeto Solería foi encerrado e Mosher demitido, e, du-
rante a década de 1980 o instituto promoveu ativamente a história da bio-
psiquiatria perante o público num esforço que ganhou asas sob a lide-
rança de Shervert Frazier. Antes de ser escolhido para chefiar o NIMH, cm
1984, Frazier dirigira a Comissão de Assuntos Públicos da APA, que havia
conduzido os seminários de treinamento de contatos com a mídia, financi-
ados pelas empresas farmacêuticas, e não tardou a anunciar que o NIMH,
pela primeira vez em seus quarenta anos de história, lançaria uma grande
campanha educacional, chamada Programa de Conscientização, Reconhe-
cimento e Tratamento da Depressão (DART)1. Esse esforço educativo infor-
maria ao público que os transtornos depressivos eram “comuns, graves t
tratáveis”, nas palavras do NIMH. As companhias farmacêuticas “contri-
buiriam para o projeto com recursos, conhecimentos e outras formas de
assistência”, e o instituto prometeu que o programa seria conduzido por
pelo menos dez anos." Enquanto ajudava a expandir o mercado dos medi-
camentos psiquiátricos, o NIMH chegou até a assegurar ao público que a
história do cérebro avariado era verdadeira, “Duas décadas de pesquisas
mostraram que [os transtornos psiquiátricos] são doenças e indisposições
como quaisquer outras doenças e indisposições”, disse o diretor do NIMH,
Lewis Judd, em 1990, apesar de ninguém jamais ter sabido explicar a na-
tureza dessa patologia.
O último grupo a participar dessa campanha de contar histórias foi a
Aliança Nacional para os Doentes Mentais [NAMI]2. Fundada cm 1979 por
duas mulheres do Wisconsin, Beverly Young e Harriet Shetler, ela surgiu
como um protesto popular contra as teorias freudianas que atribuíam a
responsabilidade pela esquizofrenia a “mães distantes, negligentes e preo-
cupadas, que não eram capazes de estabelecer vínculos com seus filhos”,
observou um historiador do NIMH. A NAMI ansiava por abraçar uma
No fim de 1989, a Eli Lilly obteve aprovação para comercializar a Fluoxetina na Alemanha, mas com um rótulo
que alertava para o alto risco de suicídio.
o placebo. Na melhor das hipóteses, a eficácia da fluoxetina era de natu-
reza muito marginal, e o examinador da FDA, Richard Kapit, também se
preocupou com sua segurança. Pelo menos 39 pacientes tratados com
fluoxetina tinham aberto surtos psicóticos nos ensaios curtos, e pouco
mais de 1% haviam ficado maníacos ou hipomaníacos. Outros efeitos cola-
terais incluíam insônia, nervosismo, confusão, tonteira, disfunções da me-
mória, tremores e piora da coordenação motora. A fluoxetina, concluiu
Kapit, “pode afetar negativamente os pacientes com depressão”. A FDA
também entendeu que a farmacêutica Eli Lilly havia tentado esconder
muitos desses problemas, tendo se empenhado numa “subcomunicação
em larga escala" dos males que a fluoxetina podia causar, segundo o avali-
ador David Graham.
Embora os testes possam ter sido desprovidos de valor científico, ainda
assim se revelaram uma previsão exata do que aconteceria depois que o
Prozac entrasse no mercado. Houve numerosos relatos experienciais de
pacientes tratados com essa droga que cometeram crimes pavorosos, ou
se mataram, e foram tantos os relatos de eventos negativos que fluíram
para o Programa MedWatch, da FDA, que o fármaco se tornou rapida-
mente o medicamento sobre o qual havia mais queixas nos Estados Uni-
dos. No verão de 1997, a FDA havia recebido 39.000 desses relatórios so-
bre o Prozac, o que ultrapassava em muito o número recebido sobre qual-
quer outro medicamento naquele período de nove anos (1988-1997). Os
históricos enviados ao MedWatch falavam de centenas de suicídios e de
uma longa lista de efeitos colaterais incômodos, entre eles depressão psi-
cótica, mania, raciocínio anormal, alucinações, hostilidade, confusão, am-
nésia, convulsões, tremores e disfunção sexual. A FDA calcula que apenas
1% de todos os eventos adversos e informado ao MedWatch, o que sugere
que aproximadamente quatro milhões de norte-americanos, durante
aquele período de nove anos, tiveram uma reação ruim ou até fatal ao Pro-
zac.
Era certo que a história contada nas publicações psiquiátricas teria re-
percussão entre o público. Aquela altura, porém, o mercado de antidepres-
sivos ainda tinha um tamanho moderado. Quando o Prozac foi aprovado,
analistas de Wall Street previram que ele poderia gerar de 135 a 400 mi-
lhões de dólares de vendas anuais para a Eli Lilly. Mas as empresas far-
macêuticas, a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA) e os diri-
gentes do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) faziam questão de
ampliar o mercado de antidepressivos, e a campanha de “conscientização
popular” DART, do NIMH, revelou-se o veículo perfeito para esse fim.
Depois de anunciar seus planos para o DART (Programa Depression
Awareness, Recognition and Treatment) em 1986, o NIMH havia estudado
as crenças populares sobre a depressão. Uma pesquisa revelou que ape-
nas 12% dos adultos norte-americanos tomariam um comprimido para
tratá-la; 78% disseram que “conviveriam com ela até passar”, confiando
em sua capacidade de lidar com o problema sozinhos. Era uma atitude
compatível com o que o NIMH havia pregado apenas 15 anos antes,
quando Dean Schuyler, chefe do setor de depressão, dissera que a maioria
dos episódios depressivos “segue seu curso e termina com a recuperação
praticamente completa, sem intervenção específica”. Havia um saber epi-
demiológico na convicção popular de que a depressão passaria, mas o
NIMH - depois que Shervert Frazier e outros psiquiatras biológicos assu-
miram o comando -estava decidido a transmitir uma mensagem diferente.
O objetivo do DART, como explicou o NIMH em 1988, era “modificar as
atitudes populares, para que haja maior aceitação da depressão como um
distúrbio, e não unia fraqueza”. O público precisava compreender que era
frequente da ser “subdiagnosticada e subtratada”, e que podia “ser uma
doença fatal”, se não recebesse tratamento. Havia 31,4 milhões de norte-
americanos sofrendo de pelo menos uma forma branda de depressão,
disse o NIMH, e era importante que eles fossem diagnosticados. O público
precisava ser informado de que os antidepressivos produziam índices de
recuperação de “70% a 80%, cm comparação com 20% a 40% para o pla-
cebo”. O NIMH jurou continuar indefinidamente o DART, a fim de “infor-
mar” o público sobre esses “fatos”.
O NIMH lançou oficialmente o DART em maio de 1988, cinco meses
depois de o Prozac chegar às prateleiras das farmácias. Convocou “grupos
de trabalhadores, de religiosos, de educadores” e de empresários para
ajudá-lo a disseminar sua mensagem, e, é claro, as companhias farmacêu-
ticas e o próprio NIMH estiveram engajados desde o começo. O instituto
pôs anúncios nos meios de comunicação da Eli Lilly ajudou a custear a
impressão e distribuição de oito milhões de brochuras do DART, intitula-
das “Depressão: o que você precisa saber”. Esse panfleto informou aos lei-
tores, entre outras coisas, os méritos particulares das drogas “serotoninér-
gicas” para a doença. “Ao se disponibilizarem esses materiais sobre a do-
ença depressiva, tornando-os acessíveis em consultórios médicos de todo
o país, informações importantes estão efetivamente chegando ao público,
em ambientes que incentivam as perguntas, a discussão, o tratamento ou
o encaminhamento”, disse o diretor do NIMH, Lewis Judd.
Estava em andamento a remodelagem do pensamento norte-ameri-
cano. Essa venda da depressão, feita sob o disfarce de uma campanha de
“educação popular”, transformou-se num dos esforços de comercialização
mais eficazes que já se haviam concebido. Os jornais captaram a história,
as vendas do Prozac começaram a disparar, e então, em 18 de dezembro
de 1989, o comprimido verde e branco alcançou oficialmente o status de
celebridade, quando a revista New York o colocou cm sua capa, adeus,
tristeza, gritava a manchete, uma nova droga milagrosa para a depressão.
Na reportagem, um usuário “anônimo” do Prozac dizia que, numa escala
de 1 a 100, agora se sentia com “mais de 100”. Graças a essa nova pílula
milagrosa, concluiu a revista, os psiquiatras achavam que sua “profissão
tinha sido salva”.
Logo se seguiram outras dessas matérias entusiásticas. Em 26 de
março de 1990, a capa da revista Newsweek exibiu a cápsula verde e
branca flutuando como o Nirvana acima de uma bela paisagem: prozac:
uma droga inovadora para a depressão, anunciou a revista. Já então, os
médicos vinham emitindo 650 mil receitas mensais dessa pílula, e “quase
todos têm alguma coisa boa a dizer sobre o novo tratamento”, nas pala-
vras da Newsweek. Os pacientes exclamavam em voz alta: “Nunca me
senti melhor!”. Três dias depois, Natalie Angier do New York Times, que se
poderia dizer que era a redatora científica mais popular do país, explicou
que os antidepressivos “funcionam restabelecendo a atividade doí neuro-
transmissores no cérebro, corrigindo um excesso ou inibição anormais dos
sinais eletroquímicos que controlam o humor, os pensamentos, o apetite,
a dor e outras sensações”. Esse novo fármaco, disse o dr. Francis Mondi-
more a Angier, “não se assemelha ao álcool nem ao Valium. É parecido
com os antibióticos”. Programas de televisão fizeram uma contribuição de
peso, transmitindo uma mensagem similar, e no programa 60 Minutes
Lesley Stahl contou a história inspiradora de uma mulher, Maria Romero,
que, após uma década de depressão terrível, havia renascido com o Pro-
zac. “Alguém, alguma coisa saiu do meu corpo, e uma outra pessoa en-
trou”, disse Romero. Stahl explicou alegremente a cura biológica que es-
tava em ação: “A maioria dos médicos acredita que a depressão crônica,
como a de Romero, é causada por um desequilíbrio químico no cérebro.
Para corrigi-lo, o médico receitou Prozac”.
A América Enganada
1 Peter Kramer, Ouvindo o Prozac, trad. Geni Hirata. 2. cd. Rio de Janeiro: Record, 1995. (N.T.)
sociedade perderia algo precioso se todos vivessem felizes o tempo todo!
Estava em andamento a medicação generalizada da mente norte-ameri-
cana, e - como revelará um exame muito rápido - foi esse mesmo processo
de histórias da carochinha que respaldou o lançamento do Xanax como
um remédio para a síndrome do pânico e um antipsicótico atípico para a
esquizofrenia. Depois que essas drogas “de segunda geração” se tornaram
campeãs de vendas, as companhias farmacêuticas e os psiquiatras acadê-
micos começaram a promover toda sorte de drogas psiquiátricas para uso
infantil, e essa narração de histórias varreu milhões de jovens norte-ame-
ricanos para a lata de lixo da “doença mental”.
Xanax
O Xanax (alprazolam) foi aprovado pela FDA como agente ansiolítico
em 1981 c, em seguida, a empresa farmacêutica Upjohn tratou de aprová-
lo para a síndrome do pânico, recém-identificada como doença distinta,
pela primeira vez, no DSM-III (1980). Como primeiro passo, o laboratório
contratou Gerald Klerman, ex-diretor do NIMH, para copresidir sua “co-
missão diretiva” do processo de testagem e pagou a Daniel Freedman, edi-
tor dos Archives of General Psjchiatry, para ser assistente de sua “divisão
de assuntos médicos”. Isso foi apenas parte dos esforços da companhia
para cooptar a psiquiatria acadêmica. “Os psiquiatras mais tarimbados do
mundo foram bombardeados com ofertas de consultoria” provenientes da
Upjohn, disse Isaac Marks, especialista em transtornos da ansiedade no
Instituto de Psiquiatria de Londres.
Klerman e a Upjohn conceberam o Estudo Colaborativo Transnacional
sobre o Pânico, da empresa farmacêutica Upjohn, de um modo que tor-
nasse esperável a produção de uma resposta precária ao placebo. Pacien-
tes que haviam sido tratados com benzodiazepinas foram admitidos no es-
tudo, o que significou que muitos integrantes do grupo do placebo esta-
riam, na verdade, passando pelos horrores da abstinência da benzodiaze-
pina, sendo portanto esperável que ficassem extremamente ansiosos nas
primeiras semanas do ensaio. Quase um quarto dos pacientes tratados
com o placebo tinham vestígios de benzodiazepinas no sangue ao se ini-
ciar o período de tratamento.
É sabido que as benzodiazepinas funcionam depressa, o que se com-
provou verdadeiro nesse estudo. Ao cabo de quatro semanas, 82% dos pa-
cientes tratados com o alprazolam estavam passando “moderadamente
melhor" ou “melhor”, em comparação com 43% do grupo do placebo. No
entanto, nas quatro semanas seguintes, os pacientes tratados com o
placebo continuaram a melhorar, o que não se deu com os do alprazolam,
e ao término da oitava semana “não havia diferença significativa entre os
grupos”, segundo a maioria das escalas de avaliação, pelo menos entre os
pacientes que permaneceram no estudo. O grupo do alprazolam também
experimentou uma variedade de efeitos colaterais problemáticos: sedação,
fadiga, fala arrastada, amnésia e má coordenação. Um em cada 26 pacien-
tes tratados com alprazolam sofreu uma reação “séria” ao medicamento,
como mania ou comportamento agressivo.
Ao cabo de oito semanas, os pacientes foram paulatinamente desma-
mados da medicação durante quatro semanas, e depois acompanhados, já
sem remédios, por mais duas semanas. Os resultados foram previsíveis:
39% dos que suspenderam o uso do alprazolam tiveram uma “deteriora-
ção significativa”, e seu pânico e ansiedade dispararam a tal ponto que
eles tiveram de reiniciar a medicação; 35% dos pacientes tratados com al-
prazolam tiveram sintomas de pânico e ansiedade “de rebote”, mais seve-
ros do que quando se iniciara o estudo, e uma percentagem igual sofreu
com uma multiplicidade de novos sintomas debilitantes, entre eles confu-
são, acentuação das percepções sensoriais, depressão, sensação de inse-
tos rastejando na pele, cãibras musculares, vista embotada, diarreia, re-
dução do apetite e perda de peso.
Em suma, ao cabo de 14 semanas os pacientes expostos ao fármaco
estavam em piores condições que os do grupo tratado com o placebo: eram
mais fóbicos, mais ansiosos, mais abalados pelo pânico e se saíam pior
numa “escala global” que avaliava o bem-estar geral. Quarenta e quatro
por cento ficaram impossibilitados de deixar o medicamento, a caminho de
uma vida de adicto. Sob todos os aspectos, os resultados pintaram um re-
trato poderoso da armadilha das benzodiazepinas: tratava-se de uma
droga que funcionava por um período curto e, depois, perdia eficácia cm
relação a um placebo; no entanto, quando os pacientes tentavam aban-
doná-la, sentiam-se muito mal, e muitos não conseguiam desfazer-se do
hábito. As primeiras semanas de alívio vinham a um custo altíssimo a
longo prazo, e os que ficavam presos ao medicamento - como haviam de-
monstrado estudos anteriores sobre as benzodiazepinas - tendiam a aca-
bar com prejuízos físicos, afetivos e cognitivos.
Os investigadores da Upjohn publicaram três artigos na revista Archiva
of General Psychiatry cm maio de 1988, e qualquer pessoa que exami-
nasse os dados com cuidado poderia ver os danos causados pelo alprazo-
lam. Mas, para que o Xanax fosse comercializado com êxito, a Upjohn pre-
cisava que seus investigadores extraíssem um tipo de conclusão diferente,
e foi o que eles fizeram, particularmente nos resumos dos três artigos. Pri-
meiro, concentraram a atenção nos resultados das quatro primeiras sema-
nas (e não nos de oito semanas, ao término do período de tratamento),
anunciando que “o alprazolam revelou-se eficaz e bem tolerado”. Segundo,
assinalaram que 84% dos usuários do alprazolam haviam concluído o es-
tudo de oito semanas, o que era prova de que “foi alta a aceitação do al-
prazolam pelos pacientes”. Embora seus pacientes de alprazolam exibis-
sem regularmente problemas como “fala arrastada, amnésia” e outros si-
nais de “mentação prejudicada”, eles ainda concluíram que o medica-
mento tinha “poucos efeitos colaterais e [era] bem tolerado”. Por último,
embora reconhecessem que alguns pacientes tratados com alprazolam ha-
viam se saído pior quando da suspensão da medicação, eles ponderaram
que o remédio tinha sido usado por um período muito curto e que a des-
continuação fora feita de modo muito abrupto. “Recomendamos que os pa-
cientes com síndrome do pânico sejam tratados por um período mais
longo, de pelo menos seis meses”, disseram.
O estudo sobre o Xanax
No estudo do Xanax feito pela Upjohn, os pacientes foram tratados com o medica-
mento ou com um placebo durante oito semanas. Em seguida, o tratamento foi len-
tamente suspenso (semanas 9 a 12) c, nas duas últimas semanas, os pacientes
não receberam medicação alguma. Os pacientes tratados com Xanax saíram-se
melhor nas primeiras quatro semanas, e foi nesse resultado que os investigadores
da Upjohn se concentraram cm seus artigos para revistas especializadas. Toda-
via, quando os pacientes com Xanax começaram a se abster da droga, sofreram
um número muito maior de ataques de pânico do que os pacientes tratados com o
placebo, c, ao térmico do estudo, estavam muito mais sintomáticos.
1 Na verdade. 84 pacientes tratados com risperidona haviam sofrido algum “evento adverso grave de-
finido pela FDA como um evento que ameaçava a vida ou requeria hospitalização
taquicardia, diabetes, convulsões, secreção mamilar, impotência, anorma-
lidades hepáticas e distúrbios dos glóbulos brancos. Além disso, como ad-
vertiu Paul Leber, da FDA, visto que a olanzapina bloqueava os receptores
de muitos tipos de neurotransmissores, “ninguém deve se surpreender se,
ao ser comercializada [a droga], forem relatados eventos de toda sorte e
gravidade, não previamente identificados, associados ao uso da olanza-
pina”.
Foi essa a história contada pelos dados dos ensaios. A história que a
Eli Lilly queria que aparecesse nas revistas e jornais de medicina era que o
Zyprexa era melhor que o Risperdal da Janssen, e assim foi essa a história
que contáramos seus especialistas de aluguel. Psiquiatras de faculdades
de medicina anunciaram que a olanzapina funcionava de modo mais
“abrangente” que a risperidona ou o haloperidol. Era um agente bem tole-
rado, que levava a uma melhora global - reduzia os sintomas positivos,
causava menos efeitos colaterais motores do que outros antipsicóticos e
melhorava os sintomas negativos e a função cognitiva.” Esse segundo atí-
pico era melhor que o primeiro, e o Wall Street Journal adotou essa pers-
pectiva. O Zyprexa, anunciou, “tem vantagens substanciais” em relação a
outras terapias atuais. “O mundo real”, explicou John Zajecka, da Facul-
dade de Medicina Rush, “vem constatando que o Zyprexa tem menos efei-
tos colaterais extrapiramidais do que o Risperdal.” O Zyprexa era “uma
inovação potencial de tremenda magnitude”, disse ao New York Times um
psiquiatra da Universidade Stanford, Alan Schatzbcrg.
Agora, a única dúvida parecia ser se o Zyprexa era mesmo melhor que
o Risperdal, e depois que a companhia farmacêutica AstraZeneca introdu-
ziu no mercado um terceiro antipsicótico atípico, o Seroquel, os meios de
comunicação optaram pela ideia de que, coletivamente, os novos atípicos
eram um aprimoramento drástico em relação às drogas mais antigas.
Eram, como disse a revista Parade a seus leitores, “muito mais seguros e
eficazes no tratamento dos sintomas negativos, como a dificuldade de raci-
ocinar e falar de maneira organizada”. Os fármacos mais recentes, anun-
ciou o Chicago Tribune, “são mais seguros e mais eficazes do que os anti-
gos. Ajudam as pessoas a trabalhar”. O Los Angeles Times escreveu: “Ami-
gamente, não se dava aos esquizofrênicos nenhuma esperança de me-
lhora. Mas agora, graças a novos medicamentos e a um novo compro-
misso, eles estão regressando à sociedade como nunca havia acontecido”.
A Aliança Nacional Contra a Doença Mental (NAMI) também deu sua con-
tribuição, publicando um livro intitulado Breakthrougs in Antipsychotic
Medications [Inovações nos medicamentos antipsicóticos], que deu a
proveitosa explicação de que esses novos remédios “são melhores no tra-
balho de equilibrar todas as substâncias químicas do cérebro, inclusive a
dopamina e a serotonina”. E assim prosseguiu até que, por fim, a diretora
executiva da NAMI, Laurie Flynn. disse à imprensa que finalmente se ha-
via chegado à terra prometida: “Esses novos medicamentos são mesmo
uma inovação. Significam que finalmente seremos capazes de manter as
pessoas fora dos hospitais, e significam que a incapacitação a longo prazo
causada pela esquizofrenia pode chegar ao fim”.
Silenciando a Dissidência
A Ocultação de Provas
1 Nas críticas jornalísticas ao meu livro Mad in America, houve quem mencionasse o estudo da OMS
sobre os resultados melhores para a esquizofrenia nos países pobres, nos quais os pacientes não
eram regularmente medicados, e a partir daí. esta informação tornou-se mais ou mea» conhecida.
Além disso, mencionei o estudo de Martin Harrow sobre a esquizofrenia, com duração de 15 anos,
numa palestra que fiz no Holy Cross College em fevereiro de 2009, e ela levou a um artigo datado
de 8 de fevereiro de 2009 no Worcester Telegram and Gazette (Massachussetts), que discutiu o tra-
balho de Harrow. Foi a primeira vez que apareceram notícias sobre esse estudo em qualquer jornal
norte-americano.
também incluiu uma citação “pré-fabricada” do autor principal, Peter Jen-
sen, afirmando que ainda havia muitas razões para manter as crianças
medicadas com Ritalina. “Nossos resultados sugerem que a medicação
pode fazer diferença a longo prazo para algumas crianças, se for mantida
com intensidade ótima, e não iniciada ou acrescentada muito tardiamente
no curso da história clínica da criança."
Se quisermos dar outra olhada nesse processo de deturpação, pode-
mos nos voltar para um artigo de 1998, no Ne«’ York Times, que falou ra-
pidamente do estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os
resultados da esquizofrenia em países ricos e pobres. Depois de entrevistar
psiquiatras sobre o estudo, o repórter do Times escreveu que “os esquizo-
frênicos, de modo geral, respondiam melhor ao tratamento nos países me-
nos desenvolvidos do que em países com maior desenvolvimento tecnoló-
gico”. Respondiam melhor ao tratamento: os leitores só poderiam supor
que os pacientes esquizofrênicos da índia e da Nigéria respondiam melhor
aos antipsicóticos do que os pacientes dos Estados Unidos e outros países
ricos. Não tinham como saber que o “tratamento” de 84% de pacientes es-
quizofrênicos nos países pobres consistia em não usar medicação.
Em julho de 2009, também vasculhei os sites do NIMH e da NAMI na
internet, cm busca de alguma referência aos estudos listados acima, e não
achei bulhufas. Por exemplo, o site do NIMH não discutiu o notável declí-
nio dos resultados dos pacientes bipolares nos tempos modernos, muito
embora Carlos Zarate, coautor do artigo de 2000 que documentou esse de-
clínio, chefiasse a unidade de pesquisas do NIMH sobre transtornos do
humor e da ansiedade em 2009. Do mesmo modo, o site da NAMI não deu
informação alguma sobre o estudo de Harrow, apesar de ele fornecer ra-
zões para os pais de crianças esquizofrênicas serem otimistas - 40% dos
pacientes sem medicação tinham se recuperado a longo prazo! Mas esse
resultado contradizia diretamente a mensagem que a NAMI difundia para
o público fazia décadas, e o site da organização continua a se ater àquela
mensagem. Os antipsicóticos, ele informa ao público, “corrigem um dese-
quilíbrio das substâncias químicas que permitem que os neurônios se co-
muniquem entre si”.
Por fim, toda a história de resultados documentada neste livro foi omi-
tida da edição de 2008 do Manual de Psiquiatria da APA, o que significa
que os estudantes de medicina que estão se preparando para ser psiquia-
tras são mantidos no escuro a respeito dessa história. O livro não discute
a “psicose por hipersensibilidade". Não menciona que os antidepressivos
podem ser agentes depressogênicos a longo prazo. Não informa que os
resultados do transtorno bipolar são muito piores hoje do que eram há
quarenta anos. Não há discussão sobre os índices crescentes de invalidez.
Não se fala na deterioração cognitiva que é observada nos usuários de
longa data de medicamentos psicotrópicos. Os autores do manual estão
claramente familiarizados com muitos dos 16 estudos aqui listados, po-
rém, se é que os mencionam, não discutem os fatos relevantes sobre o uso
de medicamentos. O estudo de longo prazo de Harrow, afirma o manual,
revela que há alguns pacientes esquizofrênicos que “são capazes de funci-
onar sem o benefício do tratamento contínuo com antipsicóticos”. Os auto-
res dessa frase não mencionaram a espantosa diferença dos índices de re-
cuperação dos grupos medicado e não medicado; ao contrário, enuncia-
ram uma frase que fala do beneficiado tratamento contínuo com antipsicó-
ticos. De maneira similar, embora o manual discuta sucintamente o es-
tudo da OMS sobre os resultados melhores dos pacientes esquizofrênicos
em países pobres, como a índia e a Nigéria, ele não menciona que os paci-
entes desses países não eram regularmente medicados com antipsicóticos.
Numa parte referente às benzodiazepinas, os autores reconhecem que
há preocupações a respeito de suas propriedades viciadoras, mas logo afir-
mam que os resultados a longo prazo dos que mantêm o uso das benzodi-
azepinas geralmente são bons, pois a maioria dos pacientes "preserva seus
ganhos terapêuticos”.
Há uma história que a psiquiatria não se atreve a contar, e que mostra
que nossa ilusão social sobre os benefícios dos medicamentos psiquiátri-
cos não é inteiramente inocente. Para vender à nossa sociedade a solidez
dessa forma de tratamento, a psiquiatria teve de exagerar grosseiramente
o valor de suas novas drogas, silenciar os críticos e manter escondida a
história dos resultados precários a longo prazo. Esse é um processo deli-
berado e consciente, e o próprio fato de a psiquiatria ter tido que empregar
esses métodos de invenção de histórias diz muito sobre os méritos desse
paradigma de atendimento, muito mais do que qualquer estudo isolado
conseguiria fazer.
15.
CONTABILIZANDO OS LUCROS
“Receber cheques de 750 dólares para conversar com alguns médicos du-
rante um intervalo de almoço era um dinheiro tão fácil que me deixara
zonzo”. - Psiquiatra Daniel Cariat, 2007
O trajeto da residência comunitária da Jenna, em Montpelier, no es-
tado de Vermont, até a avenida Central de sua cidade tem apenas dois
quarteirões, mas, no fim da manhã de primavera em que a visitei, levamos
vinte minutos para percorrer essa distância, porque ela precisava parar a
cada meia dúzia de passos para recuperar o equilíbrio, enquanto seu aten-
dente, Chris, punha a mão atrás das costas dela a todo momento, para
ampará-la se ela caísse1. Jenna havia tomado um antidepressivo pela pri-
meira vez 12 anos antes, quando tinha 15, e agora tomava um coquetel di-
ário de oito medicamentos, inclusive um para os sintomas parkinsonianos
induzidos pela medicação. Sentamo-nos na área externa de um café e
Jenna me contou sua história, se bem que, em alguns momentos - por
causa dos seus problemas com o controle motor -, era difícil entendê-la.
Seus tremores são tão intensos que, quando ela molhou o pãozinho no
café, o líquido derramou e ela teve dificuldade de levar o pão à boca.
“Eu sou muuuuuuito atrapalhada”, comentou.
Eu tinha ido para essa entrevista achando que Jenna havia recebido
um diagnóstico de discinesia tardia, um efeito colateral dos antipsicóticos
que pode incapacitar as pessoas. Mas não estava claro se os seus prejuí-
zos motores se deviam a esse tipo particular de disfunção medicamentosa
ou a um processo mais idiossincrático, relacionado com os medicamentos;
e mais, terminada a entrevista, Jenna havia levantado uma nova questão
sobre a qual eu deveria pensar. Ela me falou de como os psiquiatras e ou-
tros profissionais da saúde mental sempre resistiram a ver qualquer de
suas dificuldades físicas ou emocionais como causadas por medicamen-
tos; em vez disso, culpavam regularmente a doença dela por tudo e. do
ponto de vista de Jenna, esse era um processo de raciocínio ditado por in-
teresses econômicos. Se eu quisesse compreender o tratamento que ela re-
cebia, teria de compreender que ela era valiosa para as companhias far-
macêuticas como “consumidora" dos seus remédios. “Ninguém”, explicou
1 Embora Jenna tenha dito que eu poderia usar seu sobrenome, sua mãe e seu padrasto, que detêm
sua guarda legal, pediram que cu usasse apenas o prenome.
Chris, “abordou o fato d que os remédios podem estar causando os proble-
mas dela.”
A primeira vez que Jenna foi exposta a uma droga psiquiátrica ocorreu
quando ela estava na segunda série, e esse episódio sugeriu que ela não
responderia bem a psicotrópicos. Até aquele momento, ela fora uma me-
nina saudável, uma estrela da equipe local de natação; mas depois havia
apresentado convulsões e, ao ser medicada com um agente anticonvulsivo,
desenvolvera graves problemas motores, como me contou sua mãe numa
entrevista telefônica. Mas as convulsões acabaram desaparecendo c,
quando Jenna parou de tomar o anticonvulsivante, os problemas motores
se foram. A menina passou a praticar equitação e se destacou cm torneios
de hipismo. “Ela voltou a ser totalmente normal”, lembrou sua mãe.
Quando Jenna entrou na nona série, a mãe e o padrasto resolveram
mandá-la para um colégio interno de elite no Massachussetts, por não te-
rem confiança nas escolas públicas do Tennessee, e foi então que começa-
ram os problemas comportamentais e afetivos da menina. Ela foi expulsa
dessa primeira escola e mandada para uma segunda, destinada a adoles-
centes problemáticos, onde “se encantou com toda aquela tralha gótica” e
começou a “se portar mal” sexualmente, no dizer da mãe. Depois, uma
noite, em resposta a um desafio, ela furtou uma embalagem de preservati-
vos de uma farmácia e “pirou” ao ser detida. Nesse momento, foi mandada
para um terceiro colégio interno e medicada com Paxil.
“No minuto em que tomou aquele remédio, ela começou a tremer”, con-
tou a mãe. “Eu disse ao médico: ‘Ai, meu Deus, é do remédio’. E o médico
disse: ‘Ah, não, não é do remédio’. Eu respondi: ‘E, sim’. Fomos passando
de um médico para outro, fazendo exame após exame, mas eles não con-
seguiam encontrar nada, e por isso a mantinham com a medicação, o que
piorava tudo. Eles simplesmente não me davam ouvidos.”
Além dos tremores, Jenna tornou-se suicida ao tomar Paxil, e sua vida
não tardou a se transformar num pesadelo psiquiátrico. Ela começou a se
cortar com regularidade e, a certa altura, usou uma serra elétrica para de-
cepar o dedo médio da mão esquerda. O Paxil deu lugar a coquetéis de
Klonopin, Depakote, Zyprexa e outros medicamentos e, durante uma es-
tada de quase quatro anos num manicômio, ela acabou com um coquetel
de cerca de 15 remédios, tão dopada que nem sequer sabia onde estava.
“Não sei a data exata", disse Jenna, resumindo essa história, “mas, aos
poucos, minha fala e minha marcha e meu equilíbrio e os tremores fica-
ram mesmo um horror, naquele hospital. E eles só continuavam a
acrescentar remédios. Pra ver como têm me-me-merda na cabeça."
Atualmente, os problemas psiquiátricos de Jenna continuam graves.
No dia cm que nos encontramos, ela estava com o pulso enfaixado e fazia
pouco tempo que tentara se cortar, de modo que os medicamentos tam-
bém não foram de grande ajuda nesse aspecto. Mas, disse ela, “não vejo
nada diferente acontecendo. Já falei de suspenderem meus remédios bi-
lhões de vezes".
Antes de deixarmos nossa mesa da calçada, Chris me forneceu os de-
talhes do coquetel diário da Jenna: dois antidepressivos, um antipsicótico,
uma benzodiazepina, um remédio para o mal de Parkinson e outros três
para problemas físicos, provavelmente relacionados com as drogas psiqui-
átricas. Mais tarde, calculei que, mesmo sendo receitados genéricos sem-
pre que possível, ela consumia 800 dólares mensais de medicamentos, ou
cerca de 10.000 dólares por ano. Fazia 12 anos que usava a medicação
psiquiátrica, o que significa que sua conta de receitas desses medicamen-
tos talvez já tenha ultrapassado 100 mil dólares; além disso, dado que ela
deverá continuar com os remédios pelo resto da vida, essa conta poderá
acabar bem acima dos 200 mil dólares.
“Estão ganhando uma fortuna comigo”, disse Jenna. “Mas esses remé-
dios estragaram a minha vida. Eles me deixam toda fe-fe-fe-ferrada.”
1
Durante o depoimento de Bicderman, cm 26 de fevereiro de 2009, um advogado lhe perguntou sobre sua
posição na Faculdade de Medicina da Universidade Harvard. “Professor titular", respondeu ele. “O que há
acima disso?", indagou o advogado. “Deus", disse Biederman.
humor, sobretudo para pacientes cujos sintomas tiverem sido agravados
por um ISRS”. Em síntese, a Eli Lilly estava dizendo aos médicos que re-
ceitassem seu segundo medicamento para consertar os problemas psiqui-
átricos causados pelo primeiro. também podemos ver esse eleito em cas-
cata funcionando no nível social. Os 1SRS entraram no mercado e, de re-
pente, começaram a surgir pacientes bipolares por toda parte, e então esse
novo grupo de pacientes proporcionou um mercado para os antipsicóticos
atípicos1.
Tudo isso produziu uma indústria crescente, de dimensões impressio-
nantes. Em 1985, as vendas de antidepressivos e antipsicóticos a pacien-
tes ambulatoriais nos Estados Unidos corresponderam a 503 milhões de
dólares." Vinte e três anos depois, as vendas de antidepressivos e antipsi-
cóticos no país atingiram 24,2 bilhões de dólares, um aumento de quase
cinquenta vezes. Os antipsicóticos-uma classe de medicamentos antes vis-
tos como de tipo extremamente problemático- foram a classe de drogas
produtoras da receita mais alta em 2008, à frente até mesmo dos agentes
redutores do colesterol. O total de vendas de todos « psicotrópicos em
2008 ultrapassou 40 bilhões de dólares. Hoje - e isto mostra como a far-
mácia ficou abarrotada um em cada oito norte-americanos toma regular-
mente um medicamento psiquiátrico.
A Arvore do Dinheiro
1 Numa linha semelhante, as companhias farmacêuticas aproveitaram o fato de muitas das drogas
inicialmente receitadas para um sintoma-alvo não funcionarem muito bem. "Duas em cada ira
pessoas tratadas de depressão continuam a apresentar sintomas”, informou aos telespectadores
um comercial de televisão da Bristol-Myers Squibb em 2009. Solução? Acrescente à mistura um
antipsicótico atípico, o Abilify.
medicamentos.
Eli Lilly
Em 1987, a divisão farmacêutica da Eli Lilly gerou unia receita de 2,3
bilhões de dólares. A companhia não tinha uma droga importante para o
sistema nervoso central, visto que seus três fármacos mais vendidos eram
um antibiótico oral, um remédio cardiovascular e um produto à base de
insulina. A Eli Lilly começou a vender o Prozac cm 1988 c, quatro anos de-
pois, ele se tornou o primeiro produto de um bilhão de dólares da em-
presa. Em 1996, a Eli Lilly pôs o Zyprexa no mercado, e ele se tornou uni
remédio de um bilhão de dólares em 1998. No ano 2000, esses dois produ-
tos responderam por quase metade da receita de 10,8 bilhões de dólares
da empresa.
Pouco depois, o Prozac perdeu a proteção de sua patente, de modo que
a melhor maneira de avaliar os efeitos geradores de riqueza dos dois medi-
camentos e considerar o período de 13 anos entre 1987 e 2000. Durante
esse intervalo, o valor da Eli Lilly na Wall Street subiu de 10 bilhões para
90 bilhões de dólares. Um investidor que comprasse 10 mil dólares de
ações da companhia em 1987 veria esse investimento elevar-se para
96.850 dólares em 2000 e, ao longo do caminho, teria recebido mais 9.720
dólares de dividendos. Ao mesmo tempo, os executivos e empregados da
farmacêutica, além de seus salários e bonificações, tiveram um lucro lí-
quido de aproximadamente 3,1 bilhões de dólares com as opções de com-
pra de ações que fizeram.
Psiquiatras acadêmicos
As companhias farmacêuticas não teriam conseguido construir um
mercado de 40 bilhões de dólares para as drogas psiquiátricas sem a
ajuda de psiquiatras de centros médicos acadêmicos. O público recorre
aos médicos para se informar sobre as doenças e sobre a melhor maneira
de tratá-las, de modo que foram os psiquiatras acadêmicos - pagos pela
indústria farmacêutica para servir de assessores em diretorias consulti-
vas, bem como de palestrantes - que atuaram, essencialmente, como ven-
dedores dessa iniciativa comercial. As companhias farmacêuticas, em seus
memorandos internos, chamam esses psiquiatras, de uma forma precisa,
de “grandes líderes formadores de opinião”, ou LFOs, para encurtar.
Graças a uma investigação promovida em 2008 pelo senador Charles
Grassley, o público teve uma ideia do montante de dinheiro pago pelas
empresas farmacêuticas a seus LFOs. Os psiquiatras acadêmicos recebem
regularmente verbas federais dos Institutos Nacionais de Saúde [NIH] e,
nessas condições, são solicitados a informar a suas instituições quanto re-
cebem das companhias farmacêuticas, havendo a expectativa de que as
faculdades de medicina lidem com o “conflito de interesses” sempre que
esse valor ultrapassar 10.000 dólares anuais. Grassley investigou os regis-
tros de cerca de vinte psiquiatras acadêmicos e descobriu que eles não
apenas ganhavam muito mais do que 10.000 dólares por ano. como tam-
bém escondiam esse fato de suas universidades.
Eis alguns exemplos dos valores pagos a LFOs na psiquiatria:
• De 2000 a 2007, Charles Nemcroff, chefe do departamento de
psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Emory,
em Atlanta, ganhou pelo menos 2,8 milhões de dólares como pa-
lestrante e consultor de empresas farmacêuticas, tendo recebido
só da GlaxoSmithKline 960.000 dólares para promover o Paxil e
o Wellbutrin. Ele é coautor do Manual de Psicofarmacologia da
APA, o livro didático mais vendido nesse campo. Também escre-
veu um livro de divulgação sobre medicamentos psiquiátricos,
The Peace of Mind Prescription [A receita da paz de espírito], des-
tinado ao público em geral. Participou do conselho editorial de
mais de sessenta publicações da área médica e, durante algum
tempo, foi editor-chefe da revista Neuropsychopharmacology. Em
dezembro de 2008, renunciou ao cargo de diretor do departa-
mento de psiquiatria da Emory, por não ter dado informações à
universidade sobre os pagamentos que havia recebido de empre-
sas farmacêuticas.
• Zachary Stowe, também professor de psiquiatria na Emory, rece-
beu 250.000 dólares da GlaxoSmithKline em 2007 e 2008, em
parte para promover o uso do Paxil por mulheres lactantes. A
Emory o “repreendeu” por não ter revelado adequadamente esses
pagamentos à universidade.
• Outro membro da central de palestrantes da GlaxoSmithKline foi
Frederick Goodwin, um ex-diretor do NIMH. A companhia lhe pa-
gou 1,2 milhão de dólares de 2000 a 2008, principalmente para
promover o uso de estabilizadores de humor para o transtorno
bipolar (a GlaxoSmithKline vende o Lamictal, que é um desses
estabilizadores). Goodwin é coautor de Doença Maníaco-Depres-
siva: transtorno bipolar e depressão recorrente, o compêndio de
referência sobre essa doença, e durante muito tempo foi também
apresentador de um programa de rádio de grande audiência, The
Infinite Mind [A mente infinita], que era transmitido para todo o
país pelas estações da NPR. Seu programa apresentava debates
rotineiros sobre medicamentos psiquiátricos e, numa transmis-
são de 20 de setembro de 2005, Goodwin avisou que, se as
crianças com transtorno bipolar não fossem tratadas, poderiam
sofrer lesões no cérebro. Goodwin foi palestrante ou consultor de
várias outras empresas farmacêuticas; 1,2 milhão de dólares foi
o que ele recebeu apenas da GlaxoSmithKline. Numa entrevista
ao New York Times, ele explicou que estava apenas “fazendo o
que fazem todos os outros especialistas da área”.
• De 2000 a 2005, Karen Wagner, diretora do departamento de
psiquiatria da infância e da adolescência na Universidade do Te-
xas, recebeu mais de 160.000 dólares da GlaxoSmithKline. Pro-
moveu o uso do Paxil por crianças, e o fez, em parte, sendo coau-
tora de um artigo que relatou falsamente os resultados de um
ensaio pediátrico com esse medicamento.
Num documento confidencial escrito em outubro de 1988, a GlaxoS-
mithKline concluiu que, no referido estudo, o Paxil “não demonstrou uma
diferença estatisticamente significativa do placebo nas medidas primárias
de eficácia”.18 Além disso, cinco dos 93 adolescentes tratados com Paxil
nesse estudo sofreram de “extrema labilidade”, comparados a um no
grupo tratado com o placebo, o que significou que o remédio elevava acen-
tuadamente o risco de suicídio. O estudo havia mostrado que o Paxil não
era seguro nem eficaz nos adolescentes. Entretanto, num artigo de 2001
publicado no Journal of lhe American Academy of Child & Adolescent
Psychiatn, Wagner e outros 21 eminentes psiquiatras da infância afirma-
ram que o estudo havia provado que o Paxil era “geralmente bem tolerado
e eficaz para a depressão grave em adolescentes”.19 Eles não discutiram o
risco de suicídio, nitidamente elevado, e escreveram, em vez disso, que
apenas uma criança tratada com Paxil havia sofrido um evento adverso
grave, desenvolvendo uma “dor de cabeça”. Eliot Spitzer, procurador do
estado de Nova York, processou a GlaxoSmithKline por comercialização
fraudulenta do Paxil para adolescentes, numa ação que foi resolvida fora
dos tribunais.
Ao todo, Wagner foi assessora ou consultora de pelo menos 17 compa-
nhias farmacêuticas. Os 160.000 dólares foram o valor que recebeu ape-
nas da GlaxoSmithKline; ela informou à sua universidade haver recebido
600 dólares.
• De 1999 a 2006, Jeffrey Bostic, um psiquiatra do Hospital Geral
de Massachusetts, em Boston, recebeu mais de 750.000 dólares
da Forest Laboratories, a fim de promover a prescrição de Celexa
e Lexapro para crianças e adolescentes. Fez mais de 350 pales-
tras em 28 estados durante esse período, o que levou um repre-
sentante de vendas da Forest a se gabar: “O dr. Bostic é o cara
em matéria de psiquiatria infantil!”. Em março de 2009, o
governo federal acusou a farmacêutica Forest de comercialização
ilegal desses medicamentos para essa população de pacientes,
alegando que a empresa tinha pagado “propinas, incluindo refei-
ções suntuosas e pagamentos em dinheiro, disfarçados de sub-
venções e honorários de consultoria, para induzir os médicos a
receitarem esses medicamentos”. O dr. Bostic, disse o governo fe-
deral, servira de “principal porta-voz” da companhia nesse es-
quema fraudulento. O governo federal assinalou que a compa-
nhia também tinha deixado de revelar os resultados de um es-
tudo desses fármacos em crianças, o qual havia produzido resul-
tados “negativos”.
• De 2003 a 2007, Melissa DelBello, professora adjunta de psiqui-
atria na Universidade de Cincinnati, recebeu pelo menos
418.000 dólares da empresa farmacêutica AstraZeneca. Promo-
veu a prescrição de antipsicóticos atípicos, inclusive o Seroquel,
da AstraZeneca, para pacientes com transtorno bipolar juvenil.
DelBelIo trabalhou para pelo menos outras sete empresas farma-
cêuticas. “Acredite, não recebo muito” das companhias farma-
cêuticas, disse ao New York Times, antes do relatório de Grass-
ley.22
• Joseph Biederman talvez tenha sido o LFO que mais contribuiu
para ajudar a indústria farmacêutica a construir um mercado
para seus produtos. Em larga medida, o transtorno bipolar juve-
nil foi criação dele, e as crianças e adolescentes assim diagnosti-
cados são comumente tratados com coquetéis de drogas. As
companhias farmacêuticas lhe pagaram 1,6 milhões de dólares
por seus diversos serviços, no período de 2000 a 2007, e grande
parte desse dinheiro veio da Janssen, a divisão da Johnson &
Johnson que vende o Risperdal.
• Biederman também fez a companhia pagar-lhe 2 milhões de dó-
lares, de 2002 a 2005, para criar o Centro Johnson & Johnson
de Psicopatologia Pediátrica no Hospital Geral de Massachu-
setts.2’ Num relatório de 2002, ele expôs francamente os objeti-
vos do centro. Explicou que este era uma “colaboração estraté-
gica” que “impulsionaria os objetivos comerciais da J&J”. Ele e
seus colegas desenvolveriam testes de triagem do transtorno bi-
polar juvenil e depois fariam cursos de EMC (educação médica
contínua) para treinar pediatras e psiquiatras a usá-los. Suas
pesquisas, escreveu, “alertariam os médicos para a existência de
um grande grupo de crianças que poderiam se beneficiar do tra-
tamento com Risperdal”. Além disso, o centro promoveria o en-
tendimento de que “a mania pediátrica evolui para o que alguns
chamaram de mania mista ou atípica na idade adulta, [entendi-
mento este] que dará mais respaldo ao uso crônico do Risperdal,
desde a infância até a idade adulta”1. No passado, assinalou Bie-
derman, que tivera sucesso em levar a medicina a conceber o
TDAH como uma doença “crônica”, e agora faria o mesmo com o
transtorno bipolar? Biederman foi o flautista mágico do trans-
torno bipolar na nossa sociedade, e nesse documento podemos
ver o futuro que ele descortinava para as crianças que recebiam
tal diagnóstico. Elas estavam sendo preparadas para se torna-
rem consumidoras vitalícias de medicamentos psiquiátricos. A
criança diagnosticada com transtorno bipolar seria tratada com
um antipsicótico, e então se poderia esperar que se tornasse do-
ente crônica, o que exigiria uma vida inteira de “tratamentos
agressivos como o Risperdal”. Talvez haja um arquivo, enfurnado
num armário de alguma empresa farmacêutica, que calcule a ex-
pectativa de consumo vitalício de medicamentos psiquiátricos
por uma criança diagnosticada com transtorno bipolar; neste li-
vro, só o que podemos dizer é que toda criança assim diagnosti-
cada é, do ponto de vista empresarial, uma nova Jenna.
O escalão mais abaixo
Os LFOs são as “estrelas” da área, pois são aqueles que “influenciam”
seus pares nos níveis nacional e internacional, mas as companhias farma-
cêuticas também pagam a médicos para promover seus remédios num ní-
vel mais local, no qual esses palestrantes discursam em jantares ou falam
com outros médicos em seus consultórios. Tipicamente, o pagamento co-
meça em 750 dólares por evento, e vai subindo a partir daí. Dois estados,
Minnesota e Vermont, aprovaram leis “de transparência” que revelam es-
ses pagamentos, e seus registros permitem discernir o fluxo de capital que
vai para esses médicos.
Em 2006, as empresas farmacêuticas deram 2,1 milhões de dólares a
psiquiatras de Minnesota, majorando o valor de 1,4 milhão dólares de
2005. De 2002 a 2006, os beneficiários do dinheiro da indústria farmacêu-
tica incluíram sete ex-presidentes da Sociedade Psiquiátrica de Minnesota
e 17 psiquiatras do corpo docente da Universidade de Minnesota. John Si-
mon, então membro da comissão estadual de farmacopeia do Medicaid,
que norteia os gastos do estado com medicamenta, era o psiquiatra mais
bem remunerado, tendo recebido 570.000 dólares por seus serviços pres-
tados a companhias farmacêuticas. Ao todo, durante esse período, 187
1 Nesse trecho, Biederman descreve a evolução clínica das crianças diagnosticadas com transtorno
bipolar e medicadas; essas crianças efetivamente tendem a se tornar doentes crônicas, tal como
ele descreveu. Mas não há literatura médica que mostre a existência de uma doença que siga esse
curso em crianças não medicadas
dos 571 psiquiatras de Minnesota receberam dinheiro da indústria farma-
cêutica, por uma ou outra razão, e essa percentagem foi “muito mais alta”
do que em qualquer outra especialidade médica. O valor coletivo recebido
por eles foi de 7,4 milhões de dólares.
Os registros de Vermont contam praticamente a mesma história. Den-
tre todas as especialidades médicas, a psiquiatria foi a que mais recebeu
dinheiro das companhias farmacêuticas.
O psiquiatra da comunidade
As empresas farmacêuticas também oferecem brindes aos psiquiatras
da comunidade. Convidam-nos para jantares gratuitos em que os LFOs e
os especialistas locais fazem seus discursos, e seus representantes de ven-
das frequentam com regularidade os consultórios deles, levando pequenos
presentes. “Dei ao dr. Child um bombom de chocolate com creme de
amendoim do tamanho de um cupcake", escreveu uma representante de
vendas da Eli Lilly num relatório de 2002 para seu chefe. “Ele ficou con-
tentinho.” Ou, como a moça escreveu, depois de outra visita de vendas: “O
médico e a equipe adoraram a caixa de brindes que levei, cheia de coisas
úteis para sua nova clínica”. Trata-se de subornos muito pequenos, mas
até um presentinho ajuda a construir vínculos sociais. Um grupo da Cali-
fórnia fez um levantamento das empresas farmacêutica e descobriu que
estas estabelecem limites, sim, para os brindes oferecidos aos psiquiatras
anualmente; o da GlaxoSmithKline era de 2.500 dólares por médico, en-
quanto o da Eli Lilly chegava a 3.000 dólares. Há muitas empresas ven-
dendo drogas psiquiátricas, de modo que qualquer psiquiatra que receba
representantes de vendas pode desfrutar de uma oferta regular de brindes.
A NAMI e todo o resto
Agora a Eli Lilly posta na internet uma lista das doações “educacio-
nais” e “filantrópicas” que faz, e isso nos proporciona uma ideia do di-
nheiro que vai para grupos de defesa de pacientes e várias organizações
educacionais. Só no primeiro trimestre de 2009, a Eli Lilly deu 551.000
dólares à NAMI e a suas seções locais, 465.000 dólares à Associação Naci-
onal de Saúde Mental, 130.000 dólares ao CHADD (Children and Adults
with Attention Déficit Hyperactivity Disordcr, um grupo de defesa dos di-
reitos de pacientes com TDAH) e 69.250 dólares à Fundação Norte-Ameri-
cana para Prevenção do Suicídio. A companhia deu mais de I milhão cie
dólares a diversas organizações educacionais, incluindo 279.533 dólares
para a Antidote Education Gompany, uma organização que oferece cursos
de “educação médica contínua". Esses são os valores de uma única
empresa farmacêutica durante três meses; qualquer contabilização com-
pleta do fluxo de dinheiro para grupos de defesa dos direitos dos pacientes
e organizações educacionais exigiria que somássemos as subvenções de
todos os fabricantes de drogas psiquiátricas.
“Acho que está na hora de outra greve de fome”. - Vince Boehm, 2009
Em 28 de julho de 2003, seis “sobreviventes psiquiátricos” associados
à MindFreedom International, uma organização de direitos dos pacientes,
anunciou um “jejum pela liberdade”. David Oaks, Vince Boehm e os ou-
tros quatro enviaram uma carta à Sociedade Norte-Americana de Psiquia-
tria, à Aliança Nacional Contra a Doença Mental (NAMI) e à Diretoria Naci-
onal de Saúde, declarando que iniciariam uma greve de fome, a menos
que uma dessas organizações fornecesse “provas cientificamente válidas”
de que as várias histórias que contaram ao público sobre as doenças men-
tais eram verdadeiras. Entre outras coisas, o grupo da MindFreedom pe-
diu dados que provassem que as principais doenças mentais eram “doen-
ças cerebrais de base biológica”, bem como provas de que “alguma droga
psiquiátrica é capaz de corrigir desequilíbrios químicos” no cérebro. Os
Seis da MindFreedom montaram um painel científico para examinar as
respostas das organizações - um grupo de consultores que incluía Loren
Mosher - e exigiram que, se a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria
(APA) e os outros não pudessem fornecer essas provas científicas, “os se-
nhores admitam publicamente aos meios de comunicação, às autoridades
de governo e ao público em geral que são incapazes de fazê-lo”.
Eis o que a APA respondeu: “As respostas a suas perguntas encon-
tram-se amplamente disponíveis na literatura científica, e assim têm es-
tado há anos”, nas palavras do diretor médico James Scully. Ele sugeriu
que o grupo lesse o relatório de Saúde Mental de 1999 da Diretoria Nacio-
nal de Saúde, ou um manual da APA coeditado por Nancy Andreasen e
outros. “Trata-se de um manual fácil de usar, para pessoas que acabaram
de ser apresentadas ao campo da psiquiatria”, explicou.
Só os ignorantes, ao que parecia, faziam aquele tipo de pergunta idiota.
Mas Scully não listou nenhuma referência, e, assim sendo, os seis “sobre-
viventes psiquiátricos'* iniciaram sua greve de fome, e quando seus con-
sultores científicos examinaram os textos a que Scully os havia encami-
nhado, também não encontraram neles nenhuma referência. Em vez
disso, todos os textos reconheciam, a contragosto, o mesmo resumo da
história: “As causas exalai [a etiologia] das doenças mentais não são co-
nhecidas”, como confessara Salcher. o diretor nacional de Saúde, em seu
relatório de 1999. O painel científico da MindFrccdom. em sua resposta de
22 de agosto a Scully, observou que os grevistas haviam formulado “per-
guntas claras sobre a ciência da psiquiatria”, mas a APA as havia descon-
siderado. “Ao não darem respostas específicas às perguntas específicas
formuladas pelos que estão cm greve de fome, os senhores parecem estar
afirmando a própria razão para a referida greve.”
A APA nunca respondeu a essa carta. Ao contrário, depois que o grupo
da MindFreedom suspendeu seu jejum (vários componentes começaram a
ter problemas de saúde), ela emitiu um comunicado à imprensa decla-
rando que a APA, a NAMI e os demais integrantes da comunidade psiquiá-
trica “não se deixarão desviar pelos que querem negar que os transtornos
mentais graves são doenças médicas reais, que podem ser diagnosticadas
com precisão e tratadas com eficácia". Mas ficou claro para todos os obser-
vadores quem tinha vencido essa batalha. Os grevistas haviam pagado
para ver o jogo da APA, e a APA não tinha nada na mão. Não apresentou
uma única referência que corroborasse a história de “doença cerebral” que
ela contava ao público. Os Seis da MindFreedom, junto com seu painel ci-
entífico, emitiram então uma convocação direta à ação, a fim de obter
ajuda:
Exortamos os membros do público, jornalistas, defensores de direitos dos ci-
dadãos e autoridades que estiverem lendo esta conversação a solicitarem
à APA respostas diretas a nossas perguntas. Solicitamos também que o
Congresso investigue o embuste em massa que hoje representam, nos Es-
tados Unidos, o “diagnóstico r tratamento das doenças mentais” promovi-
dos por órgãos como a APA e seus poderosos aliados?
A greve, observou o diretor executivo da MindFreedom, David Oaks,
provocou artigos no Washington Post e nos Los Angeles Times. “O objetivo
da greve foi educare público. Tratava-se de capacitar o público e fazê-lo fa-
lar sobre estas questões que nos afetam a todos. Tratava-se de questionar
o bullying empresarial imposto ao pensamento [da população].
Um Antidepressivo Natural
1 No sistema norte-americano de tutela infanto-juvenil pelo Estado, são muitos os tipos de abrigo
concedidos aos menores, desde os lares de criação temporários até várias instituições residenciais
coletivas, classificadas por níveis conforme as necessidades dos menores e oferecendo diversos
graus de assistência e supervisão. As do nível 14 são as instalações não prisionais reservadas para
a internação dos menores mais problemáticos, que costumam requerer assistência clínica e super-
visão intensa durante 24 horas por dia. (N.T.)
d’água mais depressa. Uma menina branca estava sentada no sofá, e o
sexto morador da casa, eu soube depois, havia saído para uma aula de
natação. Em pouco tempo, a garota dos fones de ouvido estava cantando a
capela (e muito bem) e a que se debruçava sobre o álbum de fotografias ti-
nha começado a me chamar de Bob Marley, aparentemente por eu saber
quem era Jordin Sparks. De vez cm quando, um dos menores caía na gar-
galhada.
“A meninada fica muito grata por sair da medicação”, disse a terapeuta
Kari Sundstrom. “A personalidade deles volta. Eles tornam a ser gente.”
As duas casas do Centro Séneca talvez sejam as últimas instituições
residenciais dos Estados Unidos em que crianças com transtornos graves,
sob o controle do município ou do estado, são tratadas sem drogas psiqui-
átricas. Aliás, na maioria dos círculos da psiquiatria infantil, isso seria
considerado antiético. “Já me disseram: ‘Se o seu filho tivesse uma do-
ença, você lhe negaria a medicação que o ajudasse a melhorar?’”, disse
Ken Berrick, fundador e diretor geral do Centro Séneca. E, mesmo dentro
da instituição, que tem uma equipe de aproximadamente setecentas pes-
soas e fornece uma variedade de serviços a duas mil crianças e adolescen-
tes problemáticos no norte da Califórnia, o programa residencial é uma
anomalia.
Quando o centro foi inaugurado, cm 1985, Berrick e outros procura-
ram contratar consultores psiquiátricos que usassem medicamentos psi-
quiátricos de maneira “conservadora”, e nunca para fins de “controle com-
portamental”. Alguns usavam mais remédios que outros, e então veio Tony
Stanton, que a agência contratou em 1987, para supervisionar o programa
residencial da garotada. Na década de 1960, ele fizera formação no Hospi-
tal Langley Porter, em San Francisco, que na época enfatizava a “impor-
tância do ambiente” para a saúde mental da criança. A “teoria do apego”,
do próprio Stanton, convenceu-o da importância das relações afetivas para
o bem-estar da criança. Depois, no fim da década de 1970, quando era en-
carregado de uma ala psiquiátrica infantil num hospital municipal, ele ha-
via destinado um “mentor” a cada criança. As crianças não eram medica-
das, e ele viu diversas delas se apegarem a seus mentores e “desabrocha-
rem”.
“Aquela experiência me permitiu ver esse princípio terapêutico em
ação”, disse Stanton. “Você simplesmente não pode se organizar sem uma
ligação com outro ser humano, e não pode estabelecer essa ligação se esti-
ver embalsamado em remédios.”
Quando uma criança entra no programa residencial do Centro Séneca,
Stanton não pergunta “o que há de errado” com ela, mas “o que lhe acon-
teceu”. Pede ao setor de serviços sociais, a escolas e outras agencias que
lhe mandem todo o histórico que tiverem sobre a criança, e então passa de
oito a dez horas construindo um “gráfico de vida”. Como se poderia espe-
rar, os gráficos comumente falam de crianças que sofreram abusos sexu-
ais, maus-tratos físicos e uma negligência terrível. Mas Stanton também
levanta o histórico de medicação do menor e procura saber de que modo
seu comportamento pode ter se alterado, depois de ele passar a usar de-
terminado medicamento. Visto que as crianças que chegam ao Centro
Séneca têm transtornos graves, esses históricos médicos falam regular-
mente de atendimentos psiquiátricos que pioraram a conduta delas. “Há
quem me diga: ‘Agora queremos experimentar tratar a criança com Risper-
dal’, e eu respondo: ‘Vamos dar uma olhada no gráfico e ver o que aconte-
ceu antes. Acho que isso não vai ajudar’”, contou Stanton.
Os menores quase sempre chegam ao centro com coquetéis medica-
mentosos, de modo que pode levar um ou dois meses para fazer o “des-
mame” dos medicamentos. Muitas vezes, depois de lhes terem dito repeti-
damente que elas precisavam dos remédios, as crianças ficam nervosas
com esse processo - “Um garoto me disse: ‘O que você quer dizer com tirar
meus remédios? Vou destruir o seu programa’”, contou Stanton - e, não
raro, tornam-se mais agressivas, durante algum tempo. O pessoal pode ter
que usar a “contenção física” com mais frequência (foi treinado para con-
ter as crianças de maneiras “seguras”). Mas esses problemas comporta-
mentais costumam começar a diminuir c, ao término do processo de “des-
mame”, a criança “ganha vida”.
“É maravilhoso”, disse Kim Wayne. “Na maioria dos casos, quando as
crianças chegam, não conseguem manter a cabeça em pé, são letárgicas,
são só um vazio, e seu engajamento é mínimo. Não se consegue chegar até
elas. Mas, quando param de tomar os remédios, podemos captar a aten-
ção delas e ver quem são. A gente tem uma ideia da sua personalidade, do
seu senso de humor e dos tipos de coisas que elas gostam de fazer. Pode-
mos ter que usar a contenção física por algum tempo, mas, para mim, vale
a pena.”
Depois que param de tomar a medicação, as crianças pensam nelas
mesmas de uma nova maneira. Veem que podem controlar seu comporta-
mento, o que lhes dá um senso de “capacidade de agir”, disse Stanton. O
Centro Séneca usa técnicas de modificação do comportamento para pro-
mover esse autocontrole, tendo as crianças que obedecer
sistematicamente a um conjunto de regras bem definidas. Elas têm de pe-
dir permissão para usar o banheiro e para entrar nos quartos e, quando
não cumprem as regras, podem ter que “ir para o banco”, interrompendo
suas atividades, ou perdem um privilégio. Mas a equipe tenta concentrar-
se cm reforçar os comportamentos positivos, elogiando e premiando as cri-
anças de várias maneiras. Elas são solicitadas a manter seus quartos ar-
rumados e a fazer uma tarefa doméstica diária, às vezes ajudando a pre-
parar a refeição noturna.
“A questão do sentir-se cuidando de si, responsável por si mesmo, é o
problema central da vida deles”, disse Stanton. “Eles podem só o conse-
guir parcialmente, enquanto estão conosco, mas, quando temos sucesso
de verdade, nós os vemos desenvolverem um sentimento de ‘Ah, eu posso
fazer isso; quero estar no controle de mim mesmo e da minha vida’. Eles
se veem dotados desse poder.”
Mais importante ainda, depois que a medicação é suspensa, as crian-
ças ficam mais aptas a formar laços afetivos com a equipe, e esta com
elas. Essas crianças conheceram a rejeição durante a vida inteira e preci-
sam estabelecer relações que alimentem a convicção de que são dignas de
ser amadas; quando isso acontece, sua “narrativa interna” pode passar de
“sou uma criança má” para “sou uma criança boa”.
“Eles chegam pensando: ‘Eu sou maluco(a), vocês vão me detestar, vão
se livrar de mim, vou ser a pior criança que vocês já viram’”, disse a tera-
peuta Julie Kim. “Mas depois, passam a se dispor a formar vínculos [afeti-
vos], e isso é uma coisa incrível. Você vê o poder que tem a relação para
modificar uma criança, e até a garotada que parece mais durona ao entrar
aqui, aquela que a princípio não faz progresso algum, acaba chegando lá.”
Embora Kim e outros possam contar histórias de sua própria experiên-
cia sobre crianças que receberam alta do programa residencial, voltaram
para escolas comuns e se saíram bem, o Sêneca não fez um acompanha-
mento a longo prazo das crianças que passaram por seu programa resi-
dencial. A única estatística de que dispõe para mostrar que o programa
funciona é esta: 225 crianças viveram em suas residências de 1995 a
2006, e quase todas foram liberadas para instituições residenciais coleti-
vas para jovens menos problemáticos, ou para lares de criação temporá-
rios, ou para suas famílias biológicas. Pelo menos, sua temporada no Cen-
tro Sêneca pôs sua vida em um novo rumo. Entretanto, é difícil confiar
com otimismo que sua vida prosseguirá nessa direção. Seus problemas
afetivos e comportamentais não desaparecem por completo, e assim,
muitas das crianças que recebem alta - talvez a maioria - voltam a ser me-
dicadas. Retornam a um mundo cm que essa é a norma. Sua temporada
no Centro Séneca pode proporcionar-lhes, primordialmente, um oásis
temporário numa sociedade propensa a perguntar “qual é o problema de-
les”, e portanto, se quisermos avaliar se a política de mio medicação do
programa residencial do centro oferece algum “benefício” às crianças, tal-
vez devamos, cm vez de olhar para o futuro, concentrar a atenção no pre-
sente e ver o que é, para os menores, ler essa oportunidade de “ganhar
vida” por algum tempo e de sentir plenamente o mundo.
Passei dois dias no centro, e houve três crianças, cm particular, com
quem tive a oportunidade de interagir. Uma era um menino de 12 anos
chamado Steve. Ao chegar ao Centro Séneca, um ano antes, ele estava tão
carregado de hábitos suicidas e autodestrutivos que os médicos acharam
que havia sofrido alguma lesão cerebral, por causa de todos os seus episó-
dios de pancadas na cabeça. Desde então, apegou-se muito ao Stacy, um
dos funcionários da casa cm que mora, c, durante nossa entrevista, arriou
numa cadeira, sorriu e tomou ¡mediatamente as rédeas da conversa. “De-
testo tomar remédios. E muito chato usar drogas”, disse, e começou a nos
falar de tartarugas migratórias, de um guaxinim que andara bisbilhotando
a casa deles, de uma ida ao McDonald’s com o Stacy e do que as pessoas
precisavam fazer para se preparar para terremotos. Tudo isso foi o prelú-
dio de um discurso sobre um livro de histórias cm quadrinhos que ele
queria escrever, intitulado Ar Aventuras de Sam Duna e Rocha, com nu-
merosos personagens “bons e maus’, inclusive um que precisava tomar re-
médios para não enlouquecer. Steve ocupou o centro do palco por pelo
menos uma hora c, mais tarde, todo contente, informou ao Stacy que a
entrevista havia sido “fria, muito fria”, o que significou, é claro, que tinha
se divertido imensamente1.
Vou chamar as duas meninas afro-americanas que conheci na casa
Los Reyes de Layla (a cantora a capella) e Takeesha. Seus “gráficos de
vida” falavam de um passado de pesadelo, o que se aplicava particular-
mente a Takeesha. Ao chegar ao Centro Séneca, em 2006, com 7 anos de
idade, ela fora descrita como delirante, reservada, desconfiada, pouco coo-
perativa e muito sedada. Depois de passarmos uns trinta minutos à mesa
da cozinha, falando de American Idol e da excursão que elas haviam feito
1 A formulação coloquial cm inglês seria “cool, real cool - "legal, muito legal" mas Steve diz 'cold real
cold”. misturando as acepções dos dois adjetivos a partir de sua relação semântica com a ideia de
frio. (N.T.)
à Disneylândia, Takeesha perguntou se poderíamos brincar de arremessos
com uma bola de futebol, do lado de fora. Assim fizemos por algum tempo,
e então ela obteve permissão para andar em sua bicicleta na rua, mas só
se prometesse percorrer apenas a distância de algumas casas, para um
lado e para o outro. De repente, ela deu uma freada ruidosa na calçada:
“Vou ao Burgrr King. O que você quer?”, anunciou. Segundos depois, vol-
tou orgulhosa, segurando um saquinho imaginário com um Whopper, ba-
tatas fritas e uma Coca-Cola, pelos quais paguei com uma nota igual-
mente imaginária de cinco dólares, pedindo-lhe para me dar o troco. Na
hora de nos despedirmos, Layla pediu um abraço, e então, Takcesha - que
tinha corrido para buscar alguma coisa cm seu quarto - me ofereceu o que
parecia ser uma embalagem de chiclete, exceto pelo fato de que o pedaço
com a ponta para fora era claramente de natureza metálica.
“E só chiclete!”, ela se esganiçou, quando senti a pequena vibração.
No dia seguinte, assisti à aula delas. Falei rapidamente com a profes-
sora e diversos ajudantes, e todos disseram a mesma coisa. “Essa garo-
tada é incrível! Poderíamos drogar essa turma para deixá-la submissa,
mas para quê? Eu adoro isto aqui!” Eu tinha ido lá com Tony Stanton, e
após algum tempo ficou patente que nossa presença estava causando um
dilema para Layla e Takcesha. Elas deveriam estar prestando atenção à
professora e sabiam que se não o fizessem seriam mandadas para o banco
(havia uma marcha contínua de crianças para o canto do castigo), mas as
duas estavam claramente decididas a manter contato conosco. Estávamos
sentados perto da pia e, no fim, as duas resolveram que tinham de lavar
as mãos. Quando Layla voltou para sua carteira, não resistiu a nos cum-
primentar com um tapa na mão espalmada, embora isso fosse uma que-
bra do protocolo da aula. Enquanto isso, ao passar por minha cadeira, Ta-
keesha cochichou: “Bob Marley, o que você está fazendo aqui?”.
Naquele momento, não consegui imaginar nenhuma estatística de re-
sultados que fosse mais poderosa.
No Quadro-Negro
O Projeto do Alasca
1 A bem da transparência, devo informar que fui um dos palestrantes em vários desses eventos.
medicação psicotrópica pode ler efeitos negativos profundos e duradouros
na mente e no corpo do paciente”, escreveu o tribunal. “É sabido que [es-
ses medicamentos] causam diversos efeitos colaterais potencialmente de-
vastadores.” Assim, em Myers vs Instituto de Psiquiatria do Alasca, deu o
veredicto de que um paciente psiquiátrico só poderia ser medicado à força
se um tribunal “concluísse expressamente, mediante provas claras e con-
vincentes, que o tratamento proposto servia aos mais altos interesses do
paciente e que não se dispunha de nenhuma alternativa menos invasiva”.
No direito jurisprudencial do Alasca, os antipsicóticos já não são vistos
como uni tratamento que necessariamente ajude os psicóticos.
Em 2004, Gottstein lançou um esforço para fazer o Fundo Fiduciário
da Saúde Mental financiar uma residência do tipo Soteria em Anchorage,
o que ofereceria aos pacientes psicóticos o tipo de atendimento fornecido
pelo Projeto Soteria, de Loren Mosher, na década de 1970. Mais uma vez,
ele se apoiou nos poderes de persuasão da literatura científica para respal-
dar sua argumentação, e no verão de 2009 foi inaugurada uma casa Sote-
ria com sete quartos, alguns quilômetros ao sul do centro da cidade. A di-
retora do projeto, Susan Musante, chefiara antes um programa de reabili-
tação psiquiátrica no Centro de Saúde Mental da Universidade do Novo
México; o psiquiatra assistente, Aron Wolf, é uma figura muito respeitada
na psiquiatria alasquiana.
“Queremos trabalhar com pessoas mais jovens, que tenham usado me-
dicamentos psiquiátricos apenas por um curto período, e ao retirar sua
medicação e ajudá-las a melhorar, esperamos impedir que elas enveredem
pelo trajeto da doença crônica”, disse Musante. “Nossa expectativa e que
as pessoas se recuperem. Esperamos que trabalhem ou frequentem a es-
cola, que retomem um comportamento apropriado para sua idade. Esta-
mos aqui para ajudá-las a voltar a sonhar e a perseguir esses sonhos. Não
estamos dispostos a canalizá-las para a Renda Complementar da Previ-
dência (SSI) ou o Seguro da Presidência Social por Invalidez (SSDI).”
Agora, Gottstein tem os olhos voltados para um questionamento jurí-
dico de I âmbito nacional. Tem movido processos que questionam a medi-
cação de crianças de lares de criação temporários e de crianças pobres do
Alasca (os pobres têm cobertura do Medicaid) e, cm última análise, espera
levar um desses processos à Suprema Corte dos Estados Unidos. Para ele,
essa é uma questão pertinente à 14ª Emenda constitucional, pois as cri-
anças são privadas de sua liberdade sem o devido processo legal. No cerne
de qualquer desses processos estaria uma pergunta científica: as crianças
dos lares de criação estão sendo tratadas com medicamentos que ajudam,
ou estão sendo tratadas com drogas tranquilizantes que causam danos a
longo prazo?
“Faço uma analogia com Brows vs Diretoria de Ensino", disse Gotts-
tein. “Antes daquela decisão, havia nos Estados Unidos uma aceitação ge-
ral da ideia de que a segregação era certa. A Suprema Corteja havia dito,
em decisões anteriores, que a segregação era certa. Mas no processo
Brown vs Diretoria de Ensino ela disse que não era. e isso realmente mo-
dificou a opinião pública. Hoje em dia, não se consegue encontrar nin-
guém que diga que a segregação e certa. E é assim que visualizo todo este
esforço."
Nós, o Povo