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ANATOMIA DE UMA

EPIDEMIA
Pílulas Magnas. Drogas Psiquiátricas e o Aumento Assom-
broso da Doença Mental
Robert Whitaker
Para Lindsay - Que você possa novamente cantar “Seasons of love” e se
encher de alegria
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

É com enorme satisfação e honra que prefaciamos este livro do jorna-


lista estadunidense Robert Whitaker que, já traduzido em mais de uma
dezena de idiomas, finalmente chega às mãos do leitor de língua portu-
guesa. Desde 2010, quando foi publicado nos Estados Unidos, Anatomia
de uma Epidemia tem tido uma repercussão gigantesca nos diversos can-
tos do mundo, seja no meio acadêmico, entre profissionais da saúde em
geral, entre pacientes psiquiátricos autodenominados vítimas ou sobrevi-
ventes da psiquiatria, ou mesmo entre os psiquiatras, embora não nos
surpreenda que a maioria ainda reaja ao seu conteúdo.
Nosso interesse pelo pensamento de Whitaker foi despertado pela lei-
tura de um artigo de Mareia Angell publicado no número 59 da revista Pi-
auí, em agosto de 2011. O artigo, com o sugestivo título “A epidemia da
doença mental”, é norteado por uma questão, por si própria, bastante in-
trigante: por que cresce assombrosamente o número de pessoas com
transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros
medicamentos psicoativos? Após haver lido os dois livros de Whitaker so-
bre psiquiatria até então publicados —Mad in America e Anatomy of an
Epidemic -, como membros da diretoria da Associação Brasileira de Saúde
Mental (Abrasme) não poupamos esforços para trazê-lo ao Brasil para dois
eventos de grande porte organizados pela entidade: o 3o Congresso Brasi-
leiro de Saúde Mental, realizado em Manaus em 2014, e o 2° Fórum Brasi-
leiro de Direitos Humanos e Saúde Mental, em João Pessoa, em 2015. As
contribuições trazidas por Whitaker foram impactantes.
Como jornalista investigativo, Whitaker ganhou vários prêmios impor-
tantes nos Estados Unidos e tem larga experiência em editorias de periódi-
cos científicos em medicina. Em Anatomia de uma Epidemia ele assume o
desafio de decifrar um enigma: está havendo um crescimento vertiginoso
de pessoas diagnosticadas com algum transtorno mental, com parte consi-
derável da população entrando em tratamento psiquiátrico e não se cu-
rando com as abordagens psicofarmacológicas; muito pelo contrário, ficam
mais doentes e dependentes da psiquiatria. Ora, essa realidade contraria o
pensamento dominante segundo o qual a psiquiatria tem tido enorme pro-
gresso científico nos últimos cinquenta anos.
Essa problemática não pode deixar de nos inquietar. Particularmente a
nós, brasileiros, que temos um processo de reforma psiquiátrica reconhe-
cido internacionalmente. Ao deslocar a assistência para o território e
oferecer aos usuários dos serviços públicos cuidados baseados em aborda-
gens psicossociais, temos tido êxito em diminuir significativamente o nú-
mero de pessoas tratadas em hospitais psiquiátricos. Não obstante, verifi-
camos que aqui no Brasil vem se produzindo um fenômeno em muito as-
semelhado ao que se passa na maioria das sociedades que não contam
com uma reforma da assistência tão radical como a que temos obtido com
muitas lutas. Trata-se do crescimento vertiginoso do número de pessoas
que são diagnosticadas com algum transtorno mental e não conseguem
deixar de ser pacientes (usuários) da assistência psiquiátrica.
Por que isso ocorre? Por que os “transtornos mentais”, como as psico-
ses, os transtornos depressivos, os transtornos de ansiedade, e assim por
diante, são doenças crônicas em sua maioria? Será que é porque os servi-
ços são carentes de recursos humanos, físicos, técnicos ou financeiros? Se
assim for, a dimensão da “epidemia” é muito maior ainda, porque não fal-
tam relatos de pesquisas a afirmarem que há subnotificação diagnóstica,
que haveria muito mais pessoas que deveriam estar em tratamento se os
profissionais estivessem mais bem formados academicamente. Será que
vivemos uma “epidemia” de transtornos mentais de fato?
O senso comum diz que sim! O impactante na leitura de Anatomia é
que vários dos fundamentos que sustentam esse senso comum são ilusó-
rios! São mitos criados com nenhuma ou pouca fundamentação científica.
Whitaker nos motiva a refletir profundamente e com coragem sobre o
que está errado e não sabemos dizer o que é. Guiados pelo senso comum,
fazemos esforços para escapar dessa “epidemia”, mas não podemos. Nosso
sofrimento e o do outro - depressão, psicoses, dificuldades de relaciona-
mento, insônia, ou medo - precisa ser compreendido. Tentamos de todas
as maneiras negar o sofrimento! E quando buscamos um médico, uma
orientação, um suporte afetivo-emocional, é-nos apresentado um determi-
nado diagnóstico, quase sempre acompanhado por uma droga psiquiá-
trica. O enigma é: por que continuamos a sofrer, física, fisiológica e/ou
psicologicamente? Por que o sofrimento parece ficar ainda mais acentuado
com as formas de tratamento hegemônicas?
O primeiro mito abordado por Whitaker é o de que, graças aos avanços
científicos das últimas décadas, a sociedade conta, cada vez mais, com di-
agnósticos psiquiátricos precisos, com protocolos de intervenção objetivos
e confiáveis, capazes de identificar problemas que até então ou não eram
percebidos ou eram abordados de forma não científica, os quais devem ori-
entar o tratamento adequado. Por conseguinte, não é surpresa que o
número de pessoas com algum “transtorno mental” esteja sempre aumen-
tando. Sendo isso quase senso comum entre nós, o desafio maior seria do-
tar o sistema de saúde de capacidades para dar conta das demandas (das
quais uma parte significativa ainda estaria reprimida!).
Whitaker desconstrói esse mito recapitulando a história das maneiras
como a psiquiatria tem tornado problemas normais, usuais - comuns ao
cotidiano da maioria das pessoas - em “transtornos mentais”. Em sua des-
construção, adota a própria lógica que supostamente sustenta o discurso
psiquiátrico: a das evidências científicas. Com a leitura do livro, a cada pá-
gina somos surpreendidos com a constatação de que faltam justamente
evidências científicas para a construção das categorias de diagnóstico. As
sucessivas revisões do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disor-
ders (DSM), dizem os seus formuladores, apenas tornam oficial o que é ob-
servado na prática. Dizem ainda que a causa dos transtornos mentais é
essencialmente biológica, e por isso mesmo a medicação psiquiátrica é es-
sencial. Quer dizer, historicamente o que a psiquiatria tem feito é primeiro
nomear transtornos para depois buscar causas biológicas. A lógica que
fundamenta a construção desses manuais é que se um número impor-
tante de clínicos sente que determinada categoria de diagnóstico é impor-
tante em seu trabalho, então essa categoria merece estar no manual
(muito em particular no DSM, objeto de análise de Whitaker). As sucessi-
vas versões do DSM têm como questão saber o quanto de consenso há
para se reconhecer e incluir um transtorno mental qualquer. Porém, para
a ciência acordo não necessariamente significa verdade.
O segundo mito é o de que as drogas psiquiátricas iniciaram um extra-
ordinário avanço científico. Para a visão oficial, a introdução da clorproma-
zina na medicina asilar em 1955 foi o ponto de partida para uma revolu-
ção na psiquiatria, comparável à introdução da penicilina na medicina. E
em 1989, com a introdução dos medicamentos da segunda geração, argu-
menta-se que ocorre uma nova etapa revolucionária. Com “transtornos
mentais” bem definidos e medicamentos adequados para atingir o “alvo”,
eis que nós, contemporâneos, podemos, cada vez mais, nos ver livres do
“sofrimento psíquico” - é o que nos fazem pensar! Ora, quando se faz um
tratamento para determinada doença, o que se espera é que esta desapa-
reça ou pelo menos seja submetida a controle. No entanto, cada vez mais
há mais pessoas “doentes mentais” e em tratamento por médio e longo
prazos.
Como o medicamento psiquiátrico age no cérebro? Segundo a teoria,
há um desequilíbrio químico subjacente a cada transtorno mental. Por
exemplo, a teoria da dopamina para a esquizofrenia e da serotonina para a
depressão. Não obstante essa crença, há muito poucas evidências cientifi-
cas a confirmar tal teoria. Ao contrário, o que aparece são evidências que a
desmentem. O que cada vez mais tem ficado evidente é que as drogas psi-
quiátricas criam perturbações nas funções dos neurônios; temporárias,
mas desgraçadamente muitas vezes definitivas. O que explicaria a razão
pela qual as pessoas que começam a tomar antipsicóticos, antidepressi-
vos, ansiolíticos não possam mais interromper o tratamento medicamen-
toso, sob o risco de terem recaídas que as deixam cm condição muito mais
grave do que o estado em que se encontravam inicialmente! Tudo parece
indicar que após poucas semanas de uso de drogas psiquiátricas, o cére-
bro da pessoa passa a funcionar de modo qualitativa e quantitativamente
diferente daquele como funcionava nos estados normais.
E o que não faltam são evidências científicas para se entender esse fe-
nômeno, tradicionalmente conhecido como iatrogenia. São evidências in-
terculturais investigadas pela própria Organização Mundial da Saúde, com
clássicos estudos de follow-up, nos quais “países cm desenvolvimento”,
cuja população está menos psiquiatrizada, apresentam muito melhores re-
sultados de cura dos seus cidadãos do que aqueles países onde a pre-
sença da psiquiatria é muito forte. São experimentos em animais nos
quais as patologias “psiquiátricas” são encontradas após o uso de drogas
psiquiátricas. São estudos prospectivos longitudinais que acompanham
pessoas, entre pacientes diagnosticados com esquizofrenia, que foram ou
não tratadas com medicamentos psiquiátricos ao longo de dois, cinco, dez,
quinze, vinte e 25 anos. São pesquisas com imagens de ressonância mag-
nética que demonstram a redução da massa encefálica ao longo do tempo
de tratamento com medicamentos psiquiátricos.
Muito provavelmente, o leitor de Anatomia de uma Epidemia ficará
surpreso como a maioria dos seus leitores nos diversos países têm ficado.
Os desafios para nós, brasileiros, são enormes, sobretudo porque o uso de
medicamentos psiquiátricos está tão generalizado entre nós, no cotidiano
da nossa população, mesmo nos serviços e dispositivos clínicos construí-
dos no bojo do processo de reforma psiquiátrica!
Assim como tem sido trabalhoso para nós superar o modelo asilar de
assistência, certamente não será menos difícil conseguirmos mudar o pa-
radigma da psiquiatria biológica que domina a nossa assistência. Como
tratar as pessoas? Relativizando não apenas os diagnósticos, mas sobre-
tudo o papel hegemônico que a medicação psiquiátrica exerce no cotidi-
ano? É possível obter os resultados esperados com as diversas abordagens
de natureza psicossocial se os pacientes estão sendo submetidos a trata-
mentos psicofarmacológicos? Como livrar o grande número de pacientes
das drogas psiquiátricas após meses ou anos de uso?
Whitaker apresenta alternativas. Detalha o exemplo das experiências
na Finlândia, conhecidas pela expressão diálogo aberto, em que, com o
emprego ao nível mais reduzido quanto possível de drogas psiquiátricas, e
sempre a curto prazo, os resultados com o tratamento da esquizofrenia
são os melhores de todo o mundo ocidental. O princípio fundamental que
orienta essa abordagem é o diálogo entre os profissionais, os pacientes,
suas redes sociais, explorando todos os recursos psicossociais disponíveis
no território. A maioria das pessoas é tratada em sua própria casa, redu-
zindo-se ao máximo a necessidade de espaços físicos especializados em
cuidados em saúde mental.
Esperamos que este livro seja um instrumento de reflexão para todos
os seus leitores, mas principalmente para os profissionais que atuam nas
práticas clínicas e institucionais e que, por uma série de razões - dentre as
quais se destacam as maciças propagandas e promoções dos laboratórios,
inclusive com o financiamento de pesquisas, publicações, programas de
formação e eventos médicos. E que esses profissionais acreditem que é
possível melhorar o cuidado dirigido às pessoas em sofrimento, assim
como a vida destas e a de seus familiares.
Fernando Freitas - Psicólogo, doutor em psicologia
Paulo Amarante - Médico, doutor em saúde pública
Pesquisadores titulares do Laboratório de Estudos e Pesquisas em
Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de
Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz
APRESENTAÇÃO

A história da psiquiatria e de seus tratamentos pode ser uma questão


controvertida em nossa sociedade, tanto assim que, quando escrevemos
sobre ela, como fiz num livro anterior, Madin America [Loucos nos Estados
Unidos], é comum as pessoas perguntarem como viemos a nos interessar
pelo assunto. A suposição é que o sujeito deve ter uma razão pessoal para
sentir curiosidade sobre esse tema, caso contrário preferiria ficar longe do
que pode ser um tremendo campo minado político. Além disso, em geral,
quem pergunta está tentando determinar se o autor tem alguma inclina-
ção pessoal que influencie seu texto.
No meu caso, eu não tinha nenhuma ligação pessoal com o assunto.
Cheguei a ele de uma forma muito indireta.
Em 1994, depois de trabalhar alguns anos como repórter de um jornal,
deixei o jornalismo diário para ser cofundador de uma editora, a Center-
Watch, que fazia relatórios sobre os aspectos comerciais dos testes clínicos
de novos medicamentos. Nossos leitores vinham de empresas farmacêuti-
cas, faculdades de medicina, da clínica médica particular e de Wall Street,
e, na maioria dos casos, escrevíamos sobre essa iniciativa de uma forma
receptiva à indústria. Víamos os testes clínicos como parte de um processo
que trazia para o mercado melhores tratamentos médicos e informávamos
sobre os aspectos financeiros dessa indústria crescente. Então, no começo
de 1998, deparei com uma matéria que falava dos maus-tratos a pacientes
psiquiátricos nos meios de pesquisa. Mesmo sendo coproprietário da Cen-
terWatch, vez por outra eu escrevia artigos como freelance para revistas e
jornais e, naquele outono, fui coautor de uma série sobre esse problema
para o Boston Globe.
Havia vários tipos de “maus-tratos” em que Dolores Konge eu nos con-
centramos. Examinamos estudos financiados pelo Instituto Nacional de
Saúde Mental (NIMH)1 que envolviam administrar a pacientes esquizofrê-
nicos um medicamento destinado a exacerbar seus sintomas (os estudos
serviam para investigar a biologia da psicose). Investigamos as mortes que
haviam ocorrido durante os testes dos novos antipsicóticos atípicos. Por
fim, informamos sobre estudos que envolviam \ retirar de pacientes esqui-
zofrênicos os seus medicamentos antipsicóticos, o que j nos pareceu ser

1 Sigla da denominação original, National Institute Of Mental Health. (N.T.)


antiético. Na verdade, consideramos que era ultrajante.
Nosso raciocínio era fácil de compreender. Diziam que essas drogas
eram como a insulina para o diabetes”. Fazia algum tempo que eu sabia
que isso era verdade”, desde a ocasião em que fizera a cobertura do campo
da medicina no Albany Times Union. Claramente, portanto, era um abuso
os pesquisadores psiquiátricos fazerem dezenas de estudos sobre a sus-
pensão dos medicamentos, nos quais calculavam cuidadosamente a per-
centagem de pacientes esquizofrênicos que tornavam a adoecer e tinham
que ser reinternados. Por acaso alguém conduziria um estudo que envol-
vesse retirar a insulina de diabéticos, para ver com que rapidez eles torna-
vam a adoecer?
Foi assim que descrevemos na nossa série os estudos sobre retirada da
medicação, e esse teria sido o fim dos meus escritos sobre psiquiatria, não
fosse o fato de ter me restado uma questão não resolvida que me incomo-
dava. Enquanto preparava as reportagens dessa série, eu havia deparado
com duas constatações de pesquisas que simplesmente não faziam sen-
tido. A primeira era de investigadores da Faculdade de Medicina de Har-
vard que anunciaram, em 1994, que os resultados observados nos pacien-
tes de esquizofrenia nos Estados Unidos haviam piorado durante as duas
décadas anteriores, e não estavam melhores agora do que tinham sido
cem anos antes. A segunda era da Organização Mundial da Saúde (OMS),
que, em duas ocasiões, havia constatado que os resultados referentes à
esquizofrenia eram muito melhores em países pobres, como a índia e a Ni-
géria, do que nos Estados Unidos e em outros países ricos. Entrevistei vá-
rios especialistas a respeito dos dados da OMS e eles sugeriram que os
maus resultados nos Estados Unidos se deviam a políticas sociais e valo-
res culturais. Nos países pobres as famílias davam mais apoio aos esqui-
zofrênicos, disseram eles. Embora isso parecesse plausível, não era uma
explicação inteiramente satisfatória e, depois de publicada a série no Bos-
ton Globe, voltei atrás e reli todos os artigos científicos relacionados com o
estudo da OMS sobre os resultados referentes à esquizofrenia. Foi então
que fiquei sabendo de um fato estarrecedor: nos países pobres, apenas
16% dos pacientes eram sistematicamente mantidos com medicamentos
antipsicóticos.
É esta a história da minha entrada no “campo minado” da psiquiatria.
Eu havia acabado de ser coautor de uma série que, numa de suas partes,
tinha se concentrado no quanto era antiético retirar a medicação de paci-
entes esquizofrênicos, e, no entanto, ali estava um estudo da OMS que pa-
recia haver encontrado uma associação entre os resultados positivos e
anão utilização contínua desses medicamentos. Escrevi Loucos nos Esta-
dos Unidos, que se transformou numa história do tratamento dos doentes
mentais graves em nosso país, para tentar compreender como isso era
possível.
Confesso tudo isto por uma razão simples. Uma vez que a psiquiatria é
um tema tão controvertido, considero importante os leitores compreende-
rem que iniciei esta longa jornada intelectual como alguém que acreditava
no saber convencional. Eu acreditava que os pesquisadores psiquiátricos
estavam descobrindo as causas biológicas das doenças mentais e que esse
conhecimento levara ao desenvolvimento de uma nova geração de drogas
psiquiátricas que ajudavam a “equilibrar” a química cerebral. Esses medi-
camentos eram como “insulina para o diabetes”. Eu acreditava que isso
era verdade, porque era o que me diziam os psiquiatras na época em que
eu escrevia para jornais. Depois, no entanto, tropecei no estudo de Har-
vard e nas descobertas da OMS, e isso levou a que eu me lançasse numa
busca intelectual que acabou por se transformar neste livro, Anatomia de
uma Epidemia.
PARTE I.
A EPIDEMIA
1.
UMA PRAGA MODERNA

“Esta é a essência da ciência: faça uma pergunta imperti-


nente e você estará a caminho de uma resposta perti-
nente.” - Jacob Bronowski, 1973
Esta é a história de um enigma da medicina. Trata-se de um enigma
de natureza extremamente curiosa, mas que nós, como sociedade, preci-
samos desesperadamente resolver, pois ele fala de urna epidemia oculta
que vem reduzindo a vida de milhões de norte-americanos, inclusive de
um número rapidamente crescente de crianças. Essa epidemia teve um
aumento de tamanho e alcance nas últimas cinco décadas, e hoje incapa-
cita 850 adultos e 250 crianças diariamente. E esses números estarrece-
dores dão apenas uma sugestão do verdadeiro alcance dessa praga mo-
derna, pois são somente a contagem dos que ficaram tão doentes que suas
famílias ou seus cuidadores foram autorizados a receber do governo fede-
ral um cheque de pensão por invalidez.
Então, eis o quebra-cabeça.
Como sociedade, passamos a entender que a psiquiatria fez grandes
progressos no tratamento das doenças mentais nos últimos cinquenta
anos. Há cientistas descobrindo as causas biológicas dos distúrbios men-
tais, e as empresas farmacêuticas desenvolveram diversos remédios efica-
zes para esses problemas de saúde. Essa história tem sido contada em jor-
nais, revistas e livros, e a prova de nossa crença nela como sociedade pode
ser encontrada em nossos gastos habituais. Em 2007, gastamos 25 bi-
lhões de dólares em antidepressivos e antipsicóticos e, para situar essa ci-
fra no panorama geral, ela foi superior ao produto interno bruto. de Cama-
rões, uma nação de 18 milhões de pessoas.
Em 1999, David Satcher, o diretor nacional de Saúde dos Estados Uni-
dos, resumiu bem essa história de progresso científico, num relatório de
458 páginas intitulado Saúde Mental. Segundo ele, podia-se dizer que a
era moderna da psiquiatria tivera início em 1954. Antes dessa data, a psi-
quiatria não dispunha de tratamentos que pudessem “impedir que os pa-
cientes ficassem cronicamente enfermos”. Mas então foi introduzido o Tho-
razine1. Essa foi a primeira droga a constituir um antídoto específico para

1 Torazina, vendida no Brasil com o nome comercial de Amplictil


um distúrbio mental - era um medicamento antipsicótico - e ela deu o
pontapé inicial numa revolução psicofarmacológica. Logo em seguida, fo-
ram descobertos agentes antidepressivos e ansiolíticos, e, como resultado,
hoje desfrutamos de “uma variedade de tratamentos, de eficácia bem do-
cumentada, para o conjunto de transtornos mentais e comportamentais
claramente definidos que ocorrem ao longo da vida”, escreveu Satcher. A
introdução do Prozac e de outros medicamentos psiquiátricos de “segunda
geração, acrescentou o diretor nacional de Saúde, foi “instigada por avan-
ços das neurociências e da biologia molecular” e representou mais um
avanço no tratamento das doenças mentais.
Os estudantes de medicina que fazem formação em psiquiatria leem
sobre essa i história em seus livros didáticos, e o público lê sobre ela nas
matérias populares a respeito desse campo. A torazina, escreveu Edward
Shorter, catedrático da Universidade de Toronto, em seu livro Uma Histó-
ria da Psiquiatria, de 1997, “iniciou na psiquiatria uma revolução compa-
rável à introdução da penicilina na medicina geral”. Esse foi o começo da
“era psicofarmacológica”, e agora podíamos ter certeza de que a ciência ha-
via provado que as drogas do armário de medicamentos da psiquiatria
eram benéficas. “Dispomos de tratamentos muito eficazes e seguros para
uma ampla gama de distúrbios psiquiátricos”, informou Richard Fried-
man, diretor da clínica de psicofarmacologia da Faculdade de Medicina
Weill Cornell, aos leitores do New York Times, em 19 de junho de 2007?
Três dias depois, num editorial intitulado “Quando as crianças precisam
de remédios”, o Boston Globe fez eco a esse sentimento: “O desenvolvi-
mento de medicamentos potentes revolucionou o tratamento da doença
mental”.
Psiquiatras que trabalham em países do mundo inteiro também creem
que isso seja verdade. Na 161ª Conferência Anual da Sociedade Norte-
Americana de Psiquiatria (APA)1, realizada em maio de 2008 em Washing-
ton, quase metade dos vinte mil psiquiatras presentes era estrangeira. Nos
corredores fervilhavam conversas sobre esquizofrenia, transtorno bipolar,
depressão, distúrbio do pânico, transtorno de déficit de atenção e hiperati-
vidade e uma multiplicidade de outros distúrbios descritos no Manual Di-
agnóstico e Estatístico de Doenças Mentais2 da APA, e, ao longo de cinco
dias, quase todas as palestras, seminários e simpósios falaram de avanços
nesse campo. Percorremos um longo caminho na compreensão dos

1 American Psychiatric Association


2 DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
transtornos psiquiátricos, e nossos conhecimentos continuam a se expan-
dir”, disse à plateia Carolyn Robinowitz, presidente da APA, em seu dis-
curso de abertura. Nosso trabalho salva e melhora inúmeras vidas.”
Mas aí é que está o enigma. Dado esse grande avanço no tratamento,
seria de se esperar que o número de inválidos1 por doença mental nos Es-
tados Unidos, numa estatística per capita, houvesse declinado nos últimos
cinquenta anos. Também seria de se esperar que o número de doentes
mentais inválidos, numa proporção per capita, houvesse diminuído desde
a chegada do Prozac, em 1988, e dos outros medicamentos psiquiátricos
de segunda geração. Deveríamos ter visto uma queda em duas etapas nas
taxas de invalidez. Ao contrário, à medida que se desdobrou a revolução
psicofarmacológica, o número de casos de invalidez por doença mental nos
Estados Unidos teve um aumento vertiginoso. Além disso, tal aumento
desse número de casos acelerou-se ainda mais desde a introdução do Pro-
zac e das outras drogas psiquiátricas de segunda geração. E o mais per-
turbador de tudo é que esta praga da era moderna vem se espalhando
agora entre as crianças do país.
Os dados sobre invalidez, por seu turno, levam a uma pergunta muito
mais ampla. Por que tantos norte-americanos, na atualidade, ainda que
não se hajam tornado inválidos por doenças mentais, são atormentados
por problemas mentais crônicos - por depressões recorrentes, sintomas bi-
polares e uma ansiedade incapacitante? Se dispomos de tratamentos que
lidam de maneira eficaz com esses distúrbios, por que a doença mental
tem se tornado um problema de saúde cada vez maior nos Estados Uni-
dos?

O termo disabled pode ser traduzido para o português como inválido, deficiente, incapacitado. No Brasil, tal
terminologia não é empregada no campo da saúde mental, por ser considerada politicamente incorreta.
Nos Estados Unidos, o governo federal, por intermédio da Administração do Seguro Social (Social Security
Administración), tem dois programas para pessoas que se tornam inválidas (disabled) e incapazes para tra-
balhar. Os doentes mentais considerados inválidos mencionados no texto de Whitaker são aquelas pessoas
que se encontram entre os considerados com alguma incapacidade (deficiência, invalidez) devida a doença.
Whitaker utiliza o termo com o sentido muito específico empregado nos Estados Unidos: o número de pes-
soas que recebem o pagamento do governo por invalidez, porque podem ser declaradas incapacitadas por
doença mental. Atualmente, os pesquisadores que buscam rastrear o número de inválidos por doença
mental na era moderna comparam-no com o número de pessoas em hospitais psiquiátricos antes da de-
sinstitucionalização, na medida em que eram vistos como uma população incapaz de cuidar de si própria.
Algo, portanto, muito importante: Whitaker não faz uso de “inválidos por doença mental” com algum tipo
de sentido genérico para descrever o doente mental. Mas usa tal expressão para definir um número de
pessoas que recebem do governo federal pagamentos por incapacidade, porque são considerados incapa-
citados para trabalhar devido à sua doença mental. (N.R.T.)
A Epidemia

Bem, juro que este não será apenas um livro de estatísticas. Estamos
tentando solucionar um mistério neste livro, e isto nos levará a uma explo-
ração da ciência e da história e, em última análise, a uma narrativa com
muitas reviravoltas surpreendentes. Mas esse mistério brota de uma aná-
lise profunda das estatísticas do governo e, portanto, como primeiro passo,
precisamos levantar os números da invalidez nos últimos cinquenta anos,
para ter certeza de que a epidemia é real.
Em 1955, os doentes mentais inválidos eram primordialmente tratados
em manicômios municipais e estaduais. Hoje em dia, é típico receberem
um pagamento mensal da Renda Complementar da Previdência (SSI)1 ou
uma pensão do Seguro da Previdência Social por Invalidez (SSDI)2, e mui-
tos vivem em abrigos residenciais ou em outras instituições residenciais
subsidiadas. Essas duas fontes estatísticas fornecem uma contagem apro-
ximada do número de pessoas sob a assistência do governo por terem sido
incapacitadas por doenças mentais.
Em 1955, havia 566.000 pessoas em hospitais psiquiátricos munici-
pais e estaduais. Entretanto, apenas 355.000 delas tinham um diagnós-
tico psiquiátrico, uma vez que as demais sofriam de alcoolismo, demência
ligada à sífilis, mal de Alzheimer e retardos mentais, população esta que
não figuraria numa contagem dos atuais casos de invalidez por doença
mental.8 Portanto, em 1955, um em cada 468 norte-americanos era hos-
pitalizado por doença mental. Em 1987, havia 1,25 milhão de pessoas re-
cebendo pensões da SSI ou do SSDI por invalidez decorrente de doença
mental, ou um em cada 184 norte-americanos.
Doentes mentais hospitalizados em 1955

1 Supplemental Security Income


2 Social Security Disability Insurance
Embora houvesse 558.922 pacientes residentes em hospitais psiquiátricos munici-
pais e estaduais em 1955, apenas 355.000 sofriam de doenças mentais. Os ou-
tros 200.000 eram pacientes idosos que sofriam de demência, sífilis em estágio
final, alcoolismo, retardo mental e diversas síndromes neurológicas1.
Ora, pode-se argumentar que isso é comparar alhos com bugalhos. Em
1955, talvez os tabus da sociedade a respeito da doença mental levassem
a uma relutância em procurar tratamento e, por isso, a baixos índices de
hospitalização. Também é possível que a pessoa precisasse estar mais do-
ente para ser hospitalizada em 1955 do que para receber uma pensão da
SSI ou do SSDI em 1987, e por isso o índice de invalidez em 1987 seria
tão mais elevado. Entretanto, também seria possível elaborar argumentos
no sentido inverso. Os números da SSI e do SSDI fornecem apenas uma
contagem dos doentes mentais inválidos com menos de 65 anos de idade,
ao passo que os hospitais psiquiátricos de 1955 abrigavam muitos esqui-
zofrênicos idosos. Também havia muito mais doentes mentais que eram
moradores de rua e estavam na cadeia em 1987 do que em 1955, e essa
população não aparece nos cálculos da invalidez. A comparação é imper-
feita, mas é a melhor que se pode fazer para levantar os índices de invali-
dez entre 1955 e 1987.
Felizmente, a partir de 1987, a comparação torna-se direta, envolvendo
apenas os números da SSI e do SSDI. A Administração Federal de Alimen-
tos e Medicamentos (FDA)2 aprovou o Prozac em 1987 e, nas duas déca-
das seguintes, o número de inválidos por doença mental nas listas da SSI
e do SSDI saltou para 3,97 milhões.9 Em 2007, o índice de invalidez era
de um em cada 76 norte-americanos. Isso equivale a mais do dobro do ín-
dice de 1987 e a seis vezes o de 1955. A comparação direta prova que há
alguma coisa errada.
Se vasculharmos um pouco mais os dados sobre invalidez, encontrare-
mos um segundo quebra-cabeça. Em 1955, a depressão grave e o trans-
torno bipolar não incapacitavam muita gente. Havia apenas 50.937 pes-
soas em hospitais psiquiátricos municipais e estaduais com diagnóstico de
um desses transtornos afetivos.10 Durante a década de 1990, entretanto,
pessoas em luta com a depressão e com o transtorno bipolar começaram a
aparecer nas listas da SSI e do SSDI em número cada vez maior, e hoje es-
tima-se que haja 1,4 milhão de pessoas de 18 a 64 anos que recebem pen-
são federal por invalidez em decorrência de transtornos afetivos. Acresce

1 Fonte: C. Silverman, The Epidemiolqry ofDepretsum, 1968: 139


2 Federal Drug Administration
que essa tendência vem se acelerando: de acordo com o relatório de 2008
do General Accountability Office (GAO), 46% dos adultos jovens (de 18 a
26 anos) que receberam pensão da SSI ou do SSDI por invalidez psiquiá-
trica em 2006 foram diagnosticados com algum transtorno afetivo (e ou-
tros 8% tornaram- se inválidos por “transtorno da ansiedade”).
Invalidez por doença mental na era do Prozac - Beneficiários da SSI e
do SSDI abaixo de 65 anos com invalidez por doença mental, 1987-2007

Um em cada seis beneficiários do SSDI também recebe pagamentos da SSI, de modo


que o número total de beneficiários é inferior à soma dos números da SSI e do
SSDI. Fonte: relatórios da Administração de Seguridade Social, 1987-2007.
Essa praga das doenças mentais incapacitantes também se espalhou
agora entre nossas crianças. Em 1987, havia 16.200 crianças abaixo de
18 anos que recebiam pensão da SSI como incapacitadas por doença men-
tal grave. Essas crianças correspondiam a apenas 5,5% das 293.000 in-
cluídas no rol dos inválidos - na época, a doença mental não era uma
causa preponderante de invalidez entre as crianças do país. A partir de
1990. porém, o número de crianças com doenças mentais começou a so-
frer uma elevação drástica, e no fim de 2007 havia 561.569 delas no rol
dos inválidos da SSL No curto intervalo de vinte anos, o número de crian-
ças incapacitadas por doenças mentais aumentou 35 vezes. Hoje cm dia, a
doença mental é a principal causa de invalidez nas crianças, e o grupo dos
doentes mentais abrangeu 50% do total de crianças no rol da SSI em
2007.
A natureza desconcertante dessa epidemia infantil aparece com espe-
cial clareza nos dados da SSI de 1996 a 2007. Enquanto o número de cri-
anças incapacitadas por doenças mentais mais do que duplicou durante
esse período, o número de crianças no rol da SSI por todas as outras ra-
zões - câncer, retardo mental etc. - diminuiu, baixando de 728.110 para
559.448. Ao que parece, os médicos do país estavam progredindo no trata-
mento de todas essas outras doenças, mas, no que dizia respeito às doen-
ças mentais, constatava-se exatamente o inverso.

Uma Investigação Científica

Agora o quebra-cabeça pode ser resumido com precisão. Por um lado,


sabemos que muitas pessoas são ajudadas por medicamentos psiquiátri-
cos. Sabemos que, muitas pessoas se estabilizam bem com eles e dão de-
poimentos pessoais sobre como os remédios as ajudaram a levar uma vida
normal. Além disso, como assinalou Satcher em seu relatório de 1999, a
literatura científica realmente documenta que as drogas psiquiátricas, pelo
menos a curto prazo, são “eficazes”. Os psiquiatras e outros médicos que
as receitam atestam esse fato, e muitos pais de crianças que tomam remé-
dios psiquiátricos também juram por sua eficácia. Tudo isso compõe um
poderoso consenso: as drogas psiquiátricas funcionam e ajudam as pes-
soas a levarem uma vida relativamente normal. No entanto, ao mesmo
tempo, ficamos às voltas com fatos perturbadores: o número de pessoas
com invalidez por doença mental teve um crescimento drástico desde
1955, e, nas duas últimas décadas, período em que houve uma explosão
nas receitas de medicamentos psiquiátricos, o número de adultos e crian-
ças incapacitados por doenças mentais subiu de maneira estarrecedora.
Chegamos assim a uma pergunta óbvia, ainda que de natureza herege:
poderia o nosso paradigma de atendimento medicamentoso, de alguma
forma imprevista, estar alimentando essa praga dos tempos modernos?
E minha esperança que Anatomia de uma Epidemia sirva como uma
exploração dessa pergunta. Também é fácil perceber o que deveremos en-
contrar, se quisermos resolver esse quebra-cabeça. Precisaremos descobrir
uma história da ciência que se desdobre no correr de 55 anos, provenha
das melhores pesquisas e explique todos os aspectos do nosso quebra-ca-
beça. A história deve revelar por que houve um aumento drástico do nú-
mero de inválidos por doença mental, deve explicar por que os transtornos
afetivos incapacitantes são tão mais comuns hoje do que há cinquenta
anos, e deve explicar por que atualmente tantas crianças vêm sendo
derrubadas por doenças mentais graves. E, se encontrarmos essa história,
deveremos estar aptos a explicar por que ela permaneceu oculta e desco-
nhecida.
Também é fácil perceber o que está em jogo. Os números da invalidez
são apenas um indício do extraordinário tributo que a doença mental tem
cobrado de nossa sociedade. Em seu relatório de junho de 2008, o GAO
concluiu que um em cada 16 adultos jovens dos Estados Unidos tem hoje
“uma doença mental grave”. Nunca houve uma sociedade que visse tama-
nha praga de doenças mentais cm seus adultos jovens, e os que entram
nas listas da SSI e do SSDI nessa faixa etária precoce tendem a passar o
resto da vida recebendo pensão por invalidez. O jovem de 20 anos que en-
tra nas listas da SSI ou do SSDI receberá mais de um milhão de dólares
em benefícios nos próximos quarenta anos, aproximadamente, e esse é
um custo - caso a epidemia continue aumentando - que nossa sociedade
não terá como bancar.
Há outro aspecto, mais sutil, nessa epidemia. Nos últimos 25 anos, a
psiquiatria remoldou profundamente a nossa sociedade. Por meio do seu
Manual Diagnóstico e Estatístico, ela traçou uma fronteira entre o que e
normal e o que não é. Nossa compreensão social da mente humana, que
no passado provinha de uma mescla de fontes (grandes obras de ficção,
investigações cientificas de textos filosóficos e religiosos), é hoje filtrada
pelo DSM. Na verdade, as histórias contadas pela psiquiatria sobre “os de-
sequilíbrios químicos” do cérebro reformularam nossa compreensão de
como funciona a mente e questionaram nossas concepções do livre-arbí-
trio. Será que somos realmente prisioneiros de nossos neurotransmisso-
res? Mais importante, nossas crianças são as primeiras da história hu-
mana a crescerem sob a sombra constante da “doença mental”. Não faz
muito tempo, os vadios, os gaiatos, os valentões, os cê-dê-efes, os tímidos,
os xodós dos professores e um sem-número de outros tipos reconhecíveis
enchiam os pátios das escolas, e todos eram considerados mais ou menos
normais. Ninguém sabia realmente o que esperar dessas crianças quando
chegassem à idade adulta. Isso fazia parte da gloriosa incerteza da vida - o
mandrião da quinta série podia aparecer na comemoração de vinte anos
de formatura do curso médio como o empresário rico, e a menina tímida,
como uma atriz de sucesso. Hoje em dia, no entanto, as crianças diagnos-
ticadas com problemas mentais - em especial transtorno do déficit de
atenção com hiperatividade [TDAH], depressão e transtorno bipolar — aju-
dam a povoar o pátio estudantil. Essas crianças são informadas de que há
algo errado com seu cérebro e de que talvez tenham que tomar remédios
psiquiátricos pelo resto da vida, assim como “o diabético toma insulina”.
Essa máxima da medicina ensina a todos os alunos do pátio uma lição so-
bre a natureza da humanidade, e essa lição difere radicalmente do que se
costumava ensinar às crianças.
Portanto, eis o que está em jogo nesta investigação: se for verdadeira a
história convencional, e se a psiquiatria de fato houver obtido grandes pro-
gressos na identificação das causas biológicas dos distúrbios mentais e no
desenvolvimento de tratamentos eficazes para essas doenças, poderemos
concluir que tem sido benéfica a remoldagem de nossa sociedade pela psi-
quiatria. Por pior que possa a epidemia de doenças mentais incapacitan-
tes, será razoável supormos que, avanços da psiquiatria, ela seria muito
pior. A literatura científica mostrará que milhões de crianças e adultos es-
tão sendo auxiliados pelos medicamentos psiquiátricos, e que sua vida
tem se tornado mais rica e mais plena, como disse Carolyn Robinowitz, a
presidente da APA, cm seu discurso na conferência de 2008 dessa enti-
dade. Mas, se desvendarmos uma história de outra natureza - uma histó-
ria que mostre que as causas biológicas das doenças mentais continuam
por ser descobertas e que, na verdade os medicamentos psiquiátricos vêm
alimentando a epidemia de doenças mentais incapacitantes —, o que di-
zer? Teremos documentado uma história que fala de uma sociedade terri-
velmente desencaminhada e, poderíamos dizer, traída.
E, se for esse o caso, passaremos a última parte deste livro exami-
nando o que, como sociedade, podemos fazer para construir um futuro di-
ferente.
2.
REFLEXÕES EXPERIENCIAIS

“Se valorizamos a busca do conhecimento, devemos ter a


liberdade de prosseguir nessa busca aonde quer que ela
nos leve” -Adlai Stevenson, 1952
O Hospital McLean, em Belmont, no estado de Massachussetts, é um
dos manicômios mais antigos dos Estados Unidos, pois foi fundado em
1817, quando um tipo de atendimento conhecido por terapia moral vinha
sendo popularizado pelos quacres. Era convicção deles que se devia cons-
truir um retiro para os doentes mentais num ambiente bucólico, e até hoje
o campus do McLean, com suas belas construções de tijolos e seus jardins
cheios de sombra, dá a impressão de um oásis. Na noite de agosto de
2008 em que lá cheguei, para comparecer a uma reunião da Aliança de
Apoio a Depressivos e Bipolares (DBSA)1, essa sensação de tranquilidade
foi acentuada pelas condições climáticas. Foi uma das noites mais glorio-
sas do verão e, quando me aproximei da lanchonete onde deveria realizar-
se o encontro, imaginei que talvez a frequência noturna fosse reduzida. A
noite estava agradável demais para se ficar num recinto fechado. Tratava-
se de uma reunião para moradores da comunidade, o que significava que
eles teriam que sair de suas casas e apartamentos para ir até lá, e, consi-
derando que o grupo do Hospital McLean se reunia cinco vezes por se-
mana - havia uma sessão vespertina todas as segundas, quintas, sextas e
sábados, bem como uma reunião noturna todas as quartas-feiras -, calcu-
lei que a maioria das pessoas ligadas ao grupo faltaria a esse encontro.
Eu estava errado.
Cerca de cem pessoas enchiam a cafeteria, numa cena que atestava,
em pequena escala, a epidemia de doenças mentais incapacitantes que
eclodiu em nosso país nos últimos vinte anos. A Aliança de Apoio a De-
pressivos e Bipolares foi fundada em 1985 (a princípio conhecida como As-
sociação dos Depressivos e Maníaco-Depressivos), iniciando-se esse grupo
do McLean pouco depois disso, e hoje a organização conta com quase mil
desses grupos de apoio em todo o território nacional. Existem sete deles
somente na área da Grande Boston, e a maioria - como o grupo que se re-
úne no McLean - oferece às pessoas a oportunidade de se reunirem e

1 Depression and Bipolar Support Alliance


conversarem várias vezes por semana. A DBSA cresceu pari passu com a
epidemia.
A primeira hora da reunião foi dedicada a uma palestra sobre a “tera-
pia da flutuação” e, à primeira vista, a plateia não era realmente identificá-
vel - pelo menos não para uma pessoa de fora, como eu - como um grupo
de pacientes. Os participantes tinham idades muito variadas, estando os
mais jovens no final da adolescência e os mais velhos na faixa dos 60
anos, e, embora houvesse um número maior de mulheres, talvez essa dis-
paridade de gênero fosse esperável, dado que a depressão afeta mais as
mulheres do que os homens. Quase todos na plateia eram brancos, o que
talvez refletisse o fato de Belmont ser uma cidade abastada. Talvez o único
sinal revelador de que a reunião era para pessoas diagnosticadas com al-
gum distúrbio mental fosse o fato de um bom número delas estar acima
do peso. As pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar é muito co-
mum receitar um antipsicótico atípico, como o Zyprexa, e esses remédios
costumam fazer as pessoas engordarem.
Terminada a palestra, Steve Lappen, um dos dirigentes da DBSA em
Boston, listou os novos grupos que passariam a se reunir. Havia um de
“recém-chegados”, outro de “familiares e amigos”, um terceiro de “adultos
jovens”, um quarto de “manutenção da estabilidade” e assim por diante, e
a última das oito opções era um “grupo do observador”, que Steve havia
organizado para mim.
Havia nove pessoas no nosso grupo (excetuando eu mesmo) e, à guisa
de introdução, cada um fez um rápido resumo de como vinha passando,
ultimamente - tenho atravessado uma fase difícil” era um refrão comum —
e nos falou de seu diagnóstico específico. O homem à minha direita era
um ex-executivo que havia perdido o emprego por causa de sua depressão
recorrente e, à medida que fizemos a ronda da sala, essas histórias de vida
foram surgindo. Uma mulher mais moça falou de seu casamento proble-
mático com um chinês que, em função de sua cultura, não gostava de fa-
lar em doença mental. Ao lado dela, um ex-promotor público contou ter
perdido a mulher dois anos antes e disse que, desde então, “tenho a im-
pressão de não saber quem eu sou”. Uma mulher que era professora ad-
junta numa faculdade da região contou como estava difícil o seu trabalho
naquele momento, e por fim, uma enfermeira recém-internada no McLean
por depressão explicou o que a levara para esse lugar sombrio: ela enfren-
tava a tensão de cuidar do pai doente, a tensão do trabalho e anos de con-
vívio com “um marido agressivo”.
O único momento mais leve dessa rodada de apresentações veio do
membro mais velho do grupo. Ele andava passando muito bem nos últi-
mos tempos, e sua explicação para sua relativa felicidade agradaria ao
personagem George Constanza, do seriado Seinfeld'. “O verão costuma ser
uma época difícil para mim, porque todos parecem muito felizes. Mas, com
toda a chuva que temos tido, não tem sido bem esse o caso neste verão”,
declarou.
Ao longo da hora seguinte, a conversa saltou de um assunto para ou-
tro. Houve uma discussão sobre o estigma enfrentado pelos doentes men-
tais na nossa sociedade, particularmente no trabalho, e sobre como os fa-
miliares e amigos, passado algum tempo, perdem a empatia. Ficou claro
que era por isso que muitos integrantes do grupo estavam lá - achavam
útil a compreensão compartilhada. A questão da medicação veio à baila e,
nesse tema, as opiniões e experiências eram muito variáveis. O ex-execu-
tivo, embora ainda sofresse regularmente de depressão, disse que sua me-
dicação fazia “maravilhas” por ele e que seu maior medo era que ela “pa-
rasse de funcionar”. Outros falaram de haver tentado um remédio após
outro, até encontrarem um regime medicamentoso que proporcionasse al-
gum alívio. Steve Lappen disse que os remédios nunca haviam funcionado
para ele, enquanto Dennis Hagler, o outro dirigente da DBSA na reunião
(que também concordou em ser identificado), disse que uma dose alta de
um antidepressivo tinha feito toda a diferença do mundo em sua vida. A
enfermeira disse ter reagido muito mal aos antidepressivos em sua hospi-
talização recente: “Tive uma reação alérgica a cinco remédios diferentes”,
afirmou. “Agora estou experimentando um dos novos [antipsicóticos] atípi-
cos. Espero que funcione.”
Terminadas as sessões grupais, as pessoas se reuniram na lanchonete
em grupos de duas ou três, conversando informalmente. Isso criou um
momento agradável; havia na sala um sentimento compartilhado de entu-
siasmo, e era perceptível que a noite havia levantado o ânimo de muitos.
Era tudo tão comum que aquilo poderia facilmente ser o encerramento de
uma reunião de pais e professores, ou uma reunião social da igreja, e, en-
quanto eu andava para o carro, foi esse aspecto corriqueiro que mais me
impressionou. No grupo do observador, houvera um homem de negócios,
um engenheiro, um historiador, um promotor público, uma professora
universitária, uma assistente social e uma enfermeira (as outras duas pes-
soas do grupo não tinham falado de sua história profissional). No entanto,
até onde pude perceber, apenas a professora universitária estava empre-
gada naquele momento. E este era o enigma: as pessoas do grupo do
observador tinham instrução e todas tomavam medicamentos psicotrópi-
cos, mas, ainda assim, muitas eram tão atormentadas pela depressão per-
sistente e por sintomas bipolares que não conseguiam trabalhar.
Mais cedo, Steve me dissera que cerca de metade dos membros da
DBSA recebia pensão da Renda Complementar da Previdência (SSI) ou do
Seguro da Previdência Social por Invalidez (SSDI) porque, aos olhos do go-
verno, essas pessoas estavam incapacitadas por suas doenças mentais. E
esse o tipo de paciente que vem inchando as listas da SSI e do SSDI nos
últimos 15 anos, enquanto a DBSA tornou-se a maior organização de pa-
cientes com doenças mentais do país durante esse período. Agora a psi-
quiatria tem três classes de medicamentos que usa para tratar os distúr-
bios afetivos - antidepressivos, estabilizadores do humor e antipsicóticos
atípicos mas, seja por que for, um número cada vez maior de pessoas apa-
rece nas reuniões da DBSA em todo o país, para falar de sua luta persis-
tente e duradoura com a depressão, a mania, ou ambas.

Quatro Histórias

Na medicina, as histórias pessoais dos pacientes diagnosticados com


uma doença são conhecidas como “estudos de caso”, e há um entendi-
mento de que, embora esses relatos experienciais possam trazer a compre-
ensão profunda de uma doença e de seus tratamentos, não têm como pro-
var se determinado tratamento funciona. Somente os estudos científicos
que examinam os efeitos do conjunto podem fazê-lo e, mesmo assim, é co-
mum ser nebuloso o quadro que emerge. A razão de os relatos experiên-
cias não poderem fornecer essa comprovação é que as pessoas podem ter
reações sumamente variáveis aos tratamentos médicos, o que é particular-
mente verdadeiro na psiquiatria. Podemos encontrar pessoas que nos fa-
lam de como os remédios psiquiátricos lhes trouxeram imensa ajuda; po-
demos encontrar pessoas que nos dirão como os remédios arruinaram sua
vida; e podemos encontrar pessoas - e estas parecem ser a maioria, na mi-
nha experiência - que não sabem o que pensar. Não conseguem propria-
mente decidir se os medicamentos as ajudaram ou não. Ainda assim, ao
nos propormos resolver o enigma da epidemia moderna de doenças men-
tais incapacitantes nos Estados Unidos, os relatos experienciais podem
ajudar-nos a identificar perguntas que será conveniente vermos respondi-
das em nossa investigação da literatura científica.
Vejamos quatro dessas histórias de vida.
Cathy Levin
Conheci Cathy Levin em 2004, não muito depois de publicar meu pri-
meiro livro sobre psiquiatria, Loucos nos Estados Unidos. Tornei-me um
admirador imediato do seu espírito de luta. A última parte deste meu pri-
meiro livro indagava se os medicamentos antipsicóticos estariam piorando
o curso da esquizofrenia a longo prazo (tema explorado no Capítulo 6 do
presente livro), e Cathy objetou a essa ideia, de certa maneira. Apesar de
ter sido inicialmente diagnosticada com um transtorno bipolar (em 1978),
seu diagnóstico fora posteriormente substituído por um distúrbio “esqui-
zoafetivo” e, na sua própria avaliação, ela fora salva por um antipsicótico
atípico, o Risperdal. Em certo sentido, a história que eu havia relatado cm
Loucos nos Estados Unidos ameaçava a experiência pessoal de Cathy, que
me telefonou várias vezes para me dizer o quanto essa droga lhe fora útil.
Nascida em 1960 num subúrbio residencial de Boston, Cathy havia
crescido no que recordava como um mundo “dominado pelos homens”.
Seu pai, professor de uma universidade na área de Boston, era veterano
da Segunda Guerra Mundial, e sua mãe, do estilo dona de casa, via esses
homens como “a espinha dorsal da ordem social”. Seus dois irmãos mais
velhos, ela se lembrou, costumavam “intimidá-la” e, em mais de uma oca-
sião, desde quando era bem pequena, vários meninos do bairro a haviam
molestado. “Eu vivia chorando quando era criança”, disse ela, que não
raro fingia estar doente para não ter de ir à escola, preferindo, em vez
disso, passar os dias sozinha em seu quarto, lendo livros.
Embora se saísse bem no segundo grau, em termos acadêmicos, Cathy
tinha sido “uma adolescente difícil, hostil, raivosa, retraída”. No segundo
ano do bacharelado, na Faculdade Earlham, em Richmond, estado de In-
diana, seus problemas afetivos se agravaram. Ela começou a se divertir
com os rapazes do time de futebol americano, ansiosa “por transar”, disse,
mas, ao mesmo tempo, com medo de perder a virgindade. “Eu ficava con-
fusa quanto a me envolver com algum cara. Ia a uma porção de festas e
não conseguia mais me concentrar nos estudos. Comecei a levar pau na
faculdade.”
Cathy também estava fumando muita maconha, e logo começou a agir
de maneira excêntrica. Pegava roupas emprestadas de outras pessoas
para usar, e circulava pelo campus com “tamancos enormes, um macacão
por cima da roupa comum, uma jaqueta de aviador e um chapéu engra-
çado, que comprei numa loja de artigos do Exército e da Marinha”. Uma
noite, ao voltar de uma festa para casa, ela jogou fora os óculos, sem a
menor razão para isso. Suas ideias sobre sexo evoluíram aos poucos para
uma fantasia com o comediante Steve Martin. Sem conseguir dormir a
noite inteira, ela acordava às 4 horas da manhã e saía para caminhar, e às
vezes, era como se Steve Martin estivesse no campus a espreitá-la. “Eu
achava que ele estava apaixonado por mim e correndo pelos arbustos, sem
se deixar ver”, disse. “Estava me procurando.”
A mania e a paranoia foram se combinando numa mistura volátil. O
ponto de ruptura veio na noite em que ela atirou um objeto de vidro na pa-
rede de seu quarto, no dormitório. “Não limpei aquilo, fiquei andando em
volta. Fiquei tirando cacos de vidro dos pés, sabe? Estava completamente
fora de mim.”
Funcionários da faculdade chamaram a polícia e Cathy foi levada às
pressas para um hospital, e foi nesse momento, dias antes de ela comple-
tar 18 anos, que teve início sua vida medicada. Ela foi diagnosticada com
psicose maníaco-depressiva, informada de que sofria de um desequilíbrio
químico no cérebro e tratada com Haldol [haloperidol] e lítio.
Nos 16 anos seguintes, Cathy entrou e saiu ciclicamente de hospitais.
Ela “detestava os remédios” - o Haldol lhe enrijecia os músculos e a fazia
babar, ao passo que o lítio a deixava deprimida - e, muitas vezes, parava
abruptamente de tomá-los. “Era maravilhoso sair da medicação”, disse-
me, e até hoje, ao se lembrar dessa sensação, ela parece perder-se no puro
deleite de uma lembrança do passado distante. “Quando você larga os re-
médios, é como tirar um casaco de lã molhado que estava usando, apesar
de ser um lindo dia de primavera, e, de repente, sentir- se muito melhor,
mais livre, com mais prazer.” O problema era que, sem os medicamentos,
ela “começava a descompensar e a ficar desorganizada”.
No início de 1994, Cathy foi hospitalizada pela décima quinta vez. Era
vista como doente mental crônica, passara a ouvir vozes de vez em
quando, e recebeu um novo diagnóstico (transtorno esquizoafetivo) e um
coquetel de drogas: Haldol, Ativan, Tegretol, Halcion e Cogentin, sendo
esta última droga um antídoto contra os efeitos colaterais desagradáveis
do Haldol. No entanto, depois de receber alta naquela primavera, um psi-
quiatra lhe disse para experimentar o Risperdal, um novo antipsicótico
que acabara de ser aprovado pela Administração Federal de Alimentos e
Medicamentos (FDA). “Três semanas depois, minha mente estava muito
mais, ciara”, disse Cathy. “As vozes começaram a desaparecer. Deixei os
outros remédios e passei a tomar apenas esse. Melhorei. Pude começar a
fazer planos. Parei de conversar com o Diabo. Jesus e Deus pararam de
travar batalhas na minha cabeça.”
O pai de Cathy assim resumiu a situação: “A Cathy voltou”.
Embora vários estudos financiados pelo Instituto Nacional de Saúde
Mental e pelo governo britânico tenham constatado que, de modo geral, os
pacientes não se saem melhor com o Risperdal e os outros antipsicóticos
atípicos do que com os antipsicóticos mais antigos, ficou patente que Ca-
thy respondeu muito bem a esse novo agente. Voltou a estudar e se for-
mou em rádio, cinema e televisão na Universidade de Maryland. Em 1998,
começou a sair com o homem com quem vive hoje, Jonathan. Em 2005,
aceitou um emprego de meio expediente como editora de Voices for
Change, um boletim de notícias publicado pelo M-Power, um grupo de
consumidores de Massachusetts, e conservou esse emprego por três anos.
Na primavera de 2008, ajudou a conduzir uma campanha do M-Power
para fazer a Câmara dos Deputados de Massachusetts aprovar uma lei
para proteger os direitos dos pacientes psiquiátricos nos prontos-socorros.
Apesar disso, ela continua a receber pensão do SSDI — “sou uma mulher
sustentada”, brinca — e, embora haja muitas razões para isso, acredita
que o Risperdal, justamente a droga que tanto a ajudou, tem se revelado
uma barreira ao trabalho em horário integral. Ainda que ela costume ter
muita energia no começo da tarde, o Risperdal a deixa tão sonolenta de
manhã que ela tem dificuldade de se levantar. O outro problema é que
sempre teve dificuldade para se relacionar com outras pessoas, e o Risper-
dal agrava esse problema, ao que ela diz. “Os remédios isolam a gente. In-
terferem na empatia. Há uma certa apatia, e por isso a gente sempre se
sente constrangida com as pessoas. Eles tornam difícil nós nos relacionar-
mos. Os remédios podem cuidar da agressividade, da ansiedade e de um
pouco da paranoia, sintomas desse tipo, mas não ajudam na empatia que
contribui para nos darmos bem com as pessoas.”
O Risperdal também cobrou um tributo físico. Cathy tem l,58m de al-
tura, cabelo castanho ondulado e, apesar de sua razoável forma física,
deve estar uns 27 quilos acima do que seria considerado o peso ideal.
Também desenvolveu alguns dos problemas metabólicos, como o coleste-
rol elevado, que os antipsicóticos atípicos sempre costumam causar.
“Posso enfrentar qualquer velhinha, em pé de igualdade, com um rosário
dos meus problemas de saúde”, diz ela. “Problemas com os pés, a bexiga,
o coração, os seios nasais, o aumento de peso, tudo isso eu tenho.” Mais
alarmante ainda foi que, em 2006, sua língua começou a enrolar na boca,
sinal de que ela estaria desenvolvendo uma discinesia tardia. Quando apa-
rece, esse efeito colateral significa que os gânglios basais, a parte do
cérebro que controla o funcionamento motor, está ficando permanente-
mente disfuncional, danificada por anos de tratamentos medicamentosos.
Mas Cathy não consegue passar bem sem o Risperdal e, no verão de 2008,
isso a levou a um momento de profundo desespero: “É claro que, daqui a
alguns anos, terei um aspecto meio horripilante, com os movimentos invo-
luntários na boca.
Assim tem sido o curso da sua vida com os medicamentos. Dezesseis
anos terríveis, seguidos por 14 anos bastante bons com o Risperdal. Cathy
acredita que hoje essa droga é essencial para sua saúde mental e, na ver-
dade, poderia ser vista como uma garota-propaganda local na promoção
das maravilhas desse remédio. No entanto, se pensarmos no longo curso
de sua doença e remontarmos à sua primeira hospitalização, aos 18 anos
de idade, seremos forçados a perguntar: ela teve uma história de vida apri-
morada por nosso paradigma de tratamento medicamentoso dos distúr-
bios mentais, ou será que teve uma história de vida piorada? De que ma-
neira poderia ter se desenrolado a sua vida se, ao sofrer seu primeiro epi-
sódio maníaco, no outono de 1978, ela não tivesse sido imediatamente
medicada com lítio e Haldol, e se, em vez disso, os médicos houvessem
tentado outros meios - repouso, terapias psicológicas etc. - para restaurar
sua sanidade? Ou se, depois de estabilizada por esses medicamentos, ela
tivesse sido incentivada a se desabituar deles? Teria ela passado 16 anos
entrando e saindo de hospitais? Teria sido incluída no SSDI e permane-
cido nele desde então? Como estaria hoje a sua saúde física? Como teria
sido sua experiência subjetiva da vida ao longo desses anos? E, se hou-
vesse conseguido passar bem sem as drogas, quantas outras coisas teria
realizado na vida?
Esta última era uma questão em que Cathy, dada a sua experiência
com o Risperdal, não havia pensado muito, antes de nossas conversas.
Mas, depois que a levantei, pareceu obcecada com essa possibilidade, a
qual trouxe à baila repetidas vezes em nossos encontros. “Eu teria sido
mais produtiva sem os remédios”, disse, na primeira vez. “Eu ficaria deso-
lada” se pensasse nisso, afirmou posteriormente. Em outra ocasião, la-
mentou que, passando a vida com antipsicóticos, “a gente perca a alma e
nunca mais a recupere. Fiquei empacada no sistema e na luta para tomar
remédios. Por fim, ela me disse isto: “O que eu lembro, quando olho para
trás, é que, no começo, eu não estava realmente tão doente assim. Na ver-
dade, só estava confusa. Eu tinha todas aquelas questões, mas ninguém
conversava comigo sobre isso. Ainda hoje, eu gostaria de poder largar os
remédios, mas não há ninguém para me ajudar nisto. Não sei nem
começar um diálogo”.
Não há como saber, é claro, o que teria sido uma vida sem remédios
para Cathy Levin. Entretanto, mais adiante neste livro, veremos o que a ci-
ência tem a revelar sobre o possível curso que sua doença teria tomado se,
naquele momento fatídico de 1978, depois do episódio psicótico inicial, ela
não tivesse sido medicada nem informada de que teria de tomar remédios
pelo resto da vida. A ciência deveria poder dizer-nos se os psiquiatras têm
razões para acreditar que seu paradigma de tratamento medicamentoso
altere para melhor ou para pior os efeitos a longo prazo. Mas Cathy acre-
dita que essa é uma questão que os psiquiatras nunca consideram. “Eles
não fazem a menor ideia de como essas drogas nos afetam a longo prazo.
Só tentam estabilizar a pessoa naquele momento, e procuram controlá-la
de semana em semana, de um mês para o outro. É só nisso que eles pen-
sam”.

George Badillo
Atualmente, George Badillo mora em Sound Beach, em Long Island, e
sua casa caprichosamente arrumada fica a uma pequena distância da
praia. Aos quase 50 anos, ele está em boa forma, penteia o cabelo ligeira-
mente grisalho para trás e tem um sorriso fácil e caloroso. Seu filho de 13
anos, Brandon, mora com ele — “Está no time de futebol americano, na
equipe de luta romana e no time de basquete, e está no quadro de honra”,
disse-me George, com compreensível orgulho -, e a filha de 20 anos, Ma-
delyne, que e aluna da Faculdade de Staten Island, estava lhe fazendo
uma visita no dia em que estive com ele. Mesmo à primeira vista, era pa-
tente que os dois estavam felizes por passarem esse tempo juntos.
Como muitas pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, George se
lembra de ter sido “diferente” na infância. Quando menino, crescendo no
Brooklyn, sentia-se isolado das outras crianças, em parte porque seus
pais porto-riquenhos só falavam espanhol: “Eu me lembro de todos os ou-
tros garotos conversando e sendo camaradas e extrovertidos, convivendo
uns com os outros, mas eu não sabia fazer isso. Sentia vontade de falar
com eles, mas sempre ficava apreensivo”, recordou. George também tinha
um pai alcoólatra que sempre batia nele, e por isso começou a achar que
“as pessoas viviam tramando coisas e querendo me machucar”.
Ainda assim, ele se saiu bem na escola, e só no fim da adolescência,
quando era aluno do Baruch Gollege, foi que sua vida começou a dar er-
rado: “Entrei numa vida de discotecas”, explicou. “Comecei a usar
anfetaminas, maconha e cocaína, e gostei. As drogas me relaxavam. Só
que a coisa fugiu do controle e a cocaína começou a me fazer pensar
numa porção de maluquices. Fiquei paranoico de verdade. Achava que ha-
via conspirações e tudo o mais. As pessoas me perseguiam, e o governo
estava envolvido nisso”. George acabou fugindo para Chicago, onde foi mo-
rar com uma tia e se retirou do mundo que julgava persegui-lo. Assus-
tada, a família o persuadiu a voltar para casa e o levou à unidade psiquiá-
trica do Hospital Judaico de Long Island, onde ele foi diagnosticado como
esquizofrênico paranoide. “Ficaram todos me dizendo que meu cérebro es-
tava estragado e que eu ficaria doente pelo resto da vida”, comentou.
Os nove anos seguintes passaram-se num remoinho caótico. Tal como
Cathy Levin, George detestava o Haldol e os outros antipsicóticos que os
médicos o mandavam tomar e, em parte por esse desespero induzido pelas
drogas, fez múltiplas tentativas de suicídio. Brigou com a família por
causa dos medicamentos, largou as drogas e voltou para elas, passou por
um ciclo de várias hospitalizações e, em 1987, tornou-se pai, quando sua
namorada de 18 anos deu à luz Madelyne. Casou-se com a namorada, de-
cidido a ser um bom pai, mas Madelyne era uma criança doentia, e ele e
sua mulher sofreram crises nervosas na tentativa de cuidar da menina. A
avó dele levou Madelyne para Porto Rico, e George acabou divorciado e
morando num asilo para inválidos. Ali conheceu e se casou com uma mu-
lher igualmente diagnosticada como esquizofrênica paranoide e, após uma
série de aventuras e desventuras em San Francisco, também eles se divor-
ciaram. No começo de 1991, desanimado e novamente paranoide, George
baixou no Centro Psiquiátrico Kings Park, um hospital estadual dilapidado
em Long Island.
E veio então seu mergulho no desamparo completo. Depois de tentar
introduzir clandestinamente uma pistola no hospital, para poder se matar,
ele recebeu uma sentença de dois anos numa ala de acesso restrito. Em
seguida, ao se aproximar o Natal daquele ano, aborreceu-se quando vários
pacientes que eram seus colegas não receberam autorização para passar
as festas em casa e ajudou-os a fugir, quebrando uma janela em seu
quarto e amarrando lençóis uns nos outros para que eles pudessem des-
cer até o chão. O hospital reagiu mandando-o para uma ala destinada a
pessoas que estavam internadas havia décadas. “Fiquei então numa ala
com pessoas que se urinavam”, recordou. “Eu era um perigo para a socie-
dade e fui dopado. A pessoa fica sentada o dia inteiro, vendo televisão. Não
pode nem ir para o lado de fora. Achei que minha vida tinha acabado.”
George passou oito meses nessa ala de doentes mentais incuráveis,
perdido numa névoa de drogas. Entretanto, foi finalmente transferido para
uma unidade em que podia sair dos recintos fechados e, de repente, lá es-
tavam o céu azul para ver e o ar puro para respirar. Ele começou a reter a
medicação antipsicótica na língua e a cuspi-la quando o pessoal hospita-
lar não estava olhando. “Voltei a poder pensar”, contou. “As drogas anti-
psicóticas não me deixavam pensar. Eu parecia um vegetal e não conse-
guia fazer nada. Não tinha emoções. Ficava lá sentado, vendo televisão.
Mas, nessa ocasião, eu me senti com um controle maior. E foi ótimo voltar
a me sentir vivo.”
Por sorte, George não sofreu um retorno dos sintomas psicóticos e, não
mais tendo o corpo amolecido pelos remédios, começou a fazer jogging e
levantamento de peso. Enamorou-se de mais uma paciente do hospital,
Tara McBride, e, em 1995, depois que os dois receberam alta e se transfe-
riram para uma residência comunitária próxima, Tara deu à luz Brandon.
George, que nunca havia perdido inteiramente o contato com a filha, Ma-
delyne, passou a ter um novo objetivo na vida: “Percebi que eu tinha uma
segunda chance. Eu queria ser um bom pai”.
No começo, as coisas não correram bem. Tal como Madelyne, Brandon
nasceu com problemas de saúde - tinha uma anomalia intestinal que pre-
cisou de cirurgia e Tara entrou em crise, em função do estresse, e tornou a
ser hospitalizada. Como George continuava morando numa residência
para doentes mentais, o Estado julgou que ele não tinha condições para
cuidar de Brandon, que foi entregue à irmã de Tara para ser criado. Em
1998, porém, George começou a trabalhar em regime de meio expediente
como facilitador entre pares no Serviço de Saúde Mental do Estado de
Nova York, orientando pacientes internados sobre seus direitos, e, três
anos depois, pôde apresentar-se ao tribunal como alguém capaz de ser um
bom pai para Brandon. “Minha irmã Madeline e eu obtivemos a custódia”,
contou. “Foi a melhor sensação possível. Simplesmente dei pulos de ale-
gria. Parece ter sido a primeira vez que alguém no sistema obteve a custó-
dia dos filhos.”
No ano seguinte, uma das irmãs de George comprou-lhe a casa em que
ele mora atualmente. Embora ainda receba pensão do SSDI, ele trabalha
sob contrato para um órgão federal, a Administração de Serviços de Saúde
Mental e Controle de Abuso de Drogas, e faz trabalhos voluntários com jo-
vens hospitalizados em Long Island. Sua vida é repleta de sentido e, como
atesta o sucesso de Brandon na escola, George tem se revelado o bom pai
que sonhava tornar-se. Madelyne, por sua vez, orgulha-se escancarada-
mente do pai. “Ele queria o Brandon e eu na sua vida”, disse. “Isso o fez
querer dar a volta na sua situação. Ele queria ser um pai para nós. E é a
prova de que uma pessoa pode se recuperar da doença mental.”
Embora a história de George seja claramente inspiradora, ela não
prova nada, em um sentido ou em outro, sobre os méritos globais dos an-
tipsicóticos. Mas instiga uma indagação de ordem clínica: dado que sua
recuperação começou quando ele parou de tomar antipsicóticos, será pos-
sível que algumas pessoas que sofrem de doenças mentais graves, como a
esquizofrenia ou o transtorno bipolar, venham a se recuperar na ausência
de medicação? Porventura a história dele é uma anomalia, ou proporciona
um discernimento do que seria um caminho bastante comum de recupe-
ração? George, que hoje toma Ambien [zolpidem] ou uma dose baixa de
Seroquel [quetiapina], ocasionalmente, para dormir à noite, acredita que,
pelo menos no seu caso, foi o abandono dos medicamentos que lhe permi-
tiu melhorar: “Se cu tivesse continuado a tomar aqueles remédios, não es-
taria onde estou hoje. Estaria preso num asilo para adultos em algum lu-
gar, ou no hospital. Mas estou recuperado. Ainda tenho umas ideias estra-
nhas, mas agora as guardo para mim. E supero qualquer estresse emocio-
nal que apareça. Ele fica comigo algumas semanas, depois vai embora.

Monica Briggs
Monica Briggs é uma mulher alta, marcante e, como tantas pessoas
que atuam no movimento de “recuperação dos pares”, imensamente agra-
dável. No dia em que almocei com ela, num restaurante do bairro de
South Boston, Monica chegou à mesa mancando, apoiada numa bengala,
por ter se machucado em data recente, e, quando lhe perguntei como ti-
nha ido até lá, ela sorriu, discretamente satisfeita consigo mesma: “Vim de
bicicleta”, disse.
Nascida em 1967, Monica é de Wellesley, no estado de Massachusetts,
e, como adolescente criada naquela comunidade abastada, parecia ser a
última pessoa fadada a ter pela frente uma vida de doença mental. Vinha
de uma família culta - a mãe era professora da Universidade de Wellesley e
o pai lecionava em diversas faculdades da área de Boston - e, na infância,
tinha sido uma criança que se sobressaía em tudo que fazia. Era boa
atleta, tirava as mais altas notas e exibia um talento especial para a pin-
tura e a literatura. Ao concluir o curso médio, recebeu vários prêmios sob
a forma de bolsas de estudos e, ao ingressar na Faculdade de Middlebury,
em Vermont, no outono de 1985, acreditou que sua vida seguiria um
rumo muito convencional: “Achei que eu iria para a faculdade, me casaria,
teria um labrador cor de chocolate e uma casa num subúrbio residencial,
com um SUV (...) Eu achava que tudo aconteceria assim”.
Depois de um mês como caloura na Middlebury, Monica foi atingida de
surpresa por um grave episódio depressivo, que pareceu não ter causa al-
guma. Ela nunca tivera problemas afetivos até então, não havia aconte-
cido nada de mau em Middlebury e, ainda assim, a depressão a atingiu
com tal força que ela teve de deixar a faculdade e voltar para casa. “Eu
nunca linha abandonado coisa alguma”, disse. “Achei que minha vida es-
tava acabada. Achei que aquilo era um fracasso de que eu nunca poderia
me recuperar.”
Meses depois, ela regressou a Middlebury. Estava tomando um antide-
pressivo (desipramina) c, com a aproximação da primavera, seu estado de
ânimo começou a melhorar. Mas não melhorou simplesmente num nível
“normal”. Em vez disso, seu ânimo disparou para além do que parecia ser
uma situação muito melhor. Ela ficou com energia para dar e vender. Pas-
sou a fazer longas corridas e se entregou à pintura, produzindo rapida-
mente autorretratos esmerados a carvão e a pastel. Sentia tão pouca ne-
cessidade de sono que abriu uma empresa de camisetas. “Era fantástico,
genial”, disse. “Eu não me achava Deus nem nada, mas me sentia muito
perto de Deus, àquela altura. Isso durava várias semanas, e depois eu de-
sabava durante o que parecia ser uma eternidade.”
Era o começo da longa batalha de Monica com o transtorno bipolar. A
depressão dera lugar à mania, seguida por uma depressão ainda pior.
Apesar de ter conseguido concluir o primeiro ano com média 9, ela come-
çou a passar por episódios cíclicos de depressão e mania e, em maio do
segundo ano, tomou um punhado de comprimidos para dormir, com a in-
tenção de se matar. Nos 15 anos seguintes, foi hospitalizada três vezes.
Embora o lítio mantivesse a mania sob controle, a depressão suicida sem-
pre voltava, e os médicos receitavam um antidepressivo após outro, na
tentativa de encontrar a pílula mágica que a ajudaria a ficar bem.
Entre as internações, houve períodos em que Monica ficou razoavel-
mente estável, e ela os aproveitou ao máximo. Em 1994, bacharelou-se na
Faculdade de Pintura e Desenho de Massachusetts e, depois disso, traba-
lhou para várias agências de publicidade e editoras. Tornou-se membro
atuante da Associação Nacional de Depressivos e Maníaco-Depressivos e
desenhou o logotipo da instituição, o “urso bipolar”. Em 2001, porém, de-
pois de ser demitida do emprego, por haver passado uma semana em casa
por causa da depressão, seus impulsos suicidas voltaram para valer. Ela
comprou um revólver, mas só conseguiu que ele falhasse seis vezes
quando tentou se matar. Passou três noites num viaduto acima de uma
rodovia, querendo desesperadamente atirar-se na autoestrada lá embaixo,
mas se abstendo por achar que poderia causar um acidente que feriria ou-
tras pessoas. Foi internada várias vezes e então, em 2001, sua mãe mor-
reu de um câncer no pâncreas, e suas batalhas mentais tomaram um
rumo ainda pior. “Fiquei psicótica, alucinando, vendo coisas. Achei que ti-
nha superpoderes e podia alterar o curso do tempo. Achei que tinha asas
de três metros e podia voar.”
Foi nesse ano que ela entrou no SSDI. Dezessete anos depois de seu
episódio maníaco inicial, ela se tornou oficialmente inválida, em decorrên-
cia de transtorno bipolar. “Detestei isso”, afirmou. “Eu era uma moça de
Wellesley dependendo da previdência social, e não era isso que se espe-
rava que fizessem as moças de Wellesley. Aquilo era muito corrosivo para
a autoestima.
Como se poderia supor, considerando que Monica chegou ao restau-
rante de bicicleta, havendo pedalado até lá no seu intervalo de almoço no
trabalho, sua vida acabou dando uma guinada para melhor. Em 2006, ela
parou de tomar um antidepressivo e isso desencadeou uma “mudança
drástica. A depressão cedeu e ela começou a trabalhar meio expediente no
Centro de Transformação, uma organização de pares em Boston que ajuda
pessoas com diagnósticos psiquiátricos. Embora o lítio que ela continua a
tomar tenha seus inconvenientes - “minha capacidade de criar trabalhos
artísticos acabou”, disse-me -, ele não lhe cobrou um tributo físico dema-
siadamente grande. Apesar de Monica ter problemas de tireoide e sofrer
tremores, seus rins estão bem. “Agora estou em recuperação”, disse ela, e,
ao nos levantarmos para sair do restaurante, deixou claro que gostaria de
obter um emprego de horário integral e sair do SSDI. “Depender da previ-
dência é uma fase da minha vida”, afirmou em tom enfático, “não um fim.”
Foi esse o arco longo da sua doença. Como estudo clínico, sua história
simplesmente parece falar dos benefícios do lítio. Ao que parece, essa
droga tem mantido sua mania sob controle há décadas e, como monotera-
pia, tem contribuído para mantê-la estável desde 2006. Apesar disso, após
anos de tratamento medicamentoso, Monica acabou no rol do SSDI e, nes-
sas condições, sua história ilustra um dos mistérios centrais da epidemia
de invalidez. Como é que uma pessoa tão inteligente e preparada acabou
nesse programa de governo? E, se retrocedermos o relógio para a prima-
vera de 1986, veremos surgir uma pergunta intrigante: ela sofreu seu pri-
meiro episódio maníaco por ser “bipolar”, ou o antidepressivo induziu a
mania? Será possível que a droga a tenha transformado de alguém que so-
freu um episódio depressivo numa paciente bipolar, e com isso a tenha co-
locado no caminho da doença crônica? E será que o uso posterior de anti-
depressivos alterou para pior o curso de sua “doença bipolar”, por uma ra-
zão ou por outra?
Dito de outra maneira, no mundo das pessoas que frequentam as reu-
niões da DBSA, com que frequência elas falam em ter se tornado bipolares
depois do tratamento inicial com um antidepressivo?

Dorea Vierling-Claassen
Se você tivesse conhecido Dorea Vierling-Glaassen em 2002, quando
ela estava com 25 anos, ela lhe diria que era “bipolar”. Havia recebido esse
diagnóstico em 1998 e ouvido dó psiquiatra a explicação de que sofria de
um desequilíbrio químico no cérebro, e, em 2002, tomava um coquetel de
drogas que incluía um antipsicótico, o Zyprexa. No entanto, no outono de
2008, ela havia suspendido toda a medicação psiquiátrica (já fazia dois
anos), prosperava numa vida que girava em torno do casamento, da ma-
ternidade e de sua pesquisa pós-doutoral no Hospital Geral de Massachu-
setts, e estava convencida de que seus anos de “bipolaridade” tinham sido
um grande erro. Ela acredita ter sido um dos milhões de norte-americanos
apanhados no frenesi de diagnosticar esse distúrbio, o que por muito
pouco não acabou por transformá-la em paciente mental por toda a vida.
“Escapei por um triz”, diz ela.
Dorea contou-me sua história na cozinha de seu apartamento em
Cambridge, no Massachusetts. Sua companheira, Angela, estava presente,
e a filha de 2 anos das duas dormia no quarto ao lado. Com suas sardas e
o cabelo ligeiramente eriçado, além de seu evidente gosto pela vida, Dorea
dá a impressão de ter sido uma criança meio travessa e, em certa medida,
é assim que se lembra de si mesma: “Eu era extremamente inteligente, fi-
cava na ponta desse espectro, e por isso era a menina nerd. Mas tinha
amigos. Era hábil no convívio social, porque era também a garota engra-
çada”.
Se houvera alguma coisa fora de esquadro na sua vida de menina, ti-
nha sido o fato de ela ser sumamente emotiva, propensa a “explosões de
raiva” e a “crises de choro”. “Encantadora, mas esquisita” — foi assim que
resumiu a descrição do que era aos 7 anos.
Como muitas crianças brilhantes e “esquisitas”, Dorea encontrou ativi-
dades em que se destacava. Desenvolveu uma paixão pelo trompete e se
tornou uma musicista consumada. Aluna excelente, tinha especial talento
para a matemática. No segundo ciclo, fez parte da equipe de atletismo e ti-
nha muitos amigos. No entanto, continuava bastante emotiva - essa parte
de sua personalidade não tinha desaparecido - e havia uma fonte muito
real de aflição em sua vida: ela estava começando a compreender que era
lésbica. Seus pais eram “cristãos extremamente conservadores”, e embora
ela os amasse e sentisse profunda admiração pela devoção de ambos à
justiça social - o pai, médico, dedicava metade do seu tempo ao trabalho
voluntário numa clínica que havia fundado em Five Points, um bairro de-
cadente da cidade de Denver —, temia que, por causa das convicções reli-
giosas, eles não aceitassem sua homossexualidade. Terminado o primeiro
ano de seu curso no Instituto Peabody, um prestigiado conservatório de
música em Baltimore, Dorea respirou fundo e revelou seu segredo aos
pais. Foi basicamente tão terrível quanto se poderia esperar”, contou.
“Houve lagrimas e ranger de dentes. Aquilo estava desesperadamente ar-
raigado nas convicções religiosas deles”.
Dorea mal falou com os pais nos dois anos seguintes. Saiu do Peabody
e passou a se dar com uma turma punk que morava no centro de Denver.
A antiga aspirante a trompetista passou a circular pela cidade com a ca-
beça raspada e usando botas de combate. Depois de um ano de trabalho
numa loja de restauração de tapetes, matriculou-se na Faculdade Esta-
dual Metropolitana de Denver, uma instituição em que a maioria dos alu-
nos não morava no campus. Ali, travou uma luta constante com suas
emoções, chorando com frequência em público, e logo começou a consul-
tar um terapeuta, que a diagnosticou como deprimida. A terapia da fala
não trouxe grande alívio e, na semana das provas finais, na primavera de
1998, Dorea descobriu que não conseguia dormir. Quando apareceu agi-
tada e meio maníaca no consultório do terapeuta, ele teve uma nova expli-
cação para tudo que a infernizava: transtorno bipolar. “Fui informada de
que aquilo era uma doença crônica e de que a frequência dos meus episó-
dios aumentaria, e de que eu precisaria tomar remédios pelo resto da
vida”, recordou.
Embora isso prenunciasse um futuro sombrio, Dorea consolou-se com
esse diagnóstico. Ele explicava as razões de ela ser tão emotiva. Era tam-
bém um diagnóstico comum a diversos grandes artistas. Dorea leu Toca-
dos pelo Fogo, de Kay Jamison1,” e pensou: “Sou igualzinha a todos esses

1 Kay R Jamison. Tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico, Pedra
da Lua, 2007. (N.T.)
escritores famosos, que ótimo”. Passou a ter uma nova identidade e, ao re-
tomar sua carreira acadêmica, chegou a cada nova instituição - primeiro à
Universidade de Nebraska, para obter o diploma de bacharel, depois à
Universidade de Boston, para fazer o doutorado em matemática e biologia
- com uma “caixa gigantesca de comprimidos”. O coquetel que ela tomava
costumava incluir um estabilizador do humor, um antidepressivo e um
benzodiazepínico para tratar da ansiedade, embora a combinação exata
fosse sempre mutável. Uma droga a deixava sonolenta, outra lhe causava
tremores, e nenhum dos coquetéis parecia lhe trazer tranquilidade afetiva.
E então, em 2001, ela foi tratada com um antipsicótico, o Zyprexa, que,
em certo sentido, funcionou como um passe de mágica.
“Sabe de uma coisa?”, disse ela, admirada com o que estava prestes a
confessar, “Eu adorava aquele treco. Era como se finalmente eu houvesse
encontrado a resposta. Porque, imagine só, eu não tinha emoções. Era
ótimo. Eu não chorava mais”.
Embora Dorea se saísse bem em termos acadêmicos na Universidade
de Boston, continuou a se sentir “realmente burra” com o Zyprexa. Dor-
mia dez, 12 horas por dia e, como inúmeras pessoas que usam esse medi-
camento, começou a virar um balão, engordando quase 14 quilos. Angela,
que tinha conhecido e se apaixonado por ela antes de Dorea começar a to-
mar Zyprexa, experimentou um sentimento de perda: “Ela já não era tão
animada, não ria”, afirmou.
Mas as duas entendiam que Dorea precisava dos medicamentos, e co-
meçaram a organizar sua vida - e seus planos de futuro — em torno do
transtorno bipolar. Frequentaram reuniões da DBSA e começaram a achar
que Dorea devia reduzir seus objetivos de carreira. Provavelmente, não
conseguiria lidar com o estresse das pesquisas pós-doutorais; seu traba-
lho anterior numa loja de tapetes seria mais ou menos a coisa certa. “Hoje
isso parece loucura”, disse Angela, que é professora de matemática na
Universidade Lesley, “mas, naquela época, ela não era uma pessoa de
grande resiliência, e estava ficando cada vez mais dependente. Eu tinha de
arcar com o peso de cuidar dela.”
As possibilidades de Dorea foram diminuindo e ela poderia ter prosse-
guido nesse caminho, não fosse o fato de, em 2003, haver tropeçado numa
literatura que levantava dúvidas sobre a segurança do Zyprexa a longo
prazo e sobre os méritos das drogas antipsicóticas. Isso a levou a procurar
reduzir esse remédio e, embora o processo tenha sido “um perfeito inferno”
- Dorea sofreu com uma ansiedade terrível, graves ataques de pânico,
paranoia e tremores pavorosos -, ela acabou suspendendo por completo
essa medicação. Em seguida, decidiu ver se poderia suspender a benzodi-
azepina que vinha tomando, o Klonopin [clonazepam], e isso se transfor-
mou em outra experiência terrível de abstinência, com dores de cabeça tão
agudas que ela ia para a cama ao meio-dia. Mesmo assim, aos poucos Do-
rea foi desfazendo seu coquetel de drogas, o que a levou a questionar seu
diagnóstico de bipolaridade. Ela havia procurado um terapeuta, inicial-
mente, porque chorava demais. Não houvera mania - a insônia e a agita-
ção só tinham surgido depois de ela ser medicada com um antidepressivo.
Seria possível que ela tivesse sido apenas uma adolescente instável, que
precisava crescer um pouco?
“Até então, eu sempre havia pensado ser um daqueles casos em que a
doença é claramente biológica”, disse ela. “Não podia ser situacional. Não
havia acontecido nada de terrível na minha vida. Mas então, pensei: bem,
eu assumi que era lésbica e não tive nenhum apoio familiar. Ora, era o ób-
vio. Isso podia ter sido meio estressante.”
Os estabilizadores do humor foram os últimos a ser suspensos e, em
22 de novembro de 2006, Dorea se declarou livre das drogas. “Foi fabu-
loso. Foi uma surpresa descobrir quem eu era, depois de todos aqueles
anos”, disse ela, acrescentando que, ao se livrar mentalmente do rótulo de
bipolar, seu senso de responsabilidade por sua personalidade também
mudou. “Quando eu era ‘bipolar’, tinha uma desculpa para qualquer com-
portamento imprevisível ou instável. Tinha permissão para me portar da-
quela maneira, mas agora me pauto pelos mesmos padrões de comporta-
mento das outras pessoas, e me descubro capaz de satisfazer a esses pa-
drões. Isso não quer dizer que cu não tenha dias ruins. Tenho, e é possível
que ainda me preocupe mais do que a média das pessoas, mas já não
tanto quanto antes.”
A pesquisa feita por Dorea no Hospital Geral de Massachusetts con-
centra-se em averiguar como a atividade vascular afeta o funcionamento
do cérebro, e, dado que suas lutas com a “doença mental” parecem passí-
veis de ser registradas como um caso de erro de diagnóstico - “Tenho uma
fantasia de ser ‘desdiagnosticada’ como bipolar”, diz ela sua história talvez
pareça irrelevante para este livro. Na verdade, porém, levanta uma possibi-
lidade que contribuiria muito para explicar a epidemia de doenças mentais
incapacitantes nos Estados Unidos. Se expandirmos os limites da doença
mental, o que claramente tem acontecido neste país nos últimos 25 anos,
e se tratarmos com drogas psiquiátricas as pessoas que recebem esses di-
agnósticos, será que corremos o risco de transformar um adolescente
angustiado num paciente psiquiátrico vitalício? Dorea, que é uma pessoa
extremamente inteligente e capaz, escapou por pouco de trilhar esse cami-
nho. Sua história é a de um possível processo iatrogênico em ação, a his-
tória de uma pessoa normal que se transforma em doente crônica por
causa de um diagnóstico e do tratamento subsequente. E assim, cabe per-
guntarmos: será que temos um paradigma de tratamento que às vezes
pode criar doenças mentais?

O Dilema dos Pais

No início da preparação do material para este livro, conheci duas famí-


lias a região de Syracuse que, anos atrás, viram-se diante da decisão de
dar ou não medicamentos psiquiátricos a um filho. A razão de eu ter jun-
tado mentalmente essas duas famílias foi que elas chegaram a conclusões
opostas sobre o que era melhor para seus filhos, e senti curiosidade de sa-
ber de que informações eles haviam disposto ao tomarem suas decisões.
Primeiro fui conversar com Gwendolyn e Sean Oates. Eles moram na
zona sul de Syracuse, numa casa agradável que se ergue sobre uma pe-
quena colina. Esse gentilíssimo casal birracial tem dois filhos, Nathan e
Alia, e, enquanto conversávamos, Nathan, então com 8 anos, passou
quase o tempo todo esparramado na sala de estar, fazendo desenhos com
lápis de cor num caderno de rascunho.
“Começamos a nos preocupar com o Nathan quando ele tinha 3 anos”,
disse a mãe. “Notamos que ele era hiperativo. Não conseguia ficar sentado
até o fim de uma refeição, não conseguia nem mesmo se sentar. A hora
das refeições consistia em ele correr em volta da mesa. Era a mesma coisa
no maternal: ele não conseguia parar quieto. E também não dormia. ía-
mos até as 9 ou 10 horas da noite para fazê-lo adormecer. Ele dava chutes
e gritos. Não eram acessos de pirraça normais.”
Primeiro eles levaram Nathan à sua pediatra. Mas ela relutou em diag-
nosticá-lo, e assim, os pais o levaram a um psiquiatra, que concluiu rapi-
damente que o menino sofria de “transtorno do déficit de atenção com hi-
peratividade [TDAH]”. Seu problema, explicou o psiquiatra, era de natu-
reza “química”. Apesar de ficarem nervosos com a ideia de dar Ritalina ao
filho - “Estávamos passando por tudo aquilo sozinhos, e não sabíamos
nada sobre TDAH”, disse a mãe -, aproximava- se a hora do jardim de in-
fância e eles ponderaram que isso seria o melhor para Nathan. “A hiperati-
vidade o estava impedindo de aprender”, disse a mãe. “A escola nem que-
ria que o puséssemos no jardim de infância, mas nós dissemos: ‘Não, nós
vamos mandá-lo’. Tomamos a decisão de fazer com que ele seguisse em
frente.”
No começo, houve um período de “tentativa e erro” com a medicação.
Nathan recebeu uma dose alta de Ritalina, mas “ficou parecendo um
zumbi”, recordou a mãe. “Ficava calmo, mas não se mexia. Olhava para o
espaço.” A medicação foi trocada e Nathan passou a tomar Concerta, um
estimulante de efeito prolongado com o qual se estabilizou bem. Em algum
momento, porém, começou a exibir comportamentos obsessivos, como se
recusar a pisar na grama, ou precisar constantemente ter alguma coisa
nas mãos, e foi medicado com Prozac, para controlar esses sintomas. En-
quanto usava essa combinação de dois remédios, começou a ter “acessos
de fúria” terríveis. Chutou a janela do seu quarto, num episódio, e fazia
ameaças reiteradas de matar a irmã e até a mãe. O Prozac foi suspenso,
mas, embora o comportamento do menino melhorasse um pouco, ele con-
tinuou bastante agressivo, e foi diagnosticado como portador de trans-
torno bipolar e de TDAH.
“Dizem que o TDAH e o transtorno bipolar caminham de mãos dadas”,
comentou a mãe. “E, agora que sabemos que ele também é bipolar, acha-
mos provável que use medicamentos pelo resto da vida.”
Desde aquela época, Nathan toma um coquetel de drogas. Por ocasião
da minha visita, estava tomando Concerta pela manhã, Ritalina à tarde e
três doses baixas de Risperdal, um antipsicótico, em diferentes horários do
dia. Essa combinação, dizem os pais, funciona bastante bem para ele.
Embora Nathan continue mal- humorado, já não explode em acessos de
fúria, e sua hostilidade cm relação à irmã menor diminuiu. Ele tem dificul-
dade com os deveres escolares, mas vai avançando de uma série para ou-
tra e se dá bastante bem com os colegas. A maior preocupação dos pais
com os medicamentos é que eles inibam o crescimento do filho. Nathan é
menor do que a irmã, apesar de ser três anos mais velho. No entanto, o
auxiliar médico e outras pessoas que tratam dele não falam muito de
como as drogas poderão afetá-lo a longo prazo: “Eles não se preocupam
com isso”, disse o pai. “A medicação está ajudando agora.”
No final da entrevista, Nathan me mostrou seus desenhos. Gosta de
tubarões e dinossauros e, quando lhe falei do quanto havia apreciado seu
trabalho artístico, ele quase pareceu enrubescer. Ficou quieto durante a
maior parte do tempo em que estive em sua casa, sendo até meio reser-
vado, mas trocamos um aperto de mão quando eu me preparava para sair
e, naquele momento específico, ele pareceu um menino muito meigo e
gentil.
Jason e Kelley Smith moram na zona oeste de Syracuse, a uma distân-
cia de uns trinta minutos da família Oates, e, quando bati à porta, foi sua
filha de 7 anos, Jessica, quem atendeu. Parecia estar à minha espera c,
depois que liguei o gravador, arriou o peso do corpo no sofá entre a mãe e
eu, pronta para participar da conversa com seu lado da história. “A Jes-
sica”, disse seu pai, pouco depois, “tem muito carisma.”
Os problemas comportamentais da menina começaram aos 2 anos de
idade, quando ela foi colocada na creche. Quando ficava com raiva, Jes-
sica batia nas outras crianças e as mordia. Em casa, começou a ter “terro-
res noturnos” e verdadeiros pitis. “A coisa mais insignificante precipitava o
acesso, e lá ia ela”, contou a mãe.
Os Smith recorreram ao distrito escolar local em busca de ajuda. O
distrito recomendou que Jessica fosse para uma pré-escola “de ensino es-
pecial” na zona norte de Syracuse e, quando ela continuou a ter um com-
portamento agressivo nessa escola, os pais foram instruídos a levá-la ao
Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Nova York para
uma avaliação psiquiátrica. Lá eles consultaram um enfermeiro clínico,1
que imediatamente concluiu que Jessica era “bipolar”. O enfermeiro expli-
cou que a menina tinha um desequilíbrio químico e recomendou que fosse
tratada com um coquetel formado por três medicamentos: Depakote, Ris-
perdal e lítio.
“Aquilo me deixou chocado, especialmente a ideia de dar um antipsicó-
tico a minha filha”, disse Jason. “Jessica tinha 4 anos!”
Ele e a mulher saíram da consulta sem saber o que fazer. Kelley traba-
lha na agência de assistência à família do condado de Oswego, e conhecia
muitas crianças problemáticas que tinham sido tratadas com medicamen-
tos psiquiátricos. Naquele contexto, o município esperava que os pais se-
guissem a orientação médica. “Havia uma parte de mim que pensava: tal-
vez a Jessica seja bipolar, então, é isso”, disse Kelley. Ademais, o Centro
de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Nova York disse aos
Smith que não tornaria a examinar Jessica se ela não fosse medicada.
Tudo isso apontava para que se seguisse a sua orientação. “Os especialis-
tas estavam dizendo que era preciso fazer aquilo, e que o problema era

1
Nos Estados Unidos, o(a) enfermeiro(a) clínico(a) (nurse practitioner) é um profissional da saúde com forma-
ção em enfermagem e mestrado (no mínimo) ou doutorado em áreas médicas especializadas, que atua so-
bretudo na atenção primária e na medicina interna. (N.T)
biológico”, disse Jason; mas ele havia trabalhado como técnico em farmá-
cia e sabia que os remédios podiam ter efeitos colaterais potentes. “Fiquei
morto de medo.”
Kelley usou a internet para pesquisar os medicamentos receitados. No
entanto, não conseguiu encontrar nenhum estudo que falasse sobre bons
resultados a longo prazo para crianças medicadas com esses coquetéis de
drogas, e até os efeitos colaterais a curto prazo, recordou ela, “eram assus-
tadores”. Entrementes, a pediatra de Jessica lhes disse achar “um ab-
surdo” tratar a menina com drogas psiquiátricas. Jason lembrou-se de
que, alguns anos antes, a terapia da fala o havia ajudado a lidar com seus
próprios problemas de “controle da raiva”, e achou que, se tinha conse-
guido mudar sem o uso de remédios, será que sua filha também não pode-
ria modificar seu comportamento?
“Simplesmente não quisemos aceitar [o diagnóstico de transtorno bipo-
lar]. A Jessica era uma menina muito extrovertida, e gostávamos de achar
que era talentosa”, disse Kelley. “E ela havia progredido muito desde os 2
anos. Não conseguimos pensar em lhe dar aqueles remédios.
Os pais tomaram essa decisão em 2005 e, três anos depois, segundo
dizem, Jessica está passando bem. Quase só tira notas 10 na escola, e
agora seus professores acham que o diagnóstico anterior de transtorno bi-
polar era “maluquice”. Embora ela brigue com outras crianças, de vez em
quando, e dê respostas malcriadas quando outra criança a provoca, ela
sabe que não pode bater em ninguém. Em casa, ainda tem pitis ocasio-
nais, mas suas explosões afetivas não são extremadas como antes. Jessica
tem até uma recomendação pessoal sobre como os pais devem lidar com
esses chiliques: “Eles devem dizer [à criança] ‘vem cá’, e fazer massagem
nas costas dela, pra ela se sentir melhor e não poder ter um piti, e aí,
quando ela para de ter o piti, é disso que ela se lembra”.
Antes de eu ir embora, Jessica leu para mim o livro The Litlle Old Lady
Who Was Not Afraid of Anything1 e em mais de um momento pulou do
sofá para encenar uma situação. “Mesmo com os problemas de comporta-
mento, todos gostam dela”, disse o pai. “E foi disso que tivemos medo, de
que a medicação a modificasse por completo, a ela e sua personalidade.
Não queríamos prejudicar as faculdades dela. Só queremos que cresça
saudável e tenha sucesso na vida.”

1 Em tradução livre, A Velhinha que Não Tinha Medo de Nada, de Linda D. Williams, com ilustrações
de Megan Lloyd. Nova York: HarperCollins, reimpr. 2002. (N.T.)
Duas famílias diferentes, duas decisões diferentes. As duas viram sua
decisão como a correta, e ambas disseram acreditar que seu filho ou filha
estava num caminho melhor do que estaria, se não fosse assim. Foi ani-
mador, e prometi voltar a falar com ambas mais tarde, ao final de meus le-
vantamentos para este livro. Não obstante, Nathan e Jessica estavam cla-
ramente seguindo rumos distintos e, na viagem de regresso a Boston, tudo
em que consegui pensar foi em como os dois casais de pais haviam preci-
sado tomar sua decisão de medicar ou não um filho cm meio a um vazio
científico. Será que seus filhos realmente sofriam de um desequilíbrio quí-
mico? Havia estudos mostrando que o tratamento medicamentoso do
TDAH ou do transtorno bipolar juvenil é benéfico a longo prazo? Se uma
criança pequena for tratada com um coquetel de drogas que inclua um
antipsicótico, de que modo isso afetará sua saúde física? Pode-se esperar
que essa criança se torne um adolescente saudável, um adulto saudável?
PARTE II.
A CIÊNCIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS
3.
AS RAÍZES DE UMA EPIDEMIA

“Os norte-americanos passaram a acreditar que a ciência é


capaz de quase tudo” - Dr. Louis M. Orr, presidente da Soci-
edade Norte-Americana de Medicina, 1958
Talvez pareça estranho iniciar uma investigação de uma epidemia mo-
derna com uma visita ao passado, voltando a um dos grandes momentos
da história da medicina, mas, se quisermos compreender como nossa so-
ciedade veio a crer que a torazina desencadeou uma revolução psicofarma-
cológica, precisamos voltar ao laboratório do cientista alemão Paul Ehr-
lich. Foi ele quem originou a ideia de que era possível encontrar uma “pí-
lula mágica” para combater doenças infecciosas e, quando logrou êxito, a
sociedade achou que o futuro traria toda sorte de curas milagrosas.
Nascido na Prússia Oriental em 1854, Ehrlich passou seus primeiros
anos como cientista pesquisando o uso de corantes à base de anilina como
corantes biológicos. Ele e outros pesquisadores descobriram que os coran-
tes, que eram usados na indústria têxtil para colorir tecidos, tinham uma
afinidade seletiva na coloração das células de diferentes órgãos e tecidos.
O azul de metila corava um tipo de célula, ao passo que o vermelho de me-
tila corava um tipo diferente. No esforço de explicar essa especificidade,
Ehrlich formulou a hipótese de que as células tinham moléculas que se
projetavam no meio circundante e de que determinado corante químico se
encaixava nessas estruturas, que ele chamou de receptores, do mesmo
modo que uma chave encaixa numa fechadura. Cada tipo de célula teria
uma fechadura diferente, e era por isso que o azul de metila marcava um
tipo celular, ao passo que o vermelho de metila marcava outro — eram
chaves específicas para essas fechaduras diferentes.
Ehrlich começou a fazer essa pesquisa na década de 1870, quando
cursava o doutorado na Universidade de Leipzig, no mesmo período em
que Robert Koch e Louis Pasteur vinham provando que os micróbios eram
os causadores das doenças infecciosas. As descobertas desses cientistas
levaram a uma ideia empolgante: se fosse possível matar o organismo in-
vasor, a doença poderia ser curada. O problema, segundo a conclusão da
maioria dos cientistas da época, era que aquilo que era tóxico para o mi-
cróbio certamente envenenaria o hospedeiro. “A desinfecção interna é im-
possível”, declararam cientistas presentes num Congresso de Medicina In-
terna na Alemanha, em 1882. Mas os estudos de Ehrlich com corantes de
anilina o levaram a uma conclusão diferente. Um corante podia colorir um
único tecido do corpo e deixar todos os demais incolores. E se ele conse-
guisse achar uma substância química tóxica que interagisse com o micró-
bio invasor, mas não com os tecidos do paciente? Se assim fosse, ele ma-
taria o germe sem causar qualquer dano ao paciente.
Escreveu Ehrlich:
Se imaginarmos um organismo infectado por determinada espécie de bacté-
ria, será fácil realizarmos a cura, caso se hajam descoberto substâncias
que tenham uma afinidade específica com essas bactérias e que ajam uni-
camente sobre elas. (Se) não tiverem afinidade com os componentes nor-
mais do corpo, tais substâncias serão pílulas mágicas.
Em 1899, Ehrlich foi nomeado diretor do Real Instituto de Terapia Ex-
perimental, em Frankfurt, onde iniciou sua busca de uma pílula mágica.
Concentrou-se em encontrar uma droga que matasse seletivamente os tri-
panossomos, parasitas unicelulares que causavam a doença do sono e vá-
rias outras moléstias, e logo se deteve num composto de arsênico, o atoxil,
como o melhor candidato a pílula mágica. Seria essa a substância química
que ele teria de manipular para encaixá-la na “fechadura” do parasita,
mas sem abrir, ao mesmo tempo, a fechadura de qualquer célula humana.
Ehrlich criou sistematicamente centenas de derivados do atoxil, testando-
os repetidas vezes com os tripanossomos, mas deparando em igual nú-
mero de vezes com o fracasso. Por fim, em 1909, depois de ele haver tes-
tado mais de novecentos compostos, um de seus assistentes decidiu verifi-
car se o composto de número 606 mataria outro micróbio recém-desco-
berto, o Spirocheta pallida, causador da sífilis. Em poucos dias, Ehrlich
obteve seu triunfo. A droga, que ficou conhecida como salvarsan, erradi-
cou o micróbio da sífilis de coelhos infectados, sem causar qualquer dano
aos coelhos. “Era a pílula mágica!”, escreveu Paul de Kruif num livro que
foi campeão de vendas em 1926. “E que pílula segura!” A droga, acrescen-
tou ele, produzia uma “cura que só se podia chamar de bíblica”.
O sucesso de Ehrlich inspirou outros cientistas a buscarem pílulas
mágicas contra outros micróbios causadores de doenças e, embora tenha
levado 25 anos, em 1935 a empresa química Bayer ofereceu à medicina
sua segunda droga milagrosa. A Bayer descobriu que a sulfanilamida, um
derivado de um antigo composto do alcatrão de hulha, era bastante eficaz
na erradicação de infecções por estafilococos e por estreptococos. A revolu-
ção da pílula mágica estava realmente em andamento, e em seguida veio a
penicilina. Apesar de Alexander Fleming ter descoberto esse bolor que ma-
tava bactérias em 1928, ele e outros haviam constatado ser difícil cultivá-
lo e, mesmo quando obtiveram êxito em sua cultura, não conseguiram ex-
trair e purificar quantidades suficientes do ingrediente ativo (penicilina)
para transformá-lo num medicamento útil. Todavia, em 1941, quando
campeava a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra e os Estados Unidos
perceberam a necessidade desesperada de superar esse obstáculo, já que
as infecções dos ferimentos sempre tinham sido os grandes matadores du-
rante a guerra. Os Estados Unidos pediram a cientistas das empresas
Merck, Squibb e Pfizer que trabalhassem juntos nesse projeto e, no Dia D,
em 1944, as fontes britânicas e norte-americanas haviam conseguido pro-
duzir penicilina suficiente para todos os feridos na invasão da Normandia.
“A era das curas milagrosas finalmente chegou”, escreveu Louis
Sutherland em seu livro Magic Bullets [Pílulas mágicas], e de fato, encer-
rada a guerra, a medicina deu continuidade a seu grande salto à frente. As
companhias farmacêuticas descobriram outros antibióticos de amplo es-
pectro- estreptomicina, cloromicetina [cloranfenicol] e aureomicina, para
citar alguns - e, de repente, os médicos passaram a dispor de remédios ca-
pazes de curar pneumonia, escarlatina, difteria, tuberculose e uma ex-
tensa lista de outras doenças infecciosas. Essas doenças tinham sido o
flagelo da humanidade durante séculos, e tanto líderes políticos quanto
médicos falaram no grande dia que se aproximava. Em 1948, George
Marshall, secretário de Estado norte-americano, fez a previsão confiante
de que as doenças infecciosas não tardariam a ser varridas da face da
Terra. Alguns anos depois, o presidente Dwight D. Eisenhower reivindicou
a “rendição incondicional” de todos os micróbios.
Ao se iniciar a década de 1950, a medicina pôde olhar para trás e con-
tabilizar também outros numerosos sucessos. As empresas farmacêuticas
haviam desenvolvido melhores anestésicos, sedativos, anti-histamínicos e
anticonvulsivantes, prova de como os cientistas vinham se aprimorando
na síntese de substâncias químicas que agiam de maneiras proveitosas
sobre o sistema nervoso central. Em 1922, a companhia Eli Lilly havia
descoberto como extrair o hormônio insulina das glândulas pancreáticas
de animais de matadouro, o que proporcionara aos médicos um trata-
mento eficaz do diabetes. Embora a insulina para reposição não houvesse
alcançado o nível de uma cura milagrosa da doença, chegara perto disso,
por fornecer uma correção biológica de algo que faltava no corpo. Em
1950, o cientista britânico sir Henry Dale, numa carta ao periódico British
Medical Journal, resumiu esse momento extraordinário da longa história
da medicina: “Nós que tivemos a possibilidade de assistir aos primórdios
desse grande movimento podemos sentir alegria e orgulho por ter vivido
esta época, e confiar em que um avanço ainda maior e mais majestoso
será visto pelos que I viverem os cinquenta anos que agora se iniciam .6
Os Estados Unidos se prepararam para esse maravilhoso futuro. Antes
da guerra, quase toda a pesquisa básica era financiada por verbas parti-
culares, com destaque para Andrew Carnegie e John D. Rockefeller como
os principais benfeitores; entretanto, terminada a guerra, o governo norte-
americano criou a Fundação Nacional de Ciências para prover esse esforço
de verbas federais. Ainda havia muitas doenças por vencer, e quando os
líderes nacionais olharam em volta, à procura de um campo da medicina
que estivesse atrasado, Jogo depararam com um que parecia se destacar
de todos os demais. A psiquiatria ao que parecia, era uma disciplina à
qual um pouco de ajuda faria bem.

Imaginando uma Nova Psiquiatria

Como especialidade médica, a psiquiatria radicava-se nos hospícios do


século XIX, e seu momento fundador ocorrera em 1844, quando 13 médi-
cos que dirigiam pequenos manicômios reuniram-se em Filadélfia para
criar a Associação de Superintendentes Médicos de Instituições Norte-
Americanas para Doentes Mentais. Na época, os hospícios ofereciam uma
forma de atendimento ambiental que hoje se conhece como terapia moral,
que fora introduzida nos Estados Unidos pelos quacres e, durante um pe-
ríodo, produziu bons resultados. Na maioria dos hospícios, mais de 50%
dos pacientes recém-internados recebiam alta em menos de um ano, e
uma percentagem significativa dos que saíam nunca retornava. Um es-
tudo dos resultados a longo prazo, leito no século XIX no Manicômio Esta-
dual de Worcester, em Massachusetts, constatou que 58% dos 984 paci-
entes que receberam alta da instituição permaneceram bem pelo resto da
vida. Entretanto, os manicômios tiveram um grande aumento de tamanho
na última parte da década de 1800, à medida que as populações foram
largando idosos senis e pacientes com sífilis e outras doenças neurológicas
nas instituições; como tais pacientes não tinham chance de recuperação,
a terapia moral passou a ser vista como uma forma falha de tratamento.
Em sua reunião de 1892, os superintendentes dos manicômios jura-
ram deixar de lado a terapia moral e, em vez dela, utilizar tratamentos físi-
cos. Era o alvorecer de uma nova era na psiquiatria, e em pouquíssimo
tempo eles começaram a propalar os benefícios de numerosos tratamentos
dessa natureza. Várias formas de hidroterapia, inclusive duchas de alta
pressão e banhos prolongados, eram tidas como úteis. Relatou-se que a
injeção de extrato de tireoide de ovelha produziu um índice de cura de
50% num manicômio; outros médicos anunciaram que injeções de sais
metálicos, soro equino e até arsênico eram capazes de devolver a lucidez à
mente enlouquecida. Henry Cotton, superintendente do Hospital Estadual
Trenton, em Nova Jersey, relatou em 1916 haver curado a insanidade me-
diante a extração dos dentes de seus pacientes. Afirmou-se que terapias
usadas nas febres eram benéficas, assim como tratamentos baseados no
sono profundo [sonoterapia], mas, embora as informações iniciais sobre
todas essas terapias somáticas dessem conta de um enorme sucesso, ne-
nhuma delas resistiu à prova do tempo.
No fim da década de 1930 e início da de .1940, os psiquiatras manico-
miais abraçaram um trio de terapias que agiam diretamente sobre o cére-
bro, e que os meios de comunicação populares - pelo menos de início -
descreveram como curas “milagrosas”. Primeiro veio a terapia por coma
insulínico. Injetava-se nos pacientes uma dose elevada de insulina, o que
os levava a entrar em coma hipoglicêmico, e quando eles eram trazidos de
volta à vida por uma injeção de glicose, segundo a explicação do New York
Times, os “curtos-circuitos cerebrais desapareciam e os circuitos normais
eram restabelecidos, trazendo de volta consigo a sanidade e a realidade”.7
Depois vieram as terapias convulsivas. Usava-se um veneno conhecido
como metrazol, ou então o eletrochoque, para induzir uma convulsão no
paciente; quando este voltava a si, estava livre das ideias psicóticas e num
estado de ânimo mais feliz - ou assim afirmavam os psiquiatras manicomi-
ais. O último tratamento “inovador” foi a lobotomia frontal - a destruição
cirúrgica dos lobos frontais, que aparentemente produzia uma cura ins-
tantânea. Essa “cirurgia da alma”, explicou o New York Times, “trans-
forma animais selvagens em criaturas gentis, no curso de algumas horas”.
Com a publicação regular de tais artigos nos grandes jornais e em re-
vistas como a Harper’s, a Reader’s Digest e The Salurday Evening Post, o
público teve motivos para crer que a psiquiatria vinha dando passos largos
no tratamento das doenças mentais e participando dos grandes avanços
da medicina; todavia, na esteira da Segunda Guerra Mundial, o público foi
forçado a confrontar uma realidade muito diferente, que produziu um
grande sentimento de horror e incredulidade. Na época, 425.000 pessoas
achavam-se trancafiadas nos hospitais psiquiátricos do país, e primeiro a
revista Life. depois o jornalista Albert Deutsch, em seu livro The Shame of
the States [A vergonha dos Estados Unidos], conduziram os norte-ameri-
canos numa turnê fotográfica pelas instalações decrépitas. Homens nus,
amontoados em quartos vazios, chafurdando em suas próprias fezes.
Mulheres descalças, vestidas em túnicas de tecido grosseiro, amarradas a
bancos de madeira. Os pacientes dormiam em catres sem colchão, em
dormitórios tão abarrotados que para sair eles tinham de pular por cima
dos pés da cama. Essas imagens revelaram um descaso inimaginável e
enormes sofrimentos, e, para concluir, Deutsch traçou a inevitável compa-
ração:
Ao passar por algumas alas do [Hospital Estadual] Byberry, vieram-me à
lembrança os campos de concentração nazistas de Belsen e Buchenwald.
Entrei em prédios em que formigavam seres humanos nus, tangidos feito
gado e tratados sem a menor consideração, perpassados por um odor fé-
tido tão pesado, tão nauseante, que a fetidez quase parecia ter vida pró-
pria. Vi centenas de pacientes vivendo sob tetos cheios de goteiras, cerca-
dos por paredes mofadas e deterioradas, e estirados em pisos pútridos,
por falta de cadeiras ou bancos.
Claramente, a nação precisava reformular sua assistência aos doentes
mentais hospitalizados e, no momento mesmo em que contemplava essa
necessidade, encontrou motivos para se preocupar com a saúde mental da
população em geral. Durante a guerra, psiquiatras haviam sido encarrega-
dos de fazer a triagem de problemas psiquiátricos nos recrutas, e conside-
raram que 1.750.000 homens norte-americanos estavam mentalmente
inaptos para o serviço militar. Ainda que muitos dos recrutas rejeitados
pudessem ter fingido alguma doença para evitar o alistamento, o número
revelou um problema social. Muitos veteranos, de regresso da Europa,
também vinham enfrentando batalhas no plano emocional e, em setembro
de 1945, o general Lewis Hershey, então diretor do Sistema de Seleção
para o Serviço Militar, disse ao Congresso que a nação tinha uma necessi-
dade premente de abordar esse problema, que se mantivera oculto por
muito tempo. A doença mental foi a principal causa de ineficácia e perda
de pessoal com que deparamos” durante a guerra, declarou.
Com a doença mental transformada numa preocupação prioritária do
país — e surgindo essa conscientização na mesma época em que os anti-
bióticos vinham domando os assassinos bacterianos foi fácil para todos ter
uma visão de onde se poderia encontrar uma solução de longo prazo. O
país podia depositar sua confiança nos poderes transformadores da ciên-
cia. Os tratamentos “médicos” existentes e tidos como úteis - coma insulí-
nico, eletrochoque e lobotomia - teriam de ser oferecidos a mais pacientes,
e então poderiam surgir soluções a longo prazo, advindas do mesmo pro-
cesso que havia produzido o assombroso progresso da luta contra as do-
enças infecciosas. As pesquisas sobre as causas biológicas das doenças
mentais levariam a tratamentos melhores, tanto para os gravemente
enfermos quanto para os que tinham apenas transtornos moderados.
“Posso vislumbrar a chegada de um tempo em que nós, do campo da psi-
quiatria, abandonaremos inteiramente nossos ancestrais, esqueceremos
ter tido nossos primórdios no asilo para pobres, na casa de correção e no
presídio”, disse Charles Burlingame, diretor do Instituto dos Vivos, em
Hartford, estado de Connecticut. “Posso vislumbrar um tempo em que se-
remos médicos, pensaremos como médicos e dirigiremos nossas institui-
ções psiquiátricas exatamente do mesmo modo e com as mesmas relações
que prevalecem nas melhores instituições de medicina e cirurgia.”
Em 1946, o Congresso aprovou uma Lei Nacional de Saúde Mental que
pôs o poder econômico do governo federal na base dessa reforma. O go-
verno patrocinaria pesquisas sobre prevenção, diagnóstico e tratamento de
doenças mentais, e concederia verbas a estados e cidades para ajudá-los a
criarem clínicas e centros de tratamento. Três anos depois, o Congresso
criou o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) para supervisionar
essa reforma.
“Devemos reconhecer que os problemas mentais são tão reais quanto
as doenças físicas, e que a angústia e a depressão exigem uma terapia tão
ativa quanto a da apendicite ou da pneumonia”, escreveu o Dr. Howard
Rusk, um professor da Universidade de Nova York que redigia uma coluna
semanal para o New York Times. “Todos eles são problemas médicos que
exigem atendimento médico.”
Assim, estava preparado o cenário para uma transformação da psiqui-
atria e de sua terapêutica. O público acreditava nas maravilhas da ciência,
a nação Kia uma necessidade premente de melhorar o atendimento pres-
tado aos doentes mentais e o NIMH tinha sido criado para fazer com que
isso acontecesse. Havia uma expectativa pelas grandes coisas que viriam
e, graças às vendas de antibióticos, uma indústria farmacêutica em rápido
crescimento estava pronta para capitalizar essa expectativa. E, com todas
essas forças alinhadas, talvez não seja de admirar que logo tenham sur-
gido drogas maravilhosas para doenças mentais graves e não tão graves -
esquizofrenia, depressão e ansiedade.
4.
AS PÍLULAS MÁGICAS DA PSIQUIATRIA

“Foi a primeira cura medicamentosa em toda a história a


psiquiatria. - Nathan Kline, diretor de pesquisas do Hospi-
tal Estadual Rockiand, em Nova York, 1974
O modelo de medicina calcado na “pílula mágica”, que levou à desco-
berta dos medicamentos baseados na sulfa e dos antibióticos, era de natu-
reza muito simples. Primeiro, identificar a causa ou a natureza do distúr-
bio. Segundo, desenvolver um tratamento que agisse contra ela. Os anti-
bióticos matavam invasores bacterianos conhecidos. A terapia insulínica
da companhia farmacêutica Eli Lilly era urna variação sobre o mesmo
tema. A empresa desenvolveu esse tratamento depois que os pesquisado-
res compreenderam que o diabetes se devia a urna deficiência de insulina.
Em todos esses casos, o conhecimento da doença veio em primeiro lugar -
essa era a fórmula mágica para o progresso. No entanto, se observarmos
como foi descoberta a primeira geração de drogas psiquiátricas, e se tam-
bém examinarmos de que modo elas passaram a ser chamadas de antipsi-
cóticos, ansiolíticos e antidepressivos - palavras indicativas de que se tra-
tava de antídotos para distúrbios específicos -, veremos um processo
muito diferente em ação. A revolução psicofarmacológica nasceu de urna
parte de ciência e duas partes de racionalização do desejo, confundido
com a realidade.

Neurolépticos, Tranquilizantes Leves e Estimulantes Psíquicos

A história da descoberta da torazina, droga hoje lembrada como a que


desencadeou a “revolução” psicofarmacológica, teve início na década de
1940, quando pesquisadores da Rhône-Poulenc, uma companhia farma-
cêutica francesa, testaram uma classe de compostos conhecidos como fe-
notiazinas, para verificar suas propriedades de pílula mágica. As fenotiazi-
nas tinham sido sintetizadas pela primeira vez em 1883, para serem usa-
das como corantes químicos, e os cientistas da Rhône-Poulenc vinham
tentando sintetizar fenotiazinas que fossem tóxicas para os micróbios cau-
sadores da malária, da doença africana do sono e
de moléstias transmitidas por vermes. Embora essas pesquisas não
houvessem logrado êxito, elas realmente descobriram, em 1946, que uma
de suas fenotiazinas, a prometazina, tinha propriedades anti-histamínicas,
o que sugeriu que poderia ser útil nas cirurgias. O corpo libera histamina
em resposta a ferimentos, alergias e um leque de outras situações, e,
quando a resposta histamínica é muito forte, pode levar a uma queda ver-
tiginosa da pressão sanguínea, o que, na época, às vezes se revelava fatal
para pacientes cirúrgicos. Em 1949, um cirurgião de 35 anos da Marinha
francesa, Henri Laborit, deu prometazina a vários pacientes seus no Hos-
pital Naval de Bizerta, na Tunísia, e descobriu que, além de suas proprie-
dades anti-histamínicas, ela induzia a uma “serenidade eufórica. (...) Os
pacientes ficam calmos e sonolentos, com expressão relaxada e desligada”.
Aparentemente, a prometazina poderia ser útil como anestésico. Na-
quela época, os barbitúricos e a morfina eram regularmente empregados
na medicina como sedativos e analgésicos gerais, mas eram drogas que re-
primiam o funcionamento global do cérebro, o que as tornava bastante pe-
rigosas. A prometazina, no entanto, parecia agir apenas em regiões seleti-
vas do cérebro. Ela “permitia desligar algumas funções cerebrais”, explicou
Laborit. “Os pacientes cirúrgicos não sentiam dor nem ansiedade, e era
frequente não se lembrarem da operação.”3 Se a droga fosse usada como
parte de um coquetel cirúrgico, ponderou Laborit, seria possível usar do-
ses muito menores dos anestésicos mais perigosos. Um coquetel que in-
cluísse a prometazina - ou um derivado ainda mais potente dela, caso se
pudesse sintetizar tal composto - tornaria as cirurgias muito mais segu-
ras.
Os químicos da Rhône-Poulenc lançaram-se ¡mediatamente ao traba-
lho. Para avaliar um composto, eles o davam a ratos engaiolados que ha-
viam aprendido, ao ouvirem o som de uma sineta, a trepar numa corda
que levava a uma plataforma de repouso, a fim de evitar choques (o piso
das gaiolas era eletrificado). Os experimentadores souberam ter encon-
trado um sucessor da prometazina quando injetaram o composto 4560 RP
nos ratos, e estes ficaram não só fisicamente incapazes de subir na corda,
mas também emocionalmente desinteressados de fazê-lo. Essa nova
droga, a clorpromazina, parecia desligar as regiões cerebrais que controla-
vam a atividade motora e o aumento das respostas afetivas, mas o fazia
sem levar os ratos a perderem a consciência.
Laborit testou a clorpromazina em pacientes cirúrgicos, como parte de
um coquetel de medicamentos, em junho de 1951. Como era esperado, ela
os deixou num “estado crepuscular”. Outros cirurgiões também a testa-
ram, relatando que ela servira para “potencializar” os efeitos dos outros
anestésicos e que o coquetel induzia a uma “hibernação artificial”. Em de-
zembro do mesmo ano, Laborit falou desse novo avanço para a cirurgia
numa conferência de anestesiologia em Bruxelas, e ali fez uma observação
sugestiva de que a clorpromazina também poderia ter uso na psiquiatria.
Ela “produzia uma verdadeira lobotomia medicamentosa”, disse.
Embora hoje pensemos na lobotomia como uma cirurgia mutiladora,
naquela época ela era vista como uma operação útil. Fazia apenas dois
anos que o Prémio Nobel de Medicina havia sido conferido ao neurologista
português Egas Moniz, que a tinha inventado. A imprensa, em seus mo-
mentos mais empolgados, chegara até a enaltecer a lobotomia como uma
operação que, de forma habilidosa, extirpava a loucura da mente. Con-
tudo, o que essa cirurgia fazia de maneira mais confiável, como era bem
entendido pelos que a realizavam, era modificar profundamente as pes-
soas. Ela as tornava letárgicas, desinteressadas e infantis. Isso era visto
pelos que a promoviam como uma melhora em relação ao que os pacientes
tinham sido até então - ansiosos, agitados e cheios de ideias psicóticas -, e
agora, a se acreditar em Laborit, havia sido descoberta uma pílula capaz
de transformar os pacientes de maneira similar.
Na primavera de 1952, dois eminentes psiquiatras franceses, Jean De-
lay e Pierre Deniker, começaram a administrar a clorpromazina a pacien-
tes psicóticos no Hospital Sainte-Anne, em Paris, e o uso dessa droga logo
se espalhou pelos manicômios da Europa inteira. Em toda parte, as infor-
mações eram as mesmas: as enfermarias dos hospitais ficavam mais cal-
mas, os pacientes, mais fáceis de manejar. Numa série de artigos publica-
dos em 1952, Delay e Deniker descreveram a “síndrome psíquica” indu-
zida pela clorpromazina:
Sentado ou deitado, o paciente permanece imóvel na cama, amiúde pálido e
com as pálpebras abaixadas. Mantém-se em silêncio na maior parte do
tempo. Quando interrogado, responde após uma pequena demora, deva-
gar, em tom monótono e indiferente, expressando-se em poucas palavras e
emudecendo depressa. Sem exceção, a resposta costuma ser válida e per-
tinente, o que mostra que o sujeito é capaz de atenção e reflexão. No en-
tanto, raras vezes toma a iniciativa de formular alguma pergunta; não ex-
pressa preocupações, desejos nem preferências. Em geral, tem consciência
da melhora trazida pelo tratamento, mas não manifesta euforia. A apa-
rente indiferença ou a demora na reação aos estímulos externos, a neutra-
lidade emocional e afetiva, a redução da iniciativa e da preocupação, sem
alteração da percepção consciente ou das faculdades intelectuais, consti-
tuem a síndrome psíquica decorrente do tratamento.
Os psiquiatras norte-americanos chamaram a clorpromazina, que era
comercializada nos Estados Unidos como Thorazine, de “tranquilizante po-
tente”. Na França, Delay e Denikcr cunharam um termo científico mais
preciso, a nova droga era um “neuroléptico”, o que significava que ela se
apoderava do sistema nervoso. A clorpromazina, concluíram os dois, indu-
zia déficits semelhantes aos que se viam nos pacientes com encefalite le-
tárgica. “Com efeito”, escreveu Deniker, “seria possível causar uma verda-
deira epidemia de encefalite com as novas drogas. Os sintomas evoluíram
da sonolência reversível para todos os tipos de discinesia e hipercinesia e,
por fim, para o parkinsonismo.”6 Médicos dos Estados Unidos compreen-
deram, similarmente, que essa nova droga não curava nenhuma patologia
conhecida. “Temos de lembrar que não estamos tratando de doenças com
essa droga”, disse o psiquiatra E. H. Parsons num congresso sobre a clor-
promazina, realizado em Filadélfia em 1955. “Estamos usando um agente
neurofarniacológico para produzir um efeito específico.”
Ao mesmo tempo que a companhia Rhône-Poulenc testava fenotiazinas
para investigar suas possíveis propriedades de pílula mágica contra a ma-
lária, Frank Berger, um químico nascido na Tcheco-Eslováquia, fazia pes-
quisas um tanto similares em Londres, e em 1955 seu trabalho levou à in-
trodução dos “tranquilizantes leves” no mercado.
Durante a guerra, Berger foi um dos cientistas da Grã-Bretanha que
ajudaram a desenvolver métodos para a produção medicinal de quantida-
des úteis de penicilina. Mas a penicilina só era eficaz contra bactérias
gram-positivas (micróbios que assumiam uma coloração desenvolvida pelo
cientista dinamarquês Hans Christian Gram) e, uma vez terminada a
guerra, Berger procurou encontrar uma pílula mágica que pudesse matar
micróbios gram-negativos - os que causavam uma multiplicidade de doen-
ças respiratórias, urinárias e gastrintestinais incômodas. Na época, havia
um desinfetante comercial vendido na Grã-Bretanha, chamado Phenoxe-
tol, que era anunciado como eficaz no combate às bactérias gram-negati-
vas do ambiente, e Berger, que trabalhava na British Drug Houses, Ltd.,
fez umas experiências com o ingrediente ativo desse produto, um éter fe-
nilglicerol, no esforço de produzir uma substância com efeitos antibacteri-
anos superiores. Quando um composto chamado mefenesina revelou-se
promissor, Berger o deu a ratos, para testar sua toxicidade. “O composto,
para minha grande surpresa, produziu uma paralisia flácida reversível nos
músculos esqueléticos voluntários, diferente de tudo que eu já tinha
visto”, escreveu o cientista.
Berger havia tropeçado num poderoso relaxante muscular. Isso já era
bem curioso, porém ainda mais surpreendente foi que os ratos paralisados
pela droga não davam qualquer sinal de estarem estressados rom sua
nova situação. Berger deitava os animais de costas e eles não conseguiam
se endireitar, mas seu “ritmo cardíaco era regular e não havia sinais
sugestivos de envolvimento do sistema nervoso autônomo”. Os ratos per-
maneciam parados e tranquilos, e o cientista constatou que, mesmo
quando lhes administrava doses baixas desse admirável novo composto -
doses pequenas demais para causar paralisia muscular os animais exi-
biam essa curiosa tranquilidade.
Berger percebeu que uma droga dessa natureza teria possibilidades co-
merciais como agente atenuador da ansiedade em seres humanos. Entre-
tanto, a mefenesina era uma droga de ação muito curta, que proporcio-
nava apenas alguns minutos de paz. Em 1947, Berger mudou-se para os
Estados Unidos e foi trabalhar na Wallace Laboratories, em Nova Jersey,
onde sintetizou um composto, o meprobamato, que durava oito vezes mais
no corpo do que a mefenesina. Ao dá-lo a animais. Berger descobriu que a
droga também tinha poderosos efeitos de “domesticação". “Depois de rece-
berem meprobamato, os macacos perderam sua indocilidade e se torna-
ram mais fáceis de manejar”, escreveu.’
A Wallace Laboratories introduziu o meprobamato no mercado em
1955, vendendo-o sob o nome de Miltown. Outras empresas farmacêuticas
se alvoroçaram para desenvolver drogas concorrentes e, ao fazê-lo, procu-
raram compostos que tornassem os animais menos agressivos e os insen-
sibilizassem à dor. Na Hoffmann- La Roche, o químico Leo Sternbach
identificou o clordiazepóxido como dotado de um efeito tranquilizador “po-
tente e singular”, depois de administrá-lo a ratos que eram comumente
instigados à luta pela aplicação de choques elétricos nas patas. Mesmo
com uma dose baixa da droga, os ratos continuavam não combativos ao
levarem choques. Esse composto também revelou ter efeitos domesticado-
res potentes em animais de maior porte - transformava tigres e leões em
gatinhos. A prova final dos méritos do clordiazepóxido envolveu outro teste
com choque elétrico. Ratos famintos foram treinados a pressionar uma
alavanca para obter comida e, depois, ensinados a saber que se a pressio-
nassem quando havia uma luz acesa na gaiola, levariam um choque. Em-
bora eles aprendessem rapidamente a não pressionar a alavanca en-
quanto a luz estava acesa, mesmo assim exibiam sinais de extrema tensão
- defecação etc. - toda vez que ela acendia na gaiola. Mas, e quando rece-
biam uma dose de clordiazepóxido? A luz acendia e eles não se importa-
vam minimamente. Sua “ansiedade" desaparecia, e eles chegavam até a
pressionar a alavanca para arranjar alguma comida, despreocupados com
o choque que viria. A Hoffmann-La Roche introduziu o clordiazepóxido no
mercado em 1960, vendendo-o como Librium.
Por razões óbvias, o público recebeu poucas informações sobre os
testes com animais que tinham dado origem aos tranquilizantes leves. To-
davia, um artigo publicado na Science News Letter foi a exceção à regra, e
o repórter que o escreveu situou os experimentos com animais num qua-
dro de referência humano. Se você tomasse um tranquilizante leve, expli-
cou, “isto significa que ainda poderia sentir medo ao ver um carro acelerar
na sua direção, mas o medo não o/a faria correr”.
Agora a psiquiatria dispunha de uma nova droga para acalmar os paci-
entes internados e de uma segunda droga para diminuir a ansiedade,
sendo que esta última podia ser comercializada para a população em ge-
ral; depois, na primavera de 1957, ela ganhou um medicamento para paci-
entes deprimidos, a iproniazida, comercializada como Marsilid. Essa
droga, que foi rotulada de “energizante psíquico”, originava-se numa fonte
de poética pertinência: combustível para foguetes.
Quase no fim da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha en-
frentava uma escassez do oxigênio líquido e do etanol que usava para pro-
pelir seus foguetes V-2, seus cientistas desenvolveram um novo composto,
a hidrazina, para servir de combustível substituto. Terminada a guerra,
empresas de produtos químicos dos países aliados precipitaram-se para
obter amostras do composto, pois suas divisões farmacêuticas estavam
ansiosas para ver se suas propriedades tóxicas poderiam ser exploradas
para criar pílulas mágicas. Em 1951, os químicos da Hoffmann-La Roche
criaram dois compostos de hidrazina, a isoniazida e a iproniazida, que se
revelaram eficazes contra o bacilo causador da tuberculose. Os novos me-
dicamentos foram prontamente postos em uso em vários sanatórios para
tuberculosos e, em pouco tempo, surgiram relatos de que pareciam “ener-
gizar” os pacientes. No Hospital Sea View, em Staten Island, conforme re-
portagem da revista Time, “os pacientes que haviam tomado os medica-
mentos dançaram nas enfermarias, para deleite dos fotojornalistas”.
A visão de pacientes tuberculosos dançando sugeriu que essas drogas
poderiam ser úteis na psiquiatria, como tratamento da depressão. Por vá-
rias razões, considerou-se que a iproniazida era a que tinha maior poten-
cial, mas nos primeiros testes não julgaram essa droga particularmente
eficaz para levantar o ânimo, e houve relatos de que era capaz de provocar
mania. Os pacientes tuberculosos tratados com iproniazida também vi-
nham apresentando tantos efeitos colaterais - tonteira, constipação, difi-
culdade para urinar, neurite, sensações irritantes na pele, confusão e psi-
cose-que seu uso teve de ser limitado nos sanatórios. Entretanto, na pri-
mavera de 1957, Nathan Kline, um psiquiatra do Hospital Estadual Roc-
kland, cm Orangeburg, no estado de Nova York, reabilitou a iproniazida ao
relatar que, quando os pacientes deprimidos eram tratados com o medica-
mento por tempo suficiente, durante pelo menos cinco semanas, ele surtia
efeito. Quatorze dos 16 pacientes tratados por ele com iproniazida haviam
melhorado, e alguns tiveram “remissão completa de todos os sintomas”.
Em 7 de abril de 1957, o New York Times resumiu a estranha jornada
da iproniazida: “Um efeito colateral de um medicamento contra a tubercu-
lose pode ter aberto caminho para a terapia química dos inatingíveis paci-
entes que sofrem de depressão aguda. Os responsáveis por seu desenvolvi-
mento o chamam de estimulante, em contraste com os tranquilizantes”.
Foram essas as drogas que desencadearam a revolução psicofarmaco-
lógica. No curto espaço de três anos (1954-1957), a psiquiatria ganhou no-
vos medicamentos para acalmar os pacientes agitados e maníacos nos
manicômios, para a ansiedade e para a depressão. Mas nenhuma dessas
drogas foi desenvolvida depois de os cientistas identificarem algum pro-
cesso patológico ou anormalidade cerebral que pudesse causar esses sin-
tomas. Elas provieram das pesquisas pós-Segunda Guerra Mundial para
encontrar pílulas mágicas contra doenças infecciosas, quando os pesqui-
sadores, durante esse processo, tropeçaram em compostos que afetavam o
sistema nervoso central de maneiras desconhecidas. Os testes da clorpro-
mazina, do meprobamato e do clordiazepóxido com animais revelaram que
esses agentes cerceavam acentuadamente as respostas físicas e afetivas
normais, porém o faziam sem causar perda da consciência. Foi isso que
houve de tão inédito nos tranquilizantes potentes e leves. Eles cerceavam
o funcionamento cerebral de modo seletivo. Não se sabia ao certo como
funcionava a iproniazida - ela parecia acelerar o cérebro, de algum modo
mas, como assinalou o New York Times, suas propriedades de melhoria do
humor foram adequadamente vistas como um “efeito colateral” de um
agente antituberculose.
Seria mais apropriado descrever essas drogas como “tônicos”. Nos
meios de comunicação, entretanto, contou-se uma história muito dife-
rente.

Uma Aliança Espúria

As forças narrativas da medicina norte-americana passaram por uma


profunda mudança na década de 1950; para constatá-lo, precisamos
contar a história da Sociedade Norte-Americana de Medicina (AMA)1 antes
dessa época. Na virada do século XX, a AMA estabeleceu-se como a orga-
nização que ajudaria o público norte-americano a distinguir o bem do mal.
Na época, havia cerca de cinquenta mil produtos medicinais vendidos nos
Estados Unidos, e eles eram de dois tipos básicos. Havia milhares de pe-
quenas empresas que vendiam xaropes, elixires e remédios à base de er-
vas diretamente ao público (ou nas lojas, como produtos embalados), e es-
ses medicamentos “de marca registrada”, vendidos sem receita, eram tipi-
camente feitos de ingredientes “secretos”. Entrementes, a Merck e outros
“fabricantes de remédios” vendiam suas preparações químicas, que eram
conhecidas como drogas “éticas”, a farmacêuticos, que então funcionavam
como vendedores varejistas desses produtos. Nenhum dos dois grupos
precisava provar a um órgão regulador do governo que seus produtos
eram seguros ou eficazes, e a AMA, ansiosa por estabelecer um lugar para
os médicos nesse mercado livre de restrições, instituiu-se como a organi-
zação que faria essa avaliação. Criou um “departamento de propaganda”
para investigar os remédios vendidos sem receita, assim protegendo os
norte-americanos da “charlatanice”, e criou um Conselho de Farmácia e
Química para conduzir testes químicos das drogas éticas. A AMA divul-
gava os resultados desses testes em seus periódicos e fornecia seu “selo de
aprovação” às melhores drogas éticas. Também publicava anualmente um
livro sobre “medicamentos úteis”, e suas publicações médicas não aceita-
vam anúncios de nenhum remédio que não tivesse sido aprovado em seu
processo de veto.
Com esse trabalho, a AMA se transformou no cão de guarda da indús-
tria farmacêutica e de seus produtos. Ao fazê-lo, a organização estava
prestando um serviço valioso à população e promovendo os interesses fi-
nanceiros de seus membros, porque suas avaliações dos medicamentos
davam aos pacientes uma boa razão para consultarem um médico. Mu-
nido de seu livro sobre medicamentos úteis, o médico podia receitar o que
fosse apropriado. E foi esse conhecimento, em contraste com qualquer po-
der normativo autorizado pelo governo, que conferiu aos médicos o seu va-
lor no mercado (em termos de darem acesso aos medicamentos).
A venda de remédios nos Estados Unidos começou a mudar com a
aprovação da Lei de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos, em 1938. A
lei exigiu que as empresas produtoras provassem à Administração Federal
de Alimentos e Medicamentos [FDA] que seus produtos eram seguros (elas

1 American Medical Association


ainda não tinham de provar que eram úteis) e, na esteira dessa legislação,
a FDA começou a decretar que alguns medicamentos só poderiam ser
comprados com receita médica1. Em 1951, o Congresso aprovou a
Emenda Durham-Humphrev a essa lei, que decretou que a maioria dos
novos medicamentos só ficaria disponível mediante a apresentação da re-
ceita, e que também seriam exigidas receitas na compra de novas doses de
uma mesma medicação.
Os médicos passaram então a desfrutar de um lugar muito privilegiado
na sociedade norte-americana. Controlavam o acesso do público aos anti-
bióticos e a outros novos medicamentos. Em síntese, tinham se tomado os
vendedores varejistas desses produtos, com os farmacêuticos simples-
mente cumprindo suas ordens, e, na qualidade de vendedores, passaram
então a ter uma razão financeira para alardear as maravilhas de seus pro-
dutos. Quanto melhor fosse a percepção dos novos remédios, mais o pú-
blico se inclinaria a procurar os consultórios para obter receitas. “Ao que
parece, a posição do próprio médico no mercado é fortemente influenciada
por sua reputação de uso das drogas mais recentes”, explicou a revista
Fortune.
Os interesses financeiros da indústria farmacêutica e dos médicos ali-
nharam- se como nunca havia acontecido até então, e a AMA adaptou-se
prontamente a essa nova realidade. Em 1952, parou de publicar seu anu-
ário sobre “medicamentos úteis”. Em seguida, passou a permitir em suas
publicações a propaganda de remédios não aprovados por seu Conselho
de Farmácia e Química. Em 1955, a AMA abandonou seu famoso pro-
grama do “selo de aprovação”. Em 1977, havia reduzido o orçamento de
seu Conselho sobre Drogas a míseros 75.000 dólares, o que era compreen-
sível, dado que a AMA já não es taxa no ramo da avaliação dos méritos
desses produtos. Três anos depois, chegou até a fazer campanha contra
uma proposta do senador Estes Kefauver, do Tennessee, de que as empre-
sas farmacêuticas provassem à FDA a eficácia de suas novas drogas. Em
seu relacionamento com a indústria farmacêutica, a AMA “tornou-se o que
eu chamaria de maricas”, confessou o professor Maxwell Finland, da Fa-
culdade de Medicina de Harvard, em depoimento perante o Congresso.
Mas não se tratou apenas de que a AMA abrisse mão de seu papel de
cão de guarda. Ela e os médicos também passaram a trabalhar com a

1 Em 1914, a Lei Harrison sobre Narcóticos havia exigido receitas módicas para o uso de opiáceos e
cocaína. A Lei de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos de 1938 estendeu essa exigência de
venda exclusiva com receita médica a um número maior de medicamentos.
indústria farmacêutica para promover novas drogas. Em 1951, ano em
que foi aprovada a Lei de Durham-Humphrey, a companhia Smith Kline, a
Sociedade Francesa de a Consumir Reports, “não amortece nem embota
os sentidos, além de não criar hábito. Relaxa os músculos, acalma a
mente e dá às pessoas uma nova capacidade de aproveitar a vida”.
Tamanha foi a corrida popular para conseguir o novo medicamento
que a Wallace Laboratories e a Carter Products, que vendiam juntas o me-
probamato, tiveram que fazer um grande esforço para atender à demanda.
As farmácias que tinham a sorte de possuí-lo em estoque exibiam cartazes
que gritavam: sim, Nós temos Miltown! O comediante Milton Berle disse
gostar tanto do remédio que talvez trocasse seu prenome por Miltown. A
Wallace Laboratories contratou Salvador Dalí para ajudar a atiçar a febre
do Miltown, pagando 35.000 dólares ao grande pintor para criar uma ins-
talação numa convenção da AMA, com a intenção de captar a magia dessa
nova droga. Os participantes entravam num túnel escuro e gerador de
claustrofobia, que representava o interior de uma lagarta - seria essa a
sensação da ansiedade -, e ao emergirem de novo na luz deparavam com
uma dourada “borboleta da tranquilidade”, metamorfose que se devia ao
meprobamato. “Ao Nirvana com Miltown”, foi como a revista Time descre-
veu a instalação de Dali.
Houve uma ligeira nota de hesitação surgida em matérias de jornais e
revistas durante a introdução do Thorazine e do Miltown. Na década de
1950, muitos psiquiatras das melhores faculdades de medicina norte-
americanas eram freudianos que acreditavam que os distúrbios mentais
eram causados por conflitos psicológicos, e sua influência levou a Smith
Kline and French, em sua promoção inicial do Thorazine, a alertar os re-
pórteres para o fato de que “não existe a ideia de que a clorpromazina seja
a cura da doença mental, mas ela pode ter enorme valor, se relaxar os pa-
cientes e os tornar acessíveis ao tratamento". Tanto o Thorazine quanto o
Miltown, explicou o New York Times, deviam ser considerados “adjuvantes
da psicoterapia, não a cura”. O Thorazine foi chamado de “tranquilizante
potente” e o Miltown, de “tranquilizante leve”, e, quando a HoíTinann-La
Roche introduziu a iproniazida no mercado, ela foi descrita como “estimu-
lante psíquico”. Esses remédios, embora talvez fossem notáveis em sua
natureza, não eram antibióticos para a mente. Como observou a revista
Life, num artigo de 1956 intitulado “A busca apenas começou”, a psiquia-
tria ainda estava nos estágios iniciais de sua revolução, pois as “bactérias”
dos distúrbios mentais ainda estavam por ser descobertas.
Contudo, em curtíssimo prazo, até esse toque de cautela foi posto de
lado. Em 1957, o New York Times noticiou que agora os pesquisadores
acreditavam que a iproniazida poderia ser um “potente regulador do meta-
bolismo cerebral em desequilíbrio”. Isso sugeria que o remédio, que fora
desenvolvido para combater a tuberculose, poderia consertar algo errado
no cérebro dos pacientes deprimidos. Urna segunda droga para esses pa-
cientes, a imipramina, chegou ao mercado nessa época e, em 1959, o New
York Times referiu-se aos dois pela primeira vez como “antidepressivos”.
Ambos pareciam “reverter estados psíquicos”, disse o jornal. Essas drogas
estavam ganhando um novo status e, finalmente, o psiquiatra Harold
Himwich, num artigo de 1958 na revista Science, explicou que elas “[po-
diam] ser comparadas ao advento da insulina, que neutraliza os sintomas
do diabetes”. Os antidepressivos consertavam alguma coisa errada no cé-
rebro e, quando introduziu o Librium no mercado, em 1960, a Hoffmann-
La Roche retomou essa mensagem curativa. Seu novo remédio não era
apenas mais um tranquilizante, porém “o sucessor de todo esse grupo. (...)
O Librium é o maior passo dado até hoje em direção ao alívio ‘puro’ da an-
siedade, em contraste com a sedação central ou a ação hipnótica”. A
Merck fez o mesmo, comercializando seu Suavitil como “um normalizador
do humor. (...) O Suavitil oferece um tipo novo e específico de tratamento
neuroquímico para o paciente incapacitado pela ansiedade, tensão, de-
pressão ou manifestações obsessivo-compulsivas”.
O último passo nessa recauchutagem da imagem das drogas psiquiá-
tricas veio em 1963. O Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) havia
conduzido um teste de seis semanas com o Thorazine e outros neurolépti-
cos, e quando ficou demonstrado que essas drogas eram mais eficazes que
um placebo para acabar com os sintomas psicóticos, os pesquisadores
concluíram que elas deviam ser vistas “como antiesquizofrénicos em sen-
tido lato. De fato, é questionável se convém conservar o termo ‘tranquili-
zante’”.
Com esse pronunciamento do NIMH, a transformação das drogas psi-
quiátricas estava basicamente concluída. No começo, o Thorazine e outros
neurolépticos tinham sido vistos como agentes que deixavam os pacientes
mais sossegados e emocionalmente indiferentes. Nesse momento, transfor-
maram- se em medicamentos “antipsicóticos”. Relaxantes musculares que
tinham sido desenvolvidos para uso na psiquiatria, por suas propriedades
“domesticadoras”, passaram a ser “normalizadores do humor”. Os estimu-
lantes psíquicos viraram “antidepressivos”. Todas essas drogas pareciam
ser antídotos para distúrbios específicos, e, nesse sentido, mereciam ser
comparadas aos antibióticos. Eram agentes que combatiam doenças, e
não meros tônicos. A única coisa que faltava nessa história da medicina
das pílulas mágicas era a compreensão da biologia das doenças mentais,
mas, reconcebidas as drogas dessa maneira, quando os pesquisadores
chegaram a entender de que modo elas afetavam o cérebro, elaboraram
duas hipóteses que, pelo menos em tese, preenchiam essa lacuna.

As Substâncias Químicas do Cérebro

No início da década de 1950, havia um debate contínuo entre os neu-


rologistas sobre o modo como os sinais atravessavam as minúsculas si-
napses que separavam os neurônios no cérebro. A visão predominante era
que a transmissão dos sinais era de natureza elétrica, mas outros defen-
diam a transmissão química, num debate que o historiador Elliot Valens-
tein, em seu livro Blaming the Brain [Culpando o cérebro], caracterizou
como a “guerra entre as faíscas e as sopas”. Todavia, em meados dos anos
1950, os pesquisadores haviam isolado alguns possíveis mensageiros quí-
micos no cérebro de ratos e outros mamíferos, inclusive a acetilcolina, a
serotonina, a norepinefrina e a dopamina, e o modelo da “sopa” não tar-
dou a prevalecer.
De posse dessa compreensão, um investigador do NIMH, Bernard Bro-
die, plantou a semente intelectual que viria a evoluir para a teoria segundo
a qual a depressão se devia a um desequilíbrio químico no cérebro. Em
1955, em experimentos com coelhos, Brodie relatou que a reserpina, uma
erva medicinal usada na índia para acalmar pacientes psicóticos, reduzia
os níveis cerebrais da serotonina. Também deixava os animais “letárgicos”
e “apáticos”. Arvid Carlsson, um farmacologista sueco que havia traba-
lhado durante algum tempo no laboratório de Brodie, não tardou a comu-
nicar que a reserpina também reduzia os níveis cerebrais da norepinefrina
e da dopamina (conjuntamente conhecidas como catecolaminas). Assim,
uma droga que reduzia a serotonina, a norepinefrina e a dopamina no cé-
rebro parecia deixar os animais “deprimidos”. Mas os investigadores des-
cobriram que se os animais fossem previamente tratados com iproniazida
ou imipramina antes de receberem a reserpina, não ficavam letárgicos
nem apáticos. Aparentemente, de um modo ou de outro, os dois “antide-
pressivos” bloqueavam a habitual redução da serotonina e das catecolami-
nas pela reserpina.
Durante os anos 1960, cientistas do NIHM e de outras instituições
descobriram como funcionavam a iproniazida e a imipramina. A transmis-
são de sinais do neurônio “pré-sináptico” para o “pós-sináptico” precisa
ser veloz e aguda como um raio e, para que o sinal seja concluído, o men-
sageiro químico tem que ser retirado da sinapse. Isso pode se dar de duas
maneiras. Ou a substância química é metabolizada por uma enzima e des-
pachada como um resíduo, ou reflui para o neurônio pré-sináptico. Os
pesquisadores descobriram que a iproniazida atrapalha o primeiro pro-
cesso. Ela bloqueia uma enzima, conhecida como monoamina oxidase,
que metaboliza a norepinefrina e a serotonina. Como resultado, os dois
mensageiros químicos permanecem por mais tempo que o normal na si-
napse. A imipramina inibe o segundo processo. Bloqueia a “recaptação” de
norepinefrina e serotonina pelo neurônio pré-sináptico e, desse modo,
mais uma vez, as duas substâncias químicas permanecem na sinapse por
mais tempo que o normal. As duas drogas produzem um resultado final
semelhante, embora o façam por meios diferentes.
Em 1965, num artigo publicado no American Journal of Psychiatry,
Joseph Schildkraut, do NIHM, examinou esse corpo de pesquisas e propôs
uma teoria do desequilíbrio químico nos distúrbios afetivos:
Essas drogas [como a reserpina] que causam a redução e a inativaçãoda no-
repinefrina no nível central produzem sedação ou depressão, ao passo que
as drogas que aumentam ou potencializam a norepinefrina estão associa-
das à estimulação ou excitação comportamental, e costumam exercer no
ser humano um efeito antidepressivo. A partir dessas constatações, al-
guns investigadores formularam uma hipótese sobre a fisiopatologia dos
transtornos afetivos. Essa hipótese, que foi denominada “hipótese cateco-
laminérgica dos transtornos afetivos”, propõe que algumas formas de de-
pressão, se não todas, estão associadas a uma deficiência absoluta ou re-
lativa de catecolaminas, particularmente da norepinefrina.”
Embora essa hipótese tenha limitações óbvias - nas palavras de Schil-
dkraut, ela foi, “se tanto, uma supersimplificação reducionista de um es-
tado biológico muito complexo” -, estava erigida a primeira pilastra da
construção da doutrina hoje conhecida como “psiquiatria biológica”. Dois
anos depois, pesquisadores erigiram a segunda: a hipótese dopaminérgica
da esquizofrenia.
Os indícios para essa teoria vieram de investigações sobre o mal de
Parkinson. No fim da década de 1950, Arvid Carlsson, da Suécia, e outros
investigadores sugeriram que o parkinsonismo poderia se dever a uma de-
ficiência de dopamina. Para testar essa possibilidade, o neurofarmacolo-
gista vienense Oleh Hornykicwicz aplicou iodo no cérebro de um homem
que havia morrido dessa doença, uma vez que essa substância dá à dopa-
mina uma coloração rosada. Os gânglios basais, uma área do cérebro que
controla a atividade motora, eram sabidamente ricos em neurônios
dopaminérgicos; no entanto, nos gânglios basais do paciente parkinsoni-
ano, “mal [houve] um toque de descoloração rosada”, informou Hornykie-
wicz.
Pesquisadores psiquiátricos compreenderam ¡mediatamente a possível
relevância disso para a esquizofrenia. O Thorazine e outros neurolépticos
induziam regularmente sintomas parkinsonianos - os mesmos tremores e
tiques e o andar mais lento. E, se o mal de Parkinson resultava da morte
de neurônios dopaminérgicos nos gânglios basais, era razoável supor que
as drogas antipsicóticas, de um modo ou de outro, obstruíssem a trans-
missão de dopamina no cérebro. A morte de neurônios dopaminérgicos e o
bloqueio da transmissão da dopamina produziriam uma disfunção dopa-
minérgica nos gânglios basais. Carlsson não tardou a relatar que o Thora-
zine e os outros medicamentos usados na esquizofrenia faziam exata-
mente isso.
Mas essa era uma descoberta que falava sobre drogas que “desliga-
vam” certas regiões cerebrais. Não normalizavam o funcionamento do cé-
rebro; criavam uma patologia profunda. Ao mesmo tempo, entretanto, os
pesquisadores informaram que as anfetaminas - drogas que sabidamente
desencadeavam alucinações e delírios paranoicos - elevavam a atividade
dopaminérgica no cérebro. Assim, deu-se a impressão de que a psicose se-
ria causada pelo excesso de atividade dopaminérgica, a qual os neurolépti-
cos cerceariam (com isso reequilibrando essa atividade). Se assim fosse,
seria possível dizer que essas drogas eram de natureza antipsicótica, e, em
1967, o cientista holandês Jacques Van Rossum formulou explicitamente
a hipótese dopaminérgica da esquizofrenia. “Quando a hipótese do blo-
queio dopaminérgico por agentes neurolépticos puder ser mais consubs-
tanciada, talvez tenha enormes consequências para a patofisiologia da es-
quizofrenia. A hiperestimulação dos receptores dopaminérgicos poderia
então fazer parte da etiologia” da doença.

A Realização das Expectativas

A revolução na assistência em saúde mental que o Congresso havia es-


perado ao criar o Instituto Nacional de Saúde Mental, vinte anos antes, es-
tava - ou parecia estar - concluída. Haviam sido desenvolvidas drogas psi-
quiátricas que eram antídotos para transtornos biológicos, e os pesquisa-
dores acreditavam que estas funcionavam corrigindo desequilíbrios quími-
cos no cérebro. Os terríveis hospitais psiquiátricos que tanto haviam en-
vergonhado a nação, no fim da Segunda Guerra Mundial, poderiam agora
ser fechados, já que os esquizofrênicos, graças às novas drogas, poderiam
ser tratados em suas comunidades. Os que sofriam de distúrbios mais
brandos, como depressão ou ansiedade, simplesmente precisariam buscar
alívio em seus armários de remédios. Em 1967, um em cada três adultos
norte-americanos recebeu uma receita de um medicamento “psicoativo”, e
o total de vendas dessas drogas atingiu 692 milhões de dólares.
Era a narrativa de uma vitória científica e, no fim da década de 1960 e
inicio da de 1970, os homens que tinham sido pioneiros nesse novo campo
da “psicofarmacologia” olharam com orgulho para o trabalho realizado.
“Foi uma revolução, e não apenas um período de transição”, disse Frank
Ayd Jr., editor da International Drug Therapy Newsletter. “Houve uma re-
volução real na história da psiquiatria e uma das epopeias mais importan-
tes e dramáticas na história da própria medicina.” Roland Kuhn, que ha-
via “descoberto” a imipramina, ponderou que era apropriado ver o desen-
volvimento dos antidepressivos como “uma conquista do intelecto humano
em desenvolvimento progressivo”. Os medicamentos ansiolíticos, disse
Frank Berger, o criador do Miltown, estavam “contribuindo para a felici-
dade, a realização humana e a dignidade do homem". Tais eram os senti-
mentos dos que haviam liderado a revolução, e por fim, num simpósio de
1970 sobre psiquiatria biológica em Baltimore, Nathan Kline resumiu o
que a maioria dos presentes entendia ser verdade: todos haviam conquis-
tado um lugar no panteão dos grandes nomes da medicina.
“A medicina e a ciência ficarão um pouquinho diferentes por termos
existido”, disse Kline a seus colegas. “O tratamento e a compreensão da
doença [mental] se alterarão para sempre (...) e, à nossa maneira, persisti-
remos por toda a eternidade nesta pequena contribuição que demos para
a Aventura Humana.”

Uma Revolução Científica... ou um Delírio da Sociedade?

Hoje, ao refazermos o caminho da descoberta da primeira geração de


drogas psiquiátricas e acompanharmos sua transformação em pílulas má-
gicas, podemos ver que, em 1970, duas histórias possíveis se desenrola-
vam. Uma possibilidade era que a psiquiatria, numa guinada incrivel-
mente fortuita dos acontecimentos, houvesse tropeçado em vários tipos de
drogas que, apesar de produzirem comportamentos anormais nos ani-
mais, corrigiam diversas anormalidades na química cerebral dos que esta-
vam mentalmente enfermos. Se assim fosse, haveria realmente uma ver-
dadeira revolução cm andamento, e poderíamos esperar que, ao examinar
os resultados produzidos por essas drogas a longo prazo, constataríamos
que elas ajudavam as pessoas a melhorar e a permanecer bem. A outra
possibilidade era que a psiquiatria, ansiosa por ter suas próprias pílulas
mágicas e por ocupar seu lugar na corrente dominante da medicina, hou-
vesse transformado as drogas em algo que elas não eram. Essas drogas da
primeira geração seriam simples agentes que perturbavam de algum modo
o funcionamento normal do cérebro, que era o que haviam mostrado as
pesquisas com animais, e, se assim fosse, seria lógico que os resultados
produzidos pelas drogas a longo prazo viessem a ser problemáticos.
Havia duas histórias possíveis em andamento e, nas décadas de 1970
e 1980, os pesquisadores examinaram a questão crucial: as pessoas diag-
nosticadas com depressão e esquizofrenia sofrem de um desequilíbrio quí-
mico passível de ser corrigido pela medicação? Será que as novas drogas
eram realmente antídotos para algo quimicamente errado no cérebro?
5.
A CAÇADA AOS DESEQUILÍBRIOS QUÍMICOS

“Eis a grande tragédia da ciência - o assassinato de uma


bela hipótese por um fato abominável.” -Thomas Huxley,
1870.
O cérebro humano adulto pesa cerca de 1,4 kg e, quando o examina-
mos de perto, retirado do crânio, é um pouco maior do que se imaginaria.
Eu pensava que ele caberia facilmente na palma da mão, mas, na verdade,
precisamos das duas mãos para levantá-lo com segurança. Quando o cé-
rebro está fresco, ainda não transformado em conserva num molho de for-
mol, uma teia de vasos sanguíneos torna rosada a sua superfície, e o te-
cido é mole, quase gelatinoso. Decididamente, ele é de natureza “bioló-
gica”, mas, de algum modo, dá origem a todos os misteriosos e admiráveis
talentos da mente humana. A convite de um amigo, Jang-Ho Cha, que é
neurocientista no Hospital Geral de Massachusetts, assisti a um seminá-
rio de secções do cérebro no hospital, na suposição de que ver um cérebro
humano me ajudaria a visualizar melhor as vias neurotransmissoras tidas
como originárias da depressão e da psicose, mas, naturalmente, minha vi-
sita se transformou em algo mais do que isso. O cérebro humano, visto de
perto, é de tirar o fôlego.
A mecânica de seu sistema de transmissão de mensagens é bem co-
nhecida. Existem, observou Cha, cem bilhões de neurônios no cérebro hu-
mano. O corpo celular de um neurônio “típico” recebe informações de uma
vasta rede de dendritos e envia sinais por um único axônio, que pode se
projetar para uma área cerebral distante (ou descer pela medula espinhal).
Em sua extremidade, o axônio se ramifica em numerosos terminais, e é
por esses terminais que os mensageiros químicos - dopamina, serotonina
etc. - são liberados na fenda sináptica, que é uma lacuna de uns vinte na-
nômetros de largura (o nanômetro equivale a um bilionésimo do metro).
Um único neurônio tem entre mil e dez mil conexões sinápticas, e o cére-
bro adulto tem ao todo uns 150 trilhões de sinapses.
Os axônios dos neurônios que usam o mesmo neurotransmissor costu-
mam juntar-se em feixes, quase como os fios de um cabo de telecomunica-
ções, e quando os cientistas descobriram que a dopamina, a norepinefrina
e a serotonina fluorescem com cores diferentes ao serem expostas a vapo-
res de formol, tornou-se possível acompanhar os trajetos dessas vias neu-
rotransmissores cerebrais. Embora Joseph Schildkraut, ao formular sua
teoria dos distúrbios afetivos, tenha pensado que a norepinefrina era o
neurotransmissor mais propenso a se revelar escasso nos deprimidos, os
pesquisadores não tardaram a voltar grande parte de sua atenção para a
serotonina, e assim, para nossos objetivos, no tocante a nossa investiga-
ção da teoria do desequilíbrio químico dos transtornos mentais, precisa-
mos examinar essa via cerebral na depressão e a via dopaminérgica na es-
quizofrenia.
Vias serotoninérgicas do cérebro

A via serotoninérgica é uma das antigas raízes da evolução. Neurônios


serotoninérgicos são encontrados no sistema nervoso de todos os vertebra-
dos e da maioria dos invertebrados e, nos seres humanos, seus corpos ce-
lulares localizam-se no tronco encefálico, numa área conhecida como nú-
cleos de raphe. Alguns desses neurônios enviam axônios compridos pela
medula espinhal, num sistema que está envolvido no controle das ativida-
des respiratória, cardíaca e gastrintestinal. Outros neurônios serotoninér-
gicos têm axônios que sobem para todas as áreas do cérebro - o cerebelo,
o hipotálamo, os gânglios basais, os lobos temporais, o sistema límbico, o
córtex cerebral e os lobos frontais. Essa via está envolvida na memória, na
aprendizagem, no sono, no apetite e na regulação dos estados de humor e
dos comportamentos. Como assinalou Efrain Azmitia, professor de biolo-
gia na Universidade de Nova York, “o sistema serotoninérgico do cérebro é
o maior sistema cerebral conhecido e pode ser caracterizado como um sis-
tema neuronal ‘gigantesco’”.
As vias dopaminérgicas do cérebro

Há três grandes vias dopaminérgicas no cérebro. Os corpos celulares


de todos esses três sistemas localizam-se acima do tronco encefálico, seja
na substância negra, seja no tegmento ventral. Seus axônios se projetam
para os gânglios basais (sistema nigroestriatal), para a região límbica (sis-
tema mesolímbico) e para os lobos frontais (sistema mesocortical). Os gân-
glios basais iniciam e controlam o movimento. As estruturas límbicas - o
tubérculo olfativo, o núcleo acumbente e a amígdala, entre outros - locali-
zam-se atrás dos lobos frontais e ajudam a regular nossas emoções. É aí
que sentimos o mundo, num processo que é vital para nosso senso de
identidade pessoal e nossas concepções da realidade. Os lobos frontais são
o aspecto mais distintivo do cérebro humano e nos fornecem a capacidade
quase divina de monitorar nosso próprio eu.
Toda essa fisiologia - os 100 bilhões de neurônios, os 150 trilhões de
sinapses, as diversas vias neurotransmissoras - refere-se a um cérebro de
complexidade quase infinita. No entanto, a teoria dos desequilíbrios quími-
cos dos transtornos mentais reduziu essa complexidade a um simples me-
canismo patológico fácil de apreender. Na depressão, o problema estaria
cm que os neurônios serotoninérgicos liberariam muito pouca serotonina
na fenda sináptica e, por isso, as vias serotoninérgicas do cérebro ficariam
“subativas”. Os antidepressivos elevariam e normalizariam os níveis de se-
rotonina na fenda sináptica, e isso permitiria que essas vias transmitissem
mensagens numa velocidade adequada. Enquanto isso, as alucinações e
vozes características da esquizofrenia resultariam de vias dopaminérgicas
hiperativas. Ou os neurônios pré-sinápticos jogariam um excesso de dopa-
mina na sinapse, ou os neurônios-alvo teriam uma densidade anormal-
mente alta de receptores dopaminérgicos. Os antipsicóticos poriam um
freio nesse sistema, o que permitiria às vias dopaminérgicas funcionarem
de maneira mais normal.
Foi essa a teoria do desequilíbrio químico proposta por Schildkraut e
Jacques Van Rossum, e a própria pesquisa que levou Schildkraut a sua
hipótese também forneceu aos investigadores um método para testá-la. Os
estudos da iproniazida e da imipramina haviam mostrado que os neuro-
transmissores eram removidos das sinapses de uma de duas maneiras: ou
a substância química era recaptada pelo neurônio pré-sináptico e restau-
rada para uso posterior, ou era metabolizada por uma enzima e descar-
tada como resíduo. A serotonina é metabolizada cm ácido 5-hidroxi-indo-
lacético (5-HIAA); a dopamina é transformada cm ácido homovanílico
(HVA). Os pesquisadores poderiam buscar esses metabólitos no líquido ce-
falorraquidiano, e as quantidades encontradas serviriam de medição indi-
reta dos níveis sinápticos dos neurotransmissores. Como a teoria dizia que
o nível baixo de serotonina causava depressão, qualquer pessoa nesse es-
tado emocional deveria ter níveis de 5-HIAA inferiores ao normal em seu
líquido cefalorraquidiano. Similarmente, como se teorizava que o sistema
dopaminérgico hiperativo causava a esquizofrenia, as pessoas que ouviam
vozes ou eram paranoicas deveriam ter níveis anormalmente altos de HVA
no líquido cefalorraquidiano.
Essa linha de pesquisa manteve os cientistas ocupados por quase 15
anos.
A Hipótese Serotoninérgica Posta à Prova

Em 1969, Malcolm Bowers, da Universidade Yale, tornou-se o primeiro


a relatar se os pacientes deprimidos tinham ou não baixos níveis de meta-
bólitos de serotonina no líquido cefalorraquidiano. Num estudo de oito pa-
cientes deprimidos (todos previamente expostos a antidepressivos), ele
anunciou que seus níveis de 5-HIAA eram inferiores ao normal, mas não
“significativamente”.3 Dois anos depois, investigadores da Universidade
McGill afirmaram que também eles não haviam encontrado uma diferença
“estatisticamente significativa” nos níveis de 5-HIAA de pacientes deprimi-
dos e controles normais, e que também eles não haviam encontrado ne-
nhuma correlação entre os níveis de 5-HIAA e a gravidade dos sintomas
depressivos. Em 1974, Bowers retornou com um estudo de acompanha-
mento mais aprimorado: pacientes deprimidos que não tinham sido expos-
tos a antidepressivos exibiam níveis perfeitamente normais de 5-HIAA?
A teoria serotoninérgica da depressão não parecia estar sendo confir-
mada e, em 1974, dois pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, Jo-
seph Mendels e Alan Frazer, reexaminaram os dados que tinham levado
Schildkraut a propor sua teoria, para começo de conversa. Schildkraut
havia observado que a reserpina, que reduzia as monoaminas cerebrais
(norepinefrina, serotonina e dopamina), costumava deprimir as pessoas.
No entanto, quando Mendels e Frazer examinaram de perto a literatura ci-
entífica, constataram que quando se administrava reserpina a pacientes
hipertensos, apenas 6% deles ficavam realmente deprimidos. Além disso,
em 1955, um grupo de médicos na Inglaterra tinha dado essa erva medici-
nal a seus pacientes deprimidos e ela havia elevado o estado de ânimo de
muitos. A reserpina, concluíram Mendels e Frazer, não era, de modo al-
gum, uma indutora confiável da depressão.6 Eles observaram ainda que,
quando pesquisadores davam às pessoas outras drogas depressoras da
monoamina, esses agentes também não induziam à depressão. “A litera-
tura aqui reexaminada sugere fortemente que a redução da norepinefrina,
da dopamina ou da serotonina cerebrais não é suficiente, por si só, para
responder pelo desenvolvimento da síndrome clínica da depressão”, escre-
veram eles.
A teoria parecia prestes a ser declarada morta e enterrada, mas então,
em 1975, Marie Asberg e seus colegas do Instituto Karolinska, em Esto-
colmo, deram- lhe vida nova. Vinte dos 68 pacientes deprimidos testados
por eles sofriam de níveis baixos de 5-HIAA, e esses pacientes com baixa
serotonina eram um pouco mais suicidas que os outros, sendo que dois
dos vinte acabaram se suicidando. Isso era prova, no dizer dos pesquisa-
dores suecos, de que haveria “um subgrupo bioquímico de transtorno de-
pressivo caracterizado pela perturbação da circulação serotoninérgica”.’
Em pouco tempo, psiquiatras proeminentes dos Estados Unidos esta-
vam escrevendo que “quase 30%” dos pacientes deprimidos haviam apre-
sentado baixos níveis de serotonina. A teoria serotoninérgica da depressão
parecia enfim parcialmente corroborada. Hoje, porém, ao reexaminarmos o
estudo de Asberg e verificarmos seus dados, podemos ver que sua consta-
tação de um “subgrupo biológico” de pacientes deprimidos foi sobretudo
uma história de racionalização, confundindo desejo com realidade.
Em seu estudo, Asberg relatou que 25% de seu grupo “normal” tinham
níveis cefalorraquidianos de 5-HIAA abaixo de 15 nanogramas por milili-
tro. Cinquenta por cento tinham de 15 a 25 nanogramas de 5-HIAA por
mililitro, e os 25% restantes tinham níveis acima de 25 nanogramas. A
curva em forma de sino de seus sujeitos “normais” mostrou que os níveis
de 5-HIAA eram bastante variáveis. Mas o que Asberg não observou em
sua discussão foi que a curva de distribuição normal dos 68 pacientes de-
primidos de seu estudo era quase exatamente idêntica. Vinte e nove por
cento (20 dos 68) tinham contagens de 5-HIAA abaixo de 15 nanogramas,
47% tinham níveis entre 15 e 25 nanogramas, e 24% tinham níveis acima
de 25 nanogramas. Vinte e nove por cento dos pacientes deprimidos po-
diam ter níveis “baixos” de metabólitos de serotonina no líquido cefalorra-
quidiano (esse era o “subgrupo biológico” da investigadora), mas, por outro
lado, o mesmo acontecia com 25% das pessoas “normais”. O nível médio
dos normais era de 20 nanogramas e, como se constatou, mais de metade
dos pacientes deprimidos - 37 em 68 - tinham níveis superiores a esse va-
lor.
Visto dessa maneira, o estudo de Asberg não tinha fornecido nenhuma
nova razão para se confiar na teoria serotoninérgica da depressão. Investi-
gadores japoneses logo revelaram, involuntariamente, a lógica equivocada
que estava em ação. Relataram que alguns antidepressivos (usados no Ja-
pão) bloqueavam os receptores de serotonina, inibindo o disparo dessas
vias, e assim, raciocinaram que a depressão seria causada por um “ex-
cesso de serotonina livre na fenda sinóptica”? Eles empregaram o mesmo
raciocínio retroativo que dera origem à teoria da depressão explicada pela
baixa serotonina e, se o tivessem desejado, os cientistas japoneses pode-
riam ter apontado o estudo de Asberg para corroborar sua teoria, uma vez
que os suecos haviam constatado que 24% dos pacientes deprimidos ti-
nham níveis “altos” de serotonina.
Em 1984, investigadores do NIMH estudaram mais uma vez a teoria
serotoninérgica da depressão. Queriam verificar se o “subgrupo biológico"
de pacientes deprimidos com níveis “baixos” de serotonina era o que me-
lhor respondia a um antidepressivo, a amitriptilina, que bloqueava seleti-
vamente sua recaptação. Se um antidepressivo servia de antídoto para um
desequilíbrio químico no cérebro, a amitriptilina deveria ter sua eficácia
máxima nesse subgrupo. No entanto, como escreveu o chefe da equipe de
investigadores, James Maas, “contrariando as expectativas, não foram en-
contradas relações entre o 5-HIAA cefalorraquidiano e a resposta à ami-
triptilina”. Além disso, ele e os outros pesquisadores do NIMH descobriram
- como tinha feito Asberg - que os níveis de 5-HIAA variavam muito nos
pacientes deprimidos. Alguns tinham níveis altos de metabólitos de seroto-
nina no líquido cefalorraquidiano, ao passo que outros tinham níveis bai-
xos. Os cientistas do NIMH extraíram a única conclusão possível: “As ele-
vações ou diminuições do funcionamento dos sistemas serotoninérgicos,
por si mesmas, não tendem a estar associadas à depressão”.1
Mesmo depois desse relatório, a teoria serotoninérgica da depressão
não desapareceu por completo. O sucesso comercial do Prozac, um “inibi-
dor seletivo de recaptação de serotonina” [ISRS], introduzido no mercado
pela companhia farmacêutica Eli Lilly em 1988, alimentou uma nova ro-
dada de afirmações públicas de que a depressão se devia a níveis baixos
desse neurotransmissor e, mais uma vez, um sem-número de investigado-
res conduziu experimentos para verificar se isso era fato. Todavia, essa se-
gunda rodada de estudos produziu os mesmos resultados da primeira.
“Passei os primeiros anos da minha carreira num regime de dedicação ex-
clusiva a pesquisas sobre o metabolismo da serotonina cerebral, mas
nunca vi nenhuma prova convincente de que algum distúrbio psiquiátrico,
inclusive a depressão, resultasse de uma deficiência da serotonina cere-
bral”, disse David Burns, um psiquiatra de Stanford, em 2003." Muitos
outros fizeram a mesma colocação. “Não há nenhuma comprovação cientí-
fica de que a depressão clínica se deva a qualquer tipo de estado de déficit

1
Os pesquisadores do NIMH também examinaram algumas outras associações possíveis entre níveis variáveis
de neurotransmissores e a resposta a um antidepressivo. Mediram metabólitos da norepinefrina e metabó-
litos da dopamina; dividiram seus pacientes deprimidos em grupos de bipolares e unipolares; e avaliaram a
resposta deles a dois antidepressivos - a imipramina e a amitriptilina. Encontraram associações discretas
entre vários desses subgrupos e sua resposta a uma ou outra das drogas; no texto acima cu me concentrei
nas suas constatações quanto a (a) a depressão dever-sc a níveis baixos de serotonina e (b) o subgrupo de
pacientes com níveis baixos de serotonina responder melhor a uma droga que bloqueia scletivamcnte a
recaptação desse neurotransmissor.
biológico”, escreveu Colin Ross, um professor adjunto de psiquiatria do
Centro Médico Southwest, em Dallas, em seu livro de 1995, Pseudoscience
in BiologicalPsychialiy [Pseudociência na psiquiatria biológica]. Em 2000,
os autores de Essential Psychophannacology [Fundamentos de psicofar-
macologia] disseram a alunos de medicina que “não há nenhuma prova
clara e convincente de que a deficiência de monoamina responda pela de-
pressão, ou seja, não há nenhum déficit ‘real’ de monoaminas”. Entre-
tanto, impulsionada pela propaganda farmacêutica, essa crença conti-
nuou viva e levou o psiquiatra irlandês David Healy, que escreveu vários
livros sobre a história da psiquiatria, a dizer, em 2005, que essa teoria
precisava ser jogada na lata de lixo da medicina, onde era possível encon-
trar outras teorias igualmente desacreditadas. “A teoria serotoninérgica da
depressão”, escreveu ele com evidente exasperação, “é comparável à teoria
masturbatória da loucura”."

O Dejavu da Dopamina

Ao formular sua hipótese dopaminérgica da esquizofrenia, Van Ros-


sum assinalou que a primeira coisa que os investigadores precisavam fa-
zer era “consubstanciar melhor” o fato de que as drogas antipsicóticas re-
almente reduziam a transmissão da dopamina no cérebro. Isso levou al-
gum tempo, mas, em 1975, Solomon Snyder, da Faculdade de Medicina
Johns Hopkins, e Philip Seeman. da Universidade de Toronto, explicaram
como as drogas surtiam esse efeito. Primeiro, Snyder identificou dois tipos
distintos de receptores de dopamina, conhecidos como D1 e D2. Em se-
guida, os dois pesquisadores descobriram que os antipsicóticos bloquea-
vam de 70% a 90% dos receptores D2. Os jornais passaram então a falar
de como essas drogas poderiam corrigir o desequilíbrio químico no cére-
bro.
"O excesso de função dopaminérgica no cérebro poderia explicar a es-
magadora enxurrada de sensações que atormenta o esquizofrênico”, expli-
cou o New York Times. “Ao bloquear os receptores cerebrais da dopamina,
os neurolépticos põem fim às visões e sons que não estão realmente pre-
sentes.”
Entretanto, justamente enquanto Snyder e Seeman relatavam seus re-
sultados, Malcolm Bowers anunciava descobertas que lançavam uma
sombra sobre a hipótese dopaminérgica. Ele tinha medido o nível de meta-
bólitos de dopamina no líquido cefalorraquidiano de esquizofrênicos não
medicados e considerou-os bastante normais. “Nossos resultados”,
escreveu, “não fornecem provas neuroquímicas de um excesso de excita-
ção nesses pacientes que provenha de um sistema dopaminérgico mesen-
cefálico.” Outros não tardaram a comunicar resultados semelhantes. Em
1975, Robert Post, no NIMH, determinou que os níveis de HVA no líquido
cefalorraquidiano de vinte esquizofrênicos não medicados “não eram signi-
ficativamente diferentes dos observados nos sujeitos de controle”.1" Estu-
dos feitos cm autópsias também revelaram que o tecido cerebral de esqui-
zofrênicos não medicados não apresentava níveis anormais de dopamina.
Em 1982, John Haracz, da Universidade da Califórnia em Los Angeles,
examinou esse corpo de pesquisas e tirou a conclusão final óbvia: “Esses
resultados não corroboram a presença de uma circulação elevada de do-
pamina no cérebro de esquizofrênicos [não medicados]”.
Tendo descoberto que os níveis dopaminérgicos de esquizofrênicos
nunca medicados eram normais, os pesquisadores voltaram a atenção
para uma segunda possibilidade. Talvez as pessoas com esquizofrenia ti-
vessem uma abundância excessiva de receptores dopaminérgicos. Se as-
sim fosse, os neurônios pós-sinápticos seriam “hipersensíveis” à dopa-
mina, e isto causaria uma hiperestimulação das vias dopaminérgicas. Em
1978, Philip Seeman, da Universidade de Toronto, anunciou na revista
Nature que acontecia exatamente isso. Na autópsia, os cérebros de vinte
esquizofrênicos revelaram 70% mais receptores D2 do que o normal. À pri-
meira vista, a causa da esquizofrenia parecia ter sido encontrada, mas
Seeman advertiu que todos os pacientes haviam tomado neurolépticos an-
tes de morrer. “Embora esses resultados sejam aparentemente compatí-
veis com a hipótese dopaminérgica da esquizofrenia em geral”, escreveu
ele, podia ser que o aumento dos receptores D2, “houvesse resultado da
administração de neurolépticos por longo prazo.”
Vários estudos provaram rapidamente que as drogas eram de fato os
culpados. Quando se administravam neurolépticos a ratos, aumentava ra-
pidamente o número de seus receptores D2. Quando eles recebiam uma
droga que bloqueava os receptores D1 esse subtipo de receptor tinha sua
densidade aumentada. Em todas as situações, o aumento foi prova da ten-
tativa do cérebro de compensar o bloqueio de seus sinais pela droga. Em
seguida, em 1982, Angus MacKay e seus colegas britânicos relataram que,
ao examinarem o tecido cerebral de 48 esquizofrênicos falecidos, “os au-
mentos dos receptores [D,] só foram observados em pacientes em quem a
medicação neuroléptica tinha sido mantida até a época da morte, o que in-
dicou que eram inteiramente iatrogênicos [causados pela droga]”. Alguns
anos depois, investigadores alemães relataram os mesmos resultados em
seus estudos de autópsias. Por fim, investigadores da França, Suécia e
Finlândia usaram a tomografia por emissão de pósitrons para estudar a
densidade dos receptores D1 em pacientes vivos que nunca tinham sido
expostos a neurolépticos, e textos relataram a “inexistência de diferenças
significativas” entre os esquizofrénicos t os “sujeitos de controle normais".
Desde então, os pesquisadores continuaram a investigar se haveria
algo errado nas vias dopaminérgicas de pessoas diagnosticadas com es-
quizofrenia e vez por outra, alguém relatou ter encontrado algum tipo de
anormalidade num subconjunto de pacientes. No entanto, no fim da dé-
cada de 1980, estava claro que a hipótese de desequilíbrio químico na es-
quizofrenia - a de que esta seria uma doença caracterizada por um sis-
tema dopaminérgico hiperativo, que depois seria como que reequilibrado
pelas drogas - havia caído estrondosamente por terra. “A teoria dopami-
nérgica da esquizofrenia tem pouca credibilidade para os psiquiatras", ob-
servou Pierre Deniker cm I990. Quatro anos depois, John Kane, um co-
nhecido psiquiatra do Centro Médico Judaico de Long Island, fez eco a
esse sentimento, observando que não havia “boas provas de nenhuma per-
turbação da função dopaminérgica na esquizofrenia"?’ Ainda assim, o pú-
blico continuou a ser informado de que as pessoas diagnosticadas com es-
quizofrenia tinham um sistema dopaminérgico hiperativo, sendo as drogas
assemelhadas à “insulina no diabetes", e por isso um ex-diretor do NIMH,
Steve Hyman, em seu livro de 2002, Molecular Neuropharmacology [Neu-
rofarmacologia molecular), foi levado a lembrar mais uma vez aos leitores
a verdade. “Não há pros as convincentes de que uma lesão no sistema do-
paminérgico seja uma causa primária da esquizofrenia”, escreveu.

Réquiem para uma Teoria

A hipótese da depressão por baixa serotonina e a hipótese da esquizo-


frenia por excesso de dopamina sempre tinham sido os pilares gémeos da
teoria dos transtornos mentais calcada nos desequilíbrios químicos, c, no
fim da década de 1980, as duas haviam se revelado falhas. Outros distúr-
bios mentais também tinham sido alardeados para o público como doen-
ças causadas por desequilíbrios químicos, mas nunca houve nenhuma
comprovação que corroborasse essas afirmativas. Informou-se aos pais
que as crianças diagnosticadas com transtorno do déficit da atenção com
hiperatividade sofriam de baixos níveis de dopamina, mas a única razão
de lhes ser dada essa informação foi que a Ritalina estimulava os neurô-
nios a liberarem uma quantidade extra de dopamina. Essa se tornou a
fórmula narrativa enganosa em que as companhias farmacêuticas se apoi-
aram repetidas vezes: pesquisadores identificavam os mecanismos de ação
de uma classe de drogas, viam como essas drogas reduziam ou elevavam
os níveis de um neurotransmissor cerebral c, cm pouco tempo, o público
era informado de que a» pessoas tratadas com esses medicamentos so-
friam do problema oposto.
Do ponto de vista científico, hoje se evidencia que a hipótese do dese-
quilíbrio químico sempre foi de natureza duvidosa, e muitos cientistas que
assistiram à sua ascensão e queda rememoraram isso com certo emba-
raço. Já em 1975, Joseph Mendels e Alan Frazer tinham concluído que a
hipótese da depressão formulada por Schildkraut havia brotado do “racio-
cínio monotemático” que confiava numa "avaliação insuficiente de certos
resultados incompatíveis com a suposição inicial”. Em 1990, Deniker
disse que o mesmo se aplicava à hipótese dopaminérgica da esquizofrenia.
Quando os pesquisadores psiquiátricos rebatizaram as drogas de agentes
“antiesquizofrénicos”, observou ele, foram “um pouco longe demais (...)
pode-se dizer que os neurolépticos diminuem certos fenômenos da esqui-
zofrenia, mas [as drogas] não têm a pretensão de ser um tratamento etio-
lógico dessas psicoses”."’ A teoria dos transtornos mentais calcada no de-
sequilíbrio químico, escreveu David Healy em seu livro The Creation of
Psychopharmacology [A criação da psicofarmacologia], foi abraçada pelos
psiquiatras por ter “preparado o terreno” para que eles “se tornassem mé-
dicos de verdade”. Na medicina interna, os médicos dispunham de seus
antibióticos, e agora os psiquiatras também poderiam ter suas pílulas “an-
tidoença”.
No entanto, a crença da sociedade nos desequilíbrios químicos persis-
tiu (por razões que serão exploradas mais adiante), e levou as pessoas que
investigavam e escreviam sobre essa história a enfatizar, repetidas vezes, a
mesma conclusão essencial. “Os dados não corroboram nenhuma das teo-
rias bioquímicas da doença mental”, concluiu Elliot Valenstein, professor
de neurociência da Universidade de Michigan, em seu livro de 1998, Bla-
ming lhe Brain [Culpando o cérebro]. Até David Satcher, diretor nacional
de Saúde dos Estados Unidos, confessou em seu relatório de 1999, Mental
Health [Saúde mental], que “as causas [etiologias] exatas das doenças
mentais não são conhecidas”. Em Prozac Backlash [O efeito bumerangue
do Prozac], Joseph Glenmullen, um professor de psiquiatria da Faculdade
de Medicina de Harvard, observou que “em todos os casos em que se jul-
gou encontrar esse desequilíbrio, posteriormente ele se revelou falso”. Fi-
nalmente, em 2005, Kenneth Kendler, coeditor-chefe da revista
Psychological Medicine, escreveu um epitáfio admiravelmente sucinto para
toda essa história: “Saímos à caça de grandes e simples explicações neuro-
químicas dos transtornos psiquiátricos e não as encontramos”.
Isso nos leva à nossa próxima grande indagação: se as drogas psiquiá-
tricas não regulam uma química cerebral anormal, o que elas fazem?

Prozac na Cabeça

Durante as décadas de 1970 e 1980, os investigadores montaram des-


crições detalhadas de como as várias classes de drogas psiquiátricas
atuam no cérebro e de como o cérebro, por sua vez, reage a elas. Podería-
mos relatar a história dos antidepressivos, dos neurolépticos, das benzodi-
azepinas ou dos estimulantes, e todas as narrativas falariam de um pro-
cesso mais ou menos comum em ação. Entretanto, visto que a história dos
desequilíbrios químicos, na mentalidade popular, realmente deslanchou
depois que a Eli Lilly introduziu no mercado o Prozac (fluoxetina), parece
apropriado revermos o que os cientistas da Eli Lilly e outros investigado-
res, em relatórios divulgados em publicações científicas, tiveram a dizer
sobre como funciona de fato esse “inibidor seletivo de recaptação de sero-
tonina”.
Como já foi observado, depois que um neurônio pré-sináptico libera a
serotonina na fenda sináptica, ela tem que ser retirada com rapidez, para
que o sinal possa ser concluído com precisão. Uma enzima metaboliza
uma pequena quantidade; o resto é devolvido para o neurônio pré-sináp-
tico, entrando nele por um canal conhecido como SERT (transportador de
recaptação de serotonina). A fluoxetina bloqueia esse canal de recaptação
e, como resultado, escreveu em 1975 James Clemens, um cientista da Eli
Lilly, ela causa uma “acumulação de serotonina na sinapse”.
Entretanto, como descobriram investigadores da Eli Lilly, nesse mo-
mento um mecanismo de realimentação entra em ação. O neurônio pré-
sináptico tem em sua membrana terminal “autorreceptores” que monito-
ram o nível de serotonina na sinapse. Quando os níveis de serotonina fi-
cam muito baixos, disse um cientista, esses autorreceptores gritam “li-
guem a máquina da serotonina”. Quando os níveis ficam altos demais,
eles gritam “desliguem a máquina”. Trata-se de um circuito de feedback
projetado pela evolução para manter em equilíbrio o sistema serotoninér-
gico, e a fluoxetina desencadeia a segunda mensagem. Já não sendo a se-
rotonina retirada da sinapse, os autorreceptores dizem aos neurônios pré-
sinápticos para dispararem num ritmo drasticamente menor. Eles
começam a liberar na sinapse quantidades de serotonina abaixo do nor-
mal.
Os mecanismos de realimentação também modificam os neurônios
pós-sinápticos. Em quatro semanas, a densidade de seus receptores sero-
toninérgicos cai 25% abaixo do normal, informaram os cientistas da Eli
Lilly em 1981.” Posteriormente, outros investigadores relataram que “o tra-
tamento crônico com fluoxetina” pode levar a uma redução de 50% dos re-
ceptores serotoninérgicos em algumas áreas do cérebro.38 Como resul-
tado, os neurônios pós-sinápticos ficam “dessensibilizados” para esse
mensageiro químico.
Nesse ponto, o cérebro talvez pareça ter se adaptado com sucesso à
droga. A fluoxetina bloqueia a recaptação normal de serotonina da si-
napse, mas os neurônios pré-sinápticos começam então a liberar menos
serotonina, e os neurônios pós-sinápticos ficam menos sensíveis a ela, e
por isso não disparam com a mesma presteza. A droga foi concebida para
acelerar a via serotoninérgica; o cérebro respondeu pisando no freio. Man-
teve sua via serotoninérgica mais ou menos equilibrada, numa resposta
adaptativa que os pesquisadores chamaram de “resiliência sináptica”. Mas
há outra mudança que ocorre durante esse período inicial de duas sema-
nas e que, em última instância, impede a resposta compensatória do cére-
bro. Há um declínio no número de autorreceptores de serotonina nos neu-
rônios pré-sinápticos. Como resultado, esse mecanismo de realimentação
fica parcialmente incapacitado, e a mensagem do "desligar a máquina da
serotonina” diminui. Os neurônios pré-sinápticos voltam a disparar em ve-
locidade normal, pelo menos por algum tempo, e a liberar mais serotonina
do que o normal a cada vez.1
Ao montarem essa imagem dos efeitos cerebrais da fluoxetina, os cien-
tistas da Eli Lilly e outros especularam sobre qual parte desse processo se-
ria responsável pelas propriedades antidepressivas da droga. Os psiquia-
tras observavam desde longa data que os antidepressivos levavam de duas
a três semanas para “funcionar”, e assim os pesquisadores da Eli Lilly ra-
ciocinaram, em 1981, que era o declínio dos receptores serotoninérgicos,
que levava várias semanas para ocorrer, que constituía “o mecanismo
subjacente associado à resposta terapêutica”.41 Se assim fosse, seria pos-
sível dizer que a droga funcionava por levar o sistema serotoninérgico a

1 A longo prazo, parece que a liberação de serotonina cai a um nível anormalmente baixo, pelo me-
nos em algumas regiões do cérebro.
um estado menos reativo. Contudo, depois que os pesquisadores descobri-
ram que a fluoxetina inviabilizava parcialmente o mecanismo de feedback,
Claude de Montigny, da Universidade McGill, afirmou que era isso que
permitia que a droga começasse a funcionar. Esse processo de inviabiliza-
ção também levava de duas a três semanas para ocorrer, e permitia que os
neurônios pré-sinápticos começassem a liberar na sinapse quantidades de
serotonina superiores ao normal. Nesse ponto, com a fluoxetina continu-
ando a bloquear a retirada da serotonina, o neurotransmissor podia real-
mente “acumular-se” na sinapse, e isso levaria “a uma intensificação da
neurotransmissão serotoninérgica central”, escreveu Montigny.
Essa é a história científica de como a fluoxetina altera o cérebro, e é
possível que esse processo ajude as pessoas deprimidas a melhorarem e a
permanecerem bem. Somente a literatura sobre resultados poderá revelar
se é este o caso. Mas o que está claro é que o medicamento não “conserta”
um desequilíbrio químico do cérebro. Na verdade, faz exatamente o in-
verso. Antes de ser medicada, a pessoa deprimida não tem nenhum dese-
quilíbrio químico conhecido. A fluoxetina então atrapalha a retirada nor-
mal de serotonina da sinapse, o que desencadeia uma cascata de mudan-
ças, e, algumas semanas depois, a via serotoninérgica opera de maneira
decididamente anormal. O neurônio pré-sináptico libera mais serotonina
que de hábito. Seus canais de recaptação da serotonina são bloqueados
pela droga. O circuito de realimentação do sistema é parcialmente desli-
gado. Os neurônios pós-sinápticos são “dessensibilizados” para a seroto-
nina. Em termos mecânicos, o sistema serotoninérgico fica bastante ba-
gunçado.
Os cientistas da Eli Lilly estavam bem cônscios disso. Em 1977, Ray
Fuller e David Wong observaram que, por perturbar as vias serotoninérgi-
cas, a fluoxetina poderia ser usada para estudar “o papel dos neurônios
serotoninérgicos em várias funções cerebrais - comportamento, sono, re-
gulação da liberação de hormônio pituitário, termorregulação, reação à dor
e assim por diante”. Para conduzir tais experimentos, os pesquisadores
poderiam administrar fluoxetina a animais e observar quais funções fica-
vam comprometidas. Eles buscariam o surgimento de patologias. Na ver-
dade, esse tipo de pesquisa já vinha sendo feito: em 1977, Fuller e Wong
relataram que a droga provocava “hiperatividade estereotipada” em ratos e
“eliminava o sono REM” em ratos e gatos.
Em 1991, num artigo publicado no Journal of Clinical Psychiatry, Bar-
ryjacobs, neurocientista de Princeton, frisou exatamente isso a respeito
dos ISRS, escrevendo que essas drogas
alteram o nível de transmissão sináptica além da faixa fisiológica alcançada
em condições ambientais/biológicas [normais]. Por isso, seria mais apro-
priado considerar patológica qualquer modificação comportamental ou fisi-
ológica produzida nessas condições, e não um reflexo do papel biológico
normal da 5-HT [serotonina].
Durante as décadas de 1970 e 1980, os pesquisadores que estudavam
os efeitos dos neurolépticos levantaram uma história semelhante. O Tho-
razine e outros antipsicóticos-padrão bloqueiam de 70% a 90% de todos os
receptores D, do cérebro. Em resposta, os neurônios pré-sinápticos come-
çam a bombear mais dopamina e os neurônios pós-sinápticos aumentam
a densidade de seus receptores D1 num total de 30% ou mais. Desse
modo, o cérebro teria de “compensar” os efeitos da droga, para poder man-
ter a transmissão de mensagens em suas vias dopaminérgicas. Contudo,
passadas cerca de três semanas, o mecanismo de realimentação da via co-
meça a falhar e os neurônios pré-sinápticos começam a disparar em pa-
drões irregulares, ou se imobilizam. E essa “inativação” das vias dopami-
nérgicas que “talvez constitua a base da ação antipsicótica”, explicou o
Textbook of Psychopharmacology [Manual de psicofarmacologia] da Socie-
dade Norte- Americana de Psiquiatría.
Mais uma vez, temos aí uma história de vias neurotransmissoras que
são transformadas pela medicação. Passadas algumas semanas, seus cir-
cuitos de realimentação ficam parcialmente inativos, os neurônios pré-si-
nápticos liberam menos dopamina do que o normal, a droga impede os
efeitos da dopamina, bloqueando os receptores D2, e os neurônios pós-si-
nápticos têm uma densidade anormalmente alta desses receptores. As
drogas não normalizam a química do cérebro, mas a transtornam, e, a se-
guirmos o raciocínio de Jacob, fazem isso num grau que poderia ser consi-
derado “patológico”.

Um Paradigma para Compreender as Drogas Psicotrópicas

Atualmente, como reitor da Universidade Harvard, Steve Hyman de-


dica-se sobretudo às muitas tarefas políticas e administrativas que vêm
com a direção de uma grande instituição. Por formação, entretanto, ele é
neurocientista. e, no período de 1996 a 2001, quando foi diretor do NIMH,
escreveu um artigo a um tempo memorável e provocador, que resumia
tudo o que se havia aprendido sobre as drogas psiquiátricas. No artigo, in-
titulado “Iniciação e adaptação: um paradigma para compreender a ação
das drogas psicotrópicas” e publicado no American Journal of Psychialry,
Hyman falou de como se podia afirmar que todos os medicamentos
psicotrópicos atuavam no cérebro de um modo comum.
Os antipsicóticos, os antidepressivos e outras drogas psicotrópicas, es-
creveu Hyman, “criam perturbações nas funções neurotransmissoras”.
Em resposta, o cérebro passa por uma série de adaptações compensató-
rias. Se uma droga bloqueia um neurotransmissor (como fazem os antipsi-
cóticos), os neurônios pré-sinápticos passam a funcionar mais e liberam
maior quantidade dele, e os neurônios pós-sinápticos aumentam a densi-
dade de seus receptores desse mensageiro químico. Inversamente, se uma
droga aumenta os níveis sinápticos de um neurotransmissor (como fazem
os antidepressivos), ela provoca a resposta inversa: os neurônios pré-si-
nápticos reduzem sua velocidade de disparo e os neurônios pós-sinápticos
reduzem a densidade dos receptores desse neurotransmissor. Em ambos
os casos, o cérebro tenta anular os efeitos da droga. “Essas adaptações”,
explicou Hyman, “enraízam-se em mecanismos homeostáticos que exis-
tem, ao que se supõe, para permitir que as células mantenham seu equilí-
brio diante de alterações do meio ambiente ou de mudanças no meio in-
terno.”
Entretanto, após transcorrido certo tempo, esses mecanismos compen-
satórios falham. A partir daí, a “administração crônica” da droga causa
“alterações substanciais e duradouras no funcionamento neurológico”, es-
creveu Hyman. Como parte desse processo de adaptação a longo prazo,
ocorrem mudanças nas vias intracelulares de sinalização e na expressão
genética. Após algumas semanas, concluiu Hyman, o cérebro da pessoa
funciona de um modo “qualitativa e quantitativamente diferente do estado
normal”.
O artigo de Hyman foi conciso e resumiu o que se havia aprendido
após décadas de impressionante trabalho científico. Quarenta anos antes,
quando foram descobertos o Thorazine e as outras drogas psiquiátricas da
primeira geração, os cientistas pouco compreendiam como os neurônios se
comunicavam entre si. Agora dispunham de uma compreensão admiravel-
mente detalhada dos sistemas neurotransmissores do cérebro e de como
as drogas agiam sobre eles. E o que a ciência revelou foi isto: antes do tra-
tamento, os pacientes diagnosticados com esquizofrenia, depressão e ou-
tros transtornos psiquiátricos não sofrem de nenhum “desequilíbrio quí-
mico” conhecido. Entretanto, depois que a pessoa começa a tomar a medi-
cação psiquiátrica, a qual, de um modo ou de outro, causa um estrago na
mecânica costumeira de uma via neuronal, seu cérebro começa a funcio-
nar, como observou Hyman, anormalmente.
De Volta ao Começo

Ainda que o artigo do dr. Hyman possa parecer espantoso, ele serve de
coda para uma narrativa científica que, na verdade, é coerente do começo
ao fim. A conclusão dele foi algo que se deva ver não como inesperado,
mas como previsível no capítulo inicial da psicofarmacologia.
Como vimos, o Thorazine, o Miltown e o Marsilid foram todos derivados
de compostos que tinham sido desenvolvidos para outras finalidades -
para uso na cirurgia ou como possíveis “pílulas mágicas” contra doenças
infecciosas. Em seguida, verificou-se que esses compostos causavam alte-
rações nos estados de humor, no comportamento e no pensamento, e es-
sas alterações foram vistas como úteis para pacientes psiquiátricos. Em
síntese, notou-se que as drogas tinham efeitos colaterais benéficos. Elas
perturbavam o funcionamento normal, e essa compreensão se refletiu nos
nomes iniciais que receberam. A clorpromazina era um “tranquilizante po-
tente”, e tida como produtora de uma mudança de identidade que se asse-
melhava à de uma lobotomia frontal. O meprobamato era um “tranquili-
zante leve” e, em estudos com animais, ficara demonstrado que
01470161770 era um relaxante muscular potente, que bloqueava a res-
posta emocional normal aos estressores do ambiente. A iproniazida era
um “estimulante psíquico” e, se foi verdadeira a história dos pacientes tu-
berculosos dançando nas enfermarias, tratava-se de uma droga capaz de
provocar algo semelhante à mania. Posteriormente, porém, a psiquiatria
reconcebeu essas drogas como “pílulas mágicas” para os transtornos men-
tais, ao levantar a hipótese de que as drogas eram antídotos para desequi-
líbrios químicos do cérebro. Contudo, essa teoria, que brotou tanto de
uma racionalização fantasiosa quanto da ciência, foi investigada e não se
confirmou. Em vez disso, como escreveu Hyman, constatou-se que os psi-
cotrópicos eram drogas que perturbavam o funcionamento normal das
vias neuronais do cérebro. A percepção inicial que a psiquiatria tivera de
suas novas drogas revelou-se a que era cientificamente exata.
Tendo agora em mente essa compreensão dos medicamentos psiquiá-
tricos, é possível formularmos a indagação científica que está no cerne
deste livro: essas drogas ajudam ou prejudicam os pacientes, a longo
prazo? O que mostram os resultados de cinquenta anos de pesquisas?
PARTE III.
RESULTADOS
6.
REVELAÇÃO DE UM PARADOXO

“Se quisermos fundamentar a psiquiatria na mediana ba-


seada em evidências, correremos o verdadeiro risco de exa-
minar mais de perto o que há muito se considera uma rea-
lidade. - Emmanuel Stip, psiquiatra europeu. 2002.
O subsolo da Biblioteca Countway, na Faculdade de Medicina de Har-
vard, é um dos meus lugares favoritos em Boston. Ao sair do elevador, en-
tra-se num salão imenso e meio lúgubre, tomado pelo cheiro bolorento de
livros velhos. É comum eu parar poucos passos depois de cruzar a porta e
absorver aquela visão grandiosa: fileiras e mais fileiras de exemplares en-
cadernados de publicações médicas que vão desde o começo da década de
1800 até o ano de 1986. O lugar está quase sempre vazio, mas ali existem
ricas histórias por descobrir e, em pouco tempo, à medida que começa
ajuntar os pedaços de determinada narrativa da medicina, você vai sal-
tando de uma publicação para a outra, e a pilha de livros na sua mesa
cresce cada vez mais. Existe a emoção da caçada, e essa parte da biblio-
teca também parece nunca decepcionar. Todas as publicações são organi-
zadas em ordem alfabética e, sempre que você encontra num artigo uma
citação que lhe interessa, tudo que tem de fazer é dar alguns passos para
encontrar inevitavelmente a publicação de que necessita. Pelo menos até
recentemente, a Biblioteca Countway parecia ter comprado praticamente
todas as publicações médicas já lançadas.
E aí que podemos iniciar nossa busca, para descobrir de que modo as
drogas psiquiátricas afetam os resultados a longo prazo. O método de pes-
quisa que precisaremos seguir é direto. Primeiro, teremos de fazer o me-
lhor possível para desvendar o espectro natural dos resultados de cada
transtorno específico. Na falta de medicamentos antipsicóticos, como ten-
deriam a se sair ao longo do tempo as pessoas diagnosticadas com esqui-
zofrenia? Que probabilidade teriam -se é que haveria alguma - de se recu-
perar? Como se sairiam na sociedade? Essas mesmas perguntas podem
ser feitas a respeito da ansiedade, da depressão e do transtorno bipolar.
Quais seriam os resultados, na ausência de ansiolíticos, antidepressivos e
estabilizadores do humor? Depois de termos uma ideia da linha basal de
um distúrbio, podemos levantar a literatura acerca de resultados relacio-
nados a essa doença e esperar que ela conte uma história consistente e
coerente. Será que os tratamentos medicamentosos alteram para melhor o
curso a longo prazo de uma doença mental - na população geral dos paci-
entes ou será que o alteram para pior?
Uma vez que a clorpromazina (Thorazine) foi a droga que lançou a re-
volução psicofarmacológica, parece apropriado investigarmos primeiro os
resultados da esquizofrenia.

A História Natural da Esquizofrenia

Atualmente, é habitual pensar-se na esquizofrenia como uma doença


crônica da sida inteira, e esse foi o entendimento que se originou no traba-
lho do psiquiatra alemão Emil Kraepelin. No fim dos anos 1800, ele levan-
tou sistematicamente os resultados dos pacientes de um manicômio na
Estônia, e observou que havia um grupo identificável em que era possível
contar com uma deterioração para a demência. Tratava-se de pacientes
que, ao entrarem no manicômio, exibiam uma falta de emoção. Muitos
eram catatônicos, ou estavam irremediavelmente perdidos em seu próprio
mundo, e era frequente apresentarem sérios problemas físicos. Tinham
um andar estranho, sofriam de tiques faciais e de espasmos musculares, e
não conseguiam completar atos físicos voluntários. Em seu manual de
1899, intitulado Lehrbuch der Psychiatrit, Kraepelin escreveu que esses
pacientes sofriam de dementiapraecox e, em 1908, o psiquiatra suíço Eu-
gen Bleuler cunhou o vocábulo “esquizofrenia” como um termo diagnóstico
substituto para os pacientes nesse estado de deterioração.
Entretanto, como argumentou de maneira convincente a historiadora
britânica Mary Boyle, num artigo de 1990 intitulado “A esquizofrenia é o
que era? Uma reanálise da população de Kraepelin e de Bleuler”, muitos
dos pacientes de Kraepelin com demência precoce sofriam, sem dúvida, de
uma doença viral, a encephalitis lethargica [encefalite letárgica], que, no
fim da década de 1800, ainda estava por ser identificada. Essa doença fa-
zia as pessoas se tornarem delirantes, ou entrarem num estupor, ou co-
meçarem a andar aos arrancos, e, quando o neurologista austríaco Cons-
tantin von Economo a descreveu, em 1917, os pacientes de encefalite le-
tárgica já não faziam parte do grupo da “esquizofrenia"; outrossim, depois
que isso aconteceu, o grupo restante de pacientes mostrou-se bem dife-
rente do grupo de demência precoce de Kraepelin. “Os inacessíveis, os ca-
tatônicos em estupor, os intelectualmente deteriorados”, esses tipos de pa-
ciente de esquizofrenia, observou Boyle, haviam praticamente desapare-
cido. Como resultado, as descrições da esquizofrenia dos manuais de psi-
quiatria das décadas de 1920 e 1930 se alteraram. Todos os antigos
sintomas físicos - a pele oleosa, o andar estranho, os espasmos muscula-
res, os tiques faciais - desapareceram dos manuais de diagnóstico. O que
restou foram os sintomas mentais - as alucinações, os delírios e as ideias
bizarras. “Os referenciais da esquizofrenia”, escreveu Boyle, “modificaram-
se aos poucos, até que o diagnóstico passou a ser aplicado a uma popula-
ção que tinha apenas uma semelhança ligeira, e possivelmente superficial,
com a de Kraepelin.”
Agora, portanto, temos que perguntar: qual é o espectro natural dos
resultados desse grupo de pacientes psicóticos? Aqui, infelizmente, esbar-
ramos num segundo problema. De 1900 até o fim da Segunda Guerra
Mundial, as atitudes eugênicas em relação aos doentes mentais eram
muito populares nos Estados Unidos, e essa filosofia social afetou drasti-
camente os resultados. Os eugenistas afirmavam que os doentes mentais
precisavam ser isolados em hospitais, a fim de serem impedidos de ter fi-
lhos e de espalhar seus “genes ruins”. O objetivo era mantê-los confinados
em manicômios, e em 1923 um editorial do Journal of Heredity concluiu,
com ar de satisfação, que “a segregação dos loucos está praticamente con-
cluída”.5 Em consequência disso, muitas pessoas diagnosticadas como es-
quizofrênicas, na primeira metade do século XX, foram internadas e
nunca mais tiveram alta, e essa política social foi então erroneamente per-
cebida como um dado sobre os resultados. O fato de os esquizofrênicos
nunca deixarem os hospitais foi visto como prova de que a doença era crô-
nica e irremediável.
Depois da Segunda Guerra Mundial, porém, a eugenia caiu em descré-
dito. Ela era a própria “ciência” que Hitler e a Alemanha nazista haviam
abraçado e, depois da descrição de Albert Deutsch sobre as condições
aterradoras dos hospitais psiquiátricos norte-americanos, na qual ele os
assemelhou a campos de concentração, muitos estados começaram a falar
em tratar os doentes mentais no seio da sociedade. A política social se mo-
dificou e os índices de alta hospitalar dispararam. Como resultado, há um
breve intervalo, entre 1946 e 1954, no qual podemos verificar como se sa-
íam os pacientes recém-diagnosticados como esquizofrênicos e, desse
modo, ter uma ideia dos “resultados naturais” da esquizofrenia antes da
chegada do Thorazine.1

1 Durante esse período, a esquizofrenia era um diagnóstico largamente aplicado aos indivíduos hos-
pitalizados. Hoje, muitos desses pacientes seriam diagnosticados como portadores de transtorno
bipolar ou de transtorno esquizoafetivo. Não obstante, esse era o diagnóstico das pessoas mais
“gravemente perturbadas” na sociedade norte-americana daquela época.
Eis os dados. Num estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde
Mental (NIMH), 62% dos pacientes internados após um primeiro episódio
psicótico n0 Hospital Estadual Warren, na Pensilvânia, no período de
1946 a 1950, receberam alta em até 12 meses. Ao fim de três anos, 73%
estavam fora do hospital.4 Um estudo de 216 pacientes esquizofrênicos in-
ternados no Hospital Estadual de Delaware, no período de 1948 a 1950,
produziu resultados semelhantes. Deles, 85% receberam alta em cinco
anos e, em Io de janeiro de 1956 - seis anos ou mais depois da internação
inicial -, 70% viviam com sucesso no seio das comunidades? Enquanto
isso, o Hospital Hillside, no Queens, na cidade de Nova York, fez um levan-
tamento de 87 pacientes esquizofrênicos que tiveram alta em 1950, e de-
terminou que pouco mais da metade deles nunca teve recaídas nos quatro
anos seguintes.6 Durante esse período, as análises de resultados na Ingla-
terra, onde a esquizofrenia era definida com mais rigor, pintaram um qua-
dro similarmente animador: 33% dos pacientes gozaram de “recuperação
completa” e outros 20%, de “recuperação social”, o que significava que po-
diam se sustentar e levar uma vida independente?
Esses estudos fornecem uma visão bastante surpreendente dos resul-
tados da esquizofrenia durante aquele período. Segundo o entendimento
convencional, foi o Thorazine que permitiu que as pessoas esquizofrênicas
vivessem em comunidade. Mas o que constatamos é que a maioria das
que foram internadas após um primeiro episódio esquizofrênico, durante o
fim da década de 1940 e o início da de 1950, recuperou-se a ponto de po-
der, dentro dos primeiros 12 meses, retornar à sociedade. Ao cabo de três
anos, isso se aplicava a 75% dos pacientes. Apenas uma pequena percen-
tagem - cerca de 20% - precisou manter-se continuamente hospitalizada.
Além disso, os que retornaram ao seio da sociedade não foram morar em
abrigos e residências coletivas, uma vez que esse tipo de instituição ainda
não existia. Não recebiam pensões do governo federal por invalidez, e os
programas SSI (Renda Complementar da Previdência) e SSDI (Seguro da
Previdência Social por Invalidez) ainda estavam por ser criados. Na maio-
ria dos casos, as pessoas que recebiam alta dos hospitais estavam vol-
tando para suas famílias e, a julgar pelos dados de recuperação social,
muitas estavam trabalhando. No cômputo geral, havia razão para que as
pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, naquele período do pós-guerra,
fossem otimistas quanto a sua possibilidade de melhora e de um funcio-
namento bastante bom na comunidade.
Também é importante assinalar que a chegada do Thorazine não me-
lhorou os índices de alta na década de 1950 entre as pessoas recém-
diagnosticadas com esquizofrenia, nem tampouco sua chegada desenca-
deou a alta de pacientes crônicos. Em 1961, o Departamento de Higiene
Mental da Califórnia fez um relatório sobre os índices de alta de todos os
1.413 pacientes hospitalizados com um primeiro episódio de esquizofrenia
em 1956, e constatou que 88% dos que não foram tratados com neurolép-
ticos receberam alta no espaço de 18 meses. Os tratados com neurolépti-
cos - cerca de metade dos 1.413 pacientes - tiveram um índice mais baixo
de altas; apenas 74% receberam alta em 18 meses. Esse é o único estudo
em larga escala, na década de 1950, a comparar os índices de alta dos pa-
cientes de primeiro episódio tratados com e sem medicamentos, e os in-
vestigadores concluíram que “os pacientes tratados com medicamentos
tendem a ter períodos de hospitalização mais longos. (...) Os pacientes não
tratados exibem, sistematicamente, uma taxa de internação um pouco
mais baixa”.’
A alta dos pacientes esquizofrênicos crônicos dos hospitais psiquiátri-
cos estaduais - e portanto, o início da desinstitucionalização - teve início
em 1965, com a entrada em vigor da legislação sobre o Medicare e o Medi-
caid. Em 1955 havia 267.000 pacientes esquizofrênicos nos hospitais psi-
quiátricos estaduais e municipais e, oito anos depois, esse número mal se
havia alterado. Ainda havia 253.000 esquizofrênicos residindo nos hospi-
tais.9 Mas houve então uma mudança na economia do atendimento aos
doentes mentais. A legislação de 1965 sobre o Medicare e o Medicaid pre-
via subsídios federais para o tratamento em sanatórios ou clínicas de re-
pouso, mas não subsídios para atendimento em hospitais psiquiátricos es-
taduais, e assim, na tentativa de economizar dinheiro, naturalmente, os
estados começaram a despachar seus pacientes crônicos para sanatórios.
Foi nessa ocasião que o recenseamento dos hospitais psiquiátricos estadu-
ais começou a apresentar uma queda notável, e não em 1955, quando da
introdução do Thorazine. Infelizmente, nossa crença societária de que foi
esse medicamento que esvaziou os manicômios, uma crença tão central
para a narrativa da “revolução da psicofarmacologia”, é desmentida pelos
dados censitários hospitalares.

Olhando por uma Lente Escura

Em 1955, as empresas farmacêuticas não eram solicitadas a compro-


var à Administração Federal de Alimentos e Medicamentos [FDA] que seus
novos medicamentos eram eficazes (essa exigência foi acrescentada em
1962) e, por isso, coube ao Instituto Nacional de Saúde Mental avaliar os
méritos do Thorazine e das outras novas “drogas miraculosas” que esta-
vam entrando no mercado. Justiça seja feita, o NIMH organizou uma con-
ferência, em setembro de 1956, para “examinar cuidadosamente toda a
questão dos psicotrópicos”, e as conversas dessa conferência acabaram
por se concentrar numa questão muito específica: de que modo poderia a
psiquiatria adaptar para seu uso uma ferramenta científica que recente-
mente provara seu valor na medicina das doenças infecciosas - os testes
clínicos aleatórios, duplos-cegos e controlados por placebos?
Como observaram muitos oradores, essa ferramenta não se prestava
especialmente bem para avaliar os resultados de uma droga psiquiátrica.
Como poderia ser “duplo-cego” o estudo de um neuroléptico? O psiquiatra
logo perceberia quem estava e quem não estava usando o medicamento, e
qualquer paciente a quem fosse administrado o Thorazine também saberia
estar usando um medicamento. Além disso, haveria o problema do diag-
nóstico: como poderia o pesquisador saber se os pacientes aleatórios in-
cluídos num teste eram realmente portadores de “esquizofrenia”? Os limi-
tes diagnósticos dos transtornos mentais estavam sempre se modificando.
Igualmente problemático era saber o que definia um “bom resultado”. Os
psiquiatras e o pessoal hospitalar talvez quisessem ver mudanças compor-
tamentais medicamentosas que tornassem o paciente “mais socialmente
aceitável”, mas que talvez não se dessem “em benefício último do paci-
ente”, disse um orador da conferência." E como seria possível medir os re-
sultados? Num estudo de uma droga criada para uma doença conhecida,
os índices de mortalidade ou os resultados laboratoriais podiam servir de
medidas objetivas para saber se um tratamento funcionava. Por exemplo,
para testar a eficácia de um remédio contra a tuberculose, uma radiogra-
fia do pulmão poderia mostrar-se o bacilo causador da doença havia desa-
parecido. Qual seria a meta final mensurável no teste de um medicamento
contra a esquizofrenia? C) problema, como disse na conferência Edward
Evarts, um médico do NIMH, era que “os objetivos da terapia, na esquizo-
frenia, exceto o de fazer o paciente ‘melhorar’, não foram claramente defi-
nidos”.
Todas essas questões infernizavam a psiquiatria, mas, apesar disso,
como resultado dessa conferência, o NIMH planejou montar um teste so-
bre os neurolépticos. A pressão da história era simplesmente grande de-
mais. Os testes eram o método científico usado naquele momento, na me-
dicina clínica, para avaliar os méritos de uma terapia, e o Congresso
norte-americano havia criado o NIMH com a intenção de que ele transfor-
masse a psiquiatria em uma disciplina científica mais moderna. A adoção
dessa ferramenta pela psiquiatria provaria que ela estava caminhando
para esse objetivo. O NIMH criou um Centro de Serviços de Psicofarmaco-
logia para dirigir esse esforço, e Jonathan Cole, um psiquiatra do Conse-
lho Nacional de Pesquisa, foi nomeado seu diretor.
Nos dois anos seguintes, Cole e o resto da psiquiatria chegaram a um
modelo de teste para avaliar as drogas psicotrópicas. Os psiquiatras e o
pessoal de enfermagem usariam “escalas de avaliação” para medir nume-
ricamente os sintomas característicos da doença a ser estudada. Será que
um dado remédio contra a esquizofrenia reduzia a “ansiedade” do paci-
ente? Reduzia sua “megalomania”? Sua “hostilidade”? Sua “desconfiança”?
Seu “conteúdo inusitado do pensamento”? Sua “falta de cooperação”? A
gravidade de todos esses sintomas seria medida numa escala numérica,
tabelando-se então um escore dos “sintomas”, e um medicamento seria
considerado eficaz se reduzisse o escore total significativamente mais do
que um placebo, num período de seis semanas.
Pelo menos cm tese, a psiquiatria passou então a dispor de um modo
de realizar testes de drogas psiquiátricas que produziam resultados “obje-
tivos”. Mas a adoção dessa avaliação a fez enveredar por um caminho
muito específico: a psiquiatria, a partir daí, veria a redução de sintomas a
curto prazo como prova da eficácia de um medicamento. Assim como o clí-
nico geral prescrevia um antibiótico para uma infecção bacteriana, o psi-
quiatra passaria a prescrever um comprimido que derrubasse um “sin-
toma-alvo” de uma “doença distinta”. O “teste clínico” de seis semanas
provaria que essa era a coisa certa a fazer. Entretanto, esse instrumento
não trazia nenhum discernimento sobre como se saíam os pacientes a
longo prazo. Ficavam aptos a trabalhar? Sentiam prazer na vida? Tinham
amigos? Contraíam matrimônio? Nenhuma dessas perguntas seria res-
pondida.
Foi nesse momento que a medicina das pílulas mágicas moldou o fu-
turo da psiquiatria. O uso do teste clínico levaria os psiquiatras a verem
suas terapias por um prisma muito particular, e, já na conferência de
1956, Joseph Zubin, pesquisador do Instituto Estadual de Psiquiatria de
Nova York, alertou para o fato de que, quando se tratava de avaliar uma
terapia para um transtorno psiquiátrico, um estudo de seis semanas indu-
zia a uma espécie de miopia científica. “Seria temerário reivindicar uma
vantagem definitiva para determinada terapia sem um acompanhamento
de dois a cinco anos”, disse ele. “Um acompanhamento de dois anos seria
o mínimo para avaliar os efeitos a longo prazo.”
A Defesa dos Neurolépticos

O Centro de Serviços de Psicofarmacologia lançou seu teste sobre os


neurolépticos em nove hospitais, em 1961, e foi esse estudo que marcou o
início do registro científico que hoje serve de “base de comprovação” des-
sas drogas. No ensaio feito em seis semanas, 270 pacientes foram medica-
dos com Thorazine ou outros neurolépticos (que também eram conhecidos
como “fenotiazinas”), enquanto outros 74 receberam um placebo. Os neu-
rolépticos ajudaram, de fato, a reduzir alguns sintomas-alvo - ideias irrea-
listas, ansiedade, desconfiança, alucinações auditivas etc. - melhor do que
o placebo, e, portanto, de acordo com o escore cumulativo das escalas de
avaliação, eram eficazes. Além disso, os psiquiatras do estudo julgaram
que 75% dos pacientes medicados haviam “melhorado bastante” ou “me-
lhorado muito”, em contraste com 23% dos pacientes que receberam o
placebo.
Depois disso, centenas de testes menores produziram resultados seme-
lhantes, e assim, a comprovação de que essas drogas reduziam os sinto-
mas a curto prazo, melhor do que fazia um placebo, tornou-se bastante
robusta.1 Em 1977, Ross Baldessarini, da Faculdade de Medicina de Har-
vard, reexaminou 149 desses testes e constatou que a medicação antipsi-
cótica se revelava superior a um placebo em 83% deles. A Escala Breve de
Avaliação Psiquiátrica (BPRS)2 foi regularmente utilizada nesses ensaios, e
a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria acabou decidindo que uma
redução de 20% na pontuação total da BPRS representava uma resposta
clinicamente significativa a um medicamento. Com base nessas medidas,
estimou-se que 70% de todos os pacientes esquizofrênicos que sofriam de
um episódio agudo de psicose “respondiam”, num período de seis sema-
nas, a uma medicação antipsicótica.
Depois que os investigadores do NIMH determinaram que os antipsicó-
ticos eram eficazes a curto prazo, naturalmente eles quiseram saber por

1
Em 2007, a Cochranc Collaboration, um grupo internacional de cientistas que não recebem financiamento
das empresas farmacêuticas, levantou questões sobre esse histórico de eficácia a curto prazo. Eles conduzi-
ram uma meta-análise de todos os estudos de clorpromazina versus placebo na literatura científica e, de-
pois de identificar cinquenta de qualidade razoável, concluíram que a vantagem da droga cm relação ao
placebo era menor do que se costumava supor. Calcularam que era preciso tratar sete pacientes com clor-
promazina para produzir o benefício líquido de uma única “melhora global”, e que “ate esse resultado pode
ser uma superestimação dos efeitos positivos e uma subestimação dos efeitos negativos da administração
de clorpromazina”. Os investigadores da Cochranc, meio estarrecidos com seus resultados, escreveram que
“as provas confiáveis sobre a eficácia [da clorpromazina] a curto prazo são surprccndcntcmcntc fracas”.
2
A sigla da denominação original da escala, Bricl Psychiatric Rating Scalc, foi mantida nesta tradução. (N.T.)
quanto tempo os pacientes esquizofrênicos deveriam usar essa medicação.
Para investigar essa questão, conduziram estudos que tinham, cm sua
maioria, o seguinte modelo: os pacientes que respondiam bem à medica-
ção continuavam medicados com a droga, ou esta era abruptamente reti-
rada. Em 1995, Patricia Gilbcrt, da Universidade da Califórnia em San Di-
ego, examinou 66 estudos sobre recaídas, envolvendo 4.365 pacientes, e
constatou que 53% dos pacientes dos quais a droga fora retirada tiveram
uma recaída num prazo de dez meses, em contraste com 16% daqueles
em que a medicação foi mantida. “A eficácia desses medicamentos na re-
dução do risco de recaída psicótica foi bem documentada”, concluiu ela.1
São esses os dados científicos que sustentam o uso de medicamentos
antipsicóticos na esquizofrenia, tanto no ambiente hospitalar quanto a
longo prazo. Como escreveu John Geddes, um eminente pesquisador bri-
tânico, num artigo de 2002 publicado no New England Journal of Medi-
cine, “as drogas antipsicóticas são eficazes no tratamento de sintomas psi-
cóticos agudos e na prevenção das recaídas”. Apesar disso, como observa-
ram muitos investigadores, há uma lacuna nessa base de dados compro-
batórios, que é exatamente a que Zubin tinha previsto que surgiria.
“Pouco se pode dizer sobre a eficácia e a eficiência dos antipsicóticos con-
vencionais nos efeitos não clínicos”, confessaram Lisa Dixon e outros psi-
quiatras da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, em
1995. “Praticamente inexistem estudos de longo prazo bem conduzidos, de
modo que o impacto longitudinal do tratamento com antipsicóticos con-
vencionais não é claro.”
Essa dúvida instigou um editorial extraordinário publicado em 2002
na revista European Psychiaby, assinado por Emmanuel Stip, um profes-
sor de psiquiatria da Universidade de Montreal. “Após cinquenta anos de
neurolépticos, será que estamos aptos a responder a esta pergunta sim-
ples: os neurolépticos são eficazes no tratamento da esquizofrenia?” Não
havia, no dizer dele, “nenhuma prova convincente sobre o assunto,
quando se considera o ‘longo prazo’”.

" Há uma falha evidente na meta-análisc de Gilbcrt. Ela não determinou se a velocidade da retirada das dro-
gas afetou o índice de recaídas. Depois da publicação de seu estudo, Adclc Viguera, da Faculdade de Medi-
cina de Harvard, reanalisou os mesmos 66 estudos e determinou que, quando as drogas eram retiradas aos
poucos, o índice de recaída chegava a apenas um terço do constatado nos estudos sobre retirada abrupta.
O modelo de retirada abrupta da maioria dos estudos sobre recaída aumentava drasticamente o risco de
que os pacientes esquizofrênicos tornassem a adoecer. Com efeito, o índice de recaída dos pacientes entre
os quais a droga foi gradualmcntc retirada assemelhou-sc ao observado entre os pacientes que tiveram a
medicação mantida.
Surge um Enigma

Embora os comentários de Dixon e Stip sugiram que não há dados de


longo prazo a reexaminar, na verdade é possível construir a história de
como os antipsicóticos alteraram o curso da esquizofrenia, e essa história
tem início, muito apropriadamente, com o estudo de acompanhamento
feito pelo NIMH com os 344 pacientes de seu teste inicial em nove hospi-
tais. Em alguns aspectos, os pacientes - independentemente do trata-
mento que haviam recebido no hospital - não estavam muito mal. Ao cabo
de um ano, 254 viviam na comunidade, e 58% dos que seria esperável que
estivessem trabalhando, de acordo com sua faixa etária e seu sexo, de fato
estavam empregados. Dois terços das “donas de casa” funcionavam bem
nesse papel doméstico. Embora os pesquisadores não tenham informado
sobre o uso de medicamentos pelos pacientes no acompanhamento feito
após um ano, eles ficaram chocados ao descobrir que “os pacientes que re-
ceberam o tratamento com o placebo [no teste de seis semanas] tinham
menos probabilidade de voltar a ser hospitalizados do que aqueles que re-
ceberam qualquer das três fenotiazinas ativas”.
Temos aí, exatamente nesse momento inicial da literatura científica, a
sugestão de um paradoxo: embora as drogas fossem eficazes a curto
prazo, talvez tornassem as pessoas mais vulneráveis à psicose a longo
prazo, donde os índices mais altos de reinternação de pacientes medicados
ao final de um ano. Os investigadores do NIMH logo retornaram com outro
resultado surpreendente. Em dois testes de retirada dos medicamentos,
ambos os quais incluíram pacientes que não estavam sendo medicados
com nenhuma droga no começo do estudo, os índices de recaída aumenta-
ram correlativamente à dose dos remédios. Apenas 7% dos que haviam re-
cebido um placebo no início do estudo sofreram recaídas, comparados a
65% dos que tomavam mais de 500 miligramas de clorpromazina antes da
suspensão do medicamento. “Constatou-se que a recaída tinha uma rela-
ção significativa com a dose da medicação tranquilizante recebida pelo pa-
ciente antes de lhe ser administrado um placebo - quanto mais alta a
dose, maior a probabilidade de recaída”, escreveram os pesquisadores.
Havia algo errado, e as observações clínicas aprofundaram a suspeita.
Os pacientes esquizofrênicos que haviam recebido alta usando medica-
mentos estavam retornando aos prontos-socorros em tamanha quantidade
que o pessoal hospitalar deu a isso o nome de “síndrome da porta girató-
ria”. Mesmo quando se podia confiar em que os pacientes tomavam regu-
larmente a medicação, as recaídas eram comuns, e os pesquisadores
observaram que “a recaída tem maior gravidade durante a administração
de drogas do que quando não é fornecida nenhuma medicação”. Ao
mesmo tempo, quando os pacientes sofriam recaídas depois de abandonar
os medicamentos, Cole notou que seus sintomas psicóticos tendiam a
“persistir e se intensificar” e, pelo menos por algum tempo, eles sofriam
também de uma multiplicidade de novos sintomas: náusea, vômitos, diar-
reia, agitação, insônia, dores de cabeça e tiques motores estranhos.23 A
exposição inicial a um neuroléptico parecia preparar os pacientes para um
futuro de episódios psicóticos graves, e isso ocorria independentemente de
eles continuarem ou não com os remédios.
Esses resultados precários instigaram dois psiquiatras do Hospital de
Psicopatias de Boston, J. Sanbourne Bockovcn e Harry Solomon, a reexa-
minarem o passado. Fazia décadas que trabalhavam nesse hospital c, no
período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial, ao tratarem pa-
cientes psicóticos com uma forma progressista de atendimento psicoló-
gico, eles tinham visto a maioria apresentar uma melhora sistemática. Isso
os levou a crer que “a maioria das doenças mentais, especialmente as
mais graves, e de natureza predominantemente autolimitante, se o paci-
ente não for submetido a experiências humilhantes nem à perda de direi-
tos e liberdades”. Os antipsicóticos, ponderaram eles, deveriam acelerar
esse processo natural de cura. Mas estavam as drogas melhorando os re-
sultados a longo prazo? Num estudo retrospectivo, eles constataram que
45% dos pacientes tratados em 1947 no seu hospital não tinham sofrido
recaídas nos cinco anos seguintes, e que 76% levavam a vida com sucesso
na comunidade, ao final desse período de acompanhamento. Em con-
traste, apenas 31% dos pacientes tratados no hospital com neurolépticos
em 1967 permaneceram livres de recaídas por cinco anos e, como grupo,
eram muito mais “dependentes do meio social” - necessitavam da previ-
dência e de outras formas de apoio. “De modo bastante inesperado, esses
dados sugerem que as drogas psicotrópicas talvez não sejam indispensá-
veis”, escreveram Bockoven e Solomon. “Seu uso contínuo nos cuidados
pós-internação pode prolongar a dependência social de muitos pacientes
que receberam alta.”
Com o crescimento do debate sobre os méritos dos neurolépticos, o
NIMH financiou três estudos, durante a década de 1970, para reexaminar
se os pacientes esquizofrênicos - e, em particular, os que sofriam um pri-
meiro episódio de esquizofrenia - podiam ser tratados com sucesso sem
medicamentos. No primeiro estudo, que foi conduzido por William Carpen-
ter e Thomas McGlashan na unidade de pesquisas clínicas do NIMH, em
Bethesda, no estado de Maryland, os pacientes tratados sem remédios re-
ceberam alta mais cedo que os tratados com medicamentos, e apenas 35%
do grupo não medicado sofreram recaídas no período de um ano depois da
alta, comparados a 45% do grupo medicado. Os pacientes sem medicação
também sofreram menos com depressão, embotamento afetivo e retarda-
ção dos movimentos. Com efeito, disseram a Carpenter e McGlaslian que
haviam considerado “gratificante e informativo” passar por seus episódios
psicóticos sem ter seus sentimentos entorpecidos pelas drogas. Os pacien-
tes medicados não tiveram essa mesma experiência de aprendizagem c,
como resultado, concluíram Carpenter e McGlashan, mostraram-se, a
longo prazo, “menos capazes de lidar com as tensões posteriores da vida”.
Um ano depois, Maurice Rappaport, na Universidade da Califórnia cm
San Francisco, anunciou resultados que contavam a mesma história, só
que com mais força ainda. Ele havia separado aleatoriamente oitenta indi-
víduos do sexo masculino recém-diagnosticados como esquizofrênicos, in-
ternados no Hospital Estadual Agnews, em grupos de pacientes medicados
e não medicados, e, embora os sintomas se atenuassem mais depressa
nos que eram tratados com antipsicóticos, os dois grupos, em média, pas-
saram apenas seis semanas no hospital. Rappaport acompanhou esses
pacientes durante três anos, e foram os não tratados com antipsicóticos
no hospital, e que continuaram sem medicação depois da alta, que obtive-
ram os melhores resultados, sem termos de comparação. Apenas dois dos
24 pacientes desse grupo nunca exposto a antipsicóticos tiveram uma re-
caída no período de três anos de acompanhamento. Enquanto isso, os pa-
cientes que se podia dizer que se haviam saído pior foram os que usaram
medicamentos durante todo o estudo. O padrão de atendimento que, de
acordo com a orientação “baseada nas evidências” da psiquiatria, deveria
ter produzido os melhores resultados foi justamente o que, ao contrário,
produziu os piores.
“Nossos dados sugerem que a medicação antipsicótica não é o trata-
mento preferencial, pelo menos para alguns pacientes, quando estamos
interessados na melhora clínica a longo prazo”, escreveu Rappaport. “Mui-
tos pacientes não medicados durante a internação hospitalar mostraram
maior melhora a longo prazo, menos patologias durante o período de
acompanhamento, menor número de reinternações e melhor funciona-
mento geral na comunidade do que os pacientes que receberam clorpro-
mazina durante a internação hospitalar.”
Estudo de Rappaport: resultados da esquizofrenia após três anos
Neste estudo, os pacientes foram agrupados de acordo com seu tratamento durante
a internação hospitalar (placebo ou remédio) e de acordo com o uso ou não de anti-
psicóticos depois de receberem alta. Assim, 24 dos 41 pacientes tratados com o
placebo no hospital permaneceram sem remédios durante o período de acompa-
nhamento. Esse grupo nunca exposto aos medicamentos foi o que obteve os me-
lhores resultados, sem termos de comparação.
O terceiro estudo foi conduzido por Loren Mosher, que chefiava as pes-
quisas sobre esquizofrenia no NIMH. Embora pudesse ser o principal mé-
dico do país nessa matéria, na época, sua visão da esquizofrenia discor-
dava daquela de muitos de seus pares, que haviam passado a achar que
os esquizofrênicos sofriam de um “cérebro avariado”. Mosher acreditava
que a psicose podia surgir em resposta a traumas afetivos e internos, e
que, à sua maneira, podia ser um mecanismo de enfrentamento. Assim,
acreditava haver a possibilidade de as pessoas lidarem com suas alucina-
ções e delírios, lutarem para atravessar surtos esquizofrênicos e recupera-
rem a sanidade. E, se assim era, ele ponderou que, se proporcionasse aos
pacientes com psicoses recentes uma morada segura, onde os profissio-
nais tivessem uma evidente empatia com outras pessoas e não se assus-
tassem com comportamentos estranhos, muitos ficariam bons, mesmo
não sendo tratados com antipsicóticos. “Eu achava que o envolvimento
humano sincero e a compreensão eram cruciais para as interações curati-
vas”, disse. “A ideia era tratar as pessoas como pessoas, como seres hu-
manos, com dignidade e respeito.”
A casa vitoriana de 12 quartos que ele abriu em 1971 em Santa Clara,
na Califórnia, podia acolher seis pacientes de cada vez. Mosher a chamou
de Casa Soteria1, e acabou inaugurando também uma segunda

1 O termo vem do grego sótêr, -iras, “protetor, salvador”, e de sótêrion, “salvação”; o mesmo radical
originou sotérias, antigas festas de ação de graças para agradecer aos deuses o afastamento de um
residência, a Emanon. Ao todo, o Projeto Soteria funcionou durante 12
anos, com 82 pacientes tratados nas duas casas. Já em 1974, Mosher co-
meçou a relatar que seus pacientes da Soteria passavam melhor do que
uma coorte equiparável de pacientes que vinham sendo convencional-
mente tratados com medicamentos num hospital, e, em 1979, ele anun-
ciou seus resultados após dois anos. Ao cabo de seis semanas, os sinto-
mas psicóticos haviam se atenuado tanto em seus pacientes da Soteria
quanto nos pacientes hospitalizados, e, ao cabo de dois anos, os pacientes
da Soteria tinham “escores psicopatológicos mais baixos, menor número
de reinternações [hospitalares] e melhor adaptação global”.1 Mais tarde, ele
e John Bola, um professor assistente da Universidade da California Meri-
dional, apresentaram um relatório sobre seu uso de medicamentos: 42%
dos pacientes da Casa Soteria nunca tinham sido expostos a remédios,
39% haviam-nos usado temporariamente, e apenas 19% haviam necessi-
tado deles durante todo o período de dois anos de acompanhamento.
“Contrariando a visão popular, o uso mínimo de medicamentos anti-
psicóticos, combinado com uma intervenção psicossocial especialmente
concebida para pacientes recém-identificados com transtornos do espectro
da esquizofrenia, não é prejudicial, mas parece ser vantajoso”, escreveram
Mosher e Bola. “Acreditamos que o balanço dos riscos e benefícios associ-
ados à prática comum de medicar quase todos os episódios iniciais da psi-
cose deve ser reexaminado.”
Três estudos financiados pelo NIMH, e todos apontaram para a mesma
conclusão. Talvez 50% dos pacientes recém-diagnosticados com esquizo-
frenia, se tratados sem antipsicóticos, se recuperassem e continuassem
bem por extensos períodos de acompanhamento. Apenas uma minoria dos

perigo grave, e também soteriologia, a parte da teologia que trata da salvação do Homem. (N.T.)
" No começo da década de 1960, Philip May conduziu um estudo que comparou cinco formas de tratamcnlo
em regime de internação hospitalar: medicamentos, clctroconvulsolerapia (ECT), psicoterapia, psicoterapia
aliada a medicamentos e terapia ambiental (num ambiente de apoio). A curto prazo, os pacientes tratados
com remédios saíram-se muito melhor. Como resultado, o estudo passou a scr citado como prova de que
os pacientes esquizofrênicos não podiam ser tratados sem medicação. Entretanto, os resultados após dois
anos contaram uma história com mais nuanccs. Cinquenta e nove por cento dos pacientes inicialmcnte tra-
tados com terapia ambiental e sem medicação receberam alta, com sucesso, no período inicial do estudo, e
esse grupo “funcionou durante o acompanhamento pelo menos tão bem quanto os casos de sucesso dos
outros tratamentos, se não melhor”. Assim, o estudo de May, que costuma ser citado como prova de que
todos os pacientes psicóticos devem ser medicados, na verdade sugeriu que a maioria dos pacientes num
primeiro episódio se sairia melhor, a longo prazo, se inicialmente tratada com a terapia ambiental, e não
com remédios. Fonte: P. May, “Schizophrcnia: a follow-up study of the results offive forms of
trcatment",zlrcAiwr of General Psychiatry 38 (1981): 776-784.
pacientes parecia necessitar da administração contínua de remédios. A
“síndrome da porta giratória”, que se tornara tão conhecida, devia-se, em
grande parte, aos medicamentos, muito embora, nos testes clínicos, eles
se houvessem provado eficazes para atenuar os sintomas psicóticos. Car-
penter e McGlashan resumiram com clareza o enigma científico então en-
frentado pela psiquiatria:
Não há dúvida de que, quando tratados com medicamentos, os pacientes
mostram- se menos vulneráveis a recaídas, ao se manter a medicação
com neurolépticos. Mas, e se esses pacientes nunca fossem tratados com
remédios, para começar? (...) Levantamos a possibilidade de que a medi-
cação antipsicótica torne alguns pacientes esquizofrênicos mais vulnerá-
veis a recaídas futuras do que aconteceria no curso natural da doença.”
E, se assim fosse, essas drogas estariam aumentando a probabilidade
de a pessoa que sofresse um surto psicótico vir a se tornar um doente crô-
nico.

Uma Cura Pior que a Doença?

Todos os medicamentos têm um perfil de riscos e benefícios, e o pensa-


mento habitual, na medicina, é que o remédio deve fornecer um benefício
que seja maior do que os riscos. Um remédio que controla sintomas psicó-
ticos proporciona, claramente, um benefício acentuado, e foi por isso que
os antipsicóticos puderam ser vistos como úteis, embora fosse longa a
lista de aspectos negativos dessas drogas. O Thorazine e outros neurolép-
ticos da primeira geração causavam sintomas parkinsonianos e espasmos
musculares extraordinariamente dolorosos. Os pacientes queixavam-se
com regularidade de que os remédios os transformavam em “zumbis” afeti-
vos. Em 1972, pesquisadores concluíram que os neurolépticos “prejudica-
vam a aprendizagem”.30 Outros relataram que, mesmo quando os pacien-
tes medicados permaneciam fora do hospital, pareciam totalmente desmo-
tivados e socialmente desligados. Muitos viviam “praticamente na solidão”
em lares coletivos, passando a maior parte do tempo “olhando com ar vago
para a televisão”, escreveu um investigador. Nada disso indicava que os
pacientes esquizofrênicos medicados se saíssem bem, e havia ainda o di-
lema enfrentado pela psiquiatria: se os remédios aumentavam os índices
de recaída a longo prazo, qual era o benefício? Essa pergunta tornou-se
ainda mais premente pelo fato de muitos pacientes mantidos com a medi-
cação estarem desenvolvendo discinesia tardia (DT), uma grande disfun-
ção motora que persistia mesmo depois de serem suspensos os remédios,
numa prova de lesão cerebral permanente.
Tudo isso exigiu que a psiquiatria recalculasse os riscos e benefícios
dos antipsicóticos, e, em 1977, assim fez Jonathan Cole, num artigo pro-
vocadoramente intitulado “A cura é pior que a doença?”. Ele reexaminou
todos os prejuízos que esses medicamentos podiam causar, a longo prazo,
e observou que os estudos haviam demonstrado que pelo menos 50% de
todos os esquizofrênicos podiam sair- se bem sem medicamentos. Havia
apenas uma atitude moralmente correta que a psiquiatria podia tomar:
“Todo paciente esquizofrênico ambulatorial mantido com medicação anti-
psicótica deve ter o benefício de uma experiência adequada sem drogas”.
Isso, explicou ele, salvaria muitos “dos perigos da discinesia tardia, bem
como dos ônus financeiros e sociais da terapia medicamentosa prolon-
gada”.
A base de dados comprobatórios para a manutenção do tratamento
com antipsicóticos em pacientes esquizofrênicos havia desmoronado. “De-
vem os antipsicóticos ser retirados?”, indagou Pierre Deniker, o psiquiatra
francês que, no começo dos anos 1950, tinha sido o primeiro a promover
seu uso.

Psicose por Hipersensibilidade

No fim da década de 1970, dois médicos da Universidade McGill, Guy


Chouinard e Barry Jones, deram um passo adiante, oferecendo uma expli-
cação biológica de por que as drogas tornavam os pacientes esquizofrêni-
cos mais biologicamente vulneráveis à psicose. O entendimento deles pro-
veio, em grande parte, das investigações sobre a hipótese dopaminérgica
da esquizofrenia, que havia detalhado de que modo as drogas perturba-
vam esse sistema neurotransmissor.
O Thorazine e outros antipsicóticos-padrão bloqueavam de 70% a 90%
de todos os receptores D, do cérebro. No esforço de compensar esse blo-
queio, os neurônios pós-sinápticos aumentavam a densidade de seus re-
ceptores D, em 30% ou mais. O cérebro tornava-se então “hipersensível” à
dopamina, explicaram Chouinard e Jones, e esse neurotransmissor era
tido como mediador da psicose. “Os neurolépticos são capazes de produzir
uma hipersensibilidade à dopamina que leva a sintomas discinéticos e psi-
cóticos”, escreveram eles. “Uma das implicações é que a tendência para re-
caídas, nos pacientes que desenvolvem essa hipersensibilidade, é determi-
nada por mais do que o mero curso normal da doença.”
Uma metáfora simples pode nos ajudar a compreender melhor essa
vulnerabilidade à psicose, induzida pelos medicamentos, e a razão por que
esta eclode quando a medicação é suspensa. Os neurolépticos refreiam a
transmissão da dopamina e, como resposta, o cérebro aperta o acelerador
dopaminérgico (os receptores D, extra). Quando o remédio é abruptamente
retirado, solta-se de repente o freio da dopamina, enquanto o acelerador
ainda está apertado até o fundo. O sistema fica então em enorme desequi-
líbrio e, do mesmo modo que um carro poderia derrapar e fugir do con-
trole, descontrolam-se as vias dopaminérgicas no cérebro. Os neurônios
dopaminérgicos dos gânglios basais podem disparar tão depressa que o
paciente de quem as drogas são retiradas passa a sofrer de tiques estra-
nhos, agitação e outras anormalidades motoras. O mesmo disparar des-
controlado acontece com a via dopaminérgica para a região límbica. oque
pode levar à “recaída na psicose ou à deterioração psicótica’’, escreveram
Chouinard e Jones.
Esse foi um extraordinário trabalho detetivesco dos dois investigadores
canadenses. Eles identificaram - pelo menos em tese - a razão de serem
tão altos os índices de recaída nas tentativas de retirada da medicação, o
que a psiquiatria havia interpretado, erroneamente, como prova de que os
remédios impediam a recaída. A grave recaída sofrida por muitos pacien-
tes dos quais se retiravam os antipsicóticos não resultava, necessaria-
mente, de um retorno da “doença"', mas se relacionava, antes, com os me-
dicamentos. O trabalho de Chouinard e Jones também revelou que tanto
os psiquiatras quanto seus pacientes sofriam regularmente de uma ilusão
clínica: viam o retorno dos sintomas psicóticos na retirada das drogas
como prova de que os antipsicóticos eram necessários e “funcionavam”.
Assim, o paciente em recaída voltava para a medicação e, muitas vezes, a
psicose se atenuava, o que se tornava uma nova prova da eficácia do re-
médio. Médico e paciente vivenciavam isso como uma “verdade”, quando,
de fato, a razão de a psicose se abrandar com o retorno da medicação era
que o freio da transmissão da dopamina voltava a ser apertado, o que con-
trabalançava o acelerador dopaminérgico preso no fundo. Como explica-
ram Chouinard e Jones. “A própria necessidade do tratamento contínuo
com neurolépticos pode ser induzida pela medicação”.
Em suma, a exposição inicial aos neurolépticos colocava os pacientes
num curso em que, provavelmente, eles precisariam dessas drogas pelo
resto da vida. No entanto - e este era o segundo aspecto assombroso dessa
história da medicina a continuação do uso dos medicamentos levava siste-
maticamente a um final infeliz. Com o tempo, assinalaram Chouinard e
Jones, as vias dopaminérgicas tendiam a se tornar permanentemente dis-
funcionais. Ficavam irreversivelmente presas num estado hiperativo e, em
pouco tempo, a língua do paciente passava a entrar e sair ritmicamente de
sua boca (discinesia tardia) e os sintomas psicóticos se agravavam (psicose
tardia). Assim, os médicos precisavam receitar doses mais altas de antipsi-
cóticos, a fim de atenuar esses sintomas tardios. “O tratamento mais efi-
caz é o próprio agente causal: o neuroléptico”, afirmaram Chouinard e Jo-
nes.
Nos anos seguintes, esses pesquisadores continuaram a investigar e
testar sua hipótese. Em 1982, relataram que 30% de 216 pacientes esqui-
zofrênicos ambulatoriais estudados por eles manifestavam sinais de psi-
cose tardia.36 Observaram também que esta tendia a afligir os pacientes
que, quando do diagnóstico original, tinham um “bom prognóstico” e, por-
tanto, teriam apresentado uma possibilidade de se saírem bem a longo
prazo se nunca tivessem sido expostos a neurolépticos. Tratava-se dos
“respondentes com placebo” que se saíram melhor nos estudos conduzi-
dos por Rappaport e Mosher, e agora Chouinard e Jones informaram que
esses doentes estavam se tornando psicóticos crônicos, após anos to-
mando antipsicóticos. Por último, Chouinard quantificou o risco, infor-
mando que a psicose tardia parecia desenvolver-se num ritmo ligeira-
mente mais lento do que a discinesia tardia. Afetava 3% dos pacientes por
ano, e o resultado era que, após 15 anos com os medicamentos, cerca de
45% deles sofriam desse problema. Quando se instala a psicose tardia,
acrescentou Chouinard, “a doença parece pior” do que nunca. “Surgem
novos sintomas esquizofrênicos, ou os sintomas originais aparecem com
maior gravidade.”
Estudos com animais também confirmaram esse quadro. Philip Sce-
man relatou que os antipsicóticos causavam um aumento dos receptores
D1, em ratos e, embora a densidade desses receptores pudesse voltar ao
normal com a retirada da droga (ele informou que, para cada mês de expo-
sição, eram necessários dois meses para ocorrer a normalização), em al-
gum momento o aumento dos receptores tornava- se irreversível.
Em 1984, o médico sueco Lars Martensson, numa apresentação feita
na Conferência da Federação Mundial de Saúde Mental, em Copenhague,
resumiu a síntese devastadora: “O uso de neurolépticos e uma armadi-
lha”, afirmou. “E como ter um agente indutor da psicose incorporado ao
cérebro.”

Uma Ideia Maluca... ou Não?

A conformação dessa visão sobre os neurolépticos no começo dos anos


1980 constituiu uma história da ciência no que esta tem de melhor. Os
psiquiatras viram que as drogas “funcionavam”. Viram que os antipsicóti-
cos derrubavam os sintomas psicóticos e observaram que os pacientes que
paravam de tomar esses medicamentos com regularidade voltavam a ficar
psicóticos. Testes científicos reforçaram suas percepções clínicas. Testes
de seis semanas provaram que os remédios eram eficazes. Estudos sobre a
recaída provaram que os pacientes deviam ser mantidos no tratamento
medicamentoso. Todavia, quando os pesquisadores vieram a compreender
como as drogas agiam no cérebro, e quando começaram a investigar por
que os pacientes vinham desenvolvendo discinesia tardia, e por que iam se
transformando em doentes crônicos, emergiu essa imagem contraintuitiva
dos remédios - a imagem de que eles estavam aumentando a probabili-
dade de os pacientes ficarem cronicamente enfermos. Foram Chouinard e
Jones que ligaram explicitamente todos os pontinhos, e, durante algum
tempo, seu trabalho realmente mexeu com um ninho de vespas na psiqui-
atria. Numa palestra da qual os dois médicos da Universidade McGill par-
ticiparam, um médico perguntou, perplexo: “Prescrevi neurolépticos a
meus pacientes por eles serem psicóticos. Agora, vocês estão dizendo que
a mesma droga que controla a esquizofrenia deles também causa psi-
cose?”.
Mas o que se esperava que a psiquiatria fizesse com essas informa-
ções? Elas claramente punham em risco os próprios alicerces desse
campo. Seria realmente possível a psiquiatria confessar ao público, ou até
admitir para si mesma, que a própria classe de medicamentos que teria
“revolucionado” o tratamento dos doentes mentais estava, na verdade,
transformando os pacientes em doentes crônicos? Admitir que os antipsi-
cóticos, pelo menos em termos cumulativos, tornavam os pacientes mais
psicóticos, com o correr do tempo? A psiquiatria precisava desesperada-
mente que essa discussão acabasse. Em pouco tempo, os artigos de
Chouinard e Jones sobre a “psicose por hipersensibilidade” foram incluí-
dos na categoria das “hipóteses interessantes”, e todos os integrantes
desse campo profissional deram um suspiro de alívio quando Solomon
Snyder, que entendia tanto de receptores dopaminérgicos quanto qualquer
cientista do mundo, assegurou a todos, em seu livro de 1986, Drugs and
the Brain [As drogas e o cérebro], que tudo não havia passado de um
alarme falso:
Se a sensibilidade dos receptores dopaminérgicos é maior nos pacientes com
discinesia tardia, seria possível indagar se eles também sofreriam um au-
mento correspondente dos sintomas esquizofrênicos. Curiosamente, em-
bora os pesquisadores tenham buscado criteriosamente qualquer possível
exacerbação de sintomas esquizofrênicos nos pacientes que começam a
desenvolver discinesia tardia, nunca se constatou nenhuma.
Esse momento de crise na psiquiatria, quando ela se preocupou breve-
mente com a psicose por hipersensibilidade, ocorreu há quase trinta anos,
e hoje a ideia de que os antipsicóticos possam aumentar a probabilidade
de uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia tornar-se um doente crô-
nico parece absurda, à primeira vista. Pergunte aos psiquiatras das me-
lhores faculdades de medicina, às equipes dos hospitais psiquiátricos, aos
funcionários do NIMH, aos dirigentes da Aliança Nacional Contra a Do-
ença Mental, aos redatores científicos dos grandes jornais, ou à pessoa co-
mum na rua, e todos afirmarão que os antipsicóticos são essenciais para
tratar a esquizofrenia, que são a própria pedra fundamental do trata-
mento, e que qualquer um que defenda uma ideia diferente é, digamos,
meio biruta. Entretanto, enveredamos por esta linha de pesquisa e convi-
dei os leitores a entrarem nessa casa de doidos, e por isso, agora precisa-
mos subir um andar na Biblioteca Countway. Os volumes do subsolo ter-
minam em 1986, e agora precisamos vasculhar a literatura científica a
partir daquele ano, e descobrir que história ela tem para contar. Terá sido
tudo um alarme falso... ou não?
A maneira mais eficiente de responder a essa pergunta é resumir, um
por um, os estudos e as vias de pesquisa relevantes.

O estudo longitudinal de Vermont


No fim da década de 1950 e início da de 1960, o Hospital Estadual de
Vermont deu alta a 269 esquizofrênicos crônicos, a maioria na meia-idade,
liberando-os para o convívio na comunidade. Vinte anos depois, Courte-
nay Harding entrevistou 168 pacientes desse grupo (os que ainda estavam
vivos) e constatou que 34% tinham se recuperado, o que significava que
eram “assintomáticos e levavam vida independente, tinham relacionamen-
tos íntimos, estavam empregados ou eram cidadãos produtivos de outras
maneiras, eram capazes de cuidar de si e, de modo geral, levavam uma
vida plena”. Foi um resultado surpreendentemente bom, a longo prazo,
para pacientes que tinham sido vistos como incuráveis na década de
1950, e os que se haviam recuperado tinham uma coisa em comum, como
disse Harding à APA Monitor: todos “haviam parado de tomar medicamen-
tos, fazia muito tempo”. Ela concluiu que era um “mito” afirmar que os pa-
cientes esquizofrênicos “tinham que tomar remédios durante a vida in-
teira”, e declarou que, na verdade, “talvez seja pequena a percentagem dos
que necessitam de medicação indefinidamente”.
Os estudos transculturais da Organização Mundial da Saúde
Em 1969, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma inicia-
tiva de levantamento dos resultados da esquizofrenia em nove países. Ao
cabo de cinco anos, os pacientes de três países “em desenvolvimento” - ín-
dia, Nigéria e Colômbia - exibiram um “curso e um resultado consideravel-
mente melhores” que os dos pacientes dos Estados Unidos e de outros
cinco “países desenvolvidos". Os primeiros tinham uma probabilidade
muito maior de estarem assintomáticos durante o período de acompanha-
mento e, o que era ainda mais importante, desfrutavam de “um resultado
social excepcionalmente bom".
Essas constatações deixaram mordidas as comunidades psiquiátricas
dos Estados Unidos e da Europa, que protestaram dizendo que devia ter
havido uma falha na concepção do estudo. Talvez os pacientes da índia,
da Nigéria e da Colômbia não fossem realmente esquizofrênicos. Em res-
posta, a OMS lançou em 1978 um estudo sobre dez países e, dessa vez,
incluiu primordialmente pacientes que haviam sofrido um primeiro episó-
dio de esquizofrenia, todos diagnosticados por critérios ocidentais. Mais
uma vez, os resultados foram praticamente os mesmos. Ao cabo de dois
anos, quase dois terços dos pacientes dos "países cm desenvolvimento” ti-
nham obtido resultados positivos, e pouco mais de um terço havia se
transformado em doentes crônicos. Nos países ricos, apenas 37% dos pa-
cientes tinham resultados positivos, ao passo que 59% tornaram-se doen-
tes crônicos. “A constatação de um resultado melhor nos pacientes dos
países em desenvolvimento foi confirmada”, escreveram os cientistas da
OMS. “Estar num país desenvolvido revelou-se um forte preditor de não
obtenção da remissão completa.”
Embora não tenham identificado uma razão para a flagrante dispari-
dade dos resultados, os investigadores da OMS fizeram um levantamento
do uso de antipsicóticos no segundo estudo e formularam a hipótese de
que talvez os pacientes dos países pobres se saíssem melhor por tomarem
a medicação com mais regularidade. No entanto, constataram que a ver-
dade era o inverso. Apenas 16% dos pacientes desses países eram regular-
mente tratados com antipsicóticos, em contraste com 61% dos pacientes
dos países ricos. Além disso, em Agra, na índia, onde era possível afirmar
que os pacientes tinham se saído melhor, apenas 3% deles eram mantidos
no tratamento com antipsicóticos. O uso mais intenso da medicação era
feito em Moscou, e essa cidade revelou a mais alta percentagem de pacien-
tes constantemente enfermos.
Nesse estudo transcultural, os melhores resultados associaram-se cla-
ramente ao baixo uso da medicação. Posteriormente, em 1997, pesquisa-
dores da OMS voltaram a entrevistar os pacientes dos dois primeiros estu-
dos (15 a 25 anos depois dos estudos iniciais) e constataram que os dos
países pobres continuavam a se sair muito melhor. O “diferencial de resul-
tados” se manteve quanto ao “estado clínico geral, à sintomatologia, à in-
validez e ao funcionamento social”. Nos países em desenvolvimento. 53%
dos pacientes esquizofrênicos simplesmente “nunca mais tiveram surtos
psicóticos" e 73% estavam empregados.4 Embora os investigadores da
OMS não tenham dado informações sobre o uso de remédios em seu es-
tudo de acompanhamento, o resultado final é claro: nos países em que os
pacientes não tinham sido regularmente tratados com antipsicóticos na
fase inicial da doença, a maioria estava recuperada e passando bem, 15
anos depois.

Discinesia tardia e declínio global


A discinesia tardia e a psicose tardia ocorrem porque as vias dopami-
nérgicas para os gânglios basais e o sistema límbico tornam-se disfuncio-
nais. Mas existem tris vias dopaminérgicas, donde seria razoável supor
que a terceira, que transmite mensagens aos lobos frontais, também se
tornaria disfuncional com o tempo. Se assim fosse, os pesquisadores po-
deriam ter a expectativa de constatar um declínio global do funcionamento
do cérebro em pacientes diagnosticados com discinesia tardia, e, de 1979
a 2000, mais de duas dúzias de estudos constataram que isso acontecia.
“A relação parece ser linear”, informou em 1987 o psiquiatra James Wade,
da Faculdade de Medicina da Virgínia. “Os indivíduos com as formas gra-
ves do transtorno são os mais prejudicados no plano cognitivo.” Os pes-
quisadores determinaram que a discinesia tardia associava-se a um agra-
vamento dos sintomas negativos da esquizofrenia (desapego afetivo, preju-
ízo psicossocial e declínio da memória, da retenção visual e da capacidade
de aprendizagem). As pessoas com discinesia tardia perdem seu “mapa ro-
doviário da consciência”, concluiu um investigador. Alguns pesquisadores
chamaram essa deterioração cognitiva a longo prazo de demência tardia;
em 1994, outros constataram que três quartos dos pacientes esquizofrêni-
cos medicados de 70 anos ou mais sofriam de uma patologia cerebral as-
sociada à doença de Alzheimer.

Estudos por ressonância magnética


A invenção da tecnologia de imagens por ressonância magnética
ofereceu aos pesquisadores a oportunidade de medir volumes das estrutu-
ras cerebrais em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e, apesar de
terem a esperança de identificar anormalidades que pudessem caracteri-
zar a doença, eles acabaram documentando, em vez disso, o efeito dos an-
tipsicóticos nos volumes cerebrais. Numa série de estudos feitos de 1994 a
1998, investigadores relataram que as drogas causavam edema nas estru-
turas dos gânglios basais e no tálamo e faziam os lobos frontais encolher,
e que essas mudanças de volume estavam “relacionadas com a dose”. Em
seguida, em 1998, Raquel Gur, do Centro Médico da Universidade da Pen-
silvânia, relatou que o aumento dos gânglios basais e do tálamo estava
“associado à maior gravidade dos sintomas negativos e positivos’.
Este último estudo forneceu uma imagem muito clara de um processo
iatrogênico. O antipsicótico provocava uma mudança nos volumes cere-
brais e, à medida que isso ocorria, o paciente tornava-se mais psicótico (o
que se conhece como “sintomas positivos” da esquizofrenia) e mais desli-
gado afetivamente (“sintomas negativos”). Os estudos por ressonância
magnética mostraram que os antipsicóticos pioravam os próprios sinto-
mas que deveriam tratar, e que essa piora começava a ocorrer durante os
primeiros três anos de tratamento medicamentoso dos pacientes.

Criação de modelos de psicose


Como parte de suas investigações sobre a esquizofrenia, pesquisadores
procuraram elaborar “modelos” biológicos da psicose, e uma de suas ma-
neiras de fazê-lo foi estudar as alterações cerebrais induzidas por diversas
drogas - anfetaminas, pó de anjo [fenilciclidina] etc. - capazes de desenca-
dear delírios e alucinações. Eles também criaram maneiras de induzir
comportamentos de tipo psicótico em ratos e outros animais. As lesões no
hipocampo podem causar esses comportamentos perturbados, e alguns
genes podem ser “esgotados” para produzir tais sintomas. Em 2005, Philip
Seeman informou que todos esses desencadeadores de psicose provocam
um aumento de receptores cerebrais D, com “alta afinidade’ com a dopa-
mina, com o que pretendeu dizer que esses receptores se ligam com muita
facilidade a esse neurotransmissor. Tais “resultados implicam que pode
haver caminhos para a psicose, inclusive múltiplas mutações genéticas,
uso abusivo de drogas, ou lesões cerebrais, todos os quais podem conver-
gir pela alta de D2 para a produção de sintomas psicóticos”, escreveu.
Seeman ponderou que era por isso que os antipsicóticos funcionavam:
pelo bloqueio dos receptores D2. Em sua pesquisa, entretanto, também
constatou que esses medicamentos, inclusive os mais novos, como o
Zyprexa e o Risperdal, duplicavam a densidade dos receptores D2 de “alta
afinidade”. Eles induziam a mesma anormalidade induzida pelo pó de
anjo, de modo que essa pesquisa confirmou o que Lars Martensson havia
observado em 1984: tomar um neuroléptico é como ter “um agente indutor
da psicose incorporado ao cérebro”.

O estudo longitudinal de Nancy Andreasen usando a ressonância magné-


tica
Em 1989, Nancy Andreasen, uma professora de psiquiatria da Univer-
sidade de Iowa, que viria a ser editora-chefe do American Journal of
Psychiatry de 1993 a 2005, deu início a um estudo a longo prazo com
mais de quinhentos pacientes esquizofrênicos. Em 2003, informou que, na
época do diagnóstico inicial, os pacientes tinham lobos frontais ligeira-
mente menores do que o tamanho normal, e que, nos três anos seguintes,
seus lobos frontais continuaram a encolher. Além disso, essa “redução
progressiva do volume de substância branca dos lobos frontais” foi associ-
ada a um agravamento dos sintomas negativos e dos prejuízos funcionais,
e assim Andreasen concluiu que esse encolhimento era prova de que a es-
quizofrenia era um “transtorno progressivo do desenvolvimento neuroló-
gico”, o qual, infelizmente, os antipsicóticos não conseguiam deter. “Os
medicamentos atualmente usados não conseguem modificar um processo
lesivo que ocorre no cérebro e que é a base subjacente aos sintomas.”
O que Andreasen forneceu foi uma imagem dos antipsicóticos como te-
rapeuticamente ineficazes, em vez de nocivos, e, passados dois anos, ela
consubstanciou essa imagem. As aptidões cognitivas de seus pacientes co-
meçaram a “piorar significativamente”, cinco anos depois do diagnóstico
inicial, declínio este que foi associado às “reduções progressivas do volume
cerebral após a instalação da doença”. Em outras palavras, à medida que
os lobos frontais de seus pacientes foram encolhendo, sua capacidade de
pensar diminuiu. Mas outros pesquisadores que conduziam estudos
usando a ressonância magnética haviam constatado que o encolhimento
dos lobos frontais estava ligado aos medicamentos, e, numa entrevista de
2008 ao New York Times, Andreasen admitiu que, “quanto mais remédios
são administrados ao paciente, mais ele perde tecido cerebral”. A redução
dos lobos frontais poderia fazer parte de um processo patológico, que os
medicamentos exacerbavam. “O que fazem esses remédios, exatamente?”,
indagou Andreasen. “Bloqueiam a atividade dos gânglios basais. O córtex
pré-frontal não recebe aquilo de que necessita e é isolado pelas drogas.
Isso reduz os sintomas psicóticos. E também faz o córtex pré-frontal atro-
fiar-se lentamente.”
Mais uma vez, as investigações de Andreasen revelaram um processo
iatrogênico em ação. As drogas bloqueavam a atividade dopaminérgica ce-
rebral e isto levava a um encolhimento do cérebro, o qual, por sua vez,
correlacionava-se com uma piora dos sintomas negativos e com prejuízos
cognitivos. Foi mais uma descoberta inquietante, que instigou Thomas
McGlashan - o psiquiatra de Yale que se perguntara, três décadas antes,
se os antipsicóticos estavam tornando os pacientes “mais biologicamente
vulneráveis à psicose” - a questionar novamente todo esse paradigma de
atendimento. Ele situou suas reflexões inquietas num contexto científico:
A curto prazo, o bloqueio agudo [dos receptores] D2 isola a relevância e o in-
vestimento do paciente em sintomas positivos. A longo prazo, o bloqueio
crônico de D2 embota a relevância de todos os acontecimentos da vida co-
tidiana, induzindo a uma anedonia química que é às vezes rotulada de de-
pressão pós-psicótica, ou disforia neuroléptica. (...) Será que libertamos os
pacientes do manicômio, usando agentes bloqueadores de D2, apenas
para bloquear o incentivo, o engajamento no mundo e a joie de vivre1 da
vida cotidiana? A medicação pode salvar a vida numa crise, mas pode tor-
nar o paciente mais propenso à psicose, se for interrompida, e mais carre-
gado de déficits, se for mantida.
Os comentários de McGlashan foram publicados numa edição de 2006
do Schizophrenia Bulletin, e, naquele momento, foi como se o final da dé-
cada de 1970 se repetisse. A “cura”, ao que parecia, mais uma vez se reve-
lara “pior do que a doença”.

A Ilusão do Clínico

Compareci ao congresso de 2008 da Sociedade Norte-Americana de


Psiquiatria (APA) por diversas razões, mas a pessoa que eu mais queria
ouvir era Martin Harrow, um psicólogo da Faculdade de Medicina da Uni-
versidade de Illinois. De 1975 a 1983, ele incluiu 64 jovens esquizofrênicos
num estudo de longo prazo financiado pelo NIMH, recrutando os pacientes
de dois hospitais de Chicago. Um deles era particular, o outro, público,
pois isso garantia que o grupo fosse economicamente diversificado. Desde
então, Harrow avalia periodicamente o estado desses pacientes. Eles estão
sintomáticos? Em recuperação? Empregados? Tomam medicamentos anti-
psicóticos? Os resultados de Harrow proporcionam um quadro atualizado

Alegria de viver, em francês no original. (N.T.)


de como têm se saído os pacientes esquizofrênicos nos Estados Unidos, de
modo que seu estudo pode levar nossa investigação da literatura científica
a um clímax apropriado. A acreditarmos no saber convencional, os pacien-
tes que continuassem a tomar antipsicóticos deveriam ter os melhores re-
sultados. A acreditarmos na literatura científica que acabamos de exami-
nar, o resultado deveria ser o inverso.
Vejamos os dados de Harrow. Em 2007, ele publicou no Journal of
Nervous and Mental Disease um relatório sobre os resultados dos pacien-
tes no acompanhamento feito após 15 anos, e atualizou mais essa resenha
em sua exposição no congresso da APA de 2008.58 Ao cabo de dois anos,
o grupo que não tomava antipsicóticos estava ligeiramente melhor, numa
“escala de avaliação global”, do que o grupo que usava esses medicamen-
tos. Depois, nos cinco anos seguintes, o destino coletivo dos dois grupos
começou a divergir drasticamente. O grupo sem medicação começou a ter
melhoras significativas e, ao final de 4,5 anos, 39% desses pacientes esta-
vam “em recuperação” e mais de 60% trabalhavam. Em contraste, os re-
sultados do grupo com medicação pioraram nesse período de trinta meses.
Como grupo, seu funcionamento global teve um ligeiro declínio e, após 4,5
anos, apenas 6% deles estavam em recuperação e poucos estavam traba-
lhando. Essa divergência marcante dos resultados se manteve nos dez
anos seguintes. No acompanhamento de 15 anos, 40% dos que não toma-
vam remédios estavam em recuperação, mais da metade trabalhava e ape-
nas 28% sofriam de sintomas psicóticos. Em contraste, apenas 5% dos
que tomavam antipsicóticos estavam em recuperação, e 64% eram ativa-
mente psicóticos. “Concluo que os pacientes esquizofrênicos não medica-
dos com antipsicóticos por um longo período têm um funcionamento glo-
bal significativamente melhor que o dos que tomam antipsicóticos”, disse
Harrow à plateia da APA.
Taxas de recuperação a longo prazo para pacientes com esquizofrenia1

1 Fonte: M. Harrow, “Factors involved in outcome and recovery in schizophrenia patients not on ant
ip» vr hot ic medication”, The Journal of Nervous and Mental Disease, 195 (2007): 406-414.
Na verdade, não se tratou apenas de haver mais recuperações no
grupo não medicado. Houve também menos desfechos ruins nesse grupo.
Observou-se uma mudança em todo o espectro dos resultados. Dez dos 25
pacientes que pararam de tomar antipsicóticos se recuperaram, 11 tive-
ram resultados razoáveis e apenas quatro (16%) tiveram um “resultado
uniformemente ruim”. Em contraste, apenas dois dos 39 pacientes que
continuaram com a medicação antipsicótica se recuperaram, 18 tiveram
resultados razoáveis e 19 (49%) incluíram-se na categoria dos resultados
“uniformemente ruins”. Os pacientes medicados tiveram 1/8 da taxa de
recuperação dos não medicados e um índice três vezes maior de péssimos
resultados a longo prazo.
Espectro de resultados de pacientes esquizofrênicos
Espectro dos resultados de pacientes medicados e não medicados. Os que tomaram
antipsicóticos tiveram um índice muito menor de recuperação e uma tendência
muito maior a chegar a resultados “uniformemente ruins”.
Foi esse o quadro de resultados revelado no estudo financiado pelo
NIMH, o mais atualizado de que dispomos no momento. Ele também nos
permite discernir quanto tempo demora para que se tornem aparentes os
resultados melhores dos pacientes não medicados. Embora essa diferença
tenha começado a se mostrar ao final de dois anos, só na marca dos 4,5
anos é que se tornou evidente que o grupo não medicado, como um todo,
vinha se saindo muito melhor. Além disso, por meio de seu rastreamento
rigoroso dos pacientes, Harrow descobriu por que os psiquiatras conti-
nuam cegos para esse fato. Os doentes que largam os remédios antipsicó-
ticos saem do sistema, disse ele. Param de frequentar programas ambula-
toriais, param de consultar terapeutas, param de dizer às pessoas que já
foram diagnosticados com esquizofrenia e desaparecem na sociedade. Al-
gumas das pessoas não medicadas do estudo de Harrow chegaram até a
ter “empregos de alto nível” - uma se tornou professora universitária, ou-
tra virou advogada - e várias tinham “empregos de nível médio”. Harrow
explicou: “Nós [clínicos] extraímos nossa experiência da visão daqueles
que nos deixam e depois retomam, por terem uma recaída. Não vemos os
que não têm recaídas. Eles não voltam. Estão muito felizes”.
Mais tarde, perguntei ao dr. Harrow por que ele achava que os pacien-
tes não medicados se saíam muito melhor. Ele não atribuiu esse resultado
ao fato de eles não tomarem antipsicóticos e disse, antes, que os compo-
nentes desse grupo “tinham um senso interno de identidade que era mais
forte” e, depois de inicialmente estabilizados com os medicamentos, esse
“melhor senso de identidade” lhes deu confiança para abandonar a medi-
cação. “Não é que os que ficaram sem remédios tenham se saído melhor, e
sim que aqueles que se saíram melhor [inicialmente] deixaram a medica-
ção, mais tarde.” Quando insisti em indagar se os resultados dele corrobo-
ravam uma interpretação diferente - a de que os remédios pioravam os re-
sultados a longo prazo -, o dr. Harrow ficou meio irritado: “Essa é uma
possibilidade, mas não a estou defendendo”, disse. “As pessoas reconhe-
cem que pode haver efeitos colaterais. (...) Não estou simplesmente ten-
tando evitar a pergunta. Sou uma das poucas pessoas deste campo que
não recebem dinheiro das empresas farmacêuticas.”
Fiz-lhe uma última pergunta: não deveriam os seus resultados, no mí-
nimo, ser incorporados ao paradigma de atendimento usado na nossa so-
ciedade para tratar as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia? “Quanto
a isso, não há dúvida”, foi a resposta. “Nossos dados são uma prova esma-
gadora de que nem todos os pacientes esquizofrênicos precisam tomar an-
tipsicóticos durante a vida inteira.”

Reexaminando as Provas

Seguimos uma trilha de documentos até um final surpreendente, e por


isso creio que precisamos fazer uma última pergunta: será que todas as
provas que refutam o saber comum se sustentam? Em outras palavras, a
literatura sobre os resultados conta uma história coerente e sistemática?
Precisamos reexaminar tudo, para ter certeza de não deixar escapar al-
guma coisa, porque é sempre incômodo chegar a uma conclusão que dis-
corda do que a sociedade “sabe” ser verdade.
Primeiro, como reconheceram os pesquisadores Lisa Dixon e Emma-
nuel Stip, não há uma boa comprovação de que os antipsicóticos melho-
rem os resultados da esquizofrenia a longo prazo. Sendo assim, podemos
confiar em que não deixamos escapar nenhum estudo desse tipo no nosso
levantamento. Segundo, indícios de que os medicamentos podem piorar os
resultados a longo prazo apareceram logo no primeiro estudo de acompa-
nhamento conduzido pelo NIMH, e depois voltaram a aparecer repetidas
vezes nos cinquenta anos seguintes. Podemos ligar os autores dessa pes-
quisa a uma extensa linhagem: Cole, Bockoven, Rappaport, Carpenter,
Mosher, Harding, a OMS e Harrow. Terceiro, depois que os pesquisadores
passaram a compreender como os antipsicóticos afetavam o cérebro,
Chouinard e Jones apresentaram uma explicação biológica sobre a razão
de os remédios tornarem os pacientes mais vulneráveis à psicose, a longo
prazo. Também souberam explicar por que as mudanças cerebrais induzi-
das por medicamentos tornavam tão arriscado as pessoas suspenderem a
medicação, e com isso revelaram porque os estudos sobre desabituação
iludiam os psiquiatras, levando-os a crer que os remédios preveniam a re-
caída. Quarto, provas de que as taxas de recuperação a longo prazo são
mais altas entre pacientes não medicados apareceram em estudos e inves-
tigações de muitos tipos diferentes. Apareceram nos estudos com grupos
aleatórios conduzidos por Rappaport, Carpenter e Mosher; nos estudos
transculturais conduzidos pela OMS; e nos estudos naturalistas conduzi-
dos por Harding e Harrow. Quinto, nos estudos sobre discinesia tardia, vi-
mos provas de que os remédios induzem à disfunção global do cérebro
numa alta percentagem de pacientes, a longo prazo. Sexto, após o surgi-
mento de uma nova ferramenta para estudar as estruturas cerebrais (a
ressonância magnética), os investigadores descobriram que os antipsicóti-
cos causam alterações morfológicas no cérebro, e que essas alterações es-
tão associadas a uma piora dos sintomas positivos e negativos, bem como
a um prejuízo cognitivo. Por último, em sua maioria, os pesquisadores psi-
quiátricos que conduziram esses estudos tinham a esperança e a expecta-
tiva de constatar o inverso. Queriam contar uma história de medicamen-
tos que ajudam os pacientes esquizofrênicos a melhorar com o tempo -
suas preferências se inclinavam nessa direção.
Estamos tentando resolver um enigma neste livro - saber por que o nú-
mero dos doentes mentais inválidos teve um aumento vertiginoso nos últi-
mos cinquenta anos -, e creio que agora temos nas mãos o primeiro pe-
daço do quebra-cabeça. Vimos que, na década anterior à introdução do
Thorazine, cerca de 65% dos pacientes com um primeiro episódio de es-
quizofrenia recebiam alta em até 12 meses, e a maioria dos que saíam não
voltava a ser internada nos períodos de acompanhamento de quatro e
cinco anos. Também foi isto que vimos no estudo de Bockoven: 76% dos
pacientes psicóticos tratados com uma forma progressista de atendimento
psicossocial, em 1947, viviam com sucesso em sociedade cinco anos de-
pois. Mas, como vimos no estudo de Harrow, apenas 5% dos esquizofrêni-
cos cuja medicação fora mantida a longo prazo acabaram recuperados.
Esse é um declínio drástico das taxas de recuperação na era moderna, e
os psiquiatras mais velhos, que ainda se lembram de como era trabalhar
com pacientes não medicados, podem dar um testemunho pessoal dessa
diferença de resultados.
“Na era da não medicação, meus pacientes esquizofrênicos passavam
muito melhor que os da era mais moderna”, disse Ann Silver, uma psiqui-
atra de Maryland, durante uma entrevista. “Eles escolhiam e seguiam car-
reiras, e se casavam. Uma paciente que tinha sido internada como a pes-
soa com o quadro mais grave no setor de adolescentes [do seu hospital]
está criando três filhos e trabalha como enfermeira diplomada. No período
mais recente [com medicação], nenhum deles seguiu carreira, embora al-
guns tenham tido vários empregos, e nenhum se casou ou sequer teve re-
lacionamentos duradouros.”
Também podemos ver de que modo essa cronicidade induzida pelos
medicamentos contribuiu para a elevação do número de doentes mentais
inválidos. Em 1955, havia 267.000 pessoas com esquizofrenia em manicô-
mios estaduais e municipais, ou um em cada 617 norte-americanos. Atu-
almente, estima-se que haja 2,4 milhões de pessoas recebendo pensões da
SSI ou do SSDI por sofrerem de esquizofrenia (ou de algum outro
transtorno psicótico), o que corresponde a uma taxa de invalidez de um
em cada 125 norte-americanos.59 Desde a chegada do Thorazine, a taxa
de invalidez por doenças psicóticas quadruplicou na nossa sociedade.

Cathy, George e Kate

No segundo capítulo, encontramos duas pessoas - Cathy Levin e Ge-


orge Badillo - que tinham sido diagnosticadas com um transtorno esquizo-
afetivo (Cathy) ou com esquizofrenia (George). Agora podemos ver de que
maneira suas histórias se enquadram na literatura sobre resultados.
Como eu disse, Cathy Levin é uma das pessoas que melhor responde-
ram a antipsicóticos atípicos dentre as que já conheci. Ela poderia ser ga-
rota-propaganda da empresa farmacêutica Janssen para promover o Ris-
perdal. Apesar disso, continua a receber pensão do SSDI e vê os medica-
mentos como uma barreira a seu trabalho em horário integral. Agora, vol-
temos ao momento em que ela teve seu primeiro episódio psicótico, na Fa-
culdade Earlham. Como teria sido sua vida se não a houvessem medicado
¡mediatamente com neurolépticos e se, em vez disso, ela tivesse recebido
algum tipo de tratamento psicossocial? Ou se, em algum ponto ainda ini-
cial, tivesse sido estimulada a retirar aos poucos a medicação antipsicó-
tica? Teria ela passado os 12 anos seguintes entrando e saindo de hospi-
tais? Teria acabado com uma pensão do SSDI? Embora não possamos re-
almente responder a essas perguntas, podemos dizer que o tratamento
medicamentoso aumentou a probabilidade de ela sofrer aquele longo perí-
odo de hospitalizações constantes, e reduziu a probabilidade de ela se re-
cuperar plenamente do surto inicial. Como disse Cathy, “O que eu lembro,
quando olho para trás, é que, no começo, eu não estava realmente tão do-
ente assim. Na verdade, só estava confusa".
Enquanto isso, a história de George Badillo ilustra como o abandono
dos remédios pode ser a chave da recuperação, ao menos para algumas
pessoas diagnosticadas com esquizofrenia. A jornada de George para longe
dos pavilhões dos fundos de um hospital estadual teve início quando ele
começou a reter a medicação antipsicótica na língua, sem engoli-la. Hoje
ele está são, tem um gosto visível pela vida e fica radiante por ser um bom
pai para o filho, e por ter sua filha, Madelyne, de volta ao seu convívio. E
um exemplo das muitas pessoas recuperadas que apareceram nos estu-
dos de longo prazo conduzidos por Harding e Harrow- ex-pacientes que
pararam de tomar antipsicóticos e passam bem.
Vejamos uma terceira história, esta de uma jovem que chamarei de
Kate, porque ela não quis que seu nome verdadeiro fosse usado. Diagnos-
ticada com esquizofrenia aos 19 anos, ela se deu bem com os antipsicóti-
cos. No estudo de Harrow, teria ficado entre os 5% que se recuperaram to-
mando medicamentos. Mas Kate também sabe como é ficar sem remédios
e passar bem e, em sua perspectiva, este último tipo de recuperação é to-
talmente diferente do primeiro.
Antes de conhecê-la pessoalmente, eu soube das linhas gerais de sua
história por uma conversa telefônica; soube que eia havia passado dez
anos tomando antipsicóticos e, dado que esses remédios podem cobrar um
enorme tributo físico, fiquei meio pasmo com a aparência de Kate, quando
ela chegou ao meu escritório. Para falar sem rodeios, as palavras “linda de
morrer” me vieram à cabeça. Com seus cabelos pretos, ela usava jeans,
um top rosado e maquiagem leve, e se apresentou de modo caloroso e con-
fiante. Logo depois, mostrou-me uma foto do “antes”, tirada fazia três
anos. “Eu pesava bem mais de noventa quilos”, disse. “Era muito lenta, ti-
nha o rosto caído. Fumava muito. (...) Aquilo inibia muito qualquer possi-
bilidade de eu ter uma imagem profissional.”
O relato de Kate sobre sua infância é uma história batida. Os pais se
divorciaram quando ela contava 8 anos, e ela se lembra de ter sido social-
mente desajeitada e terrivelmente tímida. “Eu só tinha habilidade social
suficiente para interagir com meus familiares”, disse, e essa inabilidade a
acompanhou no curso universitário. Quando caloura na Universidade de
Níassachusetts em Dartmouth, ela teve dificuldade para fazer amizades e
se sentia tão isolada que chorava constantemente. Logo no começo do pri-
meiro ano, abandonou o curso e foi morar com a mãe em Boston, na espe-
rança de encontrar “um propósito na vida”. Em vez disso, “meu senso de
realidade começou a se desintegrar”, recordou. “Comecei a me preocupar
com Deus contra o Diabo e a sentir medo de tudo. Perguntei a uma amiga
da mamãe se a comida estava envenenada. Agia de um modo muito bi-
zarro e não conseguia compreender as conversas à minha volta. Dizia es-
sas coisas estranhíssimas, e falava muito devagar, com muita deliberação,
e de um jeito esquisito.”
Quando ela começou a dizer que estava vendo lobos no quarto, a mãe
a internou num hospital. Apesar de ter se estabilizado bastante com a me-
dicação antipsicótica, Kate detestava a sensação que os remédios lhe da-
vam c, não muito depois de receber alta, largou tudo abruptamente, o que
desencadeou um exuberante surto psicótico. Durante sua segunda inter-
nação, em fevereiro de 1997, ela foi diagnosticada como esquizofrênica e,
dessa vez, aceitou o fato de que teria de tomar antipsicóticos pelo resto da
vida. Acabou encontrando uma combinação de dois remédios que funcio-
nou bem e começou a reconstruir sua vida. Em 2001, formou-se na Uni-
versidade de Massachusetts em Boston e, um ano depois, casou-se com
um homem que havia conhecido num programa de tratamento ambulato-
rial. “Nós dois tínhamos uma incapacidade psiquiátrica e ambos fumáva-
mos demais”, disse Kate. “Fazíamos terapia diariamente. Era isso que tí-
nhamos em comum.”
Kate arranjou emprego numa instituição residencial para deficientes
mentais e, embora às vezes tivesse dificuldade em ficar acordada - efeito
colateral dos medicamentos -, passou a ganhar o bastante para não mais
ser pensionista do SSDI. Para uma pessoa com esquizofrenia, vinha se
saindo extremamente bem. No entanto, não estava feliz. Havia engordado
quase 45 quilos e era comum o marido zombar cruelmente dela, cha-
mando-a de “feia” e de “bunda gorda”. Kate também se irritava com a ma-
neira de todos a tratarem no sistema de saúde. “A recuperação no modelo
médico exige que a pessoa seja obediente como uma criança”, explicou. “A
gente obedece aos médicos, é submissa com o terapeuta e toma os remé-
dios. Não se investe nenhum esforço em maiores interesses intelectuais.”
Em 2005, ela se aproximou mais de um velho amigo, vinte anos mais
velho e pertencente a uma comunidade religiosa fundamentalista. Kate co-
meçou a frequentar as reuniões deles e, por sua vez, eles começaram a
orientá-la a se vestir, a falar e a se apresentar ao mundo de maneira mais
formal. “Eles me diziam: ‘Você representa Deus, e não há de querer enver-
gonhar Deus’”, contou Kate. Seu amigo mais velho também insistiu em
que ela parasse de pensar em si como esquizofrênica. “Ele me fazia pensar
de forma não convencional e pensar de maneiras que antes eu jamais
aceitaria. Eu sempre queria defender meu terapeuta, defender meu psiqui-
atra, defender os remédios e defender minha doença. Ele me pedia para
abrir mão da minha identidade de pessoa mentalmente incapaz.”
Pouco depois, sua antiga vida desmoronou por completo. Ela descobriu
que o marido vinha dormindo com uma de suas amigas e, depois que se
mudou do apartamento do casal, teve de passar algum tempo dormindo
em seu carro. Embora, a princípio, durante essa fase de desespero, ela se
agarrasse aos medicamentos, a visão não esquizofrênica de si mesma tam-
bém a atraía e, em fevereiro de 2006, ela resolveu dar o salto: pararia de
fumar, pararia de tomar café e faria o “desmame”1 da medicação

™ Embora, rigorosamente, seja uma expressão inadequada, porque o desmame propriamente dito é um
psiquiátrica. “Aí fiquei sem remédios, sem nicotina e sem café, e meu
corpo foi entrando em choque. Eu ficava doente com aquilo tudo e chegava
quase a vibrar, porque precisava dos meus cigarros, dos meus remédios.”
Essa decisão também a levou a se desentender com quase todas as
pessoas de sua vida. “Parei de falar com minha família, porque não queria
voltar àquela identidade [de pessoa inválida]. Minha mente era muito deli-
cada, por isso eu tive que me desligar do que conhecia e me desligar do
meu terapeuta.” Em pouco tempo, Kate começou a emagrecer tanto que os
amigos pensaram que devia estar doente. Enquanto lutava para se manter
sã, ela se agarrou à orientação do seu grupo religioso, falando com os ou-
tros de maneira muito formal, e essa conduta convenceu sua mãe de que
ela estava sofrendo uma recaída. “Estranho não é a palavra, meu bem”,
era o que lhe dizia sua mãe, e até Kate temia, no íntimo, estar voltando a
ter um surto psicótico. “Mas eu tinha aquela esperança, aquela fé, e por
isso disse a mim mesma: ‘Vou andar nesta corda bamba para atravessar
esse cânion medonho e, quando chegar ao outro lado, espero que haja um
cume em que eu possa ficar de pé’. Eu tinha de me concentrar em seguir
em frente, para onde quer que aquilo me levasse, porque, se caísse da
corda bamba, voltaria para o hospital.”
Foi nesse momento perigoso, quando parecia prestes a desabar, que
Kate concordou em se encontrar com a mãe para jantar. “Achei que ela es-
tava tendo um surto”, disse a mãe. “Ela se sentou toda certinha, com um
ar disperso e desorganizado. O corpo estava rígido. Vi muitos dos mesmos
sintomas de antes. Os olhos estavam dilatados e ela parecia paranoide.”
Ao saírem do restaurante, a mãe começou a conduzir o carro na direção
do hospital, mas mudou de ideia no último segundo. Kate “não estava tão
maluca” que precisasse ser internada. “Fui para casa e chorei”, recordou a
mãe. “Não sabia o que estava acontecendo.”
Pelos cálculos da mãe, Kate levou seis meses para atravessar esse pro-
cesso de desabituação. Mas emergiu do outro lado transformada. “Vi que o
rosto dela estava cheio de sida e que ela estava mais ligada ao corpo”, con-
tou a mãe. “Sentia-se à vontade no próprio corpo e mais em paz do que

processo natural de desapego do seio materno, de autonomia, de perda da dependência infantil em rela-
ção à mãe, ao passo que com drogas esse processo não ê natural, porque a droga foi artificialmente intro-
duzida na relação do seu usuário com o mundo, ó usual o emprego do termo para sc referir ao processo de
desintoxicação, interrupção, abandono de alguma substância psicoativa. Por isso, ao longo do livro a pala-
vra withdnmml, usada em expressões como drug withdraual, uilhdraual of drugs etc., foi traduzida como
desmame e grafada entre aspas. (N.R.T)
nunca com ela mesma. Estava fisicamente saudável. Eu não sabia que
esse tipo de recuperação era possível.” Em 2007, Kate casou-se com o ho-
mem mais velho que a tinha incentivado a seguir esse caminho; também
logrou êxito em seu trabalho de gerente de uma instituição para pessoas
com problemas psiquiátricos, e a empresa reconheceu seu desempenho
“extraordinário” em 2008 - reconhecimento que veio acompanhado por um
prêmio em dinheiro.
Às vezes, Kate ainda luta. A instituição que ela dirige abriga vários ho-
mens com desvios sexuais - “Já tive gente dizendo que ia atear fogo em
mim, ou que ia urinar na minha boca”, disse -, e suas reações emocionais
a essa tensão já não são embotadas pelos medicamentos. “Faz dois anos
que não tomo remédios e, às vezes, é muito, muito difícil lidar com as mi-
nhas emoções. Tendo a ter uns acessos de raiva. Será que os remédios co-
briram minha mente com uma nuvem tão grande, me deixaram tão coma-
tosa que nunca desenvolvi habilidades para lidar com minhas emoções?
Hoje eu me descubro ficando com mais raiva do que nunca e me sentindo
mais feliz do que nunca. O círculo dos meus afetos está aumentando. E,
sim, é fácil lidar com isso na hora em que a gente está feliz, mas como li-
dar com o afeto quando a gente está furiosa? Tenho me empenhado em
não me deixar ficar defensiva demais e procurado levar as coisas com
calma.”
A história de Kate é de natureza idiossincrática, é claro. Seu êxito ao
deixar os remédios não significa que todos possam largá-los com sucesso.
Kate é uma pessoa admirável - incrivelmente voluntariosa e incrivelmente
corajosa. Com efeito, o que a literatura científica revela é que, depois que a
pessoa começa a tomar antipsicóticos, pode ser muito difícil e arriscado
suspender essa medicação, e que muitas pessoas sofrem recaídas agudas.
Mas a literatura também revela que há pessoas capazes de abandonar
com sucesso os medicamentos, e que é esse grupo que se sai melhor a
longo prazo. Kate conseguiu entrar nesse grupo.
“Aquele dia de 2005 em que eu resolvi melhorar foi o divisor de águas
na minha vida”, diz ela. “Eu era uma pessoa completamente diferente. Era
muito gorda, fumava o tempo todo e era emocionalmente apática. Hoje,
quando topo com pessoas que me conheceram naquela época, elas nem
me reconhecem. Até minha mãe diz: ‘Você não é a mesma’.”
7.
A ARMADILHA DAS BENZODIAZEPINAS

“O que panda muito bom nas benzodiazepinas, quando eu


brincara com elas, era que realmente parecíamos dispor de
uma droga que não tinha muitos problemas. Em retrospec-
tiva, porém, vê-se que era como por uma chose de grifa den-
tro de um relógio de pulso e esperar que ela não causasse
estragos. - Alec Jenner, médico britânico que conduziu pri-
meiros ensaio com uma benzodiazepina no Reino Unido,
2003
Os fãs de Mad Men, seriado da televisão a cabo que fala da vida de
Don Draper e outros publicitários da avenida Madison no começo da dé-
cada de 1960, talvez se recordem de urna cena do último episódio da se-
gunda temporada em que urna amiga da mulher de Draper, Betty, diz a
ela: “Você quer um Miltown? E a única coisa que tem me impedido de roer
as unhas até o sabugo”. Foi um toque interessante, historicamente cor-
reto, e, se os criadores de Mad Men mantiverem essa exatidão na reprodu-
ção de época, na terceira temporada e nas seguintes, que contarão a histó-
ria dos homens da publicidade e suas famílias nos anos turbulentos de
meados da década de 1960, os telespectadores poderão esperar que Betty
Draper e suas amigas vasculhem suas bolsas e façam referencias dissimu-
ladas ao “ajudantezinho da mamãe”. A companhia farmacêutica Ho-
ffmann-La Roche introduziu o Valium no mercado em 1963, anunciando-o
particularmente para as mulheres, e, de 1968 a 1981, ele foi o remédio
mais vendido no mundo ocidental. No entanto, enquanto os norte-ameri-
canos devoravam esse comprimido destinado a mantê-los tranquilos,
aconteceu uma coisa muito estranha: disparou o número de pessoas ad-
mitidas em hospícios, prontos-socorros psiquiátricos e clínicas para paci-
entes externos com problemas mentais.
A literatura científica sabe explicar por que essas duas coisas se liga-
ram.

A Ansiedade Antes do Miltown

Embora a ansiedade seja um componente habitual do psiquismo hu-


mano, da nossa mente moldada pela evolução para se preocupar e se afli-
gir, há pessoas mais ansiosas que outras, e a ideia de que essa angústia
afetiva é uma doença diagnosticável remonta a uni neurologista nova-ior-
quino, George Beard. Em 1869, ele anunciou que o medo, a preocupação,
a fadiga e a insônia resultavam do “cansaço dos nervos”, uma doença fí-
sica à qual deu o nome de “neurastenia’’. Esse diagnóstico revelou-se po-
pular, a doença foi vista como um subproduto da revolução industrial que
varria os Estados Unidos na esteira da Guerra da Secessão, e, natural-
mente, o mercado criou uma variedade de terapias que seriam capazes de
restaurar os nervos “cansados” das pessoas. Os fabricantes de medica-
mentos registrados, do tipo vendido sem receita, vendiam “fortificantes
para os nervos" com urna pitada de opiáceos, cocaína e álcool. Os neurolo-
gistas alardeavam os poderes revigorantes da eletricidade, o que levou os
neurasténicos a comprarem cintos, suspensórios e massageadores portá-
teis, todos elétricos. Os mais ricos podiam internar-se em spas que ofere-
ciam “curas de repouso”, nas quais os nervos dos pacientes eram restau-
rados pelo toque terapêutico de banhos calmantes, massagens e diversas
engenhocas elétricas.
Sigmund Freud proporcionou à psiquiatria uma lógica a para o trata-
mento desse grupo de pacientes e, ao fazê-lo, permitiu que ela saísse do
manicômio e entrasse no consultório. Nascido em 1856, Freud pendurou
sua tabuleta de neurologista num consultório em Viena em 1886. O que
significou que muitos de seus pacientes eram mulheres que sofriam de
neurastenia (a doença de Brard também se popularizara na Europa). Após
horas de conversas com seus clientes, Freud convenceu-se de que os sen-
timentos de pavor e preocupação que eles apresentavam eram de origem
psicológica, e não resultantes de nervos cansados. Em 1895, ele escreveu
sobre a “neurose de angústia” nas mulheres, teorizando que ela brotava,
em grande parte, do recalcamento inconsciente de desejos e fantasias se-
xuais. As mulheres que sofriam desses conflitos psicológicos podiam en-
contrar alívio p>r meio da psicanálise, na qual a paciente deitada no divã
era conduzida pelo médico a lazer uma exploração de seu inconsciente.
Na época, a psiquiatria era a profissão de quem tratava de pacientes
loucos em hospícios ou manicômios. As pessoas com os nervos cansados
procuravam neurologistas ou clínicos gerais em busca de ajuda. Mas, se a
angústia surgia de um distúrbio psicológico no cérebro, e não de um en-
fraquecimento dos nervos, fazia sentido que os psiquiatras cuidassem des-
ses pacientes, e, depois que Freud visitou os Estados Unidos, cm 1909,
começaram a se formar sociedades psicanalíticas, sendo Nova York o cen-
tro dessa nova terapia. No âmbito nacional, apenas 3% dos psiquiatras ti-
nham consultórios particulares em 1909; trinta anos depois, 38% deles
atendiam pacientes em ambientes privados. Além disso, a teoria freudiana
transformou quase todos cm candidatos ao divã do psiquiatra. “Os neuró-
ticos”, explicou Freud durante sua visita de 1909, “adoecem dos mesmos
complexos com que lutam as pessoas sadias.”
Graças às teorias freudianas, os transtornos psiquiátricos passaram a
ser divididos em duas categorias básicas: psicóticos e neuróticos. Em 1952,
a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria publicou a primeira edição de
seu Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais, o qual
descreveu nos seguintes termos o paciente neurótico:
A principal característica dos distúrbios (neuróticos) é a “ansiedade", que
pode ser diretamente sentida e expressada, ou controlada de forma in-
consciente e automática pela utilização de vários mecanismos de defesa
psicológicos. (...) Em contraste com os psicóticos, os pacientes com distúr-
bios psiconeuróticos não exibem uma grave distorção ou falsificação da re-
alidade externa (delírios, alucinações, ilusões) e não apresentam uma de-
sorganização maciça da personalidade.
Era essa a visão da ansiedade quando o Miltown chegou ao mercado.
As pessoas ansiosas tinham os pós firmemente plantados na realidade, e
raras vezes a ansiedade constituía uma doença que exigisse hospitaliza-
ção. Em 1955, havia apenas 5.415 “psiconeuróticos" em hospitais psiquiá-
tricos estaduais? Como confessou o psiquiatra Leo Hollister após a intro-
dução das benzodiazepinas, essas drogas “(destinavam)-se a tratar do que
muitos veriam como ‘distúrbios leves”? Esses medicamentos eram um bál-
samo para os “feridos ambulantes”, e por isso, ao examinarmos a litera-
tura sobre resultados referentes às benzodiazepinas, descremos esperar
que esse grupo de pacientes funcione bem. Afinal, assim era o futuro pro-
metido por Frank Berger, o inventor do Miltown: “Os tranquilizantes, ao
atenuarem a influência disruptiva da ansiedade na mente, abrem caminho
para um uso melhor e mais coordenado dos dons existentes”, afirmou.

Os Tranquilizantes Leves Caem em Desgraça

Quando surgiu o Miltown, divulgaram-se alguns estudos em publica-


ções médicas que falavam - como mais tarde recordaram dois pesquisado-
res da faculdade de Medicina da Universidade Harvard, David Greenblatt e
Richard Shadcr - de sua "eficácia quase mágica na redução da ansiedade”.
Todavia, como muitas vezes aconteceu na psiquiatria, havendo aparecido
um sucessor no mercado (o Librium, em 1960), a eficácia do antigo medi-
camento começou subitamente a se reduzir. Em seu exame da literatura
sobre o Miltown em 1974, Greenblatt e Shader constataram que, em 26
ensaios bem controlados, houve apenas cinco em que o Miltown “foi mais
eficaz do que um placebo” como tratamento da ansiedade. E não havia ne-
nhum indício de que ele fosse melhor que um barbitúrico para acalmar os
nervos. A popularidade inicial desse medicamento, escreveram eles, “ilus-
tra como outros fatores que não a comprovação científica podem determi-
nar os padrões de uso de medicamentos pelos médicos”.
Mas a razão de o Miltown ter caído em desgraça perante o público veio
de um problema diferente da falta de eficácia científica. Muitos dos que ex-
perimentaram esse remédio constataram que adoeciam ao suspendê-lo e,
cm 1964, Carl Essig, um cientista do Centro de Pesquisas sobre Vícios,
cm Lexington, no estado de Kentucky, informou que ele “podia induzir à
dependência física no ser humano”.’' A revista Science News apressou-se a
anunciar que a pílula da felicidade podia ser “viciante” e, cm 30 de abril de
1965, a Time praticamente sepultou o medicamento. Havia “uma decep-
ção crescente com o Miltown por parte de muitos médicos", escreveu a re-
vista. “Alguns duvidam que ele tenha mais efeito tranquilizante do que um
placebo feito de açúcar. (...) Alguns médicos relataram que, em certos paci-
entes, o Miltown pode causar um verdadeiro vício, seguido por sintomas
de síndrome de abstinência semelhantes aos dos usuários de narcóticos
em processo de ‘se livrar do hábito”.
Publicamente, a maioria das benzodiazepinas escapou desse opróbrio
durante a década de I960. Quando introduziu o Librium no mercado, cm
I960, a Hoffmann- La Roche afirmou que seu medicamento proporcionava
um “alívio puro da ansiedade” e, ao contrário do Miltown e dos barbitúri-
cos, era “seguro, inofensivo e não viciante". Essa crença vingou e a Admi-
nistração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA) pouco fez para
questioná-la, muito embora começasse desde muito cedo a receber cartas
de pessoas que vinham experimentando sintomas estranhos e muito aditi-
vos, ao tentarem deixar de tomar benzodiazepínicos. Elas falavam de uma
insônia terrível, de ansiedade mais aguda do que haviam sentido até en-
tão, e de uma profusão de sintomas físicos - tremores, dores de cabeça e
nervos com "uma irritação de enlouquecer". Como escreveu um homem à
FDA, “cu não dormia c, de modo geral, sentia-me péssimo. Às vezes,
achava que ia morrer, e noutras, queria ler morrido". Apesar de lei promo-
vido uma audiência sobre o assunto, a FDA não impôs às benzodiazepinas
nenhum controle legal semelhante ao que havia instaurado cm relação às
anfetaminas e aos barbitúricos, e com isso a crença popular em que esses
medicamentos eram relativamente não viciantes e inofensivos sobreviveu
até 1975, (piando o Ministério da Justiça dos Estados fluidos exigiu que
eles fossem classificados como substâncias da categoria IV, nos termos da
Lei de Substâncias Controladas. Essa designação limitava o número de ve-
zes que o paciente podia voltar a comprar o medicamento sem urna nova
receita, e revelou ao público que o governo havia concluído que as benzo-
diazepínas eram viciantes, de fato.
“Perigo à vista! Valium - o comprimido que você ama - pode voltar-se
contra você”, gritou uma manchete da revista Vogue. Os benzodiazepíni-
cos, explicou a revista, podiam levar a um “vício muito pior que o da hero-
ína”.12 Estava iniciada a reação contra o Valium, particularmente nas pá-
ginas das revistas femininas, e a revista Ms. logo ofereceu ao público leitor
relatos em primeira mão dos horrores da privação do medicamento. “Meus
sintomas de abstinência são uma dose dupla da ansiedade, da irritabili-
dade e da insônia que eu sentia", afirmou uma usuária. Outra confessou:
“Nem sei como descrever a angústia física e mental que acompanhou mi-
nha suspensão do remédio”.,’! A pílula da felicidade da década de 1950 es-
tava se transformando na pílula da infelicidade da década de 1970, com o
New York Times relatando, em 1976, que “alguns críticos chegam a dizer
que [o Valium] tem causado mais estragos do que benefícios, ou chegam
até a negar que ele faça algum bem para a grande maioria dos pacientes.
Alguns, alarmados, gritam que ele está longe de ser tão seguro quanto se
proclama, que pode viciar de forma horrenda e perigosa, e que pode ser a
causa direta da morte dos viciados”. Afirmou-se que dois milhões de norte-
americanos estavam viciados nas benzodiazepinas - quatro vezes o nú-
mero de viciados cm heroína no país e um dos usuários do comprimido
veio a se revelar a ex-primeira dama Betty Ford, que se internou num cen-
tro de reabilitação do consumo de álcool e drogas em 1978. O abuso de
tranquilizantes, disse seu médico, Joseph Pursch, era "o problema nú-
mero um de saúde da nação”.
Nos anos seguintes, as benzodiazepinas caíram oficialmente em des-
graça. Em 1979, o senador Edvvard Kennedy conduziu uma audiência da
Subcomissão de Saúde do Senado sobre os perigos das benzodiazepinas,
as quais afirmou terem “produzido um pesadelo de dependência e vício,
ambos de tratamento e recuperação muito difíceis”."’ Depois de reexami-
nar a literatura científica, o Gabinete da Casa Branca sobre a Política Na-
cional de Controle de Drogas concluiu que os efeitos soníferos desses re-
médios não duravam mais que duas semanas, e essa constatação logo foi
respaldada pela Comissão de Revisão de Medicamentos do Reino Unido,
que constatou que os efeitos antiansiedade dos benzodiazepínicos não iam
além de quatro meses. Nessas condições, a comissão recomendou que “os
pacientes que recebem terapia benzodiazepínica sejam cuidadosamente
selecionados e monitorados, e que as receitas se restrinjam ao uso por pe-
ríodos curtos”.1' Como questionou um editorial do Brilish Medical Jour-
nal, “Agora que se mostrou que as benzodiazepinas causam dependência,
não deveria seu uso ser controlado mais de perto, ou até banido?”.

O ABC das Benzodiazepinas

Esta história de como as benzodiazepinas caíram em desgraça poderia


parecer antiga e ultrapassada - uma nota de rodapé em nossa tentativa de
compreender por que houve tamanho aumento do número de pessoas in-
capacitadas por doenças mentais nos Estados Unidos, nos últimos cin-
quenta anos -, não fosse o fato de que esses medicamentos nunca desapa-
receram, na verdade. Embora o número de receitas de benzodiazepinas te-
nha caído, depois de elas serem classificadas como drogas da categoria IV,
de 103 milhões em 1975 para 71 milhões em 1980, no ano seguinte a
companhia farmacêutica Upjohn introduziu o Xanax no mercado, e isso
ajudou a estabilizar as vendas de benzodiazepínicos. Os psiquiatras conti-
nuaram a prescrevê-los para muitos de seus pacientes nervosos e, em
2002, Stephen Stahl, um famoso psicofarmacologista da Universidade da
Califórnia em San Diego, confessou o segredinho sujo da psiquiatria num
artigo intitulado “Não pergunte nem conte, mas as benzodiazepinas ainda
são o principal tratamento para o transtorno da ansiedade”. Desde então,
a prescrição desses remédios nos Estados Unidos aumentou, passando de
69 milhões de receitas em 2002 para 83 milhões em 2007, o que não fica
muito abaixo do número alcançado no auge da febre do Valium, em 1973.
Por isso, visto que as benzodiazepinas têm sido largamente usadas há
cinquenta anos, precisamos ver o que a ciência tem a nos dizer sobre es-
sas drogas, e se o uso delas estaria contribuindo de algum modo para o
aumento do número de inválidos por doença mental nos Estados Unidos.

Eficácia a curto prazo


Como pode atestar qualquer um que tenha tomado uma benzodiaze-
pina, ela age com rapidez e, se a pessoa não se houver habituado à droga,
esta entorpecerá seu sofrimento emocional. Desse modo, as benzodiazepi-
nas têm uma evidente utilidade para ajudar pessoas a atravessar crises si-
tuacionais. A escritora Andrea Tone, em seu livro The Age of Anxiety [A era
da ansiedade], relata como uma benzodiazepina lhe permitiu entrar num
avião, depois de ela ter desenvolvido um misterioso medo de voar. Mas,
como revelaram os ensaios clínicos, essa eficácia imediata começa a dimi-
nuir depressa e praticamente desaparece ao cabo de quatro a seis sema-
nas.
Em 1978, Kenneth Solomon, da Faculdade de Medicina de Albany, no
estado de Nova York, examinou 78 ensaios duplo-cego de benzodiazepinas
e determinou que os medicamentos só se revelaram significativamente me-
lhores do que um placebo em 48 deles. Quando muito, seria possível dizer
que os resultados coletivos “sugerem uma eficácia terapêutica”, escre-
veu.22 Cinco anos depois, Arthur Shapiro. da Faculdade de Medicina Mt.
Sinai, na cidade de Nova York, consubstanciou um pouco mais esse qua-
dro de eficácia, relatando que, num ensaio com 224 pacientes ansiosos, o
Valium revelou-se superior a um placebo na primeira semana, porém, em
seguida, essa vantagem começou a se reduzir. Com base na autoavaliação
dos sintomas feita pelos pacientes, não havia, ao término da segunda se-
mana, nenhuma diferença entre a droga e um placebo, e, ao cabo de seis
semanas, o grupo que tomava o placebo saiu-se ligeiramente melhor. “E
improvável, na nossa opinião, que estudos cuidadosamente controlados
demonstrem, de modo consistente, efeitos terapêuticos das benzodiazepi-
nas contra a ansiedade”, escreveu Shapiro.
Esse quadro da eficácia das benzodiazepinas a curto prazo não sofreu
mudanças marcantes desde então. Essas drogas mostram clara eficácia
na primeira semana e, em seguida, sua vantagem em relação a um pla-
cebo diminui. Todavia, como assinalaram investigadores britânicos em
1991, esse breve período de eficácia se dá a um custo bastante alto. “O
funcionamento psicomotor e o funcionamento cognitivo podem ser preju-
dicados, e a amnésia é um efeito comum de todas as benzodiazepinas”,
disseram. Em 2007, pesquisadores da Espanha averiguaram se esses efei-
tos adversos anulavam o pequeno “benefício da eficácia" proporcionado
pelos medicamentos, e constataram que as taxas de abandono nos en-
saios clínicos - medida comumente usada para avaliar a “eficiência" global
de um medicamento - eram idênticas nos pacientes que recebiam a benzo-
diazepina e o placebo. “Esse exame sistemático não encontrou provas con-
vincentes da eficácia a curto prazo das benzodiazepinas no tratamento do
transtorno generalizado de ansiedade”, afirmaram.
Malcolm Lader, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria de Londres que é
um dos maiores especialistas mundiais em benzodiazepinas, explicou
numa entrevista a importância desse resultado: “A eficácia é uma medida
do que se dá na realidade da clínica”.
A biologia do ‘"desmame” das benzodiazepinas
Em 1977. alguns pesquisadores descobriram que as benzodiazepinas
afetam um neurotransmissor cerebral conhecido como GABA. Ao contrário
da dopamina e da serotonina, que transmitem uma mensagem “excitató-
ria” que impele o neurônio a disparar, o GABA (ácido gama-aminobutírico)
inibe a atividade neuronal. O neurônio que recebe a mensagem do GABA
dispara cm ritmo mais lento, ou para de disparar por um período. A maio-
ria dos neurônios cerebrais tem receptores GABA, o que significa que esse
neurotransmissor atua como o freio da atividade neuronal no cérebro. As
benzodiazepinas ligam-se aos receptores GABA e, com isso, ampliam os
efeitos inibitórios desse ácido. Apertam mais fundo o freio do GABA, por
assim dizer, e o resultado é que isso reprime a atividade do sistema ner-
voso central.
Em resposta, o cérebro reduz sua produção de GABA e a densidade
dos respectivos receptores. Tenta “restabelecer a transmissão normal do
GABA”, como explicaram cientistas britânicos em 1982. Todavia, em con-
sequência dessas mudanças adaptativas, o sistema de frenagem do cére-
bro passa a funcionar num estado fisiologicamente prejudicado. Seu fluido
de freio (a produção de GABA) fica baixo e seus pedais de freio (os recepto-
res GABA) se desgastam. Como resultado, quando a benzodiazepina é reti-
rada, o cérebro já não consegue inibir de forma adequada a atividade neu-
ronal, e seus neurônios podem começar a disparar num ritmo atabalho-
ado. Essa hiperatividade, concluiu Heather Ashton, talvez “responda por
muitos efeitos da abstinência”. A ansiedade, a insônia, a sensação de inse-
tos rastejando na pele, a paranoia, a desrealização, as convulsões, todos
esses sintomas incômodos podem surgir da hiperatividade neuronal.
Quando a pessoa faz o “desmame” gradativo de uma benzodiazepina, o
sistema GABA pode voltar lentamente ao normal, com o que os sintomas
da abstinência se tornam brandos. Entretanto, o fato de alguns usuários
de longo prazo sofrerem com “sintomas retardados” se deve, provavel-
mente, “à impossibilidade dos receptores [GABA] de retornar a seu estado
normal”, disse Ashton. O uso de benzodiazepinas a longo prazo, explicou
ela, pode “não apenas dar origem a mudanças funcionais de reversão
lenta no sistema nervoso central, mas também acarretar, ocasionalmente,
danos neuronais estruturais”. Em tais casos, o freio GABA nunca mais
volta a funcionar como deveria.
Efeitos a longo prazo
Depois que pesquisadores dos Estados Unidos e do Reino Unido deter-
minaram que as benzodiazepinas não proporcionavam nenhum alívio du-
radouro da ansiedade, surgiu uma indagação óbvia: será que essas dro-
gas, quando continuamente tomadas, pioram o próprio sintoma que deve-
riam tratar? Em 1991, Karl Rickels, da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade da Pensilvânia, escreveu sobre um grupo de pacientes ansiosos que
haviam tentado abandonar as benzodiazepinas, três anos antes, e consta-
tou que as pessoas que tinham conseguido suspender o uso dos medica-
mentos estavam passando “significativamente” melhor do que os pacientes
que não conseguiram fazê-lo. Passados poucos anos, ele apresentou um
novo estudo. Quando usuários de longa data descontinuavam as benzodi-
azepinas, “ficavam mais atentos, mais relaxados e menos ansiosos, e essa
mudança era acompanhada por uma melhora nas funções psicomoto-
ras”.3' Os que mantinham o uso das benzodiazepinas eram mais estressa-
dos em termos afetivos do que as pessoas que as abandonavam.
Outros autores relataram resultados similares a longo prazo. Investiga-
dores canadenses descobriram que o uso de benzodiazepinas levava a
uma quadruplicação dos sintomas depressivos.38 Na Inglaterra, Ashton
observou que quem permanecia no tratamento com essas substâncias
tendia a ficar mais doente: “Muitos pacientes constatam que os sintomas
de ansiedade aumentam aos poucos ao longo dos anos, apesar do uso
contínuo da benzodiazepina, e podem surgir pela primeira vez ataques de
pânico e agorafobia.” Esses estudos e observações apontaram para um
curso muito problemático a longo prazo e, em 2007, pesquisadores france-
ses fizeram um levantamento com 4.425 usuários de benzodiazepina de
longa data, constatando que 75% estavam “acentuada a extremamente
doentes (...) a grande maioria dos pacientes tinha uma sintomatologia sig-
nificativa, em particular grandes episódios depressivos e transtorno gene-
ralizado de ansiedade, não raro de gravidade e incapacitação pronuncia-
das”.
Além de causar estresse afetivo, o uso de benzodiazepinas a longo
prazo também leva a prejuízos cognitivos. Os pesquisadores reconheceram
desde cedo que havia problemas de memória associados ao uso a curto
prazo, e isso levou David Knott, um médico da Universidade do Tennessee,
a emitir um alerta em 1976: “Estou inteiramente convencido de que o Va-
lium, o Librium e outros medicamentos dessa categoria causam danos ao
cérebro. Vi lesões do córtex cerebral que creio serem devidas ao uso des-
sas substâncias, e começo a me indagar se o dano é permanente”. Nos 25
anos seguintes, relatos de prejuízos cognitivos em usuários de benzodiaze-
pina por longos períodos apareceram com regularidade em publicações ci-
entíficas. Esses estudos falavam de pessoas que vinham tendo dificuldade
para se concentrar, recordar coisas. aprender coisas novas e solucionar
problemas. No entanto, os pacientes "não [tinham] consciência da redução
de sua capacidade, escreveu Lader, o que era prova de que sua autoper-
cepção também estava prejudicada. Em 2004. um grupo de cientistas
australianos, depois de examinar a literatura pertinente, concluiu que “os
usuários de benzodiazepina a longo prazo mostraram-se consistentemente
mais prejudicados que os sujeitos de controle, em todas as categorias cog-
nitivas". sendo esses déficits de magnitude "moderada a grande". Os estu-
dos mostraram que. "quanto maiores a ingestão, a dose e o período de uso
[de uma benzodiazepina]. maior o risco de comprometimento".
Maior ansiedade. maior depressão e deterioração cognitiva - todos es-
ses fatores contribuem para um declínio da capacidade de funcionamento
da pessoa em sociedade. Em 1983. a Organização Mundial da Saúde no-
tou uma "deterioração marcante nos cuidados pessoais e nas interações
sociais" de usuários de benzodiazepina por períodos prolongados. Outro
investigador relatou que essas pessoas acabam com habilidades precárias
para lidar com as situações. Num estudo financiado pela empresa farma-
cêutica Hoffmann-La Roche, fabricante do Valium. investigadores da Uni-
versidade de Michigan determinaram que tomar essa droga estava "associ-
ado à má qualidade de vida, a um desempenho precário no trabalho e na
vida pessoal, a um reduzido suporte social, à percepção de falta de con-
trole interno, a uma saúde percebida como precária e a altos níveis de es-
tresse". Ashton determinou que o uso a longo prazo levava a "mal-estares,
saúde precária e níveis elevados de neurotização". As benzodiazepinas, no
dizer dela, contribuem para "a perda de postos de trabalho, o desemprego
e a perda da capacidade de trabalho por motivo de doença".
Tal é a história contada sobre as benzodiazepinas na literatura cientí-
fica. Além disso, trata-se de uma história fácil de levantar, como atesta o
dr. Stevan Gressitt. hoje diretor médico dos Serviços de Saúde Mental de
Adultos no estado do Maine. Era 2002, ele ajudou a formar o Grupo do
Maine para Estudo das Benzodiazepinas. composto por médicos e outros
profissionais da saúde mental, o qual concluiu que "não há provas que
corroborem o uso de benzodiazepinas a longo prazo para nenhum pro-
blema de saúde mental". As benzodiazepinas, escreveram Gressitt e seus
colegas, podem "agravar” os "problemas médicos e da saúde mental". Em
uma entrevista, perguntei ao dr. Gressit se esses "problemas" incluíam
ansiedade aumentada. comprometimento cognitivo e declínio funcional.
Perguntei a mim mesmo se o seu entendimento da literatura científica se-
ria igual ao meu. "Não contradigo nem questiono suas palavras", respon-
deu ele.”

Geraldine, Hal e Liz

A literatura científica revela que as benzodiazepinas - assim como os


neurolépticos - funcionam como uma armadilha. Essas drogas melhoram
a ansiedade por um curto período, por isso podendo oferecer à pessoa
aflita um alívio muito necessário. Entretanto, elas funcionam perturbando
um sistema de neurotransmissores e. em resposta, o cérebro passa por
adaptações compensatórias: em consequência dessas mudanças, com a
retirada do medicamento a pessoa torna-se vulnerável a recaídas. Essa di-
ficuldade, por sua vez. pode levar algumas pessoas a tomarem tais remé-
dios indefinidamente, e esses pacientes tendem a se tornar mais ansiosos
e mais deprimidos, bem como a sofrer prejuízos cognitivos.
Vejamos as histórias de três pessoas que caíram na armadilha.
Geraldine Burns, uma mulher magra, de cabelos ruivos escuros, ainda
mora na casa em que foi criada. Sentada comigo em sua cozinha, contou-
me sua história, enquanto sua mãe idosa entrava e saía às pressas.
Nascida em 1955, Geraldine foi uma entre seis filhos e veio de uma fa-
mília feliz. Seu pai era irlandês, sua mãe. libanesa, e o bairro em que mo-
ravam, em Boston, era conhecido como Pequeno Líbano - um lugar onde
todos, com certeza, sabiam o nome uns dos outros. Tias, tios e outros pa-
rentes moravam por perto. Aos 18 anos, Geraldine começou a namorar
um rapaz que morava mais adiante, no mesmo quarteirão: Joe Burns.
“Estou com ele desde então”, disse-me. afirmando que. por um tempo, a
vida dos dois desdobrou-se do jeito que ela havia espetado. Geraldine ti-
nha um emprego de que gostava, no setor de recursos humanos de um
centro de reabilitação; o casal teve um filho saudável (Garrett) em 1984 e
se comprazia com sua vizinhança muito unida. Extrovertida e cheia de
energia. Geraldine era uma anfitriã constante de reuniões de familiares e
amigos. “Eu adorava minha vida”, contou-me. “Adorava trabalhar fora,
adorava minha família e adorava este bairro. Fui eu que organizei a reu-
nião de reencontro da turma da minha escola primária. Ainda tinha ami-
gos dos tempos de jardim de infância. Eu não poderia ser mais normal.
Entretanto, em março de 1988, ela teve uma filha, Liana, e cm seguida
sentiu- se fisicamente mal. “Eu dizia repetidamente aos médicos e enfer-
meiras que tinha a sensação de estar pesando uma tonelada” c, depois de
excluir a possibilidade de infecção, um médico calculou que ela devia estar
ansiosa e lhe receitou Ativan. Geraldine voltou do hospital para casa com
uma receita dessa benzodiazepina c, embora o remédio a tivesse ajudado
por algum tempo, meses depois ela continuava a sentir que havia algo er-
rado, e procurou uma psiquiatra. “Imediatamente, ela me disse que eu ti-
nha um desequilíbrio químico”, recordou Geraldine. “Disse que eu devia
continuar a tomar o Ativan e me garantiu que o remédio era inofensivo e
não viciava. Disse que cu teria de tomar esse remédio pelo resto da vida.
Mais tarde, quando a questionei a esse respeito, ela deu esta explicação:
‘Se você fosse diabética, teria que tomar insulina pelo resto da vida, não
é?’.”
Em pouco tempo, a psiquiatra acrescentou ao Ativan um antidepres-
sivo e, enquanto Geraldine lutava para cuidar da filha naquele primeiro
ano, seus sentimentos lhe pareciam entorpecidos, sua mente, turva. “Eu
passava metade do tempo desorientada. Mamãe telefonava e eu lhe dizia
alguma coisa, e ela respondia: ‘Você me disse isso ontem à noite’. E eu
respondia: ‘Disse?’.” Pior ainda, com o correr dos meses, ela percebeu que
estava se tornando cada vez mais ansiosa, a tal ponto que começou a ficar
em casa. Voltar ao trabalho, no setor de recursos humanos do centro de
reabilitação, ficou fora de cogitação. A certa altura, depois de passar um
ou dois dias sem tomar o Ativan, cia teve um “pesado ataque de pânico”. O
governo federal concordou em considerá-la incapacitada pela “ansiedade”
e, por conseguinte, com direito a uma pensão mensal do Seguro da Previ-
dência Social por Invalidez (SSDI). “Eu, que era a pessoa mais sociável do
planeta, não conseguia sair”, disse Geraldine, abanando a cabeça, incré-
dula. “Só saía se meu marido me levasse.”
Nos oito anos seguintes, Geraldine passou por ciclos intermináveis de
uma combinação de medicamentos ansiolíticos e antidepressivos. A ansie-
dade e o pânico persistiram e ela passou a sofrer de um leque de efeitos
colaterais - erupções cutâneas, disfunção sexual, aumento de peso, taqui-
cardia (por causa dos ataques de pânico) e sangramento menstrual exces-
sivo, este levando a uma histerectomia. “Todas as minhas conhecidas que
passaram muito tempo tomando Ativan acabaram fazendo histerectomia,
todas elas”, disse Geraldine, com evidente amargura. Por fim, cm outubro
de 1996, ela consultou um novo médico, que, depois de considerar sua
anamnese, identificou um culpado provável. "Ele me disse: ‘Você vem to-
mando um dos remédios mais viciantes de que se tem notícia’, e eu
pensei: ‘Graças a Deus’. Caí cm prantos. Tinham sido os remédios, desde
sempre. Eu fora levada a adoecer iatrogenicamente.”
Geraldine viveu por dois anos o pesadelo do “desmame” do Ativan e
dos outros remédios psiquiátricos que tomava. Odores horríveis emana-
vam do seu corpo, seus músculos tremiam, ela emagreceu e, a certa al-
tura, passou semanas sem conseguir dormir. “Foi como se o inferno se
abrisse e me engolisse”, contou. Apesar de ter conseguido sc livrar do há-
bito, cia levou vários outros anos para se sentir fisicamente bem, e ainda
sofre muito com a ansiedade. A pessoa gregária e socialmente desenvolta
que ela sempre fora, antes do fatídico dia de março de 1988 cm que lhe re-
ceitaram Ativan, nunca mais voltou. “Se cu tornei a ser como era nos ve-
lhos tempos? Não”, murmurou. “Eu choro a morte da pessoa que fui. To-
dos choramos. Continuo com muito medo de inúmeras coisas.”
Três dias antes do encontro que cu havia marcado com Hal Flugman,
que mora no sul da Flórida, ele me telefonou para dizer que sua ansiedade
tinha tornado a se desencadear e que a ideia de sair de casa para uma en-
trevista comigo era estressante demais. “Não tenho passado bem”, disse-
me. “Ando com hiperventilação e com uns problemas gastrintestinais terrí-
veis. Acho que tenho de aumentar minha dose de Klonopin. (...) E isso que
está acontecendo comigo.”
Hal, que eu havia entrevistado por telefone alguns meses antes, sentiu
ansiedade pela primeira vez aos 13 anos. Baixo e acima do peso, ele não
se dava bem com os colegas do segundo grau. “Eu tinha acessos de pânico
e um ligeiro medo de ficar perto das pessoas”, recordou. Nos cinco anos
seguintes, ele fez um aconselhamento psicológico, mas sem que lhe recei-
tassem medicamentos. “Eu estava convivendo com aquilo, lidando com
aquilo”, disse Hal; mas então, uma noite, num show de rock, o pânico o
atingiu com tanta força que ele teve de ligar para a família e pedir que al-
guém fosse buscá-lo. No dia seguinte, um médico lhe deu uma receita de
Klonopin.
“Eu me lembro de ter perguntado ao médico: ‘Vou ficar viciado e ter
uma dificuldade enorme para largar esse remédio?’ Também fiquei preocu-
pado com os efeitos colaterais. Mas o médico disse que eles passariam em
uma ou duas semanas, e será que isso não era melhor do que conviver
com aqueles ataques de pânico insuportáveis? Eu respondi: ‘Bom, é claro’.
E, desde o primeiro comprimido, vi que aquilo solucionaria o meu pro-
blema de ansiedade. Para mim, funcionou perfeitamente. Eu me senti
ótimo.”
Desde então, a vida de Hal tem sido uma história de vício. Pouco de-
pois de começar a tomar o medicamento, ele se mudou para San Fran-
cisco, para levar adiante sua carreira de músico, e tudo correu bem por al-
gum tempo - ele chegou até a se dar com Carlos Santana, o grande guitar-
rista. Mas sua carreira musical não decolou, e hoje ele acha que parte da
culpa foi do Klonopin, porque o remédio acabou com sua ambição e não
contribuiu para a destreza dos seus dedos. Uai acabou entrando numa
depressão profunda - “eu me sentia um zumbi”, disse - c, aos 29 anos, re-
gressou à Flórida para morar com os pais. Nessa ocasião, recebeu um di-
agnóstico de transtorno bipolar e o governo concordou cm que a doença
mental o deixara tão incapacitado que ele tinha direito a receber a Renda
Complementar da Previdência (SSI). Passaram-se os anos, sua mãe fale-
ceu e, em 2001, Hal começou a tomar doses maiores de Klonopin, caso
contrário sua depressão tornava-se insuportável. O médico lhe disse que
ele estava abusando da medicação e o mandou para uma clínica de desin-
toxicação, na qual, durante um período de dez dias, ele foi “desmamado”
da benzodiazepina que vinha tomando fazia 16 anos.
“O que aconteceu em seguida foi a pior coisa que já vivi”, disse ele. “Eu
poderia lhe dar uma lista de sintomas, mas ela não faria justiça ao que eu
atravessei mentalmente. Mês após mês, a coisa foi piorando cada vez
mais. Eu não conseguia dormir, e os sintomas... o mais debilitante era a
sensação de que eu estava morto. Eu sentia que o cérebro tinha sido ar-
rancado da minha cabeça, como se eu nem ao menos fosse um ser vivo.
Eu estava despersonalizado, tinha sensações esquisitas na pele, meu
corpo parecia estranho. Eu não queria nem mesmo entrar no chuveiro.
Até a água à temperatura ambiente era estranha na minha pele. Se eu a
amornasse ligeiramente, linha a sensação de que ela estava me quei-
mando até os ossos. Eu não digeria direito a comida, passava semanas
sem conseguir ir ao banheiro, não conseguia urinar direito... Vivia num
estado constante de ataques de pânico, e o médico me dizia que estava
tudo na minha cabeça, que não ia me dar receita nenhuma e que os sinto-
mas da abstinência podiam durar no máximo trinta dias. Eu eslava afun-
dando, ficando maluco.”
Isso prosseguiu durante dez meses. Hal conheceu Geraldine Burns na
internet, porque ela havia iniciado um grupo de apoio para quem tinha
problemas com benzodiazepinas, e Burns o consolava por horas a fio. Dez,
vinte vezes por noite, ele telefonava para sua irmã Susan, gritando que ia
se matar. Procurou desesperadamente conseguir uma nova receita de Klo-
nopin, mas os médicos que consultou não acreditaram que seus
tormentos se relacionassem com a descontinuação da benzodiazepina. Em
vez disso, calculavam que ele havia abusado do medicamento no passado
e, por isso, recusaram-se a restabelecer o tratamento. “Eles não entendem
que a droga modifica toda a biologia do cérebro, e que ele já não funciona
direito”, disse Hal. Por fim, sua irmã encontrou um médico que concordou
em lhe dar uma receita e, “em questão de horas, o pesadelo acabou. Todos
os efeitos colaterais, todos os problemas de síndrome de abstinência que
eu tinha vivido foram embora. Completamente. Como num passe de má-
gica. Fiquei aos pulos, de tão empolgado”.
Hal nunca mais tentou abandonar o Klonopin. Seu cérebro adaptou-se
ao remédio, diz ele, e agora não consegue readaptar-se. “O Klonopin des-
truiu minha vida. Ele tira o ímpeto e, de manhã, a gente não quer levantar
da cama, porque se sente muito grogue. Nem sei como é me sentir normal.
O meu mundo é este. As coisas não me empolgam como à maioria das
pessoas, porque vivo num estado constante de sedação. Isso nunca devia
ter sido receitado para uso a longo prazo.”
Susan vê as coisas da mesma maneira. “Minha irmã e eu conversamos
muito sobre como nosso irmão é bonito, e como, quando age normal-
mente, ninguém diria que há alguma coisa errada com ele”, disse-me. “Ele
é adorável, encantador, conversa muito bem. Poderia ter encontrado uma
boa mulher e constituído família. Mas agora? Não tem nenhum amigo.
Nem unzinho. Passa a maior parte do tempo cm casa, exceto quando tem
que ir ao mercado. Está preso numa armadilha. Não consegue largar o
Klonopin. Eu me sinto péssima por ele, e me sinto péssima por meu pai,
que vai morrer sem nunca ter visto seu filho se sair bem. Morremos de
tristeza ao pensar (pie ele poderia ter tido sua vida.”
Se uma imagem vale mais que mil palavras, as fotos que me foram
mandadas por uma mulher de Ohio, que chamarei de Liz, contam sua his-
tória de maneira muito sucinta. Existe a foto do “antes”, na qual ela sorri e
olha para a câmera com ar confiante, posando como uma modelo num
elegante vestido preto. Uma das mãos apoia-se graciosamente no quadril,
o colar acrescenta um toque refinado, co penteado do cabelo preto revela
uma mulher que se apresenta ao mundo cuidadosamente. E há também a
foto do “depois”, na qual os olhos aparecem encovados e injetados, o rosto
é tenso e contraído, o cabelo ficou ralo - ela parece uma viciada em metan-
fetamina, meio enlouquecida, que tirasse uma foto depois de ter sido de-
tida pela polícia.
Falamos por telefone pela primeira vez em julho de 2008, três meses
depois de ela tomar sua última dose de uma benzodiazepina, medica-
mento que havia usado durante 13 ano». E foi assim que Liz iniciou sua
história: “Minha cabeça parece esmigalhada. E como se houvesse cavalos
dando coices no meu crânio”.
Liz, que tem trinta e poucos anos, cresceu num subúrbio residencial
abastado de Columbus, em Ohio, onde frequentou escolas particulares e
se sobressaiu de múltiplas maneiras. Participou de concursos de canto,
ganhou prémios por sua arte e era excelente aluna. Miúda e bonita, foi
convidada por um representante do desfile de Miss Ohio a participar dessa
competição. “Eu era uma pessoa vibrante, criativa e divertida”, disse. Mas
é verdade que, de vez cm quando, lutava com a ansiedade e a depressão e,
quando cursava o segundo ano da faculdade na Universidade do Estado
de Ohio, um psiquiatra a medicou com um antidepressivo. Infelizmente, o
remédio pareceu aumentar sua ansiedade, e o psiquiatra acabou acres-
centando o Klonopin à combinação. “Ele disse que era um comprimidinho
leve, usado para ajudar senhoras idosas a dormir. Disse que não viciava e
que, se cu quisesse parar, no máximo dormiria mal por algumas noites.
Mas disse que o provável era eu precisar desse remédio pelo resto da vida,
como um diabético precisa de insulina.”
Nos dez anos seguintes, Liz funcionou bem. Formou-se com máximo
louvor na Universidade do Estado de Ohio em 1996, fez mestrado em
aconselhamento psicológico c, após diversas aventuras, em 2002 começou
a lecionar para a quarta série primária numa escola pública. Durante todo
esse período, entretanto, a ansiedade retornou reiteradamente e, toda vez
que o fazia, o psiquiatra aumentava a dose do Klonopin. E, à medida que a
dose ia aumentando, declinava a capacidade de funcionamento de Liz. “Eu
pensava: o que há de errado comigo? Por que estou ficando tão retraída?
Por que estou perdendo o interesse em tudo? Fui adoecendo cada vez
mais.” E então, no fim de 2004, a ansiedade, o pânico e a depressão volta-
ram num grau pior do que nunca, além de aparecerem novos sintomas -
obsessões e ideias suicidas. Liz foi informada de que isso significava que
era “bipolar”, e lhe receitaram um antipsicótico, o Abilify: “Foi aí que eu pi-
rei. Minha ansiedade foi para os píncaros, como se me injetassem estimu-
lantes, e um dia, cu estava lecionando e desatei a chorar na sala de aula.
Não aguentei mais e fui hospitalizada num pavilhão psiquiátrico.”
E veio então a sucessão interminável de remédios. Nos dois anos se-
guintes, Liz foi medicada com Lamictal, Lexapro, Seroquel, Neurontin, lí-
tio, Wellbutrin e outros fármacos de que não se lembra, com o Klonopin
sempre incluído no coquetel. Esse tratamento a deixou com os olhos
inchados, a pele encheu-se de erupções e houve queda de cabelo e dos pe-
los das sobrancelhas. “Meu pobre cérebro foi tratado como uma tigela de
mistura", disse Liz. S6 que, quando ela perguntava ao>. médicos se o co-
quetel não a estaria fazendo adoecer, “eles diziam: “Tentamos os remédios
e eles não estão ajudando, de modo que o problema é você”. E de fato, já
que a medicação não funcionava, seus psiquiatras lhe aplicaram eletro-
choques, o que cobrou um preço de sua memória.
Cada vez mais desesperada, Liz concluiu, ao final de 2006, que “eram
os remédios que estavam me deixando doente”. Começou a suspendê-los
um a um, mas, embora conseguisse livrar-se dos antidepressivos e dos
antipsicóticos, toda vez que tentava reduzir a dose do Klonopin sofria uma
longa lista de tormentos: alucinações, ansiedade terrível, vertigens, doloro-
sos espasmos musculares, distorções da percepção e desrealização, para
citar apenas alguns. Por fim, na primavera de 2008, cia adotou uma nova
estratégia. Resolveu fazer o “desmame” passando para benzodiazepinas
progressivamente menos potentes. O Klonopin foi substituído pelo Valium,
o Valium, pelo Librium, e por último, em abril de 2008, ela largou o Li-
brium. Ficou livre dos remédios, mas, três meses depois, quando conver-
samos por telefone, ainda estava vivendo o tormento da síndrome de absti-
nência. “As coisas que eu tenho passado, o trauma...”, disse, desatando
em lágrimas. “Eu vivo com tonteiras. E como se o chão se inclinasse para
um lado e cu saísse rodando para o outro. E pavoroso. Tive alucinações,
sou obrigada a usar óculos escuros em casa, às vezes grito de dor.”
No fim da entrevista, pedi-lhe para lembrar como era sua vida antes de
lhe receitarem uma benzodiazepina, e, mais uma vez, ela começou a cho-
rar. “Naquela época, minha ansiedade era como um caso brando de asma,
e hoje, é como se eu tivesse uma doença pulmonar em estágio terminal.
Tenho pavor de não conseguir. Sinto muito, muito medo.”
Essas entrevistas fornecem um instantâneo de três vidas e, passados
vários meses, tornei a falar com cada uma dessas pessoas, para saber se
tinha havido alguma mudança. Geraldine estava basicamente na mesma.
Hal estava muito mais aflito. O Klonopin já não parecia funcionar, sua an-
siedade voltara com grande intensidade e ele se sentia fisicamente doente.
“Passei a aceitar que a minha vida é esta”, disse, com a voz carregada do
que parecia ser um desespero sem fim. Na história de Liz, no entanto,
houve um pós-escrito animador. Não muito depois de nossa entrevista te-
lefônica, seus sintomas da síndrome de abstinência começaram a ceder e,
no início de 2009, ela teve as seguintes informações a dar: as alucinações,
as vertigens, as convulsões, a queda de cabelo e a visão embaçada, todas
haviam desaparecido. Os espasmos musculares, o tinido auditivo e a hi-
persensibilidade à luz e ao barulho tinham se tornado menos severos. A
sensação de que a cabeça estava “carregada de cimento” diminuíra.
“Agora tenho alguns dias bons, e os dias ruins já não são tão ruins”,
disse ela. “Acho que posso ver a luz no fim do túnel. Não há dúvida de que
vou melhorar. Vou me mudar para outra cidade e, apesar de ter que co-
meçar do zero, sei que tudo correrá bem. Agora valorizo a vida muito mais
do que qualquer pessoa que eu conheça. Sinto prazer cm poder andar de
novo cm linha reta, cm poder voltar a enxergar e até em ter uma pulsação
normal. Meu cabelo está recomeçando a nascer. Estou melhorando, ape-
nas esperando que o cimento saia completamente do meu cérebro.”

Os Números da Invalidez

Pelo menos até certo ponto, podemos fazer um levantamento do tributo


cobrado J pelos medicamentos ansiolíticos nos últimos cinquenta anos.
Como foi observado no início deste capítulo, depois que irrompeu a febre
do Miltown, o número de pessoas que apareceram em hospitais psiquiátri-
cos, centros para pacientes ambulatoriais e instituições residenciais para
doentes mentais começou a Ser um aumento drástico. O Ministério da Sa-
úde e Serviços Humanos dos Estados Unidos chama esse número de “epi-
sódios de atendimento a pacientes”, e ele disparou de 1,66 milhão em
1955 para 6,86 milhões cm 1975, quando a “Valiumania” estava chegando
ao auge.5" Em termos de cálculo per capita, isso significou um aumento
de 1.028 episódios de atendimento a pacientes para cada cem mil habi-
tantes para 3.182 para cada cem mil, ou um salto que triplicou esse nú-
mero cm vinte anos. Embora muitos fatores possam haver contribuído
para essa elevação (as batalhas emocionais vivenciadas por alguns vetera-
nos da Guerra do Vietnã são uma possibilidade que vem à lembrança, e
outra é o consumo de drogas ilícitas), a Valiumania foi claramente um dos
principais. No fim da década de 1970, o médico de Betty Ford, Joseph
Pursch, concluiu que as benzodiazepinas eram “o problema número um
de saúde da nação”, isto porque sabia que elas estavam levando as pes-
soas a centros de desintoxicação, prontos-socorros e clínicas psiquiátricas.
Como atestam as histórias pessoais de Geraldine, Hal e Liz, as benzo-
diazepinas continuam a ser, para muitos, um caminho para a invalidez.
Eles três fazem parte da onda de pessoas com “transtornos afetivos” que
engrossaram as listas da SSI e do SSDI nos últimos vinte anos. Embora a
Administração da Seguridade Social não forneça detalhes sobre o número
de doentes mentais incapacitados que têm na ansiedade seu diagnóstico
primário, um relatório de 2006 do U.S. General Accountability Office [Con-
troladoria Geral da União, Estados Unidos] proporciona um substituto
para calcular esse número. O relatório assinalou que 8% dos adultos jo-
vens (de 18 a 26 anos) nas listas da SSI e do SSDI foram incapacitados
pela ansiedade, e, caso essa percentagem se mantenha cm todas as faixas
etárias, terá havido mais de trezentos mil adultos no país recebendo pen-
sões do governo em 2006 por transtornos de ansiedade.51 Isso equivale a
aproximadamente sessenta vezes o número de psiconeuróticos hospitali-
zados em 1955.
Embora faça trinta anos que painéis governamentais de avaliação dos
Estados Unidos e do Reino Unido concluíram que as benzodiazepinas não
deviam ser receitadas para uso por períodos prolongados, painéis estes
acompanhados por dezenas de estudos posteriores que confirmaram a
prudência dessa orientação, a prescrição de benzodiazepinas para uso
contínuo ainda prossegue. De fato, um estudo conduzido em 2005 sobre
pacientes ansiosos, na região da Nova Inglaterra, constatou que mais de
metade deles tomava regularmente uma benzodiazepina, e hoje em dia
muitos pacientes bipolares tomam benzodiazepínicos como parte de um
coquetel de medicamentos. As provas científicas simplesmente não pare-
cem afetar os hábitos de muitos médicos em matéria de prescrições. “Ou a
lição nunca foi aprendida, ou passou despercebida para as pessoas”, afir-
mou Malcolm Lader.
8.
UMA DOENÇA EPISÓDICA TORNA-SE CRÔNICA

“Com o leque de tratamentos disponíveis para a depressão,


podemos indagar por que a invalidez relacionada com ela
tem aumentado.” - — Carolyn Dewa, Centro de Saúde Men-
tal e Dependência de Drogas, Ontário. Canadá. 2001'
O M-Power, em Boston, é um grupo de defesa de doentes mentais diri-
gido por pares; quando estive numa de suas reuniões, em abril de 2008,
uma mulher jovem e calada aproximou-se de mim e cochichou: “Eu me
disporia a conversar com você”. O cabelo ruivo lhe descia até os ombros e
ela parecia tão tímida que quase se diria estar amedrontada. No entanto,
quando Melissa Sanees me contou sua história, dias depois, falou com
toda a franqueza possível, transformada a sua timidez numa sinceridade
introspectiva tão intensa que, quando me estava relatando as lutas da sua
fase de crescimento em Sandwich, em Cape Cod, de repente ela se inter-
rompeu e disse: “Eu era infeliz, mas não tinha consciência de estar depri-
mida”. Era importante eu compreender a diferença entre esses dois senti-
mentos.
A infelicidade de Melissa, na infância, compunha-se de ingredientes
conhecidos. Ela se sentia socialmente desajeitada e “diferente” das outras
crianças da escola, e, depois do divórcio de seus pais, quando contava 8
anos, ela e os irmãos ficaram morando com a mãe, que batalhava com a
depressão. No segundo grau escolar, Melissa começou a sair da concha, a
fazer amizades e se sentir “mais normal”, mas então chocou-se de frente
com os tormentos da puberdade. “Aos 14 anos, eu era gorda e tinha acne.
Sentia-me uma exilada social, e a garotada do secundário era muito cruel.
Eu era chamada de esquisita e feia. Sentava na minha carteira de cabeça
baixa, com o cabelo cobrindo o rosto, tentando me esconder do mundo.
Todo dia acordava com a sensação de que queria morrer.”
Hoje, Melissa é uma mulher atraente, de modo que surpreende um
pouco saber desse seu momento de patinho feio no passado. Mas, com a
implicância dos colegas de escola, sua infelicidade infantil metamorfoseou-
se numa depressão profunda e, aos 16 anos, ela tentou o suicídio, engo-
lindo punhados de Benadryl e Valium. Acordou no hospital, onde lhe dis-
seram que sofria de uma doença mental e lhe receitaram um antidepres-
sivo. “O psiquiatra me disse que esse remédio ajustava os níveis de seroto-
nina e que, provavelmente, eu teria que tomá-lo pelo resto da vida. Chorei
ao saber disso.”
Durante algum tempo, o Zoloft funcionou otimamente. “Eu parecia ou-
tra pessoa”, recordou Melissa. “Tornei-me receptiva aos outros e fiz muitas
amizades. Era arremessadora no time de softbol.” No último ano do curso
médio, ela começou a fazer planos de frequentar a Faculdade Emerson,
em Boston, pensando em estudar criação literária. Sé então, aos poucos,
mas de modo irrevogável, a magia do Zoloft começou a se desfazer. Melissa
passou a tomar doses maiores, para manter afastada a depressão, e seu
psiquiatria acabou por passá-la para uma dose altíssima de Paxil, o que a
fez sentir-se um zumbi. “Fiquei com a cabeça na lua. Numa partida de
softbol, alguém me jogou uma bola fácil e eu simplesmente a segurei. Não
sabia o que fazer com eia. Pedi desculpas ao meu time.” Desde então Me-
lissa tem lutado com a depressão. Esta a acompanhou durante a facul-
dade, primeiro na Emerson, depois na Universidade de Massachusetts em
Dartmouth, e, embora houvesse diminuído um pouco quando Melissa
mergulhou na redação de textos para o jornal dessa universidade, nunca
chegou a ir embora por completo. Ela tentou um medicamento e outro,
mas nenhum lhe trouxe um alívio duradouro. Uma vez formada, arranjou
emprego como assistente editorial numa revista, mas a depressão também
a alcançou no trabalho e, no fim de 2007, o governo a julgou apta a rece-
ber o Seguro da Previdência Social por Invalidez, em função de sua do-
ença.
“Sempre me disseram que a pessoa tem de aceitar o fato de que a do-
ença é crônica”, disse ela, ao final da nossa entrevista. “A pessoa pode fi-
car ‘em recuperação’, mas nunca ‘recuperada’. Só que não quero receber
pensão por invalidez para sempre, e comecei a questionar se a depressão é
mesmo um problema químico. Quais são as origens do meu desespero?
Como posso me ajudar, realmente? Quero honrar as outras partes de
mim, diferentes dessa parte doente em que vivo pensando. Acho que a de-
pressão é uma espécie de erva daninha que tenho cultivado, e o que eu
quero é arrancar essa erva, e estou começando a recorrer a outras pessoas
em busca de soluções. Não sei mesmo dizer o que os remédios fizeram por
mim durante todos esses anos, mas sei que estou decepcionada com o
rumo que as coisas tomaram.”
É essa a história de Melissa Sanees. Hoje em dia, é uma história bas-
tante comum. Um adolescente angustiado recebe um diagnóstico de de-
pressão e é tratado com um antidepressivo e, anos depois, continua a ba-
talhar com sua doença. No entanto, se voltarmos à década de 1950, des-
cobriremos que a depressão raramente atingia alguém tão jovem quanto
Melissa, e raramente se transformava no sofrimento crônico que ela viven-
ciou. O curso de sua doença é, em grande parte, característico de nossa
época.

Como Era a Depressão

A melancolia, é claro, visita quase todo mundo, vez por outra. “Sou ho-
mem, o que é razão suficiente para eu ser infeliz”, escreveu o poeta grego
Menandro no século IV a.C., externando um sentimento que desde então
tem sido ecoado por escritores e filósofos.2 Em seu compêndio seiscentista
intitulado Anatomia da Melancolia, o médico inglês Robert Burton opinou
que todos “sentem sua aguilhoada (...) é sumamente absurdo e ridículo
qualquer mortal buscar a permanência perpetua da felicidade nesta vida”.
Somente quando esses estados melancólicos se tornavam um “hábito”, di-
zia Burton, é que se transformavam em “doença”.
Era a mesma distinção feita por Hipócrates, mais de dois mil anos an-
tes, ao identificar a melancolia persistente como uma doença, atribuindo-a
a um excesso de bile negra (melaina chole, em grego). Os sintomas inclu-
íam “tristeza, ansiedade, abatimento moral [e] tendência ao suicídio”,
acompanhados por um “medo prolongado”. Para limitar o excesso de bile
negra e reequilibrar os quatro humores do corpo, Hipócrates recomendava
a administração de mandrágora e heléboro, mudanças na dieta e uso de
ervas catárticas e eméticas.
Durante a Idade Média, a pessoa profundamente melancólica era con-
siderada possuída por demônios. Padres e exorcistas eram chamados para
expulsá-los. Com a chegada do Renascimento, no século XV, os ensina-
mentos dos gregos foram redescobertos e os médicos voltaram a oferecer
explicações médicas para a melancolia persistente. Depois que William
Harvey descobriu, em 1628, que o sangue circulava por todo o corpo, mui-
tos médicos europeus ponderaram que essa doença provinha da falta de
sangue no cérebro.
A moderna concepção psiquiátrica da depressão tem suas raízes no
trabalho de Emil Kraepelin. Em seu livro de 1899, Lehrbuch der Psychial-
rie [Manual de psiquiatria], Kraepelin dividiu os transtornos psicóticos em
duas categorias amplas: demência precoce e psicose maníaco-depressiva.
Esta última categoria era predominantemente composta por três subtipos:
apenas episódios depressivos, apenas episódios maníacos e episódios dos
dois tipos. Entretanto, enquanto os pacientes com demência precoce se
deterioravam ao longo do tempo, o grupo maníaco-depressivo tinha
resultados bastante bons a longo prazo. “Em geral todas as manifestações
mórbidas desaparecem por completo; todavia, quando não é este o caso,
excepcionalmente, desenvolve-se apenas uma fraqueza psíquica, peculiar
bastante leve”, explicou Kraepelin num texto de 1921.
Hoje em dia, o grupo apenas-depressivo de Kraepelin seria diagnosti-
cado com depressão unipolar, e na década de 1960 e início da de 1970,
psiquiatras proeminentes, em centros médicos acadêmicos e no Instituto
Nacional de Saúde Mental (NIMH), descreveram esse distúrbio como bas-
tante raro e de bom prognóstico a longo prazo. Em seu livro de 1968, The
Epidemiology of Depression [A epidemiologia da depressão], Charlotte Sil-
verman, que dirigiu estudos epidemiológicos para o NIMH, observou que
levantamentos comunitários nas décadas de 1930 e 1940 haviam consta-
tado que menos de um cm cada mil adultos sofria um episódio de depres-
são clínica por ano. Além disso, a maioria das pessoas afetadas não preci-
sava de internação hospitalar. Em 1955, houve apenas 7.250 casos de
“admissão inicial” por depressão em manicômios estaduais e municipais.
O total de pacientes deprimidos nos hospitais psiquiátricos do país na-
quele ano foi de aproximadamente 38.200, ou uma taxa de invalidez de
uma em cada 4.345 pessoas.
A depressão, como observaram Silverman e outros, era primordial-
mente uma “doença de pessoas na meia-idade e mais velhas”. Em 1956,
90% das admissões iniciais por depressão em hospitais públicos e priva-
dos foram de pacientes de 35 anos ou mais.7 Os episódios depressivos,
explicou Frank Ayd Jr., um psiquiatra de Baltimore, em seu livro de 1962,
Recognizing the Depressed Patient [Reconhecendo o paciente deprimido],
“ocorrem quase sempre depois dos 30 anos, têm um pico de incidência en-
tre os 40 e os 60 anos e diminuem acentuadamente depois disso”.
Embora os pacientes maníaco-depressivos estudados por Kraepelin es-
tivessem gravemente enfermos, uma vez que sua mente também cra fusti-
gada por sintomas psicóticos, seus resultados a longo prazo eram bas-
tante bons. Entre os 450 pacientes kraepelinianos “apenas deprimidos”,
60% só experimentaram um único episódio de depressão e apenas 13% ti-
veram três ou mais episódios.’ Outros investigadores da primeira metade
do século XX relataram resultados semelhantes. Em 1931, Horatio Pol-
lock, da Secretaria de Higiene Mental do Estado de Nova York, num es-
tudo a longo prazo de 2.700 pacientes deprimidos, internados entre 1909
e 1920, relatou que mais de 50% das pessoas internadas cm decorrência
de um primeiro episódio tiveram um único ataque, e apenas 17% tiveram
três ou mais episódios. Thomas Rennie, que investigou o destino de 142
depressivos internados no Hospital Johns Hopkins entre 1913 e 1916, de-
terminou que 39% tiveram “recuperações duradouras” de cinco anos ou
mais." Um médico sueco, Gunnar Lundquist, acompanhou 216 pacientes
tratados de depressão durante 18 anos e determinou que 49% nunca vi-
venciaram um segundo ataque, e que outros 21% tiveram apenas um epi-
sódio a mais. Ao todo, 76% dos 216 pacientes tornaram-se “socialmente
sadios” e retomaram seu trabalho habitual. Depois de se recuperar de um
episódio depressivo, escreveu Lundquist, a pessoa “tem a mesma capaci-
dade de trabalho e as mesmas perspectivas de levar adiante a vida que ti-
nha antes do aparecimento da doença”.
Esses bons resultados estenderam-se pelos primeiros anos da era dos
antidepressivos. Em 1972, Samuel Guze e Eli Robins, da Faculdade de
Medicina da Universidade Washington em St. Louis, reexaminaram a lite-
ratura científica e determinaram que, em estudos de acompanhamento
conduzidos ao longo de dez anos, 50% das pessoas hospitalizadas por de-
pressão não tiveram recorrência da doença. Apenas uma pequena minoria
dos diagnosticados com depressão unipolar - um em dez - tornara-se cro-
nicamente doente, concluíram Guze e Robins.
Foram essas as provas científicas que levaram as autoridades do
NIMH, durante as décadas de 1960 e 1970, a falarem com otimismo sobre
o curso da doença a longo prazo. “A depressão, de modo geral, é um dos
problemas psiquiátricos com melhor prognóstico de eventual recuperação,
com ou sem tratamento. Quase todas as depressões são autolimitantes”,
escreveu Jonathan Cole em 1964." “No tratamento da depressão”, explicou
Nathan Kline no mesmo ano, “sempre se encontra um aliado no fato de
que a maioria das depressões termina em remissões espontâneas. Isso sig-
nifica que, em muitos casos, independentemente do que se faça, o paci-
ente acaba começando a melhorar.” George Winokur, um psiquiatra da
Universidade Washington, informou ao público, em 1969, que “pode-se
dar ao paciente e seus familiares a garantia de que os episódios posterio-
res da doença após um primeiro episódio de mania ou até de depressão
não tenderão a assumir um curso mais crônico”.
De fato, como explicou Dean Schuyler, chefe da divisão de depressão
do NIMH, num livro de 1974, os índices de recuperação espontânea eram
tão altos -acima de 50%, num prazo de poucos meses - que era difícil “jul-
gar a eficácia de uma droga, de um tratamento [eletrochoque] ou da psico-
terapia em pacientes deprimidos”. Talvez um medicamento ou o eletrocho-
que pudessem abreviar o tempo de recuperação, uma vez que a remissão
espontânea comumente levava muitos meses para acontecer, mas era
difícil algum tratamento ser melhor do o curso natural da depressão a
longo prazo. A maioria dos episódios depressiva explicou Schuyler, “segue
seu curso e termina com a recuperação praticamente, completa, sem ne-
nhuma intervenção específica”.

Tristeza Abreviada

A história dos ensaios sobre a eficácia dos antidepressivos a curto


prazo é fascinante, porque revela muito sobre a capacidade de uma socie-
dade e da classe médica se apegarem à crença nos méritos mágicos de um
comprimido, ainda que os ensaios clínicos produzam, em sua maioria, re-
sultados desanimadores. Os dois antidepressivos desenvolvidos na década
de 1950, a iproniazida e a imipramina, deram origem a dois tipos gerais de
medicamento para a depressão, conhecidos como inibidores de monoa-
mina oxidase (IMAOs) e tricíclicos, e os estudos do fim da década de 1950
e do início da de 1960 consideraram que os dois tipos eram maravilhosa-
mente eficazes. Entretanto, os estudos foram de qualidade duvidosa, e em
1965 o Conselho Britânico de Medicina submeteu os dois tipos a um teste
mais rigoroso. Embora o tricíclico (imipramina) tenha se revelado modes-
tamente superior a um placebo, o mesmo não se deu com o IMAO (fenel-
zina). O tratamento com essa substância foi “singularmente malsucedido”.
Quatro anos depois, o NIMH fez uma revisão de todos os estudos sobre
antidepressivos e constatou que, “quanto mais rigorosamente controlado o
estudo, menor o índice de melhora registrado para um dado medica-
mento”. Em estudos bem controlados, 61% dos pacientes medicados tive-
ram melhora, em contraste com 46% dos pacientes que usaram um pla-
cebo, o que significa um benefício líquido de apenas 15%. “As diferenças
entre a eficácia dos medicamentos antidepressivos e a do placebo não são
marcantes”, disse o estudo. O NIMH conduziu então seu próprio ensaio
com a imipramina, e foi somente nos pacientes com depressão psicótica
que esse tricíclico demonstrou algum benefício significativo em relação a
um placebo. Apenas 40% dos pacientes medicados com a droga concluí-
ram o estudo de sete semanas, e a razão de tantos o haverem abandonado
foi que seu estado “se deteriorou”. Para muitos pacientes deprimidos, con-
cluiu o NIMH em 1970, “os medicamentos desempenham um papel de in-
fluência insignificante no curso clínico da doença”.
A eficácia mínima da imipramina e de outros antidepressivos levou al-
guns investigadores a se perguntarem se a resposta ao placebo seria o me-
canismo que vinha ajudando as pessoas a se sentirem melhor. O que os
medicamentos faziam, segundo a especulação de alguns, era ampliar a
resposta ao placebo, e o faziam por produzirem efeitos físicos colaterais,
que ajudavam a convencer os pacientes de que eles estavam recebendo
uma “pílula mágica” para a depressão. Com o objetivo de testar essa hipó-
tese, os investigadores conduziram pelo menos sete estudos nos quais
compararam um tricíclico com um placebo “ativo”, em vez de um placebo
inerte. (Placebo ativo é uma substância química que produz algum tipo de
efeito colateral desagradável, como o ressecamento da boca.) Em seis dos
sete estudos, não houve diferença nos resultados.
Foi esse o recorde de eficácia obtido pelos tricíclicos na década de
1970: ligeiramente melhores do que o placebo inativo, porém não melho-
res do que um placebo ativo. O NIMH tornou a examinar essa questão da
eficácia da imipramina na década de 1980, comparando-a com duas for-
mas de psicoterapia e placebos, e constatou que nada se havia modificado.
Ao cabo de 16 semanas, “não havia diferenças significativas entre os trata-
mentos, incluindo o do placebo somado ao manejo clínico, nos pacientes
menos gravemente deprimidos e funcionalmente prejudicados”. Apenas os
pacientes gravemente deprimidos se saíram melhor com a imipramina do
que com um placebo.
A crença da sociedade na eficácia dos antidepressivos renasceu com a
chegada do Prozac, em 1988. Ao que parecia, a companhia farmacêutica
Eli Lilly havia criado um ótimo comprimido para a tristeza. Dizia-se que
esse inibidor seletivo de recaptação da serotonina (ISRS) fazia as pessoas
se sentirem “melhor do que bem”. Infelizmente, quando os pesquisadores
começaram a investigar os resultados dos ensaios clínicos submetidos à
Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA) sobre o Prozac
e os outros ISRS posteriormente introduzidos no mercado, a história da
“droga milagrosa” desmoronou.
O primeiro golpe contra a imagem dos ISRS veio de Arif Khan, no Cen-
tro de Pesquisas Clínicas do Noroeste, em Washington. Ele reexaminou os
dados de estudos sobre sete ISRS submetidos à FDA e concluiu que os
sintomas tiveram uma redução de 42% nos pacientes tratados com tricí-
clicos, 41% nos do grupo de ISRS e 31% entre os que receberam um pla-
cebo. Os novos medicamentos, como se revelou, não eram mais eficazes do
que os antigos. Em seguida, Erick Turner, da Universidade de Saúde e Ci-
ência de Oregon, num reexame de dados da FDA sobre 12 antidepressivos
aprovados entre 1987 e 2004, determinou que 36dos 74 estudos não ha-
viam demonstrado nenhum benefício estatístico dos antidepressivos. Um
número igual de ensaios havia produzido tanto resultados negativos ou
"questionáveis” quanto resultados positivos. Por fim, em 2008, Irving
Kirsch, um psicólogo da Universidade de Hull, no Reino Unido, constatou
que, nos ensaios feitos com Prozac, Effexor, Serzone e Paxil, os sintomas
nos pacientes medicados caíram 9,6 pontos na Escala Hamilton de Avalia-
ção da Depressão, em contraste com 7.8 pontos no grupo tratado com um
placebo. Era uma diferença de apenas 1,8 ponto, e o Instituto Nacional
Pró-Saúde e Excelência Clínica, da Grã-Bretanha, havia determinado, an-
teriormente, que era necessária uma diferença de três pontos na Escala
Hamilton entre os medicamentos e os placebos para demonstrar um “be-
nefício clinicamente significativo”. Apenas num pequeno subgrupo de pa-
cientes - os mais gravemente deprimidos - é que ficara demonstrado que
as drogas tinham uma utilidade real. "Considerando-se esses dados, pa-
rece haver poucas provas que corroborem a prescrição de medicamentos
antidepressivos para qualquer paciente, excetuados os mais gravemente
deprimidos, a menos que os tratamentos alternativos não tenham conse-
guido proporcionar benefícios’, concluíram Kirsch e seus colaboradores.
Tudo isso provocou alguns exames de consciência por parte dos psi-
quiatras em suas publicações especializadas. Ensaios clínicos aleatórios,
admitiu um editorial de 2009 no British Journal of Psychiatiy. haviam ge-
rado "provas válidas limitadas’ a favor do uso dos medicamentos.26 Um
grupo de psiquiatras europeus afiliado à Organização Mundial da Saúde
(OMS) conduziu seu próprio exame dos dados clínicos do Paxil e concluiu
que, “entre os adultos com depressão moderada a severa”, esse ISRS po-
pular "não era superior a um placebo, em termos da eficácia e aceitabili-
dade gerais do tratamento”. A confiança na eficácia desses medicamentos,
escreveu o psiquiatra grego John Ioannidis, que exerce um cargo na Fa-
culdade de Medicina da Universidade Tufts, em Massachusetts, era um
“mito vivo”. Um exame dos dados clínicos sobre os ISRS tinha levado a um
final deprimente para a psiquiatria, e, como brincou Ioannidis, ele e seus
colegas nem sequer podiam recorrer ao Prozac e aos outros ISRS para ob-
ter alívio dessa notícia desanimadora porque, infelizmente, “é provável que
eles não funcionem”.
Há outro adendo interessante a essa história das pesquisas. No fim da
década de 1980, muitos alemães deprimidos apelaram para o Hypericum
perforatum, a planta conhecida como erva-de-são-joão,1 em busca de alí-
vio. Pesquisadores alemães começaram a conduzir ensaios duplos-cegos

1
A planta é também conhecida por alguns outros nomes populares, como milfurado, hipericão, macela-de-
são-joão, malfurada, molturado, pclicão etc. (N.T.)
com essa erva medicinal e, em 1996, o British Medical Journal resumiu os
dados obtidos: em 13 testes controlados por placebos, 55% dos pacientes
tratados com a erva-de-são-joão tiveram uma melhora significativa, com-
parados a 22% dos que receberam um placebo. A erva medicinal também
superou os antidepressivos, numa competição acirrada: nesses ensaios,
66% dos sujeitos que receberam a erva medicinal obtiveram melhora,
comparados a 55% dos pacientes tratados com medicamentos. Na Alema-
nha, a erva-de-são-joão revelou-se eficaz. Mas teria um resultado mágico
semelhante entre os norte-americanos? Em 2001, psiquiatras de 11 cen-
tros médicos dos Estados Unidos informaram que ela não surtia o menor
efeito. Apenas 15% dos pacientes ambulatoriais deprimidos tratados com
essa erva apresentaram melhora cm seu ensaio de oito semanas. No en-
tanto - e esta foi a parte curiosa -, apenas 5% dos pacientes tratados com
um placebo melhoraram nesse estudo, o que fica muito abaixo da resposta
usual aos placebos. Ao que parece, os psiquiatras norte-americanos não
estavam ansiosos por ver ninguém melhorar, por medo de que a erva me-
dicinal se revelasse eficaz. Posteriormente, no entanto, o Instituto Nacional
de Saúde [NIH] financiou um segundo ensaio com a erva-de-são-joão, o
qual complicou a situação para qualquer pesquisador que quisesse esco-
lher favoritos. Ele comparou a erva medicinal com o Zoloft e com um pla-
cebo. Uma vez que a erva causa efeitos colaterais, como o ressecamento
da boca, ela agiria, no mínimo, como um placebo ativo. Sendo assim, tra-
tava-se realmente de um ensaio cego, no qual os psiquiatras não poderiam
confiar nos efeitos colaterais como uma pista sobre quais pacientes esta-
vam recebendo o quê, e os resultados foram estes: 24% dos pacientes tra-
tados com a erva-de-são-joão tiveram uma “resposta completa”, 25% dos
pacientes tratados com Zoloft e 32% do grupo que recebeu o placebo tive-
ram essa mesma resposta. “Este estudo não corrobora a eficácia da H.
perforatum na depressão moderadamente grave”, concluíram os investiga-
dores, passando por cima do fato de que seu medicamento também havia
falhado no ensaio.

O Fator Cronicidade, Mais Uma Vez

A relativa ineficácia a curto prazo dos antidepressivos não era, por si


só, uma razão para supor que os medicamentos estivessem fazendo mal.
Afinal, a maioria das pessoas tratadas com antidepressivos via uma redu-
ção de seus sintomas. Os pacientes medicados vinham melhorando, nos
ensaios de curto prazo. O problema era que não melhoravam significativa-
mente mais do que os tratados com um placebo. Entretanto, durante a
década de 1960, diversos psiquiatras europeus relataram que o curso da
depressão a longo prazo, nos seus pacientes tratados com medicamentos,
parecia estar piorando.
A exposição a antidepressivos, escreveu o médico alemão H. P. Hohei-
sel, em 1966, parecia estar "encurtando os intervalos" entre os episódios
depressivos de seus pacientes. Esses remédios, escreveu um médico iu-
goslavo, quatro anos depois, estavam causando uma “cronicização” da do-
ença. Os tricíclicos, concordou o psiquiatra búlgaro Nikola Schipkowensky
em 1970, estavam induzindo uma "mudança para um curso mais crô-
nico". O problema, ao que parecia, era que muitas pessoas tratadas com
antidepressivos ficavam apenas “parcialmente curadas". Seus sintomas
não tinham uma remissão completa e, mais tarde, quando elas paravam
de tomar o antidepressivo, sua depressão sistematicamente tornava a pio-
rar muito.
Depois de vir à tona essa preocupação cm algumas publicações euro-
peias, um médico holandês. J. D. Van Scheyen, examinou os históricos
clínicos de 94 pacientes deprimidos. Alguns tinham tomado antidepressi-
vos, outros não. e quando Van Scheyen examinou os resultados obtidos
pelos dois grupos num período de cinco anos, a diferença foi estarrece-
dora: "evidenciou-se, particularmente em pacientes do sexo feminino, que
a medicação antidepressiva mais sistemática a longo prazo, com ou sem
TEC [terapia eletroconvulsiva], exerce um efeito paradoxal na natureza re-
corrente da depressão vital. Em outras palavras, essa abordagem terapêu-
tica foi associada a um aumento da taxa de recorrência e a um decréscimo
da duração dos ciclos. (...) Será que convém considerar [esse aumento) um
efeito colateral indesejável, a longo prazo, do tratamento com antidepressi-
vos tricíclicos?”.
Nos vinte anos seguintes, investigadores relataram repetidamente que
as pessoas tratadas com antidepressivos tinham grande probabilidade de
sofrer recaídas, ao suspenderem o uso da medicação. Em 1973, pesquisa-
dores da Grã- Bretanha escreveram que 50% dos pacientes cujo trata-
mento medicamentoso fora suspenso tiveram uma recaída num prazo de
seis meses; passados alguns anos, investigadores da Universidade da Pen-
silvânia anunciaram que 69% dos pacientes que tiveram os antidepressi-
vos descontinuados tiveram recaídas nesse mesmo período. Havia, se-
gundo eles confessaram, "uma rápida deterioração clínica na maioria dos
pacientes". Em 1984, Roben Prien. do Instituto Nacional de Saúde Mental
(NIMH), relatou que 71% dos pacientes deprimidos tinham recaídas em até
18 meses depois da retirada do medicamento. Por fim, em 1990, o NIMH
contribuiu para esse quadro sombrio, ao relatar os resultados a longo
prazo de seu ensaio comparativo da imipramina com duas formas de psi-
coterapia e um placebo. Ao cabo de 18 meses, o melhor índice de manu-
tenção da saúde ficou com o grupo da terapia cognitiva (30%) e o mais
baixo, com o grupo exposto à imipramina (19%)."
Em toda parle, a mensagem era a mesma: as pessoas deprimidas tra-
tadas com um antidepressivo, e. que depois paravam de tomá-lo regular-
mente, voltavam a adoecer. Em 1997, Ross Baldessarini, da Faculdade de
Medicina da Universidade Harvard, numa meta-análise da literatura,
quantificou o risco de recaída: em 50% dos pacientes em quem a droga era
descontinuada a doença recidivava num prazo de 14 meses. Baldessarini
também constatou que, quanto mais prolongado o uso do antidepressivo,
maior a taxa de recaída posterior à suspensão do medicamento. Era como
se a pessoa tratada com o antidepressivo ficasse, aos poucos, cada vez
menos capaz de viver sem ele, no sentido fisiológico. Investigadores da
Grã- Bretanha chegaram à mesma percepção grave: “depois da suspensão
de um antidepressivo, os sintomas tendem a aumentar gradativamente e a
se tornar crónicos.

Todos os Psicotrópicos Funcionam dessa Maneira?

Embora um punhado de médicos europeus possa ter, no fim dos anos


60 e início dos 70, soado o alarme sobre o curso modificado da depressão,
só em 1994 é que um psiquiatra italiano, Giovanni Fava, da Universidade
de Bolonha, anunciou de forma contundente que era hora de a psiquiatria
enfrentar esse problema. Os neurolépticos tinham se revelado bastante
problemáticos a longo prazo, as benzodiazepinas também, e agora, os anti-
depressivos pareciam estar produzindo um resultado semelhante a longo
prazo. Num editorial de 1994, da revista Psychotherapy and Psychosoma-
tics, Fava escreveu:
No campo da psicofarmacologia, os profissionais têm sido cautelosos, senão
temerosos, quando se trata de abrir um debate para saber se o tratamento
é mais nocivo [do que benéfico], (...) cu me pergunto se é chegado o mo-
mento de debatermos e iniciarmos pesquisas sobre a probabilidade de que
os medicamentos psicotrópicos efetivamente agravem, pelo menos em al-
guns casos, a progressão da doença que supostamente deveriam tratar.
Nesse editorial e cm vários outros artigos subsequentes, Fava ofereceu
uma explicação biológica do que vinha acontecendo com os antidepressi-
vos. Tal como os antipsicóticos e as benzodiazepinas, essas drogas pertur-
bam os sistemas neurotransmissores no cérebro. Isto leva a “processos
[compensatórios] que se opõem aos efeitos agudos iniciais de um medica-
mento. (...) Quando termina 0 tratamento medicamentoso, esses processos
podem funcionar sem oposição, o que resulta no aparecimento de sinto-
mas de abstinência e numa vulnerabilidade maior às recaídas’’, escreveu
ele.39 Além disso, apontando as descobertas de Baldessarini Fava assina-
lou ser evidente que, quanto mais se mantinha o tratamento com antide-
pressivos, mais se agravava o problema. “Quer o paciente deprimido seja
tratado por três meses, quer por três anos, isto não vem ao caso quando a
medicação é suspensa. Uma tendência estatística sugeriu que, quanto
mais prolongado o tratamento medicamentoso, maior a probabilidade de
recaída.”
Mas Fava também se perguntou qual seria o resultado para as pessoas
em quem se mantinha indefinidamente o uso de antidepressivos. Será que
elas também não teriam recaídas com uma frequência maior? Talvez os re-
médios causassem “modificações irreversíveis nos receptores”, disse Fava,
e, sendo assim, “sensibilizassem” o cérebro à depressão. Isso poderia ex-
plicar o “sombrio resultado a longo prazo da depressão”. Ele resumiu o
problema nos seguintes termos:
Os medicamentos antidepressivos na depressão podem ser benéficos a curto
prazo, mas agravam o avanço da doença a longo prazo, aumentando a
vulnerabilidade bioquímica à depressão. (...) O uso de drogas antidepressi-
vas pode impulsionar a doença para um curso mais maligno e não recep-
tivo a tratamentos.
Essa possibilidade colocou-se então no centro e no primeiro plano da
psiquiatria. “A pergunta [de Fava] e as várias questões correlatas (...) não
são agradáveis de contemplar e talvez pareçam paradoxais, mas agora exi-
gem uma consideração clínica e de pesquisa que seja séria e feita com a
mente aberta”, disse Baldessarini. Três médicos da Faculdade de Medicina
da Universidade de Louisville fizeram eco a esse sentimento. “O uso de an-
tidepressivos a longo prazo pode ser depressogênico”, escreveram eles
numa carta de 1998 à revista Journal of Clinical Psychiatry. “É possível
que os agentes antidepressivos modifiquem a estruturação das sinapses
neuronais, [o que] não apenas torna os antidepressivos ineficazes como
também induz a um estado depressivo residente e refratário.”

É a Doença, Não o Remédio

Mais uma vez, a psiquiatria havia chegado a um momento de crise. O


espectro da psicose por hipersensibilidade tinha mexido num vespeiro, no
início da década de 1980, e agora, em meados da de 1990, uma preocupa-
ção de natureza muito semelhante havia aparecido. Dessa vez, talvez os
riscos fossem ainda mais altos. Fava levantou essa questão justamente
quando as vendas de ISRS nos Estados Unidos cresciam em disparada.
Psiquiatras ilustres, das melhores faculdades de medicina norte-america-
nas, tinham falado das maravilhas dessas drogas com repórteres de jor-
nais e revistas. Esses medicamentos vinham sendo prescritos para um
grupo cada vez maior de pessoas, o qual incluía mais de um milhão de cri-
anças norte-americanas. Poderia a psiquiatria confessar agora que talvez
esses medicamentos estivessem deixando as pessoas cronicamente depri-
midas? Que levavam a um curso “maligno”, a longo prazo? Que causavam
alterações biológicas no cérebro, as quais “sensibilizavam” a pessoa para a
depressão? E, sendo assim, como era possível que eles fossem receitados
para crianças pequenas e adolescentes? Por que os médicos haveriam de
fazer uma coisa dessas com crianças? A preocupação de Fava precisava
ser silenciada, e silenciada depressa. No começo de 1994, depois de Fava
trazer o assunto à baila pela primeira vez, Donald Klein, da Universidade
Columbia, disse à revista Psychiatric News que este assunto não seria in-
vestigado: “A indústria não está interessada [nesta questão], o NIMH não
está interessado e a FDA não está interessada”, disse ele. “Não há nin-
guém interessado”.
De fato, àquela altura, os líderes da psiquiatria norte-americana já es-
tavam apresentando uma explicação alternativa para os “sombrios” resul-
tados a longo prazo, explicação esta que eximia seus medicamentos de
qualquer responsabilidade. Os antigos estudos epidemiológicos da era pré-
antidepressivos, que tinham mostrado que as pessoas se recuperavam sis-
tematicamente de um episódio depressivo agudo, e que a maioria perma-
necia bem depois disso, seriam “falhos”. Um painel de especialistas reuni-
dos pelo NIMH manifestou-se da seguinte maneira: “abordagens aperfeiço-
adas da descrição e classificação dos transtornos [do humor] e novos estu-
dos epidemiológicos demonstraram a natureza recorrente e crônica dessas
doenças, e a que ponto elas representam uma fonte contínua de aflição e
disfunção para os indivíduos afetados”. Finalmente, a depressão estava
sendo compreendida - foi essa a história abraçada pela psiquiatria, e ma-
nuais foram reescritos para falar desse avanço nos conhecimentos. Não fa-
zia muito tempo, observou a edição de 1999 do Manual de Psiquiatria da
Sociedade Norte- Americana de Psiquiatria (APA), acreditava-se que “a
maioria dos pacientes acabava por se recuperar de um grande episódio de-
pressivo. Entretanto, estudos mais extensos desmentiram essa suposi-
ção”.46 Agora se sabia, disse a APA, que “a depressão é um transtorno
altamente recorrente e pernicioso”.
A depressão, ao que parecia, nunca tinha sido a doença relativamente
benigna descrita por Silverman e outros, no NIMH, no fim dos anos 60 e
início da década de 1970. E, uma vez reconcebida a depressão dessa ma-
neira, como doença crónica, a psiquiatria passou a ter uma lógica para o
uso de antidepressivos a longo prazo. O problema não era que a exposição
a um antidepressivo causasse uma alteração biológica que tornava as pes-
soas mais vulneráveis à depressão- o problema era que, uma vez retirado
o medicamento, a doença voltava. Além disso, a psiquiatria tinha, sim, es-
tudos que provavam os méritos da manutenção do uso de antidepressivos
pelos pacientes. Afinal, os índices de recaída eram mais altos entre os pa-
cientes de quem a medicação era retirada do que entre aqueles em quem
ela era mantida. “Os antidepressivos reduzem o risco de recaída no trans-
torno depressivo, e o tratamento contínuo com antidepressivos beneficia-
ria muitos pacientes que sofrem de transtorno depressivo recorrente”, ex-
plicou um grupo de psiquiatras que examinou essa literatura.
Durante a década de 1990, psiquiatras dos Estados Unidos e de outros
locais consubstanciaram o espectro de resultados obtidos mediante esse
novo paradigma de atendimento, que enfatizava a “manutenção” dos medi-
camentos. Um terço de todos os pacientes unipolares, concluíram os pes-
quisadores, são “não receptivos” aos antidepressivos. Seus sintomas não
se reduziam a curto prazo, e esse grupo era tido como aquele que apresen-
tava um resultado precário a longo prazo. Outro terço dos pacientes uni-
polares “respondia parcialmente” aos antidepressivos c, nos ensaios de
curto prazo, esse grupo aparecia como aquele que estava sendo auxiliado
pelos medicamentos. O problema, como descobriram os investigadores do
XIMH, num estudo de longo prazo chamado Programa Colaborativo sobre
a Psicobiologia da Depressão, era que esses pacientes cm quem a medica-
ção era mantida saíam-se mal a longo prazo. “A resolução de um grande
episódio depressivo com sintomas depressivos residuais abaixo do limiar,
mesmo no primeiro episódio da vida, parece ser o primeiro passo de um
curso futuro mais grave, recorrente e crônico”, explicou Lewis Judd, um
ex-diretor do NIMH, num relatório do ano 2000.” O último terço dos paci-
entes via uma remissão de seus sintomas a curto prazo, mas apenas cerca
de metade desse grupo, quando mantida a medicação antidepressiva, per-
manecia bem por longos períodos.”
Em suma, dois terços dos pacientes inicialmente tratados com um an-
tidepressivo podem ter a expectativa de episódios recorrentes de depres-
são, e apenas uma pequena percentagem pode ter a expectativa de se
recuperar e permanecer bem. “Apenas 15% das pessoas com depressão
unipolar experimentam um único surto da doença”, observou o manual da
APA de 1999, ao passo que para as demais 85% a cada novo episódio as
remissões tornam-se “menos completas, e novas recorrências se desenvol-
vem com uma provocação menor”. Decididamente, esses resultados fala-
vam de um transtorno pernicioso, mas então John Rush, um ilustre psi-
quiatra do Centro Médico do Sudoeste do Texas, cm Dallas, sugeriu que
“os resultados da vida real” eram ainda piores. Essas estatísticas sobre re-
sultados provieram de ensaios clínicos que tinham pacientes escolhidos a
dedo, com uma probabilidade maior de responder bem a um antidepres-
sivo, disse ele. “A prazo mais longo, os resultados clínicos de pacientes
ambulatoriais representativos, com grandes transtornos depressivos não
psicóticos, tratados na prática cotidiana nos setores privado ou público,
ainda estão por ser bem definidos.”
Em 2004, Rush e seus colaboradores preencheram essa lacuna da lite-
ratura médica. Trataram 118 pacientes “da vida real” com antidepressivos
e lhes proporcionaram uma abundância de apoio afetivo e clínico, “especi-
ficamente concebidos para maximizar os resultados clínicos”. Esse era o
melhor atendimento que a psiquiatria moderna podia fornecer, e foram os
seguintes seus resultados na vida real: apenas 26% dos pacientes chega-
ram a responder ao antidepressivo (no sentido de seus sintomas terem
uma redução de pelo menos 50% numa escala de avaliação), e apenas
aproximadamente metade dos que reagiram permaneceram bem por um
período considerável. O mais espantoso foi que apenas 6% dos pacientes
tiveram remissão completa da depressão e permaneceram livres dela, du-
rante esse ensaio com duração de um ano. Esses “resultados revelaram
uma resposta e índices de remissão singularmente baixos”, disse Rush.
Esse quadro desolador dos resultados na vida real logo foi confirmado
por um grande estudo do NIMH, conhecido como ensaio STAR*D, que
Rush ajudou a dirigir. Quase todos os 4.041 pacientes ambulatoriais da
vida real inscritos nesse ensaio estavam apenas moderadamente enfer-
mos; mesmo assim, menos de 20% tiveram remissão e permaneceram
bem durante um ano. “A maioria dos indivíduos com grandes transtornos
depressivos tem um curso crônico, amiúde com sintomatologia considerá-
vel e com incapacitação até mesmo entre os episódios”, concluíram os in-
vestigadores.
No curto espaço de quarenta anos, a depressão havia sido profunda-
mente transformada. Antes do aparecimento dos remédios, ela era um
transtorno bastante raro e os desfechos costumavam ser bons. Os
pacientes e suas famílias podiam recebera garantia de que era improvável
que o problema afetivo se tornasse crônico. Era apenas demorada - de seis
a 12 meses, mais ou menos - a recuperação do paciente. Hoje em dia, o
NIMH informa ao público que os distúrbios depressivos afligem um em
cada dez norte-americanos, todos os anos, que a depressão vem “apare-
cendo mais cedo na vida” do que acontecia no passado, e que o prognós-
tico a longo prazo para as pessoas que ela atinge é sombrio. “Um episódio
grave de depressão pode ocorrer apenas uma vez na vida de uma pessoa,
porém, com mais frequência, ele se repete durante toda a sua vida”, ad-
verte o NIMH.

Depressão Não Medicada vs Depressão Medicada

Chegamos agora a um terreno intelectual semelhante ao que experi-


mentamos com os antipsicóticos: será realmente possível que os antide-
pressivos, que são tão populares entre os consumidores, piorem os resul-
tados a longo prazo? Todos os dados que examinamos até aqui indicam
que os remédios fazem exatamente isso, mas há um dado probatório que
ainda nos falta: como é a depressão não medicada, nos dias atuais? Será
que tem um curso melhor a longo prazo? Infelizmente, como descobriram
os pesquisadores da Universidade de Ottawa em 2008, não há ensaios ale-
atórios de boa qualidade que comparem os resultados a longo prazo de pa-
cientes tratados com antidepressivos e pacientes nunca medicados. Sendo
assim, concluíram os pesquisadores, os ensaios aleatórios “não fornecem
qualquer orientação para os tratamentos mais longos”. Entretanto, pode-
mos buscar estudos “naturalistas” que nos ajudem a responder a essa
pergunta1.
Pesquisadores do Reino Unido, da Holanda e do Canadá investigaram
essa questão, reexaminando históricos de casos de pacientes deprimidos
cujo uso de medicamentos tinha sido acompanhado. Num estudo de 1997
sobre os resultados obtidos numa grande instituição, numa comunidade
carente, cientistas britânicos relataram que 95 pacientes nunca medica-
dos viram seus sintomas se reduzirem em 62% ao longo de seis meses, ao

1 A ressalva a ser feita sobre os estudos naturalistas é que o grupo não medicado, no momento do
diagnóstico inicial, pode não estar tão deprimido quanto os indivíduos que usam medicamentos.
Além disso, aqueles que evitam a medicação lambem podem ter uma “resiliência interna” maior.
Mesmo feitas essas ressalvas, deve ser possível obtermos uma ideia do curso da depressão não
medicada com base nos estudos naturalistas, para ver como ela se compara com o curso da de-
pressão tratada com antidepressivos.
passo que os 53 pacientes tratados com medicamentos tiveram apenas
uma redução de 33% dos sintomas. Os pacientes medicados, concluíram
eles, “continuaram a ter sintomas depressivos ao longo dos seis meses”.
Num estudo retrospectivo dos resultados cm dez anos, abrangendo 222
pessoas que haviam sofrido o primeiro episódio de depressão, investigado-
res holandeses constataram que 76% dos não tratados com antidepressi-
vos recuperaram-se e nunca tiveram recaídas, em comparação com 50%
daqueles a quem foram receitados antidepressivos. Por fim, Scott Patten,
da Universidade de Calgary, esmiuçou um grande banco de dados de sa-
úde canadense, para avaliar os resultados de 9.508 pacientes depressivos
após cinco anos, e determinou que os pacientes medicados ficavam depri-
midos, cm média, 19 semanas por ano, em contraste com 11 semanas, no
caso dos pacientes que não tomavam medicamentos. Esses resultados, es-
creveu Patten, foram compatíveis com a hipótese de Giovanni Fava de que
“o tratamento antidepressivo pode levar a uma deterioração do curso dos
distúrbios do humor a longo prazo”.
Um estudo conduzido pela OMS em 15 cidades do mundo inteiro, para
aferir o valor da triagem para a depressão, levou a resultados semelhan-
tes. Os pesquisadores fizeram um levantamento da depressão em pacien-
tes que apareciam nas clínicas de saúde por outras queixas, e depois, ob-
servando-os em sigilo, acompanharam durante os 12 meses seguintes os
que foram identificados como deprimidos. Seu raciocínio foi que os clínicos
gerais das instituições identificariam a depressão em alguns pacientes,
mas não em todos, e os pesquisadores levantaram a hipótese de que os re-
sultados se enquadrariam cm quatro grupos: as pessoas diagnosticadas e
tratadas com antidepressivos se sairiam melhor; as diagnosticadas e trata-
das com benzodiazepinas teriam o segundo melhor resultado; as diagnos-
ticadas e tratadas sem psicotrópicos seriam o terceiro melhor resultado, e
as não identificadas e não tratadas teriam o pior resultado. Infelizmente, o
que se constatou foi o inverso. Ao todo, os investigadores da OMS identifi-
caram 740 pessoas como deprimidas, e foram as 484 não expostas a me-
dicamentos psicotrópicos (quer fossem diagnosticadas, quer não) que
apresentaram os melhores resultados. Gozavam de “saúde geral” muito
melhor, ao final de um ano, seus sintomas depressivos eram muito mais
brandos, e uma percentagem menor foi considerada como ainda sendo
“doente mental”. O grupo que mais sofreu com a “depressão contínua” foi
o dos pacientes tratados com antidepressivos. O “estudo não corrobora a
ideia de que o não reconhecimento da depressão lenha graves consequên-
cias adversas”, escreveram os investigadores.’’
Resultados, após um ano, do estudo de triagem da depressão condu-
zido pela OMS

Os investigadores da OMS informaram que uma percentagem mais alta do grupo


não medicado se recuperou, e que a “depressão contínua" se mostrou mais ele-
vada entre os tratados com antidepressivos.
Em seguida, pesquisadores do Canadá e dos Estados Unidos investiga-
ram se o uso de antidepressivos afetava os índices de invalidez. No Ca-
nadá, Carolyn Dewa e seus colaboradores do Centro de Saúde Mental e
Dependência de Drogas, cm Ontário, identificaram 1.281 pessoas que fo-
ram postas em licença temporária por invalidez entre 1996 e 1998, por te-
rem faltado a dez dias consecutivos de trabalho, em decorrência da de-
pressão. As 564 pessoas que, posteriormente, não compraram o antide-
pressivo receitado voltaram ao trabalho, cm média, em 77 dias, ao passo
que o grupo medicado levou 105 dias para voltar a trabalhar. Mais impor-
tante, apenas 9% do grupo não medicado pleitearam uma licença a longo
prazo por invalidez, cm comparação com 19% dos que tomavam antide-
pressivos.1 “Será que a não utilização de um antidepressivo reflete uma re-
sistência a adotar o papel de enfermo c, consequentemente, um retorno
mais rápido ao trabalho?”, perguntou-se Dewa. Similarmente, o psiquiatra
William Coryell, da Universidade de Iowa, e seus colaboradores, financia-
dos pelo NIMH, estudaram os resultados “naturalistas" após seis anos em

1 Esse estudo é uma poderosa ilustração de por que, como sociedade, podemos ser iludidos a res-
peito dos méritos dos antidepressivos. Dos que tomaram um antidepressivo, 73% regressaram ao
trabalho (outros 8% pediram demissão ou se aposentaram), e não há dúvida de que muitos desse
grupo diriam que o tratamento medicamentoso os ajudou. Eles se tornariam voz.es da sociedade
que atestam os benefícios desse paradigma de atendimento e, sem um estudo como o aqui apre-
sentado, não haveria como saber que, na verdade, os medicamentos estavam aumentando u risco
da invalidez a longo prazo.
547 pessoas que haviam sofrido um episódio de depressão, e constataram
que as que receberam tratamento da doença tiveram três vezes mais pro-
babilidade do que o grupo não tratado de sofrer uma “cessação” de seu
“principal papel social”, e uma probabilidade quase sete vezes maior de se
tornarem “inválidas”. Além disso, enquanto muitos dos pacientes tratados
viram sua situação econômica sofrer um declínio acentuado durante o pe-
ríodo de seis anos, apenas 17% do grupo não medicado tiveram uma dimi-
nuição da renda, e 59% viram sua renda aumentar. “Os indivíduos não
tratados descritos neste estudo tiveram uma doença mais branda e de me-
nor duração [que a dos que foram tratados] e, apesar da ausência do tra-
tamento, não exibiram mudanças significativas do status socioeconómico,
a longo prazo”, escreveu Coryell.
Risco de invalidez em pacientes deprimidos

Esse foi um estudo de 1.281 empregados canadenses que estavam cm licença tem-
porária por invalidez, cm decorrência da depressão. Os que tomaram um antide-
pressivo tiveram mais que o dobro da probabilidade de passar para a condição de
licenciados permanentes por invalidez.
Vários países também observaram que, após a chegada dos ISRS, o
número de seus cidadãos incapacitados pela depressão aumentou drasti-
camente. Na Grã- Bretanha, o “número de dias de incapacidade” por de-
pressão e por distúrbios neuróticos saltou de 38 milhões, em 1984, para
117 milhões, em 1995, ou um aumento de três vezes. A Islândia informou
que a percentagem de sua população incapacitada pela depressão quase
duplicou entre 1976 e 2000. Se os antidepressivos fossem realmente úteis,
ponderaram os investigadores islandeses, o uso desses medicamentos, “ao
que seria esperável, teria um impacto na saúde pública, reduzindo a inva-
lidez, a morbidez e a mortalidade decorrentes de transtornos
depressivos’’.1 Nos Estados Unidos, a percentagem de norte-americanos
cm idade economicamente ativa que disseram ter sido incapacitados pela
depressão, ao responderem a levantamentos de saúde, triplicou durante a
década de 1990.
Estudo do NIMH sobre a depressão não tratada

Nesse estudo, o NIMH investigou os resultados naturalistas de pessoas diagnostica-


das com depressão grave que foram tratadas e não tratadas. Ao cabo de seis
anos, os pacientes tratados tiveram uma probabilidade muito maior de parar de
funcionar cm seus papéis sociais costumeiros e de se tornarem inválidos.
Há um último estudo que precisamos examinar. Em 2006, Michael
Posternak, um psiquiatra da Universidade Brown, confessou que “infeliz-
mente, temos pouco conhecimento direto a respeito do curso da depressão
aguda em pacientes não tratados”. Os maus resultados a longo prazo, de-
talhados nos manuais da APA e nos estudos do NIMH, contavam a histó-
ria da depressão medicada, que poderia ser um bicho muito diferente.
Para estudar como seria a depressão não tratada nos tempos modernos,
Posternak e seus colaboradores identificaram 84 pacientes inscritos no
Programa Psicobiologia da Depressão, do NIMH, os quais, depois de se re-
cuperarem de um episódio inicial de depressão, tiveram uma recaída

Há um último estudo que precisamos examinar. Em 2006, Michael Posternak, um psiquiatra da Universidade
Brown, confessou que, “infelizmente, temos pouco conhecimento direto a respeito do curso da depressão
aguda em pacientes não tratados”. Os maus resultados a longo prazo, detalhados nos manuais da APA e
nos estudos do NIMH, contavam a história da depressão medicada, que poderia ser um bicho muito dife-
rente. Para estudar como seria a depressão não tratada nos tempos modernos, Posternak e seus colabora-
dores identificaram 84 pacientes inscritos no Programa Psicobiologia da Depressão, do NIMH, os quais, de-
pois de se recuperarem de um episódio inicial de depressão, tiveram uma recaída posterior, mas não volta-
ram a ser medicados nessa ocasião. Embora esses pacientes não fossem um grupo “nunca exposto” às dro-
gas, Posternak ainda pôde acompanhar sua recuperação “sem tratamento” desse segundo episódio de de-
pressão. Eis os resultados: 23% se recuperaram em um mês, 67%, em seis meses e 85%, em um
posterior, mas não voltaram a ser medicados nessa ocasião. Embora esses
pacientes não fossem um grupo “nunca exposto” às drogas, Posternak
ainda pôde acompanhar sua recuperação “sem tratamento” desse segundo
episódio de depressão. Eis os resultados: 23% se recuperaram em um
mês, 67%, em seis meses e 85%, em um ano. Kraepelin, como observou
Posternak, dissera que os episódios depressivos não tratados costumavam
resolver-se no intervalo de seis a oito meses, e os resultados do estudo
atual forneceram “talvez a confirmação mais rigorosa, em termos metodo-
lógicos, dessa estimativa”.
Aparentemente, os antigos estudos epidemiológicos não eram tão fa-
lhos, afinal. 0 estudo de Posternak também mostrou por que os ensaios
dos medicamentos durante seis semanas haviam desviado a psiquiatria do
curso correto. Embora apenas 23% dos pacientes não medicados se recu-
perassem depois de um mês, as remissões espontâneas continuaram de-
pois desse prazo, na proporção de aproximadamente 2% por semana, e as-
sim, ao final de seis meses, dois terços dos pacientes estavam livres da de-
pressão. A depressão não medicada leva tempo para desaparecer, e isso se
perde de vista nos ensaios a curto prazo. “Se até 85% dos indivíduos de-
primidos que não recebem tratamento somático recuperam- se espontane-
amente no prazo de um ano, seria extremamente difícil qualquer interven-
ção demonstrar um resultado superior a esse”, disse Posternak.
Era exatamente o alerta feito por Joseph Zubin em 1955: “Seria teme-
rário afirmar uma vantagem definitiva para uma terapia específica, sem
um acompanhamento de dois a cinco anos”.

Nove Milhões, e a Contagem Continua

Agora podemos ver como se encaixa toda a história dos antidepressi-


vos, e por que o uso disseminado desses medicamentos estaria contribu-
indo para um aumento do número de pessoas incapacitadas por doença
mental nos Estados Unidos. A curto prazo, é provável que os indivíduos
que tomam antidepressivos vejam seus sintomas diminuírem. Entenderão
isso como prova de que os medicamentos funcionam, e o mesmo aconte-
cerá com seus médicos. Entretanto, essa melhora dos sintomas a curto
prazo não é acentuadamente maior do que a observada em pacientes tra-
tados com um placebo, e esse uso inicial também introduz as pessoas
num curso problemático, a longo prazo. Se pararem de tomar a medica-
ção, elas terão um alto risco de recaídas. Se permanecerem com as drogas,
entretanto, também é provável que sofram episódios recorrentes de
depressão, e essa cronicidade aumenta o risco de que venham a se tornar
inválidas. Até certo ponto, os ISRS funcionam como uma armadilha, do
mesmo modo que os neurolépticos.
Também podemos acompanhar o aumento do número de pessoas in-
capacitadas por depressão durante a era dos antidepressivos. Em 1955,
havia 38.200 pessoas nos manicômios nacionais cm decorrência da de-
pressão, o que equivale a um índice de invalidez per capita de um cm cada
4.345 habitantes. Atualmente, o transtorno depressivo agudo e a principal
causa de invalidez, nos Estados Unidos para pessoas entre 15 e 44 anos.
De acordo com o NIMH, a doença afeta 15 milhões de norte- americanos
adultos, e pesquisadores da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins rela-
taram, em 2008, que 58% dos indivíduos desse grupo achavam-se “grave-
mente prejudicados”. Isso significa que, no momento, quase nove milhões
de adultos encontram-se incapacitados, em alguma medida, por essa do-
ença.
Também é importante notar que essa incapacitação não provém exclu-
sivamente do fato de as pessoas tratadas com antidepressivos terem um
alto risco de sofrer episódios recorrentes de depressão. Os ISRS também
causam um grande número de efeitos colaterais perturbadores. Estes in-
cluem disfunções sexuais, eliminação do sono REM, tiques musculares,
fadiga, embotamento afetivo e apatia. Além disso, investigadores relataram
que o uso a longo prazo se associa a deterioração da memória, dificulda-
des na resolução de problemas, perda da criatividade e deficiências na
aprendizagem. “Nosso campo”, confessaram Maurizio Fava e outros profis-
sionais do Hospital Geral de Massachusetts, em 2006, “não tem prestado
atenção suficiente à presença de sintomas cognitivos que emergem ou per-
sistem durante o tratamento a longo prazo com antidepressivos. (...) Esses
sintomas parecem ser bastante comuns.”
Os estudos com animais também têm produzido resultados alarman-
tes. Ratos que receberam altas doses de ISRS durante quatro dias acaba-
ram com neurônios inchados e retorcidos como saca-rolhas. “Não sabe-
mos se as células estão morrendo”, escreveram pesquisadores da Facul-
dade de Medicina Jefferson, na Filadélfia. “Esses efeitos podem ser transi-
tórios e reversíveis. Ou podem ser permanentes.”'0 Outros relatórios suge-
riram que essas substâncias podem reduzir a densidade das conexões si-
nápticas no cérebro, causar morte celular no hipocampo, encolher o tá-
lamo e desencadear anormalidades no funcionamento dos lobos frontais.
Nenhuma dessas possibilidades foi bem estudada nem documentada, mas
fica claro que há alguma coisa errada se os sintomas de deterioração
cognitiva em usuários de antidepressivos a longo prazo são “bastante co-
muns”.

Melissa

Entrevistei diversas pessoas que recebiam pensões da Renda Comple-


mentar da Previdência (SSI) ou do Seguro da Previdência Social por Invali-
dez (SSDI) cm decorrência da depressão, e muitas contaram histórias se-
melhantes à de Melissa Sanees. Tomaram um antidepressivo pela pri-
meira vez quando estavam na adolescência, ou no começo da casa dos 20
anos, e o medicamento funcionou por algum tempo. Depois, no entanto, a
depressão voltou e, desde então, elas passaram a lutar com episódios de-
pressivos. Suas histórias combinam de maneira notável com a cronicidade
a longo prazo detalhada na literatura científica. Também me reencontrei
com Melissa pela segunda vez, nove meses depois de nossa primeira en-
trevista, e suas lutas continuavam praticamente iguais. No outono de
2008, ela começou a tomar uma dose alta de um inibidor de monoamina
oxidase, o que proporcionou algumas semanas de alívio, depois das quais
a depressão voltou ainda pior. Em nossa segunda entrevista, ela estava
considerando a terapia de eletrochoque e, quando almoçávamos num res-
taurante tailandês, falou, com ar tristonho, de como gostaria que seu tra-
tamento pudesse ter sido diferente.
“Eu realmente me pergunto o que teria acontecido se [aos 16 anos] eu
tivesse simplesmente conversado com alguém, e se essa pessoa pudesse
ter me ajudado a aprender o que eu poderia fazer sozinha para ser uma
pessoa saudável. Nunca tive um modelo para isso. Alguém poderia ter me
ajudado nos meus problemas com a comida e com a minha dieta e exercí-
cios, e me ajudado a aprender a cuidar de mim. Em vez disso, me disse-
ram: ‘Você tem tal ou qual problema com seus neurotransmissores, por-
tanto, tome este comprimido de Zoloft’; e, quando isso não funcionou, foi
‘Tome este comprimido de Prozac’, e, quando isso não funcionou, foi ‘Tome
este comprimido de Effexor’, e aí, quando comecei a ter problemas para
dormir, foi ‘Tome este comprimido para dormir’”, disse ela, com a voz mais
triste que nunca. “Estou muito cansada dos comprimidos.”
9.
O CRESCIMENTO EXPLOSIVO DO TRANSTORNO BIPOLAR

“Eu gostaria de assinalar que há na história da medicina


muitos exemplos de situações em que a vasta maioria dos
médicos faz alguma coisa que dá errado. O melhor exem-
plo disso é a sangria, que foi a prática médica mais co-
mum desde o século I d.C. até o século XIX.” — Nassir Gha-
emi, Centro Médico Tufts, Conferência da Sociedade Norte-
Americana de Psiquiatria (APA), 2008
Na reunião anual da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA)
em 2008, realizada em Washington, houve coletivas de imprensa diárias, e
durante as apresentações que falavam dos grandes avanços vindouros, os
dirigentes da entidade instavam sistematicamente os repórteres e redato-
res científicos presentes a ajudarem a “transmitir a mensagem de que o
tratamento [psiquiátrico] funciona e é eficaz, e de que nossas doenças são
tão reais quanto as doenças cardiovasculares e o câncer”, nas palavras da
presidente da instituição, Carolyn Robinowitz. “Precisamos trabalhar jun-
tos em parceria, a fim de podermos levar a notícia aos pacientes e seus fa-
miliares”. A imprensa tinha um importante papel a desempenhar, explicou
a futura presidente Nada Logan Stotland, porque “o público é vulnerável
às informações equivocadas”. Ela exortou os repórteres a “nos ajudarem a
informar ao público que as doenças psiquiátricas são reais, os tratamen-
tos psiquiátricos funcionam e nossos dados são tão sólidos quanto em
qualquer outra área da medicina”.
Rabisquei essas três citações no meu caderno de notas, apesar de não
me parecer que Anatomia de uma Epidemia viesse propriamente a se en-
quadrar no modelo de parceria pretendido pela APA, e depois, dia após
dia, passei a dar uma volta pelo grande salão de exposições, o que sempre
me agradou. As companhias farmacêuticas Eli Lilly, Pfizer, Bristol-Myers
Squibb e todos os outros principais vendedores de medicamentos psiquiá-
tricos tinham enormes centros de recepção, nos quais, se você fosse mé-
dico(a), poderia retirar várias bugigangas e brindes. O da Pfizer parecia ser
o mais popular, já que os psiquiatras podiam receber um novo brinde per-
sonalizado a cada dia - seu nome gravado numa minilanterna, num dia. e
num carregador de telefone celular, no outro. Eles também podiam ganhar
brindes jogando um videogame chamado “Desafio da corrida dos médi-
cos”, no qual o ritmo do seu eu virtual corria para a linha de chegada,
regido pela qualidade de suas respostas a perguntas sobre as maravilhas
do Geodon como tratamento do transtorno bipolar. Depois de jogar esse
game, muitos faziam fila para tirar sua foto e estampá-la num bóton pu-
blicitário que dizia “O Melhor Médico do Mundo'’.
Os eventos de maior público na conferência foram os simpósios patro-
cinados pela indústria. A cada café da manhã, almoço e jantar, os médicos
podiam desfrutar de uma suntuosa refeição gratuita, seguida por pales-
tras sobre o tema escolhido. Houve simpósios sobre depressão, transtorno
do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), esquizofrenia e prescri-
ção de antipsicóticos a crianças e adolescentes, e quase todos os oradores
vinham das melhores escolas acadêmicas. O fato de que todos estavam
sendo remunerados pelas empresas farmacêuticas era abertamente reco-
nhecido, uma vez que a APA, como parte de uma nova política de transpa-
rência, havia publicado um gráfico com a lista de todas as maneiras pelas
quais o dinheiro da indústria farmacêutica fluía para esses “líderes pen-
santes”. Além de receberem verbas para a pesquisa, quase todos os “espe-
cialistas” trabalhavam como consultores em “conselhos consultivos” e
como membros de “centrais de palestrantes”. Assim, viu-se que Joseph Bi-
ederman - um psiquiatra do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston,
que nos anos 1990 liderou a popularização do transtorno bipolar juvenil -
recebeu verbas de pesquisa de oito empresas, foi “consultor” de nove e tra-
balhou como “palestrante” para oito. Sua longa lista de clientes farmacêu-
ticos não era tão incomum assim e, em algumas ocasiões, os oradores ti-
nham que atualizar suas informações no guia de divulgação, ao se dirigi-
rem ao pódio, por terem acrescentado em data recente mais uma compa-
nhia farmacêutica à sua lista de clientes. Depois de fornecer zelosamente
essas informações num simpósio dedicado aos méritos da prescrição de
múltiplas drogas psiquiátricas para crianças, Jean Frazier, da Faculdade
de Medicina da Universidade Harvard, disse, sem qualquer indício apa-
rente de ironia: “Espero que vocês constatem que minha apresentação não
é tendenciosa”.
Os oradores fizeram palestras muito refinadas, prova do treinamento
em oratória que haviam recebido das empresas farmacêuticas. Começa-
vam habitualmente por uma pilhéria ou brincadeira, antes de passarem
para seus diapositivos do PowerPoint, exibidos em telas de salão de baile
maiores que as encontradas na maioria dos cinemas. Muitas vezes, os
participantes recebiam controles remotos portáteis, para responder a per-
guntas de múltipla escolha durante as apresentações, ao som da música
dramática que ia sendo tocada à medida que eles teclavam suas
respostas, tal como no episódio final do programa Jeopardyl, e, quando
seu saber coletivo era exibido nas telas, a maioria costumava acertar as
respostas. “Vocês são muito espertos”, comentou um orador.
Patty Duke apresentou aos participantes da reunião de 2008 da APA
sua história clínica de celebridade. O conglomerado farmacêutico AstraZe-
neca patrocinou sua palestra, e o porta-voz da empresa que a apresentou,
aparentemente temeroso de que, por alguma razão, a plateia não compre-
endesse o que ela viera dizer, informou a todos que “a mensagem a ser le-
vada daqui é que a doença mental é diagnosticável e reconhecível, e o tra-
tamento funciona”. Depois disso, a atriz ganhadora do Oscar, usando um
vestido cor de abóbora, contou o quanto havia sofrido, durante vinte anos,
com uma doença bipolar não diagnosticada, bebendo cm excesso e sendo
sexualmente promíscua ao longo desse período. O diagnóstico e a medica-
ção “me transformaram em um bom partido”, disse ela, e contou que,
sempre que fala com grupos de pacientes por todo o país, martela esse
ponto. “Eu digo a eles: tomem seus remédios!”, afirmou. Os medicamentos
resolvem a doença, “com pouquíssimos aspectos negativos!”. A plateia ex-
plodiu em aplausos diante disso e, em seguida, a prima idêntica favorita
dos Estados Unidos1 2 ofereceu aos psiquiatras uma última bênção: “So-
mos mais do que abençoados por contar com pessoas como vocês, que op-
taram por cuidar de nós e por nos conduzir a uma vida equilibrada. (...)
Extraio minhas informações de vocês e da NAMI [Aliança Nacional Contra
a Doença Mental]," e, se eu resistisse a essas informações, mereceria que
jogassem uma rede em cima de mim. Às vezes, quando ouço alguém dizer,
numa de minhas palestras, ‘Eu não preciso de medicação, não a tomo’, eu
lhe digo: ‘sente-se, você está fazendo papel de bobo’”.
Isso levou a uma ovação de pé, e assim, quando guardei meu caderno,
pareceu certo que aquela era uma reunião cuja mensagem final, não im-
portava aonde se fosse, seria muito bem controlada. Quase tudo fora pre-
parado e organizado de um modo que dizia de uma profissão muito confi-
ante em sua terapêutica e, mesmo sabendo que Martin Harrow faria uma
palestra sobre seu estudo a longo prazo dos resultados da esquizofrenia, vi
que lhe tinham concedido apenas vinte minutos e que sua apresentação
havia sido marcada para uma das menores salas do centro de convenções.

1
Referencia às duas adolescentes representadas por Patty Duke cm seu programa de televisão, The Patty Duke Show
(1963-1966), Patty e Cathy, cujos pais, Martin e Kcnneth, são gêmeos idênticos, donde a denominação de
“primas idênticas” das meninas. (N.T.)
2
A sigla corresponde à denominação original, National Alliance on Mental Illness. (N.T.)
Sua exposição seria a única exceção à regra, de modo que eu não esperava
ouvir nada de espantoso na tarde de terça-feira em que me espremi para
entrar numa sala apinhada de gente, ligeiramente maior, para assistir a
um fórum intitulado Os Antidepressivos no Transtorno Bipolar. Calculei
que os oradores meramente apresentariam resultados de testes que, de
um modo ou de outro, justificariam o uso desses medicamentos; no en-
tanto, logo me apanhei escrevendo furiosamente. A discussão, conduzida
pelos maiores especialistas do país em transtorno bipolar, o que incluiu os
dois grandes patriarcas da psiquiatria biológica nos Estados Unidos, Fre-
derick Goodwin e Robert Post, concentrou-se nesta pergunta: os antide-
pressivos pioram o curso do transtorno bipolar a longo prazo? E será que
o fazem de maneira significativa?
“A doença se modificou”, disse Goodwin, que, em 1990, fora coautor da
primeira edição de seu livro Doença Maníaco-Depressiva, considerado a
bíblia desse campo. “Temos [hoje] ciclos muito mais rápidos do que des-
crevemos na primeira edição, muito mais estados mistos do que descreve-
mos na primeira edição, muito mais resistência ao lítio e muito mais fra-
casso do tratamento com lítio do que foi registrado na primeira edição. A
doença já não é o que Kraepelin descreveu, e o fator principal, creio eu, é
que a maioria de seus portadores recebe um antidepressivo antes mesmo
de ser exposta a um estabilizador do humor.”
Essa foi a salva inicial do que se transformou numa confissão de uma
hora. Embora nem todos os palestrantes concordassem em que os antide-
pressivos haviam sido desastrosos para os pacientes bipolares, foi essa a
temática geral, e ninguém questionou o resumo final de Goodwin de que
os resultados, na doença bipolar, tinham piorado visivelmente nos vinte
anos anteriores. Os antidepressivos, afirmou Nassir Ghaemim, do Centro
Médico Tufts, podem causar guinadas maníacas e transformar os pacien-
tes em “portadores de ciclos rápidos”, além de aumentar a duração dos
episódios depressivos. A ciclicidade rápida, acrescentou Post, levava a um
desfecho muito ruim.
“O número de episódios, e há uma literatura riquíssima [que docu-
menta isso], está associado a mais déficits cognitivos”, disse ele. “Estamos
construindo mais episódios, mais resistência ao tratamento, mais disfun-
ção cognitiva, e existem dados que demonstram que, se a pessoa tem qua-
tro episódios depressivos, unipolares ou bipolares, isso duplica o risco de
demência numa fase posterior da vida. E, adivinhem só, isto não é nem
metade da história. (...) Nos Estados Unidos, as pessoas com depressão,
com transtorno bipolar e com esquizofrenia estão perdendo de 12 a vinte
anos de expectativa de vida, comparadas a pessoas que não estão no sis-
tema de saúde mental.”
Era um discurso que dizia de um paradigma de atendimento que havia
fracassado por completo, de um tratamento que deixava os pacientes
constantemente sintomáticos e com prejuízos cognitivos, e que também le-
vava à sua morte prematura. “Bem, os senhores acabaram de saber que
uma das coisas que fazemos não funciona muito bem a longo prazo”, Post
praticamente gritou. "Então, que diabos devemos fazer?”
As confissões vieram, rápidas e furiosas. A psiquiatria, é claro, tinha
sua “base de dados” para usar antidepressivos no transtorno bipolar, mas,
no dizer de Post, os ensaios clínicos conduzidos por companhias farma-
cêuticas “são praticamente inúteis para nós como clínicos. (...) Não nos di-
zem o que realmente precisamos saber, a que nossos pacientes responde-
rão e, se não responderem a esse primeiro tratamento, qual deverá ser a
iteração seguinte, e por quanto tempo eles devem ser mantidos com as
medicações”. Apenas uma pequena percentagem de pessoas, acrescentou
ele, efetivamente “responde a esses tratamentos vagabundos, como os an-
tidepressivos”. Quanto aos ensaios recentes, financiados por empresas far-
macêuticas, que haviam mostrado que os pacientes bipolares de quem se
retirava a medicação antipsicótica tinham altos índices de recaída - o que,
teoricamente, servia de prova de que os pacientes precisavam tomar esses
medicamentos a longo prazo-, esses estudos “eram destinados a captar a
recaída [no grupo tratado com placebos]”, disse Goodwin. “Não são prova
de que a droga ainda seja necessária; são prova de que, quando se modi-
fica subitamente um cérebro que se adaptou à droga, vai se chegar a uma
recaída”. Post acrescentou: “Neste momento, cinquenta anos após o ad-
vento dos medicamentos antidepressivos, ainda não sabemos realmente
como tratar a depressão bipolar. Precisamos de novos algoritmos de trata-
mento que não sejam simplesmente inventados”.
Tudo isso foi muito parecido com o momento, em O Mágico de Oz, em
que a cortina é aberta e o poderoso mago é revelado como um velho frágil.
Para qualquer um na plateia que houvesse passado a manhã no centro de
acolhimento da Pfizer, respondendo a perguntas de vídeo game sobre as
maravilhas do Geodon no transtorno bipolar, deve ter sido arrasador.
Trinta anos antes, Guy Chouinard e Barryjones haviam desconcertado
essa classe profissional com seu discurso sobre a “psicose por hipersensi-
bilidade”, e agora os psiquiatras eram instados a encarar o fato de que os
resultados do transtorno bipolar eram piores, hoje, do que tinham sido
trinta anos antes, e de que os antidepressivos eram os prováveis culpados.
Os estimulantes, ao que parecia, também podiam piorar o estado dos pa-
cientes bipolares e, por último, Ghaemi disse à plateia que a psiquiatria
precisava adotar uma abordagem “hipocrática” no uso das drogas psiquiá-
tricas, o que exigiria que parassem de receitá-los, a não ser que tivessem
uma boa comprovação de que eles eram realmente benéficos, a longo
prazo. “Diagnósticos, não drogaria”, disse ele, e, a certa altura, vários inte-
grantes da plateia - que ia ficando cada vez mais agitada com essa discus-
são - o vaiaram.
“Será possível que cinquenta mil psiquiatras estejam errados?”, per-
guntou ele, referindo-se ao uso de antidepressivos pelos médicos como
tratamento do transtorno bipolar. “Creio que a resposta é sim, provavel-
mente.”

O Transtorno Bipolar Antes do Lítio

Os leitores deste livro, tendo avançado até este ponto do texto, não se
haverão de surpreender ao saber que os resultados referentes ao trans-
torno bipolar sofreram uma piora drástica na era da farmacoterapia. A
única surpresa foi esse fracasso ter sido tão francamente discutido na
conferência da APA. Considerando-se o que a literatura científica revelava
sobre os resultados a longo prazo na esquizofrenia, na ansiedade e na de-
pressão tratadas com medicamentos, era razoável que os coquetéis de dro-
gas usados para tratar o transtorno bipolar não viessem a produzir bons
resultados a longo prazo. O aumento da cronicidade, o declínio funcional,
a deterioração cognitiva e a doença física, tudo isso se esperava que apare-
cesse nas pessoas tratadas com um coquetel que incluía, muitas vezes,
um antidepressivo. um antipsicótico. um estabilizador do humor, uma
benzodiazepina e, quem sabe, também um estimulante. Tratava-se de um
desastre médico que poderia ter sido previsto, e. infelizmente, ao rastrear-
mos o desenrolar dessa história, os detalhes nos parecerão por demais fa-
miliares.
Embora a doença “bipolar” seja um diagnóstico de origem recente, que
apareceu pela primeira vez no Manual de Diagnóstico e Estatística dos
Distúrbios Mentais da APA (DSM-III) em 1980, textos de medicina que re-
montam a Hipócrates contêm descrições de pacientes que sofrem de episó-
dios alternados de mania e melancolia. “A melancolia”, escreveu o médico
alemão Christian Vater no século XVII, “passa com frequência para a ma-
nia, e vice-versa. Ora os melancólicos riem, ora se entristecem, ora expres-
sam inúmeros outros gestos e formas de comportamento absurdos.” O
alienista inglês John Haslam relatou que “os mais furiosos maníacos mer-
gulham de repente numa melancolia profunda, e os pacientes mais depri-
midos e infelizes tornam-se violentos e furiosos”. Em 1854, o médico fran-
cês Jules Baillarger, que trabalhava num manicômio, chamou essa do-
ença de folie à double forme.'" Tratava-se de urna forma incomum, porém
reconhecível, de insanidade.
Quando Emil Kraepelin publicou seus textos diagnósticos, incluiu es-
ses pacientes cm seu grupo de maníaco-depressivos. Essa categoria diag-
nóstica também incluía pacientes que sofriam apenas de depressão ou de
mania (em contraste com padecer de ambas), e Kraepelin ponderou que
todos esses variados estados afetivos provinham da mesma doença subja-
cente. A cisão da psicose maníaco-depressiva em facções separadas de
unipolares e bipolares teve início em 1957, quando um psiquiatra alemão,
Karl Leonhard, determinou que a faceta maníaca da doença parecia ter
maior incidência cm membros de uma mesma família do que a forma de-
pressiva. Chamou os pacientes maníacos de “bipolares” e, a partir daí, ou-
tros pesquisadores identificaram diferenças adicionais entre as formas
unipolar e bipolar da psicose maníaco-depressiva. A instauração ocorria
mais cedo nos pacientes bipolares, amiúde na casa dos 20 anos, e pareceu
também que os pacientes bipolares corriam um risco ligeiramente maior
de se tornarem doentes crônicos.
Em seu livro de 1969, Manic Depressive Illness [Doença maníaco-de-
pressiva], George Winokur. da Universidade Washington em St. Louis, tra-
tou a depressão unipolar e a doença bipolar como entidades separadas e,
uma vez feita essa distinção, ele e outros começaram a reexaminar a lite-
ratura sobre a psicose maníaco-depressiva, a fim de isolar os dados relati-
vos aos pacientes “bipolares”. Em média, nos estudos mais antigos, apro-
ximadamente um quarto do grupo maníaco-depressivo havia sofrido episó-
dios maníacos, sendo, portanto, “bipolar”. Segundo a opinião geral, tra-
tava-se de uma doença rara. Havia, talvez, umas 12.750 pessoas interna-
das com doença bipolar em 1955, o que equivalia a uma taxa de invalidez
de uma em cada 13.000 pessoas.2 Naquele ano, houve apenas cerca de
2.400 “internações iniciais” por transtorno bipolar nos hospitais psiquiá-
tricos do país.
Como descobriu Winokur, os resultados a longo prazo entre os pacien-
tes maníacos, na era pré-fármacos, tinham sido bastante bons. Em seu
estudo de 1931, Horatio Pollock relatou que 50% dos pacientes internados
em hospitais psiquiátricos de Nova York por um primeiro acesso de mania
nunca sofreram um segundo surto (durante um acompanhamento de 11
anos), e apenas 20% tiveram três ou mais episódios. F. I. Wertham, da Fa-
culdade de Medicina Johns Hopkins, num estudo de 1929 sobre dois mil
pacientes maníaco-depressivos, verificou que 80% dos pacientes do grupo
maníaco recuperaram-se no prazo de um ano, e que menos de 1% neces-
sitaram de hospitalização a longo prazo. No estudo de Gunnar Lundquist,
75% de seus 103 pacientes maníacos recuperaram-se em dei meses e, du-
rante os unte anos seguintes, metade dos pacientes nunca teve nutro
surto, e apenas 8% desenvolveram um curso crônico. Desse grupo, 85%
ficaram “socialmente recuperados” e retomaram suas atividades anterio-
res. Por fim, Ming Tsuang da Universidade de Iowa, estudou como 86 pa-
cientes maníacos, internados num hospital psiquiátrico entre 1935 e
1944, saíram-se nos trinta anos seguintes, e constatou que quase 70% ti-
veram bons resultados, o que significou que estavam casados, morando
em suas próprias casas e trabalhando. Metade deles mostrou-se assinto-
mática durante esse longo acompanhamento. No cômputo geral, os paci-
entes maníacos tinham se saído tão bem quanto os pacientes unipolares
do estudo de Tsuang.
Esses resultados, escreveu Winokur, revelavam que "não há base para
se considerar que a psicose maníaco-depressiva afeta permanentemente
os que dela sofrem. Nesse aspecto, é claro, ela é diferente da esquizofre-
nia". Embora algumas pessoas sofressem de múltiplos episódios de mania
e depressão, cada episódio costumava ter "apenas alguns meses de dura-
ção" e, "num número significativo de pacientes, ocorre apenas um episódio
da doença". E o mais importante era que, uma vez recuperados de seus
episódios bipolares, os pacientes não costumavam ter "nenhuma dificul-
dade para retomar suas ocupações habituais”.

Entrada na Bipolaridade

Atualmente. de acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental


(NIMH), o transtorno bipolar afeta um em cada quarenta adultos nos Esta-
dos Unidos, de modo que. antes de examinarmos o que dizem os registros
sobre resultados acerca desse distúrbio, precisamos tentar compreender
esse aumento assombroso em sua prevalência? Embora a explicação sim-
plista seja que a psiquiatria ampliou enormemente as fronteiras do diag-
nóstico, isso é apenas parte da história. As drogas psicotrópicas - legais e
ilegais - ajudaram a alimentar o crescimento explosivo da bipolaridade.
Em estudos sobre pacientes que sofrem um primeiro episódio de bipo-
laridade, investigadores do Hospital McLean. da Universidade de
Pittsburgh, e do Hospital da Universidade de Cincinnati constaram que
pelo menos um terço deles havia usado maconha ou outra droga ilegal an-
tes de seu primeiro surto maníaco ou psicótico. Esse abuso de substân-
cias, concluíram os investigadores da Universidade de Cincinnati, pode
“iniciar progressivamente algumas respostas depois mais severas, culmi-
nando em episódios maníacos ou depressivos que depois se tornam auto-
perpetuadores". Até mesmo a cifra de um terço talvez seja baixa; em 2008,
pesquisadores da faculdade de Medicina Mt. Sinai relataram que quase
dois terços tios pacientes bipolares internados no Hospital Silver Hill, em
Connecticut, nos anos de 2005 e 2006, experimentaram seu primeiro
acesso de "humor instável" depois de abusarem de drogas ilícitas.12 Esti-
mulantes, cocaína, maconha e alucinógenos foram culpados comuns. Em
2007, investigadores holandeses relataram que o uso de maconha “está
associado a uma quintuplicação do risco de um primeiro diagnóstico de
transtorno bipolar" e que um terço dos novos casos de bipolaridade na Ho-
landa resultava disso.
Os antidepressivos também levaram muita gente ao campo da bipolari-
dade e, para entender por quê, basta retornarmos à descoberta dessa
classe de fármacos. Vimos pacientes tuberculosos, tratados com ipronia-
zida, dançarem pelas enfermarias hospitalares, e, embora aquela reporta-
gem de revista deva ter sido meio exagerada, ela falou de pacientes letárgi-
cos que de repente apresentavam um comportamento maníaco. Em 1956,
George Crane publicou o primeiro relatório sobre a mania induzida por
antidepressivos, problema que permaneceu presente na literatura cientí-
fica desde então.14 Em 1985, investigadores suíços que pesquisavam as
mudanças na composição da população de pacientes do hospital psiquiá-
trico Burgholzli, em Zurique, relataram que a percentagem dos que ti-
nham sintomas maníacos teve uma alta drástica após a introdução dos
antidepressivos. "Os transtornos bipolares aumentaram; mais pacientes
foram admitidos com surtos frequentes", escreveram os pesquisadores.
Num guia prático sobre a depressão, datado de 1993, a APA confessou
que “todos os tratamentos antidepressivos, inclusive a ECT [eletroconvul-
soterapia], podem provocar surtos maníacos ou hipomaníacos”."’ Alguns
anos depois, pesquisadores da Faculdade de Medicinada Universidade
Yale quantificaram esse risco. Examinaram os registros de 87.290 pacien-
tes diagnosticados com depressão ou ansiedade entre 1997 e 2001 e de-
terminaram que os tratados com antidepressivos converteram-se em paci-
entes bipolares a uma taxa de 7,7% ao ano, o que era três vezes maior do
que ativados pacientes não expostos a essas drogas.1, Como resultado,
em períodos mais longos, de 20% a 40% de todos os pacientes
inicialmente diagnosticados com depressão unipolar acabaram por se con-
verter em doentes bipolares. Com efeito, num recente levantamento dos
membros da Associação Nacional de Depressivos e Maníaco-Depressivos,
60% dos que tinham diagnóstico de bipolaridade disseram haver adoecido
com uma grande depressão, inicialmente, e se transformado cm maníaco-
depressivos após a exposição a algum antidepressivo.
Esses dados falam de um processo que fabrica, rotineiramente, pacien-
tes bipolares. “Quando se cria iatrogenicamente um paciente bipolar”, ex-
plicou Fred Goodwin numa entrevista de 2005 para a revista Primary
Psychiatry, “esse paciente tende a apresentar recorrências de doença bipo-
lar, mesmo que o antidepressivo causador do problema seja descontinu-
ado. Os dados mostram que, depois que o paciente tem um episódio maní-
aco, aumenta a probabilidade de que tenha outro, mesmo sem a estimula-
ção do antidepressivo”.20 Giovanni Fava, da Itália, formulou a ideia da se-
guinte maneira: “A mania induzida por antidepressivos não é um simples
fenômeno temporário e plenamente reversível, mas pode desencadear
complexos mecanismos bioquímicos de agravamento da doença”.
Com drogas ilegais e legais preparando o terreno para o transtorno bi-
polar, não admira que uma doença que era rara em 1955 tenha se tor-
nado corriqueira em nossos dias. Os inibidores seletivos de reabsorção de
serotonina (ISRS) tomaram os Estados Unidos de assalto na década de
1990 c, de 1996 a 2004, o número de adultos diagnosticados com trans-
torno bipolar teve um aumento de 56%. Ao mesmo tempo, a expansão sis-
temática das fronteiras diagnosticas pela psiquiatria, nos últimos 35 anos,
também ajudou a alimentar o crescimento explosivo da bipolaridade.
Quando o transtorno bipolar foi originalmente separado da psicose
maníaco-depressiva, o diagnóstico exigia que a pessoa houvesse sofrido
episódios tão agudos de mania e depressão que cada um dos tipos tivesse
resultado em internação hospitalar. Depois, em 1976, Goodwin e outros
do NIMH sugeriram que, se uma pessoa tivesse sido hospitalizada por de-
pressão, mas não por mania, e apesar disso houvesse experimentado um
episódio brando de mania (hipomania), poderia ser diagnosticada com o
transtorno bipolar II, uma forma menos grave da doença. Depois, o diag-
nóstico de bipolar II foi ampliado para incluir pessoas que nunca tinham
sido hospitalizadas por depressão nem por mania, mas haviam simples-
mente experimentado episódios de ambas. Em seguida, na década de
1990, a comunidade psiquiátrica resolveu que o diagnóstico de hipomania
já não requeria quatro dias de “humor eufórico, expansivo ou irritadiço”,
mas simplesmente dois dias desse estado de humor. O transtorno bipolar
estava cm andamento c, com as fronteiras diagnósticas alargadas dessa
maneira, de repente os pesquisadores puseram-se a anunciar que ele afe-
tava até 5% da população. Mas nem isso pôs fim à explosão de cresci-
mento: em 2003, Lewis Judd, ex-diretor do NIMH, e outros afirmaram que
muitas pessoas sofriam com sintomas “sublimitrofes” de depressão e ma-
nia, podendo por isso ser diagnosticadas como portadoras de “transtorno
do espectro bipolar”. Passaram então a existir o transtorno bipolar I, o
transtorno bipolar II e uma “bipolaridade intermediária entre o transtorno
bipolar e a normalidade”, como explicou tom especialista em bipolaridade.
Judd calculou que 6,4% dos adultos norte-americanos sofriam de sinto-
mas bipolares; outros afirmaram que, atualmente, um em cada quatro
adultos cai na cesta genérica da bipolaridade, doença antes rara que, ao
que parece, ataca quase com a mesma frequência que o resfriado comum.

Os Anos do Lítio

Com a revolução psicofarmacológica correndo a pleno vapor na década


de 1960, era como se todos os grandes distúrbios psiquiátricos devessem
ter sua própria pílula mágica, e quando o transtorno bipolar foi separado
da psicose maníaco-depressiva, a psiquiatria encontrou no lítio um candi-
dato adequado. Fazia mais de 150 anos que alguns sais desse metal alca-
lino rondavam as bordas da medicina, e então, de repente, no início dos
anos 1970, o lítio foi alardeado como uma espécie de cura para essa do-
ença recém-identificada. “Não encontrei na psiquiatria nenhum outro tra-
tamento que funcione com tanta rapidez, de modo tão específico e cm ca-
ráter tão permanente quando o lítio, nos estados de humor maníacos e de-
pressivos recorrentes”, disse Ronald Fieve, psiquiatra da Universidade Co-
lumbia, cm seu livro de 1975, Moodswing [Oscilação de humor].
Metal mais leve da natureza, o lítio foi descoberto em 1818, encontrado
em rochas do litoral sueco. Relatou-se que ele dissolvia o ácido úrico, o
que o levou a ser comercializado como uma terapia que poderia romper
cálculos renais e os cristais úricos que se acumulavam nas articulações
das pessoas afetadas pela gota. No fim do século XIX e início do século XX,
o lítio se tornou um ingrediente popular de elixires e tônicos, e teria sido
acrescentado até mesmo a cervejas e outras bebidas. Contudo, acabou-se
por descobrir que ele não tinha nenhuma propriedade solvente do ácido
úrico e, em 1949, a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos
(FDA) o proibiu, uma vez constatado que ele causava problemas cardio-
vasculares.
Sua ressurreição como droga psiquiátrica teve início na Austrália, onde
o médico John Cade o deu como alimento a cobaias e observou que ele as
tornava dóceis. Em 1949, ele informou haver tratado com sucesso dez pa-
cientes maníacos, usando lítio; entretanto, cm seu artigo publicado, dei-
xou de mencionar que o tratamento havia matado tinta pessoa e que ou-
tras duas estavam gravemente enfermas. Como sabiam desde longa dada
os fabricantes de tônicos de lítio, esse metal podia ser tóxico até mesmo
em doses bem pequenas. A função intelectual os movimentos motores po-
diam ficar prejudicados e, caso fosse administrada urna dose muito alta, o
paciente podia entrar cm coma e morrer.
Como grupo, os psiquiatras dos Estados Unidos demonstraram pouco
interesse pelo lítio, até o transtorno bipolar surgir como uma doença dis-
tinta. Antes dessa ocasião, usavam-se Thorazine e outros neurolépticos
para coibir os surtos maníacos, e assim não havia necessidade de outra
droga que parecia ter efeitos similares de amortecimento cerebral. Entre-
tanto, depois que George Winokur publicou seu livro de 1969, dividindo a
psicose maníaco-depressiva em formas unipolares e bipolares, a psiquia-
tria passou a ter uma nova doença, carente do seu próprio antídoto.
Visto que nenhuma empresa farmacêutica podia patentear o lítio, a
APA tomou a iniciativa de fazer com que a FDA o aprovasse. Apenas um
pequeno número de ensaios da droga, com o controle feito por placebos,
chegou a ser conduzido. Em 1985, pesquisadores britânicos que vasculha-
ram a literatura científica conseguiram encontrar apenas quatro ensaios
dignos de algum mérito. Nesses estudos, entretanto, o lítio produzia uma
boa resposta em 75% dos pacientes, o que era muito mais do que a taxa
de resposta no grupo tratado com um placebo. A segunda parte da base
de provas sobre o lítio veio, como de praxe, de estudos sobre a abstinên-
cia. Pesquisadores que analisaram 19 desses ensaios, em 1994, constata-
ram que 53,5% dos pacientes de quem se retirou o lítio sofreram recaídas,
em contraste com 37,5% dos pacientes que deram continuidade a esse
tratamento. Isso foi interpretado como indicação de que ele prevenia a re-
caída, embora os investigadores assinalassem que, nos poucos estudos em
que a droga foi gradualmente retirada, apenas 29% dos pacientes apresen-
taram recidiva (o que ficou abaixo da taxa verificada entre os pacientes em
quem o tratamento foi mantido).”
No cômputo geral, essa não foi uma prova particularmente robusta de
que o lítio beneficiasse os pacientes, e, durante a década de 1980, vários
investigadores começaram a externar preocupações sobre seus efeitos a
longo prazo. Observaram que as taxas de reinternação por mania, tanto
nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, haviam subido desde a intro-
dução do lítio, e acabou por ficar clara a razão de os pacientes bipolares
estarem aparecendo com tanta frequência nos prontos-socorros dos hospi-
tais.
Vários estudos constataram que mais de 50% dos pacientes tratados
rom lítio deixavam de tomar o medicamento cm bem pouco tempo, em ge-
ral por objetarem à maneira pela qual o remédio embotava sua mente e
tornava mais lentos os seus movimentos físicos; e, quando o suspendiam,
eles tinham taxas assombrosamente altas de recaída. Em 1999, Ross Bal-
dessarini relatou que metade de todos os pacientes apresentava recidiva
cm até cinco meses de suspensão do lítio, ao passo que. na ausência da
exposição à droga, eram necessários quase três anos para que 50% dos
pacientes apresentassem recidiva. O intervalo entre os episódios, após a
retirada do lítio, era sele vezes menor do que em condições naturais. “O
risco de recorrência, após a descontinuação da terapia com lítio (...), espe-
cialmente da mania, é muito maior do que o curso da doença no paciente
antes do tratamento ou os conhecimentos gerais da história natural da
doença permitiriam prever", escreveu Baldessarini. Outros investigadores
notaram o mesmo fenômeno: "A recaída maníaca é prontamente desenca-
deada [pela suspensão do lítio], provavelmente pela liberação de receptores
supersensibilizados, ou por vias membranosas”, explicou Jonathan Him-
melhoch, da Universidade de Pittsburgh."
Isso significa que os pacientes bipolares que eram tratados com lítio e
depois paravam de tomar o medicamento acabavam “pior do que se nunca
houvessem feito nenhum tratamento medicamentoso”, escreveu a psiquia-
tra britânica Joanna Moncrieff. Um psiquiatra escocês, Guy Goodwin,
concluiu cm 1993 que quando os pacientes eram expostos ao lítio e para-
vam de tomá-lo nos primeiros dois anos, o risco de recaída era tão grande
que talvez o remédio fosse “prejudicial para pacientes bipolares”. Os índi-
ces mais altos de reinternação hospitalar de pacientes bipolares, desde a
introdução do lítio, “podia ser inteiramente explicado” por esse agrava-
mento induzido pelo fármaco, disse ele.
Todavia, os pacientes que continuavam com o lítio também não se sa-
íam particularmente bem. Cerca de 40% sofriam recaídas a menos de dois
anos da hospitalização inicial e, ao cabo de cinco anos, mais de 60% tor-
navam a adoecer.3’ Havia um grupo nuclear de pessoas que respondiam
bem ao lítio a longo prazo - talvez 20% dos inicialmente tratados com essa
substância -, mas para a maioria dos pacientes ele trazia pouco alívio a
longo prazo. Em 1996, Martin Harrosv e Joseph Goldberg, da
Universidade de Illinois, relataram que, ao cabo de 4,5 anos, 41% dos pa-
cientes tratados com lítio tiveram “resultados precários”, quase metade
voltou a ser internada e, como grupo, eles não “funcionavam” melhor do
que os doentes que não usavam essa medicação. Foi uma descoberta de-
sanimadora, e em seguida Michael Gitlin, da Universidade da Califórnia
em Los Angeles (UCLA), comunicou resultados similares de um acompa-
nhamento de cinco anos de seus pacientes bipolares tratados com lítio.
“Nem mesmo um agressivo tratamento farmacológico de manutenção pre-
vine o desfecho relativamente precário, em um número significativo de pa-
cientes bipolares”, escreveu. "'
Embora ainda seja usado hoje cm dia, o lítio perdeu seu lugar de tera-
pia de ponta depois que se introduziram "estabilizadores de humor” no
mercado, no fim da década de 1990. Como escreveu Moncrieff em 1997,
resumindo o histórico de eficácia do lítio, “Há indicações de que ele é inefi-
caz no panorama a longo prazo dos transtornos bipolares, e é sabido que
se associa a diversas formas de malefício”.”

Permanentemente Bipolar

Na verdade, há duas narrativas a extrair da literatura científica, no to-


cante ao tratamento do transtorno bipolar com medicamentos psiquiátri-
cos. A primeira fala da ascensão e queda do lítio como pílula mágica para
tratar esse distúrbio. A segunda diz que os resultados dos pacientes bipo-
lares sofreram uma piora drástica durante a era da psicofarmacologia,
com especialistas do campo documentando essa constatação a todo mo-
mento.
Já em 1965, antes de o lítio fazer sua entrada triunfal na psiquiatria
norte-americana. havia psiquiatras alemães intrigados com a mudança
que vinham observando em seus pacientes maníaco-depressivos. Os paci-
entes tratados com antidepressivos tinham recaídas frequentes, pois as
drogas “transformavam a doença, tirando-a de um curso episódico, com
intervalos livres, para um curso crónico, com doença contínua”, escreve-
ram. Os médicos alemães também notaram que em alguns pacientes “os
medicamentos produziam uma desestabilização na qual, pela primeira
vez, a hipomania era seguida por alterações cíclicas contínuas entre a hi-
pomania e a depressão”.
Obviamente, isso era alarmante, porque os bons resultados nos paci-
entes maníaco-depressivos decorriam do fato de eles passarem grande
part e de sua vida em intervalos assintomáticos entre os surtos, e de
funcionarem bem durante esses períodos. Os antidepressivos vinham des-
truindo esses interlúdios assintomáticos, ou, pelo menos, encurtando-os
drasticamente. Antes da era dos fármacos, Kraepelin e outros informavam
que apenas cerca de um terço dos pacientes maníacos sofria três ou mais
episódios durante sua vida. No entanto, os estudos de pacientes bipolares
nas décadas de 1960 e 1970 deram conta de dois terços que vinham se
tornando doentes crônicos. “A administração de tricíclicos pode responder
por estimativas de taxas de recaída artificialmente elevadas", escreveu
Fred Goodwin em 1979. “A indução da mania, a decomposição de episó-
dios antes longos em episódios múltiplos, (...) a indução de ciclos rápidos
(...) são alguns dos mecanismos pelos quais a administração de tricíclicos
pode contribuir para um aumento do número de surtos.”
Mais urna vez, começava a se evidenciar que medicamentos psiquiátri-
cos estavam piorando o curso de uma doença mental. Em I983, Athana-
sious Koukopoulos, diretor de urna clínica de transtornos do humor em
Roma, afirmou que ele e seus colegas vinham observando a mesma coisa
em seus pacientes italianos. “A impressão geral dos clínicos, hoje em dia, é
que o curso das recorrências da doença maníaco-depressiva tem se modi-
ficado de modo substancial nos últimos vinte anos”, escreveu. “As recaídas
de muitos pacientes tornaram-se mais frequentes. Veem-se mais inanias e
hipomanias (...), mais ciclos rápidos e mais depressões crônicas.” Ao passo
que, na era anterior aos fármacos, não se tinha conhecimento de pacien-
tes com ciclos rápidos, 16% dos pacientes maníaco-depressivos de Kouko-
poulos encontravam-se agora nessa situação aditiva, e sofriam do espan-
toso número de 6,5 episódios anuais de alteração do humor - em con-
traste com menos de um episódio anual antes de serem tratados com anti-
depressivos. “Decerto parece paradoxal”, admitiu ele, “que um tratamento
que é terapêutico para a depressão possa piorar o curso futuro da do-
ença.”
A despeito dessas informações, os antidepressivos continuaram a ser
receitados para pacientes bipolares e, mesmo hoje, de 60% a 80% destes
são expostos a algum ISRS ou outro antidepressivo. Como resultado, os
pesquisadores continuam a documentar os prejuízos causados. No ano
2000, Nassir Ghaemi comunicou que, num estudo de 38 pacientes bipola-
res tratados com um antidepressivo, 55% desenvolveram mania (ou hipo-
mania) e 23% passaram a ter ciclos rápidos. Esse grupo tratado com anti-
depressivos também ficava “deprimido por períodos significativamente
mais longos” do que um segundo grupo de pacientes bipolares não expos-
tos a essa classe de medicamentos. “Há riscos significativos de mania e de
uma piora a longo prazo com o uso de antidepressivos”, escreveu Ghaemi
alguns anos depois, repetindo uma mensagem que já tinha sido enunci-
ada muitas vezes. Na Universidade de Louisville, Rif El-Mallakh concluiu,
similarmente, que os antidepressivos podiam “desestabilizar a doença, le-
vando a um aumento do número de episódios maníacos e depressivos”. As
drogas, acrescentou, “aumentam a probabilidade de um estado misto” em
que há ocorrência simultânea de sentimentos de depressão e mania.
Em 2003, Kotikopoulos tornou a se manifestar, relatando que os ciclos
rápidos induzidos por antidepressivos só se reduziam plenamente em um
terço dos pacientes, a longo prazo (mesmo após a retirada do antidepres-
sivo prejudicial), e que 40% dos doentes continuavam a “vivenciar ciclos
rápidos de gravidade inalterada” por anos a fio.” Pouco depois, em 2005,
El-Mallakh apontou mais um problema: os antidepressivos podiam induzir
um “estado crônico, disfórico e irritadiço" nos pacientes bipolares, o que
significava que eles ficavam quase continuamente deprimidos e infelizes.”
Por último, cm 2008, num grande estudo do NIMH intitulado Programa de
Aperfeiçoamento do Tratamento Sistemático do Transtorno Bipolar (STEP-
BD)1, “o principal preditor de resultados piores foi o uso de antidepressi-
vos, recebidos por cerca de 60% dos pacientes”, nas palavras de Ghaemi.
Os usuários de antidepressivos tinham quatro vezes mais probabilidade
que os pacientes não expostos de desenvolver ciclos rápidos, e o dobro da
probabilidade de sofrer múltiplos episódios maníacos ou depressivos.”
“Este estudo”, escreveu Ghaemi, num editorial publicado no American
Journal of Psychiatry, “talvez seja mais um prego no caixão do uso de an-
tidepressivos no transtorno bipolar.”
Durante os últimos dez anos, vários grandes estudos documentaram
com que constância os pacientes bipolares são sintomáticos na atuali-
dade. Em um acompanhamento de longo prazo de 146 pacientes com
transtorno bipolar I, inscritos num estudo do NIMH em 1978-1981, Lewis
Judd constatou que eles passavam 32% do tempo deprimidos, 9% do
tempo maníacos ou hipomaníacos, e 6% do tempo sofrendo de sintomas
mistos.’8 Podemos dizer que os pacientes com transtorno bipolar II nesse
mesmo estudo saíram-se ainda pior: passaram 50% do tempo deprimidos.
“A natureza dessa forma enganosamente ‘mais branda’ da doença maní-
aco-depressiva é tão crônica que chega a parecer que preenche a vida in-
teira", escreveu Judd.” Russell Joffe, da Faculdade de Medicina de Nova
Jersey, relatou em 2004 que 33% dos pacientes com transtorno bipolar I e

1 Sistematic Treatment Enhancemenl Program for Bipolar Disorder


22% dos portadores de transtorno bipolar II estudados por ele tinham ci-
clos rápidos, e os dois grupos eram sintomáticos durante quase metade do
tempo. Enquanto isso, Robert Post anunciou que quase dois terços dos
258 pacientes bipolares estudados por ele tinham quatro ou mais episó-
dios por ano.
Todos esses estudos mostraram o mesmo resultado essencial: “Hoje
está bem estabelecido que os transtornos bipolares são crônicos, com um
curso caracterizado pela recorrência frequente dos episódios afetivos”, de-
clarou Judd.

O Dano Causado

Num artigo publicado na revista Pychiatric Quarlerly em 2000, um psi-


quiatra da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, Carlos Za-
rate, e um psiquiatra que trabalhava na empresa farmacêutica Eli Lilly,
Mauricio Tohen, abriram uma nova linha de preocupações: os pacientes
bipolares de hoje não apenas são muito mais sintomáticos do que no pas-
sado, mas também não funcionam igualmente bem. “Na era anterior à far-
macoterapia, o desfecho negativo da mania era considerado uma ocorrên-
cia relativamente rara”, escreveram Zarate e Tohen. Entretanto, os estu-
dos modernos sobre os resultados constataram que a maioria dos pacien-
tes bipolares evidencia altos níveis de deterioração funcional.” O que pode-
ria, indagaram eles, explicar “essas diferenças”?
O notável declínio nos resultados funcionais de pacientes bipolares é
fácil de documentar. Na era pré-lítio, 85% dos pacientes maníacos volta-
vam ao trabalho ou a seu papel social “pré-mórbido” (o de dona de casa,
por exemplo). Como escreveu Winokur cm 1969, a maioria dos pacientes
não tinha “nenhuma dificuldade em retomar suas ocupações habituais”.
Depois, no entanto, os pacientes bipolares começaram a passar ciclica-
mente pelos atendimentos de emergência com frequência maior, os índices
de emprego começaram a diminuir e, em pouco tempo, os pesquisadores
passaram a relatar que menos de metade de lodosos pacientes bipolares
estava empregada ou “funcionalmente recuperada”. Em 1995, Michael
Gitlin, da UCLA, relatou que apenas 28% de seus pacientes bipolares tive-
ram um “bom resultado ocupacional” ao fim de cinco anos.5’ Três anos
depois, psiquiatras da Universidade de Cincinnati anunciaram que apenas
24% de seus pacientes bipolares estavam “funcionalmente recuperados”
ao cabo de um ano.55 David Kupfer, da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de Pittsburgh, num estudo de 1.839 pacientes bipolares, descobriu
que, apesar de 60% haverem frequentado a universidade e 30% terem se
formado, dois terços estavam desempregados.5“ “Em resumo”, escreveu
Ross Baldessarini numa resenha crítica de 2007, “a situação funcional
fica muito mais prejudicada, nos pacientes com transtorno bipolar I, do
que antes se acreditava, [e] o notável é a existência de alguns indícios de
que o resultado funcional nos pacientes com transtorno bipolar II pode ser
ainda pior que nos do tipo I.”
Por aumentarem a frequência dos episódios sofridos pelos pacientes
bipolares, os antidepressivos reduzem, naturalmente, a capacidade de es-
sas pessoas retornarem ao trabalho. Mas, como se evidenciou nos últimos
anos, o problema é muito mais profundo. Um dos marcos da psicose ma-
níaco-depressiva, remontando a Kraepelin, era que, uma vez recuperadas
de seus surtos de mania e depressão, as pessoas tinham a mesma inteli-
gência de antes de adoecerem Como observaram Zarate e Tohen em seu
artigo de 2000, “os estudos conduzidos antes de 1975 não revelaram da-
dos consistentes sobre déficits cognitivos cm pacientes bipolares”. Mas era
sabido que o lítio tornava o pensamento mais lento c, de repente, os pes-
quisadores começaram a reavaliar essa crença. Em 1993, investigadores
do NIMH compararam a função cognitiva em pacientes bipolares e esqui-
zofrênicos e concluíram que, embora os bipolares mostrassem sinais de
deterioração, os déficits eram “mais graves e extensos na esquizofrenia”.58
Essa foi uma descoberta do tipo copo meio cheio ou meio vazio. Podia-
se interpretá-la no sentido de que o prejuízo cognitivo não era tão grave
nos pacientes bipolares, ou, caso se tivesse lembrança dos dias pré-lítio,
seria possível perguntar por que, de repente, esses pacientes davam mos-
tras de declínio mental. Entretanto, essa foi apenas a salva inicial de uma
história trágica. Depois que a monoterapia com lítio caiu em desgraça, os
psiquiatras começaram a se voltar para "coquetéis de medicamentos” para
tratar seus pacientes, e os investigadores não tardaram a ter isto para re-
latar: "Os prejuízos cognitivos [que] existem na esquizofrenia e nos distúr-
bios afetivos (...) não podem ser qualitativamente distinguidos com sufici-
ente confiabilidade”. O grau de deterioração nessas duas doenças come-
çou a convergir de repente e, em 2001, Faith Dickerson, do Sistema de Sa-
úde Sheppard Pratt, em Baltimore, forneceu um quadro mais detalhado
dessa convergência. Ela submeteu 74 pacientes esquizofrênicos medica-
dos e 26 pacientes bipolares medicados a uma série de testes, que avalia-
vam 41 variáveis cognitivas e de funcionamento social, e constatou que os
pacientes bipolares estavam tão comprometidos quanto os esquizofrênicos
em 36 das 41 medidas. Havia “um padrão similar de funcionamento
cognitivo nos pacientes com transtorno bipolar, comparados aos portado-
res de esquizofrenia”, escreveu ela. “Na maioria das medidas de funciona-
mento social, nossos pacientes com transtorno bipolar não diferiram signi-
ficativamente dos que estavam no grupo da esquizofrenia.”
Depois disso, relatos de um declínio cognitivo importante nos pacientes
bipolares pareceram brotar profusamente de pesquisadores psiquiátricos
do mundo inteiro - investigadores ingleses, suecos, alemães, australianos
e espanhóis, todos falaram disso. Em 2007, os australianos informaram
que. mesmo quando os pacientes bipolares apresentavam apenas uma
sintomatologia leve, tinham “cicatrizes neuropsicológicas” - ficavam preju-
dicados em suas habilidades decisórias, sua fluência verbal e sua capaci-
dade de recordar coisas. Enquanto isso, investigadores espanhóis, depois
de assinalarem que a função cognitiva de seus pacientes bipolares e esqui-
zofrênicos “não diferia em nenhum teste, ao longo do tempo", concluíram
que os dois grupos sofriam de uma disfunção nas “estruturas do córtex
pré-frontal e temporolímbicas”. Observaram também que, “quanto mais
remédios os pacientes houvessem recebido, maior a deterioração do seu
funcionamento psicossocial”1. Por fim, pesquisadores ingleses que obser-
vavam a vida cotidiana de pacientes bipolares constataram que mais de
dois terços "raramente ou nunca participavam de atividades sociais com
amigos”, sendo sua tida social quase tão empobrecida quanto a dos diag-
nosticados com esquizofrenia?
Foi uma convergência espantosa de resultados a longo prazo entre os
dois grupos de diagnóstico e, embora a maioria dos psiquiatras norte-ame-
ricanos e do exterior que a documentaram tentasse, em sua discussão do
fenômeno, ignorar o elefante da medicação na sala, vários confessaram, de
fato, que era possível que a culpa fosse dos remédios psiquiátricos. Os an-
tipsicóticos convencionais, disse Zarate num de seus artigos, “podem ter
um impacto negativo no curso global da doença”. Mais tarde, ele e Tohen
escreveram que “as mudanças induzidas pela medicação podem ser mais
um fator na explicação das discrepâncias nos índices de recuperação entre
os estudos mais antigos e os mais recentes”. Os antidepressivos. observa-
ram eles, podiam causar um “agravamento do curso da doença”, ao passo

1 Nesse estudo, os investigadores informaram que os prejuízos cognitivos, do mais leve ao mais
grave, foram registrados na seguinte sequência de tratamentos recebidos: monoterapia à base de
lítio, sem tratamento medicamentoso, monoterapia à base de neurolépticos e terapia com uma
combinação de medicamentos. Entretanto, não foram fornecidos detalhes sobre o grupo “sem tra-
tamento medicamentoso” nem se informou se ele havia sido previamente exposto a drogas psiquiá-
tricas.
que os antipsicóticos podiam levar a mais “episódios depressivos” e a “ín-
dices mais baixos de recuperação funcional”. A deterioração cognitiva era
uma razão primordial de os pacientes esquizofrênicos medicados se saí-
rem tão mal a longo prazo, disseram os investigadores, e “foi sugerido que
os efeitos colaterais dos medicamentos podem explicar, em parte, os défi-
cits cognitivos dos pacientes com transtorno bipolar”. Baldessarini, em
sua resenha de 2007, também reconheceu que “fatores neurofarmacológi-
cos e neurotóxicos” poderiam estar causando “déficits cognitivos em paci-
entes com transtorno bipolar”. Por fim, Kupfer jogou mais lenha na fo-
gueira. Detalhou todas as doenças físicas que agora assolavam os pacien-
tes bipolares - problemas cardiovasculares, diabetes, obesidade, disfunção
da tireoide etc. - e se perguntou se “fatores do tratamento, como a toxici-
dade dos medicamentos”, poderiam estar causando essas doenças devas-
tadoras, ou, pelo menos, contribuindo para elas.
Todos esses autores puseram suas preocupações num contexto condi-
cional afirmando que as drogas poderiam ser causadoras dessa deteriora-
ção mental t física em seus pacientes. Mas é fácil perceber que sua hesita-
ção era injustificada em termos científicos. A esquizofrenia e a psicose ma-
níaco-depressiva haviam nascido como dotadas de naturezas distintas, em
termos de diagnóstico, justamente porque os esquizofrénicos sofriam uma
deterioração cognitiva com o tempo, caminhando para a demência, ao
passo que isso não se dava com o grupo maníaco-depressivo1. A conver-
gência dos resultados desenvolveu-se depois que os dois grupos passaram
a ser tratados com coquetéis semelhantes de medicamentos (os quais cos-
tumam incluir um antipsicótico). “Esta área tem assistido a uma conver-
gência das abordagens farmacológicas do tratamento da esquizofrenia e do
transtorno bipolar”, escreveu Stephen Stahl, autor de Antipsychotics and
Mood Stabilizers [Antipsicóticos e estabilizadores do humor], em 2005. Vi-
nham sendo adotados “tratamentos combinados similares para esses dois
estados patológicos". As drogas psiquiátricas, é claro, perturbam diversas
vias neurotransmissoras no cérebro, e por isso, estando os pacientes es-
quizofrênicos e bipolares recebendo coquetéis similares de medicamentos,

1 Os pacientes esquizofrênicos que se deterioravam rotineiramente, até chegar à demência, eram os


pacientes de dementia praecox de Kraepelin. Esse grupo se apresentava com sintomas de natureza
muito diferente daquela dos observados nos pacientes esquizofrênicos aluais e, como vimos no es-
tudo de 15 anos de duração conduzido por Martin Harrow, muitos esquizofrênicos não medicados
se recuperam. Courtenay Harding relatou a mesma coisa em seu estudo de longo prazo - muitos
pacientes não medicados tiveram recuperação completa. Portanto, não fica claro qual percentagem
de pessoas hoje diagnosticadas com esquizofrenia, se não fosse continuamente medicada, sofreria
uma deterioração cognitiva ao longo do tempo.
eles sofrem de anormalidades semelhantes no funcionamento cerebral. A
convergência de resultados nos dois grupos reflete a ação de um processo
iatrogênico: os dois grupos, à parte quaisquer problemas “naturais” que
possam ter, acabam sofrendo do que se poderia chamar de “doença poli-
farmacológica das drogas psiquiátricas”.
Hoje, a doença bipolar está muito distante do que foi um dia. Antes da
era farmacológica, ela era um distúrbio raro, que afetava talvez uma em
cada dez mil pessoas. Agora, afeta uma em cada quarenta (ou, de acordo
com algumas contagens, uma em cada vinte). E, embora a maioria dos pa-
cientes atuais, no diagnóstico inicial, não esteja nem de longe tão doente
quanto os pacientes hospitalizados de amigamente, sua evolução e desfe-
cho a longo prazo são quase incompreensivelmente piores. Em sua rese-
nha de 2007, Baldessarini chegou a detalhar, passo a passo, essa notável
deterioração dos resultados. Na era pré- drogas, havia uma “recuperação
da eutimia [com ausência de sintomas] e uma adaptação funcional favorá-
vel entre os episódios”. Agora, há uma “recuperação lenta ou incompleta
dos episódios agudos, um risco permanente de recorrências e uma morbi-
dez contínua ao longo do tempo”. Antes, 85% dos pacientes bipolares re-
cuperavam completamente o funcionamento “pré-mórbido” e voltavam ao
trabalho. Hoje, apenas um terço deles consegue a “plena recuperação fun-
cional, social e ocupacional para seus níveis pré-mórbidos”. Antes, os pa-
cientes não exibiam prejuízos cognitivos a longo prazo. Hoje, acabam
quase tão prejudicados quanto os esquizofrênicos. Tudo isso nos diz de
um espantoso desastre médico, e Baldessarini escreve o que se poderia
considerar um epitáfio adequado para toda a revolução psicofarmacoló-
gica: “Amigamente, o prognóstico do transtorno bipolar era considerado
relativamente favorável, mas os dados contemporâneos sugerem que a in-
validez e os maus resultados preponderam, a despeito dos grandes avan-
ços terapêuticos”.
A transformação do transtorno bipolar na era moderna
O Gráfico que Revela Tudo

Estamos chegando ao fim do nosso exame da literatura sobre resulta-


dos dos principais distúrbios psiquiátricos (entre adultos), e um retorno ao
estudo conduzido por Martin Harrow ao longo de 15 anos sobre os resul-
tados da esquizofrenia leva a um clímax esta resenha. Além de acompa-
nhar pacientes esquizofrênicos, Harrow estudou um grupo de 81 pacien-
tes com “outros transtornos psicóticos”, que teria sido descrito por Kraepe-
lin como uma coorte maníaco-depressiva. Havia nesse grupo 37 pacientes
bipolares e 28 pacientes unipolares, e os 16 restantes sofriam de vários
distúrbios psicóticos mais brandos. Quase metade desse grupo parou de
tomar medicamentos psiquiátricos durante o estudo, de modo que, na ver-
dade, foram quatro os grupos que Harrow acompanhou: pacientes esqui-
zofrênicos com e sem medicação e pacientes maníaco-depressivos com e
sem medicação. Antes de examinarmos os resultados, podemos fazer unta
rápida verificação de nossas ideias: como devemos esperar que se compa-
rem os resultados a longo prazo de todos os quatro grupos?
Vá em frente - pegue um lápis e anote o que você acha que serão os re-
sultados.
Eis as descobertas de Harrow. A longo prazo, os pacientes maníaco-de-
pressivos que pararam de tomar drogas psiquiátricas saíram-se bastante
bem. Mas sua recuperação demorou. Passados dois anos, eles ainda esta-
vam lutando com a doença. Depois, começaram a melhorar e, ao final do
estudo, suas pontuações coletivas se enquadraram na categoria dos “recu-
perados” (escore 1 ou 2 na escala de avaliação global de Harrow). Os paci-
entes recuperados estavam trabalhando, pelo menos em regime de meio
expediente, tinham um funcionamento social “aceitável” e estavam prati-
camente assintomáticos. Seus resultados combinam com a compreensão
kraepeliniana da psicose maníaco-depressiva.
Os pacientes maníaco-depressivos que continuaram a tomar a medica-
ção psiquiátrica não se saíram tão bem. Decorridos dois anos, continua-
vam muito doentes, tanto que se mostravam um pouquinho pior do que os
pacientes esquizofrênicos não medicados. Depois, nos 2,5 anos seguintes,
enquanto os maníaco-depressivos e esquizofrênicos sem medicação iam
melhorando, os pacientes maníaco-depressivos que continuaram a tomar
suas pílulas não melhoraram, de modo que, ao cabo de 4,5 anos, estavam
passando acentuadamente pior do que o grupo de esquizofrênicos sem
medicação. Essa disparidade se manteve durante todo o resto do estudo,
de modo que foi assim que se compararam os resultados a longo prazo, do
melhor para o pior: maníaco-depressivos sem medicação, esquizofrênicos
sem medicação, maníaco-depressivos medicados e esquizofrênicos medi-
cados.
Faz muito tempo que a esquizofrenia, é claro, e o diagnóstico psiquiá-
trico com o pior prognóstico a longo prazo. Trata-se da doença mental
mais grave que a natureza tem a oferecer. Mas, nesse estudo financiado
pelo NIMH, dois grupos de pacientes medicados saíram-se pior do que os
pacientes esquizofrênicos não medicados. Os resultados revelam um trata-
mento médico que deu terrivelmente errado, mas não constituem sur-
presa. Qualquer um que conhecesse a história da literatura acerca de re-
sultados na psiquiatria, uma história que começou a se desdobrar há
mais de cinquenta anos, poderia ter previsto que os resultados se compa-
rariam dessa maneira.
Resultados após 15 anos em pacientes esquizofrênicos e maníaco-de-
pressivos
Neste gráfico, o grupo chamado de “maníaco-depressivo” compunha-se de pacientes
psicóticos com transtorno bipolar, com depressão unipolar e com distúrbios psicóti-
cos mais brandos.
Em termos de contribuição para nossa moderna epidemia de doenças
mentais incapacitantes, os números dos bipolares são estarrecedores. Em
1955, havia cerca de 12.750 pessoas hospitalizadas com doença bipolar.
Atualmente, de acordo com o NIMH, há quase seis milhões de adultos com
esse diagnóstico nos Estados Unidos c, segundo os pesquisadores da Es-
cola de Saúde Pública Johns Hopkins, 83% deles têm “graves prejuízos”
cm alguma faceta de sua vida.'" O transtorno bipolar é hoje tido como a
sexta causa principal de invalidez relacionada com problemas de saúde no
mundo inteiro, logo atrás da esquizofrenia, e, no futuro próximo, à medida
que mais e mais pessoas forem diagnosticadas com essa doença e tratadas
com coquetéis de medicamentos, podemos esperar que o transtorno bipo-
lar ultrapasse a esquizofrenia e assuma o lugar dela, atrás da depressão
aguda, como a doença mental que mais derruba pessoas nos Estados Uni-
dos. É esse o amargo fruto nascido da revolução psicofarmacológica.

Narrativas sobre Bipolaridade

Entrevistei mais de sessenta pessoas com diagnósticos psiquiátricos


para este livro, e, em algum ponto, aproximadamente metade delas fora
diagnosticada como bipolar. No entanto, das cerca de trinta que haviam
recebido esse diagnóstico, apenas quatro sofriam do que se poderia
chamar de doença bipolar “orgânica", oque significa que foram internadas
por um episódio maníaco e não haviam sido previamente expostas a dro-
gas ilícitas nem a antidepressivos. Agora que sabemos o que a ciência tem
a nos dizer sobre a moderna explosão de crescimento da bipolaridade, po-
demos revisitar as histórias de três pessoas que conhecemos no Capítulo
2, e ver como essas narrativas se enquadram nessa história da ciência.
Depois poderemos ouvir duas pessoas diagnosticadas com transtorno bi-
polar que, se tivessem participado do estudo de 15 anos de Harrow, teriam
sido incluídas cm seu grupo de “não medicados”.
Dorea Vierling-Claassen
Se olharmos agora para a história de Dorea Vierling-Claasscn, veremos
que ela tem boas razões para crer que nunca deveria ter sido diagnosti-
cada como portadora de doença bipolar. Ela foi consultar um terapeuta
cm Denver porque chorava demais. Não tinha história de mania. Mas en-
tão, durante a semana das provas finais na faculdade, teve dificuldade
para dormir e ficou agitada, e logo recebeu um diagnóstico de bipolar e
uma receita de um coquetel de drogas, que incluía um antipsicótico. Uma
adolescente brilhante foi transformada em doente mental, e leria continu-
ado assim pelo resto da vida, se ela mesma não tivesse feito o “desmame”
da medicação. Na última vez que nos falamos, na primavera de 2009, ela
estava reluzindo com o brilho da maternidade, pois acabara de dar à luz
um filho, Reuben. Ela e Angela cuidavam ativamente da criação dos filhos,
enquanto Dorea planejava retomar em breve sua pesquisa pós-doutoral no
Hospital Geral de Massachussetts, e a lembrança de seus dias de “bipolar”
ia recuando para um passado mais e mais distante.
Monica Briggs
Durante o período cm que trabalhei neste livro, Monica Briggs foi a
única pessoa que, após uma entrevista inicial, saiu do Seguro da Previ-
dência Social por Invalidez (SSDI) ou da Renda Complementar da Previ-
dência (SSI). Obteve um emprego de horário integral no Transformation
Center, uma organização de pares cm Boston cujo foco é ajudar as pes-
soas a se “recuperarem” da doença mental, e, se esmiuçarmos sua história
clínica, será fácil vermos que seu retorno ao trabalho se relacionou com
uma mudança cm sua medicação.
Ao nos encontrarmos pela primeira vez, mencionei a Monica o risco da
mania induzida por antidepressivos e, quando ela relembrou seu colapso
na Faculdade Middlebury, acendeu-se uma luz: “Fiquei maníaca seis se-
manas depois de começar a tomar desipramina”, disse. “Tenho certeza de
que foi isso que aconteceu comigo”. Após esse episódio maníaco inicial, re-
ceitaram-lhe um coquetel de fármacos que incluía um antidepressivo, e
ela passou os vinte anos seguintes entrando e saindo ciclicamente de hos-
pitais, numa luta constante com a depressão, os surtos maníacos e impul-
sos suicidas. Os psiquiatras lhe receitaram oito ou nove antidepressivos
diferentes e ela também passou por uma série de tratamentos com eletro-
choque. Nada funcionou. Então, cm 2006, ela parou “por acaso” de tomar
um antidepressivo. Pela primeira vez, ficou usando apenas o lítio, e
pronto, lá se foram os sentimentos suicidas, assim como a depressão e a
mania. Foi esse alívio dos sintomas que lhe permitiu trabalhar em horário
integral, e hoje, ao rememorar aqueles vinte anos pavorosos, ela fica estar-
recida com o que vê: “Ainda não me recuperei da barbaridade da probabi-
lidade de que o meu jogo de roleta com os antidepressivos tenha exacer-
bado a minha doença”.
Steve Lappen
Steve Lappen, que é um dos líderes da Aliança de Apoio a Depressivos
e Bipolares (DBSA- Depressive and Bipolar Support Alliance) em Boston,
foi diagnosticado com psicose maníaco-depressiva cm 1969, quando linha
19 anos. Foi uma das quatro pessoas que entrevistei cuja doença maní-
aco-depressiva era de natureza “orgânica” c, no primeiro dia em que nos
encontramos, achava-se numa espécie de estado hiperativo, faiando tão
depressa que deixei prontamente de lado a caneta e liguei um gravador.
“Tudo bem”, eu lhe disse, “pode disparar.”
Criado em Newton, no Massachussetts, por uma família que descreveu
como disfuncional, Steve recebeu desde cedo o rótulo de “maçã podre”,
aplicado pelos professores, na escola, e pelos pais, cm casa. “Eu era dis-
ruptivo nas aulas”, disse, me. “Todo dia, durante o juramento de fidelidade
à bandeira, eu ia apontar o lápis. Também me levantava, sem qualquer
provocação, e simplesmente ficava girando até ser tomado pela tonteira.
Anunciava que eu era um tornado.” Já menino, ele lutou com as oscila-
ções de humor, e aos 16 anos, quando hospitalizado cm decorrência de
desmaios, pulou da cama, uma noite, e vestiu um jaleco branco. “Rodei
pelos quartos dos pacientes e conversei com eles como se fosse médico.
Estava maníaco.”
Durante seu primeiro ano na Universidade de Boston, ele foi tomado
por uma depressão aguda. Era um caso clássico de psicose maníaco-de-
pressiva, e Kraepelin teria reconhecido o curso seguido pela doença nos
cinco anos seguintes. “Eu não tomava nenhum remédio”, explicou Steve,
e, apesar de sofrer com vários episódios de depressão, sentia-se bem entre
eles, sobretudo quando se achava cm estado ligeiramente hipomaníaco.
“Quando me sentia bem, eu lia mais e escrevia trabalhos que só teriam de
ser entregues dali a dois ou três meses. Quando a gente está cm hipoma-
nia, a produção é incrível.” Ele se bacharelou em filosofia e em inglês, pra-
ticamente com média 10.
Entretanto, no primeiro ano da pós-graduação, na Universidade Stony
Brook, em Long Island, teve um surto maníaco completo, seguido por um
mergulho na depressão que o deixou com ideias suicidas. Foi nessa oca-
sião que passou a ser tratado com lítio e um antidepressivo tricíclico pela
primeira vez. “Não tive oscilações de humor depois disso, mas, em vez de
ter uma linha basal de funcionamento dentro da normalidade, fiquei de-
primido. Fiquei em estado de depressão durante todo o tempo em que to-
mei os remédios. Tomei-os por um ano e disse: ‘Chega’.”
Nas duas décadas seguintes, Steve se manteve quase sempre longe de
medicamentos psiquiátricos. Casou-se, teve dois filhos e se divorciou. Tra-
balhava, mas pulava de um emprego para outro. Sua vida foi seguindo
uma trilha caótica - um caos claramente relacionado com sua psicose ma-
níaco-depressiva -, mas não era marcada por uma invalidez profissional:
ele sempre conseguia trabalho. Em 1994, buscando alívio das oscilações
de humor que o atormentavam, começou a tomar remédios psiquiátricos
com regularidade. Rodou por um sem-número de antidepressivos e estabi-
lizadores do humor, nenhum dos quais funcionou por muito tempo. Esses
fracassos medicamentosos o levaram a ser submetido 14 vezes ao trata-
mento com eletrochoque, o que, por sua vez, trouxe tamanho prejuízo a
sua memória que, ao regressar ao seu trabalho ele planejador financeiro,
“não consegui mais reconhecer o meu melhor cliente”. Em 1998, passa-
ram a tratá-lo com desipramina tricíclica, o que o fez passar rapidamente
aos ciclos rápidos de oscilação do humor. “Eu acordava e me sentia ótimo,
completamente emancipado do demônio da depressão, e aí, dois dias de-
pois, estava deprimido de novo”, explicou. “Dois dias depois disso, voltava
a me sentir bem. E não havia nada no meu ambiente externo que pudesse
explicar essa mudança de humor."
Desde então, ele recebe auxílio do SSDI. A boa notícia é que não foi in-
ternado desde 2000 e, como assinala corretamente, leva uma vida produ-
tiva apesar de sua batalha constante com os sintomas bipolares. Agora ca-
sado em segundas núpcias, trabalha como “leitor” voluntário para pessoas
com deficiências físicas, faz palestras sobre o transtorno bipolar para gru-
pos comunitários e é um dos líderes da DBSA em Boston. Também
publicou ensaios e poesia em várias pequenas publicações. Na última vez
que nos falamos, porém, na primavera de 2009, ele vinha passando por
múltiplas oscilações de humor todos os dias e, ao que parece, seus sinto-
mas continuam a piorar.
“Eu diria que, de modo geral, fico pior quando tomo os remédios. A me-
dicação que estou tomando agora é neutra, na melhor das hipóteses. Eu
gostaria de poder me clonar. Assim poderia ser meu próprio grupo de con-
trole num teste. Gostaria de saber se ficaria melhor, na mesma ou pior
sem os remédios.”
Brandon Banks
Brandon Banks sabe identificar o momento exato em que se tornou
“bipolar” e, embora isso tenha envolvido um antidepressivo, houve uma
série de acontecimentos em sua vida que o levaram a esse ponto. Ele cres-
ceu pobre na cidade de Elizabethtown, no Kentucky, sem a presença pa-
terna em casa, e tem lembranças dolorosas de abusos sexuais, de maus-
tratos físicos e de um terrível desastre de automóvel, que matou sua tia,
seu tio e um outro parente. Na escola, era comum as outras crianças im-
plicarem com ele por causa de uma marca de nascença facial que o trau-
matizava a tal ponto que, para cobri-la, ele começou a usar um chapéu
enterrado na cabeça. Após a formatura no curso médio, em 2000, mudou-
se para Louisville, onde ficou frequentando a faculdade em meio horário e
trabalhando à noite na United Parcel Service [UPS], Não tardou a notar
que “não sc sentia bem”, e, quando voltou para casa, o médico da família
diagnosticou uma “depressão moderada” e lhe receitou um antidepressivo.
“Fiquei maníaco em três dias”, disse Brandon. “Foi rápido.”
Seu médico lhe explicou que, por ele ter tido essa reação ao remédio,
devia ser bipolar, e não apenas deprimido. O remédio havia “desmasca-
rado” a doença, o que Brandon encarou como um dado positivo. “Fiquei
pensando: não é tão mau assim; eu poderia ter passado muito tempo no
sistema sem ter uma confirmação imediata de que sou bipolar.” Foi medi-
cado com um coquetel composto por um estabilizador de humor, um anti-
depressivo e um antipsicótico, e então entendeu: "Foi um tremendo em-
purrão para a seriedade”.
Nos quatro anos seguintes, seus psiquiatras mudaram constantemente
suas receitas. “Os coquetéis pareciam aquela dança das cadeiras. [Os mé-
dicos] me diziam: ‘Vamos tirar tal remédio e introduziu tal outro’.” Bran-
don tomou Depakote, Neuronlin, Risperdal, Zyprexa, Seroquel, Haldol.
Thorazine, lítio e uma sucessão interminável de antidepressivos, e, com o
correr do tempo, passou a ter ciclos rápidos e a sofrer com estados mistos.
Seus registros médicos também documentaram o desenvolvimento de no-
vos sintomas psiquiátricos: piora da ansiedade, ataques de pânico, com-
portamentos obsessivo-compulsivos, vozes e alucinações. Ele foi internado
várias vezes c, numa ocasião, subiu ao topo de um edifício-garagem e
ameaçou jogar-se de lá. Sua capacidade de concentração sofreu um declí-
nio tão acentuado que o estado de Kentucky confiscou sua carteira de mo-
torista. “Minha vida passou a consistir em ficar em casa o dia inteiro, le-
vantar de manhã, pôr meus comprimidos na bancada da cozinha, tomá-
los e voltar para a cama, porque não conseguiria mesmo ficar acordado,
nem se eu tentasse. Mais tarde, eu me levantava, jogava uns videogames e
ficava com a família.”
Aos 24 anos, ele se sentia um completo fracasso e, um dia, após uma
briga com a mãe, saiu de casa e parou de tomar os remédios. “Deteriorei
muito”, recorda. “Não tomava banho nem comia.” No entanto, à medida
que as semanas se transformaram em meses, seus sintomas bipolares se
atenuaram e “comecei a achar que levava mais jeito de cu só estar meio
pirado”, disse-me. Essa ideia lhe deu esperança, porque passou a haver
uma possibilidade de mudar, e ele saiu viajando pelo sul. “Eu bem que po-
dia ser um sem-teto”, disse a si mesmo, e essa viagem acabou se tornando
uma experiência de transformação. Quando voltou para casa, ele havia ju-
rado não comer mais carne vermelha nem tomar bebidas alcoólicas, e es-
tava em vias de se tornar um “fanático pela saúde” e praticante de ioga.
“Voltei daquela viagem e, cara, estava ótimo. Eu me sentia o máximo, e
todo mundo na minha família - primos, outros parentes, tias e tios - disse
que não me via com aquele brilho desde que eu era pequeno.”
Desde então, Brandon ficou longe dos remédios psiquiátricos. Mas não
foi fácil, e a dinâmica de altos e baixos da sua vida ficou cm nítido relevo
em seu ano letivo de 2008-2009, na Faculdade Comunitária e Técnica de
Elizabethtown. Ele se matriculou nessa instituição cm janeiro de 2008,
com sonhos de se tornar jornalista e escritor, e, no outono, tornou-se edi-
tor-chefe do jornal da faculdade. Sob a sua direção, o jornal ganhou 24
prêmios da Associação de Imprensa Interuniversitária do Kentucky, e
Brandon recebeu, pessoalmente, dez dessas honrarias por artigos de sua
autoria, inclusive o primeiro lugar num concurso de redação com prazo
marcado. Durante aqueles nove meses, de maneira incrível, também ob-
teve outros sucessos. Um de seus contos tirou o segundo lugar num con-
curso e foi publicado num semanário de Louisville; uma de suas fotogra-
fias foi escolhida como ilustração de capa de uma revista literária; um
curta filmado por ele foi indicado para o prêmio de melhor documentário
num festival local de cinema. Em maio de 2009, a faculdade o homena-
geou com seu prêmio ao “calouro mais destacado”. No entanto, mesmo
durante essa temporada de realizações notáveis, Brandon sofreu com vá-
rios episódios hipomaníacos e depressivos, que o deixaram com intensas
inclinações suicidas. “Eu passava semanas lendo autores depressivos,
com uma arma na mão”, contou. “Minhas realizações, nesses momentos,
só pareciam piorar tudo. Nunca pareciam bastar.”
Era nesse pé que estavam as coisas em sua vida no verão de 2009. Ele
vicejava e lutava ao mesmo tempo, e suas lutas eram tais que, se a medi-
cação psiquiátrica houvesse funcionado para ele na primeira vez, ele teria
ficado feliz em retomá-la, em busca de alívio. “Ainda estou bem isolado das
outras pessoas", explicou. “Eu aguento por causa da marca de nascença.
Sou diferente. Não sei me integrar. Isso vira um problema com as pessoas.
Mas tenho tentado me integrar mais na vida. Hoje tenho mais gente na
minha vida do que tive em muito tempo. Estou começando a fazer mais
contatos. Um dia desses, almocei com um amigo. Para mim, isso é difícil
de fazer, simplesmente porque não é fácil eu lidar com as pessoas e lidar
com as minhas emoções. Estou tentando melhorar.”
Greg
Às da matemática e das ciências, Greg, que me pediu para não usar
seu sobrenome, foi um tipo de garoto que, quando estava no segundo ci-
clo, construiu um gerador de Van de Graaff com peças catadas aqui e ali
(que incluíram um aspirador de pó e uma tigela de salada, para ser exato).
Mas ele tinha uma relação problemática com os pais e, no início da última
série do curso médio, começou a resvalar para um estado de loucura (sem
ter usado drogas ilegais). “Fiquei delirante, muito paranoico e cheio de an-
siedade”, contou. “Estava convencido de que meus pais estavam tentando
me matar.”
Hospitalizado por seis semanas, Greg foi informado de que tinha um
transtorno esquizoafetivo com tendências bipolares (um diagnóstico do
tipo “maníaco-depressivo”) recebeu alta com um coquetel composto por
dois antipsicóticos e um antidepressivo. Mas os remédios não eliminaram
suas ideias paranoides e, depois de ele ser internado pela segunda vez,
seu psiquiatra acrescentou ao coquetel um estabilizador do humor e uma
benzodiazepina, dizendo-lhe que ele precisaria abrir mão dos seus sonhos
acadêmicos. “Disseram que cu tomaria remédios pelo resto da vida, que
era provável que viesse a ser pensionista do Estado, e que talvez, quando
chegasse aos 25 ou 30 anos, cu pudesse pensar cm arranjar um emprego
de meio expediente. E eu acreditei, e por isso comecei a tentar imaginar
como viver com o desamparo esmagador que diziam que seria a minha
vida.”
Os cinco anos seguintes transcorreram mais ou menos como os psiqui-
atras tinham previsto. Apesar de haver ingressado no Instituto Politécnico
de Worcester (WPI), em Massachusetts, Greg tomava uma medicação tão
pesada que, em suas palavras, “Eu passava a maior parte do tempo numa
bruma. A mente da gente fica sendo só um saco de areia. E por isso, eu
me saí muito mal na faculdade. Raras vezes chegava sequer a sair do meu
quarto e vivia meio sem contato com a realidade”. Ele passou uns dois
anos definhando na faculdade, sem conseguir grande progresso, até que a
abandonou entre 2004 e 2006 e passou a ficar quase o tempo todo em seu
apartamento, fumando maconha constantemente, porque “ela me ajudava
a aceitar a situação cm que eu fora obrigado a entrar”. Com 1,96 m de al-
tura, Greg viu seu peso subir de 116 quilos para quase 230. “No fim, eu
disse a mim mesmo: isto é ridículo. Prefiro ser maluco e ter minha vida a
não ser maluco e não ter vida alguma.”
Ele foi fazer um checkup médico, achando que esse seria o primeiro
passo para reduzir seus medicamentos, e foi então informado de que pre-
cisava suspender imediatamente o uso de Depakote e Geodon, porque seu
fígado estava parando de funcionar. A abstinência abrupta causou tama-
nho sofrimento físico - “suores, dores nas articulações e nos músculos,
náusea, tonteira”, nas palavras dele - que Greg nem prestou atenção para
saber se a paranoia estava voltando. Mas, em pouquíssimo tempo, havia
largado todos os medicamentos psiquiátricos, salvo pelo uso ocasional de
um estimulante, e também parado de fumar maconha. “Para ser franco,
foi como se eu acordasse pela primeira vez cm cinco anos”, contou. “Foi
como se eu tivesse sido desligado, durante todos aqueles anos, e ficado
simplesmente rolando pela vida e sendo empurrado numa cadeira de ro-
das, e tivesse finalmente acordado e voltado a ser eu mesmo. Foi como se
os remédios houvessem tirado tudo que era eu, e depois, quando larguei a
medicação, meu cérebro acordou e recomeçou a funcionar.”
No fim de 2007, Greg voltou para a faculdade. Nós nos encontramos
na primavera de 2009 c, depois de me contar a história de sua luta com a
doença mental, ele me mostrou seu laboratório de pesquisas no WPI, onde
agora passava oitenta horas por semana, projetando e construindo um
robô capaz de conduzir cirurgias cerebrais com um aparelho de ressonân-
cia magnética. Dali a algumas semanas ele receberia seu diploma de
graduação em engenharia mecânica e, como havia iniciado um curso de
mestrado quando ainda fazia trabalhos da graduação, no verão receberia o
diploma de mestre em mecatrônica, que é uma fusão entre engenharia
mecânica e engenharia elétrica. Na véspera da minha visita, sua pesquisa
em robótica ficara em segundo lugar num concurso em que houve 187
inscrições de alunos de pós-graduação do WPI. Greg já havia publicado
três artigos sobre seu projeto em periódicos acadêmicos e tinha uma via-
gem marcada para o Japão, dali a poucas semanas, para fazer uma pales-
tra sobre o assunto. Vinha realizando esse projeto sob a supervisão de um
professor titular do WPI, e eles esperavam conduzir testes com o robô em
animais e cadáveres no outono de 2009. Se tudo corresse bem, os ensaios
clínicos com seres humanos teriam início em dois anos.
Quando estávamos em seu laboratório, Greg me mostrou o robô e os
desenhos de computador de suas placas de circuitos impressos, que me
pareceram de uma complexidade impossível. Naturalmente, pensei em
John Nash, o matemático de Princeton cuja história inspiradora de recu-
peração da esquizofrenia, e de uma recuperação ocorrida sem medicamen-
tos, foi narrada no livro Uma Mente Brilhante. "Ainda acho que tenho de
me livrar de alguns maus hábitos e adquirir hábitos melhores, antes de
entrar na vida profissional, mas realmente sinto que deixei para trás
aquela parte da minha vida [como doente mental]”, disse Greg, que ema-
greceu mais de 45 quilos. “Sinceramente, quase nunca penso nisso. Agora
penso em mim como uma pessoa passível de acumular ansiedade, mas,
quando começo a sentir essa ansiedade, ou começo a me sentir negativo a
respeito das coisas, paro e digo a mim mesmo: ‘Será que é mesmo razoável
eu alimentar esses sentimentos, ou será que é só insegurança?’ Basta eu
me dar um tempo para me controlar.” Agora, concluiu Greg, ele está
“muito otimista quanto ao meu futuro".
10.
EXPLICAÇÃO DE UMA EPIDEMIA

"Com os medicamentos psiquiátricos, soluciona-se um problema durante um


período, mas, quando menos se espera, acaba-se com dois. O tratamento
transforma um período de crise em uma doença mental crônica." - Amy
Upham, 2009
Há uma famosa ilusão de óptica chamada “a moça e a velha”, pois, de-
pendendo de como olhemos para a imagem, vemos uma bela jovem ou
uma bruxa velha. O desenho ilustra como a percepção de um objeto pode
alterar-se subitamente e, em certo sentido, as histórias conflitantes a que
demos corpo neste livro têm o mesmo caráter curioso. Existe a imagem
“bela jovem" da era psicofarmacológica em que a maior parte da sociedade
norte-americana acredita, que fala de um avanço revolucionário no trata-
mento dos distúrbios mentais, e existe a imagem "bruxa velha” que esbo-
çamos neste texto, que fala de uma forma de tratamento que levou a uma
epidemia de doenças mentais incapacitantes.
A imagem “bela jovem” da era da psicofarmacologia provém de uma
combinação poderosa de história, linguagem, ciência e experiência clínica.
Antes de 1955, diz-nos a história, os manicômios estaduais estavam reple-
tos de loucos furiosos. Mas então, os pesquisadores descobriram um me-
dicamento antipsicótico, o Thorazine, e este permitiu aos estados fecha-
rem seus hospitais decrépitos e tratarem os esquizofrênicos na comuni-
dade. Em seguida, os pesquisadores psiquiátricos descobriram agentes
ansiolíticos, antidepressivos e uma pílula mágica - o lítio - para □ trans-
torno bipolar. Depois disso, a ciência provou que os fármacos funciona-
vam: em ensaios clínicos, constatou-se que eles melhoravam mais os sin-
tomas- alvo, a curto prazo, do que o placebo. Por fim, os psiquiatras cons-
tataram com regularidade que seus medicamentos eram eficazes. Deram-
nos a seus pacientes aflitos, cujos sintomas em geral se atenuaram.
Quando os pacientes paravam de tomar os remédios, era frequente retor-
narem os sintomas. Esse curso clínico - redução inicial do sintoma e reca-
ída após a retirada da medicação - também deu aos pacientes razão para
dizer: “Preciso do meu remédio. Não consigo passar bem sem ele”.
Jovem ou velha? Se você deslocar ligeiramente os olhos, sua percepção da imagem
se modificará, passando de uma para a outra.
A imagem “bruxa velha” da psicofarmacologia provém de uma leitura
mais cuidadosa da história e de uma resenha mais rigorosa da ciência. Ao
reexaminarmos a história da desinstitucionalização, descobrimos que a
alta dos pacientes esquizofrênicos crônicos decorreu da implementação da
legislação sobre o Medicare e o Medicaid, cm meados da década de 1960,
em contraste com a chegada do Thorazinc à medicina manicomial. Quanto
aos fármacos, descobrimos que não houve nenhum avanço científico ino-
vador que levasse à introdução do Thorazinc e de outros medicamentos
psiquiátricos da primeira geração. Em vez disso, cientistas que estudavam
compostos a serem utilizados como anestésicos e como pílulas mágicas
para doenças infecciosas tropeçaram em diversos agentes que tinham efei-
tos colaterais inéditos. Depois, no curso dos trinta anos seguintes, os pes-
quisadores determinaram que essas drogas funcionavam mediante a per-
turbação do funcionamento normal de vias neuronais do cérebro. Em res-
posta, o cérebro passava por “adaptações compensatórias”, para lidar com
a intromissão das drogas em seu sistema de mensagens, e isso o deixava
funcionando de maneira “anormal”. Em vez de corrigir desequilíbrios quí-
micos cerebrais, os fármacos os criavam. Em seguida, examinamos em de-
talhe a literatura sobre os resultados e constatamos que esses
comprimidos pioram os resultados a longo prazo, pelo menos em seu con-
junto. Os pesquisadores chegaram até a elaborar explicações biológicas de
por que os remédios tinham esse efeito paradoxal a longo prazo.
São essas as visões conflitantes da era da psicofarmacologia. Se você
pensar nos fármacos como agentes “antidoença” e se concentrar nos re-
sultados a curto prazo, a bela jovem aparecerá. Se pensar neles como “de-
sequilibradores químicos” e se concentrar nos resultados a longo prazo,
aparecerá a bruxa velha. Você pode ver uma imagem ou a outra, depen-
dendo de para onde dirija o seu olhar.

Um Rápido Experimento Ideativo

Apenas por um momento, antes de examinarmos se solucionamos o


quebra-cabeça que propusemos na abertura deste livro, eis um modo rá-
pido de ver a imagem da velha bruxa com um pouco mais de clareza. Ima-
gine que surja de repente em nossa sociedade um vírus que faça as pes-
soas dormirem de 12 a 14 horas por dia. Os indivíduos infectados locomo-
vem-se um pouco mais devagar e parecem afetivamente desligados. Mui-
tos ganham uma quantidade enorme de peso-dez, vinte, trinta, até cin-
quenta quilos. Muitas vezes, seu nível de glicose no sangue sobe drastica-
mente, assim como seus níveis de colesterol. Vários indivíduos afetados
por essa doença misteriosa - inclusive crianças pequenas e adolescentes-
tornam-se diabéticos, em pouco tempo. Surgem na literatura médica rela-
tos sobre um ou outro paciente que morre de pancreatite. Os jornais e re-
vistas enchem suas páginas de histórias sobre esse novo flagelo, que é
chamado de doença da disfunção metabólica, e os pais ficam em pânico
diante da ideia de que seus filhos possam contrair essa moléstia terrível. O
governo federal dá centenas de milhões de dólares a cientistas das melho-
res universidades, para que eles decifrem o funcionamento interno desse
vírus, e os pesquisadores informam que a razão de ele causar uma disfun-
ção tão global está em seu bloqueio de uma multidão de receptores de
neurotransmissores no cérebro - dopaminérgicos, serotoninérgicos, mus-
carínicos, adrenérgicos e histaminérgicos. Todas essas vias neuronais do
cérebro ficam comprometidas. Enquanto isso, estudos feitos por meio de
imagens de ressonância magnética mostram que, ao longo de um período
de vários anos, o vírus faz o córtex cerebral encolher, e esse encolhimento
liga-se a um declínio cognitivo. Aterrorizado, o povo clama por uma cura.
Pois bem, essa doença efetivamente atingiu milhões de crianças e
adultos norte-americanos. Acabamos de descrever os efeitos do
antipsicótico mais vendido pelo laboratório Eli Lilly, o Zyprexa.

Um Mistério Resolvido

Começamos este livro fazendo uma pergunta: por que temos visto um
aumento tão acentuado do número de doentes mentais inválidos nos Es-
tados Unidos, desde a “descoberta” dos medicamentos psicotrópicos? No
mínimo, creio havermos identificado uma causa fundamental. Em grande
parte, essa epidemia é de natureza iatrogênica.
Ora, talvez haja vários fatores sociais contribuindo para a epidemia.
Talvez nossa sociedade se organize, hoje em dia, de um modo que leva a
um grau maior de tensão e de perturbação emocional. Por exemplo, talvez
nos faltem bairros estreitamente unidos, daqueles que ajudam as pessoas
a se manterem bem. Os relacionamentos são a base da felicidade humana,
ou assim parece, e, como escreveu Robert Putnam no ano 2000, passamos
tempo demais “jogando sozinhos”. Talvez também assistamos demais à te-
levisão e façamos muito pouco exercício, combinação que sabidamente
constitui uma receita para a depressão. A comida que ingerimos - mais
alimentos industrializados etc. - também pode estar desempenhando um
papel. E o uso corriqueiro de drogas ilícitas - maconha, cocaína e alucinó-
genos - contribuiu claramente para a epidemia. Por fim, depois que uma
pessoa começa a receber uma pensão ou uma renda complementar da
Previdência Social, há um enorme desincentivo financeiro para o retorno
ao trabalho. As pessoas que recebem algum auxílio-doença dão a isso o
nome de “armadilha dos direitos individuais”. A menos que obtenham um
emprego que pague o seguro de saúde, elas perdem essa rede de segu-
rança se voltarem ao trabalho, e, depois de começarem a trabalhar, talvez
percam também seu subsídio para o aluguel.
Neste livro, entretanto, temos focalizado o papel que a psiquiatria e
seus medicamentos estariam desempenhando nessa epidemia, e os dados
são bastante claros. Primeiro, por expandir enormemente as fronteiras di-
agnosticas, a psiquiatria convida um número cada vez maior de crianças e
adultos a ingressarem no campo da doença mental. Segundo, as pessoas
assim diagnosticadas são tratadas com medicamentos psiquiátricos que
aumentam sua probabilidade de se transformarem cm doentes crônicos.
Muitos indivíduos tratados com psicotrópicos acabam com sintomas psi-
quiátricos novos e mais graves, indisposições físicas e prejuízos cognitivos.
Essa é a história trágica, escrita de maneira clara e óbvia em cinco déca-
das de literatura científica.
O histórico da incapacitação produzida por medicamentos psiquiátri-
cos é fácil de resumir. Na esquizofrenia, na década anterior à introdução
do Thorazine, cerca de 70% das pessoas que sofriam um primeiro surto
psicótico recebiam alta hospitalar cm até 18 meses, e a maioria não vol-
tava ao hospital durante períodos bem longos de acompanhamento. Pes-
quisadores da era pós-Thorazine relataram resultados semelhantes cm pa-
cientes não medicados. Rappaport, Carpenter e Mosher constataram que
talvez metade dos pacientes com diagnóstico de esquizofrenia se sairia
bastante bem se não tomasse uma medicação contínua. Mas essa é a
norma atual do tratamento, e, como mostrou o estudo de Harrow, apenas
5% dos pacientes medicados se recuperam a longo prazo. Hoje em dia, es-
tima-se que haja dois milhões de adultos incapacitados pela esquizofrenia
nos Estados Unidos, e talvez esse número de inválidos pudesse ser redu-
zido à metade, se adotássemos um paradigma de tratamento que empre-
gasse medicamentos antipsicóticos de maneira seletiva e cautelosa.
Nos transtornos afetivos, os efeitos iatrogênicos do nosso modelo de
atendimento baseado em fármacos são ainda mais visíveis. A ansiedade
costumava ser considerada um transtorno brando, que raramente exigia
internação. Atualmente, 8% dos adultos mais jovens nas listas da Renda
Complementar da Previdência (SSI) e do Seguro da Previdência Social por
Invalidez (SSDI) por invalidez psiquiátrica têm na ansiedade seu diagnós-
tico primário. Similarmente, os resultados referentes à depressão grave
costumavam ser bons. Em 1955, havia apenas 38.000 pessoas hospitali-
zadas por depressão, e havia uma expectativa de remissão da doença.
Hoje, a depressão aguda é a principal causa de invalidez nos Estados Uni-
dos entre pessoas de 15 a 44 anos. Dizem que ela afeta 15 milhões de
adultos e, de acordo com pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade Johns Hopkins, 60% deles têm uma “deterioração grave”.
Quanto ao transtorno bipolar, uma doença extremamente rara tornou-se
corriqueira. Segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), quase
seis milhões de adultos sofrem dela atualmente. Ao passo que, no pas-
sado, 85% dos indivíduos afetados se recuperavam e voltavam ao traba-
lho, hoje apenas cerca de um terço dos pacientes bipolares funciona tão
bem assim, e, a longo prazo, os pacientes bipolares que tomam sistemati-
camente seus remédios acabam tão prejudicados quanto os esquizofrêni-
cos que mantêm o uso de neurolépticos. Os pesquisadores da Johns
Hopkins concluíram que 83% tinham uma “deterioração grave”.
Em suma, havia 56.000 pessoas hospitalizadas com ansiedade e psi-
cose maníaco-depressiva em 1955. Hoje, de acordo com o NIMH, pelo
menos 40 milhões de adultos sofrem de um desses transtornos afetivos.
Mais de 1,5 milhão de pessoas incluem-se como invalidas nas listas da
SSI ou do SSDI, em decorrência de ansiedade, depressão ou transtorno bi-
polar, e, segundo os da Johns Hopkins, mais de 14 milhões dos indivíduos
com esses diagnóstica estão "severamente prejudicados" em sua capaci-
dade de funcionar em sociedade, E esse o espantoso resultado final produ-
zido por uma especialidade médica que expandiu drasticamente as frontei-
ras diagnósticas, nos últimos cinquenta anos, tem tratado seus pacientes
com fármacos que perturbam o funcionamento normal do cérebro.
Além disso, a epidemia continua a avançar. Nos 18 meses que levei
para fazer pesquisas e escrever este livro, a Administração da Seguridade
Social liberou seus relatórios de 2007 sobre os programas da SSI e do
SSDI, e os números foram os esperados: 401.255 crianças e adultos
abaixo de 65 anos foram acrescentados às listas da SSI e do SSDI cm
2007, por invalidez, psiquiátrica. Imagine um grande auditório que se en-
cha todos os dias com 250 crianças e 850 adultos recém- incapacitados
por uma doença mental, e você terá uma ideia visual do terrível tributo co-
brado por essa epidemia.

Doença Física, Deterioração Cognitiva e Morte Prematura

Consubstanciar a natureza de uma doença costuma envolver a identi-


ficação de lodos os sintomas que podem se desenvolver e, feito isto, acom-
panhar seu curso no tempo. Nos capítulos anteriores, basicamente nos
concentramos em estudos que mostraram que os remédios psiquiátricos
pioram os sintomas-alvo a longo prazo, e, apenas resumidamente, assina-
lamos que esses fármacos podem causar problemas físicos, embotamento
efetivo e prejuízos cognitivos. Trata-se também de uma forma de trata-
mento que leva à morte prematura. Hoje os doentes mentais graves mor-
rem de 15 a 25 anos antes do normal, e esse problema da morte prema-
tura tornou-se muito mais pronunciado nos últimos 15 anos. Eles morrem
de doenças cardiovasculares, problemas respiratórios, doenças metabóli-
cas, diabetes, insuficiência renal e assim por diante - e os problemas físi-
cos tendem a se acumular, à medida que as pessoas mantêm o uso de an-
tipsicóticos (ou coquetéis de remédios) por anos a fio?
Aqui estão três histórias que atestam esses vários riscos a longo prazo.
Amy Upham
Amy Upham mora num pequeno apartamento de quarto e sala cm
Buffalo c, quando entrei na sala, apontou para uma mesa repleta de pa-
péis. “Esta sou eu com os remédios psiquiátricos”, disse, e me entregou
uma pilha de documentos médicos. Eles falam de um edema cerebral in-
duzido por fármacos, de rins deficientes, edema de fígado e vesícula, pro-
blemas da tireoide, gastrite e anormalidades cognitivas. Com pouco mais
de 1,50 m de altura e cabelo castanho- avermelhado, arrepiado e crespo,
Amy, que tem 30 anos, pesa 41 quilos. Apertou uma dobra de pele solta
perto do cotovelo, sob a qual os músculos minguaram: “Isto é. igual ao que
a gente vê em usuários de heroína”.
Amy tomou um medicamento psiquiátrico pela primeira vez aos 16
anos, quando contraiu a doença de Lyme e sofreu um episódio de depres-
são. Doze anos depois, continuava a tomar antidepressivos e, ao reexami-
nar essa história, identificou várias situações em que os remédios provo-
caram surtos hipomaníacos e agravaram seus comportamentos obsessivo-
compulsivos. Por fim, cm 2007, ela resolveu fazer o “desmame” paulatino
da combinação de dois medicamentos que vinha tomando c, a princípio,
tudo correu bem. Na época, entretanto, ela trabalhava para o departa-
mento de saúde mental do condado, fazendo a defesa dos direitos dos do-
entes mentais, e alguém acabou passando a seus superiores a informação
anônima de que ela estava largando sua medicação. Isso contrariava o que
era pregado pelo departamento, e tudo acabou com Amy desempregada e
sentindo um medo paranoico de que alguém a estivesse perseguindo. “Tive
uma crise nervosa”, contou-me. “Fui para o hospital para me esconder.”
Era a primeira vez que Amy se internava, e recebeu imediatamente um
coquetel que incluía o lítio. Em poucos meses, seu sistema endócrino co-
meçou a falhar. O ciclo menstrual cessou, a tireoide descontrolou-se e um
eletroencefalograma revelou que seu cérebro estava inchado. Depois, os
rins começaram a não funcionar. Ela teve de suspender abruptamente o
lítio, o que desencadeou um surto maníaco. Os médicos lhe deram Ativan
para conter a mania, mas o remédio despertou sentimentos terríveis de
ódio e a deixou com impulsos suicidas. Passaram-se meses, e cm dezem-
bro de 2008 ela se internou num hospital psiquiátrico, onde foi diagnosti-
cada a toxicidade causada pelo Ativan. “Nunca vi um remédio ferrar tanto
com uma pessoa como faz o Ativan”, disse-lhe uma enfermeira. 0 hospital
suspendeu o Ativan, passou-a para o Klonopin e receitou o Abilify, que de-
sencadeou uma convulsão. Em seguida, um médico descobriu algo errado
com o coração de Amy, um problema que parecia relacionar-se com o Klo-
nopin, de modo que ela voltou ao Ativan. “Aí, comecei a ter alucinações
pela primeira vez na vida’, disse ela. “Andava de um lado para outro,
incontrolável, querendo sair da minha própria pele.” Seguiram-se outras
complicações ligadas aos remédios e, cm 24de fevereiro de 2009, Amy mu-
dou-se para um abrigo no terreno do hospital, já então com os pensamen-
tos tão dispersos que uma enfermeira se perguntou “se o mal de Alzheimer
de instauração precoce era um problema da família”.
O notável é que grande parte dessa história estava documentada na pi-
lha de papéis que Amy me deu. Ela havia passado os quatro meses anteri-
ores tentando largar o Ativan, mas, toda vez que passava para uma dose
mais baixa, sofria acessos de raiva e algo parecido com um delírio. “Eu
ando assustada”, disse-me, quando lhe devolvi os papéis. “As síndromes
de abstinência são terríveis e eu moro sozinha. Vivo num estado constante
de pânico, de ansiedade, e tenho um pouco de agorafobia. Não é seguro.”
Rachel Klein
Quando conheci Rachel Klein, na primavera de 2008, ela entrou man-
cando no meu escritório, de bengala e com um cão-guia ao lado, que se
deitou a seus pés enquanto conversávamos. Ainda não tinha 40 anos, mas
retrocedeu o relógio para mim bem depressa, e não tardou a me falar de
um esplêndido dia do outono de 1984. Com apenas 16 anos, ela estava in-
gressando no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), uma me-
nina-prodígio com QI 173 e os ouvidos tinindo de previsões de que um dia
ganharia o Prêmio Nobel. “Cheguei ao campus com um ursinho de pelúcia
saindo da minha mochila”, contou, com um leve sorriso ante a lembrança.
“Para ver como eu estava despreparada em termos emocionais.”
Seu colapso afetivo no MIT começou no fim do segundo ano, quando
ela se envolveu com um aluno mais velho que era “totalmente psicótico” e
começou a usar drogas ilícitas - Ecstasy, LSD, cogumelos e óxido nitroso
[gás hilariante). Sua noção de eu começou a desmoronar e, depois que um
verão de terapia da fala a deixou mais confusa do que nunca, ela foi inter-
nada com uma depressão psicótica. Ao receber alta, levava receitas de um
antipsicótico, um antidepressivo e uma benzodiazepina (Xanax). “Nenhum
desses remédios me ajudou”, disse. “Eles me embotavam, e a tentativa de
largar o Xanax foi um desastre. Esse e o pior remédio que já existiu. Vicia
muito, e todos os sintomas que levaram a gente para o hospital, para co-
meço de conversa, ficam mil vezes piores quando a gente tenta largá-lo.”
Mesmo tendo acabado por se formar no MIT e ser aceita num curso de
mestrado e doutorado na Universidade do Colorado, Rachel começou a en-
trar e sair ciclicamente dos hospitais; seu colapso no MIT transformou-se
num caso de doença mental crônica. “Disseram que eu não tinha remédio
e que nunca melhoraria”, recordou. Ela desfrutou de um período de esta-
bilidade de 1995 a 2001, quando trabalhou como assistente da gerência
de uma instituição residencial comunitária em Boston, mas então seu ir-
mão morreu de repente e seus problemas psicológicos tornaram a eclodir.
Seu psiquiatra tirou-a do Risperdal e a passou para doses altas de Geodon
e Effexor, além de lhe aplicar uma injeção de outro medicamento psiquiá-
trico.
“Tive uma reação serotoninérgica aguda, uma reação tóxica”, disse Ra-
chel, abanando a cabeça ao se lembrar. “Aquilo provocou uma vasocons-
trição no meu cérebro, o que causou uma lesão cerebral. Acabei numa ca-
deira de rodas, sem conseguir raciocinar, falar nem andar. Esses centros
cerebrais precisam de muita lubrificação.”
Desde então, sua vida seguiu entre altos e baixos. Ela se consola com
seu trabalho voluntário no M-Power, um grupo de defesa dos direitos de
usuários do sistema de saúde mental que tem sede em Boston e é dirigido
por seus membros, e, na primavera de 2008, trabalhava 16 horas por se-
mana para a Advocates, Inc., que presta serviços aos surdos. Mas também
estava combatendo um câncer ovariano, e é possível que essa doença te-
nha se relacionado com os medicamentos psiquiátricos. Hoje Rachel acha
que esses remédios são úteis, sim, mas, quando repensa sua vida, vê um
modelo de atendimento que falhou por completo com ela. “E um embuste,
na verdade.”
Scott Sexton
Na primavera de 2005, Scott Sexton recebeu seu diploma de mestrado
da Universidade Rice. Naquele momento, tinha pela frente um futuro bri-
lhante, mas rompeu com a mulher com quem pretendia casar-se e foi hos-
pitalizado com depressão. Era seu segundo surto de depressão aguda (ele
havia sofrido um primeiro episódio cinco anos antes, quando seus pais se
divorciaram), e como seu pai havia sofrido de transtorno bipolar, Scott foi
diagnosticado com essa doença. Receitaram-lhe um coquetel que incluiu o
Zyprexa.
Naquele outono, ele começou a trabalhar como consultor da Deloitte, a
grande empresa de auditoria e contabilidade. Embora seus primeiros me-
ses no emprego corressem bem, no começo de 2006 ele estava dormindo
de 12 a 16 horas por dia, drogado pelo Zyprexa. Logo precisou de outro
comprimido para acordar de manhã, e começou a “engordar furiosa-
mente”, recordou sua mãe, Kaye. “Ele tinha 1,78 m e passou de 84 para
113 quilos. Ficou com um barrigão de chope e com as bochechas iguais às
de um tâmia. Sabíamos que o Zyprexa causava aumento de peso, e ele fi-
cou assustado, e eu também.”
No outono de 2006, Scott dormia tanto que, nos fins de semana, só se
levantava à tarde. Parou de ir ao escritório e disse à Deloitte que estaria
trabalhando cm casa. No dia de Ação de Graças, telefonou para a mãe e
lhe disse estar com dores terríveis na barriga e, no dia seguinte, foi inter-
nado no Hospital Episcopal São Lucas, cm Houston. A mãe pegou um voo
de Midland para lá. “Scott estava vermelho feito uma beterraba, transpi-
rando, e com as mãos tão inchadas que tiveram dificuldade para tirar o
anel dele. Ardia em febre, e os exames [de laboratório] estavam totalmente
malucos. Tudo muito esquisito. O colesterol estava nos píncaros. Os trigli-
cerídeos estavam altíssimos.”
Era o pâncreas de Scott entrando em falência. Sabia-se que o Zyprexa
causara pancreatite, mas os médicos do São Lucas não estabeleceram
essa ligação. Mantiveram o tratamento de Scott com essa droga até sua
morte, em 7 de dezembro. “Eu sempre disse para ele tomar seus remé-
dios”, contou a mãe. “Eu dizia: ‘Scott, se um dia eu descobrir que você lar-
gou os remédios, vou a Houston e lhe dou um tiro’. Era isso que cu dizia.
E lá estava ele, fazendo tudo que pensava ser necessário para funcionar
na nossa sociedade, para ser um membro produtivo da sociedade, e isso o
matou.”
11.
A EPIDEMIA DISSEMINADA ENTRE AS CRIANÇAS

“Para muitos pais e famílias, a experiência de ter um filho diagnosticado com


uma doença mental] pode ser uma desgraça; isto nós devemos dizer.” - E.
Jane Costello, professora de psiquiatria da Universidade Duke, 2006
Prescrever medicamentos psiquiátricos para crianças e adolescentes é
um fenômeno recente, já que relativamente poucos jovens eram medica-
dos antes de 1980, e assim, ao investigarmos essa história, teremos a
oportunidade de submeter a tese deste livro a uma segunda prova. Por-
ventura constatamos, na literatura científica e nos dados sociais, que a
medicação de crianças e adolescentes vem fazendo mais mal que bem? Es-
taria isso pondo muitas crianças, inicialmente às voltas com um problema
relativamente pequeno - um desinteresse pela escola, ou um período de
tristeza -, num caminho que leva à incapacidade vitalícia? Um dos princí-
pios da ciência é que os resultados de um experimento devem ser replicá-
veis, c, em essência, medicar crianças equivale a um segundo experi-
mento. Primeiro, medicamos adultos diagnosticados com doenças mentais
e, como vimos nos capítulos anteriores, isso não levou a ótimos resultados
a longo prazo. Em seguida, nos últimos trinta anos, diagnosticamos vários
distúrbios em crianças e adolescentes e lhes receitamos remédios psiquiá-
tricos, e agora podemos ver se os resultados dessa segunda experiência
são os mesmos.
Reconheço que isso situa nossa investigação da medicação dos jovens
num quadro bastante frio e analítico, dada a assustadora possibilidade
que está cm jogo aqui. Se os resultados em crianças e adolescentes forem
iguais aos dos adultos, receitar fármacos psiquiátricos para milhões de jo-
vens norte-americanos estará causando danos numa escala quase inco-
mensurável. Mas essa possibilidade se presta a uma resenha emotiva da
literatura médica, e é justamente por isso que vamos conduzir nossa in-
vestigação da maneira mais desapaixonada possível. É preciso que os fa-
tos falem por si.
A história de progresso que a psiquiatria conta sobre a medicação de
criança é de natureza ligeiramente diferente da que ela conta sobre seus
avanços no tratamento de adultos. Em 1955, quando chegou o Thorazine,
havia centena de milhares de adultos em hospitais psiquiátricos, com di-
agnósticos de doença» que tinham um passado reconhecível. Mas, ao se
iniciar a era farmacológica pouquíssimas crianças eram diagnosticadas
como “doentes mentais”. Havia valentões e vadios nas escolas primárias,
mas eles não eram diagnosticados corno portadores de transtorno do défi-
cit de atenção com hiperatividade (TDAH), porque esse diagnóstico ainda
não tinha nascido. Havia adolescentes temperamentais e emocionalmente
voláteis, mas a expectativa da sociedade era que, ao crescerem, eles se tor-
nassem adultos mais ou menos normais. Todavia, depois que a psiquiatria
começou a tratar crianças com psicotrópicos, ela repensou essa visão da
infância. A história hoje contada pela psiquiatria é que, nos últimos cin-
quenta anos, ela descobriu que as crianças sofrem regularmente de doen-
ças mentais, ditas de natureza biológica. Primeiro, a psiquiatria materiali-
zou o TDAH como uma doença identificável; depois, determinou que a de-
pressão aguda e o transtorno bipolar atingem regularmente crianças e
adolescentes. Eis como o psiquiatra Ronald Kessler, da Faculdade de Me-
dicina da Universidade Harvard, resumiu essa “história” em 2001:
Embora se conduzam há muitos anos estudos epidemiológicos de transtor-
nos do humor na infância e na adolescência, durante muito tempo o pro-
gresso foi impedido por duas ideias equivocadas: a de que os distúrbios
do humor são raros antes da idade adulta e a de que a perturbação do
humor e uma faceta normativa e autolimitante do desenvolvimento infantil
e adolescente. Hoje as pesquisas deixam claro que nenhuma dessas cren-
ças é verdadeira. A depressão, a mania e sintomas de tipo maníaco são
todos relativamente comuns entre crianças e adolescentes na população
geral.
Doenças que passavam despercebidas, ao que parece, foram agora
identificadas. A segunda parte dessa história de progresso científico conta
conto as drogas psiquiátricas são úteis e necessárias. Milhões de crianças
que antes sofriam em silêncio recebem agora um tratamento que as ajuda
a prosperar. Aliás, a história que vem emergindo na psiquiatria pediátrica
é que os medicamentos psicotrópicos ajudam a criar cérebros sadios. Em
seu livro de 2006, Child and Adolescent Psychopharmacology Made Sim-
ple [Psicofarmacologia simplificada da infância e da adolescência], o psi-
quiatra John O’Neal explicou aos leitores por que era tão essencial que as
crianças com doenças mentais fossem tratadas com medicamentos:
Provas cada vez. mais numerosas mostram que alguns transtornos psiquiá-
tricos podem levar a uma deterioração neurológica progressiva quando
não são tratados. (...) Níveis tóxicos de neurotransmissores, como os gluta-
matos, ou de hormônios do estresse, como o cortisol, podem danificar o te-
cido nervoso ou interferir nas vias normais de neuromaturação. O trata-
mento farmacológico desses distúrbios pode não só ter sucesso na me-
lhora dos sintomas, mas também ser neuroprotetor (em outras palavras,
os tratamentos medicamentosos podem proteger de lesões cerebrais ou
promover a neuromaturação normal).
Se isso é verdade, a psiquiatria realmente deu um grande salto nos úl-
timos trinta anos. O campo aprendeu a diagnosticar cm crianças doenças
cerebrais que antes passavam despercebidas, e seus medicamentos “neu-
roprotetores” agora as transformam em adultos normais.

A Ascensão do TDAH

Embora o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade não apa-


recesse do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais da
psiquiatria antes de 1980, esse campo profissional gosta de assinalar que
tal distúrbio não surgiu simplesmente do nada. Trata-se de um problema
cujas raízes remontam a 1902. Naquele ano, sir George Frederick Still, pe-
diatra inglês, publicou uma série de palestras sobre vinte crianças que ti-
nham a inteligência normal, mas “exibiam explosões violentas, peraltice
desenfreada, destrutividade e falta de reação aos castigos”.4 Além disso,
Still ponderou que esse mau comportamento provinha de um problema bi-
ológico (e não da má qualidade da educação dada pelos pais). Crianças
com doenças conhecidas - epilepsia, tumores cerebrais ou meningite -
eram amiúde agressivamente desafiadoras, e assim, Still calculou que es-
sas vinte crianças sofriam de uma “disfunção cerebral mínima”, mesmo
não havendo doença nem trauma óbvios que a houvessem causado.
Nos cinquenta anos seguintes, um punhado de outros autores formu-
lou a ideia de que a hiperatividade era um marcador de lesão cerebral. As
crianças que se recuperaram da encefalite letárgica, uma epidemia viral
que varreu o planeta entre 1917 e 1928, exibiam com frequência compor-
tamentos antissociais e oscilações acentuadas de humor, o que levou os
pediatras a concluir que a doença havia causado uma lesão cerebral leve,
ainda que a natureza dessa lesão não pudesse ser identificada. Em 1947,
Alfred Strauss, que era diretor de uma escola para jovens agitados em Ra-
cine, no Wisconsin, chamou seus alunos extremamente hiperativos de
“crianças normais com lesão cerebral”. O primeiro Manual de Diagnóstico
e Estatística ila psiquiatria, publicado cm 1952, disse que tais criança, so-
friam de uma “síndrome cerebral orgânica”.
A ideia de que os estimulantes pudessem ser benéficos para essas cri-
anças surgiu cm 1987, quando Charles Bradley deu uma anfetamina re-
cém-sintetizada, a Benzedrina, a crianças hiperativas que se queixavam
de cefaleia. Embora o medicamento não curasse a dor de cabeça, Bradley
relatou que ele “aquietava" as crianças e as ajudava a se concentrarem
melhor nas tarefas escolares. As crianças chamavam a Benzedrina de
"pílula da aritmética”.6 Embora o relatório de Bradley tenha basicamente
caído no esquecimento nos vinte anos seguintes, em 1956 a Ciba-Geigy
introduziu a Ritalina (metilfenidato) no mercado como tratamento para a
narcolepsia. alardeando-a como uma alternativa “segura” para as anfeta-
minas, e os médicos da Faculdade de Medicina da Universidade Johns
Hopkins. que tinham conhecimento das descobertas de Bradley, não tar-
daram a julgar que a nova droga seria útil para acalmar crianças “pertur-
badas”, que se supunha sofrerem de uma “síndrome de lesão cerebral”.
Durante os anos 1960, não houve grande pressa dos psiquiatras em
receitara Ritalina para crianças irrequietas que frequentavam escolas co-
muns. Na época, havia uma ideia de que os fármacos psicoativos, dados
os seus muitos riscos, só deviam ser ministrados a crianças hospitalizadas
ou a crianças de instituições residenciais comunitárias. A população de
crianças hiperativas que podia ser diagnosticada como portadora de “dis-
função cerebral orgânica” era pequena. Aos poucos, entretanto, o uso da
Ritalina pela psiquiatria começou a aumentar, durante os anos 1970, a tal
ponto que, no fim da década, umas 150.000 crianças dos Estados Unidos
estavam tomando esse remédio. Depois, em 1980, a classe psiquiátrica
publicou uma terceira edição de seu Manual de Diagnóstico e Estatística
(DSM-III), que pela primeira vez identificou o “transtorno do déficit de
atenção” (TDA) como uma doença. Os sintomas principais eram “hiperati-
vidade”, “desatenção” e “impulsividade” e, visto que muitas crianças se re-
mexem nas carteiras e têm dificuldade de se manter atentas na escola, o
diagnóstico de TDA começou a decolar. Em 1987, a psiquiatria afrouxou
ainda mais as fronteiras diagnósticas, redenominando a doença de trans-
torno do déficit de atenção com hiperatividade, numa edição revista do
DSM-III. Em seguida, a Ciba-Geigy’ ajudou a financiar a criação do Chil-
dren and Adults vvith Attention Déficit Hyperactivity Disorder (CHADD),
um “grupo de apoio de pacientes” que começou imediatamente a promover
a conscientização popular em relação a essa “doença”. Por fim, em 1991, o
CHADD pressionou o Congresso e conseguiu que ele incluísse o TDAH
como uma deficiência coberta pela Lei de Educação de Indivíduos com De-
ficiências. As crianças diagnosticadas como portadoras de TDAH passa-
ram a ler direito a serviços especiais, que deveriam ser financiados por
verbas federais, e as escolas começaram a identificar com regularidade cri-
anças que pareciam sofrer dessa doença. Como observou a Harvard Re-
view of Psychiatry cm 2009, até hoje o diagnóstico de TDAH provêm sobre-
tudo das queixas de professores, já que “apenas uma minoria de crianças
com esse transtorno exibe sintomas durante uma consulta médica”.
De repente, podiam-se encontrar crianças com TDAH em todas as sa-
las de aula. O número das que receberam esse diagnóstico subiu para
quase um milhão cm 1990 e mais do que duplicou nos cinco anos seguin-
tes. Hoje em dia, talvez 3,5 milhões de crianças norte-americanas tomem
algum estimulante para o TDAH, e os Centros de Controle e Prevenção de
Doenças informaram, em 2007, que uma cm cada criança ou adolescente
norte-americano de 4 a 17 anos usa essa medicação. Essa prática de pres-
crição é sobretudo um fenômeno norte-americano as crianças dos Estados
Unidos consomem o triplo da quantidade de estimulantes consumidos
pelo resto das crianças do mundo inteiro, consideradas em conjunto.
Embora o público ouça com frequência que as pesquisas mostraram
que o TDAH é uma “doença cerebral”, a verdade é que sua etiologia conti-
nua desconhecida. “As tentativas de definir uma base biológica para o
TDAH têm sido um insucesso sistemático”, escreveu o neurologista pediá-
trico Gerald Golden em 1991. “A neuroanatomia do cérebro, como de-
monstram os estudos por imagem, é normal. Nenhum substrato neuropa-
tológico foi demonstrado.”’ Sete anos depois, um grupo de especialistas
reunido pelo Instituto Nacional de Saúde reiterou a mesma afirmação:
“Após anos de pesquisas clínicas e experiência com o TDAH, nosso conhe-
cimento sobre a causa ou causas desse transtorno continua a ser predo-
minantemente especulativo.”10 Durante a década de 1990, o CHADD in-
formou ao público que as crianças com TDAH sofriam de um desequilíbrio
químico, caracterizado por um sistema dopaminérgico insuficientemente
ativo, mas essa foi apenas uma afirmação para comercialização de medi-
camentos. A Ritalina e outros estimulantes elevam os níveis de dopamina
na fenda sináptica, de modo que o CHADD estava tentando dar a impres-
são de que tais fármacos “normalizavam” a química cerebral; no entanto,
como confessou o Manual di Neuropsiquiatria de 1997 da American
Psychiatric Press, “os esforços para identificar um desequilíbrio neuroquí-
mico seletivo [em crianças com TDAH] tem sido decepcionantes”.
Portanto, vemos nessa história que não se descobriu nada novo de que
revelasse uma “doença mental” chamada TDAH. Havia na medicina um
longo histórico de especulação de que as crianças extremamente hiperati-
vas sofreriam de algum tipo de disfunção cerebral, o que decerto era uma
ideia razoável, mas a natureza dessa disfunção nunca foi descoberta; e en-
tão, em 1980, a psiquiatria simplesmente criou, com uma penada no
DSM-III, uma definição drasticamente expandida da “hiperatividade”. O
garoto irrequieto de 7 anos que em 1970 poderia ser chamado de “mole-
que” tornou-se um indivíduo que sofria de um distúrbio psiquiátrico.
Dado que a biologia do TDAH permanece desconhecida, é lícito dizer
que a Ritalina e outros medicamentos para esse transtorno “funcionam”
perturbando os sistemas neurotransmissores. A melhor maneira de des-
crever a Ritalina seria chamá-la de inibidor da recaptação de dopamina.
Na dose terapêutica, ela bloqueia 70% dos “transportadores” que retiram
dopamina da fenda sinóptica e a devolvem ao neurônio pré-sináptico. A
cocaína age do mesmo modo no cérebro. Mas o metilfenidato sai do cére-
bro muito mais devagar do que a cocaína, e por isso bloqueia a recaptação
de dopamina durante horas, em contraste com a perturbação relativa-
mente breve dessa função causada pela cocaína1.
Em resposta ao metilfenidato, o cérebro infanto-juvenil passa por uma
série de adaptações compensatórias. A dopamina passa a permanecer na
fenda sináptica por um tempo excessivo e, por causa disso, o cérebro da
criança ou adolescente reduz o ritmo de seu mecanismo dopaminérgico. A
densidade dos receptores dopaminérgicos nos neurônios pós-sinápticos
declina. Ao mesmo tempo, reduz- se a quantidade de metabolitos de dopa-
mina no líquido cefalorraquidiano, prova de que os neurônios pré-sinápti-
cos estão liberando uma quantidade menor dela. A Ritalina também age
sobre os neurônios serotoninérgicos e noradrenérgicos, o que causa mu-
danças compensatórias similares nessas duas vias neuronais. A densi-
dade dos receptores de serotonina e norepinefrina diminui e a liberação
dessas duas substâncias químicas pelos neurônios pré-sinápticos também
se altera. O cérebro da criança, nas palavras de Steven Hyman, passa a
operar de um modo “qualitativa e quantitativamente diferente daquele do
seu estado normal”."
Podemos agora voltar nossa atenção para os dados relativos aos resul-
tados. Será que esse tratamento ajuda os jovens com diagnóstico de TDAH
a longo prazo? O que mostra a literatura científica?

Passivos, Parados, Solitários

A Ritalina e outros remédios para o TDAH mudam o comportamento


da criança, sem dúvida, e em seu relatório de 1937 Charles Bradley pre-
parou o terreno para a história de eficácia que acabaria emergindo:
“Quinze das trinta crianças responderam à Benzedrina, tornando-se

1 É pelo fato de ter uma ação tão breve que a cocaína vicia mais do que o metilfenidato, pois, assim
que ela deixa o cérebro, o viciado pode querer tornar a experimentar o “barato” que vem quando as
vias dopaminérgicas são levadas a um estado hiperativo pela primeira vez.
nitidamente dóceis em suas reações emocionais. Clinicamente, na totali-
dade dos casos, isso foi uma melhora do ponto de vista social”.13 A Rita-
lina, que a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA)
aprovou para uso infantil em 1961, mostrou ter um efeito moderador se-
melhante. Num estudo duplo-cego conduzido em 1978, o psicólogo Her-
bert Rie, da Universidade do Estado de Ohio, estudou 28 crianças “hipera-
tivas” durante três meses, havendo-se receitado metilfenidato para metade
delas. Eis o que escreveu:
As crianças que estavam em tratamento medicamentoso ativo, como se con-
firmou retrospectivamente, pareceram, nos momentos de avaliação, nitida-
mente mais impassíveis ou “chochas” em termos afetivos, sem a varie-
dade e a frequência de expressão emocional que são típicas da idade. Re-
agiram menos, exibiram pouca ou nenhuma iniciativa ou espontaneidade,
deram pouca indicação de aversão ou interesse, praticamente não de-
monstraram curiosidade, surpresa nem prazer, e pareceram desprovidas
de humor. Os comentários jocosos e as situações cômicas passaram des-
percebidos. Em suma, sob o efeito do tratamento medicamentoso ativo, as
crianças ficaram relativa, mas inconfundivelmente, sem afeto, sem humor
e apáticas."
Numerosos investigadores relataram observações similares. Sob o
efeito da Ritalina, as crianças exibiam “um aumento acentuado das brin-
cadeiras solitárias, relacionado com o medicamento, e uma redução cor-
respondente da iniciativa de interações sociais”, anunciou Russell Barkley,
um psicólogo da Faculdade de Medicina de Wisconsin, em 1978. Esse re-
médio, observou a psicóloga Nancy Fiedler, da Universidade Estadual de
Bowling Green, reduzia a “curiosidade [da criança] sobre o ambiente”. As
vezes a criança medicada “perde o brilho”, escreveu o dr. Till Davy, um pe-
diatra canadense, em 1989. As crianças tratadas com estimulantes, con-
cluiu uma equipe de psicólogos da Universidade da Califórnia em Los An-
geles (UCLA) em 1993, não raro se tornam “passivas, submissas” e “social-
mente retraídas”. Sob o efeito do medicamento, algumas “parecem zum-
bis”, assinalou o psicólogo James Swanson, diretor de um centro de TDAH
na Universidade da Califórnia em Irvine.19 Os estimulantes, explicaram
os editores do Oxford Textbook of Clinical Psychopharmacology and Drug
Therapy (“Manual de psicofarmacologia e terapia medicamentosa de Ox-
ford”) cerceiam a hiperatividade “reduzindo o número de respostas com-
portamentais”.
Todos esses relatórios contavam a mesma história. Com a Ritalina, o(a)
aluno(a) que antes tinha sido um incómodo na sala de aulas, remexendo-
se demais na carteira ou falando com colegas próximos enquanto o profes-
sor escrevia no quadro-negro, aquietava-se. Não se movimentava tanto e
não buscava tanto o contato social com seus pares. Quando recebia uma
tarefa como respondera problemas aritméticos, sabia concentrar-se inten-
samente nela. Charles Bradley tinha achado que essa mudança de com-
portamento era “uma melhora do ponto de vista social”. E é essa a pers-
pectiva que aparece nos testes de eficácia da Ritalina e outros remédios
para o TDAH. Os professores e outros observadores preenchem instru-
mentos de avaliação que veem como positiva a redução da movimentação
da criança e de seu contato com os outros, e, quando os resultados são ta-
belados, considera-se que de 70% a 90% das crianças “respondem bem” à
medicação para o TDAH. Esses fármacos, como escreveram investigadores
do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) em 1995, são altamente efi-
cazes para “reduzir de maneira drástica uma gama de sintomas nucleares
do TDAH, tais como as atividades irrelevantes para a tarefa (por exemplo,
tamborilar dos dedos, irrequietação, movimentos motores finos, [compor-
tamento] desvinculado da tarefa durante a observação direta) e a pertur-
bação da sala de aulas”. Especialistas cm TDAH do Hospital Geral de Mas-
sachusetts resumiram de maneira semelhante a literatura científica: “A li-
teratura existente documenta com clareza que os estimulantes diminuem
os comportamentos prototípicos do TDAH, inclusive a hiperatividade mo-
tora, a impulsividade e a falta de atenção”.
Entretanto, nada disso fala de um tratamento medicamentoso que be-
neficie os jovens. Os estimulantes funcionam bem para os professores,
mas será que ajudam as crianças? Nesse ponto, desde o começo os pes-
quisadores esbarraram numa muralha. “Acima de qualquer outra coisa”,
escreveu Esther Sleator, médica da Universidade de Illinois que perguntou
a 52 crianças o que achavam da Ritalina, “deparamos com uma antipatia
generalizada por tomar estimulantes entre as crianças hiperativas”. As cri-
anças medicadas com Ritalina, relatou cm 1990 a psicóloga Deborah Ja-
cobvitz, da Universidade do Texas, consideravam-se “menos felizes e [me-
nos] satisfeitas com elas mesmas, além de mais disfóricas”. Em matéria de
ajudar as crianças a fazer e preservar amizades, os estimulantes produ-
ziam “poucos efeitos positivos significativos e uma alta incidência de efei-
tos negativos”, disse Jacobvitz. Outros pesquisadores detalharam como a
Ritalina feria a autoestima das crianças, pois estas achavam que deviam
ser “más” ou “burras”, se tinham que tomar esse remédio. “A criança
passa a acreditar não na firmeza de seu cérebro e seu corpo, não em sua
própria capacidade crescente de aprender e de controlar seu comporta-
mento, mas nas ‘minhas pílulas mágicas, que fazem de mim um bom me-
nino’”, disse o psicólogo Alan Sroufe, da Universidade de Minnesota.
Tudo isso falava dos males causados, de uma medicação que deixava a
criança deprimida, solitária e carregada de um sentimento de inadequa-
ção, e, quando os pesquisadores foram examinar se ao menos a Ritalina
ajudava as crianças hiperativas a se saírem bem no plano acadêmico, a ti-
rarem boas notas e terem sucesso como estudantes, constataram que não
era esse o caso. Poder se concentrar intensamente numa prova de mate-
mática, como se revelou, não se traduzia em realizações acadêmicas a
longo prazo. Esse fármaco, explicou Sroufe cm 1973, melhora o desempe-
nho em “tarefas rotineiras repetitivas, que exigem atenção contínua”, mas
“o raciocínio, a resolução de problemas e a aprendizagem não parecem ser
[positivamente] afetados”. Cinco anos depois, Herbert Rie foi muito mais
negativo. Informou que a Ritalina não produzia benefício algum no ‘Voca-
bulário, na leitura, na ortografia ou na matemática” dos estudantes, além
de prejudicar sua capacidade de resolver problemas. “As reações das cri-
anças sugerem fortemente uma redução do tipo de engajamento que pare-
ceria crucial para a aprendizagem.” Naquele mesmo ano, Russell Barkley,
da Faculdade de Medicina de Wisconsin, fez um levantamento da litera-
tura científica pertinente e concluiu: “o efeito principal dos estimulantes
parece ser a melhora no manejo das crianças na sala de aulas, e não no
desempenho acadêmico”. Em seguida, foi a vez de James Swanson fazer
sua avaliação. O fato de as drogas frequentemente deixarem as crianças
“isoladas, retraídas e excessivamente concentradas" podia “prejudicar
mais a aprendizagem do que aprimorá-la”, disse ele. Carol Whalen, psicó-
loga da Universidade da Califórnia em Irvine, assinalou cm 1997 que “tem
sido especialmente preocupante a sugestão de que os efeitos insalubres
[da Ritalina] ocorrem no âmbito de funções cognitivas complexas, de or-
dem superior, como a resolução flexível de problemas ou o pensamento di-
vergente”. Por último, em 2002, investigadores canadenses conduziram
uma meta-análise da literatura, revendo 14 estudos que tinham envolvido
1.379 crianças e adolescentes e durado pelo menos três meses, e determi-
naram que houve “poucos indícios de melhora no desempenho acadê-
mico”.
Houve mais um desapontamento com a Ritalina. Quando os pesquisa-
dores averiguaram se os estimulantes melhoravam o comportamento da
criança a longo prazo, não conseguiram encontrar nenhum benefício.
Quando a criança parava de tomar a Ritalina, era comum eclodirem os
comportamentos ligados ao TDAH, ficando “a excitabilidade, a impulsivi-
dade ou a tagarelice” piores do que nunca. “Muitas vezes, e desanimador
observar a rapidez com que o comportamento se deteriora quando a medi-
cação é suspensa”, confessou Whalen. E também não houve provas de
que manter o uso do estimulante levasse a uma melhora permanente da
conduta. “Os professores e os pais não devem esperar melhorar a longo
prazo no desempenho acadêmico nem redução do comportamento antisso-
cial”, escreveu Swanson em 1993. A edição de 1994 do Manual de Psiquia-
tria da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA) admitiu a mesma
conclusão essencial: “Os estimulantes não produzem melhoras duradou-
ras na agressividade, nos distúrbios da conduta, na criminalidade, nas
conquistas educacionais, no funcionamento no emprego, nas relações
conjugais ou na adaptação a longo prazo". Trinta anos de pesquisas não
conseguiram fornecer nenhuma boa comprovação de que os estimulantes
ajudassem as crianças “hiperativas” a se desenvolver, e, no começo da dé-
cada de 1990, uma equipe de eminentes especialistas cm TDAH, escolhida
para chefiar um estudo de longo prazo do NIMH, conhecido como Estudo
Plurilocalizado e Multimodal do Tratamento de Crianças com TDAH, reco-
nheceu que era essa a situação. “A eficácia a longo prazo da medicação es-
timulante não foi demonstrada em nenhum campo do funcionamento in-
fantil”, escreveu.

Os Estimulantes São Reprovados

O NIMH alardeou seu estudo sobre o TDAH como “o primeiro grande


ensaio clínico” já conduzido pelo instituto sobre “um transtorno mental in-
fantil”. Todavia, tratou-se de um exercício intelectual bastante falho, já
desde o começo. Embora os investigadores, chefiados por Peter Jensen, di-
retor adjunto de pesquisas sobre infância e adolescência no NIMH, reco-
nhecessem, durante as fases de planejamento, que não havia na literatura
científica provas de que os estimulantes melhorassem os resultados a
longo prazo, eles não incluíram no estudo um grupo de controle que rece-
besse um placebo, sob a alegação de que seria “antiético” suspender um
“tratamento de eficácia conhecida” durante um longo período. Basica-
mente, o estudo comparou o tratamento medicamentoso com a terapia
comportamental, mas, neste último grupo, 20% dos sujeitos tomavam um
estimulante no início do estudo, e nunca houve um período, durante os 14
meses, cm que todas as crianças desse grupo ficassem sem a medicação.
Apesar dessa falha óbvia na concepção do estudo, os investigadores fi-
nanciados pelo NIMH declararam a vitória dos estimulantes, ao término
dos 14 meses. O “manejo cuidadosamente trabalhado da medicação” tinha
se provado “superior” ao tratamento comportamental, em termos de redu-
ção dos sintomas nucleares do TDAH. Houve também uma sugestão de
que as crianças medicadas tinham se saído melhor nos testes de leitura
(mas não em qualquer outro assunto académico) e, como resultado, a psi-
quiatria passou a dispor de um estudo de longo prazo que documentava
os benefícios contínuos dos estimulantes. “Dado que o TDAH é hoje visto
pela maioria dos especialistas como um distúrbio crônico, o tratamento
contínuo comumente parece necessário”, concluíram os pesquisadores.
Depois desse período inicial de tratamento por 14 meses, os investiga-
dores fizeram acompanhamentos periódicos com os estudantes, avaliando
como eles iam e se estavam tomando algum medicamento para o TDAH. A
pesquisa tornou-se um estudo naturalista, muito semelhante ao condu-
zido por Martin Harrow sobre os resultados da esquizofrenia, e os leitores
deste livro, já familiarizados com a literatura científica, podem facilmente
adivinhar o que veio depois. Ao cabo de três anos, Jensen e os outros des-
cobriram que
a medicação era um marcador significativo não de um resultado benéfico,
mas de deterioração. Em outras palavras, os participantes que usaram a
medicação no período de 24 a 36 meses mostraram, na verdade, um au-
mento da sintomatologia durante esse período, comparados aos que não
estavam tomando medicamentos.
Dito de outra maneira, as crianças e adolescentes medicados riram
seus sintomas nucleares de TDAH - impulsividade, desatenção, hiperativi-
dade - piorarem, pelo menos em comparação com os dos jovens não medi-
cados. Além disso, os que tomavam remédios apresentavam “índices de
delinquência” mais altos ao fim dos três anos, o que significava que eram
mais propensos a se meter em encrencas na escola e com a polícia.39
Também já eram mais baixos e mais leves do que seus pares não medica-
dos, numa prova de que os fármacos inibiam o crescimento. Esses resul-
tados deram conta de uma terapia medicamentosa que causava danos a
longo prazo, e quando os investigadores financiados pelo NIMH apresenta-
ram seus resultados, após seis anos, os dados se mantiveram os mesmos.
0 uso da medicação estava “associado a uma hiperatividade/impulsivi-
dade pior e a sintomas de transtorno desafiador opositivo”, bem como a
um “prejuízo funcional global maior”.
Existe há muito uma controvérsia acirrada a respeito de o TDAH ser
ou não uma doença “real”, mas esse estudo mostrou que, em matéria do
uso de estimulantes para tratá-la, a controvérsia é irrelevante. Mesmo que
o TDAH seja real, os estimulantes não fornecerão nenhuma ajuda a longo
prazo. “Pensamos que as crianças medicadas por mais tempo teriam re-
sultados melhores. Não foi o que aconteceu", disse William Pelham, da
Universidade Estadual de Nova York em Buffalo, que foi um dos principais
investigadores. “Não houve efeitos benéficos, nenhum. A curto prazo, [a
medicação] ajuda a criança a se comportar melhor, ma, não a longo prazo.
E essa informação deve ser deixada muito clara para os pais.”

Calculando o Prejuízo

Em relação a qualquer medicamento, há que se fazer uma avaliação


dos riscos e benefícios, e a expectativa é de que os benefícios compensem
os riscos. Nesse caso, porém, o NIMH constatou que, no longo prazo, não
havia nada a registrar na coluna de benefícios do balanço. Isso deixava
apenas o cálculo dos riscos a sei feito, razão por que, neste ponto, deve-
mos examinar todas as maneiras pelas quais os estimulantes podem pre-
judicar as crianças.
A Ritalina e outros medicamentos para o TDAH causam uma longa
lista de eleitos adversos físicos, emocionais e psiquiátricos. Os problemas
físicos incluem tonteira, perda do apetite, letargia, insônia, dores de ca-
beça, dor abdominal, anormalidades motoras, tiques faciais e vocais, bri-
quismo [ranger de dentes], problemas cutâneos, doenças hepáticas, perda
de peso, inibição do crescimento, hipertensão e morte cardíaca súbita. As
dificuldades afetivas incluem depressão, apatia, embotamento geral, osci-
lações de humor, acessos de choro, irritabilidade, ansiedade e sentimento
de hostilidade cm relação ao mundo. Os problemas psiquiátricos incluem
sintomas obsessivo-compulsivos, mania, paranoia, surtos psicóticos e alu-
cinações. O metilfenidato também reduz o fluxo sanguíneo e o metabo-
lismo da glicose no cérebro, mudanças estas que costumam associar-se a
“estados neuropatológicos".
Os estudos sobre estimulantes conduzidos com animais também são
motivo de alarme. A exposição repetida às anfetaminas, relataram cm
1999 cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade Yale, faziam os
macacos exibirem “comportamentos aberrantes”, que persistiam muito de-
pois de cessar a exposição à droga. Vários estudos com ratos sugeriram
que a exposição prolongada ao metilfenidato podia levar à dessensibiliza-
ção permanente das vias dopaminérgicas e, como a dopamina é o “sistema
de recompensa” do cérebro, medicar a criança poderia produzir adultos
com uma “capacidade reduzida de sentir prazer”. Cientistas do Centro Mé-
dico do Sudoeste do Texas, em Dallas, constataram que ratos “pré-adoles-
centes”, expostos ao metilfenidato por 15 dias, transformaram-se em ratos
“adultos” ansiosos e deprimidos. Os ratos adultos movimentavam-se
menos, eram menos receptivos a novos ambientes r exibiam um “déficit no
comportamento sexual". Os cientistas concluíram que “a administração de
metilfenidato", enquanto o cérebro ainda está em desenvolvimento, “re-
sulta em adaptações comportamentais aberrantes durante a idade
adulta".
É essa a literatura a respeito de resultados referente à Ritalina e a ou-
tros medicamentos para o TDAH. Os fármacos alteram o comportamento
da criança hiperativa, a curto prazo, de um modo que os professores e al-
guns pais consideram útil, mas, afora isso, os medicamentos apequenam
de muitas maneiras a vida da criança, e podem transformá-la num adulto
com uma capacidade fisiológica reduzida de sentir prazer. E, como vere-
mos mais adiante neste capítulo, há outro risco desolador dos estimulan-
tes que ainda está por ser explorado.

Resultados Deprimentes

Ainda em 1988, ano em que o Prozac chegou ao mercado, apenas urna


em cada 250 crianças e adolescentes abaixo de 19 anos, nos Estados Uni-
dos, tomara algum antidepressivo. Isso se devia, em parte, à convicção
cultural de que os jovens eram naturalmente temperamentais e se recupe-
ravam depressa dos episódios depressivos, e em parte, ao fato de um es-
tudo após outro haver demonstrado que os tricíclicos não funcionavam
melhor do que um placebo nesse grupo etário. “Não há como escapar ao
fato de que os estudos de pesquisa certamente não corroboraram a eficá-
cia dos antidepressivos tricíclicos em adolescentes deprimidos medicados”,
reconheceu em 1992 um editorial do Journal of Child and Adoltscent
Psychopharmacology.
Todavia, quando o Prozac e outros inibidores seletivos de recaptação
da serotonina (ISRS) foram introduzidos no mercado e alardeados como
drogas milagrosas, a prescrição de antidepressivos para crianças e adoles-
centes entrou em alta. A percentagem de jovens assim medicados triplicou
entre 1988 e 1994 e, em 2092, urna em cada quarenta crianças e jovens
abaixo de 19 anos tomava algum antidepressivo nos Estados Unidos.*8
Seria de se presumir que esses fármacos proporcionassem às crianças e
adolescentes um benefício a curto prazo que os tricíclicos não fornecem,
mas, infelizmente, não há possibilidade de examinarmos a literatura cien-
tífica para averiguar se isso é verdade, porque, como hoje se reconhece cm
larga escala, a literatura está irremediavelmente corrompida. Os ensaios
foram deliberadamente tendenciosos; os resultados divulgados nas
publicações científicas não corresponderam aos dados reais; os eventos
adversos foram minimizados ou omitidos; e os estudos negativos ficaram
inéditos, ou foram distorcidos em estudos positivos. “A história da pes-
quisa do uso de inibidores seletivos de reabsorção de serotonina na de-
pressão infantil e uma história de confusão, manipulação e fracasso insti-
tucional”, a revista Lancet escreveu em 2004 em um editorial. O fato de
psiquiatras das principais faculdades de medicina I haverem participado
dessa fraude científica constituiu um “abuso da confiança que os pacien-
tes depositam em seus médicos”.
Entretanto, um retrato mais ou menos preciso dos méritos da eficácia
dessas drogas nas crianças emergiu por um processo indireto. No curso
de ações judiciais relacionadas com os ISRS, especialistas que depuseram
como peritos em favor dos queixosos - em especial David Healy, na Ingla-
terra, e Peter Breggin, nos Estados Unidos - deram uma olhada em alguns
dados de testes e observaram que os medicamentos aumentavam o risco
de suicídio. Eles falaram do que haviam constatado e, com o número cres-
cente de pais angustiados contando que seus filhos tinham se matado de-
pois do começar a tomar um ISRS, a FDA foi obrigada a conduzir um in-
quérito sobre esse risco em 2004. Por sua vez, isso levou a uma espantosa
confissão de Thomas Laughren, da FDA, sobre a eficácia dos medicamen-
tos nas crianças. Doze dos 15 ensaios conduzidos com antidepressivos pe-
diátricos haviam falhado. A FDA, de fato, havia rejeitado as solicitações de
seis fabricantes que buscavam aprovação para vender seus antidepressi-
vos a crianças e adolescentes. “São resultados que dão muito que pensar”,
confessou Laughren.
A FDA aprovou o Prozac para uso infanto-juvenil, visto que dois dos
três estudos positivos resenhados por Laughren tinham vindo de ensaios
desse medicamento. Entretanto, como assinalaram muitos críticos, do
ponto de vista científico não há razão para crer que o Prozac seja melhor
do que os outros ISRS. A percentagem de crianças que respondeu bem a
esse fármaco nos dois ensaios positivos assemelhou- se ao índice de res-
posta às drogas nos 12 ensaios que falharam; a farmacêutica Eli Lilly sim-
plesmente foi mais hábil no uso de modelos tendenciosos de ensaios, fei-
tos para dar a impressão de que seu remédio funcionava. Por exemplo,
num dos dois ensaios do Prozac, todas as crianças receberam inicialmente
um placebo, durante uma semana, e as que melhoraram durante esse pe-
ríodo foram excluídas do estudo. Isso ajudou a derrubar o índice de res-
posta ao placebo. Em seguida, as crianças aleatoriamente escolhidas para
usar o Prozac foram avaliadas durante uma semana, e só as “que se
adaptaram bem” ao medicamento foram inscritas no estudo. Isso ajudou a
elevar o índice de resposta ao fármaco. “Antes mesmo de se iniciar o es-
tudo”, explicou Jonathan Leo, editor-chefe da revista Ethical Human
Psychology and Psychiatry, “instaurou-se um mecanismo para maximizar
qualquer diferença entre os grupos com o medicamento e com o placebo -
o grupo do placebo foi pré-selecionado para ter sujeitos não receptivos, ao
passo que o grupo medicado foi pré-selecionado para ter sujeitos recepti-
vos”?' No entanto, mesmo com esse modelo extremamente tendencioso de
ensaio, as crianças tratadas com Prozac continuaram a não se sair me-
lhor, nas escalas de autoavaliação ou nas avaliações dos pais, que as do
grupo que recebeu o placebo. Além disso, o ensaio não conseguiu mostrar
a eficácia da fluoxetina em seu “objetivo finar, de modo que a eficácia pro-
veio inteiramente de uma escala secundária de “melhora", preenchida pe-
los psiquiatras pagos pela farmacêutica Eli Lilly para conduzir o leste.
Foi esse o histórico da eficácia produzida pelos ISRS em ensaios pediá-
tricos referentes à depressão. A maioria dos ensaios não mostrou benefício
algum, e a Eli Lilly teve de usar um projeto de teste grosseiramente ten-
dencioso para fazer o Prozac parecer eficaz. Em 2003, a Agência Regula-
dora de Medicamentos e Serviços de Saúde (MHRA) no Reino Unido, es-
sencialmente proibiu o uso dos ISRS, excetuada a fluoxetina, em pacien-
tes abaixo de 18 anos. Posteriormente, cientistas ingleses reexaminaram
todos os dados relevantes e comunicaram, na revista Lancet, que respal-
davam “as conclusões extraídas pela MHRA". A verdade, explicaram os
editores da Lancet num editorial que acompanhou esse texto, era que tais
medicamentos “eram ineficazes e nocivos em crianças". Cientistas austra-
lianos contribuíram com uma resenha similar no British Medical Journal,
e seu artigo foi avivado por descrições das falcatruas praticadas pelos psi-
quiatras norte-americanos para fazer com que os ISRS parecessem benéfi-
cos, para começo de conversa. Os autores dos estudos positivos, disseram
eles, haviam “exagerado os benefícios, minimizado os prejuízos, ou as
duas coisas". Os australianos também revisaram os ensaios da farmacêu-
tica Lilly com a fluoxetina em crianças e determinaram que “a comprova-
ção da eficácia não é convincente". Assim sendo, concluíram que “reco-
mendar [qualquer antidepressivo] como opção de tratamento, muito me-
nos como primeira opção de tratamento, seria inadequado”.
Na falta de qualquer benefício em eficácia, resta-nos agora a ingrata ta-
refa de calcular os prejuízos causados pela prescrição de antidepressivos
para crianças e adolescentes. Podemos começar pelos problemas físicos.
Os ISRS podem causar insônia, disfunção sexual, cefaleias, problemas
gastrintestinais, tonteira, tremores, nervosismo, cãibras musculares, fra-
queza muscular, convulsões e unta aguda agitação interna conhecida
como acatisia, que está associada ao aumento do risco de violência e suicí-
dio. Os problemas psiquiátricos que esses medicamentos podem desenca-
dear são ainda mais complicados. Timothy Wilens e Joseph Biederman, do
Hospital Geral de Massachusetts, conduziram uma revisão de prontuários
de 82 crianças tratadas com ISRS e determinaram que 22% delas tinham
sofrido um evento psiquiátrico adverso; 10% haviam se tornado psicóticas
e 6%, maníacas. “Um dos resultados nocivos mais perturbadores e o agra-
vamento de sintomas afetivos, cognitivos e comportamentais”, escreveram.
“Esses eventos psiquiátricos adversos da medicação podem ser significati-
vamente incapacitantes.” O psiquiatra Thomas Gualtieri, da Carolina do
Norte, determinou que 28% das 128 crianças e adolescentes que ele tratou
com ISRS desenvolveram algum tipo de “toxicidade comportamcntol”.5*'
Outros médicos relataram que seus pacientes mais jovens, tratados com
ISRS, sofreram ataques de pânico, ansiedade, nervosismo e alucinações.
Esses resultados dão conta de crianças e adolescentes que foram leva-
dos a adoecer pelos ISRS, e isto, falando no curto prazo. Para aquilatar os
riscos a longo prazo, podemos examinar os problemas surgidos em adul-
tos e em estudos com animais. Quando as crianças e jovens suspendem a
medicação, podem esperar sofrer com sintomas de abstinência, tanto físi-
cos quando psíquicos. Caso mantenham o uso dos fármacos durante
anos, correm um alto risco de ficarem cronicamente deprimidos. Também
podem desenvolver - como adverte a Sociedade Norte-Americana de Psi-
quiatria num de seus manuais - uma “síndrome de apatia” que “se carac-
teriza por perda da motivação, aumento da passividade e, não raro, senti-
mentos de letargia e ‘insipidez’”. Temos também de nos preocupar com a
perda da memória e o declínio cognitivo e, como vimos antes, os estudos
com animais sugerem que os medicamentos podem fazer os neurônios se-
rotoninérgicos ficarem inchados e deformados.

Surge Mais Uma Doença

Primeiro houve o aumento explosivo do TDAH, em seguida veio a notí-


cia de que a depressão infantil corria solta e, não muito depois, no fim da
década de 1990, o transtorno bipolar juvenil irrompeu na cena pública.
Jornais e revistas publicaram matérias sobre esse fenômeno e, mais uma
vez, a psiquiatria explicou seu aparecimento com uma história de desco-
berta científica. “Na comunidade psiquiátrica, pensou-se durante muito
tempo que não era possível fazer um diagnóstico de transtorno bipolar cm
crianças ou jovens antes de meados ou final da adolescência, e que a ma-
nia nas crianças era extremamente rara", escreveu o psiquiatra Demitri
Papolos em seu livro The Bipolar Child [A criança bipolar], que se tornou
um campeão de vendas. “Mas cientistas na vanguarda das pesquisas co-
meçam a provar que esse transtorno pode começar numa fase muito pre-
coce da vida e t muito mais comum do que se supunha anteriormente."'1’
No entanto, tão assombroso foi o aumento do número de crianças e ado-
lescentes com esse diagnóstico - um aumento de quarenta vezes, de 1995
a 2003 - que a revista Time, num artigo intitulado “Jovem e bipolar", inda-
gou se haveria alguma outra coisa acontecendo.59 “A nova consciência do
transtorno talvez não seja suficiente para explicar a explosão dos casos ju-
venis de bipolaridade”, explicou a matéria. “Alguns cientistas temem que
possa haver no meio ambiente ou nos estilos de vida modernos algo que
esteja empurrando para a doença bipolar crianças e adolescentes que, de
outro modo, escapariam dela.”
Essa especulação fazia todo sentido. Como era possível que uma do-
ença mental grave houvesse passado despercebida por tanto tempo, só
agora vindo os médicos a notar que milhares de crianças estavam ficando
desenfreadamente maníacas? Mas, se houvesse algo novo no meio ambi-
ente que incitasse a esse comportamento, como sugeriu a Time a seus lei-
tores, haveria uma explicação lógica para a epidemia. Os agentes infeccio-
sos provocam epidemias, e portanto, ao traçarmos a ascensão do trans-
torno bipolar juvenil, isto é o que nos convirá descobrir: é possível identifi-
carmos “agentes externos” que estejam causando essa praga da era mo-
derna?
Como aprendemos antes, a psicose maníaco-depressiva era uma do-
ença rara antes da era da psicofarmacologia, afetando talvez uma em cada
dez mil pessoas. Embora a instauração inicial às vezes ocorresse em jo-
vens de 15 a 19 anos, em geral ela só aparecia quando as pessoas se
achavam na casa dos 20 anos. Mais importante, porém, ela praticamente
nunca aparecia em crianças abaixo de 13 anos, e tanto os pediatras
quanto os pesquisadores médicos enfatizavam sistematicamente esse
ponto.
Em 1945, Charles Bradley disse que a mania pediátrica era tão rara
que “é melhor evitar o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva em cri-
anças". Um médico de Ohio, Louis Lurie, revisou a literatura em 1950 e
constatou que ‘os observadores concluíram que a mania não ocorre em
crianças”. Dois anos depois, Barton Hall reviu as anamneses de 2.200
pacientes psiquiátricos de 5 a 16 anos e encontrou apenas dois casos de
psicose maníaco-depressiva. Em ambos, os pacientes tinham mais de 13
anos. “Esses fatos endossam a convicção geral de que os estados maníaco-
depressivos são doenças da personalidade madura, ou em processo de
amadurecimento”, disse Hall. Em 1960, James Anthony, um psiquiatra da
Universidade Washington, vasculhou a literatura médica em busca de re-
latos de casos de psicose maníaco-depressiva cm crianças, e só conseguiu
encontrar três. “A ocorrência da depressão maníaca nos primeiros anos da
infância como fenômeno clínico ainda está por ser demonstrada”, escre-
veu.
Mas então, aos poucos, porém de forma segura, esses relatos de caso
começaram a aparecer. No fim dos anos 1960 e início dos 1970, os psiqui-
atras começaram a receitar Ritalina para crianças hiperativas e, de re-
pente, em 1976, Warren Weinberg, um neurologista pediátrico da Univer-
sidade Washington, escreveu no American Journal of Diseases of Chil-
dhood que já era hora de a psiquiatria se aperceber de que as crianças po-
diam ficar maníacas: “A aceitação da ideia de que a mania ocorre em cri-
anças é importante para que as crianças afetadas possam ser identifica-
das, para que a história natural seja definida e para que um tratamento
apropriado seja estabelecido e oferecido a elas”.
Foi nesse momento da literatura médica que o transtorno bipolar pedi-
átrico foi essencialmente “descoberto”. Em seu artigo, Weinberg reexami-
nou os históricos clínicos de cinco crianças que sofriam dessa doença an-
tes não reconhecida, mas se apressou em passar ao largo do fato de que
pelo menos três das cinco crianças haviam sido tratadas com um tricíclico
ou com Ritalina antes de se tornarem maníacas. Decorridos dois anos, al-
guns médicos do Hospital Geral de Massachusetts anunciaram haver
identificado nove crianças com psicose maníaco-depressiva, e também eles
passaram por cima do fato de que sete das nove tinham sido previamente
tratadas com anfetaminas, metilfenidato ou “outras medicações que afe-
tam o comportamento”. Mais adiante, em 1982, Michael Strober e Gabri-
elle Carlson, do Instituto de Neuropsiquiatria da UCLA, deram uma nora
guinada na história do transtorno bipolar juvenil. Doze dos sessenta ado-
lescentes que eles haviam tratado com antidepressivos tinham se tornado
“bipolares” no intervalo de três anos, o que, seria de se supor, sugeria que
os fármacos haviam causado a mania. Em vez disso, Strober e Carlson
ponderaram que seu estudo havia mostrado que os antidepressivos po-
diam ser usados como um instrumento de diagnóstico. Não era que os an-
tidepressivos estivessem fazendo algumas crianças se tornarem maníacas,
mas sim que as drogas estavam desmascarando o transtorno bipolar, já
que somente as crianças portadoras da doença sofreriam essa reação a
um antidepressivo. “Nossos dados dão a entender que as diferença» bioló-
gicas entre subtipos depressivos latentes já estão presentes e são detectá-
veis na fase iniciai da adolescência, e que o desafio farmacológico pode
servir de adjuvante confiável na delimitação de síndromes afetivas específi-
cas nos jovens”, disseram eles,
O “desmascaramento” do transtorno bipolar em crianças não tardou a
acelerar. A prescrição de Ritalina e antidepressivos decolou no fim dos
anos 1980 e início dos 1990, e, à medida que isso ocorreu, eclodiu a epi-
demia da bipolaridade. 0 número de crianças hostis, agressivas e descon-
troladas admitidas em enfermarias psiquiátricas deu um salto, e cm 1995
Peter Lewinsohn, do Instituto de Pesquisas do Oregon, concluiu que,
agora, 1% de todos os adolescentes norte-americanos eram bipolares.6"
Três anos depois, Gabrielle Carlson relatou que 63% dos pacientes pediá-
tricos tratados em seu hospital universitário sofriam de mania, o mesmo
sintoma que os médicos anteriores à era psicofarmacológica não viam
quase nunca em crianças. “Os sintomas maníacos são a regra, não a exce-
ção”, observou ela. Na verdade, hoje os dados epidemiológicos de Lewin-
sohn estão quase obsoletos. O número de crianças que receberam alta de
hospitais com diagnóstico de bipolaridade quintuplicou entre 1996 e
2004, a tal ponto que se passou a dizer que essa “doença mental feroz”
ataca uma em cada cinquenta crianças pré-púberes nos Estados Unidos.
“Ainda não temos os números exatos", disse à revista Time, em 2002, o
psiquiatra Robert Hirschfeld, da Universidade do Texas, “mas sabemos
que a doença existe e é subdiagnosticada.”
Uma epidemia atingiu a maioridade, e a história revela que ela cresceu
pari passu com a prescrição de estimulantes e antidepressivos para crian-
ças.

Criando a Criança Bipolar

Tendo em vista essa cronologia, deveríamos estar aptos a encontrar


dados explicativos de por que estimulantes e antidepressivos surtiriam
esse efeito iatrogênico. Deveria haver dados mostrando que, se tratarmos
cinco milhões de crianças e adolescentes com esses fármacos, aproxima-
damente 20% deles deteriorarão de maneiras que levarão a um diagnós-
tico de transtorno bipolar. Deveria haver provas do dano iatrogênico que
vai compondo matematicamente uma epidemia.
Comecemos pela Ritalina.
Antes mesmo que a prescrição de Ritalina se tornasse aceita, era bem
sabido que as anfetaminas eram capazes de provocar surtos psicóticos e
maníacos. Aliás, as anfetaminas o faziam com tanta regularidade que os
pesquisadores psiquiátricos apontavam esse efeito como prova corrobo-
rante da hipótese dopaminérgica da esquizofrenia. As anfetaminas eleva-
vam os níveis de dopamina no cérebro, sugerindo que a psicose era cau-
sada por um excesso desse neurotransmissor. Em 1974, David Janowsky,
médico da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia cm San
Diego, testou essa hipótese, dando três agentes elevadores da dopamina -
D-anfetamina, L-anfetamina e metilfenidato - a seus pacientes esquizofrê-
nicos. Embora todas as três substâncias os deixassem mais psicóticos, o
metilfenidato revelou-se o campeão nesse aspecto, duplicando a gravidade
dos sintomas.
Considerando-se essa compreensão do metilfenidato, a psiquiatria po-
dia esperar que dar Ritalina a crianças pequenas causaria cm muitas de-
las um surto maníaco ou psicótico. Embora esse risco não esteja bem
quantificado, psiquiatras canadenses relataram, cm 1999, que 9 em 96
crianças com TDAH tratadas por eles com estimulantes, durante uma mé-
dia de 21 meses, desenvolveram “sintomas psicóticos”. Em 2006, a FDA
emitiu um relatório sobre esse risco. De 2000 a 2005, a agência havia re-
cebido quase mil relatos de psicose e mania induzidas por estimulantes
em crianças e adolescentes e, como se acredita que esses relatórios da
MedWalch representem apenas 1% do número real de eventos adversos,
isso sugere que cem mil jovens diagnosticados com TDAH sofreram episó-
dios psicóticos e/ou maníacos durante aquele período de cinco anos. A
FDA estabeleceu que esses episódios ocorriam regularmente em “pacientes
sem nenhum fator de risco identificável” de psicose, o que significava que
eram claramente induzidos por medicamentos, e que uma “parcela subs-
tancial” dos casos ocorria em crianças de 10 anos ou menos. “Nas crian-
ças pequenas, a predominância de alucinações visuais e táteis envolvendo
insetos, cobras e vermes e impressionante”, escreveu a FDA.
Uma vez ocorrida essa psicose induzida por drogas, as crianças costu-
mam ser diagnosticadas como portadoras de transtorno bipolar. Além
disso, essa progressão diagnóstica do TDAII medicado para o transtorno
bipolar e bem reconhecida |x>r especialistas da área. Num estudo sobre
195 crianças e adolescentes bipolares, Demitri Papolos constatou que 65%
“tinham reações hipomaníacas, maníacas e agressivas aos medicamentos
estimulantes”.71 Em 2001, Melissa DclBello, do ('entro Médico da
Universidade de Cincinnati, relatou que 21 de 34 pacientes adolescentes
internados por mania vinham usando estimulantes “antes da instalação
do surto afetivo”. Esses remédios, confessou ela, podiam “precipitar a de-
pressão e/ou a mania cm crianças que, de outro modo, não desenvolve-
riam o transtorno bipolar”.
Mas há um problema ainda maior com os estimulantes. Eles fazem as
crianças passarem ciclicamente por estados de excitação e disforia todos
os dias. Quando uma criança toma o remédio, os níveis de dopamina se
elevam na sinapse e isso produz um estado de excitação. A criança pode
exibir uma energia maior, uma concentração mais intensa e ficar hipera-
lerta. Pode tornar-se ansiosa, irritadiça, agressiva, hostil e incapaz de dor-
mir. Os sintomas mais extremos da excitação incluem comportamentos
obsessivo-compulsivos e hipomaníacos. Mas, quando a droga deixa o cére-
bro, os níveis dopaminérgicos na sinapse sofrem uma queda acentuada, o
que pode levar a sintomas tão disfóricos quanto fadiga, letargia, apatia, re-
traimento social e depressão. Os pais falam com regularidade desse “des-
moronamento” diário. Mas - é aí está a chave - esses sintomas excitados e
disfóricos são justamente os que o N1MH identifica como característicos
da criança bipolar. Os sintomas de mania nas crianças, diz o NIMH, in-
cluem aumento da energia, intensificação da atividade orientada para o
alvo, insônia, irritabilidade, agitação e explosões destrutivas. Os sintomas
de depressão nas crianças incluem perda de energia, isolamento social,
perda do interesse pelas atividades (apatia) e tristeza.
A progressão do TDAH para o transtorno bipolar
Em suma, ioda criança que toma estimulantes torna-se um pouco bi-
polar, e o risco de que uma criança com diagnóstico de TDAH passe para
um diagnóstico de transtorno bipolar depois de ser tratada com um esti-
mulante já foi até quantificado. Joseph Biederman e seus colegas do Hos-
pital Geral de Massachussetts relataram, em 1996, que 15 de 140 crian-
ças (11%) diagnosticadas com TDAH desenvolveram sintomas bipolares -
que não estavam presentes no diagnóstico inicial - no prazo de quatro
anos.76 Isso nos dá nossa primeira equação matemática para solucionar a
epidemia bipolar juvenil: quando uma sociedade receita estimulantes a 3,5
milhões de crianças e adolescentes, como acontece nos Estados Unidos de
hoje, cia deve esperar que essa prática crie quatrocentos mil jovens com
transtorno bipolar. Como assinalou a revista Time, a maioria das crianças
com transtorno bipolar e inicialmente diagnosticada com um distúrbio
psiquiátrico diferente, sendo “o TDAH o mais provável diagnóstico iniciar.
Agora, consideremos os inibidores seletivos de reabsorção de sero-
tonina (ISRS).
Está bem estabelecido que os antidepressivos podem induzir surtos
maníacos cm adultos e, naturalmente, também têm esse efeito nas crian-
ças. Já cm 1992, quando a prescrição de ISRS para crianças mal estava
começando, pesquisadores da Universidade de Pittsburgh relataram que
23% dos meninos de 8 a 19 anos tratados com Prozac desenvolveram ina-
nia ou sintomas de tipo maníaco, e outros 19% desenvolveram uma hosti-
lidade “induzida pelos fármacos”. No primeiro estudo da Eli Lilly sobre o
Prozac na depressão pediátrica, 6% das crianças tratadas com o medica-
mento sofreram um episódio maníaco, o que não se deu com nenhuma do
grupo tratado com um placebo. Enquanto isso, relatou-se que o Luvox
causava um índice de 4% de mania em crianças e jovens abaixo de 18
anos.7" Em 2004, pesquisadores da Universidade Yale avaliaram esse
risco da mania induzida por antidepressivos em jovens e velhos, e consta-
taram que ele é mais alto em pessoas abaixo de 13 anos.”
As taxas de incidência citadas acima vêm de ensaios de curto prazo; o
risco aumenta quando as crianças e adolescentes mantêm o uso de anti-
depressivos por períodos extensos. Em 1995. psiquiatras de Harvard de-
terminaram que 25% das crianças e adolescentes diagnosticados com de-
pressão convertem-se em doentes bipolares no prazo de dois a quatro
anos. “E bem possível que o tratamento com antidepressivos induza a
uma passagem para a mania, a ciclos rápidos ou a uma instabilidade afe-
tiva nos jovens, como é quase certo que faça com os adultos", explicaram.”
Barbara Geller, da Universidade Washington, estendeu o período de acom-
panhamento para dez anos e, em seu estudo, quase metade das crianças
pré-púberes tratadas por depressão acabaram se tornando bipolares. Es-
sas constatações nos dão nossa segunda equação matemática para soluci-
onar a epidemia da bipolaridade: quando dois milhões de crianças e ado-
lescentes são tratados de depressão com ISRS, essa prática cria de qui-
nhentos mil a um milhão de jovens bipolares.
Agora dispomos de números que nos falam de urna epidemia iatrogê-
nica: quatrocentas mil crianças bipolares chegando pela via de acesso do
TDAH, e pelo menos outro meio milhão pela via de acesso dos antidepres-
sivos. Há também um modo de conferir esta conclusão: será que, quando
os investigadores estudam m pacientes bipolares juvenis, eles constatam
que a maioria percorreu uma dessas duas vias iatrogênicas?
Eis os resultados. Num estudo de 2003 com 79 pacientes bipolares ju-
venis, o psiquiatra Rif El-Mallakh, da Universidade de Louisville, determi-
nou que 49 (62%) tinham sido tratados com um estimulante ou um anti-
depressivo antes de se tornarem maníacos.83 No mesmo ano, Papolos
informou que 83% das 195 crianças bipolares estudadas por ele tinham
sido inicialmente diagnosticadas com outro distúrbio psiquiátrico, e que
dois terços delas tinham sido expostas a um antidepressivo.'“ Por último,
Gianni Faedda constatou que 84% das crianças tratadas de transtorno bi-
polar na Clínica Luci Bini de Transtornos do Humor, na cidade de Nova
York, entre 1998 e 2000, tinham sido previamente expostas a drogas psi-
quiátricas. “O notável e que cm menos de 70% [dos casos] se considerou
inicialmente o diagnóstico de transtorno bipolar”, escreveu Faedda.
Como não é ele admirar, os pais dão testemunho desse curso iatrogê-
nico. Em maio de 1999, Martha Hellander, diretora executiva da Child and
Adolescent Bipolar Foundation, e Tomie Burke, fundadora da Parents of
Bipolar Children, escreveram juntas ao Journal of the Academy of Child
and Adolescent Psychiatry uma carta cm que disseram:
Quase lodos os nossos filhos receberam, inicialmente, o diagnóstico de
TDAH, foram tratados com estimulantes c/ou antidepressivos e, ou não
responderam, ou sofreram sintomas de mania, como acessos de raiva, in-
sônia, agitação, fala compulsiva e similares. Em linguagem leiga, os pais
chamam isso de “quicar pelas paredes”. Em nossos filhos, muitas vezes a
primeira internação ocorreu durante estados maníacos ou mistos (que in-
cluíam gestos suicidas e tentativas de suicídio), desencadeados ou exacer-
bados pelo tratamento com estimulantes, tricíclicos ou inibidores de reab-
sorção de serotonina.
Com a prescrição de ISRS para tantos adolescentes, uma epidemia de
mania eclodiu também nos campi universitários. Num artigo de 2002 inti-
tulado “Crise no campus", a revista Psychology Today informou que um
número crescente de estudantes, havendo chegado à faculdade com uma
receita de antidepressivo na mão, vinha sofrendo colapsos graves durante
o período letivo. “Estamos vendo mais surtos iniciais de mania a cada
ano”, disse Morton Silvernian, chefe do serviço de orientação psicológica
da Universidade de Chicago. “E algo muito destrutivo. Em geral, significa
hospitalização para o aluno.” A revista conseguiu até identificar uma data
exata em que essa epidemia de mania começou a emergir: 1988. Para ligar
os pontinhos, os leitores só precisam se lembrar de quando o Prozac en-
trou no mercado.
Uma última evidência vem da Holanda. Em 2001. psiquiatras holande-
ses registraram apenas 39 casos de doença bipolar pediátrica em seu país.
A pesquisadora holandesa Catrien Reichart estudou então os filhos de
pais com transtorno bipolar nos Estados Unidos e na Holanda, e verificou
que os norte-americanos eram dez vezes mais propensos do que os jovens
holandeses a exibir sintomas bipolares antes dos 20 anos. A razão
provável dessa diferença, concluiu Reichart, é que “a prescrição de antide-
pressivos e estimulantes para crianças nos Estados Unidos é muito
maior”.
Tudo isso dá conta de uma epidemia que c, sobretudo, de natureza ia-
trogênica. Cinquenta anos atrás, os médicos praticamente nunca viam
psicose maníaco-depressiva em pré-adolescentes e raras vezes a diagnosti-
cavam cm adolescentes. Depois, pediatras e psiquiatras começaram a re-
ceitar Ritalina para crianças hiperativas e. de repente, as publicações mé-
dicas começaram a divulgar relatos de casos de crianças maníacas. O pro-
blema cresceu com o aumento das receitas de Ritalina, depois explodiu
com a introdução dos ISRS. As pesquisas mostraram então que esses dois
tipos de droga desencadeiam regularmente sintomas bipolares em crian-
ças e adolescentes. São eles os dois "agentes externos" que alimentam a
epidemia, e convém lembrar que de fato perturbam o funcionamento cere-
bral normal. As crianças maníacas que aparecem nas emergências dos
hospitais têm vias dopaminérgicas e serotoninérgicas que foram alteradas
pelos fármacos, e que agora funcionam de maneira “anormal”. Há uma ló-
gica passo a passo que explica essa epidemia.
Além disso, há pelo menos mais três caminhos para o d ¡agnóstico de
transtorno bipolar juvenil. Como constataram El-Mallakh, Papolos e Fae-
dda, há crianças e adolescentes assim diagnosticados que não foram pre-
viamente expostos a antidepressivos ou estimulantes, e é bem fácil ver de
onde vem a maioria desses pacientes. Primeiro, o psiquiatra Joseph Bie-
derman, da Universidade Harvard, liderou a expansão das fronteiras do
diagnóstico na década de 1990, ao propor que a “irritabilidade” extrema
podia ser vista como indicio de transtorno bipolar. A criança já não preci-
sava ficar maníaca para receber o diagnóstico de bipolar. Segundo, em
muitos estados, as crianças abrigadas em lares adotivos temporários rece-
bem agora, com regularidade, o diagnóstico de doentes bipolares - aparen-
temente, sua raiva não seria resultante de haverem nascido em famílias
disfuncionais, mas se deveria a uma doença biológica. Por último, os ado-
lescentes que se complicam com a lei são hoje regularmente categorizados
com rótulos psiquiátricos. Muitos estados criaram os chamados “tribunais
de saúde mental”, que os despacham para hospitais e abrigos psiquiátri-
cos, e não para instituições correcionais, e esses jovens também vão en-
grossando o número dos doentes bipolares.
A Evolução de uma Epidemia
O Destino que Nos Espera

Como vimos antes neste livro, os desfechos dos pacientes bipolares


adultos sofreram uma deterioração dramática nos últimos quarenta anos,
e os piores resultados são vistos nos que apresentam sintomas de “estados
mistos” e “ciclos rápidos”. Esse curso clínico nos adultos praticamente
nunca era visto antes da era psicofarmacológica; ao contrário, foi associ-
ado à exposição a antidepressivos e, tragicamente, são justamente esses
os sintomas que afligem a esmagadora maioria dos pacientes bipolares ju-
venis. Eles exibem sintomas “semelhantes ao quadro clínico relatado em
adultos gravemente enfermos, resistentes ao tratamento”, explicou Bar-
bara Geller em 1997.
Portanto, esta não é apenas uma história de crianças que se tornaram
bipolares; é a história de crianças afetadas por uma forma particular-
mente grave da doença. Papolos verificou que 87% de seus 195 pacientes
bipolares juvenis sofriam de “alterações cíclicas ultra, ultrarrápidas”, o
que significava que oscilavam constantemente entre estados de humor
maníacos e deprimidos. Similarmente, Faedda constatou que 66% dos pa-
cientes bipolares juvenis tratados na Clínica Luci Bini de Transtornos do
Humor tinham “ciclos ultra, ultrarrápidos”, e outros 19% sofriam com al-
terações cíclicas rápidas apenas um pouco menos extremadas. “Em con-
traste com um curso bifásico, episódico e relativamente lento de ciclos, em
alguns adultos com transtorno bipolar, as formas pediátricas costumam
envolver estados mistos de humor e um curso subcrônico, instável e cons-
tante”, escreveu Faedda.
Os estudos sobre resultados descobriram que o prognóstico dessas cri-
anças a longo prazo é sombrio. O NIMH, como parte do seu estudo STEP-
BD, mapeou os resultados de 542 pacientes bipolares infanto-juvenis e re-
latou que a instauração anterior à idade adulta “estava associada a índi-
ces mais altos de transtornos comórbidos de ansiedade e abuso de subs-
tâncias tóxicas, a mais recidivas, a períodos mais curtos de eutimia [es-
tado de humor normal] e a uma probabilidade maior de tentativas de sui-
cídio e violência”. Boris Birmaher, na Universidade de Pittsburgh, consta-
tou que os pacientes com transtorno bipolar “de instauração precoce” fi-
cam sintomáticos aproximadamente 60% do tempo e que, em média, mu-
dam de “polaridade” - da depressão para a mania, ou vice-versa - no es-
pantoso número de 16 vezes por ano. Os pacientes pré-púberes eram
“duas vezes menos propensos a se recuperar do que os bipolares de ins-
tauração pós-púbere”, disse Birmaher, sendo “esperável que as crianças
respondam mal ao tratamento, ao chegarem à idade adulta”. DelBello
acompanhou um grupo de adolescentes hospitalizados por um primeiro
episódio bipolar e concluiu que apenas 41% tiveram recuperação funcio-
nal no prazo de um ano. Esse comprometimento, constatou Birmaher, se
agrava depois do primeiro ano. “O comprometimento funcional nos paci-
entes bipolares parece aumentar durante a adolescência, independente-
mente da idade de instauração da doença.”
Os jovens diagnosticados com transtorno bipolar são tipicamente tra-
tados com coquetéis medicamentosos que incluem um antipsicótico atí-
pico e um estabilizador do humor. Isso significa que eles passam ater múl-
tiplas vias de neurotransmissores cerebrais que vão sendo bagunçadas e,
naturalmente, esse tratamento não os reconduz à saúde emocional e fí-
sica. Em 2002, Geller relatou que o lítio, os antidepressivos, os estabiliza-
dores de humor, nenhum deles ajudou os jovens bipolares a se saírem
melhor ao cabo de dois anos. Os que foram tratados com neurolépticos,
acrescentou ela, “tiveram uma probabilidade significativamente menor de
se recuperarem do que aqueles que não receberam neurolépticos”.96 Seis
anos depois, a Hayes Inc., uma empresa de consultoria da Pensilvânia que
conduz avaliações “imparciais” de medicamentos para prestadores de ser-
viços de saúde, concluiu que não havia boas provas científicas de que os
estabilizadores de humor e os antipsicóticos atípicos receitados para o
transtorno bipolar pediátrico fossem seguros ou eficazes. “Nossos resulta-
dos indicam que, neste momento, os anticonvulsivantes e os antipsicóticos
atípicos não podem ser recomendados para crianças diagnosticadas com
transtornos bipolares”, disse Elisabeth Houtsmuller, analista sênior da
Hayes. Esses laudos atestam a falta de eficácia dos fármacos, mas, como
assinalou Houtsmuller, os efeitos colaterais desses “tratamentos farmaco-
lógicos” são “alarmantes”. Em particular, os antipsicóticos atípicos podei»
causar disfunção metabólica, anormalidades hormonais, diabetes, obesi-
dade, embotamento afetivo e discinesia tardia1. Com o tempo, os remédios
induzem ao declínio cognitivo, e a criança que continua a tomar os coque-
téis até a idade adulta também pode esperar uma morte prematura.
E esse o curso a longo prazo dessa doença iatrogênica: a criança, que

1 Num laudo de 2008 publicado pelo Colégio Europeu de Neuropsicofarmacologia, investigadores es-
panhóis observaram que “as crianças e adolescentes parecem correr um risco maior que os adul-
tos de sofrer efeitos adversos, como sintomas extrapiramidais [perturbações dos movimentos], ele-
vação da prolactina [altos níveis hormonais], sedação, aumento de peso e efeitos metabólicos, ao
tomarem antipsicóticos”. Os pesquisadores também relataram que esses riscos podem ser maiores
nas meninas que nos meninos.
talvez esteja hiperativa ou deprimida, é tratada com uma medicação que
desencadeia um surto maníaco, ou algum grau de instabilidade afetiva, e
depois é medicada com um coquetel de fármacos que leva a uma vida de
invalidez.

Os Números da Invalidez

Ainda não existem bons estudos sobre a percentagem dos pacientes bi-
polar« “de instauração precoce” que, ao atingir a idade adulta, acabam nas
listas de inválidos da Renda Complementar da Previdência (SSI) e do Se-
guro da Previdência Social por Invalidez (SSDI). No entanto, o salto espan-
toso no número de crianças “doentes mentais graves” que recebem auxílio
ou pensão diz muito sobre a devastação que vem sendo criada. Havia
16.200 jovens abaixo de 18 anos considerados incapacitados por proble-
mas psiquiátricos no rol da SSI em 1987, e eles abrangiam menos de 6%
do número total de crianças inválidas. Vinte anos depois, havia 561.569
crianças e jovens inválidos por doença mental nas listas da SSI, e eles cor-
respondiam a 50% do total. Essa epidemia vem atingindo até crianças pré-
escolares. A prescrição de psicotrópicos a crianças de 2 ou 3 anos come-
çou a se tornar mais comum há cerca de dez anos e, dito e feito, o número
de doentes mentais graves abaixo de 6 anos que recebem auxílio da SSI
triplicou desde então, subindo de 22.453 em 2000 para 65.928 em 2OO7.
A epidemia atinge as crianças e adolescentes dos Estados Unidos. Pen-
sionistas da SSI abaixo de 18 anos incapacitados por doença mental,
1987-2007.

Antesele 1992, os relatórios governamentais sobre a SSI não separavam os benefici-


ários infanto-juvenil em subgrupos etários. fonte: relatórios da Administração da
Seguridade Social, 1987-2007
Além disso, os números da SSI mal começam a sugerir o alcance do
estrago que vem sendo causado. Há cm toda parte indícios de piora da sa-
úde mental de crianças e adolescentes. De 1995 a 1999, a procura dos
prontos-socorros psiquiátricos por jovens aumentou 59%. A deterioração
da saúde mental das crianças do país, declarou cm 2001 o diretor nacio-
nal de Saúde dos Estados Unidos. David Satcher, constituía “uma crise
sanitária”. Em seguida, as faculdades começaram ase perguntar, de re-
pente, por que tantos alunos seus estavam sofrendo surtos maníacos ou
apresentando comportamentos perturbados; um levantamento de 2007
descobriu que um cm cada seis estudantes universitários havia se “cor-
tado ou queimado” de propósito no ano anterior. Tudo isso levou o Gene-
ral Accountabilite Office (GAO) a investigar o que estava acontecendo, e ele
relatou em 2008 que um em cada 15 adultos jovens, com 18 a 25 anos de
idade, sofre hoje de uma “doença mental grave”. Há 680.000 indivíduos
desse grupo etário com transtorno bipolar e outros oitocentos mil com de-
pressão grave, e o GAO assinalou que, na verdade, essa era uma conta-
gem abaixo da realidade do problema, pois não incluía os adultos jovens
sem teto, encarcerados ou institucionalizados. Todos esses jovens têm al-
gum grau de “comprometimento funcional”, afirmou o GAO.
E nesse ponto que nos encontramos hoje, como nação. Vinte anos
atrás, nossa sociedade começou a receitar regularmente drogas psiquiátri-
cas a crianças e adolescentes, e agora, um em cada 15 norte-americanos
entra na idade adulta com uma “doença mental grave”. Trata-se de uma
prova do tipo mais trágico de que o nosso paradigma de tratamento medi-
camentoso tem feito muito mais mal do que bem. Medicar crianças e jo-
vens só se tornou corriqueiro há pouco tempo, e já fez milhões de indiví-
duos enveredarem pelo caminho da doença vitalícia.
12.
QUANDO OS JOVENS SOFREM

“O tempo todo a gente se pergunta: você está ajudando ou prejudicando seu


filho?” - A mãe de Jasmine, 2009
Há um número incontável de histórias que se podem narrar sobre cri-
anças e adolescentes medicados e, enquanto eu trabalhava neste livro,
cada visita a um local em que era possível encontrar um deles - uma casa
de família, um abrigo adotivo provisório ou um hospital psiquiátrico - ofe-
recia pelo menos um breve vislumbre desta nova sociedade que criamos
nos últimos trinta anos. Existem, é claro, muitos pais que contam que
seus filhos foram ajudados por medicamentos psiquiátricos e, dado o es-
pectro dos resultados que ocorrem com esse paradigma de atendimento,
não há dúvida de que isso é verdade (pelo menos a curto prazo). Mas este
livro diz respeito à epidemia de doenças mentais incapacitantes que eclo-
diu em nosso país, razão por que as histórias que se seguem falam,
quando muito, de resultados ambivalentes a longo prazo, e de como o di-
agnóstico e o tratamento durante a infância podem levar a uma vida de in-
validez.

Perdida em Seattle

Estive com a jovem que chamarei de Jasmine apenas por um curto pe-
ríodo, e mesmo esse breve encontro a deixou visivelmente agitada.1 Nas-
cida em 1988, Jasmine reside hoje numa instituição residencial meio dila-
pidada, destinada a doentes mentais graves, num subúrbio de Seattle, e,
já ao nos aproximarmos da casa, a mãe dela e eu pudemos vê-la por uma
janela, andando de um lado para outro. Quando entramos, Jasmine me
olhou de relance e se retraiu depressa, encolhendo-se junto à parede,
igualzinho a um animal selvagem assustado. Usava calças jeans e uma ja-
queta azul-claro, e também manteve distância da mãe – agora Jasmine
não deixa ninguém abraçá-la. Fomos cm dois carros a uma lanchonete
Dairy Qucen das imediações, pois Jasmine não se disporia a ir se cu fi-
casse no mesmo carro que ela; ao chegarmos lá, a moça permaneceu no
banco de trás, com os olhos fixos num ponto adiante e balançando para
frente e para trás. “Se algum dia ela voltar a falar”, disse sua mãe, em voz

1
Como “Jasmine” não pôde dar consentimento para a utilização de seu nome, sua mãe e eu concordamos
em manter sua identidade em sigilo. Também não fomeci o nome da mãe, pela mesma razão.
baixa, “terá uma história e tanto para contar.”
As fotografias de Jasmine quando menina são um bom lugar para ini-
ciarmos sua história. Sua mãe me mostrara essas fotos mais cedo, e todas
falavam de uma infância feliz. Numa delas, Jasmine está alegremente enfi-
leirada com as duas irmãs diante de um brinquedo da Disneylândia; nou-
tra, exibe um sorriso banguela; numa terceira, mostra a língua, com ar
brincalhão. “Ela era muito inteligente e engraçada, era mesmo a luz da
nossa vida”, recordou a mãe. “Ficava brincando do lado de fora, andando
de bicicleta pela rua, para baixo e para cima, como qualquer criança tí-
pica. Chegava até a ir às casas dos vizinhos e lhes dizer que, por cin-
quenta centavos, cantaria ‘Row, row, row your boat’. Era um tremendo di-
abrete - dá para ver por estas fotos como era valente.”
Tudo correu bem na vida de Jasmine até o verão posterior ao quinto
ano. Como ainda urinava ocasionalmente na cama, ela ficou nervosa com
a ideia de ir para uma colônia de férias, e por isso um médico lhe receitou
uma “pílula do xixi na cama”, que vinha a ser um antidepressivo tricíclico.
Em pouquíssimo tempo, Jasmine ficou agitada e hostil e, certa tarde,
disse à mãe: “Estou com uma porção de ideias horríveis. Tenho a sensa-
ção de que vou matar alguém”.
Olhando para trás, é fácil perceber o que estava acontecendo com Jas-
mine. Sua agitação extrema era sinal de que ela estava sofrendo de acati-
sia, um efeito colateral dos antidepressivos que se associa muito estreita-
mente ao suicídio e à violência. “Mas ninguém nunca perguntou se o re-
médio podia ter desencadeado as ideias homicidas”, disse a mãe. “Eu só
vim a saber que a imipramina podia fazer isso anos depois, quando entrei
na internet.” Em vez disso, Jasmine foi encaminhada a um psiquiatra, que
a diagnosticou como portadora de transtorno obsessivo- compulsivo e
transtorno bipolar. Receitou-lhe um coquetel de medicamentos, composto
por Zoloft, Luvox e Zyprexa, e, ao ingressar no segundo ciclo naquele ou-
tono, ela era uma pessoa mudada.
“Foi terrível”, lembrou sua mãe. “Ela engordou mais de 45 quilos com o
Zyprexa, e é miúda, tem 1,60 m de altura. A garotada que a conhecia do
curso primário dizia: ‘O que aconteceu com você?’ Os meninos começaram
a chamá-la de ‘a fera’. Ela acabou sem nenhum amigo, e chorava sem pa-
rar, e pedia para almoçar na sala do diretor, para ficar longe da cantina.”
Enquanto isso, os acessos de raiva de Jasmine continuaram a acontecer
em casa, e o psiquiatra aumentou tanto a dose do Zyprexa que os olhos da
menina reviravam e ficavam presos no alto. “Foi como se ela estivesse
sendo torturada. Ela se deitava na cama e gritava: ‘Por que isso está acon-
tecendo comigo?’”
Depois que o Zoloft foi finalmente retirado, Jasmine acabou por se es-
tabilizar bastante bem com uma combinação de Zyprexa e Depakote. Ape-
sar do seu raro convívio social com os colegas de classe, ela se saiu bem
em termos acadêmicos e, nos primeiros anos do curso médio, era habitual
tirar notas 10 e ter certo prestígio por suas fotos e seu trabalho artístico.
Jasmine também mergulhou no trabalho voluntário, ajudando numa soci-
edade humanitária, num centro para idosos e num banco de alimentos, e
a escola conferiu-lhe o prêmio do “herói anônimo" por esse trabalho. Ela
havia passado a aceitar a ideia de ser bipolar, e chegou até a fazer planos
para escrever um livro que ajudasse outros adolescentes a compreende-
rem a doença. “Ela me dizia: ‘Mãe, quando eu me formar no curso médio,
vou ficar de pé e perguntar: Alguém aí já se perguntou o que aconteceu
comigo?' Ela era muito valente.”
No final do penúltimo ano, Jasmine leu na internet que o Zyprexa po-
dia causar aumento de peso, hipoglicemia e diabetes. Sofria dos dois pri-
meiros problemas, mas, quando perguntou ao psiquiatra quais eram os
efeitos colaterais do Zyprexa. ele descartou suas preocupações. Enfure-
cida, Jasmine o “despediu” e, em junho de 2003, largou os dois medica-
mentos, suspendendo-os de forma bastante abrupta. Dez dias depois de
tomar a última dose de Zyprexa, ela estava numa excursão com a mãe
quando, subitamente, ficou pálida como cera, com o suor brotando acima
do lábio. “Isto está ruim, mesmo”, murmurou. “Mãe, lute por mim.”
Desde então, Jasmine ficou mais ou menos perdida para o mundo.
Quando as duas chegaram ao hospital, naquele dia, Jasmine gritava e pu-
xava os cabelos. Havia mergulhado fundo num surto psicótico por absti-
nência, e os médicos começaram a lhe dar uma droga potente após outra,
na tentativa de fazer aquilo se abrandar. “Eles lhe receitaram 11 remédios
em 13 dias, o que, basicamente, fritou o cérebro dela”, contou a mãe. Jas-
mine começou a entrar e sair de hospitais e, toda vez que recebia alta e
voltava para casa, tudo acabava mal. Às vezes, ela ficava tão psicótica que
ligava para a polícia, para dizer que estava sendo sequestrada ou que ha-
via homens construindo bombas no seu jardim. Em diversas ocasiões, “fu-
giu” de casa e saiu correndo pelas ruas, aos gritos. Noutra ocasião, deu
socos e pontapés na mãe e, mais tarde, rasgou uma lata de refrigerante e
cortou o pulso. “Essa é a pessoa mais psicótica que já vimos na história
deste pronto-socorro”, disse equipe do hospital à mãe de Jasmine, depois
de um desses surtos.
No fim de 2006, um médico passou Jasmine para um único antipsicó-
tico o Clozaril, e isso levou a um breve alívio. Embora raras vezes falasse, a
adolescente acalmou-se e entrou numa escola para crianças deficientes. A
noite, a mãe passava horas lendo para ela, procurando alimentar a cente-
lha de sanidade que agora via na filha. “Também notei que, quando eu
cantava para ela, como se fosse para uma paciente com Alzheimer, ela
cantava de volta, comunicando-se por meio da música. Mas, no início de
2007, Jasmine sofreu outro surto psicótico grave, que terminou com ela
aos gritos no meio de uma rua movimentada. “Não há esperança para ela”,
disseram os médicos, e a jovem logo foi colocada na instituição residencial
onde hoje passa os dias, evitando o contato com outras pessoas e, salvo
por uma ou outra palavra, de vez em quando, muda.
“Os médicos me disseram que ela sempre seria esquizofrênica”, disse-
me a mãe. “Mas nenhum médico jamais perguntou por esta história, por
como era ela antes de lhe darem remédios. E sabe o que é muito difícil de
aceitar? Nós fomos procurar ajuda, naquele verão em que ela estava com
11 anos, por um problema insignificante, que não tinha nada a ver com a
psiquiatria. Na minha cabeça, ainda a escuto rindo, do jeito que ela era
naquela época. Mas a vida dela foi roubada. Nós a perdemos, apesar de
seu corpo continuar aqui. A cada minuto que passa, eu vejo o que perdi.”

Ambivalente em Syracuse

A última série do curso médio foi uma boa época para Andrew Stevens.
Diagnosticado com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade
(TDAH) na primeira série e medicado desde então, ele havia passado por
altos e baixos na escola, até chegar ao último ano. Mas aí, fizera um curso
de mecânica de automóveis e, pimba, tinha se sobressaído como nunca
até então. “Fiquei numa boa”, explicou ele. “Gosto disso. Nem parece es-
cola.”
Na tarde em que nos encontramos, Andrew, que é de estrutura fran-
zina e talvez tenha 1,67 m de altura, levava bem o jeito do esqueitista que
é: cabelo à escovinha, brinco preto, camiseta, short e tênis salpicados por
um caleidoscópio de cores. Eu havia conhecido Ellen, sua mãe, um ano
antes, numa conferência em Albany, no estado de Nova York, e ela havia
expressado um sentimento que, a meu ver, resumia muito bem a faceta
moral da medicação de jovens na nossa sociedade; “0 Andrew tem sido
uma cobaia para o campo da medicina”.
Desde muito cedo, ela e o marido haviam reconhecido que Andrew era
diferente de seus outros dois filhos. Tinha dificuldades de fala, seu com-
portamento parecia excêntrico e ele apresentava “problemas de raiva”. No
primeiro ano da escola, ficava tão tenso que comumente precisava ir para
o corredor e pular numa pequena cama elástica, para recuperar o foco.
“Eu me lembro de ter chorado quando o diagnosticaram com TDAH, e não
foi por estarem rotulando meu filho”, contou a mãe. “Foi tipo ‘Graças a
Deus, sabemos que há uma coisa real acontecendo com ele, e eles sabem
como ajudá-lo. Não é imaginação nossa’.”
Embora Ellen e o marido se inquietassem por dar Ritalina ao filho, os
médicos e as autoridades escolares a levaram a crer que ela seria “relapsa
como mãe” se não lhe desse a medicação. E, no princípio, “pareceu um
milagre”, contou ela. Os medos de Andrew se atenuaram, ele aprendeu a
amarrar os sapatos e os professores elogiaram a melhora do seu compor-
tamento. Após alguns meses, porém, o remédio já não parecia funcionar
tão bem e, toda vez que sua ação passava, havia um “efeito rebote”. An-
drew “se portava como um selvagem fora de controle”. Um médico aumen-
tou a dosagem, só que aí o menino passou a parecer um “zumbi”, e seu
senso de humor só reemergia quando passavam os efeitos do remédio.
Mais adiante, Andrew precisou tomar clonidina para adormecer à noite. O
tratamento medicamentoso não parecia estar realmente ajudando e. por
isso, a Ritalina deu lugar a outros estimulantes, entre eles Adderall, Con-
certa e dextroanfetamina. “Eram sempre mais remédios”, disse sua mãe.
Enquanto isso, o sucesso do garoto na sala de aulas oscilava de acordo
com o talento de cada professor. Na quarta e quinta séries, Andrew teve
professores que sabiam trabalhar com ele e se saiu bastante bem. Mas o
professor da sexta série se impacientava com ele, e a autoestima do me-
nino afundou de tal maneira que a mãe resolveu lhe dar aulas em casa no
ano seguinte. Os temores de Andrew pioraram durante esse período, e era
comum ele ficar “hiperconcentrado”, sempre com medo de que a mãe mor-
resse. “Essa tem sido a parte mais frustrante. Nunca sei o que é o meu fi-
lho e o que é o remédio”, disse Ellen.
Hoje, tamanha é a ambivalência dela em relação aos remédios que ela
gostaria de poder voltar atrás no tempo e tentar um caminho diferente. “0
meu Andrew não é um círculo nem um quadrado, não é nem mesmo um
triângulo”, explicou. “Ele é um quadrilátero trapezoide e nunca vai se en-
caixar nesses outros moldes. E eu acho, sim, que, se nunca o tivéssemos
medicado, ele teria aprendido muito mais mecanismos de enfrentamento,
porque teria tido que aprender. E deveríamos poder ajudar crianças como
o Andrew, sem fazer com que elas se sintam tão diferentes, sem tirar o seu
apetite e sem ter medo dos efeitos dos remédios a longo prazo - todas es-
sas coisas com que eu fico aqui me preocupando.”
Quando era menor, Andrew podia fazer “intervalos da medicação” de
ve2 em quando, e, quando lhe perguntei como era isso, ele recordou como
era bom adormecer sem ter que tomar clonidina. Ficar sem os remédios,
disse, “parece menos forçado, mais livre”. Apesar disso, falou, ele está
prestes a se formar n0 curso médio e terminou numa boa colocação. Tem
namorada, gosta de andar de esqueite e tocar violão e, graças à aula de
mecânica de automóveis, agora tem planos de carreira, já que um dia pre-
tende abrir sua própria oficina. “É difícil lembrar um tempo em que pode-
ria ter sido diferente”, disse ele, dando de ombros ao pensar na sua vida
com os medicamentos. “Não acho que houvesse uma escolha certa ou er-
rada, simplesmente foi assim que aconteceu.”

Se Você Vive sob a Tutela do Estado, Deve Ser Bipolar

A medicação de crianças mantidas sob adoção temporária nos Estados


Unidos teve início no fim da década de 1990 e, por isso, para ter uma
perspectiva desse fenômeno, pensei em fazer uma visita a Theresa Gately.
Ela e o marido, Bill, receberam 96 menores sob adoção temporária em sua
casa de Boston, entre 1996 e 2000, e, portanto, ela assistiu pessoalmente
a essa mudança no modo como nossa sociedade trata as crianças e ado-
lescentes tutelados. Os primeiros menores que a Assistência Social lhes
mandou não eram medicados, mas, no final, “parecia que todos usavam
remédios psiquiátricos”, disse Theresa.
Durante várias horas, ficamos sentados na sua varanda da frente, que
dá para uma rua movimentada, numa área bem barra-pesada de Boston,
e quase todo mundo que passava dava um adeusinho e gritava um alô afe-
tuoso, fosse qual fosse sua etnia. Theresa Gately é uma mulher magra, de
cabelo louro cor de palha, e teve sua própria história de menor de lares
adotivos. Nascida em 1964, sofreu abusos sexuais do padrasto e, na ado-
lescência, tornou-se tão rebelde que acabou num hospital psiquiátrico de
Maryland. Ali a medicaram com Thorazine e outros neurolépticos e, em
suas palavras, só quando começou a “dar uma linguada” nos remédios -
fingir que os tomava, quando as enfermeiras estavam olhando, e depois
cuspi-los - foi que sua cabeça começou a desanuviar. Mesmo assim, ela
não tem nada de “antimedicamentos” e, durante uma fase difícil, alguns
anos atrás, constatou que um antidepressivo e um estabilizador do humor
foram extremamente úteis, e continua a usar esses remédios.
Como mãe de criação, Gately tinha que seguir a “orientação médica” e
dar os medicamentos psiquiátricos aos menores que chegavam com eles.
A maioria tomava coquetéis de drogas e, para Theresa, parecia que estes
eram usados principalmente para tornar as crianças mais calmas e mais
fáceis de manejar. “Uma menina, a Liz, tomava uma medicação tão pesada
que nem conseguia raciocinar”, recordou. “A gente perguntava se ela que-
ria uma costeleta de porco e ela não respondia.” Outra era “quase muda,
quando chegou. A última coisa que a gente precisa dar a uma pessoa que
já não fala é mais remédio”. Theresa desfiou as histórias de vários outros
menores que estiveram sob a sua tutela, e concluiu que “talvez uns nove a
onze [dos 96 menores] precisassem tomar aqueles remédios e estivessem
sendo ajudados”.
Ela acompanhou o desenvolvimento de vários dos 96 menores e, como
se poderia esperar, muitos enfrentaram lutas dificílimas quando adultos.
Teria ela, pensei, notado alguma diferença entre os que continuaram com
os coquetéis de medicamentos e os que pararam de tomá-los?
“Quando eu penso nas crianças que continuaram com os remédios e
nas que os largaram, as que tiveram sucesso foram as que pararam”,
disse ela. “A Liz nunca devia ter tomado remédios. Largou todos e está
ótima. Estuda em horário integral na faculdade de enfermagem, está
quase se formando e já está para casar. O negócio é que, quando a pessoa
larga os remédios, ela começa a construir uns mecanismos de enfrenta-
mento. Aprende a ter controle interno. Começa a construir umas forças.
Com a maioria dessas crianças, aconteceram coisas muito ruins. Mas elas
são capazes de superar o passado quando deixam a medicação, e aí po-
dem seguir em frente. A garotada que ficava dopada e continua dopada
pelos remédios nunca teve essa oportunidade de construir habilidades
para enfrentara vida. E esses, por nunca terem tido essa oportunidade na
adolescência, não sabem oque fazer deles mesmos quando chegam à idade
adulta.”
Theresa não fez um estudo científico, mas sua experiência realmente
oferece um pequeno vislumbre do tributo que a medicação dos menores
tutelados em lares adotivos tem cobrado. Quase todos os que continuaram
a tomar remédios, no dizer dela, acabaram “pedindo pensão por invalidez”.
Tal como Theresa Gately. Saín Clayborn, que é assistente social cm
New Rochelle, no estado de Nova York, sabe por experiencia própria o que
é ser um garoto de lar adotivo temporário nos Estados Unidos. Quando
nasceu, em 1965, no Harlem, sua mãe não pôde cuidar dele e, aos 6 anos,
ele foi morar numa pequena instituição residencial. Nós nos encontramos
em seu apartamento, em Croton-on-Hudson. e ele situou as coisas muito
depressa num contexto histórico. “Eles não eram tão ligados em diagnósti-
cos psiquiátricos naquela época”, explicou. “Eram mais chegados a lhe dar
uma surra, conter você e apenas jogá-lo numa porra de um quarto vazio.
Fico feliz por ter crescido quando era assim, e não como é agora, porque,
se fosse criado hoje, iam me encher dessas porcarias de remédios. Eu ia
ficar dopado, apagado.”
Nas últimas duas décadas, ele e sua parceira, Eva Dech, têm traba-
lhado em defesa de menores de lares adotivos e jovens pobres do condado
de Westchester. Eva também teve uma infância difícil, que incluiu um pe-
ríodo num manicômio onde ela foi medicada à força, e os dois veem uma
dimensão racial nessa medicação dos menores mantidos em lares adotivos
temporários. A partir do ano 2000, os índices dos jovens negros diagnosti-
cados com transtorno bipolar dispararam e, com base nas altas hospitala-
res, agora eles são tidos como portadores desse transtorno em grau maior
do que os brancos.1 Esse diagnóstico fornece a razão lógica para a medi-
cação dos adolescentes, o que, por sua vez, coloca mais um fardo em cima
deles, na opinião de Clayborn.
“Os experimentos de Tuskegee com a sífilis1 foram fichinha, compara-
dos a isso. Aquilo foi uma titica de nada, comparado com o que andam fa-
zendo com a garotada preta hoje em dia. As companhias farmacêuticas e o
governo estão ferrando todo mundo em conluio, e pintando o diabo com a
vida de uma porção de gente. Eles estão se lixando para esses garotos. É
só capitalismo, e eles estão dispostos a sacrificar a crioulada toda do
gueto. Estamos prejudicando esses garotos pela vida afora, e a maioria de-
les nunca vai se recuperar. Esses garotos vão ser destruídos e vão sobre-
carregar ainda mais as listas da SSI [Renda Complementar da Previdên-
cia].”
Um dos adolescentes da região para os quais Clayborn tem servido de
mentor é Jonathan Barrow, que ficou esparramado no chão da sala du-
rante a nossa conversa, meio dormindo, meio escutando. Nascido no Har-
lem cm 1985 de mãe viciada cm crack, Jonathan quicou de um lado para

1 Referência a um experimento médico realizado entre 1932 e 1972 na cidade de Tuskegee, no Ala-
bama, pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, usando centenas de cobaias humanas
para observar a evolução natural da sífilis não tratada, sem que os sujeitos estudados dessem seu
consentimento. A denúncia do estudo à imprensa demonstrou a completa falta de ética do traba-
lho e gerou processos de indenização e pedidos formais de desculpas pelo governo norte-ameri-
cano. (N.T.)
outro quando criança e acabou indo parar na casa do avô, em White Pla-
ins. Aos 7 anos, foi diagnosticado como portador de TDAH e medicado com
Ritalina. Ali pela sétima ou oitava série, começou a ficar rebelde e se me-
teu em algumas brigas, o que levou a um diagnóstico de transtorno bipo-
lar e à prescrição ele Depakote e Rispcrdal. Até aquele momento. Jona-
than tinha sido um adolescente ativo, que passava a maior parte das ho-
ras de folga na quadra de basquete, mas começou então a passar quase
todo o tempo "isolado no quarto”, nas palavras de Clayborn. Passou a re-
ceber pensão da SS1 por invalidez antes de completar 18 anos, ao que pa-
rece com um “grave comprometimento" causado pelo transtorno bipolar, e
continua na SSI até hoje. “Eu fico dopado*, explicou Jonathan, ainda com
as pálpebras meio pesadas depois do cochilo vespertino. “Não gosto dos
remédios. Eles me deixam com sono e é como se eu fosse viciado em dro-
gas.”
Diante disso, Clayborn levantou-se da cadeira, mais agitado que
nunca. “Isso está acontecendo com uma porção de irmãos hoje em dia, e.
depois que eles entram na medicação, esta os rouba de si mesmos. Os ca-
ras perdem toda a força de vontade para lutar, para mudar, para fazer de-
les alguma coisa e ter sucesso. Sucumbem às algemas químicas dos filhos
da puta dos remédios. E uma escravidão médica, é isso que é.”
Não muito depois dessa entrevista, compareci a uma reunião do Con-
selho Consultivo Estadual Juvenil, no Hospital Estadual de Westborough.
no Massachusetts. O conselho é formado por adultos jovens que ingressa-
ram no sistema de saúde mental antes de chegarem aos 18 anos e fornece
orientação à Secretaria de Saúde Mental de Massachusetts sobre o que ela
pode fazer para ajudar os adolescentes com problemas psiquiátricos a
prosperar como adultos. Em 2008, o coordenador do conselho era Mathew
McWade, que fora diagnosticado pela primeira vez quando estava na sé-
tima série e que foi quem possibilitou minha visita.
Na reunião, circulei em volta da mesa e fui perguntando a todos como
haviam entrado no sistema. Achei que ouviria histórias de garotos que pri-
meiro foram medicados com um estimulante ou um antidepressivo e, em
seguida, passados para um diagnóstico de transtorno bipolar, e, apesar de
haver alguns casos desse tipo, vários homens desse grupo racialmente
misto falaram de uma outra rota social para a invalidez psiquiátrica.
Quando tinha 16 anos, Cal Jones1 entrou numa discussão violenta,

1 Cal Jones é um pseudônimo. A equipe hospitalar pediu que eu não revelasse os nomes de
que acabou por levá-lo a ser atendido no pronto-socorro do Hospital Infan-
til de Boston. Lá, ele disse ao pessoal da emergência que “queria matar o
outro garoto”, sentimento que lhe rendeu uma ida a uma instituição psi-
quiátrica, onde recebeu o diagnóstico de doente bipolar. “Não fizeram ne-
nhum exame”, contou-me. “Só me fizeram uma porção de perguntas e me
mandaram começar a tomar uma porção de remédios." Desde então, Cal
esteve internado 25 vezes. Não gosta dos antipsicóticos, de modo que para
regularmente de tomá-los ao receber alta, preferindo fumar maconha, e
isso leva inevitavelmente a problemas. “Vou preso e me mandam de volta
para o hospital (psiquiátrico), e pra mim, tudo bem, é só um negócio.
Quanto mais pacientes eles têm, mais os médicos ganham. Mas eu detesto
este lugar. Não consigo suportá-lo. Eu me sinto um escravo num campo
de concentração nazista.’
Pelo menos outros três participantes da reunião contaram histórias
parecidas. Um rapaz disse que, pouco depois de se formar no curso médio,
em 2002, tinha se aborrecido com um assunto de família e quebrado as
janelas do seu carro. “Eu estava vivendo uma fase ruim. Queriam me ro-
tular de doente mental. Não sei se eu sou isso.” Outro explicou que, seis
meses antes, como havia cometido um pequeno delito, um juiz lhe deu a
opção de ir para o presídio ou para o Hospital Estadual de Westborough.
“E mais seguro aqui do que na prisão”, disse ele, explicando sua escolha.
Um terceiro membro do conselho disse ter sido diagnosticado com trans-
torno bipolar aos 13 anos, “depois que matei alguém”.
As histórias desses rapazes atestaram uma outra via de entrada dos
jovens pobres no sistema de saúde mental. A delinquência e o crime po-
dem levá-los a ser diagnosticados, medicados e encaminhados para uma
instituição manicomial. Embora muitos rapazes do conselho usassem co-
quetéis pesados de medicamentos, tendo os movimentos e a fala arrasta-
dos, o que falou em ter matado alguém estava vivendo em sociedade, sem
tomar nenhuma medicação. “Se o Estado quisesse mesmo nos ajudar, de-
via investir dinheiro num programa de empregos”, disse.

De volta a Syracuse

Numa última parada, tornei a visitar as duas famílias de Syracuse -


Jason e Kelley Smith e Sean e Gwen Oates - que havia conhecido na

pacientes internados.
primavera de 2008. Parentes, amigos, terapeutas e médicos tinham dado a
essas duas famílias conselhos conflitantes sobre elas deverem ou não me-
dicar seus filhos e, diante dessa orientação tão desconcertante, as duas
haviam chegado a decisões opostas.
Jessica
Por uma conversa telefônica anterior, eu sabia que Jessica Smith vi-
nha passando bem e, quando cheguei à sua casa, ela veio saltitando me
receber â porta, como havia feito um ano antes. Quando ela fora diagnosti-
cada com transtorno bipolar. aos 4 anos de idade, os pais tinham rejeitado
as recomendações da equipe do Centro de Ciências da Saúde da Universi-
dade Estadual de Nova York de que ela passasse a tomar um coquetel de
três medicamentos, que incluía um antipsicótico. Hoje, eles têm uma me-
nina de 8 anos que faz lembrar o encantador personagem da peça teatral
Really Rosie, de Maurice Sendak. Jessica, que é a típica menina extrover-
tida, estrelou recentemente um musical na escola. “Ela adora isso", disse o
pai, e apontou o comportamento da filha na noite de estreia como prova
do quanto ela melhorou, em termos do controle de suas emoções. “Ela fa-
zia o papel de um personagem que era um crânio, e uma outra menina da
peça pegou a cadeira dela, o que não era para ter feito. Vimos que a Jes-
sica ficou aborrecida. Mas deixou para lá. Isso mostrou que ela está me-
lhorando em matéria de distensionar as situações.’’
Embora Jessica já não se trate com um terapeuta, “ainda há umas ba-
talhas", disse sua mãe. “Ela ainda tem dificuldade com grupos, com brin-
car com mais de uma criança de cada vez. E ainda solta os cachorros
quando alguém a magoa. Ela quer mandar, e sabe ser chamativa e baru-
lhenta. Mas os chutes e mordidas acabaram.”
O pai acrescentou: “Ela tem uma personalidade forte, mas isso é pare-
cido com outras pessoas da minha família. Eu era igualzinho. Era muito
barulhento. Não conseguia parar quieto. Mas virei uma boa pessoa.”
Nathan
Nathan Oates tinha passado por 12 meses mais atrapalhados. Eu ha-
via telefonado para sua mãe várias vezes durante o ano, e, no verão de
2008, Nathan- que recebera o diagnóstico de TDAH aos 4 anos e, posteri-
ormente, o de portador de transtorno bipolar - estava indo bem. Tomava
Concerta para o TDAH e Risperdal para o transtorno bipolar e, nesse ve-
rão, havia descoberto que “adorava pistas de atletismo”, segundo me con-
tara sua mãe. “Agora estão ensinando o Nathan a saltar obstáculos e a
fazer salto em distância.” Ainda mais importante, suas oscilações de hu-
mor tinham se tornado menos agudas, a hostilidade para com a irmã ha-
via diminuído e ele também vinha dormindo melhor. “Ele disse que quer
começar a ser mais responsável”, contara sua mãe. “Levanta de manhã e
faz a cama, e agora está num ponto cm que toma banho sozinho. Está co-
meçando a fazer as coisas sem que cu o persiga. Parece estar meio que
amadurecendo sozinho.”
Era uma narrativa animadora, mas esse período relativamente tran-
quilo havia acabado quando da volta de Nathan à escola, no outono. Ele
ficara muito ansioso e mal-humorado e tinha começado a resistir a ir às
aulas. O assistente do médico que supervisionava seu caso aumentara a
dose do Risperdal, na esperança de que isso aplacasse a ansiedade do me-
nino. “Estão tentando descobrir se a ansiedade dele se relaciona com o
transtorno bipolar, ou se é um distúrbio separado", explicara sua mãe,
numa conversa telefônica no início de 2009. “O TDAH está bem e sob con-
trole. Se isso não funcionar, vão lhe dar uma medicação ansiolítica. Eles
querem se certificar de que ele não fique letárgico demais com a dose mais
alta do Risperdal.”
Quando voltei a Syracuse na primavera, os pais do Nathan estavam
beirando o desespero, diante das dificuldades que ele vinha experimen-
tando. Sua ansiedade não havia diminuído e, para piorar as coisas, ele ti-
nha perdido o controle urinário. Dias antes, a mãe havia testemunhado,
de forma desoladora, como isso vinha afetando seu filho. “Fui buscá-lo na
escola e ele estava sentado no meio da sala, sozinho na sua carteira. Era
quase como se fosse invisível para todo mundo. Os professores juram que
ele tem amigos, mas ele nunca fala de ninguém. Só há um colega de
turma que não implica com ele.” Esse isolamento seguiu Nathan em casa,
acrescentou a mãe. “Ele fica o tempo todo no quarto.”
O pai continuava esperançoso de que outro “ajuste da medicação” aju-
dasse seu filho. Mas, afora isso, ambos os pais confessaram estar sem sa-
ber o que fazer. O psicólogo que orientava Nathan andava ficando sem
ideias; a escola não contribuía muito para aliviar a intensa ansiedade do
menino; e os familiares e amigos do casal não reconheciam como tudo isso
era difícil. “Eu me sinto muito sozinha”, disse a mãe. “E uma droga. E
cansativo. E exaustivo. Eu choro por ele. Simplesmente não sei mais o que
fazer. Não sei como ajudá-lo.”
Antes que eu fosse embora, Nathan desceu do quarto e me mostrou, ti-
midamente, alguns de seus pertences favoritos, inclusive um capacete de
Guena nas Estrelas. Contou-me que Zachariah era seu melhor amigo (o
único colega de turma que não implicava com ele) e, em seguida, me ensi-
nou a dobrar um papel para fazer um avião, que soltou voando pela sala.
“Gosto de fazer filmes" com um gravador de vídeo, contou-me, e acabei lhe
fazendo algumas perguntas sobre uns dois assuntos que ele adora. “O Ti-
tanic afundou em l912, Nathan me informou e, em seguida, identificou or-
gulhosamente vários ossos do corpo humano - sente-se fascinado por de-
senhos de esqueletos. “Todos os professores o adoram", disse sua mãe, e,
naquele momento, foi muito fácil entender por que.
PARTE IV.
EXPLICAÇÃO DE UMA ILUSÃO
13.
A ASCENSÃO DE UMA IDEOLOGIA

“Não foi surpresa que os estudantes de mediana aceitassem acriticamente o


dogma do reducionismo biomédico na psiquiatria: eles não tinham tempo
para ler e analisar a literatura original. O que me levou algum tempo para
compreender, a medida que avancei por minha residência, foi por que os
psiquiatras também raramente fariam essa leitura crítica." - Colin Ross,
professor adjunto clínico de psiquiatria do Centro Médico do Sudoeste, em
Dallas, Texas. 1995'
Investigamos passo a passo a epidemia de doença mental que eclodiu
nos Estados Unidos nos últimos cinquenta anos e, depois de resenhar a
literatura sobre resultados referente a cada uma das principais doenças,
há uma questão óbvia a abordar em seguida. Por que nossa sociedade
acredita que houve uma “revolução psicofarmacológica” nos últimos cin-
quenta anos, quando a literatura científica mostra de maneira tão clara
que essa revolução não se materializou? Ou, dito de outra maneira, qual é
a fonte da nossa notável ilusão social?
Para responder a essa pergunta, precisamos traçar a ascensão da “psi-
quiatria biológica” ou “biopsiquiatria” e, em seguida, examinar as histórias
que a psiquiatria - depois de abraçar esse sistema de crenças - passou a
contar.

A Era da Inquietação da Psiquiatria

Nos tempos empolgantes da década de 1950, quando parecia que um


medicamento novo e revolucionário era descoberto a cada ano, a psiquia-
tria tinha razão para estar otimista quanto a seu futuro. Agora ela possuía
pílulas mágicas, como o resto da medicina, e, quando pesquisadores do
Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) e outros formularam a teoria
do desequilíbrio químico nas doenças mentais, pareceu que essas pílulas
realmente poderiam ser antídotos para doenças físicas. “A psiquiatria
norte-americana”, exclamou Gerald Klerman, um ex-diretor do NIMH,
“aceitou a psicofarmacologia como seu campo.”'-’ Entretanto, duas déca-
das depois, fazia muito que esses dias de empolgação haviam passado, e a
psiquiatria atolava-se numa crise profunda, atacada em tantas frentes que
temia por sua sobrevivência. Em certo sentido, disse em 1980 um diretor
da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA), Melvin Sabshin, pare-
cia que esse "campo profissional estava sob um cerco severo e isolado de
seus aliados”.'
O primeiro problema surgido para a psiquiatria foi um questionamento
intelectual da sua legitimidade, um ataque lançado cm 1961 por Thomas
Szasz psiquiatra da Universidade Estadual de Nova York em Syracuse. Em
seu livro O Mito da Doença Mental ele afirmou que os distúrbios psiquiá-
tricos não eram de natureza médica, e sim rótulos aplicados a pessoas que
lutavam com “problemas de vida”, ou simplesmente se portavam de for-
mas socialmente desviantes. Os psiquiatras, disse ele, tinham mais em co-
mum com os religiosos e os policiais do que com os médicos. A crítica de
Szasz sacudiu esse campo profissional, visto que até publicações da cor-
rente dominante, como as revistas Atlantic e Science, consideraram con-
vincente e importante a sua argumentação, e esta última concluiu que o
tratado de Szasz era “imensamente corajoso e sumamente esclarecedor
ousado e, não raro, brilhante”.1 Como depois disse Szasz ao New York Ti-
mes, “Em salas cheias de fumaça, ouvi reiteradas vezes a ideia de que
Szasz havia matado a psiquiatria. Espero que sim”.
Seu livro ajudou a lançar o movimento da “antipsiquiatria”, e outros
acadêmicos dos Estados Unidos e da Europa - Michel Foucault, R. D. La-
ing, David Cooper e Erving Goflman, para citar apenas alguns - entraram
na peleja. Todos questionavam o "modelo médico” dos distúrbios mentais
e sugeriam que a loucura podia ser uma reação “saudável” a uma socie-
dade opressora. Melhor se descreveriam os manicômios como instalações
de controle social do que como instituições voltadas para a cura - um
ponto de vista que se cristalizou e se popularizou no filme Um Estranho
no Ninho, que arrebatou cinco prêmios Oscar em 1975. A enfermeira
Ratched era a tira malvada do filme, que termina com Randle McMurphy
(representado por Jack Nicholson) sendo lobotomizado, por não se manter
na linha.
O segundo problema enfrentado pela psiquiatria foi a concorrência
crescente na disputa dos pacientes. Nos anos 1960 e 1970, floresceu nos
Estados Unidos uma indústria da terapia. Milhares de psicólogos e orien-
tadores começaram a oferecer seus serviços aos pacientes “neuróticos” de
que a psiquiatria se apossara desde que Freud havia trazido seu divã para
o país. Em 1975, o número de terapeutas não médicos superava o dos psi-
quiatras dos Estados Unidos e, com as benzodiazepinas caindo em des-
graça, os pacientes neuróticos que se haviam contentado em engolir “pílu-
las da felicidade” na década de 1960 começaram a abraçar a terapia do

1 O Milo da Doença Mental:fundamentos de uma teoria da conduta pessoal, trad. Irley Franco e Carlos Ro-
1 homas Szasz,
berto Oliveira. São Paulo: Círculo do Livro, c. 1982. (N.T.)
grito primal, os retiros em Esalen e um sem-número de outras terapias “al-
ternativas”, (¡das como úteis para curar a alma ferida. Em parte, como re-
sultado dessa concorrência, a renda anual média de um psiquiatra norte-
americano, no fim dos anos 1970, era de apenas 70.600 dólares, o que,
embora fosse um bom salário na época, ainda punha a psiquiatria perto
da base da classe médica. “Profissionais não psiquiátricos de saúde men-
tal estão se apossando de alguns, ou até de todos os domínios de tarefas
da psiquiatria”, escreveu o psiquiatra David Adler, da Universidade Tufts.
Havia razão, afirmou ele, para uma preocupação com a “morte da psiquia-
tria”.
As divisões internas também eram profundas. Embora a classe se hou-
vesse voltado para a psiquiatria biológica desde a chegada do Thorazine,
com a maioria dos psiquiatras ansiando por falar bem dos medicamentos,
os freudianos, que dominavam muitas faculdades de medicina nos anos
1950, nunca haviam entrado completamente nessa onda. Apesar de acha-
rem que os remédios tinham alguma utilidade, eles ainda concebiam a
maioria dos distúrbios como de natureza psicológica. Assim, durante a dé-
cada de 1970, houve uma profunda cisão filosófica entre os freudianos e
os que abraçavam o “modelo médico” dos transtornos psiquiátricos. Além
disso, havia uma terceira facção no campo, composta por “psiquiatras so-
ciais”. Esse grupo achava que a psicose e as angústias afetivas provinham,
com frequência, do conflito do indivíduo com seu meio. Se assim fosse, al-
terar esse meio, ou criar um novo ambiente fornecedor de apoio-como fi-
zera Loren Mosher com seu Projeto Soteria -, seria uma boa maneira de
ajudar a pessoa a se curar. Como os freudianos, os psiquiatras sociais não
viam os fármacos como a peça principal do tratamento, e sim como agen-
tes que ora eram úteis, ora não. Com essas três abordagens em conflito, o
campo estava sofrendo uma “crise de identidade”, no dizer de Sabshin.
No fim dos anos 1970, os dirigentes da APA falavam regularmente de
como seu campo estava numa luta pela “sobrevivência”. Na década de
1950, a psiquiatria havia se tornado a especialidade que crescia mais de-
pressa na medicina, porém, na de 1970, a percentagem de formandos da
faculdade de medicina que optavam por ela caiu de 11% para menos de
4%. Esse desinteresse pela área, afirmou o New York Times numa reporta-
gem intitulada “Os anos ansiosos da psiquiatria”, era “visto como uma
acusação particularmente dolorosa”.
Evitando o Óbvio

Era essa a autoavaliação da psiquiatria nos anos 1970. Ela se olhou


no espelho e viu seu campo profissional atacado por um movimento de
“antipsiquiatria”, economicamente ameaçado por terapeutas sem forma-
ção médica e cindido por discordâncias internas. Na verdade, porém, es-
tava fechando os olhos para o problema fundamental, que era o fato de
seus medicamentos virem falhando no mercado. Era isso que havia permi-
tido que a crise se firmasse e se alastrasse.
Se a primeira geração de psicotrópicos houvesse realmente funcionado,
o público estaria batendo às portas dos psiquiatras em busca de receitas
desses remédios, A tese de Szasz de que a doença mental era um “mito”
poderia ser vista por alguns como intelectualmente interessante, digna de
debate nos círculos académicos, mas não restringiria o apetite do público
por medicamentos que o fizessem sentir-se e funcionar melhor. Do mesmo
modo, a psiquiatria poderia descartar a concorrência de psicólogos e ori-
entadores como um incómodo inofensivo. Pessoas deprimidas e ansiosas
poderiam entregar-se a terapias do grito e a banhos de lama, e buscar a
terapia da fala com psicólogos, mas os vidrinhos receitados por médicos
permaneceriam em seus armários de remédios. E as divisões internas
também não persistiriam. Se os comprimidos tivessem provado proporcio-
nar alivio a longo prazo, toda a psiquiatria teria abraçado o modelo mé-
dico, porque as outras formas de tratamento oferecidas - a psicanálise e os
ambientes de apoio - seriam percebidas como exageradamente trabalhosas
e desnecessárias. A psiquiatria entrou em crise na década de 1970 porque
a aura de “pílula milagrosa” em torno de seus medicamentos havia desa-
parecido.
Desde o momento em que o Thorazine e os neurolépticos foram intro-
duzidos na medicina manicomial, muitos pacientes hospitalizados os ha-
viam considerado objetáveis, tanto assim que muitos “davam uma lin-
guada” nas pílulas. Essa era uma prática tão difundida que, no começo
dos anos 1960, a companhia farmacêutica Smith, Kline and French de-
senvolveu um Thorazine líquido, que era possível fazer os pacientes engoli-
rem. Outros fabricantes criaram formas injetáveis de seus neurolépticos,
para que os pacientes internados pudessem ser medicados à força. “Cui-
dado!”, gritava um anúncio de Thorazine líquido, “Os pacientes psiquiátri-
cos são conhecidos por fugir da medicação”.9 No início da década de 1970,
pacientes que haviam experimentado esse tratamento forçado começaram
a formar grupos com nomes como Frente de Libertação dos Loucos e Rede
Contra a Agressão Psiquiátrica1." Em seus comícios, muitos carregavam
cartazes com os dizeres abraços, não remédios!
Um Estranho no Ninho ajudou a legitimar esse protesto entre o pú-
blico, e o filme foi lançado pouco depois que a psiquiatria sofreu o cons-
trangimento de reportagens que noticiavam que a União Soviética vinha
usando neurolépticos para torturar dissidentes políticos. Aparentemente,
essas drogas infligiam tamanha dor física que pessoas perfeitamente sãs
preferiam desdizer suas críticas ao governo comunista a suportar doses
repetidas de Haldol. Os textos dos dissidentes falavam de drogas psiquiá-
tricas que transformavam pessoas em “vegetais”, e o New York Times con-
cluiu que tal prática podia ser vista como um “assassinato da alma”.10
Depois, em 1975, quando o senador Birch Bayh, do estado de Indiana,
abriu um inquérito parlamentar sobre o uso de neurolépticos em institui-
ções juvenis, ex-pacientes psiquiátricos invadiram a audiência pública
para depor, afirmando que os remédios causavam “dores lancinantes” e os
haviam transformado em “zumbis” emocionais. Os antipsicóticos, disse
um ex-paciente, “são usados não para curar ou ajudar, mas para torturar
e controlar. E simples assim”.
Esses fármacos já não eram apresentados ao público como agentes
que faziam um louco furioso “sentar-se e manter uma conversa sensata”,
como havia relatado a revista Time em 1954, e, justamente enquanto essa
nova visão dos antipsicóticos ia se registrando na mentalidade popular, as
benzodiazepinas caíram em desgraça. 0 governo federal classificou-as
como substâncias da categoria IV2 e Edward Kennedy não tardou a anun-
ciar que as benzodiazepinas haviam “produzido um pesadelo de depen-
dência e vício”. Os antipsicóticos e as benzodiazepinas eram as duas clas-
ses de medicamentos que haviam lançado a revolução psicofarmacológica
e, ao passarem ambas a ser vistas sob um prisma negativo, as vendas das
drogas psiquiátricas despencaram, nos anos 1970, dos 223 milhões de re-
ceitas vendidas em farmácias em 1973 para 153 milhões em 1980.13 Em
sua reportagem sobre os “anos aflitos” da psiquiatria, o New York Times
explicou que uma razão primordial de os formandos em medicina estarem

1
No original, Insane Liberation Front e NetWork Against Psychiatric Assault. (N.T.)
2 A Lei de Substâncias Controladas, aprovada pelo Congresso norte-americano em 1970, tem cinco
categorias ou classes de drogas lícitas e ilícitas, separadas conforme suas diversas características
químicas e seu potencial gerador de vício. Dois órgãos federais, o Departamento de Repressão às
Drogas (DEA) e a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA), determinam a inclu-
são e/ou exclusão das substâncias nessas categorias. Ocasionalmente, ela também pode ser feita
pelo Congresso. (N.T.)
evitando essa especialidade era o fato de seus tratamentos serem percebi-
dos como “de baixa eficácia”.
Esse era um assunto de que a psiquiatria não gostava de falar e que
não gostava de reconhecer. Ao mesmo tempo, no entanto, todos enten-
diam o que dava aos psiquiatras uma vantagem competitiva no mercado
terapêutico. Arthur Platt, um psiquiatra de Nova Jersey, estava num en-
contro profissional, no fim dos anos 1970, quando o orador que fez o dis-
curso de abertura explicitou tudo: “Ele disse: ‘O que vai nos salvar é que
somos médicos’”, recordou Platt. Eles podiam dar receitas, o que não era
permitido aos psicólogos e assistentes sociais, e esse era um cenário eco-
nômico que apresentava aos profissionais da área uma solução óbvia. Se a
imagem dos psicotrópicos pudesse ser reabilitada, a psiquiatria prospera-
ria.

Vestindo o Jaleco Branco

O processo que levou à reabilitação das drogas psiquiátricas entre o


público teve início na década de 1970. Ameaçada pela crítica de Szasz de
que os psiquiatras não funcionavam realmente como “médicos”, a APA
afirmou que estes últimos precisavam abraçar esse papel de maneira mais
explícita. “O esforço vigoroso de voltar a medicalizar a psiquiatria deve re-
ceber forte apoio”, disse Sabshin, da APA, em 1977. Numerosos artigos sa-
íram no American Journal of Psychiatry e em outras publicações, expli-
cando o que significava isso. “O modelo médico", escreveu o psiquiatra Ar-
nold Ludwig, da Universidade do Kentucky, baseava-se na “premissa de
que a identidade primária do psiquiatra é a de médico”. Os transtornos
mentais, disse Paul Blaney, da Universidade do Texas, deviam ser vistos
como “doenças orgânicas”. O foco do psiquiatra devia centrar-se em fazer
o diagnóstico apropriado, que provinha da catalogação dos “sinais e sinto-
mas de doença”, nas palavras de Samuel Guze, da Universidade Washing-
ton. Somente os psiquiatras, acrescentou ele, é que tinham a “formação
médica necessária para a aplicação ótima dos tratamentos mais eficazes
de que hoje se dispõe para os pacientes psiquiátricos: as drogas psicoati-
vas e a ECT [eletroconvulsoterapia]”.
O modelo de atendimento deles saía diretamente da medicina interna.
Nesse contexto, o médico media a temperatura do paciente, ou testava os
níveis de glicose no sangue, ou fazia algum outro exame para fins diagnós-
ticos e, uma vez identificada a doença, prescrevia o medicamento apropri-
ado. “Remedicalizar” a psiquiatria significava que o divã freudiano devia
ser posto na caçamba de lixo e, feito isto, a psiquiatria poderia ter a expec-
tativa de ver recuperada a sua imagem pública. “O modelo médico, no
pensamento popular, está muito fortemente ligado à verdade científica”,
explicou o psiquiatra David Adler, da Universidade Tufts.
Em 1974, a APA escolheu Robert Spitzer, da Universidade Columbia,
para chefiar a força-tarefa que, por meio de uma revisão do Manual de Di-
agnóstico e Estatística (DSM) da APA, instigaria os psiquiatras a tratarem
os pacientes dessa maneira. O DSM-II, que tinha sido publicado em 1967,
refletia conceitos freudianos de “neurose”, e Spitzer e outros argumenta-
vam que tais categorias diagnósticas eram notoriamente “indignas de con-
fiança”. Juntaram-se a ele na força-tarefa outros quatro psiquiatras de ori-
entação biológica, inclusive Samuel Guze, da Universidade Washington. O
DSM-III, prometeu Spitzer, serviria como “defesa do modelo médico, tal
como aplicado a problemas psiquiátricos”?' 0 manual, disse em 1977 o
presidente da APA, Jack Weinberg, “deixaria claro, para quem quer que
estivesse em dúvida, que encaramos a psiquiatria como urna especiali-
dade da medicina”.
Três anos depois, Spitzer e colaboradores publicaram o produto do seu
trabalho. O DSM-III identificou 265 distúrbios, todos declarados de natu-
reza distinta. Mais de cem psiquiatras haviam contribuído para o volume
de quinhentas páginas-autoria indicativa de que ele representava os co-
nhecimentos coletivos da psiquiatria norte-americana. Para fazer um diag-
nóstico pelo DSM-III, o psiquiatra devia determinar se um paciente tinha o
número exigido de sintomas tidos como característicos da doença. Por
exemplo, havia nove sintomas comuns a um “episódio depressivo grave” e,
estando presentes cinco deles, seria possível diagnosticar essa doença. O
novo manual, vangloriou-se Spitzer, tinha sido “testado no campo”, e es-
ses testes haviam provado que clínicos de diferentes locais, colocados di-
ante do mesmo paciente, tendiam a chegar ao mesmo diagnóstico, o que
era prova de que o diagnóstico já não seria tão subjetivo quanto antes.
“Esses resultados [da confiabilidade] foram muito melhores do que havía-
mos esperado”, disse ele."
Agora a psiquiatria dispunha de sua “bíblia” do modelo médico, e a
APA e outros profissionais da área se apressaram a enaltecê-lo. ODSM-III
era “um documento admirável (...) uma proeza brilhante”, disse Sabshin.
“O desenvolvimento do DSM-III”, declarou Gerald Klerman, “representa
um momento fatídico na história da psiquiatria norte-americana (...) [e]
seu uso representa uma reafirmação, por parte da psiquiatria norte-ameri-
cana, de sua identidade médica e seu compromisso com a medicina
científica.” Graças ao DSM-III, escreveu o psiquiatria Jerrold Maxmen, da
Universidade Columbia, “a ascendência da psiquiatria científica tornou-se
oficial (...) a antiga psiquiatria [psicanalítica] deriva da teoria, a nova psi-
quiatria, da realidade dos fatos”.
Mas, como observaram os críticos da época, era difícil entender por
que se deveria considerar esse manual urna grande realização científica.
Nenhuma descoberta científica tinha levado a essa reconfiguração dos di-
agnósticos psiquiátricos. A biologia dos distúrbios mentais continuava
desconhecida, e até os autores do DSM-III confessaram ser esse o caso. A
maioria dos diagnóstica disseram eles, “ainda não foi plenamente validada
por dados sobre correlata importantes, como o curso clínico, o resultado, a
história familiar e a resposta ao tratamento”. Também ficou evidente que
as linhas divisórias entre a doença e a não doença tinham sido arbitraria-
mente traçadas. Por que era necessária a presença de cinco entre os nove
sintomas tidos como característicos da depressão para se fazer o diagnós-
tico dessa doença? Por que não seis sintomas? Ou quatro? O DSM-III, es-
creveu Theodore Blau, presidente da Sociedade Norte-Americana de Psico-
logia, mais era “uma declaração de posicionamento político da Sociedade
Norte-Americana de Psiquiatria do que um sistema classificatório de base
científica”.
Mas nada disso importava. Com a publicação do DSM-III, a psiquiatria
tinha vestido publicamente um jaleco branco. Os freudianos tinham sido
vencidos, o conceito de neurose, basicamente jogado na lata de lixo, e era
esperado que todos os profissionais abraçassem o modelo médico. “E hora
de declarar, vigorosamente, que a crise de identidade acabou”, disse Sa-
bshin. Com efeito, o American Journal of Psychiatry exortou seus mem-
bros a “falarem em uníssono, não apenas para assegurar o apoio, mas
para respaldar a posição [da psiquiatria] contra os numerosos outros pro-
fissionais da saúde mental que buscam pacientes e prestígio”. O modelo
médico e o DSM-III, observou em 1981 o psiquiatra Ben Bursten, da Uni-
versidade do Tennessee, tinham sido usados para “reunir a tropa (...) frus-
trar os agressores [e] extirpar o inimigo interno”.
A rigor, os freudianos não foram os únicos a ser vencidos. Loren Mos-
her e seu bando de psiquiatras sociais também foram fragorosamente der-
rotados e sumariamente despachados.
Quando Mosher iniciou seu Projeto Soteria, em 1971, todos compreen-
deram que ele ameaçava a teoria dos transtornos psiquiátricos calcada no
“modelo médico”. Pacientes esquizofrênicos recém-diagnosticados vinham
sendo tratados numa residência comum, com pessoal não profissional e
sem medicação. Seus resultados deveriam ser comparados com os de pa-
cientes tratados com medicamentos num ambiente hospitalar. Se os paci-
entes do Soteria se saíssem melhor, o que diria isso sobre a psiquiatria e
suas terapias? Desde o minuto em que Mosher o propôs, os líderes da psi-
quiatria norte-americana procuraram certificar-se deque o projeto fracas-
sasse. Apesar de chefiar o Centro de Estudos da Esquizofrenia no NIMH,
ele ainda precisaria obter financiamento para o Soteria na comissão de
subvenções que supervisionava o programa externo de pesquisas do
NIMH, a qual se compunha de psiquiatras das principais faculdades de
medicina, e essa comissão reduziu sua solicitação inicial de uma verba de
700.000 dólares, durante cinco anos, para 150.000 dólares durante dois
anos. Isso garantiu que o projeto lutasse desde o começo com dificuldades
financeiras, e depois, em meados da década de 1970, quando Mosher co-
meçou a relatar bons resultados em seus pacientes do Soteria, a comissão
contra-atacou. O estudo tinha “falhas graves" de projeto, declarou ela. As
provas de que os pacientes do Soteria obtinham resultados superiores
“não eram convincentes”. Mosher devia ser tendencioso, concluíram os
psiquiatras acadêmicos, que exigiram que ele fosse afastado da posição de
pesquisador principal. “A mensagem foi clara”, afirmou Mosher, numa en-
trevista concedida 25 anos depois. “Se estávamos obtendo resultados tão
bons, eu não devia ser um cientista honesto”. Pouco depois, a comissão de
subvenções suspendeu inteiramente o financiamento do experimento e
Mosher foi demitido de seu cargo no NIMH, embora a comissão houvesse
concluído, a contragosto, em sua revisão final do projeto, que “esse projeto
demonstrou, provavelmente, que um programa psicossocial residencial fle-
xível, baseado na comunidade e sem medicamentos, executado por pes-
soal não profissional, pode sair-se tão bem quanto um programa comuni-
tário de saúde mental mais convencional”.
O NIMH nunca mais voltou a financiar um experimento desse tipo.
Além disso, a demissão de Mosher transmitiu a todos os profissionais da
área uma mensagem clara: quem não respaldasse o modelo biomédico não
teria muito futuro.

Os Loucos da Psiquiatria

Uma vez publicado o DSM-III, a APA tratou de vender seu “modelo mé-
dico” ao público. Embora as organizações médicas profissionais sempre
houvessem procurado promover os interesses econômicos de seus
membros, essa foi a primeira vez que uma organização profissional adotou
tão completamente as práticas de mercado conhecidas por qualquer asso-
ciação comercial. Em 1981, a APA criou uma “divisão de publicações e
marketing”, para “aprofundar a identificação medicados psiquiatras”, e,
em pouquíssimo tempo, transformou-se numa máquina comercial muito
eficiente.33 “E tarefa da APA proteger o poder de renda dos psiquiatras”,
disse o vice-presidente da Sociedade, Paul Fink, em 1986.
Como primeiro passo, a APA criou sua própria editora, em 1981, na
expectativa de que ela levasse “os melhores talentos e os conhecimentos
atuais da psiquiatria ao público leitor”. A editora logo passou a publicar
mais de trinta livros por ano e Sabshin teve o prazer de assinalar, em
1983, que os livros “proporcionarão muita educação popular positiva so-
bre a profissão”. A APA também criou comissões para examinar os manu-
ais que publicava, decidida a se certificar de que os autores permaneces-
sem ligados à mensagem. Aliás, em 1986, ao preparar a publicação de
Tratamento de Transtornos Psiquiátricos, Roger Peele, uma das autorida-
des eleitas da organização, voltou a se preocupar com essa questão.
“Como organizar 32.000 membros em defesa de seus direitos?”, indagou.
“Quem deve ser autorizado a se pronunciar sobre a questão do tratamento
das doenças psiquiátricas: somente os pesquisadores? Somente a elite
acadêmica? (...) Apenas os membros indicados por presidentes da APA?”
Desde muito cedo, a APA percebeu que seria valioso desenvolver um
rol nacional de “especialistas” capazes de promover a história do modelo
médico junto aos meios de comunicação. Criou um “instituto de relações
públicas” para supervisionar esse esforço, que envolvia o treinamento dos
membros “em técnicas para lidar com o rádio e a televisão”. Apenas em
1985, a APA conduziu quatro seminários sobre “Como sobreviver a uma
entrevista na televisão”.38 Entrementes, cada filial distrital do país identi-
ficou “representantes de assuntos públicos” aptos a serem chamados a se
pronunciar diante da imprensa. “Temos agora uma rede experiente de lí-
deres treinados, aptos a lidar de modo eficiente com todos os tipos de mí-
dia”, afirmou Sabshin.
Como qualquer organização comercial que vende um produto, a APA
cortejava a imprensa com regularidade e exultava ao receber coberturas
positivas. Em dezembro de 1980, realizou uma conferência de imprensa
de um dia inteiro sobre os “novos avanços da psiquiatria”, à qual “compa-
receram representantes de alguns dos jornais mais prestigiados e de maior
circulação do país”, vangloriou- se Sabshin.40 Em seguida, pôs “inserções
de utilidade pública” na televisão, para contar sua história, num esforço
que incluiu o patrocínio de um programa de duas horas na televisão a
cabo, intitulado Sua Saúde Mental. Criou também “fichas informativas”
para distribuição aos meios de comunicação, as quais diziam da prevalên-
cia dos transtornos mentais e da eficácia dos medicamentos psiquiátricos.
Harvey Rubin, presidente da comissão de assuntos públicos da APA, gra-
vou um programa popular de rádio que levava a mensagem do modelo mé-
dico a ouvintes de todo o país. A APA lançou uma ofensiva midiática em
todos os níveis e com todos os recursos - entregava prêmios aos jornalistas
cujas matérias lhe agradavam - e, ano após ano, Sabshin detalhava a boa
publicidade que esse esforço estava gerando. Em 1983, ele observou que,
“com a ajuda e o incentivo da Divisão de Assuntos Públicos, a U.S. News
and World Report publicou uma grande matéria de capa sobre a depres-
são, a qual incluiu citações substanciais de psiquiatras ilustres”. Dois
anos depois, Sabshin anunciou que “porta-vozes da APA foram colocados
no programa de Phil Donahue, no Nightline e em outros programas cm
rede nacional”. Nesse mesmo ano, ela “ajudou a elaborar um capítulo de
um livro da Reader’s Digest sobre saúde mental”.
Tudo isso gerou grandes lucros. As manchetes de jornais e revistas
passaram a falar com regularidade de uma “revolução” que estaria ocor-
rendo na psiquiatria. Os leitores do New York Times aprenderam que “a
depressão humana está ligada aos genes” e que os cientistas vinham des-
vendando a “biologia do medo e da ansiedade”. Pesquisadores, disse o jor-
nal, haviam descoberto “uma chave química da depressão”.44 A crença da
sociedade na psiquiatria biológica ia se firmando claramente, como espe-
rava a APA, e, em 1984, Jon Franklin, do Baltimore Evening Sun, escre-
veu uma série de reportagens em sete partes, intitulada “Os reparadores
da mente”, sobre os avanços espantosos que vinham sendo obtidos nesse
campo. Franklin situou essa revolução num contexto histórico:
Desde os tempos de Sigmund Freud, a prática da psiquiatria era mais arte
do que ciência. Cercada por uma aura de feitiçaria, trabalhando com base
em impressões e palpites, amiúde ineficaz, ela era a enteada desajeitada
e às vezes divertida da ciência moderna. Todavia, há uma década ou
mais, psiquiatras dedicados à pesquisa têm trabalhado em silêncio nos la-
boratórios, dissecando os cérebros de ratos e homens e desvendando as
fórmulas químicas que revelam os segredos da mente. Agora, na década
de 1980, o trabalho deles começa a compensar. Eles têm identificado com
rapidez as moléculas entrelaçadas que produzem o pensamento e a emo-
ção humanos. (...) Como resultado, a psiquiatria encontra-se hoje no limiar
de sua transformação numa ciência exata, tão precisa e quantificável
quanto a genética molecular. Vem pela frente uma era de engenharia psí-
quica, com o desenvolvimento de drogas e terapias especializadas para
curar as mentes adoecidas.
Franklin, que entrevistou mais de cinquenta psiquiatras ilustres para
sua série, chamou essa nova ciência de “psiquiatria molecular”, “capaz de
curar as doenças mentais que afligem talvez 20% da população”. Foi agra-
ciado com o Prêmio Pulitzer de Reportagem Explicativa por esse trabalho.
Os livros escritos por psiquiatras para a imprensa leiga, nessa época,
contaram uma história semelhante. Em The Good News About Depression
[A boa notícia sobre a depressão], o psiquiatra Mark Gold, da Universidade
Yale, informou aos leitores que “nós que trabalhamos neste novo campo
chamamos nossa ciência de biopsiquiatria, a nova medicina da mente. (...)
Ela devolve a psiquiatria ao modelo médico, incorporando todos os avan-
ços mais recentes da pesquisa científica t, pela primeira vez na história,
fornecendo um método sistemático de diagnóstico tratamento, cura e até
prevenção do sofrimento mental”. Nos últimos ano», acrescentou Gold, a
psiquiatria havia conduzido “algumas das mais incríveis pesquisas médi-
cas já realizadas. (...) Perscrutamos as fronteiras da ciência e da compre-
ensão humana cm que residem a compreensão suprema e a cura de todas
as doenças mentais".
Se houve um livro que consolidou essa crença no pensamento popular,
foi The Broken Brain [O cérebro avariado]. Publicado em 1984 e escrito
por Nane, Andreasen, futura editora do American Journal of Psychiatty,
ele foi alardeado como “a primeira exposição abrangente da revolução bio-
médica no diagnóstico e tratamento da doença mental”. Nele, Andreasen
enunciou sucintamente os dogmas da psiquiatria biológica: “As grandes
doenças psiquiátricas são enfermidades. Devem ser consideradas doenças
médicas, como o diabetes, as cardiopatias e o câncer. A ênfase nesse mo-
delo recai sobre o diagnóstico criterioso de cada mal específico de que so-
fre o paciente, tal como o faria um clínico geral ou um neurologista”.
O Cérebro Avariado: o livro recebeu esse título brilhante, que transmi-
tiu uma mensagem pragmática, passível de ser apreendida e recordada
com facilidade pelo público. Entretanto, o que a maioria dos leitores não
notou foi que Andreasen, em vários pontos de seu livro, confessou que os
pesquisadores ainda não haviam propriamente constatado que as pessoas
diagnosticadas com problemas psiquiátricos tinham o cérebro avariado.
Os pesquisadores dispunham de novos instrumentos para investigar a
função cerebral e tinham esperança de que esse conhecimento chegaria.
“No entanto, o espírito da revolução - a intuição de que modificaremos
drasticamente as coisas, mesmo que este processo exija alguns anos - está
muito presente”, explicou a autora.
Decorridos 25 anos, esse momento da descoberta inovadora ainda está
por vir. Os substratos biológicos da esquizofrenia, da depressão e do
transtorno bipolar continuam desconhecidos. Mas o público se convenceu
há muito tempo do contrário, e agora podemos ver o processo de marke-
ting que desencadeou essa ilusão. No começo dos anos 1980, a psiquiatria
estava preocupada com seu futuro. As vendas de medicamentos psiquiá-
tricos tinham sofrido um declínio marcante nos sete anos anteriores, e
poucos formandos das faculdades de medicina queriam ingressar nesse
campo. Em resposta, a APA montou uma sofisticada campanha de marke-
ting para vender seu modelo médico ao público e, alguns anos depois, só
restou à população ficar boquiaberta ante os aparentes avanços que vi-
nham sendo obtidos. Havia uma revolução em andamento, os psiquiatras
haviam passado a ser “consertadores da mente” e, como disse a Jon Fran-
klin um “químico do cérebro”, Michael Kuhar, da Universidade Johns
Hopkins essa “explosão de novo, conhecimentos” levaria a novos medica-
mentos e a amplas mudanças na sociedade, que seriam “fantásticas!”.

Harmonia em Quatro Partes

Os psiquiatras não eram os únicos na sociedade norte-americana ansi-


osos por falar de uma revolução biomédica na psiquiatria. Durante a dé-
cada de 1980, uma poderosa coalizão de vozes uniu-se para contar essa
história, e era um grupo com influência financeira, prestígio intelectual e
autoridade moral. Juntas, essas vozes dispunham de todos os recursos e
do status social necessário para convencer o público de quase qualquer
coisa, e tal coalizão contadora de histórias permaneceu intacta desde en-
tão.
Como já vimos, os interesses econômicos das companhias farmacêuti-
cas e dos médicos alinharam-se estreitamente em 1951, quando o Con-
gresso concedeu aos médicos seus privilégios monopolistas de expedir re-
ceitas. Mas, nos anos 1980, a APA e a indústria deram mais um passo
nessa relação e, essencialmente, entraram numa “sociedade” no mercado
de fármacos. A APA e os psiquiatras de centros médicos acadêmicos cons-
tituíram a linha de frente desse arranjo, e com isso o público passou a ver
“cientistas” no palco, enquanto as empresas farmacêuticas forneciam em
silêncio as verbas para essa iniciativa capitalista.
A semente dessa parceria foi plantada em 1974, quando a APA criou
uma força-tarefa para avaliar a importância do apoio farmacêutico para
seu futuro. A resposta foi “muito grande” e, em 1980, isso levou a
Sociedade a instituir uma mudança política de importância transforma-
dora. Até então, as empresas farmacêuticas haviam montado com regula-
ridade exposições sofisticadas na reunião anual da APA e patrocinado
eventos sociais, mas não tinham permissão para apresentar palestras “ci-
entíficas”. Em 1980, porém, a diretoria da APA deu sua aprovação a que
as farmacêuticas começassem a patrocinar simpósios científicos em seu
encontro anual. As empresas pagaram uma taxa à APA por esse privilégio
e, em pouco tempo, os eventos de maior frequência na reunião anual pas-
saram a ser os simpósios financiados pela indústria, que ofereciam aos
membros da plateia refeições suntuosas e faziam apresentações de “pai-
néis de especialistas' Os oradores eram generosamente pagos para fazer as
palestras, e as companhias farmacêuticas se certificavam de que suas
apresentações transcorressem sem o menor problema. "Esses simpósios
são meticulosamente preparados, com ensaios anteriores ã reunião, e têm
um excelente conteúdo audiovisual”, explicou Sabshin.
Estava aberta a porta para uma “parceria” completa, uma parceria que
venderia ao público o modelo médico e os benefícios dos medicamentos
psiquiátricos, e a APA começou então a contar regularmente com o di-
nheiro da indústria farmacêutica para financiar muitas de suas ativida-
des. As companhias farmacêuticas passaram a “subvencionar” programas
de educação contínua t conferências psiquiátricas em hospitais, e, como
observou um psiquiatra, as empresas "tinham prazer cm complementá-las
com comida e bebida de graça, para adoçar o prazer da aprendizagem”.'1
Quando a APA lançou um comitê de ação política, em 1982, para fazer
pressão por seus interesses no Congresso, esse esforço foi financiado pela
indústria farmacêutica. Esta ajudou a custear os seminários da APA que
ofereciam treinamento para lidar com os meios de comunicação. Em 1985,
Fred Gottlieb, secretário da APA, observou que agora a organização unha
recebendo, todo ano, "milhões de dólares das fábricas de medicamentos”.
Dois anos depois, uma edição do boletim informativo da APA, Psychiatnc
News, estampou uma foto da Smith, Kline and French entregando um
cheque ao presidente da Sociedadem Roben Pasnau, o que levou um leitor
a fazer uma pilhéria, dizendo que a APA tinha se tornado a "Associação
Psicofarmacêutica Norte-Americana”. Já então, a organização vinha pros-
perando em termos financeiros, com um salto cm sua receita de 10,5 mi-
lhões de dólares em 1980 para 21,4 milhões de dólares em 1987, e se ins-
talou num prédio novo e sofisticado em Washington, D.C. E falava aberta-
mente em "nossos parceiros na indústria”.
Para as empresas farmacêuticas, a melhor parte dessa nova parceria
era que ela lhes facultava transformar psiquiatras das melhores faculda-
des de medicina em “porta-vozes”, mesmo quando esses médicos se consi-
deravam “independentes”. Os simpósios remunerados nas reuniões anu-
ais azeitavam essa nova relação. Dizia- se que os simpósios eram apresen-
tações “educativas” nas quais os fabricantes de remédios prometiam não
“controlar” o que diziam os especialistas. No entanto, essas apresentações
eram ensaiadas, e todo palestrante sabia que, se saísse do roteiro e come-
çasse a falar de desvantagens dos medicamentos psiquiátricos, não seria
convidado pela segunda vez." Não haveria simpósios patrocinados pela in-
dústria sobre a “psicose por hipersensibilidade”, nem sobre os efeitos vici-
antes das benzodiazepinas, nem sobre o fato de os antidepressivos não se-
rem mais eficazes do que placebos ativos. Esses oradores passaram a ser
conhecidos como “líderes pensantes”, cuja presença nos simpósios alçava-
os à condição de "estrelas” dessa área profissional, e, no começo dos anos
2000, eles recebiam de 2.000 a 10.000 dólares por palestra. “Alguns de
nós”, confessou E. Fuller Torrey, “cremos que o sistema atual está se apro-
ximando de uma forma de prostituição de alta classe.”
Esses “líderes pensantes” também se tornaram os especialistas habitu-
almente citados pela mídia e escreviam os manuais publicados pela APA.
Os líderes pensantes da psiquiatria moldaram a compreensão dos trans-
tornos mentais em nossa sociedade c, quando começaram a servir de ora-
dores remunerados, as empresas farmacêuticas canalizaram dinheiro na
direção deles por múltiplas vias. Como observou em 2000 o New England
Journal of Medicine, os líderes pensantes
servem de assessores das empresas cujos produtos eles estudam, partici-
pam de conselhos consultivos e centrais de palestrantes, participam de
acordos sobre patentes e royallies, concordam em ser os autores nominais
de artigos escritos pelas companhias interessadas, promovem fármacos e
aparelhos cm simpósios patrocinados pelas empresas, e se deixam mani-
pular por meio de presentes caros e viagens para ambientes de luxo?1
E não eram apenas uns poucos psiquiatras do meio acadêmico que a
indústria farmacêutica seduzia com seus dólares. Tal indústria compreen-
deu que esse era um modo muito eficaz de comercializar seus produtos e,

1
Os psiquiatras acadêmicos também começaram regularmente a discursar em jantares para grupos psiquiá-
tricos locais, e em 2000 John Norton, psiquiatra da Universidade do Mississipi, confessou numa carta ao
New EnglandJournal of 'Medicine que, depois de ter escrito sobre os efeitos colaterais do medicamento do
patrocinador, “meus convites para discursar despencaram, de repente, de quatro a seis vezes por mês para
essencialmente nenhuma”. Antes dessa experiência, disse ele, “cu me iludia, achando que estava educando
os médicos, e não sendo dominado pelos patrocinadores”.
coletivamente, começou a dar dinheiro a praticamente todas as figuras re-
nomadas do campo. Em 2000, quando o New England Journal of Medi-
cine tentou encontrar um especialista para escrever um editorial sobre a
depressão, “encontrou pouquíssimos que não tivessem laços financeiros
com as companhias farmacêuticas que fabricam antidepressivos”.
O NIMH também se juntou à coalizão de contadores de histórias. Os
psiquiatras biológicos souberam que haviam conquistado com sucesso o
NIMH quando o Projeto Solería foi encerrado e Mosher demitido, e, du-
rante a década de 1980 o instituto promoveu ativamente a história da bio-
psiquiatria perante o público num esforço que ganhou asas sob a lide-
rança de Shervert Frazier. Antes de ser escolhido para chefiar o NIMH, cm
1984, Frazier dirigira a Comissão de Assuntos Públicos da APA, que havia
conduzido os seminários de treinamento de contatos com a mídia, financi-
ados pelas empresas farmacêuticas, e não tardou a anunciar que o NIMH,
pela primeira vez em seus quarenta anos de história, lançaria uma grande
campanha educacional, chamada Programa de Conscientização, Reconhe-
cimento e Tratamento da Depressão (DART)1. Esse esforço educativo infor-
maria ao público que os transtornos depressivos eram “comuns, graves t
tratáveis”, nas palavras do NIMH. As companhias farmacêuticas “contri-
buiriam para o projeto com recursos, conhecimentos e outras formas de
assistência”, e o instituto prometeu que o programa seria conduzido por
pelo menos dez anos." Enquanto ajudava a expandir o mercado dos medi-
camentos psiquiátricos, o NIMH chegou até a assegurar ao público que a
história do cérebro avariado era verdadeira, “Duas décadas de pesquisas
mostraram que [os transtornos psiquiátricos] são doenças e indisposições
como quaisquer outras doenças e indisposições”, disse o diretor do NIMH,
Lewis Judd, em 1990, apesar de ninguém jamais ter sabido explicar a na-
tureza dessa patologia.
O último grupo a participar dessa campanha de contar histórias foi a
Aliança Nacional para os Doentes Mentais [NAMI]2. Fundada cm 1979 por
duas mulheres do Wisconsin, Beverly Young e Harriet Shetler, ela surgiu
como um protesto popular contra as teorias freudianas que atribuíam a
responsabilidade pela esquizofrenia a “mães distantes, negligentes e preo-
cupadas, que não eram capazes de estabelecer vínculos com seus filhos”,
observou um historiador do NIMH. A NAMI ansiava por abraçar uma

1 Depression Awareness, Recognition and Treatment.


2 Essa era a denominação original da organização: National Alliance for the Mentally III. Ida ini pos-
teriormente trocada por National Alliance on Mental Illness (Aliança Nacional Contra a Doença
Mental], para reduzir a discriminação e o estigma associados aos doentes mentais.
ideologia de natureza diferente, e a mensagem que procurava disseminar,
como disse sua ex-presidenta Agnes Hatfield em 1991, era que “a doença
mental não é um problema de saúde mental; é uma doença biológica. Por
parle das famílias, há uma clareza considerável de que elas estão concen-
tradas numa moléstia física”.
Para a APA e as empresas farmacêuticas, o nascimento da NAMI não
poderia ter ocorrido cm momento mais oportuno. Tratava-se ele um grupo
de pais que ansiava por abraçar a psiquiatria biológica, e a APA e a indús-
tria farmacêutica pularam em cima dessa ideia. Em 1983, a APA “fez um
acordo com a NAMI para escrever um panfleto sobre drogas neurolépticas
e, pouco depois, passou a incentivar suas filiais cm todo o país “a fomen-
tar a colaboração com divisões locais da Aliança Nacional para os Doentes
Mentais”. A APA e a NAMI se uniram para pressionar o Congresso a au-
mentar o financiamento de pesquisas biomédicas. e o beneficiário desse
esforço - o NIMH, que viu seu orçamento de pesquisa aumentar 84% ao
longo da década de 1980 - agradeceu aos pais por isso. “Num sentido
muito significativo, o NIMH é um instituto da NAMI”, disse Judd a Laurie
Flynn. que presidia a NAMI, numa carta de 1990. Aquela altura, a NAMI
tinha mais de 125.000 membros, a maioria deles de classe média, e bus-
cava ativamente “educar os meios de comunicação, as autoridades públi-
cas, os prestadores de serviços de saúde, a comunidade empresarial e o
público em geral sobre a verdadeira natureza dos transtornos cerebrais”,
nas palavras de um de seus dirigentes?’ A NAMI trouxe uma poderosa au-
toridade moral à narração da história do cérebro avariado c, natural-
mente, as empresas farmacêuticas ficaram ansiosas por financiar seus
programas educacionais, havendo 18 firmas doado 11,72 milhões de dóla-
res à entidade entre 1996 e 1999.
Em suma, um poderoso quarteto de vozes uniu-se durante os anos
1980, aflito para informar ao público que os distúrbios mentais eram do-
enças do cérebro. As companhias farmacêuticas entraram com a força fi-
nanceira. A APA e os psiquiatras das melhores faculdades de medicina
conferiram legitimidade intelectual à empreitada. O NIMH apôs o selo de
aprovação do governo na história. A NAMI forneceu a autoridade moral.
Era uma coalizão capaz de convencer a sociedade norte-americana de
quase tudo, e, melhor ainda para a coalizão, havia em cena uma outra voz
que, à sua maneira, contribuiu para blindar a história, tornando-a infalí-
vel aos olhos do público.
Os Críticos Acreditavam em Alienígenas

A história de unia “revolução psicofarmacológica” tinha sido contada


pela primeira vez nas décadas de 1950 e 1960, e depois, como vimos neste
capítulo, foi ressuscitada nos anos 1980. Mas os contadores da história
nos anos 1980 estavam mais vulneráveis à crítica que os das décadas an-
teriores, pelo simples falo de que agora havia vinte anos de pesquisas mi-
nando sua narrativa. Nenhum dos medicamentos havia provado ajudar as
pessoas a funcionarem bem a longo prazo, e a teoria do desequilíbrio quí-
mico nas doenças mentais estava em vias de fracassar. Como haviam con-
cluído os pesquisadores do NIMH cm 1984, “as elevações ou decréscimos
do funcionamento dos sistemas serotoninérgicos por si sós, não tendem a
estar associados à depressão”. Os leitores atentos de 0 Cérebro Avariado
também podiam ver que, na verdade, nenhuma nova descoberta tinha
sido feita. Havia um abismo do tamanho do Grande Cânion entre o que os
contadores da história do cérebro avariado insinuavam ser verdade e o
que se sabia de fato, e esse mesmo abismo apareceria em suas histórias
quando o Prozac e as outras drogas da segunda geração chegassem ao
mercado. Todavia, para sorte dos proponentes da psiquiatria biológica, as
críticas ao modelo médico e às drogas psiquiátricas passaram a se asso-
ciar, na mentalidade popular, à cientologia.
L. Ron Hubbard, um escritor de ficção científica, fundara a Igreja da
Cientologia em 1952. Um dos dogmas centrais dessa igreja dizia que a
Terra é povoada por almas que antes viveram em outros planetas - um
mito de criação “extraterrestre” que poderia ter saído diretamente de um
romance de ficção científica. Além disso, Hubbard tinha ideias próprias
sobre como curar a mente. Antes de fundar a cientologia, havia publicado
Dianetics: the modem Science of mental health [Dianética: a ciência mo-
derna da saúde mental], que delineava o uso de um processo de “audito-
ria” para eliminar da mente as experiências dolorosas do passado. A co-
munidade científica e médica havia ridicularizado a dianética como charla-
tanice e descartado Hubbard como vigarista, e ele, por sua vez, tomara-se
de intenso ódio pela psiquiatria. Em 1969, a cientologia e Thomas Szasz
fundaram em conjunto a Comissão dos Cidadãos para os Direitos Huma-
nos, grupo que começou a fazer campanhas contra a lobotomia, o eletro-
choque e os remédios psiquiátricos.
Isso se revelou muito afortunado para a APA e seus parceiros contado-
res de histórias, quando eles levantaram a bandeira da psiquiatria bioló-
gica. De fato, é fácil imaginar as empresas farmacêuticas decidindo
financiar secretamente os protestos da cientologia, ansiosas que estavam
por jogar dinheiro cm qualquer organização que-conscientemente ou sem
querer - promovesse a sua causa. E que não só os cientologistas acredita-
vam em extraterrestres, como também tinham ganhado fama de ser um
culto sigiloso, litigioso e até maléfico. A cientologia, escreveu a revista Time
em 1991, era “uma fraude global imensamente lucrativa, que sobrevive in-
timidando os membros e os críticos à maneira da Máfia”. Graças à ciento-
logia, as autoridades constituídas da psiquiatria dispuseram do contra-
ponto perfeito para sua narração de histórias, pois agora podiam descartar
publicamente as críticas ao modelo médico e aos remédios psiquiátricos
com um aceno da mão, menosprezando-as como disparates provenientes
de pessoas que eram membros de um culto profundamente impopular, e
não como críticas surgidas de suas próprias pesquisas. Nessas condições,
a presença da cientologia na mescla da narração de histórias serviu para
conspurcar todas as críticas ao modelo médico e às drogas psiquiátricas,
fossem quais fossem suas fontes.
Foram essas as forças contadoras de história que se formaram na dé-
cada de 1980. Quando o Prozac chegou ao mercado, elas estavam perfeita-
mente alinhadas para a criação - e a manutenção - de um conto da caro-
chinha sobre o novo grande salto da psiquiatria.
14.
A HISTÓRIA QUE FOI... E NÃO FOI CONTADA

“Em matéria de cadáveres nos ensaios atuais com psicotrópicos. o número


deles é maior nos grupos de tratamento atito do que nos grupos tratados
com um placebo. Isso é muito diferente do que acontece nos ensaios com a
penicilina ou nos ensaios com remédios que realmente funcionam." - David
Healy, professor de psiquiatria da Universidade de Cardiff, País de Gales,
2008.
Durante a década de 1920, os donos de rádios no centro dos Estados
Unidos sintonizavam habitualmente na estação KFKB, que tinha, talvez, o
sinal mais potente do país naquela época, embora emanasse da pequena
cidade de Milford. no Kansas. “Aqui fala o dr. John R. Brinkley, cumpri-
mentando seus amigos no Kansas e cm toda parte”, ouviam, e o dr. Brin-
kley tinha mesmo uma história incrível para contar. Em 1918, ele havia
começado a transplantar gônadas de bode para os testículos de homens
mais velhos que se preocupavam com o declínio de sua virilidade - uma
operação de 15 minutos, dizia aos ouvintes da KFKB, que havia provado
“restabelecer completamente” o vigor sexual. “O homem tem a idade de
suas glândulas”, explicava o ilustre doutor, e essa cirurgia rejuvenesce-
dora funcionava porque o tecido do bode “se mistura com o tecido humano
e o alimenta, estimulando a glândula humana para uma atividade reno-
vada.”
Embora as credenciais médicas de Brinkley fossem de natureza duvi-
dosa - ele se diplomara na Universidade de Medicina Eclética da Cidade de
Kansas, uma fábrica de diplomas -, o homem era um contador de histó-
rias magistral e uma espécie de gênio da propaganda. Após suas primeiras
cirurgias, contou essa história aos jornais de Kansas, e cm pouco tempo
estes estavam divulgando imagens dele segurando no colo o primeiro
“bebe de glândulas de bode”, filho de um idoso que havia passado pela ci-
rurgia. Outros homens mais velhos começaram a afluir a Milford, cada um
pagando 750 dólares pelo procedimento, e Brinldey azeitou sua máquina
publicitária. Contratou três assessores de imprensa para escrever maté-
rias jornalísticas prontas para serem publicadas, as quais eram distribuí-
das entre “publicações interessadas cm popularizar os mais recentes
avanços dos laboratórios da ciência”. Naturalmente, esses artigos planta-
dos incluíam depoimentos de clientes satisfeitos, como J. J. Tobias, reitor
da Faculdade de Direito de Chicago, que - diziam os artigos - gostava de
bater no peito e gritar: “Sou um homem novo! Esta é uma das maravilhas
do século!”. Brinkley criou sua própria “Editora Científica” e relatou um
“índice de sucesso de 90% a 95%” cm sua cirurgia, a qual, explicou, devol-
via o corpo a um “equilíbrio” hormonal adequado. Quando ele começou a
irradiar sua história na KFKB, cm 1923, ficou tão famoso que todo dia
chegavam três mil cartas ao seu hospital de Milford, e, no fim dos anos
1920, ele talvez fosse o “médico” mais rico dos Estados Unidos.
O dr. Brinkley acabou conquistando um lugar na história da medicina
como um dos maiores charlatães de todos os tempos, quando a Sociedade
Norte- Americana de Medicina assim o identificou. No entanto, cm matéria
de marketing da sua cirurgia de gônadas de bode, ele empregou técnicas
de propaganda e um modelo de narração de histórias que resistem à prova
do tempo. Publicou artigos que pareciam científicos, cortejou a imprensa,
reivindicou um índice altíssimo de êxito, ofereceu uma razão biológica pela
qual a cirurgia surtia efeito, e proporcionou aos repórteres citações de cli-
entes satisfeitos. Essa - como podem atestar a farmacêutica Eli Lilly e ou-
tros fabricantes de fármacos - é uma fórmula comprovada para transfor-
mar uma droga psiquiátrica em um sucesso comercial.

Lorotas, Mentiras e um Remédio Campeão de Vendas

Hoje, a natureza fraudulenta da história contada pela companhia far-


macêutica Eli Lilly e pela psiquiatria a respeito do Prozac, quando este
chegou ao mercado, é bastante conhecida, pois foi documentada por Peter
Breggin, David Healy e Joseph Glenmullen, entre outros. Breggin e Healy
escreveram seus relatos depois de obterem acesso aos arquivos da Eli
Lilly, quando prestaram depoimento em ações civis como peritos, o que
lhes permitiu examinar dados e memorandos internos que desmentiam o
que fora informado ao público a respeito do medicamento. Com o risco de
entrar num terreno já conhecido, precisamos revisitar brevemente essa
história, pois ela nos ajudará a ver, com considerável clareza, como se for-
maram nossas ilusões sociais sobre os méritos das drogas psiquiátricas
“de segunda geração”. A comercialização do Prozac pela Eli Lilly revelou-se
um modelo que outras companhias seguiram, à medida que foram intro-
duzindo suas drogas no mercado, e envolveu a narração de uma história
falsa na literatura científica, a supervalorização publicitária ainda maior
dessa história para a mídia e a ocultação de riscos que poderiam levar à
invalidez e à morte entre os usuários do medicamento.
A ciência da fluoxetina

O desenvolvimento de fármacos começa no laboratório, com a investi-


gação do “mecanismo de ação” de uma substancia, e, como vimos antes,
os dentistas da Eli Lilly determinaram, em meados da década de 1970,
que a fluoxetina fazia a serotonina “acumular-se” na sinapse, o que, por
sua vez, desencadeava uma série de alterações fisiológicas no cérebro. Em
seguida, em estudos com animais, constatou-se que a droga causava ativi-
dades estereotipadas em ratos (fungar ou lamber de forma repetitiva etc.) e
comportamentos agressivos em cães e gatos. Em 1977, a Eli Lilly condu-
ziu seu primeiro pequeno ensaio com seres humanos, mas “nenhum dos
oito pacientes que concluíram o tratamento de quatro semanas exibiu
uma clara melhora induzida pelo medicamento”, como disse Ray Fuller a
seus colegas da empresa farmacêutica em 1978.0 remédio também havia
causado “um número bastante grande de relatos de reações adversas”.
Um paciente tivera um surto psicótico ao tomar a medicação, e outros ha-
viam sofrido de “acatisia e inquietação”, disse Fuller.
Os ensaios com a fluoxetina mal haviam começado e já estava claro
que a Eli Lilly tinha um grande problema. A fluoxetina não parecia melho-
rar a depressão e causava um efeito colateral - a acatisia - que aumentava
sabidamente o risco de suicídio e violência. Depois de receber mais relatos
desse tipo, a Eli Lilly corrigiu seus protocolos de ensaio. “Nos estudos fu-
turos, o uso de benzodiazepinas para controlar a agitação será permitido”,
escreveu Fuller em 23 de julho de 1979. As benzodiazepinas ajudariam a
eliminar os relatos de acatisia e deveriam melhorar os resultados da eficá-
cia, uma vez que diversos testes com benzodiazepinas para a depressão
haviam demonstrado que elas eram eficazes como triciclos. É claro que,
como depois confessou no tribunal Dorothy Dobbs, da Eli Lilly, o uso de
benzodiazepinas era “cientificamente ruim”, uma vez que “confundiria os
resultados” e “interferiria na análise da segurança e da eficácia”, mas per-
mitiu que a companhia levasse adiante o desenvolvimento da fluoxetina.
Entretanto, mesmo com a adição das benzodiazepinas, a fluoxetina
não conseguiu funcionar bem. No começo dos anos 1980, a empresa con-
duziu um ensaio de fase III do medicamento na Alemanha, e em 1985 o
órgão alemão de licenciamento, o Bundesgesundheitsamt (BGA), concluiu
que essa droga era “totalmente inadequada para o tratamento da depres-
são”.' De acordo com as “autoavaliações” dos pacientes (em contraste com
as avaliações dos médicos), 0 medicamento produzia “pouca ou nenhuma
resposta ou melhora no quadro clínico dos pacientes”, como assinalou o
BGA." Ao mesmo tempo, ele havia causado psicose e alucinações, além de
aumentar a ansiedade, a agitação e a insônia de alguns pacientes, “os
quais, como efeitos adversos, ultrapassaram os considerados aceitáveis
pelos padrões médicos”, escreveu o BGA. E o mais problemático de tudo
era que o tratamento com essa droga poderia revelar-se fatal. “Foram fei-
tas 16 tentativas de suicídio, duas delas com sucesso”, nas palavras do
BGA." Um empregado da Eli Lilly alemã calculou, cm caráter particular,
que o índice de incidência de atos suicidas entre os pacientes que usavam
fluoxetina era “5,6 vezes maior que o constatado com o uso de outro medi-
camento ativo, a imipramina”.1
Naturalmente, depois que a Alemanha rejeitou seu pedido de registro,
a Eli Lilly temeu não conseguir obter aprovação da Administração Federal
de Alimentos e Medicamentos (FDA) para a íluoxetina.1 Precisava ocultar
as informações sobre o suicídio e, numa ação civil de 1994, Nancy Lord,
perita em projetos de ensaios clínicos, explicou o que a empresa havia
feito. Primeiro, a Eli Lilly instruiu os investigadores a registrarem vários
eventos adversos associados à droga como “sintomas de depressão”. As-
sim, nos resultados de ensaios submetidos à FDA, os problemas foram
atribuídos à doença, e não à fluoxetina. Segundo, quando os cientistas da
Eli Lilly tabularam os dados das fichas médicas, alteraram as informações
individuais de “ideação suicida” por “depressão”. Terceiro, empregados da
empresa examinaram os dados alemães “e retiraram os casos [de suicídio]
que julgaram não ser suicídios”.
Todas essas falcatruas, disse Lord a um tribunal cm 1994, tornaram
cientificamente “sem valor” todo o processo de testagem. No entanto,
mesmo com essas manipulações estatísticas, a Eli Lilly lutou para apre-
sentar uma defesa convincente da fluoxetina em sua solicitação de apro-
vação à FDA. Ela havia conduzido ensaios controlados por um placebo em
oito locais, e em quatro deles os pacientes tratados com fluoxetina não ti-
nham se saído melhor do que o grupo do placebo; nos demais, a fluoxetina
fora apenas ligeiramente melhor que o placebo.1’ Entrementes, ao exami-
nar os documentos da Eli Lilly, Peter Breggin descobriu que a imipramina
havia se mostrado mais eficaz que a fluoxetina em seis de sete ensaios.1’ A
FDA, em seu exame de 28 de março de 1985 de um grande ensaio, fez a
mesma observação: “A imipramina foi claramente mais eficaz que o pla-
cebo, ao passo que a fluoxetina foi menos sistematicamente melhor do que

No fim de 1989, a Eli Lilly obteve aprovação para comercializar a Fluoxetina na Alemanha, mas com um rótulo
que alertava para o alto risco de suicídio.
o placebo. Na melhor das hipóteses, a eficácia da fluoxetina era de natu-
reza muito marginal, e o examinador da FDA, Richard Kapit, também se
preocupou com sua segurança. Pelo menos 39 pacientes tratados com
fluoxetina tinham aberto surtos psicóticos nos ensaios curtos, e pouco
mais de 1% haviam ficado maníacos ou hipomaníacos. Outros efeitos cola-
terais incluíam insônia, nervosismo, confusão, tonteira, disfunções da me-
mória, tremores e piora da coordenação motora. A fluoxetina, concluiu
Kapit, “pode afetar negativamente os pacientes com depressão”. A FDA
também entendeu que a farmacêutica Eli Lilly havia tentado esconder
muitos desses problemas, tendo se empenhado numa “subcomunicação
em larga escala" dos males que a fluoxetina podia causar, segundo o avali-
ador David Graham.
Embora os testes possam ter sido desprovidos de valor científico, ainda
assim se revelaram uma previsão exata do que aconteceria depois que o
Prozac entrasse no mercado. Houve numerosos relatos experienciais de
pacientes tratados com essa droga que cometeram crimes pavorosos, ou
se mataram, e foram tantos os relatos de eventos negativos que fluíram
para o Programa MedWatch, da FDA, que o fármaco se tornou rapida-
mente o medicamento sobre o qual havia mais queixas nos Estados Uni-
dos. No verão de 1997, a FDA havia recebido 39.000 desses relatórios so-
bre o Prozac, o que ultrapassava em muito o número recebido sobre qual-
quer outro medicamento naquele período de nove anos (1988-1997). Os
históricos enviados ao MedWatch falavam de centenas de suicídios e de
uma longa lista de efeitos colaterais incômodos, entre eles depressão psi-
cótica, mania, raciocínio anormal, alucinações, hostilidade, confusão, am-
nésia, convulsões, tremores e disfunção sexual. A FDA calcula que apenas
1% de todos os eventos adversos e informado ao MedWatch, o que sugere
que aproximadamente quatro milhões de norte-americanos, durante
aquele período de nove anos, tiveram uma reação ruim ou até fatal ao Pro-
zac.

A história contada nas publicações médicas

Obviamente, o recorde registrado pela fluoxetina nos ensaios clínicos


não foi de um tipo que pudesse apoiar seu lançamento bem-sucedido no
mercado. 0 público não tenderia a abraçar um medicamento que o órgão
de licenciamento alemão, em seu exame inicial, havia considerado “total-
mente inadequado” como tratamento da depressão. Para que o Prozac fi-
zesse sucesso, os psiquiatras pagos pela Eli Lilly para conduzir os ensaios
precisariam contar uma história muito diferente nas publicações médicas
e ao público.
O primeiro registro de uma ação judicial envolvendo a fluoxetina apa-
receu no Journal of Clinical Psychiatry em 1984. Esse novo agente, escre-
veu James Bremmer, da Northwest Psychopharmacology Research, em
Washington, “proporciona uma atividade antidepressiva eficaz, com efeitos
colaterais cm menor número e menos problemáticos do que a imipramina.
(...) Nenhum dos efeitos adversos relatados por pacientes usuários de fluo-
xetina foi considerado relacionado com o medicamento”. A fluoxetina,
acrescentou ele, “provou ser mais eficaz do que o antidepressivo tricíclico”
Em seguida, John Feigner, da Universidade da Califórnia em San Diego,
relatou que a fluoxetina tinha eficácia pelo menos igual à da imipramina (e
provavelmente superior à dos antidepressivos tricíclicos) e que “não se ob-
servou nenhum efeito colateral grave” em seus 22 pacientes usuários de
fluoxetina, durante um estudo de cinco semanas. Um tema fora alarde-
ado: um antidepressivo muito seguro e aprimorado linha sido desenvol-
vido - e os pesquisadores da Eli Lilly agarraram-se a ele nos anos seguin-
tes. “A fluoxetina foi mais bem tolerada do que a imipramina”. informou
cm 1985 um psiquiatra da Califórnia, Jay Cohn. “Esse fármaco”, disse Jo-
achim Wernickc, da Eli Lilly, cm mais um artigo no Journal of Clinical
Psychiatry, “tem pouquíssimos efeitos colaterais importantes". Por fim. no
relatório de 1985 sobre seu grande ensaio da fase III, a Eli Lilly anunciou
que “a fluoxetina produziu uma melhora maior do que o placebo cm lodos
os principais parâmetros de eficácia”.
Embora esses relatos realmente falassem de um novo medicamento
que seria superior à antiga classe dos antidepressivos, ainda não se tra-
tara da história de um medicamento "inovador”. Não havia qualquer ideia
de por que a fluoxetina funcionava melhor, mas, à medida que se aproxi-
mava sua aprovação pela FDA, um novo “fato” começou a aparecer nos re-
latórios científicos. Num artigo de 1987 no British Journal of Psychiatry,
Sidney Levine escreveu que “alguns estudos demonstraram que a deficiên-
cia [de serotonina] desempenha um papel importante na psicobiologia da
doença depressiva”. Embora não fosse isso que se havia realmente desco-
berto - Levine parecia ler deixado escapar o relatório do Instituto Nacional
de Saúde Mental (NIMU) de 1984 que dizia que “as elevações ou decrésci-
mos do funcionamento dos sistemas serotoninérgicos, por si sós, não ten-
dem a estar associados à depressão” o referido artigo preparou o terreno
para a fluoxetina ser alardeada como uma droga que corrigia um desequi-
líbrio químico. Dois anos depois, psiquiatras da Universidade de Louisville
fizeram um levantamento da literatura sobre esse medicamento, a fim de
fornecer "normas de prescrição do mais novo antidepressivo”, e escreve-
ram que “os pacientes deprimidos têm concentrações de (metabolitos de
serotonina] inferiores às normais em seu líquido cefalorraquidiano. Come-
çava a se espalhar pela literatura médica uma crença ilusória, e, o que tal-
vez não seja de admirar, os psiquiatras do Kentucky concluíram que a
fluoxetina, que em tese elevava os níveis de serotonina, era “o medica-
mento ideal para o tratamento da depressão”.
Essa sequência de relatórios em publicações médicas forneceu à Eli
Lilly as frases feitas de que ela precisava para anunciar seu fármaco aos
médicos. A companhia inundou as publicações de medicina com anúncios
que exibiam pessoas bonitas, irradiando felicidade, que alardeavam o Pro-
zac como igual à imipramina em termos de eficácia e mais bem tolerado. A
ciência havia provado que a psiquiatria dispunha de um comprimido novo
e muito aperfeiçoado para a depressão, o qual parecia corrigir um desequi-
líbrio químico do cérebro.

A história contada ao público

Era certo que a história contada nas publicações psiquiátricas teria re-
percussão entre o público. Aquela altura, porém, o mercado de antidepres-
sivos ainda tinha um tamanho moderado. Quando o Prozac foi aprovado,
analistas de Wall Street previram que ele poderia gerar de 135 a 400 mi-
lhões de dólares de vendas anuais para a Eli Lilly. Mas as empresas far-
macêuticas, a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA) e os diri-
gentes do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) faziam questão de
ampliar o mercado de antidepressivos, e a campanha de “conscientização
popular” DART, do NIMH, revelou-se o veículo perfeito para esse fim.
Depois de anunciar seus planos para o DART (Programa Depression
Awareness, Recognition and Treatment) em 1986, o NIMH havia estudado
as crenças populares sobre a depressão. Uma pesquisa revelou que ape-
nas 12% dos adultos norte-americanos tomariam um comprimido para
tratá-la; 78% disseram que “conviveriam com ela até passar”, confiando
em sua capacidade de lidar com o problema sozinhos. Era uma atitude
compatível com o que o NIMH havia pregado apenas 15 anos antes,
quando Dean Schuyler, chefe do setor de depressão, dissera que a maioria
dos episódios depressivos “segue seu curso e termina com a recuperação
praticamente completa, sem intervenção específica”. Havia um saber epi-
demiológico na convicção popular de que a depressão passaria, mas o
NIMH - depois que Shervert Frazier e outros psiquiatras biológicos assu-
miram o comando -estava decidido a transmitir uma mensagem diferente.
O objetivo do DART, como explicou o NIMH em 1988, era “modificar as
atitudes populares, para que haja maior aceitação da depressão como um
distúrbio, e não unia fraqueza”. O público precisava compreender que era
frequente da ser “subdiagnosticada e subtratada”, e que podia “ser uma
doença fatal”, se não recebesse tratamento. Havia 31,4 milhões de norte-
americanos sofrendo de pelo menos uma forma branda de depressão,
disse o NIMH, e era importante que eles fossem diagnosticados. O público
precisava ser informado de que os antidepressivos produziam índices de
recuperação de “70% a 80%, cm comparação com 20% a 40% para o pla-
cebo”. O NIMH jurou continuar indefinidamente o DART, a fim de “infor-
mar” o público sobre esses “fatos”.
O NIMH lançou oficialmente o DART em maio de 1988, cinco meses
depois de o Prozac chegar às prateleiras das farmácias. Convocou “grupos
de trabalhadores, de religiosos, de educadores” e de empresários para
ajudá-lo a disseminar sua mensagem, e, é claro, as companhias farmacêu-
ticas e o próprio NIMH estiveram engajados desde o começo. O instituto
pôs anúncios nos meios de comunicação da Eli Lilly ajudou a custear a
impressão e distribuição de oito milhões de brochuras do DART, intitula-
das “Depressão: o que você precisa saber”. Esse panfleto informou aos lei-
tores, entre outras coisas, os méritos particulares das drogas “serotoninér-
gicas” para a doença. “Ao se disponibilizarem esses materiais sobre a do-
ença depressiva, tornando-os acessíveis em consultórios médicos de todo
o país, informações importantes estão efetivamente chegando ao público,
em ambientes que incentivam as perguntas, a discussão, o tratamento ou
o encaminhamento”, disse o diretor do NIMH, Lewis Judd.
Estava em andamento a remodelagem do pensamento norte-ameri-
cano. Essa venda da depressão, feita sob o disfarce de uma campanha de
“educação popular”, transformou-se num dos esforços de comercialização
mais eficazes que já se haviam concebido. Os jornais captaram a história,
as vendas do Prozac começaram a disparar, e então, em 18 de dezembro
de 1989, o comprimido verde e branco alcançou oficialmente o status de
celebridade, quando a revista New York o colocou cm sua capa, adeus,
tristeza, gritava a manchete, uma nova droga milagrosa para a depressão.
Na reportagem, um usuário “anônimo” do Prozac dizia que, numa escala
de 1 a 100, agora se sentia com “mais de 100”. Graças a essa nova pílula
milagrosa, concluiu a revista, os psiquiatras achavam que sua “profissão
tinha sido salva”.
Logo se seguiram outras dessas matérias entusiásticas. Em 26 de
março de 1990, a capa da revista Newsweek exibiu a cápsula verde e
branca flutuando como o Nirvana acima de uma bela paisagem: prozac:
uma droga inovadora para a depressão, anunciou a revista. Já então, os
médicos vinham emitindo 650 mil receitas mensais dessa pílula, e “quase
todos têm alguma coisa boa a dizer sobre o novo tratamento”, nas pala-
vras da Newsweek. Os pacientes exclamavam em voz alta: “Nunca me
senti melhor!”. Três dias depois, Natalie Angier do New York Times, que se
poderia dizer que era a redatora científica mais popular do país, explicou
que os antidepressivos “funcionam restabelecendo a atividade doí neuro-
transmissores no cérebro, corrigindo um excesso ou inibição anormais dos
sinais eletroquímicos que controlam o humor, os pensamentos, o apetite,
a dor e outras sensações”. Esse novo fármaco, disse o dr. Francis Mondi-
more a Angier, “não se assemelha ao álcool nem ao Valium. É parecido
com os antibióticos”. Programas de televisão fizeram uma contribuição de
peso, transmitindo uma mensagem similar, e no programa 60 Minutes
Lesley Stahl contou a história inspiradora de uma mulher, Maria Romero,
que, após uma década de depressão terrível, havia renascido com o Pro-
zac. “Alguém, alguma coisa saiu do meu corpo, e uma outra pessoa en-
trou”, disse Romero. Stahl explicou alegremente a cura biológica que es-
tava em ação: “A maioria dos médicos acredita que a depressão crônica,
como a de Romero, é causada por um desequilíbrio químico no cérebro.
Para corrigi-lo, o médico receitou Prozac”.

A Cientologia Entra em Ação para Prestar Socorro

Ainda bem cedo, houve um momento em que essa história da pílula


milagrosa ameaçou desmoronar. O problema, é claro, era que a fluoxetina
efetivamente provocava ideias suicidas e violentas em algumas pessoas e,
durante o verão de 1990, a questão da segurança do Prozac irrompeu nos
noticiários. E foi então, nesse momento crucial, que a cientologia se reve-
lou muito útil para a Eli Lilh e a classe psiquiátrica estabelecida.
Em 1990, tantas pessoas haviam sofrido com reações ruins à fluoxe-
tina que se formara em âmbito nacional um Grupo de Apoio a Sobreviven-
tes do Prozac. Muitos dos prejudicados pelo remédio haviam levado suas
queixas a advogados, e duas ações judiciais, em particular, captaram a
atenção do público. Primeiro, no dia 18 de julho, alguns jornais informa-
ram que uma mulher de Long Island. Rhoda Haia, estava processando a
Eli Lilly porque, depois de se tornar usuária do Prozac, havia cortado os
pulsos e “outras partes do corpo centenas de vezes”. Duas semanas de-
pois, os jornais falaram de uma ação judicial relacionada com um assassi-
nato em massa, cometido por um homem enlouquecido do Kentucky.
Cinco semanas depois de começar a usar o remédio, Joseph Wesbecker ti-
nha entrado numa gráfica de Louisville em que havia trabalhado e abrira
logo com um fuzil de assalto AK-47, matando oito pessoas e ferindo 12. A
Comissão dos Cidadãos para os Direitos Humanos emitiu prontamente
um comunicado à imprensa, exortando o Congresso a banir essa “droga
assassina”, e foi nesse momento que a Eli Lilly deu o bote. Essas ações ju-
diciais, anunciou em alto e bom som a empresa farmacêutica, “estão
sendo instigadas pelo grupo da cientologia, que tem uma história de críti-
cas ao uso de medicamentos psiquiátricos”.
Era o começo da campanha da Eli Lilly para salvar seu remédio cam-
peão de vendas. “A Lilly pode entrar pelo cano, se perdermos o Prozac”, es-
creveu o diretor médico Leigh Thompson, num memorando aflito de 1990.
A companhia burilou prontamente uma mensagem em quatro pontos para
os meios de comunicação; tratava-se de um problema que vinha sendo le-
vantado pelos cientologistas; extensos ensaios clínicos haviam mostrado
que o Prozac era um medicamento seguro; os eventos suicidas e homici-
das estavam “na doença, não no remédio”; e “pessoas que poderiam ser
ajudadas vêm sendo afastadas do tratamento pelo medo, e essa é a verda-
deira ameaça pública”. A empresa organizou sessões de treinamento midi-
ático para os psiquiatras acadêmicos que contratou como consultores, fa-
zendo-os praticar a transmissão dessa mensagem. “Francamente, não me
impressionei com o desempenho dos nossos profissionais externos”, quei-
xou-se com Thompson o vice-presidente da companhia, Mitch Daniels, de-
pois de uma dessas aulas práticas, em abril de 1991. A empresa deveria
“exigir” que os psiquiatras acadêmicos melhorassem seu desempenho “em
suas futuras sessões de treinamento”, disse ele.
Um artigo publicado no Wall Street Journal de 19 de abril de 1991
mostrou que as I sessões de treinamento da Eli Lilly haviam compensado.
“A cientologia”, informou o jornal a seus leitores, era uma “organização
quase religiosa/empresarial/ paramilitar” que vinha “travando uma
guerra com a psiquiatria”. O grupo havia atacado a segurança do Prozac,
muito embora “médicos não afiliados à Lilly” tenham constatado, durante
os ensaios clínicos, que havia “uma tendência menor para o pensamento
suicida com o Prozac do que com outros antidepressivos, ou com as cáp-
sulas de amido dadas a um grupo de controle”. Nas palavras de Leigh
Thompson, era uma “revelação desanimadora ver vinte anos de sólidas
pesquisas, conduzidas por médicos e cientistas, serem vaiados aos gritos,
em slogans de vinte segundos, por cientologistas e advogados”. Com efeito,
informou o Wall Strert Journal, a Eli Lilly, cm resposta às preocupações a
respeito da segurança do Prozac, havia solicitado a “peritos cm suicídio”
que reexaminassem os dados dos ensaios, mas eles haviam “concluído
que nada nos ensaios clínicos ligava os pensamentos suicidas - comuns
cm pacientes com depressão - ao Prozac”. Tratava-se da doença, e não do
remédio, e era essa a tragédia, explicou Jerrold Rosenbaum, um psiquia-
tra de Harvard no Hospital Geral de Massachusetts. “O medo que o pú-
blico tem do Prozac, em decorrência dessa campanha, tornou-se, ele pró-
prio, um problema potencialmente sério de saúde pública, à medida que
as pessoas se afastam do tratamento.”
Rosenbaum, naturalmente, era um dos “profissionais externos” da Eli
Lilly. Como informou posteriormente o Boston Globe, ele “participou de
um conselho consultivo de marketing da Lilly antes do lançamento do Pro-
zac”, sendo “confortável” a sua relação com a empresa farmacêutica. Mas
o Wall Street Journal o apresentou como um perito independente, um dos
mais ilustres médicos do país em matéria de depressão, e por isso os leito-
res só poderiam chegar a uma conclusão: esse era um problema inventado
por cientologistas perniciosos, e não uma preocupação legítima. Outros
jornais e revistas retrataram o problema dessa maneira, e em maio da-
quele ano a Time publicou uma virulenta matéria de capa sobre a ciento-
logia, chamando-a de “organização criminosa” que atraía “psicopatas”.
Em 20 de setembro de 1991, a FDA efetivamente convocou uma audi-
ência para verificar se o Prozac elevava o risco de suicídio, mas o painel
consultivo, que era dominado por médicos com vínculos com companhias
farmacêuticas, manifestou pouco interesse em investigar a sério essa
questão. Embora mais de duas dúzias de cidadãos depusessem sobre os
danos que o medicamento podia causar, o painel certificou-se de que a
discussão científica se limitasse a apresentações que corroboravam a pos-
tura da Eli Lilly de afirmar que a fluoxetina era perfeitamente segura.
Como informou o Wall Street Journal, os dados científicos apresentados
na audiência provaram que “a fluoxetina não leva a um aumento dos sui-
cídios ou das ideias suicidas e, na verdade, mostraram que a droga ajuda
a aliviar esses problemas”. Toda a controvérsia, como disse ao Journal um
defensor da empresa farmacêutica, era uma “ficção completa”, que havia
sido “organizada e financiada por um grupo da antipsiquiatria”.
Naquele momento, a Eli Lilly e toda a psiquiatria obtiveram uma vitória
de importância duradoura nas relações públicas. A aura de pílula
milagrosa em torno do Prozac foi restaurada, e o público e a mídia foram
condicionados a associar as críticas aos medicamentos psiquiátricos à ci-
entologia. O debate sobre os méritos desses fármacos pareceu então exi-
bir, de um lado, os principais cientistas e médicos do país, e de outro, reli-
giosos pirados; c, se era assim, o público podia ter certeza do lado cm que
estava a verdade. Outros inibidores seletivos de recaptação da serotonina
(ISR.S) entraram no mercado, as vendas do Prozac bateram na marca de
um bilhão de dólares cm 1992, e então, em 1993, o psiquiatra Peter Kra-
mer, da Universidade Brown, em seu livro Ouvindo o Prozac1, aumentou
mais um ponto no conto da pílula maravilhosa. O Prozac, escreveu ele, vi-
nha deixando alguns pacientes “melhor do que bem”. Alvorecia uma era de
“psicofarmacologia cosmética”, sugeriu Kramer, em que a psiquiatria ten-
deria a dispor de pílulas, no futuro próximo, que poderiam dar às pessoas
normais a personalidade que elas quisessem. Seu livro permaneceu por 21
semanas na lista dos mais vendidos do New York Times e, pouco depois, a
Newsweek alertou seus leitores para o fato de que era hora de a sociedade
começar a enfrentar as questões éticas levantadas pelos novos poderes da
psiquiatria. “As mesmas percepções científicas do cérebro que levaram ao
desenvolvimento do Prozac estão levantando a perspectiva de nada menos
do que personalidades feitas sob encomenda, escolhidas nas prateleiras”,
explicou a Newsweek em 1994. Será que os que se recusassem a “fazer
uma recauchutagem do cérebro”, indagou a revista, seriam deixados para
trás?
O neuropsiquiatra Richard Restak foi efusivo: "Pela primeira vez na
história humana, estaremos em condição de projetar nossos cérebros”.

A América Enganada

Enquanto a história do Prozac se desenrolava nos meios de comunica-


ção, com certeza o fantasma de John Brinkley devia estar sorrindo cm al-
gum lugar. Ele havia hipnotizado os ouvintes do seu programa de rádio
com histórias sobre as maravilhas das gônadas transplantadas de bodes,
e agora ali estava um processo de narração de histórias que havia trans-
formado um remédio “totalmente inadequado’ para tratar a depressão
num fármaco milagroso, em meio a psiquiatras que torciam as mãos em
público por seus novos poderes divinos de moldar a mente humana. De-
viam eles preocupar-se em deixar as pessoas “melhor do que bem”? Nossa

1 Peter Kramer, Ouvindo o Prozac, trad. Geni Hirata. 2. cd. Rio de Janeiro: Record, 1995. (N.T.)
sociedade perderia algo precioso se todos vivessem felizes o tempo todo!
Estava em andamento a medicação generalizada da mente norte-ameri-
cana, e - como revelará um exame muito rápido - foi esse mesmo processo
de histórias da carochinha que respaldou o lançamento do Xanax como
um remédio para a síndrome do pânico e um antipsicótico atípico para a
esquizofrenia. Depois que essas drogas “de segunda geração” se tornaram
campeãs de vendas, as companhias farmacêuticas e os psiquiatras acadê-
micos começaram a promover toda sorte de drogas psiquiátricas para uso
infantil, e essa narração de histórias varreu milhões de jovens norte-ame-
ricanos para a lata de lixo da “doença mental”.
Xanax
O Xanax (alprazolam) foi aprovado pela FDA como agente ansiolítico
em 1981 c, em seguida, a empresa farmacêutica Upjohn tratou de aprová-
lo para a síndrome do pânico, recém-identificada como doença distinta,
pela primeira vez, no DSM-III (1980). Como primeiro passo, o laboratório
contratou Gerald Klerman, ex-diretor do NIMH, para copresidir sua “co-
missão diretiva” do processo de testagem e pagou a Daniel Freedman, edi-
tor dos Archives of General Psjchiatry, para ser assistente de sua “divisão
de assuntos médicos”. Isso foi apenas parte dos esforços da companhia
para cooptar a psiquiatria acadêmica. “Os psiquiatras mais tarimbados do
mundo foram bombardeados com ofertas de consultoria” provenientes da
Upjohn, disse Isaac Marks, especialista em transtornos da ansiedade no
Instituto de Psiquiatria de Londres.
Klerman e a Upjohn conceberam o Estudo Colaborativo Transnacional
sobre o Pânico, da empresa farmacêutica Upjohn, de um modo que tor-
nasse esperável a produção de uma resposta precária ao placebo. Pacien-
tes que haviam sido tratados com benzodiazepinas foram admitidos no es-
tudo, o que significou que muitos integrantes do grupo do placebo esta-
riam, na verdade, passando pelos horrores da abstinência da benzodiaze-
pina, sendo portanto esperável que ficassem extremamente ansiosos nas
primeiras semanas do ensaio. Quase um quarto dos pacientes tratados
com o placebo tinham vestígios de benzodiazepinas no sangue ao se ini-
ciar o período de tratamento.
É sabido que as benzodiazepinas funcionam depressa, o que se com-
provou verdadeiro nesse estudo. Ao cabo de quatro semanas, 82% dos pa-
cientes tratados com o alprazolam estavam passando “moderadamente
melhor" ou “melhor”, em comparação com 43% do grupo do placebo. No
entanto, nas quatro semanas seguintes, os pacientes tratados com o
placebo continuaram a melhorar, o que não se deu com os do alprazolam,
e ao término da oitava semana “não havia diferença significativa entre os
grupos”, segundo a maioria das escalas de avaliação, pelo menos entre os
pacientes que permaneceram no estudo. O grupo do alprazolam também
experimentou uma variedade de efeitos colaterais problemáticos: sedação,
fadiga, fala arrastada, amnésia e má coordenação. Um em cada 26 pacien-
tes tratados com alprazolam sofreu uma reação “séria” ao medicamento,
como mania ou comportamento agressivo.
Ao cabo de oito semanas, os pacientes foram paulatinamente desma-
mados da medicação durante quatro semanas, e depois acompanhados, já
sem remédios, por mais duas semanas. Os resultados foram previsíveis:
39% dos que suspenderam o uso do alprazolam tiveram uma “deteriora-
ção significativa”, e seu pânico e ansiedade dispararam a tal ponto que
eles tiveram de reiniciar a medicação; 35% dos pacientes tratados com al-
prazolam tiveram sintomas de pânico e ansiedade “de rebote”, mais seve-
ros do que quando se iniciara o estudo, e uma percentagem igual sofreu
com uma multiplicidade de novos sintomas debilitantes, entre eles confu-
são, acentuação das percepções sensoriais, depressão, sensação de inse-
tos rastejando na pele, cãibras musculares, vista embotada, diarreia, re-
dução do apetite e perda de peso.
Em suma, ao cabo de 14 semanas os pacientes expostos ao fármaco
estavam em piores condições que os do grupo tratado com o placebo: eram
mais fóbicos, mais ansiosos, mais abalados pelo pânico e se saíam pior
numa “escala global” que avaliava o bem-estar geral. Quarenta e quatro
por cento ficaram impossibilitados de deixar o medicamento, a caminho de
uma vida de adicto. Sob todos os aspectos, os resultados pintaram um re-
trato poderoso da armadilha das benzodiazepinas: tratava-se de uma
droga que funcionava por um período curto e, depois, perdia eficácia cm
relação a um placebo; no entanto, quando os pacientes tentavam aban-
doná-la, sentiam-se muito mal, e muitos não conseguiam desfazer-se do
hábito. As primeiras semanas de alívio vinham a um custo altíssimo a
longo prazo, e os que ficavam presos ao medicamento - como haviam de-
monstrado estudos anteriores sobre as benzodiazepinas - tendiam a aca-
bar com prejuízos físicos, afetivos e cognitivos.
Os investigadores da Upjohn publicaram três artigos na revista Archiva
of General Psychiatry cm maio de 1988, e qualquer pessoa que exami-
nasse os dados com cuidado poderia ver os danos causados pelo alprazo-
lam. Mas, para que o Xanax fosse comercializado com êxito, a Upjohn pre-
cisava que seus investigadores extraíssem um tipo de conclusão diferente,
e foi o que eles fizeram, particularmente nos resumos dos três artigos. Pri-
meiro, concentraram a atenção nos resultados das quatro primeiras sema-
nas (e não nos de oito semanas, ao término do período de tratamento),
anunciando que “o alprazolam revelou-se eficaz e bem tolerado”. Segundo,
assinalaram que 84% dos usuários do alprazolam haviam concluído o es-
tudo de oito semanas, o que era prova de que “foi alta a aceitação do al-
prazolam pelos pacientes”. Embora seus pacientes de alprazolam exibis-
sem regularmente problemas como “fala arrastada, amnésia” e outros si-
nais de “mentação prejudicada”, eles ainda concluíram que o medica-
mento tinha “poucos efeitos colaterais e [era] bem tolerado”. Por último,
embora reconhecessem que alguns pacientes tratados com alprazolam ha-
viam se saído pior quando da suspensão da medicação, eles ponderaram
que o remédio tinha sido usado por um período muito curto e que a des-
continuação fora feita de modo muito abrupto. “Recomendamos que os pa-
cientes com síndrome do pânico sejam tratados por um período mais
longo, de pelo menos seis meses”, disseram.
O estudo sobre o Xanax

No estudo do Xanax feito pela Upjohn, os pacientes foram tratados com o medica-
mento ou com um placebo durante oito semanas. Em seguida, o tratamento foi len-
tamente suspenso (semanas 9 a 12) c, nas duas últimas semanas, os pacientes
não receberam medicação alguma. Os pacientes tratados com Xanax saíram-se
melhor nas primeiras quatro semanas, e foi nesse resultado que os investigadores
da Upjohn se concentraram cm seus artigos para revistas especializadas. Toda-
via, quando os pacientes com Xanax começaram a se abster da droga, sofreram
um número muito maior de ataques de pânico do que os pacientes tratados com o
placebo, c, ao térmico do estudo, estavam muito mais sintomáticos.

Em Londres, Isaac Marks e diversos colegas seus do Instituto de


Psiquiatria assinalaram, posteriormente, o quanto tudo aquilo era trans-
parentemente ridículo. Numa carta à revista Archives of General Psychia-
try observaram que, visto que os pacientes com alprazolam “ficaram em
pior estado que os pacientes que receberam o placebo” ao final do estudo,
a constatação dos investigadores da Upjohn de que o remédio era eficaz e
bem tolerado só podia ser vista como “tendenciosa e questionável”.51 Todo
esse episódio, escreveu Marks, posteriormente, “é urna demonstração
clássica dos riscos das pesquisas financiadas pela indústria”.
Mas o fato de os pacientes usuários de alprazolam chegarem a um re-
sultado final tão ruim, com muitos a caminho do vício pela rida afora, não
impediu a farmacêutica Upjohn. Klerman. a APA e o NIMH de alardearem
os benefícios do Xanax para o público norte-americano. A mesma má-
quina de marketing que fizera do Prozac um campeão de vendas voltou a
ser acionada. A Upjohn patrocinou um simpósio, na reunião da APA de
1988. no qual o “painel de especialistas'’ destacou os resultados após qua-
tro semanas. Robert Pasnau. que havia presidido a APA em 1987. enviou
aos membros da entidade um livrinho em papel cuchê sobre as Conse-
quências da Ansiedade. um esforço “educativo" pago pela Upjohn. Sher-
vert Frazier e Gerald Klerman assinaram uma carta no estilo “Querido
doutor”, que a Upjohn incluiu na literatura promocional que remeteu aos
médicos sobre o Xanax como tratamento para a síndrome do pânico. A
Upjohn também doou 1,5 milhão de dólares à APA. a fim de que ela pu-
desse montar uma campanha semelhante ao DART para “educar" psiquia-
tras, profissionais da saúde e o público em geral sobre a síndrome do pâ-
nico, que se afirmou ser “subdiagnosticada e subi ratada”. Por fim. o
NIMH também deu sua contribuição, identificando a síndrome do pânico
como uma preocupação prioritária e patrocinando uma conferência sobre
cia em 1991. com seu painel de especialistas apontando as “benzodiazepi-
nas de alta potência" - o que seria o Xanax - como um dos dois “tratamen-
tos eletivos”.
A FDA aprovou o Xanax como tratamento para a síndrome do pânico
em novembro de 1990, e muitos jornais e revistas publicaram as matérias
de praxe: Em pânico? a ajuda está a caminho, anunciou a manchete do St.
Louis Post-Dispatch. O tratamento, disse o jornal, ajudava de 70% a 90%
dos que sofriam dessa doença debilitante, que afetava “quatro milhões de
adultos neste país”. A Associated Press explicou que “um mau funciona-
mento bioquímico do cérebro e tido como uma das causas dos ataques de
pânico. O Xanax pode bloquear os ataques, interagindo com vários siste-
mas cerebrais diferentes”. No Chicago Sun-Times, o dr. John Zajecka, da
Faculdade de Medicina Rush, em Chicago, anunciou que “o Xanax é o
[medicamento] de ação mais rápida e menos tóxico” dentre os remédios
para esse transtorno. Mais uma vez, uma droga muito eficaz e segura ha-
via chegado ao mercado, e em 1992 o Xanax tornou-se o quinto medica-
mento receitado com mais frequência nos Estados Unidos.
Nem tão atípico assim
Enquanto o Xanax tomava o rumo do mercado como tratamento para
a síndrome do pânico, a companhia farmacêutica Janssen conduzia en-
saios com a risperidona, uma nova droga para a esquizofrenia. Já então,
os métodos empregados pelas empresas farmacêuticas para criar novos
psicotrópicos “campeões de vendas” estavam começando a ser muito bem
praticados, quase todos empregando o modelo de desenvolvimento de Fár-
macos do Prozac, e a Janssen, tal como a Eli Lilly e a Upjohn, projetou
testes tendenciosamente favoráveis a seu medicamento. Em particular,
comparou doses múltiplas de risperidona com uma alta dose de haloperi-
dol (Haldol), pois já então podia estar relativamente segura de que uma
das doses de risperidona teria um bom perfil de segurança, em compara-
ção com os antigos neurolépticos “padronizados”. Como observaram os
examinadores da FDA, esses estudos eram “incapazes” de oferecer qual-
quer comparação significativa dos dois fármacos?’ Na carta de aprovação
enviada à Janssen pela FDA, Robert Temple, diretor do Serviço de Avalia-
ção de Fármacos, deixou bem clara essa ideia:
Consideraríamos qualquer propaganda ou rotulação promocional do Risper-
dal como falsa, enganosa ou desprovida do justo equilíbrio, nos termos da
seção 502 (a) e 502 (n) da LEI, em havendo uma apresentação de dados
que transmita a impressão de que a risperidona é superior ao haloperidol
ou a qualquer outro produto farmacêutico antipsicótico comercializado, no
tocante à segurança ou à eficácia.
Todavia, embora a FDA pudesse proibir a farmacêutica Janssen de di-
vulgar anúncios que promovessem seu medicamento como superior ao ha-
loperidol, ela não tinha autoridade sobre o que pudessem dizer os psiquia-
tras acadêmicos contratados pela Janssen. Era esta a beleza comercial da
“parceria” surgida entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica durante
os anos 1980: os doutores acadêmicos podiam fazer afirmações, tanto em
suas publicações médicas quanto perante o público, que a FDA conside-
rava de natureza falsa. No caso em questão, eles publicaram mais de vinte
artigos em publicações psiquiátricas, enaltecendo a risperidona como
igual ou superior ao haloperidol na redução dos sintomas positivos da es-
quizofrenia (psicose) e superior ao haloperidol na melhora dos sintomas
negativos (falta de emoção). Os médicos acadêmicos afirmaram que a ris-
peridona reduzia as internações hospitalares, melhorava a capacidade de
funcionamento social cios pacientes e reduzia a hostilidade. “A risperidona
tem importantes vantagens, comparada ao haloperidol”, escreveram no
Journal oj Clinicai Psychiatry. “Quando administrada numa faixa de dosa-
gem eficiente, a risperidona produziu melhoras maiores em todas as cinco
dimensões da esquizofrenia.”
Mais uma vez, tratou-se da história científica de um tratamento novo e
aprimorado e, em suas entrevistas à mídia, os pesquisadores da Janssen
falaram de uma droga miraculosa. Esse novo agente, informou o Washing-
ton Post, “representa um vislumbre de esperança para uma doença que,
até recentemente, era considerada um caso perdido”. A rispcridona, expli-
cou o jornal, não “causa[va] sedação, visão embotada, debilitação da me-
mória nem rigidez muscular, efeitos colaterais comumente associados à
geração anterior de drogas antipsicóticas". O New York Times, citando Ri-
chard Meibach, o diretor de pesquisas clínicas da Janssen, afirmou que
“nenhum grande efeito colateral” havia surgido nos mais de dois mil paci-
entes tratados com risperidona nos ensaios clínicos1. Acreditava-se que o
medicamento “aliviava os sintomas da esquizofrenia, bloqueando os fluxos
excessivos de serotonina ou dopamina, ou de ambos”, segundo o jornal.
Estava em curso a revolução dos antipsicóticos atípicos. Aparente-
mente, o Risperdal restabelecia a sanidade ao equilibrar múltiplos neuro-
transmissores cerebrais e não causava nenhum efeito colateral digno de
nota. Em 1996, a Eli Lilly introduziu no mercado o Zyprexa (olanzapina), e
o conto popular sobre as maravilhas dos atípicos recebeu mais um ponto.
Como se tornara costumeiro, a Eli Lilly empregou ensaios “proposital-
mente tendenciosos” contra o haloperidol, concluiu a FDA. Como resul-
tado, seu grande ensaio da fase III, que não foi controlado pelo uso de um
placebo, ofereceu “poucos dados úteis sobre a eficácia”. Quanto ao perfil
de segurança da olanzapina, vinte pacientes tratados com essa droga du-
rante os ensaios morreram, 22% sofreram algum evento adverso “grave”
(mais do que entre os pacientes tratados com haloperidol) e dois terços
não chegaram ao fim dos estudos. A olanzapina. sugeriram os dados, tor-
nava os pacientes sonolentos e gordos, e causava problemas como sinto-
mas parkinsonianos, acatisia, distonia. hipotensão, constipação,

1 Na verdade. 84 pacientes tratados com risperidona haviam sofrido algum “evento adverso grave de-
finido pela FDA como um evento que ameaçava a vida ou requeria hospitalização
taquicardia, diabetes, convulsões, secreção mamilar, impotência, anorma-
lidades hepáticas e distúrbios dos glóbulos brancos. Além disso, como ad-
vertiu Paul Leber, da FDA, visto que a olanzapina bloqueava os receptores
de muitos tipos de neurotransmissores, “ninguém deve se surpreender se,
ao ser comercializada [a droga], forem relatados eventos de toda sorte e
gravidade, não previamente identificados, associados ao uso da olanza-
pina”.
Foi essa a história contada pelos dados dos ensaios. A história que a
Eli Lilly queria que aparecesse nas revistas e jornais de medicina era que o
Zyprexa era melhor que o Risperdal da Janssen, e assim foi essa a história
que contáramos seus especialistas de aluguel. Psiquiatras de faculdades
de medicina anunciaram que a olanzapina funcionava de modo mais
“abrangente” que a risperidona ou o haloperidol. Era um agente bem tole-
rado, que levava a uma melhora global - reduzia os sintomas positivos,
causava menos efeitos colaterais motores do que outros antipsicóticos e
melhorava os sintomas negativos e a função cognitiva.” Esse segundo atí-
pico era melhor que o primeiro, e o Wall Street Journal adotou essa pers-
pectiva. O Zyprexa, anunciou, “tem vantagens substanciais” em relação a
outras terapias atuais. “O mundo real”, explicou John Zajecka, da Facul-
dade de Medicina Rush, “vem constatando que o Zyprexa tem menos efei-
tos colaterais extrapiramidais do que o Risperdal.” O Zyprexa era “uma
inovação potencial de tremenda magnitude”, disse ao New York Times um
psiquiatra da Universidade Stanford, Alan Schatzbcrg.
Agora, a única dúvida parecia ser se o Zyprexa era mesmo melhor que
o Risperdal, e depois que a companhia farmacêutica AstraZeneca introdu-
ziu no mercado um terceiro antipsicótico atípico, o Seroquel, os meios de
comunicação optaram pela ideia de que, coletivamente, os novos atípicos
eram um aprimoramento drástico em relação às drogas mais antigas.
Eram, como disse a revista Parade a seus leitores, “muito mais seguros e
eficazes no tratamento dos sintomas negativos, como a dificuldade de raci-
ocinar e falar de maneira organizada”. Os fármacos mais recentes, anun-
ciou o Chicago Tribune, “são mais seguros e mais eficazes do que os anti-
gos. Ajudam as pessoas a trabalhar”. O Los Angeles Times escreveu: “Ami-
gamente, não se dava aos esquizofrênicos nenhuma esperança de me-
lhora. Mas agora, graças a novos medicamentos e a um novo compro-
misso, eles estão regressando à sociedade como nunca havia acontecido”.
A Aliança Nacional Contra a Doença Mental (NAMI) também deu sua con-
tribuição, publicando um livro intitulado Breakthrougs in Antipsychotic
Medications [Inovações nos medicamentos antipsicóticos], que deu a
proveitosa explicação de que esses novos remédios “são melhores no tra-
balho de equilibrar todas as substâncias químicas do cérebro, inclusive a
dopamina e a serotonina”. E assim prosseguiu até que, por fim, a diretora
executiva da NAMI, Laurie Flynn. disse à imprensa que finalmente se ha-
via chegado à terra prometida: “Esses novos medicamentos são mesmo
uma inovação. Significam que finalmente seremos capazes de manter as
pessoas fora dos hospitais, e significam que a incapacitação a longo prazo
causada pela esquizofrenia pode chegar ao fim”.

A Revista Lancet Faz uma Pergunta

Foi essa a sequência de narração de histórias que levou ao aumento


explosivo do uso de drogas psiquiátricas nos Estados Unidos. Primeiro, os
psiquiatras norte-americanos promoveram o Prozac como uni remédio mi-
raculoso, depois saudaram o Xanax como uma terapia segura e eficaz
para a síndrome do pânico, e, por último, informaram ao público que os
antipsicóticos atípicos eram medicamentos “inovadores” para a esquizofre-
nia. Com isso, rejuvenesceram o mercado dos remédios psiquiátricos,
muito embora os estudos clínicos das novas drogas, não houvessem falado
de nenhum avanço terapêutico.
Pelo menos nos círculos científicos, faz muito tempo que desapareceu a
aura de “remédio milagroso” em torno dos psicotrópicos. Como vimos an-
tes, relatou- se em 2008 que os ISRS só proporcionavam um benefício clí-
nico significativo a pacientes gravemente deprimidos. Hoje se sabe que o
Xanax vicia muito mais do que o Valium, e vários pesquisadores determi-
naram que dois terços das pessoas que o tomam por qualquer período têm
dificuldade cm deixar de usá-lo. Quanto aos antipsicóticos atípicos mais
vendidos, a supervalorização publicitária desses medicamentos é hoje
vista como um dos episódios mais embaraçosos da história da psiquiatria,
dado que uma sucessão de estudos financiados pelo governo não conse-
guiu constatar que eles fossem melhores que os antipsicóticos da primeira
geração. Em 2005, o Ensaio CATIE do NIMH determinou que não havia
“qualquer diferença significativa” entre os atípicos e seus predecessores, e,
o que foi ainda mais perturbador, nesse estudo não se pôde afirmar nem
que os novos fármacos, nem que os antigos realmente funcionavam. Dos
1.432 pacientes, 74% não puderam manter o uso dos medicamentos,
principalmente por sua “ineficácia ou seus efeitos colaterais intoleráveis”.
Um estudo do Departamento de Assuntos dos Veteranos dos Estados Uni-
dos chegou a uma conclusão similar sobre os méritos relativos dos
atípicos e dos antipsicóticos mais antigos, e então, em 2007, psiquiatras
britânicos relataram que. para dizer o mínimo, os pacientes esquizofrêni-
cos tinham uma “qualidade de vida” melhor usando as drogas antigas do
que usando as novas? Tudo isso levou dois psiquiatras proeminentes a es-
creverem na Lancet que a história dos antipsicóticos atípicos como medi-
camentos inovadores podia agora ser “considerada apenas uma invenção”,
uma história inventada “pela indústria farmacêutica para fins comerciais,
e que só agora está sendo desmascarada". Todavia, eles se perguntaram:
“como foi que, durante quase duas décadas, ‘fomos induzidos’, no dizer de
alguns, a pensar que eles eram superiores?”.
A história, como podem atestar os leitores deste livro, revela a resposta
a essa pergunta. A semente da história encantada dos antipsicóticos atípi-
cos foi plantada no começo da década de 1980, quando a APA abraçou a
“psiquiatria biológica” como uma narrativa que poderia ser vendida ao pú-
blico com sucesso. Tratava-se também de uma história em que a classe
profissional como um todo queria desesperadamente acreditar, e Nancy
Andreasen e outros não tardaram a dizer que estava cm andamento uma
revolução na qual as doenças mentais finalmente revelariam seus segre-
dos biológicos, ainda que ninguém soubesse explicar precisamente quais
eram esses segredos. Essa história ganhou vulto, preparando a população
para acreditar que havia avanços terapêuticos a caminho, e à medida que
iam introduzindo novos medicamentos no mercado, as companhias farma-
cêuticas iam contratando os mais ilustres psiquiatras do país para falar de
como esses novos remédios milagrosos “equilibravam” a química cerebral.
E foi essa cooptação da medicina acadêmica que deu à história da caro-
chinha a sua credibilidade. Tratou- se de uma história contada pelo psi-
quiatra Jerrold Rosenbaum, da Faculdade de Medicina da Universidade
Harvard, por Gerald Klerman, ex-diretor do NIMH, e por Alan Schatzberg,
psiquiatra da Universidade Stanford.
É claro que, como sociedade, nós acreditamos.

Silenciando a Dissidência

Como vimos, a psiquiatria norte-americana contou ao público uma


história falsa nos últimos trinta anos. O campo promoveu a ideia de que
seus medicamentos corrigiam desequilíbrios químicos no cérebro, quando
eles não fazem nada disso, e exagerou grosseiramente os méritos dos psi-
cotrópicos da segunda geração. Para manter de pé a história de progresso
científico (e para proteger sua própria crença nessa história), a psiquiatria
precisou reprimir o discurso sobre os danos que os medicamentos podiam
causar.
O policiamento de suas próprias fileiras, na psiquiatria, começou para
valer no fim da década de 1970, quando Loren Mosher foi demitido do
NIMH por ter feito seu experimento chamado Soteria. O eminente psiquia-
tra seguinte a acabar na lista negra da psiquiatria foi Peter Breggin. Em-
bora hoje seja conhecido por seus textos de “antipsiquiatria”, também ele
estivera numa trajetória de sucesso rápido no NIMH. Depois de concluir
sua residência médica no hospital da Faculdade de Medicina da Universi-
dade Harvard, Breggin foi para o NIMH, em 1996, para trabalhar no de-
senvolvimento de centros comunitários de saúde mental. “Eu ainda era o
jovem medalhão”, relembrou ele numa entrevista. “Achava que seria o
mais jovem titular de psiquiatria da história da Faculdade de Medicina da
Universidade Harvard. Era nessa trajetória que eu estava.” Entretanto, ele
viu que o futuro pertencia à psiquiatria biológica, em contraste com a psi-
quiatria social que o interessava, e deixou o NIMH para trabalhar na clí-
nica privada. Logo começou a escrever sobre os riscos do eletrochoque e
das drogas psiquiátricas, os quais, no dizer dele, “funcionavam” incapaci-
tando o cérebro. Após algumas batalhas acaloradas com os dirigentes da
APA, Breggin participou, cm 1987, do programa de televisão de Oprah
Winfrey, no qual falou da discinesia tardia e de como essa disfunção era
prova de que os neurolépticos danificavam o cérebro. Seus comentários
enfureceram a APA a tal ponto que esta enviou uma transcrição do pro-
grama à NAMI, a qual, por sua vez, apresentou uma queixa à Comissão de
Disciplina Médica do Estado de Maryland, pedindo que esta cassasse a li-
cença de Breggin para o exercício da profissão, sob a alegação de que as
declarações dele haviam levado pacientes esquizofrênicos a suspenderem
sua medicação (e, portanto, haviam feito mal). Embora tenha optado por
não tomar essa medida, a comissão efetivamente conduziu um inquérito
(cm vez de descartar sumariamente a queixa da NAMI) e, mais uma vez, a
mensagem para todos os profissionais da área foi muito clara.
“Acho que o interessante é que o Loren [Mosher] e eu nos opusemos ci-
entificamente aos dois lados do problema”, disse Breggin. “O Loren levan-
tou a tese de que existia um tratamento melhor do que os fármacos para a
esquizofrenia. Eu me opus aos tratamentos - à medicação, ao eletrocho-
que e à psicocirurgia. E o que isso mostrou foi que, não importava a que o
sujeito quisesse se opor, eles estavam dispostos a destruir a carreira dele.
Foi essa a lição.”
O revés em sua carreira sofrido pelo psiquiatra irlandês David Healy
fez lembrar, em certos aspectos, o episódio em que Mosher caiu cm des-
graça. Durante a década de 1990, Healy ganhou fama como um dos gran-
des historiadores da profissão, cujos escritos se concentravam na era da
farmacologia. Ele havia exercido a função de secretário da Sociedade Bri-
tânica de Psicofarmacologia e, no início do ano 2000, aceitou uma pro-
posta do Centro de Saúde Mental e Dependência de Drogas da Universi-
dade de Toronto para chefiar seu programa sobre o humor e a ansiedade.
Até aquele momento, estava perfeitamente integrado na ordem estabele-
cida da psiquiatria, como acontecera com Mosher. No entanto, fazia mui-
tos anos que se interessava por saber se os ISRS poderiam instigar o suicí-
dio e, cm época recente, havia concluído um estudo com “voluntários sa-
dios”. Dois dos vinte voluntários tinham se tornado suicidas depois de se-
rem expostos a um ISRS, o que mostrara com clareza que o medicamento
podia causar essas ideias. Não muito depois de aceitar o emprego cm To-
ronto, Healy apresentou seus resultados numa reunião da Sociedade Bri-
tânica de Psicofarmacologia. Ali, uma das figuras mais ilustres da psiquia-
tria norte-americana advertiu-o aconselhando-o a deixar aquilo de lado.
“Ele me disse que minha carreira seria destruída, se eu continuasse i mos-
trar resultados como os que acabara de exibir, e que eu não tinha o direito
de destacar aquele tipo de risco dos comprimidos”, disse Healy.
Em novembro de 2000, poucos meses antes da data marcada para o
início do seu trabalho na Universidade de Toronto, Healy fez uma palestra
sobre a história da psicofarmacologia, num colóquio organizado pela uni-
versidade. Em sua apresentação, falou dos problemas surgidos com os
neurolépticos desde sua introdução, na década de 1950, examinou sucin-
tamente os dados que mostravam que o Prozac e outros ISRS elevavam o
risco de suicídio, e observou de passagem que, na atualidade, os resulta-
dos referentes aos transtornos afetivos eram piores doque um século an-
tes. E isso, observou, não deveria estar acontecendo, se “nossos medica-
mentos realmente funcionassem”.
Ainda que, posteriormente, a plateia avaliasse sua palestra como a me-
lhor do colóquio, pelo conteúdo apresentado, quando Healy chegou de
volta ao País de Gales, a Universidade de Toronto havia retirado a pro-
posta de emprego. “Embora o senhor seja altamente respeitado como estu-
dioso da história da psiquiatria moderna, cremos que sua abordagem não
é compatível com os objetivos que temos para o desenvolvimento dos re-
cursos acadêmicos e clínicos”, escreveu num e-mail o chefe de psiquiatria
do Centro de Saúde Mental e Dependência de Drogas, David Goldbloom.*'
Mais uma vez, os outros profissionais da área só puderam extrair uma
lição: “A mensagem era que expor o próprio pensamento era má ideia, e
que a ideia de que talvez os tratamentos não funcionassem, ou talvez não
fossem manejados da melhor maneira ao serem confiados a médicos, era
inaceitável”, disse Healy numa entrevista.
Muitos outros podem atestar o fato de que externar uma opinião era
“má ideia”. Nadine Lambert, uma psicóloga da Universidade da Califórnia
em Berkeley, conduziu um estudo de longo prazo sobre crianças tratadas
com Ritalina e descobriu que, quando adultos jovens, esses pacientes
apresentavam taxas elevadas de consumo abusivo de cocaína e tabagismo.
Depois que ela relatou seus resultados numa conferência do Instituto Na-
cional de Saúde (N1H), em 1998, o Instituto Nacional de Abuso de Drogas
parou de financiar seu trabalho. Em 2000, quando Joseph Glenmullen,
professor clínico de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade
Harvard, escreveu Prozac Backlash [O efeito bumerangue do Prozac], que
detalhou os muitos problemas associados ao uso de ISRS a farmacêutica
Eli Lilly montou uma campanha para desacreditá-lo. Uma empresa de re-
lações públicas recolheu comentários críticos de vários psiquiatras
eminentes, que descartaram Glenmullen como um “joão-ninguém” da
profissão, depois enviou essas “críticas” a vários jornais. “E um livro deso-
nesto, é manipulador, é pernicioso”, disse o psiquiatra Jerrold Rosen-
baum, da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, embora fosse
colega de Glenmullen. Naturalmente, o comunicado à imprensa não men-
cionou que Rosenbaum era consultor da Eli Lilly. A vítima seguinte a ser
levada ao talho foi Gretchen LeFever, uma psicóloga da Faculdade de Me-
dicina da Virginia Oriental. Depois que ela publicou uma pesquisa mos-
trando que um número exageradamente grande de crianças das escolas
virginianas vinha sendo diagnosticado com transtorno do déficit de aten-
ção com hiperatividade (TDAH), um “denunciante” anônimo acusou-a de
má conduta científica. Sua verba federal para a pesquisa foi cortada, seus
computadores foram confiscados e, embora ela tenha sido posteriormente
inocentada de qualquer má conduta, sua carreira foi destruída.
Healy disse: “A faceta de controle do pensamento que se observa nas
coisas da psiquiatria atual é como o antigo estilo de controle social do
Leste Europeu”.

A Ocultação de Provas

O terceiro aspecto do processo de contar histórias que levou à nossa


ilusão social sobre os méritos das drogas psiquiátricas e fácil de
documentar. Imagine como seriam hoje as suas convicções se, nos últimos
vinte anos, tivéssemos aberto os jornais e lido sobre os seguintes resulta-
dos, que representam aqui urna simples amostra dos estudos sobre resul-
tados que examinamos num ponto anterior do livro:
• 1990 - Num grande estudo nacional sobre a depressão, o índice
de permanência em boas condições atingiu seu auge nos pacien-
tes tratados com psicoterapia (30%) e seu ponto mais baixo nos
tratados com um antidepressivo (19%). (NIMH)
• 1992 - Os resultados da esquizofrenia são muito melhores em
países pobres como a índia e a Nigéria, onde apenas 16% dos pa-
cientes são regularmente medicados com antipsicóticos, do que
nos Estados Unidos e noutros países ricos, onde o uso contínuo
de medicação é a norma-padrão de tratamento. (Organização
Mundial da Saúde)
• 1995 - Num estudo de 547 pacientes deprimidos, com duração
de seis anos. os que foram tratados pelo transtorno tiveram sete
vezes mais probabilidade de ficar incapacitados do que os não
tratados, e três vezes mais probabilidade de sofrer uma “cessa-
ção” do seu “papel social principal”. (NIMH)
• 1998 - As drogas antipsicóticas causam alterações morfológicas
no cérebro, que estão associadas a uma piora dos sintomas da
esquizofrenia. (Universidade da Pensilvânia)
• 1998 - Num estudo da Organização Mundial da Saúde sobre os
méritos da triagem da depressão, os diagnosticados e tratados
com medicamentos psiquiátricos saíram-se pior - em termos de
seus sintomas depressivos e de sua saúde geral ao longo de um
período de um ano, do que os não expostos aos medicamentos.
(Organização Mundial da Saúde)
• 1999 - Quando as pessoas que usam benzodiazepinas por longos
períodos abstêm-se desses medicamentos, ficam “mais alertas,
mais relaxadas e menos ansiosas”. (Universidade da Pensilvânia)
• 2000 - Estudos epidemiológicos mostram que os resultados a
longo prazo entre os atuais pacientes bipolares são dramatica-
mente piores do que foram na era pré- medicamentos, e é prová-
vel que essa deterioração dos resultados modernos se deva aos
efeitos nocivos de antidepressivos e antipsicóticos. (Eli Lilly, Fa-
culdade de Medicina da Universidade Harvard)
• 2001 - Num estudo com 1.281 canadenses que recebiam pensão
por invalidez temporária em decorrência da depressão, 19% dos
que tomaram algum antidepressivo terminaram com invalidez
permanente, versus 9% dos que não tomaram a medicação. (In-
vestigadores canadenses)
• 2001 - Na era pré-medicamentos, os pacientes bipolares não
sofriam um declínio cognitivo a longo prazo, mas, hoje em dia,
acabam quase tão prejudicados na área cognitiva quanto os pa-
cientes esquizofrênicos. (Sistemade Saúde Sheppard Pratt, em
Baltimore).
• 2004 - Os usuários de benzodiazepinas por períodos prolongados
sofrem déficits cognitivos de dimensão “moderada a grande”. (Ci-
entistas australianos)
• 2005 - O pó de anjo, as anfetaminas e outras drogas que indu-
zem à psicose, todos aumentam os receptores cerebrais D,; os
antipsicóticos causam essa mesma mudança no cérebro. (Uni-
versidade de Toronto)
• 2005 - Num estudo com duração de cinco anos com 9.508 paci-
entes deprimidos, os que tomavam antidepressivos ficavam sin-
tomáticos, em média, 19 semanas por ano, em contraste com as
11 semanas dos que não tomavam nenhuma medicação. (Uni-
versidade de Caigan’).
• 2007 - Num estudo com duração de 15 anos, 40% dos pacientes
esquizofrênicos sem antipsicóticos se recuperaram, em contraste
com 5% dos pacientes medicados. (Universidade de Illinois)
• 2007 - Os usuários de benzodiazepinas a longo prazo acabam
“marcantemente enfermos a extremamente enfermos*', e sofrem
habitualmente com sintomas de depressão e ansiedade. (Cientis-
tas franceses)
• 2007 - Num grande estudo de crianças com diagnóstico de
TDAH, ao final do terceiro ano “o uso de medicamentos foi um
marcador significativo não de resultados benéficos, mas de dete-
rioração". As crianças medicadas também exibiram maior proba-
bilidade de apresentar comportamentos delinquentes; e também
terminaram ligeiramente mais baixas. (N1MH)
• 2008 - Num estudo nacional de pacientes bipolares, o principal
preditor de resultados precários foi a exposição a antidepressi-
vos. Os que tomaram um antidepressivo mostraram-se quase
quatro vezes mais propensos a passar a ter ciclos rápidos, o que
está associado a resultados precários a longo prazo. (NIMH)
Uma verificação dos arquivos de jornais revela que a corrente domi-
nante da psiquiatria teve completo êxito em esconder essas informações
do público. Procurei relatos dos estudos acima nos arquivos do New York
Times e no banco de dados LexisNexis, que abrange a maioria dos jornais
norte-americanos, e não consegui encontrar um único caso em que os
resultados tivessem sido descritos com exatidão1.
Os jornais, é claro, teriam prazer em divulgar esses resultados de estu-
dos. Entretanto, as notícias da medicina são tipicamente geradas da se-
guinte maneia as publicações científicas, o NIH, as faculdades de medicina
e as companhias farmacêuticas emitem comunicados à imprensa, enalte-
cendo certos resultados como importantes, e então os repórteres fazem
uma triagem dos comunicados, para identificar aqueles sobre os quais
creem que vale a pena escrever. Quando não são feitos comunicados à im-
prensa, ou não há outro esforço da comunidade médica para divulgar re-
sultados, não aparecem reportagens. Podemos até documentar a ação
desse processo de blecaute no modo como o NIMH lidou com o estudo de
resultados feito por Martin Harrow. Em 2007, ano cm que ele divulgou
seus resultados no Journal of Nervous and Mental Disease, o NIMH emitiu
89 comunicados à imprensa, muitos deles sobre assuntos irrelevantes.
Mas não emitiu nenhum sobre os resultados de Harrow, embora se pu-
desse argumentar que o estudo dele era o melhor que já se fizera nos Es-
tados Unidos, em todos os tempos, sobre resultados a longo prazo em pa-
cientes esquizofrénicos. É lícito dizer que, se os resultados tivessem sido o
inverso, o NIMH teria soado o gongo dos comunicados de imprensa e os
jornais do país inteiro teriam alardeado as descobertas.
Embora informações sobre a maioria dos estudos listados acima sim-
plesmente nunca tenham aparecido nos jornais, houve uns dois casos cm
que os psiquiatras foram forçados a dizer alguma coisa aos repórteres so-
bre um dos estudos, c, cm ambas as vezes, eles distorceram os resultados.
Por exemplo, quando o NIMH anunciou os resultados de três anos do seu
estudo MTA sobre os tratamentos para o TDAH, não informou ao público
que o uso de estimulantes durante o terceiro ano tinha sido um “marcador
de deterioração”. Em vez disso, emitiu um comunicado à imprensa com
esta manchete: melhora posterior a tratamento do TDAH. É mantida na
maioria das crianças. Essa manchete dava conta de fármacos que tinham
sido benéficos, e, embora o texto do comunicado afirmasse que “a medica-
ção contínua não mais se associou a resultados melhores no terceiro ano”,

1 Nas críticas jornalísticas ao meu livro Mad in America, houve quem mencionasse o estudo da OMS
sobre os resultados melhores para a esquizofrenia nos países pobres, nos quais os pacientes não
eram regularmente medicados, e a partir daí. esta informação tornou-se mais ou mea» conhecida.
Além disso, mencionei o estudo de Martin Harrow sobre a esquizofrenia, com duração de 15 anos,
numa palestra que fiz no Holy Cross College em fevereiro de 2009, e ela levou a um artigo datado
de 8 de fevereiro de 2009 no Worcester Telegram and Gazette (Massachussetts), que discutiu o tra-
balho de Harrow. Foi a primeira vez que apareceram notícias sobre esse estudo em qualquer jornal
norte-americano.
também incluiu uma citação “pré-fabricada” do autor principal, Peter Jen-
sen, afirmando que ainda havia muitas razões para manter as crianças
medicadas com Ritalina. “Nossos resultados sugerem que a medicação
pode fazer diferença a longo prazo para algumas crianças, se for mantida
com intensidade ótima, e não iniciada ou acrescentada muito tardiamente
no curso da história clínica da criança."
Se quisermos dar outra olhada nesse processo de deturpação, pode-
mos nos voltar para um artigo de 1998, no Ne«’ York Times, que falou ra-
pidamente do estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os
resultados da esquizofrenia em países ricos e pobres. Depois de entrevistar
psiquiatras sobre o estudo, o repórter do Times escreveu que “os esquizo-
frênicos, de modo geral, respondiam melhor ao tratamento nos países me-
nos desenvolvidos do que em países com maior desenvolvimento tecnoló-
gico”. Respondiam melhor ao tratamento: os leitores só poderiam supor
que os pacientes esquizofrênicos da índia e da Nigéria respondiam melhor
aos antipsicóticos do que os pacientes dos Estados Unidos e outros países
ricos. Não tinham como saber que o “tratamento” de 84% de pacientes es-
quizofrênicos nos países pobres consistia em não usar medicação.
Em julho de 2009, também vasculhei os sites do NIMH e da NAMI na
internet, cm busca de alguma referência aos estudos listados acima, e não
achei bulhufas. Por exemplo, o site do NIMH não discutiu o notável declí-
nio dos resultados dos pacientes bipolares nos tempos modernos, muito
embora Carlos Zarate, coautor do artigo de 2000 que documentou esse de-
clínio, chefiasse a unidade de pesquisas do NIMH sobre transtornos do
humor e da ansiedade em 2009. Do mesmo modo, o site da NAMI não deu
informação alguma sobre o estudo de Harrow, apesar de ele fornecer ra-
zões para os pais de crianças esquizofrênicas serem otimistas - 40% dos
pacientes sem medicação tinham se recuperado a longo prazo! Mas esse
resultado contradizia diretamente a mensagem que a NAMI difundia para
o público fazia décadas, e o site da organização continua a se ater àquela
mensagem. Os antipsicóticos, ele informa ao público, “corrigem um dese-
quilíbrio das substâncias químicas que permitem que os neurônios se co-
muniquem entre si”.
Por fim, toda a história de resultados documentada neste livro foi omi-
tida da edição de 2008 do Manual de Psiquiatria da APA, o que significa
que os estudantes de medicina que estão se preparando para ser psiquia-
tras são mantidos no escuro a respeito dessa história. O livro não discute
a “psicose por hipersensibilidade". Não menciona que os antidepressivos
podem ser agentes depressogênicos a longo prazo. Não informa que os
resultados do transtorno bipolar são muito piores hoje do que eram há
quarenta anos. Não há discussão sobre os índices crescentes de invalidez.
Não se fala na deterioração cognitiva que é observada nos usuários de
longa data de medicamentos psicotrópicos. Os autores do manual estão
claramente familiarizados com muitos dos 16 estudos aqui listados, po-
rém, se é que os mencionam, não discutem os fatos relevantes sobre o uso
de medicamentos. O estudo de longo prazo de Harrow, afirma o manual,
revela que há alguns pacientes esquizofrênicos que “são capazes de funci-
onar sem o benefício do tratamento contínuo com antipsicóticos”. Os auto-
res dessa frase não mencionaram a espantosa diferença dos índices de re-
cuperação dos grupos medicado e não medicado; ao contrário, enuncia-
ram uma frase que fala do beneficiado tratamento contínuo com antipsicó-
ticos. De maneira similar, embora o manual discuta sucintamente o es-
tudo da OMS sobre os resultados melhores dos pacientes esquizofrênicos
em países pobres, como a índia e a Nigéria, ele não menciona que os paci-
entes desses países não eram regularmente medicados com antipsicóticos.
Numa parte referente às benzodiazepinas, os autores reconhecem que
há preocupações a respeito de suas propriedades viciadoras, mas logo afir-
mam que os resultados a longo prazo dos que mantêm o uso das benzodi-
azepinas geralmente são bons, pois a maioria dos pacientes "preserva seus
ganhos terapêuticos”.
Há uma história que a psiquiatria não se atreve a contar, e que mostra
que nossa ilusão social sobre os benefícios dos medicamentos psiquiátri-
cos não é inteiramente inocente. Para vender à nossa sociedade a solidez
dessa forma de tratamento, a psiquiatria teve de exagerar grosseiramente
o valor de suas novas drogas, silenciar os críticos e manter escondida a
história dos resultados precários a longo prazo. Esse é um processo deli-
berado e consciente, e o próprio fato de a psiquiatria ter tido que empregar
esses métodos de invenção de histórias diz muito sobre os méritos desse
paradigma de atendimento, muito mais do que qualquer estudo isolado
conseguiria fazer.
15.
CONTABILIZANDO OS LUCROS

“Receber cheques de 750 dólares para conversar com alguns médicos du-
rante um intervalo de almoço era um dinheiro tão fácil que me deixara
zonzo”. - Psiquiatra Daniel Cariat, 2007
O trajeto da residência comunitária da Jenna, em Montpelier, no es-
tado de Vermont, até a avenida Central de sua cidade tem apenas dois
quarteirões, mas, no fim da manhã de primavera em que a visitei, levamos
vinte minutos para percorrer essa distância, porque ela precisava parar a
cada meia dúzia de passos para recuperar o equilíbrio, enquanto seu aten-
dente, Chris, punha a mão atrás das costas dela a todo momento, para
ampará-la se ela caísse1. Jenna havia tomado um antidepressivo pela pri-
meira vez 12 anos antes, quando tinha 15, e agora tomava um coquetel di-
ário de oito medicamentos, inclusive um para os sintomas parkinsonianos
induzidos pela medicação. Sentamo-nos na área externa de um café e
Jenna me contou sua história, se bem que, em alguns momentos - por
causa dos seus problemas com o controle motor -, era difícil entendê-la.
Seus tremores são tão intensos que, quando ela molhou o pãozinho no
café, o líquido derramou e ela teve dificuldade de levar o pão à boca.
“Eu sou muuuuuuito atrapalhada”, comentou.
Eu tinha ido para essa entrevista achando que Jenna havia recebido
um diagnóstico de discinesia tardia, um efeito colateral dos antipsicóticos
que pode incapacitar as pessoas. Mas não estava claro se os seus prejuí-
zos motores se deviam a esse tipo particular de disfunção medicamentosa
ou a um processo mais idiossincrático, relacionado com os medicamentos;
e mais, terminada a entrevista, Jenna havia levantado uma nova questão
sobre a qual eu deveria pensar. Ela me falou de como os psiquiatras e ou-
tros profissionais da saúde mental sempre resistiram a ver qualquer de
suas dificuldades físicas ou emocionais como causadas por medicamen-
tos; em vez disso, culpavam regularmente a doença dela por tudo e. do
ponto de vista de Jenna, esse era um processo de raciocínio ditado por in-
teresses econômicos. Se eu quisesse compreender o tratamento que ela re-
cebia, teria de compreender que ela era valiosa para as companhias far-
macêuticas como “consumidora" dos seus remédios. “Ninguém”, explicou

1 Embora Jenna tenha dito que eu poderia usar seu sobrenome, sua mãe e seu padrasto, que detêm
sua guarda legal, pediram que cu usasse apenas o prenome.
Chris, “abordou o fato d que os remédios podem estar causando os proble-
mas dela.”
A primeira vez que Jenna foi exposta a uma droga psiquiátrica ocorreu
quando ela estava na segunda série, e esse episódio sugeriu que ela não
responderia bem a psicotrópicos. Até aquele momento, ela fora uma me-
nina saudável, uma estrela da equipe local de natação; mas depois havia
apresentado convulsões e, ao ser medicada com um agente anticonvulsivo,
desenvolvera graves problemas motores, como me contou sua mãe numa
entrevista telefônica. Mas as convulsões acabaram desaparecendo c,
quando Jenna parou de tomar o anticonvulsivante, os problemas motores
se foram. A menina passou a praticar equitação e se destacou cm torneios
de hipismo. “Ela voltou a ser totalmente normal”, lembrou sua mãe.
Quando Jenna entrou na nona série, a mãe e o padrasto resolveram
mandá-la para um colégio interno de elite no Massachussetts, por não te-
rem confiança nas escolas públicas do Tennessee, e foi então que começa-
ram os problemas comportamentais e afetivos da menina. Ela foi expulsa
dessa primeira escola e mandada para uma segunda, destinada a adoles-
centes problemáticos, onde “se encantou com toda aquela tralha gótica” e
começou a “se portar mal” sexualmente, no dizer da mãe. Depois, uma
noite, em resposta a um desafio, ela furtou uma embalagem de preservati-
vos de uma farmácia e “pirou” ao ser detida. Nesse momento, foi mandada
para um terceiro colégio interno e medicada com Paxil.
“No minuto em que tomou aquele remédio, ela começou a tremer”, con-
tou a mãe. “Eu disse ao médico: ‘Ai, meu Deus, é do remédio’. E o médico
disse: ‘Ah, não, não é do remédio’. Eu respondi: ‘E, sim’. Fomos passando
de um médico para outro, fazendo exame após exame, mas eles não con-
seguiam encontrar nada, e por isso a mantinham com a medicação, o que
piorava tudo. Eles simplesmente não me davam ouvidos.”
Além dos tremores, Jenna tornou-se suicida ao tomar Paxil, e sua vida
não tardou a se transformar num pesadelo psiquiátrico. Ela começou a se
cortar com regularidade e, a certa altura, usou uma serra elétrica para de-
cepar o dedo médio da mão esquerda. O Paxil deu lugar a coquetéis de
Klonopin, Depakote, Zyprexa e outros medicamentos e, durante uma es-
tada de quase quatro anos num manicômio, ela acabou com um coquetel
de cerca de 15 remédios, tão dopada que nem sequer sabia onde estava.
“Não sei a data exata", disse Jenna, resumindo essa história, “mas, aos
poucos, minha fala e minha marcha e meu equilíbrio e os tremores fica-
ram mesmo um horror, naquele hospital. E eles só continuavam a
acrescentar remédios. Pra ver como têm me-me-merda na cabeça."
Atualmente, os problemas psiquiátricos de Jenna continuam graves.
No dia cm que nos encontramos, ela estava com o pulso enfaixado e fazia
pouco tempo que tentara se cortar, de modo que os medicamentos tam-
bém não foram de grande ajuda nesse aspecto. Mas, disse ela, “não vejo
nada diferente acontecendo. Já falei de suspenderem meus remédios bi-
lhões de vezes".
Antes de deixarmos nossa mesa da calçada, Chris me forneceu os de-
talhes do coquetel diário da Jenna: dois antidepressivos, um antipsicótico,
uma benzodiazepina, um remédio para o mal de Parkinson e outros três
para problemas físicos, provavelmente relacionados com as drogas psiqui-
átricas. Mais tarde, calculei que, mesmo sendo receitados genéricos sem-
pre que possível, ela consumia 800 dólares mensais de medicamentos, ou
cerca de 10.000 dólares por ano. Fazia 12 anos que usava a medicação
psiquiátrica, o que significa que sua conta de receitas desses medicamen-
tos talvez já tenha ultrapassado 100 mil dólares; além disso, dado que ela
deverá continuar com os remédios pelo resto da vida, essa conta poderá
acabar bem acima dos 200 mil dólares.
“Estão ganhando uma fortuna comigo”, disse Jenna. “Mas esses remé-
dios estragaram a minha vida. Eles me deixam toda fe-fe-fe-ferrada.”

Uma Vitória Comercial

A visão que Jenna tem do seu atendimento não é inusitada. Muitas


das pessoas que entrevistei e que recebem auxílio da Renda Complemen-
tar da Previdência (SSI) e do Seguro da Previdência Social por Invalidez
(SSDI) falaram de como se sentem apanhadas nas malhas de uma emprei-
tada comercial. “Não é à toa que nos chamam de consumidores”, eis um
comentário que ouvi diversas vezes. Elas têm razão, é claro, em dizer que
as companhias farmacêuticas querem construir um mercado para seus
produtos, e quando olhamos a “revolução” farmacológica por esse prisma,
primeiro como iniciativa empresarial, depois como iniciativa médica, pode-
mos facilmente ver por que a psiquiatria e as empresas farmacêuticas con-
tam as histórias que contam, e por que os estudos que detalham os resul-
tados ruins a longo prazo foram escondidos do público. Essas informações
detalhariam uma empreitada comercial que dá lucro a muita gente.
Como já vimos, durante a década de 1970, a psiquiatria estava preocu-
pada com sua sobrevivência. O público via suas terapias como “de baixa
eficácia" t as vendas de medicamentos psiquiátricos estavam em declínio.
Depois, no que se poderia chamar de um esforço de “reformulação da ima-
gem”, a psiquiatria publicou o DSM-III e começou a dizer ao público que
os transtornos mentais eram doenças “reais”, como o diabetes e o câncer,
e que seus medicamentos eram antídotos químicos contra essas doenças,
tal como “a insulina para o diabetes". Essa história, embora possa ter sido
falsa, criou uma poderosa estrutura conceituai para a venda de toda sorte
de drogas psiquiátricas. Todos podiam compreendera metáfora do dese-
quilíbrio químico e, quando o público passou a entender essa noção, tor-
nou-se relativamente simples, para as companhias farmacêuticas e seus
aliados contadores de histórias, criar mercados para vários tipos de fárma-
cos psiquiátricos. Eles bancaram campanhas “educativas” para tornar o
público mais “consciente” das várias doenças para as quais os remédios
eram aprovados e, ao mesmo tempo, ampliaram as fronteiras diagnósticas
dos distúrbios mentais.
Uma vez introduzido o Prozac, a campanha DART (Depression Awarc-
ness, Recognition and Treatment) do Instituto Nacional de Saúde Mental
(NIMH) informou ao público que a depressão era comumente “não diag-
nosticada e não tratada”. A Upjohn associou-se à Sociedade Norte-Ameri-
cana de Psiquiatria (APA) para dizer ao público que a “síndrome do pânico”
era um mal comum. Em 1990, o NIMH lançou sua Década do Cérebro, di-
zendo ao público que 20% dos norte-americanos sofriam de transtornos
mentais (e portanto, poderiam estar necessitados de medicação psiquiá-
trica). Em pouco tempo, grupos psiquiátricos e outros passaram a promo-
ver “programas de triagem” que, na perspectiva empresarial, melhor se
descreveriam como esforços de recrutamento de clientela. A Aliança Nacio-
nal Contra a Doença Mental (NAMI), por sua vez, compreendeu que seus
esforços “educativos” serviam a um propósito comercial e, num docu-
mento do ano 2000 que apresentou ao governo, escreveu que “os presta-
dores de serviços, os planos de saúde e as companhias farmacêuticas que-
rem ampliar seus mercados e aumentar sua participação no mercado. (...)
A NAMI cooperará com essas entidades para ampliar o mercado, conscien-
tizando as pessoas dos problemas que envolvem os transtornos cerebrais
graves”.
A APA é encarregada de definir as categorias diagnósticas na nossa so-
ciedade, e o DSM-IV, um volume de 886 páginas publicado em 1994, lis-
tou 297 transtornos. Os diagnósticos novos e ampliados convidam mais
pessoas para a farmácia psiquiátrica, e um dos melhores exemplos desse
tipo de construção de mercado ocorreu em 1998, quando a
GlaxoSmithKline conseguiu que a EDA aprovasse o Paxil para o “trans-
torno de ansiedade social". No passado, isso poderia ser percebido como
um traço de caráter (timidez), mas a GlaxoSmithKline contratou uma em-
presa de relações públicas, a Cohn & Wolfe, para promover a conscientiza-
ção em torno dessa “doença” recém-reconhecida, e os jornais e programas
de televisão não tardaram a dizer que o TAS afetava 13% da população
norte-americana, o que o tornou “o terceiro transtorno psiquiátrico mais
comum nos Estados Unidos, depois da depressão e do alcoolismo”. Os in-
divíduos afetados pela doença, o público foi informado, eram, de certa ma-
neira, biologicamente “alérgicos a gente".’
Mudanças no diagnóstico também estiveram por trás da explosão de
crescimento do transtorno bipolar. No DSM-III (1980), esse distúrbio foi
identificado pela primeira vez (a antiga coorte de maníaco-depressivos foi
fragmentada em grupos diferentes) e, depois, a psiquiatria foi afrouxando
sistematicamente as fronteiras diagnósticas da doença, a tal ponto que,
hoje, ela fala em transtorno bipolar I. transtorno bipolar II e numa “bipola-
ridade intermediária entre o transtorno bipolar e a normalidade”. Dizem
que essa doença, antes rara, aflige de 1% a 2% da população adulta e, se
contarmos a turma bipolar “intermediária”, 6%. À medida que essa expan-
são diagnostica aconteceu, as companhias farmacêuticas e seus aliados
montaram suas campanhas “educativas” de praxe. A Abbott Laboratories
e a NAMI se juntaram para promover um Dia da Conscientização Bipolar;
em 2002, a Eli Lilly uniu-se à Aliança de Apoio a Depressivos e Bipolares
para lançar um novo endereço on-line: bipolarawareness.com. Atual-
mente, muitos sites da internet oferecem aos visitantes um teste rápido de
perguntas e respostas, para eles verificarem se têm essa doença.
Naturalmente, as companhias farmacêuticas querem vender seus pro-
dutos a pessoas de todas as idades, e construíram passo a passo o mer-
cado pediátrico dos psicotrópicos. Primeiro, na década de 1980, decolou a
prescrição de estimulantes para “hiperativar” as crianças. Depois, no co-
meço dos anos 1990, os psiquiatras começaram a receitar inibidores sele-
tivos de recaptação da serotonina (1SRS) com regularidade a adolescentes.
Mas isso significou que essas novas drogas miraculosas não estavam
sendo receitadas a crianças pré-púberes, e assim, em 1997, o Wall Street
Journal informou que os fabricantes de ISRS estavam “visando a um novo
e controvertido mercado: as crianças”. As companhias farmacêuticas esta-
vam “preparando seus medicamentos cm formatos fáceis de engolir, que
serão mais palatáveis até para a meninada mais miúda”, disse o jornal;
enquanto isso, a Eli Lilly estava formulando um Prozac "líquido, sabor
hortelã", a ser tomado por criancinhas. O New York Times, em sua cober-
tura dessa iniciativa, explicou o% muita clareza o que a estava impulsio-
nando: “O mercado adulto [dos ISRSJ está saturado. (...) As companhias
buscam agora ampliar os mercados”? A psiquiatria forneceu prontamente
um respaldo médico a esse esforço de comercialização, com a Academia
Norte-Americana de Psiquiatria da Infância e da Adolescência anunciando
que 5% de todas as crianças dos Estados Unidos sofriam de depressão clí-
nica. “Muitos desses jovens pacientes de hoje são insuficientemente tra-
tada, dizem os especialistas, o que amiúde leva a problemas afetivos e
comportamentais a longo prazo, ao abuso de drogas ou ate ao suicídio",
informou o Wall Street Journal.
A criação do mercado “bipolar juvenil" foi um pouco mais complicada.
Antes dos anos 1990, a psiquiatria achava que o transtorno bipolar sim-
plesmente não ocorria cm crianças pré-púberes, ou era extremamente
raro. Mas as crianças t adolescentes a quem se receitavam estimulantes e
antidepressivos comumente sofriam de episódios maníacos, e assim pedia-
tras e psiquiatras começaram a ver mais jovens com sintomas “bipolares".
Ao mesmo tempo, depois que a Janssen e a Eli Lilly introduziram seus an-
tipsicóticos atípicos no mercado, ambas estavam procurando um modo de
vender esses fármacos às crianças, e, durante a década de 1990, Joseph
Biederman. do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, forneceu o
arcabouço diagnóstico que possibilitava essa medida. Em 2009, ao prestar
depoimento numa ação judicial, ele explicou seu trabalho.
Todos os diagnósticos psiquiátricos, disse Biederman, “são subjetivos,
nas crianças e nos adultos". Assim, ele e seus colegas decidiram que as
crianças que antes eram vistas como quem tem problemas comportamen-
tais acentuados deveriam, em vez disso, ser diagnosticadas como portado-
ras de transtorno bipolar juvenil. “As condições que vemos diante de nós
foram reconceituadas”. depôs. “Esses jovens eram chamados, antiga-
mente, de portadores de transtornos da conduta, de transtorno desafiador
opositivo. Não é que eles não existissem, apenas eram identificados por
nomes diferentes."' Biederman e seus colegas decidiram que a “extrema ir-
ritabilidade" ou as “tempestades afetivas” seriam os sinais reveladores do
transtorno bipolar juvenil, e, tendo à mão esses novos critérios diagnósti-
cos, anunciaram, em 1996, que muitas crianças e jovens diagnosticados
com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) eram, na
verdade, “bipolares", ou então “comórbidos”, tendo as duas doenças.' Esse
transtorno era “uma patologia muito mais comum do que se supusera an-
tes”, amiúde surgindo quando as crianças tinham apenas 4 ou 5 anos, no
dizer de Bicderman1. Pouco depois, os pais dos Estados Unidos estavam
lendo matéria de jornais sobre essa doença recém-reconhecida e com-
prando The Bipolar ChiId [criança bipolar], livro lançado pela Random
House no ano 2000. Enquanto isso, psiquiatras da infância começaram a
tratar a doença com antipsicóticos atípicos.
Foi essa a máquina mercadológica que atraiu mais e mais norte-ameri-
canos para a farmácia psiquiátrica. A medida que novos medicamentos
eram introduzidos no mercado, conduziam-se campanhas de “conscienti-
zação” das doenças e se ampliavam as categorias diagnósticas. Ora, de-
pois que uma empresa atrai um cliente para sua loja, ela quer conservá-lo
e fazê-lo comprar múltiplos produtos, e é nessa hora que entra cm ação a
“armadilha das drogas" psiquiátricas.
A história do “cérebro avariado” ajuda na retenção da clientela, é claro,
porque, se a pessoa sofre de um “desequilíbrio químico”, faz sentido que
cia tenha de tomar indefinidamente a medicação que o corrige, como “a in-
sulina para o diabetes”. Mais importante, porém, é que os remédios criam
desequilíbrios químicos no cérebro, e isso ajuda a transformar um cliente
de primeira compra num usuário a longo prazo c, muitas vezes, num com-
prador de múltiplas drogas. O cérebro do paciente se adapta ao primeiro
medicamento, e isso lhe dificulta deixar a medicação. E difícil passar pela
estreita porta de saída da loja, por assim dizer. Ao mesmo tempo, como as
drogas psiquiátricas perturbam o funcionamento normal, e comum causa-
rem problemas físicos e psiquiátricos, e isso prepara o terreno para a poli-
farmácia. A criança hiperativa é medicada com um estimulante que a des-
perta durante o dia; à noite, ela precisa de um sonífero para dormir. Um
antipsicótico atípico faz a pessoa sentir-se deprimida e letárgica; o psiquia-
tra pode receitar um antidepressivo para tratar esse problema. Inversa-
mente, um antidepressivo pode provocar um surto maníaco; nesse caso,
pode-se receitar um antipsicótico atípico para reduzir a mania. O primeiro
remédio desencadeia a necessidade do segundo, e assim por diante.
A Eli Lilly chegou até a capitalizar nesse fato, ao introduzir o Zyprexa
no mercado. Como se sabia, o Prozac e outros ISRS podiam provocar sur-
tos maníacos, e assim a empresa instruiu seus representantes de vendas
a dizerem aos psiquiatras que o Zyprexa “é um ótimo estabilizador do

1
Durante o depoimento de Bicderman, cm 26 de fevereiro de 2009, um advogado lhe perguntou sobre sua
posição na Faculdade de Medicina da Universidade Harvard. “Professor titular", respondeu ele. “O que há
acima disso?", indagou o advogado. “Deus", disse Biederman.
humor, sobretudo para pacientes cujos sintomas tiverem sido agravados
por um ISRS”. Em síntese, a Eli Lilly estava dizendo aos médicos que re-
ceitassem seu segundo medicamento para consertar os problemas psiqui-
átricos causados pelo primeiro. também podemos ver esse eleito em cas-
cata funcionando no nível social. Os 1SRS entraram no mercado e, de re-
pente, começaram a surgir pacientes bipolares por toda parte, e então esse
novo grupo de pacientes proporcionou um mercado para os antipsicóticos
atípicos1.
Tudo isso produziu uma indústria crescente, de dimensões impressio-
nantes. Em 1985, as vendas de antidepressivos e antipsicóticos a pacien-
tes ambulatoriais nos Estados Unidos corresponderam a 503 milhões de
dólares." Vinte e três anos depois, as vendas de antidepressivos e antipsi-
cóticos no país atingiram 24,2 bilhões de dólares, um aumento de quase
cinquenta vezes. Os antipsicóticos-uma classe de medicamentos antes vis-
tos como de tipo extremamente problemático- foram a classe de drogas
produtoras da receita mais alta em 2008, à frente até mesmo dos agentes
redutores do colesterol. O total de vendas de todos « psicotrópicos em
2008 ultrapassou 40 bilhões de dólares. Hoje - e isto mostra como a far-
mácia ficou abarrotada um em cada oito norte-americanos toma regular-
mente um medicamento psiquiátrico.

A Arvore do Dinheiro

Naturalmente, essa próspera empreitada comercial gera grande ri-


queza pessoal para os executivos das companhias farmacêuticas, e o di-
nheiro também flui em volumes bastante copiosos para os psiquiatras
acadêmicos que promovem os medicamentos produzidos por aquelas. De
fato, os lucros dessa empreitada se distribuem entre quase todos os que
contam à nossa sociedade a história de que “as drogas psiquiátricas são
boas”. Para termos uma ideia dos valores envolvidos, podemos dar uma
olhada no dinheiro recebido pelos diversos agentes dessa iniciativa.
Podemos começar pela Eli Lilly, já que ela serve como um bom exemplo
dos lucros que vão para os acionistas e os executivos de uma fabricante de

1 Numa linha semelhante, as companhias farmacêuticas aproveitaram o fato de muitas das drogas
inicialmente receitadas para um sintoma-alvo não funcionarem muito bem. "Duas em cada ira
pessoas tratadas de depressão continuam a apresentar sintomas”, informou aos telespectadores
um comercial de televisão da Bristol-Myers Squibb em 2009. Solução? Acrescente à mistura um
antipsicótico atípico, o Abilify.
medicamentos.
Eli Lilly
Em 1987, a divisão farmacêutica da Eli Lilly gerou unia receita de 2,3
bilhões de dólares. A companhia não tinha uma droga importante para o
sistema nervoso central, visto que seus três fármacos mais vendidos eram
um antibiótico oral, um remédio cardiovascular e um produto à base de
insulina. A Eli Lilly começou a vender o Prozac cm 1988 c, quatro anos de-
pois, ele se tornou o primeiro produto de um bilhão de dólares da em-
presa. Em 1996, a Eli Lilly pôs o Zyprexa no mercado, e ele se tornou uni
remédio de um bilhão de dólares em 1998. No ano 2000, esses dois produ-
tos responderam por quase metade da receita de 10,8 bilhões de dólares
da empresa.
Pouco depois, o Prozac perdeu a proteção de sua patente, de modo que
a melhor maneira de avaliar os efeitos geradores de riqueza dos dois medi-
camentos e considerar o período de 13 anos entre 1987 e 2000. Durante
esse intervalo, o valor da Eli Lilly na Wall Street subiu de 10 bilhões para
90 bilhões de dólares. Um investidor que comprasse 10 mil dólares de
ações da companhia em 1987 veria esse investimento elevar-se para
96.850 dólares em 2000 e, ao longo do caminho, teria recebido mais 9.720
dólares de dividendos. Ao mesmo tempo, os executivos e empregados da
farmacêutica, além de seus salários e bonificações, tiveram um lucro lí-
quido de aproximadamente 3,1 bilhões de dólares com as opções de com-
pra de ações que fizeram.
Psiquiatras acadêmicos
As companhias farmacêuticas não teriam conseguido construir um
mercado de 40 bilhões de dólares para as drogas psiquiátricas sem a
ajuda de psiquiatras de centros médicos acadêmicos. O público recorre
aos médicos para se informar sobre as doenças e sobre a melhor maneira
de tratá-las, de modo que foram os psiquiatras acadêmicos - pagos pela
indústria farmacêutica para servir de assessores em diretorias consulti-
vas, bem como de palestrantes - que atuaram, essencialmente, como ven-
dedores dessa iniciativa comercial. As companhias farmacêuticas, em seus
memorandos internos, chamam esses psiquiatras, de uma forma precisa,
de “grandes líderes formadores de opinião”, ou LFOs, para encurtar.
Graças a uma investigação promovida em 2008 pelo senador Charles
Grassley, o público teve uma ideia do montante de dinheiro pago pelas
empresas farmacêuticas a seus LFOs. Os psiquiatras acadêmicos recebem
regularmente verbas federais dos Institutos Nacionais de Saúde [NIH] e,
nessas condições, são solicitados a informar a suas instituições quanto re-
cebem das companhias farmacêuticas, havendo a expectativa de que as
faculdades de medicina lidem com o “conflito de interesses” sempre que
esse valor ultrapassar 10.000 dólares anuais. Grassley investigou os regis-
tros de cerca de vinte psiquiatras acadêmicos e descobriu que eles não
apenas ganhavam muito mais do que 10.000 dólares por ano. como tam-
bém escondiam esse fato de suas universidades.
Eis alguns exemplos dos valores pagos a LFOs na psiquiatria:
• De 2000 a 2007, Charles Nemcroff, chefe do departamento de
psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Emory,
em Atlanta, ganhou pelo menos 2,8 milhões de dólares como pa-
lestrante e consultor de empresas farmacêuticas, tendo recebido
só da GlaxoSmithKline 960.000 dólares para promover o Paxil e
o Wellbutrin. Ele é coautor do Manual de Psicofarmacologia da
APA, o livro didático mais vendido nesse campo. Também escre-
veu um livro de divulgação sobre medicamentos psiquiátricos,
The Peace of Mind Prescription [A receita da paz de espírito], des-
tinado ao público em geral. Participou do conselho editorial de
mais de sessenta publicações da área médica e, durante algum
tempo, foi editor-chefe da revista Neuropsychopharmacology. Em
dezembro de 2008, renunciou ao cargo de diretor do departa-
mento de psiquiatria da Emory, por não ter dado informações à
universidade sobre os pagamentos que havia recebido de empre-
sas farmacêuticas.
• Zachary Stowe, também professor de psiquiatria na Emory, rece-
beu 250.000 dólares da GlaxoSmithKline em 2007 e 2008, em
parte para promover o uso do Paxil por mulheres lactantes. A
Emory o “repreendeu” por não ter revelado adequadamente esses
pagamentos à universidade.
• Outro membro da central de palestrantes da GlaxoSmithKline foi
Frederick Goodwin, um ex-diretor do NIMH. A companhia lhe pa-
gou 1,2 milhão de dólares de 2000 a 2008, principalmente para
promover o uso de estabilizadores de humor para o transtorno
bipolar (a GlaxoSmithKline vende o Lamictal, que é um desses
estabilizadores). Goodwin é coautor de Doença Maníaco-Depres-
siva: transtorno bipolar e depressão recorrente, o compêndio de
referência sobre essa doença, e durante muito tempo foi também
apresentador de um programa de rádio de grande audiência, The
Infinite Mind [A mente infinita], que era transmitido para todo o
país pelas estações da NPR. Seu programa apresentava debates
rotineiros sobre medicamentos psiquiátricos e, numa transmis-
são de 20 de setembro de 2005, Goodwin avisou que, se as
crianças com transtorno bipolar não fossem tratadas, poderiam
sofrer lesões no cérebro. Goodwin foi palestrante ou consultor de
várias outras empresas farmacêuticas; 1,2 milhão de dólares foi
o que ele recebeu apenas da GlaxoSmithKline. Numa entrevista
ao New York Times, ele explicou que estava apenas “fazendo o
que fazem todos os outros especialistas da área”.
• De 2000 a 2005, Karen Wagner, diretora do departamento de
psiquiatria da infância e da adolescência na Universidade do Te-
xas, recebeu mais de 160.000 dólares da GlaxoSmithKline. Pro-
moveu o uso do Paxil por crianças, e o fez, em parte, sendo coau-
tora de um artigo que relatou falsamente os resultados de um
ensaio pediátrico com esse medicamento.
Num documento confidencial escrito em outubro de 1988, a GlaxoS-
mithKline concluiu que, no referido estudo, o Paxil “não demonstrou uma
diferença estatisticamente significativa do placebo nas medidas primárias
de eficácia”.18 Além disso, cinco dos 93 adolescentes tratados com Paxil
nesse estudo sofreram de “extrema labilidade”, comparados a um no
grupo tratado com o placebo, o que significou que o remédio elevava acen-
tuadamente o risco de suicídio. O estudo havia mostrado que o Paxil não
era seguro nem eficaz nos adolescentes. Entretanto, num artigo de 2001
publicado no Journal of lhe American Academy of Child & Adolescent
Psychiatn, Wagner e outros 21 eminentes psiquiatras da infância afirma-
ram que o estudo havia provado que o Paxil era “geralmente bem tolerado
e eficaz para a depressão grave em adolescentes”.19 Eles não discutiram o
risco de suicídio, nitidamente elevado, e escreveram, em vez disso, que
apenas uma criança tratada com Paxil havia sofrido um evento adverso
grave, desenvolvendo uma “dor de cabeça”. Eliot Spitzer, procurador do
estado de Nova York, processou a GlaxoSmithKline por comercialização
fraudulenta do Paxil para adolescentes, numa ação que foi resolvida fora
dos tribunais.
Ao todo, Wagner foi assessora ou consultora de pelo menos 17 compa-
nhias farmacêuticas. Os 160.000 dólares foram o valor que recebeu ape-
nas da GlaxoSmithKline; ela informou à sua universidade haver recebido
600 dólares.
• De 1999 a 2006, Jeffrey Bostic, um psiquiatra do Hospital Geral
de Massachusetts, em Boston, recebeu mais de 750.000 dólares
da Forest Laboratories, a fim de promover a prescrição de Celexa
e Lexapro para crianças e adolescentes. Fez mais de 350 pales-
tras em 28 estados durante esse período, o que levou um repre-
sentante de vendas da Forest a se gabar: “O dr. Bostic é o cara
em matéria de psiquiatria infantil!”. Em março de 2009, o
governo federal acusou a farmacêutica Forest de comercialização
ilegal desses medicamentos para essa população de pacientes,
alegando que a empresa tinha pagado “propinas, incluindo refei-
ções suntuosas e pagamentos em dinheiro, disfarçados de sub-
venções e honorários de consultoria, para induzir os médicos a
receitarem esses medicamentos”. O dr. Bostic, disse o governo fe-
deral, servira de “principal porta-voz” da companhia nesse es-
quema fraudulento. O governo federal assinalou que a compa-
nhia também tinha deixado de revelar os resultados de um es-
tudo desses fármacos em crianças, o qual havia produzido resul-
tados “negativos”.
• De 2003 a 2007, Melissa DelBello, professora adjunta de psiqui-
atria na Universidade de Cincinnati, recebeu pelo menos
418.000 dólares da empresa farmacêutica AstraZeneca. Promo-
veu a prescrição de antipsicóticos atípicos, inclusive o Seroquel,
da AstraZeneca, para pacientes com transtorno bipolar juvenil.
DelBelIo trabalhou para pelo menos outras sete empresas farma-
cêuticas. “Acredite, não recebo muito” das companhias farma-
cêuticas, disse ao New York Times, antes do relatório de Grass-
ley.22
• Joseph Biederman talvez tenha sido o LFO que mais contribuiu
para ajudar a indústria farmacêutica a construir um mercado
para seus produtos. Em larga medida, o transtorno bipolar juve-
nil foi criação dele, e as crianças e adolescentes assim diagnosti-
cados são comumente tratados com coquetéis de drogas. As
companhias farmacêuticas lhe pagaram 1,6 milhões de dólares
por seus diversos serviços, no período de 2000 a 2007, e grande
parte desse dinheiro veio da Janssen, a divisão da Johnson &
Johnson que vende o Risperdal.
• Biederman também fez a companhia pagar-lhe 2 milhões de dó-
lares, de 2002 a 2005, para criar o Centro Johnson & Johnson
de Psicopatologia Pediátrica no Hospital Geral de Massachu-
setts.2’ Num relatório de 2002, ele expôs francamente os objeti-
vos do centro. Explicou que este era uma “colaboração estraté-
gica” que “impulsionaria os objetivos comerciais da J&J”. Ele e
seus colegas desenvolveriam testes de triagem do transtorno bi-
polar juvenil e depois fariam cursos de EMC (educação médica
contínua) para treinar pediatras e psiquiatras a usá-los. Suas
pesquisas, escreveu, “alertariam os médicos para a existência de
um grande grupo de crianças que poderiam se beneficiar do tra-
tamento com Risperdal”. Além disso, o centro promoveria o en-
tendimento de que “a mania pediátrica evolui para o que alguns
chamaram de mania mista ou atípica na idade adulta, [entendi-
mento este] que dará mais respaldo ao uso crônico do Risperdal,
desde a infância até a idade adulta”1. No passado, assinalou Bie-
derman, que tivera sucesso em levar a medicina a conceber o
TDAH como uma doença “crônica”, e agora faria o mesmo com o
transtorno bipolar? Biederman foi o flautista mágico do trans-
torno bipolar na nossa sociedade, e nesse documento podemos
ver o futuro que ele descortinava para as crianças que recebiam
tal diagnóstico. Elas estavam sendo preparadas para se torna-
rem consumidoras vitalícias de medicamentos psiquiátricos. A
criança diagnosticada com transtorno bipolar seria tratada com
um antipsicótico, e então se poderia esperar que se tornasse do-
ente crônica, o que exigiria uma vida inteira de “tratamentos
agressivos como o Risperdal”. Talvez haja um arquivo, enfurnado
num armário de alguma empresa farmacêutica, que calcule a ex-
pectativa de consumo vitalício de medicamentos psiquiátricos
por uma criança diagnosticada com transtorno bipolar; neste li-
vro, só o que podemos dizer é que toda criança assim diagnosti-
cada é, do ponto de vista empresarial, uma nova Jenna.
O escalão mais abaixo
Os LFOs são as “estrelas” da área, pois são aqueles que “influenciam”
seus pares nos níveis nacional e internacional, mas as companhias farma-
cêuticas também pagam a médicos para promover seus remédios num ní-
vel mais local, no qual esses palestrantes discursam em jantares ou falam
com outros médicos em seus consultórios. Tipicamente, o pagamento co-
meça em 750 dólares por evento, e vai subindo a partir daí. Dois estados,
Minnesota e Vermont, aprovaram leis “de transparência” que revelam es-
ses pagamentos, e seus registros permitem discernir o fluxo de capital que
vai para esses médicos.
Em 2006, as empresas farmacêuticas deram 2,1 milhões de dólares a
psiquiatras de Minnesota, majorando o valor de 1,4 milhão dólares de
2005. De 2002 a 2006, os beneficiários do dinheiro da indústria farmacêu-
tica incluíram sete ex-presidentes da Sociedade Psiquiátrica de Minnesota
e 17 psiquiatras do corpo docente da Universidade de Minnesota. John Si-
mon, então membro da comissão estadual de farmacopeia do Medicaid,
que norteia os gastos do estado com medicamenta, era o psiquiatra mais
bem remunerado, tendo recebido 570.000 dólares por seus serviços pres-
tados a companhias farmacêuticas. Ao todo, durante esse período, 187

1 Nesse trecho, Biederman descreve a evolução clínica das crianças diagnosticadas com transtorno
bipolar e medicadas; essas crianças efetivamente tendem a se tornar doentes crônicas, tal como
ele descreveu. Mas não há literatura médica que mostre a existência de uma doença que siga esse
curso em crianças não medicadas
dos 571 psiquiatras de Minnesota receberam dinheiro da indústria farma-
cêutica, por uma ou outra razão, e essa percentagem foi “muito mais alta”
do que em qualquer outra especialidade médica. O valor coletivo recebido
por eles foi de 7,4 milhões de dólares.
Os registros de Vermont contam praticamente a mesma história. Den-
tre todas as especialidades médicas, a psiquiatria foi a que mais recebeu
dinheiro das companhias farmacêuticas.
O psiquiatra da comunidade
As empresas farmacêuticas também oferecem brindes aos psiquiatras
da comunidade. Convidam-nos para jantares gratuitos em que os LFOs e
os especialistas locais fazem seus discursos, e seus representantes de ven-
das frequentam com regularidade os consultórios deles, levando pequenos
presentes. “Dei ao dr. Child um bombom de chocolate com creme de
amendoim do tamanho de um cupcake", escreveu uma representante de
vendas da Eli Lilly num relatório de 2002 para seu chefe. “Ele ficou con-
tentinho.” Ou, como a moça escreveu, depois de outra visita de vendas: “O
médico e a equipe adoraram a caixa de brindes que levei, cheia de coisas
úteis para sua nova clínica”. Trata-se de subornos muito pequenos, mas
até um presentinho ajuda a construir vínculos sociais. Um grupo da Cali-
fórnia fez um levantamento das empresas farmacêutica e descobriu que
estas estabelecem limites, sim, para os brindes oferecidos aos psiquiatras
anualmente; o da GlaxoSmithKline era de 2.500 dólares por médico, en-
quanto o da Eli Lilly chegava a 3.000 dólares. Há muitas empresas ven-
dendo drogas psiquiátricas, de modo que qualquer psiquiatra que receba
representantes de vendas pode desfrutar de uma oferta regular de brindes.
A NAMI e todo o resto
Agora a Eli Lilly posta na internet uma lista das doações “educacio-
nais” e “filantrópicas” que faz, e isso nos proporciona uma ideia do di-
nheiro que vai para grupos de defesa de pacientes e várias organizações
educacionais. Só no primeiro trimestre de 2009, a Eli Lilly deu 551.000
dólares à NAMI e a suas seções locais, 465.000 dólares à Associação Naci-
onal de Saúde Mental, 130.000 dólares ao CHADD (Children and Adults
with Attention Déficit Hyperactivity Disordcr, um grupo de defesa dos di-
reitos de pacientes com TDAH) e 69.250 dólares à Fundação Norte-Ameri-
cana para Prevenção do Suicídio. A companhia deu mais de I milhão cie
dólares a diversas organizações educacionais, incluindo 279.533 dólares
para a Antidote Education Gompany, uma organização que oferece cursos
de “educação médica contínua". Esses são os valores de uma única
empresa farmacêutica durante três meses; qualquer contabilização com-
pleta do fluxo de dinheiro para grupos de defesa dos direitos dos pacientes
e organizações educacionais exigiria que somássemos as subvenções de
todos os fabricantes de drogas psiquiátricas.

Todos Pagamos a Conta

De acordo com um relatório de 2009 da Agência de Pesquisa e Quali-


dade da Assistência à Saúde, um órgão federal, os gastos com serviços de
saúde mental tem subido numa velocidade mais acelerada que os de qual-
quer outra categoria médica.29 Em 2008, os Estados Unidos gastaram
cerca de 170 bilhões de dólares com serviços de saúde mental, o que cor-
responde ao dobro do que foi gasto em 2001, e há uma projeção de que
essa despesa se eleve para 280 bilhões de dólares cm 2015. O público, pri-
mordialmente por intermédio dos programas Medicaid e Medicare, paga
quase 60% dos gastos da nação com serviços de saúde mental.
É esta a história do negócio das drogas psiquiátricas. A indústria far-
macêutica destacou-se na ampliação do mercado para seus produtos, e
isso gera uma enorme riqueza para muitos. Entretanto, essa empreitada
dependeu de que fosse contada uma história falsa ao público norte-ameri-
cano, bem como da ocultação dos resultados que revelavam os desfechos
precários, a longo prazo, desse paradigma de atendimento. Ela também
vem cobrando a nossa sociedade um terrível tributo. O número de pessoas
incapacitadas por doenças mentais nos últimos vinte anos disparou, e
hoje essa epidemia espalhou-se por nossas crianças. Com efeito, milhões
de crianças e adolescentes estão sendo preparados para ser usuários vita-
lícios desses medicamentos.
Do ponto de vista societário e moral, esse é um balanço final que dama
por mudanças.
PARTE V.
SOLUÇÕES
16.
PROJETOS DE REFORMA

“Acho que está na hora de outra greve de fome”. - Vince Boehm, 2009
Em 28 de julho de 2003, seis “sobreviventes psiquiátricos” associados
à MindFreedom International, uma organização de direitos dos pacientes,
anunciou um “jejum pela liberdade”. David Oaks, Vince Boehm e os ou-
tros quatro enviaram uma carta à Sociedade Norte-Americana de Psiquia-
tria, à Aliança Nacional Contra a Doença Mental (NAMI) e à Diretoria Naci-
onal de Saúde, declarando que iniciariam uma greve de fome, a menos
que uma dessas organizações fornecesse “provas cientificamente válidas”
de que as várias histórias que contaram ao público sobre as doenças men-
tais eram verdadeiras. Entre outras coisas, o grupo da MindFreedom pe-
diu dados que provassem que as principais doenças mentais eram “doen-
ças cerebrais de base biológica”, bem como provas de que “alguma droga
psiquiátrica é capaz de corrigir desequilíbrios químicos” no cérebro. Os
Seis da MindFreedom montaram um painel científico para examinar as
respostas das organizações - um grupo de consultores que incluía Loren
Mosher - e exigiram que, se a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria
(APA) e os outros não pudessem fornecer essas provas científicas, “os se-
nhores admitam publicamente aos meios de comunicação, às autoridades
de governo e ao público em geral que são incapazes de fazê-lo”.
Eis o que a APA respondeu: “As respostas a suas perguntas encon-
tram-se amplamente disponíveis na literatura científica, e assim têm es-
tado há anos”, nas palavras do diretor médico James Scully. Ele sugeriu
que o grupo lesse o relatório de Saúde Mental de 1999 da Diretoria Nacio-
nal de Saúde, ou um manual da APA coeditado por Nancy Andreasen e
outros. “Trata-se de um manual fácil de usar, para pessoas que acabaram
de ser apresentadas ao campo da psiquiatria”, explicou.
Só os ignorantes, ao que parecia, faziam aquele tipo de pergunta idiota.
Mas Scully não listou nenhuma referência, e, assim sendo, os seis “sobre-
viventes psiquiátricos'* iniciaram sua greve de fome, e quando seus con-
sultores científicos examinaram os textos a que Scully os havia encami-
nhado, também não encontraram neles nenhuma referência. Em vez
disso, todos os textos reconheciam, a contragosto, o mesmo resumo da
história: “As causas exalai [a etiologia] das doenças mentais não são co-
nhecidas”, como confessara Salcher. o diretor nacional de Saúde, em seu
relatório de 1999. O painel científico da MindFrccdom. em sua resposta de
22 de agosto a Scully, observou que os grevistas haviam formulado “per-
guntas claras sobre a ciência da psiquiatria”, mas a APA as havia descon-
siderado. “Ao não darem respostas específicas às perguntas específicas
formuladas pelos que estão cm greve de fome, os senhores parecem estar
afirmando a própria razão para a referida greve.”
A APA nunca respondeu a essa carta. Ao contrário, depois que o grupo
da MindFreedom suspendeu seu jejum (vários componentes começaram a
ter problemas de saúde), ela emitiu um comunicado à imprensa decla-
rando que a APA, a NAMI e os demais integrantes da comunidade psiquiá-
trica “não se deixarão desviar pelos que querem negar que os transtornos
mentais graves são doenças médicas reais, que podem ser diagnosticadas
com precisão e tratadas com eficácia". Mas ficou claro para todos os obser-
vadores quem tinha vencido essa batalha. Os grevistas haviam pagado
para ver o jogo da APA, e a APA não tinha nada na mão. Não apresentou
uma única referência que corroborasse a história de “doença cerebral” que
ela contava ao público. Os Seis da MindFreedom, junto com seu painel ci-
entífico, emitiram então uma convocação direta à ação, a fim de obter
ajuda:
Exortamos os membros do público, jornalistas, defensores de direitos dos ci-
dadãos e autoridades que estiverem lendo esta conversação a solicitarem
à APA respostas diretas a nossas perguntas. Solicitamos também que o
Congresso investigue o embuste em massa que hoje representam, nos Es-
tados Unidos, o “diagnóstico r tratamento das doenças mentais” promovi-
dos por órgãos como a APA e seus poderosos aliados?
A greve, observou o diretor executivo da MindFreedom, David Oaks,
provocou artigos no Washington Post e nos Los Angeles Times. “O objetivo
da greve foi educare público. Tratava-se de capacitar o público e fazê-lo fa-
lar sobre estas questões que nos afetam a todos. Tratava-se de questionar
o bullying empresarial imposto ao pensamento [da população].

Lições de uma Greve de Fome

Na primeira vez que pensei cm escrever um capítulo sobre “soluções”,


imaginei que simplesmente descreveria programas, tanto nos Estados Uni-
dos quanto no exterior, que envolvessem o uso de medicamentos psiquiá-
tricos de modo seletivo e cauteloso (ou não o envolvessem) e estivessem
produzindo bons resultados. Mas então, pensei na greve de fome e me dei
conta de que o grupo da organização MindFreedom havia identificado com
precisão o maior problema que temos diante de nós.
A verdadeira pergunta a respeito dos medicamentos psiquiátricos é
esta: quando e como eles devem ser usados? Os remédios podem aliviar
sintomas a curto prazo e há pessoas que talvez se estabilizem bem com
eles a longo prazo, de modo que, claramente, há um lugar para a medica-
ção na caixa de ferramentas da psiquiatria. Entretanto, um paradigma de
atendimento com o “melhor" uso requereria que a psiquiatria, a NAM1 e o
restante da ordem psiquiátrica estabelecida pensassem nos medicamentos
de maneira cientificamente honesta e falassem francamente sobre eles
com o público. A psiquiatria teria de reconhecer que as causas biológicas
das doenças mentais continuam desconhecidas. Teria de admitir que os
remédios, em vez de corrigirem desequilíbrios químicos no cérebro, pertur-
bam o funcionamento normal das vias neurotransmissoras. Teria que pa-
rar de esconder os resultados de estudos a longo prazo que revelam que os
medicamentos vêm piorando os resultados a longo prazo. Se a psiquiatria
o fizesse, poderia descobrir como usar os medicamentos de maneira judi-
ciosa e sensata, e todos na nossa sociedade compreenderiam a necessi-
dade de terapias alternativas, que não dependessem de remédios ou, pelo
menos, minimizassem seu uso.
Em seu livro de 1992, How to Become a Schizophrenic [Como ficar es-
quizofrênico], John Modrow - que havia recebido esse diagnóstico - escre-
veu o seguinte: “Então, como faremos para ajudar os ‘esquizofrênicos’? A
resposta é simples: Parem com as mentiras!”.7 Em síntese, era isso que os
Seis da MindFreedom estavam pedindo e, como observou o seu painel
consultivo, trata-se de um pedido perfeitamente racional. E isso, creio eu,
resume o desafio que agora enfrentamos como sociedade. Como romper a
parceria psiquiatria/empresas farmacêuticas, a qual, como vimos, mente
sistematicamente para nós? Como podemos insistir cm que o sistema de
saúde mental da nossa sociedade seja dirigido por uma ciência honesta, e
não por uma parceria que vive buscando ampliar o mercado das drogas
psiquiátricas?
Não há resposta simples para essas perguntas. Claramente, porém,
nossa sociedade precisa ter uma conversa sobre o assunto, e por isso
achei que o restante deste capítulo sobre as “soluções” deveria ser dedi-
cado a entrevistas e investigações de programas alternativos que possam
ajudar a tornar fecunda esta conversa.

Uma Forma Engenhosa de Cuidado

David Healy e professor de psiquiatria na Universidade de Cardiff e


cuida de pacientes psiquiátricos no Hospital Geral Distrital, em Gales do
Norte, onde trabalha desde 1990. Seu consultório fica a poucos passos de
uma enfermaria fechada e, naturalmente, ele emite regularmente receitas
de medicamentos psiquiátricos. Aliás, embora tenha passado a ser visto
por muitos na psiquiatria como um “inconformista”, ele se retrai diante
dessa palavra. Na década de 1980, observa, pesquisou a recaptação de se-
rotonina em pacientes deprimidos. Escreveu mais de uma dúzia de livros e
publicou mais de 120 artigos, e grande parte desses textos enfoca a histó-
ria da psiquiatria e a era da psicofarmacologia. Seu currículo fala de um
psiquiatra e historiador que, até começar a escrever sobre problemas com
os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS), era abraçado
pela psiquiatria estabelecida. “Não acho que cu tenha mudado muito, de
modo algum”, disse. “Acho que a corrente dominante me abandonou.”8
Suas ideias de como as drogas psiquiátricas devem ser usadas (e do
que realmente fazem) foram profundamente influenciadas por seus escri-
tos sobre a história da psiquiatria e por um estudo que ele conduziu, com-
parando os resultados dos doentes mentais de Gales do Norte, um século
atrás, cora os resultados atuais na mesma região. A população não se al-
terou nesse período, com cerca de 240.000 habitantes na área, e, ao passo
que cem anos atrás todos os doentes mentais graves eram tratados no
Hospício de Gales do Norte, em Denbigh, hoje todos os pacientes psiquiá-
tricos que necessitam de internação são tratados no Hospital Geral Distri-
tal, em Bangor. Debruçando-se sobre os registros das duas instituições,
Healy e seus assistentes conseguiram determinar o número de pessoas
que foram tratadas no passado e o número tratado hoje, bem como a fre-
quência das hospitalizações.
A crença comum, observa Healy, e que os antigos hospícios transbor-
davam de lunáticos. No entanto, de 1894 a 1896, apenas 45 pessoas por
ano foram internadas no Hospício de Gales do Norte (por problemas men-
tais). Além disso, desde que não sucumbissem à tuberculose ou a alguma
outra doença infecciosa, os pacientes costumavam melhorar no correr de
três meses a um ano, e iam para casa. Cinquenta por cento recebiam alta
como “recuperados” e outros 30%, como “aliviados”. Além disso, a esma-
gadora maioria dos pacientes internados por um primeiro episódio de do-
ença recebia alta e nunca mais voltava a ser internada, e isso se aplicava
até aos pacientes psicóticos. Este último grupo teve, em média, apenas
1,23 hospitalização num período de dez anos (número que inclui a inter-
nação inicial).
Hoje em dia, há uma suposição de que os pacientes se saem muito
melhor do que antes graças aos medicamentos psiquiátricos. Todavia, cm
1996 houve 522 admissões na ala psiquiátrica do Hospital Geral Distrital
de Bangor-quase 12 vezes o número de pessoas internadas no hospício de
Denbigh, um século antes. Setenta e seis por cento desses 522 pacientes
já tinham estado lá anteriormente, como parte de um grande grupo de pa-
cientes em Gales do Norte que gira em ciclos regulares pelo hospital. Em-
bora os pacientes passem um período mais curto no hospital do que acon-
tecia em 1896, apenas 36% receberam alta como recuperados. Por último,
os pacientes internados por um primeiro surto psicótico na década de
1990 tiveram, cm média, 3,96 hospitalizações no curso de dez anos - mais
de três vezes o número de um século atrás. Claramente, os pacientes atu-
ais tem mais doenças crônicas do que há um século, parecendo os trata-
mentos modernos haver criado uma “porta giratória”?
“Ficamos surpresos ao ver como são precários os resultados atuais de-
pois de cinco anos”, observou Healy. “Toda vez que olhamos para os resul-
tados de hoje, para o primeiro lote de resultados [de um dado grupo de di-
agnóstico] após cinco anos, pensamos: ‘Meu Deus, não pode ser isso’."
O estudo deles envia uma mensagem bem clara sobre como e quando
os medicamentos psiquiátricos devem ser usados. “Uma porção de gente
costumava se recuperar", explicou Healy, mas, se você medica imediata-
mente todos os pacientes, corre o risco de “lhes causar um problema crô-
nico que, nos velhos tempos, eles não teriam.” Hoje, Healy procura “obser-
var e esperar” antes de dar drogas psiquiátricas aos pacientes que sofrem
um primeiro episódio, pois quer ver se esse tipo de recuperação natural
pode ocorrer: “Procuro usar os remédios com cautela, cm doses razoavel-
mente baixas, e digo ao paciente: ‘Se o remédio não fizer o que queremos
que faça, nós vamos suspendê-lo’". Se os psiquiatras escutassem seus pa-
cientes a respeito de corno os remédios os afetam, concluiu Healy, “tería-
mos apenas alguns pacientes medicados a longo prazo”.
Aí está: uma receita simples, para usar os medicamentos criteriosa-
mente. Quando o médico se dá conta de que muitas pessoas que viven-
ciam um surto psicótico ou uma depressão profunda podem se recuperar
naturalmente e de que o uso prolongado de psicotrópicos está associado a
um aumento da cronicidade, fita evidente que os remédios precisam ser
usados de modo seletivo e limitado. Healy viu essa abordagem funcionar
com seus pacientes, muitos dos quais insistem, a princípio, em que preci-
sam dos medicamentos. “Eu digo a eles: 'podemos fazer mais mal do que
bem’”, disse Healy. “Eles não se dão conta de quanto mal podemos fazer.”
Curando os que estão “no Entremeio”

Durante muito tempo, a Lapônia Ocidental, na Finlândia, leve um dos


índices mais altos de esquizofrenia da Europa. Lá vivem cerca de setenta
mil pessoas c, durante a década de 1970 e o início da de 1980, apareciam
cerca de 25 novos casos de esquizofrenia a cada ano - urna incidência que
era o dobro ou até o triplo da norma em outras partes da Finlândia, bem
como no resto da Europa. Além disso, era habitual esses pacientes se to-
marem doentes crônicos. Hoje, porém, os resultados a longo prazo dos pa-
cientes psicóticos na Lapônia Ocidental são os melhores do Ocidente, e a
região vê surgirem pouquíssimos novos casos de esquizofrenia.
Trata-se de um sucesso médico que levou décadas sendo produzido e
teve início em 1969 quando Yrjö Alanen, um psiquiatra finlandês com for-
mação psicanalítica, chegou ao hospital psiquiátrico de Turku, uma ci-
dade portuária no sudoeste da Finlândia. Na época, poucos psiquiatras do
país achavam que a psicoterapia podia ajudar os esquizofrênicos. Mas Ala-
nen acreditava que as alucinações e os ditos paranoicos dos esquizofrêni-
cos, se cuidadosamente examinados, contavam histórias que faziam sen-
tido. Os psiquiatras, enfermeiras e funcionários do hospital precisavam es-
cutar os pacientes. “Para quem conhece as famílias desses pacientes, é
quase impossível não compreender que elas enfrentam dificuldades na
vida”, explicou ele, numa entrevista no hospital psiquiátrico de Turku.
Eles “não estão prontos” para ser adultos, e “podemos ajudar nesse desen-
volvimento”.
Nos 15 anos seguintes, Alanen e um punhado de outros psiquiatras de
Turku, em especial Jukka Aaltonen e Viljo Rãkkoläinen, criaram o que
chamam de tratamento de pacientes psicóticos “adaptado à necessidade”.
Como os pacientes psicóticos são um grupo muito heterogêneo, eles deci-
diram que o tratamento precisava ser “específico para cada caso”. Alguns
pacientes com um primeiro episódio precisariam ser hospitalizados, outros
não. Alguns se beneficiariam de doses baixas de medicamentos psiquiátri-
cos (benzodiazepinas ou neurolépticos), outros não. E, o mais importante,
os psiquiatras de Turku se decidiram pela terapia do grupo familiar - de
um tipo particularmente colaborativo - como tratamento nuclear. Psiquia-
tras, psicólogos, enfermeiras e outros, treinados na terapia familiar, traba-
lhavam cm “equipes de psicose” de dois ou três membros, que se encon-
travam regularmente com o/a paciente e sua família. As decisões sobre o
tratamento dos pacientes eram conjuntamente tomadas nesses encontros.
Nessas sessões, os terapeutas não se preocupavam cm minorar os
sintomas psicóticos do(a) paciente. Em vez disso, concentravam a con-
versa nos sucessos e realizações dele(a) no passado, com a ideia de que
isso ajudaria a reforçar seu “domínio sobre a vida”. A esperança, disse
Rakkolainen, “é que eles não percam de vista a ideia de que podem ser
iguais aos outros”. O paciente também podia receber psicoterapia indivi-
dual para ajudar nesse processo, e acabava sendo encorajado a construir
uma nova “autonarrativa” para seguir adiante, imaginando um futuro em
que estivesse integrado(a) à sociedade, e não isolado(a) dela. “Com a con-
cepção biológica da psicose, não se podem ver as realizações do passado”
nem as possibilidades do futuro, disse Aaltonen.
Durante as décadas de 1970 e 1980, os resultados referentes aos paci-
entes psicóticos do sistema de Turku tiveram uma melhora sistemática.
Muitos pacientes crônicos receberam alta do hospital, e um estudo dos
pacientes de tipo esquizofrênico em seu primeiro surto tratados entre
1983 e 1984 constatou que 61% ficaram assintomáticos ao fim de cinco
anos e apenas 18% recebiam auxílio por invalidez. Era um resultado
ótimo, e, de 1981 a 1987, Alanen coordenou o Projeto Nacional Finlandês
da Esquizofrenia, que determinou que o modelo de cuidado adaptado à
necessidade desenvolvido em Turku poderia ser introduzido com êxito cm
outras cidades. Duas décadas depois de Alanen e seus colaboradores inici-
arem seu projeto cm Turku, a Finlândia havia decidido que a psicoterapia
realmente podia ajudar os pacientes psicóticos.
Infelizmente, porém, persistiu a questão do melhor uso dos antipsicóti-
cos, e cm 1992 a Finlândia montou um estudo com pacientes no primeiro
episódio para encontrar a resposta. Todos os seis locais do estudo oferece-
ram aos pacientes recém-diagnosticados o tratamento adaptado à necessi-
dade, mas cm três desses centros os pacientes não receberam antipsicóti-
cos durante as primeiras três semanas (as benzodiazepinas puderam ser
usadas) e a terapia medicamentosa só foi iniciada quando o paciente não
apresentou melhora durante esse período. Ao cabo de dois anos. 43% dos
pacientes dos três centros ‘experimentais” nunca tinham sido expostos a
neurolépticos, e os resultados gerais das sedes experimentais foram "um
pouco melhores” que os dos centros em que quase todos tinham sido ex-
postos aos medicamentos. Além disso, entre os pacientes das três sedes
experimentais, os que nunca tinham sido expostas a neurolépticos alcan-
çaram os melhore« resultados.
“Eu recomendaria um uso [das drogas] específico para cada caso”,
disse Rakkolainen. “Experimente sem os antipsicóticos. Você pode tratar
melhor deles sem medicação. Eles firam mais interativos. Tornam-se eles
mesmos." Aaltonen acrescentou: “Se você puder adiar a medicação, isso é
importante”.
Dir-se-ia que a psiquiatria finlandesa, dados os resultados do estudo,
teria abraçado naquele momento - em nível nacional - esse modelo de
atendimento “sem uso imediato de neurolépticos”. Em vez disso, Alanen e
os outros criadores do tratamento adaptado à necessidade aposentaram-
se e, durante os anos 1990. o tratamento da psicose na Finlândia passou
a ter unia orientação muito mais “biológica”. Hoje em dia, até em Turku.
os pacientes no primeiro surto são regularmente tratados com antipsicóti-
cos, e as normas finlandesas açora requerem que os pacientes sejam man-
tidos com a medicação por pelo menos cinco anos depois do primeiro epi-
sódio. “Estou meio decepcionado”, confessou Alanen ao final da nossa en-
trevista.
Felizmente, um dos três centros “experimentais” do estudo de 1992-
1993 levou a sério os resultados. E esse local foi Tornio, na Lapônia Oci-
dental.
A caminho de Tornio, que fica no norte, parei para entrevistar Jaakko
Seikkula, um professor de psicoterapia da Universidade de Jyvaskyla.
Além de trabalhar no Hospital Keropudas, em Tornio, há quase vinte anos,
ele foi o principal autor de vários estudos que documentaram os resulta-
dos extraordinários dos pacientes psicóticos na Lapônia Ocidental.
A transformação do atendimento no Hospital Keropudas, passando de
um sistema em que os pacientes eram habitualmente internados e medi-
cados para outro em que raras vezes são hospitalizados e só ocasional-
mente são medicados, teve início em 1984, quando Rakkolainen visitou o
local e falou do tratamento adaptado à necessidade. A equipe do Keropu-
das, relembrou Seikkula, intuiu de imediato que fazer “reuniões abertas”,
nas quais cada participante compartilhasse livremente suas ideias, pro-
porcionaria aos pacientes psicóticos uma experiência mudo diferente da
psicoterapia convencional. “A linguagem que usamos quando o paciente
está sentado conosco é muito diferente da que usamos quando estamos
sozinhos [os terapeutas] e discutindo o paciente”, disse ele. “Não usamos
as mesmas palavras, e temos de escutar mais as ideias do paciente sobre
o que está acontecendo, e escutar mais a família."
Seikkula e outros acabaram desenvolvendo cm Tornio o que chama-
ram de terapia do diálogo aberto, que era uma variação sutil do modelo
adaptado à necessidade de Turku. Como havia ocorrido em Turku, os re-
sultados dos pacientes na Lapônia Ocidental melhoraram durante os anos
1980, e cm seguida Tornio foi selecionada para ser uma das três sedes ex-
perimentais do estudo finlandês de 1992-1993 sobre pacientes no pri-
meiro surto. Tornio inscreveu 34 deles, e ao cabo de dois anos 25 nunca
haviam sido expostos a neurolépticos. Quase todos os pacientes nunca
medicados do estudo nacional (25 de 29) tinham vindo, na verdade, dessa
mesma sede, e por isso foi somente nela que o pessoal hospitalar observou
o curso a longo prazo da psicose não medicada. E constatou que, embora
a recuperação da psicose comumente se produza num ritmo mais lento,
ela ocorre com regularidade. Os pacientes, disse Seikkula, "soltaram para
seu trabalho, seus estudos, suas famílias".
Resultados após cinco anos em pacientes com um primeiro surto de
psicose, tratados com a terapia do diálogo aberto na Lapônia Ocidental,
Finlândia

Animado com os resultados, o Hospital Keropudas iniciou imediata-


mente outro estudo, mapeando os resultados a longo prazo de todos os
pacientes psicóticos no primeiro surto na Lapônia Ocidental, de 1992 a
1997. Passados cinco anos, 79% deles estavam assintomáticos e 80% es-
tavam trabalhando, ou na escola, ou procurando emprego. Apenas 20%
recebiam pensão do governo por invalidez. Dois terços dos pacientes
nunca tinham sido expostos à medicação antipsicótica e apenas 20% to-
mavam os remédios regularmente. A Lapônia Ocidental havia descoberto
uma fórmula de sucesso para ajudar pacientes psicóticos a se recupera-
rem, sendo crucial para esse sucesso a sua política de não fazer uso
imediato de neurolépticos em pacientes com um primeiro episódio, uma
vez que ela proporcionou uma “válvula de escape” para os que podiam re-
cuperar-se naturalmente.
“Tenho confiança nessa ideia”, disse Seikkula. “Há pacientes que po-
dem levar uma vida bastante peculiar e que talvez tenham ideias psicóti-
cas, mas que, apesar disso, podem agarrar-se a uma vida ativa. No en-
tanto, quando são medicados, por causa da ação sedativa das drogas eles
perdem esse ‘domínio sobre a vida’, e isso é muito importante. Tornam-se
passivos e já não cuidam deles mesmos.”
Atualmente, as instalações psiquiátricas da Lapônia Ocidental consis-
tem no Hospital Keropudas, com seus 55 leitos, localizado nos arredores
de Tornio, e em cinco clínicas de saúde mental para pacientes ambulatori-
ais. Há aproximadamente uma centena de profissionais da saúde mental
no distrito (psiquiatras, psicólogos, enfermeiras e assistentes sociais), e a
maioria deles concluiu um curso de terapia familiar com duração de três
anos, ou novecentas horas. Muitos integrantes da equipe - inclusive a psi-
quiatra Birgitta Alakare e os psicólogos Tapio Salo e Kauko Haarakangas -
estão lá há décadas, e hoje a terapia do diálogo aberto é uma forma de
atendimento bastante aprimorada.
A concepção de psicose que eles têm é de natureza bem distinta, já que
não se enquadra realmente nem na categoria biológica nem na psicológica.
Eles acreditam, antes, que a psicose provém de relações sociais grave-
mente esgarçadas. “A psicose não vive na cabeça. Vive no entremeio dos
membros da família e no entremeio das pessoas”, explicou Saio. “Está na
relação, e o psicótico dá visibilidade a essa situação ruim. Ele ‘veste os sin-
tomas’ e tem o ônus de carregá-los.”
Sendo a maioria do pessoal do distrito formada em terapia familiar, o
sistema está apto a responder prontamente a uma crise psicótica. A pri-
meira pessoa a ser procurada - por um dos pais, um paciente em busca de
ajuda ou, talvez, um administrador escolar - é responsável por organizar
um encontro em 24 horas, cabendo à família e ao paciente decidir onde se
realizará essa reunião. A casa do paciente é o local preferido. Deve haver
pelo menos dois membros da equipe presentes - de preferência, três - e
essa se toma a “equipe” que, idealmente, permanecerá junta durante o
tratamento do paciente. Todos vão a essa primeira reunião, cientes de que
“não sabem nada”, disse a enfermeira Mia Kurtti. Seu trabalho é promover
um “diálogo aberto” em que as ideias de todos possam tornar- se conheci-
das, sendo os familiares (e amigos) vistos como colaboradores. “Somos
especialistas em dizer que não somos especialistas”, comentou Birgitta
Alakare.
Os terapeutas se consideram convidados na casa do paciente, e se um
paciente agitado foge para seu quarto, eles simplesmente lhe pedem que
deixe a porta aberta, para poder escutar a conversa. “Eles ouvem vozes,
nós os encontramos e tentamos tranquilizá-los”, disse Saio. “Eles são psi-
cóticos, mas não têm nada de violentos.” Com efeito, a maioria dos pacien-
tes quer contar sua história, e quando eles falam de alucinações e ideias
paranoicas, os terapeutas apenas escutam e refletem sobre o que ouviram.
“Acho [os sintomas psicóticos] muito interessantes”, disse Kurtti. “Qual é a
diferença entre vozes e pensamentos? Estamos tendo uma conversa.”
Não há menção alguma a antipsicóticos nos primeiros encontros.
Quando o paciente começa a dormir melhor e a tomar banho regular-
mente, e começa a restabelecer de outras maneiras os vínculos sociais, os
terapeutas sabem que seu “domínio sobre a vida” está sendo reforçado e
que a medicação não será necessária. Vez por outra, Alakare pode receitar
uma benzodiazepina para ajudar a pessoa a dormir ou para atenuar a an-
siedade do paciente, e pode vir a prescrever um neuroléptico em dosagem
baixa. “Em geral, sugiro que o paciente o use por alguns meses”, disse.
“Mas, quando os problemas desaparecem, após seis meses ou um ano, ou
talvez até depois de três anos, tentamos suspender a medicação.”
Desde o começo, os terapeutas se empenham em dar ao paciente e à
família um sentimento de esperança. “A mensagem que passamos é que
podemos lidar com essa crise. Temos a experiência de que as pessoas po-
dem melhorar, e confiamos nesse tipo de possibilidade”, afirmou Alakare.
Eles descobriram que pode levar muito tempo - dois, três ou até cinco
anos - para o paciente se recuperar. Embora os sintomas psicóticos pos-
sam atenuar-se com bastante rapidez, os terapeutas se concentram no
“domínio [do paciente] sobre a vida” e em consertara relação dele com a
sociedade, e essa é uma tarefa muito maior. A equipe continua a se reunir
com o paciente e a família, e, à medida que esse processo se desenrola,
professores e empregadores em potencial também são convidados a com-
parecer. “A questão e restabeleceras conexões sociais”, disse Saio. “O paci-
ente ‘de entremeio’ recomeça a trabalhar, na companhia de familiares e
amigos.”
Nos últimos 17 anos, a terapia do diálogo aberto transformou “a ima-
gem da população psicótica” na Lapônia Ocidental. Desde o estudo de
1992-1993, nem um único paciente psicótico no primeiro surto terminou
cronicamente hospitalizado. As despesas com serviços psiquiátricos na re-
gião caíram 33% da década de 1980 para a de 1990, e hoje a despesa /vr
capita do distrito com serviços de saúde mental é a mais baixa de todos os
distritos de saúde da Finlândia. Os índices de recuperação se mantiveram
altos: de 2002 a 2006, Tornio participou de um estudo multinacional dos
países nórdicos sobre a psicose no primeiro surto c, ao cabo de dois anos,
84% dos pacientes haviam retornado ao trabalho ou à escola e apenas
20% tomavam antipsicóticos. O mais notável de tudo é que a esquizofrenia
vem desaparecendo da região. As famílias da Lapônia Ocidental passaram
a ficar tão à vontade com essa forma gentil de atendimento que ligam para
o hospital (ou para uma das clínicas de pacientes ambulatoriais) ao pri-
meiro sinal de psicose num ente querido, e o resultado é que, hoje cm dia,
tipicamente, os pacientes no primeiro surto apresentam sintomas psicóti-
cos por menos de um mês, e, iniciado o tratamento nessa etapa precoce,
pouquíssimos chegam a desenvolver a esquizofrenia (o diagnóstico e feito
depois que o paciente está psicótico há mais de seis meses). Apenas dois
ou três novos casos de esquizofrenia aparecem a cada ano na Lapônia Oci-
dental, o que representa uma queda de 90% desde os primeiros anos da
década de 1980.
O sucesso de Tornio chamou a atenção de prestadores de serviços de
saúde mental de outros países europeus, e, nos últimos vinte anos, dois
ou três outros grupos da Europa informaram que a combinação do atendi-
mento psicossocial com o uso limitado de neurolépticos tem produzido
bons resultados.16 “Isso aconteceu de verdade”, disse Seikkula. “Não é
apenas uma teoria.”
No meu trajeto de volta para Helsinque, fui me intrigando com uma
ideia: por que as sessões de grupo de Tornio são tão terapêuticas? Dada a
literatura sobre resultados referente aos neurolépticos, cu podia entender
por que o uso seletivo dos medicamentos tinha se revelado tão proveitoso.
Mas, por que a terapia do diálogo aberto ajudava os pacientes psicóticos a
se curar?
Durante meus dois dias cm Tornio, acompanhei três sessões de grupo
e, apesar de não falar finlandês, pude ter uma ideia do teor afetivo das
sessões e observar como fluía a conversa. Sentavam-se todos em círculo,
de modo muito relaxado e sereno, c, antes que qualquer um falasse, era
comum haver um momento de silêncio por uma fração de segundo, como
se quem ia falar ordenasse seus pensamentos. De vez em quando alguém
ria, e não pude identificar nenhum momento cm que alguém fosse inter-
rompido, embora nenhum indivíduo parecesse falar por muito tempo,
tampouco. A conversa parecia perpassada pela gentileza e pela humildade,
e tanto os familiares quanto os pacientes escutavam com enorme atenção
quando os terapeutas se viravam e faiavam entre si. “Gostamos de saber o
que eles pensam de verdade, em vez de eles só nos darem orientação”, dis-
seram os pais numa das sessões.
Mas essa foi a síntese da coisa. Era tudo meio enigmático, e nem
mesmo o pessoal do Hospital Keropudas soube muito bem explicar por
que essas conversas eram tão terapêuticas. “Os sintomas graves começam
a passar”, disse Saio, dando de ombros. “Não sabemos como acontece,
mas [a terapia do diálogo aberto] deve estar fazendo alguma coisa, porque
funciona.”

Um Antidepressivo Natural

No começo dos anos 1800, os norte-americanos sempre recorriam a


um livro escrito pelo médico escocês William Buchan em busca de orienta-
ção médica. Em Domestic Medicine [Medicina caseira], Buchan receitava
este remédio sucinto para a melancolia: “O paciente deve fazer tanto exer-
cício ao ar livre quanto puder suportar. (...) Um plano desta natureza, com
rigorosa atenção à dieta, é um método muito mais racional de cura do que
confinar o paciente a um recinto fechado e cumulá-lo de medicamentos”.
Dois séculos depois, as autoridades médicas britânicas redescobriram
a sabedoria do conselho de Buchan. Em 2004, o Instituto Nacional Pró-
Saúde e Excelência Clínica, que atua como um conselho consultivo do
Serviço Nacional de Saúde do país, decidiu que “os antidepressivos não
são recomendados para o tratamento inicial da depressão leve, porque a
relação risco-benefício é ruim”. Em vez disso, os médicos deveriam experi-
mentar alternativas não medicamentosas e orientar os “pacientes de todas
as idades, portadores de depressão leve, sobre os benefícios de seguir um
programa estruturado e supervisionado de exercícios”.
Hoje, os clínicos gerais do Reino Unido podem escrever uma receita de
exercício físico. “A base de dados sobre o exercício como tratamento da de-
pressão e muito boa”, disse Andrevv McCulloch, diretor executivo da Fun-
dação de Saúde Mental, uma organização beneficente sediada cm Londres
que vem promovendo esta alternativa. “Ele também reduz a ansiedade. E
bom para a autoestima, o controle da obesidade etc. Tem um efeito de am-
plo espectro.”
Em termos de sua eficácia a curto prazo como antidepressivo, os
estudos mostraram que o exercício físico produz uma “melhora substan-
cial” cm seis semanas, que o tamanho do seu efeito e “grande” e que 70%
de todos os pacientes deprimidos respondem a um programa de exercí-
cios. “Esses índices de sucesso são realmente notáveis”, escreveram al-
guns investigadores alemães em 2008. Com o tempo, além disso, o exercí-
cio produz uma multiplicidade de “benefícios colaterais’’. Melhora a função
cardiovascular, aumenta a força muscular, reduz a hipertensão e apri-
mora o funcionamento cognitivo. As pessoas dormem melhor, funcionam
melhor sexualmente e também tendem a se tornar mais engajadas no pi-
ano social.
Um estudo conduzido em 2000 por James Blumenthal, da Universi-
dade Duke, também revelou que não convém combinar exercícios com te-
rapia medicamentosa. Ele dividiu aleatoriamente 156 pacientes deprimi-
dos mais velhos cm três grupos - de exercício, de Zoloft e de Zoloft com
exercício - c, ao cabo de 16 semanas, os que foram tratados apenas com
exercícios haviam se saído tão bem quanto os dos outros dois grupos.21
Em seguida, Blumenthal acompanhou os pacientes por mais seis meses,
deixando-os livres para escolher o tratamento que quisessem durante esse
período, e, no final, os pacientes inicialmente tratados apenas com exercí-
cios foram os que se saíram melhor. Apenas 8% dos que tinham estado
bem ao término das 16 semanas sofreram uma recaída durante o acompa-
nhamento c, ao cabo de dez meses, 70% dos que pertenciam ao grupo de
apenas exercícios estavam assintomáticos. Nos dois grupos expostos ao
Zoloft, mais de 30% dos pacientes que tinham estado bem ao término das
16 semanas sofreram uma recaída e menos de 50% estavam assintomáti-
cos no fim do estudo. O grupo de “Zoloft mais exercício” não se saiu me-
lhor que o dos pacientes com “apenas Zoloft”, o que sugeriu que a exposi-
ção ao Zoloft anulava os benefícios do exercício. “Essa foi uma constatação
inesperada, porque se presumira que combinar o exercício com a medica-
ção teria, no mínimo, um efeito aditivo”, escreveu Blumenthal.
Em 2003, quando a Fundação de Saúde Mental inglesa lançou sua
campanha de exercícios físicos para a depressão, ela aproveitou o fato de
os clínicos gerais da Grã-Bretanha já virem “receitando” exercícios aos pa-
cientes com diabetes, hipertensão, osteoporose e outros problemas físicos.
A prestação desse cuidado médico exige que os médicos cooperem com se-
ções locais da ACM, academias de ginástica e instalações recreativas,
sendo essas formas de colaboração conhecidas como “planos de encami-
nhamento para o exercício”; desse modo, a fundação precisava apenas fa-
zer os clínicos gerais também começarem a prescrever exercícios físicos
para seus pacientes deprimidos. Hoje em dia, mais de 20% dos clínicos ge-
rais do Reino Unido receitam exercícios para seus pacientes deprimidos
com certa frequência, o que corresponde a quatro vezes a percentagem dos
que o faziam em 2004.
Benefício a longo prazo dos exercícios físicos para a depressão

Nesse estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Duke, pacientes mais


velhos com depressão foram tratados durante 16 semanas de uma de três manei-
ras, depois acompanhados por mais seis meses. Os pacientes tratados apenas
com exercícios físicos tiveram os índices mais baixos de recaída durante os seis
meses seguintes c, como grupo, tiveram muito menos probabilidade de sofrer com
sintomas depressivos ao fim de dez meses.

Tipicamente, uma “receita” de exercícios fornece ao paciente um trata-


mento de 24 semanas. Um profissional da educação física avalia a condi-
ção do paciente e elabora um “plano de atividade” apropriado, e o paciente
então recebe acesso gratuito ou com desconto à ACM ou ã academia cm
colaboração. Os pacientes se exercitam em aparelhos de musculação, na-
dam e fazem várias aulas de ginástica. Além disso, muitos planos de enca-
minhamento ao exercício oferecem acesso a “academias verdes”. Os pro-
gramas ao ar livre podem envolver caminhadas cm grupo, aulas de alon-
gamento ao ar livre e trabalho ambiental voluntário (cuidar de bosques lo-
cais, melhorar trilhas, criar hortas comunitárias etc.). Ao longo dos seis
meses de tratamento, o profissional de educação física monitora a saúde e
o progresso do paciente.
Como se poderia esperar, os pacientes têm achado muito útil o trata-
mento dos “exercícios receitados”. Disseram ã Fundação de Saúde Mental
que o exercício físico lhes permitiu “assumir o controle de sua recupera-
ção" e parar de pensar em si mesmos como “vítimas" de uma doença. Sua
confiança e autoestima aumentaram: eles se sentiram mais calmos e com
mais energia. O tratamento passou a se concentrar em sua “saúde", não
cm sua “doença”.
“Os pais da medicina não se surpreenderiam com o que estamos fa-
zendo”, disse McCulloch. “Eles diriam: ‘A ciência não avançou mais que
isso? Dieta e exercício? E isso que há de novo?’. Se pudessem viajar numa
máquina do tempo, eles achariam que estamos malucos, porque as pes-
soas dizem essas coisas há milhares de anos."

Essa Garotada é Incrível

As crianças que acabam morando no Centro Soneca, cm San Leandro,


na Califórnia, chegaram à última parada para jovens com transtornos gra-
ves na região norte do estado. Em geral, essas crianças de 5 a 13 anos cir-
cularam por vários lares de criação temporários e passaram por múltiplas
internações hospitalares, e seu comportamento foi tão difícil que já não
restam lares de criação nem hospitais que queiram vê-los de novo. Em ter-
mos burocráticos, trata-se de crianças do “nível 14”, que é a designação
reservada para as crianças mais problemáticas da Califórnia; no entanto,
visto que elas já foram expulsas de outras instituições do nível 14, uma
descrição mais adequada é chamá-las de crianças do “nível 14++”1. Os
municípios pagam ao Centro Séneca 15.000 dólares mensais por criança
abrigada e, como não é de admirar, quando os menores chegam lá, a mai-
oria usa coquetéis medicamentosos pesados. “Eles ficam tão dopados que
dormem a maior parte do dia”, disse Kim Wayne, diretora do programa de
residência.
E então, sua vida começa a mudar drasticamente.
Visitei uma das duas instalações residenciais do Centro Séneca para
menores no verão de 2009 c, quando entrei, foi isto que vi: uma garota
afro-americana com fones de ouvido, cantando a música de Jordin Sparks
que estava escutando; uma segunda garota afro-americana, ligeiramente
mais velha, sentada à mesada cozinha, folheando fotografias de sua re-
cente viagem em grupo à Disneylândia; e dois garotos afro-americanos jo-
gando conversa fora à mesa, disputando quem conseguia beber um copo

1 No sistema norte-americano de tutela infanto-juvenil pelo Estado, são muitos os tipos de abrigo
concedidos aos menores, desde os lares de criação temporários até várias instituições residenciais
coletivas, classificadas por níveis conforme as necessidades dos menores e oferecendo diversos
graus de assistência e supervisão. As do nível 14 são as instalações não prisionais reservadas para
a internação dos menores mais problemáticos, que costumam requerer assistência clínica e super-
visão intensa durante 24 horas por dia. (N.T.)
d’água mais depressa. Uma menina branca estava sentada no sofá, e o
sexto morador da casa, eu soube depois, havia saído para uma aula de
natação. Em pouco tempo, a garota dos fones de ouvido estava cantando a
capela (e muito bem) e a que se debruçava sobre o álbum de fotografias ti-
nha começado a me chamar de Bob Marley, aparentemente por eu saber
quem era Jordin Sparks. De vez cm quando, um dos menores caía na gar-
galhada.
“A meninada fica muito grata por sair da medicação”, disse a terapeuta
Kari Sundstrom. “A personalidade deles volta. Eles tornam a ser gente.”
As duas casas do Centro Séneca talvez sejam as últimas instituições
residenciais dos Estados Unidos em que crianças com transtornos graves,
sob o controle do município ou do estado, são tratadas sem drogas psiqui-
átricas. Aliás, na maioria dos círculos da psiquiatria infantil, isso seria
considerado antiético. “Já me disseram: ‘Se o seu filho tivesse uma do-
ença, você lhe negaria a medicação que o ajudasse a melhorar?’”, disse
Ken Berrick, fundador e diretor geral do Centro Séneca. E, mesmo dentro
da instituição, que tem uma equipe de aproximadamente setecentas pes-
soas e fornece uma variedade de serviços a duas mil crianças e adolescen-
tes problemáticos no norte da Califórnia, o programa residencial é uma
anomalia.
Quando o centro foi inaugurado, cm 1985, Berrick e outros procura-
ram contratar consultores psiquiátricos que usassem medicamentos psi-
quiátricos de maneira “conservadora”, e nunca para fins de “controle com-
portamental”. Alguns usavam mais remédios que outros, e então veio Tony
Stanton, que a agência contratou em 1987, para supervisionar o programa
residencial da garotada. Na década de 1960, ele fizera formação no Hospi-
tal Langley Porter, em San Francisco, que na época enfatizava a “impor-
tância do ambiente” para a saúde mental da criança. A “teoria do apego”,
do próprio Stanton, convenceu-o da importância das relações afetivas para
o bem-estar da criança. Depois, no fim da década de 1970, quando era en-
carregado de uma ala psiquiátrica infantil num hospital municipal, ele ha-
via destinado um “mentor” a cada criança. As crianças não eram medica-
das, e ele viu diversas delas se apegarem a seus mentores e “desabrocha-
rem”.
“Aquela experiência me permitiu ver esse princípio terapêutico em
ação”, disse Stanton. “Você simplesmente não pode se organizar sem uma
ligação com outro ser humano, e não pode estabelecer essa ligação se esti-
ver embalsamado em remédios.”
Quando uma criança entra no programa residencial do Centro Séneca,
Stanton não pergunta “o que há de errado” com ela, mas “o que lhe acon-
teceu”. Pede ao setor de serviços sociais, a escolas e outras agencias que
lhe mandem todo o histórico que tiverem sobre a criança, e então passa de
oito a dez horas construindo um “gráfico de vida”. Como se poderia espe-
rar, os gráficos comumente falam de crianças que sofreram abusos sexu-
ais, maus-tratos físicos e uma negligência terrível. Mas Stanton também
levanta o histórico de medicação do menor e procura saber de que modo
seu comportamento pode ter se alterado, depois de ele passar a usar de-
terminado medicamento. Visto que as crianças que chegam ao Centro
Séneca têm transtornos graves, esses históricos médicos falam regular-
mente de atendimentos psiquiátricos que pioraram a conduta delas. “Há
quem me diga: ‘Agora queremos experimentar tratar a criança com Risper-
dal’, e eu respondo: ‘Vamos dar uma olhada no gráfico e ver o que aconte-
ceu antes. Acho que isso não vai ajudar’”, contou Stanton.
Os menores quase sempre chegam ao centro com coquetéis medica-
mentosos, de modo que pode levar um ou dois meses para fazer o “des-
mame” dos medicamentos. Muitas vezes, depois de lhes terem dito repeti-
damente que elas precisavam dos remédios, as crianças ficam nervosas
com esse processo - “Um garoto me disse: ‘O que você quer dizer com tirar
meus remédios? Vou destruir o seu programa’”, contou Stanton - e, não
raro, tornam-se mais agressivas, durante algum tempo. O pessoal pode ter
que usar a “contenção física” com mais frequência (foi treinado para con-
ter as crianças de maneiras “seguras”). Mas esses problemas comporta-
mentais costumam começar a diminuir c, ao término do processo de “des-
mame”, a criança “ganha vida”.
“É maravilhoso”, disse Kim Wayne. “Na maioria dos casos, quando as
crianças chegam, não conseguem manter a cabeça em pé, são letárgicas,
são só um vazio, e seu engajamento é mínimo. Não se consegue chegar até
elas. Mas, quando param de tomar os remédios, podemos captar a aten-
ção delas e ver quem são. A gente tem uma ideia da sua personalidade, do
seu senso de humor e dos tipos de coisas que elas gostam de fazer. Pode-
mos ter que usar a contenção física por algum tempo, mas, para mim, vale
a pena.”
Depois que param de tomar a medicação, as crianças pensam nelas
mesmas de uma nova maneira. Veem que podem controlar seu comporta-
mento, o que lhes dá um senso de “capacidade de agir”, disse Stanton. O
Centro Séneca usa técnicas de modificação do comportamento para pro-
mover esse autocontrole, tendo as crianças que obedecer
sistematicamente a um conjunto de regras bem definidas. Elas têm de pe-
dir permissão para usar o banheiro e para entrar nos quartos e, quando
não cumprem as regras, podem ter que “ir para o banco”, interrompendo
suas atividades, ou perdem um privilégio. Mas a equipe tenta concentrar-
se cm reforçar os comportamentos positivos, elogiando e premiando as cri-
anças de várias maneiras. Elas são solicitadas a manter seus quartos ar-
rumados e a fazer uma tarefa doméstica diária, às vezes ajudando a pre-
parar a refeição noturna.
“A questão do sentir-se cuidando de si, responsável por si mesmo, é o
problema central da vida deles”, disse Stanton. “Eles podem só o conse-
guir parcialmente, enquanto estão conosco, mas, quando temos sucesso
de verdade, nós os vemos desenvolverem um sentimento de ‘Ah, eu posso
fazer isso; quero estar no controle de mim mesmo e da minha vida’. Eles
se veem dotados desse poder.”
Mais importante ainda, depois que a medicação é suspensa, as crian-
ças ficam mais aptas a formar laços afetivos com a equipe, e esta com
elas. Essas crianças conheceram a rejeição durante a vida inteira e preci-
sam estabelecer relações que alimentem a convicção de que são dignas de
ser amadas; quando isso acontece, sua “narrativa interna” pode passar de
“sou uma criança má” para “sou uma criança boa”.
“Eles chegam pensando: ‘Eu sou maluco(a), vocês vão me detestar, vão
se livrar de mim, vou ser a pior criança que vocês já viram’”, disse a tera-
peuta Julie Kim. “Mas depois, passam a se dispor a formar vínculos [afeti-
vos], e isso é uma coisa incrível. Você vê o poder que tem a relação para
modificar uma criança, e até a garotada que parece mais durona ao entrar
aqui, aquela que a princípio não faz progresso algum, acaba chegando lá.”
Embora Kim e outros possam contar histórias de sua própria experiên-
cia sobre crianças que receberam alta do programa residencial, voltaram
para escolas comuns e se saíram bem, o Sêneca não fez um acompanha-
mento a longo prazo das crianças que passaram por seu programa resi-
dencial. A única estatística de que dispõe para mostrar que o programa
funciona é esta: 225 crianças viveram em suas residências de 1995 a
2006, e quase todas foram liberadas para instituições residenciais coleti-
vas para jovens menos problemáticos, ou para lares de criação temporá-
rios, ou para suas famílias biológicas. Pelo menos, sua temporada no Cen-
tro Sêneca pôs sua vida em um novo rumo. Entretanto, é difícil confiar
com otimismo que sua vida prosseguirá nessa direção. Seus problemas
afetivos e comportamentais não desaparecem por completo, e assim,
muitas das crianças que recebem alta - talvez a maioria - voltam a ser me-
dicadas. Retornam a um mundo cm que essa é a norma. Sua temporada
no Centro Séneca pode proporcionar-lhes, primordialmente, um oásis
temporário numa sociedade propensa a perguntar “qual é o problema de-
les”, e portanto, se quisermos avaliar se a política de mio medicação do
programa residencial do centro oferece algum “benefício” às crianças, tal-
vez devamos, cm vez de olhar para o futuro, concentrar a atenção no pre-
sente e ver o que é, para os menores, ler essa oportunidade de “ganhar
vida” por algum tempo e de sentir plenamente o mundo.
Passei dois dias no centro, e houve três crianças, cm particular, com
quem tive a oportunidade de interagir. Uma era um menino de 12 anos
chamado Steve. Ao chegar ao Centro Séneca, um ano antes, ele estava tão
carregado de hábitos suicidas e autodestrutivos que os médicos acharam
que havia sofrido alguma lesão cerebral, por causa de todos os seus episó-
dios de pancadas na cabeça. Desde então, apegou-se muito ao Stacy, um
dos funcionários da casa cm que mora, c, durante nossa entrevista, arriou
numa cadeira, sorriu e tomou ¡mediatamente as rédeas da conversa. “De-
testo tomar remédios. E muito chato usar drogas”, disse, e começou a nos
falar de tartarugas migratórias, de um guaxinim que andara bisbilhotando
a casa deles, de uma ida ao McDonald’s com o Stacy e do que as pessoas
precisavam fazer para se preparar para terremotos. Tudo isso foi o prelú-
dio de um discurso sobre um livro de histórias cm quadrinhos que ele
queria escrever, intitulado Ar Aventuras de Sam Duna e Rocha, com nu-
merosos personagens “bons e maus’, inclusive um que precisava tomar re-
médios para não enlouquecer. Steve ocupou o centro do palco por pelo
menos uma hora c, mais tarde, todo contente, informou ao Stacy que a
entrevista havia sido “fria, muito fria”, o que significou, é claro, que tinha
se divertido imensamente1.
Vou chamar as duas meninas afro-americanas que conheci na casa
Los Reyes de Layla (a cantora a capella) e Takeesha. Seus “gráficos de
vida” falavam de um passado de pesadelo, o que se aplicava particular-
mente a Takeesha. Ao chegar ao Centro Séneca, em 2006, com 7 anos de
idade, ela fora descrita como delirante, reservada, desconfiada, pouco coo-
perativa e muito sedada. Depois de passarmos uns trinta minutos à mesa
da cozinha, falando de American Idol e da excursão que elas haviam feito

1 A formulação coloquial cm inglês seria “cool, real cool - "legal, muito legal" mas Steve diz 'cold real
cold”. misturando as acepções dos dois adjetivos a partir de sua relação semântica com a ideia de
frio. (N.T.)
à Disneylândia, Takeesha perguntou se poderíamos brincar de arremessos
com uma bola de futebol, do lado de fora. Assim fizemos por algum tempo,
e então ela obteve permissão para andar em sua bicicleta na rua, mas só
se prometesse percorrer apenas a distância de algumas casas, para um
lado e para o outro. De repente, ela deu uma freada ruidosa na calçada:
“Vou ao Burgrr King. O que você quer?”, anunciou. Segundos depois, vol-
tou orgulhosa, segurando um saquinho imaginário com um Whopper, ba-
tatas fritas e uma Coca-Cola, pelos quais paguei com uma nota igual-
mente imaginária de cinco dólares, pedindo-lhe para me dar o troco. Na
hora de nos despedirmos, Layla pediu um abraço, e então, Takcesha - que
tinha corrido para buscar alguma coisa cm seu quarto - me ofereceu o que
parecia ser uma embalagem de chiclete, exceto pelo fato de que o pedaço
com a ponta para fora era claramente de natureza metálica.
“E só chiclete!”, ela se esganiçou, quando senti a pequena vibração.
No dia seguinte, assisti à aula delas. Falei rapidamente com a profes-
sora e diversos ajudantes, e todos disseram a mesma coisa. “Essa garo-
tada é incrível! Poderíamos drogar essa turma para deixá-la submissa,
mas para quê? Eu adoro isto aqui!” Eu tinha ido lá com Tony Stanton, e
após algum tempo ficou patente que nossa presença estava causando um
dilema para Layla e Takcesha. Elas deveriam estar prestando atenção à
professora e sabiam que se não o fizessem seriam mandadas para o banco
(havia uma marcha contínua de crianças para o canto do castigo), mas as
duas estavam claramente decididas a manter contato conosco. Estávamos
sentados perto da pia e, no fim, as duas resolveram que tinham de lavar
as mãos. Quando Layla voltou para sua carteira, não resistiu a nos cum-
primentar com um tapa na mão espalmada, embora isso fosse uma que-
bra do protocolo da aula. Enquanto isso, ao passar por minha cadeira, Ta-
keesha cochichou: “Bob Marley, o que você está fazendo aqui?”.
Naquele momento, não consegui imaginar nenhuma estatística de re-
sultados que fosse mais poderosa.

No Quadro-Negro

A psiquiatria e o restante da medicina costumam proclamar que os


tratamentos devem “basear-se nas evidências”. Todas as soluções que exa-
minamos neste capítulo obedecem a esse padrão. A convicção de David
Healy de que os medicamentos psiquiátricos devem ser usados com cau-
tela, o programa de diálogo aberto em Tornio, a receita de exercícios como
tratamento de primeira linha para a depressão leve a moderada, todos se
enraízam numa sólida base científica. O mesmo se pode dizer da política
de suspensão de medicamentos de Tony Stanton. Num ponto anterior
deste livro, vimos que as crianças medicadas com estimulantes, antide-
pressivos e antipsicóticos comumente pioram a longo prazo, e que é possí-
vel considerar que as que acabam com coquetéis medicamentoso» sofrem
de uma doença iatrogênica. Os medicamentos podem ser vistos como
agentes patológicos, e por isso, quando Tony Stanton retira os remédios
das crianças do Centro Séneca, ele está - essencialmente - fornecendo tra-
tamento para uma “doença”. A prova de que o tratamento funciona pode
ser encontrada na observação dos membros da equipe de que as crianças
“ganham vida".
Dada essa perspectiva, seria útil se pudéssemos identificar um pro-
grama da corrente dominante para a retirada da medicação cm adultos,
algo proveniente de pesquisas sobre esse processo. Com que rapidez as
drogas devem ser retiradas? Depois que são retiradas, quanto tempo o cé-
rebro leva para “voltar ao normal? Ou será que volta? Os mecanismos
neuronais de realimentação recuperam sua regulação inicial? Os neurô-
nios pré-sinápticos começam a liberar volumes normais de neurotrans-
missores? As densidades dos receptores voltam ao normal? A psiquiatria
tem usado medicamentos psicotrópicos há mais de cinquenta anos, mas
todas essas perguntas permanecem basicamente sem resposta. Na ver-
dade, cm sua maioria, as pessoas que querem parar de tomar a medicação
têm que se virar sozinhas, compartilhando informações na internet e atra-
vés de suas várias redes de pares.
Entretanto, no outono de 2009, um grande prestador de serviços de
saúde mental das regiões oriental e central de Massachussetts, a Advoca-
tes, traçou um plano para um estudo sobre a retirada da medicação. A
Advocates presta serviços a vários milhares de pessoas com dificuldades
psiquiátricas, e quando, em 2008, pediu “ideias novas” a seus clientes,
muitos colocaram essa no topo de sua lista de desejos, nas palavras de
Keith Scott, diretor dos serviços de recuperação e apoio de pares. "Alguns
disseram: ‘Puxa, seria ótimo se houvesse um lugar cm que eu pudesse
tentar parar de tomar minha medicação, sem que me ameaçassem de per-
der minha moradia ou meus serviços e as relações que são importantes
para mim’. Isso me pareceu extremamente razoável.”
O diretor médico da Advocates, Chris Gordon, que e professor clínico
assistente de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade Har-
vard, disse ler esperança de obter financiamento do Departamento de Sa-
úde Mental do estado ou de algum órgão federal. A Advocates fornece
apoio médico e social aos pacientes do estudo sobre “redução/eliminação
das drogas”, e Gordon disse que.se os pacientes começarem a ler dificul-
dades durante o processo de “desmame", ele quer ver se é possível ajudá-
los a atravessar essa crise sem reiniciar a medicação. Gostaria de acompa-
nhar os pacientes do programa por cinco anos, para que a Advocates
possa ter ideia dos resultados a longo prazo.
Essa iniciativa, disse Gordon, vem sendo movida, cm parte, pelo Tato
de que agora os doentes mentais estão morrendo 25 anos antes dos seus
pares, e de que está claro que os antipsicóticos atípicos, que costumam
causar disfunção metabólica, estão contribuindo para esse problema da
morte prematura. “Vemos isso o tempo todo. Poderíamos fornecer uma
lista terrível de gente que conhecíamos pessoalmente e com quem nos im-
portávamos, e que morreu jovem demais”, acrescentou.

O Projeto do Alasca

Se eu tivesse que identificar uma pessoa nos Estados Unidos como


quem mais tem feito para “modificar o sistema”, escolheria o advogado Jim
Gottstein, do Alasca. Formado em 1978 na Faculdade de Direito da Uni-
versidade Harvard, Gottstein foi internado duas vezes, na década de 1980,
por causa de surtos maníacos, e essa experiência pessoal inspirou uma
vida de luta para melhorar a situação aflitiva dos doentes mentais na
nossa sociedade.
Durante os anos 1980 e 1990, Gottstein juntou-se a outros advogados
numa épica ação judicial movida pela Associação de Saúde Mental do
Alasca contra o Estado. Em 1956, o Congresso havia permitido que os ad-
ministradores territoriais do Alasca reservassem um milhão de acres de
terras federais de primeira como um recurso para financiar programas de
saúde mental, mas cm 1978 o Legislativo estadual redenominou a área
como “concessão geral de terras", deixando desamparados os doentes
mentais. Basicamente, o Estado “roubou” a terra, disse Gottstein, e ele e
outros advogados acabaram negociando um acordo de 1,1 bilhão de dóla-
res. O Estado deu 200 milhões de dólares e quase um milhão de acres de
terra ao recém-criado Fundo Fiduciário da Saúde Mental, ficando este au-
torizado a gastar esse dinheiro como julgar conveniente, sem necessidade
de aprovação do Legislativo estadual.
Em 2002, Gottstein fundou uma organização sem fins lucrativos, a
PsychRights, e a primeira coisa que fez foi montar uma campanha de “in-
formação pública”. A PsychRights levou várias pessoas a Anchorage para
fazer palestras para juízes, advogados, psiquiatras e o público em geral so-
bre a literatura acerca de resultados dos antipsicóticos1. Gottstein achava
que isso proporcionaria uma base para uma ação judicial que questio-
nasse o direito estadual de medicar pacientes à força, bem como para uma
pressão sobre o Fundo Fiduciário da Saúde Mental para que este financi-
asse uma instituição semelhante à Soteria, onde os pacientes psicóticos
que não quisessem tomar neurolépticos pudessem receber ajuda.
“A opinião popular é que os remédios funcionam e que, se as pessoas
não fossem loucas, saberiam que as drogas são boas para elas”, disse Go-
ttstein. “Mas, se pudéssemos fazer juízes e advogados compreenderem que
isso não e necessariamente bom para a pessoa, e que é potencialmente
muito nocivo, eles tenderiam a honrar o direito legal da pessoa de recusar
tratamento. Do mesmo modo, se o público soubesse que há outras abor-
dagens não medicamentosas que funcionam melhor, como a Soteria, ele
apoiaria as alternativas, certo?”
O direito jurisprudencial do Estado que rege o tratamento forçado de
pacientes psiquiátricos remonta ao fim da década de 1970. Embora, tipi-
camente, os tribunais superiores estaduais emitissem o veredicto de que
os pacientes tinham o direito de recusar tratamento (cm situações não
emergenciais), cies assinalavam que os antipsicóticos eram tidos como
“um tratamento medicamente comprovado para a doença mentar, e por
isso os hospitais podiam recorrer a um tribunal para sancionar o trata-
mento forçado. Nessas audiências, era comum os hospitais argumentarem
que nenhuma pessoa competente recusaria um “tratamento medicamente
comprovado”, e com isso os tribunais ordenavam sistematicamente que os
pacientes fossem medicados. Em 2003, porém, Gottstein moveu um pro-
cesso sobre medicação forçada em nome de uma mulher chamada Faith
Myers, e pôs a medicação em julgamento, ao alegar que o Estado não po-
dia mostrar que era do interesse médico de sua cliente tomar um antipsi-
cótico. Ele conseguiu que Loren Mosher e uma segunda psiquiatra que co-
nhece bem a literatura sobre resultados. Grace Jackson, depusessem
como suas testemunhas especializadas, e também protocolou cópias dos
muitos estudos de pesquisa que relatam como os neurolépticos podem
agravar os resultados a longo prazo.
Tendo ficado versado na literatura científica, o Superior Tribunal do
Alasca deu à PsychRights uma assombrosa vitória jurídica em 2006. “A

1 A bem da transparência, devo informar que fui um dos palestrantes em vários desses eventos.
medicação psicotrópica pode ler efeitos negativos profundos e duradouros
na mente e no corpo do paciente”, escreveu o tribunal. “É sabido que [es-
ses medicamentos] causam diversos efeitos colaterais potencialmente de-
vastadores.” Assim, em Myers vs Instituto de Psiquiatria do Alasca, deu o
veredicto de que um paciente psiquiátrico só poderia ser medicado à força
se um tribunal “concluísse expressamente, mediante provas claras e con-
vincentes, que o tratamento proposto servia aos mais altos interesses do
paciente e que não se dispunha de nenhuma alternativa menos invasiva”.
No direito jurisprudencial do Alasca, os antipsicóticos já não são vistos
como uni tratamento que necessariamente ajude os psicóticos.
Em 2004, Gottstein lançou um esforço para fazer o Fundo Fiduciário
da Saúde Mental financiar uma residência do tipo Soteria em Anchorage,
o que ofereceria aos pacientes psicóticos o tipo de atendimento fornecido
pelo Projeto Soteria, de Loren Mosher, na década de 1970. Mais uma vez,
ele se apoiou nos poderes de persuasão da literatura científica para respal-
dar sua argumentação, e no verão de 2009 foi inaugurada uma casa Sote-
ria com sete quartos, alguns quilômetros ao sul do centro da cidade. A di-
retora do projeto, Susan Musante, chefiara antes um programa de reabili-
tação psiquiátrica no Centro de Saúde Mental da Universidade do Novo
México; o psiquiatra assistente, Aron Wolf, é uma figura muito respeitada
na psiquiatria alasquiana.
“Queremos trabalhar com pessoas mais jovens, que tenham usado me-
dicamentos psiquiátricos apenas por um curto período, e ao retirar sua
medicação e ajudá-las a melhorar, esperamos impedir que elas enveredem
pelo trajeto da doença crônica”, disse Musante. “Nossa expectativa e que
as pessoas se recuperem. Esperamos que trabalhem ou frequentem a es-
cola, que retomem um comportamento apropriado para sua idade. Esta-
mos aqui para ajudá-las a voltar a sonhar e a perseguir esses sonhos. Não
estamos dispostos a canalizá-las para a Renda Complementar da Previ-
dência (SSI) ou o Seguro da Presidência Social por Invalidez (SSDI).”
Agora, Gottstein tem os olhos voltados para um questionamento jurí-
dico de I âmbito nacional. Tem movido processos que questionam a medi-
cação de crianças de lares de criação temporários e de crianças pobres do
Alasca (os pobres têm cobertura do Medicaid) e, cm última análise, espera
levar um desses processos à Suprema Corte dos Estados Unidos. Para ele,
essa é uma questão pertinente à 14ª Emenda constitucional, pois as cri-
anças são privadas de sua liberdade sem o devido processo legal. No cerne
de qualquer desses processos estaria uma pergunta científica: as crianças
dos lares de criação estão sendo tratadas com medicamentos que ajudam,
ou estão sendo tratadas com drogas tranquilizantes que causam danos a
longo prazo?
“Faço uma analogia com Brows vs Diretoria de Ensino", disse Gotts-
tein. “Antes daquela decisão, havia nos Estados Unidos uma aceitação ge-
ral da ideia de que a segregação era certa. A Suprema Corteja havia dito,
em decisões anteriores, que a segregação era certa. Mas no processo
Brown vs Diretoria de Ensino ela disse que não era. e isso realmente mo-
dificou a opinião pública. Hoje em dia, não se consegue encontrar nin-
guém que diga que a segregação e certa. E é assim que visualizo todo este
esforço."

Nós, o Povo

Como sociedade, depositamos nossa confiança na classe médica, para


que ela desenvolva o melhor atendimento clínico possível para toda sorte
de doenças e indisposições. Esperamos que os profissionais sejam francos
conosco no cumprimento dessa tarefa. No entanto, ao buscarmos manei-
ras de deter a epidemia de doenças mentais incapacitantes que irrompeu
neste país, não podemos confiar em que a psiquiatria, como classe profis-
sional, cumpra essa responsabilidade.
Nos últimos 25 anos, a classe psiquiátrica tem nos contado uma histó-
ria falsa. Ela nos disse que a esquizofrenia, a depressão e o transtorno bi-
polar são conhecidos como doenças cerebrais, muito embora - como reve-
lou a greve de fome feita por um grupo da organização MindFreedom - não
consiga nos apontar nenhum estudo científico que documente essa afir-
mação. Ela nos disse que os medicamentos psiquiátricos corrigem dese-
quilíbrios químicos no cérebro, muito embora décadas de pesquisa não o
tenham constatado. Ela nos disse que o Prozac e os outros psicotrópicos
de segunda geração eram muito melhores e mais seguros que as drogas
da primeira geração, muito embora os ensaios clínicos não tenham mos-
trado nada disso. E, mais importante que tudo, a classe psiquiátrica domi-
nante não nos disse que os medicamentos pioram os resultados a longo
prazo.
Se a psiquiatria tivesse sido honesta conosco, a epidemia poderia ter
sido estancada há muito tempo. Os resultados de longo prazo leriam sido
divulgados e discutidos, e isso teria disparado alarmes sociais. Ao contrá-
rio, a psiquiatria contou histórias que protegeram a imagem de seus medi-
camentos, e essas histórias da carochinha levaram a que fossem causados
danos numa escala enorme e terrível. Quatro milhões de adultos norte-
americanos com menos de 65 anos recebem hoje auxílio da SS1 ou do
SSDI, por se acharem incapacitados por doenças mentais. Um em cada 15
adultos jovens (de 18 a 26 anos) acha-se “funcionalmente prejudicado” por
doenças mentais. Cerca de 250 crianças e adolescentes são diariamente
acrescentadas às listas da SSI por doenças mentais. São números estarre-
cedores, mas a máquina geradora da epidemia continua a operar, com cri-
anças de 2 anos sendo agora “tratadas” no nosso país por transtorno bipo-
lar.
Como observei anteriormente neste capítulo, creio que os Seis da Min-
dFreedom mostraram o que deve ser feito, se quisermos sustar essa epide-
mia. Precisamos nos informar sobre a literatura acerca de resultados a
longo prazo examinada neste livro, e depois precisamos pedir ao NIMH, à
NAMI, à APA e a todos os que receitam os medicamentos que respondam
às muitas perguntas levantadas por essa literatura. Em outras palavras,
precisamos ter uma discussão científica honesta. Precisamos conversar
sobre o que realmente se sabe sobre a biologia dos transtornos mentais,
sobre o que os medicamentos realmente fazem, e sobre como os fármacos
aumentam o risco de que as pessoas se transformem em doentes crônicos.
Se pudermos ter essa discussão, uma mudança certamente se seguirá.
Nossa sociedade se disporia a abraçar e promover formas alternativas de
tratamento não medicamentoso. Os médicos receitariam os remédios de
maneira muito mais restrita e cautelosa. Pararíamos de dar coquetéis de
drogas pesadas às crianças acolhidas cm lares de criação temporários e de
fingir que isso constitui atendimento médico. Em suma, nossa ilusão so-
cial sobre uma revolução da “psicofarmacologia” poderia enfim se dissipar,
e a ciência de bases sólidas poderia iluminar o caminho para um futuro
muito melhor.
EPÍLOGO

“Poucos se atrevem a anunciar uma verdade indesejada.” - Edwin Percy


Whipple, 1866,
Este livro conta uma história da ciência que leva os leitores a um lugar
socialmente incômodo. Nossa sociedade acredita que os medicamentos
psiquiátricos levaram a um avanço “revolucionário” no tratamento dos
transtornos mentais, mas estas páginas falam de uma epidemia de doen-
ças mentais incapacitantes induzida pelos fármacos. A sociedade vê a
moça bonita, e este livro orienta o olhar dos leitores para a bruxa velha.
Nunca é fácil afirmar uma convicção que está fora de sincronia com aquilo
em que o resto da sociedade acredita e, neste caso, isto é particularmente
difícil porque a história de progresso é contada por figuras de autoridade
científica: a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA), o Instituto
Nacional de Saúde Mental (NIMH) e psiquiatras de universidades de pres-
tígio, como a Faculdade de Medicina de Harvard. Discordar do saber co-
mum sobre este tema faz parecer que o sujeito é membro de carteirinha da
sociedade da Terra plana.
Mas, para os leitores que ainda se intrigam com a história aqui nar-
rada, ofereço um último relato. Você pode lê-lo e decidir por si se agora se
coloca, metaforicamente falando, no campo da Terra plana.
Depois que entrevistei Jaakko Seikkula na Universidade de Jyvaskyla,
ele me pediu para fazer uma pequena palestra sobre a história dos anti-
psicóticos para alguns de seus colegas. Ora, Seikkula e outros profissio-
nais do Hospital Keropudas, em Tornio, não tinham decidido usar os anti-
psicóticos de modo seletivo por acharem que os medicamentos pioravam
os sintomas psicóticos a longo prazo. Ao contrário, tinham observado que
muitas pessoas se davam melhor sem eles. Assim, quando fiz a palestra
para os colegas de Seikkula na Universidade de Jyvaskylã, essa ideia de
que os antipsicóticos podiam transformar as pessoas em doentes crônicos
era algo em que eles não haviam pensado muito até então, e, ao término
da minha fala, um dos membros do nosso círculo perguntou se isso tam-
bém poderia se aplicar aos antidepressivos. Ele e outros vinham pesqui-
sando os resultados a longo prazo de pacientes deprimidos na Finlândia e
também mapeando se eles haviam usado esses medicamentos, e estavam
assustados com suas descobertas.
Então, caros leitores, formulem-se esta pergunta: o que acham que
eles descobriram? E vocês estão surpresos?
SUMÁRIO

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA .................................................................................................................... 343


APRESENTAÇÃO............................................................................................................................................... 348
PARTE I. A EPIDEMIA ...................................................................................................................................... 351
1. UMA PRAGA MODERNA................................................................................................................................ 352
A Epidemia ............................................................................................................................................. 355
Uma Investigação Científica ................................................................................................................... 358
2. REFLEXÕES EXPERIENCIAIS.............................................................................................................................. 361
Quatro Histórias ..................................................................................................................................... 364
Cathy Levin..............................................................................................................................................................365
George Badillo ........................................................................................................................................................369
Monica Briggs .........................................................................................................................................................372
Dorea Vierling-Claassen ........................................................................................................................................375
O Dilema dos Pais ................................................................................................................................... 379
PARTE II. A CIÊNCIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS ....................................................................................... 384
3. AS RAÍZES DE UMA EPIDEMIA ......................................................................................................................... 385
Imaginando uma Nova Psiquiatria......................................................................................................... 388
4. AS PÍLULAS MÁGICAS DA PSIQUIATRIA ............................................................................................................. 392
Neurolépticos, Tranquilizantes Leves e Estimulantes Psíquicos ............................................................. 392
Uma Aliança Espúria .............................................................................................................................. 398
As Substâncias Químicas do Cérebro...................................................................................................... 403
A Realização das Expectativas................................................................................................................ 405
Uma Revolução Científica... ou um Delírio da Sociedade? ..................................................................... 406
5. A CAÇADA AOS DESEQUILÍBRIOS QUÍMICOS ...................................................................................................... 408
A Hipótese Serotoninérgica Posta à Prova ............................................................................................. 412
O Dejavu da Dopamina .......................................................................................................................... 415
Réquiem para uma Teoria ...................................................................................................................... 417
Prozac na Cabeça ................................................................................................................................... 419
Um Paradigma para Compreender as Drogas Psicotrópicas ................................................................. 422
De Volta ao Começo ............................................................................................................................... 424
PARTE III. RESULTADOS .................................................................................................................................. 425
6. REVELAÇÃO DE UM PARADOXO ....................................................................................................................... 426
A História Natural da Esquizofrenia ....................................................................................................... 427
Olhando por uma Lente Escura .............................................................................................................. 430
A Defesa dos Neurolépticos.................................................................................................................... 433
Surge um Enigma ................................................................................................................................... 435
Uma Cura Pior que a Doença? ............................................................................................................... 440
Psicose por Hipersensibilidade ............................................................................................................... 441
Uma Ideia Maluca... ou Não?................................................................................................................. 443
O estudo longitudinal de Vermont ......................................................................................................................445
Os estudos transculturais da Organização Mundial da Saúde ..........................................................................446
Discinesia tardia e declínio global ........................................................................................................................447
Estudos por ressonância magnética ....................................................................................................................447
Criação de modelos de psicose ............................................................................................................................448
O estudo longitudinal de Nancy Andreasen usando a ressonância magnética ..............................................449
A Ilusão do Clínico................................................................................................................................... 450
Reexaminando as Provas ....................................................................................................................... 454
Cathy, George e Kate.............................................................................................................................. 456
7. A ARMADILHA DAS BENZODIAZEPINAS ............................................................................................................. 461
A Ansiedade Antes do Miltown .............................................................................................................. 461
Os Tranquilizantes Leves Caem em Desgraça ........................................................................................ 463
O ABC das Benzodiazepinas ................................................................................................................... 466
Eficácia a curto prazo.............................................................................................................................................466
A biologia do ‘"desmame” das benzodiazepinas................................................................................................468
Efeitos a longo prazo .............................................................................................................................................469
Geraldine, Hal e Liz ................................................................................................................................. 471
Os Números da Invalidez ........................................................................................................................ 478
8. UMA DOENÇA EPISÓDICA TORNA-SE CRÔNICA .................................................................................................. 480
Como Era a Depressão ........................................................................................................................... 482
Tristeza Abreviada.................................................................................................................................. 485
O Fator Cronicidade, Mais Uma Vez....................................................................................................... 488
Todos os Psicotrópicos Funcionam dessa Maneira? .............................................................................. 490
É a Doença, Não o Remédio ................................................................................................................... 491
Depressão Não Medicada vs Depressão Medicada ............................................................................... 495
Nove Milhões, e a Contagem Continua .................................................................................................. 500
Melissa ................................................................................................................................................... 502
9. O CRESCIMENTO EXPLOSIVO DO TRANSTORNO BIPOLAR ...................................................................................... 503
O Transtorno Bipolar Antes do Lítio ....................................................................................................... 508
Entrada na Bipolaridade......................................................................................................................... 510
Os Anos do Lítio ...................................................................................................................................... 513
Permanentemente Bipolar ..................................................................................................................... 516
O Dano Causado..................................................................................................................................... 519
O Gráfico que Revela Tudo ..................................................................................................................... 524
Narrativas sobre Bipolaridade................................................................................................................ 526
10. EXPLICAÇÃO DE UMA EPIDEMIA .................................................................................................................... 535
Um Rápido Experimento Ideativo........................................................................................................... 537
Um Mistério Resolvido ........................................................................................................................... 538
Doença Física, Deterioração Cognitiva e Morte Prematura ................................................................... 540
11. A EPIDEMIA DISSEMINADA ENTRE AS CRIANÇAS ............................................................................................... 545
A Ascensão do TDAH .............................................................................................................................. 547
Passivos, Parados, Solitários................................................................................................................... 550
Os Estimulantes São Reprovados ........................................................................................................... 554
Calculando o Prejuízo ............................................................................................................................. 556
Resultados Deprimentes......................................................................................................................... 557
Surge Mais Uma Doença ........................................................................................................................ 560
Criando a Criança Bipolar ....................................................................................................................... 563
O Destino que Nos Espera ...................................................................................................................... 571
Os Números da Invalidez ........................................................................................................................ 573
12. QUANDO OS JOVENS SOFREM ...................................................................................................................... 575
Perdida em Seattle ................................................................................................................................. 575
Ambivalente em Syracuse ...................................................................................................................... 578
Se Você Vive sob a Tutela do Estado, Deve Ser Bipolar .......................................................................... 580
De volta a Syracuse ................................................................................................................................ 584
PARTE IV. EXPLICAÇÃO DE UMA ILUSÃO ....................................................................................................... 588
13. A ASCENSÃO DE UMA IDEOLOGIA .................................................................................................................. 589
A Era da Inquietação da Psiquiatria ....................................................................................................... 589
Evitando o Óbvio .................................................................................................................................... 592
Vestindo o Jaleco Branco ........................................................................................................................ 594
Os Loucos da Psiquiatria......................................................................................................................... 597
Harmonia em Quatro Partes .................................................................................................................. 601
Os Críticos Acreditavam em Alienígenas ................................................................................................ 606
14. A HISTÓRIA QUE FOI... E NÃO FOI CONTADA ................................................................................................... 608
Lorotas, Mentiras e um Remédio Campeão de Vendas ......................................................................... 609
A ciência da fluoxetina ........................................................................................................................... 610
A história contada nas publicações médicas .......................................................................................... 612
A história contada ao público ................................................................................................................. 614
A Cientologia Entra em Ação para Prestar Socorro................................................................................ 616
A América Enganada .............................................................................................................................. 619
A Revista Lancet Faz uma Pergunta ....................................................................................................... 627
Silenciando a Dissidência........................................................................................................................ 628
A Ocultação de Provas............................................................................................................................ 631
15. CONTABILIZANDO OS LUCROS ....................................................................................................................... 637
Uma Vitória Comercial ........................................................................................................................... 639
A Arvore do Dinheiro .............................................................................................................................. 644
Todos Pagamos a Conta......................................................................................................................... 651
PARTE V. SOLUÇÕES ....................................................................................................................................... 652
16. PROJETOS DE REFORMA .............................................................................................................................. 653
Lições de uma Greve de Fome ................................................................................................................ 654
Uma Forma Engenhosa de Cuidado ....................................................................................................... 655
Curando os que estão “no Entremeio” ................................................................................................... 658
Um Antidepressivo Natural .................................................................................................................... 665
Essa Garotada é Incrível ......................................................................................................................... 668
No Quadro-Negro................................................................................................................................... 673
O Projeto do Alasca ................................................................................................................................ 675
Nós, o Povo............................................................................................................................................. 678
EPÍLOGO ........................................................................................................................................................... 680
SUMÁRIO ......................................................................................................................................................... 681

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