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A Espada da Verdade

Fantasma
( Phantom )

Terry Goodkind

Tradução Não Oficial:

Eduardo A. Chagas Jr.


eduardo.almeida722@outlook.com

Revisão v2.0 Junho/2018


“A sala havia ficado mais escura ainda. Nicci mal conseguia ver através
da sua dor. Mas ela ainda conseguia enxergar aqueles olhos sinistros atrás de
Richard, nas sombras, observando, esperando. Ninguém além de Nicci sabia que
aquilo estava ali, naquele lugar espectral entre mundos... ”
C A P Í T U L O 1

Kahlan permaneceu quieta nas sombras, observando, enquanto o mal


bateu suavemente na porta. Encolhida sob a pequena projeção, para o lado, ela
esperava que ninguém respondesse aquela batida. Independente do quanto
gostaria de passar a noite dentro de algum lugar, fora da chuva, ela não queria
problemas para pessoas inocentes. Porém, ela sabia que não tinha voz nessa
questão.
A luz da lanterna bruxuleava fracamente através das finas janela de
ambos os lados da porta, refletindo um brilho páli do no chão do pórtico. A placa
acima, pendurada por dois anéis de ferro, rangia e chiava cada vez que
balançava para frente e para trás ao vento com chuva. Kahlan conseguia
distinguir a forma espectral de um cavalo branco pintado na placa escura
molhada. A luz das janelas não era suficiente para que ela conseguisse ler o
nome, mas porque as outras três mulheres com ela conversaram pouco sobre
outra coisa durante dias, Kahlan soube que o nome seria Hospedaria Cavalo
Branco.
Pelo cheiro de esterco e feno mol hado, ela julgou que uma das
construções escuras nas proximidades devia ser um estábulo. Em aparecimentos
esporádicos de relâmpagos distantes, ela podia distinguir as grandes formas de
escuras estruturas parecendo fantasmas além das cortinas de chuva.
Independente do constante rugido do dilúvio e do ribombar de trovões, parecia
que o vilarejo estava profundamente adormecido. Kahlan não conseguia pensar
em melhor lugar para estar em uma noite escura e miserável como essa além do
que enrolada sob as cobertas de uma cama, segura e aquecida.
Um cavalo no estábulo próximo relinchou quando Irmã Ulicia bateu
uma segunda vez, mais alto, de forma mais insistente, evidentemente querendo
ser ouvida acima do som da chuva, porém não alto o suficiente para soar hostil.
Irmã Ulicia, uma mulher dada ao impulso descuidado, parecia estar efetuando
uma aproximação deliberadamente contida. Kahlan não sabia porque, mas
imaginou que tinha alguma coisa a ver com a razão pela qual elas estavam ali.
Também poderia não ser algo mais do que a natureza aleatória do
comportamento dela. Como um relâmpago, o terrível mau humor da mulher não
era apenas perigoso mas imprevisível. Kahlan nunca conseguia perceber
exatamente quando Irmã Ulicia explodiria, e só porque até agora ela não tinha
feito isso não significava que não faria. Nenhuma das outras duas Irmãs estava
com melhor humor ou menos inclinada a perder a paciência. Kahlan supôs que
em breve as três estariam felizes e celebrando silenciosamente a reunião.
Um raio brilhou perto o bastan te para que a incandescência cegamente
brevemente revelasse toda uma rua com casas bem próximas ao redor da estrada
lamacenta e acidentada. Um trovão ecoou através do terreno montanhoso e fez
tremer o chão embaixo dos pés delas.
Kahlan desejou que houvess e algo... como o jeito que o relâmpago
revelava coisas que, caso contrário, estariam escondidas na obscuridade da
noite... que pudesse ajudar a iluminar as memórias escondidas do passado dela e
trazer à luz o que estava escondido pelo mistério lamacento de quem ela era. Ela
possuía um feroz desejo de ficar livre das Irmãs, um desejo ardente de viver sua
própria vida... de saber o que era sua vida realmente. Isso ela sabia a respeito de

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si mesma. Também sabia que suas convicções tinham que ser fundamentadas em
experiência. Era óbvio para ela que tinha de haver algo lá... pessoas e eventos...
que ajudaram a transformá -la na mulher que ela era, mas não importava o quanto
tentasse lembrar, para ela eles estavam perdidos.
Naquele dia terrível em que roubara as C aixas para as Irmãs, ela havia
prometido a si mesma que algum dia encontraria a verdade sobre quem ela era, e
ficaria livre.
Quando Irmã Ulicia bateu uma terceira vez, uma voz abafada surgiu do
interior.
— Eu ouvi! — era a voz de um homem. Seus pés descer am degraus de
madeira. — Já estou chegando! Um momento por favor!
A irritação dele por ter sido acordado no meio da noite estava
encoberta por forçada educação para clientes em potencial.
Irmã Ulicia voltou um olhar ameaçador para Kahlan. — Você sabe que
temos negócios a tratar aqui. — ela ergueu um dedo como aviso diante do rosto
de Kahlan. — Nem pense em causar qualquer problema para nós, ou receberá o
que ganhou da última vez.
Kahlan engoliu em seco com o lembrete. — Sim, Irmã Ulicia.
— É melhor que Tovi tenha nos arrumado um quarto, — reclamou a
Irmã Cecilia. — não estou com humor para receber a notícia de que o lugar está
cheio.
— Haverá espaço. — Irmã Armina falou com tranquilizante segurança,
cortando o hábito de sempre imaginar o pior de Irmã Ce cilia.
A Irmã Armina não era mais velha, como Irmã Cecilia, mas quase tão
jovem e atraente quanto Irmã Ulicia. Entretanto, para Kahlan a aparência delas
era insignificante em face da sua natureza interior. Para Kahlan, elas eram
víboras.
— De um jeito ou de outro, — Irmã Ulicia adicionou quando olhou
furiosa para a porta. — vai ter espaço.
Um raio arqueou através das nuvens esverdeadas, liberando o som
ensurdecedor de um trovão.
A porta abriu apenas em uma fresta. O rosto sombreado de um homem
olhou para o lado de fora, para elas, enquanto ele trabalhava abotoando suas
calças sob o pijama. Ele moveu a cabeça um pouco para cada lado de forma que
pudesse dar uma espiada nos estranhos.
Julgando que elas não eram perigosas, ele abriu a porta e com um
amplo gesto indicou a elas que entrassem.
— Entrem. — ela disse. — Vocês todas.
— Quem é? — gritou uma mulher enquanto descia a escada para os
fundos. Ela carregava uma lanterna em uma das mãos e segurava a barra da
camisola com a outra para não tropeçar enqua nto descia os degraus rapidamente.
— Quatro mulheres viajando no meio de uma noite chuvosa. — falou o
homem para ela, o tom mal -humorado dele insinuando o que pensava de uma
prática como essa.
Kahlan congelou no meio de um passo. Ele disse “quatro mulher es”.
Ele tinha visto todas as quatro e havia lembrado tempo bastante para
afirmar isso. Até onde ela conseguia lembrar, tal coisa jamais acontecera.
Ninguém além de suas senhoras, as quatro Irmãs... as três com ela e aquela com
quem elas vieram encontrar. .. lembrava de ter avistado ela.
Irmã Cecilia empurrou Kahlan para dentro na frente dela,
aparentemente não captando o significado do comentário.

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— Ora, minha nossa. — a mulher disse enquanto avançava entras duas
mesas de tábuas. Ela falou contra o clima carregado enquanto o vento lançava
uma rajada de chuva contra as janelas. — Faça elas entrarem saindo desse tempo
horrível, Orlan.
Punhados de gotas de chuva gordas as perseguiram na porta, molhando
um trecho do piso de pinheiro. A boca do homem contorce u de desgosto quando
ele fechou a porta contra uma rajada molhada e então colocou a pesada barra de
ferro de volta nos suportes para trancar a porta.
A mulher, seu cabelo preso em um coque frouxo, levantou a lanterna
um pouco enquanto espiava suas convida das da noite. Intrigada, ela cerrou
levemente os olhos quando seu olhar deslizou sobre as visitas molhadas e então
retornou. Sua boca abriu mas então ela pareceu esquecer o que estava prestes a
falar.
Kahlan tinha visto aquele olhar vazio mil vezes e sabi a que a mulher
só lembrava de ter visto três pessoas. Ninguém conseguia lembrar de ter visto
Kahlan tempo suficiente para dizer isso. Ela era praticamente invisível. Kahlan
pensou que talvez por causa da escuridão e da chuva o homem, Orlan, havia
apenas cometido um engano quando falou para sua esposa que havia quatro
visitantes.
— Entrem e enxuguem -se. — a mulher disse enquanto sorria com uma
calorosa confiança. Ela enfiou uma das mãos sob o braço da Irmã Ulicia,
conduzindo-a para dentro da pequena sala de espera. — Benvindas a Hospedaria
Cavalo Branco.
As outras duas Irmãs, observando abertamente a sala, removeram as
capas e aplicaram nelas uma rápida balançada antes de jogarem ela sobre um
banco em uma das duas mesas. Kahlan notou um portal escuro nos fu ndos, ao
lado da escada. Uma lareira feita com pedras achatadas empilhadas ocupava a
maior parte da parede à direita. O ar na sala pouco iluminada era morno e
carregava o distintamente atiçador aroma de um cozido na panela de ferro
pendurada em um suporte de um lado da lareira. Carvões quentes brilhavam sob
uma grossa camada de cinzas.
— As três damas parecem gatas molhadas. Devem estar sentindo -se
horríveis. — a mulher virou para o homem e gesticulou. — Orlan, prepare o
fogo.
Kahlan viu uma jovem garota com talvez onze ou doze anos descer os
degraus apenas o bastante para poder enxergar dentro da sala sob o teto baixo.
Sua longa camisola branca com mangas com babados tinha um pônei bordado em
grossa linha marrom na frente, com uma fileira de fios escuros soltos formando
a crina e a cauda. A garota sentou nos degraus para observar, puxando a
camisola sobre os joelhos ossudos. O sorriso dela revelou grandes dentes que
não acompanhavam o crescimento de seu corpo. Aparentemente estranhos
chegando no meio da no ite era uma aventura na Hospedaria Cavalo Branco.
Kahlan esperava que essa fosse toda a aventura que haveria.
Orlan, um homem grande como um urso, ajoelhou na lareira,
empilhando algumas varas de madeira. Seus dedos grossos fizeram com que os
pedaços de carvalho parecessem pouco mais do que gravetos.
— O que possuiria as damas para viajarem na chuva... durante a noite?
— ele perguntou quando lançou um olhar para elas por cima do ombro.
— Estamos com pressa para encontrar com uma amiga, — falou Irmã
Ulicia, oferecendo um sorriso vazio. Ela manteve o tom formal. — Ela deveria
nos encontrar aqui. O nome dela é Tovi. Ela está nos esperando.

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O homem colocou uma das mãos sobre o joelho para ajudar a levantar -
se. — Os convidados que ficam conosco... especialmen te em tempos difíceis
como esses... são bastante discretos. A maioria não fornece os seus nomes. —
ele ergueu uma sobrancelha para Irmã Ulicia. — De forma parecida como vocês,
damas... não falam seus nomes.
— Orlan, elas são convidadas. — a mulher o repre endeu. —
Convidadas molhadas, e sem dúvida cansadas e famintas. — ela mostrou um
sorriso. — As pessoas me chamam de Emmy. O meu marido, Orlan, e eu estamos
tocando a Cavalo Branco desde que os pais dele faleceram, faz alguns anos. —
Emm y pegou três tigelas de madeira de uma prateleira. — As damas devem estar
famintas. Permitam que eu sirva um pouco de cozido. Orlan, pegue algumas
canecas e vá buscar um pouco de chá quente para essas damas.
Orlan levantou a mão carnuda quando passava, apontando para as
tigelas que sua esposa carregava em um braço. — Você esqueceu uma.
Ela fez uma careta para ele. — Não, não esqueci; eu tenho três tigelas.
Orlan tirou quatro canecas da prateleira superior do armário. — Certo.
Como eu disse, você esqueceu uma.
Kahlan mal co nseguia respirar. Alguma coisa estava muito errada. As
Irmãs Cecilia e Armina estavam paralisadas, seus olhos arregalados fixos no
homem. A significância da conversa do casal não escapara delas.
Kahlan olhou para a escada e viu a garota nos degraus inclin ando em
direção a elas, segurando o corrimão, espiando, tentando entender sobre o que
os pais dela estavam falando.
Irmã Armina agarrou a manga da Irmã Ulicia. — Ulicia, — ela falou
em um sussurro urgente entre os dentes cerrados. — ele vê...
Irmã Ulicia fez sinal para ela calar a boca. A testa dela franziu em um
olhar sombrio quando virou sua atenção de volta para o homem.
— Você está enganado, — disse ela. — somos apenas três.
Ao mesmo tempo em que estava falando ela empurrou Kahlan com a
forte vara de carvalho que carregava, afastando -a para trás mais fundo dentro
das sombras, como se apenas as sombras pudessem tornar Kahlan invisível para
o homem.
Kahlan não queria ficar nas sombras. Queria permanecer na luz e ser
vista... vista de verdade. Uma cois a assim sempre pareceu um sonho impossível,
mas de repente tornara -se uma possibilidade real. Essa possibilidade havia
mexido com as três Irmãs.
Orlan fez uma careta para Irmã Ulicia. Segurando todas as quatro
canecas na mão carnuda, ele usou a outra para apontar para cada visitante em pé
em sua sala de espera. — Uma, duas, três... — ele inclinou para o lado, olhando
além da Irmã Ulicia, para apontar Kahlan. — quatro. Todas vocês querem chá?
Kahlan piscou, surpresa. O coração dela parecia ter subido até a
garganta. Ele enxergou -a… e lembrou do que viu.

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C A P Í T U L O 2

— Não pode ser. — Irmã Cecilia sussurrou enquanto entrelaçava as


mãos. Ela inclinou em direção a Irmã Ulicia, seus olhos dardejando ao redor. —
Isso é impossível. — o sorriso famili ar dela, incessante mas vazio, havia
desaparecido.
— Alguma cosia deu errada … — a voz da Irmã Armina foi sumindo
quando seus olhos azuis voltaram -se em direção a Irmã Ulicia.
— Isso não é mais do que uma anomalia. — rosnou a Irmã Ulicia entre
os dentes quando direcionou um olhar ameaçador para as duas. Embora jamais
fossem pessoas servis, as duas não mostraram evidência de estarem desejando
discutir com sua tempestuosa líder.
Em três longos passos a Irmã Ulicia aproximou -se de Orlan. Ela
agarrou o colarinho do pijama dele. Com a outra mão ela moveu sua vara de
carvalho em direção a Kahlan, parada nas sombras perto da porta.
— Qual é a aparência dela?
— Como a de uma gata molhada. — falou Orlan com mau humor,
obviamente não gostando da mão dela em seu c olarinho.
Kahlan sabia sem dúvida que usar um tom de voz como esse com a
Irmã Ulicia era uma coisa errada a fazer, mas a Irmã, ao invés de explodir em
fúria, pareceu tão surpresa quanto Kahlan.
— Sei disso, mas qual é a aparência dela? Diga -me o que você vê.
Orlan endireitou o corpo, afastando seu colarinho da mão dela. As
feições dele ficaram sérias quando ele observou a estranha que apenas ele e as
Irmãs viam parada sob a fraca luz das lanternas.
— Cabelo cheio. Olhos verdes. Uma mulher bastante atrae nte. Ela teria
aparência muito melhor se estivesse seca, embora aquelas coisas molhadas sobre
ela tendam a exibir do que ela é feita. — ele começou a sorrir de um jeito que
Kahlan não gostou nem um pouco, mesmo que ela estivesse muito feliz porque
ele realmente a enxergava. — Ela tem uma bela figura. — ele completou, mais
para si mesmo do que para a Irmã.
A lenta e deliberada avaliação dele fez Kahlan sentir -se nua. Enquanto
seu olhar pairava sobre ela, ele esfregou o canto da boca com um dedão. Ela
podia ouvir ele raspar contra a barba rala dele. Uma das varas de madeira na
lareira pegou fogo, iluminando a sala em seu brilho bruxuleante, permitindo que
ele enxergasse mais ainda. O olhar dele subiu, e então captou algo.
— O cabelo dela é tão longo quanto…
O sorriso lascivo de Orlan evaporou.
Ele piscou, surpreso. Seus olhos arregalaram. — Queridos espíritos. —
ele sussurrou quando seu rosto ficou pálido. Ele caiu sobre um joelho. —
Perdoe-me. — ele falou, dirigindo -se a Kahlan. — Eu não reconheci...
A sala ecoou com um estalo quando Irmã Ulicia bateu nele no topo da
cabeça com a vara de carvalho, fazendo ele cair sobre os dois joelhos.
— Silêncio!
— Qual é o seu problema? — a esposa do homem gritou quando correu
para o lado do seu marido. Ela agachou, c olocando um braço em volta dos
ombros dele para apoiá-lo enquanto ele grunhia e colocava uma grande mão
sobre o ferimento ensanguentado no topo da cabeça abaixada. O cabelo cor de

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areia tornou -se escuro e molhado sob os dedos dele.
— Vocês todos estão lou cos! — ela segurou a cabeça do marido contra
os seios, onde uma mancha vermelha cresceu na camisola dela. Ela parecia
atordoado. — A não ser que vocês viagem na companhia de um espírito, são
apenas três! Como ousam...
— Silêncio. — Irmã Ulicia rosnou de u ma forma que causou um
calafrio gelado em Kahlan e fez a boca da mulher fechar.
A chuva tamborilava contra a janela quando ao longe um lento
ribombar de trovão ecoou através das colinas na floresta. Kahlan conseguiu
ouvir a placa gemendo enquanto balançav a para frente e para trás cada vez que o
vento soprava. Do lado de dentro da casa tudo havia ficado silencioso. Irmã
Ulicia olhou para a garota, agora na base dos degraus, onde ela ficava agarrada
contra o simples poste de madeira.
Irmã Ulicia fixou a gar ota com um olhar feroz que somente uma
feiticeira com péssimo humor poderia exibir. — Quantas visitantes você vê?
A garota ficou de olhos arregalados, assustada demais para falar.
— Quantas? — Irmã Ulicia perguntou novamente, dessa vez através de
dentes cerrados em uma voz tão ameaçadora que fez com que a força do aperto
da garota no poste de madeira aumentasse até que os dedos dela ficassem
brancos e sem sangue contra a madeira escura.
Finalmente a garota respondeu com uma voz trêmula. — Três.
Irmã Armina, parecendo um trovão prestes a explodir, aproximou -se.
— Ulicia, o que está acontecendo? Isso não deveria ser possível. Não deveria
mesmo. Nós lançamos as teias de verificação.
— Exterior. — corrigiu a Irmã Cecilia.
Irmã Armina piscou para a mulher m ais velha. — O quê?
— Só lançamos as teias de verificação externa. Não fizemos uma
checagem interior.
— Você está ficando louca? — disparou Irmã Armina. — Em primeiro
lugar isso não é necessário e em segundo lugar quem seria tolo o bastante para
fazer uma análise de aspecto de uma teia de verificação a partir de uma
perspectiva interior! Ninguém jamais faz tal coisa! Não é necessário!
— Só estou dizendo...
Com um olhar sério, Irmã Ulicia silenciou as duas. Irmã Cecilia, com
seus cachos molhados grudados no escalpo, pareceu estar prestes a finalizar sua
reclamação, mas então ao invés disso decidiu permanecer em silêncio.
Orlan pareceu recuperar os sentidos quando desvencilhou -se do abraço
de sua esposa e começou a levantar cambaleante. Sangue escorreu po r sua testa
e por ambos os lados do seu largo nariz.
— Se eu fosse você, estalajadeiro, — disse Irmã Ulicia, virando sua
atenção de volta para ele. — eu permaneceria de joelhos.
A ameaça na voz dela o fez hesitar apenas por um momento. Ele
claramente est ava furioso quando ergueu -se totalmente, deixando sua mão
ensanguentada afastar de sua cabeça. Com a costa dele ereta, seu peito tufado, e
os punhos cerrados. Kahlan podia afirmar claramente que o temperamento dele
estava superando o senso de cautela.
Irmã Ulicia indicou com a sua vara que ela queira que Kahlan recuasse.
Kahlan, ignorando a indicação, ao invés disso aproximou -se de Irmã Ulicia,
esperando mudar o desenrolar dos eventos antes que acabasse sendo tarde
demais.
— Por favor, Irmã Ulicia, ele re sponderá suas perguntas... sei que ele

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responderá. Deixe ele em paz.
As três Irmãs direcionaram desagradáveis olhares surpresos para
Kahlan. Ninguém falou com ela, ou pediu que falasse. Tal insolência custaria
muito caro, ela sabia, mas também sabia o que deveria acontecer com o homem
se algo não mudasse, e nesse momento pareceu que ela era a única que poderia
efetuar uma mudança.
Além disso, Kahlan sabia que essa era sua única chance de descobri r
alguma coisa sobre si mesma... de talvez descobrir quem el a realmente era e
talvez até mesmo porque ela só conseguia lembrar das partes mais recentes de
sua vida. Esse homem claramente a reconhecera. Ele pode muito bem ser a
chave que poderia destrancar o seu passado perdido. Ela não ousava deixar a
chance escapulir... mesmo que tivesse de arriscar a fúria das Irmãs.
Antes que as Irmãs tivessem chance de falarem qualquer coisa, Kahlan
dirigiu-se ao homem. — Por favor, Mestre Orlan, escute um momento. Estamos
procurando por uma mulher mais velha chamada Tovi. Ela deveria encontrar
essas mulheres aqui. Nos atrasamos, então ela já devia estar aqui, esperando por
nós. Por favor, responda as perguntas sobre a amiga delas. Isso tudo poderia ser
resolvido rapidamente se você fosse lá em cima e chamasse Tovi para elas.
Então, como essa tempestade passageira, todos nós logo estaremos fora das
vidas de vocês.
O homem abaixou a cabeça de forma reverente, como se uma Rainha
tivesse pedido sua ajuda. Kahlan não estava apenas surpresa, mas
completamente espantada com tal ato de deferência.
— Mas não temos hóspede chamada Tovi aqui, Mad...
A sala iluminou -se com um clarão cegante... um raio que era
comparável a qualquer um dos que estavam na feroz tempestade. A corda
ondulante de calor líquido e luz que brotou entre as mãos de Irmã Ulicia
atravessou o peito de Orlan antes que ele pudesse terminar a denominação que
estivera prestes a usar. A força da concussão por estar tão perto da detonação
explosiva de um poder tão forte martelou fundo no peito de Kahlan. O impacto
atirou Orlan para trás, lançando -o sobre uma mesa e os dois bancos, fazendo ele
chocar-se contra a parede. O contato mortal com tal poder quase havia cortado o
homem ao meio. Fumaça flutuou do que restou da camisa dele. Uma mancha
vermelha brilhante de sangue marcou a parede onde ele bateu antes de escorrer
para o chão.
Em consequência do raio ensurdecedor, os ouvidos de Kahlan zuniram
em meio ao que parecia o repentino silêncio.
Emm y, com os olhos arregalados pelo choque de um evento que havia
em um instante altera do para sempre o curso de sua vida, gritou a simples
palavra. — Não!
Kahlan pressionou uma das mãos sobre a boca e o nariz, não apenas
com repulsa, mas para abafar o cheiro de sangue e o fedor de carne queimada. A
lanterna que estava sobre a mesa tinha si do derrubada no chão e apagada,
deixando a sala em maior parte nas sombras bruxuleantes lançadas pelo fogo na
lareira e os esporádicos clarões de relâmpagos que entravam pelas finas janelas.
Se essa já não fosse uma noite cheia de trovões e raios, um disp aro
como esse certamente teria acordado toda a cidade.
As tigelas de madeira que Emm y estivera segurando espalharam -s e
pelo chão e rolaram para longe de forma bêbada. Ela gritou de horror e correu
em direção ao marido.
Irmã Ulicia avançou. Em uma fúria i nterceptou Emm y antes que ela

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pudesse alcançar o marido morto.
Irmã Ulicia bateu a mulher contra a parede. — Onde está Tovi? Quero
respostas e as quero agora mesmo!
Kahlan viu que a Irmã estava com a Dacra na mão. A simples arma
parecia nada mais do que um cabo de faca com um bastão de metal afiado no
lugar de uma lâmina. Todas as três Irmãs carregavam uma Dacra. Kahlan tinha
visto elas usarem as armas quando encontraram batedores da Ordem Imperial.
Ela sabia que uma vez que a Dacra perfurava uma vítima, não importava o
quanto fosse pequena a penetração, era necessário apenas um pensamento da
parte da Irmã para matar. Com a Dacra não era o ferimento em si que matava,
mas ao invés disso a Irmã que, através da Dacra, extinguia a centelha da vida.
Se a Irmã n ão afastasse a arma, junto com sua intenção de matar, não havia
defesa, e qualquer chance de salvação.
Um desorientador brilho de um raio iluminou a sala através das janelas
estreitas ao lado da porta, projetando longas sombras pelo chão e contra as
paredes quando duas Irmãs agarraram a mulher apavorada, lutando para
controlá-la. Quando o brilho do raio cessou e uma mortalha escura novamente
desceu sobre a sala, a terceira Irmã correu subindo a escadaria.
Kahlan correu até a garota.
Quando ela correu em direção à sua mãe, Kahlan interceptou a garota,
envolvendo -a pela cintura, afastando -a. Os olhos dela ficaram arregalados em
pânico, sua mente incapaz de manter a lembrança de ver Kahlan até mesmo
tempo suficiente para que estivesse consciente de quem ou d o quê a segurava...
aparente do meio do ar. Entretanto, pior ainda, ela acabara de ver seu pai
assassinado. Kahlan sabia que a garota jamais seria capaz de esquecer uma visão
tão terrível.
Acima do barulho constante da chuva e do vento, Kahlan ouviu passo s
da Irmã escada acima enquanto ela avançava rapidamente pelo corredor. Ela
fazia uma pausa forma intermitente, parando em cada quarto para abrir uma
porta. Quaisquer hóspedes que tivessem sido acordados pela comoção e gritaria,
e ousassem sair de seus qua rtos para o corredor escuro, estavam prestes a
encarar uma Irmã do Escuro enlouquecida. Aqueles que ainda dormiam atrás de
suas portas não enfrentariam menos.
Emm y gritou de dor. Kahlan sabia porque.
— Onde ela está? — Irmã Ulicia gritou para a mulher. — Onde está
Tovi!
Emm y gritou, implorando para que sua filha não fosse machucada.
Kahlan sabia que era um grave erro tático entregar a um inimigo aquilo
que você mais temia.
Nesse caso, porém, ela imaginou que tal informação era irrelevante;
não apenas s eria bastante óbvio o que uma mãe temeria, mas também as Irmãs
não precisavam de tal recurso. Ver sua mãe em um estado de terror só estava
servindo para assustar ainda mais a criança. Ela lutou poderosamente. A
despeito de seu esforço frenético, uma garota magra como essa não era páreo
para Kahlan.
Segurando a garota com firmeza, Kahlan puxou -a de volta através do
portal ao lado da escada e para dentro da sala escura além. Com o brilho dos
raios que vinham através de uma janela nos fundos, Kahlan viu que e ra uma
cozinha e uma área de armazenamento para suprimentos.
A garota gritou em um pânico selvagem que era comparável ao de sua
mãe.

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— Está tudo bem. — Kahlan sussurrou no ouvido da garota enquanto a
segurava com força, tentando acalmá -la. — Protegerei você. Está tudo bem.
Kahlan sabia que isso era uma mentira, mas o coração dela não
permitiria a verdade.
A garota magra bateu nos braços de Kahlan. Para ela devia parecer
como se estivesse sendo carregada por um espírito agarrando -a do Submundo. Se
ela ao menos viu Kahlan, Kahlan sabia que a garota a esqueceria antes que sua
mente pudesse transformar a percepção em cognição. Da mesma forma, as
palavras de conforto de Kahlan evaporariam da mente da garota antes que elas
ao menos tivessem chance de começarem a serem compreendidas. Dentro de um
instante após avistá -la, ninguém lembrava que Kahlan existia.
A não ser Orlan. E agora ele estava morto.
Kahlan segurou bem firme a garota apavorada. Ela não sabia se não era
realmente mais para o seu próprio conforto ou o da garota. Naquele momento,
manter a garota longe do terror daquilo que estava acontecendo aos pais dela era
tudo que Kahlan podia fazer. A garota, de sua parte, lutava loucamente nos
braços de Kahlan, tentando escapulir, como se ela estivesse sendo segura por um
monstro que pretendia um assassinato sangrento. Kahlan odiava aumentar o
terror dela, mas deixá-la entrar na outra sala seria pior.
Um raio brilhou novamente, fazendo Kahlan olhar para a janela. A
janela era larga o bastante para que ela con seguisse passar. Estava escuro do
lado de fora, e a densa floresta jazia bem perto das construções. Ela possuía
perna longas. Ela era forte e rápida. Sabia que se escolhesse, ela conseguiria,
em um piscar de olhos, passar pela janela e entrar na floresta.
Mas havia tentado escapar das Irmãs antes. Sabia que nem a noite nem
a floresta a esconderia de mulheres com esses talentos sombrios. Ajoelhada ali
no escuro, seus braços segurando a garota em um firme abraço, Kahlan começou
a tremer. A mera contemplação de uma tentativa de fuga era o suficiente para
fazer sua testa ficar cheia de suor por causa do medo de que tal pensamento
pudesse liberar dentro dela as contenções ali inseridas. Sua cabeça ficou girando
com a lembrança de tentativas passadas, lembranças da agonia. Ela não
conseguiria suportar um sofrimento como aquele novamente... não quando isso
de nada adiantaria. Escapar das Irmãs era impossível.
Quando levantou os olhos, Kahlan viu a sombra escura de uma Irmã
descendo a escada.
— Ulicia. — a mulher gritou. Era a voz da Irmã Cecilia. — Os quartos
lá em cima estão todos vazios. Não tem hóspedes.
Na sala da frente Irmã Ulicia rosnou uma praga.
A sombra da Irmã Cecilia virou da escada para preencher o portal,
como a própria morte virando seu olhar fulm inante sobre os vivos. Além, Emm y
gemia e chorava. Em sua confusão, pesar, dor, e terror, ela não conseguia
responder as perguntas gritadas da Irmã Ulicia.
— Você quer que a sua mãe morra? — Irmã Cecilia perguntou do
portal com aquela voz calma dela.
Ela não era menos cruel ou menos perigosa do que Irmã Armina, ou
Irmã Ulicia, mas tinha uma jeito de falar suave, controlado, que de alguma
forma era mais aterrorizante do que os gritos da Irmã Ulicia. As claras ameaças
de Irmã Armina eram simples e sinceras mas entregues com um pouco mais de
bile. Irmã Tovi tinha uma espécie de alegria doentia em sua aproximação para
disciplinar e até mesmo torturar. Porém, quando qualquer uma delas desejava
algo, Kahlan aprendera fazia muito tempo que negar a elas apenas tra ria um

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sofrimento quase inimaginável, e no final aquilo que elas queriam.
— Você quer? — Irmã Cecilia repetiu com tranquilidade.
— Responda para ela. — Kahlan sussurrou no ouvido da menina. —
Por favor, responda as perguntas dela. Por favor.
— Não. — a garota conseguiu falar.
— Então diga para nós onde Tovi está.
Na sala atrás de Irmã Cecilia, a mãe da garota emitiu um som terrível e
então ficou em silêncio. Kahlan ouviu o barulho quando a mulher atingiu o chão
de madeira. A casa ficou silenciosa.
Da fraca luz bruxuleante além do portal, mais duas sombras deslizaram
surgindo atrás da Irmã Cecilia. Kahlan sabia que Emm y não responderia mais
nenhuma pergunta.
Irmã Cecilia entrou na sala, chegando mais perto da garota que Kahlan
segurava com firmeza nos braços.
— Os quartos estão todos vazios. Porque não tem hóspedes na
hospedaria de vocês?
— Nenhum veio. — a garota conseguiu dizer enquanto balançava a
cabeça. — A notícia dos invasores do Mundo Antigo assustou as pessoas.
Kahlan sabia que aquilo fazia sentido. Após deixar o Palácio do Povo
em D’Hara e viajarem rapidamente para o sul através das terras mais remotas em
uma pequena embarcação, elas ainda haviam encontrado destacamentos das
tropas do Imperador Jagang mais de uma vez, ou passaram por assenta mentos no
rio onde aqueles brutos estiveram. Notícias de tais atrocidades teriam se
espalhado como um forte vento.
— Onde está Tovi? — Irmã Cecilia perguntou.
Segurando a garota protetoramente longe das Irmãs, Kahlan olhou com
raiva para elas. — Ela é apenas uma criança! Deixem ela em paz!
Um choque de dor atingiu -a. Para Kahlan pareceu como se cada fibra
de cada músculo houvesse rasgado violentamente. Por um instante, ela não sabia
onde estava ou o que estava acontecendo. A sala girou. Sua costa atingiu o
armário com força de partir os ossos. Portas abriram. Panelas, frigideiras, e
utensílios espalharam -se em cascata, quicando e rolando pelo chão de madeira.
Pratos e copos despedaçaram enquanto caiam.
Kahlan bateu com o rosto no chão. Pedaços de cerâmic a cortaram suas
palmas quando ela tentou sem sucesso impedir a queda. Quando sentiu a ponta
de algo afiado como uma lâmina pressionado contra o lado de sua língua no
fundo da boca ela percebeu que um longo pedaço de vidro havia perfurado sua
bochecha. Ela pressionou a mandíbula, quebrando o vidro entre os dentes para
que ele não cortasse a sua língua. Com esforço ela conseguiu cuspir o
ensanguentado pedaço de vidro parecido com uma adaga.
Ela ficou jogada no chão, tonta, desorientada, incapaz de recuperar
totalmente os sentidos. Grunhidos escaparam de sua garganta quando ela tentou
mover-se. Ela descobriu que quando aqueles sons desapareceram, ela não
conseguiu respirar. Cada pouquinho de ar que escapava de seus pulmões era um
pouco de ar perdido. Seus músc ulos tensionaram para inspirar o ar para dentro
dos pulmões dela. A dor lancinante em seu abdômen era paralisante, agindo
contra seu esforço para respirar.
Em desespero ela arfou, finalmente conseguindo puxar para dentro um
urgente sopro de ar. Ela cuspiu mais sangue e pedaços de vidro. Ela estava
começando a sentir o latejar de dor do fragmento que ainda estava preso em sua
bochecha. Kahlan parecia não conseguir fazer os braços trabalharem, não

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conseguia erguer -se do chão, muito menos mover o braço para a rrancar o pedaço
de vidro.
Ela virou os olhos para cima. Conseguiu distinguir as formas escuras
das Irmãs aproximando -se da garota. Elas a ergueram e empurraram ela para trás
contra um pesado bloco de açougueiro que estava no centro da sala. Uma Irmã
segurou cada braço enquanto Irmã Ulicia agachava diante da garota para encarar
o olhar apavorado dela.
— Você sabe quem é Tovi?
— A mulher velha! — a garota gritou. — A mulher velha!
— Sim, a mulher velha. O que mais você sabe sobre ela?
A garota engoliu a r, quase incapaz de soltar as palavras. — Grande.
Ela era grande. Velha e grande. Ela era grande demais para andar muito bem.
Irmã Ulicia inclinou, aproximando -se, segurando a fina garganta da
garota. — Onde ela está? Porque ela não está aqui? Ela deveria nos encontrar
aqui. Porque ela não está?
— Foi embora, — a garota gritou. — ela foi embora.
— Ora! Quando ela esteve aqui? Quando ela partiu? Porque ela partiu?
— Faz alguns dias. Ela estava aqui. Ficou conosco durante algum
tempo. Mas partiu faz algun s dias.
Irmã Ulicia, com um grito de fúria, levantou a garota e atirou -a contra
a parede. Com todo seu esforço, Kahlan lutou para ficar de quatro. A garota caiu
no chão. Ignorando o quanto sentia -se fraca, Kahlan rastejou pelo chão, pelo
vidro quebrado e cerâmica, e atirou-se de forma protetora sobre o corpo da
garota. A garota, sem saber o que estava acontecendo, gritou mais ainda.
Passos vieram em direção a ela. Kahlan viu um cutelo jogado no chão
ali perto. A garota gritou e lutou para escapar, mas Kah lan segurou -a
protetoramente contra o solo.
Quando as sombras das mulheres chegavam mais perto, os dedos de
Kahlan fecharam -se em volta do cabo de madeira do pesado cutelo. Ela não
estava pensando, estava simplesmente agindo: ameaça, arma. Era quase como
observar outra pessoa fazendo isso.
Mas houve uma espécie de profunda satisfação interior em ter uma
arma na mão dela. O punho dela apertou firme em volta do cabo melado de
sangue. Uma arma era vida. Brilhos de relâmpago cintilaram no aço.
Quando as mulh eres estavam perto o bastante, repentinamente Kahlan
ergueu sua arma para atacar. Antes que ela pudesse começar a realizar sua
tarefa, ela sentiu um golpe forte no estômago, como se tivesse sido atingida com
a ponta de uma tora. O poder daquele golpe atiro u-a através da sala.
Um forte impacto contra a parede deixou -a tonta. Parecia que a sala
estava longe, longe do outro lado de um longo túnel escuro. A dor inundou -a.
Ela tentou levantar a cabeça mas não conseguiu. A escuridão envolveu -a.
No momento seguinte em que abriu os olhos, Kahlan viu a garota
encolhida diante das Irmãs enquanto elas agigantavam -se sobre ela.
— Eu não sei, — a garota estava dizendo. — eu não sei porque ela
partiu. Ela falou que precisava seguir seu caminho até Caska.
A sala vibrou com o silêncio.
— Caska? — finalmente a Irmã Armina perguntou.
— Sim, foi isso que ela disse. Tinha que chegar até Caska.
— Ela estava com alguma coisa, com ela?
— Com ela? — a garota gemeu, ainda soluçando e tremendo. — Eu não
entendo. O que você quer dizer, com ela?

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— Com ela! — Irmã Ulicia gritou. — O que estava com ela! Ela devia
estar carregando coisas... uma mochila, um cantil. Mas tinha outras coisas. Você
viu alguma outra coisa com ela?
Quando a garota hesitou, Irmã Ulicia aplicou um tapa no r osto dela
forte o bastante para afrouxar os dentes.
— Viu qualquer coisa que estava com ela?
Um longo filete de sangue do nariz da garota jazia horizontalmente na
bochecha dela. — Um dia quando ela estava comendo, fui buscar toalhas limpas
para ela e vi uma coisa no quarto dela. Uma coisa estranha.
Irmã Cecilia inclinou -se. — Estranha? Como o quê?
— Era, era como... uma caixa. Estava com ela enrolada em um vestido
branco, mas o vestido era liso como seda e havia escorregado parcialmente da
caixa. Era como uma caixa... só que era toda preta. Mas não preta como tinta.
Era preta como a própria noite. Preta como se engolisse a luz do dia.
As três Irmãs levantaram os corpos e ficaram em silêncio.
Kahlan sabia exatamente do que a garota estava falando. Kahla n havia
entrado e pego todas as três caixas do Jardim da Vida no Palácio do Povo... do
Palácio de Lorde Rahl.
Quando trouxe para fora a primeira, Irmã Ulicia ficou furiosa com
Kahlan porque ela não trouxe todas as três de uma vez, mas elas eram maiores
do que o esperado e não havia espaço para esconder todas as três na mochila
dela, então Kahlan primeiro trouxe uma. Irmã Ulicia tinha enrolado aquela coisa
horrível no vestido branco de Kahlan e entregue para Tovi, dizendo a ela para
seguir seu caminho rapid amente, que todas elas se encontrariam mais tarde.
Irmã Ulicia não queria arriscar ser pega dentro do Palácio com uma das três
caixas e então não quis que Irmã Tovi esperasse enquanto Kahlan voltava até o
Jardim da Vida atrás das outras duas caixas.
— Porque Tovi foi para Caska? — Irmã Ulicia perguntou.
— Não sei, — a garota gemeu. — eu não sei, juro que não sei. Só sei
que ouvi ela falar aos meus pais que precisava seguir seu caminho para Caska.
Ela partiu faz alguns dias.
Na calmaria, deitada no chão, Kahlan lutava para respirar. Cada
respiração lançava pontadas agonizantes de dor em suas costelas. Ela sabia que
esse seria apenas o início da dor. Quando as Irmãs terminassem com a garota
elas voltariam sua atenção para Kahlan.
— Talvez seja melhor dormi rmos um pouco fora da chuva. —
finalmente sugeriu Irmã Armina. — Podemos partir cedo.
Irmã Ulicia, seu punho com a Dacra no quadril, caminhou de um lado
para outro entre a garota e o bloco de açougueiro, pensando. Pedaços de
cerâmica estalavam sob as bota s dela.
— Não. — disse ela quando virou para as outras. — Alguma coisa está
errada.
— Está querendo dizer, com a Forma de Feitiço? Quer dizer, por causa
do homem?
Irmã Ulicia balançou a mão desconsiderando aquilo. — Uma anomalia.
Nada mais. Não, tem alg uma coisa errado no resto disso. Porque Tovi partiria?
Tinha instruções explícitas de nos encontrar aqui. E ela esteve aqui... mas então
foi embora. Não havia outros hóspedes, nenhuma tropa da Ordem Imperial na
área, ela sabia que nós estávamos a caminho, e mesmo assim ela vai embora.
Isso não faz sentido.
— E porque Caska? — Irmã Cecilia perguntou. — Porque ela seguiria

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para Caska?
Irmã Ulicia virou de volta para a garota. — Quem visitou Tovi
enquanto ela estava aqui? Quem veio falar com ela?
— Eu já di sse, ninguém. Ninguém veio aqui enquanto a mulher velha
estava conosco. Não tivemos qualquer outro visitante ou hóspede. Ela era a
única aqui. Esse lugar fica fora do caminho. As pessoas não aparecem aqui para
fazer visitas.
Irmã Ulicia voltou a caminhar d e um lado para outro. — Não gosto
disso. Tem alguma coisa errada nisso, mas não consigo identificar o que é.
— Concordo, — disse a Irmã Cecilia. — Tovi não iria simplesmente
embora.
— E ainda assim, ela fez isso. Porque? — Irmã Ulicia parou diante da
garota. — Ela falou alguma outra coisa, ou deixou uma mensagem... talvez uma
carta?
A garota, fungando, balançou a cabeça.
— Não temos escolha. — murmurou Irmã Ulicia. — Teremos que
seguir Tovi até Caska.
Irmã Armina apontou para a porta da frente. — Esta noite? Na chuva?
Não acha que deveríamos esperar até de manhã?
Irmã Ulicia, mergulhada em pensamentos, olhou para a mulher. — E se
alguém aparecer? Não precisamos de mais complicações se queremos realizar
nossa tarefa. Certamente não precisamos de Jagang ou as tropas dele descubram
que estamos por aqui. Precisamos alcançar Tovi e precisamos pegar aquela
caixa... todas nós sabemos o que está em jogo. — ela avaliou as expressões
sérias das duas mulheres antes de prosseguir. — O que não precisamos é de
qualquer testemunha que possa informar que estivemos aqui e o que estamos
procurando.
Kahlan sabia muito bem aonde Irmã Ulicia estava querendo chegar.
— Por favor, — ela conseguiu falar enquanto erguia -se sobre braços
trêmulos. — por favor, deixem ela em paz. Ela é só uma garotinha. Não sabe
qualquer coisa que tenha valor para qualquer pessoa.
— Ela sabe que Tovi esteve aqui. Sabe o que Tovi tem com ela. — a
testa da Irmã Ulicia franziu de desgosto. — Sabe que estivemos aqui procurando
por ela.
Kahlan lutou p ara colocar força em sua voz. — Ela não é nada para
vocês. Vocês são feiticeiras; ela é apenas uma criança. Não pode fazer mal a
vocês.
Irmã Ulicia olhou brevemente por cima do ombro para a garota. — Ela
também sabe para onde vamos.
Irmã Ulicia olhou del iberadamente dentro dos olhos de Kahlan. Sem
virar para a garota atrás dela, e com repentina força, ela enterrou sua Dacra no
estômago da garota.
A garota arfou em choque.
Ainda olhando para Kahlan, Irmã Ulicia sorriu som tal feito como
apenas alguém mal igno poderia sorrir. Kahlan pensou que isso devia ser como
pareceria olhar dentro dos olhos do Guardião dos mortos em seu covil nas
profundezas mais escuras da eternidade do Submundo.
Irmã Ulicia arqueou uma sobrancelha. — Não pretendo deixar qualquer
ponta solta.
Uma luz pareceu brilhar dos olhos arregalados da garota. Ela ficou
mole e caiu pesadamente no chão. Os braços dela ficaram espalhados em

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ângulos estranhos. Seu olhar sem vida estava direcionado a Kahlan como que
para denunciá-la por não manter s ua palavra.
A promessa dela para a garota, “ protegerei você ”, ecoou na mente de
Kahlan.
Ela gritou com desamparada fúria quando bateu com os punhos contra
o chão.
E então ela gritou com a repentina dor enquanto estava voando contra a
parede. Ao invés de cair no chão, ela ficou presa ali como se estivesse segura
por uma grande força. A força, ela sabia, era magia.
Ela não conseguia respirar. Uma das Irmãs estava usando seu poder
para comprimir a garganta de Kahlan. Ela estremeceu, tentando obter ar,
enquanto segurava a coleira de ferro em volta do pescoço.
Irmã Ulicia aproximou -se e colocou o rosto perto do rosto de Kahlan.
— Você está com sorte hoje. — ela falou com uma voz venenosa. —
Não temos tempo para fazer você arrepender -se da sua desobediência. .. pelo
menos, não agora. Mas não pense que vai escapar dessa sem sofrer as
consequências.
— Não, Irmã. — Kahlan conseguiu dizer com grande esforço. Ela sabia
que não responder apenas tornaria isso pior.
— Acho que você simplesmente é estúpida demais par a compreender o
quanto é insignificante e impotente diante de pessoas superiores. Talvez dessa
vez, quando receber outra lição, até mesmo alguém tão lenta e ignorante quanto
você entenda.
— Sim, Irmã.
Embora ela soubesse muito bem o que elas a fariam sup ortar para
ensinar a ela essa lição, Kahlan teria feito a mesma coisa outra vez. Ela
arrependia-se apenas de falhar em proteger a garota, como havia prometido. No
dia em que tinha pego aquelas três caixas do Palácio de Lorde Rahl, havia
deixado no lugar de las o seu bem mais precioso: uma pequena estátua de uma
mulher orgulhosa, com os punhos nos flancos, sua costa arqueada, e sua cabeça
erguida como se enfrentasse forças que a subjugariam mas não conseguiram.
Kahlan obtivera força naquele dia no Palácio de Richard Rahl. Parada
no jardim dele, olhando para trás, para a estátua orgulhosa que teve que deixar
lá, Kahlan jurou que teria sua vida de volta. Ter a sua vida de volta significava
lutar pela vida, mesmo se fosse a vida de uma garotinha que ela não conh ecia.
— Vamos lá. — Irmã Ulicia rosnou quando marchava em direção a
porta, esperando que todas a seguissem.
As botas de Kahlan bateram no chão quando a força que a pressionava
contra a parede subitamente liberou -a.
Ela caiu de joelhos, suas mãos ensangu entadas confortando sua
garganta enquanto ela tentava respirar. Seus dedos encontraram a coleira odiosa
através da qual as Irmãs a controlavam.
— Mexa-se. — Irmã Cecilia ordenhou em um tom que fez Kahlan
levantar rapidamente.
Ela olhou por cima do ombro e viu os olhos mortos da pobre garota
olhando para ela, observando ela partir.

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C A P Í T U L O 3

Richard levantou de repente. As pernas da pesada cadeira de madeira


na qual ele estivera sentado estalaram quando deslizaram para trás no chão de
pedra. As pontas dos dedos dele ainda repousavam na borda da mesa onde o
livro que ele estivera lendo jazia aberto, aguardando, diante da lanterna
prateada.
Tinha alguma coisa errada com o ar.
Não com o cheiro dele, ou com a temperatura, ou a humidade, embora
fosse uma noite quente e úmida. Era o ar em si. Alguma coisa parecia errada
com o ar.
Richard não conseguia imaginar porque subitamente lhe ocorreria tal
pensamento. Ele não conseguia ao menos começar a imaginar qual poderia ser a
causa de uma ideia tão estranha. Não havia janelas na pequena sala de leitura,
então ele não sabia como estava do lado de fora... se estava claro, com muito
vento, ou tempestade. Sabia apenas que era tarde da noite.
Cara, não muito longe atrás dele, levantou da cadeira acolchoa da
coberta por couro marrom onde ela também estivera lendo. Ela aguardou, mas
nada falou.
Richard pedira a ela para ler vários volumes históricos que ele havia
encontrado. Qualquer coisa que ela conseguisse encontrar sobre os tempos
antigos quando o livro Cadeia de Fogo havia sido escrito poderia acabar
mostrando ser útil. Ela não reclamou a respeito da tarefa. Cara raramente
reclamava de alguma coisa contanto que isso, de alguma forma, não a impedisse
de protegê-lo. Uma vez que ela poderia ficar bem ali n a sala com ele, não fizera
objeção em ler os livros que ele entregara a ela. Uma das outras Mord -Sith,
Berdine, conseguia ler Alto D’Haraniano e no passado foi bastante útil com
coisas escritas na língua antiga geralmente encontrada em livros raros, mas
Berdine estava longe no Palácio do Povo. Isso ainda deixava incontáveis
volumes escritos na própria língua deles para Cara checar.
Cara observou-o enquanto ele olhava ao redor para as paredes com
painéis, o olhar dele passando metodicamente sobre as coisas ornamentais
estranhas nas prateleiras: as caixas laqueadas com desenhos gravados em prata,
as pequenas figuras de dançarinos esculpidas em osso, as pedras lisas que
jaziam em caixas com faixas em veludo, e os vasos decorativos de vidro.
— Lorde Rahl, — finalmente ela perguntou. — tem alguma coisa
errada?
Richard olhou para trás, por cima do ombro. — Sim. Tem alguma coisa
errada com o ar.
Somente após ver a tensa preocupação na expressão dela ele percebeu
que devia ter soado absurdo dizer que tinha alguma coisa errada com o ar.
Entretanto, para Cara, não importava o quanto poderia ter soado
absurdo, tudo o que realmente importava era que ele achava que havia algum
tipo de problema, e problema significava uma ameaça em potencial. A roupa de
couro dela rangeu quando o Agiel girou para sua mão. Com a arma de prontidão,
ela observou ao redor da pequena sala, vasculhando as sombras como se um
fantasma pudesse saltar do trabalho em madeira.
A testa dela franziu. — A Besta, você acha?

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Richard não tinha consider ado essa possibilidade. A Besta que Jagang
havia ordenado suas cativas Irmãs do Escuro conjurarem e enviarem atrás de
Richard era sempre uma ameaça em potencial. Várias vezes no passado ela
pareceu surgir do próprio ar.
Por mais que tentasse, Richard não conseguia dizer precisamente o que
parecia estar errado. Embora ele não conseguisse apontar o dedo na origem da
sensação, parecia talvez como algo que ele deveria lembrar, algo que deveria
saber, algo que deveria reconhecer. Ele não conseguia decidir se es sa sensação
era real ou meramente a sua imaginação.
Ele balançou a cabeça. — Não… não acho que seja a Besta. Não errado
desse jeito.
— Lorde Rahl, acima de tudo mais, você esteve acordado a maior parte
da noite lendo. Talvez você esteja apenas exausto.
Houve ocasiões em que ele acordou assustado justamente quando
estava começando a cair em sono profundo, confuso e desorientado pela descida
nas garras sombrias de pesadelos dos quais ele nunca lembrava quando
despertava. Mas essa impressão era diferente; n ão era algo originado do
entorpecimento de mergulhar no sono. Além disso, a despeito de sua fadiga, ele
não estava prestes a dormir; estava ansioso demais para dormir.
Tinha sido apenas no dia anterior que ele finalmente conseguira
convencer os outros de que Kahlan era real, que ela existia, e que ela não era
uma fantasia de sua imaginação ou uma alucinação causada por um ferimento.
Após tanto tempo agora eles sabiam que Kahlan não era algum sonho louco que
ele tinha. Agora que ele finalmente tinha alguma ajuda, o senso de urgência dele
para encontrá-la o conduzia adiante e o mantinha bem acordado. Ele não poderia
reservar tempo para fazer uma parada e descansar... não agora que tinha algumas
peças do quebra cabeças.
Lá perto do Palácio do Povo, interrogan do Tovi pouco antes que ela
tivesse morrido, Nicci descobrira os terríveis detalhes sobre como aquelas
quatro mulheres... Irmãs Ulicia, Cecilia, Armina, e Tovi... haviam invocado em
evento Cadeia de Fogo. Quando elas liberaram poderes que durante milhares de
anos haviam sido mantidos escondidos em um antigo livro, a memória de todos
sobre Kahlan... exceto a de Richard... em um instante tinha sido apagada. De
algum modo, sua espada protegeu a mente dele. Enquanto ele estava com a
lembrança de Kahlan, mais ta rde a espada dele havia sido confiscada no esforço
para encontrá-la.
A teoria de um evento Cadeia de Fogo originou-se com magos de
épocas antigas. Eles estavam procurando por um método que permitisse a eles
caminharem sem serem vistos, ignorados, e esquec idos entre um inimigo. Eles
postularam que havia um método para alterar a memória de pessoas com poder
Subtrativo de um jeito que todas as partes desconectadas resultantes das
lembranças de uma pessoa espontaneamente se reconstruiria e se conectariam
umas com as outras, com a consequência direta da construção de uma memória
errônea para preencher as lacunas que haviam sido criadas quando o objeto da
conjuração era apagado das mentes das pessoas.
Os magos que surgiram com o processo teórico tinham, no final ,
começado a acreditar que liberar um evento como esse poderia muito bem criar
uma cascata de eventos que não poderiam ser previstos ou controlados. Eles
especularam que, de forma muito parecida com um incêndio, isso continuaria a
queimar através de conexõ es com outras pessoas cujas memórias inicialmente
não haviam sido alteradas. No fim, eles perceberam que, com tais consequências

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incalculáveis, arrebatadoras e calamitosas, um evento Cadeia de Fogo tinha o
potencial bastante real de destruir o mundo dos vi vos, então eles jamais ousaram
ao menos testar isso.
Aquelas quatro Irmãs do Escuro testaram... em Kahlan. Elas não se
importavam em destruir o mundo dos vivos. De fato, esse era o principal
objetivo delas.
Richard não tinha tempo para dormir. Agora que ele finalmente
convencera Nicci, Zedd, Cara, Nathan, e Ann de que não estava louco e Kahlan
existia na realidade mesmo que não estivesse mais nas memórias deles, eles
comprometeram-se em ajudá-lo.
Ele precisava desesperadamente dessa ajuda. Tinha que enco ntrar
Kahlan. Ela era sua vida. Ela o completava. Era tudo para ele. A inteligência
única dela o cativara desde o primeiro momento em que ele a conhecera. As
lembranças dos lindos olhos verdes dela, seu sorriso, seu toque, o assombravam.
Cada momento acordado era um pesadelo vivo de que havia mais alguma coisa
que ele deveria estar fazendo.
Enquanto ninguém mais conseguia lembrar de Kahlan, parecia que
Richard não conseguia pensar em outra coisa. Frequentemente parecia que ele
era a única conexão dela com o mundo e se ele parasse de lembrar dela, parasse
de pensar nela, ela iria finalmente, e definitivamente… realmente deixar de
existir.
Mas ele percebeu que se desejava realizar algo, se queria algum dia
encontrar Kahlan, às vezes tinha fazer um esforço pa ra colocar de lado os
pensamentos nela para concentrar -se nos assuntos do momento.
Ele virou para Cara. — Você não sente alguma coisa estranha?
Ela arqueou uma sobrancelha. — Estamos na Fortaleza do Mago, Lorde
Rahl... quem não sentiria algo estranho? Es se lugar faz a minha pele arrepiar.
— Alguma coisa pior do que o normal?
Ela soltou um suspiro enquanto corria sua mão descendo pela longa
trança loura jogada por cima da frente do seu ombro.
— Não.
Richard pegou uma lanterna. — Vamos lá.
Ele saiu da pequena sala e entrou em um longo corredor coberto por
grossos tapetes, como se houvesse tapetes demais à mão e o corredor fosse o
único lugar encontrado para colocá -los. Eles eram em maior parte de estilo
clássico tecidos em cores claras, mas alguns que a pareciam parcialmente por
baixo eram compostos de amarelos e laranjas brilhantes.
Os tapetes abafavam suas botas enquanto ele marchavas passando por
portas duplas para cada lado abertas para dentro de salas escuras. Cara, com
suas pernas longas, não tinha dificuldade para acompanhá -lo. Richard sabia que
algumas das salas eram bibliotecas, enquanto outras eram salas elaboradamente
decoradas parecendo não servirem a outro propósito a não ser conduzirem a
outras salas, que levavam a outras salas, algumas simp les e algumas
ornamentadas, todas eram uma parte do labirinto inescrutável e complexo que
era a Fortaleza.
Em um cruzamento Richard seguiu à direita, descendo um corredor
com paredes espessamente engessadas em padrões espirais que ganharam com o
passar dos séculos um acolhedor tom marrom dourado. Quando eles chegaram a
uma escadaria Richard enganchou a mão no pilar de apoio polido de mármore
branco e tomou os degraus que desciam. Olhando para cima na escadaria, ele
conseguiu ver ela subindo alto ao redor d o eixo quadrado para dentro da

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escuridão, para dentro dos recantos superiores distantes da Fortaleza.
— Para onde vamos? — perguntou Cara.
Richard ficou um pouco surpreso com a pergunta. — Não sei.
Cara lançou para ele um olhar sombrio. — Você simplesmente pensou
que nós faríamos uma busca através de um lugar com milhares e milhares de
salas, um lugar tão grande quanto uma montanha, um lugar parcialmente
construído dentro de uma montanha, até acontecer de você esbarrar em alguma
coisa?
— Tem alguma coisa errada com o ar. Só estou seguindo essa
percepção.
— Você está seguindo o ar! — disse Cara com um lento tom de
zombaria. A desconfiança dela surgiu novamente. — Não está tentando usar
magia, está?
— Cara, você sabe tão bem quanto qualquer pessoa que eu não sei
como usar o meu Dom. Eu não conseguiria invocar magia se eu quisesse fazer
isso.
E ele certamente não queria.
Se ele invocasse o seu Dom a Besta seria capaz de encontrá -lo. Cara,
sempre protetora, estava preocupada que ele acabasse fazendo algo descuidado
para chamar a Besta que havia sido conjurada sob as ordens do Imperador
Jagang.
Richard direcionou sua atenção de volta ao problema em questão e
tentou discernir o que havia com o ar que para ele parecia tão estranho. Focou
sua mente em analisa r precisamente o que ele estava sentindo. Pensou que
parecia como alguma coisa durante uma tempestade. Possuía aquela qualidade
tensa, assustadora.
Lá embaixo, vários lances descendo os degraus de mármore branco,
eles emergiram em um corredor simples feit o com blocos de pedra. Eles
seguiram o corredor diretamente através de vários cruzamentos e fizeram uma
parada quando Richard olhou para baixo em uma espiral escura de degraus de
pedra com um guarda corpo de ferro. Cara o seguiu quando ele finalmente
começou a descer. No fundo eles atravessaram por uma curta passagem com um
teto curvado de tábuas de carvalho antes de entrarem em uma sala que era o
centro de um conjunto de corredores. A sala arredondada tinha pilares de granito
cinzentos com manchinhas ao re dor de todo o lado de fora suportando lintéis
dourados acima de cada passagem que mergulhava na escuridão.
Richard levantou a lanterna, forçando os olhos enquanto tentava
enxergar dentro das passagens escuras. Ele não reconheceu a sala arredondada,
mas reconheceu que eles estavam em uma parte da Fortaleza que era de alguma
forma diferente... diferente de um jeito que fazia ele entender o que Cara queria
dizer quando falou que o lugar causava arrepios na pele dela. Um dos
corredores, diferente dos outros, c onduzia descendo em um ângulo bastante
íngreme por uma longa rampa, aparentemente em direção a alguma das áreas
mais profundas da Fortaleza. Ele imaginou porque haveria uma rampa, ao invés
de ainda mais das intermináveis variedades de escadas.
— Por aqui. — ele disse para Cara enquanto a conduzia descendo a
rampa e para dentro da escuridão.
A rampa parecia infinita em sua descida. Porém, finalmente ela saiu
em um grande corredor que, embora não tivesse mais de uma dúzia de pés de
largura, devia ter setent a pés de altura. Richard sentiu -se como uma formiga no
fundo de uma longa e estreita fenda bem fundo no solo. Ao lado esquerdo

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erguia-se uma parede de rocha natural que havia sido talhada na própria
montanha enquanto enormes blocos de pedra bem encaixados formavam a parede
à direita. Eles passaram por uma série de salas na parede de blocos enquanto
seguiam seu caminho adiante no que parecia uma abertura sem fim através da
montanha. Enquanto eles moviam -se firmes adiante, a luz da lanterna não era
forte o suficiente para revelar qualquer fim ao alcance da vista.
De repente Richard percebeu o que era que ele havia sentido. O ar
parecia do jeito que ocasionalmente parecia na área imediata ao redor de certas
pessoas que ele conhecia que eram poderosas com o Dom . Ele lembrou do jeito
como o próprio ar parecia estalar em volta de suas antigas professoras, Irmãs
Cecilia, Armina, Merissa, e especialmente Nicci. Ele lembrou de vezes quando
pareceu como se o ar em volta de Nicci poderia pegar fogo, tão grande era o
singular poder irradiando dela. Mas aquela sensação sempre havia acontecido
com grande proximidade ao indivíduo; nunca foi um fenômeno pervasivo.
Mesmo antes que ele visse a luz vindo de uma das salas ao longe, ele
sentiu o ar vindo do lugar. Ele meio que e sperou ver o ar em todo o corredor
começar a faiscar.
Imensas portas cobertas com bronze estavam abertas, levando para
dentro do que parecia ser uma fracamente iluminada biblioteca. Ele soube que
esse era o lugar que estava procurando.
Caminhando através daquelas portas com elaborados símbolos
gravados que as cobriam, Richard congelou no meio de um passo e ficou
olhando admirado.
Um brilho de luz bruxuleante entrava por uma dúzia de janelas com o
topo arredondado e iluminava fileiras e fileiras de pratel eiras ao redor de toda a
sala cavernosa. As janelas, subindo dois andares, corriam por toda a extensão da
parede mais distante. Colunas de mogno polido com dois andares erguiam -se
entre elas, com pesadas cortinas de veludo verde escuro. Franjas douradas
ladeavam as bordas das cortinas, e borlas as mantinham afastadas das janelas.
Os pequenos quadrados de vidro que formavam as altas janelas não eram claros,
mas grossos e compostos de numerosos anéis, como se o vidro tivesse sido
engrossado quando foi criado. Quando o raio brilhou ele fazia o vidro parecer
brilhar também. Lanternas com refletores em volta de toda a sala transmitiam ao
lugar um suave brilho aconchegante e refletiam nos tampos polidos de mesas
aqui e ali entre a confusa desorganização de livros abertos espalhados por toda
parte.
As prateleiras não eram o que Richard havia esperado no início.
Certamente havia livros em um bom número delas, mas outras prateleiras
guardavam montes de objetos... tudo desde tecido cintilante cuidadosamente
dobrado, espirais de ferro, frascos verdes de vidro, complexos objetos feitos
com bastões de madeira, pilhas de pergaminhos, ossos antigos e longos, até
presas curvadas que Richard não reconhecia e não conseguia ao menos imaginar
ao que pertenciam.
Quando o raio brilhou outra vez, as sombras dos mainéis da janela
correndo sobre tudo na sala, correndo por mesas, cadeiras, colunas, prateleiras
de livros, e escrivaninhas, fez parecer como se todo o lugar estivesse
despedaçando.
— Zedd... o que você está fazendo?
— Lorde Rahl, — Cara falou em voz baixa por cima do ombro dele. —
acho que o seu avô deve estar louco.
Zedd virou para olhar brevemente Richard e Cara parados no portal. O

19
cabelo branco desgrenhado do velho, eriçado em todas as direções, parecia com
um tom de laranja pálido na luz da lamparina, mas branco como neve sempre
que o raio cintilava.
— Estamos um pouquinho ocupados nesse momento, meu rapaz.
No centro da sala, Nicci flutuava logo acima de uma das massivas
mesas. Richard piscou, tentando certificar -se de que realmente viu o que pensou
ter visto. Os pés de Nicci estavam afastados da mesa a uma distância de
aproximadamente vinte e cinco centímetros. Ela permanecia equilibrada, imóvel
no ar.
Tão impossível e surpreendente quanto era essa visão, isso não era o
pior. Sobre o topo da mesa estava desenhado um símbolo mágico conhecido
como Graça.
Ele parecia ter sido desenhado com sangue.
Como uma cortina circulando Nicci, linhas imóveis também pendiam
suspensas no ar acima da Graça. Richard já tinha visto v árias pessoas Dotadas
desenharem formas de feitiços, então tinha certeza de era isso que ele estava
vendo, mas nunca tinha visto qualquer coisa aproximada a esse labirinto no
meio do ar.
Magistralmente complexo, composto de linhas de luz verde brilhante,
ele pairava no ar como uma Forma de Feitiço tridimensional.
No centro daquela armação geométrica intrincada Nicci flutuava tão
imóvel quanto uma estátua. Sua feições primorosas pareciam petrificadas. Uma
das mãos estava erguida um pouco. Os dedos da outra mão, ao lado do corpo
dela, estavam afastados.
Os pés dela não estavam alinhados, como se estivesse de pé, mas em
níveis diferentes como se ela estivesse no meio de um salto. O cabelo loiro dela
estava um pouco levantado, como se estivesse no meio daquel e pulo no ar e o
cabelo tivesse afastado da cabeça, pouco antes dela começar a descer… e
naquele preciso instante ela tivesse sido transformada em pedra.
Ela não parecia viva.

20
C A P Í T U L O 4

Richard ficou paralisado, olhando para Nicci equilib rada no meio do ar


pouco acima de uma pesada mesa de biblioteca, uma rede de linhas geométricas
verdes brilhantes ao redor dela. Nada nela movia -se. Ela não parecia estar
respirando. Seus olhos azuis olhavam fixamente sem piscarem para o vazio,
como se estivesse contemplando um mundo que só ela conseguia ver. Sua belas
feições familiares pareciam perfeitamente preservadas no brilho esverdeado
emitido pelas linhas cintilantes.
Richard pensou que ela parecia mais morta do que viva, do jeito que
um cadáver em um caixão parecia pouco antes de ser colocado para descansar.
Era uma visão impossivelmente linda e ao mesmo tempo
profundamente alarmante. Ela parecia ser nada mais do que uma estátua sem
vida feita de carne e luz. Tufos do cabelo loiro dela em suaves a rcos e curvas,
até mesmo fios individuais de cabelo, permaneciam imóveis no ar. Richard
continuava esperando que ela finalmente e repentinamente completasse a sua
queda de volta para a mesa.
Quando percebeu que estava segurando a respiração ele finalmente
liberou-a.
Aparentemente em sintonia com a tempestuosa intensidade dos raios
além das paredes de janelas, o ar na sala estalava com o poder que havia sido
focado naquilo que era obviamente, mesmo para os olhos não treinados de
Richard, uma extraordinária conjuração. Tinha sido essa rara qualidade no ar
que primeiro chamara sua atenção lá na pequena sala de leitura.
Em nome de sua vida, Richard não conseguia imaginar o que estava
acontecendo, qual poderia ser o propósito para tal uso de magia. Ele estava ao
mesmo tempo fascinado por isso e desconcertado por saber tão pouco a respeito
de coisas assim. Porém, mais do que tudo, ele considerou a visão sombriamente
assustadora.
Tendo crescido em Westland, onde não havia magia, às vezes ele
imaginava o que tinh a perdido... especialmente em momentos como esse, quando
sentia-se incrivelmente ignorante. Mas em outras vezes, como quando Kahlan
havia sido levada, ele odiava magia e queria nunca mais ter algo a ver com ela.
Aqueles devotados aos ensinamentos da Ordem Imperial encontrariam
cínica satisfação em tais pensamentos frios a respeito da magia vindo do Lorde
Rahl.
A despeito de ter crescido sem ter conhecimentos de magia, Richard
havia aprendido algumas coisas sobre ela. Por exemplo, ele sabia que a Graça
desenhada sob Nicci era um dispositivo poderoso usado por aqueles com o Dom.
Ele também sabia que desenhá -la com sangue era algo que raramente era feito e
mesmo assim apenas na mais grave das circunstâncias.
Enquanto olhava para as linhas brilhantes de sangu e que constituíam a
forma da Graça, Richard notou uma coisa que fez o cabelo da sua nuca ficar
eriçado. Um dos pés de Nicci estava pairando sobre o centro da Graça... a parte
representando a luz do Criador, de onde emanava não apenas a vida mas os raios
que representavam o Dom que passava através da vida, o véu, e então prosseguia
dentro da eternidade do Submundo.
O outro pé de Nicci, entretanto, estava congelado a meras polegadas

21
acima da mesa além do anel externo do desenho... acima da parte representand o
o Submundo.
Nicci pendia suspensa entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
Richard sabia que tal coisa dificilmente era um trivial acaso.
Ele concentrou -se além da visão assustadora de Nicci flutuando no ar e
dentro das sombras além viu Nathan e A nn iluminados ocasionalmente por
clarões de relâmpagos, como fantasmas bruxuleando para dentro e para fora da
existência. Eles também observavam de forma solene Nicci no centro da Forma
de Feitiço brilhante.
Zedd, com uma das mãos sobre um quadril magro, a outra deslizando
um dedo fino por sua mandíbula lisa, movia -se lentamente em volta da mesa,
observando o sempre crescente, cada vez mais complexo, padrão de linhas
verdes cintilantes.
Do lado de fora, através das altas janelas, relâmpagos continuavam a
brilhar em breves intervalos, mas o ribombar de trovões era abafado pelas
rochas espessas da Fortaleza.
Richard olhou para o rosto de Nicci. — Ela está… ela está bem?
Zedd olhou para trás como se tivesse esquecido que Richard tinha
entrado na sala. — O quê?
— Ela está bem?
As sobrancelhas grossas de Zedd aproximaram -se. — Como eu saberia?
Richard jogou os braços para o alto e deixou eles baixarem com
surpreso alarme. — Bem, falando em voz alta, Zedd, não foi você quem colocou
ela ali?
— Não exatamente . — Zedd murmurou, esfregando as palmas enquanto
andava.
Richard aproximou -se da mesa abaixo de Nicci. — O que está
acontecendo? Nicci está bem? Ela está em perigo?
Zedd finalmente olhou para trás e suspirou. — Não sabemos com
certeza, meu rapaz.
Nathan saiu das sombras e andou em direção a mesa, para dentro da luz
esverdeada. Os olhos azuis escuros do alto profeta claramente exibiam
preocupação. Ele afastou as mão em um gesto de conforto, seu longo cabelo
branco esfregando nos ombros quando ele os balan çou levemente. —
Acreditamos que ela está bem, Richard.
— Ela deve estar muito bem. — Ann garantiu a ele quando juntava -se a
Nathan.
O profeta de ombros largos agigantava -se acima dela. No vestido liso
de lã, com seu cabelo parcialmente grisalho preso pa ra trás em um coque frouxo,
ela parecia ainda mais simples ao lado de Nathan. Richard pensou que quase
qualquer pessoal provavelmente pareceria simples ao lado de Nathan.
Richard apontou, indicando a teia de linhas geométricas que envolvia
Nicci. — O que é essa coisa?
— Uma Teia de Verificação. — disse o avô dele.
Richard fez uma careta. — Verificação? Verificação de quê?
— Cadeia de Fogo. — Zedd falou para ele com voz melancólica. —
Estamos tentando entender precisamente como o evento Cadeia de Fogo
funciona para que possamos ver se existe uma maneira de revertê -lo.
Richard coçou a têmpora. — Oh.
Ele estava gostando cada vez menos daquela coisa toda. Queria
desesperadamente encontrar Kahlan, mesmo assim estava profundamente

22
preocupado com o que poderi a acontecer a Nicci em uma tentativa como essa de
estudar misteriosos poderes criados por antigos magos. Como Primeiro Mago,
Zedd tinha habilidades e talentos que Richard não conseguia imaginar, e ainda
assim aqueles magos do passado superavam muito o Dom de Zedd. Com tudo
aquilo que Zedd, Nathan, Ann, e Nicci conheciam, tão poderosos quanto todos
eram, eles ainda estavam no escuro em coisas fora de suas experiências, coisas
além das habilidades deles, coisas que até mesmo aqueles antigos magos
temeram. Ainda assim, que escolha eles tinham?
Além de preocupar-se muito com Nicci, Richard precisava da ajuda
dela para encontrar Kahlan. Enquanto outros pudessem, em algumas áreas, ser
mais poderosos ou ter mais conhecimento do que Nicci, a soma de tudo nela a
colocava em um plano diferente. Provavelmente ela era a feiticeira mais
poderosa que já respirou. Aquilo que outras conseguiam fazer com grande
esforço, Nicci conseguia com um olhar. Independente do quanto isso fosse
notável, para Richard isso provavelmente e ra uma das coisas menos notáveis a
respeito de Nicci. Além de Kahlan, ele não sabia de alguém que conseguisse
focar-se em um objetivo com tanta tenacidade quanto Nicci. Cara podia ser tão
decidida em defendê-lo, mas Nicci era capaz de centralizar esse tipo de
tenacidade em qualquer coisa que ela colocasse em sua mente. Na época em que
ela havia lutado contra ele, a firme determinação dela tornou -a não apenas
brutalmente efetiva mas profundamente perigosa.
Richard estava feliz que tudo aquilo tivesse mudado . Desde que a
busca por Kahlan começara, Nicci tornou -se a amiga mais próxima e mais
resoluta. Nicci sabia, porém, que o coração dele pertencia a Kahlan e que isso
nunca poderia mudar.
Ele deslizou os dedos pelos cabelos para trás. — Bem, porque ela está
ali no alto no meio da coisa?
— Ela é a única de nós que sabe como usar Magia Subtrativa. — Ann
disse fazendo um resumo. — Um evento Cadeia de Fogo precisa de elementos
Subtrativos para iniciar e então para fazê -lo funcionar. Estamos tentando
entender o feitiço todo... ambos os componentes Aditivos e Subtrativos.
Richard imaginou que aquilo fazia sentido, mas isso ainda não fazia
ele sentir-se melhor. — E Nicci concordou com isso?
Nathan limpou a garganta. — Isso foi ideia dela.
Claro que foi. Às vezes Richard pensava que a mulher tinha vontade de
morrer.
Era em momentos como esse que ele gostaria de saber mais sobre esse
tipo de coisa. Estava sentindo -se ignorante outra vez. Ele apontou para tudo
aquilo que flutuava acima da mesa. — Nunca percebi que T eias de Verificação
usavam pessoas. Quer dizer, eu nunca soube que teias desse tipo eram lançadas
em volta de alguém desse jeito.
— Nós também não, exatamente. — falou Nathan com aquela profunda
voz de comando dele.
Richard sentiu-se desconfortável sob o olhar do profeta, então virou
para Zedd. — O que você quer dizer?
Zedd balançou os ombros. — Essa é a primeira vez que qualquer um de
nós faz uma análise de aspecto de uma Teia de Verificação a partir de uma
perspectiva interior. Fazer isso requer Magia Subtrativa, então lançar uma Teia
de Verificação desse jeito provavelmente não tem sido feito em... talvez...
milhares de anos.
— Então como vocês sabem como fazer isso?

23
— Só porque nenhum de nós jamais fez uma coisa como essa, — disse
Ann. — isso não si gnifica que não estudamos vários registros sobre isso.
Zedd apontou para uma das outras mesas. — Estivemos lendo o livro
que você encontrou... Cadeia de Fogo. Ele é mais complexo do que qualquer
coisa que qualquer um de nós já tinha visto, então quisemos tentar entender tudo
a respeito disso. Embora nunca tenhamos feito uma perspectiva interior,
realmente é apenas uma extensão daquilo que nós já sabemos. Uma vez que você
saiba como executar uma Teia de Verificação padrão, e possua os elementos do
Dom exigidos, você pode realizar a análise de aspecto de uma perspectiva
interior. É isso que Nicci está fazendo... é por isso que ela teve que ser a pessoa
para fazer isso.
— Se existe um procedimento padrão, então porque esse método é
necessário?
Zedd ergueu uma das mãos em direção às linhas em volta de Nicci. —
É dito que uma perspectiva interior mostra a Forma de Feitiço em um detalhe
mais revelador... descendo a um nível mais elementar... do que você enxerga
dentro do processo de verificação padrão. Uma vez q ue isso mostra mais do que
pode ser aprendido no processo padrão, e Nicci era capaz de iniciar isso, todos
nós decidimos que seria uma vantagem fazer desse jeito.
Richard estava começando a respirar com um pouco mais de facilidade.
— Então usar Nicci dess e jeito é apenas uma análise abstrata. Não significa
mais do que isso.
Zedd desviou os olhos do olhar de Richard quando esfregou levemente
as rugas em sua testa. — Isso é apenas um processo de verificação, Richard, não
um início do evento real, então, em um certo sentido, não é real. O que o
verdadeiro feitiço faz em um instante, essa forma inerte estica em um longo
processo de verificação para assim permitir uma análise abrangente. Embora não
esteja livre dos seus riscos, isso que você vê ao redor de Nicc i não é o feitiço
viável em si.
Zedd limpou a garganta. — Quando o feitiço real teria sido lançado,
entretanto, ao invés de Nicci, teria sido Kahlan, e teria sido tudo muito real.
Arrepios percorreram os braços de Richard. A boca dele parecia tão
seca que ele mal conseguia falar. Podia sentir seu coração pulsando através das
veias no pescoço. Ele queria que aquilo não fosse verdade.
— Mas você disse que precisaram de Nicci para lançar essa teia. Você
disse que só poderiam fazer isso porque ela consegue us ar Magia Subtrativa.
Kahlan não teria sido capaz de fazer isso para as Irmãs... e em qualquer
eventualidade ela não teria cooperado.
Zedd balançou a cabeça. — As Irmãs estavam lançando a verdadeira
Teia em volta de Kahlan. Elas tinham o comando do poder S ubtrativo e não
precisariam da cooperação de Kahlan. Nós precisamos de Nicci para tralhar
nisso do interior, usando ambos os aspectos Aditivo e Subtrativo, para que
possamos tentar determinar como isso funciona. As duas situações não são
análogas.
— Bem, como...
— Richard, — disse o avô dele, interrompendo -o gentilmente. — como
eu falei, estamos bastante ocupados. Esse não é o momento para discutir isso.
Precisamos observar o processo para que possamos tentar descobrir o
comportamento equacional do feitiç o. Permita que façamos o nosso trabalho,
está bem?
Richard enfiou as mãos dentro dos bolsos de trás. — Certo.

24
Ele olhou para trás, para Cara. Ela mostrava o que as pessoas podiam
enxergar como uma expressão vazia, mas para Richard, tão bem quanto ele a
conhecia, isso revelava bastante coisa e parecia refletir as próprias suspeitas
dele. Ele virou de volta para seu avô. — Vocês estão enfrentando algum tipo
de… problema?
Zedd lançou um olhar atravessado para os outros e apenas grunhiu
antes de virar de vol ta para estudar as formas geométricas cercando a mulher
que flutuava diante dele.
Richard conhecia seu avô bem o bastante para saber pelas feições dele
que ele estava descontente ou muito preocupado. Richard não achava que
qualquer um dos prospectos indic aria algo bom. Ele começou a ficar
preocupado... com Nicci.
Quando os outros ficavam mais afastados para observar tudo, franzindo
as testas em concentração enquanto avaliavam a forma como a Teia de
Verificação brilhante continuava a traçar novas linhas at ravés do espaço,
Richard aproximou -se. Ele caminhou lentamente ao redor da mesa, finalmente
estudando... pela primeira vez, realmente... as linhas que cruzavam -se no ar ao
redor de Nicci.
Enquanto chegava mais perto e caminhava em volta da mesa, ele
percebeu que as linhas na verdade formavam um cilindro no espaço, como algo
plano que tivesse sido enrolado, com Nicci dentro daquele cilindro. Isso
significava que todas as linhas eram simplesmente um desenho bidimensional,
mesmo que elas se enrolassem até enc ontrarem-se. Richard achatou mentalmente
aquela forma cilíndrica, de forma muito parecida como desenrolar um
pergaminho, para ver isso na mente dele como um desenho de linhas mais
comum. Quando o fez, ele começou a perceber que havia algo estranhamente
familiar a respeito da rede de linhas.
Quanto mais Richard estudava aquilo, mais ele não conseguia para de
olhar, como se aquilo o estivesse atraindo… puxando ele para dentro do padrão
de linhas, ângulos, e arcos. Parecia haver alguma coisa que ele deveria
reconhecer naquilo, mas ele não conseguia descobrir o quê.
Pensou que talvez devesse considerar uma Forma de Feitiço que havia
sido lançada ao redor de Kahlan, como essa coisa terrível havia sido, como uma
coisa maligna, mas ele não estava sentindo -se desse jeito. A Forma de Feitiço
apenas existia; ela não possuía a qualidade de ser boa ou má.
Aquelas que lançaram a Teia em volta de Kahlan eram as verdadeiras
malignas. Aquelas quatro Irmãs foram aquelas que usaram o feitiço para seus
próprios fins malignos . Usaram isso com parte do plano delas para terem as
Caixas de Orden e para libertarem o Guardião do Submundo... para lançar a
morte sobre os vivos. Tudo em troca de promessas cativantes de imortalidade.
Contemplando as linhas, Richard começou a examinar atentamente o
ritmo naquelas linhas, seus padrões, seu fluxo. Quando ele fez isso, começou a
obter um indício do significado delas.
Ele estava começando a enxergar um propósito na figura.
Richard apontou para um lugar perto do braço direito estendido de
Nicci, logo abaixo do cotovelo dela.
— Esse lugar, aqui, está errado. — ele disse enquanto fazia uma careta
para o entrelaçado de luz.
Zedd parou repentinamente. — Errado?
Richard não tinha percebido que falara em voz alta, pelo menos não
alto o bastant e para que os outros escutassem. — Sim, isso mesmo. Está errado.

25
C A P Í T U L O 5

Richard voltou a estudar as linhas, inclinando a cabeça para melhor


segui-las enquanto elas avançavam através de um complexo cruzamento de rotas
que vinham de todas as direções para terminarem diante do estômago de Nicci.
Ele estava começando a captar o significado daquelas rotas e a intenção mais
ampla do esquema.
— Acredito que está faltando uma estrutura de suporte. — ele apontou
um dedo para a sua esquerda. — Parece que ela devia ter iniciado ali atrás, você
não acha? Parece que esse lugar, aqui, devia ter uma linha subindo por esse
caminho e então de volta até aquele ponto perto do cotovelo dela.
Com sua atenção fixa no ritmo das linhas, Richard estava amplamente
perdido para o resto da sala.
— É impossível que você saiba uma coisa como essa. — falou Ann de
forma seca.
Ele não foi desencorajado pelo ceticismo dela. — Quando alguém
mostra para você um círculo e tem um ponto achatado nele, você sabe que ele
está errado, não sabe? Você pode ver o formato pretendido e saber que um ponto
achatado não faz parte dali.
— Richard, isso não é algum simples círculo. Você nem sabe apara o
quê está olhando. — ela controlou-se antes que sua voz aumentasse ainda mais,
cruzando as mãos diante de si, e deu um profundo suspiro antes de continuar. —
Estou simplesmente tentando esclarecer que existe muita complexidade
envolvida aqui a respeito da qual você não está ciente. Nós três nem ao menos
começamos a desvendar o mecanismo por trás da Forma de Feitiço, e temos um
extensivo treinamento nesses tipos de coisas. A despeito do nosso treinamento e
conhecimento, isso ainda está longe de ficar completo o bastante para que nós
captemos a maneira através da qual funciona. Você nada entend e sobre temas
complexos como esse.
Sem virar para ela, Richard balançou uma das mão para colocar de lado
a preocupação dela. — Não importa. A forma é emblemática.
Nathan inclinou a cabeça. — Ela é o quê?
— Emblemática. — Richard murmurou enquanto estuda va um
cruzamento de linhas, tentando identificar o fio primário através da arquitetura
do entrelaçado.
— Então? — o avô dele gaguejou após Richard entrar novamente em
silenciosa preocupação.
— Eu entendo o jargão de emblemas, — disse ele, distraidamente,
quando encontrou a linha primária e traçou -a por uma elevação, uma descida e
um rodopio do padrão, o tempo todo entrando em maior sintonia com o objeto
dele. — Falei isso para você antes.
— Quando?
— Quando estivemos com o Povo da Lama. — Richard imergi u-se no
fluxo da figura, tentando perceber o curso ascendente entre as ramificações
menores. — Kahlan estava lá. Ann também.
— Eu temo que não recordemos. — Zedd admitiu após ver Ann sacudir
a cabeça com frustração. Ele suspirou desgostoso. — Mais uma memória ao
redor de Kahlan perdida para nós por causa daquilo que as Irmãs fizeram.

26
Na verdade Richard não escutou ele. Ficando cada vez mais agitado,
ele balançou um dedo para frente e para trás em uma ramificação nas linhas logo
abaixo do cotovelo de Nicci . — Estou falando, tem uma linha faltando aqui.
Tenho certeza disso.
Richard virou para seu avô. Então viu que todos estavam olhando para
ele. — Bem aqui, — disse para eles quando apontava outra vez. — do final
desse arco em elevação, até esse cruzamento de triângulos, ali deveria ter uma
linha.
Zedd franziu a testa. — Uma linha?
— Sim. — ele não sabia porque eles não tinham avistado isso antes.
Estava bastante óbvio para Richard, como uma canção cantada com uma nota da
melodia sendo deixada de fora. — está faltando uma linha. Uma linha
importante.
— Importante. — Ann repetiu com irritação.
Richard, tornando-se mais inquieto a cada momento, esfregou uma das
mãos na boca. — Muito importante.
Zedd suspirou. — Richard, do que você está falando?
— Não existe jeito para que você pudesse saber tal coisa. — Ann
debochou, sua paciência ficando cada vez menor.
— Olhem, — Richard disse virando de volta para eles. — é um
emblema, um projeto.
Zedd coçou a cabeça, olhando brevemente para a janela quando um
raio particularmente violento brilhou tão perto que soltou o barulho de um
trovão que parecia poder sacudir as paredes de pedra da Fortaleza.
Ele virou para Richard. — E o projeto… diz alguma cosia a você,
Richard?
— Sim. Um projeto assim é como uma tradução d e outra língua. De
certo modo, é o que vocês estão tentando entender fazendo essa Teia de
Verificação. Essa forma caracteriza um conceito de forma muito semelhante
como uma equação matemática expressa atributos físicos, como uma equação
expressando a propo rção da circunferência de um círculo em relação ao
diâmetro. Formas emblemáticas também podem ser uma espécie de linguagem,
do jeito como a matemática é uma forma de linguagem. Ambas são capazes de
revelar algo sobre a natureza de coisas.
Zedd alisou paci entemente o cabelo para trás. — Você vê emblemas
como uma forma de linguagem?
— De certa maneira. Considere a Graça embaixo de Nicci, por
exemplo. Isso é um emblema. O círculo externo representa o início do Submundo
enquanto o círculo interno representa o s limites do mundo dos vivos. O
quadrado separando eles representa o Véu entre esses mundos. No centro está
uma estrela de oito pontas, representando a Luz do Criador. As oito linhas
irradiando das pontas daquela estrela por todo o caminho através do círcu lo
externo representa o Dom carregado da Criação por todo o caminho através da
vida, cruzando o Véu, e indo além, para dentro da Morte. A coisa toda é um
emblema; quando você vê esse emblema, enxerga todo ele como um conceito.
Você poderia dizer que entend e a linguagem dele.
— Se, durante o lançamento de um feitiço, alguém sem o Dom não
desenhar a Graça corretamente... não tiver falado a linguagem corretamente...
ela não funcionará como pretendido e pode até mesmo causar problemas.
Digamos que você viu uma Graça com uma estrela de nove pontas, ou com um
dos círculos faltando, você não saberia que isso está errado? Se o quadrado

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representando o Véu fosse desenhado incorretamente, então sob as
circunstâncias certas teoricamente isso poderia até mesmo rasgar o Véu e
permitir que os mundos fossem mesclados.
— Isso é um emblema. Você entende o conceito que ele representa.
Sabe como ele deveria parecer. Se estiver desenhado errado, então você
reconhece isso como errado.
Quando os clarões dos raios fizeram uma pa usa, a sala pareceu
abandonada na fraca luz das lamparinas. Um trovão distante ribombou
ameaçadoramente do vale lá embaixo.
Zedd, imóvel, estudou Richard com mais concentração do que estivera
estudando a Teia de Verificação. — Nunca olhei para isso desse jeito, Richard,
mas admito que você pode ter feito uma boa observação.
Nathan arqueou uma sobrancelha. — Certamente ele fez.
Ann suspirou. — Talvez.
Richard desviou os olhos das expressões obstinadas deles e retornou às
linhas brilhantes. — Isso, bem aqui, — disse ele, gesticulando. — está errado.
Zedd esticou o pescoço para espiar as linhas. — Vamos dizer apenas a
título de argumento que você esteja certo. O que você acha que isso significa?
O coração de Richard bateu forte quando ele contornou a mesa ,
traçando rapidamente linhas através do feitiço. Ele usou um dedo, mantendo ele
afastado das linhas de luz, para seguir os caminhos primários, as ondulações do
padrão, o tecido da forma.
Ele encontrou o que estava esperando. — Aqui. Olhem aqui, para essa
estrutura recém formada que espalhou -se ao redor dessas linhas originais mais
antigas. Vejam a natureza desordenada desse novo agrupamento; elas são uma
variável, mas nesse emblema de linhas elas deveriam ser todas constantes.
— Variável…? — Zedd gaguejou, como se tivesse pensado que estava
seguindo o raciocínio de Richard, mas ao invés disso repentinamente houvesse
descoberto que estava completamente perdido.
— Sim. — disse Richard. — Isso não é emblemático. É uma forma
biológica. Ambas são claramente d iferentes.
Nathan deslizou as duas mãos para trás sobre o cabelo branco quando
suspirou mas permaneceu em silêncio.
O rosto de Ann tinha ficado vermelho. — É uma Forma de Feitiço!
Está inerte! Não pode ser biológica!
— Esse é o problema. — falou Richard, respondendo a observação dela
ao invés de responder para sua raiva. — Você não pode ter esse tipo de
variáveis maculando o que supostamente devia ser uma constante. Seria como
uma equação matemática na qual qualquer um dos números poderia mudar
espontaneamente seu valor. Uma coisa assim tornaria a matemática inválida e
impraticável. Símbolos algébricos podem variar... mas assim mesmo eles são
variáveis relacionais específicas. Os números, entretanto, são constantes. A
mesma coisa com essa estrutura; emble mas devem ser construídos de constantes
inertes... você poderia dizer como simples adição ou subtração. Uma variável
interna corrompe a constante de uma forma emblemática.
— Eu não acompanhei o raciocínio. — admitiu Zedd.
Richard apontou para a mesa. — Vocês desenharam a Graça com
sangue. A graça é uma constante. O sangue é biológico. Porque fizeram isso
desse jeito?
— Para fazê-la funcionar. — disparou Ann. — Tivemos que fazer desse
jeito para iniciar uma perspectiva interior da teia de verificação. É d esse jeito

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que é feito. Esse é o método.
Richard ergueu um dedo. — Exatamente. Vocês deliberadamente
introduziram uma variável biológica controlada... sangue... naquilo que é uma
constante... uma Graça. Porém, mantenham em mente que isso permanece do
lado de fora da Forma de Feitiço em si; é meramente um agente energizador, um
catalisador. Acredito que uma variável como essa na Graça permite ao feitiço
que vocês iniciaram seguir o seu curso sem ser influenciado por uma constante...
a Graça. Estão vendo? Is so fornece para a Teia de Verificação não apenas o
poder invocado pela Graça, mas a liberdade obtida através da variável biológica
de permitir que ela cresça o quanto ela precisar para revelar sua verdadeira
natureza e intenção.
Quando Zedd olhou em direç ão a ela, Cara falou. — Não olhe para
mim. Sempre que ele começa a falar assim eu apenas concordo balançando a
cabeça, sorrindo, e espero até começar o problema.
Zedd fez uma careta. Com uma das mão sobre um quadril, ele deu
alguns passos antes de virar p ara trás. — Em todos os meus anos nunca ouvi
uma explicação como essa sobre uma Teia de Verificação. É uma forma de
enxergar isso bastante peculiar. A coisa mais perturbadora é que, de um jeito
perverso, na verdade isso faz sentido. Não estou dizendo que a cho que você está
certo, Richard, mas certamente essa é uma noção inquietante.
— Se você estiver certo, — Nathan disse. — significaria que estivemos
sendo como crianças brincando com fogo durante todos esses anos.
— Isso se ele estiver certo. — Ann completou falando baixo. — Para
mim, isso parece uma coisa astuta demais.
Richard olhou para a mulher congelada no espaço, a mulher que no
momento não podia falar por si mesma. — De quem foi o sangue que vocês
usaram para desenhar a Graça? — ele perguntou para os outros atrás dele.
— De Nicci. — falou Nathan. — Ela mesma sugeriu isso. Disse que
esse era o método apropriado e o único jeito de fazer isso funcionar.
Richard virou para eles. — De Nicci. Vocês usaram o sangue de Nicci?
Zedd assentiu. — Isso mesmo.
— Vocês criaram uma variável… com o sangue dela … e colocaram ela
dentro disso?
— Além de ser o que Nicci falou que tinha de ser feito, — falou Ann.
— fizemos muita pesquisa e concordamos que havia confiança de que esse é o
método adequado para iniciar uma perspectiva interior.
— Tenho certeza de que você tem razão... sob circunstâncias normais.
Uma vez que todos vocês conhecem o método apropriado para fazer esse tipo de
coisa, então isso só pode significar que a corrupção é muito diferente de
qualquer problema comum cujo surgimento poderia ser antecipado no processo
de verificação. — Richard deslizou os dedos pelo cabelo. — Teria que ser algo
… eu não sei. Algo inimaginável.
Zedd balançou os ombros. — Você realmente acredita que ter Nicci ali
dentro quando ela foi a fonte do sangue para energizar a teia poderia significar
algo problemático, Richard?
Richard mordeu o lábio inferior enquanto andava de um lado para
outro. — Talvez não se a Forma de Feitiço originária que vocês estivessem
verificando fosse pura. Mas esta não é. Está contaminada por outra variável
biológica. Imagino que fornecer a fonte da variável de controle... Nicci... pode
entregar para a contaminação toda a força que ela precisa.
— E isso significa? — perguntou Nathan.

29
Richard gesticulou enquanto caminhava. — Significa que é como jogar
óleo sobre um incêndio.
— Acho que a tempestade está fazendo a nossa imaginação voar. —
disse Ann.
— Que variável biológica poderia contaminar uma Teia de
Verificação? — Nathan perguntou.
Richard virou de volta e olhou para as linhas, seguindo -as ao redor
daquele terrível arco que terminava quando deveria ser suportado. Ele observou,
através do espaço vazio, o cruzamento que aguardava.
— Não sei. — ele finalmente admitiu.
Zedd aproximou-se. — Richard, suas ideias são originais, e certamente
são atiçadoras do pensamento, isso eu reconheço. E poderia ser que elas nos
dessem pontos de vista úteis que nos ajudassem a entender mais do que
poderíamos de outra forma. Mas nem tudo que você diz está correto. U ma parte
simplesmente está errada.
Richard olhou para trás por cima do ombro. — É mesmo? Como o quê?
Zedd balançou os ombros. — Bem, para começar, formas biológicas
também podem ser emblemáticas. Uma folha de carvalho não é biológica? Você
não reconhece essa forma emblemática? Uma cobra não é uma coisa que pode
ser expressada com um emblema? Toda uma entidade, digamos uma árvore ou
um homem, não poder ser representada emblematicamente?
Richard piscou. — Você tem razão. Nunca pensei nisso desse jeito,
mas você tem razão.
Ele virou de volta para a Forma de Feitiço, enxergando a área de
contaminação biológica com novos olhos. Ele vasculhou a massa confusa,
tentando encontra sentido nela, tentando discernir um padrão. Porém,
independente do quanto tentasse, isso parecia inútil. Não havia padrão.
Mas porque não? Se a delineação era biológica na origem, como ele
sabia que era, então, de acordo com Zedd, deveria haver algum tipo de padrão
original expresso dentro daquela representação. Mas não havia. Aquilo era nada
mais do que uma massa confusa toda entrelaçada em um ninho de linhas sem
sentido.
E então ele pensou ter reconhecido uma pequena porção dentro daquela
massa. Parecia … de alguma forma líquida. Mas isso não fazia sentido, porque
ele viu outra parte q ue parecia quase o oposto. Aquele outro fragmento parecia
mais como uma representação emblemática de fogo.
A não ser que houvesse mais de um elemento naquilo. Uma árvore
poderia ter um emblema de folha de carvalho, de uma Bolota, ou a forma que
representava a árvore toda. E o que diria que não poderiam ser três coisas
diferentes contaminando juntas a Forma de Feitiço.
Três coisas.
Então ele enxergou... cada um daqueles três elementos.
Água. Fogo. Ar.
Todos eles estavam ali, todos misturados.
— Queridos espíritos. — Richard sussurrou, seus olhos ficando
arregalados.
Ele endireitou o corpo. Sentiu arrepios nos braços. — Tirem ela dali.
— Richard, — falou Nathan. — ela está perfeitamente...
— Tirem ela dali! Tirem ela agora!
— Richard... — Ann começou.
— Eu já falei para vocês... a Forma de Feitiço tem uma falha!

30
— Bem, isso é o que estamos tentando descobrir agora, não é? — Ann
falou com exagerada paciência.
— Vocês não entendem. — Richard apontou para a parede de linhas
brilhantes. — Esse não é o tipo de falha que que alguém estaria procurando.
Essa vai matá-la. O feitiço não está mais inerte... está sofrendo mutação. Está
tornando-se viável.
— Viável? — a expressão de Zedd exibiu incredulidade. — Como você
poderia...
— Vocês devem tirar ela dali ! Tirem ela dali agora!

31
C A P Í T U L O 6

Embora ela não pudesse mover -se, não pudesse falar, Nicci estava
consciente de tudo que estava sendo dito, mesmo que as vozes soassem fracas,
distantes, como se viessem de algum mundo distante além do emara nhado
esverdeado.
Ela queria gritar “escutem ele!” mas, presa firmemente como estava
dentro do feitiço, não podia.
Mais do que tudo, ela queria sair do terrível entrelaçado de poder
esmagador que a envolvia.
Ela não havia entendido o verdadeiro signific ado de uma perspectiva
interior... nenhum deles havia. Nenhum deles poderia ter imaginado a realidade.
Somente após iniciar o processo ela descobriu que tal perspectiva não era
simplesmente um jeito de visualizar uma Teia de Verificação de uma forma mais
detalhada do lado de dentro, como eles pensavam, mas ao invés disso um meio
para que a pessoa fazendo a análise experimentasse isso dentro de si mesma.
Naquele momento era tarde demais e ela não podia dizer aos outros que o que
isso significava era que ela estaria percebendo a Forma de Feitiço ao ter isso
iniciado dentro dela. A parte que a cercava era a mera aura do poder conjurado
que tinha despontado dentro dela. Em um primeiro momento isso havia sido uma
revelação que beirava o divino.
Porém, pouco temp o depois que eles havia iniciado isso, algo tinha
começado a sair errado. O que havia sido uma forma de visão profundamente
bela transformara-se em uma terrível agonia. Cada nova linha que cortava o
espaço em volta dela tinha um aspecto interior correspond ente que parecia
cortar sua alma.
No começo ela descobrira que o prazer era parte do mecanismo através
do qual a pessoa percebia o feitiço enquanto ele desenrolava -se. De forma muito
parecida como o prazer poderia confirmar aspectos saudáveis e adequados da
vida, isso também revelava a complexa natureza da Forma de Feitiço em toda
sua glória. Parecia como observar um nascer do sol particularmente lindo, ou
provar um doce delicioso, ou olhar dentro dos olhos de alguém que você ama e
ver que eles olhavam de volta do mesmo jeito. Ou, pelo menos, era como ela
imaginava que seria sentir como se olhassem de volta daquele jeito.
Ela também havia descoberto que, como na vida, a dor destacava
dolorosas desordens.
Nicci jamais teria imaginado que tal método um dia havia sido
comumente utilizado para analisar o funcionamento interior de uma magia
construída... para medir a saúde interna dela. Ela jamais teria imaginado a
complexidade ou a extensão daquilo que o método podia revelar. Jamais teria
imaginado como isso p oderia machucar quando algo dentro do feitiço ficava fora
do controle.
Ela imaginou se ainda teria insistido em fazer uma coisa como essa se
soubesse. Concluiu que teria feito isso, se isso tivesse chance de ajudar Richard.
Porém, nesse momento, para ela havia pouca coisa que importasse a
não ser a dor. Estava além de qualquer coisa que ela já havia experimentado.
Nem mesmo o Andarilho dos Sonhos havia sido capaz de causar a ela tanta dor.
Era quase impossível para ela pensar em outra coisa a não ser o se u desejo de

32
querer ficar livre da agonia. Tão grande era a magnitude da mácula dentro do
feitiço, que não havia dúvida em sua mente de que experimentá -lo, para ela,
seria fatal.
Richard havia mostrado a eles o lugar onde aquilo tinha começado a
dar errado. Ele apontara o defeito fundamental. Aquela contaminação oculta
dentro do feitiço estava fazendo ela em pedaços. Ela podia sentir sua vida
esvaindo-se para além daquele terrível círculo externo da Graça. Aquela Graça,
desenhada com o sangue dela, tornara -se sua vida, e seria a sua morte.
Por enquanto, Nicci balançava entre dois mundos, nenhum deles
completamente real para ela. Embora ainda estivesse no mundo dos vivos, podia
sentir-se deslizando inexoravelmente para dentro daquele vazio escuro além.
O tempo todo, o mundo dos vivos ao redor dela estava perdendo sua
vitalidade.
No momento ela estava disposta a deixar tudo, a deixar -se escorregar
para sempre dentro da eternidade da não existência, se ao menos isso
significasse que a dor acabaria.
Ainda que não pudesse mover -se, Nicci podia ver tudo dentro da sala...
não com seus olhos, mas com o seu Dom. Até mesmo além do sofrimento, ela
reconheceu essa forma exótica de visão como uma experiência extraordinária. A
visão através somente do seu Dom tinha uma qualidade singular que
aproximava-se da onisciência. Ela podia enxergar mais do que seus olhos jamais
permitiram ver. Independente de sua agonia, havia uma suave majestosidade
nisso tudo.
Além da rede de linhas esverdeadas, Richard olhava de um rosto
surpreso para outro.
— Qual é o problema com todos vocês? Você s precisam tirar ela dali!
Antes que Ann pudesse iniciar um sermão, Zedd fez sinal para que ela
ficasse quieta. Assim que teve certeza de que os lábios dela ficariam bem
fechados, ele voltou sua a tenção novamente para o neto.
Outra linha partiu de um cruzamento e traçou um caminho através do
espaço. Para Nicci pareceu como uma agulha fazendo um ponto em sua alma,
lançando a agonia daquela linha de luz através dela enquanto a prendia com
mais firmeza ainda a uma morte sombria. Tudo que ela conseguia fazer era
permanecer consciente. Render -se estava parecendo mais doce a cada momento.
Zedd apontou em direção a ela. — Não podemos, Richard. Essas coisas
precisam seguir um curso. A Teia de Verificação movimenta-se através de uma
série de conexões e desse jeito revela informação sobre a sua natureza. Uma vez
que o processo de verificação foi iniciado, é impossível parar. Tem que seguir o
seu curso até a conclusão e então ele encerra.
Nicci sabia a trist e verdade daquilo.
Richard agarrou o braço do seu avô. — Quanto tempo? — ele sacudiu o
velho como uma boneca de pano. — Quanto tempo leva o processo?
Zedd removeu os dedos de Richard do seu braço. — Nunca vimos um
feitiço como esse. É difícil dizer. Mas tão complexo como ele está provando ser
não consigo imaginar que levará menos do que três ou quatro horas. Ela esteve
ali dentro já faz uma hora então levará horas antes que ele siga o seu curso e
termine.
Nicci sabia que não tinha horas. Tinha apenas alg uns momentos antes
que a força da contaminação a levasse para sempre além do Véu e para dentro do
mundo dos mortos.
Ela pensou que essa era uma forma estranha para que sua vida

33
acabasse. Tão inesperada. Tão banal. Tão sem sentido. Ela gostaria ao menos
que sua vida tivesse fim de alguma forma que tivesse ajudado Richard, ou que
fosse depois que eles soubessem que haviam realizado algo. Ela gostaria que sua
morte pudesse ter ao menos fornecido a ele alguma coisa de valor.
Richard virou para trás para obser vá-la. — Ela não vai durar tanto
tempo. Temos que tirar ela dali agora.
Internamente, através de sua agonia, ela sorriu. Até o fim. Richard
lutaria até o fim contra a morte.
— Richard, — disse Zedd. — não consigo imaginar como você
conseguiria saber tal coisa, e não estou dizendo que não acredito em você, mas
nós não podemos encerrar uma Teia de Verificação.
— Porque não?
— Bem, — falou Zedd quando suspirou. — a verdade é que eu nem ao
menos sei se uma coisa assim é possível, mas mesmo que fosse, nenhum de nós
sabe como fazer. O processo padrão de verificação cria salvaguardas para
proteger-se de intromissões. Essa coisa está envolvida em uma ordem de
magnitude mais complexa.
— Ao invés de tentar desmontar no meio de um galope enquanto está
correndo pel a borda de um penhasco, — disse o alto profeta. — você tem que
esperar até que o cavalo termine de correr antes de pular dele, ou estará apenas
pulando para sua morte.
Richard voltou até a mesa, estudando freneticamente a estrutura
construída de luz. Nicc i imaginou se ele percebeu que, embora isso estivesse em
um nível tangível, o que ele estava enxergando existia principalmente como uma
mera aura representando o poder real que fluía através dela.
Quando outra linha avançou de uma interseção em um ângulo que
estava assustadoramente errado, Nicci arfou internamente. Ela sentiu algo vital
dentro dela sendo lentamente rasgado. A dor disso espalhou -se através da
medula em seus ossos. Ela viu uma escuridão cobrindo a sala, e soube que
estava vendo dentro de out ro mundo, o mundo sombrio onde não haveria mais
dor.
Ela começou a permitir -se deslizar em direção daquele mundo.
E então ela avistou alguma coisa nas sombras do outro mundo. Ela
recuperou o controle, manteve -se afastada do escuro limiar da morte.
Algo com olhos brilhantes, como brasas gêmeas, observou das
sombras. A intenção malevolente daquele olhar flamejante estava concentrada
em Richard.
Nicci lutou desesperadamente para emitir um grito de alerta. Não
conseguir partiu o coração dela.
— Vejam, — Richard sussurrou enquanto olhava para ela. — tem uma
lágrima descendo pela bochecha dela.
Ann balançou a cabeça com tristeza. — Provavelmente porque ela não
está piscando, só isso.
As mãos de Richard ficaram cerradas em frustração enquanto ele
movia-se ao redor da mesa, tentando decifrar o significado das linhas. — Temos
que encontrar um jeito de parar essa coisa. Tem que haver um jeito.
O avô de Richard encostou uma das mãos gentilmente atrás do ombro
de Richard. — Eu juro, Richard, eu faria como você qu er se eu pudesse, mas não
conheço método para deter uma Teia de Verificação. E afinal de contas o que
deixou você tão preocupado? Porque essa repentina urgência? O que você acha
que está contaminando a Forma de Feitiço?

34
A atenção de Nicci estava concentra da na coisa que observava do
mundo sombrio dos mortos. Sempre que um raio cintilava, iluminando a sala, a
coisa com os olhos brilhantes não estava mais lá. Somente quando a escuridão
descia outra vez sobre a sala ela conseguia enxergá -la.
Os olhos de Rich ard desviaram do estudo das linhas para observarem o
rosto de Nicci. Ela não queria outra coisa além de que ele esticasse o braço e a
libertasse da agonia do feitiço que prendera ela em letais fragmentos de magia,
mas ela sabia que ele não podia. Nesse mom ento, ela teria entregue sua vida por
mais um instante nos braços dele.
A resposta de Richard finalmente surgiu em uma suave resignação. —
As Notas.
Ann girou os olhos. Nathan soltou um suspiro de alívio, como se agora
ele soubesse que Richard estava ape nas imaginando coisas.
As sobrancelhas de Zedd levantaram. — As Notas? Richard, eu temo
que dessa vez você tenha entendido isso de forma errada. Isso simplesmente não
é possível. As Notas são elementos do Submundo. Ainda que elas certamente
desejem loucamente entrar em nosso mundo, elas não podem. Elas estão presas
para sempre no Submundo.
— Sei muito bem o que são as Notas, — Richard disse quase em um
sussurro. — Kahlan as libertou. Ela as libertou para salvar a minha vida.
— Ela não poderia saber como fazer uma coisa como essa.
— Nathan falou para ela como, falou para ela seus nomes: Reechani,
Sentrosi, Vasi. Água, fogo, ar. Invocá -las foi o único jeito para que ela salvasse
a minha vida. Foi um ato de desespero.
A boca de Nathan ficou aberta de surpr esa mas ele não argumentou.
Ann lançou um olhar de suspeita para o profeta.
Zedd abriu os braços. — Richard, ela pode ter pensado que as estava
invocando, mas garanto a você, tal coisa é monumentalmente complexa. Além
disso, nós saberíamos se as Notas estivessem livres em nosso mundo. Fique
tranquilo quanto a isso. As Notas não estão soltas.
— Não estão mais. — Richard disse com sombria finalidade. — Eu as
bani de volta para o Submundo. Mas Kahlan sempre acreditou que porque ela
inadvertidamente as trouxe para dentro de nosso mundo isso havia causado o
início da destruição da magia... o Efeito Refletivo, como uma vez você
descreveu isso.
Zedd foi pego de surpresa. — O Efeito Refletivo… só poderia ter
escutado isso de mim.
Richard assentiu enquanto contem plava as lembranças. — Ela tentou
me convencer de que a magia havia sido maculada pela presença das Notas, e
que banir elas de volta para o Submundo não acabaria com essa mácula. Eu
nunca soube se ela estava certa ou não. Agora eu sei.
Ele apontou para aq uele lugar terrível diante de Nicci, aquela fonte da
dor dela, de sua agonia, do seu fim.
— Ali está a prova. Não as Notas, mas a corrupção que a presença
delas causou: a contaminação da magia. Essa contaminação infectou esse
mundo. Ela foi atraída pela f orça dessa magia. Ela infectou o feitiço Cadeia de
Fogo e isso matará Nicci se não tirarmos ela dali.
A sala havia ficado mais escura ainda. Nicci mal conseguia ver através
da sua dor. Mas ela ainda conseguia enxergar aqueles olhos sinistros atrás de
Richard, nas sombras, observando, esperando. Ninguém além de Nicci sabia que
aquilo estava ali, naquele lugar espectral entre mundos.

35
Richard jamais saberia o que o atingiu.
Nicci não tinha como alertar ele.
Ela sentiu outra lágrima descer por seu rosto.
Richard, vendo aquela lágrima pingar da mandíbula dela, inclinou
aproximando -se. Com tranquila determinação, ele usou um dedo para traçar os
caminhos primários, as junções de suporte, e a estrutura principal do emblema,
como ele chamava aquilo.
— Isso deveria ser possível. — ele insistiu.
Ann parecia extremamente nervosa mas permaneceu em silêncio.
Nathan observava com pétrea resignação.
Zedd puxou levantando as mangas do manto simples nos braços
magros. — Richard, é impossível interromper uma Teia de Ver ificação regular,
quanto mais uma como essa.
— Não, não é, — falou Richard, com irritação. — Aqui. Está vendo
aqui? Você tem que interromper essa rota, aqui, primeiro.
— Maldição, Richard, como devo fazer tal coisa?! O feitiço protege a
si mesmo. Essa teia é energizada tanto com Magia Subtrativa quanto por
Aditiva. Ela possui escudos integrais construídos com ambas.
Richard ficou olhando para o rosto vermelho do avô durante um
momento antes de virar de volta para o labirinto de linhas. Ele olhou para Nic ci
outra vez e então enfiou uma das mãos cuidadosamente através da rede de linhas
para tocar no vestido negro de Nicci.
— Não deixarei que isso leve você. — ele sussurrou para ela.
Quaisquer palavras jamais soaram tão doces, mesmo se ela soubesse
que ele não podia entender a impossibilidade da sua promessa.
Quando o dedo dele tocou no vestido dela, os padrões mudaram de
formas bidimensionais para formas tridimensionais que pareciam mais como um
espinheiro do que uma Forma de Feitiço.
Para Nicci pareceu como se ele tivesse acabado de torcer uma faca em
suas entranhas. Ela lutou para permanecer consciente. Ela concentrou -se nos
olhos brilhantes dentro das sombras. Tinha que achar uma maneira para avisar
Richard.
A mão dele parou. Cautelosamente ele puxou -a de volta para fora. O
padrão tornou-se bidimensional.
Nicci teria suspirado de alívio se pudesse respirar.
— Você viu isso? — ele perguntou.
Zedd assentiu. — Com certeza eu vi.
Richard olhou para trás por cima do ombro para seu avô. — Ela
deveria fazer isso?
— Não.
— Acredito que não. Deveria estar inerte, mas a variável biológica
contaminando-a mudou a natureza da Forma de Feitiço hospedeira.
A expressão de Zedd endureceu enquanto ele pensava. — Parece
bastante óbvio que seja lá o que está acontece ndo, está alterando a forma como
o feitiço funciona.
Richard assentiu. — Pior, é uma variável randômica. A contaminação
causada pela presença das Notas nesse mundo é biológica... ela evolui.
Provavelmente para que ela possa atacar diferentes tipos de magi a. Sem dúvida
esse feitiço continuará em mutação. Provavelmente não existe forma de prever
como mudará, mas de acordo com a evidência aqui, parece que isso somente vai
tornar-se mais virulento. Como se Cadeia de Fogo já não fosse problema

36
suficiente, isso poderia tornar a coisa pior. Poderia ser até mesmo que todos
afetados por ele desenvolvam problemas além de suas lembranças relacionadas a
Kahlan.
— O que faz você dizer isso? — perguntou Zedd.
— Apenas observem quantas memórias de eventos apenas tangent es a
Kahlan todos vocês perderam. As lembranças perdidas poderiam até ser o meio
através do qual a contaminação infecta aquelas pessoas tocadas pelo evento
Cadeia de Fogo.
Como se o evento Cadeia de Fogo ser liberado sobre o mundo já não
fosse potencialme nte mortal o bastante, agora ele parecia catastrófico além da
imaginação.
Ann estava para explodir de raiva. Ela cerrou os dentes. — Onde você
aprendeu esse tipo de bobagens?
Zedd lançou um olhar sério para ela. — Fique quieta.
— Eu já falei, eu entendo padrões emblemáticos. Esse aqui está uma
bagunça.
Nathan olhou para as janelas quando elas iluminaram -se com brilhos de
relâmpagos. Quando a sala mergulhou na escuridão novamente, Nicci conseguiu
ver outra vez a coisa observando de um mundo sombrio.
— E você sinceramente acredita que de alguma forma isso está ferindo
Nicci? — perguntou Zedd.
— Sei que está. Olhe para a divergência, bem aqui. Uma coisa como
essa é letal mesmo sem essa ruptura bem aqui. Conheço muito a respeito de
padrões representacionai s envolvendo letalidade.
Zedd direcionou um olhar desconfiado para Richard. — Preciso saber
do que você está falando, o que você quer dizer com “padrões representacionais
envolvendo letalidade”?
— Mais tarde. Primeiro temos que tirar ela dali e temos que tirá-la
agora.
Zedd balançou a cabeça com resignação. — Gostaria de conhecer um
jeito, Richard, realmente gostaria, mas como eu disse, eu não conheço. Se você
tentar puxá-la dali antes que a verificação tenha seguido o seu curso, só isso a
matará com certeza. Isso eu sei.
— Porquê?
— Porque de certo modo a vida dela está suspensa. Não vê que ela não
está respirando? A Forma de Feitiço cercando ela suporta sua vida enquanto ela
não pode, enquanto a teia corre através da verificação. Agora ela é, de certa
maneira, uma parte do feitiço em si. Tire ela dali, e você estará retirando -a do
mecanismo que a mantém viva.
O coração de Nicci ficou apertado. Por um momento, ela havia
começado a acreditar em Richard, acreditar que ele poderia fazer aquilo. Isso
não aconteceria.
O tempo todo os olhos brilhantes observavam. Ela conseguia ver a
forma daquilo, agora, parada ali nas sombras ao lado de uma alta estante.
Parecia algo como um homem transformado em uma besta medonha com tendões
e músculos protuberantes. Seus olhos brilhavam dentro da escuridão da própria
Morte.
Era a besta que caçava Richard. A besta enviada por Jagang, o
Andarilho dos Sonhos .
Ela teria feito qualquer coisa para detê -la, para mantê -la longe de
Richard, mas não podia mover um músculo. Com cada nova linha de luz, ela

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estava sendo amarrada cada vez mais firme ao seu destino, arrastada
inexoravelmente para dentro da escuridão da eternidade além da vida.
— Mesmo que esteja em mutação, — Richard falou enquanto pensava
em voz alta. — isso ainda tem elementos que a suportam enquanto cresce.
— Richard, uma Teia de Verificação é autogeradora. Mesmo se ela
estivesse em mutação como você diz, não há jeito de para tal evento.
— Se ela puder ser desligada, — Richard murmurou. — vai libertá-la...
então não estaremos arrancando ela enquanto sua vida ainda está sendo mantida
pelo feitiço.
Suspirando, Zedd balançou a cabeça como se ele pensasse que Richard
não havia compreendido qualquer coisa que ele tinha falado.
Richard estudou as linhas uma última vez, e ntão abruptamente esticou
o braço e colocou um dedo em uma interseção que havia sido criada antes da
área de contaminação.
A linha desapareceu no dedo dele.
— Queridos espíritos. — disse Nathan quando inclinou -se para frente.
A sombra deu passo adiante. Agora Nicci podia ver as presas dela.
Pareceu como se a linha que havia desaparecido tivesse puxado as
entranhas dela. Nicci lutou para agarrar -se à vida. Se ele realmente pudesse
fazer isso, se ele realmente pudesse extinguir o feitiço, ela teria uma ch ance de
alertá-lo.
Se ela conseguisse resistir tanto tempo.
Richard afastou o dedo. A linha surgiu novamente. Ela perfurou -a
como uma lança afiada. O mundo bruxuleou.
— Está vendo?
Zedd esticou o braço para reproduzir o que Richard tinha feito, mas
com um grito de dor afastou sua mão como se tivesse sido queimado.
— Está protegida por um escudo de Magia Subtrativa. — disse Ann.
Zedd lançou um olhar assassino para ela.
— E lembra dos escudos no Palácio dos Profetas? — Richard
perguntou a ela. — Lembra como eu conseguia passar através deles?
Ann assentiu. — Ainda tenho pesadelos sobre isso.
Richard esticou o braço novamente, mais rápido dessa vez, e
novamente bloqueou a linha de luz. Novamente ela sumiu.
Então Richard colocou um dedo da sua outra mão em uma interseção
precedendo a linha escurecida. Em um piscar de olhos, mais linhas ficaram
escuras. Ele moveu o dedo indicador para inserir em outro ponto chave,
seguindo seu caminho de volta através do padrão, fazendo o feitiço girar sobre
si mesmo.
A linha escurecida correu ao redor de Nicci, atingindo interseções,
fazendo curvas, girando através de arcos escurecidos. A linha que Richard havia
tocado deixou de existir no padrão, sua ausência causando uma interrupção na
vitalidade do ritmo.
Nicci ficou maravilhada com a reação da Forma de Feitiço dentro dela.
Ela podia sentir em detalhes o processo dela sendo desmantelada, como uma flor
fechando suas pétalas.
A sala pareceu brilhar novamente na visão dotada de Nicci, como se
um raio estivesse cintiland o, mas ela sabia que isso não era um raio.
Os olhos brilhantes espiaram ao redor, como se também estivessem
sentindo a flutuação no fluxo de poder que Richard tinha interrompido.
Ninguém mais além de Nicci percebia que Richard estava usando seu

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Dom para penetrar naqueles escudos? Eles estavam cegos? O uso do seu Dom
atraia a besta do Submundo.
Do lado de fora, relâmpagos verdadeiros brilhavam e trovões
ribombavam. A sala tremeluziu não apenas com os raios mas com a perturbação
do poder dentro da Forma de Feitiço. A parede de janelas alternou entre a
luminosidade cegante e a total escuridão.
Para Nicci pareceu como se aquelas duas descargas poderosas
trovejassem através dela. Ela não conseguia entender como ainda estava viva.
Isso só poderia acontecer se Richard estivesse desativando o feitiço sem destruí -
lo. Ele o estava extinguindo metodicamente, como apagar as chamas em uma
fileira de pavios.
Focado em concentração, Richard colocou a outra mão mais baixo e
bloqueou outra linha. A linha ficou escura, co rrendo de volta através da
complexa matriz.
A sombra da besta começou a dar um passo para fora do Submundo,
parcialmente dentro do mundo dos vivos, esticando e flexionando seus braços
com a dificuldade da tarefa, testando seus músculos recém nascidos. Pre sas
cintilaram na luz da lamparina quando as mandíbulas ficaram bem abertas.
Com suas atenções voltadas para as linhas ao redor de Nicci, ninguém
notou.
Segurando um bloco em uma rede de linhas, Richard inseriu um dedo
cuidadosamente para isolar uma estr utura precedente.
Toda a teia, tendo perdido não apenas sua estrutura de suporte mais
importante, mas também sua própria integridade, começou a desfazer. Ângulos
abriram. Interseções desconectaram -se, deixando linhas conectoras murcharem.
Outras linhas colidiram, soltando fagulhas de luz branca ao contato que fizeram
mais linhas ainda ficarem escuras.
De repente, a teia de linhas remanescentes colapsou em direção ao
solo, como uma cortina descendo. Nicci conseguiu sentir a rede de poder
entrelaçada através dela desaparecendo. Quando as linhas de luz em queda
atingiram a Graça elas ficaram escuras. Em um instante, elas haviam sumido.
Livre do emaranhado, Nicci caiu abruptamente sobre a mesa enquanto
arfava procurando respirar, como um grito abafado em seu interior. Sua pernas
não tinham força para sustentá -la e ela desabou, caindo pela borda da mesa.
Richard segurou -a em seus braços quando ela estava caindo. O peso
morto dela fez com que ele caísse sobre um joelho. Ele manteve o equilíbrio,
apoiando-a nos braços, impedindo que ela batesse contra o chão de pedra.
Do lado de fora, os relâmpagos aumentaram, lançando feixes de luz
bruxuleante pela sala.
Foi então que a besta, uma criatura sem alma criada para um simples
propósito, materializou -se completamente saindo do mundo dos mortos para
dentro do mundo dos vivos.
E ela saltou direto para Richard.

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C A P Í T U L O 7

Pendurada mole e impotente nos braços de Richard, a despeito do


quanto tentasse, Nicci simplesmente não conseguia reunir força sufici ente para
alertá-lo sobre a besta prestes a chocar -se contra ele. Ela teria dado deu último
suspiro para dar aquele aviso mas, nesse momento, não tinha fôlego.
Foi Cara, lançando todo seu peso sobre a criatura em pleno avanço,
que desviou a força total do ataque e salvou Richard de um golpe mortal. As
presas da besta acertaram apenas o ar quando ela passou por Richard, mas suas
garras rasgaram a carne atrás do ombro dele. Perdendo o equilíbrio por causa da
abordagem de Cara, a besta cambaleou ao passar por Richard e precipitou -se
contra uma das pesadas estantes. Ossos, livros, e caixas desabaram.
A coisa levantou, rosnando, presas expostas, músculos tensos.
Esticando -se em toda sua altura durante um momento, ela era um pé mais alta do
que Richard e seus om bros tinham quase o dobro da largura dos ombros dele.
Projeções ósseas marcavam sua coluna corcunda. Carne escura parecida com
couro, como aquela de um cadáver dissecado, cobria músculos poderosos.
Essa era uma criatura que não estava realmente viva, e ai nda assim
movia-se e reagia como se estivesse. Nicci sabia que ela não tinha alma, e por
essa razão era ainda mais perigosa. Havia sido conjurada, em parte, das vidas e
do Han... o Dom... de homens. Ela agia com o simples objetivo que havia sido
incutido n ela por suas criadoras: as Irmãs do Escuro de Jagang.
Quando ela imediatamente recuperou -se e novamente correu em
direção a Richard, Cara golpeou com seu Agiel. A besta não pareceu ter sido
ferida pela arma, mas parou abruptamente e virou em direção à Mor d-Sith com
velocidade e força surpreendentes, aplicando um tapa nela forte o bastante para
lançá-la voando. Ela bateu em uma estante de livros, derrubando -a. Cara não
levantou-se do amontoado de livros e madeira partida.
Quando um relâmpago brilhou do lad o de fora das altas janelas, Zedd
usou a abertura para esticar uma das mãos, liberando um raio cintilante de poder
que iluminou a sala. Feixes de luz branca ardente explodiram contra a pele
escura do peito da besta, deixando linhas de fuligem irradiando co mo uma
evidência do contato que não pareceu ter causado qualquer dano real.
Nicci, depois que Richard tinha colocado ela no chão, estava
começando a ser capaz de inserir o ar desesperadamente necessário em seus
pulmões. Ela usou um cotovelo para erguer -se enquanto procurava respirar. Ela
viu sangue escorrendo do ombro de Richard e descendo pelo braço dele. Quando
ele levantou para encarar seu atacante tentou pegar a espada, mas sua espada
não estava mais ali, no seu quadril.
Perdendo apenas um instante, a o invés disso ele sacou a faca de uma
bainha no cinto. Quando enfrentou a ameaça que corria em direção a ele, ele
golpeou com a lâmina, fazendo sólido contato que fez a criatura cambalear.
Surpresa com o golpe e desequilibrada, ela rolou pelo chão de pedra , parando
apenas quando colidiu com uma das massivas estantes. Um pedaço de carne
pendia como uma bandeira do seu ombro ferido. Sem reduzir a velocidade, sem
pausa, a besta deu uma cambalhota e pousou em pé, pronta para refazer seu
ataque.
Ann e Nathan la nçaram raios ardentes nela. Ao invés de incinerá -la, as

40
chamas conjuradas resvalaram na besta. Ilesa, ela rugiu com fúria. O brilho de
um relâmpago cintilou na lâmina afiada imóvel no punho de Richard. A criatura
pareceu cheia de presas e garras quando cor reu novamente até ele.
Richard deu um passo para o lado, girando graciosamente junto com o
avanço da besta, e com um movimento para trás enterrou sua faca até o cabo no
meio do peito dela. Foi um golpe executado perfeitamente. Infelizmente,
pareceu não su rtir mais efeito do que qualquer outra coisa que ele havia tentado.
37

A criatura girou com impossível velocidade e agarrou o pulso de


Richard. Antes que ela pudesse segurá -lo em seus braços poderosos, Richard
torceu o corpo por baixo da pegada e levanto u atrás de seu atacante. Ele cerrou
os dentes com o poderosos esforço de torcer o poderoso braço da criatura para
trás da costa nodosa dela. Nicci ouviu juntas estalarem e osso partir. Ao invés
do ferimento reduzir a velocidade da besta, ela deu meia volta , movendo o braço
quebrado como um mangual. Richard agachou e rolou para longe enquanto
garras mortais passavam.
Zedd usou a abertura para gerar uma esfera de fogo líquido. Até
mesmo os relâmpagos pareceram fazer uma pausa na presença de um poder tão
profundo que ganhava vida. A sala vibrou com o rugido do mortal inferno
concentrado que Zedd liberou. O amontoado de chamas assoviou através da sala
escura, iluminando as mesas e cadeiras, as estantes e colunas, e os rostos de
todos que observavam quando ela p assava.
A besta olhou para trás por cima do ombro, para a conflagração
amarelada efervescente que cruzava a sala, e de forma desafiadora direcionou
suas presas em para o fogo que aproximava -se.
Nicci achou a criatura fazer aquilo uma coisa muito estranha , quase
como se ela não temesse o fogo conjurado por um mago. Nicci achava difícil
imaginar alguma coisa que pudesse resistir a tal ataque... ou não temê -lo. Afinal
de contas, esse não era um fogo qualquer, mas uma ameaça que queimava com
ferocidade fenomenal.
Um instante antes da esfera ondulante de Fogo do Mago alcançar o seu
alvo, a criatura simplesmente desapareceu da existência.
Sem um objetivo, o fogo esparramou -se no chão de pedra, explodindo
sobre os tapetes e quebrando sobre mesas como uma forte onda na praia. Embora
fosse conjurado para um inimigo específico, Nicci sabia que Fogo do Mago
descontrolado poderia facilmente aniquilar todos eles.
Antes que aquilo pudesse destruir a sala ou qualquer pessoa dentro
dela, imediatamente Zedd, Nathan, e An n lançaram mais teias... Zedd fazendo o
melhor que podia para recolher seu poder enquanto os outros dois suprimiam e
abafavam as chamas antes que elas tivessem chance de ficarem fora de controle.
Nuvens de vapor elevaram -se enquanto todos trabalhavam para conter quaisquer
gotas errantes do fogo tenaz. Foi um momento tenso antes que eles tivessem
certeza do sucesso.
Além da nuvem de vapor, Nicci viu a besta materializar -se brotando
das sombras.
Ela apareceu atrás de Zedd, nas sombras onde Nicci viu ela ent rar no
mundo dos vivos inicialmente. Nicci foi a única que percebeu que ela havia
retornado em um lugar diferente. Ela nunca tinha visto a criatura deslizar
entrando e saindo do mundo dos mortos conforme sua vontade, mas sabia que
esse era o método através do qual a coisa era capaz de rastrear e seguir Richard

41
cruzando grandes distâncias. Ela também sabia que, não importava a forma que
aquilo assumisse, jamais descansaria até pegar ele.
Richard avistou a besta vindo em direção a ele antes de qualquer um
dos outros e deu um grito de alerta para Zedd, que estava parado diretamente no
caminho do ataque selvagem. Zedd bloqueou aquele ataque solidificando o
próprio ar em um escudo curvado densamente comprimido. O truque desviou o
curso da besta apenas o suficien te. Richard usou a distração para golpear seu
atacante. Antes que sua faca conseguisse fazer contato, a besta desapareceu da
existência novamente, apenas para retornar um instante mais tarde assim que
havia passado da lâmina de Richard.
Ela quase parecia estar brincando com eles, mas Nicci sabia que esse
não era o caso. Ela estava apenas aplicando táticas diversas em sua busca sem
alma para matar Richard. Até mesmo seus rugidos aparentemente furiosos eram
somente uma tática uma tática destinada a enfraquec er a sua vítima através do
medo, criando assim uma chance para atacar. Inserir a capacidade para emoções
naquilo apenas produziria limitações; desse modo as Irmãs de Jagang haviam
deixado tal qualidade de fora. A besta era incapaz de realmente sentir raiva .
Estava simplesmente usando aquilo em seu objetivo.
Ann e Nathan lançaram uma torrente de poder concentrado em milhares
de pequenos fragmentos mortais rígidos como rocha que poderiam arrancar a
pele de um boi, mas antes que os fragmentos voadores pudesse m atingir a
criatura, outra vez ela evitou os ataques sem esforço entrando em uma sombra e
mais uma vez saindo em outro lugar.
Nicci percebeu que nenhum deles tinha habilidade para deter a coisa.
Lutando para recuperar suas forças, ela rastejou pelo chão para checar
Cara. Ainda jogada contra uma parede, Cara estava tonta e tendo dificuldade
para recompor os sentidos. Nicci pressionou os dedos contra as têmporas da
Mord-Sith, usando um fio de magia para despertá -la e reviver as forças dela. El a
segurou a mulher pela roupa de couro quando ela repentinamente tentou
levantar.
— Escute, — disse Nicci. — se você quer salvar Richard, você tem que
me escutar. Você não pode deter aquela coisa.
Não sendo alguém que aceitava bem instruções, especialmente quando
tratava-se da proteção de Richard, Cara viu a ameaça imediata e rapidamente
entrou em ação. Quando a besta girou, concentrada em Richard, Cara atirou -se
contra ela, abaixada, rolando por baixo dela, derrubando -a. Antes que a coisa
pudesse recuperar -se, ela saltou nas costas da besta, como se estivesse montando
um garanhão selvagem, e bateu com seu Agiel na base do crânio da criatura. Foi
um movimento que teria morto qualquer homem. Quando a besta empinou sobre
os joelhos, ela encostou a arma na frente da sua g arganta.
Com seu braço bom, a criatura agarrou o Agiel de Cara e sem esforço
arrancou-o da mão dela. Cara esticou -se até a arma e pegou -a e volta, mas isso
custou-lhe um golpe que mais uma vez lançou -a rolando pelo chão.
Quando todos afastaram -se da criatura, tentando permanecer fora do
alcance das suas garras mortais, ela jogou a cabeça para trás e rugiu. O som foi
tão ensurdecedor que todos encolheram -se. Clarões de relâmpagos iluminaram
além das janelas, lançando uma luz cegante e um emaranhado de somb ras
confusas através da sala quase escura, tornando difícil enxergar.
Zedd, Nathan, e Ann conjuraram escudos de ar e usaram eles para
tentarem forçar a ameaça a recuar, mas a besta foi capaz de atravessar os
escudos e avançar em direção aos criadores dele s, forçando-os a esquivarem -se.

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Nicci sabia que os três não conseguiriam deter uma ameaça como
aquela com o poder que eles tinham. Ela também não conseguia ver como
Richard conseguiria.
Enquanto os outros continuavam a lutar com cada habilidade e astúcia
que podiam, outra vez Nicci segurou a roupa de couro de Cara, na altura do
ombro, e puxou -a para perto.
— Está pronta para fazer do meu jeito? Ou você quer que Richard
morra?
Cara, ofegando por causa da exaustão, parecia pronta para cuspir fogo,
mas aceitou as palavras de Nicci. — O que você quer que eu faça?
— Fique preparada para me ajudar. Fique preparada para fazer
exatamente o que eu pedir.
Após receber um sinal de anuência, Nicci subiu de volta na mesa. Ela
colocou um pé no centro da Graça desenh ada com o próprio sangue dela, e o
outro além do círculo externo.
Zedd, Nathan, e Ann lançaram tudo que podiam conjurar sobre a besta:
teias de grande poder que podia cortar rocha, foça intensamente concentrada que
podia dobrar aço, um jato de ar concentr ado em nódulos duros o bastante para
pulverizar ossos. Nada disso teve qualquer efeito na criatura. Em alguns casos
ela não era afetada pelo poder deles, enquanto em outras vezes ela desviava dos
ataques, defletia eles, ou evitava desaparecendo da existênc ia apenas para
ressurgir assim que a ameaça havia passado.
Mais uma vez ela voltou sua atenção para seu objetivo e correr para
Richard. Ele esquivou para o lado e novamente usou a faca para cortar a pele
dura da criatura, tentando amputar um braço. Isso, Nicci sabia, também não
adiantaria.
Enquanto os outros gritavam instruções, tentando encontrar um jeito
para destruir a ameaça, Cara, dividida entre ajudar Richard e seguir instruções,
virou e olhou para Nicci. — O que você está fazendo?
Nicci, sem tempo para responder perguntas, apontou. — Você consegue
levantar aquele candelabro?
Cara olhou para trás por cima do ombro. Ele era feito de pesado ferro
fundido e suportava duas dúzias de velas, nenhuma delas estava acesa.
— Provavelmente.
— Use ele como uma lança. Faça a besta recuar em direção às
janelas...
— Quem bem isso vai fazer?
A besta saltou até Richard, tentando colocar os braços em volta dele.
Richard esquivou e durante o processo aplicou um poderoso chute na
cabeça dela que nada mais fez do qu e momentaneamente estremecê -la.
— Apenas faça o que eu digo. Use ele como uma lança para fazer a
criatura recuar. E certifique -se de que os outros estejam afastados e fora do
caminho.
— Você acha que se eu conseguir bater nela com o candelabro isso vai
detê-la?
— Não. Ela aprende. Isso será algo novo. Apenas faça ela recuar. Ele
deverá ficar momentaneamente confusa, ou pelo menos cautelosa. Assim que
você fizer ela recuar, atire o candelabro nela e então saia do caminho.
Cara, com os lábios bem apertado s com grande frustração, pensou
naquilo apenas um instante. Ela era uma mulher que sabia que hesitação podia
causar danos. Ela agarrou o pesado poste do candelabro com as duas mãos e com

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um poderoso esforço levantou -o. As velas caíram dos suportes, quicand o e
rolando pelo chão de pedra. Para Nicci estava claro como o suporte de ferro era
pesado. Porém, ela imaginou que Cara possuía força muscular suficiente para
manuseá-lo. Não havia dúvida de que ela possuía a fibra.
Mas Nicci não podia mais preocupar -se com Cara. Ela afastou a mulher
da sua mente e esticou os dois braços, direcionando as mãos para baixo em
direção à representação sangrenta da Graça sob ela. Ela descartou suas dúvidas,
medos, e, como fizera incontáveis vezes, direcionou sua mente para dent ro do
núcleo do Han dentro de si mesma. Dessa vez, sobre a Graça, pareceu como
mergulhar em um lago gelado de poder.
Ignorando o destino ao qual estava condenando a si mesma, ela virou
as palmas para cima e ergueu as mãos, usando aquele lago gelado de pod er
dentro de si para começar a trazer de volta a Teia de Verificação ao seu ponto
de indução. De dentro do domínio da Graça, Nicci concentrou -se em uma
imagem mental de remover os blocos de estabilização dentro da Forma de
Feitiço que a mantinham em conten ção e inerte. Com deliberada intenção, assim
que havia exposto o campo interno que somente ela podia ver, usou os dois
lados do seu poder para conectar as junções opostas.
Em um instante as linhas verdes novamente começaram a rodopiar em
seu caminho de subida, como alguma trepadeira faminta feita de luz. Em um
piscar de olhos, a rede de linhas estava na altura das coxas dela.
Cara avançou e golpeou a besta. Várias vezes ela efetuou contato com
sua arma de ferro, fazendo a criatura recuar um passo. Cada ve z que a coisa
dava um passo para trás, imediatamente ela golpeava novamente, forçando -a a
recuar mais um passo, depois outro. Nicci estava certa... a criatura reagia
cautelosamente diante da natureza inesperada do ataque.
Ela esperava que Cara conseguisse fazer a besta recuar não apenas
longe o bastante mas em tempo.
Relâmpagos arquearam através do céu noturno, iluminando a parede de
espessas janelas de vidro. Comparadas com as forças da tempestade, as
lamparinas a óleo eram tão fracas quase chegando a se rem inúteis. Os clarões
alternando entre luz cegante e escuridão tornavam difícil enxergar.
Quando as linhas esverdeadas brilhantes que eram o mero reflexo do
aspecto interno de um feitiço que havia sido criado há milhares de anos por
homens perdidos na h istória fizeram seu caminho ao redor dela, aquela Forma de
Feitiço interna mais uma vez ganhou vida, atravessando dentro dela mais rápido
do que fizera na primeira vez. Nicci não estava inteiramente preparada. Ela
ficou cega antes do esperado. Lutou para respirar enquanto ainda podia,
enquanto ainda tinha um resquício de controle.
Sua visão dotada começou a tremular entre dois mundos, entre a luz da
vida e a escuridão eterna. O vazio escuro além vinha e partia em relances, de
forma muito parecida com os re lâmpagos do lado de fora das janelas, mas com
escuridão cegante ao invés de luz cegante. Oscilando entre dois mundos, Nicci
sentiu como se a sua alma estivesse prestes a ser rasgada.
Ela ignorou a dor e concentrou -se na tarefa imediata.
Ela sabia que não poderia destruir uma besta como essa somente com o
seu poder. Afinal de contas, Irmãs do Escuro a criaram com ajuda de poderes
antigos que ela não podia ao menos compreender. A criatura conjurada era páreo
para qualquer coisa que Nicci sabia como invocar. Seria necessário algo mais do
que mera feitiçaria.
Perto das janelas, a besta finalmente manteve posição e cessou o seu

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breve recuo. Cara golpeou, mas a besta rosnante não recuaria mais. Cara estava
sentindo dificuldade em manusear o pesado suporte de ve las. Quando Richard
começou a mover -se para ajudá-la, ela gritou para todos recuarem. Quando ele
não obedeceu, ela girou o suporte de velas, fazendo ele pular para trás e
mostrando a ele que ela falava sério.
Colocando toda sua força no esforço, Nicci erg ueu as palmas,
preparando-se para fazer o impossível.
Ela precisava encontrar o limite entre o nada e a ignição do poder.
Ela não precisava de poder, mas do precursor dele.
As linhas verdes avançaram mais ao redor dela em seu trabalho
determinado de env olvê-la na totalidade do feitiço. Nicci tentou respirar, mas
seus músculos não responderiam. Ela precisava respirar... apenas uma vez.
Quando o mundo dos vivos retornou em sua visão dotada, ela inspirou
com toda sua força e finalmente respirou.
— Agora, Cara!
Sem hesitação, Cara ergueu o pesado candelabro. A besta segurou
facilmente o pesado suporte para velas de ferroem uma das mãos com garras,
levantando-o bem alto. Atrás dela, através da janela, relâmpagos estalaram e
ribombaram.
Nicci fez uma pausa, esperando por uma brecha nos clarões.
Quando ela veio, quando a sala mergulhou novamente na escuridão, ela
disparou... não poder, mas o antecedente dele.
Aquela conjuração banhou a besta no agonizante quase: a ignição
indutiva do poder… ausente da conse quência.
Ela conseguiu ver que a criatura sentiu a estranha sensação da
promessa de algo profundo… não completamente conjurado, ainda não liberado.
Ela piscou, confusa, incerta se realmente sentira algo, querendo agir, ainda
assim não sabendo o que havia sentido ou contra o quê agir.
Sem o bem sucedido lançamento de qualquer ataque direto do poder de
Nicci, a besta pareceu decidir que ela havia falhado e novamente ergueu
desafiadoramente o candelabro bem alto acima da cabeça, como um troféu ganho
em batalha.
— Agora, — Zedd gritou para Ann e Nathan quando avançou. —
enquanto ela está distraída.
Eles estavam prestes a arruinar tudo. Nicci não podia fazer qualquer
coisa para deter a interferência deles. Cara, nunca sendo gentil em seu dever,
realmente fez alguma coisa. Ela arrastou os três para trás como um cão pastor
conduzindo ovelhas desgarradas. Eles protestaram enquanto recuavam, exigindo
que ela saísse do caminho.
Nicci observou tudo isso acontecendo de um lugar distante no limiar
entre mundos. Não p odia mais ajudar Cara. A mulher teria que lidar com isso
sozinha. Em algum lugar no distante mundo dos vivos; Zedd praguejou contra a
Mord-Sith e tentou lançar um ataque, mas Cara usou a ameaça de golpeá -lo com
um ombro para fazê-lo recuar, fazendo não ape nas ele perder o equilíbrio, mas
distraindo ele de suas intenções.
Naquele outro mundo, o mundo escuro além da vida, o que Nicci
intencionalmente havia criado era um vazio de efeito, causa sem consequência,
uma expectativa construída de uma liberação mate rial do seu poder mais
sombrio, que ela também procurava fornecer deliberadamente.
O próprio tempo pareceu congelado, aguardando por aquilo que devia
ter vindo mas não viria.

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A tensão no ar ao redor de Nicci era palpável. As linhas verdes em
volta dela corriam ainda mais rápido através do ar em um esforço para
reestabelecer completamente a Teia de Verificação, para ter a vida dela mantida
em suspensão.
A falha, como uma aranha em sua teia, esperava por ela.
Ela sabia que tinha apenas um momento antes que fosse incapaz de
fazer qualquer coisa.
Dessa vez, o fim dela pelo menos conquistaria algo de valor.
Nicci alimentou o campo ao redor da besta mais ainda com o portal
aberto para uma profunda liberação de poder que ela propositalmente negava.
A tensão entre o que existia e aquilo que ainda não existia, e não
aconteceria, era intolerável.
Em um instante, aquele vazio terrível, intolerável, aquele vácuo de
poder que Nicci havia criado em ambos os mundos, foi preenchido com a
ensurdecedora liberação de um raio que atravessou a janela, enquanto o seu
gêmeo, do mundo além do mundo dos vivos, passou através do Véu, atraído pela
necessidade não satisfeita em volta da besta... compelido a completar aquilo que
Nicci tinha começado mas não terminaria. Dessa vez, n ão havia segurança em
escapar para outro mundo; ambos os mundos haviam liberado, ao mesmo tempo,
sua fúria.
Vidro despedaçado choveu pela sala. A explosão trovejante sacudiu as
paredes de pedra da Fortaleza. Pareceu como se o próprio sol estivesse
explodi ndo através da janela.
As linhas correndo ao redor de Nicci subiram como uma mortalha.
Através de sua visão dotada ela viu o preenchimento da conexão que
ela havia estabelecido, viu o raio encontrar o vazio em volta da besta e
preencher o terrível vazio que ela havia criado.
A explosão daquele raio foi além de qualquer coisa que ela já tinha
visto. Criar o precursor em ambos os mundos transmitiu ao raio o poder de
ambos os mundos, Aditivo e Subtrativo, criativo e destrutivo, entrelaçados em
uma descarga calamitosa.
Nicci estava congelada pelo feitiço, e não conseguiu fechar os olhos
diante do brilho cegante de luz e escuridão misturados, atingindo as duas pontas
do candelabro e explodindo através da besta.
No violento âmago da luz branca, a besta foi de struída, transformada
em pó e vapor pela intensidade do calor e poder concentrados no vazio que
Nicci tinha criado.
Jatos de chuva e vento rugiam através da janela despedaçada. Do lado
de fora, mais relâmpagos cruzavam as nuvens carregadas. Quando o raio do lado
de fora iluminou a sala, todos eles conseguiram ver que a besta havia
desaparecido.
Pelo menos, por enquanto, ela sumiu.
Através da rede de linhas verdes, Nicci viu Richard correndo pela sal a
em direção a ela.
A sala pareceu tão distante.
Ela viu o mundo escuro fechando -se em volta dela.

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C A P Í T U L O 8

Quando o cavalo dela relinchou e bateu os cascos, Kahlan deslizou a


mão um pouco mais acima nas rédeas, mais perto do freio, para conter o animal
nervoso no lugar. O cavalo não gostou do cheiro que sentira mais do que
Kahlan. Ela esticou o braço e acariciou gentilmente a parte de baixo do queixo
do cavalo enquanto aguardava atrás das Irmãs Ulicia e Cecilia.
Leves rajadas de vento agitavam as folhas de Álamo acima, fazendo as
folhas brilhosas cintilarem na luz do meio dia. Na sombra daqueles Álamos
enormes, luz do sol salpicada dançava sobre o topo da colina gramada, enquanto
acima algumas nuvens brancas como algodão pontilhavam o céu azul claro.
Quando a brisa mudou de direção e veio po r trás das costas delas, ela trouxe
alívio não apenas do calor escaldante. Kahlan permitiu -se inspirar
profundamente.
Ela usou um dedo para remover suor e sujeira de baixo da coleira de
metal trancada em volta do pescoço dela. Ela gostaria de poder tomar um banho,
ou pelo menos saltar dentro de um rio ou lago. O calor do verão e a viagem
poeirenta haviam conspirado para transformar o longo cabelo dela em uma
bagunça desgrenhada que coçava. Porém, ela sabia que as Irmãs não
importavam-se com o quanto ela es tava desconfortável e que elas não gostariam
se ela perguntasse se poderia ter uma chance de lavar -se, do jeito como elas
geralmente não gostavam. As Irmãs não davam a mínima importância aos
desejos de Kahlan, muito menos para seu conforto. Ela era uma esc rava, nada
mais; não importava se a coleira que ela usava no pescoço irritava e deixava a
pele dela machucada.
Enquanto Kahlan esperava, sua mente vagava até a estátua que havia
abandonado, a estátua que ela teve que deixar no Palácio do Lorde Richard
Rahl. Embora não tivesse qualquer lembrança do seu passado, havia memorizado
cada linha daquela imagem de uma mulher com cabelos e manto esvoaçantes.
Havia alguma coisa nobre no espírito dela, no modo como a imagem estava com
a costa arqueada, seus punhos fec hados, e sua cabeça jogada para trás como que
desafiando forças invisíveis que desejavam subjugá -la.
Kahlan sabia muito bem como era ter forças invisíveis subjugando -a.
Do tranquilo topo da colina elas observavam enquanto Irmã Armina
seguia seu caminho a través da paisagem aberta abaixo. Não havia qualquer outra
pessoa a vista. O longo gramado parecia quase líquido enquanto ondulava e
curvava-se na brisa. Irmã Armina finalmente trotou sua égua baia subindo a
colina. Ela deu meia volta na égua e parou ao la do das outras.
— Eles não estão lá. — ela anunciou.
— A que distância adiante eles estão? — perguntou Irmã Ulicia.
Irmã Armina levantou um braço para apontar. — Não fui muito além
daquelas colinas ali. Não quis arriscar ser avistada por qualquer um dos dotados
de Jagang. Entretanto, o mais próximo que posso afirmar é que os retardatários e
seguidores do acampamento partiram faz apenas um dia ou dois.
Quando a brisa nas costas delas reduziu, isso permitiu que o cheiro
subisse a colina outra vez. Kahlan f ranziu o nariz. Irmã Ulicia notou mas não
comentou. As Irmãs não pareciam incomodadas com o fedor.
Subitamente Irmã Ulicia virou e enfiou uma bota no estribo. — Vamos

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dar uma olhada sobre as colinas além. — ela disse enquanto subia na sela.
Kahlan montou e seguiu atrás das outras três mulheres enquanto elas
trotavam seus cavalos descendo a colina. Ela achou estranho como as Irmãs
pareciam extraordinariamente inquietas. Elas tendiam a ser arrogantemente
audaciosas em qualquer coisa que faziam, mas agora es tavam sendo cautelosas.
À esquerda erguiam -se as formas irregulares cinza -azuladas de
elevadas montanhas. As ladeiras rochosas e penhascos eram tão imponentes que
havia poucos lugares onde árvores conseguiam podiam manter -se. Alguns dos
picos eram tão alt os que tinham neve sobre eles a despeito de ser verão. Kahlan
e as Irmãs haviam seguido aquelas montanhas para o sul desde que encontraram
um local para cruzarem sobre elas após deixarem o Palácio do Povo. Naquelas
viagens, as Irmãs evitaram chegar perto d e pessoas sempre que podiam.
Kahlan afrouxou um pouco mais as rédeas do cavalo dela. As colinas
pelas quais elas cavalgavam eram irregulares com barrancos que algumas vezes
tornavam difícil viajar. Kahlan sabia que provavelmente havia estradas descendo
das colinas, mas as Irmãs geralmente não gostavam de viajar em estradas e
mantinham -se fora delas sempre que possível. Enquanto moviam -se através da
grama alta entre as árvores espalhadas, elas permaneciam no abrigo ocultador
das ondulações de terra entre co linas.
Antes que Kahlan pudesse ver qualquer coisa que jazia adiante, o
inconfundível fedor de morte ficou tão horrível que que ela mal conseguia
respirar. Subindo uma colina, ela finalmente viu a cidade que espalhava -se
abaixo. Todas elas fizeram uma pau sa, olhando para as estradas vazias, as casas
queimadas, e as carcaças do que pareciam cavalos.
— Vamos ser rápidas. — disse a Irmã Ulicia. — Tomaremos a estrada
principal do outro lado durante algum tempo e chegaremos perto o bastante para
termos certeza de onde eles estão e a direção exata para onde eles seguiram.
Elas colocaram seus cavalos a meio galope com usando as esporas
enquanto cavalgavam em silêncio descendo das colinas e entrando nos limites da
cidade. O lugar parecia ter sido construído ao re dor de uma curva em um rio e
os cruzamentos de várias estradas que provavelmente eram rotas de comércio. A
mais larga das duas pontes de madeira havia sido queimada. Quando elas
cruzavam por uma segunda ponte estreita em fila única, Kahlan olhou para
baixo, para a água. Corpos inchados flutuando com os rostos para baixo estavam
presos nos juncos. Mesmo antes que ela os visse, o fedor da morte estivera tão
pesado no ar que ela havia perdido o interesse em nadar um pouco. Ela só queria
ficar longe do lugar.
Enquanto elas cavalgavam entre as construções, Kahlan manteve um
cachecol sobre o nariz e a boca. Isso não ajudou muito. Ela achou que poderia
vomitar com o cheiro fétido de carne apodrecendo. Pareceu esquisito que aquilo
estivesse tão forte.
Logo ela des cobriu porque.
Elas cavalgaram passando por ruas laterais onde cadáveres estavam
empilhados às centenas. Alguns cães e mulas jaziam mortos no meio deles, as
pernas das mulas projetando -se rígidas. Pela forma como os corpos estavam
comprimidos nas estreita s ruas laterais, Kahlan imaginou que as pessoas deviam
ter sido arrebanhadas até espaços confinados dos quais escapar era impossível e
então assassinados. A maioria dos mortos, animais e humanos, estavam com
ferimentos horríveis. Alguns dos mortos tinham l anças quebradas projetando -se
deles, enquanto outros haviam sido mortos por flechas. Porém, a maioria
pareciam terem sido cortados até a morte. Kahlan notou uma outra coisa a

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respeito deles: todos eram pessoas idosas.
Muitas das construções em uma área da cidade estavam queimadas.
Somente em alguns lugares fios de fumaça ainda brotavam de algumas das pilhas
de entulho maiores. As vigas de madeira queimadas pareciam como esqueletos
chamuscados de monstros. Parecia que fazia um dia ou dois desde que as chama s
apagaram-se.
Conduzindo seus cavalos pela estreita rua pavimentada com blocos de
pedra entre duas construções com dois andares que erguiam -se em ambos os
lados da estrada, elas observaram ao redor em silenciosa avaliação da
destruição. As construções qu e ainda estavam em pé foram todas saqueadas.
Portas estavam quebradas para o lado de dentro, ou jaziam na rua próxima.
Kahlan não viu uma janela que não estivesse quebrada. Cortinas estavam
fechadas em algumas das pequenas sacadas com vista para a rua. Alg umas
daquelas sacadas guardavam um corpo. Além dos fragmentos de madeira de
caixilhos de portas e de janelas quebradas, as ruas estavam cobertas por itens
triviais: peças de roupas; uma bota ensanguentada; pedaços de móveis
quebrados; armas quebradas; peda ços de carroças quebradas. Kahlan viu uma
boneca com cabelos de fios amarelos jogada com o rosto para baixo, suas costas
amassadas por uma pegada. Todos os itens tinham aparência de terem sido
manuseados por várias mãos e, após serem julgados sem valor, de scartados.
Ousando olhar dentro de casas escuras pelas quais elas passavam,
Kahlan viu os verdadeiros horrores. Não eram apenas os corpos de pessoas da
cidade assassinadas. Eram os corpos de pessoas que pareciam terem sido
assassinadas por esporte, ou por simples brutalidade. Diferente dos corpos
amontoados nas ruas laterais, essas pessoas não eram mais velhas. Parecia que
podiam ter sido pessoas tentando proteger suas lojas ou casas. Através de uma
janela de loja quebrada ela viu que um homem, vestindo o tipo de avental usado
por sapateiros, tinha sido pregado a uma parede por seus pulsos. Do centro do
peito dele brotavam dúzias de flechas, fazendo ele parecer como uma grotesca
alfineteira. Sua boca e cada um dos olhos foram penetrados por uma flecha. O
homem não tinha sido apenas usado para a prática do tiro ao alvo, mas como
objeto de uma monstruosa piada.
Em outras construções escuras, Kahlan viu mulheres que obviamente
foram estupradas. A manga de uma camisa ainda sobre um dos braços era tudo
que cobria uma mulher em um assoalho. Os seios dela foram mutilados. Em
outro lugar, uma garota, parecendo ainda não ter atingido a maioridade, jazia
sobre uma mesa, seu vestido levantado acima da cintura. Sua garganta fora
cortada até a coluna. Suas pernas estavam abertas, um cabo de vassoura deixado
enfiado nela como um ato final de desdém. Kahlan sentiu -se anestesiada
enquanto contemplava uma visão de horror atrás da outra, cada uma com uma
crueldade tão chocante que ela não conseguia imaginar o tipo de homens qu e
poderiam ter cometido tais atos.
Pela forma de vestir de muitos dos mortos, os homens pareciam
simples trabalhadores. Não eram soldados. Pelo crime de tentarem proteger seus
lares e negócios eles foram trucidados.
Quando Kahlan passava por uma pequena construção ela viu, em um
canto nos fundos contra uma parede de tijolos, uma pilha de crianças pequenas...
a maior parte bebês. Isso fazia lembrar a forma como folhas no outono ficavam
amontoadas em um canto, exceto que essas um dia foram pessoas vivas com uma
vida pela frente. A mancha na parede de tijolos indicava onde as cabeças delas
foram esmagadas. Estava aparente que os assassinos quiseram despachá -las da

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forma mais eficiente possível. Na silenciosa cavalgada através da cidade,
Kahlan avistou muitos outros lugares onde os muito jovens haviam sido jogados
em pilhas após serem assassinados de um jeito que só poderia ser descrito como
entretenimento pelos homens mais monstruosos.
Embora não houvesse muitas mulheres entre os mortos, Kahlan não viu
qualquer uma que estivesse totalmente vestida. Aquelas que ela viu eram mais
velhas ou muito jovens. O tratamento aplicado a elas foi bestial além da
imaginação e suas mortes lentas.
Kahlan engoliu o nó em sua garganta enquanto enxugava os olhos.
Ela desejou gritar. As três Irmãs não pareciam particularmente
comovidas pela carnificina na cidade. Elas observavam as ruas laterais e
olhavam para as colinas ao redor, aparentemente preocupadas com qualquer
sinal de ameaça.
Kahlan nunca estivera tão feliz em sair de um lugar quanto estava
quando finalmente elas seguiram caminho saindo da cidade e pegaram uma
estrada que conduzia a sudeste.
A estrada acabou não sendo a escapatória dos horrores da cidade que
ela pensou que seria. Pelo caminho as valas estavam aqui e a li cheias de corpos
de homens jovens e garotos mais velhos desarmados, provavelmente executados
por tentarem escapar, resistindo contra a ideia de escravidão, como exemplo
para os outros, ou simplesmente pelo esporte do assassinato.
Kahlan sentiu-se tonta e quente. Teve medo que pudesse estar doente.
A forma como ela balançava na sela apenas tornava a náusea pior. O fedor de
morte e carne queimada as seguia na clara luz do sol conforme elas cavalgavam
entre as colinas do outro lado da cidade. O cheiro era tão penetrante que parecia
como tivesse saturado suas roupas e estivesse até mesmo saindo no suor dela.
Ela duvidou que algum dia dormiria novamente sem ter pesadelos.
Kahlan não sabia qual era o nome da cidade, mas agora ela não existia
mais. Não restara uma pessoa viva. Qualquer coisa que tivesse algum valor
havia sido destruída ou saqueada. Pelo número de cadáveres, tão vasto quanto
havia sido, ela soube que muitos dos habitantes da cidade, a maioria mulheres,
pelo menos aquelas com a idade certa, foram levados como escravos. Após ter
visto o que aconteceu com as mulheres deixadas mortas na cidade, Kahlan podia
imaginar vividamente o que aconteceria com as mulheres levadas.
A planície que alargava e as colinas de ambos os lados até onde Kahlan
conseguia enxergar tinham sido pisoteadas por aquilo que deviam ser muito
além de meras centenas de milhares de homens. A grama não havia sido apenas
achatada por incontáveis botas, cascos, e rodas de carroças, mas havia sido
transformada em pó sob o peso de número s incontáveis. A visão colocou em
perspectiva a magnitude das massas que haviam passado através da cidade, e de
certo modo era mais apavorante do que as cenas horríveis de morte. Uma força
de homens tão vasta aproximava -se de uma força da própria natureza, como
alguma tempestade terrível que cortou uma trilha no rosto do terreno, destruindo
impiedosamente tudo em seu caminho.
Mais tarde, quando elas aproximavam -se do topo de uma colina, as
Irmãs manobraram cuidadosamente assumindo uma posição que colocava o sol
baixo atrás das costas delas para que qualquer um adiante tivesse que olhar em
direção ao sol para vê -las. Irmã Ulicia reduziu a velocidade e levantou -se nos
estribos, esticando -se para dar uma olhada cautelosa, então sinalizou para que o
resto delas desmontassem. Todas amarraram seus cavalos na carcaça de um
velho pinheiro partido em dois por um raio. Irmã Ulicia disse a Kahlan para

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ficar perto atrás delas.
Na borda da colina, quando agacharam silenciosamente na grama fina,
elas finalmente tiveram s ua primeira visão daquilo que cruzara pela cidade
caída. A uma certa distância, espalhando -se através do horizonte nebuloso,
estava o que à primeira vista parecia ser um mar marrom turvo, mas na verdade
era a mancha escura de um exército com tamanho número que estava além da
contagem. Carregados pelo vento, no tranquilo ar do final de tarde, Kahlan
podia distinguir os distantes sons de gelar o sangue de uivos, gritos de
mulheres, e risadas estridentes de homens que vinham daquela multidão.
Apenas o peso de tamanhos números teria esmagado as defesas de
qualquer cidade. Qualquer oposição armada dificilmente teria sido notada por
um exército tão vasto quanto esse. Homens reunidos em tal quantidade não
poderiam ser detidos por qualquer coisa.
Mas ainda que ess e exército parecesse com uma massa, uma multidão,
uma coisa, ela sabia que era errado considerá -lo nesses termos; esse era um
grupo de indivíduos. Esses homens não nasceram monstros. Cada um deles havia
sido um bebê indefeso embalado nos braços de uma mãe. Cada um havia sido
uma criança com medos, esperanças, e sonhos. Ainda que ocasionalmente um
indivíduo aberrante pudesse, por causa de uma mente doente, crescer para
tornar-se um assassino sem remorsos, essa quantidade de indivíduos não podia.
Cada um era assassino por convicção a uma causa, um assassino por escolha,
todos unidos sob uma bandeira de perversas crenças que forneciam sanção à
selvageria deles.
Todos esses eram indivíduos que, quando confrontados com a escolha,
haviam deliberadamente jogado fo ra a inerente nobreza da vida, e ao invés disso
escolheram serem servos da morte.
Kahlan ficou horrorizada com a carnificina que viu na cidade,
nauseada com as coisas que tinha visto. Durante algum tempo ela mal conseguiu
respirar, não apenas por causa do fedor de morte, mas por causa do seus
desespero diante de tamanha brutalidade louca, diante de tal depravação
monumental e intencional. Ela experimentou uma sensação de pavor por aquelas
almas desamparadas que ainda enfrentariam a horda e uma esmagadora p erda de
qualquer esperança de que a vida algum dia pudesse valer à pena ser vivida, de
que ela pudesse algum dia ser razoável e segura, muito menos alegre.
Mas agora, com a visão da fonte do massacre, a grande força de
homens que tinham por sua própria vo ntade perpetrado tamanhas atrocidades,
todas aqueles sentimentos de desolação desapareceram. No lugar deles surgiu
uma raiva efervescente, o tipo de fúria interior que ela não achava que uma
pessoa sentia com frequência em sua vida. Relembrando das pessoas idosas que
foram feitas em pedaços, das crianças mortas com os cérebros esmagados, e do
tratamento selvagem com as mulheres, Kahlan conseguia pensar em pouca coisa
além do seu desejo ardente por vingança em nome dos mortos silenciosos.
Essa sensação de f úria espalhou -se através dela, uma fúria tão terrível
que pareceu mudar para sempre algo dentro dela. Nesse momento, sentiu uma
profunda afinidade com a pequena estátua que ela teve que deixar no pacífico
jardim de Richard Rahl, uma compreensão do espírito dela que não tivera antes.
— É Jagang, muito bem. — finalmente falou a Irmã Cecilia com uma
voz amarga.
Irmã Armina assentiu. — E temos que passar por ele se quisermos
chegar até Caska.
Irmã Ulicia apontou para a parede de montanhas à esquerda. — O

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exército deles, com todos os seus cavalos, carroças, e suprimentos, não podem
cruzar as passagens estreitas entre aqueles picos, mas nós podemos. Tão devagar
quanto Jagang avança, podemos facilmente cruzar as passagens e então seguir
para Caska muito antes qu e eles consigam viajar ao sul para passarem das
montanhas e então subirem até D’Hara.
Irmã Cecilia ficou olhando para o horizonte. — O exército
D’Haraniano não tem chance contra isso.
— Isso não é problema nosso. — falou Irmã Ulicia.
— Mas e quanto a nossa ligação com Richard Rahl? — Irmã Armina
perguntou.
— Não somos nós quem está atacando Richard Rahl. — disse Irmã
Ulicia. — Jagang é quem vai atrás dele, procurando destruí -lo, não nós. Nós
somos aquelas que controlarão o poder de Orden e então garanti remos a Richard
Rahl aquilo que somente nós temos o poder para fornecer. Isso já é suficiente
para preservar a nossa ligação e nos proteger do Andarilho dos Sonhos . Jagang e
o exército dele não são problema nosso e o que eles pretendem fazer não é nossa
responsabilidade.
Kahlan lembrou de estar no Palácio do Povo e imaginar como seria o
homem. Mesmo que ela não o conhecesse, temia por ele e seu povo terem que
encarar aquilo que estava dirigindo -se até eles.
— Será problema nosso se eles chegarem até Caska antes de nós. —
disse Irmã Cecilia. — Além de encontrar com Tovi, Caska é o único outro Local
Central onde podemos entrar por enquanto.
Irmã Ulicia colocou de lado a ideia com um movimento da mão. —
Eles estão bem longe de Caska. Podemos facilmente corta r caminho e
ultrapassá-los seguindo por cima das montanhas ao invés de descer, da a volta, e
então subir novamente como eles terão que fazer.
— Você não acha que eles podem acelerar o passo? — perguntou Irmã
Armina. — Afinal de contas, Jagang pode estar a nsioso para finalmente acabar
com Lorde Rahl e as forças D’Haranianas.
Irmã Ulicia irritou -se com a simples ideia. — Jagang sabe que o
exército D’Haraniano não tem outro lugar para onde ir... agora Richard Rahl não
tem escolha a não ser ficar e lutar. O a ssunto está decidido. É apenas uma
questão de tempo.
— O Andarilho dos Sonhos não tem pressa, nem poderia ter... não com
um exército tão gigantesco e pouco manobrável. E mesmo se eles pudessem
acelerar o passo eles precisam viajar uma distância muito maio r de modo que
isso ainda não o levaria até Caska antes que nós consigamos chegar até lá. Além
disso, o exército de Jagang é o mesmo que tem sido desde a primeira vez que
eles conquistaram o Mundo Antigo, há décadas, e tem sido assim durante toda
essa guerra. Eles nunca apressam o passo. Eles são como as estações... movem -
se com grande força, mas lentamente.
Ela direcionou um olhar sério para as outras duas Irmãs. — Além do
mais, eles acabaram de levar as mulheres da cidade. Os homens de Jagang
estarão ansi osos para aproveitarem os seus novos espólios.
O sangue desapareceu do rosto da Irmã Armina. — Não sabemos a
verdade disso?
— Jagang e seus homens nunca ficam cansados de usarem mulheres
cativas. — disse a Irmã Cecilia, quase para si mesma.
A cor da Irm ã Armina retornou rapidamente. — Adoraria amarrar
Jagang e brincar um pouco com ele.

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— Todas nós gostaríamos de aplicar umas lições naqueles homens, —
falou Irmã Ulicia enquanto olhava fixamente para o vazio. — mas temos coisas
melhores para fazer. — ela sorriu. — Entretanto, algum dia…
As três Irmãs ficaram em silêncio durante algum tempo enquanto
contemplavam a vasta horda espalhada pelo horizonte.
— Algum dia, — falou Irmã Cecilia com uma voz rancorosa baixa. —
abriremos as Caixas de Orden e teremos o poder para fazer aquele homem
retorcer ao vento.
Irmã Ulicia virou e dirigiu -se de volta em direção aos cavalos. — Se
quisermos abrir uma das três Caixas, então primeiro teremos que alcançar Tovi e
a última Caixa... e o que mais estiver em Caska. Esqueça m Jagang e o exército
dele. Esta será a última vez que teremos de vê -los... até que chegue o dia em que
tivermos liberado o poder de Orden e pudermos ter um pouco de diversão ao
entregar a nossa retribuição pessoal para o Andarilho dos Sonhos .

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C A P Í T U L O 9

Nicci abriu os olhos. Ela enxergou apenas formas vagas.


— Zedd está furioso com você.
Embora soasse como se aquilo tivesse vindo de algum lugar, nebuloso,
distante, ela sabia que era a voz de Richard. Estava surpresa em ouvi -la. Estava
surpresa em ouvir qualquer coisa. Ela pensou que certamente deveria estar
morta.
Quando sua visão começou a entrar em foco, Nicci virou a cabeça para
a direita e viu ele sentado encolhido perto em uma cadeira que havia sido
colocada ao lado da cama. Inclinado para frente, os cotovelos sobre os joelhos,
seus dedos entrelaçados, ele a estava observando.
— Porquê? — ela perguntou.
Parecendo aliviado em vê -la acordada, ele recostou na cadeira simples
de madeira e mostrou aquele sorriso dele que ela tanto adorava ver.
— Porque você quebrou a janela naquela sala onde todos vocês
estavam fazendo a Teia de Verificação.
Na luz de uma lamparina brilhando suavemente sob uma sombra branca
leitosa, ela viu que estava coberta até as axilas por uma colcha de cama dourada
luxuosamente bordada com lustrosa borda verde sálvia. Ela usava apenas uma
camisola de seda que não reconheceu. As mangas seguiam até os pulsos. Era
rosa clara. Não era sua cor.
Ela imaginou de onde teria vindo a camisola e, o mais importante,
quem a teria despido e vestido isso nela. Lá no Palácio dos Profetas, há tanto
tempo, Richard foi a primeira pessoa que ela conheceu que não esperava ter
direito ao corpo dela ou sobre algum outro aspecto da vida dela. Aquela atitude
franca ajudara a iniciar o proces so de raciocínio que eventualmente levou -a a
descartar uma vida de ensinamentos da Ordem. Através de Richard, ela passou a
realmente enxergar que sua vida pertencia somente a ela mesma. Juntamente
com essa compreensão, desde então ela descobrira a dignidad e e o valor próprio.
Porém, nesse momento havia outras preocupações além de encontrar -se
em uma camisola cor de rosa. Sua cabeça latejante parecia impossivelmente
pesada contra o aconchegante travesseiro.
— Tecnicamente, — ela falou. — o relâmpago quebrou a janela. Não
eu.
— De alguma forma, — Cara falou de outra cadeira inclinada com a
ponta encostada contra a parede ao lado da porta. — não acho que a distinção vá
impressionar muito ele.
— Suponho que não. — disse Nicci soltando um suspiro. — Aquela
sala fica na seção mais forte da Fortaleza.
Richard fez uma careta. — Fica onde?
Ela cerrou levemente os olhos em um esforço para fazer o rosto dele
entrar mais em foca. — Aquela seção da Fortaleza é um lugar especial. Está
reforçada contra interferência i ntencional assim como eventos anormais e
errantes.
Cara cruzou os braços. — Importaria-se de traduzir para nós?
A mulher estava usando sua roupa vermelha de couro. Nicci pensou se
isso significava que havia mais problemas nas proximidades ou se ela estav a

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apenas tensa porque a besta fizera uma visita.
— É um campo de contenção. — falou Nicci. — Sabemos pouco sobre
a surpreendente e complexa antiga criação do feitiço Cadeia de Fogo. É
perigoso até mesmo estudar tais componentes instáveis completamente
entrelaçados do jeito como aquele está. Foi por isso que estávamos usando
aquele lugar em particular para efetuar a Teia de Verificação. Aquela sala fica
no núcleo original da Fortaleza... um importante santuário usado para tarefas
envolvendo materiais anômal os. Várias espécies de conjurações, ambas
construídas e formadas livremente, estão aptas a conter vazamentos tangenciais
inatos que podem gerar rompimentos de domínio, então quando trabalhamos com
elas é melhor confinarmos esses tipos de componentes potenc ialmente perigosos
em um campo de contenção.
— Ah, certo, obrigada pela tradução. — falou Cara em um tom suave.
— Agora está tudo tão claro. É um campo alguma coisa.
Nicci assentiu da melhor forma que podia. — Sim... um campo de
contenção. — quando a exp ressão de Cara apena ficou mais séria, Nicci
complementou. — Fazer magia lá dentro é como manter uma vespa em uma
garrafa.
— Ah. — Cara soltou um suspiro, finalmente captando o conceito
simplificado. — Acho que isso explica porque Zedd ficou tão rabugento por
causa disso.
— Talvez ele possa consertar para que fique como era. — Richard
sugeriu. — O mais surpreendente é que a sala não ficou tão danificada. É por
causa das janelas quebradas que ele está mais aborrecido.
Nicci ergueu uma das mãos em um gesto fraco. — Não duvido disso. O
vidro lá dentro é único. Ele tem propriedades desenvolvidas para impedir a fuga
de magia conjurada... e para evitar ataques dotados. Sua função é muito parecida
com a de escudos, exceto que detém poder ao invés de pessoas.
Richard pensou durante um momento. — Bem, — finalmente ele falou.
— isso não evitou um ataque da besta.
Nicci olhou para as prateleiras com livros construídas na parede do
lado oposto em relação à cama. — Nada pode. — disse ela. — Nesse caso a
besta não veio através das janelas ou paredes... veio através do Véu, emergindo
do Submundo direto dentro da sala; ela não precisa cruzar quaisquer escudos,
campo de contenção ou vidro repel entes.
A cadeira de Cara bateu no chão. — E ela quase arrancou o seu braço.
— ela sacudiu um dedo para Richard. — Você estava usando o seu Dom. Atraiu
ela até você. Se Zedd não estivesse lá para curá -lo, provavelmente você teri a
sangrado até a morte.
— Oh, Cara, cada vez que você conta a história parece que eu sangro
ainda mais. Sem dúvida na próxima vez que eu ouvir isso eu terei o corpo
partido ao meio e costurado com linha mágica.
Ela cruzou os braços quando encostou a ponta da cadeira de volta
contra a parede. — Você poderia ter sido partido ao meio.
— Eu não estava ferido de forma tão séria como você faz parecer.
Estou bem. — Richard inclinou um pouco a apertou a mão de Nicci. — Pelo
menos você deteve ela.
Ela encarou o olhar dele.
— Por enquanto. — disse ela. — Só isso.
— Por enquanto é o bastante nesse momento. — ele sorriu com
silenciosa satisfação. — Você fez muito bem, Nicci.

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Os olhos cinzentos dele refletiram sua sinceridade interior. De alguma
maneira o mundo sempre parecia melhor quando Richard estava feliz que alguém
tivesse realizado algo difícil. Ele sempre parec ia valorizar aquilo que as pessoas
alcançavam... sempre parecia feliz com o triunfo delas. Invariavelmente quando
ele estava satisfeito com alguma coisa que ela fizera isso alegrava o coração
dela.
O olhar dela desviou do rosto dele. Ela notou a pequena e státua sobre a
mesa logo atrás dele. A luz da lamparina iluminava os cabelos e o manto
esvoaçantes que Richard um dia entalhara tão cuidadosamente na imagem da
impressão dele do espírito de Kahlan. A estátua lustrosa, esculpida em nogueira,
parecia desafiar silenciosamente alguma força invisível que tentava vencer
aquele espírito.
— Estou no seu quarto. — falou Nicci, meio que para si mesma.
Uma expressão de curiosidade surgiu no rosto dele. — Como você
sabe?
Nicci desviou o olhar da estátua para fitar a pequena janela com o topo
arredondado na grossa parede de pedra à esquerda. Uma delicada cor rubra
pálida estava começando a ficar visível nos recantos mais baixos de um céu
negro cheio de estrelas enquanto o amanhecer aproximava -se gradualmente.
— Um palpite de sorte. — ela mentiu.
— Ele estava mais perto, — explicou Richard. — Zedd e Nathan
quiseram colocá -la em uma cama, deixar você confortável, para que pudessem
avaliar o que precisavam fazer para ajudá -la.
Nicci soube através da sensação gélida em suas veias que eles fizeram
algo mais do que uma simples avaliação.
— Rikka e eu tiramos sua roupa e colocamos você em uma camisola
que Zedd encontrou para nós. — Cara explicou respondendo a pergunta não
pronunciada que devia ter visto nos olhos de Nicci.
— Obrigada. — Nicci ergueu a mão em um gesto vago. — Quanto
tempo estive inconsciente? O que aconteceu?
— Bem, — falou Richard. — depois que você pulou de volta para
dentro daquela Forma de Feitiço na noite de anteontem e invocou o raio para
deter a besta, a Teia de Verificação quase levou -a de vez. Depois que você saiu,
Zedd achou que acima de tudo você precisava descansar então ele fez alguma
coisinha para que você dormisse. Você estava um pouco delirante por causa da
dor que enfrentou. Ele disse que a judou você a relaxar para que não tivesse que
sofrer. Ele disse que você dormiria o dia todo ontem e ontem a noite, e então
acordaria perto do amanhecer de hoje. Acho que ele estava certo.
Cara levantou para ficar atrás de Richard e olhou para baixo, para
Nicci. — Ninguém achou que Lorde Rahl seria capaz de tirar na segunda vez.
Pensavam que o seu espírito estava longe demais dentro do Submundo para
trazê-la de volta... mas ele conseguiu. Ele trouxe você de volta.
Nicci desviou o olhar do sorriso de Cara para os olhos cinzentos de
Richard. Eles não refletiram qualquer coisa da dificuldade da tarefa. Ela sentiu
dificuldade em imaginar como ele poderia ter realizado tal coisa.
— Você fez muito bem, Richard. — ela disse, fazendo ele sorrir.
Ele e Cara volta ram sua atenção para uma suave batida na porta. Zedd
abriu devagar a porta para espiar lá dentro. Quando viu que Nicci estava
acordada, ele deixou de lado o cuidado e entrou.
— Ah, — ele observou. — de volta dos mortos, eu diria.
Nicci sorriu. — Uma excursão horrível. Não recomendo uma visita ao

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lugar. Sinto muito pelas janelas, mas isso foi...
— Melhor as janelas do que aquilo que poderia ter acontecido a
Richard.
Nicci ficou feliz em ouvir ele dizer isso. — Esse foi meu pensamento.
— Algum dia você t erá que explicar para mim exatamente o que você
fez e como fez. Eu não sabia que alguma forma de poder conjurado podia
atravessar aquelas janelas.
— Não pode. Eu simplesmente … convidei uma confluência de poder
natural a entrar através das janelas.
Zedd observou-a com uma expressão indecifrável. — Sobre as janelas,
— finalmente ele disse em um tom controlado. — talvez sejamos capazes de
usar a sua habilidade com ambos os lados do Dom para restaurá -las.
— Eu ficaria feliz em ajudar.
Cara deu um passo adi ante. — Quando Tom e Friedrich eventualmente
retornarem da patrulha nos arredores do campo tenho certeza de que eles
poderão ajudar com o trabalho em madeira da janela. Friedrich, especialmente,
conhece a respeito do trabalho com madeira.
Zedd assentiu qu ando sorriu brevemente com a sugestão antes de virar
para seu neto. — Onde você esteve? Procurei você esta manhã e não consegui
encontrá-lo. Estive procurando por você o dia todo.
Nicci percebeu que as janelas dificilmente eram a principal
preocupação del e.
Richard olhou rapidamente para a estátua. — Eu li bastante ontem à
noite. Quando a luz surgiu fui dar uma caminhada para pensar a respeito do que
fazer a seguir.
Zedd suspirou diante da resposta. — Bem, como eu falei depois que
você quebrou a primeira Forma de Feitiço que mantinha Nicci, precisamos
conversar sobre algumas das coisas que você disse.
Estava claro que não era uma questão de casual curiosidade mas uma
aberta exigência.
Richard levantou para ajudar a colocar travesseiros atrás de Nicci
quando viu ela começar a sentar. A dor estava tornando -se nada mais do que
uma lembrança que desaparecia. Zedd obviamente tinha feito alguma coisa mais
do que ajudá-la a dormir. A cabeça dela estava começando a clarear. Ela
percebeu que estava faminta.
— Então fale. — falou Richard quando sentava novamente.
— Preciso que você explique precisamente como foi capaz de saber de
que forma interromper uma Teia de Verificação... especialmente uma tão
complexa quanto a matriz de evento Cadeia de Fogo.
Richard pareceu mais do que um pouco cansado. — Ei já falei, eu
entendo o jargão de emblemas.
Zedd cruzou as mãos atrás das costas quando começou a andar de um
lado para outro. A preocupação estava claramente presente nas linhas do rosto
dele. — Sim, a respeito disso , você mencionou que conhece bastante sobre
“padrões representacionais envolvendo letalidade”. Preciso saber o que você
queria dizer com isso.
Richard deu um profundo suspiro, soltando a respiração lentamente
enquanto recostava em sua cadeira. Tendo cresc ido perto de Zedd, obviamente
ele sabia muito bem que quando Zedd queria saber algo era mais fácil
simplesmente responder as perguntas.
Richard girou os pulsos sobre os joelhos. Estranhos símbolos cobriam

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as faixas prateadas de couro que ele usava. No cen tro de cada faixa, na parte de
dentro dos seus pulsos, havia uma pequena Graça. Somente isso já era bastante
alarmante, desde que Nicci tinha visto Richard usá -las para invocar a Sliph de
modo que eles pudessem viajar. Ela não conseguia imaginar o que os o utros
símbolos significavam.
— Essas coisas nas faixas... os emblemas, figuras e dispositivos... são
imagens representando coisas. Como falei antes, elas são um jargão, uma
espécie de linguagem.
Zedd balançou um dedo apontando para as figuras nas faixas dos
pulsos. — E você consegue distinguir significado nelas? Como fez com a Forma
de Feitiço?
— Sim. A maioria são maneiras de lutar com a espada... foi por isso
que primeiro fui capaz de reconhecê -las e como eu comecei a aprender a
compreendê-las.
Distraidamente os dedos de Richard buscaram conforto no cabo da
arma, mas ela não estava mais no quadril dele. Ele controlou -se e prosseguiu.
— Muitos desses são os mesmos símbolos do lado de fora do Enclave
do Primeiro Mago. Você sabe... naquelas placas de bro nze na gravação acima
das colunas vermelhas de pedra variegadas, sobre os discos de metal
arredondados em volta de todo o friso, e também esculpidos na rocha da cornija.
Ele olhou por cima do ombro para seu avô. — A maioria desses
emblemas claramente envo lvem o combate com uma espada.
Nicci piscou, surpresa, enquanto escutava. Richard nunca tinha falado
para ela a respeito dos símbolos nas faixas dos pulsos. Como Primeiro Mago,
Zedd havia sido o guardião da Espada da Verdade , e era seu dever nomear um
novo Seeker quando necessário, mas devido sua reação, ela achou que nem
mesmo ele soubesse a respeito disso. Ela supôs que isso era compreensível.
Afinal de contas, a espada tinha sido feita há milhares de anos por magos com
prodigioso poder.
— Esse aqui. — Zedd encostou um dedo em um emblema em uma das
faixas dos pulsos de Richard. — Esse está na porta para o Enclave do Primeiro
Mago.
Richard virou o outro pulso e indicou com um dedo uma figura de uma
estrela brilhando no topo da faixa prateada. — Como esse aqui.
Zedd puxou o braço de Richard para mais perto, inspecionando as
faixas na luz da lamparina. — Sim… esses dois estão na porta. — ele fez uma
careta para Richard. — E você honestamente acredita que eles significam algo, e
que aprendeu a ler eles?
— Sim, é claro.
Zedd, baixando as sobrancelhas, claramente ainda estava duvidando. —
O que você acha que eles significam?
Richard tocou em um símbolo nas faixas e em um como aquele nas
insígnias de sua bota. Ele apontou para a mesma figura dentro da faixa dourada
em volta do seu manto negro. Até que ele tivesse apontado, Nicci não havia
percebido que aquilo estava escondido ali, no meio do resto daquilo que parecia
nada mais do que uma elaborada faixa decorativa. A figura parecia com dois
triângulos rudimentares com uma sinuosa dupla linha ondulando correndo em
volta e através deles.
— Esse aqui é uma espécie de ritmo usado para lutar quando estiver
em menor número. Ele transmite um sentido de cadência da dança, movimentos
sem forma de ferro.

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Zedd levantou uma sobrancelha. — Movimento sem forma de ferro?
— Sim, você sabe, movimento que não é rígido, não é prescrito e
inflexível, e ainda assim é deliberado, com uma intenção específica assim como
objetivos precisos; Esse emblema descreve uma parte integral d a dança.
— Da dança?
Richard assentiu. — A dança com a morte.
A boca de Zedd moveu -se durante um momento antes que sua voz
retornasse. — Dança. Com a morte. — ele gaguejou por mais um instante com o
início de uma torrente de perguntas antes de finalment e fazer uma pausa e então
recuar para algo mais simples. — E como isso conecta -se com os símbolos no
Enclave do Primeiro Mago?
Richard esfregou um dedão sobre as formas na faixa do pulso
esquerdo. — Os símbolos teriam significado para um Mago Guerreiro... o que,
em parte, foi como eu descobri. Símbolos possuem significância em muitas
profissões. Alfaiates pintam tesouras em suas janelas, um fabricante de armas
pode pintar o contorno de facas sobre a sua porta, uma taverna pode ter uma
placa com uma caneca, um ferreiro uma bigorna, e um ferrador pode pendurar
ferraduras. Alguns símbolos, um crânio com ossos cruzados embaixo dele por
exemplo, alertam sobre algo mortal. Da mesma forma Magos Guerreiros
colocaram símbolos no Enclave do Primeiro Mago.
— E o mais importante, cada profissão tem o seu próprio jargão, um
vocabulário especializado específico do ofício. Não é diferente com um Mago
Guerreiro. O jargão da profissão dele tem a ver com letalidade. Esses símbolos
aqui e do lado de fora do Enclave do Primeir o Mago são em parte sinais do
ofício dele: trazer a morte.
Zedd limpou a garganta, então olhou para baixo e apontou para outro
símbolo na faixa no pulso de Richard. — Esse aqui. Esse aqui está na porta para
o meu enclave. Conhece o significado dele? Conse gue parafrasear sua intenção?
Richard virou sua faixa levemente enquanto olhava para o símbolo da
estrela brilhando. — É um conselho para não permitir que sua visão fique
travada em apenas uma coisa. Uma estrela explodindo é um aviso para olhar
para todos os lados ao mesmo tempo, para não enxergar qualquer coisa
excluindo todo o resto. É um lembrete de que você não deve permitir que o
inimigo atraia sua atenção de uma forma que direcione a sua visão e faça com
que ela fique concentrada em uma coisa. Se fiz er isso, verá aquilo que ele quer
que você veja. Fazer isso permitirá que ele cegue você, por assim dizer, e então
ele o atacará sem que você o veja e provavelmente você perderá sua vida.
— Ao invés disso, como essa estrela explodindo, a sua visão deve es tar
aberta para tudo, nunca parando, mesmo quando estiver cortando. Dançar com a
morte significa entender e tornar -se um com seu inimigo, compreender a forma
como ele pensa dentro do alcance do conhecimento dele, de forma que você
conheça a espada dele tão bem quanto a sua própria... a exata localização dela,
sua velocidade, e o movimento seguinte antes que ele venha sem ter que esperar
para enxergá-lo primeiro. Ao abrir sua visão desse jeito, abrir todos os seus
sentidos, você passa a conhecer a mente e os movimentos do inimigo quase que
por instinto.
Zedd coçou a têmpora. — Está tentando dizer que esses símbolos,
sinais específicos para Magos Guerreiros, são todos instruções para usar uma
espada?
Richard balançou a cabeça. — A palavra “espada” destina -se a
representar todas as formas de luta, não apenas o combate ou a luta com uma

59
arma. Da mesma forma aplica -se na estratégia e liderança, entre outras coisas na
vida.
— Dançar com a morte estar comprometido com o valor da vida,
comprometido com sua mente, coração, e alma, para que realmente esteja
preparado para fazer o que for necessário para preservar a vida. Dançar com a
morte significa que você é a encarnação da morte, vindo colher os vivos, para
preservar a vida.
Zedd pareceu estupefato.
Richard pareceu surpreso com a reação de Zedd. — Tudo isso está de
acordo com tudo que você sempre me ensinou, Zedd.
A luz da lamparina projetou sombras no rosto angular de Zedd. —
Suponho que de certa forma esteja, Richard. Mas ao mesmo tempo isso é muito
mais.
Richard assentiu enquanto esfregava um dedão sobre a macia
superfície prateada brilhante de uma faixa no pulso. Ele pareceu estar
procurando palavras. — Zedd, sei que você teria desejado ser aquele que me
ensinaria a respeito de todas as coisas relacionadas a o seu enclave... como você
desejava ser aquele que me ensinaria sobre a Graça. Como Primeiro Mago era
uma tarefa sua. Talvez eu devesse ter esperado.
Ele levantou um dedo com convicção. — Mas havia vidas em jogo e
coisas que eu tinha que fazer. Tive que a prender isso sem você.
— Maldição, Richard, como eu ensinaria você a respeito de tais
coisas? — ela falou com resignação. — O significado desses símbolos esteve
perdido durante milhares de anos. Nenhum mago desde, desde… bem, nenhum
mago de quem eu tenha ouvido falar jamais foi capaz de decifrá -los. Eu sinto
dificuldade em imaginar como você conseguiu.
Richard balançou um ombro. — Assim que eu comecei a entender, tudo
tornou-se bastante óbvio.
Zedd lançou um olhar preocupado para seu neto. — Richard, eu cresci
nesse lugar. Passei grande parte da minha vida aqui. Eu era Primeiro Mago
quando havia magos aqui para direcionar. — ele balançou a cabeça. — O tempo
todo aquelas figuras estiveram no Enclave do Primeiro Mago, e eu jamais soube
o que elas significam . Pode parecer simples e óbvio para você, mas não é. Até
onde eu sei, você está apenas imaginando que entende os emblemas... apenas
inventando um significado que você quer que esteja ali.
— Não estou imaginando o significado deles. Eles salvaram minha vid a
incontáveis vezes. Aprendi muito sobre como lutar com uma espada ao entender
a linguagem desses símbolos.
Zedd não discutiu e apenas apontou para o amuleto que Richard
carregava pendurado no pescoço. No centro, cercado por um complexo de linhas
douradas e prateadas, estava um rubi em forma de uma gota de lágrima do
tamanho da unha do polegar de Nicci. — Você achou isso no meu enclave.
Também tem ideia do que significa?
— Era parte dessa roupa, parte da roupa usada por um Mago
Guerreiro, mas diferente do resto dela, como você disse, isso foi deixado na
proteção do Enclave do Primeiro Mago.
— E o significado?
Os dedos de Richard acariciaram o amuleto de forma reverente. — O
rubi destina-se a representar uma gota de sangue. Os emblemas gravados nesse
talismã são a representação simbólica do caminho da Diretriz Primária.
Zedd pressionou os dedos contra a testa, como se estivesse confuso por

60
outro enigma. — A diretriz Primária?
O olhar de Richard pareceu perdido no amuleto. — Significa apenas
uma coisa, e tudo: corte. Uma vez que esteja comprometido a lutar, corte. Tudo
mais é secundário. Corte. Essa é a sua obrigação, seu propósito, sua fome. Não
há regra mais importante, nenhum compromisso que supere esse. Corte.
As palavras de Richard surgiam suavemente , com uma espécie de
conhecimento, uma seriedade mortal que gelou os ossos de Nicci.
Ele ergueu o amuleto afastando -o do peito, seu olhar fixo em suas
gravuras ornamentadas.
— As linhas gravadas são uma representação da dança e como tal
possuem um significado específico. — ele deslizou um dedo sobre os traços
ondulantes enquanto falava, como se estivesse seguindo uma linha de um texto
em uma língua antiga. — Corte a partir do vazio, não da confusão. Corte o
inimigo tão rápida e diretamente quanto possível . Corte com certeza. Cort e
decisivamente, resolutamente. Corte a força dele. Deslize através das aberturas
em sua guarda. Corte-o. Corte-o completamente. Não permita que ele respire.
Esmague-o. Corte-o sem piedade até as profundezas de seu espírito.
Richard levantou os olhos para seu avô. — Esse é o equilíbrio para a
vida: morte. Essa é a dança com a morte ou, mais precisamente, é o mecanismo
da dança com a morte... a sua essência reduzida a uma forma, sua forma descrita
por conceitos.
— Essa é a lei pela qual um Mago Guerreiro vive, ou morre.
Os olhos castanhos de Zedd estavam ilegíveis. — Então essas marcas,
esses emblemas, em última análise referem -se a um Mago Guerreiro como um
mero espadachim?
— O mesmo princípio predominante sobre o qual falei a vo cê aplica-se
a esse caso assim como aos outros símbolos. A Diretriz Primária não significa
meramente considerar como um Mago Guerreiro luta com uma arma, mas, de
forma mais importante, com sua mente. É uma compreensão fundamental da
natureza da realidade q ue deve abranger tudo que ele faz. Ao ser verdadeiro com
a Diretriz Primária, qualquer arma é uma extensão da sua mente, um agente de
seu propósito. De certo modo é aquilo que uma vez você falou para mim a
respeito de ser o Seeker. A arma não é tão importa nte quanto o homem que a
empunha.
— O homem que usou pela última vez esse amuleto um dia foi
Primeiro Mago. Seu nome era Baraccus. Aconteceu dele também ter nascido um
Mago Guerreiro , como eu nasci. Ele também foi ao Templo dos Ventos, mas
quando ele retornou, foi até o Enclave do Primeiro Mago, deixou isso lá, saiu, e
cometeu suicídio saltando do lado da Fortaleza.
O olhar de Richard vagou dentro de distantes visões e lembranças. —
Durante algum tempo, eu entendi e senti vontade de juntar -me a ele. — Nicci
ficou aliviada quando a expressão vazia nos olhos cinzentos dele foi banida pelo
retorno do sorriso fácil dele. — Mas eu recuperei os sentidos.
A sala ecoou com o silêncio, como se a própria morte houvesse
acabado de deslizar através da sala, parado du rante um momento, e então
seguido adiante.
Finalmente Zedd sorriu quando segurou o ombro de Richard, aplicando
em seu neto uma carinhosa sacudida. — Fico feliz em saber que fiz a escolha
certa ao nomeá-lo Seeker, meu rapaz.
Nicci gostaria que Richard ain da tivesse a espada que pertencia ao
Seeker, mas ele havia sacrificado ela em troca de informação em uma tentativa

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de encontrar Kahlan.
— Então, — Zedd falou finalmente, retornando ao assunto em questão.
— porque você sabe a respeito desses símbolos, acre dita que entende símbolos
dentro da Forma de Feitiço Cadeia de Fogo.
— Eu fui capaz de interromper aquilo, não fui?
Zedd cruzou as mãos atrás das costas novamente. — Nisso você tem
razão. Mas isso não significa necessariamente que você poderia ler formas
dentro do feitiço como emblemas, muito menos que que a Forma de Feitiço
estava corrompida pelas Notas.
— Não pelas Notas em si, — Richard explicou pacientemente. — mas
pela contaminação deixada para trás como resultado do fato de que as Notas
estiveram n esse mundo. Essa corrupção foi o que infectou o feitiço Cadeia de
Fogo. Essa é a questão.
Zedd virou para outro lado, seu rosto escondido nas sombras. — Mas
ainda assim, Richard, mesmo se você realmente entender algo dos emblemas
terem relação com Magos G uerreiros, como pode ter certeza de que entende de
forma precisa essa, essa... ele gesticulou na vaga direção da sala onde tudo
aquilo aconteceu. — esse outro assunto com o feitiço Cadeia de Fogo e as
Notas?
— Eu sei, — Richard insistiu com voz baixa. — eu vi a marca da
natureza da corrupção. Ela foi causada pelas Notas.
Ele soou cansado. Nicci imaginou há quanto tempo ele estivera
acordado. Por causa do timbre árido na voz dele e a leve instabilidade em seus
movimentos, ela suspeitou que provavelmente fa zia dias desde que ele dormira.
A despeito do quanto pudesse estar cansado, ele soava resoluto em sua
convicção. Ela sabia que era a preocupação dele com Kahlan que o movia
adiante.
Nicci, tendo sido retirada da Forma de Feitiço por ele duas vezes, não
era a pessoa que desejaria descartar tão facilmente a teoria dele. Porém, mais do
que isso, ela passara a entender que Richard possuía uma visão da magia que era
muito diferente da sabedoria convencional. No início ela pensara que a
percepção dele sobre como a magia funcionava em parte através de conceitos
artísticos era um produto do fato dele ter sido criado sem ter sido ensinado
sobre magia, sem sofrer qualquer exposição a ela, mas desde então ela havia
começado a ver que aquela visão única, junto com seu intelecto singular,
permitira a ele captar uma natureza essencial da magia que era
fundamentalmente diferente dos ensinamentos ortodoxos.
Nicci tinha começado a acreditar que Richard poderia entender a magia
de uma forma não visualizada por qualquer pesso a desde tempos antigos.
Zedd virou de volta, seu rosto iluminado pelo brilho caloroso da luz da
lamparina de um lado e, do outro, pela suave luz fria do amanhecer. — Richard,
digamos que você esteja certo a respeito do significado dos símbolos nessas
faix as e daqueles como esses no Enclave do Primeiro Mago. Entender essas
coisas não significa que você pode entender as linhas dentro de uma Teia de
Verificação. É um contexto completamente diferente e único. Não estou
duvidando da sua habilidade, meu rapaz, r ealmente não estou, mas lidar com
formas de feitiço é um assunto vastamente complexo. Você não pode saltar
diretamente para a conclusão...
— Você viu um Dragão nos últimos dois anos?
Todos na sala caíram em um surpreso silêncio com a súbita mudança
de assunto de Richard... e não apenas para qualquer assunto, mas para um que

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poderia ser descrito no mínimo como estranho.
— Um Dragão? — Zedd aventurou-se, finalmente, como um homem
pisando cautelosamente sobre um lago recém congelado.
— Sim, um Dragão. Você lembra de ver um Dragão desde que
deixamos nosso lar em Westland e viemos para Midlands?
Zedd alisou para trás uma parte do seu cabelo branco. Ele olhou
brevemente para Cara e para Nicci antes de responder. — Bem, não, realmente
não posso dizer que lembr o de ter visto qualquer Dragão, mas o que isso tem a
ver...
— Onde eles estão? Porque você não viu algum deles? Porque eles
sumiram?
Zedd parecia no final de sua paciência. Ele abriu os braços. —
Richard, Dragões são criaturas bastante raras.
Richard recostou na sua cadeira, cruzando uma perna sobre seu outro
joelho. — Dragões vermelhos são. Mas Kahlan disse que outros tipos são
relativamente comuns, sendo que alguns dos menores são mantidos para caçar e
coisas assim.
A expressão de Zedd tornou -se desconfiada. — Aonde você quer
chegar?
Richard fez um movimento com a mão. — Onde estão os Dragões?
Porque não vimos algum deles? É nisso que eu quero chegar.
Zedd cruzou os braços sobre o peito. — Eu desisto. Do que você está
falando?
— Bem, por um lado, vo cê não lembra... é disso que estou falando. O
feitiço Cadeia de Fogo afetou mais do que apenas a sua lembrança de Kahlan.
— Não lembro do quê? — Zedd disparou. — O que você quer dizer?
Ao invés de responder para seu avô, Richard olhou para trás por cima
do ombro. — Você viu um Dragão? — ele perguntou para Cara.
— Não lembro de qualquer um. — o olhar dela permaneceu fixo nele.
— Está sugerindo que eu deveria?
— Darken Rahl tinha um Dragão. Uma vez que ele era o Lorde Rahl
naquela época, você estaria pert o dele e provavelmente o teria visto.
Zedd e Cara trocaram um olhar preocupado.
Richard desviou seu olhar penetrante para Nicci. — Você?
Nicci limpou a garganta. — Sempre pensei que eles eram criaturas
míticas. Não existe qualquer um no Mundo Antigo. Se algum dia houve, eles não
existem faz eras. Nenhum registro desde a Grande Guerra faz qualquer menção a
eles.
— E que tal desde que você veio para o Mundo Novo.
Nicci hesitou em declara a lembrança. Entretanto, ela percebeu, pelo
jeito como ele paciente e silenciosamente aguardou a resposta dela, que ele não
deixaria o assunto de lado. Ela sabia que, seja lá qual fosse a obscura equação
em que ele estava trabalhando para solucionar, isso não envolveria qualquer
coisa trivial. Sob o silencioso escrutínio dele, Nicci sentiu não apenas uma
compulsão para responder, mas uma crescente sensação de agouro.
Ela afastou os lençóis e girou colocando os pés para fora do lado da
cama. Ela não queria ficar deitada ali mais tempo... especialmente quando
estava falando sobre aquela época. Segurando o apoio lateral, ela encarou o
olhar de Richard.
— Quando eu estava levando você para o Mundo Antigo, antes de
sairmos do Mundo Novo, encontramos ossos colossais. Não desci do cavalo para

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olhar de perto, mas lembro de observ ar você andando através daqueles ossos de
costelas... ossos de costelas que tinham mais do que o dobro da sua altura.
Nunca tinha visto algo como eles. Você disse que acreditava que eram os restos
de um Dragão.
— Pensei que deviam ser ossos antigos. Você falou que não eram, que
eles ainda tinham restos de carne neles. Você indicou todas as moscas voando ao
redor deles como prova de que aquilo era o que restou de uma carcaça
apodrecida, não restos antigos.
Richard assentiu diante da lembrança.
Zedd limpou a garganta. — E você já viu um Dragão, Richard? Quero
dizer, um que estivesse vivo?
— Scarlet.
— O quê?
— Esse era o nome dela: Scarlet.
Zedd piscou com incredulidade. — Você viu um Dragão… e ele tem
um nome?
Richard levantou e foi até a janela. Ele descansou as mãos na abertura
de pedra, apoiando seu peso sobre ela enquanto olhava para fora.
— Sim, — finalmente ele falou. — o nome dela era Scarlet. Ela me
ajudou, antes. Era uma fera nobre.
Ele virou de volta da janela. — Mas essa não é a questão. A questão é
que você também conheceu ela.
As sobrancelhas de Zedd ergueram -se. — Eu conheci esse Dragão?
— Não tão bem quanto Kahlan ou eu, mas você conheceu ela. O evento
Cadeia de Fogo obviamente corrompeu a sua lembrança disso. Cadeia de Fogo
foi usado para fazer todos esquecerem de Kahlan, mas todos estão esquecendo
outras coisas também, coisas que estavam conectadas a ela.
— Até onde sei, um dia você pode ter conhecido os significados dos
emblemas do lado de fora do Enclave do Primeiro Mago melhor do que eu. Se
conhecia, essa memória está perdida para você. Quantas outras coisas foram
perdidas? Não sei muita coisa sobre as várias formas de usar magia, mas quando
estávamos lutando com a besta na outra noite para mim pareceu que no passado
todos vocês u saram feitiços mais inventivos e poderes do que as cosias simples
que tentaram contra aquela ameaça... exceto talvez o que Nicci fez no final.
— Isso é o que os homens que surgiram com feitiço Cadeia de Fogo
mais temiam. Foi por isso que eles jamais quise ram que ele fosse usado. Foi por
isso que eles jamais ousaram ao menos testá -lo. Eles temiam que uma vez que
um evento como esse fosse iniciado ele pudesse espalhar -se, destruindo
conexões removidas do alvo primário do feitiço... nesse caso, Kahlan. A sua
lembrança de Kahlan está perdida. A sua lembrança de Scarlet está perdida. A
sua lembrança até mesmo de ter visto um Dragão aparentemente também está
perdida.
Nicci levantou. — Richard, ninguém está dizendo que o feitiço Cadeia
de Fogo não seja terrivelmente perigoso. Todos nós sabemos disso. Todos
sabemos que nossas memórias foram danificadas pela ativação de um evento
Cadeia de Fogo. Você tem ideia do quanto é perturbador estar intelectualmente
consciente de que todos nós fizemos coisas, sabíamos coisas, e conhecíamos
pessoas das quais agora não conseguimos nos lembrar? Não percebe o quanto é
assustador sentir um medo constante de quais memórias estão perdidas, e quais
outras podem ser perdidas? De que a sua própria mente está erodindo? Aonde
você quer ch egar, afinal de contas?

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— Apenas isso... o que mais está sendo perdido. Acho que a destruição
está expandindo através da memória de todos... que suas mentes estão erodindo,
como você disse. Não acredito que Cadeia de Fogo fosse um simples evento de
meramente esquecer Kahlan. Acredito que o feitiço, uma vez ativado, está em
um processo dinâmico em andamento. Acredito que a perda de memória de todos
está continuando a espalhar -se.
Zedd, Cara, e Nicci desviaram do olhar firme de Richard. Nicci
imaginou como eles poderiam esperar ajudá -lo se nenhum deles estivesse
conscientemente capaz de usar suas próprias mentes, muito menos manter o que
eles ainda tinham dia após dia.
Como Richard poderia confiar em qualquer um deles?
— Temo dizer que independente do quan to isso seja ruim, fica mais
complicado e muito pior. — disse Richard, o calor abandonando sua voz. —
Dragões, como quaisquer criaturas em Midlands, precisam da magia e a utilizam
para viver. E se a corrupção causada pelas Notas extinguisse a magia que ele s
precisam para viver? E se ninguém tivesse visto qualquer dragão durante os
últimos dois anos porque eles não existem mais e com Cadeia de Fogo agora
estão esquecidos? Quais outras criaturas com magia também poderiam ter
desaparecido da existência?
Richard bateu com um dedão sobre o próprio peito. — Nós somos
criaturas de magia. Nós temos o Dom. Quanto tempo levará até que a
contaminação deixada pelas Notas comece a nos destruir?
— Mas talvez … — a voz de Zedd desapareceu quando ele não
conseguiu pensar em qualquer argumento.
— O feitiço Cadeia de Fogo em si está contaminado. Vocês todos
viram o que ele estava fazendo com Nicci. Ela estava dentro do feitiço e sabe a
terrível verdade disso. — Richard começou a andar de um lado para outro
enquanto falava. — Não há como dizer de que forma a contaminação dentro do
feitiço pode mudar o modo como ele funciona. Pode ser até mesmo que a
contaminação seja a razão pela qual a perda de memória de todos esteja
espalhando-se além daquilo que de outra maneira teria aco ntecido.
— Mas pior ainda, parece que a corrupção esteve trabalhando em
conjunto como evento Cadeia de Fogo de uma maneira simbiótica.
Zedd ergueu os olhos. — Do que você está falando?
— Qual é o propósito das Notas? Para início de conversa, porque elas
foram criadas? Para uma simples função, — Richard respondeu em um sussurro
sua própria pergunta. — para destruir a magia.
Richard fez uma pausa em sua caminhada para encarar o resto deles
enquanto prosseguia. — A contaminação deixada pelas Notas está destruindo a
magia. As criaturas que precisam de magia para viver... dragões, por exemplo...
provavelmente seriam as primeiras a serem afetadas. Essa cascata de eventos
continuará. Mas ninguém está consciente disso porque o evento Cadeia de Fogo
está simultan eamente destruindo a memória de todos. Acho que isso pode estar
acontecendo porque o feitiço Cadeia de Fogo está contaminado, fazendo todos
esquecerem as coisas que estão sendo perdidas.
— De uma forma muito parecida como uma sanguessuga entorpece a
sua vítima para que ela não sinta o sangue sendo drenado, o feitiço Cadeia de
Fogo está fazendo todos esquecerem o que está sendo perdido por causa da
corrupção das Notas.
— O mundo está mudando dramaticamente e ninguém está ao menos
consciente disso. É como s e todos estivessem esquecendo que esse é um mundo

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que é influenciado pela magia, e de muitas maneiras funciona através da
existência dela. Essa magia está morrendo… e a lembrança de todos a respeito
dela também.
Novamente Richard apoiou -se na janela e olhou para fora. — Um novo
dia está nascendo, um dia no qual a magia continua a morrer, e ninguém está
percebendo que ela está desaparecendo. Quando ela sumir totalmente, duvido
que alguém ao menos lembrará dela, lembrará daquilo que um dia existiu.
— É como se tudo que esse mundo era estivesse transformando -se em
mera lenda.
Zedd pressionou os dedos contra a mesa enquanto contemplava o vazio.
A luz da lamparina acentuava as profundas rugas de sua expressão cansada. Seu
rosto tinha ficado pálido. Nesse moment o, Nicci achou que ele parecia bastante
envelhecido.
— Queridos espíritos, — falou Zedd sem levantar os olhos. — e se
você tiver razão?
Todos eles voltaram -se em direção a uma batida educada. Cara abriu a
porta. Nathan e Ann estavam além do portal, olhan do para dentro.
— Nós executamos a Teia de Verificação padrão. — Nathan disse
quando entrou atrás de Ann, olhando ao redor para as expressões sombrias.
Zedd observou com expectativa. — E?
— E ela não revelou falhas. — disse Ann. — Está perfeitamente int acta
de todas as formas.
— Como pode ser? — perguntou Cara. — Todos nós vimos o problema
com a outra. Ela quase matou Nicci... e teria feito isso se Lorde Rahl não
retirasse ela.
— Exatamente o nosso pensamento. — disse Nathan.
O olhar de Zedd desviou. — Dizem que uma perspectiva interior é
capaz de revelar mais do que o processo de verificação padrão. — ele explicou
para Cara. — Isso não é um bom sinal. Não é mesmo. A contaminação
aparentemente enterrou -se tão profundamente quanto possível para ocultar sua
presença. Foi por causa disso que ela não foi enxergada na Teia de Verificação
padrão.
— Ou então, — Ann declarou quando enfiava as mãos dentro das
mangas opostas do seu vestido cinzento simples. — não existe realmente algo
errado com o feitiço. Afina l de contas, nenhum de nós executou uma perspectiva
interior anteriormente. Uma coisa como essa não tem sido feita há milhares de
anos. É possível que tenhamos feito algo de errado.
Zedd balançou a cabeça. — Gostaria que fosse assim, mas agora
acredito ao contrário.
A testa de Nathan franziu com uma expressão de desconfiança, mas
Ann falou antes que ele tivesse chance.
— Mesmo se as Irmãs que liberaram o feitiço tiverem executado uma
Teia de Verificação, — ela falou. — provavelmente elas não teriam efetu ado
uma perspectiva interior, então não teriam suspeitado que ele estava
contaminado.
Richard esfregou as pontas dos dedos para frente e para trás em sua
testa. — Mesmo se elas soubessem que ele estava contaminado, não acredito que
elas se importariam. Elas não estariam preocupadas a respeito de quais danos tal
contaminação poderia causar ao mundo. Afinal, o objetivo delas era pegar as
Caixas e liberar o poder de Orden.
Nathan olhou de um rosto sombrio parta outro. — O que está

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acontecendo? O que houve?
— Eu temo que nós tenhamos acabado de aprender que a memória pode
ser apenas o início de nossa perda. — Nicci sentia-se bastante estranha diante
deles em uma camisola cor de rosa enquanto pronunciava o fim do mundo como
eles o conheciam. — Estamos perdendo quem somos, o que somos. Estamos
perdendo não apenas o nosso mundo, mas a nós mesmos.
Richard parecia não estar mais prestando atenção na conversa. Ele
estava imóvel, olhando para fora pela janela.
— Alguém está subindo a estrada até a Fortaleza.
— Talvez sejam Tom e Friedrich. — disse Nathan.
Zedd balançou a cabeça enquanto caminhava até a janela. — Eles não
voltariam tão cedo de uma patrulha nos campos das redondezas.
— Bem, poderia ser que eles...
— Não são Tom e Friedrich, — falou Richard quando dirigiu-se até a
porta. — São duas mulheres.

67
C A P Í T U L O 1 0

— O que foi? — gritou Rikka enquanto Richard, Nicci, e Cara corriam


em direção a ela. Nathan e Ann já tinham ficado para trás. Zedd estava em
algum lugar no meio do caminho.
— Vamos lá. — gritou Richard para ela quando passou correndo.
— Alguém está subindo a estrada da Fortaleza. — Cara gritou para trás
por cima do ombro enquanto Rikka juntava -se ao grupo na corrida através dos
corredores.
Richard fez uma curva ao redor de uma long a mesa de pedra
posicionada contra a parede sob uma enorme pintura de um lago. Trilhas
encobertas podiam ser vistas encravadas entre grupos de pinheiros
profundamente sombreados. Ao longe, através de uma neblina azulada,
montanhas majestosas erguiam -se para alcançar pinceladas de raios de sol
dourados. Era uma cena que fazia Richard desejar estar de volta em suas
florestas de Hartland nas trilhas que ele conhecia tão bem. Mais do que tudo,
entretanto, a pintura sempre o lembrava do verão mágico que passou c om
Kahlan na casa que havia construído para ela nas montanhas.
O verão da recuperação de Kahlan de seus terríveis ferimentos,
enquanto ele mostrava a ela a beleza natural do mundo florestal dele e ela mais
uma vez voltara a ter saúde, havia sido um dos mo mentos mais felizes da vida
dele. Ele acabara repentinamente quando Nicci chegou sem aviso e o levou.
Porém, ele sabia que se Nicci não o tivesse interrompido, alguma outra coisa
teria. Foi uma época de sonho que tinha de acabar; até que a ameaça da Ordem
Imperial que aproximava -se fosse detida, ninguém poderia viver seus sonhos.
Ao invés disso, todos seriam lançados dentro do mesmo pesadelo.
Eles fizeram uma curva em volta de um pilar verde de mármore com
capitel e base dourados e todos mergulharam em uma corrida descendo em
espiral sobre degraus de granito, Richard e Nicci na dianteira com as duas
Mord-Sith seguindo logo atrás. A escadaria era pequena para a Fortaleza, mas
teria reduzido qualquer coisa que Richard já tinha visto enquanto crescia em
Westland.
Na base, ele parou abruptamente, fazendo uma pausa momentânea para
decidir qual seria a rota mais rápida; na Fortaleza nem sempre era do jeito que
pareceria. Além disso, era tão fácil perder -se na Fortaleza quanto era para
alguém perder a direção em u ma floresta.
Cara abriu caminho entre Richard e Nicci, não apenas para ter certeza
de que haveria uma proteção em couro vermelho guardando cada lado dele, mas
para que ela fosse a pessoa na frente dele. Até onde Richard sabia, as Mord -Sith
não tinham grad uações, mas Rikka, como as outras Mord -Sith, sempre concedera
a Cara uma autoridade não declarada.
Richard reconheceu o padrão único das finas faixas pretas e douradas
ladeando ambos os lados dos lambris de mogno em um dos corredores com
painéis de um lad o. Desde quase a época em que aprendera a andar, Richard
havia usado os detalhes dos arredores para conhecer o seu caminho. Como
árvores na floresta que ele reconhecia por causa de alguma particularidade como
um galho torto, alguma vegetação, ou uma cicatr iz, ele aprendera a navegar
através da Fortaleza e lugares como ela através dos detalhes da arquitetura.

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Ele apontou. — Por aqui. — Cara avançou na frente dele.
Enquanto eles corriam, suas botas ecoavam no chão de pedra do
corredor. Nicci estava descalça . Ele estava surpreso que ela conseguisse
continuar correndo sobre a pedra áspera sem sapatos. Nicci não era o tipo de
mulher que Richard imaginaria algum dia correndo descalça. Entretanto, mesmo
correndo descalça ela ainda parecia de alguma forma… majesto sa.
Não fazia muito tempo que Richard jamais teria imaginado que Nicci
nunca mais correria. Ele ainda estava surpreso que tivesse conseguido retirá -la
da Forma de Feitiço depois que o raio explodira pela janela. Durante algum
tempo, ele tinha certeza de q ue haviam perdido ela. Se Zedd não estivesse lá
para ajudar depois que Richard desativara a Teia de Verificação, poderiam
muito bem tê-la perdido.
Eles dobraram em outro corredor; longos tapetes silenciavam sua
corrida e finalmente os conduziram entre dua s colunas polidas vermelhas de
mármore e para dentro da antessala em forma oval. Uma sacada, suportada por
pilares e arcos, corria em volta do perímetro da sala. Os portais nos fundos da
sacada eram todos corredores, dispostos como os raios de uma roda, qu e
levavam para diferente níveis e áreas da Fortaleza.
Richard desceu saltando os cinco degraus circulando a sala dentro das
colunas e passou correndo a grande fonte em forma de trevo centralizada no
chão ladrilhado. As águas da fonte desciam em cascata os sucessivos níveis de
tigelas cada vez maiores para terminarem em uma piscina contida por um muro
de mármore branco com a altura de um joelho que também servia como um
banco. Cem pés acima um teto envidraçado inundava a sala com calor e luz.
Quando ele alcançou o outro lado da sala, Richard passou na frente de
Cara e abriu uma das pesadas portas duplas. Ele parou no topo dos doze largos
degraus de granito do lado de fora. Nicci parou ao lado dele, à sua esquerda,
com Rikka ao lado dela. Cara assumiu um lug ar defensivo bem perto, à direit a
dele. Todos eles ainda estavam recuperando o fôlego da sua breve mas acelerada
corrida através da Fortaleza.
A grama no cercado pelo caminho estava exuberante e verde na luz do
amanhecer. Além do cercado a parede da Forta leza erguia-se reta, fazendo o
jardim interno parecer como um desfiladeiro aconchegante. O passar do milênio
havia deixado a grandiosa parede de rochas escuras bem encaixadas manchada
com pálido sedimento castanho. Gotas cremosas de depósitos de cálcio
transmitiam a impressão de que a rocha estava derretendo lentamente.
Dois cavalos cavalgaram através da escura abertura arqueada à
esquerda, que formava um túnel sob parte da Fortaleza para prover acesso ao
jardim interno. Richard não conseguia dizer quem er am, escondidos como
estavam nas profundas sombras do largo arco baixo, mas quem quer que fossem
deviam ter percebido para onde estavam seguindo e aparentemente temiam
penetrar em uma área interna da Fortaleza, uma área usada não por visitantes
mas por magos e aqueles que trabalharam com eles no complexo. Mas isso foi há
muito tempo. Ainda assim, Richard lembrava de sua própria hesitação na
primeira vez em que ele aventurou -se cautelosamente tão longe dentro do
terreno da Fortaleza. Sua desconfiança elevou -se ao pensar em quem poderia ser
audacioso o bastante para cavalgar direto para dentro de um lugar como esse.
Quando os dois cavaleiros emergiram entrando na luz, Richard viu que
um deles era Shota.
A Bruxa trocou um olhar com ele e exibiu aquele sorriso confiante
particular que ostentava tão naturalmente. Como a maioria das coisas

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relacionadas a Shota, Richard não confiava inteiramente que o sorriso tivesse
significância, muito menos que fosse sincero, e então não poderia ter certeza de
que aquilo fosse um bom sinal.
Ele não reconheceu a mulher, talvez dez ou quinze anos mais velha,
que cavalgava de forma reverente um pouco atrás de Shota. Cabelo curto cor de
areia emoldurava o rosto agradável da mulher. Seus olhos eram tão intensamente
azuis quanto o céu em um claro dia de outono. Diferente de Shota, ela não
mostrava um sorriso. Enquanto cavalgavam, sua cabeça virava de um lado para
outro e aqueles olhos azuis vasculhavam, como se ela temesse um ataque
iminente de demônios que poderiam materializar -se surgindo da rocha escura
das paredes ao redor.
Shota, em contraste, parecia calma e confiante.
Cara inclinou passando por Richard em direção a Nicci. — Shota, a
Bruxa. — ela sussurrou baixinho.
— Eu sei. — Nicci respondeu sem desviar os olhos da bela mulhe r
cavalgando em direção a eles.
Shota parou o cavalo perto dos degraus. Quando endireitou os ombros
ela descansou casualmente os pulsos sobre a sela.
— Preciso falar com você. — disse ela para Richard como se ele fosse
o único ali. O sorriso, sincero ou n ão, havia desaparecido. — Temos muita coisa
para conversar.
— Onde está o seu pequeno companheiro assassino, Samuel?
Shota, virando de lado na sela, deslizou descendo do cavalo de uma
forma que, Richard imaginou, devia ser como um espírito deslizaria até o chão,
se espíritos cavalgassem.
Um leve toque de indignação estreitou os olhos em forma de amêndoa
de Shota. — Essa é uma das coisas sobre as quais nós precisamos conversar.
A outra mulher desmontou também e pegou as rédeas do cavalo de
Shota quando a Bruxa levantou-as para o lado, de forma parecida como uma
Rainha faria, sem saber ou importar -se com quem as pegaria, mas considerando
sem qualquer dúvida que alguém o faria. Seu olhar permaneceu fixo em Richard
enquanto ela aproximava -se dos largos degraus de granito. Seu espesso cabelo
castanho avermelhado descia pela frente dos seus ombros e brilhava sob a luz.
Seu vestido revelador, feito de um tecido fino cor de ferrugem que combinava
perfeitamente com a cor do cabelo dela, parecia flutuar com os seus passos
suaves, agarrando -se a cada curva dela, pelo menos, aquelas que ele cobria.
O olhar de Shota finalmente desviou de Richard para observar Nicci
com uma expressão de “eu desafio você”. Era o tipo de olhar que teria
amedrontado qualquer um. Ele falho u completamente em amedrontar Nicci.
Ocorreu a Richard que ele provavelmente estava na presença das duas mulheres
vivas mais perigosas. Ele quase esperava que nuvens de tempestade surgissem e
relâmpagos disparassem, mas o céu continuou desafiadoramente lim po.
O olhar de Shota finalmente retornou a Richard. — O seu amigo Chase
foi ferido gravemente.
Richard não sabia o que estivera esperando que Shota falasse, mas isso
não chegava perto. — Chase…?
De repente Zedd chegou e abriu caminho entre Richard e Car a. —
Shota! — ele declarou irritado. Seu rosto ficara vermelho e não era por causa da
sua corrida pelos corredores. — Como ousa entrar na Fortaleza! Primeiro você
engana Richard para pegar a espada, e então...
Richard levantou um braço na frente do peito do seu avô para fazê-lo

70
para de descer os degraus. — Zedd, acalme-se. Shota diz que Chase foi
gravemente ferido.
— Como ela acha...
A voz de Zedd foi cortada abruptamente quando as palavras de Richard
finalmente foram absorvidas. Seus olhos arregalados d esviaram em direção a
Shota. — Chase, ferido? Queridos espíritos… como?
Repentinamente Zedd avistou a outra mulher parada um pouco mais
atrás, segurando as rédeas dos cavalos. Ele forçou os olhos diante da claridade
da luz. — Jebra? Jebra Bevinvier?
A mulher sorriu calorosamente. — Já faz bastante tempo. Não tinha
certeza se você lembraria de mim, Mago Zorander.
Dessa vez Richard não tentou impedir Zedd quando ele correu
descendo os degraus. Ele envolveu a mulher em um abraço caloroso e protetor.
— Mago Zorander...
— Zedd, lembra?
Ela afastou -se para contemplar o rosto dele. Um sorriso irrompeu
através da tristeza que pesava tanto nos olhos dela. Seu sorriso desapareceu. —
Zedd, minha visão ficou escura.
— Ficou escura? — com a preocupação endurecendo suas feições, ele
endireitou o corpo e segurou -as pelos ombros. — Faz quanto tempo?
Uma terrível angústia retornou aos olhos azuis dela. — Quase dois
anos.
— Dois anos… — falou Zedd, sua voz sumindo com o espanto.
— Agora lembro de você. — Richard falou quando desceu os degraus.
— Kahlan falou sobre você.
Jebra exibiu uma expressão de confusão para Richard. — Quem?
— O fantasma que ele persegue. — disse Shota, seu olhar firme
concentrado nele como se o desafiasse a argumentar.
— A mulher que ele procu ra não é um fantasma. — Nicci falou,
atraindo a atenção de Shota. — Em parte graças às sugestões caras e um tanto
quanto equívocas que você forneceu, nós descobrimos a verdade daquilo que
Richard estivera falando o tempo todo. Aparentemente você ainda está no escuro
a respeito disso.
O olhar gélido de Nicci lembrou a Richard que um dia ela foi
conhecida como “Senhora da Morte ”. A fria autoridade em sua voz estava à
altura de seu olhar. Havia poucas mulheres no mundo temidas tão amplamente
quanto Nicci foi. .. a não ser talvez Shota. O conduta de Nicci indicava que ela
claramente ainda era uma mulher a ser temida.
Shota, sem mostrar perturbação, observou deliberadamente a camisola
rosa de Nicci. Richard esperou um sorriso de desdém. Ao invés disso, um olhar
ardente surgiu nos olhos de Shota.
— Você esteve dormindo na cama dele. — ela soou quase surpresa com
suas próprias palavras, como se a informação tivesse aparecido em sua mente
inesperadamente.
Nicci balançou os ombros com satisfação diante da raiva de Shota. —
Eu estive.
O mais leve sorriso curvou os cantos da boca de Shota. — Mas ainda
não teve sucesso em fazer ele deitar. — o sorriso dela aumentou. — Você já
tentou, minha querida? Ou tem medo da dor da rejeição?
— Não sei, porque você não diz qual é a sensação e então eu decidirei?
Richard puxou Nicci gentilmente para trás da borda do degrau antes

71
que as duas mulheres fizessem algo estúpido... como tentar arrancar os olhos
uma da outra. Ou reduzir a outra a cinzas.
— Você disse que estava aqui por um motivo, Shota... é melhor que
não seja esse.
Shota soltou um suave suspiro. — Encontrei o seu amigo Chase. Ele
estava gravemente ferido.
— Assim você disse. Como ele foi ferido?
O olhar de Shota não afastou do dele. — Ele foi ferido por uma espada
com a qual você deve estar bastante familiarizado.
Richard piscou, surpreso. — Chase foi ferido pela Espada da Verdade?
Samuel atacou Chase?
— Temo que sim.
Zedd sacudiu um dedo magro para Shota. — Isso é culpa sua!
— Besteira. — Shota também levantou um dedo quando Zedd
aproximou-se, porém como um aviso ao invés de acusação. O gesto, e as
palavras dela, impediram que Zedd desse mais um passo. — Eu não preciso de
espada para causar danos. — ela arqueou uma sobrancelha. — Gostaria de ver,
mago?
— Parem com isso! — Richard desceu os degraus dois de cada vez e
colocou-se entre Shota e seu avô. Ele direcionou seu próprio olhar furioso para
Shota. — O que está acontecendo? — ela suspirou com infelicidade. — Acredito
que eu não saiba completamente.
— Você deu a Samuel minha espada. — Richard tentou manter o calor
longe de sua voz, não deixar transparecer a sua raiva, mas ele temeu que isso
não estivesse funcionando muito bem. — Alertei você a respeito da natureza
dele. Independente do meu aviso, você insistiu q ue ele deveria ficar com ela.
Quero saber o que ele está planejando. Onde está Chase? Qual a gravidade do
ferimento dele? E onde está Rachel?
Shota ergueu as sobrancelhas. — Rachel?
— A garota com ele... a garota que ele adotou. Os dois seguiam
caminho de volta para Westland. Chase iria trazer a família dele para a
Fortaleza. Está querendo dizer que a garota não estava lá, com ele?
— Encontrei ele gravemente ferido. — pela primeira vez, Shot a
pareceu desconcertada. — Não havia garota com ele.
Enquanto ele observava Rikka pegar as rédeas dos dois cavalos e puxá -
los em direção ao cercado, Richard tentou imaginar o que estava acontecendo,
porque Rachel não tinha ficado com Chase. Ele estava preocupado com as
possíveis razões, preocupado com o que poderia ter acontecido a Rachel.
Sabendo como ela era esperta e devotada, Richard imaginou se ela teria partido
em busca de ajuda e agora estava perambulando sozinha.
Outro pensamento ocorreu a ele. — E como foi que você simplesmente
acabou encontrando Chase?
Shota umedeceu os lábios. Pareceu relutante em dizer algo obviamente
desagradável para ela, mas finalmente ela falou. — Eu estava caçando Samuel.
Surpreso, Richard olhou para Nicci. A expressão dela não mostrou
reação e suas feições pareciam absolutamente desp rovidas de emoção que por
um instante fez Richard lembrar de uma coisa similar que de tempos em tempos
tinha visto em Kahlan. Um rosto de Confessora, ele havia chamado.
Ocasionalmente Confessoras colocavam de lado toda emoção para fazerem as
coisas terríveis que às vezes eram necessárias.
— Como Chase está? — perguntou Richard, consideravelmente mais

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calmo. Ele queria saber porque Shota estava caçando Samuel, mas no momento
havia preocupações mais importantes pesando em sua mente. — Ele ficará bem?
— Acredito que sim. — disse Shota. — Ele foi perfurado por uma
espada...
— Pela minha espada.
Shota não discutiu sobre a distinção naquilo. — Não sou uma
curandeira, mas tenho certas habilidades e fui capaz de ao menos reverter a
jornada dele em direção à mort e. Encontrei algumas pessoas que poderiam
cuidar dele e ajudá-lo a recuperar -se. Acho que ele está seguro por enquanto.
Levará algum tempo até que ele esteja de pé novamente.
— E porque Samuel não matou ele? — Cara perguntou do alto do
degrau.
— Ele feriu Tovi da mesma forma. — falou Nicci. — Ele também não a
matou.
— Samuel certamente é capaz de cometer assassinato. — Richard
observou.
Shota cruzou as mãos diante de si. — Aparentemente Samuel não
conseguiu reunir coragem para matar com a espada. Ele fe z isso no passado...
quando a espada foi dele... e então ele sabe a dor que isso causa quando ela é
usada para matar. — ela ergueu uma sobrancelha para Richard. — Tenho certeza
de que você entende muito bem o que estou falando.
— É uma arma que não devia estar em mãos erradas. — Richard disse.
Shota ignorou o comentário de Richard e prosseguiu. — O modo de agir dele é o
de um covarde. Um covarde geralmente deixará a pessoa morrer sozinha, longe
da sua vista.
— Ela sofre mais ainda dessa maneira. — Zedd afirmou. — Assim é
mais cruel. Talvez essa tenha sido a razão.
A Bruxa balançou a cabeça. — Samuel é um covarde e um oportunista;
seu objetivo não é a crueldade mas ao invés disso pensar inteiramente em si
mesmo. Covardes não pensam nas coisas necessariamen te. Eles agem por
impulso. Querem o que eles querem quando querem.
— Samuel raramente vai preocupar -se em considerar as consequências
de suas ações; ele simplesmente pega algo quando vê uma oportunidade, quando
vê alguma cosia que deseja. Esquiva -se da dor que causaria a ele matar com a
espada e assim ele falha em completar a matança que iniciou por impulso. Se a
pessoa que ele fere sofrer um fim agonizante e prolongado, isso não importa
para Samuel porque ele não estará perto para testemunhar isso. Fora d a vista,
fora da mente. Foi isso que ele fez com Chase.
— E você deu a espada para ele, — Richard falou, incapaz de disfarçar
a sua raiva. — Você sabia como ele era e ainda assim tornou possível que ele
fizesse isso.
Shota observou-o durante um momento a ntes de responder. — Não foi
desse jeito, Richard. Entreguei a ele a espada porque pensei que isso o deixaria
contente. Acreditei que ele ficaria satisfeito em tê -la de volta em sua posse.
Pensei que isso abrandaria seu ressentimento pelo fato da espada te r sido tirada
dele tão abruptamente.
Shota lançou um olhar breve mas furioso para Zedd.
— Então, você não considerou as consequências das suas ações. —
disse Richard. — Você simplesmente quis o que desejava quando queria.
O olhar de Shota retornou para Richard. — Após todo esse tempo, e
depois de tudo que aconteceu, você continua tão petulante como sempre foi?

73
Richard não estava com humor para pedir desculpas.
— Temo que exista mais coisa nisso, — falou Shota, um pouco menos
amarga. — mais do que eu percebi naquele momento.
Zedd esfregou o queixo enquanto avaliava a situação. — Samuel deve
ter ferido Chase e então raptado Rachel.
Richard estava surpreso com a sugestão de Zedd; ele não havia
pensado nisso. Havia assumido que Rachel partira em busca de ajuda.
Ele direcionou uma careta para Shota. — Porque Samuel faria tal
coisa?
— Sinto dizer que não faço ideia. — Shota olhou para Nicci, ainda no
topo dos degraus de granito. — Quem a mulher que você afirma que ele feriu?
Essa Tovi?
— Era uma Irmã do Escuro. E essa não é uma acusação leviana. Tovi
não conhecia a pessoa que feriu -a, não sabia quem era Samuel, mas certamente
conhecia a Espada da Verdade; um dia ela foi uma das professoras de Richard
no Palácio dos Profetas. Pouco antes de morrer contou co mo ela e três outras
Irmãs do Escuro iniciaram um feitiço Cadeia de Fogo em Kahlan para fazer com
que todos esquecessem dela. Então elas usaram Kahlan para roubar as Caixas de
Orden do Palácio do Povo.
A testa de Shota franziu. Ela pareceu realmente perpl exa.
— As Caixas de Orden estão ativas. — completou Richard.
Shota balançou uma das mãos desconsiderando aquilo enquanto olhava
para o vazio pensativa. — Isso eu fiquei sabendo. Mas não sabia como isso
aconteceu.
Richard estava imaginando quanto mais da história ela sabia, mas falou
do mesmo jeito. — Tovi estava levando uma das Caixas de Orden para longe do
Palácio do Povo, em D’Hara, quando Samuel atacou -a, feriu-a com a espada, e
então roubou a Caixa que ela estava carregando.
Shota pareceu surpresa n ovamente, mas a expressão rapidamente foi
substituída por uma fúria controlada enquanto ela pensava naquilo que ouvira.
— Conheço Chase durante toda minha vida. — falou Richard. —
Embora qualquer um possa cometer um erro, nunca fiquei sabendo que ele tenh a
sido pego de guarda baixa por alguém que estava escondido aguardando. Não
consigo imaginar que Irmãs do Escuro sejam muito mais fáceis de emboscar.
Pessoas dotadas com o nível de talento e habilidade delas podem sentir pessoas
próximas a elas.
Shota olhou para ele. — O que você quer dizer?
— De alguma forma Samuel foi capaz de surpreender uma Irmã do
Escuro, e um Guarda de Fronteira. — Richard cruzou os braços sobre o peito. —
Além disso, toda vez que Samuel tenta fazer alguma coisa má você sempre age
como se estivesse surpresa e nega qualquer conhecimento daquilo que ele
pretendia. Qual é a sua participação nisso tudo, Shota?
— Nenhuma. Não faço ideia do que ele pretende.
— Ser tão ignorante não é característica sua.
As bochechas dela ficaram vermelh as. — Você não sabe a metade a
respeito disso. — finalmente ela desviou dele e seguiu em direção aos degraus.
— Eu disse, temos muita cosia para conversar.
Richard segurou o braço dela fazendo -a dar meia volta. — Você teve
alguma coisa a ver com Samuel se r capaz de aproximar -se de Chase ou
surpreender Tovi e roubar aquela Caixa? Quero dizer, além de fornecer a ele a
arma para realizar o feito e sem dúvida falar a ele tudo sobre o poder que as

74
Caixas de Orden possuem?
Ela vasculhou nos olhos dele durante u m momento. — Você quer me
matar, Richard?
— Matar você? Shota, eu tenho sido o melhor amigo que você já teve.
— Então colocará sua raiva de lado e escutará o que viemos falar a
você. — Ela libertou -se da mão dele em seu braço e mais uma vez caminhou em
direção aos degraus. — Vamos entrar e sair desse clima feio.
Richard olhou para o céu azul. — O tempo está bonito. — disse ele
enquanto observava ela subir os degraus.
No topo ela parou para trocar um breve olhar com Nicci antes de virar
para olhar Richard. Foi o tipo de olhar perturbador que ele imaginou somente
uma Bruxa poderia conjurar.
— Não no meu mundo.— ela falou quase em um sussurro. — No meu
mundo está chovendo.

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C A P Í T U L O 1 1

Shota deslizou descendo os degraus parando diante da fo nte. O tecido


diáfano do vestido que cobria sua forma estatuesca moveu -se ainda mais
suavemente, como que em uma leve brisa. As águas efervescentes, jorrando, em
cascata, dançavam e cintilavam na luz das claraboias acima, executando uma
emocionante perform ance para a plateia reunida. Shota observou aquilo durante
um momento, como se estivesse ocupada com seus próprios pensamentos
particulares, e então virou para o pequeno grupo que aguardava do lado de
dentro das enormes portas duplas. Todos permaneciam em silêncio, observando -
a, como se esperassem o pronunciamento de uma Rainha.
Atrás de Shota, a água dentro da fonte projetava -se alto no ar. A
torrente exuberante parou abruptamente. O último jato de água, ainda subindo
pouco antes que o fluxo fosse cortado , alcançou o seu zênite, um arco líquido
moribundo, e caiu como se tivesse morrido. As dúzias de feixes uniformes de
água transbordando as pontas viradas para baixo nas camadas de tigelas, como
se estivessem envergonhados com sua agitação esfuziante, reduz iram a
velocidade até pararem e finalmente ficarem em silêncio.
Zedd caminhou até os degraus, com uma expressão ameaçadora
dominando os traços do seu rosto. Quando ele parou, o manto simples dele
rodopiou enrolando em volta de suas pernas. Nesse momento o correu a Richard
que seu avô parecia muito com quem ele era: o Primeiro Mago. Se Richard havia
pensado que Nicci e Shota pareceram perigosas, ele percebeu que Zedd não
parecia menos do que isso. Naquele momento ele era uma nuvem de tempestade
abrigando relâmpagos ocultos.
— Não permitirei que você fique brincando com qualquer coisa nesse
lugar. Eu poupo você porque veio até aqui por razões que de alguma forma
podem ser importantes para todos nós, mas a minha leniência não vai tolerar que
mexa em qualquer coisa aqui.
Shota balançou uma das mãos, desconsiderando o alerta dele. —
Assumi que você não permitiria que eu fosse mais longe do que esta sala. A
fonte é barulhenta. Não quero que Richard não tenha dificuldade em ouvir
qualquer coisa que eu ou Jebra tem os a dizer.
Ela ergueu um braço em direção a Ann, parada ao lado de Nathan,
observando, quase sem ser vista nas profundas sombras da sacada e dos altos
pilares vermelhos. — Esse é um assunto que esteve perto do seu coração durante
quase a metade de sua vi da, Prelada.
— Não sou mais Prelada, — falou Ann com uma voz firme que soou
muito como se ela ainda fosse.
— Porque você estava caçando Samuel? — perguntou Cara, atraindo a
atenção da Bruxa.
— Porque ele não devia ter saído do meu vale em Agaden Reach. Além
disso, ele não devia ter sido capaz de fazê -lo sem a minha expressa permissão.
— E ainda assim ele o fez. — disse Richard.
Shota assentiu. — Então fui procurar ele.
Richard cruzou as mãos atrás das costas. — Como foi Shota, que você
não estava ciente de que Samuel a abandonaria? Quer dizer, considerando o seu
poder, vasto conhecimento, e todo aquele negócio que você explicou para mim

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sobre como uma Bruxa consegue ver a forma como os eventos fluem adiante no
tempo. Para ser mais direto, como ele cons eguiu fazer isso sem o seu
consentimento?
Shota não fugiu da pergunta. — Só tem um jeito.
Richard conteve o comentário sarcástico que surgiu em sua mente e ao
invés disso perguntou. — E qual seria?
— Samuel foi enfeitiçado.
Richard não tinha certeza se tinha ouvido corretamente. — Enfeitiçado.
Mas você é uma Bruxa. Você é quem enfeitiça.
Shota cruzou as mãos, olhando para o chão durante um momento
enquanto entrelaçava os dedos. — Ele foi enfeitiçado por outra.
Richard desceu os cinco degraus. — Outra Bruxa?
— Sim.
Richard inspirou profundamente enquanto olhava ao redor para ver os
outros trocando olhares preocupados. Ninguém pareceu estar inclinado a
perguntar, então ele o fez. — Está querendo dizer que existe outra Bruxa por
perto, e ela enfeitiçou Samuel para que ele se afastasse de você?
— Pensei ter deixado isso perfeitamente claro.
— Bem… onde ela está?
— Não faço ideia. Certos assuntos no fluxo do tempo são do meu
conhecimento... tenho cuidado disso. O fato de que eu esteja cega dessa forma
para eventos que escapam do meu alcance só pode significar que outra Bruxa
ocultou de mim deliberadamente esses fluxos.
Richard enfiou as mãos nos bolsos traseiros enquanto tentava avaliar
aquilo. Ele caminhou de um lado para outro brevemente antes de vira r de volta
para ela.
— Talvez não tenha sido uma Bruxa. Talvez fosse uma Irmã do Escuro
ou alguém assim. Uma pessoa dotada. Talvez até mesmo um mago. Jagang tem
pessoas assim também.
— Manipular uma Bruxa está longe de ser uma tarefa fácil. — ela
direcionou um breve olhar para Zedd. — Pergunte ao seu avô.
Shota apontou para algumas das pessoas na sala antes que seu olhar
retornasse para Richard. — Uma pessoa dotada, mesmo como essas, não importa
o quanto seja talentosa, não conseguiria realizar um engodo tão amplo quanto
essa conseguiu. Somente outra Bruxa poderia entrar sem ser vista em meus
domínios. Somente outra Bruxa conseguiria lançar uma mortalha sobre a minha
visão e então enfeitiçar Samuel para que ele fizesse o que fez.
— Se a sua visão está bl oqueada, — perguntou Cara. — como pode ter
tanta certeza de que Samuel foi enfeitiçado? Talvez ele esteja agindo por sua
própria vontade. De acordo com o que tenho visto, ele não precisa de qualquer
encantadora misteriosa para coagi -lo a ter um comportamen to impulsivo. Ele
pareceu bastante traiçoeiro sozinho.
Shota balançou a cabeça lentamente. — Você só precisa pensar naquilo
que falou para ver que isso envolve não apenas malícia mas conhecimento além
da habilidade de Samuel. Uma Irmã do Escuro foi atacad a; uma Caixa de Orden
foi roubada dela. Em primeiro lugar, como Samuel saberia que essa mulher tinha
algo valioso? Eu mesma não sabia dela porque isso é parte daquilo que tem sido
escondido de mim, então eu não poderia ter falado para ele... nem mesmo
distraída, de forma descuidada, ou inadvertidamente, que é o que você está
pensando. Então, Samuel não descobriu isso através de mim. Se ele cruzar com
algum tipo de tesouro não há dúvida de que Samuel é plenamente capaz de fazer

77
o que puder para tomá-lo, essa parte eu admito.
— Quer dizer da forma como ele obteve a Espada da Verdade em
primeiro lugar? — perguntou Zedd.
Shota encarou o olhar dele brevemente mas preferiu retornar ao
assunto em questão ao invés de confrontar o desafio. — Em segundo lugar,
como Samuel saberia onde poderia encontrar um Irmã carregando uma Caixa de
Orden? Você não pode estar querendo sugerir seriamente que acha que ele
simplesmente estava perambulando... pelos campos em D’Hara... e por acaso
encontrou justamente com essa Irmã do Es curo, feriu -a, e roubou aquilo que ela
estava carregando apenas para acabar descobrindo que era uma das Caixas de
Orden?
— Tenho que admitir, — falou Richard. — eu nunca acreditei muito
em coincidência. Certamente isso não parece plausível nesse caso tamb ém.
— Exatamente o que eu penso. — disse Shota. — E então temos Chase.
Devido à sua grave condição não consegui descobrir muita coisa com ele, mas
consegui descobrir que ele sofreu uma emboscada. Outra coincidência... Samuel
encontrar e atacar aleatoriame nte alguém e acontecer que esse alguém era outra
pessoa que você conhece? Acho difícil. Isso deixa a pergunta sobre o porque
Samuel estaria esperando por um homem que você conhece. Porque ele o
atacaria? Que coisa de valor Chase possui?
— Rachel. — respondeu Zedd enquanto olhava para o vazio,
esfregando o queixo, pensativo.
— Mas o que ele desejaria com uma garota? — Cara perguntou.
Quando várias pessoas olharam em sua direção com expressões preocupadas, ela
completou. — Quer dizer, com essa garota em par ticular?
— Não sei. — declarou Shota. — E esse é o problema. Como eu disse,
os eventos em volta de tudo isso estão bloqueados para mim, mas bloqueados de
uma forma que não reconheço, então eu não estava consciente de que alguma
coisa estava sendo escondid a. Está óbvio que existe uma mão direcionando
Samuel. Essa mão só poderia ser de outra Bruxa.
— Você a conhece? — perguntou Richard. — Sabe quem é, ou quem
poderia ser?
Shota observou -o com a expressão mais formidável que jamais tinha
visto em feições tã o femininas. — Ela é um completo mistério para mim.
— De onde ela veio? Você tem algum ideia a respeito disso?
O olhar de Shota ficou ainda mais sombrio. — Oh, acredito que tenho.
Acredito que ela veio do Mundo Antigo. Quando você destruiu a grande barre ira
faz alguns anos sem dúvida ela viu uma oportunidade e entrou no meu
território... de forma muito parecida como a Ordem Imperial viu uma
oportunidade para invadir e conquistar o Mundo Novo. Ao enfeitiçar Samuel ela
está enviando uma mensagem de que está tomando o meu lugar, tomando o que é
meu... incluindo o meu território... para si.
Richard virou para Ann, um pouco afastada ao lado da antessala. —
Você sabe a respeito de uma Bruxa no Mundo Antigo?
— Eu tomava conta do Palácio dos Profetas, guiando jo vens magos e
todo um palácio cheio de Irmãs em direção ao caminho da Luz. Prestei bastante
atenção às profecias naquela tarefa, além das profecias, eu realmente não me
envolvia nos acontecimentos... no resto do Mundo Antigo. De tempo s em tempos
ouvi vagos rumores sobre Bruxas, mas nada além de rumores. Se ela era real,
nunca mostrou sua presença para que eu soubesse a seu respeito.
— Eu também nunca fiquei sabendo a respeito de qualquer Bruxa. —

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completou Nathan com um suspiro. — Jamais ouvi quaisquer rumor es sobre tal
mulher.
Shota cruzou os braços. — Somos um grupo bastante reservado.
Richard gostaria de conhecer mais sobre esse tipo de coisas... embora
conhecer uma Bruxa tivesse provado em mais de uma ocasião ser problema
suficiente. Agora parecia que p oderia haver o dobro do problema.
— O nome dela é “Seis”. — disse Nicci na antessala silenciosa.
Todos viraram para observá -la.
As sobrancelhas de Shota abaixaram. — O que você disse?
— A Bruxa no Mundo Antigo. O nome dela é Seis, como o número. —
a expressão de Nicci possuía aquela fria ausência de emoção novamente, suas
feições tão imóveis quanto um lago em um bosque ao amanhecer após o primeiro
congelamento da estação. — Nunca encontrei com ela, mas as Irmãs do Escuro
falam sobre ela em sussurros.
— Isso seria coisa daquelas Imãs. — Ann grunhiu.
Os braços de Shota abaixaram quando ela deu um passo para longe da
fonte, em direção ao lugar onde Nicci estava sobre o chão de mármore no topo
dos degraus. — O que você sabe a respeito dela?
— Não muita coisa. Só ouvi o seu nome, Seis. Só lembro dele porque
era incomum. Alguns das minhas superiores na época... minhas superiores Irmãs
do Escuro... aparentemente a conheciam. Ouvi o nome dela ser mencionado
diversas vezes.
O semblante de Shota havia ficado tã o sombrio e perigoso quanto uma
víbora com as presas expostas. — O que as Irmãs do Escuro estavam fazendo
junto com uma Bruxa?
— Eu realmente não sei. — falou Nicci. — Elas podiam ter negócios
com ela, mas se tinham eu não fiquei sabendo a respeito. Nem s empre eu era
incluída nos esquemas delas. Poderia ser que elas apenas soubessem sobre ela. É
possível que jamais tenham encontrado com ela.
— Ou é possível que elas a conhecessem muito bem.
Nicci sacudiu os ombros. — Talvez. Você teria que perguntar a el as.
Sugiro que faça isso rápido... Samuel já matou uma delas.
Shota ignorou a alfinetada e virou para olhar dentro das águas paradas
da fonte. — Você deve ter ouvido elas falarem alguma coisa sobre ela.
— Nada muito específico. — disse Nicci.
— Bem, — Shota falou com exagerada paciência quando virou de
volta. — qual era a natureza geral daquilo que estavam falando sobre ela?
— Só captei a sensação de duas coisas. Ouvi que a Bruxa, Seis, morava
longe ao sul. As Irmãs mencionaram que ela morava muito mais distante dentro
do Mundo Antigo, em alguma das florestas sem trilhas e uma terra de pântanos.
— Nicci olhou de forma resoluta dentro dos olhos de Shota. — E elas tinham
medo dela.
Shota cruzou os braços sobre os seios novamente. — Tinham medo
dela. — ela repetiu em um tom indiferente.
— Apavoradas.
Shota observou os olhos de Nicci durante algum tempo antes de
finalmente virar mais uma vez para encarar a fonte, como se esperasse ver
algum segredo revelado nas águas plácidas.
— Não há nada que diga que é a mesma mulher. — falou Richard. —
Não há evidência que diga que é essa Bruxa, Seis, do Mundo Antigo.
Shota olhou pata trás por cima do ombro. — Você, entre todas as

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pessoas, sugere que isso é mera coincidência? — o olhar dele mais uma vez
buscou confort o nas águas. — Realmente não importa se é ou não. Só importa
que seja uma Bruxa e que ela esteja disposta a causar problemas para mim.
Richard aproximou -se de Shota. — Acho muito difícil acreditar que
essa outra Bruxa teria enfeitiçado Samuel fazendo ele afastar-se só para fazer
você aparecer e tomar o que é seu. Tem que haver algo mais nisso.
— Talvez seja um desafio, — falou Cara. — talvez ela esteja
desafiando você a aparecer e lutar.
— Isso exigiria que ela se tornasse conhecida. — declarou Shota. —
Ela tem feito exatamente o oposto. Ela está sendo cuidadosa para permanecer
oculta de modo que eu não consiga combatê -la.
Enquanto ele avaliava, Richard descansou uma bota sobre o banco de
mármore que cercava a fonte. — Ainda digo que deve haver alguma co isa mais
nisso. Samuel roubar uma das Caixas de Orden tem implicações mais sombrias.
— A resposta mais provável não aponta para outra coisa a não ser a
sua própria mão, Shota. — as palavras de Zedd atraíram a atenção de todos. —
Isso soa mais como uma das suas grandes trapaças.
— Posso entender porque você pensaria assim, mas se isso fosse
verdade porque eu viria até aqui contar a vocês sobre isso?
O olhar sério de Zedd não fraquejou. — Para fazer parecer que você é
inocente quando na verdade é a pessoa nas sombras direcionando os eventos.
Shota girou os olhos. — Não tenho tempo para esse tipo de jogo
infantil, mago. Não estive direcionando as mãos de Samuel. Meu tempo tem sido
gasto em outros assuntos mais importantes.
— Tipo?
— Estive em Galea.
— Galea! — Zedd bufou sua descrença. — Que assuntos você teria em
Galea?
Jebra colocou uma das mãos no ombro de Zedd. — Ela foi me resgatar.
Eu estava em Ebinissia, capturada durante a invasão e então escravizada. Shota
me tirou do meio daquilo.
Zedd direcion ou um olhar desconfiado para Shota. — Você foi até a
Cidade Coroa de Galea para resgatar Jebra?
Shota olhou brevemente para Richard, um olhar nebuloso carregado de
significado. — Isso era necessário.
— Porque? — pressionou Zedd. — Estou aliviado que Jebr a finalmente
tenha sido resgatada daquele horror, é claro, mas o que exatamente você quer
dizer quando fala que isso era necessário?
Shota segurou um ponto diáfano do material de que era feito seu
vestido quando ele ergueu -se suavemente, como um gato arqu eando suas costas,
desejando um carinho da mão de sua senhora. — Eventos marcham avançando
em direção a uma conclusão sinistra. Se o curso desses eventos não mudarem
então estaremos condenados ao governo dos invasores, presos ao mandato de
pessoas cuja con vicção, entre outras coisas, é de que a magia é uma corrupção
maligna que deve ser erradicada do mundo. Elas acreditam que a humanidade é
uma coisa pecaminosa e corrupta que deveria estar adequadamente submissa e
indefesa diante da face do todo poderoso es petáculo da natureza. Aqueles de nós
que possuem magia, precisamente porque não somos submissos e indefesos,
serão todos caçados e destruídos.
O olhar de Shota passou por todos aqueles que a observavam. — Mas
essa é meramente a nossa tragédia pessoal, não a verdadeira praga da Ordem.

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— Se o curso dos eventos não mudar, então as crenças monstruosas que
a Ordem impõe cairão como uma mortalha sobre todo o mundo. Não haverá
lugar seguro, qualquer refúgio. Uma coleira de ferro de conformidade será
colocada em volta dos pescoços de todos aqueles que forem deixados vivos. Pela
ilusão do bem comum, na forma de lemas elevados e noções vazias que incitam
a multidão irresponsável com nada além do desejo por aquilo que não foi
merecido, tudo de bom e nobre será sacrif icado, entorpecendo homens
civilizados para que sejam pouco mais do que uma multidão organizada de
saqueadores.
— Mas assim que tudo de valor for pilhado, o que restará das suas
vidas? Através do seu descaso pelo magnífico e o desdém por tudo que é bom,
eles abraçam o que é mesquinho e o cruel. Com seu ódio fervoroso por qualquer
homem que destaca-se, as crenças da Ordem condenarão todos os homens a
vasculharem na lama para sobreviverem.
— A inflexível visão da maldade inerente da humanidade será a fé
coletiva. Essa crença, imposta através da brutalidade e sofrimento indescritível,
será a marca duradoura deles. O seu legado será o mergulho da humanidade em
uma era de trevas, sofrimento e miséria da qual ela poderá jamais emergir. Esse
é o terror da Ordem.. . não a morte, mas a vida sob as suas crenças. — as
palavras de Shota espalharam uma tristeza pela sala. — Os mortos, afinal de
contas, não podem sentir, não podem sofrer. Só os vivos podem.
Shota virou para as sombras, onde estava Nathan. — E o que diz você,
profeta? A profecia diz o contrário, ou eu falo a verdade?
Nathan, ereto e sério, respondeu lentamente. — Tão longe quanto
segue a Ordem Imperial, eu temo que a profecia não possa oferecer qualquer
testemunho do contrário. De forma competente e sucin ta você descreveu vários
milhares de anos de previsões.
— Esse tipo de trabalhos antigos não podem ser compreendidos
facilmente, — Ann interrompeu. — a palavra escrita pode ser bastante ambígua.
A profecia não é um assunto para os inexperientes. Para os n ão treinados ela
pode parecer...
— Sinceramente espero que esse seja um julgamento baseado em uma
opinião rasa de minha aparência, Prelada, e não do meu talento.
— Eu só estava … — começou Ann.
Shota balançou a mão desconsiderando aquilo quando virava p ara outro
lado. Seu olhar concentrado em Richard, como se ele fosse o único na sala. Ela
flou como se estivesse dirigindo -se apenas a ele.
— Nossas vidas podem ser as últimas vividas livres. Esse pode muito
bem ser o fim dos tempos do melhor que poderia s er, da batalha por valores, do
potencial de cada um de nós para erguer -se e alcançar algo melhor. Se o curso
dos eventos não mudar, então agora estamos testemunhando o início do pior que
poderia ser, de uma era onde, para que ninguém ouse viver melhor atra vés de
seus próprios esforços e para os seus próprios objetivos, a humanidade será
reduzida a viver as vidas de ignorantes selvagens idealizadas pela Ordem.
— Nós todos sabemos disso. — falou Richard, com os punhos cerrados
perto do corpo. — Você não entende o quanto estivemos lutando para evitar
justamente isso? Não tem qualquer ideia da batalha que todos nós suportamos?
Exatamente pelo que você acha que estive lutando?
— Não sei, Richard. Você afirma estar comprometido, e ainda assim
falhou em mudar o curso dos eventos, falhou em conter a onda da Ordem
Imperial. Você diz que entende, e ainda assim os invasores chegam, subjugando

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mais e mais pessoas a cada dia que passa.
— Mas não se trata nem mesmo disso. Trata -se do futuro. E no futuro,
você está falhando conosco.
Richard mal conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ele não estava
apenas furioso mas apavorado que Shota falasse tal coisa. Era como se tudo que
ele tinha feito, cada sacrifício que fizera, cada esforço, não tivesse significado
para ela... não apenas agora, mas no futuro.
— Veio dizer para mim a sua profecia de que eu falharei?
— Não. Eu vim dizer a você o modo como as coisas estão agora, a não
ser que você mude as coisas, todos nós falharemos nessa luta.
Shota virou de Richard e ergueu um braço em direção a Nicci. — Você
mostrou a ele a morte que é tudo que pode resultar das crenças defendidas pela
Ordem. Mostrou a ele a existência sombria que é tudo presente sob o dogma
deles, de que o único valor da vida está no quanto dela você sacri fica, de que o
único propósito da sua vida é um meio para um fim em outro mundo: uma
eternidade sem vida no mundo seguinte.
— Nisso, você prestou a todos nós um grande serviço e tem a nossa
gratidão. Você cumpriu totalmente o seu papel como professora de Richard,
mesmo que não tenha sido do jeito que tinha esperado. Mas isso também é
apenas uma parte de tudo isso.
Richard não conseguia ver como o seu cativeiro... sendo obrigado a
viver uma vida dura no Mundo Antigo... poderia ser considerado como um
serviço. Ele não havia precisado viver isso para entender a futilidade sem
esperança da vida sob o governo da Ordem Imperial. Não discutia quanto a
qualquer palavra que Shota dissera sobre o que aconteceria com eles se não
conseguissem prevalecer, mas estava fu rioso que ela estivesse parecendo pensar
que ele precisava ouvir isso novamente, como se ele não tivesse captado aquilo
pelo qual estavam lutando e como resultado estivesse falhando em comprometer -
se totalmente com a causa deles.
Richard não sabia como ac onteceu, porque não viu ela mover -se, mas
de repente Shota estava bem na frente dele, seu rosto a meras polegadas do rosto
dele.
— E mesmo assim, você ainda não é conhecedor da totalidade disso,
ainda não está decidido de uma forma que é essencial.
Richard olhou com raiva para ela. — Não estou decidido? Do que você
está falando?
— Eu precisei encontrar uma maneira de fazer você entender, Seeker,
de fazer você enxergar a realidade disso. Precisei encontrar uma forma de fazer
você ver o que está reservado para as pessoas não apenas do Mundo Novo, mas
do Mundo Antigo também... o que está reservado para toda a humanidade.
— Como você poderia pensar que eu...
— Você é o escolhido, Richard Rahl. Você é aquele que lidera a última
das forças que resistem contra as ideias que fornecem combustível para a
conflagração que é a Ordem Imperial. Por todas as razões, você é aquele que nos
lidera nessa luta. Você pode acreditar naquilo por que luta, mas não está
fazendo o que é necessário para mudar o curso da guerra cas o contrário aquilo
que vejo no fluxo dos eventos adiante no tempo não seria como é.
— Do jeito como está, nós estamos condenados.
— Você precisa ouvir qual será o destino do seu povo, o destino de
todos os povos. Então fui até Galea para encontrar Jebra d e forma que ela
pudesse dizer a você o que ela tem visto. Para que uma Vidente possa ajudá -lo a

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ver.
Richard pensou que talvez pudesse estar furioso durante o discurso,
mas ele não conseguia mais invocar raiva; ela estava desaparecendo. — Eu já sei
o que acontecerá se falharmos, Shota. Já sei como é a Ordem Imperial. Já sei o
que nos aguarda se perdermos nessa batalha.
Shota balançou a cabeça. — Você sabe como é depois. Sabe como é ver
os mortos. Mas os mortos não podem mais sentir. Os mortos não podem ch orar.
Os mortos não pode gritar de terror. Os mortos não podem implorar por
misericórdia.
— Você sabe como é ver os destroços na manhã após a tempestade.
Você precisa ouvir alguém que estava lá quando a tempestade iniciou. Precisa
ouvir como foi quando as legiões vieram. Precisa ouvir a realidade de como será
para todos. Precisa saber o que acontecerá com os vivos se você falhar em fazer
aquilo que só você pode.
Richard olhou para Jebra. O braço confortador de Zedd envolveu os
ombros dela. Lágrimas descer am pelo rosto pálido dela. Ela tremeu dos pés à
cabeça.
— Queridos espíritos, — sussurrou Richard. — como você pode ser tão
cruel em pensar por um instante que eu ainda não conheço a verdade de nosso
destino caso percamos?
— Eu vejo o fluxo do futuro nis so, — Shota falou com voz suave
direcionada apenas a ele. — e o que vejo é que você não tem feito o bastante
para mudar o que será, de outra forma isso não seria como eu vejo. É simples
assim. Não há crueldade envolvida, simplesmente a verdade.
— O que exatamente você espera que eu faça, Shota?
— Não sei, Richard. Mas seja o que for, você não está fazendo isso
agora, está? Enquanto todos nós deslizamos para dentro de um terror
inimaginável, você nada faz para impedir isso. Ao invés disso está caçando
fantasmas.

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C A P Í T U L O 1 2

Richard queria falar mil coisas para Shota. Queria dizer a ela que a
Ordem Imperial não era a única ameaça que lançava -se sobre eles. Queria falar a
ela que com as Caixas de Orden em atividade, se elas não fossem detidas , as
Irmãs do Escuro libertariam um poder que destruiria o mundo dos vivos e
entregaria todos para o Guardião dos mortos. Queria dizer a ela que se não
encontrassem uma forma de reverter o feitiço Cadeia de Fogo ele poderia muito
bem gerar a destruição das memórias e mentes de todos, privando -os de seus
meios de sobrevivência. Queria falar a ela que se eles não encontrassem um
jeito de livrar o mundo da contaminação deixada pelas Notas, então toda magia
seria extinta, e que essa contaminação já podia muito bem ter iniciado um efeito
cascata que, se não fosse parado, tinha o potencial, sozinho, para destruir toda a
vida.
Queria dizer que ela nada sabia a respeito da mulher que ele amava, a
mulher tão valiosa para ele. Queria dizer a ela o quanto Kahlan signi ficava para
ele, o quanto temia por ela, o quanto sentia sua falta, como o pavor com o que
estava sendo feito a ela o impedia de dormir.
Queria falar a ela que nesse momento a Ordem Imperial era apenas um
de seus terríveis problemas. Mas, vendo Jebra em p é ali tremendo sob o
confortador abrigo do braço de Zedd, pensou que haveria um momento melhor
para falar sobre todos esses outros assuntos.
Richard levantou uma das mãos, fazendo sinal para que Jebra se
aproximasse. Seus olhos azuis da cor do céu cheios de lágrimas. Ela finalmente,
de forma hesitante, desceu os degraus em direção a ele. Ele não conhecia os
detalhes das coisas assustadoras pelas quais ela havia passado, mas o efeito
delas estava gravado claramente no rosto dela. Os traços ali eram uma
testemunha silenciosa dos momentos difíceis que ela suportara.
Quando ela segurou sua mão ele cobriu -a gentilmente com a outra em
um pequeno gesto de conforto. — Você viajou uma grande distância e
valorizamos a sua ajuda em nossos esforços. Por favor, diga pa ra nós o que
sabe.
O cabelo curto cor de areia dela balançou para frente ao redor do rosto
manchado por lágrimas quando ela assentiu. — Farei o melhor que puder, Lorde
Rahl.
Sob os olhos atentos de Shota, Richard conduziu Jebra em direção à
fonte. Ele a fez sentar no baixo muro de mármore que continha as águas paradas.
— Você foi com a Rainha C yrilla de volta até o lar dela. — ele falou.
— Estava tomando conta dela porque ela estava doente... ficou louca por causa
do tempo no buraco junto com todos aquel es homens terríveis. Você deveria
ajudá-la a recuperar-se se ela pudesse e aconselhá -la se ela conseguisse.
Jebra assentiu.
— Então… quando ela voltou ao lar dela ela começou a melhorar? —
Richard perguntou, embora ele soubesse a respeito disso através d e Kahlan.
— Sim. Ela esteve em um estupor durante tanto tempo que pensamos
que jamais ficaria melhor, mas depois que esteve em casa durante um tempo ela
finalmente começou a retornar. No início ela só estava consciente daqueles que
estavam ao seu redor du rante breves períodos. Porém, quanto mais ela

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reconhecia os ambientes familiares, mais tempo esses períodos de clareza
duravam. Lentamente, para a alegria de todos, ela pareceu voltar à vida.
Eventualmente ela emergia de sua longa letargia... como um anima l que
retornava da hibernação. Ela parecia recuperar -se do seu longo sono e retornar
ao normal. Estava cheia de energia, cheia de animação por estar em casa
novamente.
— Rainha C yrilla era a Rainha de Galea. — Shota falou para Richard.
— Ela herdou a Coro a, ao invés do...
— Príncipe Harold. — Richard completou quando olhou para a Bruxa.
— O irmão de C yrilla era Harold. Harold recusou a Coroa, preferindo liderar o
exército Galeano.
Shota arqueou uma sobrancelha. — Parece que você conhece bastante a
respeito da monarquia de Galea.
— O pai deles era o Rei W yborn. — disse Richard. — O Rei W yborn
também era o pai de Kahlan. Kahlan é meia -irmã de C yrilla. Essa é a razão pela
qual eu conheço tanto sobre a monarquia de Galea.
Se Shota estava surpresa em ouvir i sso, ou se não acreditava nele
porque Kahlan estava envolvida, ela não demonstrou. Finalmente ela rompeu o
contato visual com ele e voltou a caminhar de um lado para outro, deixando
Jebra continuar sua história.
— C yrilla retornou ao seu lugar como se nun ca tivesse partido. A
cidade pareceu feliz em ter ela de volta. Galea estivera lutando em sua
recuperação da época apavorante em que o avanço do exército da Ordem
Imperial havia lançado a cidade coroa. Aquele ataque foi uma tragédia massiva
com tremendas p erdas de vidas.
— Mas depois que aqueles invasores haviam partido os reparos da
destruição levaram um bom tempo. Até mesmo as construções incendiadas
estavam sendo reconstruídas. Os negócios recomeçaram. O comércio tinha
retornado. Mais uma vez pessoas de toda Galea vinham até a cidade para
construírem uma vida melhor. Famílias começaram a crescer e a reunirem -se
novamente. Com trabalho duro, a prosperidade começara a retornar. Com a
Rainha de volta, isso pareceu revigorar o espírito da cidade mais ainda, e fazer
o mundo parecer correto outra vez.
— Pessoas diziam que lições foram aprendidas e que uma tragédia
como essa jamais aconteceria de novo. Para esse fim, novas defesas foram
construídas, junto com um exército muito maior. C yrilla, como muitas das
pessoas em Galea, colocou aquele período terrível para trás estava ansiosa para
cuidar dos assuntos de sua terra. Ela aceitou audiências e manteve a sua mão em
muitos dos assuntos de estado. Ela manteve -se imersa em todo tipo de atividade,
desde a mediação de disputas em negócios até participar de bailes formais onde
dançou com dignitários.
— Príncipe Harold, sendo a cabeça do exército Galeano, a manteve
informada sobre as últimas notícias a respeito da invasão do Mundo Novo, de
modo que ela estava plenament e ciente de que a horda estava espalhando -se
dentro dos recantos ao sul de Midlands. Eu sempre sabia quando ela recebia os
últimos relatórios; encontrava ela torcendo seu lenço, resmungando para si
mesma, enquanto andava de um lado para outro em uma sala e scura sem janelas.
Para mim quase parecia como se ela estivesse procurando o esconderijo escuro
em sua mente... o estupor no qual ela estivera... mas não conseguia encontrar,
não conseguia retornar a ele.
Jebra apontou subindo os degraus para o velho obse rvando ela falar. —

85
Zedd falou para tomar conta dela, para dar a ela qualquer conselho que eu
pudesse. Ainda que ela pudesse externamente parecer como era antigamente, e
não mergulhasse de volta no nevoeiro, eu podia afirmar que ela permanecia no
limiar da insanidade. Minhas visões não estavam claras, provavelmente por
causa disso, porque embora ela pudesse parecer normal outra vez, internamente
ainda continuava sendo assombrada por temores horríveis. Era uma coisa muito
parecida com a terra de Galea; as co isas pareciam normais mas, com a Ordem
Imperial no Mundo Novo, dificilmente as coisas estavam normais. Sempre havia
uma sombria tensão.
— Quando ouvimos de batedores que a Ordem estava subindo o Vale
Callisidrin, subindo pelo centro de Midlands com intenç ão de dividir o Mundo
Novo, aconselhei a Rainha de que ela devia apoiar o exército D’Haraniano, que
ela devia enviar o exército Galeano para lutar com o resto das forças de todas as
terras que haviam reunindo -se ao Império D’Haraniano. Tentei dizer a ela, assim
como fez o Príncipe Harold, que nossa única chance para uma defesa real estava
na unidade com as forças que resistiam contra a Ordem.
— Ela não escutaria. Disse que era dever dela como Rainha de Galea
proteger apenas Galea, não outros povos ou outra s terras. Tentei fazer ela
enxergar que se Galea ficasse sozinha então ela não teria chance. C yrilla,
porém, ouvira histórias de outros lugares que foram invadidos, histórias da
brutalidade impiedosa da Ordem. Agora ela estava apavorada com os homens da
Ordem. Falei que ela só estaria segura se ajudasse a deter os invasores antes que
chegassem a Galea.
— Nós recebemos pedidos desesperados por mais tropas. Ignorando
aqueles pedidos, ao invés disso C yrilla ordenou ao Príncipe Harold que reunisse
todos os hom ens que pudesse e que usasse o exército para proteger Galea. Ela
disse que o dever dele, que o dever do exército Galeano, era apenas com Galea.
Ela ordenou que os invasores fossem impedidos de cruzarem as fronteiras,
impedidos de colocarem os pés em solo G aleano.
— O Príncipe Harold, que inicialmente havia tentado aconselhá -la no
curso de ação mais sábio, abandonou seu próprio conselho e em um ato de
lealdade inútil atendeu aos desejos dela. Ela ordenou que as defesas fossem
erguidas para proteger Galea a todo custo. O Príncipe Harold foi executar as
instruções dela. Ela não se importava se o resto de Midlands, ou para dizer a
verdade, todo o Mundo Novo caísse perante a Ordem, contanto que o exército
Galeano...
— Sim, sim. — Shota girou uma das mãos com im paciência enquanto
caminhava de um lado para outro na frente da mulher. — Todos nós sabemos
que a Rainha C yrilla estava perturbada. Não trouxe você até aqui para descrever
como é a vida sob o comando de uma Rainha maluca.
— Sinto muito. — acalmando-se, Jebra limpou a garganta e prosseguiu.
— Bem, C yrilla ficou impaciente comigo, com meu conselho insistente. Ela
disse que sua decisão era definitiva.
— Com o determinado comprometimento dela a um curso de ação, isso
finalmente definiu os eventos, definiu nos so futuro e nosso destino. Acredito
que por essa razão eu finalmente tive uma poderosa visão. Iniciou não com a
visão em si, mas com um som de gelar o sangue que preencheu minha mente.
Aquele som terrível me deixou tremendo. Com o som assustador as visões
vieram em uma torrente, visões dos defensores sendo esmagados e derrotados,
visões da cidade caindo, visões da Rainha C yrilla sendo entregue para os grupos
de homens que urravam para ser… para ser usada como uma prostituta e um

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objeto de diversão.
Com uma das mãos sobre o abdômen, os cotovelos apertados contra o
corpo, Jebra enxugou lágrimas de uma bochecha. Ela sorriu brevemente para
Richard, um sorriso que não conseguia esconder o horror que ele conseguia
enxergar tão claramente nos olhos dela. — É claro, — disse ela. — não estou
falando a você todas as coisas terríveis que vi naquela visão. Mas falei para ela.
— Não imagino que isso tenha adiantado. — falou Richard.
— Não, não adiantou. — Jebra remexeu em um tufo do cabelo dela. —
Cyrilla ficou furiosa. Ela chamou a guarda real. Quando todos entraram
correndo através daquelas portas duplas altas douradas e azuis ela apontou um
dedo para mim e proclamou que eu era uma traidora. Ordenou que eu fosse
jogada em uma masmorra. A Rainha gritou ordens para os g uardas enquanto eles
estavam me segurando de que se eu falasse ao menos uma palavra sobre minhas
visões... minha blasfêmia, como ela chamou... então eles deveriam cortar minha
língua.
Uma pequena risada ecoou, uma risada incongruente com o queixo
trêmulo e a testa franzida dela. As palavras dela saíram em um fraco gemido de
desculpas. — Eu não queria que minha língua fosse cortada.
Zedd, após ter descido os degraus, colocou a mão confortadora atrás do
ombro dela. — Claro que não, minha querida, claro que não. Naquele ponto de
nada teria servido insistir no assunto. Ninguém esperaria que você fosse além
daquilo que fez; isso não teria servido a qualquer propósito. Você fez o melhor
que podia; mostrou a ela a verdade. Ela fez a escolha consciente de não enxe rgar
isso.
Entrelaçando os dedos, Jebra assentiu. — Acho que a insanidade dela
jamais abandonou -a de verdade.
— Aqueles que estão longe da insanidade frequentemente agem de
forma irracional. Não crie desculpas para tais ações conscientes e deliberadas
com uma explicação tão conveniente como a insanidade. — quando ela
direcionou a ele um olhar confuso, Zedd abriu as mãos em um gesto de dolorosa
frustração com um antigo dilema que ele tinha visto com frequência demais. —
Todos os tipos de pessoas que deseja m ardentemente acreditar em algo
frequentemente não estão dispostas a enxergar a verdade não importa o quão
óbvia ela seja. Elas fazem essa escolha.
— Acho que sim. — disse Jebra.
— Parece que, ao invés de aceitar a verdade, ela acreditou em uma
mentira na qual queria acreditar. — falou Richard, relembrando parte da
Primeira Regra do Mago, a regra que aprendeu com seu avô.
— Isso mesmo. — Zedd moveu um braço fazendo uma soturna paródia
de um mago que concedia um desejo. — Ela decidiu o que desejava que
acontecesse e então assumiu que a realidade se curvaria aos seus desejos. — o
braço dele abaixou. — A realidade não atende desejos.
— Então a Rainha Cyrilla ficou furiosa com Jebra porque ela falou a
verdade em voz alta, por levá -la ao lugar onde não poder ia ser ignorada tão
facilmente, — disse Cara. — e então puniu-a por fazer isso.
Zedd assentiu enquanto as pontas dos seus dedos esfregavam
gentilmente o ombro de Jebra. Os olhos cansados dela estavam fechados com o
toque dele. — Pessoas que por quaisquer razões não querem enxergar a verdade
podem ser bastante hostis e duras ao denunciar isso. Frequentemente elas
direcionam seu antagonismo venenoso para qualquer um que ouse apontar essa
verdade.

87
— Isso dificilmente faz a verdade desaparecer. — Richard disse.
Zedd balançou os ombros com a direta simplicidade que viu nisso. —
Para aqueles que procuram a verdade, é uma questão de simples interesse
racional em sempre manter a realidade em vista. Afinal de contas, a verdade está
enraizada na realidade, não na i maginação.
Richard descansou a mão sobre o cabo de nogueira da faca no cinto
dele. Sentia falta da espada ao seu alcance, mas havia trocado ela por
informação que eventualmente o levara até o livro Cadeia de Fogo e até a
verdade daquilo que acontecera a K ahlan, então tinha valido à pena. Ainda
assim, ele sentia bastante falta da espada e preocupava -se com o uso que Samuel
devia estar fazendo dela.
Pensando na Espada da Verdade, imaginando onde ela estaria, Richard
olhava fixamente para nada em particular. — Parece difícil compreender como
as pessoas podem evitar enxergar aquilo que é para o seu próprio bem.
— Assim é, porém. — a voz de Zedd havia mudado de um tom de
conversa casual para aquele tom que disse a Richard que havia algo mais em sua
mente. — Nisso jaz o coração disso.
Quando Richard olhou em direção a ele, o olhar de Zedd concentrou -se
intensamente nele. — Colocar a verdade de lado deliberadamente é trair a si
mesmo.
Shota, com os braços cruzados, fez uma pausa em sua caminhada para
inclinar-se em direção a Zedd. — Uma Regra do Mago, mago?
Zedd arqueou uma sobrancelha. — A décima, na verdade.
Shota voltou um olhar sério para Richard. — Sábio conselho. — após
manter ele nas garras daquele olhar de ferro durante um desconfortável longo
tempo, ela voltou a andar de um lado para outro.
Richard imaginou que ela pensava que ele estava ignorando a
verdade... a verdade do exército invasor da Ordem Imperial. Ele não estava
ignorando a verdade de forma alguma, apenas não sabia o que mais ela esperava
que ele pudesse fazer para detê -los. Se desejos funcionassem ele já os teria
banido de volta ao Mundo Antigo há muito tempo. Se ao menos ele soubesse o
que fazer para detê -los, ele o faria, mas não sabia. Já era ruim o bastante
conhecer o horror que aproxim ava-se e sentir-se impotente para impedir, mas o
fato de que Shota parecia pensar que ele estava simplesmente sendo obstinado
em não fazer algo a respeito o deixava furioso... como se a solução estivesse ao
alcance dele.
Ele olhou subindo os degraus para a mulher estatuesca observava.
Mesmo em uma camisola rosa ela parecia nobre e sábia. Enquanto Richard tinha
sido criado por pessoas que o encorajaram a lidar com as coisas do jeito que
elas realmente eram, ela havia sido doutrinada por pessoas que eram
direcionadas pelas crenças ensinadas pela Ordem. Era necessário ser uma pessoa
extraordinária, após um longo tempo de ensinamentos autoritários, para estar
disposta a enxergar a verdade.
Ele olhou dentro dos olhos azuis dela durante um longo momento,
imaginando se ele teria tido a coragem dela… a coragem para captar a natureza
e magnitude dos erros terríveis que ela cometera, a coragem para então abraçar a
verdade e mudar. Poucas pessoa tinham esse tipo de coragem.
Richard imaginou se ela também achava que e le estava negligenciando
a invasão da Ordem Imperial por razões irracionais e egoístas. Imaginou se ela
também achava que ele não estava fazendo algo vital que salvaria pessoas
inocentes de um sofrimento terrível. Ele esperava que não fosse assim. Houve

88
momentos em que o apoio de Nicci pareceu a única coisa que fornecia a ele a
força para seguir em frente.
Imaginou se ela esperava que ele desistisse de tentar encontrar Kahlan
para voltar sua total atenção para a tentativa de salvar muito mais vidas do que
apenas aquela, não importava o quanto ela fosse preciosa. Richard engoliu em
seco a angústia; ele sabia que a própria Kahlan teria feito essa exigência.
Independente do quanto ela o amara... quando lembrava quem era... Kahlan não
teria desejado que ele fos se atrás dela se isso significasse que ele teria que fazê -
lo deixando de tentar salvar tantas outras pessoas que estavam em perigo mortal.
De repente, o pensamento que ele teve acabara de ganhar vida: quando
ela sabia quem era… quem ela era. Kahlan não po deria mais amá -lo se não
soubesse quem ela era, se não soubesse quem ele era. Os joelhos dele ficaram
fracos.
— É desse jeito que eu vejo a coisa. — disse Jebra, abrindo os olhos e
parecendo despertar quando Zedd afastou seu toque confortador. — Que fiz o
melhor que pude para mostrar a ela a verdade. Mas não gostei de ficar naquela
masmorra. Não gostei mesmo.
— Então o que aconteceu depois? — Zedd coçou a bochecha. —
Quanto tempo você ficou naquela masmorra?
— Perdi a noção dos dias. Não havia janelas, e ntão após algum tempo
eu nem sabia se era dia ou noite. Não sabia quando as estações mudaram, mas
sabia que estivera ali tempo suficiente para que elas viessem e fossem. Comecei
a perder as esperanças.
— Eles me alimentaram... nunca o bastante para ficar satisfeita, mas o
bastante para manter-me viva. De vez em quando depois de muito tempo eles
deixavam uma vela acesa na sombria sala central além da porta de ferro. Os
guardas não eram deliberadamente cruéis comigo, mas era apavorante ficar
trancada na escu ridão daquela pequena sala de pedra. Eu sabia muito bem que
era melhor não reclamar. Quando os outros prisioneiros amaldiçoavam,
reclamavam ou causavam uma agitação eram avisados para ficarem em silêncio
e, algumas vezes, quando um prisioneiro não seguia e ssas ordens, eu podia ouvir
os guardas cumprindo suas ameaças. Às vezes os prisioneiros ficavam lá pouco
tempo antes de serem levados para execução. De tempos em tempos eram
trazidos novos homens. Pelo que podia ver quando espiava pela pequena janela,
os homens que eles prendiam eram violentos e perigosos. Os juramentos
terríveis deles nas trevas às vezes me acordavam e causavam pesadelos quando
eu voltava a dormir.
— O tempo todo eu aguardava com medo de ter uma visão que
revelaria o meu destino final, ma s essa visão jamais veio. Porém, eu não
precisava de uma visão, para saber o que o futuro guardava. Eu sabia que
quando os invasores aproximarem -se, Cyrilla pensaria que a culpa era minha.
Tive visões durante toda minha vida. As pessoas que não gostavam da s coisas
que aconteciam com elas geralmente me culpavam por ter falado a elas o que eu
via. Ao invés de usarem essa informação para fazerem alguma coisa a respeito,
era mais fácil para elas descarregarem seu desgosto em mim. Geralmente elas
acreditavam que eu havia causado os problemas delas ao contar a elas o que
tinha visto, como se aquilo que eu vi fosse por minha escolha e acontecesse
através de malícia de minha parte.
— Ficar trancada naquela cela escura foi quase além do suportável,
mas eu não podia fazer outra coisa a não ser suportar. Enquanto eu ficava
sentada ali eternamente, eu pude compreender como ser lançada no buraco havia

89
enlouquecido C yrilla. Pelo menos eu não tinha que lutar com os brutos... esse
tipo de homens estavam trancados em outras celas. Do jeito que a coisa estava,
pensei que certamente morreria ali, abandonada e esquecida. Perdi a noção de
quanto tempo estive isolada do mundo, da luz, da vida.
— Nesse tempo todo não tive mais visões. Na época eu não sabia que
jamais teria outra v isão.
— Uma vez, a Rainha enviou um emissário para perguntar se eu
negaria minha visão. Eu disse ao homem que foi falar comigo que diria
alegremente para a Rainha qualquer mentira que ela desejasse ouvir se ela me
deixasse sair. Não deve ter sido o que a Rainha queria ouvir porque nunca mais
vi o emissário e ninguém foi me soltar.
Richard olhou para ver Shota observando ele. Podia ler nos olhos dela
a acusação silenciosa de que ele estava fazendo justamente aquilo... querer que
ela falasse outra coisa ao invés daquilo que viu que estava reservado para o
mundo. Ele sentiu uma pontada de culpa.
Jebra olhou para as claraboias lá no alto, como se aproveitasse a
simples maravilha da luz. — Uma noite... apenas mais tarde descobri que lá em
cima no mundo também era noite... um guarda veio até a pequenina janela da
minha cela apertada. Ele sussurrou que as tropas da Ordem Imperial
aproximavam-se da cidade. Ele disse que finalmente a batalha estava prestes a
começar.
— Ele pareceu quase feliz que a agonia da esper a finalmente tivesse
acabado, que a realidade daquilo livrasse todos eles de fingirem o contrário para
a Rainha. Era como se conhecer a verdade daquilo que estava chegando os
tornasse traidores, mas essa traição contra os desejos da Rainha agora fossem
transferidos para a realidade. Ainda assim, isso era apenas parte das ilusões da
Rainha, a parte que era óbvia demais para evitar.
— Sussurrei que temia pelos habitantes da cidade. Ele debochou, disse
que eu era tola, que eu não tinha visto os soldados Galea nos lutarem. Ele
declarou confiança de que o exército Galeano, uma força com mais de cem mil
bons homens, daria uma surra nos invasores e os mandaria embora correndo,
exatamente como a Rainha dissera.
— Fiquei em silêncio. Não ousei contradizer as ilusões da Rainha
sobre a invencibilidade deles, não ousei dizer que eu sabia que os números
massivos das tropas da Ordem Imperial que tinha visto em minha visão
facilmente esmagaria o exército defensor e que a cidade cairia. Trancada em
minha cela como estava, e u não poderia ao menos fugir.
— E então eu ouvi aquele som estranho, sinistro, da minha visão. El e
causou calafrios em minha coluna. Minha pele ficou fria com arrepios.
Finalmente eu soube o que era: o som de milhares de chifres de batalha
inimigos. Soava como o uivo de demônios vindo do Submundo para devorar os
vivos. Nem mesmo as grossas paredes de pedra conseguiam bloquear aquele som
terrível. Era um som anunciando a aproximação da morte, um som que teria feito
o próprio Guardião sorrir.

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C A P Í T U L O 1 3

Jebra esfregou os ombros, como se a simples lembrança do som agudo


dos chifres de batalha tivessem novamente causado calafrios nela. Ela deu um
forte suspiro para recuperar a compostura antes de olhar para Richard e
prosseguir com sua história.
— Todos os guardas correram para as defesas da cidade, deixando a
masmorra desguarnecida. É claro, as portas de ferro que eles trancaram atrás de
si eram mais do que suficientes para impedir que alguém escapasse. Depois que
eles foram embora alguns dos p risioneiros soltaram gritos de alegria com a
aproximação da Ordem Imperial, com a queda iminente de Galea, com aquilo
que eles acreditavam que seria a sua libertação. Mas logo eles também ficaram
em silêncio enquanto choros e gritos espalharam -se acima de nós. O silêncio
imperou dentro das escuras masmorras do Palácio.
— Logo eu comecei a escutar o som de armas, os gritos coletivos de
homens em combate mortal, chegando cada vez mais perto. Junto com os gritos
havia os gemidos horríveis dos feridos. Os grit os dos soldados ficavam mais
altos conforme os defensores eram obrigados a recuar. E então, o inimigo estava
dentro do Palácio. Morei no Palácio durante algum tempo e conheci muitas
daquelas pessoas lá em cima que estavam prestes a encarar…
Jebra fez uma pausa para enxugar lágrimas das bochechas. — Sinto
muito. — ela murmurou quando puxava um lenço da manga e apertava contra o
nariz antes de limpar a garganta e prosseguir.
— Não sei quanto tempo durou a batalha, mas houve um momento em
que ouvi o som de u m aríete chocando -se contra as portas de ferro acima. Cada
golpe ecoava pelas paredes de pedra. Quando uma porta caiu, os sons ficaram
mais próximos quando a porta seguinte sofreu o ataque até que ela também foi
rompida.
— E então as dúzias de soldados, t odos soltando gritos de batalha,
repentinamente desceram os degraus entrando na masmorra. Eles traziam tochas,
preenchendo a sala do lado de fora da minha cela com uma luz bruxuleante.
Provavelmente estavam procurando por uma sala de tesouro, para pilhagem . Ao
invés disso eles encontraram um lugar de reclusão sujo. Todos correram subindo
os degraus de volta e nos deixaram na escuridão com o medo que fazia o coração
pulsar forte.
— Pensei que essa seria a última vez em que os veria, mas não
demorou muito at é que os soldados retornassem. Dessa vez trouxeram com eles
mulheres que gritavam... algumas da equipe do Palácio. Aparentemente os
soldados queriam ficar a sós com seus prêmios frescos, queriam ficar longe de
todos os outros homens que poderiam roubá -las deles ou lutar com eles por
aquela pilhagem viva tão valiosa.
— As coisas que ouvi fizeram com que eu me espremesse no canto
mais afastado da minha cela, mas esse não era um retiro verdadeiro; eu ainda
podia escutar toda aquela coisa terrível. Não consegu ia imaginar o tipo de
homens que soltariam gargalhadas e comemorariam aquelas coisas terríveis que
estavam fazendo. Aquelas pobres mulheres... não tinham alguém para ajudá -las,
e qualquer esperança de resgate.
— Uma das mulheres mais jovens aparentemente desvencilhou -se do

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homem que a segurava e correu até a escada em pânico. Ouvi vozes gritando
para que os outros a segurassem. Ela era veloz e forte mas os homens a
capturaram facilmente e a jogaram ao chão. Quando escutei ela implorando por
sua vida, grita ndo “por favor, não, por favor, não”, reconheci a sua voz.
Enquanto um homem a segurava, outro colocou uma bota sobre o joelho dela e
ergueu o pé dela até que ouvi o joelho dela estalar. Enquanto ela gritava de dor
e terror, ele fez a mesma coisa com a out ra perna. Os homens riram, dizendo que
agora que ela não sairia correndo outra vez poderia concentrar sua mente em
seus novos deveres. E então eles começaram a estuprá -la. Jamais em minha vida
escutei gritos tão apavorantes.
— Não sei quantos homens desce ram até a masmorra, mas chegavam
mais e mais em turnos. Isso continuou hora após hora. Algumas das mulheres
choravam e gemiam o tempo todo enquanto eram atacadas. Aquilo causou
grandes risadas nos homens. Mas aqueles não eram homens, eram monstros sem
consciência ou restrições.
— Um dos soldados encontrou um molho de chaves e começou a
destrancar as portas das celas. Ele ria e urrava enquanto abria as portas,
declarando a libertação dos oprimidos, e convidando os prisioneiros a entrarem
nas filas para obterem sua vingança sobre as pessoas malignas que os
perseguiram e oprimiram. A garota cujos joelhos eles quebraram... Elizabeth era
o nome dela... nunca oprimiu qualquer pessoa em sua jovem vida. Ela sempre
sorria enquanto tratava do seu trabalho porque esta va tão feliz em ter emprego
no Palácio, e porque estava apaixonada por um jovem aprendiz de carpinteiro
que também trabalhava lá. Os prisioneiros saiam das celas, bastante ansiosos
para unirem -se a eles.
— Porque eles não tiraram você? — perguntou Richard.
Jebra fez uma pausa para engolir ar antes de continuar. — Quando a
porta da minha cela foi aberta eu me espremi contra o canto mais escuro nos
fundos. Não havia dúvida quanto ao que aconteceria comigo se eu saísse, ou se
fosse descoberta. Com os gritos das mulheres, os uivos, as risadas dos soldados,
e as brigas a respeito de lugares na fila, de alguma forma os homens não
perceberam que eu estava escondida nas sombras no fundo da minha cela. Não
havia muita luz lá embaixo na masmorra. Devem ter pensado q ue a pequena cela
estava vazia, como estavam algumas das outras, pois ninguém incomodou -se em
usar uma tocha e dar uma olhada... afinal de contas, o resto dos prisioneiros
eram todos homens, todos criminosos, e todos estavam ansiosos para saírem.
Nunca fal ei com eles, então eles não saberiam que havia uma mulher na
masmorra com eles ou obviamente teriam entrado atrás de mim. Além do mais,
todos estavam… bastante ocupados.
O rosto de Jebra, contorcido de angústia, mergulhou em suas mãos. —
Eu não conseguiri a começar a contar que coisas terríveis estavam sendo feitas
com aquelas mulheres bem perto de mim. Terei pesadelos com isso pelo resto da
minha vida. Estupro era apenas uma parte do objetivo daqueles homens. O
verdadeiro prazer deles era a violência, um d esejo selvagem de degradar e
machucar os indefesos, de ter o poder da vida e da morte sobre eles.
— Quando as mulheres paravam de lutar, paravam de gritar, os homens
decidiam procurar alguma comida e bebida para comemorar sua vitória, e então
pegavam mais algumas mulheres. Como melhores amigos em um dia de folga,
todos os homens faziam promessas de que não descansariam até que não restasse
uma mulher no Mundo Novo que não tivessem tomado.
Com as duas mãos Jebra afastou os cabelos do rosto. — Depois que

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todos partiram tudo ficou silencioso na masmorra. Permaneci contra a parede no
fundo da minha cela, a barra do meu vestido enfiada na boca, tentando não
emitir qualquer som que me entregasse enquanto tremia e chorava
incontrolavelmente. Minhas narinas estava m cheias com o terrível odor de
sangue e outras coisas. Engraçado como depois de algum tempo o seu nariz tem
um jeito de ficar entorpecido diante de cheiros que inicialmente o deixavam com
náuseas.
— Ainda assim, eu não conseguia parar de tremer... não de pois de
ouvir todas as coisas horríveis que foram feitas com aquelas mulheres. Eu estava
apavorada que pudesse ser descoberta e recebesse o mesmo tratamento.
Enquanto eu me escondia na cela, com medo de sair, com medo de emitir um
som, eu pude entender com o C yrilla tinha ficado louca sob um tratamento tão
ruim.
— O tempo todo eu podia ouvir os sons lá de cima, os sons da batalha
ainda acontecendo, os sons de dor e horror, os gritos dos moribundos. Podia
sentir o cheiro de fumaça oleosa. Parecia como se a b atalha, a matança, fosse
continuar para sempre. Porém, as mulheres deitadas além da porta aberta da
minha cela, não faziam qualquer som. Eu sabia porque. Sabia que elas estavam
além de quaisquer preocupações desse mundo. Rezei para que agora elas
estivessem nos braços confortadores dos bons espíritos.
— Eu estava exausta por causa do meu constante estado de pavor, mas
eu não consegui dormir... não ousei dormir. A noite prosseguiu e eventualmente
eu vi luz descendo pela escadaria; as portas de ferro da masm orra não estavam
mais ali para isolar o mundo acima. Mesmo assim, eu não ousei sair. Não ousei
fazer um movimento. Fiquei onde estava o dia todo, até que a sala caiu na
completa escuridão novamente com a noite. O alvoroço e pilhagem acima
continuaram sem t régua. O que havia começado como uma batalha tornara -se
uma bêbada celebração de vitória. O amanhecer não trouxe qualquer
tranquilidade lá de cima.
— Eu sabia que não poderia continuar onde estava; o fedor das
mulheres mortas estava tornando -se insuportáv el, assim como o pensamento de
estar ali embaixo no buraco escuro em meio aos cadáveres que apodreciam de
pessoas que eu conhecia. Ainda assim tão grande era o meu medo daquilo que
me aguardava acima que fiquei onde estava naquele dia e então novamente tod a
a noite.
— Eu estava com tanta sede, tão faminta, que comecei a ver cálices
com água no chão ao lado de pães. Podia sentir o cheiro do pão quente apenas a
poucos pés de distância. Mas quando eu esticava o braço eles não estavam ali.
— Não lembro exatam ente quando foi, mas chegou um momento em
que eu desejava tanto um final ao constante medo paralisante que comecei a
aceitar e quase a dar boas vindas ao meu fim. Sabia muito bem o que estava
reservado para mim, mas conclui que a agonia do meu terror final mente
acabaria. Queria tanto que acabasse. Sabia que teria que suportar sofrimento,
humilhação, e dor, mas também sabia que, exatamente como as mulheres que
jaziam mortas não muito longe de mim, isso eventualmente terminaria e eu não
teria mais que sofrer.
— Então, finalmente eu ousei sair da escuridão da minha cela. A
primeira coisa que vi foram os olhos mortos de Elizabeth voltados diretamente
para mim, como se ela estivesse observando, esperando que eu emergisse, para
que pudesse ver o que tinha sido fe ito a ela. Sua expressão parecia um pedido
silencioso para que eu testemunhasse em nome da justiça. Mas não havia para

93
quem testemunhar, qualquer justiça a obter, apenas a minha visão silenciosa do
trágico fim dela.
— Avistá-la, junto com as outras mulher es, fez com que eu retornasse
para dentro.
Vendo a natureza das torturas às quais elas foram submetidas, eu
finalmente fui capaz de conectar aquelas atrocidades com minhas recordações de
seus gritos. Isso fez com que eu chorasse incontrolavelmente. Eu me encolhi de
terror, imaginando a mim mesma sendo submetida a tais coisas.
— E então, sufocada por um ataque de pânico, cobri o meu nariz com a
bainha do meu vestido por causa do fedor terrível e corri através do emaranhado
de membros e corpos nus. Subi cor rendo os degraus, sem saber em direção ao
quê eu estava correndo, apenas do quê eu estava correndo. Durante todo o
caminho enquanto corria eu rezava pela misericórdia de uma morte rápida.
— Foi um choque ver o Palácio outra vez. Ele havia sido um lugar
lindo, as cuidadosas renovações após o ataque anterior fazia alguns anos haviam
sido completadas recentemente. Agora ele estava além de ser considerado uma
ruína. Para mim era impossível entender porque homens fariam esforços para
quebrar coisas do jeito com o eles fizeram, que eles pudessem encontrar alegria
em tais atos tediosos de destruição. Portas grandiosas foram arrancadas de suas
dobradiças e quebradas em pedaços. Pilares de mármore foram derrubados.
Partes despedaçadas de móveis jaziam espalhadas. O c hão estava em grande
parte coberto com pedaços de coisas que um dia foram grandiosas: fragmentos
de linda cerâmica esmaltada; fragmentos de pequenas orelhas, narizes e
pequeninos dedos de figuras de porcelana; estilhaços de madeira que mostravam
um pouco d e superfícies outrora cuidadosamente entalhadas e douradas; mesas
esmagadas; arte que havia sido transformada em pedaços ou os rostos em
pinturas desgastadas sob pesadas botas. As janelas estavam todas quebradas,
cortinas arrancadas e emboladas, estátuas s em rosto ou quebradas, paredes
danificadas em alguns lugares, cobertas com sangue em outros, belas salas
defecadas, a fezes usadas para escrever palavras horríveis nas paredes junto com
promessas de morte aos opressores contra a Ordem do norte.
— Soldados estavam por toda parte, vasculhando os resíduos deixados
para trás por outros soldados, revirando os mortos, pilhando tudo que podiam
carregar, esmagando decorações elegantes por simples desdém, fazendo piadas
enquanto permaneciam em filas do lado de fora de salas esperando sua vez com
as mulheres cativas. Enquanto eu tropeçava entre os destroços do Palácio, fiquei
esperando ser agarrada e arrastada para uma daquelas salas. Sabia que não havia
como evitar meu destino.
— Nunca tinha visto homens como aquele s. Aqueles eram homens que
inspiravam terror. Homens grandes, brutais, sujos usando armaduras de couro
arranhadas e manchadas de sangue. A maioria deles estava coberta por cotas de
malha, cintos e faixas de couro. Muitos tinham as cabeças raspadas, fazendo
parecerem ainda mais fortes e ameaçadores. Outros observavam com olhos
furiosos sob tufos desgrenhados de fios de cabelo oleoso. Todos pareciam
selvagens e malmente humanos. Seus rostos estavam enegrecidos com a fuligem
de fogueiras cheias de traços desen hados pelo suor. O idioma deles era alto,
grosseiro e audaciosamente vil.
— Ver homens como aqueles caminhando através de grandes salas em
tom pastel rosa ou azul pareceu quase cômico, mas não havia graça nos
machados ensanguentados nos cintos deles, em s uas espadas sujas com sangue,
ou nos manguais, facas, e porretes com espinhos de ferro que pendiam em volta

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das cinturas deles.
— Mas eram os olhos deles que faziam você congelar. Todos tinham o
tipo de olhos que não apenas haviam se tornado confortáveis com o ofício
sangrento da carnificina… mas também mostravam um grande prazer naquilo.
Todos olhavam para cada coisa viva que viam com uma simples avaliação: isso é
alguma coisa a ser morta? Mas seus olhos tinham um brilho ainda mais cruel
quando avistavam qualquer uma das mulheres cativas sendo passada de mão em
mão. Aquele olhar era o suficiente para cortar a respiração de uma mulher, se
não o seu coração.
— Esses eram homens que tinham abandonado qualquer pretensão de
um comportamento civilizado. Eles nã o barganhavam do jeito como homens
normais faziam. Pegavam qualquer coisa que desejavam, e até mesmo lutavam
uns contra os outros por causa da pilhagem mais insignificante. Eles
esmagavam, destruíam e matavam por impulso sem consciência ou medir
consequências. Esses homens estavam além do reino da moralidade civilizada.
Esses eram brutos selvagens soltos entre os inocentes.

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C A P Í T U L O 1 4

— Se havia soldados por toda parte, então porque eles não pegaram
você e arrastaram? — Cara perguntou com o tipo de forma casual mas ainda
assim direta que apenas uma Mord -Sith conseguiria aplicar sem esforço, como
se o simples conceito de propriedade estivesse além dela.
O mesmo pensamento ocorreu a Richard, mas naquele momento ele não
tinha sido capaz de falar.
— Eles pensaram que ela fosse designada como uma serva. — Nicci
falou com uma voz suave. — Uma vez que ela estava perambulando sem ser
molestada tanto tempo após o ataque, os homens teriam assumido que havia uma
boa razão, que aqueles no comando tinh am reservado ela para outras tarefas.
Jebra assentiu. — Isso mesmo. Um oficial que me avistou puxou -me
para uma sala com outros homens que estavam reunidos ao redor de mapas
abertos sobre mesas. A sala não tinha sido arruinada como a maioria das outras.
Eles queriam saber onde estava a comida deles, como se eu tivesse obrigação de
saber.
— Eles tinham aparência tão feroz quanto o resto dos homens e eu
inicialmente não saberia que eram oficiais a não ser pela reverência com eles
demonstrada pelos outros so ldados que vinham e partiam com relatórios. Alguns
desses oficiais eram um pouco mais velhos e tinham até um tom mais rude, uma
expressão mais calculada em seus olhos, do que os soldados comuns que sempre
deixavam grande espaço para eles. Quando olharam pa ra mim eu soube que eles
eram homens que esperavam respostas imediatas.
— Eu me agarrei naquele cintilar de esperança... de que eu poderia
viver se assumisse o papel. Fiz uma reverência pedindo desculpas e então disse
a eles que providenciaria a comida im ediatamente. Eles disseram que era
melhor, aparentemente mais interessados em comer do que aplicar punição. Eu
corri até as cozinhas, tentando agir com um senso de objetivo enquanto era
cuidadosa para não sair correndo com medo de que os homens vissem uma
mulher correndo e reagissem como lobos atrás de um cervo que disparava do
esconderijo.
— Havia centenas de outros nas cozinhas, a maior parte homens mais
velhos e mulheres. Muitos deles eu reconheci, pois cozinhavam fazia muito
tempo no Palácio. Também ha via homens mais jovens, mais fortes, que eram
necessários para efetuar uma parte do trabalho que era pesado demais para os
ajudantes de cozinha ou idosos, trabalho como manusear as carcaças para o
preparo ou girar os pesados espetos. Todos estavam trabalha ndo freneticamente
entre as grandes chamas e panelas fervendo como se as suas vidas dependessem
daquilo, o que, é claro, era verdade.
— Quando entrei nas cozinhas as pessoas mal notaram, enquanto
corriam de um lado para outro, preocupados em várias tarefa s. Vendo que todos
já estavam trabalhando de um modo febril, peguei uma grande bandeja com
carnes e me ofereci para levá -la até os homens. As pessoas nas cozinhas estavam
bastante felizes que outra pessoa estivesse disposta a caminhar entre os
soldados.
— Quando retornei com a comida os oficiais que me enviaram
abandonaram o que estavam fazendo. Eles pareciam bastante famintos. Saltaram

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das poltronas e cadeiras e usaram suas mãos sujas para tirar a carne da bandeja.
Quando eu colocava a pesada bandeja sobr e uma das grandes mesas, um dos
homens olhou para mim enquanto mastigava com a boca cheia. Ele perguntou
porque eu não tinha um anel no meu lábio. Eu não sabia do que ele estava
falando.
— Eles colocam anéis nos lábios inferiores de escravos, — falou Nicci.
— isso os marca como propriedade de homens com maior posto e evita que
soldados os tomem como pilhagem. Isso fornece aos que estão no comando
servos para trabalharem ao seu dispor.
Jebra assentiu. — Os oficiais gritaram ordens. Um homem me agarrou
e me segurou enquanto outro aproximou -se. Ele puxou o meu lábio inferior e
enfiou um anel de ferro nele.
Nicci ficou olhando para o vazio. — Eles usam o ferro como referência
a panelas de ferro e coisas assim. Um anel de ferro significa trabalhadores de
cozinha, por exemplo.
Richard viu o brilho de fúria contida nos olhos azuis de Nicci. Ela
também um dia usara um anel no seu lábio inferior, embora o dela fosse dourado
para indicar que era propriedade pessoal do Imperador Jagang. Isso não era uma
honra. Nicci havia sido utilizada para coisas muito piores do que tarefas como
serva.
— Você tem razão quanto a isso. — falou Jebra. — Depois que eles
colocaram o anel no meu lábio fui enviada de volta até as cozinhas para buscar
mais comida e vinho para eles. Então eu percebi que as outras pessoas na
cozinha também usavam anéis de ferro. Eu estava entorpecida quando corri indo
e vindo para buscar aos oficiais aquilo que eles mandavam. Tomava um gole de
água ou comia um pouco sempre que podia. Isso era o suficiente pa ra impedir
que eu desmaiasse.
— Eu me encontrei no meio de outras pessoas assustadas que
trabalhavam no Palácio que agora recebiam ordens dos oficiais. Mal tive tempo
de pensar em como eu consegui escapar de um destino pior. Independente do
quanto latejav a e sangrava, eu estava feliz em ter aquele anel de ferro no lábio
porque quando algum soldado o avistava ele mudava de ideia a respeito de suas
intenções e me deixava em paz.
— Pouco tempo depois fui enviada com pesadas sacolas contendo
comida e bebida p ara oficiais em outras áreas da cidade. No campo ao redor da
cidade eu comecei a descobrir a verdadeira extensão do horror que havia recaído
sobre Ebinissia.
Quando Jebra mergulhou em um distante entorpecimento, Richard
perguntou. — O que você viu?
Ela olhou para ele, como se tivesse quase esquecido que estava
contando sua história, mas então ela engoliu a angústia e continuou. — Do lado
de fora dos muros da cidade havia dezenas de milhares de mortos das batalhas.
O chão por uma distância tão longe quanto os olhos conseguiam enxergar estava
coberto por cadáveres mutilados, muitos amontoados em grupos no lugar onde
morreram efetuando sua última resistência. A visão pareceu irreal, mas já tinha
visto isso… em minha visão.
— Porém, o pior de tudo isso, era q ue havia grande número de
soldados Galeanos ainda vivos, mas gravemente feridos. Eles jaziam aqui e ali
no campo de batalha ao lado de seus irmãos mortos, feridos e incapazes de
moverem-se. Alguns gemiam suavemente enquanto permaneciam próximos da
morte. Outros estavam mais alertas, mas incapacitados de moverem -se por uma

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razão ou por outra. Um homem estava preso, suas pernas esmagadas sob o peso
de uma carroça quebrada. Outro estava preso ao chão por uma lança enfiada
através de seu estômago. Ainda que sen tisse grande dor, ele queria tão
desesperadamente viver que não ousava libertar -se da haste e soltar aquilo que
ela mantinha no lugar. Outros tinham pernas ou braços quebrados tão seriamente
que não conseguiam rastejar sobre o caos de soldados mortos, cava los, e
entulho. Com soldados patrulhando constantemente, eu sabia que se parasse para
oferecer qualquer conforto ou ajuda para aqueles homens feridos eu seri a
avistada e morta.
— Enquanto seguia meu caminho indo e vindo dos postos avançados eu
tinha que atravessar esse horrível campo de batalha. As colinas onde essa
batalha final havia tomado lugar estavam cheios de pessoas caminhando
lentamente entre os mortos, revirando de forma metódica os pertences deles.
Mais tarde aprendi que eles eram um pequeno exé rcito de pessoas que seguiam
atrás das Tropas da Ordem Imperial... seguidores de acampamento... vivendo
dos restos que os soldados da Ordem deixavam em seu rastro. Esses abutres
humanos tateavam nos bolsos dos soldados mortos e coisas assim, ganhando sua
vida a partir da morte e destruição.
— Lembro de uma mulher idosa com um xale branco encardido sobre
um soldado Galeano que ainda estava vivo. Entre outros ferimentos, sua perna
tinha sido aberta até o osso. As mãos dele tremiam com o infinito esforço
solitário para manter grande ferimento fechado. Parecia um milagre que ele ao
menos ainda estivesse vivo.
— Quando a idosa com o xale revirava os bolsos dele, procurando por
qualquer coisa de valor, ele implorava a ele por um gole de água. Ela o ignorou
enquanto abria a camisa dele para ver se ele tinha uma corrente no pescoço com
uma bolsa, como alguns soldados faziam. Com uma fraca voz rouca ele implorou
novamente por um gole de água. Ao invés disso ela tirou uma longa agulha de
tricô do cinto e, enquanto el e jazia indefeso, enterrou -a no ouvido do homem. A
língua dela surgiu no canto da boca com o esforço de girar a longa agulha de
metal dentro do cérebro dele. Os braços dele estremeceram e então ele ficou
imóvel. Ela puxou de volta sua agulha de tricô e esf regou-a na calça dele
enquanto resmungava uma reclamação de que aquilo faria ele ficar quieto. Ela
recolocou a agulha de tricô no cinto e voltou a remexer nas roupas dele. De
repente eu pensei no quanto ela parecia ter prática na tarefa medonha.
— Vi outros seguidores de acampamento usarem uma pedra para
esmagar a cabeça de qualquer homem que encontrassem vivo só para terem
certeza de que ele não os surpreenderiam ao atacar quando eles estavam
ocupados procurando alguma pilhagem. Alguns desses carniceiros não
importavam-se em fazer qualquer coisa aos homens feridos a não ser que el e
ainda conseguisse usar suas mãos e tentasse afastá -los; se ele estivesse vivo,
mas incapaz de resistir, eles simplesmente pegavam tudo que conseguiam
encontrar e então seguiam a diante. Mas havia pessoas que erguiam um punho no
ar e gritavam em triunfo sempre que encontravam um soldado caído ainda vivo,
um que eles pudessem despachar, como se fazer isso os transformasse em heróis.
Ocasionalmente havia aqueles que atacavam os ferid os indefesos e adoravam
torturá-los da maneira mais horrenda, felizes com o fato de que os homens não
podiam correr nem afastá -los. Entretanto, era apenas uma questão de poucos
dias antes que todos os sobreviventes feridos estivessem mortos, sucumbindo
com suas feridas, ou finalmente sendo despachados pelos seguidores de
acampamento.

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— Durante algumas semanas os soldados da Ordem Imperial
comemoraram sua grande vitória com uma orgia de violência, estupros, e
pilhagens. Cada prédio foi invadido e vasculhado . Tudo de valor foi saqueado.
A não ser o pequeno grupo de pessoas como eu que foram designadas como
servas, homem algum escapou da captura e mulher alguma escapou das garras
daqueles homens cruéis.
Jebra chorou entre as suas palavras. — Nenhuma mulher deveria ter
que passar por aquilo que fizeram com aquelas pobres criaturas. Os soldados
Galeanos capturados assim como os homens e rapazes da cidade o que estava
acontecendo com suas mães, esposas, irmãs, e filhas... as tropas da Ordem
garantiram isso. Diver sas vezes, pequenos grupos dos cativos que não
conseguiam mais suportar isso tentavam deter o abuso. Eles eram trucidados.
— Em pouco tempo os cativos eram enviados em grandes grupos para
cavarem buracos aparentemente infinitos para os mortos. Quando term inavam de
cavar os buracos eles eram forçados a buscar todos os corpos podres para um
enterro em massa. Aqueles que resistiam terminavam nos buracos também.
— Assim que todos os mortos tinham sido coletados e atirados nos
buracos, então os homens tinham q ue cavar longas trincheiras. Depois disso,
começavam as execuções. Quase todos os homens acima dos quinze anos de
idade era condenado à morte. Houve dezenas de milhares de pessoas que foram
capturadas na rede da Ordem. Eu sabia que levaria semanas para cha cinar todos
eles.
— As mulheres e as crianças eram forçadas na ponta de espada a
observarem seus colegas homens sendo mortos e atirados nos grandes buracos
abertos. Enquanto elas assistiam, eram informadas que esse era um exemplo do
que acontecia com aque les que resistiam contra a lei justa e moral da Ordem
Imperial. Elas eram ensinadas durante as execuções infinitas, ensinadas como
era blasfêmia contra o Criador viver como estiveram vivendo, apenas para os
seus próprios fins egoístas. Diziam a elas que a humanidade precisava ser
expurgada de tal corrupção e que seria melhor para ela.
— Alguns dos homens eram decapitados. Alguns eram obrigados a
ajoelhar diante dos buracos e então homens fortes com porretes com a ponta
coberta com ferro caminhavam descendo a fileira e com um poderoso golpe
esmagavam as cabeças de cada homem por vez enquanto um par de cativos
acorrentados seguiam logo atrás, atirando cada homem recém morto na
trincheira. Alguns dos prisioneiros eram usados para a prática de tiro ao alvo
com flechas, ou lanças. Colegas soldados riam e zombavam do executor bêbado
se a mira descuidada dele falhasse em conseguir uma morte limpa. Isso era um
jogo para eles.
— Porém, acredito que toda a magnitude do trabalho horrendo causava
uma péssima sensação em alguns dos soldados da Ordem Imperial e eles
passavam a beber como uma forma de mascarar sua repulsa para que
conseguissem participar, como era esperado deles. Afinal de contas, matar
durante o calor do combate é uma coisa, mas matar a sangue frio é bem
diferente. Mas eles matavam a sangue frio. Enquanto as vítimas caíam dentro
das trincheiras elas eram cobertas com terra por aqueles que logo se juntariam a
eles.
— Lembro de um dia chuvoso quando tive que levar comida para
oficiais sob o abrigo daquilo q ue um dia havia sido uma lona que cobria uma
loja, agora erguida com lanças. Eles estavam ali para assistirem uma execução
que estava sendo conduzida como um elaborado espetáculo. As mulheres

99
aterrorizadas que testemunhariam as sentenças de morte sendo rea lizadas foram
trazidas direto dos quartos de estupro por seus captores. Muitas das mulheres
ainda estavam vestidas apenas parcialmente.
— Pelos gritos repentinos de reconhecimento e nomes gritados, logo
tornou-se óbvio para mim que os interrogatórios da O rdem tinham identificado
os maridos das mulheres e selecionado elas. Os casais estavam sendo reunidos
em um encontro macabro, separados mas no campo de visão uns dos outros.
— As mulheres, amontoadas e impotentes, eram forçadas a observar
enquanto os pulsos dos homens eram amarrados bem apertado atrás das costas
com tiras de couro. Os homens foram forçados a ajoelhar perto dos buracos
frescos, encarando as mulheres. Soldados desciam a fileira e levantavam a
cabeça de cada um dos homem puxando pelos cabelos deles, e então cortavam
suas gargantas. Lembro dos músculos poderosos dos executores brilhando na
chuva. Segurando suas vítimas pelos cabelos, depois de cortarem suas gargantas,
eles lançavam cada corpo dentro dos buracos antes de prosseguirem para o
próximo homem na fila.
— Os homens que esperavam para serem mortos choravam e tremiam
enquanto gritavam os nomes de suas amadas, gritando seu amor imortal. As
mulheres faziam o mesmo enquanto observavam os homens assassinados e então
jogados sobre pilhas de o utros homens que ainda debatiam -se e arfavam nos
espasmos de morte. Isso era a coisa mais horrível, mais dolorosamente triste que
eu já tinha visto.
— Enquanto testemunhavam seus amados sendo mortos, muitas das
mulheres desmaiavam, desabando no chão lamac ento coberto por vômito.
Conforme a chuva constante descia, outras, em grande terror, gritavam os nomes
do homem que viam prestes a ser morto. Elas lutavam contra o pulso de ferro de
guardas que riam enquanto arrastavam as mulheres para longe, uma por vez,
bradando os detalhes de suas intenções para o marido dela que estava prestes a
morrer. Era uma espécie de crueldade doentia que causava sofrimento em uma
escala que eu não podia começar a conceber adequadamente.
— Famílias não estavam apenas sendo desfei tas para sempre, mas
sendo varridas. Alguma vez você já ouviu aquela velha pergunta: como você
acha que o mundo acabará? Era assim. Esse era o mundo terminando para
milhares e milhares de pessoas… só que ele estava acabando para uma pessoa de
cada vez. Era um lento apagar de vidas, o final do mundo de cada indivíduo.
Richard apertou as têmporas entre os dedos de uma das mãos com tanta
força que achou que poderia partir o seu próprio crânio. Com grande dificuldade
ele conseguiu controlar sua respiração e a voz. — Ninguém conseguiu escapar?
— ele perguntou em meio ao desconfortável silêncio. — Durante todos esses
vários estupros e execuções, ninguém escapou?
Jebra assentiu. — Sim. Acredito que alguns conseguiram mas, é claro,
não tive como saber com certeza.
— Houve pessoas o bastante que escaparam. — Nicci disse com voz
calma.
— Bastante? — Richard gritou quando voltou sua raiva para ela. Ele
captou o tom de fúria que havia escapado do seu controle e abaixou a voz outra
vez. — Bastante para quê?
— Bastante para os propósitos deles. — falou Nicci, olhando dentro
dos olhos dele, suportando solenemente o que viu ali. — A Ordem sabe que há
pessoas que escapam. Durante o peso da brutalidade, o pior dos horrores, eles
relaxam a segurança deliberadamente para cer tificarem -se de que ao menos

100
alguns escapem.
A mente de Richard parecia como se estivesse à deriva no meio de um
milhão de pensamentos desconexos desanimados. — Porque?
Nicci trocou um longo olhar com ele antes de finalmente responder. —
Para espalhar um medo tamanho que dominará a cidade seguinte. Esse terror
garantirá que as pessoas no caminho do exército que avança rendam -se ao invés
de encararem o mesmo tratamento brutal. Desse jeito a vitória vem sem que a
Ordem tenha que lutar a cada passo do caminh o. O terror que é espalhado pelas
pessoas que escapam e dizem para as outras o que viram é uma arma poderosa
que mina a coragem daqueles que ainda serão atacados.
Do jeito como o seu coração estava batendo forte, Richard podia
entender o terror de aguarda r que a Ordem atacasse. Ele deslizou os dedos pelos
cabelos quando redirecionou sua atenção para Jebra. — Eles assassinaram todos
os cativos?
— Alguns dos homens... aqueles que não eram considerados como
ameaça por um motivo ou outro... eram enviados junt o com outras pessoas da
cidade para o campo em grupos para o trabalho nas fazendas. Nunca fiquei
sabendo o que aconteceu com aquelas pessoas, mas presumo que ainda estejam
lá, trabalhando duro como escravos para fornecer comida para a Ordem.
O olhar de Jebra desviou para o solo quando ela afastou do rosto
alguns fios de cabelo. — A maioria das mulheres que sobreviveram tornaram -se
propriedade das tropas. Algumas das mulheres mais jovens e mais atraentes
receberam um anel de cobre em seus lábios inferiores e eram reservadas aos
homens de alta posição. Frequentemente carroças perambulavam pelo
acampamento, coletando os corpos de mulheres que morreram durante os abusos.
Nenhum oficial alguma vez levantou qualquer objeção ao tratamento brutal que
essas mulheres recebiam nas tendas entre as tropas. As mortas eram levadas até
os buracos e jogadas dentro. Ninguém, nem mesmo soldados da Ordem Imperial
que morreram, jamais foi enterrado com seu nome em uma lápide. Eram todos
lançados dentro de covas coletivas. A Orde m não acredita na importância de
qualquer indivíduo e não registra a passagem deles.
— E quanto as crianças? — Richard perguntou. — Você falou que eles
não matavam os garotos.
Jebra deu um forte suspiro antes de recomeçar. — Bem, desde o início,
os garotos estavam sendo reunidos e organizados por idade em grupos que eu só
consigo descrever como garotos recrutas. Eles eram considerados, não como
Galeanos capturados, não como conquistados, mas como jovens membros da
Ordem Imperial libertados de pessoas que somente os teriam oprimido e
corrompido suas mentes. A culpa pela perversidade que necessitava da invasão
foi colocada sobre as gerações mais antigas, não sobre esses jovens que eram
chamados de inocentes dos pecados de seus parentes mais velhos. Desse mod o
eles foram separados, fisicamente e espiritualmente, dos adultos, e assim estava
iniciado o seu treinamento.
— Os garotos foram adestrados de uma forma que era como participar
de jogos, a despeito de como deve ter sido difícil para muitos. Eles eram
tratados relativamente bem e mantidos ocupados todo momento em competições
de força e habilidade. Eles não tinham permissão para demonstrar saudade de
seus familiares... isso era descrito como mostrar fraqueza. A Ordem tornou -se a
família deles, quer eles gos tassem ou não.
— Durante a noite, enquanto eu podia ouvir os gritos de mulheres,
também conseguia ouvir os garotos enquanto cantavam juntos, sob a liderança

101
de oficiais treinadores especiais. — ela gesticulou. — Tive que levar comida e
coisas assim para esses oficiais, então tive chance de ver o que estava
acontecendo a esses garotos conforme passavam as semanas e então os meses.
— Após treinarem durante um tempo os garotos começaram a ganhar
postos e permanecer dentro do seu grupo para uma variedade de c oisas... quer
fosse em jogos de habilidade e força, ou memorizando suas lições nos honrados
costumes da Ordem. Enquanto eu corria cuidando de meus deveres para com os
oficiais eu via os garotos de prontidão diante de seus grupos, recitando as coisas
sobre as quais foram ensinados, falando da glória de fazerem parte da Ordem, do
seu nobre dever em serem parte de um novo mundo dedicado ao avanço da
humanidade, e de sua disposição em sacrificarem -se pelo bem maior.
— Embora eu jamais realmente tivesse consegu ido a chance de
aprender as especificidades dos ensinamentos que aqueles garotos estavam
recebendo, lembro de uma frase gritada incessantemente enquanto eles
permaneciam de prontidão: “Sozinho eu nada posso ser. Minha vida tem
significado apenas através da dedicação aos outros. Juntos todos nós somos um,
uma mente, para um propósito”.
— Após comícios emocionalmente carregados os garotos eram levados
em seus grupos para testemunharem as execuções de “traidores da humanidade”.
Eram encorajados a comemorar qu ando cada “traidor” morria. Seus líderes da
Ordem ficavam orgulhosos e altivos diante dos garotos, as costas voltadas para
o banho de sangue, dizendo, “Sejam fortes jovens heróis. Isso é o que acontece
aos egoístas traidores da humanidade. Vocês são os sal vadores do futuro da
humanidade. Vocês são os futuros heróis da Ordem, então sejam fortes”.
— Independente de qualquer sobressalto que os garotos pudessem ter
apresentado inicialmente, sob a longa e incessante doutrinação, direcionamento,
e constante enco rajamento dos oficiais, aqueles garotos comemoraram. Mesmo
que inicialmente não fosse sincero, pareceu tornar -se sincero no final. Eu vi
como os garotos começaram a acreditar... com real fervor... nas coisas que
estavam aprendendo com os adultos.
— Os garotos foram encorajados a usarem facas entregues a eles para
esfaquearem os recém mortos “traidores”. Essa foi apenas uma das formas
através das quais eles foram sistematicamente dessensibilizados em relação a
morte. No fim, os garotos estavam ganhando grad uações ao participarem de
execuções. Eles ficavam diante de cativos que tinham olhos vazios e faziam
discurso sobre os costumes egoístas deles, sua traição aos seus colegas homens e
ao Criador. Então o garoto condenava aquele indivíduo cativo a morte e em
algumas ocasiões até realizava o trabalho. Seus colegas aplaudiam o entusiasmo
em ajudar a expurgar a humanidade daqueles que resistiram aos ensinamentos
sagrados da Ordem, aqueles que afastaram -se de seu Criador e do seu dever
divino em prol de seus coleg as homens.
— Antes que tivesse acabado, quase todos daqueles garotos tinham
participado no assassinato dos prisioneiros. Eles eram enaltecidos como
“heróis” da Ordem. À noite, em suas casernas, os poucos garotos que não
concordavam em participar das execu ções tornavam-se párias e eventualmente
eram estigmatizados como covardes ou até mesmo simpatizantes dos antigos
costumes, por serem egoístas e não estarem dispostos a apoiarem seus colegas
homens... ou, nesse caso, garotos. Geralmente eles eram espancados até a morte
por seu grupo.
— Esses poucos garotos, aos meus olhos, foram os heróis. Eles
morreram sozinhos nas mãos de seus colegas, garotos que um dia brincaram e

102
riram com eles mas que agora tornaram -se inimigos. Teria dado quase qualquer
coisa para ter sido capaz de dar ao menos um abraço e um sussurro do meu
agradecimento para essas poucas almas nobres porque eles não haviam aceito,
mas não pude, então eles morreram sozinhos como proscritos entre antigos
amigos.
— Isso foi loucura. Para mim pareceu q ue o mundo todo tinha
enlouquecido, que nada mais fazia sentido, que a vida em si não fazia mais
sentido. Dor e sofrimento tornaram -se a definição de vida; nada mais havia.
Recordações de qualquer tipo de alegria pareceram como sonhos nebulosos e
que não eram mais reais. A vida arrastava -se, dia após dia, estação após estação,
mas era vida que girava em torno da morte de uma maneira ou de outra.
— No final, as únicas pessoas de Galea deixadas vivas eram os garotos
e as mulheres que não morreram durante os estupros brutais e depois como
prostitutas para os soldados. No final, os garotos mais velhos estavam
participando dos estupros como parte de sua iniciação e como recompensa por
seu entusiasmo durante os seus deveres, incluindo as execuções.
— Muitas das mulheres, é claro, conseguiram cometer suicídio. Toda
manhã, sobre as ruas com bloquetes aos pés dos prédios mais altos, eram
encontrados os corpos de mulheres que, não vendo futuro a não ser o abuso
degradante, conseguiram pular de janelas ou telhados. Nã o sei quantas vezes
encontrei uma mulher em algum canto escuro, seus pulsos cortados por sua
própria mão, o sangue tendo sido derramado junto com qualquer esperança. Não
poderia dizer que as culpava por sua escolha.
Richard permanecia em pé com as mãos cr uzadas atrás das costas,
olhando fixamente dentro das águas paradas da fonte, enquanto Jebra prosseguia
em detalhes infinitos dos eventos que seguiram a grande vitória dos bravos
homens da Ordem Imperial. A estupidez disso era quase monumental demais
para compreender, muito menos suportar.
Os feixes de luz que entravam através das claraboias acima deslizavam
lentamente pelo banco de mármore em volta da piscina, pela extensão do chão,
subindo pelos degraus de granito. A rocha vermelho sangue das colunas
cintilava conforme a luz do sol incessantemente, gradativamente, avançava
subindo por sua extensão enquanto Jebra relatava tudo que sabia daquilo que
aconteceu quando estivera prisioneira da Ordem.
Shota ficava imóvel quase o tempo todo, geralmente com seus braços
cruzados, suas belas feições fixas em uma expressão vaga, observando Jebra
contar sua história, ou observando Richard escutá -la, como se procurasse
certificar-se de que a atenção dele não desviasse.
— Galea tinha reservas de comida abundantes para os seus cidadãos,
— disse Jebra. — mas não para algo como os números dos invasores que
ocupavam a cidade, que não tinham fartos suprimentos consigo. As tropas
limparam a comida de cada depósito. Eles esvaziaram cada despensa, cada
armazém. Todo animal por milhas ao redor, incluindo as muitas ovelhas que
eram criadas para o fornecimento de lã e as vacas leiteiras, foi transformado em
comida. Ao invés das galinhas serem mantidas para obterem um constante
suprimento de ovos, elas também foram mortas e devorada s.
— Conforme a comida reduzia os oficiais enviavam mensageiros com
pedidos por novos suprimentos cada vez mais urgentes. Durante meses os
suprimentos não vieram... sem dúvida em boa parte porque o inverno tinha
chegado e causado atraso.
Jebra hesitou, e então engoliu em seco, antes de continuar. — Eu

103
lembro do dia... foi durante uma forte tempestade de neve... quando recebemos
ordem de cozinhar um pouco de carne fresca que os soldados da Ordem Imperial
entregaram nas cozinhas. Eram carcaças humanas morta s recentemente, sem
cabeça, estripadas.
Richard virou abruptamente para olhar Jebra. Ela olhou para ele como
se fizesse isso a partir de um lugar onde imperava a insanidade, como se tivesse
medo de que fosse condenada por aquilo que, ela sabia, estava alé m do limite.
Seus olhos zuis brilhavam com lágrimas que pediam perdão, como se temesse
que ele a matasse por aquilo que estava prestes a confessar.
— Alguma vez você já teve que preparar um corpo humano para
cozinhar? Nós tivemos que fazer isso. Assamos a carne, ou retiramos ela dos
ossos para fazer cozidos. Nós secamos pilhas e pilhas da carne para os soldados
comuns. Se os soldados estivessem famintos e nada houvesse para alimentá -los,
corpos seriam entregues nas cozinhas. Nós fomos a extraordinárias dis tâncias
para ampliar os suprimentos de comida que tínhamos. Fizemos sopas e cozidos
com ervas, se conseguíssemos encontrá -las sob a neve. Mas simplesmente não
havia comida suficiente para alimentar todos os homens.
— Testemunhei muitas coisas que causarão pesadelos pelo resto da
minha vida. Ver aqueles soldados sem remorsos parados diante da porta aberta,
a neve soprando para dentro por trás deles, enquanto eles empilhavam aqueles
corpos no chão da cozinha, será uma das coisas que me assombrarão para
sempre.
Richard assentiu e sussurrou. — Entendo.
— E então, mais cedo no inverno passado, as carroças com suprimentos
finalmente começaram a chegar. Elas traziam grandes quantidades de comida
para os soldados. Eu sabia, a despeito das carroças cheias com supr imentos
aparentemente infinitas, que aquilo não duraria muito tempo.
— Além dos suprimentos, também havia reforços para substituir os
homens que foram mortos na batalha para esmagar Galea. Os números das tropas
da Ordem ocupando Ebinissia já eram impressi onantes; os soldados extra
pareceram aumentar a minha sensação de desesperança.
— Ouvi por acaso oficiais recém chegados reportando que mais
suprimentos viriam, junto com mais homens ainda. Enquanto eles fluíam vindo
do sul, muitos foram enviados em missõ es para protegerem outras áreas de
Midlands. Havia outras cidades a serem tomadas, outros lugares a serem
capturados, outros focos de resistência a serem esmagados, outras pessoas a
serem escravizadas.
— Junto com os suprimentos e as novas tropas vieram c artas das
pessoas que estavam no lar, no Mundo Antigo. Não eram cartas para quaisquer
soldados específicos, é claro, uma vez que a Ordem Imperial não tinha como
saber como encontrar qualquer soldado individual dentro dos vastos exércitos
deles, nem eles se importariam com isso, já que indivíduos não eram
importantes aos olhos deles. Ao invés disso, eram cartas enviadas para entrega
de forma geral aos “bravos homens” que lutavam pelas pessoas em casa, que
lutavam em prol do seu Criador, que lutavam para derr otar os infiéis ao norte,
lutavam para levar às pessoas de pensamento atrasado a salvação dos costumes
da Ordem.
— A noite, toda noite durante semanas, as cartas que tinham vindo com
as carroças de suprimentos eram lidas para grupos de homens reunidos... a
maioria dos quais não conseguiam ler. Eram cartas de todos os tipos, desde
pessoas contando sobre os grandes sacrifício que tinham feito para enviarem

104
comida e mercadorias ao norte para seus homens que lutavam, cartas exaltando
os grandes sacrifícios que os soldados estavam fazendo para avançarem no
divino ensinamento da Ordem, até cartas de jovens mulheres prometendo seus
corpos aos bravos soldados quando eles retornassem depois de subjugar o
inimigo não civilizado e retrógrado ao norte. Como vocês podem imaginar, esse
último tipo de carta era bastante popular e foram lidas diversas vezes sob urros
e gritos de alegria.
— O povo do Mundo Antigo mandou até lembranças: talismãs para
trazer vitória; pinturas para enfeitar as tendas dos seus guerreiros; bisco itos e
bolos que tinham apodrecido fazia muito tempo; meias, luvas, camisas, e gorros;
ervas para tudo desde chá até curativos; lenços perfumados de mulheres
excitadas ansiosas a oferecerem -se como um dever aos soldados; cintos de armas
e coisas assim feit os por grupos de jovens que treinavam com outros grupos de
sua própria idade até o dia em que também pudessem ir ao norte para
combaterem as pessoas que resistiam contra a sabedoria do Criador e contra a
justiça da Ordem Im perial.
— As longas filas de car roças com suprimentos, antes de retornarem ao
Mundo Antigo para buscarem mais dos suprimentos necessários para abastecer o
enorme exército no Mundo Novo, eram carregadas com pilhagens a serem
levadas para as cidades do Mundo Antigo que estavam fornecendo a comida e
mercadorias que o exército precisava. Era como um tipo de cadeia de troca...
pilhagens por suprimentos, suprimentos por pilhagens. Suponho que aquelas
cargas aparentemente infinitas de riquezas pilhadas seguindo ao sul também
deviam ser um grande incentivo para que as pessoas na terra natal continuassem
a cobrir o que devia ser o custo enorme do esforço de guerra.
— O exército que invadira era grande demais para caber na cidade, é
claro, e com os reforços chegando junto com cada comboio de carroç as com
suprimentos o mar infinito de tendas espalhou -se ainda mais longe dentro do
campo, cobrindo as colinas e vales por toda parte ao redor. As árvores por uma
boa distância haviam sido todas derrubadas e usadas como lenha para fogueiras
durante o invern o prévio, deixando a paisagem em volta da cidade coroa
parecendo sem vida e estéril. As novas vegetações jamais cresciam sob as
massas abundantes de homens, os incontáveis cavalos, e a variedade de carroças,
de modo que parecia que Galea tinha sido transfo rmada em um mar de lama.
— De novas unidades recém chegadas, homens vindo do Mundo Antigo
eram reunidos em forças de ataque que eram enviadas para atacar outros lugares,
para espalhar o governo da Ordem Imperial, para estabelecer domínio. Parecia
que havia um suprimento infinito de homens para escravizar o Mundo Novo.
— Estava trabalhando até a exaustão alimentando os oficiais, então
frequentemente eu estava perto de pessoas do comando e muitas vezes ouvi
sobre planos de invasão e relatórios a respeito de cidades que caíram, listas de
prisioneiros, contagens dos números de escravos enviados para o Mundo Antigo.
De vez em quando algumas das mulheres mais atraentes eram levadas para o uso
dos homens de altos postos. Os olhos dessas mulheres estavam cheios de medo
em relação ao que aconteceria com elas. Eu sabia que logo seus olhos ficariam
vazios com o desejo pela libertação da morte. Para mim tudo isso parecia um
ataque infinito, uma longa selvageria sem fim que não mostrava quaisquer sinais
de que algum dia terminaria.
— A cidade nesse momento, é claro, havia sido esvaziada das pessoas
que uma vez a chamaram de lar. Quase todos os homens acima de quinze anos
tinha sido morto fazia muito tempo e os poucos restantes foram enviados para

105
longe no trabalho escra vo. Muitas das mulheres... aquelas velhas demais ou
jovens demais para terem serventia para a Ordem... tinham sido mortas se
ficavam no caminho, mas muitas simplesmente foram deixadas para morrerem de
fome. Elas viviam como ratos nas valas escuras da cidad e. No último inverno eu
vi grupos de mulheres idosas e garotinhas que pareciam esqueletos cobertos por
uma pálida capa de carne implorando por restos de comida. Isso partiu meu
coração, mas alimentá-las apenas resultaria em execução para elas e para mim.
Mesmo assim, se eu conseguisse, às vezes entregava um pouco de comida para
elas... se houvesse alguma para dar.
— No final foi como se a população da cidade coroa de Galea,
centenas de milhares de pessoas, tivesse em sua maior parte sido varrida da
existência. O que um dia foi o coração de Galea não mais existia. Agora estava
ocupada por centenas de milhares de soldados. Os seguidores de acampamento
começaram a estabelecer lares nos lugares ha muito pilhados, simplesmente
tomando o que era de outras pessoas . Mais pessoas do Mundo Antigo começaram
a chegar para tomar lugares e viverem neles como se fossem deles.
— As únicas mulheres Galeanas que sobraram vivas eram em maior
parte escravas usadas pelos soldados como prostitutas. Após algum tempo
muitas ficaram grávidas e deram à luz a crianças dos soldados da Ordem
Imperial. Esses descendentes estão sendo criados para tornarem -se futuros
fanáticos da Ordem. Virtualmente as únicas crianças Galeanas vivas depois do
primeiro ano de ocupação eram os garotos.
— Adestrados incessantemente nos costumes da Ordem, aqueles
garotos tornam-se a Ordem. Eles esqueceram faz muito tempo os costumes dos
seus parentes ou de sua terra natal, ou até mesmo da decência comum. Agora
eles eram recrutas da Ordem Imperial... monstros r ecém moldados.
— Após meses e meses de treinamento, grupos dos garotos mais velhos
da ordem foram enviados para serem a primeira onda de atacantes contra outras
cidades. Eles seriam a carne que estragava o fio das espadas dos pagãos. Eles
partiram ansiosamente.
— Um dia eu pensei que os brutos que são a Ordem Imperial fossem
distintamente diferentes, uma raça selvagem, diferentes das pessoas civilizadas
do Novo Mundo. Depois de ver como esses garotos mudaram e no que eles
transformaram -se, percebi que as pessoas que são a Ordem realmente não são
diferentes do resto de nós, exceto em suas crenças e nas ideias que as motivam.
Um pensamento louco, talvez, mas parece que através de algum mecanismo
misterioso qualquer um está sujeito a ficar fascinado pelos cos tumes da Ordem.
Jebra balançou a cabeça desanimada. — Eu realmente jamais entendi
como uma coisa assim podia acontecer, como os oficiais podiam ensinar a
garotos lições tão duras, como conseguiam ensinar a eles que deviam ser
altruístas, que deviam viver uma vida de sacrifício para o bem de outros, e
então, como que por magia, esses garotos marchariam cantando músicas,
esperando morrerem em batalha.
— Na verdade, a premissa é bastante simples. — falou Nicci, de forma
tranquila.
— Simples? — as sobrancelh as de Jebra levantaram com incredulidade.
— Você não pode estar falando sério.

106
C A P Í T U L O 1 5

— Oh, sim, é simples. — Nicci desceu os degraus um de cada vez de


uma forma lenta, controlada, enquanto falava. — Tanto os garotos quanto as
garotas no Mundo Antigo recebem os mesmos ensinamentos da Sociedade da
Ordem, e da mesma maneira básica.
Ela parou não muito longe de Richard e cruzou os braços quando
suspirou... não por cansaço, mas ao invés disso com impaciente cinismo. —
Exceto que no caso d eles isso inicia não muito tempo após terem nascido.
Começa com lições simples, é claro, mas essas lições são expandidas e
reforçadas durante toda a vida deles. Não é incomum ver pessoas idosas devotas
acompanhando as palestras realizadas por irmãos da Soc iedade da Ordem.
— A maioria das pessoas são atraídas em direção a estruturas sociais
ordenadas e anseiam por saber como encaixam -se no esquema mais amplo do
universo. A Sociedade da Ordem fornece a elas uma sensação de estrutura
abrangente e autoritária. .. em outras palavras, diz a elas a forma certa de pensar
assim como uma forma adequada para viverem suas vidas. Mas isso é mais
eficiente quando começa com os jovens. Se uma mente jovem é moldada no
dogma da Ordem então ela geralmente torna -se inflexível. Como um resultado,
qualquer outra forma de pensar... a própria habilidade de raciocinar...
geralmente reduz e morre em uma idade jovem e fica perdida pelo resto da vida.
Quando uma pessoa assim envelhece, ela ainda seguirá as mesmas lições
básicas, ainda vai agarrar-se a cada palavra.
— Simples? — perguntou Jebra. — Você falou que a premissa é
bastante simples?
Nicci assentiu. — A Ordem ensina que esse mundo, o mundo dos
vivos, é finito. A vida é fugaz. Nós nascemos, vivemos durante algum tempo, e
morremos. A vida após a morte, em contraste, é eterna. Afinal de contas, todos
nós sabemos que as pessoas morrerem mas ninguém volta dos mortos; a morte é
para sempre. Desse modo, a vida após a morte é o que importa.
— Ao redor desse princípio central, a Socied ade da Ordem estimula
incessantemente as pessoas na crença de que a pessoa deve conquistar sua
eternidade na glória da luz do Criador. Essa vida é o meio para conquistar essa
eternidade... um teste, de certo modo.
Jebra piscou sem acreditar. — Mas ainda assim, a vida é… não sei, é
vida. Como alguma coisa pode ser mais importante do que a sua própria vida? —
ela suavizou o ceticismo dela com um sorriso. — Certamente isso não vai
convencer as pessoas a abraçarem os costumes brutais da Ordem, convencê -las a
afastarem-se da vida.
— Vida? — com súbita ameaça em seu olhar, Nicci inclinou um pouco
em direção a Jebra. — Você não preocupa -se com a sua alma? Não acha que
aquilo que acontece com a sua própria alma por toda a eternidade pode ser de
grande seriedade e uma grande preocupação?
— Bem, é claro que eu, eu… — Jebra ficou muda.
Quando endireitou o corpo, Nicci sacudiu os ombros com um gesto
zombeteiro. — Essa vida é finita, transitória, então, no esquema das coisas, em
contraste com uma vida seguinte eterna, o quanto poderia ser importante uma
vida passageira nesse mundo miserável? Que verdadeiro propósito essa breve

107
existência poderia ter, além de servir como um teste para a alma?
Jebra pareceu estar com uma desconfortável dúvida ainda que não
estivesse disposta a desafiar Nicci quando esta colocou a coisa dessa forma.
— Por essa razão, — disse Nicci. — o sacrifício em qualquer
sofrimento, qualquer desejo, qualquer necessidade por seu colega é um humilde
reconhecimento de que essa vida não tem significado, uma demonstração de que
você reconhece que a eternidade com o Criador no mundo seguinte é uma
preocupação importante. Sim? Ao sacrificar -se você está afirmando que não
valoriza o reino dos homens acima da eternidade, do reino do Criador. Assim, o
sacrifício é o preço, o pequeno preço, uma insignificância, que você paga pela
glória eterna da sua alma. É a sua prova ao Criador de que você é digno dessa
eternidade com Ele.
Richard estava surpreso em ver como uma ideia, transmitida por Nicci
com confiança, firmeza e autoridade, facilmente intimidava Jebra silenciando -a.
Enquanto escutava Nicci que agigantava -se, Jebra ocasionalmente olhara para os
outros, para Zedd, Cara, Shota, até para Ann e Nathan, mas não vendo qualquer
um deles oferecendo qualquer objeção ou contra-argumentos, os ombros dela
começaram a encolher como se ela desejasse poder desaparecer dentro de uma
rachadura no chão de mármore.
— Se você confinar as suas preocupações em ser feliz nesta vida, —
Nicci moveu um braço casualmente, indicando o mundo ao redor dela enquanto
caminhava altivamente de um lado para outro diante deles... — se ousar ter
alegria nas trivialidades insensíveis desse mundo desprezível, dessa breve
existência sem significado, isso é uma rejeição de sua superimportante vida
seguinte eterna, e desse modo uma rejeição ao plano perfeito do Criador para a
sua alma.
— Quem é você para questionar o Criador de todo o universo? Como
ousa colocar os seus desejos mesquinhos para sua vidinha patética insignificante
na frente do grande o bjetivo Dele de prepará -la para a eternidade?
Nicci fez uma pausa, cruzando os braços com um tipo de cuidado
deliberado que implicava um desafio. Uma vida de doutrinação deu a ela a
habilidade para expressar os cuidadosamente criados princípios da Ordem c om
devastadora precisão. Ver ela parada ali em sua camisola cor de rosa de alguma
forma apenas pareceu destacar o seu escárnio sobre a trivialidade da vida.
Richard lembrou muito bem de Nicci passando aquela mesma mensagem a ele,
só que naquela época ela f alava com mortal seriedade. Jebra evitou o olhar
penetrante de Nicci, ao invés disso fixando seu olhar em suas mãos aninhadas
sobre o colo.
— Para trazerem os costumes da Ordem para outros povos, Galea por
exemplo, — falou Nicci quando retomou seu discurs o em caminhada. — muitos
dos soldados da Ordem tiveram que morrer. — ela balançou os ombros. — Mas
esse é o sacrifício definitivo... a vida de alguém... em um esforço para trazer o
esclarecimento para aqueles que ainda não sabem como seguir o único caminho
correto e verdadeiro para a glória no mundo seguinte. Se uma pessoa sacrifica
sua vida na luta em nome da Ordem para trazer a salvação para pessoas
retrógradas, ignorantes e sem importância, então ela ganha a eternidade com Ele
no mundo seguinte.
Nicci levantou um braço, coberto com o material sedoso rosa da
camisola, como que para revelar algo magnífico mas invisível bem ali na frente
deles. — A morte é meramente o portal para essa eternidade gloriosa.
Ela deixou o braço cair. — Já que uma vida individu al não tem

108
importância no esquema das coisas que realmente importam, é óbvio que ao
torturar e matar indivíduos que resistem, você está apenas ajudando a lançar as
massas dos não esclarecidos para o esclarecimento... então está levando a
salvação até essas massas, servindo a uma causa moral, levando as crianças do
Criador para o lar no reino dele.
A expressão de Nicci ficou tão sombria quanto sua pretensão estivera.
— Pessoas que recebem esse ensinamento desde o nascimento passam a acreditar
com tamanha convicção cega que enxergam qualquer um que viva de qualquer
maneira que não esteja de acordo com os ensinamentos da Ordem... em outras
palavras, que falhe em pagar o preço correto do sacrifício em troca da salvação
eterna... como merecedor de uma eternidade de agonia inimaginável nas frias
profundezas escuras do reino do Guardião do Submundo, que é exatamente o que
o aguarda a não ser que mudem seus costumes.
— Pouquíssimas pessoas que crescem sob essa doutrina possuem o
suficiente de sua habilidade de raci ocínio ainda intacta para serem capazes de
achar o caminho para fora dessa armadilha em círculo vicioso... e elas nem
desejam isso. Para elas, serem felizes na vida, viverem por si mesmas, é trocar a
eternidade por uma alegria breve e pecaminosa antes de u ma danação sem fim
que aproxima-se.
— Uma vez que devem abdicar da alegria dessa vida, elas são bastante
rápidas em notar qualquer um que falhe em sacrificar -se como deveria, que falhe
em viver pelos cânones da Sociedade da Ordem. Além disso, o reconhecime nto
do pecado nos outros é considerado uma virtude porque ajuda a direcionar
aqueles que negligenciam seu dever moral a retornarem para o caminho da
salvação.
Nicci inclinou em direção a Jebra e baixou a voz em um sinistro
sibilar. — De forma parecida com o matar os descrentes é virtude. Sim?
Nicci endireitou o corpo. — Seguidores da Ordem desenvolvem um
ódio intenso por aqueles que não acreditam como eles acreditam. Afinal, a
Ordem ensina que pecadores que recusam -se a arrependerem -se nada mais são
do que discípulos do Guardião. A morte não é mais do que esses inimigos do
que é correto merecem.
Nicci abriu os braços em um gesto ameaçador. — Não pode haver
qualquer dúvida a respeito disso uma vez que os ensinamentos da Ordem são,
afinal de contas, merament e os desejos do próprio Criador, e desse modo a
verdade divinamente evocada.
Agora Jebra estava claramente intimidada demais para oferecer um
argumento.
Cara, por outro lado, claramente não estava. — Oh, é mesmo? — ela
falou em um tom controlado, mas des afiante. — Acho que existe um pequeno
problema. Como eles sabem tudo isso? Quero dizer, como sabem que a vida
seguinte realmente é como eles retratam?
Ela cruzou as mãos atrás das costas enquanto balançava os ombros. —
Até onde eu sei, eles não visitaram o mundo dos mortos e voltaram. Como
saberiam como é além do Véu?
— Nosso mundo é o mundo dos vivos, então o que é importante nesse
mundo é a vida. Como eles ousam rebaixá -la tornando a nossa única vida o
preço por algo desconhecido? Como podem afirmar que sabem algo sobre a
natureza de outros mundos? Quero dizer, de acordo com o que todos sabem, o
mundo espiritual poderia ser um mero estado transitório enquanto deslizamos
para dentro da não existência da morte.

109
— Para dizer a verdade, como a Sociedade da Ordem saberia que esses
são os desejos do Criador... ou que Ele ao menos tem algum desejo? — Cara
franziu a testa. — Como eles ao menos sabem que a Criação foi gerada por uma
mente consciente na forma de alguma raça divina?
Jebra pareceu aliviada que algu ém finalmente tivesse feito uma
objeção.
Nicci sorriu de uma forma curiosa e ergueu uma sobrancelha. — É aí
que está o truque.
Sem olhar, ela levantou o braço para trás em direção a Ann, que estava
do outro lado da sala nas sombras. — É o mesmo método at ravés do qual a
Prelada e suas Irmãs da Luz sabem que sua versão da mesma conversa é
verdadeira. Profecia, ou os Altos Sacerdotes, ou alguma pessoa humilde mas
profundamente devota ouviu os sussurros íntimos do divino, ou teve uma visão
que Ele enviou, ou foi visitada em sonhos. Existem até textos antigos que
professam ter conhecimento infalível daquilo que está além do Véu. Esse tipo de
sabedoria em maior parte é uma coleção dos mesmos tipos de sussurros, visões e
sonhos que no passado distante foram estab elecidos como fatos e tornaram -se
“irrefutáveis” simplesmente porque são antigos.
— E como podemos checar a veracidade desse testemunho? — Nicci
moveu um braço em um gesto abrangente. — Ora, questionar tais coisas é o
maior pecado de todos: falta de fé!
— O simples fato de que o inconhecível é inconhecível é o que elas
afirmam fornecer à fé sua virtude e a torna sacrossanta. Afinal de contas, qual
seria a virtude na fé se aquilo em que temos fé pudesse ser conhecido? Uma
pessoa que consegue manter fé abso luta sem qualquer prova que seja deve
possuir profunda virtude. Como consequência, apenas aqueles que dão o salto de
fé saindo do rochedo firme do tangível para dentro do vazio do imperceptível
são corretos e dignos de um prêmio eterno.
— É como se mandassem você pular de um penhasco e ter fé de que
pode voar, mas você não pode bater os braços porque isso apenas entregaria uma
fundamental falta de fé e qualquer falta de fé infalivelmente garantiria que você
mergulharia direto ao chão, dessa forma provando que uma falha na fé é uma
falha pessoal, e fatal.
Nicci deslizou os dedos para trás em seu cabelo loiro, erguendo -o dos
ombros, e então, com um suspiro, ela deixou os braços caírem. — Quanto mais
difíceis de acreditar são os ensinamentos, maior é o nível de fé exigido. Junto
com o compromisso a um nível mais alto de fé sem questionamento vem uma
ligação mais forte com aqueles que compartilham da mesma fé, uma sensação
maior de inclusão no grupo especial dos esclarecidos. Crentes, porque suas
crenças são tã o manifestamente místicas, tornam -se cada vez mais distantes dos
“não esclarecidos”, daqueles que são suspeitos porque não abraçarão a fé. O
termo “ateu” vira uma forma de condenação comumente aceita, demonizando
qualquer um que escolha... — Nicci bateu com um dedo na têmpora. — prender-
se ao uso da razão.
— A fé em si, você percebe, é a chave... a varinha mágica que elas
agitam sobre a mistura borbulhante que fizeram para deixar a coisa “evidente
por si mesma”.
Ann, a despeito do olhar furioso de desdém para uma Irmã da Luz,
transformada em traidora da causa, não discutiu. Richard considerou essa uma
rara escolha da parte dela, e uma que no momento foi particularmente sábia.
— Aí está, — disse Nicci, balançando um dedo enquanto caminhava de

110
um lado para outro, de pés descalços. — aí está a rachadura na imponente torre
de ensinamentos da Ordem. Aí está o defeito fatal no centro de todas as
convicções no centro de todas as convicções urdidas na imaginação dos homens.
Tais coisas, no final, ainda que possam ter sinceridade, não são mais sólidas do
que o elaborado produto do capricho e auto enganação. No fim, sem o rochedo
da realidade, uma pessoa louca que escuta vozes em sua cabeça é igualmente
sincera e igualmente confiável.
— É por isso que a Ordem vanglo ria-se da santidade da fé e ensina que
você deve colocar de lado o impulso vil de usar a sua cabeça, que ao invés disso
você deve entregar-se aos seus sentimentos. Uma vez que você entregar a sua
vida na fé cega da história deles sobre a vida seguinte, ele s afirmam que então,
e somente então, o portal para a eternidade abrirá magicamente para você e você
saberá de tudo.
— Em outras palavras, o conhecimento deve ser obtido apenas através
da rejeição de tudo que na verdade compromete o conhecimento.
— É por isso que a Ordem iguala a fé com a santidade, e porque sua
ausência é considerada pecaminosa. É por isso que até mesmo questionar a fé é
heresia.
— Sem fé, você percebe, tudo que eles ensinam desfia -se.
— E já que a fé é a cola indispensável que mantém unida sua torre
cambaleante de crenças, a fé eventualmente gera a brutalidade. Sem a
brutalidade para apoiá-la, a fé acaba sendo nada mais do que um sonho bonito,
ou a crença vazia de que ninguém atacará seu trono, de que inimigo algum
cruzará as fronteiras, de que força alguma pode derrotar as defesas dela, se ela
simplesmente proibir isso.
— Afinal de contas, eu não preciso ameaçar você para fazer você
enxergar que que a água dentro daquela fonte é molhada ou que as paredes desta
sala são construídas com pedras, mas a Ordem deve ameaçar as pessoas para
fazê-las acreditarem que uma eternidade estando morto será um prazer eterno,
mas somente se elas fizerem o que lhes é ensinado nessa vida.
Enquanto ela olhava para as águas imóveis da fonte, Richard pensou
que os olhos azuis de Nicci poderiam transformar aquela água em gelo. A fria
raiva naqueles olhos nascera de coisas que ela viu em sua vida que ele nem
conseguia imaginar. Nos finais de tardes sombrios e tranquilos sozinho com ela,
as coisas que ela estiv era disposta a confidenciar a ele foram terríveis o
bastante.
— É muito mais fácil convencer as pessoas a morrerem por sua causa
se primeiro você fizer com que elas fiquem ansiosas para morrerem. — falou
Nicci com uma voz triste. — É muito mais fácil fazer garotos exporem seus
peitos a flechas e espadas se eles tiverem fé que fazerem isso é um ato de
altruísmo que fará o Criador sorrir e dar as boas vindas a eles na glória eterna
da vida seguinte.
— Assim que a Ordem ensina pessoas a serem verdadeiros cre ntes, na
verdade o que eles realmente fizeram é forjar monstros que não apenas morrerão
pela causa, mas também matarão por ela. Verdadeiros crentes são consumidos
por um ódio implacável por aqueles que não acreditam. Não existe indivíduo
mais perigoso, mai s cruel, mais brutal do que um que foi cegado pelas crenças
da Ordem. Um crente assim não é moldado pela razão então não tem vínculo
com ela. Como uma consequência, não há mecanismo de limitação em seu ódio.
Esses são assassinos que matarão alegremente pel a causa, absolutamente seguros
no conhecimento de que estão fazendo o que é justo e a coisa certa.

111
As articulações dos dedos de Nicci ficaram brancas e desprovidas de
sangue conforme seus punhos apertaram. Embora a sala parecesse zunir com o
repentino e t errível silêncio, o poder das palavras dela ainda ecoavam através da
mente de Richard. Ele achou que a força da aura estalando ao redor dela poderia
provocar uma repentina tempestade de raios dentro da antessala.
— Como eu falei, a premissa é bastante sim ples. — Nicci balançou a
cabeça com triste resignação, a emoção desaparecendo do seu frio
pronunciamento. — Para a maioria das pessoas do Mundo Antigo, e agora para o
povo do Mundo Novo, não há escolha a não ser seguir os ensinamentos da
Ordem. Se a fé del es fraquejar eles são inflexivelmente lembrados da eternidade
de sofrimento inimaginável que aguarda os infiéis. Se isso não funcionar, então
a fé será incutida neles pela ponta de uma espada.
— Mas deve haver algum jeito de salvar essas pessoas. — finalmente
Jebra falou. — Não existe uma maneira de fazer eles recuperaram o bom senso e
abandonarem os ensinamentos da Ordem?
Nicci desviou o olhar de Jebra para contemplar o vazio. — Fui criada
desde o nascimento sob os ensinamentos da Ordem e recuperei meu b om senso.
Ainda vislumbrando uma escura tempestade de recordações, ela ficou
em silêncio durante um momento, como se estivesse revivendo sua
aparentemente infinita batalha para agarrar -se à vida, para escapar das
assustadoras garras da Ordem.
— Mas você não pode imaginar o quão profundamente foi difícil para
mim emergir daquele reino de crenças sombrias. Duvido que alguém que não
esteve perdido no mundo sufocante dos ensinamentos da Ordem consiga começar
a imaginar como é acreditar que sua vida não tem va lor, ou entender a sombra
de terror que cai sobre você toda vez em que tenta colocar de lado aquilo que
lhe foi ensinado como o seu único meio de salvação.
O olhar marejado dela desviou hesitante para Richard. Ele sabia. Ele
estivera lá. Ele sabia como er a.
— Eu fui salva, — ela sussurrou em uma voz entrecortada. — mas não
foi nada fácil.
Jebra pareceu encorajada por aquilo que, Richard sabia, não era
realmente um encorajamento. — Mas funcionou com você, — ela falou. — então
talvez funcione para os outro s.
— Ela é diferente da maioria daqueles que estão sob o feitiço da
Ordem. — disse Richard enquanto olhava dentro dos olhos azuis de Nicci, olhos
que entregavam a nua emoção do quanto ele significava para ela. — Ela era
conduzida por uma necessidade de co mpreender, de saber, se o que foi ensinada
a acreditar era verdade ou se havia mais na vida, se havia algo pelo que valia à
pena viver.
— A maioria daqueles ensinados pela Ordem não possuem tais dúvidas.
Eles bloqueiam esse tipo de perguntas e ao invés di sso agarram-se com
tenacidade à suas crenças.
— Mas o que faz você pensar que eles não mudarão? — Jebra não
pareceu estar pronta para abandonar o fio de esperança. — Se Nicci mudou,
então porque os outros não podem?
Ainda olhando dentro dos olhos de Nicc i, Richard falou. — Acho que
eles são capazes de bloquear qualquer dúvida naquilo em que acreditam porque
internalizaram sua doutrinação, não mais enxergando -as como ideias específicas
que foram incutidas neles. Começaram a experimentar as ideias que foram
ensinadas como sentimentos, que evoluem para uma poderosa convicção

112
emocional. Acredito que esse seja o truque do processo. Eles são convencidos
dentro de suas próprias mentes que estão experimentando pensamento original
ao invés do que aquelas discretas ideias que foram ensinadas a eles enquanto
cresciam.
Nicci limpou a garganta quando desviou do olhar de Richard e voltou
sua atenção mais uma vez para Jebra.
— Acho que Richard tem razão. Percebi essa mesma coisa dentro do
meu próprio pensamento, percebi essa convicção interna que na verdade nasceu
através de uma cuidadosamente construída forma de instrução.
— Algumas pessoas que secretamente valorizam suas vidas se unirão
em uma revolta se conseguirem ver que existe uma chance realística de vencer...
foi isso que aconteceu em Altur'Rang... mas se não houver essa chance então
elas sabem que devem repetir as palavras que os seguidores da Ordem querem
ouvir ou arriscar perder sua posse mais valiosa: a vida. Sob o Governo da
Ordem, você acredita enquanto ele s ensinam, ou morre. É simples assim.
— Tem pessoas no Mundo Antigo trabalhando para juntarem -se com
aqueles que farão uma revolta, trabalhando para acenderem as chamas da
liberdade para aqueles que querem agarrar uma oportunidade para controlarem
seu próprio destino. Então há aqueles que verdadeiramente querem uma chance
de liberdade e agirão para obtê -la. Jagang, também, sabe de tais esforços e
enviou tropas para esmagar essas revoltas. Mas eu sei muito bem também que a
maioria das pessoas do Mundo Antig o jamais abandonariam voluntariamente as
crenças delas; elas enxergam fazer isso como um pecado. Elas trabalharão
brutalmente para esmagar qualquer levante. Se for necessário, eles continuarão
agarrados à sua fé até o túmulo. Aqueles...
Shota ergueu uma das mãos com irritação, cortando Nicci. — Sim, sim,
alguns farão isso, alguns não. Muitos ficarão indecisos. Isso não importa.
Esperar por uma revolta não faz sentido. É apenas desejar de forma vazia que a
salvação apareça do nada.
— As legiões de soldados do Mundo Antigo agora estão aqui, no
Mundo Novo, então é com o Mundo Novo que devemos nos preocupar, não com
o Mundo Antigo e qual pode ser ou não pode ser o humor para revolta. O Mundo
Antigo, em sua maior parte, acredita na Ordem, apoia a Ordem, e encor aja a
Ordem a conquistar o resto do mundo.
Shota deslizou adiante, direcionando um olhar para Richard. — A
única forma para que a civilização sobreviva é mandar os soldados invasores da
Ordem através daquele portal para aquilo que eles anseiam... para a e ternidade
no mundo dos mortos. Não há como resgatar aqueles cujas mentes estão perdidas
para crenças pelas quais eles estão ansiosos para morrer. O único jeito para
deter a Ordem e seus ensinamentos é matar o bastante deles para que não
consigam continuar.
— A dor realmente tem o poder para mudar a mente das pessoas. —
falou Cara.
Shota acenou com a cabeça para a Mord -Sith, aprovando. — Se eles
realmente começarem a entender sem qualquer dúvida que não vencerão, que
seus esforços conduzirão à morte certa, então talvez alguns abandonem sua
crença e causa. Poderia muito ser que, independente de sua fé nos ensinamentos
da Ordem, alguns deles, bem lá no fundo, realmente queiram morrer para testá -
la.
— Mas e daí? Isso realmente importa para nós? O que nós sabe mos
com certeza é que a maioria realmente são tão fanáticos que recebem a morte de

113
bom grado. Centenas de milhares já morreram, provando que estão mesmo
dispostos a fazerem esse sacrifício. O resto desses homens devem ser mortos ou
eles matarão a todos nós e condenarão o resto do mundo a um longo mergulho
gradual na selvageria.
— Isso é o que nós encaramos. Essa é a realidade da coisa.

114
C A P Í T U L O 1 6

Shota direcionou um olhar para Richard. — Jebra mostrou o que


acontecerá nas mãos daqueles sol dados se você não os detiver. Você acha que
aqueles homens possuem quaisquer noções racionais do significado de suas
vidas? Ou que eles podem participar em uma revolta contra a Ordem se tiverem
chance? Dificilmente.
— Estou aqui para mostrar a você o que já aconteceu a muitas pessoas
para que você entenda o que acontecerá a todas as outras se não fizer algo para
impedir.
— Um entendimento preciso de como surgiram os soldados da Ordem,
as escolhas que eles fizeram em suas vidas que os levaram a destruir as vidas de
pessoas inocentes, e as razões por trás dessas escolhas, estão longe de serem
preocupação nossa. Eles são o que são. São destruidores, assassinos. Estão aqui.
Isso é tudo que importa agora. Eles devem ser detidos. Se estiverem mortos,
deixarão de ser uma ameaça. É simples assim.
Richard pensou como ela esperava que ele realizasse uma coisa tão
“simples”. Ela podia muito bem estar pedindo a ele que puxasse a lua do céu e
usasse para esmagar o exército da Ordem Imperial.
Como se estivesse lendo a mente dele, Nicci falou outra vez. — Todos
nós podemos concordar com você, em tudo que você veio aqui dizer... e de fato
não precisamos que nos diga o que já sabemos, como se achasse que somos
crianças e somente você seja sábia. Mas você não entende o que está pedindo. O
exército que Jebra viu, o exército que marchou entrando em Galea e tão
facilmente destruiu as defesas deles e matou tantas pessoas, é uma unidade da
Ordem Imperial menor e bastante insignificante.
— Você não pode estar falando sério. — falou Jebra.
Nicci finalmente desviou o olhar sério de Shota e olhou para Jebra. —
Você viu algum dotado?
— Dotado? Ora, não, eu acho que não. — ela disse após um momento
de pensamento.
— Isso porque eles não tinham permissão para terem seus próprios
dotados para comandarem. — disse Nicci. — Se eles tivessem dotados, Shota
não teria conseguido entrar lá tão facilmente e então tirar você do lugar. Mas
eles não tinham dotados. Eles são uma força relativamente menor e como tal são
considerados dispensáveis.
— Foi por isso que os suprimentos demoraram tanto tempo para chegar
até eles. Todos os suprimentos primeiro seguem para o norte, para a força
principal de Jagang. Assim que tinham o que precisavam então permitiram que
os suprimentos fossem para outras unida des, como aquela em Galea. Eles são
apenas uma das forças expedicionárias de Jagang.
— Mas você não entende. — Jebra declarou. — Eles formavam um
exército enorme. Eu estava lá. Vi eles com meus próprios olhos. — ela esfregou
as mãos enquanto olhava ao red or para todos na sala. — Eu estava lá,
trabalhando para eles mês após mês. Eu vi como seus números eram massivos.
Como eu não conseguiria perceber a extensão das forças deles? Eu falei sobre
tudo que eles fizeram.
Não impressionada, Nicci balançou a cabeç a. — Eles eram nada.

115
Jebra lambeu os lábios, a preocupação dominando sua expressão. —
Talvez eu não tenha feito um bom trabalho ao descrever, em deixar claro
quantos soldados da Ordem invadiram Galea. Sinto muito ter falhado em fazer
você entender o quão facilmente eles esmagaram todos aqueles determinados
defensores.
— Você fez um trabalho muito bom ao relatar precisamente o que viu,
— Nicci falou com tom mais suave enquanto apertava levemente o ombro da
mulher em simpático apoio. — Mas você viu apenas u ma parte da imagem toda.
A parte que você viu, uma coisa assustadora como certamente foi, era
insignificante comparada ao resto.
O que você viu não poderia prepará -la para ver a força principal
liderada pelo Imperador Jagang. Passei bastante tempo no acamp amento
principal de Jagang; sei do que estou falando. Comparada com a força principal
deles, aquela que você viu não qualifica -se como imponente.
— Ela tem razão, — falou Zedd com voz séria. — Odeio admitir, mas
ela tem razão. O exército principal de Jaga ng é vastamente mais poderoso do
que aquele que invadiu Galea. Lutei para reduzir a velocidade do avanço deles
através de Midlands enquanto eles nos fizeram recuar em direção a Aydindril,
então eu devo saber. Ver eles chegando é como observar a aproximação de
servos do Submundo vindo devorar os vivos.
Ele parecia estoico em seu manto simples, parado no topo dos cinco
degraus, observando, escutando o que outros tinham a dizer. Richard sabia,
porém, que seu avô era qualquer coisa menos indiferente. O costume de Zedd
era geralmente ouvir o que os outros tinham a dizer antes de dar a sua palavra.
Nesse assunto não havia necessidade de que ele corrigisse qualquer coisa que
ouvira.
— Se as tropas da Ordem em Galea não tinham qualquer dotado, —
disse Jebra. — então se alguns daqueles com o Dom fossem lá vocês poderiam
eliminá-los. Talvez vocês pudessem salvar aquelas pobres pessoas que ainda
estão vivas, que suportaram tanta coisa. Não é tarde demais ao menos para
salvar alguns deles.
Richard pensou que o que ela estava realmente perguntando, mas tinha
medo de falar em voz alta, era que se essa fosse apenas uma força menor sem
dotados entre eles, então porque alguns daqueles presentes não fizeram algo
para deter o massacre que ela havia testemunhado. Antes que Ric hard tivesse
deixado suas florestas em Hartland, ele poderia muito bem ter guardado o
mesmo vago senso de ressentimento e raiva em relação aqueles que nada fizeram
para salvá-los. Agora ele sentia o tormento de saber o quanto havia mais coisas
envolvidas.
Nicci balançou a cabeça, desconsiderando a ideia. — Isso não é tão
praticável quanto pode parecer. Os dotados podem ser capazes de eliminar um
grande número do inimigo e por um tempo criar estragos, mas até mesmo essa
força expedicionária tem números sufi cientes para resistir a qualquer ataque dos
dotados. Zedd, por exemplo, poderia usar Fogo do Mago para ceifar várias
fileiras de soldados, mas quando fizesse uma pausa para conjurar mais o inimigo
estaria enviando onda sobre onda de homens até ele. Eles po dem perder muitos
homens, mas eles não são dissuadidos por baixas assombrosas. Eles
continuariam avançando. Lançariam fileira após fileira de homens dentro da
conflagração. Independente de quantos morreriam, logo eles sobrepujariam até
mesmo alguém tão tal entoso como o Primeiro Mago. E então onde estaríamos?
— Mesmo algo tão simples quanto uma fileira de arqueiros poderia

116
derrubar uma pessoa dotada. — ela olhou para Richard. — Tudo que é
necessário é que uma flecha encontre seu alvo, e uma pessoa dotada mo rreria do
mesmo jeito que qualquer outra.
Zedd abriu as mãos em um gesto de frustração. — Temo que Nicci
esteja certa. No final, a Ordem estaria no mesmo lugar com o mesmo resultado,
mesmo se estivesse com menos homens. Nós, por outro lado, estaríamos sem
aqueles com o Dom que enviamos contra eles. Eles podem repor suas tropas com
reforços quase infinitos, mas não haveria legiões de dotados vindo em nosso
auxílio. Tão insensível quanto possa parecer, nossa única chance repousa não
em jogar nossas vidas for a em uma batalha fútil que, nós sabemos, não tem
chance de sucesso, mas em sermos capazes de pensar em algo que tenha uma
chance real de funcionar.
Richard gostaria de acreditar que havia alguma solução, algum plano,
que tivesse uma chance real de funcion ar. Porém, ele não achava que houvesse
qualquer chance de que pudessem fazer outra coisa além de prolongar o fim.
Jebra assentiu, sua centelha de esperança apagando -se. As profundas
rugas que transmitiam uma aparência cansada ao rosto dela junto com a tei a de
linhas nos cantos de seus olhos azuis fizeram ela parecer mais velha do que
Richard suspeitava que ela realmente era. Os ombros dela estavam ligeiramente
arriados, e suas mãos ásperas e calejadas do trabalho árduo. Ainda que os
homens da Ordem não a t ivessem assassinado, tinham sugado a vida dela,
deixando-a para sempre marcada por aquilo que havia passado e pelo que tinha
sido forçada a testemunhar. Quantos outros havia, como ela, vivos mas para
sempre enfraquecidos sob a brutalidade das forças ocupan tes, cascas vazias de
seus antigos eus, vivos por fora mas sem vida por dentro?
Richard sentiu-se tonto. Ele mal podia acreditar que Shota traria Jebra
tão longe para convencê -lo do quão terrível a Ordem realmente era. Ele já
conhecia a verdade da brutali dade deles, da natureza da ameaça deles. Tinha
vivido durante quase um ano no Mundo Antigo sob a repressão da Ordem.
Estivera lá no início da revolta em Altur'Rang.
O testemunho em primeira mão de Jebra, no mínimo, estava apenas
ajudando a convencê -lo daquilo que ele já sabia... que eles não tinham chance
contra Jagang e as forças da Ordem Imperial. Todo o Império D’Haraniano
provavelmente teria sido capaz de deter a unidade que descera sobre Galea, mas
ela era nada comparada ao exército principal da Ordem Imperial.
Na época quando conheceu Kahlan ele lutou para deter a ameaça a
todos trazida por Darken Rahl. Difícil como havia sido, Richard fora capaz de
acabar com aquela ameaça ao eliminar Darken Rahl. Entretanto, ele sabia que
essa ameaça era diferente. Independente do quanto odiava Jagang, Richard sabia
que não podia pensar nisso nos mesmos termos da última batalha. Mesmo se de
alguma forma ele conseguisse matar Jagang, isso não deteria a ameaça da Ordem
Imperial. A causa deles era monolítica, ideológic a, não impulsionada pelas
ambições de um indivíduo. Isso era o que fazia tudo parecer tão desesperançoso.
A visão de Shota... o que ela anteviu no fluxo do tempo como o futuro
sem esperança do mundo se eles falhassem em fazer algo para deter a Ordem
Imperial... — certamente para Richard não pareceu ter exigido qualquer grande
talento ou visão especial. Ele não precisava ser um profeta para ver a ameaça
medonha que a Ordem representava. Se não fossem detidos, eles governariam o
mundo. Jebra, nesse sentido, nada dissera a ele de novo, nada que ele já não
soubesse.
Richard reconheceu isso muito bem, do jeito que as coisas estavam,

117
quando as forças do Império D’Haraniano finalmente encontrassem com o
exército de Jagang na batalha final, aqueles bravos homens, que eram tudo que
permanecia no caminho da Ordem, todos morreriam. Depois disso, não haveria
oposição contra a Ordem Imperial. Eles avançariam livremente e no fim
governariam o mundo.
Shota estava longe de ser estúpida, então obviamente ela sabia de tudo
isso, e tinha que saber que ele também saberia muito bem.
Então, ele imaginou, porque ela estava ali realmente?
A despeito do seu humor ruim por causa do relatório assustador de
Jebra a respeito daquilo que ela viu, Richard foi obrigado a pensar que Shot a
provavelmente tinha alguma outra razão para sua visita.
Ainda assim, tinha sido difícil ouvir a história de Jebra sem que ela
aumentasse não apenas sua angústia, mas a raiva dele também. Richard virou e
olhou dentro da água imóvel da fonte. Ele sentiu o peso da melancolia
instalando -se sobre os ombros. O que ele poderia fazer a respeito disso? Parecia
como se esse e todos os outros problemas pressionando ao redor deles
estivessem empurrando Kahlan para longe dos pensamentos dele, para longe
dele.
Às vez es ela dificilmente parecia ao menos ser real para ele. Ele
odiava sempre que tinha esse tipo de pensamento. Às vezes, quando ele
lembrava do espírito dela, ou do jeito como ela sorria tão facilmente quando ela
descansava seus pulsos sobre os ombros dele e entrelaçava os dedos atrás do
pescoço dele e ficava olhando para ele, ou de seus lindos olhos verdes, ou sua
risada suave, ou de seu toque, ou do sorriso que ela entregava apenas para ele,
ela parecia mais como um fantasma que existia apenas em sua imagin ação.
O simples pensamento de Kahlan não ser real fez um calafrio de pavor
espalhar-se através de suas entranhas. Ele vivera com aquele medo entorpecente
durante um período longo e sombrio. Havia sido apavorante estar sozinho em
sua crença de que ela exis tia, apavorante duvidar de sua própria sanidade, até
que finalmente ele tivesse descoberto a verdade do feitiço Cadeia de Fogo e
convencido os outros de que ela realmente era real. Agora, pelo menos, tinha a
ajuda deles.
Richard recuperou o controle. Kahl an não era um fantasma. Tinha que
encontrar um jeito de arrancá -la das garras de Irmã Ulicia e das outras duas
Irmãs do Escuro. Não ajudava, porém, o fato do pensamento de Kahlan sendo
prisioneira de mulheres tão impiedosas causar nele tanta angústia que à s vezes
não conseguia suportar pensar naquilo, pensar em quais podiam ser as coisas
terríveis que elas podiam fazer com a mulher que era o mundo dele, a mulher
que ele amava mais do que a vida, e mesmo assim ele não conseguia fazer sua
mente concentrar-se em outra coisa.
A despeito do que Shota acreditasse que ele deveria fazer, Richard teve
que lembrar de que, além de Kahlan estar perdida no v órtice do feitiço Cadeia
de Fogo, havia outros perigos, como as Caixas de Orden estarem em atividade, e
o dano deixado para trás pelas Notas. Ele não podia ignorar todo o resto só
porque a Bruxa entrou marchando para dizer a ele o que ela achava que ele
deveria fazer. Poderia até ser que o verdadeiro objetivo de Shota fosse algum
esquema complexo, algum plano oculto, envolvendo essa outra Bruxa, Seis. Não
havia como dizer o que Shota realmente estava querendo fazer.
Mesmo assim, Richard passara a ter grande respeito por ela, assim
como Kahlan, mesmo se ele não confiasse totalmente nela. Embora Shota
geralmente pareces se ser uma instigadora de problemas isso não era

118
necessariamente porque estava tentando deliberadamente causar sofrimento a
ele; às vezes a intenção dela era ajudá -lo e outras vezes ela era simplesmente a
mensageira da verdade. E ainda que ela sempre estiv esse certa nas coisas que
revelava a ele, essas coisas quase sempre acabavam sendo verdadeiras de formas
que Shota não havia previsto... ou pelo menos de formas que ela não tinha
revelado. Como Zedd frequentemente dizia, uma Bruxa nunca fala a você algo
que você quer saber sem também dizer algo que você não queria saber.
Na primeira vez em que ele encontrou com ela, Shota dissera que
Kahlan o tocaria com seu poder e então ele deveria matá -la para evitar que isso
ocorresse. Como acabou acontecendo, Kahlan r ealmente usou o seu toque de
Confessora nele, mas isso foi quando ele tinha sido capaz de enganar Darken
Rahl e derrotá-lo. Shota estava certa, mas isso aconteceu de um jeito que acabou
sendo vastamente diferente da forma como ela havia apresentado a coisa . Ainda
que ela estivesse certa, falando de forma rigorosa, se ele tivesse seguido o
conselho dela Darken Rahl teria sobrevivido para liberar o poder de Orden e
governar a todos, ou aqueles que fossem deixados vivos.
No fundo da mente dele espreitava a pr evisão que Shota tinha feito de
que se Richard casasse com Kahlan ela carregaria uma criança que seria um
monstro. Ele e Kahlan haviam casado. Certamente essa previsão também não
aconteceria do jeito que Shota havia apresentado. Certamente Kahlan não daria
luz a um monstro.
Foi Zedd quem finalmente falou, fazendo Richard retornar de seus
pensamentos. — O que aconteceu com a Rainha C yrilla?
A sala ficou silenciosa durante um tempo antes que Jebra respondesse.
— Aconteceu como eu vi em minha visão. Ela foi entregue para os mais baixos
dos soldados para ser usada conforme eles desejassem. Eles estavam ansiosos
para colocarem as mãos em seu prêmio. A coisa ficou feia para ela. Os piores
medos dela aconteceram.
Zedd inclinou a cabeça, aparentemente acreditando que havia mais na
história. — Então essa foi a última vez em que você a viu?
Jebra cruzou as mãos diante de si. — Não exatamente. Um dia, eu
estava apressada para entregar uma bandeja com carne recém assada, encontrei
com um grupo barulhento de homens em um jogo que as tropas da Ordem
Imperial gostavam muito de assistir. Havia duas equipes com os homens
reunidos gritando para animá -los. Todos os homens estavam apostando em qual
equipe venceria. Eu não sei que jogo era aquele...
— Ja’La. — falou Nicci. Qu ando Jebra virou para olhar para ela, Nicci
disse. — O jogo é chamado Ja’La. Em teoria é um jogo de habilidade atlética,
destreza, e estratégia; na prática, sob as regras pelas quais a Ordem joga, Ja’La
é tudo isso e, adicionalmente, é bastante brutal. Ja’La é o esporte favorito de
Jagang. Ele tem sua própria equipe. Lembro que uma vez, quando eles perderam
um jogo. A equipe toda foi condenada à morte. Logo o Imperador tinha uma
nova equipe dos jogadores mais habilidosos, durões, mais imponentes
fisicamente que podiam ser encontrados. Eles não perdiam. O nome completo do
jogo é Ja’La dh Jin. Na língua nativa do Imperador Jagang significa “o jogo da
vida”.
Jebra franziu a testa procurando lembrar. — Sim, acho que lembro de
ter ouvido ele ser chamado de Ja’La. Sempre vi ele ser jogado com uma bola
pesada. Uma bola pesada o bastante para quebrar os ossos dos jogadores de vez
em quando.
— A bola é chamada de “ Broc”. — falou Richard sem virar.

119
Nicci olhou para ele. — Isso mesmo.
— Bem, — disse Jebra, retomando sua história. — nesse dia em
particular, quando eu estava levando a bandeja para os comandantes, tive que ir
até o lugar onde o jogo estava sendo realizado. Havia milhares de soldados
reunidos para assistir. Eu fui encaminhada até uma pequena mesa para os
comandantes e tive que abrir caminho no meio das multidões agitadas. Foi uma
jornada apavorante. Os homens viam o anel de ferro no meu lábio então nenhum
deles ousava me arrastar para dentro de suas tendas, mas isso não afastava as
mãos dele sobre meu cor po. — o olhar de Jebra buscou o chão. — Isso foi algo
que tive de suportar com bastante frequência.
Finalmente ela levantou os olhos. — Quando cheguei até os
comandantes, perto do campo de jogo, vi que os homens iniciando um novo jogo
não estavam usando a bola que geralmente usavam. — ela limpou a garganta. —
Eles estavam usando a cabeça da Rainha Cyrilla como bola.
Jebra procurou preencher o desconfortável silêncio. — De qualquer
modo, a vida em Galea tinha mudado para sempre. O que um dia foi um centro
de comércio agora é pouco mais do que um vasto acampamento de exército de
onde contínuas campanhas contra algumas das áreas livres do Mundo Novo são
lançadas. As fazendas no campo, tocadas com trabalho forçado, não produzem
como um dia produziram. Plantaçõ es falham ou são pobres. As necessidades das
vastas forças armadas em Galea são enormes. A comida sempre é escassa mas os
suprimentos que regularmente são enviados do Mundo Antigo mantém os
soldados alimentados bem o bastante para continuarem.
— Trabalhei dia e noite como escrava das necessidades dos
comandantes da Ordem Imperial. Nunca mais tive qualquer visão depois daquela
sobre a Rainha C yrilla. Pareceu estranho para mim estar sem as minhas visões.
Eu as tive durante toda minha vida, mas após aquela vi são terrível sobre a
Rainha C yrilla a cerca de dois anos, nenhuma veio. O meu Dom como uma
Vidente parece ter desaparecido. Minha visão ficou escura.
Pelo olhar de Nicci, Richard soube que ela suspeitava o que ele estava
pensando.
— Eventualmente, — falou Jebra. — um dia eu fui afastada do meio de
todas aquelas tropas. Foi Shota quem de alguma forma me tirou de lá. Não tenho
certeza de como isso aconteceu. Só lembro que ela estava lá comigo. Comecei a
perguntar alguma coisa mas ela falou para manter minha boca fechada e começar
a andar. Lembro de ter virado para trás uma vez para olhar e lá estava o exército
espalhado pelo vale e subindo as colinas, mas eles estavam a uma grande
distância atrás de nós. Não sei como aconteceu, realmente, que estivéssemos tã o
longe. — ela fez uma careta mergulhada em suas memórias nebulosas. — Nós
estávamos apenas caminhando. E aqui estou. Porém, eu temo que, uma vez que
minhas visões ficaram escuras, eu não possa mais servir de qualquer ajuda para
vocês.
Richard pensou que ela deveria saber a verdade, ele contou a ela. —
Provavelmente sua visão ficou escurecida porque há vários anos as Notas
estiveram nesse mundo durante algum tempo. Elas foram banidas de volta para o
Submundo, mas o dano estava feito. Acredito que a presenç a das Notas no
mundo dos vivos iniciou a desintegração da magia. Isso deve ter corrompido sua
habilidade. A sua visão dotada provavelmente está perdida, ou, mesmo se ela
retornar em parte ou durante algum tempo, eventualmente ela será destruída
completamen te.
Jebra pareceu tonta com as notícias. — Por toda minha vida eu

120
frequentemente desejei jamais ter nascido com a visão de uma Vidente. De
muitas formas isso me tornava uma proscrita. Muitas vezes chorei durante a
noite, desejando ficar livre de minhas vi sões, desejando que elas me deixassem
em paz.
— Mas agora que você diz que o meu desejo foi atendido, não acredito
que algum dia eu realmente quis isso.
— Esse é o problema com desejos. — Zedd falou quando soltou um
suspiro. — Eles tendem a ser coisas qu e...
— As Notas? — Shota interrompeu. Pelo tom de voz dela assim como
por sua testa franzida, Richard soube que ela não estava interessada em ouvir a
respeito de desejos. — Se uma coisa como essa fosse verdade, então porque não
houve qualquer outra evidên cia disso?
— Houve. — disse Richard balançando os ombros. — Criaturas de
magia, como os Dragões, não têm sido vistos nos últimos dois anos.
— Dragões? — Shota enrolou uma longa mecha de cabelo em um dedo
enquanto observava ele silenciosamente durante um momento. — Richard,
pessoas podem viver toda uma vida e nunca avistar um Dragão.
— E quanto ao fato das visões de Jebra ficarem escuras? Depois que as
Notas estiveram nesse mundo as visões dela cessaram. Como outras coisas de
magia, a habilidade única del a está desaparecendo. Tenho certeza de que não
estamos ao menos cientes da maioria delas.
— Eu estaria ciente delas.
— Não necessariamente. — Richard afastou o cabelo da testa. — O
problema é que, Cadeia de Fogo... sobre o qual eu ouvi falar primeiro de você...
é um feitiço que foi iniciado por quatro Irmãs do Escuro para fazer todos
esquecerem Kahlan. Esse feitiço está contaminado pelas Notas, então além de
Kahlan, as pessoas estão esquecendo outras coisas também, como Dragões.
Shota parecia qualquer co isa menos convencida. — Eu ainda estaria
ciente de tais coisas por causa da forma como elas fluem adiante no tempo.
— E quanto a essa outra Bruxa, Seis? Pensei que você tinha falado que
ela estava mascarando sua habilidade de enxergar o fluxo do tempo.
Shota ignorou a pergunta dele e soltou o dedo da mecha de cabelo
castanho avermelhado. Quando ela cruzou os braços, seus olhos em forma de
amêndoa permaneceram fixos nele.
— Se a sombra da Ordem obscurecer a humanidade, nada disso terá
importância, terá? E les colocarão um fim em toda a magia, assim como em toda
esperança.
Richard não respondeu. Ao invés disso ele voltou -se para as águas
paradas, para seus pensamentos.
Shota inclinou a cabeça, apontando em direção aos degraus enquanto
falava baixinho com J ebra. — Suba ali e fale com Zedd. Preciso conversar com
Richard.

121
C A P Í T U L O 1 7

Quando Shota deslizou aproximando -se de Richard ela direcionou um


olhar ameaçador para Nicci. Ele ficou imaginando porque Shota não tinha falado
também para Nicci s ubir os degraus e junto com Jebra para falar com Zedd.
Entretanto, ele concluiu que provavelmente a Bruxa sabia que Nicci não seguiria
tais ordens. Ele certamente não queria vê -las em uma disputa de força de
vontade. Já tinha o bastante com o que preocupar -se sem que aqueles que
estavam do mesmo lado brigassem entre si.
Quando Richard olhou e viu Jebra subindo os degraus ele também viu
que Ann e Nathan já tinham cruzado a sala para ficarem perto dele também.
Quando ela o alcançou, Zedd passou um braço conf ortador em volta dos ombros
de Jebra enquanto murmurava palavras de apoio, mas o olhar dele estava em
Richard. Richard ficava feliz que seu avô tomasse conta dele e mantivesse um
olho na Bruxa caso ela tivesse quaisquer ideias sobre usar um dos seus truque s.
Zedd provavelmente sabia muito melhor do que qualquer um deles do que Shota
era capaz. Ele também guardava uma profunda desconfiança com a mulher, não
compartilhando da visão de Richard de que Shota, bem no fundo, era movida
pelas mesmas convicções dele s.
Independente do quanto pudesse apreciar o propósito central dela,
Richard estava bem consciente de que Shota às vezes perseguia esse propósito
de formas que no passado causaram a ele grandes aflições. Aquilo que ela
enxergava como ajuda às vezes acabav a sendo apenas problema para ele.
Ele estava bem ciente de que em algumas ocasiões Shota também tinha
seus próprios planos... como quando ela entregara a espada para Samuel.
Richard suspeitou de que ela também estava planejando alguma coisa agora, ele
só não sabia o que ou o que estava por trás disso. Ele imaginou se isso podia ter
algo a ver com eliminar a outra Bruxa.
— Richard, — Shota falou em um tom suave, solidário. — você ouviu
sobre a natureza do terror que está descendo sobre nós. Você é o único que pode
impedir isso. Não sei porque é assim, mas sei que é.
Richard não poupou -a por causa do seu tom gentil ou sua preocupação
a respeito do inimigo em comum deles. — Você ousa expressar a sua profunda
aflição com o sofrimento e a morte trazidos pela O rdem e sua convicção de que
somente eu posso fazer algo para deter a ameaça, e ainda assim conspirou para
ocultar informações de forma que pudesse retirar a Espada da Verdade de mim?
Ela não enfrentou o desafio. — Não houve conspiração, como você
chamou. Foi uma troca justa... valor por valor. — a voz dela permaneceu serena.
— Além disso, a espada não ajudaria você nisso, Richard.
— Uma pobre desculpa para você entregá -la para aquele assassino
Samuel.
Shota arqueou uma sobrancelha. — E, da forma como as coisas
fluíram, se eu não tivesse feito isso, então aquelas Irmãs do Escuro que
roubaram as Caixas de Orden provavelmente estariam reunidas agora. Com todas
as três Caixas juntas, elas já poderiam muito bem terem aberto uma, já poderiam
muito bem terem liberado o poder de Orden, já poderiam muito bem terem
entregue todos nós ao Guardião dos Mortos. De que serviria a espada para você
se o mundo dos vivos tivesse acabado? Parece que Samuel, por qualquer que

122
tenha sido a razão, evitou um cataclismo.
— Samuel também usou a espada para raptar Rachel. No processo ele
quase matou Chase... e aparentemente ele pretendia fazê -lo.
— Use a sua cabeça, Richard. A espada serviu a todos nós ao nos
fornecer tempo, mesmo que tenha sido a um custo que nenhum de nós goste. O
que fará com o tempo que agora você tem, que de outra forma não teria? Indo
direto ao ponto, que utilidade a espada teria para você agora, contra a ameaça da
Ordem?
— Além disso, com a espada qualquer um pode ser um Seeker... um
falso Seeker, pelo menos. Um verdadeiro Seeker não precisa da espada para ser
o Seeker.
Ele sabia que ela estava certa. O que ele faria com a espada? Tentar
cortar a Ordem Imperial em combate sozinho? Exatamente como Nicci havia
explicado para Jebra como aqueles com o Dom não podi am derrotar vastos
números só porque conseguiam usar magia, o mesmo aplicava -se com a espada.
Ainda assim, Shota entregara a espada para Samuel, e agora Samuel parecia
estar agindo sob as ordens de uma Bruxa diferente, uma que aparentemente não
tinha no coração os interesses de qualquer outra pessoa a não ser os dela mesma.
Pior, que sentido fazia brigar por causa de uma arma quando tantas
pessoas estavam morrendo nas mãos da Ordem, quando aquela arma não
preservaria as suas vidas ou a sua liberdade? Richa rd sabia que a espada não era
a verdadeira arma; a mão que a direcionava era o que realmente importava.
Ele era o verdadeiro Seeker. Ele era a verdadeira arma. Samuel não
podia tirar isso.
E mesmo assim, ele não tinha ideia do que fazer para deter a amea ça,
para conter qualquer um dos perigos que fechavam o cerco ao redor deles.
Nicci não estava longe... distante o bastante para dar a Shota sua
chance para conversar com ele, mas perto o bastante para entrar no meio deles
em um instante se a conversa se t ransformasse em ameaças, ou algo que Nicci
não gostasse.
Richard olhou dentro dos olhos azuis de Nicci durante um momento
antes de virar novamente para encarar o olhar de Shota. — E exatamente o que
você espera que eu faça?
Sem estar consciente da aproxi mação dela, de repente ele percebeu que
podia sentir a respiração de Shota contra sua bochecha. Ela carregava o leve
cheiro de alfazema. Pareceu como se a fragrância tivesse removido a tensão
dele.
— O que eu espero, — Shota disse em um sussurro íntimo qu ando seu
braço deslizou em volta da cintura dele. — é que você entenda. Realmente
entenda.
Levemente alarmado com qual poderia ser a intenção dela, Richard
pensou que deveria afastar -se do abraço firme. Antes que ele conseguisse mover
um músculo, Shota levantou o queixo dele com um dedo.
Em um instante, ele estava ajoelhado na lama.
O som do constante aguaceiro rugia em volta dele, tamborilando nos
telhados e toldos, mergulhando nas poças, espirrando lama nas paredes das
construções, em carrinhos quebrad os e nas pernas da multidão que caminhava.
Soldados ao longe gritavam ordens. Cavalos magros, suas cabeças abaixadas,
suas pernas sujas de lama, pareciam miseráveis em pé de forma impassível no
meio da chuva. um grupo de soldados de um lado riam entre si e nquanto alguns
outros não muito longe estavam engajados em uma conversa trivial entediada.

123
Carroças próximas cambaleavam e saltitavam enquanto desciam lentamente uma
estrada, enquanto ao longe alguns cães latiam incessantemente a uma certa
distância de uma forma nascida do hábito.
Sob a luz fraca do céu nublado tudo parecia como uma sombra
lamacenta de um castanho acinzentado. Quando olhou para sua direita, Richard
viu que havia outros homens enfileirados, ajoelhados na lama ao lado dele. Suas
roupas escuras, encharcadas, pendiam de ombros caídos. Seus rostos estavam
pálidos, seus olhos arregalados de medo. Atrás deles espreitava a bocarra de um
buraco profundo, parecendo como algo tão escuro quanto a abertura escura para
dentro do próprio Submundo.
Com uma crescente sensação de urgência, Richard tentou mover -se,
para mudar seu ponto de apoio, para que pudesse levantar e defender -se. Foi
então que ele percebeu que seus pulsos estavam amarrados atrás das costas com
o que pareciam ser tiras de couro. Quando e le tentou livrar-se das apertadas
amarras, o couro cortou mais fundo em sua carne. Ele ignorou a dor assustadora
e usou toda sua força, mas não conseguiu soltar -se. Um antigo pavor de estar
impotente com suas mãos amarradas espalhou -se dentro dele.
Por todos os lados em volta dele erguiam -se enormes soldados, alguns
usando armaduras feitas de couro, com discos enferrujados de metal, ou cota de
malha, enquanto outros usavam nada mais protetor do que vestimentas
grosseiras de couro. Suas armas pendiam de lar gos cintos e correias com
presilhas. Nenhuma das armas era ornamentada.
Elas eram simples ferramentas do ofício deles: facas com cabos de
madeira caseiros fixados nas extremidades das lâminas; espadas com couro
enrolado em volta de cabos de madeira para se gurá-los; maças feitas com ferro
rudemente moldado no topo de cabos de madeira ou barras de ferro trançado.
Sua construção rudimentar não as tornava menos efetivas em suas tarefas. No
mínimo, a falta de adornos servia para enfatizar o seu único propósito e assim as
fazia parecerem ainda mais sinistras.
O cabelo gorduroso daqueles que não raspavam suas cabeças estava
embaraçado pela chuva constante. Alguns soldados tinham múltiplos anéis ou
pedaços de metal afiados em suas orelhas e narizes. A sujeira cobri ndo os rostos
deles parecia impenetrável pela chuva. Muitos homens tinham uma tatuagem
escura em seus rostos. Algumas das tatuagens eram quase como máscaras,
enquanto outras espalhavam -se sobre a bochecha, nariz e testa em dramáticos
desenhos serpenteantes . As tatuagens faziam os homens parecerem ainda menos
humanos, ainda mais selvagens. Os olhos dos soldados dardejavam de um lado
para outro, raramente concentrando -se em uma coisa, transmitindo aos homens a
aparência de animais inquietos.
Richard teve que piscar para tirar a água dos olhos para enxergar. Ele
balançou a cabeça, afastando mechas de seu cabelo molhado do rosto. Foi então
que ele viu homens à sua esquerda também, alguns chorando sem esperança
enquanto soldados seguravam aqueles que não ficaria m de joelhos, ou que não
poderiam, na lama escorregadia. A sensação de pânico era palpável. As ondas
daquele pânico espalharam -se em Richard, subindo através dele, ameaçando
afogá-lo.
Isso não era real, ele sabia... mas, de alguma forma, era. A chuva
estava fria. Suas roupas estavam ensopadas. Um calafrio ocasional percorria ele.
O lugar fedia mais do que qualquer coisa que ele conseguia lembrar, uma
combinação de fumaça cáustica, suor, excremento, e carne apodrecendo. O choro
daqueles aos redor dele eram bastante reais. Ele não achava que teria sido capaz

124
de imaginar gemidos tão desprovidos de esperança e ao mesmo tempo tão
desesperadamente assustados. Muitos dos homens tremiam incontrolavelmente, e
não era por causa da chuva fria. Richard percebeu, enquan to olhava para eles,
que era um deles, do mesmo jeito que eles, apenas um dos muitos ajoelhados na
lama, um de muitos com suas mãos amarradas atrás das costas.
Era tão impossível que era desorientador; de alguma forma ele estava
ali. De algum jeito Shota o tinha enviado até esse lugar. Não conseguia conceber
como uma coisa dessa era possível; ele devia estar imaginando.
Uma pedra escondida embaixo da lama enterrou dolorosamente no
joelho esquerdo dele. Um detalhe imprevisível, trivial como esse, parecia q ue
deveria ser real. Como ele poderia imaginar algo tão inesperado? Ele tentou
trocar de lado o peso do corpo, mas era difícil equilibrar -se. Conseguiu
empurrar seu joelho um pouco para o lado, para fora da pedra afiada. Não
poderia estar imaginando tal co isa.
Ele começou a pensar se isso era tudo mais que na verdade ele estivera
imaginando. Pensou se tudo isso havia sido apenas um sonho, uma distração, um
truque da sua mente. Começou a imaginar se poderia ser possível que o feitiço
Cadeia de Fogo tinha de algum modo feito ele esquecer o que realmente estava
acontecendo, ou se a realidade era tão apavorante que ele tinha de algum jeito
bloqueado isso de sua mente, recolhendo -se para um mundo imaginário, e agora
de repente, sob a tensão da situação, havia re tornado ao que era real. Ele
começou a perceber que, mesmo se não soubesse exatamente o que estava
acontecendo ou como ele poderia estar tão confuso, o que realmente importava
era que isso na verdade era real e de algum jeito somente agora ele estava
acordando. De fato, era assim que parecia para ele, como se ele tivesse acabado
de acordar, desorientado e confuso.
Se antes ele estivera confuso, agora estava tentando lembrar
desesperadamente, entender como veio parar onde encontrava -se, como tinha
acabado de joelhos na lama no meio de soldados da Ordem Imperial. Parecia
como se ele quase pudesse lembrar como havia chegado ali, quase lembrar de
tudo, mas isso permanecia fora de alcance, como uma palavra esquecida que
estava perdida em algum lugar no poço escu ro da mente.
Richard olhou para a fila à sua esquerda e viu um soldado agarrar o
cabelo de um homem e levantar sua cabeça. o homem gritou... curtos sons de
terror engasgado gerados por um peito pulsante. Richard facilmente podia ver
que apesar dos esforço s frenéticos do homem, ele não tinha chance de escapar.
Os sons dos pedidos de piedade cheios de lágrimas causaram arrepios nos braços
de Richard. O soldado atrás do homem ajoelhado colocou uma faca longa e fina
na frente da garganta do homem.
Novamente, Richard tentou dizer a si mesmo que estava certo antes,
que isso não era real, que de algum jeito ele estava apenas imaginando isso. Mas
ele podia ver a irregularidade na lâmina da faca amolada grosseiramente, ver o
homem engolindo em seco em meio ao pânic o ofegante, ver o sorriso sinistro no
rosto arrogante do soldado.
Quando a faca cortou fundo na garganta do homem, Richard encolheu -
se em choque diante da visão, enquanto o homem encolheu -se com o choque da
dor.
O homem amoleceu, mas o soldado que o segu rava pelo cabelo não
teve dificuldade em manter sua vítima. Os músculos molhados de chuva do
poderoso braço dele tufaram quando ele exerceu mais esforço para cortar a
garganta do homem uma segunda vez, mais fundo, e quase o caminho todo.

125
Sangue, chocanteme nte vermelho na luz cinzenta, jorrou a cada batida do
coração ainda pulsante do homem. Richard encolheu -se quando o cheiro fresco
daquilo fez as suas narinas arderem.
Ele tentou dizer a si mesmo que isso não era real, ainda assim, de
alguma forma, enquant o ele observava o homem contorcendo fracamente,
observava enquanto uma mancha de sangue crescia descendo pela frente da
camisa dele, empapava a sua calça na virilha, tudo isso era muito real. Com um
esforço final, com o pescoço aberto, o homem chutou com a perna direita para o
lado. O soldado, ainda segurando o homem pelo cabelo, atirou ele para dentro
do buraco. Richard ouviu o peso morto bater pesadamente no fundo.
O coração de Richard batia contra a parede do seu peito com tanta
força que ele achou que poderia explodir. Sentiu náusea. Achou que poderia
vomitar. Lutou freneticamente para libertar suas mão, mas o couro apenas
cortou mais fundo em sua carne. A chuva estava lançando suor dentro de seus
olhos. As tiras de couro estiveram no lugar tanto tempo que somente mover -se
queimava dolorosamente nos ferimentos o bastante para gerar lágrimas frescas
nos olhos dele. Porém, isso não o fez parar. Ele grunhiu com esforço, colocando
todos os seus músculos na luta para quebrar suas amarras. Ele podia sentir o
couro raspando contra os tendões expostos em seus pulsos.
E então Richard ouviu seu nome ser chamado. Instantaneamente ele
reconheceu a voz.
Era Kahlan.
Toda a vida dele parou quando ele olhou adiante e dentro dos olhos
verdes deslumbrantes dela. Cada em oção que ele já sentira espalhou -se através
dele em um instante, deixando para trás uma espécie de fraca e terrível agonia
que ardia na medula de seus ossos.
Estivera separado dela por tanto tempo…
Avistá-la, ver cada detalhe do seu rosto, ver o pequeno arco na linha
em sua testa sobre o qual havia esquecido, ver a forma exata como a costa dela
curvava quando ficava virada levemente, ver o jeito como o cabelo dela
separava-se naturalmente sob o peso da chuva, ver seus olhos, os lindos olhos
verdes dela, indicou a ele que não poderia estar imaginando isso.
Kahlan esticou um braço. — Richard!
O som da voz dela o paralisou. Fazia tanto tempo desde que tinha
ouvido a singular voz dela, uma voz que desde o dia em que a conhecera havia
conquistado ele com sua inteligência, sua clareza, sua graça, seu charme
encantador. Mas agora nada daquilo havia na voz dela. Todas aquelas qualidades
tinham sido removidas até que tudo que restara fosse angústia além do
suportável.
Combinando com a agonia na voz dela, os traço s primorosos de Kahlan
distorceram-se com o horror ao vê-lo ajoelhado na lama. Seus olhos estavam
com marcas vermelhas. Lágrimas desciam por suas bochechas junto com a
chuva.
Richard ficou congelado de terror, congelado pela visão dela, bem ali,
tão perto e ainda assim tão longe. Congelado por descobrir que ela estava ali, no
meio de milhares e milhares de tropas inimigas.
— Richard!
O braço dela esticou -se desesperadamente outra vez. Ela estava
tentando alcançá -lo, mas não conseguia.
Ela estava sendo contida por um grande soldado com a cabeça raspada.
Richard notou pela primeira vez que os botões da camisa de Kahlan

126
tinham sumido, arrancados, então a camisa pendia aberta, expondo -a aos olhares
dos soldados.
Mas ela não importava -se. Só queria que Rich ard a enxergasse, como
se isso fosse tudo que importava na vida, como se essa simples visão dele fosse
toda a vida dela. Como se ela precisasse apenas disso para viver.
Um doloroso nó desceu na garganta dele. Lágrimas brotaram. Richard
sussurrou o nome dela, chocado demais com a visão dela para chorar mais.
Frenética, Kahlan esticou -se até ele outra vez, lutando contra a força
da mão carnuda do soldado. O aperto firme dele deixou marcas brancas dos seus
dedos na carne do braço dela.
— Richard! Richard, eu te amo! Queridos espíritos, eu te amo!
Enquanto ela tentava libertar -se, atirar-se em direção a ele, o soldado
passou um braço poderoso em volta da cintura dela, por dentro da camisa aberta,
segurando-a firme. O homem moveu o braço e, com o indicador e o dedão,
segurou o mamilo de Kahlan, torcendo -o quando levantou os olhos, sorrindo
propositalmente, certificando -se e que Richard viu o que ele estava fazendo.
Um leve grito surpreso de dor escapou da garganta de Kahlan, mas
exceto isso, ela ignorou o sol dado, ao invés disso gritando o nome de Richard
em grande terror.
Energizado pela fúria, Richard tentou ferozmente levantar. Tinha que
chegar até ela. O soldado riu enquanto observava Richard lutar. Não havia jeito
de aparecer outra chance. Era essa; essa seria sua única chance.
Quando ele começou a levantar forçosamente, um guarda enfiou a bota
no estômago de Richard com tanta força que isso fez ele curvar -se. Outro
soldado chutou -o no lado da cabeça com vontade, quase fazendo ele perder os
sentidos. o mundo escureceu. Os sons transformaram -se em um zumbido.
Richard lutou para permanecer consciente. Não queria perder Kahlan de vista.
Não havia visão em todo o mundo que significasse mais para ele do que a visão
dela.
Ele tinha que encontrar um jeito de ti rá-la do meio desse pesadelo.
Enquanto ele lutava para recuperar o fôlego, a grande mão de um
soldado agarrou seu cabelo e levantou -o. Richard arfou, tentando respirar no
meio da incrível dor dos golpes. Ele sentiu sangue quente escorrendo pelo lado
do rosto, lavando lama fria do pescoço.
Quando sua cabeça foi puxada para cima, a visão de Richard caiu sobre
Kahlan novamente, sobre o longo cabelo dela agora embaraçado e encharcado
por causa da chuva. Seus olhos verdes eram tão belos que ele pensou que o
coração podia explodir com a dor de vê -la outra vez mas não ser capaz de
segurá-la em seus braços.
Ele queria tanto abraçá -la, confortá-la, protegê-la.
Ao invés disso, outro homem a estava segurando nos braços. Ela tentou
escapar. Ele segurou o seio dela, apertando até que Richard pôde ver que isso a
estava machucando. Ela bateu nele com os punhos, mas ele a segurava com
firmeza. Ele riu das tentativas fúteis dela quando seu olhar desviou novamente
para Richard.
Kahlan lutava com ele, mas ao mesmo tempo ig norava o que ele estava
fazendo, ignorava a distração. O que ele estava fazendo não era o que mais
importava para ela. Richard era o que mais importava. Os braços dela esticaram -
se freneticamente em direção a ele.
— Richard, eu te amo! Senti tanto a sua f alta! — ela foi dominada por
soluços de grande sofrimento. — Queridos espíritos, ajudem ele! Por favor!

127
Alguém ajude ele!
À esquerda dele, o homem seguinte na fila tentou com toda sua força
afastar-se enquanto sua garganta era cortada. Richard conseguiu o uvir o arfar
frenético gorgolejando através do corte que abriu sua traqueia.
Richard sentiu -se fraco com o pânico. Não sabia o que fazer.
Magia. Ele deveria invocar o seu Dom. Mas como faria isso? Ele não
sabia como invocar magia. E ainda assim, no passad o ele havia sido capaz de
fazê-lo.
Fúria.
No passado seu Dom sempre funcionara através de sua fúria.
Ver o soldado segurando Kahlan, machucando -a, fornecia a ele fúria
mais do que suficiente. Ver outro daqueles monstros aproximar -se dela,
devorando-a com os olhos, tocando -a de forma íntima, apenas atiçou as chamas
de sua fúria.
O mundo dele ficou vermelho de fúria.
Com cada fibra do seu ser Richard tentou ativar o seu Dom com a
essência dessa fúria. Ele flexionou a mandíbula, cerrando os dentes com a
monumental concentração de sua ira. Ele tremeu de fúria, esperando uma
explosão de poder correspondente a essa fúria. Ele viu o que precisava fazer.
Isso parecia tão perto. Ele imaginou aquilo derrubando os soldados. Prendeu o
fôlego diante da tempestade qu e estava prestes a ser liberada.
Pareceu como cair inesperadamente, sem ter qualquer chão abaixo dele
para deter a sua queda.
A chuva continuou a cair do céu cinzento como que para frustrar seus
esforços. Nenhuma magia deslizou através do espaço vazio en tre Richard e o
homem que segurava Kahlan. Nenhum raio conjurado irrompeu. Nenhuma justiça
estava ao alcance.
Em toda sua vida, se não houvesse qualquer chance ali, esse era o
momento em que isso teria vindo... isso ele sabia sem qualquer dúvida. Não
poderia haver necessidade mais urgente, qualquer desejo maior, ira maior pela
mulher que ele amava. Mas nenhum poder estava ali, nenhuma redenção ao
alcance.
Ele podia muito bem ter nascido sem o Dom.
Não tinha o Dom. Ele desaparecera.
Para Richard pareceu como se o mundo estivesse fechando -se ao redor
dele. Ele queria que tudo fosse mais devagar, para dar a ele tempo de encontrar
uma solução, mas tudo girava em um terrível turbilhão. Tudo estava
acontecendo rápido demais. Era tão injusto ter que morrer dess e jeito. Ele não
teve uma chance para viver, para ter uma vida com Kahlan. Ele a amava tanto e
não fora realmente capaz de estar com ela, só os dois, vivendo em paz. El e
queria sorrir e rir com ela, abraçá -la, atravessar a vida com ela. Apenas sentar
com ela em frente a uma fogueira em uma fria noite com neve, segurando -a
perto dele, segura e aquecida, enquanto conversavam sobre as coisa que
importavam para eles, sobre o seu futuro. Eles deviam ter um futuro.
Isso era tão injusto. Ele queira viver a sua vi da. Ao invés disso, ela
deveria acabar nesse lugar miserável sem qualquer boa razão. Por nada. Ele não
era capaz de ao menos fazer a sua morte significar algo, de morrer lutando pela
vida. Ao invés disso, morreria aqui na chuva e na lama, cercado por homen s que
odiavam tudo que era bom na vida, enquanto Kahlan era forçada a observar isso
acontecer.
Não queria que ela visse isso. Sabia que ela jamais seria capaz de tirar

128
essa visão de sua mente. Não queria deixá -la com essa última lembrança
horrível dele debatendo-se nos espasmos sangrentos da morte.
Ele fez outra tentativa de levantar, como fizeram a maioria dos outros
homens. O soldado logo atrás pisou em cima das panturrilhas dele, derrubando -o
com todo o seu peso. A dor pareceu distante. Richard estava atordoado.
Ele não queria nada mais no mundo tanto quanto levar Kahlan para
longe dos homens que a estavam segurando, apalpando -a. Kahlan gritou de raiva
para eles, arranhou eles, golpeou com os punhos neles, e ao mesmo tempo gritou
em desamparado terror por Richard.
Ele contorceu com toda sua força contra as tiras de couro que prendiam
seus pulsos mas, ao invés de partirem -se, elas apenas cortaram mais fundo. Ele
sentiu-se como um animal capturado em uma armadilha. Suas mãos ficaram
dormentes. Ele não co nseguia mais sentir o sangue quente pingando das pontas
dos seus dedos.
Não queria morrer. O que ele faria? Tinha que fazer isso parar. De
alguma forma, tinha que fazer isso. Mas ele não sabia como. No passado, a raiva
era o meio para alcançar o seu Dom, para invocar seu poder. Agora, nada mais
havia além de uma desamparada confusão.
— Kahlan!
Parecia que ele não conseguia evitar ser engolido pelo terror disso,
pelo cego pânico disso. Não conseguia parar o ritmo acelerado disso. Não
conseguia recuperar o seu senso de controle sobre si mesmo. Estava sendo
arrastado para longe em um rio de eventos que não conseguia controlar ou deter.
Isso tudo era tão sem sentido. Isso tudo era tão devastadoramente absurdo, tão
monumentalmente brutal.
— Kahlan!
— Richard! — ela gritou quando esticou -se mais uma vez. — Richard,
amo você mais do que a vida! Amo tanto você. Você é tudo para mim. Sempre
foi.
Gemidos entrecortaram a respiração dela, transformando -se em
soluços.
— Richard… preciso tanto de você.
O coração dele estava partido. Sentiu que estava falhando com ela.
Um soldado segurou Richard pelo cabelo.
— Não! — Kahlan gritou, esticando uma das mãos. — Não! Por favor,
não! Alguém por favor ajude ele! Queridos espíritos, alguém, por favor!
O soldado inclinou -se, um sorriso cruel contorcendo o rosto sujo
manchado dele.
— Não fique preocupado, eu cuidarei dela… pessoalmente. — ele riu
no ouvido de Richard.
— Por favor, — Richard escutou a si mesmo dizer. — por favor… não.
— Queridos espíritos, por favor, algué m ajude ele! — Kahlan grito
para aqueles que estavam ao redor dela.
Ela nada podia fazer e sabia disso. Não havia chance para ele e ela
sabia disso. Ela estava reduzida a implorar por um milagre. Isso, em si,
alimentou as chamas do caloroso pavor ardendo fora de controle dentro dele.
Esse era o fim de tudo.
— Ela é uma gracinha. — o soldado disse enquanto olhava para
Kahlan, provando aquilo que Richard sabia... que não havia milagre ao alcance.
— Por favor… deixe ela em paz.
O soldado atrás dele riu. Is so era o que ele queria ouvir.

129
Richard estava engasgando com o soluço brotando em sua garganta.
Ele não conseguia respirar. Lágrimas desciam pelo rosto dele junto com a chuva.
Ela era a única mulher que ele já havia amado, a única pessoa que significava
tudo para ele, significava mais do que a vida para ele.
Sem Kahlan não existia vida, havia apenas existência. Ela era o mundo
dele.
Sem Kahlan a vida era vazia.
Sem ele, ele sabia, a vida de Kahlan seria vazia do mesmo jeito.
Ele viu outras mulheres não muito longe de Kahlan, todas sendo
seguradas por soldados, todas gritando por seus companheiros. Ele as viu
dizendo coisas muito parecidas com as coisas que Kahlan estava dizendo,
oferecendo as mesmas palavras de amor, os mesmos gritos para que alguém os
salvassem. Os soldados zombavam dos homens ajoelhados na lama com
promessas vis.
Vendo a mulher nas mãos dos soldados, um dos homens ajoelhados à
direita de Richard lutou firme o bastante para receber uma rápida facada no
estômago. Isso não o matou, mas f oi o suficiente para impedir que ele lutasse
enquanto era obrigado a esperar sua vez. Enquanto ele ficava ajoelhado imóvel,
seus olhos arregalados observavam suas próprias entranhas rosadas brilhantes
projetarem -se lentamente pelo corte. Parecia que os gri tos da esposa do homem
poderiam ter afastado as nuvens acima.
O homem imediatamente ao lado esquerdo de Richard soltou seu último
suspiro, convulsionando em movimentos descoordenados enquanto o soldado
que segurava a cabeça do homem erguida movia a larga para frente e para trás
na garganta exposta da vítima. Quando terminou, o soldado grunhiu com o
esforço de lançar o peso morto dentro do buraco. Richard escutou o corpo bater
sobre outros corpos no fundo da cova aberta. Ele podia ouvir sons gorgolejantes
vindo do buraco escuro.
— Sua vez. — falou o soldado que segurava Richard quando movia -se
atrás dele para assumir o papel de executor. O homem inclinou aproximando -se.
Seu hálito fedia a cerveja e linguiça. — Preciso acabar com isso. Tenho um
encontro com a sua adorável esposa assim que terminar com você. Kahlan, não é
mesmo? Sim, isso mesmo... uma das outras mulheres confessou que o nome da
sua esposa era Kahlan. Não fique preocupado, colega, não darei muita chance a
Kahlan para sofrer com o luto por sua c ausa. Dominarei toda a atenção dela...
isso eu posso prometer a você. Depois que eu ficar satisfeito, outros terão a sua
rodada com ela.
Richard queria quebrar o pescoço do homem.
— Pense nisso enquanto a sua alma degenerada desliza para dentro da
agonia eterna do Submundo, enquanto você cai dentro das frias garras
impiedosas do Guardião. É para onde todos do seu tipo vão... para a justiça do
sofrimento eterno... e é assim que deveria ser, em vista como todos nós
sacrificamos tudo para virmos até aqui, at é essa terra maldita para que possamos
trazer a Luz divina e a lei da Ordem a todos os infiéis egoístas. O seu modo de
vida pecaminoso, a sua mera existência, ofende o Criador... e isso ofende
aqueles de nós que fazemos reverência a Ele.
O homem estava do minado por uma fúria de justiça.
— Você tem alguma ideia do que eu tenho sacrificado pela salvação
das almas do seu povo? Minha família ficou faminta, ficou sem... sacrificou -
se... para que pudessem enviar tudo para nossas corajosas tropas. Meu irmão e
eu nos entregamos na luta por nossa causa e por tudo em que acreditamos. Nós

130
dois viemos ao norte para cumprirmos o nosso dever com o nosso Imperador e
com o nosso Criador. Nós dois devotamos nossas vidas para a causa de
trazermos a virtude ao seu povo. Luta mos em incontáveis batalhas sangrentas
contra aqueles que resistem a nossos esforços em nome daquilo que é correto e
justo. Vimos incontáveis de nossos irmãos morrerem naquelas batalhas.
— Eu vi a glória de nosso exército da Ordem prosseguir na batalha
pela salvação enquanto o seu povo enviava os malignos dotados contra nós.
Aqueles dotados conjuraram o mal feito com magia. Meu irmão foi cegado por
alguma daquelas magias. Ele gritou em agonia enquanto aquela magia sangrava
os olhos dele e queimava seus pul mões. As infecções que rapidamente caíram
sobre ele fizeram a cabeça dele inchar, seus olhos cegos tufarem. Ele só
conseguia gemer em agonia. Nós o deixamos para morrer sozinho, para que
pudéssemos seguir adiante em nosso nobre esforço, como era correto.
— A sua esposa e aquelas como ela agora sacrificarão a si mesmas
para nos fornecerem um pequeno prazer nessa vida miserável enquanto
trabalhamos nesse nobre esforço. É o pequeno pagamento dela em uma dívida de
gratidão, por aquilo que entregamos em prol de nossos colegas homens, para
trazermos o mundo da Ordem até aqueles que de outra forma se afastariam do
seu dever com a fé.
— Algum dia a sua esposa pecadora irá juntar -se a você na escuridão
do Submundo, mas não antes de terminarmos com ela. Não espere q ue ela vá se
juntar a você em breve, uma vez que eu espero que ela trabalhe como prostituta
para os bravos soldados da Ordem durante bastante tempo, já que os homens
adoram colocar as mãos em uma bela mulher como ela para afastarem suas
mentes da labuta em sua honrada tarefa. Espero que ela seja mantida bem e
ocupada, uma vez que há bastante trabalho honrado a ser feito. — ele balançou a
faca diante dos olhos de Richard. — Como esse trabalho aqui. Com o alívio que
nós homens recebermos dela, teremos força p ara redobrarmos nossa
determinação em eliminar todos aqueles que não submeterem -se aos costumes da
Ordem.
Isso era loucura. Richard mal podia acreditar que havia homens tão
irracionais assim, tão devotados a crenças insanas, mas havia. Eles pareciam
surgir por toda parte, multiplicando -se como vermes, devotados a destruírem
qualquer coisa alegre e benéfica para a vida.
Ele engoliu suas palavras, sua raiva. Nada enfurecia homens como esse
tanto quanto a razão, a verdade, a vida, ou a bondade. Tais qualidad es apenas
incitavam homens assim a destruírem. Porque sabia que qualquer coisa que
falasse apenas provocaria o homem e tornaria a coisa pior para Kahlan, ele ficou
quieto. Isso era tudo que podia fazer por ela agora.
Vendo que não tinha incentivado Richar d a fazer algum apelo, o
soldado riu novamente e jogou um beijo em direção a Kahlan. — Estarei com
você em breve, amor... logo que eu a tiver divorciado do seu marido sem valor
aqui.
Ele era um monstro, que em breve seguiria até a mulher que Richard
amava, em direção a uma mulher indefesa, apavorada, que estava apenas
começando a sofrer nas mãos desses brutos.
Monstro.
Poderia ser isso que Shota estava querendo dizer?
A Bruxa uma vez dissera que se Richard e Kahlan algum dia casassem
e deitassem juntos, ela conceberia um monstro. Eles sempre assumiram que
Shota queria dizer que se eles concebessem uma criança, então sua criança seria

131
um monstro porque essa criança teria o Dom de Richard e o poder de Confessora
de Kahlan.
Mas talvez esse não fosse o real significado por trás da previsão de
Shota.
Afinal de contas, nada sobre o que Shota os alertara acabou
acontecendo da forma como ela visualizara, mesmo da forma como ela mesma
acreditara. Os alertas e previsões de Shota sempre pareceram acontecer de um
jeito completamente imprevisto, de um jeito que eles jamais tinham ao menos
imaginado, mas ao mesmo tempo as previsões de Shota sempre acabaram sendo
verdadeiras.
Era isso o que a previsão de Shota realmente havia significado? Esse
era o complexo conjunto de eventos finalmente chegando ao clímax da profecia
dela? Shota havia alertado enfaticamente para que eles não casassem ou Kahlan
carregaria uma criança monstro. Eles casaram. Essa poderia ser a forma como a
profecia de Shota aconteceria? Poderia isso o t empo todo ter sido o real
significado por trás do aviso dela? Será que esse monstros dariam origem a um
monstro?
Richard estava engasgando com suas lágrimas. A morte dele não seria
o pior. Kahlan sofreria a pior parte disso, sofreria uma morte em vida nas mãos
daqueles brutos, seria mãe do monstro deles.
— Richard, sabe que eu te amo! Isso é tudo que importa, Richard... que
eu te amo!
— Kahlan, eu também te amo!
Ele não conseguia pensar em qualquer outra coisa a dizer... qualquer
coisa mais significativ a. Ele imaginou que não havia outra coisa mais
significativa, nada mais importante para ele. Aquelas simples palavras
transmitiam uma vida de significado, todo um universo de significado.
— Eu sei, meu amor, — ela disse com um breve cintilar de um sorriso
que brilhou por um instante em seus belos olhos. — eu sei.
Richard viu uma lâmina girar na frente do seu rosto. Instintivamente
ele afastou-se. O homem bloqueando as pernas dele estava pronto e enfiou um
joelho entre as omoplatas de Richard, impedindo qu e ele caísse para trás, então
levantou a cabeça dele puxando pelos cabelos.
Kahlan, vendo o que estava acontecendo, gritou novamente, debatendo -
se contra os homens que a seguravam. — Não preste atenção neles, Richard!
Apenas olhe para mim! Richard! Olhe p ara mim! Pense em mim! Pense no
quanto eu o amo!
Richard sabia o que ela estava fazendo.
— Lembra do dia em que nos casamos? Eu lembro dele agora, Richard.
Eu lembro dele sempre.
Ela estava tentando dar a ele o último presente de um pensamento
agradável, prazeroso.
— Lembro do dia em que você pediu para que eu fosse a sua esposa.
Eu te amo, Richard. Lembra do nosso casamento? Lembra da Casa dos
Espíritos?
Ela também estava tentando distraí -lo, para não deixar ele pensar no
que estava acontecendo. Ao in vés disso, apenas fez ele lembrar do aviso de
Shota de que se ele casasse com ela, ela conceberia um monstro.
— Tocante. — falou o soldado atrás dele. — São as apaixonadas como
ela que são boas na cama, você não acha?
Richard queria arrancar a cabeça do h omem, mas nada falou. O homem

132
queria que ele falasse alguma coisa, implorasse, protestasse, chorasse em
agonia. Como um último ato de desafio contra esse tipo de homem, Richard
negou a ele essa satisfação.
Kahlan gritou seu amor, e que ela queria que ele lembrasse da primeira
vez que o beijara.
A despeito de tudo, isso fez ele sorrir.
No momento, ela não importava -se com o que aconteceria ela, só
queria distraí-lo, aliviar a dor e o terror dos últimos momentos de vida dele.
Os últimos momentos dele.
Tudo estava terminando. Estava acabado. Não existia mais.
A vida estava acabada. O tempo dele com a mulher que ele amava tinha
acabado. Não haveria mais.
O mundo estava acabando.
— Richard! Richard! Eu te amo tanto! Olhe para mim, Richard! Eu te
amo! Olhe para mim! Isso mesmo, olhe para mim! Você é o único que eu amei!
Só você, Richard! Só você! Isso é tudo que importa,... que eu te amo. Você me
ama? Diga-me, por favor, Richard. Diga -me. Diga agora.
Ele sentiu a lâmina tocar na fina camada de carne cobrin do a sua
garganta.
— Eu te amo, Kahlan. Só você. Sempre.
— Tocante. — o soldado rosnou no ouvido dele enquanto ele segurava
a lâmina contra a garganta de Richard. — Enquanto você estiver lá embaixo no
buraco, sangrando, vou colocar minhas mãos em todo o corpo dela. Vou estuprar
a sua linda esposinha. Até lá você estará morto, mas antes de morrer, quero que
você saiba exatamente o que farei com ela, e que não há nada que você possa
fazer para impedir, porque é a vontade do Criador sendo feita.
— Você devi a ter aceito os costumes da Ordem faz muito tempo, mas
ao invés disso lutou para manter os seus costumes pecaminosos, os seus
costumes egoístas, e afastou -se de tudo que é certo e justo. Pelos seus crimes
contra os seus colegas homens você não apenas morre rá, mas sofrerá por toda a
eternidade nas mãos do Guardião do Submundo. Vai sofrer muito.
— Enquanto você for para a sombria vida seguinte, que que vá sabendo
que a sua preciosa Kahlan vive, e que será apenas como uma prostituta para nós.
Se ela viver tem po suficiente, e tiver um garoto, ele crescerá para ser um grande
soldado da Ordem, e para odiar pessoas do seu tipo. Providenciaremos para que
ele venha até aqui algum dia para cuspir sobre o seu túmulo, para cuspir em
você e naqueles como você que o teri am criado nos seus costumes malignos,
criado ele para que não servisse aos seus colegas homens e ao Criador.
— Pense nisso enquanto o seu espírito estiver sendo sugado para
dentro da escuridão. Enquanto o seu corpo fica frio, estarei com o belo e quente
corpo da sua amada, aproveitando ela muito bem. Quero ter certeza de que você
saiba disso antes de morrer.
Richard já estava morto por dentro. Estava acabado, a vida e mundo
estavam acabados. Tanta coisa perdida. Tudo perdido. Por nada a não ser um
ódio contra tudo que tem valor, contra a própria vida, por aqueles que ao invés
disso escolheram abraçar o vazio da morte.
— Amo você agora e sempre, com todo o meu coração. — disse ele
com uma voz rouca. — Você tornou a minha vida uma alegria.
Ele viu Kahlan assentindo para mostrar que ouvira, e os lábios dela
declarando seu amor.
Ela era tão bonita.

133
Mais do que tudo, ele odiava ver o pesar inconsolável dela.
Eles olharam nos olhos um do outro, congelados naquele instante que
seria o último instante em que o mundo existia.
Richard arfou com um grito de terror, angústia, e repentina dor quando
ele sentiu a lâmina morder a carne, sentiu ela cortar mortalmente sua garganta.
Esse era o fim de tudo.

134
C A P Í T U L O 1 8

— Pare com isso. — rosnou Nicci.


Richard piscou. Sua mente mergulhada em confusão. Nicci estava com
o pulso de Shota em um aperto de ferro, afastando a mão dela. Mas Shota ainda
estava com um braço em volta da cintura dele.
— Não sei o que você está fazendo, — disse Nicci em um tom tão
ameaçador que ele pensou que certamente Shota se encolheria de medo. — mas
vai parar com isso.
Shota não encolheu-se, nem pareceu ao menos um pouco temerosa. —
Estou fazendo o que precisa ser feito.
Nicci não estava aceitando nada daquilo. — Afaste-se dele, ou matarei
você aqui mesmo.
Cara, com o Agiel na mão e parecendo ainda mais descontente do que
Nicci, estava em pé bem perto do outro lado da Bruxa, bloqueando -a. Antes que
Shota pudesse devolver a ameaça na mesma altura, Richard caiu pesadamente no
banco de mármore que cercava a fonte.
Ele estava ofegante, arfando, e em um estado de grande terror. Em sua
mente ele ainda podia ver Kahlan nas mãos daqueles brutos, ainda sentia a
lâmina afiada cortando profundamente. Seus dedos deslizaram levemente pela
garganta, mas não havia ferimento, nem sangue. Desesperadamente ele não
queria abandonar a visão de Kahlan, mas ao mesmo tempo era uma visão tão
apavorante do pavor dela que ele nada mais queria do que varrer aquilo para
sempre de sua mente.
Ele não tinha certeza de onde estava. Não tinha certeza do que estava
acontecendo. Não estava claro para ele o que era real e o que não era.
Ele imaginou se estava à beira da morte e esse era algum tipo de
confuso sonho da morte antes que todo o sangue fosse drenado de le, alguma
ilusão final para torturar a mente dele enquanto ele deixava a existência. Ele
tateou, tentando sentir outros corpos ali junto com ele no buraco.
Enquanto Cara permanecia de forma protetora na frente dele,
protegendo-o da Bruxa, Nicci abandonou imediatamente sua discussão com
Shota para sentar ao lado dele. Ela passou um braço em volta dos ombros dele.
— Richard, você está bem? — ela inclinou, olhando dentro dos olho
dele. — Parece que você viu um morto caminhando.
Ignorando Cara, Shota cruzou os braços enquanto permanecia acima
deles, observando Richard.
Na mente dele, o som dos gritos de Kahlan ainda ecoavam, a visão dela
gritando o nome dele ainda partia seu coração. Fazia tanto tempo desde que a
tinha visto. Vê-la novamente de forma tão re pentina, e desse jeito, foi
devastador.
— Richard, está tudo bem, — falou Nicci. — você está bem aqui,
comigo, com todos nós.
Richard pressionou uma das mãos contra a testa. — Quanto tempo
estive fora?
A testa de Nicci franziu. — Fora?
— Acho que Shota fez alguma coisa. Quanto tempo ela esteve…
fazendo seja lá o que tenha feito?

135
— Não deixei ela fazer qualquer coisa... impedi ela antes que pudesse
começar. No instante em que tocou embaixo do seu queixo eu fiz ela parar. Ela
não teve tempo para fazer qu alquer coisa.
Richard ainda podia ver Kahlan em sua mente, ainda podia vê -la
gritando por ele enquanto as mãos sujas dos soldados da Ordem Imperial a
seguravam.
Ele passou os dedos trêmulos pelos cabelos. — Ela teve tempo
suficiente.
— Sinto muito, — sussurrou Nicci. — pensei que havia impedido ela
rápido o bastante.
Ele não achava que conseguiria continuar. Não achava que conseguiria
reunir forças para respirar mais uma vez. Não achava que algum dia seria capaz
de fazer qualquer coisa a não ser entrega r-se ao desespero.
Ele não conseguia conter sua angústia, sua dor, suas lágrimas.
Nicci encostou o rosto dele contra o ombro, abrigando -o sem palavras
no refúgio do abraço dela.
Tudo isso parecia tão fútil. Tudo estava acabando. Estava tudo
acabado. Ele sempre dissera que eles não tinham chance de derrotar o exército
de Jagang. A Ordem era poderosa demais. Eles venceriam a guerra. Nada havia
que Richard pudesse fazer a respeito disso, nada restava pelo que viver a não
aguardar que o horror da morte os al cançasse a todos.
Shota caminhou até o lado dele, ao lado de onde ele sentara sobre o
baixo muro de mármore, do lado oposto a Nicci, e começou um movimento para
colocar uma das mãos no ombro dele. Cara agarrou o pulso da Bruxa, detendo-a.
— Sinto muito t er que fazer aquilo, Richard, — falou Shota, ignorando
a Mord-Sith. — mas você precisava ver, entender...
— Cale a boca, — disse Nicci. — e mantenha suas mãos longe dele.
Não acha que já causou dor suficiente? Será que tudo que você faz tem que ser
prejudicial? Nunca consegue ajudá -lo sem tentar machucá -lo ou causar problema
ao mesmo tempo?
Quando Shota afastou sua mão, Nicci colocou as dela no rosto dele e
com um dedão enxugou uma lágrima da bochecha dele. — Richard…
Ele assentiu diante da terna preocup ação dela, incapaz de recuperar a
voz. Ele ainda conseguia ver Kahlan gritando por ele enquanto tentava afastar as
mãos daqueles homens. Enquanto vivesse ele seria assombrado por aquela visão.
Naquele momento ele queria mais que tudo poupá -la da dor de vê -lo executado e
dela estar nas cruéis garras da Ordem. Ele queria voltar, fazer algo, salvá -la
daquele abuso inumano. Ele não podia suportar que o mundo dela terminasse
enquanto via ele ser assassinado daquele jeito.
Mas isso não era real. Ele não poderia ter estado lá daquele jeito. Uma
coisa assim era impossível. Só podia ter imaginado.
O alívio começou a preenchê -lo.
Não era real. Não era. Kahlan não estava nas mãos da Ordem. Não
estava vendo ele ser executado. Foi apenas um truque cruel da Bruxa. Apenas
outra das ilusões dela.
Exceto que isso tinha sido real para todas aquelas pessoas em Galea
assim como para incontáveis outros lugares onde a Ordem estivera. Mesmo que
não tivesse sido real para Richard, foi bastante real para elas. Assim era com o
tinha sido.
O mundo delas acabou daquele jeito. Ele sabia exatamente o que elas
sofreram. Sabia exatamente como era.

136
Quantas incontáveis pessoas, desconhecidas, sem nome, boas,
perderam sua chance na vida exatamente daquele jeito, tudo pelas ambições de
outro mundo daquelas pessoas do Mundo Antigo?
De repente um novo pavor tomou conta dele. Ele tinha o Dom. Era um
Mago Guerreiro. Para a maioria daqueles com o Dom, isso manifestava -se em
uma área específica. Mas ser um Mago Guerreiro significava que ele tinha
elementos de todos os vários aspectos do Dom, e um aspecto da magia era a
profecia. E se aquilo que ele viu na verdade tivesse sido uma profecia? E se
aquilo fosse o que estava para acontecer? E se aquilo que ele vira fosse
realmente uma visão do futuro?
Mas ele não acreditava que o futuro era fixo. Enquanto algumas coisas,
como a morte, eram inevitáveis, isso não significava que tudo era fixo ou que
alguém não poderia trabalhar em direção a objetivos de valor na vida, não
poderia evitar desastres, não po deria alterar o curso de eventos. Se isso era uma
profecia, significava apenas que ele tinha visto o que possível. Não significava
que ele não poderia tentar impedir isso de acontecer.
Afinal de contas, as profecias de Shota nunca pareceram acontecer do
jeito como ela as apresentava. E de qualquer modo, o que ele tinha visto, o tinha
experimentado, era mais como algo criado por Shota.
Richard apertou a mão de Nicci em silencioso agradecimento. A outra
mão dela no ombro dele devolveu o aperto. A preocupaçã o dela diminuiu um
pouco sob o calor de um pequeno sorriso de alívio em vê -lo recuperando o
controle.
Richard ergueu-se diante de Shota de uma forma que deveria ter feito
ela dar um passo para trás. Ela manteve sua posição.
— Como ousa fazer isso comigo? Como ousa me enviar até aquele
lugar?
— Não enviei você para qualquer lugar, Richard. A sua própria mente
o levou para onde ela iria. Nada fiz a não ser libertar os pensamentos que você
havia reprimido. Poupei você daquilo que de outra forma surgiria em pesadelos.
— Não lembro dos meus sonhos.
Shota assentiu enquanto estudava os olhos dele. — Desse você teria
lembrado. Teria sido muito pior do que aquilo que você acabou de sofrer. É
melhor encarar tais visões quando você pode confrontá -las por aquilo qu e elas
são, e captar que verdade elas possuem.
Richard podia sentir o sangue esquentando seu rosto. — Era isso que
você queria dizer, antes, quando disse que se eu casasse com Kahlan ela
carregaria um monstro? Esse é o real significado escondido em sua pr ofecia
complexa?
Shota não mostrou emoção. — Ela significa o que significa.
Richard ainda podia ouvir as palavras do soldado da Ordem Imperial
dizendo a ele o que faria com Kahlan, dizendo a ele como ela seria tratada,
dizendo a ele como ela daria a luz a uma criança que cresceria para cuspir nós
túmulos daqueles que quiseram viver suas próprias vidas para si mesmos,
daqueles que acreditavam em tudo que ele valorizava.
Repentinamente Richard saltou em direção a Shota e em um instante a
segurava pela garganta. A colisão e a feroz determinação dele em derrubá -la os
projetou por cima do muro baixo e para dentro da fonte. Com Richard por cima,
segurando-a, o impulso fez com que eles afundassem na água.
Richard ergueu -a pela garganta. — É isso que você queria dizer!
Água escorreu do rosto dela. Ela tossiu.

137
Ele sacudiu-a. — É isso que você queria dizer!
Richard piscou. Ele estava de pé. Estava seco. Shota estava em pé
diante dele. Ela estava seca. As mãos dele estavam imóveis junto ao corpo.
— Controle-se, Richard. — Shota arqueou uma sobrancelha. — Você
ainda está parcialmente dentro dos seus sonhos.
Richard olhou ao redor. Era verdade. Ele não estava molhado e nem
Shota estava. Nenhum fio de cabelo castanho -avermelhado na cabeça dela estava
fora do lugar. A testa de Nicci franziu quando ele olhou para ela. Ela pareceu
supressa imaginando qual poderia ser a causa da confusão dele. Devia ser
verdade; ele ainda estava sonhando. Isso realmente era apenas um sonho,
exatamente como a execução dele, exatamente co mo ver Kahlan. Apenas tinha
imaginado que segurava Shota pela garganta.
Mas ele queria isso.
— Era isso que você estava querendo dizer quando falou que Kahlan
carregaria uma criança monstro? — perguntou Richard, um pouco mais baixo,
mas sem reduzir o tom de ameaça.
— Não sei quem é essa Kahlan.
A mandíbula de Richard flexionou quando ele cerrava os dentes,
pensando em segurá -la pela garganta de verdade. — Responda a pergunta! Era
isso?
Shota levantou um dedo ao fazer um aviso. — Acredite em mim,
Richard, você realmente não quer uma Bruxa furiosa com você.
— E você não quer que eu fique furioso com você, então responda. Era
isso que você queria dizer?
Ela alisou as mangas do vestido enquanto escolhia as palavras
cuidadosamente. — Em primeiro lugar, rev elei a você em diferentes momentos,
nas várias coisas que falei a você, o que eu vejo do fluxo dos eventos no tempo.
Não lembro dessa mulher, Kahlan, nem lembro de qualquer coisa que tenha
relação com ela. Então, não sei de que evento ou previsão você está falando,
assim como também não lembro disso.
O rosto de Shota assumiu o tipo de sombria expressão perigosa que o
fez lembrar de que ele estava falando com uma Bruxa cujo simples nome
inspirava tremores entre a maioria das pessoas de Midlands. — Mas você está
aventurando -se em sérios assuntos de grave perigo nesse fluxo de eventos
adiante no tempo. — a testa dela franziu com desgosto. — O quê, precisamente,
você está querendo dizer quando fala sobre uma... criança monstro?
Richard voltou o olhar para as ág uas paradas da fonte enquanto
pensava a respeito das coisas terríveis que tinha visto. Ele não conseguiria
suportar falar isso em voz alta. Não conseguiria dizer isso na frente dos outros,
ao menos sugerir em voz alta que Shota um dia fizera uma previsão q ue, ele
temia, na verdade poderia significar que Kahlan conceberia uma criança gerada
pelos monstros da Ordem Imperial. Para ele parecia como se falar em voz alta
de alguma forma pudesse transformar isso em verdade. Era uma ideia tão
dolorosa que ele colocou a ideia de lado, e decidiu ao invés disso fazer outra
pergunta.
Ele virou de volta para ela. — O que significa o fato de que eu não
consiga invocar o meu Dom através da raiva?
Shota suspirou pesadamente. — Richard, você deve entender uma
coisa. Não dei a você uma visão. Nada mais fiz além de ajudá -lo a liberar
pensamentos escondidos que eram seus. Não transmiti a você um sonho criado
por mim, nem plantei quaisquer ideias na sua mente. Apenas o tornei consciente

138
do seu próprio pensamento. Não posso dize r algo a respeito daquilo que você
viu porque eu não sei o que você viu.
— Então porque você iria...
— Sei apenas que você é aquele que deve deter a Ordem. Ajudei -o a
trazer à superfície os seus próprios pensamentos suprimidos para ajudá -lo a
entender melhor.
— Entender o quê?
— O que você deve entender. Não sei mais sobre isso do que sei a
respeito daquilo que você viu dentro de sua própria mente que o perturbou tanto.
Você pode dizer que eu sou apenas a mensageira. Eu não li a mensagem.
— Mas você fez com que eu visse coisas que...
— Não, eu não fiz. Abri a cortina para você, Richard. Não fiz a chuva
que você viu através daquela janela. Você está tentando me culpar pela chuva,
ao invés de enxergar o fato de que eu nada fiz a não ser abrir a cortina p ara que
você pudesse ver com os seus próprios olhos.
Richard olhou para Nicci. Ela nada falou. Ele olhou subindo os degraus
para o seu avô em pé com as mãos frouxamente cruzadas, observando
silenciosamente. Zedd sempre o ensinara a lidar com a realidade d o modo como
o mundo era, o ensinara a não ser levado por aquilo que alguém acreditava ser a
mão invisível do destino controlando e conjurando eventos. Ele estava fazendo
isso com Shota? Estava tentando culpá -la por revelar coisas que ele não tinha
visto, ou não estivera disposto a ver?
— Sinto muito, Shota. — ele falou com uma voz mais calma. — Você
tem razão. Você realmente mostrou para mim a chuva. Não faço ideia do que
fazer a respeito disso, mas eu vi. Eu não devia culpá -la por aquilo que outras
pessoas estão fazendo. Sinto muito.
Shota sorriu levemente. — Essa é parte da razão pela qual você é o
escolhido, Richard... o único que pode parar com a loucura. Você está disposto a
enxergar a verdade. Foi por isso que eu trouxe Jebra com relatos tão terrívei s
sobre o que está acontecendo nas mãos da Ordem. Você precisa conhecer essa
verdade.
Richard assentiu, apenas sentindo -se pior, sentindo-se ainda mais
desesperado por não ter qualquer ideia de como fazer aquilo que ela achava que
ele poderia fazer.
Ele encarou o olhar inflexível de Shota. — Você fez um grande esforço
para trazer Jebra aqui. Viajou por um longo caminho. O seu futuro, a sua própria
vida, não depende disso menos do que a minha vida ou as vidas de todas as
pessoas livres, de todas aquelas co m o Dom. Se a Ordem vencer nós todos
morremos, incluindo você.
— Não existe algo que você possa me dizer que ajude a fazer algo para
acabar com essa loucura? Qualquer ajuda que você pudesse fornecer seria útil.
Não existe algo que possa dizer?
Ela ficou olhando para ele durante um momento antes de falar, ficou
olhando como se a sua mente estivesse em outros lugares. — Sempre que eu lhe
trago informações, — finalmente ela falou. — isso enfurece você... como se eu
fosse a criadora daquilo que é, ao invés de meramente relatar isso.
— Todos estamos encarando a escravidão, tortura, e morte, e de
repente você está preocupado que os seus sentimentos sejam feridos?
A despeito de quem ela era, Shota sorriu diante da caracterização dele.
— Você acha que eu simplesm ente colho revelações do ar, como se estivesse
pegando uma pera.

139
O sorriso desapareceu quando o olhar dela focou -se no vazio ao longe.
— Você não consegue começar a entender o custo pessoal de trazer à tona esse
tipo de conhecimento oculto. Não desejo rea lizar uma tarefa formidável como
essa se esse importante conhecimento obtido nada fará a não ser alimentar
ojeriza.
Richard enfiou as mãos nos bolsos traseiros. — Muito bem, entendi o
recado. Se você fará tal esforço, espera que eu o considere com serieda de.
Todos nós estamos com tudo em jogo, Shota. Agradecerei qualquer coisa que
possa dizer.
Embora Richard honestamente acreditasse que Shota estava contando a
ele aquilo que ela viu dos eventos no tempo, ele não acreditava que o
significado desses relatos era necessariamente correto ou que Shota acreditasse
no que eles significavam. Ainda assim, ela sempre oferecera a ele informações
que, de alguma forma, tiveram importância central no assunto em questão...
sendo Cadeia de Fogo apenas o mais recente. Embor a a revelação dela sobre a
frase Cadeia de Fogo tivesse vindo sem uma explicação que o ajudasse, essa
pista sozinha tinha sustentado o esforço dele em encontrar a resposta para aquilo
que acontecera a Kahlan. Sem aquela simples frase ele jamais teria recon hecido
aquele livro em particular como sendo aquele que continha a chave para
descobrir a verdade.
Shota inspirou profundamente, finalmente soltando aquilo com
resignação. Ela inclinou levemente em direção a ele, como que para enfatizar o
quão sério estava falando.
— Isso é apenas para seus ouvidos.

140
C A P Í T U L O 1 9

Richard olhou para Cara e Nicci. Pelas expressões delas não houve
dúvida na mente dele sobre o que elas pensavam a respeito da simples ideia de
deixá-lo sem proteção. Ainda que ele soubesse que elas estavam convencidas da
necessidade de que elas ficassem perto, ele realmente não acreditava que estaria
mais seguro com a guarda vigilante delas a um passo de distância ao invés de
algumas dúzias... afinal de contas, Shota havia demonstra do isso. Porém, estava
óbvio que elas não compartilhavam dessa visão.
Richard pensou que talvez pudesse encontrar uma solução que
satisfaria a todos. — Elas estão do mesmo lado. Que diferença...
— A diferença é que esse é o meu desejo. — Shota virou para a fonte,
voltando as costas para ele, e cruzou os braços. — Se quer ouvir o que tenho a
dizer, então honrará meus desejos.
Richard não sabia se ela estava apenas sendo obstinada ou não, mas
sabia que esse não era o momento para testar a questão. Se queri a obter alguma
ajuda de Shota ele precisaria mostrar a ela sua confiança. Da mesma forma,
Nicci e Cara simplesmente teriam que confiar nele.
Ele apontou para os degraus. — Por favor, vocês duas, subam até lá
junto com Zedd e esperem.
Nicci claramente não gostou da ideia mais do que Cara, mas
reconheceu pelo olhar que ele lançou que ele precisava que ela fizesse o que ele
pedira. Ela direcionou um olhar feroz para a nuca de Shota. — Se por alguma
razão eu acreditar que você está prestes a machucá -lo, reduzirei você a um
monte de cinzas antes que tenha chance de agir.
— Porque eu o machucaria? — Shota olhou para trás por cima do
ombro. — Richard é o único que tem uma chance de deter a Ordem.
— Exatamente.
Richard observou enquanto Nicci e Cara voltaram -se em silêncio e
subiram os degraus. Ele esperava mais protestos de Cara, mas ficou feliz que
não tivesse acontecido.
Ele trocou um longo olhar com seu avô. Zedd parecia estar
incomumente quieto. Para falar a verdade, Nathan e Ann também. Todos os três
observavam ele como se estudassem algo curioso encontrado embaixo de uma
rocha. Zedd fez para Richard um leve aceno com a cabeça, indicando para que
ele seguisse adiante, para fazer o que precisava fazer.
Richard ouviu a fonte atrás dele começar abruptamente a fluir
novamente. Quando virou para trás viu as águas disparando para cima no
pináculo, caindo de volta, e deslizando das bordas das tigelas para finalmente
dançarem para dentro da piscina.
Shota sentou no pequeno muro que cercava a piscina, suas costas
voltadas para ele enquanto deslizava os dedos de uma das mãos lentamente
através da água. Alguma coisa na linguagem corporal dela fez com que os
cabelos da nuca de Richard ficassem eriçados.
Quando ela virou para olhar por cima do ombro, Richard encontrou -se
olhando para o rosto de sua mãe.
Os músculos dele travaram.
— Richard. — o sorriso triste dela mostrava o quanto o amava e sentia

141
falta dele. Ela parecia não ter envelhecido um dia desde a última lembrança de
infância dele.
Enquanto Richard permanec ia congelado no lugar ela ergueu -se diante
dele.
— Oh, Richard, — ela falou com uma voz tão clara e fluida quanto as
águas da fonte. — como tenho sentido sua falta. — ela passou um braço em
volta da cintura dele enquanto deslizava os dedos da outra mão su avemente pelo
seu cabelo. Ela observou profundamente dentro dos olhos dele. — Como tenho
sentido tanto sua falta.
Richard imediatamente colocou de lado suas emoções. Sabia muito bem
que não devia permitir ser levado a acreditar que essa realmente era sua m ãe.
Na primeira vez em que vira Shota ela mostrou -se para ele como sua
mãe, que havia morrido em um incêndio quando Richard era apenas um garoto.
Naquele momento, Richard quis cortar fora a cabeça de Shota com a sua espada
por causa daquilo que ele interp retou como um ardil cruel. Shota lera o
pensamento e o repreendera por isso, dizendo que aparecer como tinha feito era
um inocente presente na forma de uma lembrança viva do amor dele por sua mãe
e do amor eterno dela por ele. Shota dissera que aquela gent ileza tivera um
custo para ela que ele jamais seria capaz de compreender ou valorizar.
Richard não achava que dessa vez ela estivesse dando a ele um
presente. Não sabia o que ela estava fazendo, ou porque, mas decidiu enfrentar
isso calmamente e sem pular para conclusões apressadas.
— Shota, agradeço a você pela linda lembrança, mas porque é
necessário parecer com a minha mãe?
A testa de Shota, da mesma forma como a da mãe dele, franziu
mostrando que estava pensativa. — Você conhece o nome… Baraccus?
Os cabelos na nuca de Richard, que tinham apenas começado a ficar
eriçados, voltaram a fazê-lo. Ele colocou as mãos gentilmente na cintura dela e
com grande cuidado fez ela recuar.
— Houve um homem chamado Baraccus que foi Primeiro Mago na
época da Grande Guerra. — com um dedo, Richard ergueu o amuleto pendurado
sobre o peito. — Isso era dele.
A mãe dele assentiu. — Esse mesmo. Ele foi um grande Mago
Guerreiro.
— Isso mesmo.
— Como você.
Richard ficou como rosto corado diante da ideia de sua mãe chamá -lo
de “grande”, mesmo que fosse Shota na forma dela.
— Ele sabia como usar sua habilidade; eu não.
A mãe dele assentiu outra vez, um leve sorriso curvando os cantos da
sua boca exatamente como ele lembrava. A mãe dele sorrira daquele jeito
quando estava or gulhosa porque ele captara o ponto principal de uma aula
particularmente difícil. Ele ficou imaginando se Shota pretendia fazer com que a
lembrança tivesse significado.
— Você sabe o que aconteceu a ele, Baraccus?
Richard deu um profundo suspiro. — Sim, para dizer a verdade, eu sei.
Houve um problema com o Templo dos Ventos. O Templo e seus valiosos
conteúdos haviam sido enviados para a segurança de outro mundo.
— O Submundo. — ela completou.
— Sim. Baraccus foi até lá para tentar corrigir o problema. — a mãe
dele sorriu quando passava novamente os dedos através do cabelo dele. —

142
Justamente como você fez.
— Eu suponho.
Quando ela finalmente parou de mexer no cabelo dele, seus belos olhos
voltaram-se para baixo, seu olhar concentrando -se outra vez no dele. — Ele foi
até lá por você.
— Por mim? — Richard olhou para ela de soslaio. — Do que você está
falando?
— A Magia Subtrativa havia sido trancada no Templo, no Submundo,
removida do mundo dos vivos para que assim nenhum mago pudesse outra vez
nascer com ela.
Richard não sabia se ela estava apenas repetindo aquilo que ele
aprendeu ou se ela estava transmitindo a ele o que considerava serem os fatos.
— De acordo com os registros da época que eu tenho estudado, isso foi o que eu
comecei a suspeitar. Como uma consequência, as pessoas não nasciam mais com
o lado Subtrativo do Dom.
Ela observou ele com uma espécie de tranquila seriedade que ele
considerou perturbadora ao extremo. — Mas você nasceu. — finalmente ela
disse de uma forma que carregava grande sig nificado oculto na simplicidade.
Richard piscou. — Está querendo dizer que ele fez algo enquanto
estava no Templo dos Ventos para que alguém nascesse com Magia Subtrativa
outra vez?
— Ao falar “alguém”, eu presumo que esteja querendo dizer... você? —
ela arqueou uma sobrancelha como que para destacar a sobriedade da pergunta.
— O que você está sugerindo?
— Ninguém mais nasceu com Magia Subtrativa e mais, nasceu Mago
Guerreiro, desde então, desde que o Templo foi enviado para fora desse mundo.
— Olhe, eu não sei ao certo se isso é verdade mas, mesmo que seja,
isso não significa...
— Você sabe o que o mago Baraccus fez ao retornar do Templo dos
Ventos?
Richard foi pego de surpresa pela pergunta, imaginando que relevância
isso poderia ter. — Bem, sim. Quando ele voltou do Templo dos Ventos… ele
cometeu suicídio. — Richard apontou fracamente para o vasto complexo acima
deles. — Atirou-se do lado da Fortaleza do Mago, por cima da muralha externa
com vista para o vale e para a cidade de Aydindril abaixo.
A mãe dele assentiu com tristeza. — Com vista para o lugar onde
eventualmente o Palácio das Confessoras seria construído.
— Suponho que sim.
— Mas primeiro, antes de atirar -se por cima daquela muralha, ele
deixou algo para você.
Richard ficou olhando para ela, sem ter certeza de que tinha ouvido
corretamente. — Para mim? Tem certeza?
A mãe dele assentiu. — O registro que você leu n8ão contava tudo.
Veja bem, quando ele retornou do Templo dos Ventos, antes de atirar -se do lado
da Fortaleza, deu para sua es posa um livro e enviou -a com ele para a biblioteca
dele.
— A biblioteca dele?
— Baraccus tinha uma biblioteca secreta.
Richard sentiu como se estivesse caminhando sobre gelo fino. — Eu
nem sabia que ele tinha uma esposa.
— Mas Richard, você a conhece. — a mãe dele sorriu de um jeito que

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fez com que os já eriçados cabelos da nuca dele ficassem mais eriçados ainda.
Richard mal conseguia respirar. — Eu a conheço? Como isso é
possível?
— Bem, — a mãe dele disse balançando um dos ombros. — você sabe a
respeito dela. Você sabe o mago que criou a primeira Confessora?
— Sim. — falou Richard, confuso com a mudança de assunto dela. —
O nome dele era Merritt. A primeira Confessora era uma mulher chamada Magda
Searus. Tem uma pintura deles no teto, no Palácio das Confessoras.
A mãe dele assentiu de uma forma que fez surgir um nó no estômago
dele. — Essa é a mulher.
— Que mulher?
— A esposa de Baraccus.
— Não… — disse Richard enquanto encostava os dedos na testa,
tentando pensar naquilo. — Não, ela era esposa d e Merritt, o mago que
transformou -a em uma Confessora, não de Baraccus.
— Isso foi depois. — falou a mãe dele com um gesto de negação. — O
primeiro marido dela foi Baraccus.
— Tem certeza?
Ela assentiu com firmeza. — Quando Baraccus voltou do Templo dos
Ventos, Magda Searus estava esperando por ele, onde ele havia pedido que ela
esperasse, no Enclave do Primeiro Mago. Durante dias ela havia esperado,
temendo que ele jamais retornasse para ela. Para o grande alívio dela ele
finalmente o fez. Ele beijou -a, falou a ela sobre o seu amor imortal, e então, em
confidência, e após obter o juramento dela de silêncio eterno, ele enviou -a com
um livro para sua escondida, privada, biblioteca secreta.
— Depois que ela partiu ele deixou a sua roupa... a roupa que agor a
você usa, incluindo as faixas de pulso prateadas de couro, a capa que parece ter
sido tecida com ouro, e o amuleto... no Enclave do Primeiro Mago. Deixou para
o mago que ele acabara de garantir que nasceria no mundo dos vivos… deixou
para você, Richard.
— Para mim? Tem certeza de que tudo realmente era destinado a mim,
especificamente?
— Porque acha que havia tantas profecias que falam de você, que
aguardam você, que o nomeiam “aquele que nasceu verdadeiro”, “a pedra no
lago”, “aquele que traz a morte”, “o Caharin”? Porque acha que essas profecias
relacionadas a você surgiram? Porque acha que foi capaz de entender algumas
delas quando ninguém mais durante séculos, durante o milênio, foi capaz de
decifrá-las? Porque acha que você realizou outras?
— Mas isso não significa que estava explicitamente direcionado a
mim.
Com um gesto de indiferença, sua mãe evitou apoiar ou negar a
declaração dele. — Quem pode dizer o que veio primeiro, o lado Subtrativo
finalmente encontrando uma criança na qual nascer, ou fi nalmente encontrando a
criança específica na qual deveria nascer. A profecia precisa de um núcleo para
desencadear o seu crescimento. Deve haver algo ali para engendrar o que será,
mesmo que seja meramente a cor dos seus olhos que foi transmitida a você. A lgo
precisa fazer isso surgir. Nesse caso, é o acaso ou intencional?
— Eu gostaria de pensar nisso como uma série de eventos ao acaso.
— Se isso lhe agrada. Mas nesse ponto, Richard, isso realmente
importa? Você é aquele que nasceu com a habilidade que B araccus liberou de
seu confinamento em outro mundo. Você é aquele cujo nascimento ele pretendia,

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seja por acaso ou por intenção específica. No final, a única coisa que importa é
o que é: você é aquele que nasceu com essa habilidade.
Richard concluiu que e la estava certa; exatamente como isso tinha
acontecido não mudava o que era.
Sua mãe suspirou quando prosseguiu com a história. — De qualquer
modo, foi somente então, após ele ter feito seus preparativos para aquilo que ele
garantira que aconteceria, que Baraccus emergiu de seu enclave e saltou para
sua morte. Aqueles que escreveram os registros não sabiam que ele já estivera
de volta tempo suficiente para enviar sua esposa em uma missão secreta urgente.
Ela voltou para descobrir que ele estava morto.
A cabeça de Richard girou. Não conseguia acreditar no que estava
ouvindo. Sentiu-se tonto com o relato inesperado de antigos eventos. Porém, ele
sabia, por ter estado no Templo dos Ventos, que tais coisas eram possíveis. Ele
havia desistido do conhecimento qu e obtivera lá como preço para retornar ao
mundo dos vivos. Embora tivesse perdido aquele conhecimento, havia ficado
com uma sensação do quão profundo isso havia sido. Aquele que exigira o preço
de deixar para trás o que ele havia aprendido em troca do seu retorno para
Kahlan foi o espírito de Darken Rahl, o verdadeiro pai dele.
— Em seu luto, Magda Searus voluntariou -se para ser objeto de um
perigoso experimento com o qual Merritt aparecera, foi voluntária para tornar -se
uma Confessora. Ela sabia que havia uma boa chance de que não sobrevivesse
aos males desconhecidos daquela conjuração, mas em seu pesar, com seu amado
marido, o Primeiro Mago, morto, o mundo dela acabara. Ela achava que não
havia alguma coisa pela qual viver, a não ser descobrir quem era re sponsável
pelos eventos fatídicos que resultaram na morte do seu marido, então ela
voluntariou-se para aquilo que todos consideravam que podia muito bem ser um
experimento fatal.
— Ainda assim ela sobreviveu. Foi muito tempo depois que ela
começou a apaix onar-se por Merritt, e ele por ela. O mundo dela voltou a ganhar
vida com ele. Os registros daquele tempo estão borrados em alguns pontos, com
partes faltando ou colocados de forma errada na cronologia dos eventos, mas a
verdade é que Merritt foi o segundo marido dela.
Richard teve que sentar no banco de mármore. Isso era quase demais
para absorver. As implicações eram avassaladoras. Ele teve dificuldade para
aceitar as coincidências: que ele fora o primeiro em milhares de anos a nascer
com Magia Subtrativ a, que Baraccus tivesse sido o último a ir até o Templo dos
Ventos até que o próprio Richard fosse, que Baraccus tivesse casado com uma
mulher que tornou-se a primeira Confessora, que Richard tivesse se apaixonado
e casado com uma Confessora... a Madre Con fessora em pessoa, Kahlan.
— Quando Magda Searus usou o seu recém criado poder de Confessora
em Lothain, eles descobriram o que ele tinha feito no Templo dos Ventos, aquilo
que apenas Baraccus soubera.
Richard levantou os olhos. — O que ele fez?
Sua mãe olhou dentro dos olhos dele como se estivesse olhando dentro
da alma dele. — Lothain os traiu quando esteve no Templo ao providenciar para
que uma magia muito específica que havia sido trancada lá fosse liberada dentro
do mundo dos vivos em algum momento futuro. O Imperador Jagang nasceu com
o poder que Lothain permitiu escapulir da segurança do seu confinamento em
outro mundo. Essa magia era o poder de um Andarilho dos Sonhos .
— Mas porque Lothain, o Promotor Chefe, faria uma coisa como essa?
Afinal de contas, ele cuidou para que a equipe do Templo fosse executada pelo

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dano que eles haviam causado.
— Lothain provavelmente passou a acreditar, assim como fez o inimigo
no Mundo Antigo, que a magia deveria ser eliminada da raça dos homens. Acho
que a dedicação dele encontrou uma nova fixação: ele imaginou a si mesmo
como salvador da humanidade. Para esse fim esse garantiu o retorno de um
Andarilho dos Sonhos ao mundo dos vivos, para livrar o mundo da magia.
— Por alguma razão, Baraccus não conseguiu selar a ruptura criada por
Lothain, sendo incapaz de desfazer a traição. Ele fez o melhor que podia.
Providenciou que houvesse um equilíbrio, uma contra medida, ao dano feito,
alguém para lutar contra essas forças decididas a destruir aqueles que possuem o
Dom, al guém com a habilidade necessária.
— Esse seria você, Richard. Baraccus providenciou para que você
nascesse para combater aquilo que tinha sido feito por Lothain. É por isso que
você, Richard Rahl, é o único que pode deter a Ordem.
Richard pensou que podi a vomitar. Tudo isso fez com que ele sentisse
como se fosse apenas um peão cósmico usado para propósitos ocultos, um tolo
fazendo nada mais do que executar o plano para sua vida criado por outros,
realizando seu papel predeterminado em uma batalha através do milênio.
Como se estivesse lendo a mente dele, Shota, ainda parecendo e soando
com a mãe dele, descansou uma das mãos de forma compassiva sobre o seu
ombro. — Baraccus garantiu que houvesse um equilíbrio para contrapor esse
dano. Ele não ordenou previa mente como esse equilíbrio funcionaria ou como
isso agiria. Ele não removeu o seu livre arbítrio da equação, Richard.
— Você acha que não? Para mim parece que sou meramente a peça
final desse jogo finalmente colocado em ação. Não vejo meu livre arbítrio,
minha própria vida, minha escolha, em qualquer parte nisso. Parece que outros
determinaram meu caminho.
— Não penso que isso seja verdade, Richard. Você pode dizer que
aquilo que eles fizeram não é diferente de treinar um soldado para uma batalha.
Esse treinamento cria a possibilidade de realizar o objetivo de vencer a batalha
caso uma batalha aconteça. Isso não significa que quando a batalha realmente
vier o soldado não fugirá, que ao invés disso ele manterá posição e lutará, ou
mesmo que se ele realmente lutar usando o melhor de suas habilidades e
treinamento que ele vencerá. Baraccus providenciou para que você tenha o
potencial, Richard, a armadura, as armas, a habilidade, para lutar por sua
própria vida e pelo seu próprio mundo caso a necessidade apareç a, nada mais.
Ele estava apenas dando a você uma ajuda.
Uma ajuda enviada através do precipício do tempo. Richard sentiu -se
esgotado e confuso. Quase sentiu como se não conhecesse mais a si mesmo,
como se não soubesse quem realmente era, ou quanto da sua própria vida era
produto de sua própria realização.
Para ele pareceu como se Baraccus repentinamente tivesse se
materializado do pó de ossos antigos, um fantasma que vinha assombrar a vida
de Richard.

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C A P Í T U L O 2 0

Havia uma coisa que ainda o incomodava, outra parte que ainda não
fazia sentido. Como poderia o Promotor Chefe, Lothain, abandonar suas crenças,
abandonar todos no Mundo Novo? Ocorreu a Richard que era uma explicação
conveniente demais que ele houvesse cedido ao poder, ao fascínio, das crenças
do Mundo Antigo.
E então isso surgiu para ele... a percepção fluindo através dele
velozmente com o poder das águas de uma inundação. A substância disso quase
tirando o seu fôlego. Alguma coisa nos antigos registros sempre o incomodara.
Shota tinha estimulado sua lembrança das coisas que aconteceram e ao fazer isso
todas as peças existentes subitamente encaixaram -se. Agora ele entendeu o que
estava errado na história, o que sempre o incomodara a respeito dela. Assim que
ele compreendeu, não soub e porque não havia percebido antes.
— Lothain era um promotor fanático. — Richard disse, meio que para
si mesmo. Tudo surgiu rapidamente enquanto ele falava, seus olhos arregalados.
— Ele não encontrou uma nova fixação para sua dedicação. Ele não virou as
costas para eles.
— Ele não era um traidor. Era um espião.
— Sempre foi um espião. Era como uma toupeira, cavando e
aproximando-se cada vez mais do seu objetivo. Durante um longo período ele
trabalhou para conseguir uma posição de poder. Ele também tinh a cúmplices
trabalhando secretamente abaixo dele.
— Lothain era um mago que havia se tornado não apenas amplamente
respeitado, mas também poderoso. Com seu poder político ele teve acesso aos
níveis mais altos. Quando a oportunidade finalmente apresentou -se, uma
oportunidade que ele havia ajudado a criar, ele agiu. Ele providenciou para que
seus conspiradores fossem escolhidos para a equipe do Templo. Exatamente
como a Ordem hoje, Lothain e seus homens tinham uma forte fé em sua causa.
Foram eles que corrom peram a missão. Não foi uma mudança de coração, um ato
de consciência mal direcionado. Isso havia sido planejado. Foi deliberado.
— Todos estavam dispostos a sacrificarem -se, a morrer por aquilo que
acreditavam ser uma causa maior. Não sei quantos da equi pe eram espiões, ou se
todos eles eram, mas o fato é que a quantidade deles foi suficiente para
alcançarem seu objetivo. Pode ter sido até mesmo que eles tenham convencido
os outros a juntarem -se a eles através de uma confusa noção de obrigação moral.
— Era inevitável, é claro, que os outros magos na Fortaleza em breve
percebessem que o projeto do Templo dos Ventos tinha sido comprometido.
Quando perceberam, Lothain estava pronto para condenar a equipe do Templo, e
certificar-se de que todos fossem executa dos. Ele não queria que alguém que
pudesse entregar a extensão daquilo que na verdade eles tinham feito fosse
deixado vivo.
— Lothain pretendeu o tempo todo que as ações precisas deles fossem
mantidas secretas para que contra medidas não pudessem ser toma das com
sucesso. Aqueles espiões que Lothain designou para a equipe do Templo foram
para seus túmulos voluntariamente, levando os seus segredos com eles. Ao
condenar e sentenciar toda a equipe, Lothain conseguiu enterrar toda a
conspiração que ele havia cr iado. Eliminou qualquer um que tivesse qualquer

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conhecimento do verdadeiro dano que havia sido causado. Ele estava confiante
no conhecimento de que um dia sua causa colocaria de lado toda a oposição e
eles governariam o mundo. Quando isso acontecesse, ele seria o maior herói da
guerra.
— Só havia um pequeno problema que permanecia. Após o julgamento,
aqueles que estavam no comando insistiram que alguém devia ir ao Templo dos
Ventos para reparar o dano. Lothain não poderia permitir que ninguém mais
fosse, é claro, porque descobririam a verdadeira extensão da sabotagem e
possivelmente poderiam ser capazes de desfazê -la, então ele voluntariou -se.
Esse era o plano dele o tempo todo... seguir a equipe, se fosse necessário, e
encobrir a verdade.
— Porque ele era o Promotor Chefe, todos acreditaram que ele tinha a
absoluta convicção de consertar as coisas. Quando Lothain finalmente chegou ao
Templo dos Ventos, ele não apenas providenciou para que o dano não pudesse
ser reparado, ele usou o conhecimento que obteve lá para deixar a coisa pior,
para certificar -se de que ninguém encontraria e consertaria o dano. Então ele
encobriu o que tinha feito, com intenção de fazer parecer como se tudo tivesse
sido corrigido.
— Houve somente um problema: as alterações que ele fe z, usando o
conhecimento do próprio Templo, acabaram sendo suficientes para disparar os
alarmes protetores do Templo. Do Templo, naquele outro mundo, Lothain não
estava ciente das luas vermelhas que Templo havia despertado nesse mundo, e
quando retornou el e foi pego. Mesmo assim, ele não importou -se; ficou ansioso
para morrer, para ganhar a glória eterna na vida seguinte por tudo aquilo que ele
tinha realizado, exatamente como Nicci explicou a respeito da forma como as
pessoas do Mundo Antigo pensam.
— Os magos na Fortaleza precisavam saber a extensão dos danos que
Lothain tinha causado. Embora fosse torturado, Lothain não revelou a extensão
do plano. Para descobrir a verdade do que aconteceu, Magda Searus tornou -se
uma Confessora. Mas ela era inexperiente na tarefa e ainda estava aprendendo.
Ainda que tivesse usado o seu poder de Confessora, ela não percebeu, naquele
momento, a importância de fazer as perguntas certas.
Richard olhou para o rosto da sua mãe. — Uma vez Kahlan disse para
mim que apenas conseg uir uma confissão era fácil. A parte difícil era entender
como fazer as perguntas certas para obter a verdade. Merritt tinha acabado de
criar os poderes de uma Confessora. Ninguém entendia ainda o modo como
aqueles poderes funcionavam.
— Kahlan foi treina da durante toda sua vida para conseguir fazer isso
da forma adequada, mas naquela época, há milhares de anos, Magda Searus
ainda não sabia como fazer todas as perguntas certas, na ordem correta. Mesmo
que ela acreditasse que havia conseguido fazer Lothain confessar o que tinha
feito, ela falhou em descobrir a verdadeira extensão da perfídia dele. Ele era um
espião, e independente do uso da primeira Confessora, eles não descobriram
isso. Como resultado, eles jamais souberam toda a extensão da subversão
executada pelos homens de Lothain na equipe do Templo.
Sua mãe observou ele com uma expressão de profunda concentração. —
Tem certeza disso, Richard?
Ele assentiu. — Finalmente tudo isso faz sentido para mim. Com tudo
que você adicionou na história, todas as partes que antes eu jamais consegui
encaixar agora encaixam. Lothain era um espião e seguiu para sua morte nunca
revelando quem ele realmente era, ou que havia colocado seus próprios homens

148
na equipe do Templo. Todos eles morreram sem revelar a verdadeira extensão do
dano que tinham feito. Ninguém, nem mesmo Baraccus, percebeu a completa
extensão disso.
A mãe dele suspirou enquanto olhava para o vazio. — Isso certamente
explica uma parte das lacunas naquilo que surgiu para mim. — ela olhou de
volta para el e como se estivesse sob uma nova luz. — Muito bem, Richard.
Muito bem mesmo.
Richard esfregou a mão sobre os olhos cansados. Ele não sentiu
qualquer grande sensação de orgulho ao aprofundar -se no lamaçal escuro da
história e recuperar tais feitos desprezí veis, feitos que ainda estavam deslizando
através do tempo para assombrá -lo.
— Você disse que Baraccus deixou um livro para mim?
Ela assentiu. — Enviou ele para longe com sua esposa para que ficasse
em segurança. Ele era destinado a você.
Richard suspir ou. — Tem certeza?
— Sim. — sua mãe entrelaçou os dedos cuidadosamente. — Enquanto
ainda estava no Templo dos Ventos, Baraccus escreveu o livro com ajuda do
conhecimento que obteve lá. Quaisquer outros olhos além dos dele jamais o
leram. Nenhuma pessoa vi va ao menos abriu a capa desde que Baraccus
terminou de escrevê-lo e fechou-a. Ele esteve, desde aquele tempo, intocado em
sua biblioteca secreta.
A deia de uma coisa como essa causou em Richard um calafrio. Ele não
tinha ideia de onde essa livraria poder ia estar, mas mesmo se ele encontrasse a
biblioteca certa isso não diria a ele aquilo que ele precisava saber. Imaginou que
não havia chance, mas perguntou assim mesmo.
— Tem alguma ideia de como é chamado esse livro? Ou talvez sobre o
assunto do qual ele trata?
A mãe dele assentiu solenemente. — Chama-se Segredos do Poder de
um Mago Guerreiro .
— Queridos espíritos. — Richard sussurrou quando olhou para ela.
Com os cotovelos sobre os joelhos, o rosto dele mergulhou em suas
mãos. Ele estava tão sobrecarr egado que parecia não conseguir absorver tudo
isso. O último homem que visitara o Templo dos Ventos, três mil anos antes de
Richard, havia de alguma forma, enquanto esteve lá, providenciado para que o
Templo liberasse Magia Subtrativa, com a qual Richard n ascera, em parte, para
que ele pudesse entrar no Templo dos Ventos para deter a praga deflagrada por
um Andarilho dos Sonhos que nasceu porque um mago, Lothain, estivera lá
primeiro e garantiu que um Andarilho dos Sonhos nasceria para governar o
mundo e destruir a magia. E mais tarde, aquele mesmo homem que havia se
certificado de que Richard nasceria com Magia Subtrativa deixou para Richard
um livro de instruções sobre a mesma magia que ele parecia ter conferido a
Richard para derrotar o Andarilho dos Sonhos.
Depois que Baraccus retornou e cometeu suicídio, os magos tinham
abandonado quaisquer tentativas posteriores de entrarem no Templo dos Ventos
para responderem ao chamado das luas vermelhas, ou por qualquer outra razão,
considerando que era impossível. Eles jamais foram capazes de entrar para
desfazerem o dano que a equipe do Templo e Lothain haviam causado. Apenas
Baraccus conseguira executar uma ação para combater a ameaça.
Muito possivelmente, o próprio Baraccus certificou -se de que ninguém
mais conseguisse entrar no Templo dos Ventos, provavelmente para que não
houvesse chance de que qualquer outro espião pudesse arruinar o que Baraccus

149
tinha feito para garantir que haveria um equilíbrio para a ameaça, ou seja, o
nascimento de Richard.
Richard levantou os olhos. Sua mãe não estava mais ali. No lugar dela
estava Shota, as pontas soltas do seu vestido flutuando suavemente como que em
uma brisa. Richard estava triste em ver que sua mãe havia partido mas ao mesmo
tempo era um alívio uma vez que era tão desorientador tentar falar com Shota
através do espectro da mãe dele.
— Essa biblioteca para onde Baraccus enviou sua esposa com o livro
Segredos do Poder de um Mago Guerreiro, onde fica?
Shota balançou a cabeça com tristeza. — Temo dizer que não sei. Ac ho
que ninguém a não ser Baraccus e a esposa dele, Magda Searus, sabiam.
Richard vestia a roupa de Mago Guerreiro usada pela última vez por
Baraccus, usava o amuleto usado por Baraccus, carregava o Dom para a Magia
Subtrativa muito provavelmente por causa de Baraccus. E Baraccus deixara para
ele o que parecia com um livro de instruções sobre como usar o poder com o
qual ele providenciara para que Richard tivesse nascido.
— Há tantas bibliotecas. A biblioteca particular de Baraccus poderi a
estar entre quaisquer delas. Tem ao menos alguma ideia de qual poderia ser?
— Sei apenas que ela não ficava entre quaisquer outras bibliotecas,
como você sugere. A biblioteca que Baraccus criou era apenas dele. Cada livro
de lá é somente dele. Ele os escondeu muito bem. Não foram descobertos até
hoje.
— E por alguma razão ele achou que era melhor não deixar esses livros
na segurança do Enclave do Primeiro Mago?
— Segurança? Não faz muito tempo, Irmãs do Escuro, enviadas por
Jagang, violaram esse lugar. Elas levaram livr os, entre outras coisas, para o
Imperador. Jagang caça livros porque eles possuem conhecimentos que o ajudam
em sua luta para governar o mundo para a Ordem. Se os livros que Baraccus
escreveu tivessem sido deixados aqui na Fortaleza, agora eles poderiam mu ito
bem estar nas mãos de Jagang. Baraccus foi sábio em não deixar tal poder aqui,
onde qualquer um poderia encontrar, onde cada Primeiro Mago que viria depois
dele poderia ter descoberto e mexido com ele, ou até mesmo destruído para que
não caísse em mãos erradas.
Isso foi o que aconteceu com o Livro das Sombras Contadas. Ann e
Nathan, por causa de profecia, ajudaram George C ypher a levá -lo de volta para
Westland com a intenção de que, quando tivesse idade suficiente, Richard
memorizasse aquele livro e en tão o destruísse para que ele não caísse em mãos
erradas. Acabou que Darken Rahl eventualmente teve a necessidade de colocar
as mãos naquele livro para abrir as Caixas de Orden... as mesmas caixas que
agora estavam em atividade por causa das antigas Irmãs de Ann, que agora
tinham Kahlan, a última Confessora, que, por causa daquilo que estava escrito
naquele livro, ajudou ele a derrotar Darken Rahl.
Richard ergueu o amuleto que usava, que um dia pertencera a
Baraccus. Ele ficou olhando para os símbolos que representavam a Dança com a
Morte. Havia cosia demais para que tudo isso fosse coincidência.
Ele olhou para Shota. — Está dizendo que Baraccus previu o que
aconteceria e colocou o livro em um lugar de maior segurança?
Shota balançou os ombros. — Sinto muito, Richard, eu não sei. Poderia
ser que ele estivesse apenas sendo cuidadoso. Considerando as razões dele, e o
que estava em jogo, tal precaução parece não apenas ter sido justificada, mas
sábia.

150
— Falei a você tudo que posso. Você conhece todas as peça s do
quebra-cabeças, da história, das quais eu não estou ciente. Isso não significa que
é tudo, mas a partir de outras fontes você também conhece partes adicionais da
história, então agora você conhece mais da história do que eu. Para dizer a
verdade, prov avelmente você sabe mais disso do que qualquer pessoa viva desde
que o mago Baraccus era o Primeiro Mago.
De tudo aquilo que ela dissera, nada teria muita utilidade a não ser que
ele conseguisse encontrar o livro que Baraccus destinara a ele. Sem aquele l ivro,
os poderes de Mago Guerreiro de Richard eram um mistério para ele e quase
inúteis. Sem aquele livro, parecia não haver esperança de derrotar o exército que
viera do Mundo Antigo. A Ordem governaria o mundo e a magia seria erradicada
do mundo dos vivos, exatamente como Lothain planejou. Sem o livro, o plano de
Baraccus falharia, e Jagang venceria.
Richard contemplou o teto envidraçado cem pés acima, que deixava
entrar um pouco da fraca luz do final de tarde para equilibrar o brilho das
lamparinas lá embaixo no coração da sala. Ele imaginou quando as lamparinas
foram acesas. Não lembrava disso acontecendo.
— Shota, não poderia haver maior necessidade de um conhecimento
como esse. Como posso ter sucesso em deter a Ordem se não consigo usar
minhas habilidades como um Mago Guerreiro? Não pode dar qualquer coisa,
qualquer ideia, de como encontrar esse livro? Se eu não encontrar algumas
respostas, e logo, estou morto. Todos nós estamos.
Ela colocou as mãos no queixo dele enquanto olhava dentro de seus
olhos. — Espero que saiba, Richard, que se eu soubesse como conseguir esse
livro para você, eu o faria. Você sabe o quanto eu quero deter a Ordem Imperial.
— Bem, porque você consegue informação específica. De onde ela
vem? Porque isso surge para você em momen tos específicos, como agora?
Porque não na primeira vez em que encontrei com você? Ou quando eu estava
tentando entrar no Templo dos Ventos para acabar com a praga?
— Suponho que isso vem do mesmo lugar de onde você consegue
respostas ou inspiração quando concentra-se em um problema. Porque você
aparece com respostas para problemas em um certo momento como faz? Eu
penso a respeito de uma situação e às vezes as respostas surgem. Basicamente,
isso não é diferente, eu acredito, do que a forma como qualquer pe ssoa tem
ideias. Minhas ideias apenas são características para a mente de uma Bruxa e
elas envolvem eventos no fluxo do tempo. Suponho que seja parecido como de
repente você percebeu a verdade sobre o que Lothain tinha feito. Como isso
surgiu para você? Im agino que funcione da mesma forma comigo.
— Se eu soubesse onde o livro Segredos do Poder de um Mago
Guerreiro está, ou tivesse qualquer ideia para encontrá -lo, eu não hesitaria em
falar a você.
Richard soltou um suspiro e levantou. — Eu sei, Shota. Obri gado por
tudo que você tem feito. Tentarei encontrar um jeito para que tudo aquilo que
você disse sirva de ajuda.
Shota apertou o ombro dele. — Devo partir. Tenho uma Bruxa para
encontrar. Pelo menos, graças a Nicci, eu sei o nome dela.
Um pensamento ocorreu a ele. — Fico imaginando porque ela é
chamada de Seis?
O semblante de Shota ficou sombrio. — É um nome depreciativo. Uma
Bruxa vê muitas coisas no fluxo do tempo, especialmente aquelas coisas que
possuem relação com quaisquer filhas que possam carreg ar. Para uma Bruxa, a

151
sétima criança é especial. Dar o nome de Seis a uma criança é dizer que ela é
inferior, que é menos do que perfeita. É um insulto aberto, de nascimento, por
aquilo que uma Bruxa prevê do caráter de sua filha. É o pronunciamento de que
sua filha é defeituosa.
— Dar o nome de Seis para ela provavelmente resultou no assassinato
da mãe pelas mãos dessa filha.
— Então porque a mãe faria a declaração de uma coisa como essa de
forma tão aberta? Porque não dar algum outro nome para sua filha e evitar a
probabilidade do seu próprio assassinato.
Shota observou -o com um sorriso triste. — Porque há Bruxas que
acreditam na verdade, porque a verdade ajudará outras pessoas a evitarem o
perigo. Para mulheres assim, uma mentira seria a raiz de um pro blema muito
maior que cresceria a partir disso. Para nós, a verdade é a única esperança para
o futuro. Para nós, o futuro é vida.
— Bem, parece que o nome combina com o problema que essa está
causando.
O sorriso de Shota, mesmo que fosse triste, desapare ceu. Sua expressão
endureceu com uma aparência sombria. Ela ergueu um dedo fazendo um alerta.
— Uma mulher assim poderia facilmente esconder o seu nome. Essa, ao invés
disso, o revela da forma como uma cobra exibe as suas presas. Preocupe -se com
qualquer o utra coisa, e deixe ela comigo. Uma Bruxa é profundamente perigosa.
Richard sorriu um pouquinho. — Assim como você?
Shota não retribuiu o sorriso. — Assim como eu.
Richard ficou parado sozinho perto da fonte enquanto observava Shota
subir os degraus. Ni cci, Cara, Zedd, Nathan, Ann, e Jebra estavam reunidos de
um lado, engajados em uma conversação sussurrada entre si. Eles não prestaram
qualquer atenção a Shota quando ela passava, como uma aparição invisível.
Richard seguiu -a subindo os degraus. No porta l, com a silhueta
destacada pela luz, Shota virou para trás, quase como se ela mesma tivesse visto
uma aparição. Ela esticou um braço e durante algum tempo descansou uma das
mãos sobre o caixilho da porta.
— Mais uma coisa, Richard. — Shota estudou os olh os dele durante um
momento. — Quando você era criança, a sua mãe morreu em um incêndio.
Richard assentiu. — Isso mesmo. Um homem entrou em uma briga com
George C ypher, o homem que me criou, o homem que na época eu pensava que
fosse meu pai. Esse homem que começou a briga com o meu pai derrubou um a
lamparina da mesa, colocando fogo na casa. Meu irmão e eu estávamos
dormindo no quarto dos fundos. Enquanto o homem arrastou meu pai para o lado
de fora e estava batendo nele, minha mãe correu e retirou meu irmão e a mim da
casa em chamas.
Richard limpou a garganta com a dor que ainda o assombrava. Ele
lembrou do rápido sorriso de alívio dela porque eles estavam a salvo, e do
último beijo que ela aplicou na testa dele.
— Depois que minha mãe tinha certeza de que estávamos seguros, era
correu de volta para dentro para salvar alguma coisa... nunca soubemos o quê.
Os gritos dela fizeram o homem recuperar o bom senso e ele e meu pai tentaram
salvá-la, mas não conseguiram … era tarde demais. Eles foram repelidos pelo
calor das chamas e nada puderam fazer por ela. Cheio de culpa e repulsa com
aquilo que havia causado, o homem começou a soluçar dizendo que sentia muito.
— Foi uma terrível tragédia, especialmente porque não havia mais
ninguém na casa e nada que valesse à pena salvar, nada que valesse a vida dela.

152
Minha mãe morreu por nada.
Shota, parada com a silhueta contornada no portal, uma das mãos
descansando contra o caixilho, ficou olhando para ele durante o que pareceu
uma eternidade. Richard esperou silenciosame nte. Havia algum tipo de
significado terrível evidente na postura dela, em seus de amêndoa. Finalmente
ela falou com voz suave.
— A sua mãe não foi a única a morrer naquele incêndio.
Richard sentiu calafrios em suas pernas e braços. Tudo que ele soubera
durante quase toda sua vida parecia ter vaporizado em um instante pelo golpe
veloz daquelas palavras.
— Do que você está falando? O que você quer dizer?
Shota balançou a cabeça tristemente. — Juro por minha vida, Richard,
que eu nada mais sei.
Ele aprox imou-se e agarrou o braço dela, sendo cuidadoso para não
segurá-lo com tanta força quanto facilmente poderia ter feito sob o efeito do
repentino poder de sua necessidade ardente para entender porque ela diria tal
coisa.
— E o que você quer dizer com, eu n ada mais sei? Como pode falar
algo tão inconcebível e então simplesmente dizer que nada mais sabe? Como
pode falar uma coisa assim sobre a morte da minha mãe... e depois simplesmente
não saber mais. Isso não faz sentido. Você deve saber alguma coisa mais.
Shota colocou uma das mãos no lado do rosto dele. — Você fez alguma
coisa por mim na última vez em que foi até Agaden Reach. Recusou minha
oferta e disse que eu tinha mais valor do que alguém que teria uma pessoa
contra a vontade dela. Disse que eu mereci a ter alguém que me valorizasse por
quem eu sou.
— A despeito do quanto eu estava zangada com você naquele
momento, isso me fez pensar. Nunca alguém me recusou, e você fez isso pelas
razões certas... porque importou -se comigo, preocupou -se que eu tenha aquilo
que faça minha vida valer à pena. Preocupou -se comigo o bastante para arriscar
enfrentar minha fúria.
— Quando assumi a aparência de sua mãe, esse presente de alguma
forma influenciou no fluxo da informação que chegou até mim. Por causa disso,
justamente agora quando eu estava prestes a partir, esse pensamento surgiu em
minha consciência: sua mãe não foi a única a morrer naquele incêndio.
— Como todas as coisas que eu colho do fluxo de eventos no tempo,
isso surgiu para mim como uma espécie de visão intuitiva. Não sei o que
significa, e não sei mais a respeito disso. Eu juro, Richard, eu não sei.
— Em circunstâncias normais eu não teria revelado essa pequena
informação porque ela está tão carregada com possibilidades e perguntas, mas
essas dificilmente são circunstâncias normais. Pensei que você devia saber o que
surgiu para mim. Pensei que você devia saber qualquer coisinha de tudo que eu
sei. Nem tudo que eu aprendo do fluxo do tempo é útil... é por isso que nem
sempre revelo para as pessoas coisas isoladas como essa. Nesse caso, porém,
imaginei que devia saber caso isso acabe significando algo para você, caso isso
possa acabar ajudando de algum jeito.
Richard sentiu -se tonto e confuso. Ele não tinha certeza de que
acreditava que isso realmente sign ificava o que parecia significar.
— Isso poderia significar que ela não foi a única a morrer porque uma
parte de nós morreu com ela naquele dia? Que nossos corações jamais seriam os
mesmos? Poderia significar que ela não foi a única a morrer naquele incên dio

153
nesse sentido?
— Não sei, Richard, realmente não sei, mas poderia ser. Poderia ser
insignificante desse jeito assim como ser algo que na verdade o ajudaria agora.
Nem sempre eu sei tudo sobre o que o fluxo do tempo revela ou se isso tem
importância. Poderia ser como você diz e nada mais.
— Só posso servir de alguma ajuda se entregar a informação de forma
precisa, e então isso foi o que eu fiz. Essa é a forma exata como isso surgiu para
mim e nesse preciso conceito: a sua mãe não foi a única a morrer n aquele
incêndio.
Richard sentiu uma lágrima deslizar por sua bochecha. — Shota, eu me
sinto tão sozinho. Você trouxe Jebra para contar coisas que me dão pesadelos.
Não sei o que fazer a seguir. Não sei. Tantas pessoas acreditam em mim,
dependem de mim. Nã o existe alguma cosia que possa dizer que ao menos
aponte a direção certa antes que estejamos todos perdidos?
Com um dedo, Shota removeu a lágrima da bochecha dele. Aquele ato
simples de algum jeito confortou um pouco seu coração.
— Sinto muito, Richard. Não conheço as respostas que o salvariam. Se
conhecesse, por favor acredite que eu as forneceria com prazer. Mas conheço o
bem em você. Acredito em você. Sei que você tem dentro de aquilo que precisa
ter para obter o sucesso. Haverá momentos em que duvida rá de si mesmo. Não
desista. Nesse instante lembre que eu acredito em você, que eu sei que você
pode realizar o que deve. Você é uma pessoa rara, Richard. Acredite em si
mesmo.
— Saiba que eu acredito que você é aquele que pode fazer isso.
Do lado de for a, antes de começar a descer os degraus de granito, e
virou para trás, uma forma negra contra a luz que desaparecia.
— Se Kahlan algum dia foi real ou não, isso não importa mais. Todo o
mundo dos vivos, a vida de todos, agora está em risco. Você deve esqu ecer essa
única vida, Richard, e pensar em todas as outras.
— Profecia, Shota? — Richard sentia o coração pesado demais para
erguer sua voz. — Algo do fluxo do tempo?
Shota balançou a cabeça. — Simplesmente o conselho de uma Bruxa.
— ela seguiu até o cer cado para buscar seu cavalo. — Coisas demais estão em
jogo, Richard. Você deve parar de perseguir esse fantasma.
Quando Richard voltou para dentro todos estavam ao redor de Jebra,
concentrados em uma conversa cheia de simpatia pela provação que ela passou .
Zedd fez uma pausa no meio do que estava dizendo quando Richard
juntou-se a eles. — Bastante estranho, não acha, meu rapaz?
Richard olhou ao redor para as expressões perplexas. — O que é
estranho?
Zedd abriu os braços. — Que em algum ponto no meio da história que
Jebra nos contava Shota simplesmente tenha levantado e desaparecido.
— Desaparecido. — repetiu Richard, cautelosamente.
Nicci assentiu. — Pensávamos que ela ficaria e teria algo a dizer
depois que Jebra terminasse.
— Talvez ela tivesse que ir procurar alguém para intimidar. — disse
Cara.
Ann suspirou. — Talvez ela quisesse seguir seu caminho atrás daquela
outra Bruxa.
— Talvez, sendo uma Bruxa, ela não se importe muito com despedidas.
— Nathan sugeriu.

154
Richard nada falou. Já tinha visto S hota fazer isso, como na vez em
que ela apareceu no casamento dele e Kahlan e deu a Kahlan o colar. Ninguém
tinha ouvido ela, quando ela conversou com Richard e Kahlan. Ninguém tinha
visto ela partir.
Todos voltaram a sua conversa, exceto o avô dele. Zedd pareceu
distante e distraído.
— O que foi? — Richard perguntou.
Zedd balançou a cabeça quando passou o braço em volta dos ombros de
Richard, aproximando -se enquanto falava de forma confidencial. — Por alguma
razão, minha mente estava vagando em pensamen tos a respeito de sua mãe.
— Minha mãe.
Zedd assentiu. — Realmente sinto falta dela.
— Eu também. — disse Richard. — Agora que você mencionou, acho
que eu também estava com ela na mente.
Zedd ficou olhando para o vazio. — Parte de mim morreu com ela
naquele dia.
Richard demorou um momento para recuperar sua voz. — Você tem
alguma ideia de porque ela retornou para dentro da casa em chamas? Acha que
havia alguma coisa importante lá dentro? Talvez alguém sobre o qual não
soubéssemos?
Zedd balançou a cabeça de forma insistente. — Tenho certeza de que
deve ter existido alguma boa razão, mas eu mesmo vasculhei as cinzas. — os
olhos dele encheram -se de lágrimas. — Nada havia lá a não ser os ossos dela.
Richard olhou através do portal e viu a sombra espectral de Shota
sobre o cavalo dela começando a descer a estrada sem olhar para trás.

155
C A P Í T U L O 2 1

Rachel hesitou dentro da entrada escura. Estava começando a ficar


difícil enxergar. Ela gostaria de não conseguir distinguir o que estava desenhado
nas paredes, mas o fato era que conseguia. Durante todo o caminho dentro da
caverna tentou não olhar atentamente para as estranhas cenas que cobriam as
paredes de pedra ao redor dela. Algumas das imagens causavam calafrios em
seus braços. Não conseguia im aginar porque alguém iria querer desenhar coisas
tão horríveis e cruéis, mas certamente ela conseguia entender porque as
colocariam ali embaixo dentro da caverna, porque desejariam esconder tais
pensamentos sombrios da luz do dia.
Inesperadamente o homem empurrou-a. Rachel cambaleou para frente e
caiu de cara. Ela inspirou para recuperar o ar que havia sido expulso dela tão
abruptamente. Cuspiu terra enquanto erguia -se sobre os braços. Estava furiosa
demais para chorar.
Quando espiou para trás por cima do ombro ela viu que, ao invés de
observá-la, ele olhava adiante dentro da escuridão com aqueles olhos dourados
perturbadores, como se a mente dele estivesse vagando e ele houvesse esquecido
completamente dela. Rachel olhou novamente em direção à luz, imagin ando se
conseguiria passar pelas longas pernas dele. Concluiu que poderia fingir seguir
para um lado e então desviar para o outro. Isso poderia funcionar. Mas ele era
muito maior do que ela e sem dúvida podia correr mais rápido mesmo se as
pernas dela não estivessem tão fracas por terem ficado amarradas durante tanto
tempo. Se ao menos ele não tivesse retirado as facas dela. Ainda assim, se ela
fosse rápida, pensou que possivelmente conseguiria ser capaz de abrir uma boa
vantagem.
Antes que tivesse uma cha nce para tentar, o homem notou -a outra vez.
Agarrou-a pelo colarinho e levantou -a, então empurrou-a adiante, mais fundo
dentro da bocara escura da caverna. Rachel lutou para equilibrar -se sobre
projeções rochosas e para saltar fissuras. Vendo algum tipo de movimento a
frente, ela fez uma pausa.
— Ora, ora… — surgiu uma voz aguda do meio da escuridão. —
Visitantes.
A última palavra foi esticada tanto que quase soou como o sibilar de
uma cobra.
A pele de Rachel ficou fria como gelo enquanto ela olhava fixa mente,
de olhos arregalados, dentro da escuridão, temendo quem poderia ser a dona de
uma voz como aquela.
Da escuridão, como que do próprio Submundo, uma sombra
materializou-se, deslizando adiante para dentro da fraca luz.
Porém, sombras não sorriam, per cebeu Rachel. Essa era uma mulher,
uma mulher alta usando um longo manto preto. Seu cabelo comprido também era
preto. Em contraste, sua pele era tão pálida que fazia o rosto dela quase parecer
estar flutuando sozinho na escuridão. Isso fez Rachel lembrar d a pele de uma
salamandra albina que escondia -se embaixo de folhas no chão da floresta
durante o dia, jamais sendo tocada pela luz do sol. Toda ela, desde o tecido
negro grosso do seu vestido, a carne ressequida esticada sobre as articulações
dos dedos, até o cabelo duro, parecia tão seca quanto uma carcaça queimada

156
pelo sol.
Ela exibia o tipo de sorriso que, Rachel imaginou, um lobo exibiria
quando o jantar surgia inesperadamente.
Embora seus olhos fossem azuis, eram de um azul que era tão pálido
quanto sua pele, de forma que ela quase parecia cega. Mas a forma como aqueles
olhos deliberadamente observavam Rachel não deixou dúvida de que essa era
uma mulher que não apenas conseguia enxergar bem na luz, mas provavelmente
na escuridão também.
— É melhor que valha a pena, — falou o homem atrás de Rachel. — A
pestinha me esfaqueou na perna.
Rachel olhou para trás por cima do ombro. Ela não sabia o nome do
homem. Ele não havia se preocupado em dizer. Desde o momento em que
capturou-a ele havia falado pouco, de fato, como se ela não fosse alguém mas
apenas uma coisa... um objeto inanimado... que ele simplesmente havia
coletado. O jeito como ele a tratara fizera com que ela sentisse como se não
fosse mais do que um saco de grãos atirado sobre a parte de trás da s ela dele.
Mas, nesse momento, o pesar, o medo, a sede, e a fome durante a longa jornada
eram apenas leves irritações no fundo da mente dela.
— Você matou Chase. — disse ela. — Merece mais do que aquilo que
eu fiz.
A mulher franziu a testa. — Quem?
— O homem que estava com ela.
— Ah, ele. — falou a mulher de preto. — E você o matou? — ela
pareceu apenas levemente curiosa. — Tem certeza? Você enterrou ele?
Ele balançou os ombros. — Acho que ele está morto... homens não
recuperam-se de ferimentos como aqu eles. A feitiço ocultou -me muito bem,
exatamente como você prometeu que ele o faria, então ele não notou que eu
estava lá. Porém, não perdi tempo parando para enterrá -lo, já que sabia que você
queria que eu voltasse o mais rápido possível.
O leve sorriso dela cresceu. Aproximando -se ainda mais, ela
finalmente esticou o braço e deslizou os dedos longos e finos sobre o volumoso
cabelo dele. Seus olhos azuis fantasmagóricos o estudaram intensamente.
— Muito bem, Samuel, — ela sussurrou. — muito bem.
Samuel pareceu comum cão de caça que estava recebendo uma
coçadinha atrás das orelhas. — Obrigado, Senhora.
— E você trouxe o resto?
Ele assentiu com entusiasmo. Um sorriso aqueceu o rosto dele. Rachel
o considerava um homem de aparência fria, talvez por causa dos seus estranhos
olhos dourados, mas quando ele sorriu isso pareceu mascarar sua natureza. Com
aquele sorriso ele era um homem de melhor aparência do que a maioria, embora
para Rachel ele fosse, e sempre seria, um monstro. Um sorriso caloroso não
mudaria o que ele tinha feito.
De repente Samuel pareceu estar com bom humor. Rachel nunca tinha
visto ele tão feliz assim. Ainda que na maior parte do tempo ela tivesse ficado
dentro de um saco, amarrada sobre a traseira do cavalo dele, então ela concluiu
que na verdade não sabia se ele estivera de bom humor ou não. Na verdade ela
não se importava.
Só queria ele morto. Ele matou Chase, a melhor coisa que já tinha
acontecido em toda a vida de Rachel. Chase era o melhor homem que já vivera.
Chase acolheu -a depois que ela escapou da Rainha Milena, do castelo em
Tamarang, e daquela terrível Princesa Violeta. Chase amou -a e havia tomado

157
conta dela. Ensinou a ela coisas sobre cuidar de si mesma. Ele tinha uma família
que amava e que o amava e precisava dele.
Mas agora todos eles o tinham perdido.
Chase era tão grande e tão bom com suas armas que Rachel pensava
que ninguém jamais conseguiria derrotá -lo, especialmente não um homem
sozinho. Mas Samuel apareceu como um fantasmas e furou Chase enquanto ele
dormia, atravessou-o com aquela bela espada que, Rachel sabia, não poderia
pertencer a ele. Ela odiava pensar em como ele havia conseguido aquela espada
e em quem mais ele feriu com ela.
Samuel ficou parado olhando como um idiota, seus braços pendurados,
os ombros caído s, enquanto a mulher passava os dedos em seu cabelo,
sussurrando palavras de conforto e bajulação. Isso parecia algo completamente
incompatível com ele. Até então Samuel sempre pareceu confiante. Ele sempre
deixara claro para Rachel que estava no comando. Sempre soubera exatamente o
que queria. Na presença dessa mulher, porém, ele estava diferente. Rachel meio
que esperava que a língua dele ficasse pendurada e que ele começasse a babar.
— Você disse que trouxe o resto, Samuel. — ela falou com sua voz
sibilante.
— Sim. — ele ergueu um braço em direção a luz. — Está no cavalo.
— Bem, não deixe lá fora, — disse a mulher, sua voz assumindo um
tom de impaciência. — Vá lá buscar.
— Sim… sim, imediatamente. — ele pareceu bastante ansioso para
satisfazer a vontade dela e partiu.
Rachel observou ele correndo de volta através da caverna, seguindo
seu caminho sobre rochas que jaziam em seu caminho, às vezes usando as mãos
no chão para obter equilíbrio, passando velozmente pela apavorante galeria de
desenhos e em di reção à entrada da caverna. Então ela notou a luz bruxuleando
nas paredes escuras. Quando ouviu o chiado ela percebeu que era luz de uma
tocha. Ela virou para ver mais alguém, carregando uma tocha, surgindo do meio
das trevas.
Rachel ficou de boca aberta.
Era a Princesa Violeta.
— Ora, ora, se não é a órfã Rachel retornando para nós. — Violet disse
enquanto enfiava a tocha em um suporte na parede de pedra antes de assumir um
lugar ao lado da mulher de preto.
Os olhos de Rachel pareciam que iriam saltar das órbitas. Parecia que
ela não conseguia fechar a boca. A voz dela havia desaparecido dentro do
buraco em seu estômago.
— Ora, Violeta, querida, acho que você assustou a coisinha sem
inteligência. Perdeu a sua língua, pequenina?
Foi a Princesa Violeta quem perdeu a língua. Mas agora ela estava de
volta. De alguma forma, impossível quanto parecia, ela estava de volta.
— Princesa Violeta…
A costa de Violeta ficou ereta quando ela endireitou os largos ombros.
Ela parecia estar mais alta do que na última vez em que Rachel a tinha visto.
Estava com aparência mais carnuda. Com aparência mais velha.
— Agora é Rainha Violeta.
Rachel piscou, surpresa. — Rainha… ?
Violeta sorriu de um jeito que poderia ter congelado uma fogueira.
— Sim, isso mesmo. Rainha. M inha mãe, veja bem, foi assassinada
quando aquele homem, Richard, escapou. Isso ele quem fez isso. Ele é

158
responsável pela morte de minha mãe, pela morte da nossa amada antiga Rainha.
Para nós ele nada trouxe a não ser pesar e tempos terríveis. — ela soltou um
suspiro. — As coisas mudaram. Agora eu sou a Rainha.
Rachel não conseguia fazer aquilo encaixar em sua mente. Rainha.
Tudo isso parecia impossível. Porém, o mais surpreendente era que Violeta
pudesse falar novamente depois de ter perdido a língua.
Um sorriso afetado surgiu nos lábios de Violeta quando sua cabeça
abaixou. — Ajoelhe-se diante de sua Rainha.
Rachel pareceu não conseguir entender as palavras.
A mão de Violeta veio do nada, atingindo Rachel com tanta força que
ela caiu deitada no chão. — Ajoelhe-se diante de sua Rainha!
O grito de Violeta ecoou reverberando na escuridão.
Arfando com a dor e o choque, Rachel colocou uma das mãos no lado
do rosto enquanto lutava para ficar de joelhos. Sentiu sangue quente escorrendo
por seu queixo. Violet a estava muito mais forte do que antes.
O tapa doloroso era como o último golpe sobre ela, como se tudo fosse
um sonho e ela estivesse despertando outra vez para o pesadelo de sua antiga
vida. Ela estava sozinha novamente, sem Giller, sem Richard, sem Cha se para
ajudá-la. Mais uma vez ela estava impotente diante de Violeta sem qualquer
amigo no mundo.
O sorriso de Violeta tinha desaparecido. Enquanto ela olhava para
Rachel ajoelhando diante dela, seus olhos estreitaram de uma forma que fez
Rachel engolir em seco.
— Ele me atacou, você sabe. Quando ele era o Seeker, Richard me
atacou, me feriu, sem motivo. — ela plantou os punhos nos quadris. — Ele me
machucou bastante. Atacou e feriu uma criança! Minha mandíbula foi quebrada.
Meus dentes foram despedaçado s. Minha língua foi decepada, exatamente como
ele prometeu que faria. Eu fiquei muda.
A voz dela abaixou virando um rosnado que gelou até os ossos de
Rachel. — Mas essa foi a menor parte do meu sofrimento.
Violeta deu um suspiro para acalmar -se. Com as p almas das mãos ela
alisou o vestido rosa de seda nos quadris.
— Nenhum dos conselheiros da minha mãe foram de alguma ajuda.
Eles eram tolos trapalhões quando era necessário fazer qualquer coisa que
valesse à pena. Ofereceram infinitas poções, pomadas e en cantamentos. Fizeram
orações e oferendas aos bons espíritos. Aplicaram sanguessugas e preparados
quentes. Nada disso funcionou. Minha mãe foi enterrada sem a minha presença.
Eu estava inconsciente naquele momento.
— Nem mesmo as estrelas tiveram algo a di zer sobre a minha condição
ou minhas chances. Os conselheiros em maior parte do tempo ficavam torcendo
as mãos... e provavelmente conspirando para decidirem quem roubaria a coroa
quando eu finalmente morresse. Suspeitei que não levaria muito tempo até que
um deles me ajudasse a ir para junto de minha mãe na vida seguinte. Ouvi os
sussurros preocupados deles sobre eu me tornando Rainha.
Violeta deu outro suspiro calmante. — No meio do meu pesadelo de
dor e sofrimento, de angústia e pesar, da minha crescente preocupação em ser
assassinada, Seis chegou e me ajudou. — ela apontou para a mulher parada ao
seu lado. — Justo quando eu mais precisava, Seis apareceu e ajudou a me salvar,
ajudou a salvar a coroa e a própria Tamarang, quando ninguém mais poderia ou
faria isso.
— Mas, mas... — Rachel gaguejou. — você não tem idade suficiente

159
para ser uma Rainha.
Ela soube que foi um erro no instante em que as palavras tinham saído
de sua boca, antes que o seu bom senso tivesse tempo de contê -las. A outra mão
de Violeta moveu-se, acertando Rachel na outra bochecha. Violeta segurou -a
pelo cabelo e rudemente colocou -a de joelhos novamente. Rachel colocou uma
das mãos sobre a nova dor latejante e com a outra limpou o sangue da boca.
Violeta sacudiu os ombros, indiferente à dor e ao sangue que havia
causado. — De qualquer modo, eu cresci nos últimos anos. Não sou mais a
criança que era naquela época, a criança que você ainda acha que sou, como no
tempo em que você morava aqui, aproveitando a nossa bondade e generosidade.
Rachel não achava que Violeta tivesse crescido o bastante para ser uma
Rainha, mas sabia que era melhor não dizer isso outra vez. Ela também conhecia
o suficiente para não considerar a escravidão como “bondade”.
— Seis me ajudou enquanto eu me recuperava. E la me salvou.
Rachel olhou para o pálido rosto sorridente. — Ofereci os meus
serviços. Violeta aceitou -me no castelo. Os conselheiros da mãe dela certamente
não estavam fazendo qualquer bem a ela.
— Seis usou seu poder para curar minha mandíbula quebrada e
terrivelmente infectada. Fiquei fraca sendo capaz de ingerir apenas uma sopa
rala. Com a ajuda de Seis eu finalmente consegui começar a comer outra vez e
recuperar minhas forças. Até novos dentes cresceram. Não acredito que em
alguém já tenha crescido u m terceiro conjunto de dentes, mesmo assim, comigo
aconteceu.
— Mas eu ainda não conseguia falar, então quando eu estava bem o
bastante, forte o bastante, Seis usou seus incríveis poderes e criou para mim
uma nova língua. — os punhos delas cerraram ao lad o dos quadris. — A língua
que eu perdi por causa do Seeker.
— Do antigo Seeker. — Seis corrigiu, falando suavemente.
— Do antigo Seeker. — Violet concordou, consideravelmente mais
calma.
Um sorriso presunçoso retornou ao rosto rechonchudo de Violeta. Er a
um sorriso que Rachel conhecia muito bem. — E agora você foi trazida de volta.
— seu tom expressou uma ameaça que suas palavras não haviam declarado.
— E quanto a todos os outros? — Rachel perguntou, tentando ganhar
tempo para pensar. — Todos os conselh eiros da Rainha?
— Eu sou a Rainha! — parecia que, junto com todo o resto dela, o
gênio de Violeta também havia crescido.
Um toque gentil nas costas de Seis causou um breve olhar e um sorriso
no rosto de Violeta. Outra vez ela soltou um suspiro calmante, quase como se
tivesse sido lembrada para ter cuidado com seus modos.
Finalmente ela respondeu a pergunta de Rachel. — Não preciso dos
conselheiros da minha mãe. Afinal de contas, eles foram inúteis. Agora Seis
ocupa essa posição, e ela faz isso muito mel hor do que qualquer um daqueles
tolos.
— Afinal, nenhum deles conseguiu fazer uma nova língua crescer,
conseguiu?
Rachel olhou para Seis. O sorriso de lobo estava de volta. Os olhos
azuis fantasmagóricos pareciam olhar direto dentro da alma de Rachel.
— Uma coisa assim estava muito além das habilidades deles. — a
mulher falou com uma voz tranquila, mas uma que carregava o leve tom de
profundo poder. — Porém, tudo isso estava ao alcance das minhas.

160
Rachel imaginou se Violeta tinha ordenado que todos os c onselheiros
fossem condenados à morte. Na última vez em que Rachel estivera no castelo,
Violeta, ao lado da mãe dela, estava começando a ordenar execuções. Agora que
era Rainha, com Seis apoiando ela, nada poderia conter os caprichos de Violeta.
— Seis devolveu a minha língua. Devolveu a minha voz. O Seeker
pensou que havia tirado tudo isso de mim, mas agora eu as tenho de volta.
Tamarang está segura em minhas mãos.
Se não fosse um pensamento tão apavorante, um conceito tão aterrador,
Rachel poderia ter r ido com a simples ideia de Violeta sendo Rainha. Rachel
havia sido a dama de companhia de Violeta, sua companheira... na verdade nada
mais do que sua escrava pessoal. A mãe de Violeta, Rainha Milena, tinha pego
Rachel de um orfanato, com a intenção de que ela fosse alguém sobre a qual
Violeta poderia praticar liderança, alguém mais jovem com quem Violeta
poderia lidar e abusar facilmente.
Rachel não tinha apenas escapado, ela levara a preciosa Caixa de
Orden da Rainha Milena consigo, eventualmente entregan do-a para Richard,
Zedd e Chase.
Isso aconteceu já fazia um longo tempo. Agora Violeta parecia estar no
meio da adolescência, embora Rachel não fosse boa em avaliar a idade de
pessoas mais velhas. Ela estava muito maior do que na última vez em que
Rachel a tinha visto, disso tinha certeza. O cabelo dela estava ainda mais longo.
Seus ossos ficaram mais pesados, grossos. Como o resto dela, seu rosto ainda
estava rechonchudo, mas com aqueles pequenos olhos escuros calculistas, ele
havia perdido sua qualidade infantil. O peito dela também não estava mais
plano, os seios haviam crescido. Ela parecia como uma adulta prestes a emergir
do seu casulo. Ela sempre foi bem mais velha do que Rachel, mas agora ela
parecia ter disparado e ampliado a diferença.
Mesmo assim, ela realmente não parecia velha o bastante para ser uma
Rainha.
Mas ela era Rainha.
Os joelhos de Rachel, expostos sobre a pedra, estavam ficando bastante
machucados. Porém, ela não ousou pedir para levantar. Ao invés disso, ela fez
uma pergunta.
— Violeta...
Slapt.
Antes que ela tivesse tempo para pensar, Violet golpeara,
aparentemente do nada, como se estivesse esperando por uma desculpa. A visão
de Rachel estremeceu de forma nauseante. Pareceu como se o golpe pudesse ter
arrancado dentes. Rachel checou com a língua antes de ter certeza de que eles
ainda estavam todos no lugar.
— Rainha Violeta. — Violet rosnou. — Não cometa esse erro outra vez
ou será torturada como uma instigadora de traição.
Rachel engoliu o nó de terror na garganta. — Sim, Rainha Violeta.
Violeta sorriu com o triunfo. Ela certamente era a Rainha.
Rachel sabia que Violeta possuía um gosto apenas para as coisas mais
requintadas, a decoração mais elaborada, quer fosse em tapeçarias ou pratarias,
os vestidos mais belos, e as joi as mais preciosas. Ela insistia em cercar -se com
o melhor de tudo... e isso quando ela era apenas uma Princesa. Esse fato tornava
ainda mais estranho que ela estivesse em uma caverna.
— Rainha Violeta, o que você está fazendo nesse lugar horrível?
Violeta olhou para ela durante um momento, então sacudiu o que

161
parecia um pedaço de giz na frente do rosto de Rachel. — Meu patrimônio,
minha herança.
Rachel não entendeu. — O quê?
— O meu Dom. — ela balançou os ombros. — Bem, não exatamente o
Dom, mas algo próximo disso. Veja bem, eu venho de uma longa linhagem de
artistas. Você lembra de James? O artista da corte?
Rachel assentiu. — Ele tinha apenas uma das mãos.
— Sim. — Violeta falou lentamente. — Um homem um pouco atrevido
demais para o seu próprio bem. Só porque era um parente da Rainha ele pensou
que poderia sair impune com certas indiscrições. Ele estava errado.
Rachel piscou. — Parente?
— Primo distante, ou algo assim. Ele compartilhava de algum traço da
linhagem sanguínea real. Essa linhagem sanguí nea excepcional carrega um Dom
único para um… talento artístico. A família dos governantes de Tamarang ainda
carregam um pouco desse antigo talento. Minha mãe não tinha a habilidade, mas
através dessa linhagem sanguínea, acabou acontecendo que ela passou i sso para
mim. Naquele tempo, porém, o único que nós sabíamos que ainda possuía esse
raro talento era James. Desse modo ele acabou servindo como artista da corte,
serviu à coroa, minha mãe, Rainha Milena.
— O Seeker, o Seeker anterior, Richard, antes de te r causado os
problemas que resultaram no assassinato de minha mãe, também assassinou
James. A nossa terra pela primeira vez na história estava sem os serviços de um
artista para proteger a coroa.
— Naquele tempo não estávamos cientes de que eu, de fato, c arrego o
antigo talento. — ela apontou para a mulher alta ao seu lado. — Porém, Seis viu
isso em mim. Ela falou sobre a minha extraordinária habilidade. Ela tem me
ajudado a aprender como usá -la, guiando-me em minhas… aulas de arte.
— Muitas pessoas eram contra que eu me tornasse Rainha... algumas,
até mesmo entre os mais altos conselheiros da cora. Felizmente, Seis contou
sobre as intrigas secretas. — ela ergueu o giz diante do rosto de Rachel. — Os
traidores encontraram desenhos de si mesmos aqui embaixo nessas paredes.
Certifiquei -me de que todos soubessem o que acontece com traidores. Com isso,
e com a ajuda e os conselhos de Seis, eu tornei -me Rainha. As pessoas não
ousavam mais fazerem oposição.
Quando morou no castelo, Rachel tinha pensado que Viole ta era
perigosa ao extremo. Não fazia ideia naquela época o quanto ela se tornaria
muito mais perigosa. Rachel sentiu um sentimento de esmagador desamparo.
Violeta e Seis olharam quando ouviram Samuel entrar correndo.
Temendo que Violeta decidisse bater n ela outra vez, Rachel achou melhor não
virar para olhar. Entretanto, ela conseguiu ouvir Samuel ofegante quando ele
aproximou-se.
Violeta balançou a mão, ordenando que Rachel saísse do caminho.
Imediatamente Rachel obedeceu, feliz em estar fora do alcance do braço de
Violeta, se não da autoridade dela.
Samuel tinha uma bolsa de couro fechada com um cordão.
Cuidadosamente ele colocou no chão a bolsa de couro e abriu -a. Ele olhou para
Seis. Ela girou a mão, indicando a ele para seguir logo em frente.
Parecia ser algum tipo de caixa. Quando ela saiu da bolsa, Rachel viu
que era de uma cor negra profunda. Ela pensou que todos podiam muito bem
serem sugados para dentro daquele vazio negro e desaparecer dentro do
Submundo.

162
Com uma das mãos, Samuel ofereceu a c oisa sinistra para Seis.
Sorrindo, ela pegou aquilo da mão dele.
— Como prometido, — disse ela para Violeta. — eu presenteio você
com a Caixa de Orden da Rainha Violeta.
Rachel lembrou da Rainha Milena erguendo aquela mesma caixa com o
mesmo tipo de admi rada reverência. Exceto que agora ela não estava toda
coberta de prata, ouro, e joias. Zedd tinha falado para Rachel que a verdadeira
Caixa de Orden estava por baixo daquelas joias. Essa devia ser a caixa que
estivera o tempo todo dentro quando Rachel fugi u do castelo exatamente como o
Mago Giller havia pedido que ela fizesse.
Agora Giller estava morto, Richard não tinha mais sua espada, e
Rachel estava de volta nas garras de Violeta. E agora Violeta tinha uma preciosa
Caixa de Orden, exatamente como a mãe dela teve.
Violeta sorriu de modo afetado. — Está vendo, Rachel? Que
necessidade eu tenho daqueles velhos conselheiros inúteis? Eles poderiam ter
realizado alguma das coisas que eu realizei? Veja bem, diferente daquelas
pessoas fracas com quem você estav a, eu sempre persevero até obter o sucesso.
Isso é o necessário para ser uma Rainha.
— Tenho a Caixa de Orden de volta. Tenho você de volta. — ela
balançou o giz novamente. — E terei Richard de volta para que ele encare a sua
punição.
Seis suspirou. — Já chega dessa feliz reunião. Você tem aquilo que
pediu. Samuel e eu precisamos ter uma conversa a respeito da próxima missão
dele, e você precisa voltar para sua aula de “arte”.
Violeta sorriu de forma conspiratória. — Sim, minha aula. — ela olhou
séria para Rachel. — Tem uma caixa de ferro esperando por você lá no castelo.
E depois temos a questão da sua punição.
Seis fez uma reverência. — Então, eu partirei, minha Rainha.
Violeta sacudiu a mão em um gesto de liberação. Seis agarrou o braço
de Samuel e afastou-se com ele. Ele teve que tomar cuidado ao equilibrar -se
pisando sobre pedras e ao redor delas. Seis pareceu deslizar através da fraca luz
sem qualquer dificuldade.
— Venha. — Violeta falou com o tipo de tom alegre fingido que fez o
sangue de Rachel gelar. — Você pode me observar desenhando.
Quando Violeta pegou a tocha Rachel levantou sobre pernas bambas,
então seguiu sua Rainha, a luz da chama ondulante iluminando paredes cobertas
com infinitos desenhos de coisas horríveis sendo feitas com pessoas . Não havia
um ponto nas paredes que não tivesse algum tipo de cena pavorosa. Rachel
sentia muita falta de Chase, sentia falta da proteção dele, do sorriso dele quando
ela fazia bem uma lição, da sua mão confortadora sobre o ombro dela. Amava
tanto ele. E Samuel o matou, matou todas as esperanças e sonhos dela. Ela
sentiu desespero enquanto seguia Violeta mais fundo dentro da escuridão, mais
fundo dentro da loucura.

163
C A P Í T U L O 2 2

Nicci avistou Richard a uma certa distância na longa muralha, par ado
no muro externo com ameias não muito longe da base de uma alta torre,
contemplando a cidade deserta distante lá embaixo. O crepúsculo havia
escurecido as cores do dia que morria, deixando os distantes campos verdes de
verão cinzentos. Cara permanecia n ão muito longe do lado dele, silenciosa mas
atenta.
Nicci conhecia Richard bem o bastante que podia facilmente perceber a
grande tensão em seu corpo. Conhecia Cara bem o bastante para ver o reflexo
dessa tensão espreitando na concentrada aparência calma. Nicci pressionou um
punho sobre o nó de ansiedade que apertava em seu estômago.
Acima as nuvens cinzentas deslizavam, soltando uma ocasional gota de
chuva. Um trovão distante ribombou através das passagens nas montanhas,
prometendo uma noite tempestuosa q ue estava por vir. A despeito das sinistras
nuvens escuras, o ar estava estranhamente parado. O calor do dia havia sumido
abruptamente, como se tivesse fugido antes da tempestade que estava prestes a
irromper.
Quando ela parou, Nicci descansou uma das mão s sobre o muro com
ameias e inspirou profundamente o ar húmido.
— Rikka disse que você precisava falar comigo. Ela falou que era
urgente.
Richard parecia um adversário a altura da tempestade que nascia. —
Preciso partir. Imediatamente.
De algum modo Nicci estava esperando exatamente isso. Ela olhou
além de Richard, para Cara, mas a Mord -Sith não mostrou reação. Richard
estivera pensativo durante dias. Ele estivera tranquilamente distante enquanto
considerava tudo que aprendera de Jebra e Shota. Zedd acon selhara Nicci a
deixá-lo fazer a sua reflexão. Nicci não precisava de tal conselho;
provavelmente ela conhecia o mal humor dele melhor do que qualquer um.
— Vou com você. — ela falou, deixando claro que não deixava
margem para discussão.
Ele assentiu distraidamente. — Será bom ter você comigo.
Especialmente para isso.
Nicci estava aliviada por ele não ter discutido, mas o nó de ansiedade
aumentou com a última parte daquilo que ele disse. Havia uma palpável
sensação de perigo no ar. Nesse momento a preocu pação dela era garantir que,
seja lá o que ele estiver prestes a fazer, ele tivesse a melhor proteção que ela
pudesse fornecer.
— E Cara também vai.
Ainda assim, ele continuou olhando para o vazio. — É claro.
Ela percebeu que ele estava olhando para o s ul. — Agora que Tom e
Friedrich voltaram, Tom insistirá em ir junto também. Os talentos dele serão
valiosos.
Tom era um membro de uma equipe de elite de protetores do Lorde
Rahl. Independente da sua aparência amável, Tom era mais do que formidável
em seu dever. Homens como ele não eram designados a postos como esse de
garantir proteção do Lorde Rahl porque tinham belos sorrisos. Como outros

164
protetores D’Haranianos do Lorde Rahl, Tom passara a sentir paixão em seu
dever de proteger Richard.
— Ele não pode vir conosco, — disse Richard. — nós viajaremos
através da Sliph. Somente Cara, você, e eu somos capazes de viajar na Sliph.
Nicci engoliu em seco diante do pensamento em uma jornada assim. —
E para onde vamos, Richard?
Após longo tempo, os olhos cinzento s dele voltaram-se para ela. Ele
olhou dentro dos olhos dela com aquele jeito dele, como se estivesse olhando
dentro da alma dela.
— Eu descobri. — ele falou.
— Você descobriu o quê?
— O que devo fazer.
Nicci conseguiu sentir os dedos formigando com um medo sem forma.
A expressão de terrível determinação nos olhos cinzentos dele deixou seus
joelhos fracos.
— E o que você deve fazer, Richard?
Ele pensou durante um instante. — Eu agradeci a você por ter detido
Shota quando você fez isso, quando ela estav a tocando em mim?
Nicci não estava desnorteada com a súbita mudança de assunto de
Richard. Havia aprendido que esse era o jeito de Richard. Isso era algo
especialmente característico quando ele estava profundamente preocupado.
Quanto mais agitado ele esta va, parecia que mais coisas havia em sua cabeça ao
mesmo tempo, como se os pensamentos dele estivessem em um turbilhão de
atividade interior que fazia tudo vir à tona nessa velocidade tumultuada.
— Você falou isso para mim, Richard.
Centenas de vezes.
Ele assentiu levemente. — Bem, obrigado.
A voz dele tinha ficado ausente, distante, como se houvesse descido
novamente nas escuras profundezas de alguma equação interior da qual dependia
o futuro. — Ela estava fazendo alguma coisa dolorosa com você, não es tava.
Isso não foi uma pergunta, mas uma afirmação na qual Nicci acreditava
mais e mais nos dias após a visita de Shota. Nicci não sabia o que Shota tinha
feito, mas gostaria de não ter permitido nem mesmo aquele breve toque. Não
havia como dizer o que a Bruxa podia ter feito naquele toque, mesmo tão breve
quanto foi. Afinal de contas, um raio também é breve. Richard não falou o que
Shota mostrou a ele, mas esse era um terreno em que Nicci, por alguma razão,
temia trilhar.
Richard soltou um suspiro. — Sim, estava. Estava mostrando para mim
a verdade. Através dessa verdade, em parte, foi como eu finalmente entendi o
que devo fazer. Independente do quanto eu tenha medo disso…
Quando ele mergulhou no silêncio, Nicci o incentivou pacientemente.
— Então, o que você descobriu que deve fazer?
Os dedos de Richard pressionaram sobre a rocha quando ele
contemplou mais uma vez o campo que escurecia abaixo, e depois o sombrio
amontoado de montanhas erguendo -se além.
— Eu estava certo no início. — seu olhar desviou p ara Cara. —
Quando levei você e Kahlan para as montanhas em Westland.
Cara franziu a testa. — Lembro de você dizendo que retornaríamos até
aquelas montanhas desertas porque compreendeu que não poderíamos vencer a
guerra lutando contra o exército da Ordem Imperial. Você falou que não poderia
liderá-los em uma batalha que eles certamente perderiam.

165
Richard assentiu. — E eu estava certo. Sei disso agora. Não podemos
vencer contra o exército deles. Shota ajudou -me a enxergar isso. Ela podia estar
tentando me convencer de que eu devo lutar essa batalha, mas em parte, por
causa daquilo que ela e Jebra mostraram, agora eu sei que não podemos vencer.
— Agora eu sei o que devo fazer.
— E o que seria isso? — insistiu Nicci.
Richard finalmente afastou -se do merlão de pedra. — Temos que
partir. Não tenho tempo para explicar tudo agora.
Nicci caminhou atrás dele. — Eu juntei algumas coisas. Elas estão
prontas. Richard, porque não pode falar o que decidiu?
— Falarei, — disse ele. — mais tarde.
— Está perdendo o seu tempo. — Cara falou baixinho para Nicci
quando ficou junto com ela atrás de Richard. — Já nadei nesse rio até ficar
cansada demais para continuar nadando.
Richard, ouvindo o comentário de Cara, segurou Nicci pelo braço e
puxou-a para frente. — Não acabei de pensar em tudo. Preciso terminar de
encaixar tudo. Explicarei quando chegarmos lá, explicarei para todos... mas
nesse momento não temos tempo. Está bem?
— Chegarmos aonde? — perguntou Nicci.
— Até o exército D’Haraniano. A força principal de Jagang em breve
seguirá para dentro de D’Hara. Tenho de falar para nosso exército que não
temos chance de vencer a batalha que aproxima -se deles.
— Isso deve alegrar o dia deles. — Cara disse. — Nada faz um soldado
sentir-se melhor na véspera da batalha do que o l íder dele dizendo que estão
prestes a perderem a batalha e morrer.
— Você quer contar uma mentira para eles ao invés disso? — ele
perguntou.
A única resposta de Cara foi um olhar raivoso.
No final da muralha Richard abriu a pesada porta de carvalho na b ase
da torre. Dentro havia uma sala onde algumas das lamparinas já estavam acesas.
Nicci podia ouvir pessoas subindo apressadas os degraus de pedra ao lado.
— Richard! — era Zedd logo atrás do grande D’Haraniano loiro, Tom.
Richard parou, esperando seu a vô alcançar o topo dos degraus e entrar
na sala simples de pedra. Zedd aproximou -se rapidamente, engolindo ar.
— Richard! O que está acontecendo? Rikka apareceu apressada
dizendo que vocês estavam partindo.
Richard assentiu. — Queria que vocês soubessem que tenho de partir,
mas não ficarei fora muito tempo. Voltarei em alguns dias. Com sorte, nesse
meio tempo você, Nathan e Ann podem encontrar alguma coisa nos livros que
ajude com o feitiço Cadeia de Fogo . Talvez vocês até consigam encontrar
alguma solução para a contaminação das Notas.
Zedd balançou a mão de forma irritada com a sugestão. — Enquanto
cuidamos disso, você gostaria que eu livrasse o céu daquela tempestade?
— Zedd, não fique zangado comigo, por favor. Eu preciso ir.
— Está certo, mas para onde você vai... e porque?
— Estou pronto, Lorde Rahl. — Tom falou quando entrava rapidamente
na sala.
— Sinto muito, — Richard disse a ele. — mas você não pode ir.
Precisaremos entra na Sliph.
Zedd jogou os braços para cima. — A Sliph! Você faz o melhor que
pode para me convencer de que a magia está falhando, e agora pretende colocar

166
a sua vida nas mãos de uma criatura de magia? Está ficando maluco, Richard? O
que está acontecendo?
— Estou ciente do perigo, mas devo correr o risco. — Richard
apontou. — Sabe aquele símbolo da estrela brilhando na porta do Enclave do
Primeiro Mago, lá em cima? — quando Zedd assentiu, Richard tocou na ponta da
faixa em seu pulso. — É o mesmo que esse aqui.
— E daí? — perguntou Zedd.
— Lembra que falei a você que isso tem significado? É um aviso para
não permitir que a sua visão concentre -se em uma coisa. É um aviso para olhar
todos os lados ao mesmo tempo, para não enxergar qualquer coisa excluindo
todo o resto. Significa que você não deve permitir que o inimigo atraia su a
atenção e faça você focar naquilo que ele quer que você veja. Se fizer isso, você
ficará cego em relação a todas as outras coisas.
— É isso que eu estive fazendo. Jagang esteve me forçando... forçando
todos... a focar em uma coisa. Como um tolo, eu esti ve fazendo exatamente isso.
— O exército dele. — Nicci sugeriu. — É isso que você quer dizer?
Que todos nós estivemos focando na força invasora dele?
— Isso mesmo. Essa estrela brilhando significa que você deve estar
aberto a tudo que existe, jamais conc entrando-se em uma coisa, mesmo quando
estiver cortando o seu inimigo. Isso significa que ao invés de focar em uma
coisa, você deve abrir sua mente para tudo, mesmo quando é necessário manter
aquela ameaça principal no centro da sua atenção.
Zedd inclinou a cabeça. — Richard, você tem que focar na ameaça que
está prestes a matá -lo. O exército dele tem milhões de homens. Eles estão vindo
para esmagar toda oposição e escravizar todos nós.
— Eu sei. É por isso que não podemos lutar com eles; nós perderemos.
O rosto de Zedd ficou vermelho. — Então você propõe permitir que o
exército dele entre no Mundo Novo sem oposição? O seu plano é deixar que o
exército de Jagang domine livremente cidades e permitir que aconteçam todas as
coisas que Jebra falou que acontece ram em Ebinissia? Quer permitir tão
facilmente que todas aquelas pessoas sejam assassinadas ou escravizadas?
— Pense na solução, — Richard lembrou a seu avô. — não no
problema.
— Não é um conselho muito confortador para aqueles que estão com as
gargantas sendo cortadas.
Richard congelou e olhou fixamente para seu avô, aparentemente
silenciado pelas palavras de Zedd.
— Olhe, — finalmente Richard disse, passando os dedos pelos cabelos.
— eu não tenho tempo para isso agora. Conversarei com você a respeito disso
quando eu voltar. O tempo é essencial. Eu já desperdicei ele demais. Só espero
que ainda tenhamos tempo suficiente.
— Tempo suficiente para o que? — Zedd rugiu.
Nicci escutou passos subindo na escadaria. Jebra entrou velozmente na
sala.
— O que está acontecendo? — ela perguntou a Zedd.
Zedd balançou uma das mãos em direção a Richard. — Meu neto
decidiu que devemos perder a guerra, que não devemos lutar contra o exército
de Jagang.
— Lorde Rahl, não pode estar falando sério. — disse ela. — Não pode
seriamente considerar permitir que aqueles brutos… — a voz de Jebra sumiu
quando ela caminhou adiante, olhando para Richard. Ela parou no meio de um

167
passo. Ela recuou depressa.
O sangue desaparecendo do seu rosto.
Ela ficou de boca aberta. A mandíbula dela tremeu enquanto ela
tentava sem sucesso colocar para fora as palavras. Sua feição dominada pelo
medo.
Seus olhos azuis giraram quando ela desmaiou.
Quando ela caiu para trás, Tom segurou -a nos braços e colocou -a
gentilmente no chão de granito. Todos reuniram -se ao redor da mulher
inconsciente.
— O que aconteceu? — Tom perguntou.
— Não sei. — falou Zedd enquanto ajoelhava ao lado da mulher,
encostando os dedos na testa dela. — Ela desmaiou, mas não tenho certeza do
motivo.
Richard seguiu em direção a porta que abria para os degraus de ferro
descendo pelo lado de dentro da torre. — Deixarei você cuidar dela, Zedd...
você é o especialista em cura. Ela está em boas mãos. Não posso perder mais
tempo nesse momento.
Do portal, ele virou para trás. — Voltarei o mais rápido que puder...
prometo. Não devemos levar mais do que alguns dias.
— Mas Richard...
Ele já tinha começado a descer os degraus de ferro. — Eu voltarei. —
ele gritou para eles, sua voz ecoando da penumbra.
Sem hesitar, Cara seguiu ele des cendo na torre escura.
Nicci não queria deixar ele ir longe demais sem ela, mas sabia que ele
teria que invocar a Sliph, então tinha alguns instantes. Enquanto Zedd checava
diferentes pontos na cabeça de Jebra, Nicci agachou ao lado dela, do lado oposto
a ele.
Nicci sentiu a testa da mulher. — Ela está ardendo.
Zedd olhou de uma forma que quase parou o coração de Nicci. — É
uma visão.
— Como você sabe?
— Conheço a respeito de videntes em geral e a respeito dessa em
particular. Ela teve uma visão podero sa. Jebra é mais sensível do que a maioria
dos videntes. Suas emoções, com um certo tipo de visão, às vezes tomam conta
dela. Essa visão deve ter sido algo que foi tão poderoso que a deixou
inconsciente.
— Acha que foi sobre Richard?
— Não há como afirma r. — disse o velho mago. — Ela terá que nos
contar.
Zedd podia não estar disposto a arriscar um palpite, mas Jebra tinha
olhado dentro dos olhos de Richard pouco antes de desmaiar. Nicci não tinha
tempo para ser discreta. Ela não podia permitir que Richar d partisse sem ela... e
sabia que ele faria isso se não estivesse lá quando ele estivesse pronto para ir...
mas ao mesmo tempo não podia partir sem saber se Jebra tivera uma visão a
respeito dele que poderia revelar algo importante.
Nicci enfiou a mão por baixo do pescoço da mulher, pressionando os
dedos na base do crânio de Jebra.
— O que você está fazendo? — Zedd perguntou, desconfiado. — Se
está fazendo o que acho que está fazendo, isso não é uma coisa apenas
imprudente mas perigosa.
— A ignorância também. — Nicci disse enquanto liberava um fluxo de

168
poder.
Os olhos de Jebra abriram. Ela arfou.
— Não…
— Pronto, pronto, — Zedd confortou -a. — está tudo bem, minha
querida. Estamos bem aqui com você.
— O que você viu? — Nicci perguntou, indo direto ao p onto.
Os olhos assustados de Jebra voltaram -se para Nicci. Ela ergueu a mão
e segurou o colarinho do vestido de Nicci.
— Não deixe ele sozinho!
Não era necessário que Nicci perguntasse a Jebra de quem ela estava
falando. — Porque? O que você viu?
— Não deixe ele sozinho! Não deixe ele sair da sua vista... nem por um
instante!
— Porque? — Nicci perguntou outra vez. — O que acontecerá se ele
for deixado sozinho?
— Se você deixá -lo sozinho, ele estará perdido para nós.
— Como? O que você viu?
Jebra esticou os braços e com os dois punhos puxou o rosto de Nicci
mais perto. — Vá. Não deixe ele ficar sozinho. O que eu vi não importa. Se ele
não estiver sozinho, então isso não pode acontecer. Você entendeu? Se deixar
ele separar-se de você e Cara aquilo que eu vi não terá importância... não terá
importância para qualquer um de nós. Não posso dizer a você os meios de
separação, apenas que não importa o que acontecer você não deve permitir que
isso aconteça. Isso é tudo que importa. Vá! Fique com ele!
Nicci engoliu em seco quando assentiu.
— É melhor fazer o que ela diz. — Zedd falou para Nicci. — Nada
posso fazer nesse caso. Depende de você.
Ele esticou o braço e segurou a mão dela, não como Primeiro Mago,
mas como avô de Richard. — Fique junto dele, Nicci. Proteja-o. De tantas
maneiras ele é o Seeker, o Lorde Rahl, o líder do Império D’Haraniano, mas de
outras formas ele ainda é um guia florestal em seu coração. Ele é o nosso
Richard. Proteja -o, por favor. Todos estamos dependendo de você.
Nicci olhou fixam ente para ele, fazendo um apelo que pareceu
inesperadamente pessoal, em apelo que pareceu elevar -se acima de todas as mais
amplas necessidades de proteger a liberdade do Mundo Novo e reduzir tudo isso
ao simples amor por Richard, o homem. Ela compreendeu n aquele instante que
sem a preocupação sincera e simples com Richard como indivíduo, nada do resto
importava.
Quando ela começou a levantar, Jebra puxou Nicci de volta. — Essa
não é uma visão do tipo “talvez”, uma possibilidade. Isso é certo. Não deixe ele
ficar sozinho ou ele ficará a mercê deles.
— A mercê de quem?
Jebra mordeu o lábio inferior enquanto seus olhos azuis enchiam -se de
lágrimas. — A Bruxa Negra.
Nicci sentiu um golpe de gélido pavor em seus ombros.
— Vá. — Jebra sussurrou. — Por favor, vá. Depressa. Não deixe ele
partir sem você.
Nicci levantou rapidamente e correu pela sala. No portal ela fez uma
pausa e virou para trás. Seu coração estava batendo tão forte que fez ela
cambalear.
— Eu juro, Zedd. Ele terá minha proteção enquanto eu es tiver

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respirando.
Ela observou quando Zedd assentiu, uma lágrima deslizando por sua
bochecha envelhecida. — Depressa.
Nicci virou e correu descendo os degraus de ferro, dois de cada vez,
suas pisadas ecoando na enorme torre. Ela imaginou o que mais Jebra viu em sua
visão que aguardava Richard se ele acabasse afastando -se delas, se ele fosse
deixado só, mas no final Nicci decidiu que realmente não importava qual era
aquele destino na visão, importava apenas que, independente de qualquer coisa,
Nicci não permitisse que ele acontecesse.
Morcegos voavam em nuvens ondulantes no alto dentro da torre, saindo
pelas janelas abertas no topo, concentrados em sua caçada noturna, enquanto
Nicci descia correndo os degraus. O som de milhares de asas fazia parecer como
se a torre estivesse expirando em um longo gemido baixo. Ela passou por portas
de ferro em patamares se parar. Às vezes teve que segurar no corrimão para
manter o equilíbrio. No fundo ela correu ao redor da passagem que ladeava a
água fétida parada no fundo da torre. A água negra ondulava enquanto pequenas
criaturas deslizavam dentro do santuário escuro.
Nicci correu através do portal que tinha sido aberto quando Richard
destruiu a grande barreira que um dia separou o Mundo Antigo do Novo. As
torres que ene rgizavam aquela barreira estiveram de pé desde a Grande Guerra,
fazia três mil anos. Em tempos mais recentes, Jagang e seu exército da Ordem
Imperial estiveram sendo mantidos afastados, incapazes de cruzarem aquela
barreira. Mas Richard destruiu aquelas to rres para conseguir retornar ao Mundo
Novo após ter sido mantido no Palácio dos Profetas, e como resultado a Ordem
Imperial ficara solta no Mundo Novo. A guerra não era culpa de Richard, mas
ela não podia ter sido reacesa sem aquele ato.
Richard e Cara estavam parados, esperando, no muro do grande poço
da Sliph, a criatura que havia sido isolada junto com o Mundo Antigo durante
todo o tempo que a grande barreira estivera de pé.
Atrás de Richard e Cara o rosto de mercúrio da Sliph observou Nicci
quando ela entrou apressada na sala. — Você deseja viajar? — a Sliph perguntou
com aquela voz estranha que ecoou pela sala.
— Sim, eu desejo viajar. — Nicci falou sem fôlego enquanto pegava
sua mochila. Cara devia ter colocado ali para ela. — Obrigada. — disse ela para
a Mord-Sith.
Richard esticou a mão quando Nicci enfiou um braço por uma alça e
erguia a mochila nas costas. — Vamos lá.
Nicci segurou a mão dele, deixando que ele a erguesse para cima do
muro com um forte puxão. Parecia que o coração de Nicci estava subindo até a
garganta. Já tinha viajado e então ela conhecia o êxtase arrebatador da
experiência, e mesmo assim não conseguia evitar sentir medo de respirar o
mercúrio vivo da Sliph. Um conceito como esse simplesmente era contra a
simples ideia do ar da vida.
— Você ficará satisfeita. — a Sliph disse quando Nicci juntava -se aos
outros. Nicci não argumentou.
— Vamos lá. — Richard falou. — Eu desejo viajar.
Um braço reluzente ergueu -se saindo da piscina para envolver Richard
e Cara, mas não Nicci.
— Espere! — disse Nicci. — Devo ir junto com eles. — a Sliph parou.
— Escute, Richard. Você tem que segurar a mão de Cara e a minha. Não solte
por motivo algum.

170
— Nicci, você já fez isso. Será...
— Escute! Cara e eu estamos confiando em você, e você deve conf iar
em nós. Não pode separar -se de nós. Por motivo algum. Nem por um instante. Se
isso acontecer então você estará perdido. Se isso acontecer então qualquer coisa
que você tenha planejado não vai acontecer.
Richard avaliou o rosto dela silenciosamente dur ante um momento. —
Jebra teve uma visão de alguma coisa acontecendo?
— Apenas se você separar -se de nós. Apenas se você estiver sozinho.
— O que ela viu?
— A Bruxa, Seis. Jebra chamou -a de “Bruxa Negra”.
— Richard observou o rosto dela por um instante. — Shota vai atrás de
Seis.
— Pode ser, mas Seis já usurpou a autoridade de Shota no próprio
território dela.
— Talvez por enquanto. Mas eu não desejaria ser ela quando Shota
alcançá-la. Shota cobriu o trono dela com a pele da última pessoa que veio
tomar o lar dela, e ele era um mago.
— Não duvido do quanto Shota é perigosa, mas não sabemos o quanto
Seis é. O Dom é diferente em indivíduos diferentes. No final Shota poderia
acabar não sendo páreo para a habilidade de Seis. Eu sei que as Irmãs do Escuro
tinham medo dela. Jebra teve uma visão terrível e diz que você não deve ser
deixado sozinho. Não pretendo permitir que a visão dela tenha chance de
ocorrer.
Ele deve ter lido a determinação no rosto de Nicci, porque assentiu. —
Tudo bem. — ele segurou a mão dela e então segurou a de Cara. — Então, não
solte, e não teremos que nos preocupar.
Nicci apertou a mão dele concordando. Ela inclinou -se para falar com
Cara. — Você entendeu? Não podemos deixar ele sair de nossa vista. Nem por
um instante.
A testa de Cara franziu em uma expressão sombria. — Desde quando
eu quis permitir que ele ficasse fora de minha vista?
— Para onde você deseja viajar? — perguntou a Sliph.
Nicci olhou para Richard e Cara e percebeu que a pergunta foi
direcionada a ela.
— Para onde eles estiverem indo.
O rosto prateado fez uma careta. — Não posso revelar o que meus
outros clientes fazem quando estão em mim. Diga -me o que deseja e eu a
satisfarei.
Nicci lançou um olhar para Richard.
— Ela jamais revela qualquer coisa sobre qualque r pessoa; é um tipo
de segredo profissional. Nós vamos para o Palácio do Povo.
— O Palácio do Povo. — Nicci falou. — Desejo viajar até o Palácio do
Povo.
— Ela vai junto comigo e Cara. — disse Richard para a Sliph. — Para
o mesmo lugar. Você entendeu? El a deve permanecer conosco enquanto
viajamos até lá.
— Sim, Mestre. Nós viajaremos. — o rosto, parecido com uma estátua
altamente polida, sorriu. — Você ficará satisfeito.
O braço prateado líquido envolveu os três, carregando -os do muro. A
mão de Nicci apertou mais forte a mão de Richard.
Quando eles mergulharam na total escuridão da Sliph, Nicci prendeu a

171
respiração. Ela sabia que tinha de respirar, mas a simples ideia de respirar o
líquido prateado a deixava apavorada.
— Respire.
Finalmente ela o fez, uma arfada desesperada arrastando a Sliph para
dentro dos seus pulmões. Cores, luz, e formas fundiram -se ao redor dela em uma
exibição espetacular. Nicci segurou firme a mão de Richard enquanto eles
deslizavam dentro da distância. Foi uma gloriosa sensaçã o flutuante de um voo a
uma velocidade impossível.
Ela inspirou outra quantidade da essência estonteante da Sliph. Foi
uma gloriosa libertação de tudo que a assombrava, do peso esmagador em sua
alma. A ela restava apenas aquela conexão com Richard. Nada m ais havia.
Ninguém mais existia.
Era um êxtase.
Ela queria que isso jamais terminasse.

172
C A P Í T U L O 2 3

Kahlan observou enquanto as três Irmãs olhavam para longe,


procurando qualquer movimento. Com o sol descendo, as sombras estavam
começando a fundirem-se em uma névoa sombria. No horizonte ao sul um feixe
de luz do dia brilhava sob nuvens cinzentas ameaçadoras que aumentavam em
um céu violeta escuro. O topo das nuvens eram tocados por um banho de luz
vermelha que conferia ao anoitecer uma estr anha qualidade parecida com a de
um sonho.
O céu nesse lugar, tão frequentemente cheio de nuvens monumentais,
parecia avassaladoramente imenso, fazendo Kahlan sentir -se pequena e
insignificante. Os terrenos planos ao sul estendiam -se infinitamente ao
horizonte solitário. Pouca vegetação crescia em um lugar desolado como esse, e
aquela que crescia era encontrada em maior parte nos lugares mais baixos.
As nuvens deslizando pela paisagem arrastavam colunas de chuva mas,
tão vasto como era o lugar, as chuvas nunca pareciam mais do que um fenômeno
distante, isolado. Kahlan suspeitou que se alguém ficasse parado no mesmo
local durante um ano esperando que uma daquelas chuvas aleatórias cruzasse
acima de sua cabeça, isso provavelmente não aconteceria. A paisagem estéril
fazia a vida parecer frágil e desprezada. Apenas as montanhas ao norte e leste
pareciam capazes de extrair chuva do cortejo de nuvens. Como resultado, as
árvores não aventuravam -se descendo do seu refúgio montanhoso.
Quando os cavalos bufaram e ba teram os cascos, Kahlan puxou as
rédeas com mais firmeza e coçou distraidamente um dos animais sob a
mandíbula para assegurar a ele que tudo estava bem. O cavalo encostou nela o
focinho gentilmente, querendo mais. Enquanto aguardava, Kahlan desviou o
olhar da desolação assombrosa e aplicou uma coçadinha mais atenta no cavalo.
Ao longe ela podia ver onde a parede de montanhas desaparecia em um
massivo promontório. Aquele promontório, como a cauda de alguma best a
adormecida, parecia estar nas ponta meridiona l das montanhas que elas
estiveram seguindo ao sul. Kahlan gostaria que estivesse de volta naquelas
montanhas. As montanhas transmitiam a ela uma sensação de santuário,
provavelmente porque, diferente das planícies abertas, ela não sentia como se
qualquer pessoa há milhas de distância ao redor pudesse enxergá -la. Ali fora em
terreno aberto ela sentia -se nua e exposta. Percebeu que realmente não sabia
porque deveria sentir-se desse jeito, uma vez que dificilmente poderia estar em
uma circunstância pior do qu e ser uma escrava das Irmãs.
Kahlan achou que conseguia ver o que pareciam construções no
promontório distante. Se os seus olhos não a estavam enganando, as construções
pareciam provavelmente nada além de ruínas. Se realmente eram construções,
então algum as da estruturas pareciam possuir telhados. Aquilo que no início não
fizera sentido finalmente começou a fazer quando ela considerou se, o que
podiam ter sido paredes, tivessem desmoronado há muito tempo; isso explicaria
as formas estranhas. Ela não viu qu alquer sinal de pessoas. Provavelmente elas
também haviam sido esquecidas.
Mesmo se realmente fossem construções abandonadas, lugares
abandonados não deixavam as Irmãs menos cuidadosas do que seriam com
qualquer outro local. A cautela delas parecia ter na scido de uma sensação de que

173
o completo e total domínio estava quase ao alcance. Porém, nesse lugar, Kahlan
compartilhava da preocupação delas.
As três Irmãs estiveram em silêncio durante a maior parte do dia,
falando apenas quando necessário. A costa do ombro de Kahlan ainda latejava
de dor onde Irmã Ulicia havia golpeado inesperadamente. Não foi uma punição
por qualquer transgressão... real ou imaginada... mas, ao invés disso, aquilo
tinha sido feito com um sério aviso para que ela não causasse qualquer
problema. Às vezes as Irmãs procuravam expressar sua superioridade sobre
outros, mesmo se fosse mostrando que podiam machucar Kahlan só porque
desejaram. Ela teve que sufocar os pensamentos para evitar que uma das Irmãs
captasse aquilo que Kahlan pensava d o seu tratamento. Ela engolira sua
dignidade junto com seus pensamentos e simplesmente dissera, “sim, Irmã”.
Kahlan não achava uma boa ideia sair perambulando no escuro,
especialmente quando elas estavam começando a entrar em um terreno bastante
acidentado e erodido em alguns lugares por desmoronamentos do terreno alto.
Os cavalos poderiam facilmente quebrar uma perna em tais condições. Mas, em
sua ambição para chegarem a Caska, as Irmãs não quiseram parar quando o
anoitecer havia começado a envolvê -las. Aquilo que as Irmãs queriam, as Irmãs
conseguiam. Kahlan não estava ansiosa para eventualmente montar
acampamento no escuro.
— Acho que tem alguém lá. — Irmã Armina disse em voz baixa
enquanto olhava fixamente dentro da escuridão.
— Eu também sinto algo. — murmurou Irmã Cecilia.
Irmã Armina olhou para elas, com expectativa. — Talvez seja Tovi.
— Poderia não ser mais do que uma mula selvagem. — Irmã Ulicia
parecia não estar de bom humor para ficar especulando. — Vamos lá. — ela
olhou para trás, para Kahla n. — Fique perto.
— Sim, Irmã. — Kahlan falou. Ela entregou para as Irmãs as rédeas
dos cavalos delas.
Irmã Cecilia, mais velha do que o resto delas, grunhiu com o esforço
de erguer seus músculos cansados subindo em sua sela. — Minhas recordações
dos raros mapas nas câmaras do Palácio dos Profetas me dizem que deveríamos
estar chegando perto do lugar.
— Lembro de ter visto aquele antigo mapa. — disse a Irmã Ulicia,
assim que estava sobre o cavalo. — Ele chamava esse lugar de “Nada Profundo”.
Isso significaria que deve ser Caska lá em cima daquele distante promontório.
Irmã Armina soltou um suspiro impaciente quando conduzia o cavalo
atrás das outras. — Então finalmente encontraremos Tovi aqui.
— E quando finalmente nos reunirmos a ela, — Irmã Cecilia falou. —
ela terá que fornecer algumas explicações.
Irmã Armina apontou em direção ao promontório distante. — Você
conhece Tovi... sempre ignorando o que deveria fazer porque acha que sabe o
que é melhor. Ela é a mulher mais obstinada que já conheci.
Até onde Kahlan sabia, Armina tinha pouco espaço para falar.
— Bem, veremos o quão obstinada ela é quando eu estiver com meus
dedos em volta da garganta dela. — disse Irmã Cecilia.
Irmã Armina levou seu cavalo para o lado de Irmã Ulicia. — Você não
acha que ela poderia estar planejando alguma coisa, acha, Ulicia?
— Tovi? — Irmã Ulicia olhou para trás por cima do ombro. — Não, na
verdade não. Ela pode ser irritante às vezes, mas ela tem o mesmo objetivo que
o resto de nós. Além disso, ela sabe tão bem quanto n ós que precisamos de todas

174
as três caixas. Ela sabe o que está envolvido e o que está em jogo.
— Em breve teremos as três caixas reunidas novamente... isso é tudo
que realmente importa... e já estaremos em Caska, então suponho que não
adiantaria mesmo encontrar Tovi antes. Ainda teríamos que vir até aqui de
qualquer jeito.
— Mas porque ela teria partido do jeito que partiu? — insistiu Irmã
Cecilia.
Irmã Ulicia sacudiu os ombros. Diferente das outras duas, ela parecia
estar um tanto quanto relaxada, agora que Caska estava ao alcance da vista. —
Poderia ser que ela tivesse descoberto tropas da Ordem Imperial nas
proximidades e simplesmente quis evitar qualquer possibilidade de problemas,
então ela abandonou a área. Ela provavelmente estava usando sua cabeça , só
isso. Sabia que teríamos que vir até aqui. Provavelmente viu uma chance de
escapulir e aproveitou. Estamos melhor servidas por esse tipo de cautela. No
final, ela estava seguindo para onde planejamos o tempo todo, então realmente
não vejo que tipo de truque ela poderia estar tramando.
— Suponho que sim. — Irmã Cecilia pareceu meio desapontada por
não ter uma vilã sobre a qual concentrar sua fúria.
Elas cavalgaram em silêncio durante quase mais uma hora antes que
ficasse aparente para as Irmãs que cava lgar sobre esse tipo de terreno no escuro
poderia não apenas arriscar quebrar a pata de um cavalo, mas um dos pescoços
delas também. Até onde Kahlan podia afirmar, elas não estavam muito mais
perto do promontório do que estiveram durante a maior parte do d ia. Em campo
aberto na planície, as distâncias eram muito maiores do que aparentavam. O que
no início parecia ser um lugar apenas a duas milhas de distância poderia levar
dias para ser alcançado. As Irmãs, a despeito de sua ansiedade para chegarem
até Caska e Tovi, estavam cansadas e prontas para fazerem uma parada para
dormirem.
Irmã Ulicia desmontou, entregando as rédeas a Kahlan. — Monte o
acampamento. Estamos todas famintas.
Kahlan baixou a cabeça. — Sim, Irmã.
Imediatamente ela prendeu todos os cava los para que não pudessem se
afastar, então contornou ao lado do grupo de animais para começar a arrumar as
coisas. Ela estava bastante cansada mas sabia que provavelmente levaria horas
antes que pudesse ter chance de dormir um pouco. O acampamento tinha q ue ser
montado, a comida tinha que ser preparada, e então os cavalos tinham que ser
alimentados, receber água, e ser preparados para a noite.
Irmã Ulicia segurou o braço de Irmã Armina e puxou -a para perto. —
Enquanto estamos montando acampamento, quero q ue você até lá e verifique a
área. Quero saber se aquilo é apenas uma mula.
Irmã Armina assentiu e imediatamente saiu a pé na escuridão.
Irmã Cecilia observou Irmã Armina dissolver dentro da noite. — Você
realmente acha que é uma mula?
Irmã Ulicia lançou para ela um olhar sombrio. — Se for uma mula, está
mantendo a mesma distância enquanto viajamos. Se for alguém nos observando,
então Armina o encontrará.
Kahlan tirou os colchonetes quando as Irmãs pediram algo mais macio
para sentar além do chão árido. Então ela pegou uma das panelas para que
pudesse começar a preparar o jantar.
— Sem fogueira esta noite. — Irmã Ulicia disse quando viu Kahlan
com a panela.

175
Kahlan olhou para ela durante um instante. — Então do que você
gostaria para o jantar, Irmã?
— Tem uma sobra de pão. Podemos comer isso e um pouco de carne
seca. Também temos nozes. — ela olhou dentro da noite. — Não quero uma
fogueira aqui em campo aberto, onde qualquer um de horizonte a horizonte
poderia nos ver. Pegue apenas uma das lanternas men ores.
Kahlan não conseguia imaginar com o que as Irmãs tinham que se
preocupar. Ela entregou a lanterna para Irmã Armina. A Irmã acendeu -a com o
balançar de um dedo, então colocou -a no chão diante dela e de Irmã Ulicia. Não
era muito luz para enxergar enq uanto Kahlan terminava de retirar as coisas, mas
pelo menos era melhor do que nada.
Houve algumas vezes no passado em que patrulhas de soldados
atacaram elas. As Irmãs nunca ficaram especialmente assustadas com tais
encontros inesperados com forças hostis . As Irmãs acabaram com os soldados
sem qualquer problema... ou piedade.
Quando cruzaram com patrulhas as Irmãs foram cuidadosas em não
permitirem que qualquer testemunha fugisse, aparentemente para que não
houvesse qualquer chance de que relatórios chega ssem ao exército. Kahlan
concluiu que era possível que tais relatórios pudessem resultar em grandes
números de homens furiosos vindo atrás delas. As Irmãs não pareciam
particularmente preocupadas com essa possibilidade; parecia mais como se
tivessem negócios a realizar e não desejassem sofrer atraso por qualquer motivo.
Chegar até Tovi e a última caixa era de primordial importância para
elas e tinham cavalgado arduamente para chegarem tão longe tão rapidamente.
Kahlan estava surpresa que não tivessem alcan çado Tovi antes, especialmente já
que nada parecia tão importante para as Irmãs quanto suas preciosas caixas.
Exceto que elas eram caixas do Lorde Rahl. As Irmãs as tinham
roubado do Palácio de Richard Rahl.
Em uma ocasião, em sua corrida, elas encontrar am com um grande
destacamento dos grandes brutos da Ordem Imperial. As Irmãs estavam
impacientes para passarem pelos soldados, para seguirem com seu trabalho com
as caixas, mas os homens não pareciam ter pressa em sair do caminho. As Irmãs
esperaram até o meio da noite e então caminharam através do acampamento de
homens adormecidos. Toda vez que um homem as avistava, uma das Irmãs
lançava um feitiço silencioso que despachava o homem sem qualquer ruído. As
Irmãs não mostraram qualquer puder em matar qualquer que ficasse em seu
caminho. Elas moveram -se através do acampamento silenciosamente,
audaciosamente, e deliberadamente. Kahlan viu muitos homens morrerem
naquela noite. Para as Irmãs, isso não foi mais significativo do que pisar em
formigas que as perturba vam no acampamento.
Mas aquilo foi há muito tempo e elas não tinham visto quaisquer tropas
desde então. O exército da Ordem Imperial agora estava muito distante atrás
delas e durante um bom tempo não havia mais sido algo a considerar. Isso não
significava, entretanto, que não poderia existir outros perigos, e então as Irmãs
frequentemente estavam tão nervosas quanto gatos. Porém, sem aviso, elas
poderiam facilmente ficar tão perigosas quanto víboras.
Muito tempo depois de Irmã Armina ter voltado sem encon trar
qualquer pessoa nas proximidades, e as três Irmãs terem comido, Kahlan ainda
trabalhava para finalizar suas tarefas antes de receber permissão para comer. Ela
estava escovando os cavalos quando pensou ter ouvido o suave som de passos no
solo árido. O som retirou-a de seus pensamentos sobre os soldados. A mão dela

176
com a escova fez uma pausa.
Ela olhou por cima do ombro e ficou assustada em ver uma garota
magra com cabelo escuro curto parada timidamente logo no limiar da fraca luz
da lanterna.
Com a lua surgindo apenas ocasionalmente entre as nuvens que
passavam, o acampamento em maior parte ficava sob a luz apenas da lanterna
trazida pelas Irmãs, então era difícil enxergar, mas Kahlan podia enxergar bem o
bastante para ver os olhos pálidos da jovem olh ando para ela.
Naqueles olhos havia a clara expressão de cognição. A garota enxergou
Kahlan.
— Por favor... — a garota falou. Kahlan colocou um dedo sobre os
lábios, para que as Irmãs não ouvissem a garota. Exatamente como o homem na
hospedaria, essa gar ota viu e lembrou de Kahlan. Kahlan estava surpresa, e ao
mesmo tempo temerosa de que a mesma coisa que acontecera com o homem
fosse acontecer com a garota.
— Por favor... — a garota repetiu em um sussurro baixo. — posso
comer alguma coisa? Estou com tant a fome.
Kahlan olhou para as Irmãs. Elas estavam ocupadas conversando entre
si. Kahlan enfiou a mão no alforje que estava na pilha perto dos pés dela e tirou
uma tira de carne de veado seca. Mais uma vez ela colocou um dedo sobre os
lábios e entregou a carne para a garota. A garota assentiu indicando que
entendera e não emitiu qualquer som. Pegando a carne rapidamente com as duas
mãos, ela usou os dentes imediatamente para arrancar uma mordida.
— Agora vá, — sussurrou Kahlan. — antes que elas a vejam. Dep ressa.
A garota olhou para Kahlan, então olhou além dela. Seus olhos ficaram
arregalados. Sua mastigação parou.
— Ora, ora, — surgiu uma voz ameaçadora por cima do ombro de
Kahlan. —se não é a nossa pequena mula vindo nos roubar.
— Por favor, ela estava com fome. — Kahlan disse, esperando
amenizar a raiva de Irmã Ulicia antes que ela explodisse. — Ela pediu um
pedaço de carne para comer. Ela não roubou. Eu dei a ela minha comida, não a
de qualquer uma de vocês.
Irmã Ulicia estava com as outras duas, de modo que elas pareciam com
três abutres em uma fila. Irmã Armina ergueu a lanterna para dar uma olhada
melhor. Todas as três pareciam dispostas a arrancar a carne dos ossos da garota.
— Provavelmente esperando até que fôssemos dormir, — falou Irmã
Ulicia quando inclinou aproximando -se. — para que pudesse cortar nossas
gargantas.
Olhos cor de cobre brilharam na luz da lanterna quando a jovem
assustada olhou para elas. — Eu não estava esperando. Estava faminta. Pensei
que poderia conseguir um pouco de comid a, só isso. Eu pedi, eu não roubei.
A jovem lembrava Kahlan um pouco da garota na Hospedaria Cavalo
Branco, a garota que Kahlan havia jurado proteger, a garota que Irmã Ulicia
assassinara tão brutalmente. À noite, antes de dormir, a lembrança do terror
daquela garota ainda assombrava Kahlan. A falha dela em manter sua promessa
de proteção ainda ardia na alma de Kahlan. Mesmo se a garota não tivesse sido
capaz de lembrar das palavras de Kahlan tempo suficiente para compreendê -las,
Kahlan odiou ter feito tal promessa e então falhar em cumpri -la.
Essa garota era um pouco mais velha, um pouco mais alta. Kahlan
conseguiu ver nos olhos dela também uma espécie de leve compreensão da
verdadeira dimensão da ameaça diante dela. Havia uma espécie de cautela

177
consciente nos olhos cor de cobre dela. Mas ela ainda era uma garota. A
maturidade ainda era um mistério que estava acima do seu horizonte de vida.
Repentinamente Irmã Armina deu um tapa na garota. O golpe fez ela
girar, derrubando -a no chão. A Irmã avançou sobre ela. A garota cobriu a cabeça
com os braços enquanto tentava o melhor que podia pronunciar um pedido de
desculpas por ter pedido comida. Irmã Armina tateou nas roupas da garota
enquanto batia nela.
Quando a Irmã levantou ela segurava uma faca que Kahlan n ão
reconheceu. Ela balançou -a na luz da lanterna, então atirou -a ao chão aos pés de
Irmã Ulicia. — Ela estava carregando isso. Como você disse, provavelmente ela
pretendia cortar nossas gargantas depois que fôssemos dormir.
— Não pretendia fazer qualquer mal! — a garota gritou quando Irmã
Ulicia ergueu sua vara de carvalho.
Kahlan sabia muito bem o que estava por vir e mergulhou sobre a
garota assustada, cobrindo -a, protegendo -a.
A vara de Irmã Ulicia desceu sobre as costas de Kahlan, bem em cima
do ponto onde ela havia sido atingida mais cedo. A garota encolheu -se com o
estalo do carvalho contra osso. Kahlan gritou com a dor do golpe.
Com todo seu esforço ela empurrou a jovem para longe das Irmãs,
tentando mantê -la protegida do perigo.
— Deixem ela em paz! — Kahlan gritou. — Ela é só uma criança! Ela
está com fome, só isso! Não pode ferir nenhuma de vocês!
Nas garras do pânico, os braços finos da garota agarraram o pescoço de
Kahlan, como se ele fosse a única raiz pendurada na borda de um penhasco. Se
Kahlan pudesse matar as Irmãs nesse momento, ela o teria feito, mas ao invés
disso ela fez nada mais do que proteger a garota; sabia que se tentasse lutar
contra elas, as Irmãs arrastariam ela para longe em retaliação e então ela não
poderia servir como qu alquer proteção. Isso era o máximo que Kahlan poderia
fazer pela garota.
Outra vez, Irmã Ulicia acertou Kahlan nas costas. Kahlan cerrou os
dentes por causa da dor. De novo e de novo a mulher aplicou golpes com a vara.
— Solte a pestinha! — Irmã Ulicia gritava enquanto batia em Kahlan.
A garota gemia de terror.
— Tudo bem, — Kahlan conseguiu falar enquanto fazia esforço para
respirar. — eu a protegerei. Eu prometo.
A garota sussurrou um “obrigada” no ouvido de Kahlan.
Além de seu desesperado desejo de proteger uma criança inocente,
Kahlan desesperadamente não queria perder essa conexão com o mundo. A
garota sabia que Kahlan existia. Podia enxergá -la, escutá-la, lembrar dela.
Kahlan precisava dessa linha de vida de retorno ao mundo das pessoas.
Irmã Ulicia deu um passo aproximando -se enquanto acertava Kahlan,
colocando toda sua força no espancamento. Kahlan sabia que estava com sérios
problemas, mas não permitiria que elas machucassem essa garota como fizeram
com a última. A garota nada fizera para mere cer aquilo que Kahlan sabia que
fariam com ela.
— Como ousa...
— Se querem matar alguém, — Kahlan gritou para Irmã Ulicia. —
então matem a mim, mas deixem ela em paz! Ela não é uma ameaça para vocês.
Irmã Ulicia parecia contente em fazer exatamente isso , rosnando com o
esforço de bater em Kahlan, golpeando repetidas vezes em um frenesi. Kahlan
estava ficando tonta com a dor mas não se moveria para permitir que a Irmã

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alcançasse a garota.
A jovem escondeu -se sob a proteção da silhueta maior de Kahlan,
gritando de pavor, não por causa do que as Irmãs poderiam fazer a ela, mas de
angústia por causa do que estavam fazendo a Kahlan. A vara fazia um som
horrível quando bateu atrás do crânio de Kahlan. Isso deixou -a quase desmaiada.
Ainda assim, ela não largari a a jovem. Sangue ensopou o cabelo dela e escorreu
por seu rosto.
E então a vara quebrou nas costas de Kahlan. A parte maior saltou
girando dentro da noite. Irmã Ulicia ficou parada ofegante, em uma fúria cega,
segurando um fragmento inútil. Kahlan espera va ser morta, mas de certa forma
ela não importava -se mais. Não havia possibilidade de escapatória. Não havia
futuro para ela. Se não pudesse lutar pela vida de uma jovem inocente então a
vida não possuía valor para ela.
— Ulicia. — Armina sussurrou quand o segurou o pulso de Ulicia. —
Ela enxerga Kahlan. Exatamente como aquele homem na hospedaria.
Irmã Ulicia ficou olhando para sua companheira, aparentemente
surpresa com a ideia.
Irmã Armina ergueu uma sobrancelha. — Precisamos descobrir o que
está acont ecendo.
Irmã Cecilia, com um olhar sinistro distorcendo suas feições, sem ter
ouvido o que Irmã Armina tinha falado, chegou mais perto de Kahlan. — Como
ousa desafiar uma Irmã? Vamos arrancar a pele dessa pestinha viva e fazer você
observar a coisa toda p ara ensinar uma lição a você.
— Irmã? — a garota perguntou. — Vocês todas são irmãs?
De repente a noite pareceu impossivelmente silenciosa. O mundo de
Kahlan girava loucamente. Cada respiração parecia com facas torcendo entre
suas costelas. Lágrimas de d or por causa dos golpes desceram por seu rosto. Ela
não conseguia parar de tremer, mas ainda assim não abandonaria a garota.
Irmã Ulicia jogou fora o pedaço da vara quebrada. — Nós somos
Irmãs. E daí? — ela perguntou, desconfiada.
— Tovi disse para procu rar vocês, ainda que para mim vocês não
pareçam muito com irmãs de Tovi.
Todas ficaram paradas.
— Tovi? — perguntou cautelosamente Irmã Ulicia.
A garota assentiu. Ela olhou por cima do ombro de Kahlan. — Ela é
uma mulher mais velha. Ela é grande, maior do que qualquer uma de vocês, e ela
realmente não parece com uma irmã de vocês, mas ela disse para sair e procurar
pelas irmãs dela. Falou que vocês três tinham outra mulher junto com vocês.
— E porque uma garota como você concordaria em fazer o que Tovi
pediu?
A garota afastou o cabelo escuro do rosto. Ela hesitou, e então
respondeu. — Ela está mantendo meu avô prisioneiro. Disse que se eu não
fizesse como ela falou, então ela o mataria.
Ulicia sorriu da forma como Kahlan imaginou que uma serpente
sorriria, se uma cobra pudesse sorrir. — Ora, ora. Acho que você realmente
conhece Tovi. Então, onde ela está?
Kahlan ergueu-se sobre um dos braços. A garota apontou em direção ao
promontório. — Lá. Ela está em um lugar com livros velhos. Ela me obrigou a
mostrar onde os livros eram guardados. Disse para guiar vocês até ela.
Irmã Ulicia trocou um olhar com as outras duas. — Talvez ela já tenha
localizado o Local Central em Caska.

179
Irmã Armina gargalhou com alívio quando deu um tapa atrás do ombro
da Irmã Cecilia de forma jovial. Irmã Cecilia retribuiu o gesto.
— Qual é a distância? — Irmã Ulicia perguntou, repentinamente
ansiosa.
— Levará dois dias, talvez três, se partirmos na primeira luz da manhã.
Irmã Ulicia olhou dentro da escuridão durante um momento. — Dois ou
três dias… — ela virou de volta. — Qual é o seu nome?
— Jillian.
Irmã Ulicia chutou o flanco de Kahlan, o golpe inesperado fazendo ela
rolar de cima da garota. — Bem, Jillian, você pode ficar com o colchonete de
Kahlan. Ela não vai precisar dele . Ela ficará de pé durante a noite como
punição.
— Por favor, — Jillian falou quando colocou uma das mãos no braço
de Kahlan. — se não fosse por ela, agora vocês estariam sem uma guia para o
lugar onde Tovi está. Por favor, não punam ela. Ela fez um favor a vocês.
Irmã Ulicia pensou durante um instante. — Vamos fazer o seguinte,
Jillian. Já que você falou em defesa de nossa escrava desobediente, deixarei que
você providencie para que ela não sente durante a noite. Se ela nos desobedecer,
aplicarei nela um a surra que a deixará mancando pelo resto da vida. Mas você
pode evitar isso certificando -se de que ela fique de pé durante toda a noite. O
que acha disso?
Jillian engoliu em seco, mas não respondeu.
Irmã Ulicia agarrou Kahlan pelo cabelo e fez ela ficar de pé. — Cuide
para que ela fique de pé, ou aquilo que faremos com ela será culpa sua por não
garantir que ela faça como foi dito. Entendeu?
Jillian, com os olhos cor de cobre arregalados, assentiu.
Irmã Ulicia mostrou um sorriso afetado. — Bom. — ela virou para as
outras duas. — Vamos lá. Vamos dormir um pouco.
Depois que elas partiram, Kahlan pousou uma das mãos gentilmente
sobre a cabeça da garota sentada aos pés dela.
— Prazer em conhecê -la, Jillian. — Kahlan sussurrou para que as
Irmãs não escutassem.
Jillian sorriu para ela, e sussurrou. — Obrigada por me proteger. A sua
promessa foi verdadeira. — ela segurou a mão de Kahlan suavemente e
encostou-a contra a bochecha por um momento. — Você é a pessoa mais
corajosa que eu vi depois de Richard.
— Richard?
— Richard Rahl. Ele esteve aqui. Salvou o meu avô, mas agora…
A voz de Jillian foi desaparecendo quando ela desviava os olhos do
olhar de Kahlan. Kahlan acariciou gentilmente a cabeça da garota, esperando
aliviar a preocupação dela com o avô. Ela fez um gesto, apontando com o
queixo.
— Vá até aquele alforje, ali, Jillian, e pegue alguma coisa para comer.
— ela estava tremendo com a dor, e queria muito deitar, mas Kahlan sabia que
Irmã Ulicia não tinha feito uma ameaça vazia. — Então, se quiser, p or favor…
sente aqui perto de mim durante a noite? Seria bom ter uma amiga esta noite.
Jillian sorriu para ela. Ver um sorriso tão sincero aqueceu o coração de
Kahlan.
— De manhã você terá outro amigo que se juntará a nós. — quando
Kahlan fez uma careta, Jillian apontou para o céu. — Eu tenho um corvo,
chamado Lokey. De dia ele virá e vai nos distrair com alguns dos truques dele.

180
Kahlan sorriu com a simples ideia de ter um corvo como amigo.
A garota apertou a mão de Kahlan. — Não deixarei você esta noit e,
Kahlan. Eu prometo.
A despeito da agonia na qual estava, do quão sombrio parecia seu
futuro, Kahlan estava alegre. Jillian estava viva. Kahlan acabara de vencer sua
primeira batalha, e esse feito era entusiasmante.

181
C A P Í T U L O 2 4

Conforme andava entre os soldados reunidos, Richard respondia suas


saudações com um sorriso e um aceno com a cabeça. Ele não estava com humor
para sorrir, mas temia que os homens interpretassem isso de forma errada se não
fizesse isso. Os olhos deles estavam cheios de expectativa e esperança enquanto
observavam ele seguir seu caminho entre eles. Muitos homens permaneciam em
silêncio com um punho sobre o coração, não apenas em saudação mas com
orgulho. Richard não conseguiria começar a explicar para cada um desses
homens as coisas horríveis que Shota mostrara a ele, e então ele sorria tão
calorosamente quanto era capaz.
Além do acampamento, raios cintilavam no horizonte. Mesmo com os
sons da vida no acampamento, dos milhares de homens e cavalos, do retinir dos
martelos dos ferreiros, da descarga de suprimentos, das provisões sendo
distribuídas, as ordens sendo gritadas, Richard podia ouvir o barulho agourento
dos raios ecoando pela Planície Azrith. Furiosas nuvens de tempestade reuniam -
se em um crescente avanço de som bras negras sob os seus rastros. O ar úmido
parado ocasionalmente era agitado por rajadas de vento que tremulavam
bandeiras e estandartes. Quase tão repentinamente quanto surgia, o vento
subitamente desaparecia, como um batedor que corria de volta para lev ar um
relatório para a tempestade que aproximava -se.
Porém, ninguém parecia importar -se com o céu ameaçador. Todos
queriam dar uma espiada em Richard enquanto ele cruzava o acampamento.
Houve uma época em que esse mesmo exército estava comprometido e
determinado a matar ou capturar ele. Mas isso foi antes de Richard tornar -se o
Lorde Rahl.
Assim que ele assumira essa responsabilidade, fornecera a esses
homens a chance de lutar por uma causa de valor, ao invés de carregar armas em
serviço da tirania. Houve alguns que enxergaram essa oferta com ódio aberto.
Ao invés disso eles voltaram -se para a causa da Ordem e caminharam pela terra
com cega brutalidade, procurando exterminar a simples ideia de que qualquer
homem tinha direito à sua própria vida.
Mas o restante deles, a maioria de fato, não tinham apenas aceito o
desafio de Richard, eles tinham abraçado isso com o tipo de fervor que apenas
homens que viveram sob repressão poderiam ter. Esses homens, os primeiros em
gerações que tiveram a oferta de verdadeir a liberdade, realmente
compreenderam o significado dela para suas vidas. Agarravam com tenacidade a
chance de viverem no tipo de mundo que, Richard havia mostrado a eles, era
possível. Em troca não havia presente maior nem mais significativo que esses
homens poderiam dar para suas famílias e entes queridos do que essa chance de
viverem a vida livres, de viverem para si mesmos. Muitos tinham morrido nesse
nobre esforço.
De um jeito muito parecido com as Mord -Sith, agora esses homens o
seguiam porque escolhe ram fazê-lo, não porque foram obrigados. Quando o
chamavam de “Lorde Rahl” isso tinha um significado para eles que jamais
tivera.
Mas agora esses homens enfrentavam o aço afiado que impunha uma
crença que dizia que eles e seus entes queridos não tinham o direito às suas

182
próprias vidas. Richard não duvidava do coração desses homens, mas sabia que
eles não conseguiriam vencer em uma batalha contra os vastos números dos
invasores da Ordem Imperial. Nesse dia entre todos os dias, ele tinha que ser o
Lorde Rahl. Para que houvesse uma chance de um futuro em que valesse à pena
viver, Richard devia ser o Lorde Rahl no sentido mais puro, o Lorde Rahl que
importava-se com aqueles que ele liderava. Ele precisava fazer eles verem
aquilo que ele viu.
Verna, acelerada ao lado dele, aumentou o aperto no braço dele quando
inclinou chegando um pouco mais perto. — Você não pode imaginar o quanto é
inspirador para esses homens vê -lo antes da batalha que enfrentarão, Richard, a
batalha que a profecia havia previsto há milhares de anos. Simplesmente não
pode imaginar.
Richard duvidou que os homens pudessem imaginar o que ele estava
prestes a pedir a eles.
Ele olhou para o sorriso de Verna. — Eu sei, Prelada.
Porque eles estavam seguindo ao sul para encontrar com a ameaça da
Ordem Imperial, a cavalgada do Palácio do Povo para alcançá -los havia levado
um tempo consideravelmente maior do que da última vez que ele viera encontrar
com esses soldados. Uma vez que a Ordem virou ao norte subindo para D’Hara,
esse exército era tudo que permanecia no caminho. Esses homens eram a última
esperança do Império D’Haraniano. Essa era a vocação deles, seu dever.
E Richard sabia sem dúvida que eles perderiam aquela batalha.
A tarefa de Richard era convencê -los da certeza da iminência da
derrota e morte deles.
Cara e Nicci, logo atrás dele, estavam praticamente caminhando nos
seus calcanhares. Ele não achava que elas precisavam ficar tão perto assim para
protegê-lo, mas também sabia que nenhuma das mulheres aceitaria sua opinião
quanto a isso. Quando ele olhou para trás por cima do ombro, Nicci mostrou a
ele um sorriso.
Ficou imaginando o que ela diria assim que ouvisse o que ele estava
prestes a dizer aos soldados. Supôs que ela entenderia. De todos que ouviriam o
que ele tinha a dizer, ela er a a única pessoa que ele acreditava que entenderia.
De fato, estava contando com isso. Às vezes a compreensão e apoio dela eram
tudo que o fazia seguir adiante. Houve momentos quando ele estava pronto para
desistir e Nicci deu a ele força para continuar.
Richard sabia que Cara, por outro lado, receberia muito bem o que ele
estava para dizer, mesmo que por razões inteiramente diferentes.
Embora Cara estivesse parecendo mais sombria do que nunca, como se
ela pudesse ter que matar todo o exército caso eles s ubitamente cometessem
traição e atacassem Richard, ele poderia afirmar pelo modo como os dedos dela
mexiam em uma costura da sua roupa vermelha de couro, que ela estava ansiosa
para ao menos ver o General Meiffert... Benjamin... outra vez. Desde a última
vez em que eles estiveram com esses homens ela estava menos reticente a
respeito de deixar que os seus sentimentos pelo General D’Haraniano fossem
percebidos. Richard suspeitou que Nicci tivesse alguma coisa a ver com isso.
Independente do quanto estivesse sentindo-se sufocado a respeito de
um mundo que parecia estar desmoronando ao redor dele, no fundo ele estava
feliz que uma Mord -Sith pudesse ter sentimentos como esses, e mais ainda que
ela finalmente estivesse disposta a deixar que eles fossem conhecido s, pelo
menos por ele. Isso era uma confirmação de que, além do treinamento brutal
dessas mulheres, elas eram indivíduos que tiveram desejos e aspirações

183
suprimidas que não haviam enfraquecido e morrido, e que a verdadeira pessoa
ali dentro podia desabroch ar novamente. Isso era uma afirmação da sua crença
em um futuro melhor, de que poderia existir um futuro melhor, como encontrar
uma bela flor em um vasto deserto.
Enquanto Richard marchava passando por filas de tendas, carroças,
cavalos presos em piquetes , estações de ferreiros, e áreas de suprimento, ele
podia ver homens aproximando -se de todas as direções, abandonando suas
tarefas no tratamento de animais, reparar equipamentos, cuidar de suprimentos,
cozinhar, e armar mais tendas. Uma olhada para o céu n ublado disse a ele que
eles seriam espertos em ao menos terminarem de montar suas tendas.
Richard avistou o General Meiffert no meio de um mar de homens com
uniformes escuros. Ele estava altivo entre oficiais do lado de fora de uma
grande área de comando. Quando Richard olhou para trás por cima do ombro,
ele pode ver pelo sorriso de Cara que ela também viu.
Os oficiais reunidos e homens de posição eram demais para caberem
dentro de uma tenda, então eles juntaram -se em um campo com pedregulhos. Um
toldo foi armado sobre a área, ancorado a grandes rochas, de modo que os
homens no centro de comando ficassem protegidos caso a chuva iniciasse. Para
Richard não parecia que aquilo fosse protegê -los de qualquer vento, mas pelo
menos os manteriam secos em maior par te enquanto trabalhavam nos detalhes de
gerenciar um exército tão grande.
Richard curvou-se um pouco em direção a Verna quando um trovão
estremeceu o chão. — As suas Irmãs estarão lá?
Verna assentiu. — Sim. Enviei mensageiros para dizer a elas que você
as queria lá junto com todos os oficiais. Há poucas distantes fazendo
reconhecimento, mas o resto estará lá.
— Lorde Rahl. — disse o General Meiffert quando bateu com o punho
sobre o coração.
Richard fez uma leve reverência com a cabeça. — General. Fico feliz
em ver que você está bem. Todos os homens parecem em ordem, como sempre.
— Obrigado, Lorde Rahl. — os olhos azuis dele já estavam observando
Cara. Ele curvou -se fazendo reverência para ela. — Senhora Cara.
Cara sorriu. — Você é uma alegre visão para meus olhos, Benjamin.
Se Richard não estivesse tão preocupado por causa das coisas que o
haviam levado até ali, teria sentido grande prazer ao vê -los olharem nos olhos
um do outro. Richard lembrou de como olhava para Kahlan desse jeito, lembrou
de sua alegria ao vê-la.
O Capitão Zimmer, com sua armadura de couro servindo para acentuar
sua constituição poderosa, estava não muito longe atrás do General. Alguns dos
outros oficiais, em uniformes similares mais simples, aguardavam em um grupo
ali perto, enquanto a maioria já estava reunida sob o toldo. Os grupos de
homens, engajados em solene conversa, todos ficaram em silêncio e voltaram -se
para verem Lorde Rahl, o líder do Império D’Haraniano. Richard não tinha
tempo para delicadezas, então foi direto ao assu nto. Da mesma forma, os
soldados comuns que estavam agrupados ao redor permaneceram observando
silenciosamente.
— Todos os oficiais e homens de alta patente estão aqui, General? —
perguntou Richard.
O homem assentiu. — Sim, Lorde Rahl. Pelo menos, todos que estão no
acampamento. Tem alguns fora em patrulha de longa distância. Se nós
soubéssemos da sua chegada e daquilo que você desejava eu os teria convocado,

184
mas na situação atual precisaríamos de algum tempo para trazê -los de volta. Se
quiser, enviarei m ensagem imediatamente para que eles retornem.
Richard ergueu a mão para descartar a sugestão. — Não, isso não é
necessário. Uma vez que a maioria deles está reunida aqui isso será o bastante.
O resto deles poderão ser informados mais tarde.
Havia homens demais no acampamento para que Richard fosse ouvido
e compreendido por todos eles. Sua intenção era falar em detalhes com os
oficiais e homens de alta patente, e então que eles espalhassem as palavras entre
seus próprios homens. Havia oficiais suficientes agrupados para a tarefa.
O General, de uma forma casual mas claramente autoritária, gesticulou
para os homens que cercavam a área de comando, observando o grande evento.
Imediatamente eles começaram a dispersar, retornando aos seus próprios
trabalhos, enquanto seus comandantes aprenderiam sobre o destino deles.
O General Meiffert levantou um braço, convidando Richard e sua
escolta para baixo do abrigo. Primeiro Richard olhou para o céu, avaliando as
chances de que a chuva em breve começaria a cair. Sob a grande lona, centenas
de homens estavam reunidos. Richard bateu com o punho sobre o coração,
respondendo ao som abafado coletivo das saudações deles.
— Estou aqui hoje, — Richard começou enquanto contemplava todos
os olhos que observavam ele. — para falar sobre o mais grave dos assuntos… a
chegada da batalha final contra o exército da Ordem Imperial.
— Não deve haver confusão a respeito daquilo que terei de falar.
Preciso que cada um de vocês entenda o que está em jogo, o que pedirei a vocês,
e porque. Is so é sobre todas as nossas vidas; não esconderei qualquer coisa de
vocês e responderei com honestidade e da melhor forma que puder tudo que
vocês querem saber. Por favor, sintam -se a vontade para fazerem as suas
perguntas, suas objeções, ou até mesmo disco rdarem comigo em certos pontos
conforme eu declaro aquilo que decidi. Eu valorizo o seu vasto conhecimento
coletivo e habilidades. Confio em sua capacidade e experiência.
— Mas tive que pesar e considerar assuntos fora do conhecimento de
vocês e reunindo tudo isso eu tomei minha decisão. Posso entender que, sem tais
conhecimentos, vocês podem não compreender completamente o meu raciocínio,
então farei o melhor que puder para explicar, mas não haverá discussão a
respeito da minha conclusão.
A voz de Richard assumiu um tom de absoluta determinação. — Vocês
seguirão minhas ordens.
Todos os homens trocaram olhares. Esse foi o comando mais sério que
Richard já tinha transmitido a eles.
Na calmaria do final de tarde, Richard começou a caminhar lentamente
de um lado para outro, escolhendo suas palavras cuidadosamente. Finalmente ele
apontou para a multidão diante dele.
— Como oficiais, como homens de comando, o que mais causa
preocupação em suas mentes?
Após um momento de confuso silêncio, um oficial respondeu . —
Suponho que aquilo que todos nós estamos pensamos e que você já mencionou,
Lorde Rahl: a batalha final.
— Isso mesmo, a batalha final, — Richard disse quando parou e virou
em direção aos homens. — Essa é a forma comum que todos nós pensamos, que
tudo será resumido a esse momento definitivo, o clímax do esforço de todos, e
que haverá uma grande batalha final para decidir tudo... quem vence, quem
perde, quem governa, quem serve, quem vive, quem morre. É desse forma que

185
Jagang pensa também.
— Ele não seria o líder deles se não fizesse isso. — disse um oficial
mais velho.
Risadas esporádicas espalharam -se através dos homens reunidos.
— Isso é verdade. — Richard falou com voz solene. — Especialmente
no caso do Imperador Jagang. O objetivo dele é conduzir a sua causa até essa
batalha final e nessa disputa conclusiva esmagar todos nós de uma vez por
todas. Ele é um adversário muito inteligente. Ele conseguiu fazer com que
foquemos nessa batalha final. A estratégia dele está funcionando.
A risada morreu. Os homens pareceram um pouco descontentes que
Richard desse tanto crédito ao homem. Soldados como esses não gostavam de
atribuir tanta maestria ao seu inimigo para evitar que seus homens perdessem a
coragem em combatê -lo.
Richard não tinha interesse em fazer Jagang parecer uma ameaça
menor do que era. Justamente o contrário; queria fornecer a esses homens um
acurado vislumbre daquilo contra o qual estavam lutando, e as reais dimensões
da ameaça.
— Jagang é um devoto de um jogo chamado “ Ja’La dh Jin ”. — vendo
alguns dos homens assentindo, Richard soube que eles haviam se tornado um
pouco familiarizados com o jogo. — Ele tem o seu próprio time de Ja’La, de
forma parecida como a Sociedade da Ordem possui o seu próprio exército. A
principal preocupação de Jagang, quando ele envia seu time para jogar, e vencer
no Ja’La. Para esse objetivo ele reúne os jogadores maiores, mais fortes, em seu
time. Ele não enxerga isso como uma disputa, uma competição, como alguns
fazem. Ele pretende não apenas ser vitorioso em qualqu er confronto de Ja’La,
mas devastar a oposição.
— Uma vez o time de Jagang perdeu. A solução dele não foi maior
esforço na próxima vez, treinar e orientar seus jogadores, para que eles fizessem
melhor da próxima vez. Ao invés disso ele conseguiu outros jo gadores. Criou
um time dos homens maiores, mais fortes, mais rápidos. Por falar nisso, a
tradução de Ja’La dh Jin, é “o jogo da vida”.
— No início, quando ele estava reunindo todos os vários reinos e terras
do Mundo Antigo em uma nação, Jagang perdeu bata lhas. Ele aprendeu as lições
da vida. Ele juntou o exército maior, mais perverso que podia e no final uniu
todo o Mundo Antigo sob a bandeira da Ordem. Quando ele embarcou nessa
guerra, no comando da Sociedade da Ordem, Jagang certificou -se de que teria à
sua disposição os recursos necessários para garantir uma força grande o bastante
para fazer o trabalho. Vocês, homens, não fariam menos do que isso.
— Ocasionalmente Jagang ainda perdeu batalhas. Novamente ele
aprendeu. Ele respondeu convocando aqueles re cursos para que tivesse mais
homens. É assim que ele cuida do objetivo de vencer a guerra em nome da
Ordem. O resultado é que hoje ele tem uma força tão avassaladora que pode
esmagar toda oposição. Ele sabe que vencerá. Então, está ansioso pela batalha
final.
— Além disso, o Imperador Jagang era um Andarilho dos Sonhos , um
homem com poderes passados a ele através de magia antiga. Ele usou essa
habilidade para invadir as mentes de outros não apenas para obter conhecimento,
mas para controlá-los. Hoje, como vocês sabem, ele controla um número de
pessoas dotadas, Irmãs da Luz e do Escuro estão entre elas. Desse modo ele
comanda ambas as forças do aço e da magia.
— Lorde Rahl, — falou um dos oficiais mais velhos, interrompendo o

186
discurso caminhante de Richard. — você diminui nossos homens com facilidade
demais. A maioria de nosso exército é formado por forças D’Haranianas e o
resto que temos treinado. Esses homens sabem o que está em jogo. Não são
recrutas amadores. São soldados experientes que sabem como lutar . Nós também
temos Verna e as Irmãs dela, que já provaram seu valor. Junto com esses
soldados habilidosos e Irmãs da Luz, nós temos o que é correto do nosso lado.
— A Ordem Imperial não está predestinada a perder só porque eles são
malignos. A longo prazo o mal irá voltar-se contra si mesmo, mas para nossas
vidas e as vidas daqueles que protegemos isso é pouco conforto. O mal ainda
pode dominar a humanidade durante mil anos, dois mil, ou até mais tempo antes
que ele eventualmente morra com seu próprio vene no.
Richard começou a andar de um lado para outro novamente enquanto
falava com grande paixão. — Há momentos na história quando as coisas podem
ter ocorrido de uma forma ou de outra conforme os valentes esforços de alguns
indivíduos, garanto isso a vocês. De fato, estou contando com isso. Esse é o
momento quando decidimos qual será o nosso futuro. Essa é a hora em que
devemos fazer o que deve ser feito, independente do quão doloroso será, se nós
e nossas crianças queremos ter um futuro. Nosso futuro, o fut uro da liberdade,
depende de nós e daquilo que fazemos, se teremos ou não sucesso.
— Lorde Rahl, — o oficial mais velho disse com tranquila certeza. —
os homens sabem que estamos com as costas contra a parede. Eles lutarão, se é
isso que você está sugerin do.
Richard percebeu que os homens não estavam entendendo onde ele
queria chegar. Ele parou e encarou o homem quando cruzou as mãos atrás das
costas. No fundo de sua mente podia ver a imagem fantasmagórica que Shota
mostrara a ele do final sangrento de tu do isso. Era como um peso tentando
arrastá-lo para o fundo.
Richard finalmente falou. — Eu sempre disse que não posso liderar em
uma batalha final com a Ordem ou nós perderíamos. Desde a última vez em que
eu estive com vocês aconteceram coisas que fazem c om que eu acredite nisso
mais do que nunca.
Rugidos de descontentamento equipararam -se aos sons dos trovões que
preenchiam o ar do anoitecer. Antes que eles pudessem fazer objeções ou
desviá-lo do assunto, Richard prosseguiu.
— O exército da Ordem muito em breve estará avançando dentro de
D’Hara vindo do sul eu seu caminho até o Palácio do Povo. Vocês, homens,
estão avançando para o sul, para encontrar com eles. Eles sabem disso. Esperam
por isso. Querem isso. Nós estamos marchando de acordo com as ordens de
Jagang. Ele está controlando as nossas táticas. Está nos conduzindo para dentro
de uma batalha que, ele sabe, não podemos vencer e que ele não pode perder.
Vozes de protesto irromperam, todas gritando que o futuro não estava
determinado, que eles podi am prevalecer.
Richard levantou uma das mãos para conter as vozes. — Embora o
futuro não esteja determinado, a realidade é o que é. Como soldados vocês
planejam suas táticas de acordo com o que conhecem, não de acordo com o que
desejam.
— Mesmo se por al gum milagre nós formos capazes de vencer esta
batalha iminente, ela acabaria não sendo decisiva. Uma batalha como essa
terminaria sendo apenas uma luta que vencemos a um grande custo, enquanto a
Ordem simplesmente viria direto para cima de nós outra vez co m uma força
ainda maior. Mesmo se ganhássemos a batalha que aproxima -se... coisa que eu

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sei que não podemos fazer... então nós teríamos que efetuar outra batalha contra
mais homens ainda, e depois outra.
— Porque? Porque a cada vez que lutamos contra eles nós perdemos
homens e ficamos mais fracos. Temos poucos reforços para convocar. Cada vez
que Jagang precisa deles, recebe um constante fluxo de reforços quase sem
limites e somente fica mais forte.
— Perderíamos no final por uma razão muito simples: nenh uma guerra
é vencida defensivamente. Ainda que uma batalha defensiva possa ser ganha,
uma guerra não pode ser ganha defensivamente.
— Então, — perguntou um oficial. — o que você propõe? Que peçamos
a paz?
Richard desconsiderou a ideia com um gesto casual , se não irritado. —
A Ordem não aceitará quaisquer termos de paz. Talvez há muito tempo, no
início, eles tivessem aceitado a nossa rendição, permitido que fizéssemos
reverência e beijássemos as botas deles, permitido que nós colocássemos as
correntes da escravidão, mas não agora. Agora eles só querem uma vitória
comprada e paga com nosso sangue. Mas que diferença teria feito? De um jeito
ou de outro, o resultado final seria o mesmo: o assassinato e subjugação nossa e
de nosso povo. Como perdemos, em maior parte, é irrelevante. A rendição ou
derrota acaba com o mesmo resultado. De uma forma ou de outra tudo está
perdido.
— Então… o que fazer? — o homem declarou com uma voz fervorosa.
— Lutar até que finalmente sejamos mortos ou capturados?
Os homens ficaram olhando fixamente para o oficial de rosto vermelho
que tinha falado. Esses homens estiveram lutando contra a Ordem durante um
longo tempo. Não estavam ouvindo alguma coisa que já não soubessem. Ainda
assim, lutar contra os invasores era tudo que poderiam fazer. Esse era o dever
deles. Era a única coisa que eles conheciam.
Richard virou e olhou para Cara. Em pé ali em sua roupa vermelha de
couro, os pés afastados, as mãos cruzadas atrás das costas, ela estava parecendo
acreditar que poderia derrubar a Ord em sozinha.
Richard apontou para a mulher ao lado de Cara. — Nicci, aqui, um dia
serviu ao lado deles. — quando ele ouviu os sussurros a respeito de um inimigo
entre eles, adicionou. — De forma muito parecida como todos vocês um dia
estiveram a serviço da tirania quando serviram Darken Rahl, e alguns de vocês
serviu até mesmo ao pai dele, Panis Rahl. Vocês não tiveram escolha. Darken
Rahl não se importava com aquilo que vocês queriam fazer das suas vidas.
Importava-se apenas que vocês seguissem as ordens d ele. Agora, quando
receberam a chance da escolha, comprometeram -se com nossa causa. Nicci
também fez isso.
— Os homens da Ordem são diferentes. Vocês estavam lutando porque
foram obrigados sob ameaça de violência e até mesmo de morte. Eles estão
lutando porque acreditam em uma causa. Estão famintos pela luta. Querem fazer
parte do esforço de guerra deles.
— Uma vez que esteve lá, com Jagang, Nicci tem conhecimento em
primeira mão. Ela viu coisas que podem ajudar a colocar isso em perspectiva
para vocês.
Richard virou novamente para Nicci. Ela parecia com uma estátua, sua
pele lisa e firme, seu cabelo loiro caindo sobre os ombros. Nada havia no rosto
dela, em sua figura, que Richard teria mudado se ele fosse esculpir uma estátua
dela. Ela era uma imagem de beleza, que tinha visto feiura além da imaginação.

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— Nicci, por favor diga a esses homens o que acontecerá a eles se
forem capturados pela Ordem Imperial.
Richard não fazia ideia do que ela falaria, do que ela sabia, mas sabia,
especialmente conforme as coisas que Jebra dissera a eles, que a Ordem sentia
apenas desprezo pela vida.
— A Ordem não executa seus cativos imediatamente. — com calma
mortal,
Nicci deslizou um passo chegando mais perto de todos os homens que
olhavam para ela.
Ela esperou ao lado de Richard até que o silêncio estivesse doloroso e
tivesse a completa atenção de cada homem na frente dela. — Primeiro, — disse
ela. — cada homem capturado é castrado.
Um gemido brotou dos homens reunidos.
— Depois disso, depois que eles sofreram grandi osa agonia e
humilhação, aqueles ainda vivos são torturados. Aqueles que sobrevivem a
tortura são finalmente condenados à morte de uma forma brutal.
— Aqueles que rendem -se para a Ordem sem luta são poupados desse
tratamento. Esse é o esquema por trás da crueldade com os cativos... incutir o
medo em um potencial adversário para que ele renda -se sem luta. O tratamento
aplicado por eles a civis em cidades dominadas é tão brutal quanto e tem o
mesmo objetivo em mente. Como resultado, muitas cidades caíram sem luta
perante a Ordem.
— Vocês, homens, estão lutando contra eles durante longo tempo e
arduamente. Não seriam poupados disso. Se forem capturados pelas forças de
Jagang não há esperança para vocês. Eles farão com que vocês desejem com
todo coração que ja mais tivessem nascido. A morte será a sua única libertação.
— Nada disso importa. A vida sob a Ordem não é muito diferente de
aguardar pela morte nas mãos deles. A vida sob a Ordem é em si uma morte
lenta e esmagadora. Isso apenas leva mais tempo; a desgr aça estende-se durante
anos.
— Somente aqueles que odeiam a vida, e tudo que é bom, prosperam. A
Ordem, de fato, promove e encoraja aqueles que odeiam os bons aspectos da
vida. Afinal de contas, os ensinamentos deles são formados a partir do ódio
contra aquilo que é bom. O ambiente que tais crenças geram é de miséria
universal. Os odiadores saboreiam a miséria dos outros, uma vez que os bons
deixam eles enfurecidos. Se vocês forem capturados, esses odiadores seriam os
seus mestres.
Os homens permaneceram em total silêncio. Naquele silêncio, Richard
ouviu o suave tamborilar de chuva sobre o toldo esticado acima. A tempestade
estava chegando sobre eles.
Nicci falou de forma direta em meio ao silêncio. — Os testículos fritos
de seus inimigos são uma iguaria altamente valorizada pelos soldados da Ordem
Imperial. Os seguidores do acampamento vasculharão um campo após a batalha,
procurando por pilhagens e qualquer inimigo ferido ainda vivo que possam
castrar. Aquelas preciosas gemas ensanguentadas coletadas de u m inimigo vivo
são mercadoria valiosa e muito procurada durante a comemoração após uma
vitória. Os soldados acreditam que tal petisco fornece a eles maior força e
vitalidade. Posteriormente, eles voltam sua atenção para suas prisioneiras.
Richard segurou o nariz entre um dedão e um indicador. — Mais
alguma coisa?
Nicci ergueu uma sobrancelha. — Isso não é o bastante?

189
Richard soltou um suspiro quando deixou a mão cair. — Acho que é.
Ele virou de volta para os homens. — A simples verdade é que não
jeito de vocês vencerem na batalha que está por vir. Vocês perderão.
Richard inspirou profundamente e finalmente declarou as palavras
impronunciáveis que viera dizer.
— É por isso que não haverá batalha final. Não lutaremos contra o
Imperador Jagang e seu exérc ito da Ordem Imperial. Como Lorde Rahl, líder do
Império D’Haraniano, eu me recuso a permitir tal ato de autodestruição sem
sentido. Não lutaremos contra eles.
— Ao invés disso, eu vim para dispersar nosso exército. Não haverá
batalha final. Jagang terá o Mundo Novo sem oposição.
Richard viu lágrimas enchendo os olhos de muitos homens.

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C A P Í T U L O 2 5

As palavras de Richard foram recebidas como um tapa na cara.


Um oficial furioso gritou. — Então porque nós deveríamos lutar? —
ele moveu um bra ço apontando para seus colegas. — Estivemos nessa guerra
durante anos. Muitos de nossos colegas soldados não estão mais aqui, conosco,
porque sacrificaram suas vidas para preservar nossa causa e entes queridos. Se
não existe chance, se vamos simplesmente p erder no fim, então porque nos
preocupamos em lutar? Porque deveríamos nos preocupar em continuar nesse
esforço?
Richard sorriu com tristeza. — Essa é a questão.
— Que questão? — o homem rosnou.
— Se as pessoas não enxergam chance de triunfo, qualquer c hance de
ganhar, e ao invés disso, que elas encaram apenas a ruína e a morte, então elas
começam a perder a sua vontade de lutar. Se percebem que não possuem chance
de espalharem suas crenças, que encaram somente a morte se continuarem a
tentar fazer isso, então elas começarão a querer esquecer tudo a respeito de uma
guerra como essa.
No mínimo, o homem apenas estava ficando com mais raiva, assim
como muitos dos outros oficiais. — Então você está nos dizendo para
esquecermos a respeito da guerra? Que não p odemos vencer contra a
determinação da Ordem? Que uma vez que não podemos vencer nada existe pelo
qual lutar?
Richard cruzou as mãos atrás das costas quando levantou o queixo com
determinação. Ele aguardou até ter certeza de que todos estavam ouvindo.
— Não. Estou dizendo que quero fazer as pessoas do Mundo Antigo
sentirem-se desse jeito.
Os homens fizeram caretas mostrando confusão, murmurando perguntas
entre si. Eles rapidamente silenciaram quando Richard continuou.
— Jagang está trazendo seu exército para dentro de D’Hara. Ele quer
nos encontrar em batalha. Porque? Porque ele acredita que pode nos derrotar. Eu
acredito que ele está certo. Não acredito nisso porque vocês, homens, não
possuem bravura, treinamento, força ou habilidade, mas simplesmente p orque
sei o quão vastos são os recursos dele. Passei algum tempo no Mundo Antigo.
Sei o quanto o lugar é grande. Até certo ponto, porque viajei através do Mundo
Antigo, sei quantas pessoas eles possuem, quantos animais para alimentação,
plantações, e outro s recursos. Eu vi essas coisas em uma escala que jamais tinha
visto. Eles possuem reservas que vocês não podem começar a imaginar.
— Jagang tem agrupado uma enorme força de homens selvagens que
são devotados às crenças deles. Pretendem esmagar qualquer um e tudo que se
opuser a eles. Desejam ser heróis conquistadores, espalhar a fé deles. Jagang
esteve abastecido com tudo que sua experiência diz que ele precisará, e então
duplicou isso. Só para garantir, e então ele duplicou isso novamente.
— Jagang não possui quaisquer noções morais perversas de combate
realizado sem aplicar mais recursos do que aqueles que o oponente tem... ou
algum tipo de fabricada lealdade imposta no ato de um combate mortal. Ele não
tem interesse em uma disputa igualitária... nem dev eria ter. Ele está interessado
somente em nos dominar. Essa é a tarefa dele.

191
— Para esse fim, eles querem que nos defendamos na posição de nossa
maior vulnerabilidade, que lutemos em nosso apoio mais fraco... no campo de
batalha, em uma tradicional batalh a final. É para isso que todos os esforços de
Jagang estiveram concentrados porque isso é o que todos esperam. Eles querem
encontrar conosco dessa maneira porque não temos chance contra os números
deles. Simplesmente não há como termos forças suficientes p ara prevalecermos.
Então eles nos esmagarão.
— Em seguida, eles celebrarão sua grande vitória... como se em algum
momento houvesse dúvida desse feito... fritando todos os nossos testículos e
depois, em uma orgia bêbada, eles estuprarão nossas esposas, irm ãs e filhas!
Richard inclinou em direção aos homens e encostou um dedo na
têmpora dele. — Pensem! Será que vocês estão tão mergulhados no conceito de
uma tradicional batalha final que esqueceram o propósito dela? Estão colocando
o “do jeito que isso sempr e foi feito” na frente da razão para fazer isso? A única
razão para uma batalha como essa é prevalecer sobre o inimigo, resolver o
assunto de uma vez por todas. Esse conceito de uma batalha final evoluiu para o
pensamento de que esse é o jeito como deve se r feito porque esse é o jeito como
sempre foi feito.
— Parem de permanecer presos a essa ideia sem sentido. Pensem.
Abandonem a cegueira causada por aquilo que fizeram antes. Parem de
lançarem -se dentro de seus túmulos como se fosse costume. Pensem... pen sem...
sobre como alcançar nosso objetivo.
— Está querendo dizer que você tem uma ideia melhor do que lutar
contra eles? — perguntou um oficial mais jovem. Como a maioria dos homens,
ele parecia realmente intrigado.
Richard deu um suspiro fazendo um esfo rço para controlar seu humor.
Ele baixou a voz e olhou para todo os rostos sóbrios enquanto continuava.
— Sim. Ao invés de fazer o esperado e lançarem -se em uma batalha
final, eu simplesmente quero destruí -los. Esse é, afinal de contas, o objetivo
central de uma grande batalha final. Se uma batalha assim não vai realizar esse
objetivo, então devemos encontrar outro jeito.
— Diferente daqueles que lutam pelas crenças da Ordem, nenhum de
nós precisa gabar-se de uma vitória gloriosa no campo de batalha. Nã o existe
glória em coisas como essas. Existe simplesmente o sucesso ou fracasso. O
fracasso significa uma nova era das trevas. O sucesso significa que viveremos
livres. A civilização pende na balança. É simples assim.
— Não há campo de batalha estreitamente definido em uma luta pela
vida como essa, uma luta por nossa sobrevivência contra homens movidos por
um desejo de nos assassinar porque eles pensam que não temos o direito de
existir. Uma luta como essa não é uma batalha sobre um terreno estabelecido,
uma guerra sobre a grama, mas é baseada nas mentes dos homens, baseada nas
ideias que os motivam.
— Nossos entes queridos não estarão melhores servidos por uma
vitória em um campo de batalha; só estarão servidos se prevalecermos nessa luta
de ideias.
O General Meiffert finalmente ergueu uma das mãos para falar. —
Lorde Rahl, se não vamos encontrá -los em combate, então como propõe que
realizemos uma tarefa como essa contra um inimigo que, você acabou de
explicar, é tão vasto que é insuperável? Afinal de conta s, mesmo que sejam suas
crenças que os movem, é com as lâminas deles que devemos lidar.
Homens assentiram, felizes que seu General tivesse feito a pergunta

192
que todos eles tinham em mente. Essa também era uma pergunta pela qual
Richard estivera esperando. Ele havia desencorajado a esperança de vitória deles
em um campo de batalha tradicional acabando com a mentalidade estabelecida
deles. Agora tinha que mostrar a eles como vencer a guerra.
Enquanto o tamborilar da chuva na lona acima aumentava, Richard,
com as mãos cruzadas atrás das costas, observou todos os rostos observando ele.
— Vocês devem ser o trovão e o raio da liberdade. Devem ser a vingança
liberada contra um povo com ideias corruptas que não apenas permitiram que o
mal habitasse em seus corações , mas autorizaram e defenderam ele.
— Devemos lutar na guerra da nossa maneira. Devemos lutar a guerra
por aquilo que ela realmente é... não exércitos em um campo de batalha agindo
como substitutos de ideias, mas uma guerra pelo futuro da humanidade.
— Como tal, essa é uma guerra na qual o Mundo Antigo está
totalmente comprometido, na qual todos do lado deles dedicaram -se ao esforço.
Eles são apaixonados em sua causa. Acreditam naquilo que estão fazendo.
Pensam que possuem o que é certo do lado deles, que estão agindo de forma
moral, que estão satisfazendo os desejos do Criador, e assim possuem
justificativa para assassinar quem desejarem para definir como a humanidade
viverá.
— Todos eles estão investindo sua propriedade, seu trabalho, sua
saúde, e suas vidas na luta. O povo deles... não apenas o seu exército... quer nos
subjugar e nos dobrar de acordo com suas crenças. Querem que sejamos
escravos da fé deles, exatamente como eles são. Eles encorajam seu exército a
atacar pessoas inocentes aqui, no Mundo Novo, para impor suas crenças sobre
nós. Eles querem a nós, como seguidores da mesma fé que eles, que
sacrifiquemos nossas vidas a essa fé, que vivamos as vidas que eles querem que
vivamos, ditar aquilo em que nossas crianças acreditarão… através da força se
for necessário.
— Todas as pessoas que acreditam nos costumes da Ordem, que
contribuem, que encorajam, que apoiam, que rezam para que os soldados deles
nos esmaguem, são parte do esforço de guerra deles. Cada uma daquelas pessoas
adiciona algo para a c ausa deles. Como tal, eles são tão inimigos quanto os
soldados que manuseiam as espadas por eles. São eles que alimentam as lâminas
deles com um suprimento de homens jovens e tudo que eles precisam para virem
atrás de nós, desde comida até apoio moral e en corajamento.
Richard apontou para o sul. — De fato, aqueles que fazem essa guerra
possivelmente são talvez ainda mais inimigos porque cada um deles é um
possibilitador silencioso que deseja o nosso mal de longe, que odeia por
escolha, que acredita que não há consequências ao forçarem sua vontade sobre
nós.
— A pilhagem é enviada como prêmio pelo suporte deles. Escravos são
enviados para trabalharem para eles. Sangue e lágrimas são extraídos para
reforçar as exigências de fé deles.
— Essas pessoas fizeram a escolha de acreditar, fizeram a escolha de
pensar que possuem direito sobre nossas vidas, fizeram a escolha de fazer
qualquer coisa necessária para nos governar. Tem que haver consequências para
essas escolhas que elas fizeram, especialmente quando suas escolhas arruínam
as vidas de outras pessoas que não causaram qualquer mal a elas.
Richard abriu as mãos. — E como vamos fazer isso?
Ele cerrou as mãos. — Devemos levar essa guerra até o lar das pessoas
que apoiam e encorajam ela. Não devem ser simplesm ente as vidas de nossos

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amigos, de nossas famílias, de nossos entes queridos que são lançadas dentro do
caldeirão sangrento que essas pessoas do Mundo Antigo esquentam. Agora
devem ser as vidas delas também.
— Elas enxergam isso como uma luta pelo futuro da humanidade.
Pretendo mostrar que é mesmo. Quero que elas compreendam totalmente que se
cometem assassinato e nos subjugam... por qualquer que seja a razão... então
haverá consequências.
— Deste dia em diante, lutaremos uma guerra verdadeira, uma guerra
total, uma guerra sem misericórdia. Não vamos impor regras sem sentido sobre
nós mesmos a respeito do que é “justo”. Nossa única regra é vencer. Essa é a
única forma pela qual nós, nossos amados, nossa liberdade, sobreviveremos.
Tudo que é moral é nossa v itória. Quero que cada apoiador da Ordem pague o
preço por sua agressão. Quero que eles paguem com suas fortunas, seu futuro,
suas vidas.
— Chegou a hora de seguirmos atrás dessas pessoas com nada além de
gélida fúria sombria em nossos corações.
Richard levantou um punho. — Esmagaremos os ossos deles até que
virem sangue e pó!
Houve um momento de silêncio enquanto todos soltavam um suspiro
coletivo, e então uma trovejante ovação irrompeu, como se todos secretamente
soubessem que não tinham chance de suce sso e que estavam condenados a
encarar apenas a morte e o fracasso no final, mas agora lhes foi mostrado que
existia um caminho. Finalmente havia uma chance real de salvar seus lares e
pessoas queridas, de salvar o futuro.
Richard deixou a farra prossegui r durante algum tempo, então levantou
uma das mãos para fazer eles escutarem enquanto continuava.
— O exército da Ordem tem o apoio das pessoas da sua terra natal.
Cada um dos soldados da Ordem sabem que suas famílias, amigos, e vizinhos, os
apoiam. Os homens da Ordem precisam ouvir notícias daqueles lá no Mundo
Antigo. O que eu quero que os homens da Ordem escutem são gritos de agonia.
Quero que eles saibam que seu lares estão sendo destruídos, suas cidades e vilas
arrasadas, seus comércios e plantações, e que nada foi deixado para seus entes
queridos.
— A vida prega que a vida nesse mundo nada é a não ser miséria. Que
assim seja. Arranquem a fina camada de civilização que eles tanto desprezam.
Richard olhou para Verna e as mulheres com ela, Irmãs da Luz , todas.
— Eles odeiam magia; façam com que fiquem apavorados com ela. Eles pensam
que aqueles que possuem magia devem ser destruídos; façam acreditarem que
eles não podem ser destruídos. Eles querem um mundo sem magia; façam eles
desejarem apenas jamais n os enfurecer novamente. Eles querem conquistar;
façam eles desejarem apenas sua própria rendição.
Quando um raio estalou através do ar sombrio da tarde, e a chuva com
vento sacudiram o toldo acima deles, Richard desviou sua atenção de volta para
os homens. Quando o último estalo do trovão morreu, ele continuou.
— Para realizar nosso objetivo, devemos ter um plano coordenado
direcionado a cada faceta da ameaça. Para esse fim, algumas de nossas forças
devem estar devotadas ao importante objetivo de caçar e matar os comboios de
suprimentos deles. Esses comboios são essenciais para a sobrevivência da
Ordem. Eles não apenas recebem os reforços de que precisam, mas esses
comboios enviam um constante fluxo de suprimentos que eles devem ter para
sobreviverem. As forças da Ordem Imperial pilham conforme avançam, mas isso

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nem de longe é o que os sustenta. O tamanho avassalador deles também é uma
vulnerabilidade. Devemos negar a eles esses suprimentos de que precisam para
sobreviverem aqui com tais números. Devemos co rtar essa conexão vital. Se os
soldados da Ordem Imperial morrerem de fome, estarão mortos do mesmo jeito.
Cada soldado da Ordem que morre de fome é um a menos com que temos de nos
preocupar. Isso é tudo que importa para nós.
— Além disso, os recrutas vin do do sul estarão muito mais vulneráveis
uma vez que ainda não estarão reunidos aos homens experientes, ou em números
massivos. Eles estão pouco treinados e são pouco mais do que jovens valentões
saindo para estuprar e pilhar. Trucidem eles antes que sigam para o norte e
tenham chance. Será cada vez mais difícil alistar novos recrutas se eles
estiverem sendo mortos em seu próprio solo antes que possam partir para matar
estranhos indefesos. Melhor ainda se eles forem pequenas unidades apenas
reunindo-se em suas cidades de origem. Levem a guerra até eles. Matem eles
antes que tenham chance de trazerem ela até nós. Se homens jovens souberem
que se forem voluntários jamais serão heróis, jamais colocarão as mãos em
pilhagem e mulheres jovens cativas, e enxergarem que não chegarão muito longe
antes que sejam atacados por homens que não lutam como eles esperavam, que
não atiram -se em uma fútil batalha final contra chances impossíveis, sua paixão
para entrar na luta vai esfriar. Se isso não acontecer, então eles pode m morrer
também, antes que tenham chance de unirem -se ao exército ao sul. Providenciar
para que os corpos desses jovens “futuros heróis” apodreçam nas soleiras deles
nos ajudará a esmagar o espírito do povo do Mundo Antigo.
Richard avaliou os olhares aten tos antes de prosseguir. — A ideia de
uma batalha final morre aqui, morre hoje. Hoje nós desaparecemos no ar. Após o
dia de hoje não existirá exército do Império D’Haraniano para que a Ordem
Imperial possa enfrentar em uma batalha final e destruir. Eles qu erem fazer isso,
afinal de contas, para privar nosso povo da nossa proteção, deixando -os
expostos e vulneráveis. Não permitiremos isso. Hoje começamos a lutar essa
guerra de um novo jeito... do nosso jeito... um jeito racionalmente planejado,
um jeito que vencerá.
— Quero que todos no Mundo Antigo temam vocês como se fossem
espíritos vingadores. Iniciando hoje, vocês serão as Legiões Fantasma
D’Haranianas.
— Ninguém saberá onde vocês estão. Ninguém saberá quando vocês
atacarão. Ninguém saberá onde vocês a tacarão em seguida. Mas quero que todos
no Mundo Antigo saibam sem dúvida que, não importa o que aconteça, vocês
seguirão atrás deles e atacarão como se o próprio Submundo estivesse prestes a
abrir-se e aniquilá -los. Quero que eles temam as Legiões Fantasm as
D’Haranianas como se vocês fossem a própria morte.
— Eles desejam morrer para que possam entrar na glória eterna da vida
após a morte… satisfaçam o desejo deles.
Um dos homens nos fundos limpou a garganta, então falou. — Lorde
Rahl, pessoas inocentes lá morrerão. Não serão soldados que estaremos
atacando. Muitas crianças morrerão nesse tipo de coisa.
— Sim, infelizmente isso é verdade, mas não deixe que sua mente
fique nublada ou que sua determinação mude por causa de uma tarefa espúria e
irrelevante como essa. A Ordem é responsável por conduzir uma guerra de
agressão contra pessoas inocentes que nada fizeram de mal contra eles...
incluindo mulheres e crianças. Nós procuramos apenas acabar com a agressão o
mais rápido possível.

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— É verdade que pessoas inocentes... incluindo crianças... serão
feridas ou mortas. Qual é a alternativa? Continuar a sacrificar pessoas boas com
medo de machucar alguém inocente? Nós todos somos inocentes. Todas as
nossas crianças são inocentes. Elas estão sendo feridas agora. Eventualmente o
governo da Ordem machucará a todos, incluindo todas aquelas crianças no
Mundo Antigo. A Ordem transformará muitas delas em monstros. Muito mais
pessoas morrerão no final se a Ordem vencer.
— Além disso, as vidas das pessoas no Mundo Antigo não são nossa
responsabilidade, são responsabilidade da Ordem. Nós não iniciamos essa guerra
e atacamos eles... eles nos atacaram. Nosso único curso de ação adequado é
acabar com a guerra o mais rápido possível. Essa é o único jeito de fazer isso.
No fim, essa é a coisa mais humana que podemos fazer porque no final isso
significará a menor perda de vidas.
— Sempre que possível vocês deveriam, é claro, evitar ferir pessoas
inocentes, mas esse não é o nosso objetivo principal. Acabar com a guerra é o
nosso objetivo. Para fazermos isso, devemos destruir a habilidade deles de
levarem adiante a guerra. Como soldados, essa é a responsabilidade.
— Estamos defendendo o nosso direito de existir. Se tivermos sucesso
iremos, como uma consequência, ajudar incontáveis outros a viverem livres
também. Mas não é nosso objetivo libertar o povo deles. Se quiserem ser livres
então poderão juntar -se a nós em nossos esforços.
— Para dizer a verdade, conheço pessoas no Mundo Antigo que já
revoltaram -se contra a Ordem e estão c onosco nessa luta. Um simples ferreiro
chamado Victor e suas forças em Altur'Rang, por exemplo, acenderam a chama
da liberdade no Mundo Antigo e já lutam conosco. Aonde vocês conseguirem
encontrar essas pessoas que anseiam pela liberdade, deveriam encorajá -las e
recrutar seu apoio. Voluntariamente eles verão as suas cidades e vilas arderem
se essas chamas destruírem o verme que devora suas vidas.
— Em tudo que fizerem, nunca esqueçam que seu objetivo é impedir a
Ordem de nos matar e fazer o que devemos faz er para que eles percam sua
vontade de lutar. Para fazermos isso, devemos levar a guerra até eles.
— Lamento por vidas inocentes perdidas, mas a perda delas é um
resultado direto das ações imorais da Ordem. Não temos a responsabilidade de
sacrificar nossas vidas para evitar que pessoas inocentes do lado deles sejam
feridas. Não podemos ser responsáveis pelas vidas delas em uma luta que não
foi criada por nós.
— Temos todo o direito de defendermos o nosso direito de existir.
Jamais deixem que alguém diga o contrário. A ameaça deve ser eliminada.
Qualquer outra coisa é simplesmente aceitar ir direto para o túmulo.
Todos os homens permaneciam sérios e ainda sob o toldo ondulante
que os protegia da chuva. Nenhum teve qualquer argumento a oferecer.
Estiveram lutando uma batalha perdida durante um longo tempo. Tinham visto
milhares morrerem. Eles entenderam que agora não existia outro jeito.
Richard apontou para o Capitão Zimmer, um jovem de queixo
quadrado, pescoço grosso, que estava com os braços cruzados sob re o peito. Ele
estivera imerso em total concentração enquanto ouvia Richard. O homem
tornara-se a cabeça das forças especiais quando Kahlan havia promovido o
Capitão Meiffert a Comandante Geral das forças D’Haranianas. Kahlan também
tinha falado a Richard que o Capitão Zimmer e seus homens eram muito bons
naquilo que faziam, que eles eram experientes, eficientes sob pressão,
incansáveis, destemidos, e friamente eficazes em matar. Aquilo que deixava a

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maioria dos soldados assustados, os fazia sorrir. Kahlan também dissera a ele
que eles colecionavam as orelhas dos inimigos.
— Capitão Zimmer, como parte de nossa nova operação coordenada,
tenho um trabalho especial para você.
O homem iluminou -se com um sorriso contagioso quando abaixou os
braços e ficou mais ereto. — Sim, Lorde Rahl?
— De importância primordial é a eliminação de todos... todos... que
pregam os dogmas da Ordem. Essas pessoas são a fonte do ódio, a origem das
crenças distorcidas que envenenam a vida.
— A Sociedade da Ordem definiu o seu objet ivo na conquista de toda a
humanidade para o propósito de juntar todas as pessoas sob os estritos
ensinamentos deles.
— Eles defendem a matança de todos aqueles não reverenciam suas
crenças. As ideias desses homens são a centelha que inicia o assassinato. Se não
fosse por esses ensinamentos, eles não estariam aqui matando pessoas.
— A Ordem é uma víbora que existe por causa das crenças deles, das
suas ideias, seus ensinamentos. Essa víbora estica -se até aqui desde o coração
do Mundo Antigo. A partir desse momento, o seu objetivo é decapitar essa
serpente. Mate todo homem que prega as crenças deles. Se eles fizerem um
discurso, na manhã seguinte quero os corpos deles encontrados no meio de um
lugar bastante público, e quero que fique claro para todos que el es não
morreram de causas naturais. Quero que todos saibam que que professar as
crenças da Ordem é pedir por uma morte rápida.
— Como você os mata é irrelevante, mas devemos matá -los. Quando
estiverem mortos não poderão mais espalhar seu veneno e aumentar os desejos
de outros homens para nos matar. Esse é o seu trabalho: matá -los. Quanto menos
tempo você levar matando um, mas cedo poderá matar outros.
— Porém, tenha em mente que os Altos Sacerdotes da Sociedade da
Ordem são dotados. Assim como deve ser ca uteloso e estar consciente de que
esses homens são magos, também tenha em mente que até mesmo magos ainda
possuem corações que bombeiam sangue através de suas veias. Uma flecha os
matará da mesma forma que matará qualquer outro homem.
— Eu sei, porque não faz muito tempo eu quase fui morto por uma
flecha lançada em um ataque surpresa no meu acampamento. — Richard apontou
para as duas mulheres atrás dele. — Tive sorte que Cara e Nicci estavam lá para
salvarem minha vida. O fato é que a despeito do seu poder , esses homens são
vulneráveis. Vocês podem eliminá -los.
— Afinal de contas, quantas vezes ouvi vocês, homens, dizerem que
serão o aço contra o aço para que eu possa ser a magia contra a magia? Implícita
nessa máxima está a verdade fundamental de que dota dos são mortais e
vulneráveis aos mesmos perigos que todos os homens.
— Sei que você e seus homens encontrarão maneiras de eliminar esses
homens. Quero que todo homem que prega o ódio das crenças da Ordem
descubra que a morte é a consequência. Não deve ex istir dúvida da dura verdade
de que els não escaparão desse destino só porque são dotados. Você e seus
homens devem mostrar essa verdade a eles.
— Afinal, trata -se da verdade e da ilusão, uma batalha através da qual
a humanidade servirá a um desses concei tos. Eles pregam uma ilusão de crenças
em coisa que não são reais, em fé e fantasia, em reinos em outros mundos, em
punições e recompensar depois que não mais existimos. Eles matarão para forçar
as pessoas a reverenciar essa fé.

197
— A contrapartida disso é a realidade de nossa promessa da
consequência por nos machucarem. Essa promessa deve ser cumprida. Essa
promessa deve ser verdadeira. Se falharmos nesse esforço, então a humanidade
mergulhará em uma longa era das trevas.
Richard observou os homens silencio sos e falou tranquilamente, mas
em um tom que todos os homens escutaram. — Estou contando com a
experiência e o julgamento de vocês para realizarmos o que devemos fazer. Se
virem algo que considerem útil para eles, destruam. Se alguém tentar entrar no
seu caminho, matem. Quero que as colheitas deles, lares, cidades e vilas sejam
queimadas. Quero ver o Mundo Antigo arder por todo o caminho a partir daqui.
Não quero que reste um tijolo sobre outro. Quero que o Mundo Antigo sofra
tamanha ruína que não tenha ma is a habilidade de espalhar suas intenções
assassinas sobre os outros. Quero que sua vontade de lutar seja quebrada. Quero
os espíritos deles esmagados.
— Confio que vocês, homens, serão capazes de pensar em maneiras
para fazerem tudo isso. Não fiquem lim itados com aquilo que digo. Pensem a
respeito daquilo que é um recurso valioso para eles e no que seria um bom alvo
para nós. Pensem na melhor forma para cumprirem suas novas ordens.
Ele observou os olhos de homens que estavam sendo convocados para
fazerem o que jamais imaginaram que seria seu trabalho. — Não haverá batalha
final contra o exército da Ordem. Não vamos enfrentá -los do jeito que eles
querem. Ao invés disso, vamos assombrá -los até as suas covas.
Todos os oficiais reunidos bateram com os punho s sobre os corações.
Richard voltou -se novamente para o Capitão Zimmer. — Você tem
minhas ordens sobre o seu objetivo específico. Seja brutal. Não deve restar
alternativa para esses homens. A morte deles é o único resultado que é
aceitável. Faça isso de f orma rápida, firme, e sem piedade.
O Capitão Zimmer ficou ereto. — Obrigado, Lorde Rahl, por permitir
que eu e meus homens livrem o mundo daqueles que espalham esse veneno.
— Tem outra coisa que eu gostaria que você e seus homens façam para
mim.
— Sim, Lorde Rahl?
— Tragam para mim as orelhas deles.
O Capitão Zimmer sorriu quando bateu com o punho sobre o coração.
— Não haverá escapatória ou misericórdia para eles, Lorde Rahl. Trarei para
você a prova disso.
Enquanto pensavam em seu novo objetivo, tod os os oficiais começaram
a oferecer sugestões tanto para os alvos quanto os métodos para destruí -los. O
entusiasmo deles iluminou seus rostos, pois antes estavam tão acostumados com
a ideia de que não havia escolha a não ser serem esmagados por um inimigo
implacável, que seus rostos tinham assumido rugas enquanto pendiam com o
fardo. Agora Richard podia ver um novo vigor neles, uma animação com o fato
de que havia uma solução, um meio ao alcance.
Homens ofereceram ideia de salgar campos, envenenar suprimen tos de
água com carcaças e cadáveres pútridos infectados, destruir barragens, destruir
pomares, matar animais para alimentação, e incendiar moinhos. Nicci
desencorajou algumas sugestões, explicando porque não funcionariam ou
envolveriam demasiado esforço, e sugeriu alternativas. Ela refinou outras ideias
para torná-las mais devastadoras.
Até certo nível, Richard estava abalado com as coisas que ouvia e com
o conhecimento de que era o arquiteto de tamanho pandemônio, mas então ele

198
pensou na visão de Kahlan que Shota mostrou a ele, sobre como aqueles mesmos
horrores e mais eram reais para incontáveis pessoas inocentes, e ele ficou
gratificado que eles estivessem finalmente revidando de uma forma que tinha
chance de acabar com tais horrores. Afinal, a Ordem ha via causado isso para si
mesma.
— O tempo é essencial. — Richard falou aos oficiais e Irmãs reunidos.
— Cada dia que passa a Ordem captura mais locais, subjuga, tortura, estupra, e
assassina ainda mais pessoas.
— Concordo. — disse o General Meiffert. — Essa não pode ser uma
marcha para o sul.
— Não, não pode. — falou Richard. — Quero que vocês cavalguem
rápido e ataquem com firmeza. A Ordem tem um exército enorme e todo lugar
para onde eles vão no Mundo Novo cai diante das suas espadas. Mas, por causa
do seu tamanho, eles são lentos. Levam um longo tempo para moverem -se.
Jagang usa a sua lenta velocidade como uma tática; isso faz cada cidade que está
em seu caminho sofrer a lenta agonia de esperar, imaginando o que acontecerá.
Isso fornece tempo para que o medo cresça até que seja insuportável.
— Na verdade temos uma vantagem com isso se usarmos a cavalaria e
mantivermos as unidades pequenas e velozes, nós podemos atacar como um raio
em um lugar atrás do outro. Eles procuram entrar em cidades, envolvê -las, e
ocupá-las. Não devemos ser levados por esse gasto de homens e esforço.
Simplesmente devemos fazer tudo que pudermos e imediatamente seguir para o
próximo alvo. Devemos fazer todos no Mundo Antigo sentirem medo, sentirem
que não há segurança contra noss a vingança.
Um oficial barbado apontou para o acampamento. — Não temos
cavalos suficientes para transformar todo o exército em um cavalaria.
— Então precisam encontrar cavalos para todos os homens
rapidamente. — Cara falou. — Peguem eles onde puderem.
O oficial coçou a barba enquanto pensava. Ele sorriu para Cara. — Não
fique preocupada, nós encontraremos um jeito de fazermos isso.
Outro homem falou. — Conheço vários lugares em D’Hara onde
cavalos são criados. Acredito que podemos reunir o que precisare mos em um
tempo relativamente curto. — quando Richard assentiu aprovando, ele bateu
com o punho sobre o coração. — Cuidarei disso imediatamente. — ele disse
ainda de sair caminhando dentro da chuva.
— O inimigo precisa ser dividido em unidades menores. — Richard
falou para o General Meiffert depois que o oficial passou apressado. — Não
queremos que eles fiquem unidos em uma força maior.
O General ficou olhando para o vazio enquanto pensava. —
Formaremos grupos de forças de ataque e os enviaremos ao sul im ediatamente.
Eles terão que depender de seus próprios recursos, cuidar de si mesmos. Eles
não podem depender de um comando para direcionar todos os detalhes de suas
ações ou de quaisquer suprimentos.
— Precisaremos estabelecer algum tipo de comunicação, — um dos
oficiais mais velho disse. — mas você tem razão, não acredito que será possível
coordenar todos. Precisamos dar a todos instruções claras e então deixar que
façam seu trabalho. Temos um Mundo Antigo bem grande para atacar.
— Seria melhor se eles n ão mantivessem comunicação. — falou Nicci.
Quando alguns homens olharam, ela prosseguiu. — Qualquer mensageiro que for
capturado será torturado. A Ordem tem especialistas em tortura. Qualquer
homem que for capturado contará o que sabe. Se todas as unidades tiverem

199
comunicação, então podem ser traídas. Se todos que forem capturados não
souberem onde estão outras unidades, então eles não podem entregar essa
informação.
— Parece um sábio conselho. — disse Richard.
— Lorde Rahl, — o General Meiffert falou em um tom cauteloso. —
nosso exército inteiro solto no Mundo Antigo, sem qualquer força opositora para
contê-los, espalhará uma devastação sem precedentes. Soltos com um objetivo
como esse, todos em cavalaria, bem, eles devastarão o Mundo Antigo em uma
escala jamais imaginada.
O homem estava dando a Richard uma última chance para mudar de
ideia, e uma última chance para deixar claro que ele não perderia o seu senso de
propósito ao custo deles. Richard não tentou fugir da questão implícita. Ao
invés disso ele deu um profundo suspiro quando cruzou as mãos atrás das costas.
— Sabe de uma coisa, Benjamin, eu lembro de um tempo quando a
simples menção de soldados D’Haranianos incutia medo no meu coração.
Os homens nas proximidades assentiram lamentando uma feroci dade
perdida.
— Ao nos arrastar para uma batalha final que não podemos vencer, —
Richard disse a eles. — Jagang teve sucesso em fazer os soldados D’Haranianos
parecerem fracos e vulneráveis. Não somos mais temidos. Porque agora eles nos
enxergam como frac os, pensam que podem fazer o que quiserem conosco.
— Acredito que essa é a nossa última chance para vencer a guerra. Se
deixarmos ela escapar, estamos perdidos.
— Não quero desperdiçar essa chance. Nada deve ser poupado. Quero
que Jagang receba notícias de mensageiro após mensageiro de que todo o Mundo
Antigo está queimando. Quero que eles pensem que o próprio Submundo abriu-
se para devorá -los.
— Quero fazer com que novamente as pessoas tremam com medo
paralisante com a simples ideia de que soldados ving adores D’Haranianos estão
seguindo atrás deles. Quero que cada homem, mulher, e criança do Mundo
Antigo tema as Legiões Fantasmas dos D’Haranianos do norte. Quero que todos
no Mundo Antigo comecem a odiar a Ordem por lançar tal sofrimento sobre eles.
Quero que um rugido erga-se do Mundo Antigo pedindo o fim da guerra.
— Isso é tudo que tenho a dizer, cavalheiros. Acredito que não temos
um momento a perder, então vamos fazer isso.
Homens com uma nova determinação saudaram quando passavam por
Richard, agrad ecendo a ele e dizendo que executariam o serviço. Richard
observou eles entrarem na chuva em direção a suas tropas.
— Lorde Rahl, — o General Meiffert falou quando aproximou -se. — só
quero que você saiba que mesmo se não estiver conosco, você nos liderou na
batalha que está por vir. Ainda que essa possa não ser a grande batalha que
todos estavam esperando, você deu aos homens algo que eles não teriam sem
você. Se isso funcionar, então a sua liderança é o que terá mudado o curso da
guerra.
Richard contemplou a chuva pingando da borda da lona em uma cortina
de água. O solo estava ficando lamacento sob as botas dos soldados enquanto
eles corriam em todas as direções. A visão lembrou Richard da visão de estar
ajoelhado na lama, seus pulsos amarrados atrás das costas, uma faca em sua
garganta. Em sua mente podia ouvir Kahlan gritando seu nome. Ele lembrou de
sua impotência, de sua sensação de que o mundo estava acabando. Teve que
engolir o crescente terror. O som dos gritos de Kahlan fez com que seus

200
próprios ossos doessem.
Verna caminhou até o lado do General. — Ele está certo, Richard. Não
gosto da ideia de colocar pessoas na luta além dos soldados, mas tudo que você
falou é verdade. Foram eles que fizeram isso acontecer. Trata -se da
sobrevivência da civilizaç ão e desse modo, eles mesmos tornaram -se parte da
batalha. Não existe outro meio. As Irmãs farão como você pediu, tem a minha
palavra como Prelada.
Richard havia temido que ela rejeitasse o plano. Ele estava muito
agradecido que ela não tivesse feito isso . Abraçou-a bem apertado e sussurrou
“obrigado”.
Ele sempre acreditara que aqueles que estavam do seu lado tinham não
apenas que entender as razões pelas quais eles estava lutando, mas fazer isso
com ou sem ele, fazer isso por si mesmos. Agora ele acredit ava que eles tinham
compreendido a verdade de tudo que estava em jogo, e lutariam não apenas
porque era seu dever, mas por si mesmos.
Verna segurou Richard a um braço de distância e olhou dentro dos seus
olhos. — Qual é o problema?
Richard balançou a cab eça. — Estou apenas cansado das coisas
terríveis que estão acontecendo com as pessoas. Só quero que esse pesadelo
termine.
Verna mostrou um pequeno sorriso para ele. — Você nos mostrou o
jeito para fazermos isso acontecer, Richard.
— Que papel você planeja exercer nisso, Lorde Rahl? — o General
perguntou quando Richard desviou os olhos de Verna. — Quer dizer, se posso
perguntar.
Richard suspirou quando concentrou mais uma vez sua mente no
assunto em questão. Quando o fez, a terrível visão desapareceu. — Eu temo que
exista um sério problema com a magia. O exército da Ordem Imperial é apenas
uma das ameaças com as quais devemos lidar.
O General Meiffert fez uma careta. — Que tipo de problema?
Richard achou que não conseguiria explicar a história toda outr a vez,
então resumiu e foi direto ao ponto. — A mulher que o tornou um General está
desaparecida. Ela está nas mãos de algumas das Irmãs do Escuro.
O homem pareceu totalmente confuso. — Tornou-me General? — ele
vasculhou no nevoeiro de sua memória. — Não consigo lembrar…
— Isso está relacionado com o problema que surgiu com a magia.
O General e Verna trocaram um olhar.
— Era a esposa de Lorde Rahl, Kahlan. — falou Cara. — Foi ela,
Benjamin, quem o nomeou General. — a expressão dele transformou -se em
surpresa. Cara balançou os ombros. — É uma longa história para um outro
momento. — ela complementou quando colocou uma das mãos sobre o ombro
dele. — Nenhum de nós a não ser Lorde Rahl lembra dela. Foi um feitiço
chamado Cadeia de Fogo .
— Cadeia de Fogo? — Verna ficou ainda mais desconfiada. — Quais
Irmãs?
— Irmã Ulicia e as outras professoras dela. — falou Nicci. — Elas
encontraram um antigo feitiço chamado Cadeia de Fogo e lançaram ele.
Verna observou Nicci com bastante frieza. — Acho que você saberia
que tipo de problema aquelas mulheres representam, já que você foi uma delas.
— Sim, — falou Nicci, cansada. — e você capturou Richard e levou
ele para o Palácio dos Profetas. Se você não tivesse feito isso, ele não teria

201
destruído a grande barreira e a Ordem Imperial estaria no Mundo Antigo nesse
momento, não no Novo. Se está querendo começar a apontar culpa, em primeiro
lugar, as Irmãs do Escuro jamais teriam encontrado Richard se você não tivesse
capturado e levado ele de volta através da barreira para o Mu ndo Antigo.
Verna cerrou os lábios com firmeza. Richard conhecia aquela
expressão, e o que estava por vir.
— Muito bem. — ele disse com uma voz baixa antes que elas pudessem
começar a discutir. — Todos nós fizemos o que tivemos de fazer naquela época,
aquilo que achávamos que seria melhor. Eu também cometi a minha cota de
erros. Só podemos moldar o futuro, não o passado.
A boca de Verna torceu de uma forma que indicou que ela não gostaria
mais de outra coisa a não ser continuar a discussão, mas ela sabia que era
melhor não fazer isso. — Você tem razão.
— Claro que ele tem. — disse Cara. — Ele é o Lorde Rahl.
A despeito de qualquer coisa, Verna sorriu. — Acho que ele é, Cara.
Ele cumpriu a profecia mesmo sem pretender fazê -lo.
— Não, — Richard falou. — eu vim tentar ajudar a nos salvar. Isso
ainda não acabou, e a profecia, caso seja disso que você está falando, tem um
significado diferente.
A suspeita de Verna retornou como um raio. — Que significado?
— Não tenho tempo para falar sobre isso agora. Prec iso retornar e ver
se Zedd e os outros descobriram alguma coisa.
— Está querendo dizer... sobre encontrar a sua, Lorde Rahl?
— Sim, General, mas a coisa fica pior. Outras coisas estão
acontecendo. Existe um problema fundamental com a magia.
— Que seria? — insistiu Verna.
Richard observou os olhos dela. — Você precisa saber que as Notas
contaminaram o mundo dos vivos. A própria magia foi corrompida. Partes dela
já falharam. Não há como dizer quando mais alguma parte dela falhará, ou em
quanto tempo. Temo s que voltar e ver o que pode ser feito... se alguma coisa
pode ser feita. Ann está lá, junto com Nathan, e eles estão trabalhando com
Zedd para encontrar algumas respostas.
Antes que Verna pudesse fazer um monte de perguntas, Richard voltou
sua atenção p ara o General. — Uma última coisa. Sem qualquer exército aqui
para ficar no caminho deles, tenho certeza de que Jagang tentará tomar o Palácio
do Povo.
O General Meiffert coçou a cabeça loira enquanto pensava nisso. —
Suponho que sim. — ele levantou os ol hos. — Mas o Palácio fica bem alto em
um enorme planalto. Só há duas formas para subir: a pequena estrada com a
ponte levadiça, ou através das grandes portas internas. Se as grandes portas
estiverem fechadas não haverá qualquer assalto subindo por aquele c aminho, e a
estrada é inútil para um ataque armado.
— Ainda assim, — falou o General — só para garantir, eu
recomendaria que enviássemos alguns de nossos melhores homens até o Palácio
como reforço. Com todos nós seguindo para o sul, o General Comandant e
Trimack e a Primeira Fileira enfrentarão sozinhos todo o exército de Jagang.
Mas assim mesmo, um assalto ao Palácio? — ele balançou a cabeça, cético. — O
Palácio é Impenetrável.
— Jagang tem dotados com ele. — Cara lembrou a ele. — E não
esqueça, Lorde Rah l, aquelas Irmãs já entraram no Palácio antes, faz algum
tempo. Lembra?

202
Antes que Richard pudesse responder, Verna segurou o braço dele e fez
ele virar em direção a ela. — Porque as Irmãs ativariam esse feitiço que você
mencionou, esse feitiço Cadeia de Fogo?
— Para fazer as pessoas esquecerem que Kahlan existe.
— Mas porque elas desejariam fazer tal coisa?
Richard suspirou. — Irmã Ulicia queria levar Kahlan para dentro do
Palácio do Povo para roubar as Caixas de Orden. O feitiço Cadeia de Fogo foi
criado para fazer uma pessoa tornar -se do mesmo jeito que invisível. Com o
feitiço Cadeia de Fogo lançado sobre Kahlan, ninguém lembra dela. Ninguém
lembra que ela entrou e tirou as Caixas do Jardim da Vida.
— Tirou as Caixas… — Verna piscou, surpresa. — E para quê?
— Irmã Ulicia colocou -as em atividade. — disse Nicci.
— Querido Criador. — Verna falou quando pressionava uma das mãos
na testa. — Deixarei algumas das Irmãs lá com um sério aviso.
— Talvez você deva ser uma delas. — Richard disse quando olhou e
viu o vento soprando para levar a chuva para o lado algumas vezes. — Não
podemos permitir que o Palácio caia. Causar devastação no Mundo Antigo é uma
conjuração relativamente simples para as Irmãs. Defender o Palácio da horda de
Jagang e de seus dotados p ode ser um desafio muito maior.
— Talvez você esteja certo. — ela admitiu quando afastava uma mecha
de cabelo soprada pelo vento do rosto.
— Enquanto isso, verei o que posso fazer para deter Ulicia e suas
Irmãs do Escuro. — Richard olhou ao redor, para N icci e Cara, então para todos
os homens correndo através da chuva para executarem sua nova missão. — Eu
preciso voltar.
O General Meiffert bateu com o punho sobre o coração. — Seremos o
aço contra o aço, Lorde Rahl, para que você possa ser a magia contra a magia.
Verna tocou as bochechas de Richard, seus olhos castanhos girando. —
Tome cuidado, Richard. Nós todos precisamos de você.
Ele assentiu e mostrou a ela um caloroso sorriso, colocando nele mais
do que as palavras conseguiriam dizer.
O General Meiffert passou um braço em volta da cintura de Cara. —
Eu poderia escoltá-los até os seus cavalos?
Cara sorriu para ele de uma forma bastante feminina. — Acho que nós
gostaríamos disso.
Nicci levantou o capuz de sua capa quando eles entraram na chuva. Ela
olhou para Richard e fez uma careta, desconfiada.
— De onde você tirou uma ideia como “Legião Fantasma”?
Ele colocou a mão atrás das costas dela e guiou -a dentro do aguaceiro.
— Shota deu essa ideia quando disse que deveria para de caçar fantasmas. Ela
deixou implícito que um fantasma não pode ser encontrado, não pode ser
capturado. Quero que esse homens sejam fantasmas.
Ela passou um braço gentilmente em volta dos ombros dele quando
correram até seus cavalos. — Você fez a coisa certa, Richard.
Ela deve ter lido a tristeza nos olhos dele.

203
C A P Í T U L O 2 6

Rachel bocejou. Aparentemente surgindo do nada, Violeta girou e


bateu nela forte o bastante para derrubá -la da pedra onde estava sentada.
Tonta, Rachel ergueu o corpo sobre um braço. Ela con fortou a
bochecha sobre uma das mãos, esperando a dor surpreendente passar, esperando
que tudo ao redor dela entrasse em foco novamente. Satisfeita, Violeta retornou
ao seu trabalho.
Rachel estivera tão grogue por não ter dormido que não estava
prestando atenção, permitindo que o golpe de Violeta a pegasse completamente
de surpresa. Os olhos de Rachel umedeceram com a dor latejante mas sabia
muito bem que era melhor não falar ou fazer alarde por causa da dor.
— Na melhor hipótese, bocejar não é educado, n a pior, é desrespeitoso.
— o rosto rechonchudo de Violeta espiou por cima do ombro. — Se não
comportar-se, então na próxima vez usarei o chicote.
— Sim, Rainha Violeta. — Rachel respondeu com voz suave. Ela sabia
muito bem que Violeta não estava fazendo u ma ameaça vazia.
Rachel estava tão cansada que mal conseguia manter os olhos abertos.
Um dia ela foi “dama de companhia” de Violeta, mas agora parecia não ser mais
do que um objeto de abuso.
Violet tornara-se preocupada em obter vingança. Durante a noite ela
colocava um dispositivo de ferro preso na boca de Rachel. Era um processo
apavorante. Rachel era obrigada a enfiar a língua em uma braçadeira parecida
com um bico feita com duas peças de ferro. Então as mandíbulas eram amarradas
firme o bastante para prender a língua dela.
Resistir, Rachel aprendeu, fazia ela ganhar uma chicotada seguida por
guardas abrindo sua boca e então usando dolorosas tenazes em sua língua macia
para ajudar a realizar a tarefa de colocá -la dentro da braçadeira. No final eles
sempre venciam; não havia onde esconder sua língua. Assim que a braçadeira
estava em sua língua, então a máscara de ferro que era uma parte dela era
fechada em volta da sua cabeça para manter a língua imóvel.
Logo que ela estava colocada, Rachel não consegui a falar. Era difícil
até mesmo engolir.
Depois disso, Violeta a trancava em sua antiga caixa de ferro para
dormir. Ela disse que desejava que Rachel soubesse como era estar muda e
sentindo dor.
E isso era doloroso. Ficar trancada em sua jaula de ferro a noite toda
com aquele dispositivo terrível preso em sua língua quase a deixara louca. No
início, com sua mente apavorada pelo sentimento de estar trancada e sozinha,
incapaz de sair, incapaz de remover aquela coisa dolorosa, ela gritava e gritava.
Rindo, Violeta apenas jogava um tapete sobre a caixa para abafar os gritos de
Rachel. Entretanto, chorar e gritar somente fazia as mandíbulas de ferro que
prendiam sua língua machucarem ainda mais e deixarem ela ensanguentada.
Mas o que finalmente a fizera parar de chorar e gritar foi que Violeta
colocou o rosto bem na pequena janela e disse que se Rachel não ficasse quieta,
mandaria Seis cortar a língua de Rachel de verdade. Rachel sabia que Seis faria
isso se Violeta pedisse.
Depois disso ela não gritou ou chor ou. Ao invés disso enrolava -se em

204
uma bola dentro de sua pequena prisão de ferro e tentava lembrar de todas as
coisas que Chase havia ensinado a ela. No final, isso era o que acalmava ela.
Chase teria dito a ela para não pensar em sua situação atual, mas ficar
atenta para o momento quando poderia escapar disso. Chase ensinou a ela como
observar padrões na forma como as pessoas comportavam -se, e aberturas onde
elas não estavam prestando atenção. Então, era isso que ela fazia enquanto
ficava deitada dentro d a caixa de ferro toda noite, sem conseguir dormir
enquanto aguardava que a manhã chegasse, aguardava pelos homens que a
arrancariam da caixa e removeriam o terrível dispositivo.
Rachel mal conseguia comer porque sua língua estava tão áspera e
machucada... não que eles dessem muita coisa para ela comer de qualquer modo.
Toda manhã sua língua latejava dolorosamente durante horas depois que a
braçadeira era retirada. Sua mandíbula também doía, por sua boca ter ficado
aberta a noite toda pelo dispositivo. Comer machucava. Mas quando ela
realmente comia, tudo tinha gosto parecido com metal sujo. Falar também doía,
então ela falava apenas quando Violeta perguntava alguma coisa. Violeta, vendo
como Rachel evitava falar, às vezes sorria e de uma forma desdenhosa cha mava
Rachel de sua mudinha.
Rachel estava completamente desanimada por novamente estar nas
garras de uma pessoa tão má, e triste além do que algum dia já estivera porque
Chase tinha morrido. Ela não conseguia retirar a lembrança dele sendo ferido
tão brutalmente de sua mente. Lamentava eternamente por ele. Sua tristeza,
miséria, e absoluta solidão pareciam insuportáveis. Quando Violeta não estava
em suas aulas de desenho, ou ordenando que as pessoas fizessem coisas,
comendo, ou experimentando novas joias, ou sendo medida para vestidos, então
ela alegrava-se machucando Rachel. Às vezes, fazendo Rachel lembrar do modo
como um dia havia tratado ela com um tição, Violeta segurava Rachel pelo pulso
e colocava uma pequena brasa quente da fogueira sobre o braço de la. Ainda
assim, a tristeza de Rachel por Chase a machucava mais do que qualquer coisa
que Violeta podia fazer. Sem Chase, quase não importava o que acontecia com
ela.
Violeta precisava “disciplinar” Rachel, como ela dizia, por todas as
coisas terríveis q ue Rachel tinha feito. Violeta decidira que perder sua língua de
algum modo, em grande parte, havia sido culpa de Rachel. Violeta falou que
levaria um longo tempo para que Rachel ganhasse o perdão por transgressões tão
sérias, e também por mostrar desrespe ito ao escapar do castelo. Violeta
enxergava a fuga de Rachel como uma vergonhosa rejeição daquilo que ela
chamava de “generosidade” com uma órfã sem valor. Frequentemente ela falava
e falava muito tempo sobre todos os problemas que ela e sua mãe passaram
porque Rachel acabara apenas sendo uma menina de rua ingrata.
Quando Violeta eventualmente ficasse cansada de machucá -la, Rachel
suspeitava que ela seria condenada a morte. Tinha ouvido Violeta ordenando as
mortes de prisioneiros acusados de “altos crimes ”. Se alguém a desagradasse o
suficiente, ou se Seis falasse a ela que a pessoa era uma ameaça para a Coroa,
então Violeta ordenava sua execução. Se a pessoa havia cometido o grave erro
de questionar abertamente a autoridade de Violeta, ou o governo dela, então
Violeta dizia aos guardas para fazerem a coisa de forma lenta, para tornar aquilo
doloroso. Às vezes ela assistia, só para ter certeza de que era mesmo.
Rachel lembrou de quando a Rainha Milena ordenou execuções e
Violeta começou a assistir. Como su a dama de companhia, Rachel teve que ir
junto com ela. Rachel sempre desviava os olhos da visão pavorosa; Violeta

205
nunca o fazia.
Seis montou todo um sistema através do qual pessoas podiam informar
secretamente os nomes daquelas pessoas que falavam coisas contra a Rainha.
Seis dissera a Violeta que pessoas que faziam esses informes secretos deviam
ser recompensados por sua lealdade. Violeta pagava generosamente pelos nomes
de traidores.
Desde o tempo quando Rachel estivera com ela anteriormente, Violeta
adquiriu um novo prazer em infligir dor. Frequentemente Seis comentava que a
dor era uma boa professora. Violeta tornara -se incrivelmente apaixonada pela
ideia de que ela controlava as vidas de outras pessoas, de que conforme sua
palavra as pessoas podiam so frer.
Ela também ficou bastante desconfiada de todos. Todos menos de Seis,
que passara a ser aquela que ela considerava como a única pessoa na qual podia
confiar. Violeta suspeitava da maioria dos seus “leais súditos”, frequentemente
referindo -se a eles como “ninguém”. Rachel lembrou que Violeta costumava
chamá-la de “ninguém”.
Quando Rachel morou no castelo antes, as pessoas procuravam não
falar com a pessoa errada, mas era mais uma sensação de que eles estavam
apenas sendo cuidadosas. As pessoas tinham medo da Rainha Milena, e por uma
boa razão, mas eles ainda sorriam e riam às vezes. As lavadeiras conversavam,
os cozinheiros de vez em quando faziam rostos engraçados na comida, a equipe
da limpeza assoviava enquanto cuidavam de suas tarefas, e os soldado s às vezes
contavam piadas uns para os outros enquanto caminhavam pelos corredores do
castelo durante o serviço de guarda.
Agora havia um silencioso tremor sempre que a Rainha Violeta ou Seis
estavam perto. Ninguém da equipe de limpeza, lavadeiras, costur eiras,
cozinheiros, ou soldados sorria ou ria. Todos pareciam com medo o tempo todo
enquanto executavam apressadamente o seu trabalho. A atmosfera no castelo
agora sempre estava carregada com o terror de que, a qualquer momento, alguém
podia ser apontado. Todos esforçavam -se para mostrar abertamente respeito pela
Rainha, especialmente na frente da alta conselheira sinistra dela. As pessoas
pareciam temer Seis tanto quanto temiam Violeta. Quando Seis exibia aquele
sorriso que tinha, estranho, vazio, parecido com o de uma cobra, as pessoas
congelavam no lugar, com olhos arregalados, o suor escorrendo pelas
sobrancelhas, e então engoliam em seco aliviadas assim que ela deslizava
sumindo de vista.
— Bem aqui. — falou Seis.
— Bem aqui, o quê? — perguntou Violet a enquanto mastigava um
pedaço de pão.
Rachel endireitou -se sobre a pedra onde estivera sentada. Lembrou a si
mesma para prestar mais atenção. O tapa era culpa dela mesma por ficar
entediada e não prestar atenção.
Não, não era, ela disse a si mesma. Era culpa de Violeta. Chase dissera
a ela para não assumir a culpa que pertencia a outra pessoa.
Chase. O coração dela pesou novamente ao pensar nele. Tinha que
concentrar sua mente em outras coisas ou acabaria ficando tão triste pensando
nele que começaria a chorar. Violeta não era tolerante diante de qualquer coisa
que Rachel fazia sem permissão. Isso incluía chorar.
— Bem aqui. — Seis falou novamente com exagerada paciência.
Quando Violeta ficou apenas olhando para ela, Seis deslizou um longo dedo pelo
rosto da parede rochosa iluminada pela tocha. — O que está faltando?

206
Violeta inclinou -se, observando a parede. — Humm…
— Onde está o sol?
— Ora, — falou Violeta com uma voz aguda quando endireitou o corpo
e balançou um dedo para o disco amarelo. — está bem ali. Certamente você
consegue ver que aquele é o sol.
Seis olhou séria para ela durante um instante. — Sim, é claro que eu
vejo que esse é o sol, minha Rainha. — o sorriso vazio dela retornou. — Mas
onde ele está no céu?
Violeta ficou batendo suavemente com o giz no queixo. — No céu?
— Sim. Onde ele está no céu? Direto acima? — Seis apontou o dedo
em direção ao céu. — Devemos entender que estamos olhando para o sol direto
acima no céu? É meio dia?
— Bem, não, é claro que não é meio dia... você sabe que não pode ser.
Deveria ser uma hora avançada do dia. Você sabe disso também.
— É mesmo? E como sabemos disso? Afinal de contas, não faz
diferença o que eu sei que deve ser. O desenho deve indicar o que é. Não pode
ser um comentário vindo de minha parte, p ode?
— Acho que não. — Violeta admitiu.
Outra vez Seis deslizou o dedo pela parede abaixo do sol. — Então o
que está faltando?
— Faltando, faltando… — Violeta murmurou. — Oh! — rapidamente
ela desenhou uma linha reta onde Seis havia indicado com o dedo. — O
horizonte. Precisamos fixar a hora do dia com o horizonte. Você já tinha falado
isso para mim. Acho que isso escapuliu da minha mente. — ela direcionou um
olhar zangado para Seis. — É bastante coisa para lembrar, você sabe. É difícil
de manter na ment e toda essa coisa.
Seis manteve o sorriso congelado. — Sim, minha Rainha, é claro que é.
Peço desculpas por esquecer o quanto foi difícil para mim aprender todas essas
coisas quando eu tinha a sua idade.
O desenho no qual Violet estava trabalhando era com plexo além de
tudo mais na caverna, mas Seis sempre estava ali para lembrar a Violeta a coisa
certa a desenhar na hora certa.
Violeta balançou o giz para Seis. — Seria muito bom para você manter
isso em mente.
Seis entrelaçou os dedos cuidadosamente. — Sim, minha Rainha, é
claro. — ela curvou os lábios e finalmente desviou o olhar de Violeta quando
virou de volta para a parede. — Agora, nesse ponto precisamos do mapa estelar
para esse domínio. Posso ensinar a você sobre as razões específicas mais tarde,
se desejar, mas nesse momento porque não mostro a você apenas o que é
necessário?
Violeta olhou para onde Seis estava apontando e balançou os ombros.
— Certo. — ela voltou a mastigar o pão enquanto esperava.
Seis abriu um pequeno livro. Violeta curvou -se, forçando os olhos na
luz bruxuleante. Seis bateu sobre a página com uma longa unha quando Violeta
finalmente engoliu o pedaço de pão crocante.
— Está vendo o Azimute? Lembra da aula sobre o ângulo referente ao
horizonte para essa estrela, aqui?
— Sim… — Violeta disse lentamente, parecendo como se realmente
soubesse do que Seis estava falando. — Então isso envolveria essa referência
angular aqui. Certo?
— Sim, isso mesmo. É um aspecto do agente conector que liga tudo

207
isso.
Violeta assentiu. — Por sua vez ligando isso a ele … — ela falou,
pensativa.
— Isso mesmo. A ligação é um elemento daquilo que é necessário para
travar isso no lugar no momento da conexão conclusiva. Isso, por sua vez, torna
o horizonte que você acabou de desenhar necessário para fixa r esse ângulo. De
outra forma essa seria uma correlação flutuante.
Violeta estava assentindo novamente. — Acho que agora entendo
porque eles tem que ficar conectados. Se o inter -relacionamento não estiver
fixado... — ela ficou ereta e apontou para um arco de símbolos. — então esses
poderiam acontecer a qualquer momento. Hoje, amanhã... ou... ou... não sei...
uma dúzia de anos a partir de agora.
Seis sorriu de uma forma manhosa. — Correto.
Violeta sorriu em triunfo com sua realização. — Mas onde
conseguim os todos esses símbolos, e como sabemos onde usá -los no desenho?
Para dizer a verdade, como sabemos que eles são necessários nos pontos exatos
em que você fez com que eu os desenhasse?
Seis soltou um suspiro. — Bem, eu poderia ensinar isso tudo para você
antes, mas isso levaria cerca de vinte anos de estudo. Está disposta a esperar
todo esse tempo pela vingança?
A expressão de Violeta ficou sombria. — Não.
Seis balançou os ombros. — Então sugiro que o atalho da minha ajuda
ao direcionar o desenho é a rot a mais curta para o resultado.
Violeta contorceu a boca. — Suponho que sim.
— Você tem o básico, minha Rainha. Está indo muito bem para esse
estágio do desenvolvimento de seu talento. Garanto a você que embora eu esteja
ajudando com parte das complexidad es, nada disso funcionaria sem o seu
considerável talento. Eu não conseguiria fazer isso funcionar sem a sua
habilidade.
Violeta sorriu como uma aluna premiada. Dando outra olhada
cuidadosa no volume que Seis estava segurando aberto, Violeta finalmente
retornou até a parede, desenhando cuidadosamente os elementos do livro que ela
precisava.
Rachel estava admirada como Violeta conseguia desenhar tão bem.
Todas as paredes da caverna, desde a entrada até o lugar profundo onde elas
estavam trabalhando, estava m cobertos por desenhos. Eles estavam em todo
espaço disponível. Em alguns lugares parecia que eles tinham sido espremidos
dentro de pequenos locais deixados entre desenhos mais antigos. Alguns dos
desenhos eram muito bons, com detalhes como sombreamento. Porém, a maioria
eram desenhos simples de ossos, plantações, cobras, ou outros animais. Havia
figuras de pessoas bebendo de canecas com crânios e ossos cruzados nelas. Em
um local uma mulher, parecendo como se fosse feita com varetas, estava
correndo para fora de uma casa que estava em chamas; a mulher também estava
coberta pelas chamas. Em outro ponto um homem estava dentro da água ao lado
de um barco que afundava. Em outra cena uma cobra estava picando o tornozelo
de um homem. As paredes também estavam co bertas com figuras de caixões e
túmulos de todos os tipos. Entretanto, todas as figuras tinham uma coisa em
comum: eram de coisas terríveis.
Mas não havia um só desenho em toda a caverna que estivesse próximo
da complexidade da coisa que Violeta estava de senhando.
Outros desenhos eram apenas raramente figuras em tamanho real de

208
pessoas e até mesmo essas tinham poucas coisas adicionadas, como rochas
caindo sobre elas, ou elas sendo esmagadas sob um cavalo. A maioria dos
desenhos mostravam os mesmos tipos d e coisas mas tinham apenas poucas mãos
de comprimento. Os desenhos de Violeta, porém, seguiam por dúzias de pés,
desde o solo até tão alto quanto ela conseguia alcançar, continuando seu
caminho mais fundo dentro da caverna. Violeta havia desenhado a coisa toda
sozinha, com Seis guiando -a pelo caminho, é claro.
Porém, o que mais alarmava Rachel, era que após Violeta ter
trabalhado nos desenhos durante bastante tempo, após ela ter desenhado
estrelas, fórmulas, diagramas e símbolos estranhos e complexos, no c entro de
tudo aquilo, finalmente ela desenhara a figura de uma pessoa.
Essa figura era Richard.
O desenho de Violeta era diferente de qualquer outra coisa na caverna.
Fazia todos eles parecerem simples e rudimentares em comparação. Todos os
outros desenh os tinham coisas fáceis, óbvias, como talvez uma nuvem de
tempestade com linhas inclinadas como chuva, ou um lobo mostrando os dentes,
ou um homem simplesmente segurando no peito enquanto caía para trás. Havia
pouca coisa mais nas paredes a não ser algumas coisas simples ao redor das
figuras.
O desenho de Violeta estava coberto por coisas que eram
completamente diferentes. Havia números e figuras, palavras em línguas
estranhas, algumas escritas pelas linhas de diagramas, números colocados
cuidadosamente on de ângulos uniam -se, e havia estranhos símbolos geométricos
espalhados por toda a ilustração. Sempre que Violeta desenhava qualquer um
desses símbolos Seis ficava bem perto, concentrando -se, sussurrando
orientações para cada linha, Às vezes corrigindo onde Violeta estava prestes a
colocar o giz, evitando que ela ao menos tocasse com ele na parede para fazer a
linha seguinte para que não ficasse fora de sequência ou fora de lugar. Uma vez
Seis até mesmo ficou alarmada e agarrou o pulso de Violeta antes que e la
pudesse encostar o giz na parede. Suspirando com alívio, então Seis moveu a
mão de Violeta e ajudou -a a iniciar no lugar correto.
Ao contrário de todos os outros desenhos na caverna, os de Violeta
estavam feitos com cores diferentes. Todos os outros de senhos por todo o
caminho mergulhando fundo na caverna, até o local onde Violeta havia
começado os dela, eram simples desenhos com giz. Os desenhos de Violet a
tinham árvores verdes em um ponto, água azul em outro, um sol amarelo, e
nuvens vermelhas. Alguns dos desenhos estavam feitos inteiramente na cor
branca, enquanto outros eram multicoloridos e em uma disposição de cores de
forma organizada.
E, diferente de todos os outros desenhos, quando elas deixavam a
caverna e Rachel olhava para trás, ela podia ve r elementos do desenho brilhando
no escuro. Não era o giz que fazia eles brilharem, porque o mesmo giz em
outros lugares do desenho não brilhavam no escuro.
Também havia uma parte de um símbolo que brilhava quando era
deixado no escuro. Era um rosto estra nho brilhando em um desenho escuro
formado inteiramente por figuras complexas. Sempre que a tocha estava perto, o
rosto não era visível e parecia apenas com um emaranhado de linhas. Rachel
nunca conseguia ver quais aspectos da figura podiam formar o rosto. Mas no
escuro ele olhava fixamente para ela, os olhos seguindo -a, observando ela partir.
Entretanto, a coisa que realmente causava arrepios em Rachel, era a
figura de Richard. Era um desenho tão bem feito que Rachel podia reconhecê -lo

209
somente pelo rosto d ele.
Surpreendeu Rachel ver como Violeta podia desenhar bem. Mas
também havia outras coisas que indicavam quem era Richard, mesmo se o
desenho não estivesse tão bom. Sua roupa negra era representada de forma
precisa, exatamente do jeito que Rachel lembrav a. Ela possuía até alguns dos
símbolos misteriosos na borda do manto dele. Seis havia sido bastante cuidadosa
ao orientar precisamente como Violeta deveria desenhar aqueles símbolos. Na
imagem de Violeta, Richard também usava a capa esvoaçante que parecia ter
sido feita com fios de ouro.
A forma como Violeta desenhou fazia parecer quase como se ele
estivesse dentro de água.
Em volta dele também havia áreas coloridas ondulantes que Seis
chamou de “auras”. Cada cor tinha fórmulas complexas e figuras entre e las e
Richard. Seis tinha falado que no final, como o último passo, aqueles elementos
interpostos entre ele e sua essência ficariam conectados para formarem um a
barreira interventora. O que isso significava, Rachel não sabia, mas estava óbvio
que isso era importante para Violeta.
Seis parecia particularmente orgulhosa dessa parte, dos elementos da
barreira interventora. Às vezes ela ficava parada por longos períodos apenas
olhando para eles.
Na figura, Richard tinha a Espada da Verdade , mas ela estava
desenhada de forma tênue, como se estivesse ali com ele, mas não estivesse. Ela
quase parecia parte dele, da forma como Violeta a desenhara com Richard
segurando-a de modo que ela cruzasse o peito dele, ainda assim Rachel não
podia afirmar se ele realmente es tava segurando ela porque a mesma estava
desenhada tão suavemente. Violeta havia trabalhado duro para fazer a coisa
daquele jeito. Seis a fizera desenhar a espada diversas vezes porque dizia que
ela estava “substancial” demais.
Rachel estava confusa que a espada fosse desenhada com Richard, uma
vez que agora Samuel tinha a espada. Mesmo assim, de alguma forma parecia
correto que Richard fosse desenhado com a espada. Talvez Seis também
imaginasse isso.
Violeta recuou, inclinando a cabeça, contemplando seu trabalho. Seis
ficou admirada, olhando para aquilo como se ninguém mais estivesse ali com
ela. Ela esticou o braço, lentamente, e tocou levemente as figuras em volta de
Richard.
— Quanto tempo até fazermos a conexão de elementos final? —
perguntou Violeta.
Enquanto os dedos de Seis moviam -se lentamente, suavemente, pelas
figuras, alguns dos elementos interpostos respondiam ao seu toque, cintilando e
brilhando na luz fraca.
— Em breve. — ela sussurrou. — Em breve.

210
C A P Í T U L O 2 7

— Lorde Rahl!
Richard virou bem a tempo de ver Berdine, correndo, saltar em direção
a ele. Ela aterrissou contra seu peito, lançando os braços e pernas em volta dele.
O impacto tirou o ar dos seus pulmões. A longa trança de cabelo castanho dela
chicoteou ao redor dele. Richard cambaleou dando um passo para trás enquanto
colocava os braços em volta dela para impedir que ela caísse. Porém, com os
braços e pernas segurando nele, parecia que ela não precisava de sua ajuda.
Richard raramente tinha visto até mesmo um esquilo voador realizar
um salto melhor. A despeito de tudo que estava em sua mente, ele não conseguiu
evitar um sorriso diante da animação de Berdine. Quem teria pensado que um
dia uma Mord-Sith passaria a ser tão espontaneamente alegre quanto uma
garotinha.
Ela afastou um pouco o corpo, segurando os ombros dele, as pernas
firmes em volta da cintura dele, sorrindo. Ela olhou para a expressão séria de
Cara. — Ele ainda gosta mais de mim... posso afirmar.
Cara simplesmente girou os olhos.
Com as mãos na cintura de Berdine, Richard ergueu -a e colocou -a no
chão. Ela era menor do que a maioria das outras Mord -Sith que Richard
conhecia. Também era mais voluptuosa, e muito mais vivaz. Richard sempre
considerou que ela era uma combinação bastante desarmadora de sincera
sensualidade com uma natureza travessa. Entretanto, como qualquer uma das
Mord-Sith, ela também possuía o potencial para a instantânea violência brutal
escondido logo abaixo da superfície brilhante de sua alegria infantil. Ela
também amava Richard apaixon adamente e abertamente, mas de um jeito
honesto, inocente, parecido com o de uma filha.
— Você é uma visão que aquece meu coração, Berdine. Como você
está?
Ela olhou confusa para ele. — Lorde Rahl, eu sou Mord -Sith. Como
acha que estou?
— Causando agita ção como sempre. — ele falou baixinho.
Ela sorriu, satisfeita com o comentário. — Ouvimos falar que você
esteve aqui mais cedo, mas perdi você por pouco. Já são duas vezes que não
consegui falar com você recentemente. Não vou deixar que você desapareça
novamente sem falar com você. Temos tanta coisa para conversar que nem
mesmo sei por onde começar.
Richard olhou descendo o largo corredor, através da extensão de
mármore dourado variegado disposto em um padrão diagonal dentro de uma
borda de granito negro, e viu um grupo de soldados marchando em direção a ele
em ritmo acelerado. Acima, a chuva batia de forma constante contra claraboias
que deixavam entrar a luz cinzenta. De alguma forma, essa luz fraca conseguia
refletir com grande luminosidade nas armadura s polidas dos soldados.
Todos tinham machados em forma de lua crescente presos aos cintos,
junto com as espadas e longas facas que também carregavam. Alguns dos
homens estavam armados com bestas que estavam engatilhadas e prontas para
disparar. Aqueles ho mens, dos quais os outros estavam bastante afastados,
usavam luvas negras. As bestas estavam carregadas com flechas com penas

211
vermelhas de aparência mortal.
Os corredores estavam cheios de pessoas de todo tipo, desde aqueles
que moravam e trabalhavam ali até pessoas que vinham negociar ou vender
mercadorias. Todas elas forneciam amplo espaço para os soldados que
aproximavam-se. Ao mesmo tempo, elas observavam Richard enquanto tentavam
disfarçar o fato de estarem olhando para ele. Quando Richard olhava nos olhos
delas ou as flagrava observando, algumas baixavam as cabeças em uma
reverência enquanto outras caiam sobre um joelho. Richard sorriu, tentando
acalmá-las.
Esse era um raro evento, pelo menos em anos recentes, quando o Lorde
Rahl estava em casa em se u Palácio. Richard mal podia esperar que as pessoas
deixassem de ficar curiosas a respeito dele. Em sua roupa negra de Mago
Guerreiro, junto com a capa dourada esvoaçante, era difícil não notá -lo. Porém,
ele ainda não conseguia considerar um lugar assim co mo seu lar; em seu coração
ele considerava as florestas de Hartland como lar. Havia crescido caminhando
entre árvores enormes, não elevados pilares de pedra.
O General Comandante Trimack da Primeira Fileira no Palácio do Povo
parou e como saudação bateu c om um punho sobre o peito em sua armadura de
couro. O suave retinir metálico dos equipamentos morreu depois que a dúzia de
homens com ele fizeram uma saudação em conjunto. Esses homens, observando
constantemente os corredores e avaliando cada pessoa que pa ssava, eram os
guardas pessoais de Lorde Rahl quando ele estava em seu Palácio. Cada um
deles viu Cara e rapidamente olhou para Nicci, paradas ao lado de Richard.
Esses homens eram o anel de aço que impedia qualquer perigo de aproximar -se
de Lorde Rahl. El es serviam na Primeira Fileira porque eram os mais
habilidosos e leais entre todas as tropas D’Haranianas.
Após a saudação, o Comandante fez uma reverência para Cara e depois
para Richard. — Lorde Rahl, estamos felizes que você finalmente esteja em
casa.
— Eu temo, General Trimack, que esta seja apenas uma rápida visita.
Não posso ficar. — Richard apontou para Cara e Nicci. — Temos assuntos
urgentes e temos que partir imediatamente.
O General Trimack, parecendo sinceramente desapontado mas não
inteiramente surpreso, suspirou. Então ele pareceu ter pensado em algo e
iluminou-se um pouco. — Você encontrou a mulher... a sua esposa... que esteve
no Jardim da Vida e partiu deixando aquela estátua que você encontrou lá?
Richard sentiu uma pontada de angústia p or Kahlan. Sentiu-se culpado
por não fazer mais para encontrá -la. Como podia deixar que outros assuntos o
impedissem de encontrar Kahlan? Como podia haver algo importante o bastante
para desviá-lo da procura por ela? Ele tentou não pensar na visão dela que Shota
mostrou. Parecia como se, com tudo que estava acontecendo, ele tivesse
colocado de lado sua busca por aquela pessoa que mais significava. Sabia que
não era realmente desse jeito, que isso não podia ser evitado, mas ainda assim,
ele precisava retornar até a Fortaleza e voltar a trabalhar em uma forma para
encontrá-la.
Mesmo quando ele estava trabalhando em outras coisas, ela nunca
estava realmente fora de seus pensamentos. Ele continuava tentando pensar para
onde Irmã Ulicia teria levado Kahlan. Agor a que tinham as Caixas de Orden...
ou ao menos duas delas... para onde as Irmãs iriam? O que elas estariam
planejando? Se conseguisse descobrir isso então talvez pudesse ir atrás delas.
Também lhe ocorrera que elas ainda precisavam do Livro das Sombras

212
Contadas para abrir a Caixa de Orden certa, então era possível que se ele
simplesmente ficasse parado em um lugar tempo suficiente elas teriam que vir
atrás dele, já que agora o livro existia somente na memória dele. O simples fato
era que, a não ser que est ivessem dispostas a fazer uma tentativa e arriscar
estarem erradas, elas precisavam do Livro das Sombras Contadas para abrir a
Caixa certa, e Richard não conseguia imaginar que elas arriscariam perder o que
elas acreditavam ser a sua chance de imortalidade . Precisavam da chave que
somente ele tinha para conseguirem a solução e abrir a Caixa certa. Kahlan era
parte da chave para essa solução, mas elas ainda precisavam daquilo que apenas
Richard tinha.
O único método em que ele conseguia pensar para encontrá -la era
aprender tudo que pudesse sobre Cadeia de Fogo e as Caixas de Orden, e em
algum lugar nessa mistura talvez houvesse uma pista sobre o que as Irmãs
fariam em seguida. Os livros que ele precisava estudar para esse fim, juntamente
com a pessoa que mel hor os entendia e que de longe tinha a maior experiência
nesse tipo de coisas, estavam na Fortaleza. Ele precisava voltar para lá.
Richard olhou para os olhos do General. — Ainda não, eu temo. Ainda
estamos procurando por ela, mas obrigado por sua preocup ação.
Ninguém a não ser Richard ao menos lembrava dela, lembrava do
sorriso dela, da sua alma que ficava visível nos olhos verdes dela. Às vezes
Kahlan nem mesmo parecia real para ele também. Ela parecia algo impossível,
como se ninguém pudesse ser tudo a quilo que ele lembrava, como se ela só
pudesse ser uma invenção dos mais profundos desejos dele na vida. Ele
conseguia entender a dificuldade daqueles mais próximos a ele em lidar com a
situação.
— Sinto muito ouvir isso, Lorde Rahl. — o General observou as
multidões movendo-se pelo corredor. — Acredito que pelo menos dessa vez
você não esteja aqui em meio a grandes problemas?
Foi a vez de Richard suspirar. Por onde começar?
— De certo modo, eu estou.
— O exército da Ordem Imperial continua a avançar so bre D’Hara? —
o General arriscou.
Richard assentiu. — Infelizmente. Em resumo, General, eu dei ordens a
nossas forças para que não enfrentem o exército do Imperador Jagang em
batalha porque eles não possuem os números para terem uma chance. Seria um
massacre sem propósito e Jagang ainda acabaria com o Mundo Novo todo para
si.
O General Trimack coçou uma cicatriz que destacava -se branca contra
a pele corada na mandíbula dele. — Qual a outra opção, Lorde Rahl, a não ser
enfrentar o inimigo em batalha?
Suas palavras simples, tranquilas, tinham o som de alerta, da cautela
nascida com a experiência, da esperança equilibrada sobre um fio afiado de uma
lâmina do desespero. Por um momento, Richard escutou os sussurros de pés
contra rocha conforme as multidões pas savam constantemente pelo corredor.
— Ordenei que nossas forças partissem imediatamente para devastarem
o Mundo Antigo. — Richard desviou seu olhar de volta para o General. — Eles
queriam guerra; pretendo enfiar o que eles desejam em suas gargantas e ver eles
sufocarem até a morte com isso.
Diante das notícias assustadoras, alguns dos homens ficaram de bocas
abertas. O General Comandante Trimack ficou olhando surpreso durante um
instante, então ele coçou a cicatriz com um dedo, pensativo. Uma expressão

213
contente finalmente mostrou que, a despeito de sua surpresa inicial, ele estava
começando a gostar da ideia.
— Acho que isso significa que a Primeira Fileira será convocada para
manter os bastardos fora do Palácio.
Richard encarou o olhar firme do homem. — Acha que consegue fazer
isso?
Um sorriso torto surgiu na boca do General. — Lorde Rahl, o meu
humilde talento dificilmente será a margem de segurança para o Palácio. Os seus
ancestrais construíram esse lugar como fizeram especificamente para impedir
que alguém o tomasse. — ele apontou para as colunas, paredes, e sacadas ao
redor. — Além das defesas naturais, esse lugar está investido com poderes que
enfraquecem qualquer um dos inimigos dotados.
Richard sabia que o Palácio foi construído na forma de um fe itiço que
aumentava o poder de qualquer Rahl dentro dele, e sugava a força de qualquer
outra pessoa dotada. O Palácio todo foi construído na forma de um emblema.
Até certo ponto, Richard entendia sua forma e a natureza geral do seu
significado. Ele podia l er o motivo da força inerente no padrão.
Infelizmente, esse feitiço enfraqueceria até mesmo aqueles com o Dom
que estavam do seu lado, como Ele precisava que Verna fosse capaz de proteger
o Palácio, mas se ela e as Irmãs com ela fossem enfraquecidas por e sse feitiço,
então ela teria momentos difíceis ao defender o Palácio. O equilíbrio para isso,
ele imaginou, era que qualquer um atacando teria o mesmo problema, então não
teriam vantagem sobre Verna e as Irmãs dela. Não havia alternativa além de
contar que Verna fizesse o melhor que podia.
— Além de reforços, estou enviando algumas Irmãs para cá, junto com
Verna, a Prelada delas.
O General Trimack assentiu. — Conheço a mulher. Ela é teimosa
quando está feliz e fica impossível quando não está. Ficarei cont ente que ela
esteja do nosso lado, Lorde Rahl, e não o contrário.
Richard teve que sorrir. O homem realmente conhecia Verna.
— Retornarei quando puder, General. Enquanto isso, contarei com
você para proteger o Palácio do Povo.
— Será necessário selar as grandes portas internas.
— Faça o que achar melhor, General.
— As grandes portas estão investidas com o mesmo poder que o resto
do Palácio, então elas não são um elo fraco que fornecerá qualquer oportunidade
para ataque. O único problema em fechar as por tas é que isso coloca fim ao
comércio, que é o sangue da vida do Palácio… em tempos de paz, pelo menos.
Richard observou as multidões de pessoas seguindo seu caminho
através do corredor e pelas sacadas acima. — Com aquilo que está por vir, o
comércio no P alácio não será mesmo possível. Ninguém será capaz de viajar na
Planície Azrith... ou em qualquer outro lugar no Mundo Novo, para dizer a
verdade. O comércio em toda parte está sendo interrompido. Preparem -se para
um longo cerco.
O homem balançou os ombro s. — Historicamente isso é o que os
exércitos fazem, ficam sentados lá fora e esperam que morramos de fome. Não
pode ser feito; lá fora na Planície Azrith eles passarão fome primeiro. Você
voltará, Lorde Rahl, para ajudar na proteção do Palácio?
Richard passou uma das mãos pela boca. — Não sei quando poderei
retornar. Mas se puder, eu prometo. Por enquanto, preciso concentrar minha
mente nesse novo esforço.

214
— Tentaremos matar a Ordem arrancando seu coração, ao invés de
tentarmos lutar contra seus músculos .
— E se eles montarem um cerco ao Palácio nesse meio tempo e você
precisar voltar? Como você conseguirá entrar novamente?
— Bem, eu não tenho um Dragão, então não posso entrar voando. —
quando o homem apenas ficou olhando para ele, Richard limpou a garg anta e
disse. — Se for necessário eu posso voltar do jeito que vim hoje, com ajuda da
magia... através da Sliph.
O General não pareceu entender, mas aceitou a palavra de Richard sem
questionar.
— Estou a caminho de lá agora, General. Se quiser, pode nos escoltar e
ver por si mesmo.
Ele pareceu um tanto quanto aliviado em ser convidado a fazer seu
trabalho de proteger o Lorde Rahl. Richard segurou o braço de Berdine e
começou a caminhar com ela descendo o corredor enquanto todos os soldados
espalhavam -se para formarem um perímetro protetor.
Berdine era consideravelmente menor do que Richard, então ele
inclinou-se um pouco para falar sem elevar sua voz. — Preciso saber algumas
coisas. Você esteve traduzindo mais alguma coisa do diário de Kolo?
Ela sorriu como uma criada cheia de assuntos para fofocar. — Eu diria
que sim. Entretanto, por causa de algumas das coisas que Kolo tinha a dizer,
tive que começar a pesquisar em outros livros também... para que pudesse
entender melhor como tudo isso se encaixa. — ela chegou mais perto. — Havia
coisas acontecendo que nem percebemos antes, quando trabalhamos nisso juntos.
Nós apenas arranhamos a superfície.
Richard não achou que ela soubesse a metade daquilo. — Alguma
dessas coisas tem a ver com o Primeiro Mago Baracc us?
Abruptamente Berdine parou e ficou olhando para ele. — Como você
sabia disso?

215
C A P Í T U L O 2 8

Richard esticou o braço para trás, segurou Berdine pelo braço, e


puxou-a junto com ele. — Explicarei isso depois, quando eu tiver mais tempo. O
que Kolo escreveu sobre Baraccus nesse diário?
— Bem, o que Kolo escreveu é apenas parte da história. Kolo apenas
deu pistas daquilo que estava acontecendo então, para preencher os espaços
vazios, comecei a ler os livros nas suas restritas bibliotecas priva das.
Nunca deixou de surpreender Richard de que, sendo o Lorde Rahl,
agora ele tinha acesso a tais bibliotecas restritas. Ele não podia começar a
imaginar a riqueza do conhecimento contido em todos aqueles volumes.
— Que tipo de livros?
Berdine apontou. — Um deles está no caminho, não nas áreas comuns
mas fundo nas seções privadas do Palácio... lugares onde quase ninguém tem
permissão para entrar. Mostrarei a você. Parte disso tem a ver com alguma coisa
chamada de “Locais Centrais ”.
Acompanhando o ritmo do outro lado dele, Nicci inclinou -se. —
Nathan falou que leu algumas coisas sobre lugares chamados de “ Locais
Centrais ”.
— Como o quê? — Richard perguntou.
Nicci jogou o cabelo loiro do lado do rosto dela para trás, por cima do
ombro. — Os Locais Centr ais são bibliotecas altamente secretas. Em período
perto ou depois da Grande Guerra os Locais Centrais foram estabelecidos como
um local seguro e escondido para guardar livros que eram considerados
perigosos demais para serem conhecidos exceto por um grupo seleto bastante
restrito de pessoas. Nathan disse que ele acha que talvez houvesse meia dúzia
desses locais.
— Isso mesmo. — falou Berdine. Ela olhou ao redor para ter certeza de
que nenhum dos soldados estava seguindo eles perto o suficiente para escuta r.
— Lorde Rahl, encontrei uma referência onde está implícito que pelo menos
alguns desses locais foram marcados com os nomes de um Lorde Rahl da
profecia.
Richard parou. — Está dizendo que eles colocaram o nome dele em
uma lápide?
Berdine ergueu as sobr ancelhas. — Isso mesmo. Ela mencionava que
esses locais, essas bibliotecas, eram mantidos com os ossos. Eles pensaram, de
acordo com o que sabiam da profecia, que um futuro Lorde Rahl precisaria
encontrar livros que fossem mantidos ali e então, pelo menos em um trecho onde
encontrei isso mencionado, dizia que eles colocaram o nome dele em uma
lápide.
— Em Caska.
Berdine estalou os dedos, então balançou o dedo para ele. — Esse é o
nome do lugar que eu vi indicado. Como você sabia?
— Eu estive lá. Meu nome está em um grande monumento no
cemitério.
— Você esteve lá? Porque? O que estava procurando? O que
encontrou?
— Encontrei um livro... Cadeia de Fogo... que ajudou a provar o que

216
aconteceu com minha esposa.
Berdine olhou para Cara e Nicci antes de olhar novamente para
Richard. — Estive ouvindo rumores a respeito de você ter uma esposa. No início
achei que devia ser apenas uma fofoca maluca. Então, isso realmente é verdade?
Richard inspirou profundamente enquanto marchava pelo corredor,
cercado por guardas e observado pelas multidões que passavam. Ele não sentia
vontade de explicar a Berdine que ela conhecia Kahlan, e de fato havia passado
bastante tempo com ela.
— É verdade. — ele falou simplesmente.
— Lorde Rahl, o que significa tudo isso?
Richard colocou a pergunta de lado. — É uma longa história e não
tenho tempo para contar nesse momento. O que tem nesse assunto dos Locais
Centrais que deixou você tão agitada?
— Bem, — disse Berdine quando inclinou -se outra vez enquanto eles
avançavam rapidamente pelo largo corredor. — você lembra de como Baraccus
cometeu suicídio depois que retornou do Templo dos Ventos?
Richard olhou para ela. — Sim.
— Tinha algo por trás disso.
— Por trás disso. O que você quer dizer com isso?
Berdine chegou a uma passagem l ateral guardada por dois homens com
lanças. Quando eles avistaram Richard e sua comitiva, bateram com os punhos
sobre os corações e afastaram -se abrindo caminho. Berdine abriu uma das portas
duplas coberta por metal. Tinha uma imagem de um jardim gravado e m relevo
meticulosamente na superfície polida. Além da porta o corredor menor com
ricos painéis de mogno estava vazio. Era a entrada para as áreas privadas do
Palácio.
— Não fui capaz de descobrir o que, mas acredito que Baraccus fez
alguma coisa enquanto estava no Templo dos Ventos. — Berdine olhou para trás
para ter certeza de que ele estava prestando atenção. — Alguma coisa grande.
Algo importante.
Richard assentiu enquanto seguia Berdine pelo corredor vazio. —
Quando Baraccus esteve no Templo dos Vent os de alguma forma ele
providenciou para que eu nascesse com Magia Subtrativa.
Dessa vez foi Nicci quem segurou o braço de Richard e fez ele parar,
girando ele para que a encarasse. — O quê! De onde você tirou uma ideia como
essa?
Richard piscou diante d a expressão chocada dela. — Shota falou para
mim.
— E como Shota saberia de uma coisa como essa?
Richard balançou os ombros. — Você conhece Bruxas, elas enxergam
coisas no fluxo do tempo. Uma parte disso eu desvendei a partir dos trechos que
conheço da história.
Nicci não pareceu convencida. — Porque Baraccus faria tal coisa?
Shota tenta dizer a você que, do nada, esse antigo mago simplesmente viajou até
o Submundo e enquanto estava lá ele pensou … o quê? Uma vez que ele já
estava lá deveria aproveitar p ara garantir que quando alguém chamado Richard
Rahl nascesse três mil anos depois ele teria que nascer com Magia Subtrativa?
Richard lançou um olhar para ela. — É um pouco mais complicado do
que isso, Nicci. Tenho certeza de que ele fez isso como uma cont ramedida ao
que outro mago tinha feito quando estivera lá anteriormente. Esse magoa era
Lothain. Lembra dele, Berdine?

217
— É claro.
— Lothain era um espião.
Berdine arfou. — Era isso que Kolo pensava... que ele era um espião o
tempo todo... plantado lá pa ra esperar uma oportunidade de atacar. Kolo não
acreditava que Lothain apenas tinha ficado louco ou algo assim como todos
achavam. Essa era a história comum na época... que a tensão e o perigo do seu
trabalho simplesmente acabaram com Lothain e ele não con seguiu mais suportar,
que ele simplesmente enlouqueceu. Kolo jamais falou para outras pessoas o que
pensava porque achava que elas acreditariam nele, e também porque as pessoas
haviam começado a pensar que era Baraccus o espião.
Richard fez uma careta qua ndo começou a andar outra vez. —
Baraccus! Isso é loucura.
— Isso foi o que Kolo pensou também.
— O que esse mago Lothain supostamente fez? — Nicci perguntou com
uma voz firme para fazer ele retornar ao assunto em questão e para destacar a
seriedade da sua pergunta.
Richard olhou dentro dos olhos azuis dela durante um momento e viu
ali não apenas Nicci, mas a poderosa feiticeira que ela de fato era. Por causa dos
seus traços deslumbrantes, seus intensos olhos azuis, e da forma como ela o
tratava com tamanha consideração, sem falar da forte amizade dela, era fácil
esquecer que essa era uma feiticeira que tinha visto e feito coisas que ele mal
poderia começar a imaginar.
Provavelmente ela era uma das feiticeiras mais poderosas que já
nascera, e ela era uma força que devia ser reconhecida.
Mais do que isso, Nicci, dentre todas as pessoas, merecia conhecer a
verdade. Não era que ele estivesse tentando esconder isso dela... ele
simplesmente não tinha tempo para discutir isso. De fato, ele gostaria de já ter
contado a ela sobre isso, que tivesse a opinião dela sobre a cosia toda,
especialmente a parte sobre a biblioteca secreta que Baraccus manteve, e o livro
destinado a Richard que ele enviara para lá com sua esposa para que ficasse
seguro… até o dia em que um Mago Guerreiro nasceria mais uma vez para
assumir a causa deles.
Richard suspirou. Simplesmente ele ainda não tivera tempo.
Independente do quanto ele realmente desejasse contar tudo a ela, ele queria
contar a ela a história toda quando pudesse discuti -la, junto com algumas das
perguntas que tinha, então decidiu por enquanto deixar de fora a maioria dos
detalhes e concentrar -se no ponto pertinente.
— Lothain era um espião para as forças do Mundo Antigo. Talvez ele
pudesse ver que eles não conseguiriam ven cer a guerra. Talvez estivesse apenas
tomando precauções extras. De qualquer modo, quando ele foi até o Templo dos
Ventos ele plantou as sementes para que a causa deles surgisse novamente em
alguma época futura. Ele fez algo, no mínimo, para garantir que o utra vez um
Andarilho dos Sonhos nascesse no mundo.
— Baraccus foi incapaz de reverter a sabotagem, então ele fez a
melhor coisa que podia. Providenciou para que houvesse o nascimento de uma
contramedida: eu.
Nicci, sem palavras, só conseguia olhar para ele.
Richard virou de volta para Berdine. — Então o que todo esse assunto
com Baraccus tem a ver com esses Locais Centrais?
Berdine olhou ao redor novamente, checando o quão próximos os
soldados estavam. — Kolo escreveu em seu diário que havia sussurros entre um

218
grupo de pessoas influentes de que Baraccus poderia ter sido um traidor, e se
fosse, então poderia ter feito alguma coisa desastrosa enquanto esteve no
Templo dos Ventos.
Richard balançou a cabeça com frustração. — O que eles suspeitavam
que ele fez?
Berdine sacudiu os ombros. — Ainda não consegui descobrir isso.
Tudo isso parece secreto. Todos eles estavam sendo muito cuidadosos. Ninguém
queria apresentar -se e falar qualquer coisa ou acusar Baraccus de ser um traidor.
Eles não queriam enfurecer as pessoas erradas. Ele ainda era amplamente
reverenciado por muitas pessoas, como Kolo.
— Podia até ser que eles não tivessem qualquer acusação específica,
mas apenas tivessem uma suspeita de que ele podia ter feito alguma coisa. Não
esqueça, ninguém foi capaz de entrar no Templo depois de Baraccus, até você
ter feito isso. Aparentemente, eles também estavam com medo daquela mulher,
Magda Searus. Você sabe, aquela que foi transformada em uma Confessora.
— Sim, eu lembro. — falou Richard. — Entretanto, parece estranho
que algo que supostamente tivesse o potencial para ser tão desastroso, não fosse
de maior conhecimento.
— Não. — Berdine falou baixinho, quase como se os fantasmas do
passado fossem escutá-la. — Essa é a questão. Eles temiam que se as pessoa s
descobrissem a respeito da suspeita deles, então isso pudesse causar pânico ou
algo assim... fazer as pessoas desistirem. Não esqueça, a guerra ainda estava
acontecendo e ainda estava em questão se eles ao menos iriam sobreviver,
quanto mais triunfar. To dos estavam preocupados com a moral do povo enquanto
eles continuavam lutando e ao mesmo tempo trabalhavam para encontrar uma
forma de vencer. No meio de tudo aquilo, esse pequeno círculo de pessoas do
alto escalão estava preocupado que Baraccus pudesse te r feito alguma coisa
terrível no Templo dos Ventos que jamais devia ter sido feita.
Richard ergueu as mãos. — Como o quê?
O rosto de Berdine exibiu uma expressão de irritação. — Não sei. Kolo
apenas deixou uma pista. Ele acreditava em Baraccus. E ele est ava furioso que
essas pessoas estivessem fazendo fosse lá o que estivessem fazendo, mas ao
mesmo tempo ele não estava em posição para argumentar com eles. Ele não era
mais um daqueles no comando, ou um mago com posição alta o bastante.
— Mas houve um trecho, uma menção em seu diário, que de certo
modo causou arrepios quando eu li. Não sei se isso era a respeito do caso de
Baraccus ou não... quer dizer, eu não consigo apontar nada qualquer coisa
especificamente para fazer uma conexão, nem mesmo...
— O que esse trecho dizia?
Junto com Richard, Nicci e Cara inclinaram um pouco.
Berdine deu um suspiro. — Ele estava escrevendo em seu diário,
falando sobre o clima ruim e como todos estavam cansados da chuva, e ele fez
esse breve comentário de que estava aborre cido porque soube através de suas
fontes que “eles” tinham feito cinco cópias do “livro que jamais devia ser
copiado”.
Isso fez Richard congelar e sentir calafrios.
— Não muito depois disso, — falou Berdine. — o registro dele
começou a voltar ao assunto sobre os Locais Centrais .
— Então... o que você acha? Que talvez eles tenham escondido essas
cópias que supostamente não deviam fazer nos Locais Centrais?
Berdine sorriu enquanto batia levemente com um dedo na têmpora. —

219
Agora você está começando a fazer as mesmas perguntas que eu venho
perguntando a mim mesmo.
— E ele não fez qualquer menção sobre qual livro eles copiaram? —
Nicci perguntou. — Nem mesmo uma indicação?
Berdine balançou a cabeça. — Essa é a parte que me causou os
arrepios. Mas havia mais lá do que as palavras dele.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Nicci, impaciente.
— Você sabe como quando você trabalha muito traduzindo os escritos
de alguém, você começa a ser capaz de perceber o seu humor, perceber o que ele
quer dizer, enxerga sua linha de pensamento mesmo se ele não tiver escrito
isso? Bem... — ela puxou a trança castanha por cima do ombro, remexendo na
ponta dela... — eu podia afirmar pela forma como ele disse isso que ele estava
com medo até de escrever o nome de um liv ro tão secreto, tão importante, que
jamais devia ser copiado. Era como se ele estivesse pisando sobre ovos mesmo
ao mencionar isso em seu diário.
Richard pensou que ela certamente tinha feito uma boa observação.
Berdine parou diante de uma alta porta de ferro que estava pintada de
preto. — Foi aqui que eu encontrei os livros que mencionam que os Locais
Centrais estão com os ossos... seja lá o que isso signifique.
— O lugar que eu encontrei estava em catacumbas. — disse Richard.
Berdine franziu a testa e nquanto pensava. — Isso pode explicar muita
coisa.
— Nathan falou para mim, — disse Nicci em voz baixa, olhando de
Richard para Berdine. — que ele acredita que havia catacumbas sob o Palácio
dos Profetas, e que o Palácio em si foi construído ali em parte para esconder o
que estava enterrado.
Os soldados reduziram a velocidade até parar, reunindo -se a uma curta
distância subindo o corredor. Richard notou Berdine observando eles.
— Porque não espera aqui com seus homens? — Berdine gritou para o
General Trimack. — Tenho que entrar na biblioteca e mostrar a Lorde Rahl
alguns livros. Acho que talvez você devesse proteger o corredor e garantir que
ninguém esteja espreitando.
O General assentiu e começou a ordenar a seus homens para assumirem
posições nas passa gens. Berdine tirou uma chave da parte de cima da roupa.
— Aqui dentro encontrei um livro que me causou pesadelos.
Ela olhou para trás, para Richard, e então destrancou a porta.
Nicci inclinou aproximando -se do ouvido de Richard. — Esse lugar
tem escudos. — seu tom estava carregado de suspeita.
— Mas ela não é dotada. — Richard sussurrou de volta. — Ela não
pode atravessar escudos. Se tem escudos, então como ela consegue entrar?
Berdine, ouvindo eles, balançou a chave depois que retirou -a da
fechadura. — Eu tenho a chave. Eu sabia onde Darken Rahl mantinha ela
escondida.
Nicci ergueu uma sobrancelha quando olhou de volta para Richard. —
A chave simplesmente desliga os escudos para a porta. Nunca tinha visto uma
coisa assim.
— Isso deve ter sido desenvo lvido para fornecer acesso a assistentes
de confiança e estudiosos que não eram dotados. — Richard sugeriu. Ele virou
de volta para Berdine enquanto ela trabalhava abrindo a alavanca na pesada
porta.
— A propósito, você descobriu mais alguma coisa sobre B araccus?

220
— Não muito, — ela disse, olhando para trás por cima do ombro. —
exceto que Magda Searus, a mulher que tornou -se a primeira Confessora, um dia
foi casada com ele.
Richard só conseguiu ficar olhando para ela. — Como ela sabe essas
coisas? — ele murmurou para si mesmo.
— O quê? — perguntou Berdine.
— Nada, — ele disse, colocando o assunto de lado balançando a mão
antes de apontar para a porta. — Então o que você encontrou ai dentro?
— Algo que conectava -se com aquilo que Kolo disse.
— Quer dizer sobre esse livro que não devia ser copiado.
Berdine apenas mostrou um leve sorriso para Richard quando enfiou a
chave dentro de um bolso do lado de dentro na parte de cima da roupa, e então
abriu a porta negra.

221
C A P Í T U L O 2 9

Do lado de dentro, três altas janelas que ocupavam a maior parte da


parede mais distante iluminavam a sala com a fraca luz do final da tarde. A
chuva tamborilava contra o vidro e escorria em finos riachos serpenteantes.
Pelas paredes da pequena sala estavam estantes co m livros feitas de carvalho
dourado. Havia espaço suficiente no centro da sala somente para uma simples
mesa de carvalho, que era apenas larga o bastante para as quatro cadeiras de
madeira, uma em cada lado. No centro da mesa havia uma incomum lanterna
com quatro lados, oferecendo a cada cadeira vazia sua própria luz de um refletor
prateado.
Com um movimento do seu braço, Nicci lançou uma centelha do seu
Dom até os quatro pavios. As chamas surgiram, transmitindo calor dourado para
a pequena sala. Richard n otou que, a despeito da forma como o feitiço do
Palácio reduzia o poder de qualquer um a não de um Rahl, ela pareceu não ter
enfrentado qualquer problema para acender as lanternas.
Berdine foi até as estantes com livros à direita da porta. — Perto da
parte no diário de Kolo onde ele mencionou o livro que não devia ser copiado,
acho que ele poderia estar sugerindo que os homens que não confiavam em
Baraccus foram aqueles que fizeram as cópias. Pelo menos, isso é o que eu acho
que ele estava querendo dizer, mas não tenho certeza; ele refere -se a eles como
“os tolos d e Os Contos de Yanklee ”.
Nicci virou para Berdine. — Os Contos de Yanklee !
Richard olhou da expressão surpresa de Nicci para a de Berdine. — O
que são Os Contos de Yanklee? — ele perguntou.
— Um livro. — falou Berdine.
Richard direcionou um olhar questionador para Nicci.
Nicci suspirou, exasperada. — É mais do que apenas um livro,
Richard. Os Contos de Yanklee é um livro de profecia. Um livro de profecia
muito, muito peculiar. Ele precede a Gr ande Guerra em Sete Séculos. As
Câmaras no Palácio dos Profetas tinham uma cópia dele. Era uma curiosidade
que toda Irmã estudava no curso de sua educação sobre profecia.
Richard olhou ao redor para os livros nas estantes. — O que era tão
peculiar nele?
— É um livro de profecia que tem apenas fofocas e boatos.
Richard virou de volta para ela. — Não entendi.
— Bem... — falou Nicci, fazendo uma pausa para encontrar as palavras
certas. — acreditava-se que não eram profecias sobre futuros eventos…
exatament e. Bem... na verdade acreditava -se que eram profecias sobre futuros
boatos, por assim dizer.
Richard esfregou os olhos cansados quando suspirou. Ele olhou para
Nicci outra vez. — Está querendo dizer que esse sujeito Yanklee escreveu
previsões sobre boatos ? — quando Nicci assentiu, tudo que ele conseguiu fazer
foi perguntar. — Porque?
Nicci curvou -se um pouco. — Essa é a pergunta para a qual todos
queriam uma resposta.
Richard balançou a cabeça, como que para clarear os pensamentos.
— Veja bem, há muitas coisas que são segredo. — Nicci apontou para

222
Berdine. — como esse assunto do livro que não devia ser copiado. Esses tipos
de segredos geralmente permanecem em segredo porque as pessoas seguem para
os túmulos sem jamais revelar eles. É por isso que quando estudamos registros
históricos às vezes não conseguimos solucionar mistérios... simplesmente não
existe qualquer informação para ser obtida.
— Mas, às vezes, há pequenos fragmentos de informação flutuando por
aí, coisas que pessoas viram ou ouviram falar, e as pessoas que viram ou
ouviram falar começam a fofocar a respeito desses pequenos fragmentos. Havia
Irmãs no Palácio dos Profetas que acreditavam que escondidas dentro desse
livro profético de boatos haveria dicas sobre o que acabariam sendo esses
futuros segredos.
Richard ergueu uma sobrancelha. — Está querendo dizer que essas
Irmãs estavam, em essência, ouvindo fofocas para captarem alguma coisa?
Nicci assentiu. — Algo assim.
— Está vendo, havia algumas Irmãs que consideravam esse simples
livro de aparentes bobagens como um dos mais importantes livros de profecia na
existência. Ele era mantido sob forte proteção. Ele nunca recebeu permissão
para deixar as Câmaras para estudo, como alguns dos outros volumes de profecia
recebiam.
— Havia Irmãs que devotavam grande parte do seu tempo para estudar
esse livro aparentemente tolo. Uma vez que as pessoas geralmente não
preocupam-se em registrar boatos, Os Contos de Yanklee é considerado o único
livro desse gênero... o único registro escrito de boatos, mesmo que ainda não
tivessem acontecido. Essas Irmãs acreditavam na existência de eventos que não
poderiam ser descobertos ou estudados de qualquer outra forma a não ser através
desse livro, que pré-datava tais eventos. Em essência, elas acreditavam que eram
boatos escutados atrás de portas ou sussurrados sobre coisas que aconteceriam
no futuro, boatos sobre coisas secretas. Elas acreditavam que Os Contos de
Yanklee guardava pistas valiosas para segredos desconhecidos a todos ou em
qualquer outro meio.
Richard pressionou os dedos na testa enquanto tentava absorver tudo.
— Você falou que havia Irmãs devotadas ao estudo desse livro. Por acaso você
saberia quais eram essas Irmãs?
Nicci assentiu lentamente. — Irmã Ulicia.
— Excelente! — Richard murmurou.
Berdine abriu uma porta envidraçada de uma das estantes de livros e
tirou um volume. Ela virou e mostrou a capa do livro para Richard e Nicci.
O título era Os Contos de Yanklee .
— Quando eu li no diário de Kolo sobre “os tolos d e Os Contos de
Yanklee”, esse nome era tão estranho que ficou gravado no fundo de minha
mente. Entende o que eu quero dizer? Então, um dia, eu estava aqui fazendo
pesquisa e o título desse livro saltou na minha frente. Eu não tinha percebido
que era um livro de profecia, como você disse, N icci.
Nicci balançou um dos ombros. — Alguns livros de profecia são
difíceis de reconhecer como profecias... especialmente para alguém não treinado
nesse tipo de coisa. Volumes importantes assim podem parecer simplesmente
como registros entediantes ou, no caso de Os Contos de Yanklee , nada além de
bobagens triviais.
Berdine apontou para as estantes de livros na pequena sala. — Exceto
que dificilmente haveria alguma coisa trivial nesta sala.
— Boa observação. — falou Richard.

223
Berdine sorriu, feliz que el e reconhecesse o valor do raciocínio dela.
Ela colocou o livro sobre a mesa que ocupava o centro da pequena biblioteca e
abriu a capa cuidadosamente. Folheou através das páginas frágeis até encontrar
o trecho que queria. Olhou para cada um deles.
— Uma vez que Kolo tinha mencionado esse livro, pensei que deveri a
ler ele. Ele era realmente entediante. Quase me fez dormir. Ele não parecia ter
qualquer importância... — ela bateu com o dedo em uma página. — até que
avistei isso, aqui. Isso realmente me fez aco rdar.
Richard esticou o pescoço para ler as palavras acima do dedo dela. Ele
teve que estudar as palavras durante um momento para descobrir o significado
da passagem escrita em Alto D’Haraniano. Ele coçou a têmpora enquanto
traduzia em voz alta.
— “Tão nervosos ficarão os tolos intrometidos em copiar a chave que
jamais devia ser copiada, que eles tremerão de medo com o que fizeram e
lançarão a sombra da chave entre os ossos, nunca revelando que somente uma
chave era verdadeira ”.
Os cabelos na nuca de Richard ficaram eriçados.
Cara cruzou os braços sobre os seios. — Então você quer dizer que
acha que quando eles realizavam o feito em si, e fizeram as cópias, ficaram com
medo e fizeram todas as cópias falsas menos uma?
Berdine passou a mão descendo por sua longa trança de cabelo
castanho. — Parece que sim.
Richard ainda estava perdido nas palavras. — “Lançarão a sombra da
chave entre os ossos… ” — ele olhou para Berdine. — Escondê-las nos “Locais
Centrais ”. Enterrá-las com os ossos.
Berdine sorriu. — É tão bom ter você de volta, Lorde Rahl. Você e eu
pensamos da mesma maneira. Senti tanto sua falta. Há tantas coisas como essa
sobre as quais eu queria conversar com você.
Richard colocou um dos braços gentilmente em volta dos ombros dela,
revelando um sentim ento sem usar as palavras.
Berdine folheou mais páginas no livro, finalmente parando no lugar
que estava em branco. — Parece que em vários livros há textos faltando, como
nesse ponto, aqui.
— Profecia. — falou Nicci. — Isso é parte do feitiço Cadeia de F ogo
que as Irmãs do Escuro usaram sobre a esposa de Richard. O feitiço também
eliminou profecia relacionada com a existência dela.
Berdine avaliou as palavras de Nicci. — Isso certamente tornará tudo
mais difícil. Isso elimina muita informação que poderia ser útil. Verna tinha
mencionado que havia textos faltando nos livros de profecia, mas que ela não
sabia qual era a razão.
Nicci olhou ao redor para as estantes. — Mostre todos os livros que
você sabe onde há textos faltando.
Richard ficou imaginando po rque Nikki parecia tão desconfiada.
Berdine abriu várias das portas de vidro e retirou volumes, entregando -
os, um de cada vez, para Nicci. Nicci vasculhou -os brevemente, e então
colocou-os sobre a mesa. — Profecia. — ela pronunciou mais uma vez quando
atirou o último que Berdine entregou a ela sobre a pilha.
— Aonde você quer chegar? — perguntou Richard.
Ao invés de responder, ela olhou para Berdine. — Tem mais algum
texto faltando?
Berdine assentiu. — Tem mais um.

224
Ela olhou rapidamente para Richard, e ntão empurrou uma fileira de
livros para fora do caminho. No fundo de uma prateleira ela empurrou um
painel. Uma pequena seção da parede abriu revelando um nicho dourado com um
pequeno livro sobre um travesseiro de veludo verde escuro com borda dourada.
A capa de couro parecia um dia ter sido vermelha, mas agora estava tão
desbotada e desgastada que os fragmentos de cor fraca apenas sugeriam sua
glória passada. Era um livro delicadamente belo, intrigante em parte por causa
do seu tamanho diminuto, e em part e por causa do trabalho em couro decorativo.
— Eu costumava ajudar Lorde Rahl... quer dizer, Darken Rahl... a
trabalhar em traduções de livros em Alto D’Haraniano. — Berdine explicou. —
Esta sala era um dos lugares onde ele estudava seus livros particular es... por
isso eu sabia onde encontrar a chave e sobre esse compartimento secreto no
fundo da prateleira. Eu realmente pensei que isso poderia ser algo útil.
— E foi? — Richard perguntou.
— Pensei que seria, mas temo que não. Ele também está com texto
faltando. Exceto que, diferente daqueles outros livros, nesse não está faltando
apenas parte do texto aqui e ali, ou com seções inteiras faltando. Ao invés disso,
nesse livro estão faltando todas as palavras. Ele está completamente vazio.
— Estão faltando todas as palavras? — perguntou Nicci, desconfiada.
— Permita que eu veja.
Berdine entregou o pequeno livro para Nicci. — Está completamente
em branco, estou dizendo. Veja por si mesma. Ele é inútil.
Nicci abriu a antiga capa de couro desgastada e observou a primeira
página. O dedo dela moveu -se como se ela estivesse lendo. Ela virou a página e
estudou a seguinte, então fez a mesma coisa outra vez.
— Queridos espíritos. — ela sussurrou enquanto parecia ler.
— O que foi? — perguntou Richard.
Berdine esticou-se na ponta dos pés e espiou por cima do livro. — Não
pode ser coisa alguma. Veja... está em branco.
— Não, ele não está. — Nicci murmurou enquanto lia. — Esse é um
livro de magia. — ela levantou os olhos. — Ele apenas parece em branco para
aqueles que não possuem o Dom. E, no caso desse trabalho em particular, até
mesmo esses precisam possuir o Dom suficientemente forte para ser capaz de ler
isso. Esse é um volume profundamente importante.
Berdine franziu o nariz. — O quê?
— Livros de magia são perigo sos, alguns são extremamente perigosos.
Alguns, como este aqui, estão até mesmo além disso. — Nicci balançou o livro
para a Mord-Sith. — Esse aqui é muito mais do que profundamente perigoso.
— Como forma de proteção livros assim geralmente são protegidos de
alguma forma. Se forem considerados perigosos o bastante, então são protegidos
com feitiços que fazem o texto desaparecer da mente de uma pessoa tão
rapidamente que ela não lembra de ter visto ele. Isso faz ela pensar que as
páginas estão em branco. Uma pessoa sem o Dom simplesmente não consegue
reter as palavras de um livro de magia em sua mente. Na verdade você vê as
palavras nesse livro, mas esquece delas tão rápido que não reconhece que havia
algo nas páginas... as palavras desaparecem da sua mente a ntes que você as
perceba.
— Esse feitiço em particular é, em parte, a base para o conceito do
feitiço Cadeia de Fogo. Os magos em tempos antigos... que geralmente usavam
feitiços como esse para proteger livros perigosos que escreviam... começaram a
imaginar se uma coisa como essa poderia ser feita com uma pessoa, como efeito,

225
fazendo ela desaparecer, exatamente como as palavras em alguns livros de
magia conseguem aparentemente desaparecer.
Nicci gesticulou vagamente quando sua atenção retornou ao livro. — É
claro, quando uma alma está envolvida isso complica o assunto todo além das
palavras.
Richard aprendera fazia muito tempo que só tinha sido capaz de
memorizar o Livro das Sombras Contadas porque era dotado. Zedd disse que se
ele não tivesse o Dom, não conseguiria guardar as palavras em sua mente tempo
suficiente para lembrar de ao menos uma.
— Então, sobre o que é esse livro? — ele perguntou.
Nicci finalmente desviou o olhar das páginas e levantou os olhos. —
Esse é um livro de instruções em magia.
— Eu sei, você já falou isso. — disse ele, pacientemente. — Instruções
para o quê?
Nicci checou a página outra vez, e engoliu em seco quando olhou
novamente nos olhos dele. — Acho que esse é o livro original de instruções para
colocar as Caixas de Orden em atividade.
Richard sentiu arrepios, outra vez, espalharem -se em seus braços e
pernas.
Ele tirou o livro das mãos de Nicci gentilmente. Certamente, ele não
estava em branco. Cada página estava cheia de pequenas palavras escritas,
diagramas, gráficos, e f órmulas.
— Isso está em Alto D’Haraniano. — ele olhou para Nicci. — Quer
dizer que você consegue ler Alto D’Haraniano?
— É claro.
Richard trocou um olhar com Berdine.
Imediatamente ele conseguiu ver que o livro era profundamente
complexo. Ele aprendera Alto D’Haraniano, mas esse livro era algo que estava
no limiar da sua compreensão.
— Isso é muito mais técnico do que o Alto D’Haraniano que estou
acostumado a ler. — ele falou enquanto vasculhava as páginas.
Nicci inclinou -se e apontou para um local na página que ele estava
olhando. — Isso aqui são materiais de referência para fórmulas necessárias em
encantamentos. Você tem que conhecer as fórmulas e feitiços para realmente
compreender.
Richard olhou nos olhos azuis dela. — E você compreende?
Ela torceu a boca enquanto fazia uma careta para a página. — Não sei.
Eu teria que estudar mais isso para saber se posso ajudar a traduzir.
Novamente Berdine esticou -se na ponta dos pés e espiou no livro,
como se estivesse checando para ver se talvez as palavras a gora apareceriam
para ela. — Porque não pode falar isso imediatamente? Quer dizer, ou você
consegue ler e entender, ou não.
Nicci passou os dedos de uma das mãos pelo cabelo loiro enquanto
soltava um profundo suspiro. — Não é tão simples com livros de mag ia. É mais
ou menos como fazer complexas equações matemáticas. Você pode conhecer os
números e inicialmente pensar que sabe do que se trata, que consegue resolver a
equação, mas se então você descobrir símbolos desconhecidos enterrados na
equação... símbolos que fazer referência a coisas que não são familiares para
você... então toda a equação é praticamente insolúvel. Apenas conhecer uma
parte dos números não é o bastante. Você tem que saber o que significa cada
elemento, ou pelo menos como encontrar o val or ou quantidade que ele

226
representa.
— É praticamente a mesma coisa, embora eu esteja simplificando para
que você consiga entender o que estou querendo dizer. Nisso não existe apenas
símbolos, mas referências obsoletas a feitiços, tornando tudo ainda mais difícil
de compreender. Estar em Alto D’Haraniano torna isso ainda pior porque com o
passar do tempo palavras em Alto D’Haraniano e o seu significado mudaram.
Além disso, esse texto está com antigas formas de jargão.
Richard segurou o braço dela, atraind o sua atenção. — Nicci, isso é
importante; você acha que consegue fazer isso?
Ela olhou de forma hesitante para o livro. — Vai levar algum tempo
antes que eu consiga traduzir o bastante para ser capaz de dizer a você se tenho
chance de obter sucesso.
Richard tirou o livro das mãos dela, fechou -o, e entregou de volta para
ela. — Então é melhor levar isso com você. Quando tivermos mais tempo você
pode estudá-lo e ver se consegue entender.
Ela franziu a testa, desconfiada. — Porque? O que você está pensando ?
— Nicci, não está vendo? Essa poderia ser a nossa resposta. Se você
puder traduzi -lo, entender ele, então o que está aqui dentro pode acabar sendo
uma forma de combater, reverter, ou desmantelar aquilo que Irmã Ulicia fez.
Com isso, talvez possamos faze r as Caixas de Orden encerrarem sua atividade.
Nicci esfregou o dedão gentilmente sobre a capa do pequeno livro. —
Isso parece fazer sentido, Richard, mas saber como fazer uma coisa não
significa que pode desfazê -la.
— Meio como tentar fazer você “desengravidar”? — perguntou Cara.
Nicci sorriu. — Alguma coisa assim.
A analogia inesperada de Cara lançou a mente de Richard de volta para
Kahlan, e para quando ela estivera grávida. Uma gangue de homens pegou ela
sozinha e espancou -a quase até a morte. Ela p erdeu a criança deles. A gravidez
dela acabou antes mesmo que ele soubesse a respeito disso.
A lembrança de ver Kahlan tão gravemente ferida quase fez ele cair de
joelhos. Ele teve que forçar os pensamentos sombrios a retornarem para a
escuridão de onde eles vieram.
A testa de Nicci franziu, aparentemente ao ver a angústia no rosto
dele. Ele ignorou a preocupação não declarada dela.
— Não preciso lembrar a você o quanto isso é importante. — disse ele.
Ela observou -o durante um longo tempo, como se desej asse falar a el e
que isso era impossível, mas desesperadamente não desejando dizer não.
Finalmente ela cerrou os lábios com firmeza e assentiu.
— Farei o melhor que puder, Richard.
De repente a expressão dela iluminou -se. Ela abriu o final do livro e
apressadamente retornou a última página. Ela ficou concentrada durante um
momento enquanto analisava a página final.
— Isso é interessante. — ela murmurou.
— O quê? — perguntou Richard.
Nicci desviou os olhos do meio daquilo que estava lendo. — Bem, no
final de alguns livros de magia, como precaução contra uso não autorizado,
ocasionalmente eles possuem um passo final que é essencial mas não está
incluso. Se for assim, então, mesmo se as Caixa já estiverem em atividade,
poderemos ser capazes de interromper a série de ações específicas requeridas.
Está entendendo o que eu quero dizer? Às vezes, se o livro for perigoso o
bastante, ele não estará completo sozinho, ele exigirá algo mais para completá -

227
lo.
— Algo mais? Como o quê?
— Não sei. É isso que estou chec ando. — ela ergueu um dedo. —
Permita que eu leia apenas um pouco dessa parte…
Após um momento ela levantou os olhos enquanto batia com o dedo na
página. — Sim, eu estava certa. Isso alerta que para utilizar esse livro, a chave
deve ser usada. Caso contrá rio, sem a chave, tudo que veio antes não apenas
será estéril, mas fatal. Isso diz que dentro de um ano completo a chave deve
completar o que foi moldado com esse livro.
— Chave. — Richard repetiu em um tom distante.
Ele olhou para Berdine.
— “Eles tremerão de medo com o que fizeram e lançarão a sombra da
chave entre os ossos ”. — ela citou de Os Contos de Yanklee . — Você acha que
essa poderia ser a chave sobre a qual esse livro está falando?
Algo agitou-se nos sombrios limites da sua consciência.
Com uma centelha de compreensão veloz como um raio, Richard
entendeu.
Todo o corpo dele ficou gelado. Seus braços e pernas ficaram
adormecidos.
— Queridos espíritos… — ele sussurrou.
Nicci fez uma careta para ele. — Richard, qual é o problema? Você
ficou pálido como giz.
Richard sentiu dificuldade para fazer a sua voz funcionar. Finalmente,
ouvi a si mesmo dizendo. — Tenho que retornar até Zedd.
Nicci esticou um braço e colocou a mão no braço dele. — Qual é o
problema?
— Acho que sei o que é a chave.
Richard começou a ofegar enquanto seu coração batia fora de controle.
Tudo que ele sabia estava virando de cabeça para baixo e todas as peças estavam
desmoronando. Parecia como se ele não conseguisse recuperar o fôlego.
“Eles tremerão de medo com o que fizera m e lançarão a sombra da
chave entre os ossos ”.
— Bem, o que você acha...
— Explicarei quando chegarmos lá. Temos que ir... agora.
Preocupada, Nicci enfiou o livro dentro de um bolso na saia do seu
vestido negro. — Farei o melhor que puder, Richard. Vou descobrir isso... eu
prometo.
Ele assentiu distraidamente enquanto sua mente acelerava para tentar
encaixar todas as peças novamente. Ele sentiu como se estivesse apenas
observando a si mesmo começar a mover -se.
Ele segurou Berdine pelo braço. — Baraccus tinha um local secreto...
uma biblioteca. Preciso que você tente descobrir onde era.
Berdine assentiu diante da urgência dele. — Certo, Lorde Rahl. Verei o
que consigo aprender. Farei o que puder.
Ela olhou para as articulações brancas na mão dele que segurava o seu
braço. Richard percebeu que devia estar machucando ela e soltou.
— Obrigado, Berdine. Sei que posso contar com você. — os outros
estavam todos olhando para ele. — Tenho que retornar até Zedd. Tenho que
falar com ele imediatamente. Preciso s aber onde ele conseguiu.
— Conseguiu o quê? — Nicci pressionou uma das mãos contra o peito
dele, fazendo ele parar antes de cruzar a porta. — Richard, o que é tão

228
importante que...
— Olhe, eu explicarei quando chegarmos lá. — ele disse, cortando -a.
— Nesse momento eu preciso pensar em tudo isso.
Nicci trocou um olhar preocupado com Cara. — Está certo, Richard.
Acalme-se. Voltaremos até a Fortaleza rápido o bastante.
Ele agarrou na roupa vermelha de couro de Cara e empurrou -a através
do portal na frente d ele. — Nos leve de volta até a Sliph... pela rota mais curta.
Agora bastante séria, Cara empunhou seu Agiel. — Então vamos lá.
Ele virou para Berdine, trotando para trás no rastro de Cara. — Preciso
que descubra tudo que puder sobre Baraccus. Tudo!
Berdine correu um pouco à frente de Nicci. — Farei isso, Lorde Rahl.
Ele apontou para ela. — Verna logo estará aqui. Diga a ela que eu falei
que preciso que ela ajude você. Faça com que as Irmãs dela ajudem você
também. Verifique cada livro no Palácio todo se for preciso, mas descubra tudo
que puder sobre Baraccus... onde ele nasceu, onde ele cresceu, do que ele
gostava, do que não gostava. Ele foi Primeiro Mago, então deve existir
informação de algum tipo. Quero saber quem cortava o cabelo dele, quem fazia
suas roupas, qual era a cor favorita dele. Tudo, não importa o quão trivial você
pense que seja. Enquanto estiver cuidando disso, veja se consegue descobrir
mais alguma coisa sobre o que os tolos d e Os Contos de Yanklee fizeram.
— Não fique preocupado, Lord e Rahl, se houver alguma informação
para obter, eu a terei. Vou descobrir e terei uma resposta quando você voltar.
Richard segurou a mão de Nicci para ter certeza de que ela o
acompanhava e então virou em direção a Cara. — Depressa.
Berdine, com o Agiel no punho, correu atrás deles, protegendo a
retaguarda. Richard estava apenas vagamente consciente dos reflexos de luz
sobre armaduras polidas e armas, e do retinir de equipamentos, enquanto
soldados corriam como se o próprio Guardião estivesse atrás de Lor de Rahl.
Enquanto sua mente acelerava tão rápido quanto seus pés, Richard
decidiu que era melhor ir até Caska primeiro.
Quanto mais pensava na ideia, e as peças do quebra cabeças
começavam a encaixar, ele reavaliou a situação. Com a Sliph, ele poderia vi ajar
rapidamente de volta para Caska da Fortaleza.
Era mais urgente que ele falasse com Zedd.
Conforme eles corriam através do labirinto de corredores, salas, e
passagens, Richard ouviu o distante dobrar do sino, chamando as pessoas para a
Devoção ao Lorde Rahl.
Ele imaginou se em breve eles estariam ajoelhando diante do Guardião
do Submundo, e fazendo suas devoções para ele.

229
C A P Í T U L O 3 0

Seis levantou abruptamente. Sem falar uma palavra ela deu três longos
passos até a parede da caverna que guardava os expansivos desenhos de Violeta.
A mulher pressionou cuidadosamente suas mãos magras contra os símbolos que
Violeta havia desenhado ali com giz dias antes. Repentinamente esses símbolos
começaram a brilhar, o giz amarelo brilhando com luz am arela, o giz vermelho
com luz vermelha, e o azul com luz azul. A estranha luminosidade das cores
ardentes cintilou sobre as paredes da caverna do jeito como a luz refletia sobre
água ondulante.
Rachel olhou para Violeta, sentada sobre um banco baixo com
estofamento púrpura que ela fizera Rachel carregar para ela dias antes. A Rainha
entediada remexia com a unha em uma lasca de pedra na parede atrás dela.
Rachel tinha começado a pensar em Violeta como a Rainha da caverna, já que
era ali que elas passavam ma is e mais o seu tempo.
Violeta não gostava de sentar sobre pedra quando não estava
desenhando. Uma pedra velha suja, ela dissera, era mais do que bom o bastante
para Rachel, mas não para uma Rainha. Seis não importou -se a respeito do
banco. Parecia que el a sempre tinha assuntos mais importantes em sua mente do
que almofadas para sentar. Violeta, porém, ficou cansada de esperar enquanto
Seis pensava naqueles assuntos importantes, e então mandou Rachel carregar o
pesado banco até a caverna.
Agora, a Rainha da caverna, sob a luz bruxuleante de tochas e
símbolos brilhantes, sentava sobre o seu trono estofado púrpura aguardando que
sua conselheira indicasse a ela o que precisava ser feito em seguida.
— Ele vem. — Seis sibilou. — Novamente ele vem através do va zio.
Estava claro para Rachel que a mulher não estava realmente falando
com Violeta, mas consigo mesma. A Rainha poderia muito bem não estar ali.
Violeta olhou para cima. Ela não parecia inclinada a preocupar -se em
levantar a não ser que Seis falasse que era necessário que ela fizesse mais
desenhos, mas estava claro que seu interesse tinha aumentado. Afinal de contas,
isso era o que ela queria e toda a razão pela qual ela preocupava -se em passar
por todo o trabalho de fazer desenhos tão complexos em uma c averna úmida e
suja quando poderia estar experimentando vestidos e joias ou participando de
grandes festas onde convidados bajulavam a jovem Rainha.
Seis parecia estar em seu próprio mundo enquanto suas mãos
deslizavam sobre o desenho. Ela encostou o lado do rosto contra a rocha e ao
mesmo tempo esticou um braço para trás.
— Venha, minha criança.
Uma careta dominou o rosto rechonchudo de Violeta. — Você quer
dizer... “minha Rainha”.
Seis não ouviu ou não importou -se em corrigir a si mesma. —
Depressa. Chegou a hora de começar as ligações.
Violeta levantou. — Agora? Já passou da hora do jantar. Estou
faminta.
Seis, esfregando a bochecha contra o desenho em giz de Richard como
uma gata esfregando o lado da face contra as pernas de uma pessoa, não pareceu
interessada em jantar.

230
Ela moveu os dedos longos, chamando Violeta. — Deve ser agora.
Depressa. Não devemos desperdiçar uma oportunidade tão rara. Ligações como
as que precisamos precisarão de tempo e não há como dizer quanto tempo
podemos ter.
— Bem, então porque não começamos mais cedo, quando...
— Deve ser iniciado agora, quando ele está dentro do vazio. — Seis
simulou que agarrava o ar com uma das mãos. — É mais fácil arrancar os olhos
dele quando ele está cego. — ela falou com sua voz sibilante.
— Não vejo porque...
— O jeito é o jeito. Você quer isso ou não?
Os braços cruzados de Violeta, juntamente com sua postura de desafio,
cederam. Sua expressão ficou sombria. — Eu quero.
Um sorriso sinuoso dominou o rosto de Seis. — Então vamos começar.
Agora você deve completar as ligações.
Parecendo repentinamente determinada, Violeta retirou os pedaços de
giz coloridos de uma pequena saliência na parede de pedra atrás do seu banco
real. Quando ela caminhou até o lado de Seis, a mulher bateu com um longo
dedo fino na rocha.
— Comece no sinal da adaga, como ensinei a você, exatamente como
praticou, para garantir que, na iniciação da ligação, aquilo que você moldou
estará pronto para cortar de forma rápida e segura.
— Eu sei, eu sei. — disse Violeta quando audaciosamente encostou a
ponta do giz amarelo na ponta de um dos símbolos brilhantes ao lado de
Richard.
Seis agarrou o pulso de Violeta, puxando a mão dela para trás apenas o
bastante para afastar o giz da parede. Ela moveu a mão de Violeta algumas
polegadas, então deixou o giz tocar novamente o símbolo, mas no vértice
seguinte em um padrão com um perímetro compreendido por dúzias de pontas.
— Eu disse a você, — Seis falou com esforçada civilidade enquanto
ajudava Violeta a começar a linha. — um erro aqui vai durar a eternidade para
nós.
— Eu sei... só escolhi a ponta no vértice errado, só isso. — irritou-se
Violeta. — Já entendi agora.
Seis, ignorando a Rainha, seu olhar fixo no desenho, assentiu
aprovando enquanto observava o giz começar a mover -se pela rocha.
— Mude para vermelho. — Seis declarou em voz baixa depois que
Violeta tinha afastado o giz algumas polegadas através da distância aberta.
Sem discutir ou hesitar, Violeta trocou o giz para vermelho e começou
a movê-lo em um ângulo da linha am arela que já havia desenhado. Após levá -lo
pela metade da distância restante em direção ao desenho de Richard, ela parou
sem precisar de aviso e mudou para o giz azul.
Então ela hesitou, e olhou para Seis. — Esse é o nó? Certo?
Seis já estava assentindo. — Isso mesmo, — ela murmurou, contente
com o que estava vendo. — isso mesmo, faça o contorno e volte agora para
completar a primeira ligadura.
Violet desenhou um círculo azul no final da linha vermelha antes de
cruzar o lugar vazio sobre a lisa parede de rocha escura. Quando o giz azul
alcançou um dos pontos no símbolo seguinte, ela retornou e traçou uma linha a
partir do círculo para conectar a Richard. A tríade de linhas completa que
Violeta acabara de desenhar começou a brilhar. O círculo azul acendeu com um
jato de luz, como se fosse um feixe atravessando uma janela na rocha escura.

231
De repente Seis ergueu uma das mãos, ordenando que Violeta parasse
antes que pudesse colocar o giz na ponta seguinte na sequência.
— Qual é o problema? — Violeta perguntou.
— Alguma coisa… não está certa…
Seis pressionou o lado do rosto no desenho, dessa vez encostando a
bochecha direto no topo do rosto de Richard.
— Não está certa mesmo…

*****

Richard inspirou outra quantidade prateada do êxtase mas, com suas


preocupações urgentes predominando sobre a experiência, foi algo inferior em
comparação com a essência extraordinária do êxtase que geralmente ele
experimentava dentro da Sliph.
Porém, ele percebeu que quando viajava na Sliph geralmente estava
bastante preocupa do com alguma coisa; afinal de contas, era por causa de algum
tipo de problema que ele viajava na Sliph. Ainda assim, ele nunca teve uma
sensação como essa. Esse sentimento não era temível tanto quanto era uma
sensação do grande, mas intangível, peso de ma u pressentimento. A cada
respirar, esse peso fantasmagórico pesava sobre ele cada vez mais.
Dentro da Sliph não existia uma sensação real de visão, como era
conhecida, assim como não existia uma sensação real de tempo, ou lado de cima,
ou de baixo. Entret anto, havia uma aparência de visão; havia cores e, às vezes,
formas obscuras que pareciam surgir rapidamente e do mesmo modo
desaparecer. Havia também uma percepção visual do fenômeno da velocidade
extrema que fazia ele sentir -se como se fosse nada mais do que uma flecha
disparada de um arco poderoso. Ao mesmo tempo, existia uma sensação de
flutuante quase imobilidade dentro do espesso vazio da Sliph. Essas diferentes
sensações combinadas criavam uma inebriante mistura da completa experiência
que suspendia a urgência dele de separá -las em partes constituintes.
Enquanto viajava através da essência de mercúrio da Sliph, ele
começou a desconsiderar sua ansiedade. Foi então que Richard sentiu o suave
toque de uma estranha sensação contra sua pele, uma pressão f urtiva que ele
instantaneamente reconheceu como uma sensação que jamais tinha
experimentado enquanto viajava. Uma apreensão formigante espalhou -se através
dele.
O pressentimento, ele percebeu, não era tangível do jeito como esse
toque havia sido.
Enquanto deslizava, seguro no abraço do vasto vazio prateado, ele
tentou separar a percepção de ter sido tocado de todo o resto. Richard sentiu o
plácido isolamento da Sliph ao redor dele, acariciando -o, isolando-o do terrível
efeito da velocidade que de outra fo rma parecia que rasgaria uma pessoa em
pedaços. Ele ainda sentia o bálsamo da serenidade subjugando seu medo de
inspirar o líquido no qual ele flutuava.
Mas Richard sentiu algo mais, mesmo que ainda não fosse capaz de
separar a sensação perturbadora de to das as outras para defini -la.
Porém, com crescente convicção, ele tinha certeza de que alguma coisa
estava errada, assustadoramente errada. Era ainda mais perturbador porque ele
não conseguia entender como sabia que algo estava imperfeito. Ele fez um
esforço para compreender porque pensaria tal coisa.
Devia ter sido, ele decidiu, aquele toque furtivo. Ele considerou

232
brevemente se poderia ter imaginado aquilo, mas então descartou a ideia. Ele
havia sentido.
Pareceu quase como se ele estivesse na presença de uma mácula
profana, como se estivesse deitado em uma calorosa campina banhada pelo sol
em um dia lindo, cercado pela cascata de cores e o aroma suave de flores do
campo, observando nuvens deslizando lentamente em um claro céu azul, e então
captar o prim eiro leve odor de uma carcaça em decomposição enquanto ao
mesmo tempo percebe que o vago som que ouviu era o zumbido de moscas.
O que normalmente parecia como um feitiço atemporal passando
velozmente através da suavidade prateada da Sliph começara a arrastar-se em
uma agonizante suspensão do progresso.
Cara ainda estava apertando a mão direita dele com firmeza, mas Nicci
segurava sua mão esquerda com mais firmeza ainda a cada momento. Ele podia
afirmar por esse aperto urgente que ela também sentiu algo. E le gostaria de
poder perguntar o que ela sentiu, mas falar dentro da Sliph não era possível.
Richard abriu mais os olhos, tentando enxergar mais daquilo que
estava ao redor dele, mas esse era um mundo silencioso, obscuro, onde havia
pouco a ser visto, além dos feixes de luz cintilantes... amarelo, vermelho, azul...
cortando a obscuridade através da qual eles seguiam. Richard achou que aqueles
feixes de luz não estavam movendo -se como faziam antes. Entretanto, era difícil
ter certeza de tais coisas dentro d a Sliph. Geralmente era uma sensação nebulosa
de eventos, ao invés de uma real percepção.
Tinha alguma coisa na frente dele, Richard percebeu, algo manobrando
de forma fluida através da obscuridade prateada. No início pareceu como longas
pétalas finas com eçando a desabrochar. Enquanto aquilo aproximava -se, Richard
viu que pareciam mais com vários braços... objetos ondulantes achatados,
longos... projetando -se de um elemento central que por alguma razão que ele
não conseguia compreender.
Era desorientador olhar para aquilo porque era tão incompreensível.
Conforme aquilo chegava cada vez mais perto, começou a parecer para Richard
como se, seja lá o que fosse, aquilo fosse formado por pedaços de vidro, todos
reunidos em algo de forma ordenada, algo que abria de forma ondulante diante
dele. Ele podia ver através dos braços transparentes que expandiam, ver os
feixes de cor e luz cintilando além.
Era a coisa mais estranha que já tinha visto. Independente do quanto
tentasse, ele simplesmente não conseguia ver sen tido naquilo. Era como se
estivesse ali, mas não estivesse.
E então, com gélido terror, a compreensão espalhou -se através dele.
Ao mesmo tempo, Nicci puxou a mão dele com tanta força que isso
quase arrancou o seu braço. O puxão deve ter arrastado ele par a trás, porque
Cara, ainda segurando sua outra mão, navegou ao redor dele como se estivesse
caindo no meio do ar. Richard encolheu -se. A forma translúcida passou
chicoteando perto do rosto dele, errando por pouco.
Nicci o puxara bem na hora.
Agora Richard sabia o que era aquilo.
Era a Besta.
A sensação de estar na presença do mal foi subitamente tão forte que o
engolfou com pânico sufocante. Quando a Besta, como alguma visão temporal,
planou passando por ele, ela girou. Os braços vítreos abriram -se enquanto
esticavam-se e novamente tentavam agarrá -lo.
Com um forte puxão mais uma vez Nicci afastou -o da teia de

233
tentáculos em forma de estrela aberta diante dele. Novamente ela tentou
envolvê-lo.
Richard soltou a mão de Cara e sacou sua faca. Com a sua mão agora
livre, ela imediatamente agarrou na camisa dele.
Richard fez o melhor que podia para cortar os braços que tentavam
segurá-lo em seu abraço mortal. Não levou muito tempo para perceber que lutar
com uma faca dentro da Sliph era quase impossível. Era u m ambiente fluido
demais para que Richard pudesse golpear com velocidade. Era como tentar
manobrar dentro de mel. Ele mudou sua tática e ao invés disso esperou que os
braços esticassem ao redor dele, esperou para que fosse lá o que estivesse no
centro vítreo chegasse perto dele.
Quando isso aconteceu, ele direcionou sua lâmina para aquele centro
da ameaça translúcida. Porém, ao invés de ficar empalada na lâmina, a criatura
apenas pareceu dobrar -se em volta da faca de Richard e girar afastando -se sem
esforço.
E então ela avançou para o ataque novamente, agora com uma espécie
de abrupta fúria intencional que Richard podia sentir. A coisa movia -se com
uma graça fluida que não parecia ser produzida pelo mundo líquido em volta
deles.
De um lado Richard viu a f orma cintilante de Cara, ainda segurando
sua camisa enquanto tentava atacar a besta com sua mão livre. Do outro lado,
ela sabia, Nicci estava tentando usar magia. A magia dela não parecia estar
funcionando dentro do ambiente da Sliph.
Um dos braços da Bes ta enrolou-se em volta do braço de Richard,
outro em volta do braço de Cara. Ela segurou o pulso dele com a outra mão. A
besta segurou o outro braço dela também e sem esforço separou os dois. Em um
instante, Cara desapareceu. Dentro da obscuridade Richard não conseguia saber
onde ela estava, ou o quão próxima poderia estar. Pior, ele não sabia se ela
estava bem, ou se a criatura a pegou.
Nicci apertou o braço de forma protetora em volta da cintura de
Richard, segurando com firmeza, enquanto mais dos braços transparentes
ondulantes brotavam da obscuridade e enrolavam em volta deles. Era como ficar
preso em um ninho de cobras, todas enlaçando a si mesmas e comprimindo com
grande força assim que uniam -se. Os braços que envolviam a perna de Richard
apertavam tanto que ele achou que a carne seria arrancada dos ossos.
Embora Richard não pudesse ouvir Nicci no sentido convencional, ele
podia perceber os gritos de fúria abafados enquanto ela combatia a coisa que
prendera eles. Uma estranha forma de raio opaco bruxul eou loucamente ao redor
de Nicci. Richard sabia que ela estava tentando usar seu poder, mas isso não
estava surtindo qualquer efeito na Besta.
Richard ignorou a dor causada pelos tentáculos vítreos que já prendiam
ele e golpeava repetidas vezes, cortando braços espessos que pareciam estar ali
apenas parcialmente. Com fúria determinada e concentrada ele atacou com a
faca e conseguiu cortar fora alguns dos braços do núcleo da coisa. Uma vez
cortados, eles sacudiam loucamente enquanto caíam dentro do vazio ao redor
deles, como se estivessem afundando em um mar sem fundo.
Parecia que isso de nada adiantava; mais dos tentáculos serpenteantes
direcionavam -se a ele saindo da escuridão. Era como encontrar -se no fundo de
um poço escuro cheio de víboras furiosas. Ri chard lutou com todas as suas
forças, cortando, esfaqueando, golpeando. Os braços dele estavam doloridos
com o esforço. Nicci lutou com os espessos tentáculos com uma das mãos, seu

234
outro braço ainda recusando -se a soltá-lo. Pela forma como ela tremia e
contorcia ele podia afirmar que ela estava sentindo agonia. Richard abandonou
os anéis em volta de si e com toda sua fúria atacou os braços da Besta que
machucavam Nicci enquanto tentavam afastá -la dele.
Mas então ela foi separada dele violentamente.
De repente Richard estava sozinho no meio de lugar algum com uma
poderosa criatura vítrea, escorregadia, tentando arrastá -lo em direção ao centro
dela, em direção a algo que ele podia ouvir rosnando, estalando.
Não havia como lutar contra uma coisa assim, não h avia jeito de obter
uma vantagem sobre o poder dela, não havia forma e escapar do seu abraço com
múltiplos membros. Cada vez mais dos braços chicoteavam para capturá -lo.
Com toda sua força, antes que seu braço fosse capturado, ele enfiou a
faca no centro da massa que não conseguia enxergar claramente.
Ele fez contato sólido. A Besta rugiu com um som que feriu os ouvidos
dele. Os braços afrouxaram um pouco... não largando dele, mas afrouxando o
suficiente para que Richard efetuasse um poderoso giro de seu corpo que
conseguiu retirá -lo fda pegada da criatura. Em um instante, como uma semente
de abóbora pressionada entre dedos molhados, ele afastou -se do aperto mortal.
Richard tentou nadar para longe, de alguma forma escapar dos braços
translúcidos, golpeand o, que vinham atrás dele, mas aquela coisa era mais
rápida do que ele, mais poderosa, e incansável.
— Aqui! — Seis indicou enquanto batia com os nós dos dedos contra o
centro de um emblema.
Violeta correu com o giz em direção ao ponto que sua conselheira
estava indicando. Os dedos dela voavam com movimentos velozes e
determinados. Com a costa da outra mão, Violeta enxugou suor do seu rosto,
então com seus dedos ela removeu suor dos olhos. Rachel nunca tinha visto
Violeta trabalhar tão duro, ou tão rápido.
Rachel não sabia o que estava acontecendo, mas era óbvio que alguma
coisa não estava saindo do jeito que Seis esperava. Ela estava em um estado que
pendia precariamente entre pânico e fúria. Rachel temia qualquer uma das duas
situações.
Enquanto Violeta completava ligação velozmente, trocando de giz e
seguindo para cada ponto sucessivo, Seis voltou a entoar seus encantamentos. O
som corrosivo daquelas palavras sussurradas pareciam tocar a alma de Rachel.
Embora ela não conseguisse entender as palavras ou o seu significado, elas eram
pronunciadas com uma intenção sinistra que a deixava apavorada.
Ela olhou em direção a distante entrada da caverna, mas estando escuro
lá fora, Rachel não conseguia enxergar qualquer coisa. Ela queria correr mas
não ousava. Sabia que se fizesse Violeta ou Seis ter que parar o que estavam
fazendo e ir atrás dela, isso acabaria muito mal para ela.
Chase ensinara ela a dominar seus impulsos, como ele chamava, e a
esperar por verdadeiras aberturas. Avisou -a que se não estivesse e m perigo
mortal imediato, deveria agir apenas quando tivesse um plano no qual tivesse
pensado muito bem. Ele disse que ela não deveria agir por causa do medo cego,
mas trabalhar para encontrar formas de aumentar as possibilidades de sucesso.
A despeito do quão ocupadas as outras duas estavam, Rachel sabia que
as duas juntas e ambas em um estado tão frenético, reagiriam a qualquer desfeita
de Rachel com violência rápida e sem limites. Essa não era a oportunidade
certa; levantar agora e então correr não era um bom plano, e ela sabia disso.
Enquanto Rachel permanecia sentada e quieta, tentando evitar ser

235
notada, Seis encostou suavemente com o lado do punho contra vários dos nós
brilhantes nas ligações que Violeta já tinha desenhado. Cada círculo em que ela
tocava ficava escuro com um som baixo de rosnado que fazia um calafrio subir
na coluna de Rachel. A caverna parecia zunir com o aumento e o decréscimo da
conjuração ritmada de Seis.
Violeta, desenhando com movimentos audaciosos, velozes, olhava para
o lado, checando o progresso de Seis. Seis, apagando os feixes de luz em
sequência, estava alcançando a Rainha. Violeta, como se estivesse em transe,
desenhou mais rápido. O giz emitia um som clack, clack, clack, a cada linha que
Violeta traçava contra a rocha. O som do giz combinava com o ritmo do canto
de Seis.
Ao redor da figura de Richard, Seis, conjurando com versos
murmurados pronunciados em um canto crescente que gradualmente fez surgir
um vento uivante rodopiando dentro da caverna, bateu com o lado do seu punho
contra pontos nas ligações que Violeta estivera desenhando sem pausa durante
horas. Rachel pensou que logo Violeta poderia desmaiar de exaustão mas, longe
disso, ela parecia estar trabalhando em um esforço febril tentando permanecer
adiante de Seis. Independente do quão rápido a mão dela movia -se, cada linha
que Violeta traçava parecia certa, cada interseção era feita de forma precisa e
completa. Seis fizera Violet praticar infinitamente desenhando os símbolos e
agora isso parecia estar valendo à pen a.
O desenho de Richard estava quase completamente envolto na teia de
símbolos e linhas conectadas.
Com uma estranha palavra, gritada para que fosse ouvida acima do som
do vento uivante, Seis extinguiu o feixe de luz final em volta da figura de
Richard. O vento parou abruptamente. Pequenos pedaços de folhas e outros
detritos caíram através do ar repentinamente parado.
Seis fez uma pausa em seu canto. Sua testa franziu. Com as pontas dos
dedos ela tocou em vários dos símbolos, como se estivesse sentindo a pulsação
deles. O tremeluzir de luzes coloridas bruxuleou pela caverna.
— Foi ele. — Seis sussurrou para si mesma.
Violeta parou, engolindo em seco enquanto recuperava o fôlego. — O
quê?
— Ápice para o vértice inferior. — ela direcionou um olhar veneno so
para uma assustada Violeta. — Faça isso!
Sem hesitação Violeta virou de volta para a parede e esticou o braço
para cima, desenhando linhas helicoidais que desciam de um dos vários
elementos centrais acima da cabeça de Richard.
Seis ergueu uma das mãos . — Esteja pronta, mas não toque nos pontos
primários de invocação antes que eu diga.
Violeta assentiu. Os olhos de Seis giraram quando ela inclinou -se
sobre as pontas dos dedos sobre a figura de Richard. Enquanto Violeta e Rachel
observavam, Seis emitiu um baixo murmúrio de estranhas palavras.

236
C A P Í T U L O 3 1

Nicci irrompeu acima da superfície de mercúrio da Sliph. O pesado


líquido escorreu do cabelo dela e do seu rosto. Cores e luz pareceram explodir
dentro da silenciosa escuridão.
— Respire.
Com todo esforço Nicci imediatamente colocou para fora do pulmões o
fluido prateado.
— Respire.
Com sua necessidade sobrepujando o seu temor, ela arfou respirando
desesperadamente. Isso queimou como se estivesse em vapores ácidos.
A sala girava em sua visão. Nicci viu um borrão vermelho. Ela
debateu-se desajeitadamente quando arfou novamente. Conseguiu alcançar a
borda e lançar um braço sobre a mureta de pedra da Sliph para erguer-se. O
pânico ameaçou dominá -la.
Uma mão segurou o braço dela. Nicci con seguiu erguer sua mochila
por cima da mureta. Outra mão aproximou -se e ajudou a levantá-la alto o
bastante para que ela ficasse com os dois braços sobre a mureta da Sliph. O
vermelho que tinha visto era de Cara.
— Onde está Lorde Rahl?!
Nicci piscou olhando para os intensos olhos azuis da Mord -Sith.
Jamais soubera que o azul machucava tanto. Ela fechou os olhos e sacudiu a
cabeça, ainda tentando clarear a mente da experiência, da confusão, do som da
voz de Cara ecoando através dos ossos dela.
— Richard…
Parecia como se as entranhas dela estivessem contorcendo com a
angústia de querer nada mais além de ajudá -lo.
— Richard…
Cara grunhiu com o esforço de levantar o peso morto de Nicci e puxar
a parte de cima do corpo dela o resto do caminho para fora do p oço. Nicci,
sentindo-se como a sobrevivente de um naufrágio em um mar tempestuoso,
deslizou por cima da mureta de pedra, incapaz de fazer mais para contribuir com
o seu próprio resgate. Cara encostou um joelho no chão, aparando Nicci antes
que o corpo flácido dela atingisse a rocha.
Assim que Cara havia deitado ela no chão de pedra, Nicci reuniu toda
sua força e ergueu -se sobre braços trêmulos. Ela parecia não possuir a sua força
usual. Era uma sensação apavorante, não ser capaz de fazer o corpo dela
obedecer sua vontade. Com grande esforço ela finalmente conseguiu ficar ereta
e sentar pesadamente contra a mureta do poço da Sliph. Ela ainda estava
arfando, tentando recuperar o fôlego. Ainda sentia dores por todo o corpo.
Durante um momento ela ficou imóvel contra o poço de pedra, tentando juntar
suas forças.
Cara segurou -a pelo colarinho do vestido e sacudiu -a.
— Nicci... onde está Lorde Rahl?
Nicci piscou, olhando ao redor, tentando encontrar sentido em tudo
aquilo. Estava doendo tanto. A dor fez ela lem brar de um dos espancamentos de
Jagang, da forma como durante a fúria dele ela começava a sentir a dor através
de um nevoeiro dormente de confusão. Mas isso não tinha sido causado pelo

237
Imperador. Isso era dor de algo que aconteceu dentro da Sliph. Viajar n unca
havia machucado. Nunca foi uma experiência dolorosa.
— Onde está Lorde Rahl?!
Nicci encolheu-se com a dor do grito ecoando pela sala. Ela engoliu o
nó doloroso em sua garganta.
— Não sei. — ela colocou os cotovelos sobre os joelhos e passou os
dedos pelo cabelo, segurando sua cabeça latejante com as duas mãos. —
Queridos espíritos, eu não sei.
Cara inclinou sobre o poço tão rápido e com tanta força que Nicci
achou que ela poderia cair dentro dele. Instintivamente, ela esticou os braços
para segurar as pernas da Mord -Sith, pensando que ela certamente cairia lá
dentro, mas ela não caiu.
— Sliph! — o grito de Cara ecoou outra vez pela antiga sala de pedra
empoeirada. Nicci compartilhava da emoção, mas sabia que a intensidade de
nada serviria.
Ignorando a dor horrível em suas juntas, ela levantou cambaleando. A
sensação de que tudo girava estava diminuindo um pouco. Ela viu a forma de
mercúrio do rosto da Sliph emergir parcialmente do poço, seus traços surgindo
na superfície brilhante para observá -las.
— Onde está Lorde Rahl? — perguntou Cara.
A Sliph escolheu ignorar a pergunta de Cara. Ao invés disso ela olhou
para Nicci.
— Jamais deve fazer aquilo quando estiver dentro de mim. — a
estranha voz ecoou suavemente pela sala.
— Está falando de magia? — Nicci imaginou.
— Tenho grande dificuldade em ser capaz de suportar tal poder sendo
liberado dentro de mim, mas uma coisa assim poderia ser pior para você e para
qualquer outro viajando ao mesmo tempo. Jamais deve tentar usar sua habilidade
quando viaja. No mínimo isso a deixará doente. Isso poderia facilmente terminar
de forma muito pior. Isso é perigoso para todos.
— Ela tem razão a respeito disso. — falou Cara, em voz baixa. —
Quando você começou a fazer aquilo isso doeu como se um Agiel estivesse
sendo usado em mim. Minhas pernas ainda não estão funcionando direito.
— As minhas também, — admitiu Nicci. — mas eu não poderia
simplesmente deixar que a Besta pegasse Richard sem tentar protegê -lo,
poderia?
Desconfortável por ao menos mostrar uma leve imp ressão de que não
teria feito qualquer coisa para proteger Richard, Cara balançou a cabeça. — Eu
teria feito muito pior do que isso para proteger Lorde Rahl. Você fez a coisa
certa... não me importo com o que a Sliph diz.
— Eu também não. — falou Nicci. Entretanto, nesse momento ela não
estava preocupada consigo mesma ou Cara. Ela virou em direção a Sliph. —
Onde está Richard? O que aconteceu com ele? Onde ele está?
— Eu não posso...
A paciência de Cara, se é que ela tivera alguma, havia terminado. Ela
saltou até a Sliph como se fosse tentar estrangular o pescoço prateado. — Onde
ele está?!
O rosto deslizou para fora do alcance. Nicci agarrou na roupa de Cara
e puxou a mulher para trás, mantendo -a parada ao lado dela. O rosto dela,
vermelho de fúria, quase combinava com sua roupa de couro.
— Sliph, isso é vital. — disse Nicci, tentando soar calma. — Nós

238
estávamos com Richard... com Lorde Rahl, o seu mestre... quando fomos
atacados. Foi por isso que eu tive que usar meu poder. Eu estava tentando
protegê-lo. Aquela Besta é extremamente perigosa.
O rosto prateado liso distorceu em uma expressão de temor. — Eu sei,
ela me feriu.
Nicci fez uma pausa, surpresa. — A Besta feriu você?
A Sliph assentiu. Reflexos da sala dobravam e fluíam em formas
ondulantes sobre os contornos da estatuesca feição prateada. Nicci ficou
olhando admirada quando lágrimas cintilantes de mercúrio formaram -se nas
pálpebras inferiores dos olhos da Sliph e desceram pela superfície brilhante das
bochechas dela.
— Aquilo machucou. Aquilo não queria viajar. — a testa prateada
franziu com o que pareceu indignação somada ao tormento. — Aquilo não tinha
o direito de me usar daquele jeito. Aquilo me feriu.
Nicci trocou um olhar com Cara.
Cara podia parecer surpresa, mas ela não pareceu solid ária. Que a
verdade seja dita, nesse momento a preocupação de Nicci com Richard estava
acima de qualquer outra preocupação.
— Sliph, sinto muito. — falou Nicci. — Mas...
— Onde ele está? — rosnou Cara. — Apenas diga para nós onde está
Lorde Rahl.
A Sliph hesitou. — Ele não viaja mais.
— Então onde ele está? — repetiu Cara.
A voz da Sliph tornou-se fria e distante. — Jamais revelo informações
sobre outros que estiveram comigo.
— Ele não apenas um viajante! — Cara gritou furiosa. — É o Lorde
Rahl!
A Sliph recuou até a mureta do poço.
Nicci ergueu uma das mãos para Cara, pedindo um pouco de calma e
que ela ficasse quieta durante um momento. — Nós fomos atacados por algo
maligno quando estávamos viajando juntos. Você sabe disso. — Nicci tentou
aliviar um pouco da ameaça em sua voz. Entretanto, ela sabia que não estava
sendo bem sucedida. Seu pânico crescente em relação a Richard estava tornando
difícil pensar... isso e o alerta frenético de Jebra de que elas não deviam
permitir que Richard ficasse sozinho , mesmo se fosse por um instante. — Sliph,
aquela coisa maligna estava atrás do seu mestre, atrás de Richard. Nós somos
amigas de Richard... você sabe disso também. Ele precisa de nossa ajuda.
— Lorde Rahl pode estar ferido. — adicionou Cara.
Nicci assen tiu confirmando as palavras de Cara. — Precisamos chegar
até ele.
O silêncio na sala de pedra pareceu doloroso. Nicci ainda estava
tentando acostumar -se a estar de volta, ainda lutando para suprimir a agonia da
dor que corria através dela enquanto tentava pensar no que fazer em seguida.
— Precisamos chegar até Richard. — ela repetiu.
O rosto prateado elevou -se um pouco mais, esticando um pescoço de
fluido prateado para fora do poço com ele. A Sliph fez uma careta para Nicci.
— Vocês desejam viajar?
Nicci manteve firme controle de sua raiva. — Sim. Isso mesmo. Nós
desejamos viajar.
Cara, aproveitando a deixa de Nicci, apontou para dentro do poço. —
Sim, isso mesmo. Nós desejamos viajar.

239
— Não usarei minha magia dentro de você novamente, eu prometo. —
Nicci fez sinal para que a Sliph chegasse mais perto. — Nós desejamos viajar...
imediatamente. Agora mesmo.
A Sliph iluminou-se, como se tudo estivesse perdoado. — Vocês
ficarão satisfeitas. — ela pareceu ansiosa para satisfazer. — Venham, nós
viajaremos.
Nicci colocou um joelho sobre a mureta. As coxas dela doeram com o
esforço. Ela ignorou a forte agonia queimando em seus músculos e juntas e
subiu na larga mureta de pedra. Ela estava aliviada que ao menos tivessem
encontrado uma forma de fazerem a Sliph colaborar... se não falando a elas onde
estava Richard, então levando -as até ele.
— Sim, nós viajaremos. — disse Nicci, ainda tentando recuperar o
fôlego.
A Sliph formou um braço, passando -o em volta da cintura de Nicci,
ajudando-a a subir na mureta. — Então venham. Para onde desejam viajar?
— Para onde Lorde Rahl está. — Cara ficou sobre a mureta ao lado de
Nicci. — Nos leve até lá, — ela falou, mostrando um sorriso para a Sliph. — e
nós ficaremos satisfeitas.
A Sliph fez uma pausa e olhou para ela. O braço recuou, derretendo
lentamente dentro da superfície ondulante. De repente o rosto prateado pareceu
impessoal, até mesmo ameaçador.
— Não posso revelar informações sobre outros clientes.
Nicci cerrou os punhos. — Ele não é apenas um cliente qualquer! Ele é
o nosso mestre e está com problemas! Ele é nosso amigo! Você tem que nos
levar até ele!
O rosto reflexivo da Sliph afastou-se. — Não posso fazer tal coisa.
Nicci e Cara ficaram mudas durante um momento, ambas no limite de
sua paciência, incapazes de pensar em como convencer a Sliph a cooperar. Nicci
sentiu vontade de gritar, chorar, ou lançar magia suficiente para ferver a Sliph e
obrigá-la a falar.
— Se você não nos ajudar, — finalmente ela disse em um tom
controlado. — então sentirá mais dor do que sentiu com a Besta. Vou
providenciar isso. Por favor não me obrigue a fazer isso. Nós sabemos que você
quer proteger Richard. É isso que estamos tentando fazer também.
A Sliph ficou observando em silêncio, como uma estátua de prata,
como se estivesse tentando avaliar a ameaça.
Cara pressionou os dedos nas têmporas. — É como tentar convencer
um balde com água. — ela murmurou.
Nicci olhou com raiva para a Sliph. — Você nos levará até o seu
mestre. Isso é uma ordem.
— É melhor fazer o que ela diz, — falou Cara. — ou quando ela
terminar com você, então você terá que responder a mim.
A Mord-Sith levantou o Agiel para reforçar sua declaração.
Mas quando fez isso, de repente ela congelou, olhando para a arma. O
sangue desapareceu do seu rosto. Mesmo suas mão destacavam-se brancas contra
a roupa vermelha de couro.
Nicci inclinou aproximando -se e colocou uma das mãos no ombro de
Cara. — Qual é o problema?
A boca aberta de Cara finalmente moveu -se. — Está morto.
— Do que você está falando?
Os olhos azuis de Cara estavam cheios de pânico. — Meu Agiel está

240
morto na minha mão. Não consigo sentir ele.
Embora Nicci pudesse claramente perceber a surpresa na voz da Mord -
Sith, ela não entendeu sua origem. Ter um Agiel que não causava dor a ela
dificilmente pareci a um motivo para sentir pânico. Mesmo assim, tão grandioso
terror era contagioso.
— Isso significa alguma coisa? — perguntou Nicci, temendo a
resposta.
A Sliph observava do outro lado do poço.
— O Agiel é energizado através de nossa ligação com Lorde Ra hl...
pelo Dom dele. — ela ergueu a arma, como se fosse uma evidência. — Se o
Agiel está morto, então Lorde Rahl também.
— Escute, usarei meu poder se for preciso para fazer com que a Sliph
nos leve até ele. Mas Cara, não comece a tirar conclusões precipi tadas. Não
podemos saber...
— Ele não está lá.
— Ele não está onde?
— Em parte alguma. — imóvel, Cara olhava fixamente para sua arma
nos dedos trêmulos. — Não consigo mais sentir a ligação. — seus olhos azuis
umedecidos voltaram -se para Nicci. — A ligação sempre nos diz onde está
Lorde Rahl. Não consigo mais sentir ele. Não consigo mais sentir onde ele está.
Ele não está lá. Não está em lugar algum.
Uma onda de náusea espalhou -se através de Nicci. Ela sentiu fraqueza.
Seus dedos estavam dormentes.
Ela virou para a Sliph.
Ela havia desaparecido.
Nicci subiu na mureta, olhando dentro do poço. Na escuridão abaixo
ela viu um leve cintilar prateado justamente quando ele desaparecia, deixando
para trás somente escuridão.
Ela virou de volta para Cara e agar rou o couro no ombro dela. Ela
desceu da mureta, levando Cara consigo.
— Vamos lá. Conheço alguém que pode nos dizer onde Richard está.

241
C A P Í T U L O 3 2

Com Cara ao seu lado, Nicci correu descendo o corredor iluminado por
tochas, sobre tapetes projetados elaboradamente que abafavam seus passos,
passando por portais para dentro da escuridão, passando por salas com lanternas
a óleo iluminando calorosamente apenas móveis vazios. A Fortaleza, quase tão
vasta quanto a montanha que a abrigava sob os s eus estoicos ombros de pedra,
parecia vazia e assombrada. Nicci havia passado décadas no grande complexo
conhecido como o Palácio dos Profetas, o qual de certas maneiras lembrava a
Fortaleza, mas o Palácio estivera vivo com centenas de pessoas de todos os tipos
morando lá, desde a Prelada até os garotos que cuidavam dos estábulos. Ele
também foi um lugar de magos... magos em treinamento, pelo menos. A
Fortaleza existia para os propósitos do homem, e ainda assim permanecia
silenciosa e ausente daqueles que d ariam vida a ela. Se um lugar podia ser
considerado como abandonado, a imensa estrutura da Fortaleza era um lugar
assim.
Cara correu com toda sua força, movida por sua lealdade e amor a
Richard, pelo temor de que o pior tivesse acontecido a ele. Nicci cor ria tão
rápido quanto ela, movida pelo medo de ao menos considerar a possibilidade de
que ele estivesse morto, como se estivesse tentando correr mais do que a própria
morte. Ela não podia permitir a si mesma ao menos imaginar tal conceito, para
que não desmoronasse em desespero. Um mundo sem Richard nele para ela seria
um mundo morto.
Cara derrapou no chão de mármore cinza polido para reduzir a
velocidade o bastante para fazer a curva quando Nicci engatou a mão em um frio
poste de apoio de mármore negro e subiu os largos degraus de granito negro. As
janelas longe acima estavam escuras, fazendo elas parecerem como buracos
negros no mundo. A escadaria, iluminada por algumas esferas de vidro de
proximidade, elevava-se através de uma alta torre a uma altura apa rentemente
impossível acima delas, fazendo Nicci sentir como se ela estivesse no fundo de
um poço de pedra muito profundo.
Os sons dos passos delas ecoavam pela Fortaleza, como os sussurros
fantasmagóricos das almas daqueles que um dia caminharam por esse s mesmos
corredores, subiram esses mesmos degraus, riram, amaram e viveram nesse
lugar. No topo do terceiro lance de escadas, Nicci, com suas pernas doendo por
causa do esforço frenético, conduziu -as para dentro de uma larga passagem.
Quando ela passou correndo pelas pilastras de uma cor marrom -avermelhada
clara que separavam extensões de vidros altamente coloridos, ela apontou
adiante, indicando a Cara que fariam a curva no próximo corredor à direita.
Finalmente, dentro da rede de corredores menores que l evavam até o
local onde elas ficavam, Nicci avistou Zedd ao longe, marchando em direção a
elas. Rikka o seguia bem perto. O velho mago, com uma expressão sombria
quando parou, aguardou que elas chegassem mais perto.
— O que foi? — perguntou ele, aparentem ente sabendo pelas
expressões nos rostos delas que algo estava errado.
— Onde está Lorde Rahl? — Rikka perguntou quando parou
abruptamente logo atrás dele.
Nicci reconheceu a ansiedade no rosto dela. Era a mesma que Cara

242
estivera mostrando desde que desc obrira que seu Agiel não funcionava. Nicci
olhou para baixo e viu que Rikka estava segurando seu Agiel com bastante
firmeza, do mesmo jeito que Cara. Aqueles talismãs da conexão delas com Lorde
Rahl agora estavam mortos.
— Onde está meu neto? — perguntou Zedd, colocando nisso um
angustiado tom pessoal. — Porque ele não está com vocês?
A última parte pareceu uma acusação, como se ele estivesse lembrando
do alerta que Jebra transmitiu a elas antes de partirem, e da promessa que Nicci
tinha feito.
— Zedd, — começou Nicci. — não podemos dizer com certeza.
O mago inclinou a cabeça, seu cabelo branco desgrenhado. O olhar que
ele lançou para ela foi muito parecido com o de um mago assumindo o fardo de
um homem perturbado.
— Não venha com evasivas, criança.
Se a situação não fosse tão séria, Nicci poderia ter rido com a
caracterização.
— Estávamos todos juntos dentro da Sliph, retornando para a
Fortaleza, — Nicci disse a ele. — e em algum ponto do caminho... é impossível
afirmar onde você está enquanto viaja.. . fomos atacados pela Besta.
Zedd olhou para Cara. — A Besta.
Cara assentiu, confirmando.
— E depois?
— Não sei. — Nicci ergueu os braços com frustração ao tentar
encontrar as palavras para descrever a experiência. — Nós tentamos lutar com
ela. Ela estava com todos aqueles braços parecidos com cobras. Estávamos
sendo envolvidos por eles. Tentei usar o meu Han contra ela...
— Dentro da Sliph?
— Sim, mas de nada adiantou. Eu estava tentando tudo em que
conseguia pensar. Então, a Besta simplesmente afast ou Cara e eu de Richard.
Não conseguíamos encontrar ele na escuridão. Nós tentamos, mas nada
conseguimos encontrar... nem mesmo uma a outra. Como eu disse, é impossível
dizer onde você está quando está dentro da Sliph. Você não consegue ver, não
consegue ouvir. É um tipo de lugar confuso e, não importava o quanto
tentássemos, simplesmente não conseguíamos encontrar Richard.
Ele estava parecendo mais zangado a cada momento. — Então porque
estão aqui, ao invés de na Sliph procurando ele?
— A Sliph nos colocou para fora. — falou Cara. — Nos encontramos
aqui, de volta na Fortaleza. Nicci e eu estávamos tentando encontrar Lorde Rahl
cada uma do seu jeito, mas… não havia sinal. Nada da Besta, nada de Lorde
Rahl. Então a Sliph nos deixou aqui, no lugar para onde todos nós estávamos
seguindo quando fomos atacados.
— Então o que estão fazendo aqui em cima? — ele perguntou outra vez
com uma voz ameaçadora. — Porque não estão de volta na Sliph procurando ou,
melhor ainda, fazendo a Sliph dizer onde ele está?
Nicci viu as mão dele cerradas. Sabia como ele sentia -se. Ela segurou
o braço dele gentilmente.
— Zedd, a Sliph não falaria onde ele está. Acredite em mim, nós
tentamos. Poderia até ser possível obrigá -la a fazer isso, eu não sei, mas acho
que conheço uma maneir a melhor... alguém que pode ser capaz de nos dizer
onde Richard está: Jebra. Não quero perder mais tempo, e acho que Jebra pode
ser capaz de fornecer uma resposta mais cedo do que a Sliph faria.

243
Zedd pressionou os finos lábios enquanto pensava. — Vale a pena
tentar, — finalmente ele disse. — mas precisa entender que a mulher esteve em
um péssimo estado desde que vocês partiram. Ela esteve inconsolável na melhor
das hipóteses e às vezes, nas garras de algo parecido com histeria. Nós tentamos
acalmá-la, mas de nada adiantou. Eu temo que, com tudo que ela tem passado,
tudo está ainda mais assustador para que tenha de encarar o súbito retorno do
seu tipo único de visões. Está óbvio que para ela é difícil suportá -las
novamente, sem falar da natureza dessa em par ticular.
— Finalmente a colocamos na cama, esperando que se ela descansasse
um pouco mais uma vez recuperaria sua força e estaria melhor preparada para
organizar a confusão de suas visões. Pelo menos ela não está em um estado
como o da Rainha Cyrilla; ela está lutando para não mergulhar naquela loucura.
Ela está ciente de que precisa estar capacitada a nos ajudar, mas nesse momento
o desespero dela simplesmente está superando o seu bom senso. Também tenho
certeza de que sua completa exaustão está contribui ndo em sua dificuldade.
Temos esperança de que após algum descanso ela possa adicionar mais alguma
coisa naquilo que já nos disse.
— E o que ela disse? — perguntou Nicci, esperando que a resposta
pudesse entregar uma pista.
Zedd estudou os olhos dela dur ante um momento. — Ela falou que
vocês voltariam sem Richard.
Nicci ficou olhando para o homem. — E o que aconteceu com ele?
Os olhos de Zedd desviaram. — Essa é a parte que estamos tentando
obter dela.
— Meu Agiel morreu. — disse Rikka. — Não consigo sentir a ligação.
Não consigo sentir Lorde Rahl. E se ele estiver morto?
Zedd virou um pouco e levantou uma das mãos, como se pedisse para
que ela se acalmasse. — Não vamos tirar conclusões ainda. Poderia haver
diversas explicações.
Cara não pareceu animada pela sugestão dele. — Como o quê? — ela
perguntou.
Zedd virou seus olhos castanhos em direção a ela, estudando a Mord -
Sith por um instante enquanto avaliava sua resposta. — Não sei, Cara.
Simplesmente não sei. Estive considerando cada possibilidade em minha mente
desde que Jebra falou que ele não retornaria com vocês. Existe um grande
número de possibilidades mas nesse momento escassas evidências para seguir
adiante. Não deixaremos de checar cada uma, posso prometer isso a você.
Nicci engoliu o nó que subia em sua garganta. — Nesse momento, a
nossa melhor chance é vermos se conseguimos descobrir com Jebra onde
Richard está. Se conseguirmos isso dela então poderemos agir. Se pudermos
agir, então teremos uma chance de ajudá -lo.
— Se ele ainda estiver viv o. — disse Rikka.
Nicci cerrou os dentes quando virou um olhar furioso para a mulher. —
Ele está vivo.
Rikka engoliu em seco. — Eu só estava dizendo…
— Nicci tem razão. — insistiu Cara. — É do Lorde Rahl que estamos
falando. — Ele está vivo. — uma lágrima rolou por sua bochecha. — Ele está
vivo.
— De qualquer modo, — o mago falou com uma voz sofrida. — temos
que estar preparados caso aconteça do pior ser verdade. — quando viu a
expressão no rosto de Cara, ele mostrou um pequeno sorriso. — Falar isso em

244
voz alta não fará com que seja assim. O que é, é. Só estou dizendo que devemos
estar preparados para qualquer eventualidade, só isso. É a coisa sábia a se fazer.
É o que o próprio Richard faria se ele perdesse um de nós, e o que ele desejaria
que fizéssemos caso acontecesse a ele. Não esperaria que ele continuasse a lutar
se algo acontecesse a você? Nós simplesmente não podemos ignorar as coisas
que estamos enfrentando. Richard gostaria que nós continuássemos lutando,
lutando por nós mesmos.
Nicci pensou, talvez mais do que algum dia já tinha feito, que estava
ouvindo o Primeiro Mago falando. Ele conseguiu ver de onde Richard herdara
uma parte de sua admirável determinação.
Cara olhou séria para o homem. — Você está falando como se ele
estivesse morto. Ele não está.
Zedd ofereceu um sorriso e assentiu, concordando. Ele não conseguiu
fazer parecer convincente.
— Preciso falar com Jebra. — disse Nicci. — Nesse instante esse é o
melhor lugar para começar. O que mais ela teve a dizer sobre a sua visão?
Zedd suspirou. — Não muito. Fazem anos desde que ela teve uma visão
e essa não foi somente uma completa surpresa mas aparentemente
avassaladoramente pavorosa. Começo a temer que a razão pela qual ela não teve
mais visões seja por causa daquilo que Richard falou sobre a magia estar
falhando. Se for assim, então penetrar em sua habilidade que estava falhando
não diria muito. Enquanto ela estava consciente e durante os períodos quando
ela estivera coerente, sua habilidade de captar a totalidade da sua visão, os
eventos nela pareceram estar fragmentados e incompletos.
— Talvez possamos ajudá-la a organizá-los. — falou Nicci tão
gentilmente quanto possível, a despeito do quão poderosamente determinada
estava para fazer a mulher realizar o que era necessário.
Zedd obviamente não acreditava que isso adiantaria, mas
aparentemente ele acharia melhor investir seu esforço na tentativa do que
render-se ao inimaginável.
— Por aqui. — ele falou quando virou fazendo um floreio e correu
descendo o corredor fracamente iluminado.
.Em uma pequena porta de topo arredondado com intrincadas
trepadeiras e folhas sobrepostas entalhadas nos painéis de mogno, Zedd, com
Nicci e as duas Mord -Sith flanqueando ele, bateu suavemente. Enquanto
esperava uma resposta, ele virou para Rikka.
— Vá chamar Nathan. Diga a ele que é urgente, e que ele precisará
arrumar as coisas. Ele terá que partir imediatamente.
Nicci suspeitou a respeito daquilo que Zedd pediria para Nathan fazer,
mas afastou o pensamento da sua cabeça. Isso exigiria que ela pensas se no
impensável.
Ao invés disso ela concentrou -se na tarefa atual. Tinha que fazer Jebra
dizer onde Richard estava, dizer a ela o que estava acontecendo a ele. Se
necessário, Nicci pretendia usar o seu Dom para efetuar o trabalho.
Quando Rikka partiu ac elerada pelo corredor, Zedd bateu novamente,
um pouco mais forte. Quando não houve resposta, ele olhou para trás, por cima
do ombro, para Nicci.
Ele remexeu na manga do manto simples. — Você sente alguma
coisa… estranha?
Nicci estava tão cheia de pensame ntos frenéticos e emoções que não
estivera prestando atenção. Afinal de contas, eles estavam na Fortaleza. Havia

245
alarmes por toda parte que deveriam protegê -los de quaisquer visitantes
indesejados.
Ela colocou de lado seus pensamentos enquanto seus sentid os entravam
em um estado mais elevado de consciência.
— Agora que você mencionou, algo realmente parece… estranho.
— Estranho de que maneira? — Cara perguntou quando empunhava
novamente seu Agiel. Ela pareceu assustada apenas por um instante antes que a
percepção eliminasse a surpresa.
Nicci afastou gentilmente a mão do mago da maçaneta antes que ele
pudesse abrir a porta. — Ninguém está lá dentro, está? Talvez Tom, ou
Friedrich?
Zedd franziu a testa para ela. — Não que eu saiba. Esses dois estão
fora em patrulha. Eu estava sentado perto de Jebra quando senti você e Cara
chegando. Ela estava dormindo. Eu queria estar perto se ela acordasse e fosse
capaz de falar mais sobre a sua visão. Deixei ela e vim encontrar com vocês,
esperando ver que ela estivesse errada sobre Richard. Ann e Nathan já tinham
ido para cama. Suponho que seria possível que fosse um deles.
Nicci, agora com seus sentidos totalmente alertas, balançou a cabeça.
— Não é nenhum deles. Alguma outra coisa.
Zedd ficou olhando fixamente enqua nto pensava na questão, do jeito
como alguém procuraria ouvir qualquer som, mas Nicci sabia que ele não estava
exatamente procurando ouvir qualquer som. Ele estava fazendo a mesma coisa
que ela estava fazendo, usando seu Dom para checar o que eles não
conseguiriam ver ou escutar, para tentar sentir a presença de vida. Porém, até
onde Nicci conseguia sentir, só havia os três nas proximidades: ela, Zedd e
Cara, e de forma mais fraca do outro lado da porta, Jebra.
Mas também havia alguma outra coisa. A sensaç ão, entretanto, não
fazia sentido. Era uma presença, mas não o tipo de sensação que ela teria caso
houvesse outra pessoa espreitando além da porta.
Ainda assim, parecia como se ela pudesse ter sentido uma sensação
muito similar recentemente. Ela fez uma c areta, tentando lembrar.
— Tenho alarmes extras colocados por toda essa área. — Zedd falou a
ela.
Nicci assentiu. — Eu sei. Eu os senti.
— Não existe jeito para que alguém pudesse ter passado por eles. Eu
saberia. Maldição, não tem jeito para que ao men os um rato conseguisse passar
pelas redes que eu montei.
— Poderia ser por causa daquilo que Lorde Rahl falou? — perguntou
Cara em voz baixa. — Quer dizer... sobre ter alguma coisa errada com a magia?
Poderia ter alguma coisa errada com o Dom de vocês e é por isso que sentem o
que sentem?
Zedd lançou um olhar azedo para a mulher. — Está querendo dizer
você acha que nosso Dom está… está o quê? Bagunçado?
Cara balançou os ombros e então complementou a ideia. — Não sei
muito sobre magia, mas talvez seja ess e o problema com o meu Agiel. Talvez
seja só isso. Lorde Rahl foi bastante insistente de que ele sabia que a magia
estava corrompida. Talvez os seus sentidos dotados estejam corrompidos desse
mesmo jeito. Talvez a conclusão a que eu estava chegando estives se errada.
Talvez seja por isso... a corrupção.
Zedd bufou, descartando a ideia. Ele ergueu um braço para o lado e as
lanternas a óleo sobre as mesas que flanqueavam a porta apagaram. — Bem, essa

246
parcela do meu poder funciona, então isso significa que ele funciona. — ele
sussurrou. Ele colocou uma das mãos de volta sobre a maçaneta enquanto
mostrava um olhar resoluto para Nicci. — Esteja pronta para qualquer coisa.
— Espere. — falou Nicci.
Zedd olhou para trás por cima do ombro. Era difícil enxergar suas
feições na luz fraca, mas seus olhos não estavam menos intensos. Ela enxergou
neles um pouco dos olhos de Richard.
— O que foi? — ele perguntou.
— Acabei de lembrar de algo que estive tentando entender.
Nicci estalou os dedos enquanto tentava relembrar os detalhes
apressadamente. Ela finalmente balançou um dedo enquanto falava. — Quando a
Besta nos atacou enquanto estávamos viajando, eu senti uma sensação esquisita.
Ignorei isso porque, para início de conversa, estar dentro da Sliph é tão estranho
que é difícil saber se alguma coisa que você está sentindo é importante, quanto
mais realmente fora do comum. Sensações diárias podem parecer maravilhosas...
até miraculosas. Você não sabe se tudo isso é apenas a culminância de todas as
percepções familiares ou algo mais.
— Exatamente quando você teve essa sensação? — perguntou Zedd,
repentinamente bastante interessado naquilo que ela queria dizer. — O tempo
todo em que você estavam viajando, ou em um momento específico?
— Não, como eu falei, foi depois que a Besta nos atacou.
— Seja mais específica. Pense. Foi quando a Besta atacou? Talvez
quando ela pegou Richard? Ou quando pegou você?
Nicci pressionou as pontas dos dedos nas têmporas enquanto cerrava os
olhos, tentando desesperadamente lembrar de forma pre cisa. — Não… não, foi
depois que eu fui afastada de Richard. Não imediatamente depois, mas pouco
tempo depois.
— Qual foi a sequência em que esses eventos ocorreram?
— A Besta atacou. Nós estávamos lutando contra ela. Eu tentei usar o
meu Dom mas isso não ajudou. A Besta estava me ferindo. Richard usou sua
faca para cortar alguns dos tentáculos. Ele me salvou de ser esmagada.
— Então a Besta separou Cara dele. Não muito tempo depois disso ela
me separou dele também. Então foi, depois disso... não imediat amente após, mas
foi pouco tempo depois. Eu sei porque foi quando eu estava procurando
loucamente por Richard que senti a sensação estranha.
Nicci olhou para o mago. — O fato é que, logo depois que senti essa
sensação, eu não consegui mais sentir a presen ça da Besta. Eu procurei,
tentando encontrar Richard, mas não consegui. Quando a Sliph nos trouxe de
volta para a Fortaleza a sensação rapidamente desapareceu e eu esqueci tudo a
respeito dela.
— Como era... essa sensação?
Nicci apontou. — Parecia exatam ente a mesma que está além dessa
porta.
Zedd olhou para ela durante um longo tempo. — O que está além
parece a mesma coisa? Uma espécie de… um zunido de fluxo de poder?
Nicci assentiu. — Uma carga de magia que de alguma forma não tem
base.
— A magia frequentemente parece flutuar livremente, — disse Cara. —
o que há de tão estranho nisso?
Zedd balançou a cabeça. — A magia não é algo que simplesmente
flutua por aí por si mesma. A magia não possui consciência, mas essa sensação

247
de certa forma imita esse ti po de intenção consciente.
— Sim. — falou Nicci. — Essa é a minha sensação a respeito disso. É
por isso que parece tão esquisito, porque magia com esse tipo de comportamento
não pode ser infundada. Isso é a dominação criando seus característicos campos
de controle de presença, mas sem a vida necessária para gerá -la.
Zedd ficou ereto. — Essa é uma boa descrição daquilo que eu sinto. —
ele olhou desconfiado para a porta. — Acho que se chegarmos mais perto
poderemos ser capazes de sentir isso melhor e descob rir o que é. Se pudermos
chegar perto o bastante, talvez possamos analisar isso. — ele lançou um olhar
para as duas. — Vamos ter muito cuidado, está certo?
Os três aproximaram -se na passagem fracamente iluminada quando o
mago girou cuidadosamente a maçane ta e lentamente abriu a porta. Nicci não
sentiu mais com a porta parcialmente aberta do que sentira com ela fechada.
Zedd enfiou a cabeça lá dentro por um momento, então abriu a porta totalmente.
A sala estava escura, com apenas a fraca luz do corredor rev elando formas e
sombras do que estava lá dentro.
Na parede mais afastada à esquerda deles Nicci podia ver uma cadeira
vazia com uma colcha cuidadosamente dobrada sobre o encosto. Não muito
longe do portal do mesmo lado da sala estava uma pequena mesa arre dondada
com uma lanterna que não estava acesa. Além da mesa a cama estava vazia. Os
lençóis amassados foram jogados pelo lado da cama e amontoados no chão.
Nicci olhou ao redor junto com Zedd e Cara mas ela não avistou Jebra. Se ela
estava em algum outro l ugar dentro da sala estava escuro demais para enxergá -
la. Com a estranha sensação ainda mais forte dentro da sala, a percepção interior
de Nicci não ajudava muito.
Zedd lançou uma centelha do seu Han para a lanterna. O pavio estava
baixo, então a luz não era forte o bastante para afastar as pesadas sombras dos
cantos, ou do outro lado do guarda roupa do outro lado da sala. Ainda assim,
não havia sinal de Jebra.
Nicci, isolada de suas emoções e ao invés disso focada na percepção
governada por seu Han, pass ou por Zedd para ficar tensa e imóvel no meio da
sala, escutando. Com seu Dom ela tentou abrir -se para a sensação de outra
presença espreitando na escuridão, mas nada sentiu.
Uma leve brisa agitou as cortinas. As portas duplas, feitas com
pequenos painéis de vidro, estavam abertas para uma pequena sacada. Por causa
da sacada em seu próprio quarto ali perto Nicci sabia que essa sacada também
tinha vista panorâmica para a cidade escura bem longe lá embaixo na base da
montanha.
Sobre o guarda corpo da sacada , uma silhueta escura bloqueava a visão
do campo além iluminado pela lua.
Atrás de Nicci, Zedd fez subir o pavio na lanterna a óleo. Quando a luz
aumentou, Nicci viu que era Jebra sobre a sacada. A costa dela estava voltada
para eles, ela estava descalça sobre o largo guarda corpo de pedra.
— Queridos espíritos, — sussurrou Cara. — ela vai pular.
Os três ficaram congelados, temendo fazer qualquer coisa que pudesse
assustar a mulher e fazer ela saltar antes que pudessem alcançá -la. Ela parecia
não saber ainda que eles estavam ali.
— Jebra, — Zedd falou com uma voz suave, cautelosa. — nós viemos
visitar você.
Se Jebra escutou ele, ela não mostrou reação. Porém, Nicci não achava
que Jebra ouvisse qualquer coisa, a não ser o sussurro fantasmagórico da magia .

248
Nicci podia sentir as leves ondas daquele poder alienígena passando
por ela, zunindo em direção à vidente imóvel como uma estátua de pedra sobre o
guarda corpo da sacada. Ela contemplava a cidade de Aydindril lá embaixo. Uma
brisa suave balançou o cabel o curto dela.
A sacada, Nicci sabia, embora estivesse voltada para o vale abaixo,
não projetava-se pela borda da Fortaleza. Mesmo assim, Jebra estava
confrontando uma queda de centenas de pés até um dos jardins internos,
passagens, muralhas, ou telhados d a Fortaleza. A esta altura não importava se
ela estivesse descendo até a montanha se caísse ou pulasse; da mesma forma ela
morreria contra as rochas da Fortaleza lá embaixo.
— Estrelas. — disse Jebra com uma voz baixa, fraca, em direção ao
espaço vazio di ante dela.
Zedd segurou o braço de Nicci e puxou -a para perto. Ele colocou a
boca perto do ouvido dela. — Acredito que alguém está buscando as mesmas
respostas que nós. Acho que alguém está sondando a mente dela. Foi isso que
nós sentimos. É um ladrão, um ladrão de pensamentos.
— Jagang. — Cara soltou.
Nicci sabia que essa seria a conclusão lógica. Com a ligação a Richard
de alguma forma rompida, em teoria Jagang poderia fazer tal coisa. Sem Richard
preenchendo o posto do Lorde Rahl, todos eles restavam repentinamente
vulneráveis ao Andarilho dos Sonhos .
Uma nauseante onda de gélido pavor espalhou -se através de Nicci
diante da lembrança de Jagang possuindo sua mente, sua vontade. Sem o Lorde
Rahl, a ligação que protegia todos eles estava quebrada. Se o I mperador estava
cavalgando durante a noite ele poderia muito bem descobrir que eles estavam
desprotegidos. O Andarilho dos Sonhos poderia, a qualquer momento, sem aviso,
sem ser visto, sem ser sentido, entrar nas mentes deles e em seus pensamentos.
Mas Nicci conhecia Jagang. Ela sabia como era quando ele possuía a
mente de uma pessoa. Afinal de contas, um dia ele havia possuído a mente dela,
controlado ela, governado ela através de sua terrível presença. Isso era
diferente.
— Não, — disse ela. — não é Jagang. O que eu sinto é alguma outra
coisa.
— Como você sabe? — sussurrou Zedd.
Nicci finalmente desviou o olhar de Jebra e olhou para o mago
surpreso.
— Bem, por um motivo, — ela sussurrou de volta. — se fosse Jagang,
você nada sentiria. O Andarilho dos Sonhos não deixa traços. Não há como dizer
se ele está lá. Isso é completamente diferente.
Zedd esfregou o queixo liso. — De alguma forma isso ainda parece
familiar. — ele murmurou para si mesmo.
— Estrelas. — Jebra disse outra vez para a noite além da s acada. Zedd
começou a andar em direção ao portal aberto através das portas duplas, mas
Nicci agarrou o braço dele e fez ele voltar. — Espere. — ela sussurrou.
— Estrelas caem ao chão. — Jebra falou com uma voz fantasmagórica.
Zedd e Nicci trocaram um olh ar.
— Estrelas entre a grama. — Jebra disse com a mesma voz morta.
Zedd enrijeceu. — Queridos espíritos. Agora eu reconheço isso.
Nicci inclinou chegando mais perto. — A presença?
O mago assentiu lentamente. — Essa é a sensação de uma Bruxa
aplicando s eu poder.

249
Jebra ergueu os braços para o lado.
— Ela vai pular! — gritou Nicci quando Jebra começou a cair para
frente dentro da noite.

250
C A P Í T U L O 3 3

Richard tossiu violentamente.


A dor da elevação involuntária o trouxe de volta à consciên cia. Ele
ouviu a si mesmo tentando gemer sem sucesso. Ele não tinha ar com o qual
emitir um gemido. Com a consciência veio um crescente pânico confuso de
sufocar, como se ele estivesse de algum modo afogando -se.
Ele tossiu novamente, encolhendo -se de dor quando o fez. Tentou
gritar em agonia quando enrolava -se em uma bola no chão, os braços
pressionados contra a barriga, tentando evitar outro ataque convulsivo de tosse.
— Respire.
Richard considerou a voz assustadora que aparentemente vinha de
algum lugar além do mundo como a voz da insanidade. Ele estava fazendo tudo
que podia para não respirar. Procurou fazer respirações curtas, com cuidado,
tentando impedir outra explosão de tosse.
— Respire.
Não sabia onde estava e no momento realmente não importava -se. Tudo
que importava era a sensação sufocante. Ele não queria respirar, a despeito do
quão desesperadamente precisasse. Essa sensação era tão opressiva, tão
nauseante, que em sua mente não era apenas completamente debilitante, mas
toda poderosa. Morrer parecia preferível diante da continuação da sensação. Ele
não conseguiria suportar que isso continuasse.
Richard não queria mover -se porque, a cada momento que passava,
estava ficando cada vez mais fácil não respirar. Parecia que se ele conseguisse
apenas conseguir não respirar durante mais algum tempo, então por acima do
pico daquela colina escura lá fora em algum lugar diante dele a dor e o
sofrimento acabariam. Ele lutou para ficar perfeitamente imóvel, esperando que
o mundo rodopiante parasse antes que ele vomitasse. Não conseguia imaginar o
quanto isso machucaria. Se ao menos ele conseguisse ficar deitado ali parado
um pouco mais, então tudo isso tornaria -se mais fácil. Se ao menos ele
conseguisse ficar deitado parado mais algum tempo, então tudo isso acabaria.
— Respire.
Ele ignorou a distante voz de veludo. Sua mente flutuou até um empo
no passado quando ele foi tão machucado desse jeito. Foi quando Denna o tinha
acorrentado e indefeso, quando ela o tinha à sua mercê, quando ela o machucara
até que ele ficasse delirante por ser torturado.
Porém, Denna o ensinara a suportar dor. Ele a visualizara parada ali,
observando ele, esperando para ver se isso passaria do limite para dentro da
morte. Houve momentos com ela em que ele tinha alcançado o topo daq uela
distante colina escura, e começara a descer para o outro lado.
Quando isso acontecia Denna estava bem ali para colocar sua boca
sobre a dele, forçadamente inserindo seu vida dentro dele. Ela não havia apenas
controlado sua vida, havia controlado a mo rte dele. Ela tomou tudo. Nem mesmo
sua própria morte pertencia a ele; pertencia a ela.
Ela o observava agora. O rosto prateado dela chegou mais perto,
esperando para ver o que ele faria. Ele imaginou se receberia a morte, ou se ela
mais uma vez colocaria sua boca sobre a dele e…
— Respire.

251
Richard ficou intrigado com ela. Denna não parecia com uma estátua
prateada. — Você deve respirar , — a voz de veludo disse a ele. — se não fizer
isso, você morrerá .
Richard piscou para o lindo rosto suavemente ilumin ado pela fria luz
do luar. Ele tentou inserir um pouco mais de ar em seus pulmões.
Ele cerrou os olhos com força. — Machuca. — ele sussurrou com a
totalidade daquele fraco respirar.
— Você deve. Isso é vida .
Vida. Richard não sabia se queria a vida. Est ava tão cansado, tão
exausto. A morte parecia tão convidativa. Sem mais luta. Sem mais dor. Sem
mais desespero. Sem mais solidão. Sem mais lágrimas. Sem mais agonia por
sentir falta de Kahlan.
Kahlan.
— Respire.
Se ele morresse, quem a ajudaria?
Ele inspirou profundamente, forçando o ar a passar pela agonia
escaldante que isso lançava em seus pulmões. Ele pensou no sorriso de Kahlan,
ao invés da dor.
Ele inspirou outra vez. Mais profundamente.
Uma mão prateada pairou gentilmente acima do ombro dele, c omo que
para confortá-lo em sua agonia na luta para agarrar -se à vida. O rosto parecia
tristemente solidário enquanto observava a luta dele.
— Respire.
Richard assentiu enquanto cerrava os punhos e arfava no gélido fogo
do ar noturno.
Ele tossiu um fino fluido vermelho e gotas de sangue que tinham sabor
metálico. Ele inspirou novamente, fornecendo a si o poder para tossir mais do
líquido que queimava seus pulmões. Durante algum tempo ele ficou deitado de
lado, alternando entre inspirar o ar e tossir flui do.
Quando estava respirando outra vez, mesmo que de forma irregular, ele
virou deitando de costas, esperando fazer com que o rodopio parasse. Fechou os
olhos, mas isso apenas deixou a coisa pior, adicionando uma espécie de
movimento balançante, formigant e, ao rodopio. Seu estômago roncou, no limite
da agitação.
Ele abriu os olhos e na escuridão contemplou as folhas acima dele. Viu
em maior parte folhas de bordo no dossel de galhos de árvore acima. Olhar para
as folhas... talismãs de algo familiar... foi uma sensação boa. Na luz do luar, ele
também viu outros tipos de árvores. Para afastar a mente da dor e náusea, ele
procurou identificar todas as árvores que conseguia distinguir. Havia um
punhado de folhas de tília com forma de coração e, bem mais alto, u m ramo ou
dois daquilo que parecia ser um pinheiro branco. Havia alguns grupos de
carvalhos a uma certa distância para os lados, junto com abetos e bálsamos.
Mais perto, entretanto, em sua maioria eram bordos. A cada sopro de brisa ele
conseguia ouvir o di stinto e suave chacoalhar de folhas de Álamo.
Além da dor associada com a dificuldade de respirar, Richard
reconheceu claramente que havia algo errado dentro de si. Alguma coisa muito
mais básica, mais elementar.
Não era um ferimento, no sentido convenci onal, mas ele sabia que
havia algo terrivelmente errado. Ele tentou identificar a percepção, mas não
conseguia determiná -la. Era uma desolada sensação de vazio sem relação com as
emoções familiares de sua vida, coisas como sua necessidade de encontrar

252
Kahlan, ou o que tinha feito soltando o exército D’Haraniano no Mundo Antigo.
Ele considerou as coisas perturbadoras que Shota dissera, mas também não era
isso.
Era mais uma sensação de um perturbador vazio dentro de si que ele
sabia que jamais tinha sentido. Era por isso que tinha tanta dificuldade para
identificar: era uma condição completamente não familiar. Houvera alguma
coisa lá, alguma sensação de si mesmo, sobre a qual ele percebera que jamais
havia pensado, nunca identificado como um elemento distinto , uma parte
discreta de sua constituição, que agora estava faltando.
Richard sentia como se não fosse mais ele mesmo.
A história que Shota contou a ele sobre Baraccus e o livro que ele
escreveu, Segredos do Poder de um Mago Guerreiro, surgiu em sua mente.
Richard imaginou se a sua voz interior estava tentando sugerir que tal livro
poderia ajudá-lo em uma situação como essa. Ele teve que admitir que o
problema realmente parecia conectado de alguma forma ao Dom dele.
Pensar naquele livro fez com que sua me nte vagasse até aquilo que
Shota disse sobre a mãe dele, que ela não tinha morrido sozinha naquele
incêndio. Zedd insistira no fato de que vasculhou os restos queimados da casa e
não encontrou quaisquer outros ossos. Como poderia ser? Zedd ou Shota, um
deles devia estar errado. Por alguma razão, ele não podia acreditar que ambos
estivessem.
Em algum lugar bem no fundo de sua mente a resposta sinalizou para
ele. Porém, independente do quanto tentasse, ele não conseguia fazer ela
aparecer.
Richard sentiu um a pontada de solidão por sua mãe, uma sensação que
o visitara de tempos em tempos durante sua vida. Ele ficou imaginando o que
ela teria a dizer a respeito de tudo que acontecera a ele. Ela não teve chance de
Vê-lo crescer, de vê-lo como um homem. Ela o co nhecera apenas como um
garoto.
Ele sabia que sua mãe teria adorado Kahlan. Ela teria ficado tão feliz
por ele, tão orgulhosa em ter uma nora com Kahlan. Ela sempre quis que ele
tivesse uma boa vida. Não poderia existir vida melhor do que uma vida com
Kahlan.
Mas ele não tinha mais uma vida com Kahlan.
Ele decidiu que tinha uma vida e, considerando todas as coisas, isso
era o máximo que poderia ser esperado no momento. Pelo menos ele podia
trabalhar em direção aos seus sonhos. Homens mortos não tinham son hos.
Richard ficou deitado de costas, permitindo que o ar saturasse seus
músculos ardentes, permitindo a si mesmo recuperar os sentidos, sua
compostura. Estava tão fraco que mal conseguia mover -se, então ele não tentou.
Ao invés disso, enquanto estava dei tado recuperando -se, concentrou -se em tudo
que havia acontecido, tentando organizar tudo em sua mente.
Estivera viajando de volta até a Fortaleza com Nicci e Cara quando
foram atacados. Foi a Besta. Tinha sentido sua aura maligna. Ela apareceu em
uma forma diferente de tudo que ele já tinha visto, mas era da natureza da Besta
assumir diferentes formas. A única coisa que podia considerar certa era que a
Besta continuaria a vir atrás dele até que ela o matasse.
Ele lembrou de lutar com ela. A mão dele foi a té um ponto em sua
perna onde um dos tentáculos havia apertado até que pensou que a perna ficaria
sem a carne. Sua coxa estava ferida e dolorida ao toque mas, felizmente, não
aberta. Lembrou de ter cortado alguns dos braços da criatura. Ele lembrou de

253
Nicci tentando usar o seu poder, e que desejou que ela parasse porque de algum
modo aquilo estava sendo conduzido através da Sliph, sendo que uma parte do
poder que ela liberou contra a Besta espalhou -se através dele. Ele suspeitou de
que se não fosse pela sub stância da Sliph, a magia de Nicci poderia tê -lo morto.
Aquilo certamente não feriu a Besta... pelo menos, não o suficiente para atrasá -
la. Ela também deve ter sido isolada, pelo menos até certo ponto, pela Sliph.
Ele lembrou de Cara sendo afastada dele. Lembrou de Nicci também
sendo violentamente separada dele. Lembrou da Besta tentando rasgá -lo. E
lembrou de ter conseguido repentinamente ficar livre.
Mas então aconteceu alguma coisa que ele não entendeu.
Quando ele foi separado da Besta, havia sido dom inado por uma
estranha dolorosa sensação que invadiu o núcleo do seu ser. Isso foi bastante
diferente da dor causada pelo poder de Nicci... ou de qualquer magia que ele já
sentiu.
Magia.
Assim que formara o pensamento, ele percebeu que estava certo; tinh a
sido algum tipo de magia.
Mesmo se fosse o toque de um tipo de conjuração totalmente diferente
de tudo que já sentira, ele reconheceu que havia sido o toque da magia. Mesmo
que estivesse livre da Besta... ele nem ao menos sabia onde a Besta estava
naquele momento em particular... foi quando tudo havia mudado bruscamente.
Quando ele arfava de dor por causa do assalto abrupto da estranha
carga de poder, a essência da Sliph novamente preencheu seus pulmões. Aquela
respiração causara um choque de pânico.
Richard lembrou de uma sensação similar quando era jovem. Ele estava
junto com vários outros garotos, mergulhando até o fundo de um lago em uma
disputa para buscar pedras. A tarde de natação e mergulhos de galhos sobre o
lago pequeno mas profundo tinha agit ado o fundo lamacento. Sob a água
lamacenta, enquanto mergulhava para buscar pedras, Richard perdeu o sentido
de direção. Ele estava ficando sem ar quando bateu com a cabeça em um galho
grosso. Estando desorientado, ele pensou que ter batido no galho signi ficava que
irrompera na superfície e atingira um dos galhos baixos que pendiam sobre a
margem do lago. Não foi isso. Havia sido um galho submerso. Antes de perceber
o que realmente tinha feito, ele inspirou um pouco da água lamacenta.
Ele estava perto da superfície, da margem, e de seus amigos. Foi uma
experiência apavorante, mas acabou rapidamente e ele havia se recuperado em
pouco tempo, aprendendo um lição sobre ter mais respeito pela água.
Aquela recordação de ter inspirado água quando garoto, somada com a
natural indisposição para inalar água, tornara ainda mais difícil inspirar a Sliph
na primeira vez. Porém, ele superou aquele medo, e acabou sendo uma
experiência prazerosa.
Mas dentro da Sliph, quando subitamente estava afogando -se, não
havia superfície, margem, qualquer ajuda ao alcance. Uma coisa como aquela
jamais tinha acontecido dentro da Sliph. Não havia jeito para ele escapar,
qualquer jeito de chegar até a superfície, e ninguém para ajudá -lo.
Richard observou dentro da luz do luar. A Sliph estava ali perto,
observando ele. Ele percebeu que ela não estava em um poço, do jeito que
sempre tinha visto. Eles estavam sobre o chão em um local pouco arborizado.
Ele não conseguia ouvir outros sons além dos sons da natureza. Nada conseguiu
detectar a não ser odores de floresta.
Sob folhas, agulhas de pinheiro, detritos de floresta, e raízes Richard

254
sentiu um chão áspero de pedra. Os espaços entre as pedras eram largos, com
largura maior do que a de um dedo. Essas não eram junções como aquelas em
palácio finamente construídos, mas sem dúvida isso era feito pelo homem.
E o rosto prateado da Sliph, ao invés de estar elevando -se de dentro do
seu poço, havia projetado -se levemente de uma abertura bem pequena e irregular
no antigo chão de pedra. Pequenos fr agmentos daquele chão de pedra agora
estavam sobre as folhas secas, cascalhos de galhos, como se as pedras tivessem
sido quebradas por baixo... como se a Sliph houvesse irrompido através delas.
Richard sentou. — Sliph, você está bem?
— Sim, Mestre.
— Você sabe o que aconteceu? Senti como se estivesse me afogando.
— Você estava.
Richard ficou olhando para o rosto na luz do luar. — Mas como pode
ser? O que aconteceu de errado?
Uma mão prateada esticou -se do chão para encostar dedos de mercúrio
na testa dele, verificando-o.
— Você não tem a magia necessária para viajar .
Richard piscou, confuso. — Eu não entendo. Já viajei muitas vezes.
— Antes você tinha o que era necessário .
— E agora não tenho?
A Sliph observou ele durante um momento. — Agora você não tem. —
ela confirmou.
Richard sentiu que devia estar sofrendo uma alucinação. — Mas eu
tenho os dois lados do Dom. Eu posso viajar.
A Sliph esticou-se cautelosamente e outra vez sentiu o rosto dele. A
mão desceu até o peito dele, fazendo uma pausa du rante um instante para
colocar uma leve pressão contra ele. O braço dela recuou para dentro do buraco
escuro na rocha partida.
— Você não possui a magia necessária .
— Você já falou isso. Isso não faz sentido. Eu já estava viajando.
— Enquanto você estava viajando, você perdeu aquilo que é
necessário.
Os olhos de Richard ficaram arregalados. — Está querendo dizer que
eu perdi um lado do Dom?
— Não. Eu quero dizer que você não tem o Dom. Você não tem
qualquer magia. Você não pode viajar .
Richard teve que repassar as palavras em sua cabeça para ter certeza de
que escutara corretamente. Ele não viu como poderia ter entendido errado aquilo
que a Sliph falou. Sua mente acelerou em meio a fragmentos de pensamentos
embaralhados enquanto ele tentava compreender como uma coisa assim era
possível.
Uma terrível percepção lhe ocorreu. Poderia ser que a corrupção
causada pelas Notas pudesse ser responsável por isso? Aquela corrupção
finalmente o alcançara e destruiu o seu Dom? Consumiu -o sem o seu
conhecimento até qu e ele finalmente havia falhado?
Mas isso não explicaria a sensação que ele teve dentro da Sliph, logo
após ter escapado das garras da Besta e pouco depois que tinha começado a
afogar-se... a súbita sensação de alguma magia sombria e furtiva aproximando -
se e quando ele estava mais vulnerável e tocando -o.
Richard olhou ao redor e nada mais viu além das árvores. Elas eram
densas o suficiente para que ele não conseguisse enxergar além delas na luz do

255
luar. Sendo um guia, ele odiava a sensação de não saber ond e estava.
— Onde estamos, afinal de contas? Como chegamos aqui?
— Quando isso aconteceu, quando você perdeu o que é necessário
para viajar, eu tive que trazer você até aqui .
— E onde é “aqui”?
— Sinto muito mas eu não sei ... exatamente.
— Como pode me trazer até aqui, e não saber onde você está? Você
sempre conhece onde está e os lugares para os quais você pode viajar.
— Eu já disse, jamais estive nesse lugar. Esse lugar é uma passagem
de emergência. Eu sabia a respeito dela, é claro, mas nunca estive aqui. Nunca
houve uma emergência dentro de mim .
— Aquela Besta terrível me machucou. Eu estava lutando para manter
todos vocês vivos. E então, houve mais alguma coisa que entrou em mim. Não
consegui impedir. Como a Besta, aquilo entrou em mim sem a minha permissão.
Aquilo me violou.
Isso confirmou a noção de eventos de Richard, de que logo depois que
a Besta o perdeu, alguma outra coisa, algum tipo de poder, tinha avançado e
tocado ele com sua força.
— Sinto muito por você ter sido ferida, Sliph. O que aconteceu com a
Besta?
— Depois que esse outro poder entrou em mim, a Besta desapareceu .
— Quer dizer que esse outro poder a destruiu?
— Não. O poder não tocou na Besta. Ele tocou apenas em você com
toda sua força. Depois que ele fez isso, então você nã o tinha mais o que é
necessário para viajar. Depois disso, a Besta pairou dentro de mim durante um
breve tempo, e então desapareceu. Eu não podia mais sustentar você dentro de
mim, então tive que encontrar o portal de emergência mais próximo .
— E quanto a Nicci e Cara? Elas foram machucadas? Elas estão
seguras?
— Elas também sentiram a dor daquilo que aconteceu comigo, e uma
delas tentou usar seu poder dentro de mim... algo que é errado fazer. Depois
que trouxe você até aqui, levei -as até a Fortaleza para onde elas haviam
desejado viajar. Eu disse para aquela que usou seu poder que era perigoso
fazer isso, e que ela não devia fazer tal coisa .
— Acho que entendo. — falou Richard. — Isso também machucou a
mim. Elas ficaram muito feridas?
— Elas estão em segurança na Fortaleza .
— Então nós devemos estar em algum ponto entre o Palácio do Povo e
a Fortaleza. — Richard disse, meio que para si mesmo.
— Não.
Ele olhou para o rosto prateado líquido. — Eu não entendo. Nós
estávamos seguindo do Palácio para a For taleza. Se você me deixou sair, então
esse lugar aqui, essa passagem de saída de emergência, teria que ficar entre o
Palácio e a Fortaleza.
— Embora eu não conheça esse lugar, eu conheço sua área geral. Nós
estamos em um lugar um pouco mais da metade atra vés de Midlands a partir da
Fortaleza, passando por Agaden Reach, quase nas terras selvagens .
Richard sentiu como se o mundo tivesse acabado de girar e lançado ele
para bem longe de onde estivera. — Mas... mas... isso é muito, muito mais
distante do Palácio do Povo do que a Fortaleza. Porque você não me levou até o
lugar mais próximo da Fortaleza?

256
— Eu não funciono desse jeito. Aquilo que para você pode parecer a
distância mais curta entre dois lugares não é o caminho mais curto para mim.
Eu estou em muitos lugares ao mesmo tempo .
Richard inclinou em direção à Sliph. — Como você pode estar em
muitos lugares ao mesmo tempo?
— Você está com um pé sobre aquela rocha escura, e um pé sobre uma
rocha que é mais clara. Você está em dois lugares ao mesmo tempo .
Richard suspirou. — Acho que entendi.
— Eu viajo de um jeito que é diferente do seu jeito de viajar. Esse
lugar, aqui, embora esteja a uma distância que é metade do caminho através de
Midlands para você, era o lugar mais próximo para mim. Tive que coloca r você
para fora, dentro do seu mundo novamente, para que você pudesse respirar .
— Você não tinha mais o que é necessário para viajar. Os seus
pulmões estavam cheios de mim. Para quem não possui o Dom, respirar a mim é
venenoso. Isso mataria. Mas para voc ê, uma vez que já estava dentro de mim e
me respirando, houve um breve período em que estava passando por uma
transição, então ter a mim dentro de você não foi instantaneamente fatal. Você
teria morrido em pouco tempo, mas haveria um breve tempo antes que isso
acontecesse. Eu sabia que o tempo que você tinha antes de morrer não era
muito longo. Pensei em fazer o melhor que podia para salvar você, levar você
até um lugar onde poderia estar de volta ao seu mundo e esperançosament e
recuperar-se.
— Eu trouxe você até aqui, quebrei o selo, e coloquei você para fora
em seu mundo outra vez. Você estava ferido, mas eu sabia que a minha essência
que ainda estava dentro de você ajudaria a sustentar a sua vida por um breve
tempo.
— Se eu não podia mais viajar, porque não tenho o Dom necessário,
então o que fez você pensar nisso?
— Eu fui criada com propriedades para auxiliar em emergências.
Essas propriedades estão dentro de mim... e desse modo elas estavam dentro de
você. Elas ajudaram a iniciar o processo de recupe ração. Elas são destinadas
apenas para crises e, mesmo assim, eu fui avisada que não havia certeza de que
isso funcionaria porque há variáveis que não podem ser controladas .
— Enquanto você dormia entre mundos, e minha magia que você ainda
tinha dentro de si estava trabalhando para extrair aquilo que agora tornara -se
venenoso para você, eu acabei de levar as outras até a Fortaleza. Quando
retornei, esperei com você até que você estivesse recuperado o bastante para
estar preparado para respirar novamente, e ntão ajudei você a lembrar o que
deve fazer para viver .
— Durante algum tempo eu não sabia se isso funcionaria. Nunca tive
que fazer algo assim. Foi terrível ter que esperar enquanto observava você
deitado ali, sem saber se você voltaria a respirar. Eu te mi que tivesse falhado
com você, e que eu fosse a causa da sua morte .
Richard ficou olhando para o rosto prateado durante algum tempo.
Finalmente ele mostrou um sorriso. — Obrigado, Sliph. Você salvou minha vida.
Você fez as coisas certas. Você fez muito bem.
— Você é o meu Mestre. Eu faria qualquer coisa por você .
— Seu mestre. Um mestre que não pode viajar.
— Isso é tão intrigante para mim quanto é para você .
Richard tentou pensar, tentou encontrar sentido nisso, mas com a dor
de respirar após quase afogar-se na Sliph ainda parecendo pressionar

257
pesadamente o seu peito, ele estava sentindo dificuldade para fazer a sua mente
focar-se no pensamento.
Richard descansou os antebraços sobre os joelhos. — Suponho que não
existe algum jeito para que você me l eve de volta até a Fortaleza?
— Sim, Mestre. Se deseja viajar, posso levar você .
Richard sentou ereto. — Você pode? Como?
— Simplesmente você deve adquirir a magia necessária, e então
poderei levá -lo novamente. Então viajaremos. Você ficará satisfeito .
Adquirir a magia necessária. Ele nem mesmo sabia como usar a magia
que tinha... ou costumava ter. Ele não conseguia imaginar o que aconteceu com
o seu Dom, e não tinha ideia de como conseguir ele de volta. Houve muitas
vezes em que ele quis ficar livre dis so, mas agora que havia acontecido tudo em
que ele conseguia pensar era em recuperá -lo.
Quando o Dom dele falhou, a Besta aparentemente o perdera dentro da
Sliph. Como consolo por perder o seu Dom, parecia que a Besta seria um
problema a menos para ele en frentar no momento... afinal de contas, o seu Dom
foi o mecanismo através do qual a Besta estava conectada a ele, através do qual
ela o caçava. Supostamente deveria haver equilíbrio na magia; talvez esse fosse
o equilíbrio para o fato de ter perdido o Dom.
Richard passou os dedos pelo cabelo. — Pelo menos Nicci e Cara
conseguiram e estão em segurança. — ele olhou para a Sliph. — Tem certeza de
que elas estão bem?
— Sim, Mestre. Elas estão seguras. Eu as levei para a Fortaleza, para
onde elas desejaram via jar. Elas tinham o que é necessário para viajar .
— E você falou para elas onde eu estava. Falou para elas o que
aconteceu.
Ela pareceu surpresa por aquilo que havia soado mais como uma
afirmação do que uma pergunta. — Não, Mestre. Eu jamais revelaria aqu ilo que
faço com outro .
— Oh, ótimo. — ele resmungou. Ele fez um esforço para manter sua
irritação sob controle. — Mas você falou para mim sobre outros.
— Você é o meu Mestre. Faço coisas com você que não faria com
qualquer outra pessoa .
— Sliph, elas são minhas amigas. Provavelmente estão loucas de
preocupação comigo. Você deve falar para elas o que elas precisam saber.
A cabeça prateada inclinou em direção a ele. — Mestre, não posso
trair você. Eu não faria isso .
— Isso não é uma traição. Estou dizen do a você que está tudo bem
contar a elas o que aconteceu.
A Sliph parecia como se estivesse achando que esse era o pedido mais
estranho que já recebera. — Mestre, você quer falar para outros sobre nós,
sobre o que fazemos quando estamos juntos?
— Sliph, tente entender. Você não é mais uma prostituta.
— Mas as pessoas me usam para o seu prazer .
— Isso não é a mesma coisa. — Richard passou os dedos no cabelo,
tentando não soar zangado. — Escute, magos em tempos antigos mudaram quem
você era, o que você era.
A Sliph assentiu solenemente. — Eu sei, Mestre. Eu lembro. Afinal de
contas, foi comigo que isso aconteceu .
— Agora você é diferente. Não é a mesma coisa. Você não pode
equiparar as duas coisas. Elas são diferentes.

258
— Recebi o dever de servir a outr os nessa competência. Minha
natureza ainda está dentro de mim .
— Mas tem alguns de nós que usam você que valorizam muito a sua
ajuda.
— Eu sempre fui valorizada por aquilo que faço .
— Isso é diferente daquilo que você fazia antes. — Richard não queria
ter essa conversa. Tinha assuntos mais importantes com os quais preocupar -se.
— Sliph, quando você viaja conosco você frequentemente está ajudando a salvar
vidas. Quando viajou conosco até o Palácio do Povo, você estava me ajudando a
acabar com a guerra. Vo cê está fazendo uma coisa boa.
— Se você diz, Mestre. Mas deve entender que aqueles que me criaram
fizeram-me do jeito que sou. Eles usaram aquilo que um dia eu fui para me
criarem como eu sou agora. Não posso ser de outro jeito a não ser do jeito que
sou. Não posso desejar ser diferente, mais do que você pode viajar agora
simplesmente desejando isso .
Richard suspirou. — Suponho que não.
Com uma das mãos ele quebrou gravetos secos ao meio enquanto
pensava. Trocou um longo olhar com o belo rosto que obser vava, dependendo de
cada palavra dele. Finalmente, ele falou com suavidade.
— Há momentos quando não tem outro jeito, e você deve confiar em
outros. Este é um desses momentos.
Alguma coisa nas palavras dele claramente surtiu efeito. O belo rosto
líquido chegou um pouco mais perto.
— Você é o escolhido. — a Sliph sussurrou.
— O escolhido? Que escolhido?
— Aquele que Baraccus falou que viria .
Os cabelos na nuca de Richard ficaram eriçados.
— Você conheceu Baraccus?
— Um dia ele foi o meu Mestre, como você é, agora.
— É claro. — Richard sussurrou para si mesmo. — Ele foi Primeiro
Mago.
— Foi ele quem insistiu que eu tivesse os elementos de emergência
sobre os quais falei a você. Ele também providenciou para que houvesse esse
portal de emergência. Se e le não tivesse feito essas coisas, você teria morrido.
Ele foi muito sábio .
— Muito sábio. — Richard concordou enquanto olhava fixamente com
os olhos arregalados para a Sliph. — Você disse que Baraccus falou para você
alguma coisa sobre aquele que viria?
A Sliph assentiu. — Ele era gentil comigo. Sua esposa me odiava, mas
Baraccus era gentil comigo .
— Você conheceu a esposa dele também?
— Magda.
— Porque ela odiaria você?
— Porque Baraccus era gentil comigo. E porque eu o levei para longe
dela.
— Está querendo dizer, que você o levou para longe quando ele
desejou viajar.
— É claro. Quando eu falava para ele que ele ficaria satisfeito, ela
cruzava os braços e olhava com raiva para mim .
Richard sorriu levemente. — Ela estava com ciúmes.
— Ela o amava e não queria que ele a deixasse. Quando eu retornava

259
com ele depois que viajávamos, geralmente ela estava lá, esperando por ele. Ele
sempre sorria quando avistava ela, e ela sorria de volta .
— E o que foi que Baraccus falou sobre mim?
— Ele falou a mesm a coisa que você acabou de falar, “há momentos
quando não tem outro jeito, e você deve confiar em outros”. Essas foram as
palavras dele, assim como foram as suas. Ele falou que um dia outro Mestre
diria exatamente essas mesmas palavras, e então adicionaria exatamente as
mesmas palavras que você falou: “Este é um desses momentos” .
— Ele falou que se algum dia um Mestre falasse essas palavras, isso
significava que ele era a pessoa certa e que eu deveria falar para ele algumas
coisas.
Richard podia sentir ca da cabelo em seus braços ficar eriçado.
— Você levou Magda Searus para algum lugar, não levou?
— Sim, Mestre. Depois que nunca mais vi Baraccus. Mas antes,
quando ele disse que algum dia alguém falaria essas palavras, ele falou para
transmitir a essa pes soa a mensagem dele.
— Ele deixou uma mensagem? — quando ela assentiu, ele virou as
mãos. — Então qual é?
— “Lamento. Não sei as respostas para salvar sua vi da. Acredite que,
se eu soubesse, eu as daria. Mas conheço o bem que há em você e acredito em
você. Sei que está em você o que é preciso para ter sucesso. Haverá momentos
em que vai duvidar de si mesmo. Não desista. Lembre -se de que acredito em
você, sei que você pode realizar o que é preciso. Você é uma pessoa rara.
Acredite em si mesmo” .
— “Saiba que acredito que você é a pessoa que pode fazer isso ”. —
Richard ficou congelado. As palavras ecoaram em sua cabeça. Elas eram
estranhamente familiares.
— Eu já ouvi quase essas mesmas palavras em algum lugar.
A Sliph chegou um pouco mais perto, sua expres são endurecendo. —
Já ouviu?
Richard concentrou-se enquanto repassava as palavras em sua mente
outra vez, tentando lembrar…
E então ele lembrou. Foi pouco depois que Shota havia falado parta ele
sobre Baraccus. Pouco antes dela partir, ela falou essas me smas palavras para
ele. Havia alguma coisa a respeito dessas palavras, pronunciadas por Shota, que
tinha despertado uma indistinta recordação.
— Foi Shota, a Bruxa. — disse Richard enquanto franzia a testa ao
lembrar. — Ela falou para mim essas palavras.
A Sliph recuou. — Sinto muito, Mestre. Você falhou no teste .
Richard olhou para ela. — Que teste?
— O teste que Baraccus acabou de fazer com você. Sinto muito, mas
você falhou no teste dele. Nada mais posso dizer a você .
Sem qualquer outra palavra, a Sliph desapareceu abruptamente dentro
do buraco escuro na rocha.
Richard deitou-se sobre o estômago, inclinando em direção ao buraco.
— Não! Espere! Não vá embora!
Sua própria voz ecoou saindo do buraco escuro vazio.
A Sliph havia partido. Sem o Dom dele , ele não tinha como chamá -la
de volta.

260
C A P Í T U L O 3 4

Nicci ouviu uma suave batida na porta. Zedd olhou mas não levantou.
Cara, com as mãos cruzadas atrás das costas, olhando pela janela, olhou para
trás por cima do ombro. Nicci, mais perto da porta, abriu -a. A pequena chama na
lanterna sobre a mesa não estava apta a realizar a tarefa de afastar a obscuridade
do quarto, mas lançou a calorosa luz que podia no rosto do alto profeta.
— O que está acontecendo? — perguntou Nathan com sua voz fort e.
Ele direcionou um olhar desconfiado para aqueles que estavam na sala. — Rikka
não falou muito além de que você e Cara estavam de volta e que Zedd queria
falar comigo imediatamente.
— Isso mesmo. — falou Zedd. — Entre, por favor.
Nathan olhou ao redor do quarto sombrio quando entrou. — Onde está
Richard?
Nicci engoliu em seco. — Ele não conseguiu voltar conosco.
— Não conseguiu voltar? — ele fez uma pausa para avaliar a expressão
triste no rosto de Nicci. — Queridos espíritos…
Zedd, sentado na cama a o lado de Jebra, não levantou os olhos. Jebra
estava inconsciente. Quando eles tentaram fechar os olhos dela suas pálpebras
abriam novamente. Eles finalmente desistiram de tentar e deixaram ela olhar
para o teto.
Zedd já tinha tratado da perna quebrada de la o melhor que podia. Ela
teve muita sorte que Cara não fosse apenas rápida mas forte também, e que el a
tivesse conseguido segurar o tornozelo de Jebra bem no instante em que o peso
morto dela havia caído da sacada. Mesmo assim, o impulso fizera a vidente
balançar para baixo da sacada, onde a perna dela atingiu uma estrutura de
suporte que quebrou sua perna. Nicci suspeitou que a mulher estava inconsciente
no momento em que começara a cair.
Foi um ferimento feio. Zedd trabalhara imediatamente no ferimento
dela, mas por causa do estado incomum em que Jebra encontrava -se ele não foi
capaz de curar o osso partido. Tudo que ele conseguiu fazer foi colocá -lo na
posição correta, imobilizá -lo, e adicionar o bastante do seu Dom para ajudá -lo a
começar a emendar. Quando ela finalmente acordasse ele poderia terminar a
cura. Se ela acordasse. Nicci tinha suas dúvidas.
Nicci sabia que a perna quebrada de Jebra era o menor dos problemas
da mulher. A despeito de tudo que eles tentaram, não conseguiram despertá -la
de seu estado catatônico. Zedd tentou. Nicci tentou. Ela até mesmo tentou uma
perigosa conjuração envolvendo Magia Subtrativa. No início Zedd foi contra,
mas quando Nicci confrontou ele com a terrível natureza das opções deles ele
concordou com relutância.
Infelizmente, nem mesmo isso ajudou. A mente de Jebra estava isolada
deles. Seja qual fosse a magia que a Bruxa usara nela, era algo que eles eram
incapazes de romper. Seja lá o que tivesse sido feito, para Nicci não parecia
possuir a intenção de ser reversíve l. Se eles conhecessem a natureza disso talvez
pudessem ter uma chance de quebrar o feitiço, mas eles não conheciam a sua
constituição.
Nathan curvou-se e encostou dois dedos na têmpora da mulher
inconsciente. Ele endireitou o corpo e balançou a cabeça di ante da expressão

261
questionadora de Zedd.
Nicci nunca tinha visto uma coisa assim. Zedd, por outro lado, no
começo havia coçado o queixo enquanto refletia. Ele murmurou que tinha algo
estranhamente familiar a respeito da natureza daquilo. O que, ele não co nseguia
dizer. A despeito do quão insistente Nicci havia sido, e a despeito do seu
próprio desejo desesperado de fazer alguma coisa, Zedd estava no fim de sua
paciência por não conseguir definir porque sentiu que já tinha visto algum
aspecto de uma conjuração como essa.
Afinal ele era, como havia lembrado a todos, o Primeiro Mago, e havia
passado uma boa parte de sua vida estudando coisas assim. Ele acreditava que
deveria ser capaz de identificar que tipo de teia foi criada em volta da mulher.
Nicci sabia que se Jebra estivesse consciente isso tornaria o trabalho muito mais
fácil, mas Zedd não estava disposto a usar uma desculpa para sua própria falha
em identificar qual era a conjuração envolvida.
Nicci escutou uma comoção no corredor. Nathan enfiou a cab eça pelo
portal para dar uma olhada.
— O que foi? — uma voz a uma certa distância gritou. Era Ann,
subindo o corredor acelerada, escoltada por Rikka. Ela finalmente alcançou a
porta. — O que está acontecendo?
Quando ela entrou no quarto, esforçando -se para recuperar o fôlego,
Nathan colocou uma grande mão sobre o ombro dela. — Aconteceu alguma coisa
com Richard.
Fios de cabelo grisalho escapavam do coque frouxo na cabeça dela
como plumas. O olhar calculista dela moveu -se por todos no quarto, conferindo
o nível de seriedade que ela viu em cada um deles. Era o tipo de rápida
avaliação que Nicci associava a Ann.
Como Prelada das Irmãs da Luz, ela sempre teve uma presença de
comando que podia incutir medo em qualquer um, desde Irmãs com alto posto
até cavalariços. Ainda que Nicci não fosse mais uma Irmã da Luz, sua guarda
sempre ficava erguida toda vez que a antiga Prelada entrava no ambiente. A
baixa estatura da mulher de forma alguma reduzia o ar de ameaça que parecia
cercá-la.
Ann voltou um olhar intenso para Nathan. — O que aconteceu? O rapaz
está ferido...
— Não sei, ainda. — Nathan falou, erguendo uma das mãos para conter
uma torrente de perguntas antes que elas pudessem cair sobre ele. — Deixe a
mulher explicar.
— Tudo que sabemos com certeza, — disse Nicci quando Ann
direcionou um olhar sério para ela. — é que enquanto estávamos viajando na
Sliph de volta para cá, vindo do Palácio do Povo, a Besta nos atacou. Cara e eu
tentamos ajudar Richard a afastá -la, então fomos separadas dele. Logo que isso
aconteceu eu senti algum tipo de externa. A coisa seguinte que soubemos, foi
que Cara e eu estávamos de volta à Fortaleza. Richard não estava conosco. Não
temos ideia do que aconteceu com ele depois que ele foi tocado pelo estranho
poder que senti. Também não vimos mais a Besta.
— Depois que chegamos aqui, Jebra foi atacada por uma teia que eu
não consegui identificar se foi lançada pela mesma pessoa que usou o poder que
tocou Richard dentro da Sliph. Porque Zedd reconheceu a composição única
dessa teia, agor a sabemos que foi poder conjurado por uma Bruxa.
— E meu Agiel não funciona. — falou Cara, exibindo a arma. — Nossa
ligação com Lorde Rahl está rompida. Não conseguimos mais sentir ele.

262
— Querido Criador. — Ann sussurrou quando desviava o olhar.
Zedd apontou para a mulher deitada na cama diante dele. — Seja qual
tenha sido o poder que essa Bruxa lançou, ele deixou Jebra inconsciente. Não
conseguimos acordá -la. Embora eu saiba que foi o feitiço de uma Bruxa que de
alguma forma dominou ela, não consigo ima ginar como uma Bruxa poderia fazer
uma coisa assim... lançar teias como essa de longe. Pela minha experiência elas
não podem realizar coisas dessa natureza. Isso está além da habilidade delas.
— Tem certeza de que foi uma Bruxa? — Ann perguntou.
Zedd deu um profundo suspiro enquanto considerava a questão com
seriedade. — Já lidei com uma Bruxa. Uma vez que um gato enterra suas garras
em você, você não esquece tão cedo qual é a sensação. Não conheço a pessoa
específica que fez isso, mas conheço a sensação. Foi uma Bruxa.
Nicci cruzou os braços. — Acho que temos uma boa ideia de quem é
essa Bruxa: Seis. E não esqueça, só porque reconhece a assinatura do poder de
uma Bruxa, isso não significa necessariamente que os mesmos limites aplicam -
se ao indivíduo que fez isso. Afinal, alguém reconhecer o seu poder como o de
um mago não significa que ele conhece os seus limites ou conheceria o seu real
potencial.
— Isso é verdade. — Zedd admitiu com um suspiro.
Nathan balançou a mão colocando de lado o assunto d e Bruxas. —
Jebra falou mais alguma coisa sobre a visão que teve? Qualquer coisa?
Zedd trocou um olhar com Nicci. — Bem, não até esse feitiço dominá -
la. Pouco antes dela entrar nesse estado, nós ouvimos ela dizer, “estrelas.
Estrelas caídas ao chão. Estrelas ent re a grama”.
— Estrelas… — Nathan repetiu enquanto caminhava de um lado para
outro no pequeno quarto, segurando um cotovelo com uma das mãos e batendo
as pontas dos dedos da outra no queixo. Finalmente ele virou em direção a Zedd.
— Temo que essa profecia nada signifique para mim. É provável que ela tenha
falado em voz alta apenas um fragmento. Nesse caso, facilmente poderia
significar que não há o suficiente para que eu prossiga.
O coração de Nicci ficou pesado. Ela estivera com esperança de que o
profeta fosse capaz de decifrar a profecia da vidente.
Ann coçou o lado do nariz, procurando as palavras. — Então é possível
que nós… — ela limpou a garganta. — que nós tenhamos perdido Richard. Que
essa Bruxa tenha morto ele.
Cara deu um passo agressivo adian te. — Lorde Rahl não está morto!
No silêncio ecoante, Zedd levantou da cadeira. Ele direcionou um
olhar de alerta para Cara antes de falar com Ann. — Eu também não acredito.
Ann olhou da expressão enfurecida de Cara para Zedd. — Eu sei
porque ela não acredita nisso. Porque você não acredita?
Ele apontou para Jebra. — Por causa dessa mulher deitada aqui nessa
cama.
Ann franziu a testa. — O que você quer dizer?
— Bem, a primeira visão que Jebra teve após vários anos é sobre
Richard.
— Isso mesmo. — declarou Nicci. — A visão dela era sobre o que
aconteceria com ele. Ela me falou... especificamente... para não deixá -lo
sozinho, nem por um instante.
Ann arqueou uma sobrancelha. — E ainda assim você o fez.
Nicci ignorou a afronta. — Sim. Não deliberadament e, mas por causa
da Besta. A Besta foi um fator imprevisível, um evento aleatório.

263
Quando Ann apenas pareceu mais perplexa, Zedd explicou. — Nós
acreditamos que era o plano dessa Bruxa tocar Richard com seu poder. Mas a
Besta apareceu justamente no moment o errado, estragando o plano
cuidadosamente construído dela.
Ann fez uma careta. — De que forma?
— A Besta fez ela errar em acertar Richard, como ela havia planejado.
— disse Nicci. — Por causa da Besta, ela perdeu Richard dentro da Sliph, assim
como nós o perdemos. Agora ela tem um problema. Ela tem que encontrá -lo.
— Então ela fez a mesma coisa que nós fizemos. — falou Zedd. — Ela
veio aqui, ou pelo menos ela enviou o poder dela até aqui, para descobrir com a
vidente onde ele estará.
— Ela estava procurando uma profecia? — Ann perguntou. — Bruxas
enxergam coisas no fluxo do tempo. Porque ela precisaria da vidente?
Zedd abriu os braços. — Sim, elas enxergam coisas mas, como estou
certo de que Nathan pode explicar melhor do que eu poderia, elas não
conseguem ver exatamente o que desejam ver, quando querem ver.
Nathan estava assentindo. — Existe um elemento aleatório na profecia.
Ela vem quando vem, não quando você quer que ela venha. Talvez os magos das
épocas antigas soubessem as formas para usar a pro fecia conforme sua vontade,
mas se soubessem, eles não passaram adiante tal conhecimento. É raro que você
consiga escolher na profecia quais eventos você quer ver.
Zedd ergueu um dedo, destacando seu pensamento. — Seis
provavelmente viu, através de sua ha bilidade ou de sua conjuração que tem
relação com os eventos, que Jebra já teve uma visão revelando o que aconteceria
com Richard e onde ele estaria em seguida, então ela simplesmente entrou na
mente de Jebra para roubar a resposta.
— Acredito que é por i sso que não conseguimos despertar Jebra. —
falou Nicci. — Não acho que Seis queira que alguém mais seja capaz de obter a
informação que ela já conseguiu. Embora Jebra tenha falado apenas algumas
palavras em voz alta, eu apostaria que Seis extraiu tudo... a visão inteira... da
mente de Jebra. Acredito que então Seis obrigou Jebra a saltar daquela sacada
para cometer suicídio de modo que não pudesse revelar sua visão para qualquer
outra pessoa. Ao falhar nisso, o feitiço deixou Jebra inconsciente... como um
suicídio, é muito mais fácil do que matar de longe, e da mesma forma atende ao
propósito dela.
A expressão de Nathan aliviou enquanto ele escutava. Ele girou uma
das mãos como se estivesse revirando o evento em sua mente. — Então você
acha que na profecia dela, Jebra estava revelando que Richard vai encontrar
estrelas que caíram ao chão? Que ele estará em um lugar com estrelas entre a
grama? Como em um lugar onde meteoritos são encontrados?
Zedd cruzou as mãos atrás das costas e assentiu. — Parece que seri a
isso.
Nathan ficou olhando para o vazio enquanto pensava, assentindo para
si mesmo algumas vezes. Ann não pareceu tão convencida.
— Então você acha que Richard está vivo, — perguntou ela. — e que
essa Bruxa, Seis, de alguma forma enfeitiçou ele?
Nicci assentiu com firmeza para a Prelada. — Essa é a conclusão a que
Zedd e eu chegamos.
Ann inclinou chegando mais perto de sua antiga aluna. — Com que
propósito? Posso imaginar razões para Seis assassinar Richard, mas porque ela
desejaria colocar as mãos ne le?

264
Nicci não ficou intimidada com o olhar firme da mulher. — Seis
usurpou a Bruxa que vive aqui... Shota. Porque? Bem, o que Seis tomou? O
companheiro de Shota, Samuel. — disse ela para sua própria pergunta. — E
Samuel tem a Espada da Verdade, a espada que ele um dia carregou.
Ann parecia ter perdido o fio da história. — O que isso tem a ver?
— Para quê Samuel usou a espada? O que ele roubou? — Nicci
perguntou.
Os olhos de Ann ficaram arregalados. — Uma das Caixas de Orden.
— De uma Irmã do Escuro, — disse Nicci. — com a ajuda da Espada
da Verdade.
Ann virou um olhar afobado para Zedd. — Mas porque essa mulher,
Seis, iria querer Richard?
O olhar de Zedd virou para o chão enquanto ele esfregava as pontas
dos dedos sobre os vincos da testa. — Para abri r a Caixa de Orden correta, a
pessoa tem que possuir um livro muito importante. Acredito que vocês dois,
dentre todas as pessoas, deveriam estar bastante familiarizados com esse volume
em particular.
Nathan ficou de boca aberta ao perceber.
— O Livro das Sombras Contadas. — Ann declarou.
Zedd assentiu. — A única cópia daquele livro agora reside na cabeça
de Richard. Ele queimou o original depois que o memorizou.
— Temos que encontrá -lo primeiro. — Ann falo.
Zedd grunhiu com escárnio diante da mera suge stão, erguendo as
sobrancelhas em surpreso deboche, como se jamais pudesse ter chegado naquela
ideia sem a ajuda dela.
— Temos um problema mais urgente. — disse Nicci.
Cara, do outro lado do pequeno quarto, balançou seu Agiel. — Até
encontrarmos Lorde Rahl, não existe ligação.
— Sem a ligação, — Nicci falou. — todos nós estamos a mercê do
Andarilho dos Sonhos .
A percepção pareceu atingir Ann como um raio.
— Algo deve ser feito imediatamente. — adicionou Zedd. — A ameaça
é terrível e há pouco tempo. Se não agirmos, podemos perder essa guerra a
qualquer momento.
— Aonde você quer chegar? — Nathan perguntou, desconfiado.
Zedd olhou para o profeta sério. — Precisamos que você torne -se o
Lorde Rahl. Não ousamos arriscar que nosso povo fique sem a ligação p or ao
menos mais um momento. Então você deve partir imediatamente para o Palácio
do Povo.
Nathan ficou em silêncio, com expressão sombria. Ele era um homem
alto, com ombros largos. Com seu cabelo branco encostando naqueles ombros
ele exibia uma figura impo nente. Pensar em outra pessoa tomando o lugar de
Richard como Lorde Rahl deixava o coração de Nicci apertado.
Porém, a alternativa era permitir que o Andarilho dos Sonhos invadisse
as suas mentes. Ela sabia muito bem como era. Sabia como sua ligação com
Richard salvara não apenas sua vida, mas também mostrara a ela a alegria de
viver. Sua ligação com Richard não tinha sido a aceitação formal do governo do
Lorde Rahl, como era com o povo de D’Hara; ao invés disso, havia sido um
compromisso mais profundo com Richard, o homem. O homem que ela havia
amado quase desde o primeiro momento em que viu a centelha de vida nos olhos
cinzentos dele. Richard mostrou a ela não apenas como viver novamente, mas

265
como amar.
Ela engoliu a dor daquilo, de saber que jamais pode ria ter ele... pior,
de saber que o coração dele pertencia a outra, pertencia a alguém da qual ela
nem ao menos lembrava. Seria melhor se Nicci conseguisse lembrar dessa
Kahlan, saber que ela era inteligente, carinhosa, bela, porque então ela poderia
ficar feliz por Richard. Era difícil ficar feliz por ele quando ele amava um
fantasma.
— Entendo. — Nathan finalmente disse com sua voz forte.
Ann parecia possuir mil objeções, uma para cada ano de idade do
profeta, mas ela conseguiu engarrafá -las sob a rolha de sua percepção das
consequências de não ter um Lorde Rahl.
— O exército D’Haraniano não está longe do Palácio, — falou Nathan.
— logo eles terão que enfrentar a horda de Jagang. Acredito que você está certo
ao dizer que eu ajudaria melhor nossa causa s e eu estivesse lá.
Nicci ainda não tinha falado para qualquer um deles. Ela limpou a
garganta para ter certeza de que sua voz não falharia. — Richard falou com o
exército. Foi por isso que ele foi até D’Hara. Ele disse a eles que não poderiam
lutar contra a Ordem Imperial e ter esperança de vencer.
O rosto de Ann ficou vermelho. — Então o que ele espera que eles
façam! Se não lutar contra o exército da Ordem, então… o quê?
— Devastar o Mundo Antigo. — Nicci disse com sinistra determinação.
Zedd, Nathan, e Ann ficaram olhando silenciosamente para ela.
— Ele disse para fazerem o quê? — Zedd perguntou, incrédulo.
— Esse é o único jeito. — falou Nicci. — Não temos esperança de
destruir aquele exército. Richard pretende ao invés disso que o exército
D’Haraniano destrua a vontade deles de lutar. É a única chance que temos.
— Queridos espíritos. — Zedd sussurrou quando virou para outro lado.
Ele foi até a janela e ficou contemplando a noite. Finalmente ele virou, com
seus olhos cheios de lágrimas.
— Eu estive na posição dele. Tive que direcionar o nosso lado a fazer
coisas que tinham de ser feitas. — ele balançou a cabeça novamente. — O pobre
rapaz. Temo que ele esteja certo. Eu mesmo deveria ter enxergado isso. Acho
que eu não queria. Às vezes, é necessária solitária coragem para fazer o que
deve ser feito.
Cara avançou e ajoelhou sobre um joelho diante de Nathan. Ela
abaixou a cabeça.
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Zedd caiu sobre um joelho, assim como fez Rikka. Nicci fez o mesmo.
Finalmente, relutante, Ann os seguiu.
— Mestre Rahl seja nosso guia. — todos disseram em uníssono. —
Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na
sua misericórdia nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só
para servir. Nossas vidas são suas.
Nathan permaneceu altivo e silencioso, as mãos cruzada s, olhando para
as cabeças abaixadas, parecendo muito com o Lorde Rahl. Quando todos haviam
terminado a Devoção, todos levantaram, meio perturbados pela significância não
pronunciada daquilo que acabaram de fazer, ou daquilo que isso significava, que
Richard não era mais o Lorde Rahl.
— Está feito. — falou Cara. Ela testou a sensação de sua arma

266
vermelha nos dedos, contemplando -a com olhos azuis marejados. — Meu Agiel
está vivo outra vez. — ela sorriu de uma forma distante e triste. — A conexão
da ligação está inteira mais uma vez. Todos os D’Haranianos reconhecerão isso
e saberão que novamente temos um Lorde Rahl.
Nathan soltou um forte suspiro. — Pelo menos temos isso do nosso
lado.
— Nathan, — Zedd disse ao profeta. — você deve ir para D’Hara
imediatamente. Tem tropas da Ordem Imperial a largos passos a leste daqui para
D’Hara, ainda tentando encontrar um caminho na porta dos fundos. Mostrarei a
você algumas formas de contornar eles.
— Seria melhor ter um Lorde Rahl, o guardião da ligação, junto com
aqueles que agora estão sozinhos no Palácio.
— E quanto ao exército de Jagang? — perguntou Ann, parecendo
preocupada depois que Nathan assentiu concordando. — O que acha que Jagang
fará assim que ele descobrir que o exército D’Haraniano evaporou pouco antes
que ele pudesse fechar o seu punho em volta deles?
Zedd balançou os ombros. — Ele montará um cerco ao Palácio do
Povo. Verna e algumas das Irmãs dela estarão lá para ajudarem a defender o
lugar, mas o Palácio do Povo é construído na forma de um feitiço q ue amplifica
o poder de um Rahl e reprime os poderes dos outros. Verna e as Irmãs não serão
capazes de usar a força total de suas habilidades. Nesse momento Nathan é o
único Rahl que temos para ajudar a defender o Palácio e seu povo.
— É por isso que precisamos que Nathan parta imediatamente para o
Palácio. — disse Nicci.
— Esta noite. — complementou Zedd.
O olhar de Nathan moveu -se dos olhos de Zedd para os de Nicci. — Eu
entendo. Farei o melhor que puder. Vamos esperar que um dia Richard seja
capaz de tomar o seu lugar de volta.
Nesse momento, as palavras dele retiraram pelo menos um pouco do
peso do coração de Nicci.
— Estaremos trabalhando nisso. — Zedd garantiu.
— Pode contar com isso. — disse Nicci.
Cara apontou seu Agiel para o profeta. — E é melhor que você não
venha com alguma ideia louca em sua cabeça de que manterá o posto. Ele
pertence a Lorde Rahl.
Nathan ergueu uma sobrancelha. — Eu sou o Lorde Rahl agora.
Ela fez uma careta. — Você sabe o que eu quis dizer.
Nathan mostrou um lento sor riso.
Ann acertou nas costelas de Nathan com um dedo. — E não tenha
quaisquer ideias grandiosas, Lorde Rahl. Vou com você para ter certeza de que
não vai se meter em problemas.
Nathan balançou os ombros. — Acho que o Lorde Rahl poderia ter uma
assistente. Você servirá.

267
C A P Í T U L O 3 5

Após ficar deitado sobre o antigo chão de pedra frio nas profundezas
de uma floresta solitária durante o que pareceu uma eternidade, olhando
fixamente para o abismo negro, sem saber o que mais fazer, Richard fina lmente
sentou. Havia chamado a Sliph quase até ficar rouco, mas não houve resposta. A
Sliph desapareceu.
Richard colocou os cotovelos sobre os joelhos. Quando sua cabeça
abaixou, ele cruzou as mãos atrás do pescoço. Sentia como se tivesse perdido o
caminho e não soubesse o que fazer a seguir. Quantas vezes, desde que deixara
suas florestas em Hartland, ele havia sentindo -se assim, teve o pensamento de
que estava no fim de sua esperança? Sempre havia encontrado um jeito. Não
sabia se, dessa vez, ele consegu iria.
Enquanto crescia, Richard nunca soube que havia nascido com o Dom.
Nunca soube qualquer coisa sobre magia. Assim que descobriu que nascera com
o Dom, ele não quis isso. Queria apenas livrar -se disso, como se fosse uma
doença que havia sido transmiti da a ele. Queira apenas ser ele mesmo. Mas
finalmente ele aceitara o valor de suas habilidades e compreendeu que elas eram
parte de quem ele era. Afinal de contas, em muitas ocasiões, elas o ajudaram
não apenas a salvar sua própria vida, mas a de Kahlan e de muitos outros pelo
caminho. Seu Dom era uma parte dele, algo que não podia ser separado dele
assim como seu coração ou pulmões não poderiam ser removidos.
Agora, entretanto, de alguma forma ele perdeu o Dom.
No início, quando a Sliph disse que ele não tinha mais a magia
necessária para viajar, sentiu dificuldade em acreditar que uma coisa assim era
possível, que seu Dom realmente pudesse ter sumido. Ele tinha pensado que
devia ser um mal funcionamento da magia, algum tipo de anomalia. Na época em
que desejava ficar livre dele, havia perguntado como poderia livrar -se do seu
Dom e aprendeu que tal coisa simplesmente não era possível.
Ainda que para ele isso não parecesse concebível, Richard sabia que
era verdade. Ele sabia porque junto com seu Dom, ele p erdera sua habilidade de
lembrar do Livro das Sombras Contadas. Ele podia muito bem jamais tê -lo
memorizado, porque, junto com seu Dom, aquela memória repentinamente estava
perdida.
O Livro das Sombras Contadas era um livro de magia. Era necessário o
Dom para ser capaz de ler ele, e para lembrar até mesmo somente uma palavra
do texto. Sem o Dom, Richard não conseguiria ler livros de magia ou, moais
precisamente, lembrar das palavras tempo o suficiente para saber que havia
alguma coisa ali para ler. Sem o D om, livros de magia pareciam vazios. Agora
sua recordação do Livro das Sombras Contadas tinha sido apagada.
E agora ele tinha falhado em um teste do qual nem ao menos sabia que
estava participando. Não tinha nem mesmo certeza de qual havia sido o teste. D e
alguma forma, porém, ele falhou.
Ele sentiu como se tivesse falhado com Kahlan.
Não conseguia imaginar como aquelas palavras foram um teste de
Baraccus. Como elas poderiam testá -lo? Testá-lo em quê? Ele nem sabia de que
teste a Sliph podia estar faland o, então não tinha como descobrir como havia
falhado nele.

268
Ele gostaria de ter Zedd para ajudá -lo a descobrir, ou Nicci, ou
Nathan... alguém, qualquer um. Ele parou e perguntou a si mesmo quantas vezes
nessa noite ele desejou respostas, ajuda, que a salva ção viesse resgatá-lo.
Nenhum desses desejos foi satisfeito. Desejos, ele sabia, jamais eram
satisfeitos.
Lembrou a si mesmo que estava desperdiçando um tempo valioso
sentindo pena de si. Tinha que pensar, não ficar sentado esperando que alguma
outra pessoa surgisse e pensasse por ele.
Ele deitou de costas sobre a rocha e contemplou o dossel de galhos e
folhas acima e, além deles, as estrelas. Ele sorriu, zombando de si mesmo,
pensando que talvez uma estrela cadente fosse atender seus desejos. Colocou de
lado o pensamento dos desejos e concentrou sua mente na tarefa em questão.
Repassou a coisa toda em sua mente uma centena de vezes e isso ainda
não fazia sentido. Baraccus disse, através da mensagem deixada com a Sliph,
que ele não tinha as respostas que salvariam Richard. Entretanto, Baraccus
acreditava que Richard tinha dentro dele o que era necessário para vencer.
Baraccus falou a Richard para acreditar em si mesmo, e queria que ele soubesse
que ele acreditava em Richard, embora não tivesse usado o nome de Richard,
especificamente.
A mensagem, Richard concluiu, estivera direcionada àquele que
nasceria com o lado Subtrativo do Dom que Baraccus havia garantido que fosse
liberado do Templo dos Ventos, mas Baraccus não sabia o nome dessa pessoa,
não sabia, especificamente, quem essa pessoa seria. Pelo menos, Richard achava
que ele não sabia. Fazia mais sentido que Baraccus simplesmente falasse
diretamente, pessoalmente, sem usar nomes. A mensagem foi clara o bastante
sem ter que usar o nome da pessoa que eve ntualmente a escutaria. Isso criava
nela a sensação de um endereçamento direto.
Como aquilo poderia ser um teste? Como Richard poderia ter falhado
nele?
Ele suspirou com frustração quando arrancou um longo talo de grama
que crescia de uma das juntas nas pedras em um lado. Enquanto pensava no
assunto, ele amassou a macia base do talo de grama com os dentes da frente.
Poderia ser que a Sliph de algum modo tivesse recebido algum poder
de Baraccus, como o poder que ele transmitira a ela para agir em uma
emergência, de forma que ela pudesse enxergar se Richard tinha ou não o que
era necessário para ter sucesso? Poderia ser que essa capacidade fornecida para
a Sliph tivesse indicado a ela que Richard estivesse aquém do esperado de algum
jeito?
A fonte. Enquanto olhava para as estrelas, Richard ficou pensando
nisso. Ele dissera para a Sliph que já tinha ouvido de Shota aquelas mesmas
palavras e então, de repente, a Sliph encerrou a conversa com ele.
A Sliph poderia conhecer Shota? Talvez, na avaliação de Baracc us,
Richard não devesse estar associado a uma Bruxa. Talvez essa tenha sido a
razão pela qual Richard falhou... porque não estivera fazendo as coisas sozinho,
por si mesmo. Ele fez uma careta. Sentiu dificuldade em imaginar que Baraccus
não desejaria que ele trabalhasse com as pessoas, para encontrar respostas, para
resolver problemas.
Ele ficou repassando as palavras em sua mente, pelo menos, da melhor
forma que conseguia lembrar delas.
— “Lamento. Não sei as respostas para salvar sua visa. Acredite que,
se eu soubesse, eu as daria. Mas conheço o bem que há em você e acredito em

269
você. Sei que está em você o que é preciso para ter sucesso. Haverá momentos
em que vai duvidar de si mesmo. Não desista. Lembre -se de que acredito em
você, sei que você pode real izar o que é preciso. Você é uma pessoa rara.
Acredite em si mesmo”.
— “Saiba que acredito que você é a pessoa que pode fazer isso”.
Foi isso que a Sliph disse que era a mensagem de Baraccus. Richard
recordou, entretanto, que aquelas foram as mesmas pala vras que Shota dissera a
ele não fazia muito tempo, da última vez em que a vira, pouco antes dela partir.
Richard realmente não acreditava em coincidência. Nesse caso, ele
certamente não acreditava. Shota não poderia ter dito por acaso as mesmas
palavras que Baraccus dissera para a Sliph transmitir. A mensagem era longa
demais e detalhada demais, com características que eram idiossincráticas
demais.
Se esse era o caso, que não havia sido coincidência, e Richard tinha
certeza de que não era, então porque S hota teria usado exatamente as mesmas
palavras que Baraccus usou? Isso foi algum tipo de mensagem? Estaria ela
tentando dizer a ele alguma coisa? Alertá -lo sobre algo?
Se a Bruxa queria ter ajudado ele, então porque ela não o alertou sobre
o teste, e não disse a ele? Se ela não pudesse ter falado para ele a resposta,
poderia ao menos ter falado a ele qual seria o teste. Porém, Zedd geralmente
dizia que uma Bruxa nunca falava o que você queria saber sem dizer a você algo
que você não queria. Poderia ser iss o? Ele duvidava, uma vez que ela dissera a
ele muitas coisas terríveis naquele dia... coisas que acabaram ajudando ele a
finalmente descobrir o que tinha de fazer com o exército, ao invés de permitir
que eles lutassem contra Jagang em uma batalha final.
A coisa que o estava incomodando, porém, era que haviam frases na
mensagem que eram únicas: respostas para salvar sua vida; eu as daria; conheço
o bem que há em você; está em você o que é preciso para ter sucesso; saiba que
acredito que você é a pessoa. Tod as essas eram formas levemente incomuns na
maneira como as pessoas falam. Não eram drasticamente diferentes, mas eram
um pouco excêntricas, quase infantis, e ainda assim um tanto quanto formais de
uma forma simplista. Richard suspirou. Ele parecia não cons eguir definir a
coisa, mas havia algo distintamente não convencional no uso da linguagem
dentro daquela mensagem.
Com um gélido choque de percepção, ele lembrou.
Ele lembrou porque aquelas palavras pareceram tão inquietantemente
familiares quando Shota a s dissera. Foi porque já tinha ouvido aquelas mesmas
palavras.
Aquelas eram as exatas palavras que foram pronunciadas pelo fogo -
fátuo naquele fim de tarde do primeiro dia em que Richard havia encontrado
Kahlan.
Eles estavam dentro do Pinheiro Amigo. Kahlan perguntou se ele tinha
medo da magia e então, após aprovar a resposta dele, ela tirou uma pequena
garrafa redonda que continha o fogo -fátuo. O fogo -fátuo, Shar, havia guiado
Kahlan através da Fronteira, mas naquele momento ele estava morrendo. O fogo -
fátuo não conseguia viver longe de sua terra natal e daqueles da sua espécie. Ele
não tinha força suficiente para cruzar a Fronteira outra vez.
Richard lembrou de Kahlan dizendo, “ Shar sacrificou a vida para me
ajudar porque, se Darken Rahl conseguir o que ele quer, todos iguais a ele,
entre outros, morrerão ”.
O fogo-fátuo foi quem dissera a Richard pela primeira vez que Darken

270
Rahl estava atrás dele. Shar o alertara de que se Richard fugisse ele seria
capturado e morto. Richard agradeceu ao fogo -fátuo por ajudar Kahlan. Ele
disse a Shar que a vida dele havia sido prolongada porque Kahlan o impedira de
fazer algo tolo naquele dia. Ele disse a Shar que sua vida estava melhor por
conhecê-la, e agradeceu ao fogo -fátuo por ajudar a trazê -la em segurança
através da Fronteira.
Shar então falou que acreditava nele, e o restante, da mesma forma
como Baraccus declarou através da Sliph. Naquele momento ele tinha pensado
que as características levemente estranhas da pronúncia simplesmente eram
idiossincráticas de fogos -fátuos... e talvez realmente fossem, mas Baraccus
tinha usado aquelas mesmas palavras por uma razão.
Shota usou as mesmas palavras também... quer tenha sido
deliberadamente ou com inocente desconhecimento da fonte delas... sem dúvida
para ajudá-lo fazend o ele lembrar daquelas palavras de Shar. Provavelmente ela
não percebeu a real razão para dizer aquelas palavras, mas através de sua
habilidade elas pretendiam fazer ele pensar. Fazer ele lembrar. Foi
provavelmente apenas por causa da terrível visão que Ri chard tivera de Kahlan
testemunhando a execução dele que ele não havia conectado as palavras de
Shota com as mesmas palavras que ouvira do fogo -fátuo fazia anos naquela
noite. Aquela visão simplesmente havia suprimido tudo mais.
Richard escutou os sons da noite na floresta, de insetos zunindo, das
folhas sacudindo ao vento, e o de um Tordo distante, enquanto outra lembrança
começava a retornar em sua consciência.
Shar, o fogo-fátuo, tinha usado o nome dele sem que ele fosse
apresentado. Ele supôs que o fo go-fátuo pudesse apenas ter ouvido ele por acaso
enquanto estava na pequena garrafa na bolsa do cinto de Kahlan.
Ou poderia já saber o nome dele.
Os olhos de Richard ficaram arregalados o máximo que podiam quando
ele recordou algo mais. Ele perguntara ao fogo-fátuo porque Darken Rahl estava
tentando matá-lo, se era porque ele ajudou Kahlan ou se havia outros motivos.
Shar aproximara-se e perguntara, “Outros motivos? Segredos? ”.
Segredos.
Richard levantou com um pulo e gritou bem alto com o choque da
compreensão.
Ele pressionou os pulsos contra os lados da cabeça, incapaz de conter
outro grito.
— Eu entendi! Queridos espíritos, eu entendi!
Segredos.
Naquela época Richard pensou que o fogo -fátuo sabia sobre o dente
que Richard mantinha escondido sob a camisa, mas não era isso. Aquilo nada
tinha a ver com o dente. Shar estava perguntando a ele algo inteiramente
diferente. Estava oferecendo a ele sua primeira chance de recuperar o livro
secreto que Baraccus deixou para ele.
Mas aquilo aconteceu cedo dem ais. Richard ainda não estava
preparado.
Naquela vez Richard também tinha falhado no teste de Baraccus.
Falhou nele pela primeira vez naquela noite com o fogo -fátuo. Baraccus, porém,
provavelmente não tinha como saber quando Richard estaria pronto. Ele
precisava ter uma forma de testá -lo de tempos em tempos. Shota dissera aquilo
apenas porque Baraccus havia providenciado para que Richard tivesse nascido
com a habilidade, isso não significava que ele faria as coisas certas.

271
Baraccus não removera o livre ar bítrio dele... e assim, de tempos em
tempos, Baraccus precisava testar aquele que nasceu com aquela habilidade para
ver se ele havia aprendido a usá -la, para realizar as coisas que precisavam ser
realizadas, durante o caminho. Richard imaginou quantas outr as coisas
colocadas em seu caminho foram obra de Baraccus. Nesse momento, ele não
tinha como saber a resposta para essa pergunta.
Ele sabia que quando Sliph disse que ele falhou no teste, aquela foi ao
menos a segunda vez em que ele tinha falhado. O teste da Sliph era um teste
reserva, um teste repetido, para depois que Richard tivesse aprendido mais.
Depois que ele tivesse uma chance de saber quem ele realmente era.
Segredos.
Richard sentiu como se a sua cabeça pudesse explodir com o poder da
compreensão. Cada emoção que ele já tivera pareceu colidir reunindo -se,
revirando suas entranhas com a excitação e a ansiedade de tudo isso.
Ele atirou-se sobre o chão de pedra, as mãos agarrando a borda até que
suas articulações estavam esbranquiçadas.
— Sliph! Volte! Eu sei o que Baraccus queria dizer! Eu entendi! Sliph!
A meras polegadas de distância, metal líquido ergueu -se dentro da fria
luz prateada do luar, formando os traços da Sliph. Era uma visão
impossivelmente bela, refletindo as árvores balançantes e o próprio rosto del e
em distorções flutuantes da realidade.
A Sliph sorriu lentamente. — Você quer mudar a sua resposta, Mestre?
Richard queria beijar o rosto de mercúrio. — Sim.
A Sliph inclinou a cabeça para um lado. — O que você deseja
confidenciar a mim, Mestre?
— Um fogo-fátuo me falou aquilo antes. Não apenas Shota. — Richard
gesticulou com a frustração de tentar colocar tudo para fora de um vez só antes
que a Sliph pudesse dizer que ele não havia passado no teste. — Shota foi a
segunda. Foi um fo go-fátuo quem primeiro me falou aquelas mesmas palavras...
as palavras que Baraccus usou. Foi onde eu as ouvi primeiro. Era isso que
Baraccus queria que eu soubesse... que são os fogos -fátuos.
Richard quase esperou que braços prateados deslizassem em volt a do
seu pescoço e o puxassem para mais perto. — Algo mais, Mestre? — sussurrou a
Sliph com intimidade.
— Sim. Com aquela mensagem, Baraccus queria que eu percebesse que
aquilo que ele deixou... que deixou apenas para mim... está escondido com os
fogos-fátuos.
A Sliph chegou mais perto ainda, ainda exibindo a suave curva de um
sorriso. O olhar dela caiu sobre ele. Pela primeira vez, os lábios dela moveram -
se junto com suas palavras, sua voz saindo em um sussurro de rendição. — Você
passou no teste, Mestre. Eu estou satisfeita .
— Agora, existe uma primeira vez. — falou Richard.
A Sliph riu, um som tão claro e agradável quanto a luz do luar.
— Você conhece o lugar dos fogos -fátuos, Mestre?
Richard balançou a cabeça. — Não, mas Kahlan falou um pouco sobre
eles, sobre a terra natal deles. Kahlan é minha esposa. Ela viajou em você e
ficou satisfeita, mas você não lembra dela porque ela foi capturada por algumas
pessoas muito más que lançaram um feitiço para fazer todos esquecerem dela...
algo um pouco parecid o com o que fizeram com você. Estou tentando encontrá -
la antes que essas mesmas pessoas más possam machucar a todos.
— É disso que se trata. Foi por isso que Baraccus deixou algo para

272
mim... algo para ajudar em meus esforços.
— Entendo. Fico feliz por vo cê, Mestre.
— De qualquer modo, Kahlan falou para mim sobre o lugar onde os
fogos-fátuos vivem. Ela disse que é lindo.
— Assim Baraccus disse para mim também .
— Kahlan falou que você não pode enxergar os fogos -fátuos na luz do
dia, somente a noite. Acho que é por isso que são chamados de fogos -fátuos.
— Kahlan disse que eles são como estrelas, como estrelas caídas do
céu. Ela falou que é como ver estrelas entre a grama.
A Sliph assentiu diante da excitação dele. — Fico feliz que você esteja
satisfeito, Mestre.
— Você consegue ir até lá? Até o lugar dos fogos -fátuos... esse lugar
das estrelas caídas ao chão?
— Mesmo se você pudesse viajar, eu temo que não. — falou a Sliph. —
Baraccus determinou que esse portal de emergência fosse criado aqui por uma
razão. Ele não queria que eu fosse capaz de ir até a terra natal dos fogos -fátuos
porque ele não queria que qualquer pessoa soubesse que ele foi para lá. Ele
também não quis que esse se tornasse um destino, mas ao invés disso que
permanecesse um lugar remoto e secreto de estrelas caídas ao chão .
— Baraccus disse que esse portal não fica muito longe dos fogos -
fátuos, mas isso é o mais perto que consigo chegar deles. Ele não queria que eu
desse qualquer dica de que esse lugar existia, ou que algum dia divulgas se
qualquer coisa envolvendo meus futuros mestres. Foi a maneira dele de
proteger você. Foi por isso que eu não pude falar para seus amigos onde você
estava. Esse segredo e segurança também foram determinados como parte
daquilo que traria à tona as palavra s certas, da pessoa certa. Essa proteção
não apenas protegeu você, mas negando a você a ajuda de seus amigos o levou
a pensar por si mesmo. Pensar é aquilo que Baraccus disse que se
transformari a na chave para você.
A cabeça de Richard girava com tudo que estava aprendendo. Ele
chegou mais perto, buscando confirmar o que já sabia. — Você trouxe a espos a
de Baraccus, Magda, até aqui, não trouxe? E ela estava carregando alguma coisa
com ela.
— Sim. Esse é o lugar para onde eu trouxe Magda após a última vez
em que vi o meu Mestre Baraccus. Ela reparou a rocha, aqui, antes de retornar.
Aquela foi a última vez em que eu a vi. Ninguém esteve nesse lugar desde então .
— Você passou no teste, Mestre. Esse é o caminho para a biblioteca
secreta que Baraccus deixou p ara você.

273
C A P Í T U L O 3 6

Kahlan pisou cuidadosamente entre os escombros de antigas


construções que durante milênios haviam ruído e finalmente tombado, enviando
seções abaixo na colina íngreme. Pedaços empoeirados de tijolos e pedras
jaziam esp alhados por toda parte na terra seca em decomposição da ladeira.
Seria fácil tropeças e cair no escuro, e era uma longa descida. Jillian, uma forma
obscura ágil logo adiante delas, escalava tão facilmente quanto uma cabra das
montanhas. Irmã Ulicia, na fre nte de Kahlan, e as outras duas Irmãs, atrás dela,
bufavam e arfavam com o esforço da árdua subida. Independente do quanto
estivessem ansiosas para avançar, as Irmãs estavam ficando cansadas. Elas
frequentemente perdiam o apoio dos pés e escorregavam, quas e caindo do
penhasco.
Kahlan pensou que seria aconselhável esperar a luz do dia para
terminar a subida pelas ruínas da cidade de Caska. Porém, ela não estava
disposta a transmitir a elas esse conselho. As Irmãs faziam o que as Irmãs
queriam fazer e nada h avia que Kahlan pudesse fazer a respeito. No final, o
único resultado de qualquer sugestão que ela pudesse oferecer seria um
espancamento por interferir.
Kahlan ficaria feliz em ver qualquer uma das Irmãs cair e quebrar o
pescoço, mas ela sabia que as out ras duas não seriam um problema menor do que
todas as três. Para dizer a verdade, apenas uma das Irmãs já era mais do que
capaz de transformar a vida de Kahlan em um pesadelo de tortura. Qualquer uma
delas poderia facilmente usar o seu poder através da col eira de ferro no pescoço
de Kahlan para deixá-la em um estado de agonia insuportável. Então, ela subiu
sem comentar sobre a sabedoria de fazer tal coisa somente com a luz da lua.
Uma vez que a trilha de Jillian era tão traiçoeira, elas tiveram que
deixar os cavalos na base do promontório. Entretanto, havia certos itens que as
Irmãs não deixariam fora de suas vistas, muito menos deixariam para trás, e
então Kahlan foi obrigada a carregá -los, junto com quaisquer outras mochilas
que ela conseguisse aguentar. Era um esforço terrível levar a pesada carga
subindo na trilha escarpada. Jillian quis ajudar com algumas das mochilas, mas
as Irmãs recusaram -se a permitir, dizendo que Kahlan era uma escrava e
destinada a um trabalho de escrava. Ela disseram a Jillian pa ra preocupar -se em
guiá-las até Tovi. Kahlan sinalizou com os olhos para Jillian fazer o que as
Irmãs queriam e seguir adiante. Silenciosamente ela lembrou a si mesma que um
trabalho como esse apenas a tornaria mais forte, enquanto as Irmãs, evitando
qualquer esforço, somente ficariam mais fracas.
Kahlan queria permanecer forte. Algum dia precisaria de sua força.
Mas havia sido um longo dia e essa força estava esgotando -se.
Pelo menos elas estavam chegando perto do fim da jornada precipitada.
Logo as Irmãs estariam todas reunidas e então talvez elas parassem durante
algum tempo, ficassem um pouco menos tensas, um pouco menos raivosas.
Embora Kahlan estivesse ansiosa por um descanso de um dia ou dois, estava
preocupada com o que isso poderia significar.
As Irmãs deram a clara impressão de que esse deveria ser o fim da
jornada, o fim da sua luta, e o início de uma nova era. Kahlan não conseguia
imaginar o que isso poderia significar, mas isso a deixava bastante preocupada.

274
As Irmãs frequentemente conversavam entre si sobre a recompensa que as
aguardava estar quase em suas mãos. Mais de uma vez, Irmã Ulicia havia
declarado, em resposta para a impaciência das outras, “ agora não vai demorar
muito”.
Kahlan não fazia ideia de qual era o plano delas, que grande ev ento
estava prestes a tomar lugar, mas tinha certeza de que isso envolvia as caixas
que ela carregava em suas costas... as caixas de Lorde Rahl. As duas Irmãs logo
atrás mantinham cuidadosa vigília sobre aquelas caixas. Na noite anterior,
Kahlan ouviu as Irmãs dizerem que quando encontrassem Tovi, e a terceira
caixa, os preparativos começariam.
Kahlan suspirou de alívio quando finalmente elas alcançaram o topo da
inclinação íngreme, encontrando -se na base de um muro em decomposição. Em
alguns lugares barran cos haviam cedido e derrubado seções do muro. Kahlan deu
uma última olhada sobre a planície iluminada pela luz do luar longe lá embaixo
antes de seguir Jillian através de uma as escuras aberturas no muro. Uma vez
dentro da abertura embaixo do muro que aind a permanecia acima, Kahlan
descobriu que o muro era tão largo quanto uma casa pequena. Quaisquer que
fossem as pessoas que construíram um muro como esse deviam estar realmente
preocupadas com o que poderia vir atacá -las.
A trilha íngreme saiu do outro lad o do muro e conduziu -as entre casas
bem próximas. Muitos locais perto do limite haviam desmoronado ou estavam
inclinando e prestes a cair. O muro massivo mantivera a maior parte dos
escombros, mas em alguns lugares partes de construções caídas passaram por
cima do topo. Com o passar do tempo, tijolos quebrados, blocos, e massa
também haviam descido em barrancos.
Em pouco tempo elas encontravam -se em uma estreita rua entre casas
que estavam em melhor estado. A borda externa de estruturas pareciam ter
recebido o impacto do clima e como um resultado era a mais deteriorada. Do
confinamento das casas elas seguiram para dentro de um cemitério. Sob a luz do
luar essa era uma visão assombrosa. Estátuas projetavam -se aqui e ali como
fantasmas entre os mortos.
Caminhando entre os túmulos, Kahlan viu que mais alto as construções
estavam dispostas como um tapete infinito sobre a paisagem. No céu claro ela
avistou o corvo de Jillian, Lokey. A garota nunca declarou isso, aparentemente
esperando que as Irmãs considerassem que ele era apenas um pássaro selvagem,
mas quando Kahlan olhava em direção a ela Jillian às vezes sinalizava com os
olhos para cima. Lokey fazia acrobacias aéreas que teriam feito Jillian sorrir, se
as Irmãs estivessem olhando para outro lado. Ela pareci a uma garota procurando
alguma pequena razão para alegria entre a desolação diante do que havia recaído
sobre ela e seu avô por causa das Irmãs. Quando Irmã Armina notou o corvo
uma vez, ela pensou que era um abutre seguindo -as através da paisagem
desolada. Kahlan não corrigiu ela.
— Quanto falta? — Irmã Ulicia perguntou quando fez uma pausa entre
as lápides. Por alguma razão, Kahlan achou que ela parecia desconfiar de
Jillian.
Jillian apontou. — Não muito longe. Lá em cima, através daquela
construção. É a passagem para os mortos.
Irmã Cecilia bufou. — Passagem para os mortos. Tovi sempre teve uma
queda pelo drama.
Irmã Armina balançou os ombros. — Para mim, parece bastante
apropriado.

275
— Então continue. — Irmã Ulicia disse quando fez sinal para que a
garota voltasse a mover-se.
Jillian caminhou imediatamente, conduzindo -as para fora do labirinto
do cemitério e subindo dentro da cidade vazia. Kahlan não conseguia afirmar
apenas com a luz da lua, mas parecia que tudo... cada parede, telhado, rua, cada
parte de tudo... tinham a mesma cor de poeira e morte. O silêncio
fantasmagórico entre as construções envolvia a noite com uma estranha sensação
de imobilidade. Kahlan sentiu como se estivesse caminhando através do imenso
esqueleto de uma cidade, como se cada fragmento de tecido e vida tivessem sido
arrancados e tudo que restasse fossem ossos beges desmoronando.
Por uma larga rua que, pela aparência das paredes curvas de pedra
decorativas de cada lado, um dia devia ter sido linda, Jillian deslizou como uma
sombra através dos arcos em frente a uma das maiores construções. Dentro, era
difícil enxergar. Kahlan escutou os pés da garota esmagando pedaços de massa.
As Irmãs não pareceram notar o mosaico sob os pés. Onde a luz do luar banhava
o chão Kahlan podia ver pequenos ladrilhos desbotados que formavam uma
imagem de árvores, caminhos, e um muro cercando um cemitério. Havia até
pessoas no mosaico.
Contemplando a figura que cobria o chão enquanto levava sua pesada
carga, Kahlan tropeçou em uma seção de ladrilho q ue faltava e caiu de joelhos.
Imediatamente Irmã Ulicia acertou -a atrás da cabeça, derrubando Kahlan de
cara.
— Levante, sua vaca desajeitada! — Irmã Ulicia gritou quando chutou
Kahlan nas costelas.
Kahlan estava tentando, mas com o peso da carga sobre a s costas era
mais fácil falar do que fazer. — Sim, Irmã. — ela falou, arfando entre os chutes,
esperando ganhar tempo para levantar.
Jillian ficou entre elas. — Deixe ela em paz!
Irmã Ulicia ficou ereta com um olhar furioso. — Como ousa interferir.
Vou torcer o seu pescoço fino.
— Acho que deveríamos arrancar a pele dela viva, — disse Irmã
Armina. — e deixar o cadáver ensanguentado dela lá fora para os abutres.
Irmã Ulicia agarrou o colarinho de Jillian. — Saia da frente para que
eu possa ensinar uma li ção a essa vaca preguiçosa.
— Deixe ela em paz. — Jillian repetiu, recusando -se a recuar.
— Vamos simplesmente cortar a garganta da pestinha e acabar com ela.
— Irmã Cecilia reclamou. — Nós não temos tempo para isso. Agora podemos
encontrar Tovi sozinhas .
Sabendo que tinha de acalmar as Irmãs antes que elas executassem suas
ameaças de ferir a garota, Kahlan finalmente conseguiu levantar. Imediatamente
ela segurou o braço de Jillian e puxou -a para fora do alcance.
— Sinto muito... a culpa é minha. — disse Kahlan. — Podemos ir
agora.
Kahlan virou parcialmente para começar a andar, mas não deu um
passo. Sabia que era melhor não fazer isso sem permissão. Irmã Ulicia ficou
imóvel. Ela estava com um olhar assassino.
— Não até que ela veja você receber o tipo de lição que já estamos
devendo a você faz bastante tempo. — ela falou. — Você está ficando
acostumada demais a ser tratada com benevolência a cada transgressão sua.
— Você vai deixar Kahlan em paz. — falou Jillian um pouco atrás de
Kahlan, tentando não ser empurrada mais para trás.

276
Irmã Ulicia plantou os punhos nos quadris. — Ou o quê?
— Ou não mostrarei a vocês onde Tovi está.
— Sua criança tola. — Irmã Ulicia rosnou. — Nós já sabemos onde
Tovi está. Ela está aqui dentro. Você já nos conduziu até ela .
Jillian balançou a cabeça lentamente. — Tem milhas de passagens ali
embaixo. Vocês ficarão perdidas entre os ossos. Deixem Kahlan em paz ou não
mostrarei para vocês o caminho.
— Posso sentir Tovi. — falou Irmã Cecilia com um suspiro
desdenhoso. — Corte a garganta da garota. Agora estamos perto o bastante para
que eu consiga encontrar Tovi, apenas com o meu Dom.
— Eu também consigo sentir ela. — disse Irmã Armina.
— Sentir que ela está perto, — Jillian falou. — não significa que vocês
conseguirão encontrar a passagem correta para chegar até ela. Lá embaixo, lá
com os ossos, podem estar a uma curta distância dela mas se fizerem a curva
errada entre muitas que podem tomar, andarão milhas e nunca chegarão até ela.
Pessoas foram lá embaixo e morreram porque não conseguiram encontrar o
caminho de volta.
Irmã Ulicia cruzou as mãos, considerando, enquanto olhava com
desprezo para a garota.
— Não temos tempo para isso agora. — finalmente ela anunciou. — Vá
em frente. — ela disse para Jillian. Ela direcionou um olhar para as outras duas
Irmãs. — Logo, logo, acertaremos essa pontuação... junto com outras.
Ela virou de volta com uma expressão ameaçadora que fez Jillian
arregalar os olhos. — Você nos leva até Tovi ou ela pode acabar ficando
impaciente e começar a quebrar os ossos do seu avô… um de cada vez.
O rosto Jillian exibiu um repentino alarme. Imediatamente ela as levou
para dentro de um labirinto de passagens e salas através dos fundos da
construção. Havia lugares onde as passagens estavam abertas para a l uz do luar.
Em outro lugares estava apertado e negro como a morte. As Irmãs acenderam
pequenas chamas que pairavam acima das mãos delas para conseguirem
enxergar. Jillian pareceu assustada em descobrir que as mulheres podiam fazer
tal coisa.
Elas emergiram vindo da construção para dentro de outro cemitério.
Sem reduzir o passo, Jillian as conduziu pelo lugar dos mortos, entre elevações
cobertas por oliveiras retorcidas e fileiras de túmulos pontilhados por flores
silvestres. Finalmente ela fez com que elas parassem acima de uma lápida caída
de lado perto de um buraco escuro no chão.
— Descendo por esse buraco de rato? — perguntou Irmã Armina.
— Se vocês querem chegar até Tovi. — Jillian pegou uma lanterna do
lado da tampa de pedra e, depois que uma Irmã a cendeu-a, começou a descer.
Todas afunilaram-se dentro da escadaria estreita, seguindo Jillian. Os
antigos degraus de pedra eram irregulares, com suas bordas arredondadas e
desgastadas. Para Kahlan, com todo o peso que ela carregava nas costas, a
descida era traiçoeira. As Irmãs mantinham chamas ondulantes erguidas para
ajudá-las a enxergar. Em patamares todas viravam junto com os degraus e
continuavam cada vez mais fundo dentro do reino de túmulos.
Quando finalmente chegaram ao fundo a passagem abriu em corredores
mais largos que eram escavados na rocha sólida mas macia do próprio solo. Por
toda parte ao redor havia nichos escavados nas paredes rochosas. Kahlan notou
que todos aqueles recessos continham ossos.
— Cuidado com as cabeças. — falou Jillian po r cima do ombro quando

277
passou por um dos portais de um lado.
Todas agacharam quando passavam atrás dela e entravam em uma sala
com um teto tão baixo quanto o portal. Em cruzamentos Jillian fazia curvas sem
qualquer hesitação, como se ela estivesse seguind o uma trilha pintada no chão.
Kahlan notou que havia algumas pegadas na poeira, mas ela também viu pegadas
seguindo por muitos dos diferentes corredores. As pegadas eram maiores do que
aquelas que teriam sido feitas pelos pés pequenos da garota.
O corredor apertado finalmente abriu em câmaras mais largas. Elas
passaram por salas aparentemente infinitas cheias com pilhas de ossos
empilhados de forma ordenada. Outras, salas estreitas que estavam ladeadas com
nichos entupidos de ossos, como se tivessem começa do a ficar sem lugares para
colocar todos os mortos.
Havia várias salas cheias somente com crânios. Kahlan estimou que
devia haver milhares deles. Todos foram cuidadosamente encaixados dentro de
grandes nichos, cada crânio voltado para fora. Cada nicho es tava cheio até o
topo. Kahlan contemplou todos os olhos vazios que olhavam de volta para ela,
observando ela passar. Ela lembrou a si mesma que um dia essas coisas foram
pessoas. Um dia todas estiveram vivas. Cada uma foi um indivíduo vivo,
respirante, pensante. Um dia elas viveram vidas cheias de medos e desejos. Isso
lembrou a ela o quanto a vida era preciosa e breve, o quão importante ela era
porque uma vez que acabasse, para aquela pessoa isso era definitivo. Isso
lembrou a ela mais uma vez o motivo pel o qual queria sua vida de volta.
Com Jillian, Kahlan sentiu que agora tinha de volta uma conexão com
o mundo, com quem ela era. Quando Jillian viu e lembrou dela, Kahlan sentiu -se
um pouco mais viva, como se realmente fosse alguém, e sua vida tivesse
significado.
Elas passaram por salas com ossos de pernas empilhados em seus
próprios nichos, ossos de braços em outros. Longas caixas de pedra esculpidas
na base das paredes laterais alinhavam -se em algumas das salas. Essas caixas
guardavam ossos menores, tod os cuidadosamente arrumados.
Para Kahlan Separar os ossos de esqueletos dessa forma parecia uma
coisa estranha. Ela pensou que, certamente, seria mais respeitoso com os mortos
deixar os ossos dos mortos juntos. Era possível, ela supôs, que eles não tivess em
o luxo do espaço, já que empilhá -los desse jeito realmente economizava bastante
espaço. Talvez simplesmente fosse trabalho demais esculpir um nicho para
apenas um corpo, ou uma família, quando havia tantos mortos para enterrar.
Talvez tenha ocorrido uma grande doença que abateu uma grande porção da
população e eles pudessem ter sido enterrados com tais sutilezas.
A cidade dentro dos muros parecia bastante apertada. O espaço devia
ser um prêmio. Se as pessoas, e seus mortos, teriam que permanecer dentro dos
muros da cidade, os vivos deviam ter sido obrigados a fazerem concessões.
Esse parecia um problema estranho, uma vez que a terra ao redor da
cidade estendia -se vazia de horizonte a horizonte. Ela imaginou se poderia ter
sido uma época de guerra, quand o considerações sentimentais com os mortos
tiveram que ser abandonadas em favor das necessidades dos vivos. O
promontório parecia o lugar mais defensível dos arredores. Enquanto partes dos
muros estavam na borda dos íngremes desfiladeiros, eles sempre pode riam ter
aumentado a cidade mais para trás no promontório. Ela supôs que podia ser que
a expansão de tais muros massivos fosse considerado algo difícil demais.
Ela imaginou se podia ser também que as pessoas que um dia viveram
aqui simplesmente não tivess em os mesmos sentimentos pelos mortos que outras

278
pessoas tinham. Afinal de contas, qual significado real havia em ossos? A vida
havia partido deles. O indivíduo onde eles um dia estiveram não existia mais.
Era a vida, afinal, que realmente importava. O mun do deles acabara com as suas
mortes.
Mas as pessoas daqui deviam ter um apego aos ossos, com as pessoas
que eles tinham sido, levando em conta como teria sido difícil construir um a
cidade subterrânea como essa para os mortos. Kahlan notou também, os enfei tes
desbotados cuidadosamente desenhados e esculpidos ao redor dos nichos. Não,
os vivos importavam -se. Eles lamentavam por aqueles que morreram.
Ela pensou se, quando morresse, alguém lembraria de quem ela foi, ou
algum dia saberia que essa pessoa, Kahla n, um dia vivera, tinha amado a vida.
Ela sentiu uma estranha inveja de todos esses ossos. Amigos e parentes de cada
conjunto de ossos aqui embaixo nesse lugar conheceram as pessoas que eles
foram, sofreram por eles, e colocaram esses talismãs daquele valo roso indivíduo
para descansarem de uma forma em que os vivos lembrariam daqueles que
haviam partido.
Kahlan ficou imaginando o que teria acontecido a todas as pessoas que
viveram nesse lugar, com as pessoas que enterraram esses ossos. Ela imaginou
quem teria enterrado eles. Pois as construções vazias eram testemunhas
silenciosas de que ninguém restara. A não ser Jillian. De acordo com o que
Kahlan aprendeu, Jillian vivia com um pequeno grupo de pessoas nômades que
vinham até esse lugar de tempos em tempos.
Abruptamente elas chegaram a uma seção da passagem que parecia ter
desabado parcialmente, deixando o chão cheio de pedregulhos. Irmã Armina
agarrou o braço da garota. — Esse passeio pelas catacumbas está ficando
ridículo. É melhor que você não esteja nos fazendo andar sem rumo.
Jillian levantou um braço para apontar. — Mas estamos quase lá.
Venham e vocês verão.
— Está bem. — disse Ulicia. — Então vamos logo com isso.
Jillian contornou uma grande placa de pedra que parecia um dia poder
ter selado o que estava além. Havia fendas no solo onde ela havia sido
empurrada para o lado para liberar a passagem e permitir acesso ao que jazia
adiante. Quando Jillian entrou, Kahlan conseguiu ver que a lanterna dela
iluminou uma câmara com prateleiras esculpidas na r ocha sólida. As prateleiras
estavam todas cheias de livros. As cores das lombadas de couro estavam
desbotadas, mas parecia que um dia elas tiveram uma variedade de vermelhos
vivos e azuis escuros, com o restante de outras cores desde o verde pálido ao
dourado.
As Irmãs ficaram maravilhadas enquanto olhavam para todos os livros.
De repente elas estavam de bom humor. Irmã Armina soltou um assovio baixo
enquanto reduzia a velocidade para espiar as prateleiras ao redor. Irmã Cecilia
riu bem alto. Até Irmã Ulic ia sorriu enquanto passava os dedos sobre as
lombadas empoeiradas.
— Por aqui. — falou Jillian para fazer elas continuarem.
Elas seguiram alegremente a garota enquanto ela cruzava por uma série
de salas, a maioria pequenas e entulhadas, com prateleiras t odas cheias de
livros. Jillian seguiu caminho através de um conjunto de passagens esculpidas
na rocha macia, levando -as cada vez mais fundo dentro da biblioteca
subterrânea. As cabeças das Irmãs estavam girando, aparentemente perdidas
lendo os títulos que conseguiam distinguir enquanto caminhavam atrás de Jillian
e Kahlan. A luz da lanterna mergulhou em salas escuras pelas quais elas

279
passaram, revelando ainda mais livros.
— Maldita seja a luz. — sussurrou Irmã Ulicia para si mesma com
deleite. — Nós encontramos o Local Central em Caska. Esse é o lugar onde o
livro estará. Aposto que Tovi tem passado seu tempo procurando por ele.
— Aposto que ela já encontrou. — falou Irmã Cecilia, com a excitação
animando sua voz.
Irmã Ulicia sorriu. — Tenho uma sensação de que você está certa.
Através de um corredor mais finamente esculpido com o teto curvado
adornado com um mural de uma trepadeira que há muito tinha se transformado
em um fantasma daquilo que fora um dia, elas dobraram em uma esquina e
chegaram diante de portas duplas. As duas portas, entalhadas com padrões
simples de folhas de videiras, eram cada uma estreitas o suficiente para
formarem facilmente uma porta larga. Kahlan supôs que as duas portas tornavam
a entrada um pouco maior, por alguma razão.
— Eu sinto Tovi adiante... finalmente. — disse Irmã Cecilia com um
suspiro de alívio.
— Acho que deveríamos iniciar os rituais esta noite. — Irmã Armina
falou com uma voz borbulhante.
Irmã Ulicia assentiu quando colocou uma das mãos na maçaneta de
bronze. — Se Tovi conseguiu encontrar o livro... e aposto que a essa altura ela
conseguiu... então, com as três Caixas finalmente reunidas outra vez, não vejo
porque isso não pode ser iniciado imediatamente. — ela sorriu distraída. —
Quanto mais cedo o Guardião for l ibertado de sua prisão, mais cedo receberemos
nossa recompensa.
Kahlan imaginou se havia algum jeito para que ela pudesse arruinar os
planos delas. Tinha certeza de que assim que elas fizessem seja lá o que
pretendem fazer, não haveria retorno... para tod os. Ela pensou nas caixas que
estava carregando, e imaginou o que aconteceria se, quando as Irmãs estivessem
distraídas ao finalmente verem Tovi outra vez, ela esmagasse pelo menos uma
das caixas. Ela poderia até mesmo ter tempo para esmagar as duas.
Kahlan sabia que um ato como esse faria mais do que atrair a fúria
total das Irmãs; ela esperava que provavelmente elas a matassem. Mas então,
Kahlan tinha começado a acreditar que se as Irmãs tivessem sucesso, ela estaria
morta do mesmo jeito.
Irmã Armina aproximou-se. — E, como nossa primeira ação, acho que
deveríamos acertar uma velha pontuação. — a expressão dela ficou venenosa. —
Eu lembro muito bem de ter sido enviada para as tendas por aquele bruto
arrogante. Jamais esquecerei daquilo que os soldados de le tiveram permissão
para fazer conosco.
A testa da Irmã Ulicia franziu com um olhar assassino. — Oh, acho
que essa é uma pontuação que que todas nós teremos muito prazer em acertar. —
um sorriso sinistro surgiu no rosto furioso. Ela girou a maçaneta de b ronze. —
Vamos em frente com isso.

280
C A P Í T U L O 3 7

Irmã Ulicia abriu as portas e marchou para dentro da sala escura além.
— Tovi? O que você está fazendo no escuro... dormindo? — a irritação assumiu
o controle do seu tom. — Acorde. Somos nós. Fi nalmente chegamos até aqui.
Com as Irmãs na dianteira, carregando pequenas chamas acima de suas
palmas voltadas para cima, havia apenas luz suficiente para distinguir tochas ali
perto em suportes nas paredes de cada lado, mas não muito mais. As Irmãs
lançaram aquelas pequenas chamas nas tochas frias, acendendo elas com um
forte som. Quando as tochas ganharam vida, a luz inundou uma sala que não era
muito grande, com prateleiras escavadas na rocha com faixas coloridas das
paredes.
Do outro lado da pequena sala estava uma pesada mesa de madeira e
ferro. Na alta cadeira decoradamente esculpida atrás da mesa sentava um homem
robusto, seu queixo repousando sobre um dedão enquanto ele as observava.
Ele era o homem de aparência mais ameaçadora que Kahlan já tinh a
visto.
As três Irmãs congelaram no meio de um passo, seus olhos arregalados,
refletindo seu confuso, descrente, choque com o que estavam vendo diante
delas.
O homem poderosamente constituído sentado calmamente atrás da
mesa, observava as três Irmãs. El e não ter falado, não mover -se, e não parecer
sentir o mínimo de pressa apenas aumentava a palpável sensação de perigo na
sala. O único som era o do sibilar das tochas.
O homem, com braços musculosos massivos e um pescoço de touro, era
a personificação da ameaça pura. Sem uma camisa, seus ombros morenos
sobressaiam de uma pele de cordeiro que ficava aberta no meio, exibindo seu
peito nu e poderoso. Faixas prateadas envolviam seus braços em cima de bíceps
volumosos. Cada um de seus grossos dedos tinha um an el de ouro ou de prata,
como que proclamando abertamente que eram pilhagens ao invés de enfeites.
Sua cabeça raspada refletia pontos de luz das tochas bruxuleantes. Kahlan não
conseguia imaginá-lo com cabelo; isso teria diminuído a sua presença
intimidadora. Um anel de ouro na narina esquerda segurava uma ponta de uma
fina corrente de ouro que corria até outro anel a meia altura na orelha esquerda
dele. Ele estava bem barbeado a não ser por um bigode em forma de trança com
duas polegadas de comprimento que pendia dos cantos do seu sorriso afetado, e
outra trança no centro, sob o seu lábio inferior.
Tão assustador, tão formidável, tão impiedoso quanto o homem
parecia, eram seus olhos que exibiam o verdadeiro pesadelo. Não havia parte
branca neles. Ao invés d isso, eles estavam nublados com formas sombrias que
moviam-se em um mar de obscuridade. Ainda assim, não houve dúvida alguma
na mente de Kahlan quando o olhar dele pousou sobre ela. Aquele olhar fez ela
sentir-se nua. Ela pensou que seus joelhos poderiam c eder sob o peso do seu
pânico galopante.
Quando o olhar sinistro dele desviou para as Irmãs, Kahlan esticou o
braço cegamente, encontrando Jillian, e puxando -a de forma protetora para
baixo de um braço. Ela podia sentir a garota tremendo. Kahlan notou, po rém,
que Jillian não parecia surpresa em encontrar o homem na sala.

281
Kahlan não conseguia entender o silêncio das Irmãs, ou a inação delas.
Pela clara expressão de ameaça apresentada pelo homem, ela esperava que elas
já o tivessem incinerado nesse momento, só por segurança. As Irmãs jamais
foram tímidas a respeito de matar qualquer um que elas ao menos suspeitassem
que poderia ser um problema. Esse homem claramente era muito mais do que um
problema. Ele parecia capaz de esmagar os crânios delas em seu punho . O olhar
dele dizia que ele estava acostumado a ver tais coisas sendo feitas.
Atrás de Kahlan, dois homens corpulentos caminharam para fora dos
cantos escuros e fecharam as portas duplas. Eles também tinham aparência
ameaçadora, com tatuagens em espirais sobre seus corpos. Seus grandes
músculos estavam melados de suor e fuliginosos, como se eles nunca lavassem a
fumaça de fogueiras oleosas. Quando eles ficaram juntos diante das portas
fechadas, Kahlan conseguiu sentir o fedor do suor azedo em meio ao odor do
piche queimando.
Esses dois pareciam mais do que prontos para qualquer eventualidade.
Pesadas faixas de couro com espinhos de metal e uma variedade de facas
cruzadas sobre os peitos deles. Machados e maças que pendiam em seus cintos
de armas cintilava m sob a luz das tochas. Seus rostos também estavam cobertos
por espinhos de metal... em suas orelhas, sobrancelhas, e em seus dorsos nasais.
Quase parecia que eles tinham martelado pregos em partes dos seus rostos. Eles
também tinham as cabeças raspadas. O s dois homens não pareciam inteiramente
humanos, muito menos civilizados, mas ao invés disso uma deliberada
deturpação da noção de humanidade, exibindo aço, fuligem, e elementos de uma
besta.
Embora eles carregassem espadas curtas, eles não as sacaram.
Pareciam não sentir qualquer medo das Irmãs.
— Imperador Jagang… — a voz fraca da Irmã Ulicia foi desaparecendo
com abjeto terror.
Imperador Jagang!
O choque daquelas duas palavras sacudiu Kahlan até sua alma.
Havia algo no conceito dela a respeito desse homem, formado por ver o
exército dele de longe e por ter passado por alguns dos lugares que eles
atacaram, que fez Kahlan temer ele ainda mais do que as Irmãs. Em contraste
com as Irmãs, a masculinidade adicionava uma dimensão alienígena na natureza
da ameaça que ele projetava.
Até onde ela conseguia lembrar, elas tinham feito todo o possível para
ficarem longe de Jagang, e ainda assim aqui estava ele, bem na frente delas. Ele
parecia relaxado, como um homem que tinha tudo sob controle. Ele não parecia
ter preocupações. Nem mesmo as Irmãs do Escuro pareciam preocupá -lo.
Kahlan sabia que esse não era um encontro acidental. Isso havia sido
preparado.
Mais do que o medo de Kahlan de Jagang gerado pelas conversas das
Irmãs ouvidas por acaso e pelas tentativ as delas de evitarem o homem, tinha
mais alguma coisa, alguma coisa mais profunda, um pavor sombrio enraizado na
alma dela, quase como uma lembrança além do seu alcance sinalizada apenas
pela indistinta mas sinistra sombra dele.
Quando Kahlan olhou para o lado, viu que as Irmãs pareciam
congeladas no lugar, como se tivessem virado pedra. Elas também fiaram
pálidas.
Irmã Ulicia estava usando seu vestido azul, escolhido especialmente
para a reunião com Tovi. Agora ele estava sujo não apenas por causa da sub ida

282
ao promontório, mas por causa da descida ao interior dele. Irmã Armina usava
um vestido com babados brancos nos pulsos e no decote. Sob as circunstâncias,
em uma caverna empoeirada e diante de brutos lascivos, os babados pareciam
ingenuamente ridículos . Irmã Cecilia, mais velha, altamente controlada, e
habitualmente arrumada com o cabelo crespo grisalho, agora parecia à beira de
um salto para dentro do refúgio da loucura.
Os olhos ameaçadores de Jagang observavam as três Irmãs. Ele estava
saboreando o momento, Kahlan sabia, saboreando o terror delas. Se as Irmãs
fossem capazes de fazer qualquer coisa a respeito da situação, Kahlan tinha
certeza de que elas já teriam feito.
A língua da Irmã Armina saiu para umedecer os lábios. — Excelência.
— ela falou com uma voz baixa e tensa. Kahlan considerou aquilo como uma
tentativa patética de fazer uma respeitosa saudação, conspicuamente nascida do
pânico, não respeito.
— Excelência. — Irmã Cecilia declarou com voz não menos instável.
Somente em raras ocasiões Kahlan tinha visto as Irmãs cautelosas, até
mesmo preocupadas, mas nunca tinha visto elas com medo. Nunca tinha sido
capaz de imaginá-las ficando assustadas. Elas sempre pareceram em total
controle. Agora suas habituais disposições arrogantes haviam desapa recido.
Todas as três Irmãs fizeram reverência com movimentos hesitantes,
como três fantoches com fios.
Quando ela endireitou o corpo, Irmã Ulicia engoliu em seco com
trêmulo pavor. Independente do quão obviamente estava assustada, a confusa
curiosidade, assim como o silêncio insuportável, fizeram com que ela falasse.
— Excelência, o que está fazendo aqui?
O olhar feroz traiçoeiros de Jagang mais uma vez derreteu -se em um
sorriso diante do tom gentil, inocente, feminino, da pergunta dela.
— Ulicia, Uli cia, Ulicia… — ele suspirou pesadamente. — Você
realmente é uma vadia monumentalmente estúpida.
Todas as três mulheres caíram sobre um joelho como se tivessem sido
empurradas por um punho invisível. Baixos gemidos escaparam de suas
gargantas.
— Por favor, Excelência, nós não pretendíamos...
— Sei exatamente o que vocês pretendiam. Conheço cada detalhezinho
sujo de tudo que está em suas mentes.
Kahlan nunca tinha visto Irmã Ulicia intimidada, muito menos tão
abalada. — Excelência… eu não entendo…
— É claro que você não entende. — ele falou com uma risadinha
enquanto as palavras dela desapareciam no silêncio. — É por isso que vocês
estão de joelhos diante de mim, e não o contrário, que era justamente o que você
estava desejando, não era, Armina?
Quando o olhar dele desviou para Irmã Armina ela soltou um pequeno
grito assustado. Sangre escorreu dos ouvidos dela, deslizando em uma fina trilha
vermelha pela carne branca como neve de seu pescoço. Além do seu leve tremor,
ela não fez qualquer movimento.
Os braços de Jillian agarraram em Kahlan. Kahlan colocou uma das
mãos de forma protetora no lado do rosto da garota, pressionando -a mais perto,
tentando confortá -la quando não existia real conforto a ser fornecido diante de
um homem como esse.
— Então você também está com Tovi? — perguntou Irmã Ulicia, ainda
tão surpresa com a virada nos eventos que ainda não conseguia absorver.

283
— Tovi! — Jagang explodiu em uma risada mal humorada. — Tovi!
Ora, Tovi morreu faz muito tempo.
Irmã Ulicia ficou olhando aterroriza da. — Ela está morta?
Ele ergueu um braço e balançou a mão com um gesto de desdém. —
Finalmente foi enviada para a vida seguinte por um amigo mútuo, um amigo
muito infiel e traiçoeiro. Imagino que o Guardião do Submundo está bastante
furioso com a falha d e Tovi ao servir a ele. Vocês terão toda a eternidade para
descobrir o quão furioso. — o sorriso dele retornou quando ele olhou para a
mulher. — Mas não até que eu tenha acabado com vocês nessa vida.
Irmã Ulicia abaixou a cabeça. — É claro, Excelência.
Kahlan notou que Irmã Armina tinha urinado. Irmã Cecilia parecia
prestes a desabar em lágrimas... ou gritos.
— Excelência, — aventurou-se Irmã Ulicia. — como você pode…
quero dizer, com a nossa ligação.
— Sua ligação! — Jagang soltou uma risada novamente, batendo na
mesa. — Ah, sim, sua ligação com Lorde Rahl. A sua tocante lealdade a Lorde
Rahl que “protege” vocês dos meus talentos como um Andarilho dos Sonhos .
O coração de Kahlan ficou pesado quando ela ouviu que as Irmãs
estavam em algum tipo de alianç a com Lorde Rahl. Por alguma razão, ela havia
dado mais valor ao homem. Foi doloroso descobrir que estava errada.
— “Não somos nós quem está atacando Richard Rahl”. — ele disse
com uma voz em falsete, cruzando as mãos de uma forma zombeteira,
aparentemente citando alguma declaração do passado de Ulicia. — “Jagang é
quem vai atrás dele, procurando destruí -lo, não nós. Nós somos aquelas que
controlarão o poder de Orden e então garantiremos a Richard Rahl aquilo que
somente nós temos o poder para fornecer. Is so já é suficiente para preservar a
nossa ligação e nos proteger do Andarilho dos Sonhos .
Ele abandonou o fingimento afeminado. — A lealdade e devoção de
vocês a Lorde Rahl é tocante.
O punho dele bateu sobre a mesa. Seu rosto ficou vermelho de fúria. —
Vocês realmente acreditaram, suas vadias estúpidas, que uma ligação assim com
Lorde Rahl como vocês imaginaram as manteria livres dos danos?
Kahlan lembrou das Irmãs falando sobre a mesma coisa, e ela também
não conseguiu entender naquele momento. Porque R ichard Rahl teria alguma
relação com essas mulheres malignas, quanto mais entrar em um pacto com elas?
Uma coisa como essa poderia realmente ser verdade? Poderia ser que ele
realmente não fosse melhor do que elas?
Entretanto, uma coisa a respeito de tudo isso não parecia fazer
qualquer sentido. Se elas fizeram um juramento para ele, então porque
roubariam as caixas do Palácio dele?
— Mas a magia da ligação… — a voz da Irmã Ulicia foi sumindo até
silenciar.
Jagang levantou... um movimento que fez com que as três tremessem
mais ainda. Kahlan tinha certeza de que, se fossem capazes, elas teriam recuado
ao menos um passo e provavelmente mais.
Ele balançou a cabeça, como se não conseguisse acreditar que elas
pudessem ser tão ignorantes para não entenderem. — Ulicia, eu estava lá na sua
mente observando todo o infeliz evento. Eu estava lá naquele dia, faz anos, em
que você propôs o esquema a Richard Rahl. Tenho que dizer a você, eu
realmente não acreditei que você estivesse falando sério. Senti dificuldade em
acreditar que você poderia ser tão estúpida para acreditar que poderia fazer tal

284
barganha para conseguir ficar livre de mim.
— Mas devia ter funcionado.
— Não, não havia jeito para que uma coisa assim pudesse funcionar.
Não foi mais do que uma ideia irrac ional. Você queria acreditar que isso era
verdade, então acreditou.
— Você estava em nossas mentes naquele dia? — perguntou Irmã
Cecilia. — Porque você permitiria que nós acreditássemos que tivemos sucesso?
O olhar negro dele fixou -se nela. — Não lembra daquilo que falei a
vocês no início, no primeiro dia em que vocês ficaram diante de mim? Controle,
eu falei para vocês, é mais importante do que matar. Eu disse a vocês naquele
momento que poderia ter morto vocês seis, mas o que eu ganharia com isso
naquele instante? Enquanto estiverem sob o meu domínio, não são ameaça para
mim, e são úteis em, oh, tantas formas.
— Não, é claro que não lembra porque ao invés disso você escolheu
pensar que era esperta o bastante para me enganar enrolada, ilógica, noção da
ligação. Você pensa que é esperta demais para ser superada, e então aqui está
você diante de mim outra vez, nunca tendo escapado do meu domínio.
— E mesmo assim, você simplesmente deixou que nós… cuidássemos
de nossos assuntos? — perguntou Irmã Cecilia.
Jagang balançou os ombros quando caminhou contornando a mesa. —
Eu poderia ter impedido vocês a qualquer momento, se eu escolhesse. Eu sabia
que tinha vocês embaixo do meu dedão. Mas o que eu teria ganho? Apenas mais
algumas Irmãs do Escuro, e eu já tenho m uitas delas... embora os números delas
estejam seriamente reduzidos agora. — ele inclinou em direção a elas. — A sua
espécie tem uma tendência a morrer bastante em nome da causa da Sociedade da
Ordem.
— Mas com vocês, — Jagang disse quando levantou o corp o. — eu tive
algo altamente interessante. Eu tive Irmãs do Escuro que estavam a altura das
coisas. — ele bateu levemente com um dedo grosso em sua têmpora. — Que
tinham planos malignos, e o conhecimento para executá -los.
— Vocês possuem a experiência de u ma vida das câmaras no Palácio
dos Profetas, câmaras que guardavam milhares de livros que agora se foram.
Não importa o quanto seus planos às vezes tornam -se irracionais... observem a
sua presente condição... — isso não nega a sua reserva de conhecimentos
obtidos através de décadas de estudo, ou significa que cada um dos seus planos
sejam inviáveis.
— Então, você sabia de nossos planos o tempo todo? Desde aquele dia
com Richard Rahl?
Jagang olhou para Irmã Ulicia. — É claro que sabia. Eu soube do seu
plano no instante em que você o inventou. — a voz dele abaixou com tom
ameaçador. — Você pensou que eu só entro nos sonhos das pessoas. Não. Você
pensou que eu não estava lá, em sua mente, quando você estava acordada. Eu
estava. Uma vez que entro em sua mente, Ulicia, eu estou lá, em sua mente,
sempre.
— Seja lá o que você pense, sempre que pensa, eu testemunho isso.
Cada coisinha suja que você concebe, eu vejo. Cada pensamento, cada ação,
cada desejo vil, eu fico sabendo como se isso fosse declarado em voz alt a no
instante em que você pensa. Entretanto, porque eu não deixei você consciente da
minha presença, de forma ignorante você acreditou que eu não estava lá, mas eu
estava. — ele balançou um dedo grosso. — Oh, Ulicia, eu estava lá.
— Quando você contou a R ichard Rahl o seu plano, que você queria

285
jurar lealdade a ele em troca de alguém com quem ele se importava
profundamente, bem, eu mal pude acreditar que você achou que isso funcionaria.
Por alguma razão, Kahlan sentiu uma pontada de tristeza ao ouvir que
Richard Rahl tinha alguém com quem ele se importava profundamente. Ela
imaginou que desde aquele dia em que estivera no belo jardim dele, passara a
sentir uma conexão com ele em algum nível profundamente pessoal, mesmo que
fosse apenas o compartilhamento d e uma apreciação da beleza das coisas que
crescem, uma apreciação da natureza, e assim do mundo ao redor deles, o mundo
dos vivos. Mas agora ela estava ouvindo que ele estava negociando com Irmãs
do Escuro, e que ele tinha alguém com quem se importava prof undamente. Isso
fez ela sentir -se ainda mais como uma ninguém esquecida. Ela imaginou no que
poderia estar pensando.
— Mas… mas... — gaguejou Irmã Ulicia. — isso funcionou…
Jagang balançou a cabeça. — A fidelidade nos seus termos, fidelidade
embora você continuasse a trabalhar para a destruição dele, embora você
continuasse a trabalhar por tudo contra o que ele luta, fidelidade embora você
continuasse a ser juramentada ao Guardião do Submundo, fidelidade criada de
acordo com os seus desejos egoístas é só isso... desejos. Desejar não faz com
que seus desejos transformem -se em realidade só porque você quer.
Finalmente Kahlan sentiu um pequeno nível de alívio ao ouvir que as
Irmãs estavam continuando a trabalhar para a destruição de Lorde Rahl. Talvez
isso significasse que ele não era realmente um aliado das Irmãs. Talvez, de
algum jeito, ele estivesse como ela, sendo usado contra sua vontade.
— Eu mal pude acreditar enquanto ouvia você ditando os termos da sua
lealdade a ele, — Jagang estava falando, gestic ulando de uma forma grandiosa.
— declarando que tal fidelidade estava sujeita ao filtro moral que você, não ele,
aplicaria. Quer dizer, se você fosse inventar crenças do nada, Ulicia, então
porque simplesmente não poupou o trabalho e decidiu que apenas pel a força de
vontade a mente de vocês se tornaria impenetrável para um Andarilho dos
Sonhos? Isso também teria sido uma proteção eficaz.
Ele balançou a cabeça. — Ora, ora, Ulicia. Que coisa cruel por parte
da natureza da existência não satisfazer os seus de sejos irracionais.
Ele moveu um braço esticado. — E, que coisa incrível, o resto das suas
Irmãs também acreditaram nisso. Eu sei; eu estava lá nas mentes delas também,
observando enquanto elas eram dominadas pela alegria de que ficariam livres da
minha habilidade, só porque você afirmou que poderia entrar na ligação com
Lorde Rahl com a sua própria forma de lealdade.
— Mas você permitiu que fizéssemos isso. — falou Irmã Ulicia, ainda
sob o efeito da surpresa. — Porque não nos impediu?
Jagang balançou os ombros. — Eu tinha um monte de Irmãs embaixo
dos meus dedos. Essa era uma oportunidade interessante. Aprendo muito com o
conhecimento que outros possuem. Aprender coisas me dá um poder que de
outra forma não poderia ter.
— Apenas decidi ver o que vocês co nseguiriam fazer se as deixasse por
sua conta, ver o que vocês poderiam aprender para mim. Afinal de contas, eu
poderia ter eliminado qualquer uma de vocês a qualquer momento se eu ficasse
cansado do meu pequeno experimento. Houve momentos em que me senti
bastante tentado, como no instante, não faz muito tempo, em que Armina disse
“Adoraria amarrar Jagang e brincar um pouco com ele”.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Lembra disso, Armina? Não fique
preocupada se isso escapuliu da sua mente. Farei você lembrar de tempos em

286
tempos, só para refrescar a sua memória.
Irmã Armina levantou uma das mãos, como que em uma súplica. —
Eu... eu só estava…
Ele direcionou um olhar furioso para ela até que ela ficou em silêncio,
incapaz de proferir uma desculpa, e então pros seguiu.
— Sim, eu estava lá o tempo todo. Sim, eu vi tudo. Sim, eu poderia ter
impedido vocês a qualquer momento. Mas eu tenho algo que você não tem,
Ulicia. Eu tenho paciência. Com paciência você consegue mover montanhas... ou
contorná-las, ou escalar.
— Mas você poderia ter Richard Rahl bem ali, quando oferecemos a
ele nossos termos. Ou poderia ter acabado com ele no acampamento dele.
— Você também poderia ter acabado com ele no acampamento. Você
enfeitiçou ele, e tinha ele. Poderia ter acabado com ess a coisa toda. Então
porque não fez isso? Porque você tinha um plano maior, então deixou ele vivo,
pensando que sua ligação com ele era sua proteção, enquanto seguiu adiante
para perseguir algo de maior valor para você.
— Mas você não precisava dele. — ela insistiu. — Poderia ter acabado
com ele.
— Ah, mas embora matar pessoas como punição seja útil, não é tão
benéfico quanto o que você pode fazer com elas quando estão vivas. Vejam
vocês três, por exemplo. A morte não traz grande punição, somente a
recompensa da vida seguinte se você serviu ao Criador nessa aqui. Vocês três,
porém, não receberão a Luz do Criador. Que utilidade isso tem para mim? Mas
se uma pessoa está viva eu posso fazer ela sofrer. — ele inclinou, aproximando -
se. — Você não concorda?
— Sim, Excelência. — Irmã Ulicia conseguiu falar com uma voz
estrangulada enquanto sangue começou a escorrer do ouvido dela.
— Gostei de partes do seu plano. — disse ele quando endireitou o
corpo. — Acho que elas são muito úteis para o meu próprio objetivo... coisas
como as Caixas de Orden. Porque eu deveria matar Richard Rahl? Eu tenho a
oportunidade de fazer muito mais do que simplesmente matá -lo. Quero que ele
esteja vivo para suportar um sofrimento inconcebível.
— Deixando ele vivo naquele dia no acampame nto dele, do mesmo
jeito que vocês fizeram quando lançaram o seu feitiço Cadeia de Fogo , eu soube
que poderia usar essa nova oportunidade para tirar tudo dele. Uma vez que eu
estava em suas mentes, eu também fui protegido do feitiço Cadeia de Fogo, do
mesmo jeito que vocês.
— Agora, com tudo que você me deram, posso tomar de Richard Rahl o
seu poder, sua terra, seu povo, seus amigos, seus entes queridos. Posso tomar
tudo dele em nome da Sociedade da Ordem.
Jagang fechou o punho bem apertado diante de si e nquanto cerrava os
dentes. — Por opor-se a nossa justa causa, eu pretendo esmagá -lo até sua alma,
e então, quando eu tiver tirado tudo dele, causado a ele todo tipo de dor que
existe nesse mundo, vou extinguir a chama dessa alma. E vocês tornaram tudo
isso possível.
Irmã Ulicia assentiu com lágrimas diante de tudo que estava perdido
para ela. Ela parecia resignada com seu novo dever.
— Excelência, não podemos realizar nada disso sem o livro que viemos
procurar aqui.
Jagang retirou um volume da mesa e mos trou a elas para que pudessem
ver. — O Livro das Sombras Contadas. O livro que vocês vieram até aqui para

287
encontrar. Pensei em procurá -lo enquanto aguardava que vocês completassem a
sua jornada até aqui.
Ele atirou o livro de volta sobre a mesa. — Um livro incrivelmente
raro. Essa, é claro, é uma das poucas cópias que jamais deveriam ter sido feitas
e então estava escondida nesse lugar. Claro que eu estava lá, em sua mente,
quando você descobriu tudo isso.
— Você até trouxe para mim o meio de verificação. — o olhar
perturbador dele voltou -se para Kahlan. — E você tem uma coleira no pescoço
dela através da qual posso controlar ela. — ele direcionou um sorriso
condescendente para Irmã Ulicia. — Você entende, já que estou em sua mente
eu só preciso ordenar e através de você controlo cada movimento dela... tão
facilmente quanto você.
A esperança de Kahlan por uma chance de escapar evaporou. Se as
Irmãs eram mestres cruéis, esse homem era algo muito pior. Kahlan ainda não
sabia quais eram as intenções dele, mas não tinha ilusões de que elas seriam
outra coisa além de vis.
Um indício de algo mais começou a brotar na mente dela. Por alguma
razão ela era valiosa para as Irmãs e agora valiosa para Jagang. Como el a
poderia ser um meio de verificação de algum livro a ntigo escondido por
milhares de anos? Sempre disseram que ela era uma ninguém, uma escrava, e
nada mais. Estava começando a entender que as Irmãs estiveram mentindo para
ela. Elas só queriam que ela pensasse que era uma ninguém. Parecia, ao invés
disso, que de alguma forma ela era uma peça importante para todos eles.
Jagang balançou uma das mãos para Jillian. — Além da coleira, tenho
ela para me ajudar a convencer Kahlan aqui a fazer o que eu disser. Diga -me,
minha querida, alguma vez você já esteve com um homem?
Jillian espremeu-se contra Kahlan. — Você disse que libertaria meu
avô. Disse que se eu fizesse exatamente o que falou, e trouxesse as Irmãs aqui,
você libertaria ele e os outros. Eu fiz o que você mandou fazer.
— Sim, você fez. E você realmente foi muito convincente. Eu estava
lá, nas mentes delas, o tempo todo, observando a sua performance. Você seguiu
as minhas instruções perfeitamente. — a voz dele tornou-se tão ameaçadora
quanto seu olhar. — Agora responda a pergunta ou seu avô e os outros se rão
comida de abutre pela manhã. Alguma vez você já esteve com um homem?
— Não tenho certeza do que você quer dizer. — ela falou em voz
baixa.
— Entendo. Bem, se Kahlan não fizer tudo que eu disser para ela fazer,
você será entregue para meus soldados pa ra alegrar eles. Eles gostam de colocar
as mãos em coisinhas jovens como você que ainda não experimentaram…
desejos como os deles.
Os dedos de Jillian apertaram na camisa de Kahlan. Ela pressionou o
rosto contra o braço de Kahlan enquanto afogava um soluç o. Kahlan apertou o
ombro da garota, tentando confortá -la, tentando fazer ela saber que não deixaria
que alguma coisa ruim acontecesse a ela se pudesse evitar.
— Você tem a mim. — disse Kahlan. — Deixe ela em paz.
— Tovi tem a terceira Caixa. — falou Irmã Ulicia. Para Kahlan estava
claro que ela estava tentando enrolar, ganhar tempo, assim como insinuar -se
para Jagang.
Ele olhou com raiva para ela. — Foi roubada dela.
— Roubada? Bem… posso ajudá -lo a encontrá-la.
Jagang apoiou o traseiro sobre a mesa q uando cruzou seus braços

288
grossos. — Ulicia, quando você vai aprender que eu não estou apenas na sua
frente, mas dentro da sua mente também. Sei tudo que você está pensando. Mas
continue com os seus esquemas. Eles são bastante inventivos.
— E vocês sempre concebem alguns planos grandiosos, — ele disse
com um suspiro satisfeito quando chegou mais perto. — Vocês chegaram mais
longe com eles do que eu pensei que seriam capazes.
A voz dele assumiu um tom que gerou calafrios que subiram pela
coluna de Kahlan. — E olhem o que a minha paciência trouxe para mim. — ele
falou quando virou em direção a ela, fixando -a no olhar dos terríveis olhos
negros dele. — Vocês queriam saber porque deixei vocês vagarem livres por aí,
fazendo o que desejavam? Aqui está a resposta. Deixando vocês andarem por
sua própria conta, Ulicia, trouxe para mim o prêmio dos prêmios.
Agora Kahlan sabia que estivera correta. Por alguma razão ela era
valiosa. Ela gostaria de saber porque. Gostaria de saber quem realmente era.
Kahlan nada podia fazer a não ser observar enquanto Jagang reduzia a
distância até ela. Não havia para onde correr. Porém, apenas caso ela pudesse
ter pensado nisso, ela sentiu um choque de dor queimar descendo por sua
espinha e através de suas pernas, imobilizando -a no lugar. Ela sabia que era a
coleira causando a dolorosa paralisia, porque as Irmã já tinham feito essa mesma
coisa. Ele, é claro, saberia disso, porque estivera nas mentes delas o tempo todo
para ver isso sendo feito. Ela podia ver na expressão impiedosa dele que, dess a
vez, ele era o causador da dor.
Jagang esticou o braço e passou os dedos grossos pelo cabelo de
Kahlan. Ela não queria que ele a tocasse, mas nada podia fazer para impedir. Ele
pareceu esquecer todos na sala enquanto olhava para ela.
— Sim, Ulicia, você certamente trouxe para mim o prêmio dos
prêmios. Você trouxe para mim Kahlan Amnell.
Amnell.
Então agora ela sabia o seu sobrenome. Ela detectou a mais leve
hesitação após seu nome, quase como se um título devesse ter sido adicionado
ao seu nome.
Jagang inclinou bem perto com um sorriso obsceno que carregava um
significado que ela não queria considerar. Kahlan manteve posição por sua
própria vontade, mesmo se não tivesse qualquer escolha real. O poderoso corpo
musculoso de Jagang pressionou co ntra ela. Foi como sentir o peso de um touro
apoiando-se contra ela.
Com um dedo, o homem ergueu o cabelo dela para longe do pescoço. A
barba rala dele arranhou sua bochecha quando ele colocou a boca perto do
ouvido dela.
— Mas Kahlan não sabe quem ela é , nem mesmo sabe a verdadeira
natureza do prêmio que ela realmente é.
Pela primeira vez, Kahlan desejou que fosse invisível, que esse homem
não conseguisse enxergá -la do jeito que todos a não ser as Irmãs e Jillian não
conseguiam. Esse não era um homem qu e ela queria a reconhecesse. Esse era um
homem que ela não queria perto.
— Não pode começar a imaginar, — ele sussurrou intimamente com
uma voz que encheu-a de pavor. — o quão extraordinariamente desagradável
isso será para você.
— Você valeu minha paciência, valeu tudo que eu tive que aceitar de
Ulicia. Vamos nos tornar bem próximos, você e eu. Se acha que eu pretendo o
pior para Lorde Rahl, então não consegue ao menos imaginar o que eu tenho em

289
mente para você, querida.
Kahlan nunca sentiu -se tão sozinha, tão indefesa, em sua vida. Contra
sua vontade, ela sentiu uma lágrima rolar por sua bochecha mesmo quando ela
conseguiu conter um soluço fundo em sua garganta.

290
C A P Í T U L O 3 8

Assim que Jagang virou para outro lado e não estava mais olhando para
ela, Kahlan finalmente permitiu a si mesma engolir em seco com o silencioso
alívio de que ele estivesse com as mão longe dela, mesmo se tivesse tocado
apenas o seu cabelo. Um desamparo pavoroso espalhou -se através dela por ele
ter ficado tão perto. E la entendera totalmente o olhar que ele havia lançado.
Sabia que ele podia fazer qualquer coisa que desejasse com ela, e que ela estava
completamente à mercê dele.
Não. Ainda havia ar em seus pulmões. Não podia entregar -se a tal
crença. Não podia permitir a si mesma pensar que estava indefesa.
Precisava pensar, ao invés de simplesmente render -se ao pânico. O
pânico não ajudaria ela a realizar qualquer coisa. Talvez acabasse sendo verdade
que ela não tivesse controle sobre a sua própria vida, mas ela sabia que estava
perdida diante da vontade dele se aceitasse o cego controle do pânico. Isso era o
que ele queria que ela fizesse.
Do outro lado da sala, na pesada mesa, Jagang puxou o livro para mais
perto. Abriu a capa e então inclinou sobre as duas mãos enq uanto olhava
silenciosamente para ele. A forma arredondada dos largos ombros dele, costa
musculosa, e pescoço grosso parecia mais como de um touro do que de um
homem. As coisas que ele usava serviam apenas para aumentar sua aparência
menos do que humana. E le, e seus homens, pareciam evitar deliberadamente o
manto dos mais nobres ideais da humanidade e ao invés disso abraçar o mais
básico aspecto animalesco. A aspiração em direção da forma mais inferior de
existência, em detrimento da mais alta, revelava uma dimensão elementar da
clara ameaça que esses homens representavam; eles aspiravam ser não homens,
mas algo menos.
Não muito longe na frente das portas, os dois soldados enormes
permaneciam em silêncio com seus pés afastados e as mãos cruzadas atrás das
costas. Kahlan descansou uma das mãos sobre o ombro de Jillian quando a
garota olhou com silenciosa ansiedade por estar na presença de homens como
esses, que, de vez em quando, direcionavam olhares sombrios em direção a ela.
Os dois guardas não viam Kahlan . Pelo menos, ela achava que eles não
viam. Ela observara o comportamento deles e notou que de tempos em tempos,
além de olharem para Jillian, eles olhavam para as Irmãs, mas sem muito
interesse. Quando Jagang falou com Kahlan os guardas pareceram um pouco
confusos. Eles nada disseram, mas Kahlan sabia que, para eles, devia ter
parecido que seu líder estava falando sozinho. Como todos a não ser Jillian, as
Irmãs, e Jagang através de sua conexão com as Irmãs, os guardas esqueciam
Kahlan antes que soubessem q ue tinham avistado ela. Ela gostaria de poder ser
tão invisível assim para o líder deles.
— E quanto ao seu exército, Excelência? — perguntou Irmã Ulicia,
ainda tentando ganhar tempo conversando com ele. Ela também estava tentando
não entregar-se ao pânico.
Jagang olhou por cima do ombro com um sorriso perverso. — Eles
estão perto.
Surpresa, Irmã Ulicia piscou. — Perto?
Ele assentiu, ainda sorrindo. — Logo após o horizonte ao norte,

291
entrando em D’Hara.
— Ao norte... entrando em D’Hara! — Irmã Armina falou bruscamente.
— Mas isso não é possível, Excelência.
Ele levantou uma sobrancelha, claramente saboreando a surpresa delas.
— Eles devem estar errados em seus relatórios a respeito da sua
localização, — falou Irmã Armina, soando como se estivesse agarr ando uma
oportunidade para insinuar -se ao Imperador. Ela lambeu os lábios. — O que eu
quero dizer, Excelência, é que, nós, bem, nós passamos por eles faz tempo. Eles
ainda estavam em Midlands, ainda seguindo seu caminho ao sul para
contornarem as montanhas . — Eles não poderiam ter conseguido…
As palavras trêmulas dela foram sumindo, como se olhar para Jagang
tivesse drenado toda a coragem dela, até mesmo a coragem para falar, até que
ela fosse deixada como uma concha silenciosa.
— Oh, mas eles já contornar am as montanhas descendo até aqui e
fizeram a curva para o norte, para dentro de D’Hara. — falou Jagang. — Veja
bem, eu influenciei as suas mentes para direcioná -las para o lugar aonde vocês
queriam ir, quando eu quisesse que vocês fossem para lá. Era meu objetivo fazer
vocês pensarem que estavam em segurança, que sabiam onde eu estava. Vocês
jamais ouviram meus sussurros, mas esses sussurros ainda guiaram vocês sem
que vocês ao menos estivessem conscientes disso.
— Mas vimos as suas tropas. — disse Irmã Cecilia. — Nós as vimos e
contornamos elas. Deixamos elas para trás.
— Vocês viram o que eu queria que vocês vissem. — Jagang falou com
um gesto de desdém. — Vocês pensaram que estavam indo para onde queriam,
mas na verdade estavam indo para onde eu as gui ava... direto para mime minha
força principal.
— Fiz vocês passarem por várias divisões de retaguarda e então por
algumas unidades que seguiam para o sul, para outras áreas em Midlands. Eu
estava fazendo vocês acreditarem naquilo em que eu queria que você s
acreditassem, garantindo que vocês sentissem confiança em seus planos,
enquanto eu providenciava para que o exército principal prosseguisse com meus
planos.
— Nossos forças chegaram muito mais longe do que vocês imaginaram.
Quero acabar com essa guerra e posso ver que esse objetivo finalmente está ao
alcance, então ajustei minhas táticas de acordo. Marchar com a forma principal
a um ritmo tão extenuante é algo que eu não costumo fazer porque isso desgasta
um exército e custa muitos homens, geralmente sem propósito, mas agora o fim
está a vista de modo que isso vale as perdas. Além disso, eles estão ali para
servirem à causa da Ordem, não o contrário.
— Entendo. — Armina disse em voz baixa, desanimada ao aprender
mais a respeito do completo engano delas e do seu dilema.
— Agora, nós temos trabalho.
Abruptamente as três Irmãs saltaram adiante, como se fossem puxadas
para mais perto por correias invisíveis nos pescoços. — Sim, Excelência. —
todas as três falaram juntas. Aparentemente, Jagang tinha rosnado uma ordem
silenciosa que somente elas puderam ouvir, provavelmente apenas para lembrar
a elas de que ele estava ali, em suas mentes.
Ocorreu a Kahlan que ele podia controlá -la pela coleira em volta do
pescoço dela, através do controle das mentes das Irmãs , mas não parecia que ele
fosse capaz de controlá -la diretamente. Além de meramente ter algum ódio
básico por ela, ele também pareceu estar tentando paralisá -la com o medo, como

292
um dos aspectos para controlar o comportamento dela ao impedir que ela
pensasse... além de usar a coleira e as Irmãs. Parecia que enquanto ele estava de
alguma forma dentro das mentes das Irmãs, ele não estava dentro da mente de
Kahlan.
É claro, ela não podia ter certeza disso. Afinal de contas, as Irmãs
foram enganadas para que pe nsassem a mesma coisa... que o Andarilho dos
Sonhos não estava lá, nas mentes delas, observando cada pensamento. Então,
ainda que tivesse que assumir que isso era uma possibilidade, ela simplesmente
não achava que fosse verdade que ele estivesse na sua men te também. Porém,
havia mais; ele a estava ameaçando de uma forma diferente da qual usava para
ameaçar as Irmãs. Elas eram cativas traiçoeiras; Kahlan era um prêmio.
Ele as enganara por um propósito. Em essência ele estava espionando
os pensamentos delas. Elas estavam tramando coisas e ele queria captar
furtivamente esses planos para que pudesse usá -los em seu próprio benefício.
Ele sabia que Kahlan não restava pensando em outra coisa além de querer
escapar das Irmãs. Ela não tinha planos além disso. Ela n em recordava quem
realmente era. Nada havia para Jagang espionar dentro de sua mente. Tinha que
ser óbvio que ela também não queria ser prisioneira dele, que ela queria sua
vida de volta. Então, nada havia que ele realmente pudesse aprender espiando
secretamente os pensamentos dela... pelo menos, ainda não, não a menos que ela
tivesse começado a pensar ao invés de ficar cega com o pânico.
Mas se ele realmente não estava em sua mente, então porque não
estava? Ele era um Andarilho dos Sonhos , afinal, um home m com tanto poder
que as Irmãs estiveram tentando permanecer longe dele... sem sucesso, como
acabou acontecendo, precisamente por causa da habilidade e do poder dele. Ele
queria muito Kahlan como seu “prêmio dos prêmios”, como ele a chamara. Se
ele estivesse em sua mente poderia ter controlado ela com a mesma correia
invisível que usou para controlar as Irmãs e não ter que usar as habilidades
delas para fazê-lo. Ele não parecia o tipo de homem que recorreria a tal método
secundário de controle se não tivess e que fazê-lo. Ele não precisaria das Irmãs
para controlar ela se pudesse entrar em sua mente.
Qual seria o sentido, agora, em não tornar conhecida sua presença na
mente dela, se ele realmente pudesse fazer isso? Mais material ainda, se ela era
tão import ante para ele, certamente ele desejaria ter esse meio de controle se
fosse possível, então porque ele não era capaz de entrar na mente dela e
controlar ela diretamente?
Tinha mais alguma coisa acontecendo. Ela estava com a distinta
impressão de que havia coisas que ele estava tomando cuidado para não falar.
— Então é isso. — ele disse para as Irmãs. — Esse é o Livro das
Sombras Contadas. Foi por isso que vieram até aqui, o que vocês precisam.
Quero começar imediatamente.
— Mas Excelência, — falou Irmã Ulicia, parecendo assustada com a
simples ideia. — nós só temos duas das Caixas. Precisaríamos das três.
— Não, não precisam. Só precisam usar esse livro para descobrir se
uma das duas Caixas que temos aqui é aquela da qual realmente necessitam. Se a
Caixa que falta for aquela que nos destruiria, ou destruiria tudo que existe,
então porque precisaríamos dela?
Irmã Ulicia parecia ter boas razões para porque precisaria dela mas
realmente não queria discutir a questão.
— Bem, — disse ela, procurando as palavr as certas. — eu suponho que
isso pode muito bem ser verdade. Afinal de contas, na verdade nós ainda não

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tivemos chance de estudar o Livro das Sombras Contadas, então não podemos
ter certeza. As outras referências poderiam estar erradas. Afinal, foi por iss o
que estávamos vindo para cá. Nós precisávamos do livro. Poderia ser como você
diz, Excelência, que na verdade não precisemos da terceira Caixa.
Estava óbvio para Kahlan que Irmã Ulicia não acreditava em tal coisa.
Jagang não pareceu preocupado com a dúv ida dela.
— E aqui está ele, esperando. — ele apontou para o livro sobre a
pesada mesa. — Assim que vocês estudarem esse livro, então poderão dizer qual
Caixa é qual... qual é aquela de que precisamos. Se acontecer dessas duas
Caixas serem as Caixas errad as, talvez até lá a terceira apareça.
As Irmãs hesitaram em concordar com a ideia dele, mas não pareciam
dispostas a oferecer qualquer argumento.
Finalmente, após olhar para as outras, Irmã Ulicia admitiu o valor da
sugestão dele. — Nenhuma de nós já tin ha visto esse livro, então
precisaremos… aprender o que pudermos com ele. Acho que você está certo,
Excelência. Estudar o livro seria prioridade.
Jagang inclinou a cabeça em direção ao livro sobre a mesa. — Então
mãos à obra.
As Irmãs aproximaram -se e inclinaram, contemplando com reverência
pela primeira vez o livro que elas buscaram durante tanto tempo. Elas leram em
silêncio, com Jagang de olho nelas assim como no livro.
— Excelência, — Irmã Ulicia falou após um breve exame. — parece
que nós não poderí amos simplesmente… começar, como você disse.
— Porque não?
— Bem, olhe aqui. — ela bateu com o dedo sobre a página. — Bem
aqui no início, isso confirma aquilo que previamente tivemos razão para
suspeitar, que há salvaguardas contra qualquer eventualidade . Isso diz que você
precisa…
Ela ficou em silêncio quando olhou por cima do ombro para Kahlan.
— Bem, — ela prosseguiu. — aqui no início diz. — “A verificação da
verdade das palavras do Livro das Sombras Contadas, quando feita por outra
pessoa, não lida por quem comanda as caixas, só pode ser garantida com o uso
de uma…” Bem, Excelência, você pode ver por si mesmo o que diz.
Estava claro para Kahlan que a mulher estava evitando dizer algo em
voz alta. Jagang também leu em silêncio.
— E daí? — ele perguntou. — Isso está sendo lido por aquele que
comanda as Caixas. Isso está sendo lido por mim, através de vocês. Agora eu
controlo as Caixas.
Irmã Ulicia limpou a garganta. — Excelência, quero ser perfeitamente
honesta com você...
— Eu estou na sua mente, U licia. Seria impossível para você ser
qualquer coisa a não ser perfeitamente honesta. Sei que você duvida da minha
ideia, mas não está disposta a expressar esses pensamentos em voz alta. Então,
como você sabe, eu estaria ciente se você estivesse tentando m e enganar.
— Sim, Excelência. — ela apontou para o livro. — Mas veja bem, essa
é uma questão muito técnica.
— O que é?
— A questão da verificação, Excelência. Esse é um livro instrutor
sobre a implementação de assuntos profundamente complexos. Essas coi sas não
são apenas profundamente complexas, mas profundamente perigosas... para
todos nós. Então, por essa razão, é crítico prestar total atenção naquilo que esse

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livro diz. Esse não é um assunto a ser abordado casualmente. Você não pode
presumir qualquer coisa. As coisas que esse livro diz são excepcionalmente
específicas por boas razões. Você tem que pensar em cada palavra, cada
sentença, cada fórmula. Tem que considerar cada possibilidade. Todas as nossas
vidas dependem da maior cautela nesse assuntos.
— O que há de tão técnico nisso? Diz muito claramente “A verificação,
quando feita por outra pessoa”. Não está sendo feita por outra pessoa. Nós
estamos lendo diretamente.
— Essa é a questão exata, Excelência. Nós não estamos lendo
diretamente.
O rosto de Jagang ficou vermelho de raiva. — Então o que você acha
que nós estamos fazendo aqui!
Irmã Ulicia engoliu ar, como se uma mão invisível tivesse segurado ela
pela garganta. — Excelência, você comanda as Caixas agora. Mas não está
realmente lendo o Livro das Sombras Contadas.
Ele inclinou em direção a ela de uma forma ameaçadora. — Então o
que eu estou lendo?
— Uma cópia. — ela falou.
Ele fez uma pausa. — Então?
— Então, nesse caso, você não está, tecnicamente, lendo o Livro das
Sombras Contadas . Está lendo uma cópia dele. Você está, em essência, lendo
algo dito por outra pessoa.
A testa dele franziu. — Então quem é que está lendo?
— Aquele que fez a cópia.
Jagang endireitou o corpo quando a compreensão surgiu em sua
expressão. — Sim… esse não é o o riginal. De certo modo estou ouvindo isso
daquele que fez a cópia. — ele coçou a barba rala. — Então isso deve ser
verificado.
— Exatamente, Excelência. — disse Irmã Ulicia, visivelmente aliviada.
Jagang olhou para trás por cima do ombro, para Kahlan. — Venha aqui.
Kahlan apressou -se em fazer como ele ordenou, não querendo receber
sofrer dor em uma luta que ela sabia que ele venceria facilmente. Jillian seguiu
colada ao lado dela, aparentemente não querendo ser deixada sozinha para trás
perto dos dois gu ardas ameaçadores.
A grande mão de Jagang agarrou atrás do pescoço de Kahlan. Ele
puxou-a para frente forçadamente e curvou -a em direção ao livro.
— Olhe para isso e diga se é genuíno.
Depois que ele a soltou, Kahlan ainda podia sentir a dolorosa
impressão dos dedos poderosos onde ele havia apertado seu pescoço. Ela resistiu
contra a vontade de esfregar sua carne latejante e ao invés disso pegou o livro.
Kahlan não fazia a menor ideia de como dizer se um livro que ela
nunca tinha visto era genuíno ou não . Não tinha ideia do que indicaria a
autenticidade. Porém, ela sabia que Jagang não aceitaria tal desculpa. Ele
importava-se apenas em receber uma resposta; ele não iria querer ouvir que ela
não sabia essa resposta.
Decidindo que ao menos tinha que tentar , ela começou a folhear as
páginas, tentando fazer parecer que estava efetuando um honesto esforço quando
realmente nada mais estava fazendo além de folhear páginas em branco de um
livro aberto sobre a mesa diante dela.
— Sinto muito, — finalmente ela fal ou, incapaz de pensar em qualquer
coisa para dizer a ele além da verdade. — mas ele está todo em branco. Não há

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nada para que eu verifique.
— Ela não consegue enxergar as palavras, Excelência. — disse Irmã
Ulicia baixinho, como se isso dificilmente fosse uma surpresa para ela. — Esse
é um livro de magia. É necessário uma conexão intacta com tipos específicos de
Han para ler ele.
Jagang olhou para a coleira no pescoço de Kahlan. — Intacta. — ele
olhou desconfiado dentro dos olhos dela. — Talvez ela esteja mentindo. Talvez
apenas não queira dizer para nós o que ela vê.
Kahlan imaginou se essa era uma confirmação de que ele não estava
em sua mente, ou se por alguma razão ele ainda estava executando uma farsa
criada cuidadosamente. Para ela não parecia que a esse ponto tal reserva em
revelar uma presença na mente dela, se realmente houvesse uma, serviria a
algum propósito. Afinal de contas, as caixas, e o livro, eram a razão central para
todo o engodo contra as Irmãs. Ele havia usado sua presença secreta
especificamente para trazê -las até aqui, até esse livro.
Abruptamente Jagang agarrou Jillian pelo cabelo. Jillian soltou um
grito surpreso mas breve. Obviamente ele a estava machucando. Ela fez o
melhor que podia para não fazer força contra a mão que segurava seu cabelo, ou
ele poderia arrancar seu escalpo.
— Vou arrancar um dos olhos dessa garota. — Jagang falou para
Kahlan. — Então perguntarei mais uma vez se o livro é genuíno ou não. Se eu
não receber uma resposta... por qualquer que seja a razão... então a rrancarei o
outro olho dela. Perguntarei uma última vez, e se mais uma vez você não der a
resposta, então arrancarei o coração dela. O que você tem a dizer a respeito
disso?
As Irmãs permaneceram mudas enquanto observavam, sem fazerem
qualquer movimento p ara interferir. Jagang sacou uma faca de uma bainha no
cinto. Jillian começou a ofegar de terror quando ele girou -a, passando o braço
bem firme pela garganta dela, segurando -a contra o peito para deixá -la indefesa
e mantê-la imóvel enquanto levava a ponta da faca perigosamente perto do rosto
dela.
— Deixe eu ver o livro. — disse Kahlan, esperando evitar o
irrevogável.
Com o dedão e um indicador livre da mão que segurava a faca, ele
pegou o livro e entregou a ela. Kahlan folheou as páginas mais cuidadosame nte,
certificando-se de que não deixara passar nenhuma página que pudesse informar
qualquer coisa, mas ela continuou não enxergando. Cada página estava em
branco. Nada havia para ver, jeito algum de dizer se ele era verdadeiro ou não.
Ela fechou a capa e passou a mão por cima dela. Não sabia o que fazer.
Não tinha ideia do que procurar. Ela virou o livro, checando a capa traseira.
Olhou para as bordas das páginas. Virou o livro, olhando para o título gravado
em letras douradas na lombada.
Jillian soltou um grito estrangulado quando Jagang aumentou a força
do aperto em sua garganta, erguendo os pés dela do chão. Ele levou a ponta da
faca direto até o olho direito da garota. Ela piscou, incapaz de afastar -se da
ameaça, sua pálpebras tocando na ponta da lâmin a.
— Hora de ficar cega. — Jagang rosnou.
— É falso. — disse Kahlan.
Ele levantou os olhos. — O quê?
Kahlan entregou o livro para ele. — Esse livro é uma falsa cópia. É
falso.

296
Irmã Ulicia deu um passo adiante. — Como você pode saber disso? —
ela pareceu claramente confusa que Kahlan pudesse pronunciar que o livro era
uma fraude sem capaz de ler uma só palavra nele.
Kahlan ignorou-a. Ao invés disso, ela continuou a olhar nos olhos de
pesadelo do Andarilho dos Sonhos . Formas nebulosas moviam -se como
tempestades furiosas em um horizonte de meia -noite. Foi necessária toda sua
força de vontade para não desviar o olhar.
— Tem certeza? — perguntou Jagang.
— Sim. — ela falou com toda a confiança que conseguiu reunir. — Ele
é falso.
Agora totalmente focado em Kahlan, Jagang soltou Jillian. Assim que
estava livre, a garota foi rapidamente para trás de Kahlan, usando -a como
abrigo.
Jagang observou os olhos de Kahlan. — Como sabe que esse não é o
Livro das Sombras Contadas?
Kahlan, ainda segurando o livro para ele, virou-o para que ele pudess e
ler a lombada. — Vocês estão procurando pelo Livro das Sombras Contadas .
Aqui diz o Livro das Sombra Contadas.
O olhar dele ficou ardente. — O quê?
— Você perguntou como eu sei que ele não é genuíno. É assim. Aqui
diz “Sombra”, não “Sombras”. Ele é falso.
Irmã Cecilia passou uma das mãos pelo rosto. Irmã Armina girou os
olhos.
Irmã Ulicia, porém, fez uma careta para o livro, lendo a lombada ela
mesma. — Ela está certa.
— E daí? — Jagang lançou a mãos para o alto. — Então está faltando
uma letra na palavra “Sombra”. É sombra, singular ao invés de plural. E daí?
— Simples. — falou Kahlan. — Um é verdadeiro, um não é.
— Simples? — ele perguntou. — Acha que é tão simples assim?
— Como pode ficar mais simples?
— Provavelmente isso nada significa. — Irmã Cecilia disse, ansiosa
para ficar do lado do seu mestre de péssimo humor. — Singular, plural, que
diferença isso poderia fazer? É apenas a capa; é o que está dentro que conta.
— Poderia ser apenas um erro. — disse Jagang. — Talvez a pessoa que
montou a cópia tenha cometido um erro. O livro teria sido colado por outra
pessoa, então o livro em si sem dúvida está bem.
— Isso mesmo. — Irmã Armina falou, querendo juntar -se ao Imperador
também. — A pessoa que fez a colagem foi quem cometeu o erro, não aquela
que fez a cópia. Seria muito incomum que elas fossem a mesma pessoa. O
montador provavelmente era um tolo incompetente. Aquele que escreveu as
palavras no livro teria que ser dotado. Aquelas palavras escritas dentro do livr o
são o que importa. Essa é a informação que deve ser verdadeira, não aquilo em
que ela está envolvida. Não há dúvida de que isso é um simples erro cometido
por um artesão montador e isso nada significa.
— Nós a trouxemos aqui por essa razão. — Irmã Ulici a lembrou a elas.
— O quão simples isso pode parecer é irrelevante. O próprio livro, antes de
qualquer outra coisa, avisa que nessa exata circunstância ele deve ser
verificado… por ela.
— Esse é um assunto altamente perigoso. Uma resposta como essa é
simples demais. — proclamou Irmã Cecilia.
Irmã Ulicia inclinou a cabeça para a mulher. — E se um assassino

297
estiver aproximando -se de você com uma faca, essa lâmina é simples demais
para que você acredite que ela é um perigo?
Irmã Cecilia não pareceu contente . — Essa questão é complexa demais
para ser decidida por algo tão simples.
— Oh? — Irmã Ulicia lançou um olhar condescendente para a mulher.
— E onde está escrito que a verificação deve ser complexa? Está escrito apenas
que ela deve fazer isso. Nenhum de nós notou o erro. Ela notou. Ela satisfez a
instrução.
Irmã Cecilia olhou com o nariz empinado para a mulher que costumava
ser sua líder mas que não era mais. Agora Irmã Ulicia não era mais a pessoa no
comando, não era mais aquela a quem tinham que agrada r.
— Não acho que isso signifique alguma coisa. — Jagang disse, ainda
olhando dentro dos olhos firmes de Kahlan. — Duvido que ela realmente saiba
que isso é falso. Ela está apenas tentando salvar o próprio pescoço.
Kahlan balançou os ombros. — Se é isso que você pensa, tudo bem.
Mas talvez exista uma ausência de dúvida em sua mente porque você quer
acreditar que essa cópia é verdadeira. — ela ergueu uma sobrancelha. — não
porque ela é.
Jagang ficou olhando para ela um momento. De repente ele arrancou o
livro das mãos dela e entregou para as Irmãs.
— Precisamos dar uma olhada cuidadosa no que está dentro dele. Isso
é o que importa para encontrar e abrir a Caixa certa. Precisamos ter certeza de
que ele não possui qualquer defeito.
— Excelência, — Irmã Ulicia começou. — pode não haver jeito de
dizer se algo escrito aqui é...
Jagang jogou o livro em cima da mesa, interrompendo -a. — Quero que
vocês três chequem tudo nesse livro. Vejam se conseguem encontrar qualquer
razão para pensarem que ele pode ser falso .
Irmã Ulicia limpou a garganta. — Bem, nós podemos tentar...
— Agora! — sua voz retumbante ecoou pela sala. — Ou vocês
achariam melhor irem para as tendas e entreter meus homens? A escolha do
serviço depende de vocês. Escolham uma opção.
As três Irmãs pularam até a mesa. Todas curvaram -se quando
começaram a estudar o livro. Jagang abriu espaço entre as Irmãs Ulicia e
Cecilia, aparentemente para observar o que elas podiam estar lendo e certificar -
se de que não estavam deixando passar qualquer coisa.

298
C A P Í T U L O 3 9

Assim que ela teve certeza de que os quatro estavam ocupados, Kahlan
chamou silenciosamente Jillian de volta para o fundo da sala, a uma certa
distância dos dois guardas.
— Quero que você escute com muita atenção e faça exatamente o que
eu digo. — Kahlan falou para ela em uma voz baixa que Jagang e as Irmãs não
pudessem ouvir.
Jillian fez uma careta para ela, esperando.
— Preciso me certificar de uma coisa. Vou caminhar até aqueles dois
guardas...
— O quê!
Kahlan pressionou a m ão sobre a boca da garota. — Shhh.
Jillian olhou para os captores delas, agora preocupada que tivesse
atraído a atenção deles. Não tinha.
Convencida de que ela havia compreendido seu ponto de vista, Kahlan
afastou a mão. — Comecei a suspeitar de que fui enfeitiçada por aquelas três
feiticeiras. Acho que é por isso que não lembro de quem eu sou... é algum tipo
de magia. Quase ninguém a não ser elas e Jagang consegue lembrar de terem me
visto. Quase ninguém lembra. Não faço ideia de porque você consegue. El as
também colocaram essa coleira no meu pescoço e podem usá -la para me
machucar.
— Agora, acho que esses guardas também não conseguem me ver, mas
preciso ter certeza. Quero que você fique bem aqui. Não olhe para mim ou isso
poderá deixá-los desconfiados d e você.
— Mas...
Kahlan cobriu os lábios com um dedo. — Me escute. Faça o que eu
peço.
Jillian finalmente assentiu mostrando que concordava.
Sem esperar para ver se a garota mudaria de ideia e decidiria discutir,
Kahlan checou novamente para ter certez a de que Jagang e as Irmãs estavam
ocupados lendo. Assim que viu que estavam, imediatamente ela caminhou.
Moveu-se da forma mais silenciosa que conseguia; os guardas podiam não saber
que ela estava ali, mas se Jagang ou as Irmãs ouvissem, ela perderia sua chance
antes que pudesse começar.
Os dois guardas olhavam para frente, observando seu Imperador.
Ocasionalmente, aquele que estava mais próximo de Jillian lançava um olhar
para a garota. Kahlan podia afirmar o que ele estava pensando pelo seu olhar:
esperava que Jagang entregasse Jillian para ele. Kahlan imaginou que com um
homem como Jagang, tais recompensas ocasionais eram um benefício por ter
conquistado uma posição de confiança como guarda pessoal de um Imperador.
Jillian não tinha ideia do destino que estava reservado para ela. Kahlan tinha
que fazer algo para mudar o curso acelerado desses eventos iminentes.
Logo que estava na frente dos guardas, ela foi cuidadosa para ficar
fora da linha de visão entre eles e as quatro pessoas na mesa. Ela também te ve
que tomar cuidado para não atrair a atenção das Irmãs, ou de Jagang. Mesmo se
os dois guardas não conseguissem lembrar de Kahlan tempo suficiente para
estarem conscientes de que ela estava ali, não queria descobrir o que aconteceria

299
se eles misteriosame nte fossem impedidos de enxergarem seu líder. Esses dois
eram homens precavidos, sem dúvida com talentos excepcionais, e não havia
como saber o quanto uma pequena coisa poderia alertá -los sobre algum
problema, e Kahlan pretendia ser a causadora de grandes problemas... mas não
até que ela estivesse pronta.
Em pé diretamente na frente dos dois homens enormes, ela percebeu
que chegava apenas até o topo dos ombros deles, então provavelmente ela não
bloquearia a visão deles. Eles não olharam para ela, ou de qua lquer forma
reconheceram a presença dela. Ela tocou gentilmente a peça de metal no nariz de
um dos homens. Ele franziu o nariz e então casualmente levou a mão até o local
e coçou, mas não segurou a mão dela.
Satisfeita por ele não ter feito mais, Kahlan es ticou o braço e
lentamente sacou uma faca de uma bainha na faixa de couro que cruzava sobre o
peito do homem. Enquanto a lâmina saia sob a luz das tochas, ela teve muito
cuidado para puxá -la em linha reta, sem colocar qualquer pressão na bainha ou
na faixa. Ele nada percebeu quando ela ficou totalmente livre.
Era uma boa sensação ter a arma em sua mão. A emoção fez ela
lembrar de quando esteve na Hospedaria Cavalo Branco, quando as Irmãs
mataram o marido e a esposa que dirigiam o lugar. Ela lembrou de ter pego um
pesado cutelo para tentar impedir que elas ferissem a filha.
Ela lembrou da profunda sensação de ter uma arma em sua mão porque
isso representava uma sensação de ter os meios para controlar sua própria vida,
para ajudá-la a sobreviver. Uma arma si gnificava não estar à mercê de pessoas
malignas que não respeitavam qualquer lei, quer fosse dos homens ou da razão,
não ser uma presa indefesa daqueles que eram mais fortes e usariam essa força
para dominar outros.
Kahlan moveu a faca em sua mão, passand o-a entre seus dedos,
observando ela refletir a luz bruxuleantes das tochas enquanto girava. Ela
segurou o cabo e durante um momento contemplou a lâmina polida e bem afiada.
Isso representava a salvação. Se não para ela, pelo menos para Jillian.
Lembrando onde estava e o que estava fazendo, Kahlan enfiou
rapidamente a arma dentro da bota. Ela olhou para certificar -se de que Jillian
estava quieta e aguardando. Os olhos da garota estavam arregalados. Kahlan
voltou a sua tarefa e cuidadosamente retirou uma s egunda faca de uma bainha na
faixa sobre o peito do outro guarda. A lâmina era um pouco mais fina, a arma
um pouco melhor balanceada. Como a primeira, ela enfiou a lâmina no couro da
sua bota, perto do topo, e empurrou -a para dentro, sendo cuidadosa para
posicioná-la da forma como fez, para que a lâmina ficasse atrás do osso do
tornozelo dela. Então ela empurrou a ponta firmemente no fundo da bota. Na
bainha improvisada a faca não poderia mover -se e cortá-la quando caminhasse.
Tão silenciosamente quanto po ssível, andando levemente nas pontas
dos pés, Kahlan retornou rapidamente até uma assustada Jillian. As Irmãs e o
mestre delas estavam envolvidos em uma animada conversa sobre a relevância
da posição de estrelas, o clima, e a época do ano para a formação e concentração
do poder necessário para feitiços específicos. As Irmãs estavam explicando o
significado de passagens e Jagang estava fazendo perguntas a cada poucos
minutos, desafiando as conclusões delas a cada curva.
Kahlan estava um pouco surpresa em ou vir como o homem era bem
versado. Às vezes as Irmãs descobriam que ele tinha aprendido mais do que elas
imaginavam sobre certos assuntos relacionados com as Caixas de Orden. Jagang
não parecia um homem que seria do tipo que valoriza o conhecimento de livro s,

300
mas Kahlan estava errada. Embora ela não entendesse a maioria daquilo sobre o
que eles estavam falando, estava óbvio que Jagang era bem instruído e mais do
que preparado para a tarefa de conversar de forma inteligente com as Irmãs...
especialmente sobre assuntos que, elas diziam, eram encontrados apenas nos
mais raros dos livros.
Ele não era apenas um bruto. Era mais do que isso. Era um bruto muito
esperto.
— Muito bem. — disse Kahlan em uma voz baixa o suficiente para ter
certeza de que os outros não pudessem ouvir. — Quero que você escute.
Podemos não ter muito tempo.
Os olhos de Jillian ainda estavam arregalados. — Como você fez
aquilo?
— Eu estava certa, eles não conseguem me ver.
— E girar a faca como você fez?
Kahlan balançou os ombros, coloca ndo de lado uma pergunta que não
poderia responder para tratar de assuntos mais importantes. — Escute, preciso
tirar você daqui. Essa pode ser a nossa única chance.
Jillian pareceu apavorada com a ideia. — Mas se eu escapar ele matará
meu avô, e provavelm ente os outros também. Não posso ir.
— Esse é o poder que ele mantém sobre você. Mas se você não fugir, a
verdade é que todos vocês poderão muito bem serem mortos de qualquer jeito.
Precisa entender que essa poderia ser a única chance que você tem, ou que teria,
para sua liberdade.
— Tem mesmo certeza disso? Como posso arriscar a vida do meu avô
por causa daquilo que você acha que pode acontecer?
Kahlan deu um forte suspiro. Ela não queria ter que explicar isso. —
Não tenho tempo para colocar isso para v ocê de uma forma suave, para
persuadi-la de formas gentis. Só tenho tempo para fornecer a verdade nua e
crua, então é isso que farei, escute cuidadosamente.
— Eu sei como esses homens são. Já vi o que eles fazem com mulheres
jovens como você e eu... vi is so com meus próprios olhos. Já vi os copos
quebrados nus delas largados onde caíram quando os soldados da Ordem
Imperial terminam de usá -las, ou jogadas em valas como lixo.
— Se não fugir, coisas muito ruins acontecerão a você, na melhor das
hipóteses. Passará o resto da sua curta vida como uma escrava, sendo usada por
soldados para o prazer doentio deles e diversão de maneira sobre as quais não
vai querer aprender. Passará o resto da sua vida alternando entre o terror e o
choro. Isso no mínimo. Você viver á, mas desejará a cada momento que estivesse
morta. No pior dos casos, você será morta quando Jagang partir.
— De um jeito ou de outro, é o desejo de um tolo achar que ele a
libertará. Não importa o que aconteça, quer você escape ou fique, ele pode
deixar o seu avô e os outros irem simplesmente porque eles podem não querer
perder tempo e ter o trabalho de matá -los. Jagang tem coisas mais importantes
nas quais está interessado.
— Mas você é uma pilhagem que tem valor para ele. No mínimo, ele
entregará você para aqueles dois guardas como uma recompensa pelos serviços
deles. É desse jeito que homens como Jagang conquistam a lealdade em serviço
de brutos impiedosos como esses dois... dando a eles migalhas saborosas como
você. Tem ideia do que eles farão com vo cê... antes de cortarem a sua garganta?
Tem?
Jillian ficou em silêncio durante um momento. Ela engoliu em seco

301
antes de falar. — Sei o que Jagang queria dizer, antes, quando perguntou se eu
já estive com um homem... mas eu fingi que não sabia. Sei o que e le estava
querendo dizer quando falou que me entregaria para os soldados. Sei o que ele
queria dizer quando falou que eles gostariam de colocar as mãos em uma mulher
jovem como eu. Sei o que ele queria dizer a respeito dos desejos deles.
— Minha família m e alertou sobre os perigos de estranhos como esses.
Minha mãe explicou. Porém, acho que ela não disse tudo, para que eu não
tivesse pesadelos. Acho que as partes que você sabe me causariam pesadelos.
Antes, eu só fingi que não sabia a respeito do que Jagan g estava falando para
que ele não soubesse como eu estava com medo de que ele fizesse isso comigo.
Kahlan não conseguiu evitar um sorriso. — Essa foi uma coisa muito
sábia que você fez, manter esse conhecimento para si mesma.
Jillian entortou a boca, lut ando contra lágrimas diante do destino
sombrio que ela acabara de admitir compreender. — Você tem um plano?
— Sim. Você tem pernas longas, mas ainda duvido que possa correr
mais do que eles. Entretanto tem um outro jeito, um jeito que usa aquilo que
você sabe e eles não. Você falou que uma curva errada aqui e as pessoas ficam
perdidas no labirinto de túneis e salas. Se você conseguir pelo menos uma
vantagem você será capaz de deixar eles para trás em toda as curvas e
passagens. Tão complexo como esse lugar é, acho que nem mesmo os poderes
das Irmãs ajudariam elas e pegarem você, e não acho que Jagang desperdiçaria
tempo tentando.
Ela ainda parecia em dúvida. — Mas eu...
— Jillian, essa é uma chance para você escapar. Outra pode jamais
aparecer. Não quero que algo terrível aconteça com você. Se ficar, acontecerá.
Quero que entenda que deve aproveitar essa chance. Quero você fora daqui. Isso
é tudo que posso fazer por você.
Jillian foi dominada por uma expressão de horror. — Está querendo
dizer… que você nã o vai comigo?
Kahlan cerrou os lábios com força e balançou a cabeça. Ela bateu com
o dedo na coleira de metal em seu pescoço. — Eles podem me impedir com isso.
É algum tipo de magia. Eles poderão me derrubar. Mas acredito que antes que
façam isso eu conseg uirei ajudar a atrasá-los o suficiente para que você consiga
fugir.
— Mas eles machucarão você, ou até mesmo matarão, por me ajudar a
escapar.
— Eles me machucarão de qualquer jeito... Jagang já prometeu para
mim o pior que ele pode sonhar. Ele pode faze r mais do que ele já pretende.
Quanto a me matar, não acho que fariam isso, ao menos por enquanto. Ainda
precisam de mim.
— Estou ajudando você a escapar e isso é tudo. Minha decisão está
tomada. É minha escolha. Essa é a única coisa que posso fazer, a ún ica coisa na
qual tenho uma escolha. Se eu ajudar você, então isso fará com que minha vida,
não importa o que aconteça comigo, tenha mais significado. Pelo menos terei
feito algo para revidar. Pelo menos terei essa vitória sobre eles.
Jillian ficou olhand o para ela. — Você é tão corajosa quanto Lorde
Rahl.
As sobrancelhas de Kahlan levantaram. — Você está querendo dizer
Richard Rahl? Você conhece Richard Rahl?
Jillian assentiu. — Ele também me ajudou.
Kahlan balançou a cabeça, maravilhada. — Vivendo lá fora no meio do

302
nada, com certeza você parece já ter encontrado um monte de pessoas
importantes. O que ele estava fazendo aqui?
— Ele voltou dos mortos.
Kahlan fez uma careta. — O quê?
— Bem, na verdade, não exatamente dos mortos. Pelo menos foi isso
que ele me disse. Mas ele saiu do poço dos mortos no cemitério, exatamente
como as histórias disseram que ele faria. Eu sou a Sacerdotisa dos Ossos. Sou
serva dele, uma Lançadora de Sonhos. Ele é o meu mestre. Houve muitas
Sacerdotisas dos Ossos antes de mim , mas ele nunca veio para elas. Eu nunca
imaginei que aconteceria dele voltar na minha época.
— Ele também veio encontrar livros. Foi ele quem encontrou esse
lugar... eu nem ao menos sabia que isso estava aqui embaixo. Ninguém do meu
povo sabia. Nem mesmo o meu avô sabia que esse lugar dos ossos estava aqui.
— Richard estava procurando um livro que ajudaria a encontrar alguém
importante para ele. O livro era chamado Cadeia de Fogo. Assim que ele
descobriu esse lugar e me trouxe aqui embaixo, fui eu quem e ncontrou o livro
para ele. Ele estava realmente empolgado. Fiquei tão feliz por ser a pessoa que
ajudou ele a encontrar o que ele precisava.
— Desde que vim aqui embaixo com ele, tenho passado todo o meu
tempo explorando esse lugar, conhecendo cada curva, túnel e sala. Espero que
Richard volte um dia, como ele disse que poderia fazer, e então eu serei capaz
de mostrar tudo para ele. Quero muito que ele fique orgulhoso de mim.
Kahlan podia ver o desejo de satisfazer o homem nos olhos de Jillian,
de fazer algo que ele valorizaria, de fazer com que ele reconhecesse o esforço e
a habilidade dela.
Kahlan queria fazer mil perguntas, mas não tinha tempo. Porém, não
conseguiu resistir em fazer uma.
— Como ele é?
— Mestre Rahl salvou a minha vida. Nunca conheci alguém como ele.
— Jillian sorriu de uma forma distante. — Ele era, bem, eu não sei… — ela
suspirou, incapaz de encontrar as palavras.
— Entendo. — Kahlan falou diante da expressão sonhadora nos olhos
cor de cobre da garota.
— Ele salvou a minha vida de soldados enviados por Jagang, antes.
Eles estavam procurando por esses livros. Eu estava com tanto medo que o
homem que estava me segurando cortasse a minha garganta, mas Richard matou
ele. Então, ele me segurou nos braços e enxugou minhas lágrimas. — ela
levantou os olhos ao retornar de suas recordações. — E ele salvou o meu avô
também. Bem, não ele exatamente, mas a mulher que estava com ele.
— Mulher?
Jillian assentiu. — Nicci. Ela disse que era uma feiticeira. Ela era tão
bonita. Não pude parar de olha r para ela. Nunca tinha visto uma mulher tão
bonita. Ela era como um bom espírito ali diante de mim, com cabelo parecido
com a luz do sol, e olhos como o próprio céu.
Kahlan suspirou. Porque um homem como aquele não teria uma bela
mulher ao lado dele. Dep ois de ouvir isso, ela não sabia porque nunca tinha
considerado tal possibilidade antes de agora.
Kahlan não sabia porque, mas sentiu como se algo, alguma esperança
que jamais ousara definir, ou talvez um desejo insondável ao qual ela ainda se
agarrava de que alguma coisa profundamente valiosa escondida sob a mortalha
negra que foi lançada sobre o passado dela… tivesse acabado de escapulir.

303
Teve que desviar os olhos do olhar de Jillian para não perder o
controle com o pensamento na triste situação na qual ela encontrava -se presa.
Usou a desculpa de olhar por cima do ombro, checando para ter certeza de que o
Imperador e suas Irmãs ainda estavam ocupados, enquanto ela enxugava uma
inesperada lágrima solitária da bochecha.
As Irmãs pareciam mais envolvidas d o que nunca em uma discussão
das tecnicalidades no livro. Jagang estava exigindo saber como elas podiam ter
certeza de que certas partes estavam corretas.
Quando Kahlan olhou de volta, Jillian estava olhando para ela. — Mas
ela não era tão bonita quanto v ocê.
Kahlan sorriu. — A diplomacia deve ser um requisito para ser uma
Sacerdotisa dos Ossos.
— Não, — disse Jillian, subitamente parecendo preocupada que Kahlan
pudesse não acreditar que ela estava dizendo a verdade. — De verdade. Tem
alguma coisa em voc ê.
Kahlan fez uma careta. — O que você quer dizer?
O nariz de Jillian franziu com o esforço para buscar as palavras. —
Não sei como explicar. Você é bonita, inteligente, e sabe a coisa certa a fazer.
Mas tem mais alguma coisa.
Kahlan imaginou se isso po deria ser alguma conexão com quem ela
realmente era. Estivera procurando por alguém que fosse capaz de enxergá -la, e
lembrar dela, e talvez dar a ela uma pista.
— Como o quê?
— Não sei. Alguma coisa nobre.
— Nobre?
Jillian assentiu. — De certa forma você me faz lembrar de Lorde Rahl.
Ele salvou a minha vida sem hesitar, exatamente como você quer fazer. Porém,
não é só isso. Não sei como explicar. Tinha alguma coisa nele… e você tem essa
mesma qualidade também.
— Bom. Então pelo menos eu e ele temos alg o em comum, porque eu
também estou prestes a salvar a sua vida.
Kahlan deu um forte suspiro quando checou por cima do ombro outra
vez. Os outros ainda estavam engajados em sua conversa. Ela virou de volta
para Jillian e lançou um olhar sério para ela.
— Temos que fazer isso agora.
— Mas, eu ainda estou preocupada com o meu avô…
Kahlan olhou nos olhos da garota por um longo tempo.
— Agora, escute, Jillian. Você está lutando pela sua vida. É a única
vida que você terá. Eles não terão misericórdia por voc ê ter ficado. Sei que o
seu avô gostaria que você aproveitasse essa chance.
Jillian assentiu. — Entendo. Lorde Rahl falou uma coisa parecida
sobre a importância da minha vida.
Por algum motivo, isso alegrou o coração de Kahlan e fez ela sorrir.
Entretanto, o sorriso desapareceu rapidamente quando ela colocou sua mente de
volta na tarefa em imediata. Ela não sabia se Jagang e as Irmãs terminariam em
breve, ou se ficariam naquilo pelo resto da noite, mas ela não podia perder a
oportunidade.
— Temos que faz er isso agora, antes que eu perca minha coragem.
Quero que você faça exatamente o que eu digo.
— Eu farei. — Jillian disse.
— Aqui está o que faremos. Você ficará bem aqui. Eu vou até lá e

304
matarei aqueles dois homens.
Os olhos de Jillian ficaram arregal ados. — Você vai fazer o quê?
— Vou matar eles.
— Como? Você é apenas uma mulher, e eles são grandes. E são dois.
— Isso não é impossível se você souber como fazer.
— Vai cortar as gargantas deles? — Jillian arriscou.
— Não. Eles fariam barulho se eu fizesse isso. Além disso, eu não
conseguiria fazer isso com os dois ao mesmo tempo. Então, vou pegar mais duas
das facas deles e então vou me esgueirar atrás deles e vou esfaquear eles bem…
aqui.
Kahlan enfiou um dedo nas costas de Jillian, um pouco para o lado,
bem no ponto macio do rim dela. Mesmo o leve golpe fez a garota grunhir de
dor por causa do quão sensível era o local.
— Esfaquear um homem .bem ali, no rim dele, é tão doloroso que torna
impossível que ele grite.
— Não pode estar falando sério. Com certeza eles gritarão.
Kahlan balançou a cabeça. — A dor é tão grande quando você é
esfaqueado no rim que a sua traqueia fecha. O seu grito fica preso nos pulmões.
Essa será nossa chance. Antes que eles caíam e batam no chão enquanto
estiverem morrend o, temos que passar por aquelas portas atrás deles. Temos que
escapulir o mais silenciosamente possível para ganharmos o máximo de tempo
que pudermos. Provavelmente teremos apenas um breve momento antes de
sermos descobertas, mas esse momento é tudo de que precisamos para que você
escape.
— Você fica bem aqui. Assim que eu enfiar as facas nas costas deles,
você vai até as portas... o mais rápido que puder. Mas não faça qualquer ruído.
Estarei lá nas portas com você.
Jillian estava ofegando de medo de uma tarefa como aquela. Seus olhos
estavam úmidos de lágrimas. — Mas quero que você vá junto comigo.
Kahlan agachou e abraçou a garota.
— Eu sei. Isso é tudo que posso fazer para protegê -la, Jillian. Mas
acho que será o bastante para fugir.
Ela esfregou os olhos. — Mas o que eles farão com você?
— Preocupe-se apenas em escapar. Se eu tiver uma chance de escapar,
prometo a você que o farei. Diga para Lokey procurar por mim caso eu consiga
fugir.
— Está certo.
Kahlan sabia que essa era uma falsa esperança. Ela apertou o ombro de
Jillian e levantou. Verificou os quatro na mesa uma última vez. Ela fez isso bem
na hora.
Jagang olhou por cima do ombro para ver o que Kahlan estava fazendo.
Ela ficou em silêncio ao lado de Jillian, observando ele e as Irmãs traba lhando,
como se estivesse ali o tempo todo, nada fazendo a não ser aguardar seu destino.
Ele voltou sua atenção para as palavras acaloradas entre Irmã Ulicia e Irmã
Cecilia. Irmã Ulicia estava sendo obstinada, enquanto Irmã Cecilia estava
tentando encontra r uma forma de acalmar Jagang dizendo a ele qualquer coisa
que ele quisesse ouvir.
Assim que estava segura de que a atenção de Jagang estava de volta no
livro, imediatamente Kahlan caminhou até os guardas. Quando um estava
olhando novamente para Jillian c om luxúria cada vez mais evidente, Kahlan
puxou uma faca longa do cinto de armas dele. Sem demora, ela moveu -se até o

305
guarda mais afastado e fez a mesma coisa, tirando a faca longa dele também.
De pé atrás deles, ela olhou para as Irmãs e Jagang e, vendo que eles
ainda estavam ocupados, ela olhou para Jillian. A garota, esfregando as palmas
nos quadris, assentiu indicando que estava pronta.
Kahlan esticou o braço até o homem a direita e sacou uma faca que ele
carregava em uma bainha que pendia de uma faixa no lado dele. Ela colocou a
faca de lado entre os dentes.
Sem demorar mais tempo, ela examinou a parte inferior das costas dos
guardas, selecionando os pontos precisos que precisava atingir. Escolheu o lado
direito do homem à esquerda dela, e o lado esqu erdo do homem à direita, para
que tivesse alvos mais próximos e fosse capaz de aplicar toda sua força no
ataque.
Ela olhou de um lado para outro entre os homens, certificando -se de
que acertaria o ponto certo com cada uma das facas. Se ela errasse, isso s eria
fata, mas não necessariamente para os homens. Seria Jillian quem pagaria o
preço de um erro. Isso tinha que estar certo, e tinha que estar certo na primeira
vez.
Kahlan inspirou profundamente, segurando a respiração apenas
brevemente, então expirou c om força, adicionando esse poder à força que
aplicou no golpe. Com toda sua força, ela enfiou as duas facas nas costas dos
homens. As lâminas entraram até os cabos.
Os dois homens ficaram rígidos com o choque.
Kahlan já tinha inspirado novamente. Dessa v ez, o mais rápido que
conseguiu, ela expirou e usou toda sua considerável força para puxar os cabos
juntos um em direção ao outro para que as lâminas girassem e rasgasse os rins
dos homens.
Os homens ficaram imóveis e levemente curvados, as costas arquead as
com o intenso golpe de dor excruciante. Os olhos deles arregalaram, suas bocas
abriram, mas não emitiram qualquer som. Estavam em um trauma mortal,
incapazes de respirar ou soltar um grito.
Quando Kahlan levantou os olhos, Jillian já estava a caminho. Kahlan
virou e rapidamente abriu uma das estreitas portas. Ela não queria fornecer a
seus perseguidores um caminho livre abrindo as duas.
Jillian estava ali. Os joelhos dos homens começaram a dobrar. Kahlan
colocou uma das mãos nas costas de Jillian, entr e as omoplatas, e empurrou -a
através do portal, lançando -a para o corredor.
Kahlan tirou a faca que estava entre os dentes. — Corra. Não pare por
coisa alguma.
Jillian assentiu. Parecia como se o próprio Guardião estivesse nos
calcanhares dela.
Kahlan virou para fechar a porta, mas nesse momento os homens
atingiram o chão.
Quatro rostos assustados viraram em direção a ela. Kahlan fechou a
porta e correu como se o Guardião estivesse atrás dela também.
Viu Jillian a uma certa distância justamente quando ela alcançou um
cruzamento onde uma junção de ramificações de passagens seguiam em
diferentes direções. A garota parou, olhando para trás, para Kahlan. Elas
trocaram um breve olhar cheio de significado, e então ela desapareceu, sumiu
por uma das passagens. Estava tão escuro daquela distância que Kahlan não
tinha certeza sobre qual Jillian havia tomado.
Atrás ouviu-se um explosivo despedaçar de madeira, como se as portas

306
tivessem sido despedaçadas. A luz das tochas de repente espalharam -se no
corredor, cercando Kahlan. Imediatamente ela parou e virou de volta. Segurou a
faca pela ponta. Viu sombras na sala avançando velozmente em direção ao portal
aberto.
Com toda sua força ela atirou a faca sem que ao menos houvesse
alguém lá, ainda, naquele portal.
Uma Irmã Cecilia furiosa atravessou primeiro. A faca acertou no peito
dela. Kahlan estava desejando que Jagang viesse primeiro, mas tinha quase
certeza de que seria uma Irmã, então tinha mirado de acordo. A lâmina havia
voado em linha reta, e enterrou no coraçã o de Irmã Cecilia.
A Irmã caiu pesadamente. Kahlan virou e correu com todas as suas
forças. Justamente quando virou, tinha visto as outras caírem sobre o corpo da
Irmã Cecilia.
Kahlan correu como jamais tinha corrido. Ela dobrou na primeira
esquina à esquerda. Não sabia quais aminhos Jillian seguiu, mas não avistou ela.
A garota desparecera.
Uma onda de pura alegria espalhou -se através de Kahlan, preenchendo
sua própria alma com a emoção do êxito. Aquilo funcionou. Ela manteve sua
promessa a Jillian, e a si mesma. Pelo menos nisso ela os vencera.
Ela estava tonta com a vitória mesmo enquanto corria como uma louca.
Não apenas matou os dois guardas mas também acabou com Irmã Cecilia.
Imagens da dor que aquela mulher havia causado a ela, e a satisfação que sentiu
com aquela dor, passaram pela mente de Kahlan, e ela saboreou sua vingança.
Agora que aquilo tinha funcionado, e Jillian estava longe, o terror
fluiu através dela. Sabia que não escaparia. Tudo que podia fazer era correr,
fazendo curvas aleatórias, e esperar pelo fim.
Ele veio com um súbito choque de dor que, ela pensou, devia ser algo
parecido com o que aqueles dois homens sentiram.
Ela sabia que atingiu o chão, mas não sentiu isso realmente.
E então pareceu como se todo o teto e a cidade morta acima
mergulhassem sobre ela.
O mundo ficou tão negro quanto um túmulo.

307
C A P Í T U L O 4 0

Richard estava sem fôlego no momento em que finalmente tinha


chegado ao topo da elevação. Porém, não era apenas que ele estivesse sem
fôlego; ele também estava sem forças. Ele sabia que não comera tanto quanto
deveria durante o caminho, e agora estava pagando o preço por isso. Suas pernas
pareciam chumbo. Seu estômago ardia com a fome. Sentia -se fraco e só queria
deitar, mas não podia, não agora, não quando estava tão perto. Não quando
havia tanto em risco.
Ele havia comido algumas nozes de pinheiro e alguns punhados de
bagas de murta que encontrara conforme avançava, mas não desviara do caminho
para encontrar mais. Simplesmente não queria perder tempo.
Pelo menos tinha com ele sua mochila, então na noite anterior
conseguiu armar uma linha de pesca em um pequeno lago ao entardecer. Então
coletou uma braçada de lenha seca e fez uma fogueira com uma pederneira e
ferro. No momento em que o fogo estava bem vivo ele tinha três trutas em sua
linha. Ele estava com tanta fome que ficara tentado a comê -los crus, mas peixe
assava rapidamente, então ele esperou.
Não querendo parar por mais tempo do que o necessário, ele dormiu
pouco na curta jornada desde a Sliph. Ele concluiu que quanto mais rápido
colocasse as mãos no livro que Baraccus deixou para ele, melhor ele ficaria. O
livro já estava esperando por ele durante três mil anos. Não queria que ele
esperasse mais uma noite. Ele pensou em como, se tivesse sido espert o o
bastante para encontrar o livro antes, poderia ter evitado os problemas que agora
enfrentava. Esperava que ele de alguma forma o ajudasse a encontrar Kahlan,
talvez até o ajudasse a encontrar um jeito de reverter o feitiço Cadeia de Fogo .
Ele assumiu que o melhor plano seria recuperar o livro o mais rápido
possível; então poderia fazer alguma leitura enquanto aproveitava o tempo para
comer. Então ele se preocuparia em dormir e voltar para a Fortaleza.
A Fortaleza estava a uma longa distância. Ele não sabia exatamente
onde estava, exceto que estava a uma boa distância ao sul de Agaden Reach na
qual parecia ser uma área desabitada perto ou dentro das terras selvagens, então
não estava preocupado em como encontraria alguns cavalos. Um problema de
cada vez, ele lembrou a si mesmo, um problema de cada vez.
Difícil como havia sido empreender a subida pela elevação rochosa
íngreme no escuro, ele não conseguia parar quando sabia que estava perto. Além
disso, se queria ver os fogos -fátuos, só poderia ser à noit e, então ele não quis
esperar até o amanhecer para fazer a escalada e depois ter que esperar durante
todo o dia seguinte para que ficasse escuro outra vez.
Finalmente chegando ao topo, Richard observou a área enquanto
recuperava-se. Acima da borda da lade ira íngreme o chão nivelava em um
bosque esparsamente arborizado com carvalhos. A brisa de mais cedo no dia
tinha morrido horas atrás, ao pôr do sol, e agora tudo estava parado. O silêncio
parecia com um peso opressivo sobre ele. Por alguma razão, os típic os sons
noturnos de pequenos animais, insetos, e coisas assim que eram comuns nas
terras baixas que estendiam -se infinitamente atrás dele estavam silenciosos no
topo da longa subida.
Sob a luz da lua, Richard imediatamente notou que havia alguma coisa

308
errada com as árvores. Parecia como se elas estivessem todas mortas. Os troncos
grossos, baixos, inclinados e retorcidos. A casca havia começado a cair em tiras
como farrapos. Os galhos tortos e distorcidos pareciam garras esticando -se para
agarrar qualquer um que ousasse entrar no lugar.
Richard estivera focado na jornada e na subida, mas de repente ele
passou a ficar em guarda, sua atenção elevada enquanto ele procurava escutar
qualquer som no esquisito silêncio. Moveu -se cuidadosamente sob as árvores,
tentando fazer o mínimo de ruído possível. Entretanto, era difícil, uma vez que o
chão estava coberto por folhas e gravetos secos. Os galhos pairando acima
projetavam sombras grotescas na luz do luar, e o ar tinha uma frieza que fez
subir um calafrio em suas c ostas.
Com o passo seguinte, algo embaixo do pé quebrou com um estranho
estalo. Em todos os anos que passara nas florestas, Richard nunca tinha ouvido
um som como aquele.
Ele congelou no lugar, escutando, aguardando. Sua mente acelerou
enquanto ele buscava em sua memória por aquele som, tentando encontrar sua
causa. Independente do quanto tentasse, ele não conseguia defini -lo. Quando
nada mais ouviu, e nada viu mover -se, ele recuou cuidadosamente, levantando o
pé de seja lá o que fosse que tinha quebrado.
Após checar em todas as direções, verificando cada sombra, ele
agachou para ver sobre o que havia pisado. O que quer que fosse, estava coberto
por folhas. Ele afastou as folhas apodrecidas cuidadosamente.
Ali, parcialmente enterrado na argila da florest a, escuro com o tempo,
estava um crânio humano quebrado olhando para ele. O peso do pé dele quebrou
o topo arredondado do crânio. As órbitas, que pareciam estar olhando para ele,
ainda estavam intactas.
Richard observou o chão da floresta e viu outras ele vações sob as
folhas. Ele também viu mais alguma coisa: mais crânios que não estavam
enterrados sob o leito da floresta. De onde estava agachado, ele podia ver uma
meia dúzia de crânios pelo menos parcialmente acima de folhas, e mais formas
arredondadas ainda embaixo delas. Sob as folhas ele encontrou o resto dos ossos
que pertenciam ao crânio sobre o qual ele havia pisado.
Ele levantou lentamente e começou a mover -se outra vez, escrutinando
o solo, os grossos troncos retorcidos das árvores, assim como os galhos acima
enquanto passava. Não viu qualquer pessoa e nada ouviu.
Agora que ele sabia para o que estava olhando, ele conseguiu avistar
crânios aparentemente por toda parte. Ele parou de contar quando chegou a
trinta. Os ossos pareciam espalhados, não a montoados como se as pessoas
tivessem todas morrido juntas ou em grupos. Com poucas exceções, elas
pareciam indivíduos que morreram naqueles locais em particular. Ele supôs que
os corpos podiam ter sido colocados ali; não havia como saber realmente. As
poucas exceções eram crânios reunidos, mas ele concluiu que aquilo poderia ser
por acaso... pessoas que podiam ter caído perto de outro corpo.
Richard agachou para inspecionar alguns dos crânios, tanto aqueles
expostos quanto aqueles enterrados sob as folhas . Seu pensamento inicial foi o
de que esse era um possível local de uma batalha, mas até onde ele podia
afirmar sob a luz do luar essas pessoas não haviam morrido no mesmo período.
Havia alguns ossos que estavam inteiros, enquanto outros estavam decompondo -
se. Alguns pareciam tão antigos que desfaziam -se quando ele os tocava. O lugar
era como um cemitério, mas com todos os corpos acima do solo, ao invés de
enterrados.

309
A outra coisa que ele notou foi que nenhum predador parecia ter
perturbado os mortos. Ric hard encontrara restos nas florestas quando era um
guia. Animais selvagens sempre atacavam os mortos, humanos ou não.
Entretanto, parecia como se cada um desses corpos tivesse apodrecido com o
passar do tempo, deixando os ossos exatamente na mesma posição na qual a
pessoa tinha caído... de lado, com os braços abertos, ou com o rosto para baixo.
Nenhum foi depositado como em um funeral, com os braços cuidadosamente
cruzados sobre o peito, ou para os lados. Eles pareciam simplesmente ter caído
mortos. Isso ainda podia não ter parecido tão peculiar a não ser pelo fato de que
nenhum dos cadáveres parecia ter sido tocado por qualquer predador.
Enquanto Richard caminhava infinitamente pelo bosque de carvalhos,
imaginou se ele teria fim. Em uma noite nublada, sem lua, ou até mesmo em um
dia nublado, para dizer a verdade, esse era o tipo de lugar onde teria sido fácil
perder-se. Tudo parecia igual. As árvores eram espaçadas de forma uniforme, e
nada havia para indicar se ele estava seguindo na direção correta, excet o a lua e
as estrelas.
Durante o que pareceu a metade da noite, Richard moveu -se sempre
adiante através da floresta dos mortos. Tinha certeza de que seguira as
orientações que a Sliph transmitiu a ele. A Sliph, porém, não tinha como saber
exatamente o que ele encontraria; ela dissera que apenas recebera as orientações
de Baraccus, e que isso foi há três mil anos. A paisagem poderia ter mudado
bastante desde a época de Baraccus. Em todo caso, os ossos não pareciam tão
antigos. É claro, podia ser que no bosq ue de carvalhos houvesse ossos com
milhares de anos, mas que agora já teriam virado pó.
Conforme Richard prosseguia, a floresta começou a ficar mais
lamacenta, até que ele encontrou -se entrando nas sombras de uma floresta escura
com imensos pinheiros, seu s troncos bem próximos e cada um quase tão grosso
quanto a largura de uma casa nas florestas de Hartland. Era como encontrar um
muro de montanhas que erguia -se até o céu. Os troncos, como pilares, não
tinham galhos até certa distância fora de vista. Mas aq ueles galhos bloqueavam
completamente o céu e transformavam o chão da floresta abaixo em um confuso
labirinto entre os troncos massivos.
Richard fez uma pausa, avaliando como se manteria em uma direção na
escuridão completa que jazia adiante enquanto era incapaz de mover-se em
qualquer cosia que lembrasse uma linha reta.
Foi nesse momento que ele ouviu os sussurros.
Ele inclinou a cabeça, escutando, tentando distinguir as palavras. Ele
não conseguia, então ele entrou cautelosamente mais fundo dentro da e scuridão,
deixando seus olhos ajustarem -se na escuridão antes de dar mais alguns passos.
Em pouco tempo ele começou a ser capaz de perceber as formas das árvores
adiante, então avançou, sempre mais fundo entre as “paredes” dos troncos dos
monumentais pinheiros.
— Volte. — surgiu um sussurro.
— Quem está aí? — ele sussurrou de volta.
— Volte, — disse a suave voz baixa. — ou fique para sempre junto
com os ossos daqueles que vieram antes de você.
— Eu vim falar com os fogos -fátuos. — falou Richard.
— Então você veio por nada. Vá, agora. — a voz repetiu com mais
força.
Richard tentou reproduzir o som das palavras conforme lembrava que
um fogo-fátuo soaria. Embora essa não fosse a mesma, realmente possuía

310
qualidades em comum.
— Por favor, aproxime-se para que eu possa conversar com você.
Somente o silêncio o cercava. Richard moveu -se adiante uma dúzia de
passos dentro da escuridão.
— Último aviso. — disse a estranha voz. — Vá, agora.
— Eu vim de uma longa distância. Não voltarei sem falar com os
fogos-fátuos. Isso é importante.
— Não para nós.
Richard ficou parado com uma das mãos no quadril enquanto tentava
pensar no que fazer em seguida. Ele estava longe de um raciocínio claro. O
cansaço estava atrapalhando seu pensamento.
— Sim, isso é importante pa ra vocês também.
— Como?
— Eu vim atrás daquilo que Baraccus deixou para mim.
— Assim como aqueles cujos ossos você passou.
— Olhe, isso é importante. Suas vidas dependem disso também. Nessa
luta não haverá espectadores que não se envolvem. Todos serão arrastados para
dentro da tempestade.
— As histórias sobre as quais você ouviu sobre um tesouro são
mentiras vazias. Nada existe aqui.
— Tesouro? Não... você não entendeu. Não é disso que se trata. Acho
que você entendeu errado. Já passei pelos testes q ue Baraccus deixou para
mim... é por isso que estou aqui. Eu sou Richard Rahl. Sou casado com Kahlan
Amnell, a Madre Confessora.
— Não conhecemos essa pessoa da qual você fala. Volte para ela
enquanto você ainda pode.
— Não, esse é o problema, eu não pos so. Estou tentando encontrá -la.
— Frustrado, Richard passou os dedos pelo cabelo. Não sabia quanto tempo
podia ter para dizer o que precisava dizer, ou quanto deveria deixar de fora, se
queria convencer os fogos -fátuos da sua verdadeira razão para estar al i... para
convencê-los a ajudá-lo.
— Um dia vocês a conheceram. Magia foi usada contra Kahlan para
fazer todos esquecerem dela. Vocês também a conheciam, mas a esqueceram
como todos os outros. Kahlan costumava vir aqui. Em seu papel como a Madre
Confessora ela lutou para proteger a terra dos fogos -fátuos e para manter outros
longe.
— Ela me falou sobre a bela terra dos fogos -fátuos. Falou sobre os
campos abertos em florestas antigas, remotas. Ela esteve entre os fogos -fátuos
quando eles reuniam -se ao crepúsculo para dançarem juntos entre a grama e
flores do campo.
— Ela falou que passou muitas noites deitada de costas na grama
enquanto os fogos-fátuos reuniam -se ao redor dela, falando com ela sobre coisas
comuns de suas vidas: sonhos e esperanças, sobre a mores.
— Por favor, os fogos -fátuos a conheciam. Ela era amiga de vocês.
Então Richard viu uma pequenina luz sair de trás de uma árvore. —
Vá, ou seus ossos permanecerão ali, junto com os outros que procuravam
tesouro, e ninguém jamais o verá novamente o u saberá o que aconteceu com
você.
— Se eu precisasse de ouro eu o ganharia. Não tenho interesse em
tesouro.
A pequenina centelha de luz começou a afastar -se. — Nem todo

311
tesouro é ouro.
Enquanto ela deslizava para longe, os feixes de luz rodopiantes
dançavam sobre galhos de árvores pelas quais ela passava.
— Eu conheci Shar. — Richard gritou.
A luz fez uma pausa. Ela parou de girar.
Por um momento, Richard observou enquanto a centelha de luz pairou
ali, a uma certa distância, iluminando suavemente os monarcas da floresta
reunidos que ficavam parados como sentinelas daquilo que estava além.
— Você não veio por causa das lendas de que havia um tesouro para
ser encontrado aqui?
— Não.
— O que você sabe sobre o nome que falou?
— Eu estive com Shar depois que ela cruzou a Fronteira. Shar
atravessou aquela Fronteira para ajudar a deter a ameaça de Darken Rahl. Shar
cruzou a Fronteira para ajudar no esforço de encontrar e mim, para que eu
também pudesse ajudar naquela luta. Antes que ela morresse, Shar disse que se
algum dia eu precisasse da ajuda dos fogos -fátuos, eu deveria dizer o nome dela
e então eles me ajudariam, pois nenhum inimigo podia saber como ela se
chamava.
Richard apontou para trás em direção ao bosque de carvalhos mortos,
onde os restos es quecidos em decomposição repousavam. — Tenho uma
sensação de que nenhuma das pessoas cujos ossos estão lá atrás sabia o nome
dela, ou o nome de qualquer um dos fogos -fátuos.
A luz retornou lentamente entre as árvores, finalmente parando não
muito longe dele. Ele podia sentir os suaves feixes de luz cintilantes deslizando
sobre os contornos do seu rosto. Eles quase pareciam com o leve toque de uma
teia de aranha.
Richard deu um pequeno passo, chegando mais perto. — Falei com
Shar antes dela morrer. Ela dis se que não poderia mais viver longe dos seus
iguais, e que não tinha força para retornar para sua terra.
— Ela apresentou o primeiro teste de Baraccus. Disse que acreditava
em mim, acreditava que eu tinha dentro de mim o que era preciso para ter
sucesso. Isso era uma mensagem dele. Ela perguntou sobre segredos.
A pequenina luz transformou -se em uma cor rosada quando girava em
silêncio durante um momento.
— E você passou no teste dela?
— Não. — admitiu Richard. — Era cedo demais para que eu entendesse
tudo. Mais tarde, eu finalmente entendi. A Sliph falou que agora eu passei no
teste que Baraccus deixou para mim.
— Qual é o seu nome?
— Eu cresci sendo chamado de Richard C ypher. Desde então eu
descobri que sou Richard Rahl. Também fui chamado por outros n omes: o
Seeker; aquele que nasceu verdadeiro; aquele que traz a morte; Richard, o
esquentado; a pedra no lago; e Caharin. Algum desses nomes significa alguma
coisa para você?
— O nome Ghazi significa alguma coisa para você?
— Ghazi? Richard pensou durant e um momento. — Não. Deveria?
— Significa “fogo”. Ghazi recebeu esse nome da profecia. Se você
fosse o escolhido, conheceria esse nome também.
— Sinto muito, mas não conheço. Não sei porque, mas posso dizer a
você que não tenho muita intimidade com profe cia.

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— Sinto muito, mas a desgraça chegou a essa terra. Os fogos -fátuos
estão em uma época de sofrimento. Não podemos ajudar você. Você deve ir,
agora.
O fogo-fátuo começou a partir outra vez, girando enquanto flutuava
entre as árvores enormes.
Richard deu um passo adiante. — Shar disse que se eu precisasse da
ajuda dos fogos-fátuos, eles me ajudariam! Preciso da sua ajuda!
O pequenino ponto de luz fez uma pausa novamente. Pela forma como
ele pairava imóvel Richard teve a distinta impressão de que ele e stava avaliando
algo. Após um instante, ele lentamente começou a girar, lançando feixes
cintilantes de luz. Ele retornou parte do caminho.
Então o fogo -fátuo pronunciou um nome que Richard não ouvia ser
pronunciado em voz alta fazia muitos anos.
O sangue dele ficou gelado.
— E esse nome significa alguma coisa para você? — perguntou o fogo -
fátuo.
— Como você sabe o nome da minha mãe? — Richard sussurrou.
O fogo-fátuo aproximou-se lentamente. — Muitos, muitos anos atrás,
Ghazi atravessou uma fronteira es cura para encontrar ela, para ajudar ela, para
falar sobre o filho dela, falar para ela muitas coisas que ela precisava saber,
muitas coisas que o filho dela precisaria saber. Ghazi nunca voltou.
Richard ficou com os olhos arregalados. — O que os fogos-fátuos
fazem durante o dia? Quando tem luz?
O fogo-fátuo, parecendo nada mais do que uma brasa cintilante, girou
lentamente, projetando feixes de luz sobre o rosto de Richard. — Nós vamos
para onde é escuro. Nós não gostamos de ficar na luz.
— O fogo machu ca vocês?
Os feixes de luz enfraqueceram. — O fogo pode nos matar.
— Queridos espíritos… — Richard sussurrou.
O fogo-fátuo chegou mais perto, a luz cintilante brilhando mais forte…
outra vez, enquanto parecia estudar o rosto dele. — O que foi?
— Qual era a profecia sobre Ghazi? — Richard perguntou.
A luz que rodopiava lentamente fez uma pausa. — A profecia era sobre
a morte de Ghazi. Ela dizia que ele morreria no fogo.
Os olhos de Richard fecharam -se por um momento. — Há muitas
estações, quando eu era apenas um garoto, minha mãe morreu em um incêndio.
O fogo-fátuo permaneceu em silêncio.
— Sinto muito, — falou Richard em voz baixa enquanto as palavras de
Shota ecoavam em sua cabeça. — Acho que Ghazi morreu em minha casa. A
nossa casa pegou fogo. Depo is que minha mãe trouxe a mim e meu irmão para
fora em segurança, ela entrou para buscar alguma coisa... nunca soubemos o que
era. Provavelmente ela foi sufocada pela fumaça. Ela nunca saiu. Nunca a vi
outra vez. Ela morreu nas chamas.
— Acho que ela volt ou para buscar Ghazi. Acho que minha mãe e
Ghazi morreram juntos naquele incêndio, sem que ele completasse o seu
objetivo.
O fogo-fátuo pareceu observá -lo durante algum tempo. — Sinto muito
pelo que aconteceu com a sua mãe. Depois de todo esse tempo, lágr imas ainda
chegam para você.
Richard ficara sem palavra e só conseguiu assentir.
O fogo-fátuo mais uma vez começou a girar mais rápido. — O nome

313
Richard C ypher é o nome por que nós conhecemos você. Venha, Richard
Cypher, e nós falaremos para você o que Gh azi foi falar para sua mãe.

314
C A P Í T U L O 4 1

Richard seguiu o ponto brilhante de luz dentro do antigo aglomerado


de madeira, um lugar de quietude e paz. Ele nunca tinha visto árvores tão
grandes assim. Ocorreu a ele que era estranho que criatura s tão pequeninas
vivessem entre árvores tão grandes.
Parecia como se ele tivesse caminhado durante horas, embora Richard
soubesse que sentia isso apenas porque estava tão esgotado. Quando finalmente
eles emergiram das árvores para dentro de uma vasta clar eira, Richard mal podia
acreditar em seus olhos. Era exatamente como Kahlan descreveu. O campo
gramado cintilando com milhares de fogos -fátuos deslizando entre as altas
lâminas de grama e flores do campo. A cobertura de estrelas acima, através da
abertura entre os enormes pinheiros, parecia sem vida comparado com as
estrelas na grama.
Era uma bela visão, mas causava dor no coração de Richard porque
fazia ele lembrar de Kahlan, do primeiro dia em que encontrou com ela, quando
ela apresentara Shar, da época em que ela falou sobre os fogos -fátuos. Kahlan e
os fogos-fátuos estavam conectados para sempre na mente dele.
E agora, após todo esse tempo, ele soube que foi para salvar um fogo -
fátuo que sua mãe havia retornado para dentro da casa em chamas. Ela não
morreu sozinha.
Tudo porque um homem há milhares de anos tinha seguido até o
Templo dos Ventos e feito algo que resultaria no nascimento de Richard com os
dois lados do Dom, dois lados que a Sliph disse que ele não tinha mais.
Quando Richard caminhou entra ndo na grama, alguns dos fogos -fátuos
aproximaram-se, curiosos para verem o estranho entre eles. Os fogos -fátuos
brilhavam com maior força e com menos força, como se estivessem conversando
entre si.
— Como você é chamado? — perguntou Richard ao fogo -fátuo que o
escoltara.
— Eu sou Tam.
Richard observou fogos -fátuos deslizarem mais perto, subindo até a
altura dele, antes de voarem rapidamente para longe.
— Nossos números reduzem. — falou Tam. — Uma coisa assim nunca
aconteceu. Esse é um tempo de sofrimen to para nós. Nós não conhecemos a
causa.
— A causa é em parte o motivo porque estou aqui. — Richard disse a
ele. — Espero encontrar ajuda para que eu possa parar aquilo que está causando
essa doença entre os fogos -fátuos. Se eu não tiver sucesso, todos vo cês
desaparecerão do mundo.
Tam considerou em silêncio durante algum tempo. Outros que ouviram
as palavras de Richard afastaram -se, mergulhando dentro dos lugares escuros na
grama, como se procurassem um lugar tranquilo para chorar. Alguns, porém,
chegaram mais perto.
— Muitos aqui conheciam Ghazi. — disse Tam. — Sentem falta dele.
Pode falar para nós qualquer coisa que ele disse antes que a vida dele acabasse?
Do jeito que você falou as palavras de Shar?
— Sinto muito, Tam, mas eu nunca vi Ghazi. Eu nun ca soube que ele

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tinha procurado minha mãe. Ghazi e minha mãe devem ter morrido antes que ele
tivesse chance de nos contar qualquer coisa a respeito do motivo para ele estar
lá.
Richard imaginou se aquela tinha sido o motivo para o incêndio.
Muitos dos fogos-fátuos reduziram o brilho, como se estivessem
desapontados que ele não pude sse falar a eles nenhuma das últimas palavras de
Ghazi.
Richard lembrou do seu objetivo e virou para seu guia.
— Por favor, Tam, eu vim por uma importante razão que, como eu
disse, no final pode acabar ajudando os fogos -fátuos com aquilo que eles
sofrem. Eu vim porque Baraccus deixou alguma coisa aqui para mim. A
biblioteca dele é aqui. Ele enviou a esposa dele com um livro para mim.
— Magda. — um dos fogos -fátuos nas proximi dades falou. Ele não
tinha certeza de qual estava falando, mas soou decididamente mais feminino do
que Tam.
— Isso mesmo.
— Isso foi muito tempo antes de nossa época, — disse ela. — mas as
palavras de Baraccus foram passadas para nós. Nós ainda guardamos os segredos
que ele pediu para guardarmos. Eu sou Jass. Venha. Tam e eu mostraremos para
você.
Tam e Jass conduziram Richard através da grama, em direção a grandes
árvores à esquerda dele. Entre as árvores, longe do campo aberto, mais uma vez
era como descer para dentro de um mundo escuro. Somente os dois fogos -fátuos
forneciam luz suficiente para que ele enxergasse o caminho.
— Qual a distância? — Richard perguntou.
— Não é longe. — falou Jass.
— É um lugar dentro do nosso reino, — disse Tam. — um lugar onde
podemos tomar conta dele e proteger ele. Através dos milênios a semente de
histórias plantadas no solo fértil de pedaços e fragmentos de fatos foi regada por
desejos e começou a criar raízes e crescer. Eventualmente, um fruto abundante
de rumores explodiu, espalhando ao vento sussurros que diziam que nós
escondemos um fabuloso tesouro de ouro. Nada poderia convencer os crentes
que isso não era verdade. A verdade não brilha para essas pessoas como o ouro
faz. O sonho deles de conseguir uma riqueza nã o merecida era tão forte que eles
achariam melhor sacrificar tudo que era realmente precioso para eles do que
aceitar a verdade que isso era uma crença vazia.
— O que nós escondemos não é um tesouro, — falou Jass. — mas uma
promessa feita por nossos ances trais.
— É um tipo de tesouro, — Richard falou para eles. — pelo menos,
para a pessoa certa.
O que não parecia longe para eles, para Richard parecia bastante
distante. Estava ficando cada vez mais exaustivo para ele colocar uma perna na
frente da outra. Seu estômago roncava de fome enquanto eles avançavam pela
floresta silenciosa.
Devia ser em algum ponto perto da meia noite quando as árvores
abriram e Richard finalmente conseguiu ver, iluminado pela luz prateada da lua,
um vale que estendia-se longe abaixo. Bosques frondosos cobriam o vale como
um tapete, com os grupos de árvores ascendendo as ladeiras de montanha que
cercavam de cada lado. O ponto onde ele estava com vista para todo o vale não
era apenas um lugar imponente, mas um local com uma vista as sustadoramente
bela das coisas que Richard sempre adorou. Ele morreu de vontade de explorar

316
um lugar como esse, de estar lá embaixo naquelas florestas… mas estar ali com
Kahlan. Sem ela, a beleza era apenas uma palavra. Sem Kahlan sorrindo para
ele, o mundo era vazio e morto.
— Esse é o lugar da biblioteca que o Mestre Baraccus deixou para
cuidarmos. — disse Tam.
Richard olhou ao redor. Viu apenas samambaias, algumas trepadeiras
descendo da escuridão acima, e os troncos massivos dos pinheiros perto dele n a
borda da elevação.
— Onde? — ele perguntou. — Não vejo qualquer construção em parte
alguma.
— Aqui. — falou Jass quando planou até uma pequena rocha,
descansando sobre ela. — Embaixo daqui está a biblioteca.
Richard coçou a cabeça. Parecia um lugar es tranho para uma
biblioteca. Mas então ele lembrou de ter encontrado a entrada para a biblioteca
em Caska embaixo de uma lápide. Sob a luz disso, a coisa fez mais sentido. Uma
construção poderia ter sido descoberta há muito tempo e invadida.
Ele curvou -se e encostou o ombro contra a rocha, em um nicho curvo
que não era afiado. Ele tinha certeza de que não era suficientemente forte para
mover uma grande placa de rocha como essa, mas de qualquer modo colocou
todo seu peso contra a rocha. Com grande esforço el a lentamente começou a
girar para o lado.
Os fogos-fátuos aproximaram -se, olhando com Richard para o que
havia embaixo. A rocha havia sido posicionada sobre uma pequena borda
cuidadosamente polida. Não havia buraco, nenhuma escadaria descendo dentro
do chão no interior daquela borda.
Richard ajoelhou e escavou o que estava embaixo da rocha, dentro da
borda. Era macio, e seco.
— Isso é apenas areia.
— Sim. — falou Jass. — Quando Magda veio, ela seguiu as instruções
do marido dela, usando magia, e encheu o que estava embaixo.
Richard estava incrédulo. — Com areia?
— Sim. — disse Jass.
— Quanta areia? — Richard perguntou. Ele não estava ansioso para
cavar um buraco cheio de areia, não importava o quão pequeno ele fosse.
— Você vê aquele pequeno rio desce ndo no vale? — Jass perguntou.
Richard forçou os olhos na fraca luz do luar. Ele viu os reflexos
cintilantes da água serpenteando entre bancos de areia.
— Sim, eu vejo.
— As palavras passadas para nós, — disse Jass. — falam que Magda
trouxe com ela um p oderoso feitiço de Baraccus. Ela usou ele para criar um
redemoinho de vento que pegou a areia dos bancos de areia, e colocou ela aqui
dentro desse buraco, enchendo o lugar embaixo para proteger ele.
— Proteger? — Richard perguntou. — De quê?
— De qualquer um que chegasse até aqui. Essa areia deve frustrar
qualquer um que pode vir atrás do que está lá embaixo.
— Bem, suponho que se houvesse bastante areia isso certamente o
atrasaria. — Richard olhou desconfiado para os dois fogos -fátuos girando
lentamente na luz do luar. — Quanta areia tem lá embaixo afinal?
Tam flutuou passando da borda da ladeira. — Está vendo aquela
saliência ali embaixo?
Richard inclinou -se cautelosamente sobre a borda do penhasco e olhou.

317
Devia ter várias centenas de pés descendo at é a estreita plataforma de pedra.
— Eu vejo.
— Essa é a distância que as salas da biblioteca estão para serem
encontradas.
— As salas da biblioteca estão enterradas em toda essa areia... até ali
embaixo, no fundo?
— Sim. — disse Tam.
Richard estava perplexo. Tinha que ser um palácio digno de tanta
areia.
— Como vou cavar isso? Levaria uma eternidade para fazer uma coisa
assim.
Tam retornou, chegando perto do rosto dele. — Talvez. Mas Baraccus
falou que se você fosse o escolhido, saberia o que fazer.
— Se eu for o escolhido? — Richard sentiu o peso do
desencorajamento, como uma montanha de areia sobre ele. — Porque eu sempre
tenho que ser o escolhido?
Tam girou por um momento. — Isso nós não podemos dizer.
Richard grunhiu com o desapontamento de est ar tão perto mas tão
longe. — Se eu sou o escolhido, então porque ele não poderia simplesmente ter
deixado uma mensagem para mim para que eu soubesse o que fazer?
Tam e Jass ficaram em silêncio durante um momento, como se
estivessem pensando.
— Bem, tem outra coisa que foi passada para nós. — finalmente Jass
falou.
— O que seria isso?
— Baraccus falou que os fogos -fátuos teriam que guardar isso durante
eras e eras, mas quando as areias do tempo finalmente tivessem esgotado, aquele
que deveria ter o livro estaria aqui e levaria ele. — Jass girou mais perto. —
Isso ajuda, Richard Cypher?
Richard passou a mão sobre o rosto. Porque Baraccus não podia
simplesmente ter contado a ele como recuperar Segredos do Poder de um Mago
Guerreiro? Talvez Baraccus tenha pensado que o homem que estava destinado a
ter o livro já devia ter domínio de seu poder ao ponto em que isso não
representasse obstáculo. Talvez ele tenha pensado que Richard deveria saber
como criar um redemoinho de vento mágico e sugar a areia. Se fosse assim,
então Richard não era o escolhido. Ele não apenas não sabia como usar o seu
poder mas também, desde que estivera na Sliph, ele não tinha mais o seu Dom.
Até onde Richard sabia, as areias do tempo já tinham esgotado para
ele. As Irmãs do Escuro col ocaram as Caixas de Orden em ação; as Notas
contaminaram o mundo dos vivos, iniciando a destruição da magia, o qual
provavelmente era o grande mal do qual os fogos -fátuos estavam sofrendo; e o
exército da Ordem Imperial estava avançando sem controle atravé s do Mundo
Novo. Mas o pior de tudo para ele, pessoalmente, Kahlan havia sido abduzida,
estava sob a influência do feitiço Cadeia de Fogo, e precisava desesperadamente
da ajuda dele.
E aqui estava ele, esperando que as areias do tempo se esgotassem.
Richard afastou a mão do rosto enquanto franzia a testa. Ele inclinou -
se sobre a borda do penhasco, olhando para a saliência longe lá embaixo. As
areias do tempo.
Ele olhou para o lado esquerdo e estudou a rocha. Nada viu ali que
pudesse usar, mas do lado dir eito ele pensou ter visto uma jeito de usar as

318
rochas para descer. Ele tirou a mochila das costas e colocou -a no chão enquanto
retirava sua pá de acampamento e rapidamente a montava.
— “Quando as areias do tempo finalmente tivessem esgotado, aquele
que deveria ter o livro estaria aqui e levaria ele”. — ele citou. — Não foi isso
que você falou?
— Sim. — disse Jass. — Isso é o que foi dito para nós.
Richard olhou além da borda do penhasco outra vez. — Tenho que
descer até lá embaixo, até aquela projeção. — ele falou para os fogos -fátuos.
— Nós vamos e iluminaremos o caminho. — falou Tam.
Richard não perdeu tempo ao descer pelo lado do precipício rochoso.
Acabou sendo tão difícil quanto ele julgou que seria, mas não demorou muito e
logo ele estava sobre a estreita plataforma abaixo do topo onde ele tinha
afastado a rocha para fora do caminho.
Ele fez um busca ao redor, tateando o rosto da parede rochosa, até que
encontrou o que estava procurando. Imediatamente ele começou a cavar,
lascando, e retirando ped ras que estavam tão bem comprimidas que era difícil
dizer com certeza sob a fraca luz da lua e dos dois fogos -fátuos se aquilo
realmente era o que ele pensou que era. Quando rochas começaram a sair, seu
nível de confiança cresceu. Quanto mais fragmentos de rocha ele tirava, mas
fácil era tirar mais.
Ele teve que trabalhar cuidadosamente para soltar algumas das pedras
maiores; um passo errado e ele poderia escorregar e cair da estreita plataforma.
Alguns dos pedregulhos mais no fundo do buraco que crescia e ram maiores do
que ele seria capaz de remover, então teve que rolar e caminhar com eles para
fora da sempre crescente abertura. Felizmente, ele conseguiu soltar as pedras
embaixo da maioria deles e então rolar com eles para fora. Ele ficou de um lado
sobre a projeção estreita e deixou que as rochas e pedregulhos caíssem passando
por ele. Observou -os mergulhando através do ar da noite, caindo silenciosas até
que finalmente batiam no chão da floresta abaixo.
De repente, quando a pá atravessou em algo macio, o resto das rochas
começaram a sair com um som vibrante e abruptamente explodiram em uma
cascata de fragmentos. Richard teve que esquivar para fora do caminho. Com um
rugido ribombante, a areia fluiu em uma coluna projetando -se no espaço antes
de começar a arquear para baixo.
Richard ficou com as costas pressionadas contra a parede rochosa, seu
coração acelerado por causa da surpresa da explosiva desobstrução da abertura
que dava acesso ao interior oco do penhasco. Os dois fogos -fátuos ficaram
girando enquanto observavam a incrível visão. Um deles, Richard não tinha
certeza de qual era, seguiu a coluna de areia e desceu até certo ponto antes de
retornar.
Aquilo parecia continuar eternamente, mas o último punhado de areia
finalmente começou a reduzir o volu me enquanto escorria para fora do buraco,
deixando apenas pequenas quantidades escorrendo.
Richard não perdeu tempo para entrar no buraco. — Vamos lá, — ele
gritou para os fogos -fátuos. — Eu preciso de luz.
Os dois fogos -fátuos obedeceram, passando por c ima dos ombros dele
para entrarem primeiro. Assim que passaram, eles iluminaram a câmara além.
Richard ficou parado do lado de dentro, limpando -se enquanto observava as
prateleiras ao redor cheias de livros. Era surpreendente imaginar que ele era a
primeira pessoa a estar nesse lugar desde Magda Searus, a mulher que se
tornaria a primeira Confessora.

319
Isso fez ele lembrar de Kahlan, e de sua necessidade de encontrá -la,
então imediatamente ele começou a olhar em volta. Parecia uma biblioteca bem
simples, com um portal do outro lado que ele podia ver conduzia mais fundo no
interior do penhasco. Ele viu sombras de portais, e escadas circulares. A
despeito da areia que escorreu para fora através do buraco, ainda havia bastante
areia cobrindo tudo. Levaria algum tempo para limpar o lugar e realmente dizer
o que estava ali.
À direita, porém, sobre um pedestal de pedra contra uma parede
rochosa vazia, estava um livro sozinho. Richard removeu -o do suporte e soprou
areia de cima dele.
Na capa estava escrito “Segredo s do Poder de um Mago Guerreiro ”.
Os dedos dele gentilmente deslizaram sobre as letras douradas na capa
quando ele novamente começou a ler as palavras destinadas a ele.
Foi uma sensação de inspirador respeito perceber que um Mago
Guerreiro, o Primeiro Ma go Baraccus em pessoa, tinha feito esse livro para a
pessoa que nasceria com o poder que ele garantiu que seria liberado do Templo
dos Ventos. Richard finalmente havia encontrado o tesouro que Baraccus
deixara para ele.
Um fogo-fátuo pairou sobre cada um dos ombros dele, observando -o
enquanto ele olhava fixamente de forma reverente para o livro que finalmente
responderia suas perguntas, que finalmente o ajudaria a dominar o seu Dom.
Finalmente, com seu coração acelerado, Richard abriu a capa para ver
o que Baraccus queria que ele soubesse.
A primeira página estava em branco.
Richard folheou mais páginas, mas todas estavam em branco. Ele
folheou o livro todo e, a não ser pelas palavras na capa, ele descobriu que o
livro inteiro estava completamente em bra nco.
Richard pressionou as têmporas entre o dedão e o indicador de uma das
mãos. Ele achou que poderia vomitar.
— Algum de vocês consegue ver alguma coisa nas páginas?
— Não. — falou Jass. — Sinto muito.
— Não vejo qualquer marca de escrita. — complementou Tam.
Então Richard percebeu qual era o problema. Seu coração ficou
pesado.
Segredos dos Poderes de um Mago Guerreiro era um livro de
instruções sobre o uso de uma forma específica do Dom. O livro envolvia magia.
Por alguma razão, Richard havia perdi do seu Dom. Sem esse Dom para auxiliá -
lo, qualquer coisa que estava escrita nas páginas não permaneceria em sua
mente. Ele esqueceria as palavras antes que pudesse lembrar de ter lido elas.
Exatamente como ele não lembrava mais das palavras do Livro das
Sombras Contadas, ele não conseguia lembrar das palavras de Segredos do Poder
de um Mago Guerreiro tempo suficiente para lembrar de ter visto quaisquer
palavras. Sem o Dom, ele pareceria estar em branco.
Até que ele conseguisse descobrir o que havia de err ado com o seu
Dom, não seria capaz de ler esse livro.
— Terei que levar esse comigo. — Richard falou para os fogos -fátuos.
— Exatamente como Baraccus disse que você faria, Richard Cypher. —
falou Tam.
Richard imaginou se Baraccus de algum jeito sabia di sso também. Quer
ele soubesse ou não, Richard não tinha tempo para ponderar a respeito. Ele saiu
pelo buraco e subiu de volta pela face rochosa do penhasco.

320
Ele notou que a rocha projetava -se acima da abertura para o interior da
biblioteca, cobrindo -a, provavelmente para que a água não fosse absorvida no
“tampão” ou com o passar do tempo ou encontrasse um caminho de entrada. A
areia tinha que estar seca não apenas para que os livros ali dentro não fossem
arruinados, mas também para que ela não fosse arrast ada para fora. Richard
decidiu que por enquanto a biblioteca estava relativamente protegida da chuva.
No topo do penhasco, ele guardou o valioso livro em branco em sua
mochila. Ele viu que dentro do círculo de pedra, onde estivera a areia, agora
havia uma escada em espiral para dentro da escuridão abaixo. Para certificar -se
de que ninguém descobrisse a biblioteca, ele empurrou com toda força contra a
rocha até conseguir girá -la até o lugar.
Ofegante com o esforço, ele pendurou a mochila nas costas. Sua me nte
estava acelerada com mil pensamentos diferentes. No caminho de volta através
da floresta escura, Richard pouco falou com os fogos -fátuos, a não ser para
agradecê-los por sua ajuda.
Assim que chegaram novamente até a pradaria, ele contemplou a visão
de todos os fogos -fátuos deslizando através da grama e flores do campo, alguns
rodopiando em uma dança complexa enquanto moviam -se em pares. Ele
imaginou quantos fogos -fátuos havia quando Kahlan estivera aqui.
Richard sentia tanta falta de Kahlan que isso f ez surgir um nó em sua
garganta. Ela era o mundo dele. O mundo todo, de tantas formas, parecia estar
escapulindo.
— Tenho que ir. — ele falou para Tam e Jass. — Espero usar o que
encontrei aqui para ajudar a terminar com o sofrimento dos fogos -fátuos, e d e
outros.
— Você voltará? — perguntou Jass.
Pensando na biblioteca escondida, Richard assentiu. — Sim. E eu
espero trazer Kahlan comigo, e que nesse momento vocês lembrem dela. Sei que
ela ficará muito feliz em ver todos vocês outra vez.
— Quando nós lembrarmos dela, — disse Jass. — então ficaremos
cheios de alegria também.
Não querendo testar sua voz novamente, Richard assentiu e então
começou a caminhar.
Tam o escoltou através da antiga floresta, ajudando ele a encontrar o
caminho. No limite das anti gas árvores, o fogo -fátuo parou. — Baraccus foi
sábio escolhendo você, Richard C ypher. Acredito que está em você o que é
preciso para ter sucesso. Desejo o melhor para você.
Richard sorriu com tristeza. Ele gostaria de ter tanta certeza. Não tinha
mais acesso ao Dom dentro dele... se ele ao menos ainda estivesse ali... e não
fazia ideia de como teria sucesso. Talvez Zedd pudesse ajudar.
— Obrigado, Tam. Você e os fogos -fátuos tem sido bons protetores das
coisas que Baraccus deixou com vocês. Farei o melho r que puder para protegê -
los, e aos outros inocentes que estão sob tão grande perigo.
— Se você falhar, Richard C ypher, sei que não será por falta de
esforço de sua parte. Se algum dia precisar de nossa ajuda outra vez, como Shar
falou para você, diga um de nossos nomes e nós tentaremos ajudar você.
Richard assentiu e começou a afastar -se, virando uma vez para acenar.
O fogo-fátuo exibiu uma forte cor rosada durante um momento e então
desapareceu de volta entre as árvores. De repente ele sentiu -se terrivelmente
triste sozinho sob a luz da lua.
Os carvalhos mortos pareciam intermináveis. Ele caminhou lentamente,

321
entorpecido. Precisava arrumar um pouco de comida e descansar, mas primeiro
ele queria sair da estranha floresta e retornar ao bosque. Ele viu oss os entre as
raízes dos carvalhos, como se as árvores estivessem tentando arrastar os mortos
para abraçá-los em seus leitos.
Em algum ponto na floresta morta, após caminhar infinitamente,
absorto em pensamentos agitados, Richard sentiu um súbito calafrio q ue o fez
estremecer e inspirar de forma entrecortada o ar frio em seus pulmões.
Ele sentiu como se tivesse caminhado para dentro das presas do
inverno.
Quando levantou os olhos, avistou o que de início pareceu como uma
sombra na vertical entre os crânios . Quando ele finalmente viu o que era
realmente, outro calafrio subiu em sua espinha.
Era uma mulher alta com cabelo preto. Ela usava roupas negras. Sua
pele era tão pálida quanto a lua, fazendo seu rosto delgado parecer flutuar na
escuridão. Sua carne dessecada estava esticada sobre os ossos, do jeito como ele
imaginava que os mortos ficariam durante algum tempo enquanto jaziam sem
vida na floresta esquecida, esperando que os vermes fizessem o seu trabalho.
O leve sorriso ameaçador dela marcou -a inconfundivelmente como o
tipo que deixava os ossos de pessoas exaustas apodrecerem em um lugar como
esse, entre os mortos em decomposição.
Richard sentiu tanto frio que não conseguia mover -se. Ele percebeu
que estava tremendo, mas parecia que não conseguia contr olar-se. Não
conseguia sentir seus dedos. Queria agira, correr, mas não conseguia obrigar as
suas pernas a moverem -se.
Ele não tinha o Dom para invocar. Não tinha espada para sacar.
Sentiu-se impotente sob o olhar cativante dos ardentes olhos azuis
dela.
Richard pensou se os seus restos sem vida acabariam descartados nesse
lugar desolado para apodrecerem, esquecidos, junto com todos os outros ossos
anônimos daqueles que vieram com sonhos vazios.
Os braços da mulher ergueram -se, como as asas de um corvo que
levantavam, e a noite o engoliu.

322
C A P Í T U L O 4 2

Kahlan foi percebendo gradualmente o desconcertante zumbido de


vozes, tanto perto quanto longe. Porém, ela estava tão zonza que não tinha
certeza se isso era real ou se estava apenas imaginan do. Sabia que alguns dos
pensamentos fluindo infinitamente em sua mente tinham que ser a sua
imaginação, a despeito do quão reais eles pareceram. Ela sabia que não estava
em um momento em um campo cheio de flores entre as estrelas, e no momento
seguinte no meio de uma batalha campal com cadáveres dissecados sobre o
cavalo, e um instante depois voando entre as nuvens sobre a costa de um Dragão
vermelho. Tudo isso pareceu tão real, mas ela sabia que não podia ser.
Afinal de contas, não havia tais coisas como Dragões. Isso era apenas
um mito.
Mas se realmente eram vozes que ela estava ouvindo, não conseguia
entender as palavras. Elas chegavam até ela mais como sons sem corpo,
rudimentares, cada pulso tonal ressoando dolorosamente com algo em seu
interior.
Do que tinha certeza era que sua cabeça latejava em um ritmo lento e a
cada momento a batida agonizante apertava, parecia como se o crânio dela fosse
abrir com a pressão. Conforme cada ciclo intermitente aliviava, a náusea brotava
dentro dela, apenas para se r lançada de volta a uma relativa insignificância mais
uma vez pela torturante compressão avassaladora.
Independente do quanto tentasse abrir seus olhos, Kahlan não
conseguia erguer suas pesadas pálpebras. Seria necessária mais força do que ela
podia reunir no instante. Além disso, ela temia que pudesse haver luz, e tinha
certeza de que a luz machucaria como longas agulhas nos seus olhos indefesos.
Parecia como se alguma pressão desconhecida a estivesse suspendendo,
mantendo-a imóvel, enquanto uma força e scondida a torturava com a latejante
pressão. Procurando desesperadamente escapar disso, ela tentou dobrar os
braços, mas eles estavam rígidos demais. Ela tentou mover as pernas, ou mesmo
erguer um joelho, mas suas pernas estavam firmemente encapsuladas em uma
densa escuridão.
Um som, possivelmente um palavrão, assustou -a, trazendo ela para
mais perto da consciência, levando -a através da confusão entorpecida em
direção ao mundo dos vivos. Dessa vez tinha certeza de que os sons eram vozes.
Ela começou a ser capaz de distinguir uma palavra ocasional.
Mentalmente ela agarrou naquelas palavras como uma corda de
salvação e usou -as para ajudar a si mesma a sair dos escuros poços da
inconsciência. Ela respirava de maneira uniforme, concentrando -se nas palavras,
forçando o latejar para o segundo plano enquanto escutava cuidadosamente cada
palavra, tentando conectá -las em conceitos significativos. Reconheceu as vozes
de mulheres, e a voz de um homem. Um homem rude.
Entretanto, a dor de estar acordada era ainda mais debilitante do que o
sofrimento em um sonho que sentira enquanto estava inconsciente. A realidade
tinha uma forma de adicionar uma dimensão agonizante para a dor, uma
desgraça inevitável, um tormento implacável latejando através do corpo dela.
Em um esforço para livrar sua mente da dor que sentia, Kahlan abriu
os olhos apenas o bastante para espiar e dar uma olhada cuidadosa ao redor. Ela

323
estava dentro de algum tipo de estrutura. Parecia alguma coisa como uma tenda
feita com lona cor de canela pálida, mas se isso realmente era uma tenda, era
muito maior do que qualquer tenda que ela lembrava já ter visto. Ricos tapetes
pendiam de um lado, parecendo que serviam com a função de portas duplas.
Ela estava deitada em espessas peles que estavam sobre alguma coi sa
levemente elevada ao invés de espalhada no chão. No ar úmido e quente as peles
estavam fazendo ela suar. Pelo menos não estava coberta com lençóis. Ela
pensou que talvez tivesse sido colocada ali para que não tivesse apoio para os
pés. Havia uma cadeira , com encosto entalhado, do lado oposto ao que ela jazia,
mas ninguém estava sentado nela.
Diversas lanternas estavam posicionadas pela sala sobre baús enquanto
outras pendiam em correntes. Elas pouco conseguiam fazer para afastar a
atmosfera lúgubre dent ro da tenda, mas pelo menos o cheiro do óleo queimando
ajudava a aliviar o pesado fedor de suor, animais e esterco. Kahlan estava
aliviada que a luz não machucasse seus olhos como temeu que machucaria.
Uma das Irmãs andava de um lado para outro na luz fra ca, como um
fantasma que não conseguia encontrar seu túmulo.
Ruídos misturados, abafados, entravam através da grossa lona e
paredes com tapetes da tenda. Soava como toda uma cidade cercando o santuário
abafado. Kahlan podia ouvir os murmúrios de homens ao milhares junto com o
bater de cascos, o som de carroças, o zurrado de mulas, e o retinir metálico de
armas e armaduras. Homens ao longe gritavam ordens, riam, ou praguejavam,
enquanto aqueles mais próximos contavam histórias que ela não conseguia
distinguir.
Kahlan sabia como era esse exército. Tivera avistado relances dele de
longe, esteve em lugares onde eles estiveram, e tinha visto aquelas pessoas que
eles torturaram, estupraram e assassinaram. Ela não queria algum dia ter que ir
lá fora, entre os sel vagens que ela sabia que eram aqueles homens.
Quando ela notou Jagang olhar em sua direção, fingiu ainda estar
inconsciente, respirando de forma compassada, ficando perfeitamente imóvel, e
mantendo os olhos quase fechados. Aparentemente achando que ela ai nda não
estava acordada, ele deixou seu olhar voltar para Irmã Ulicia.
— Não pode ser tão simples assim. — insistiu Irmã Armina de onde ela
estava ao lado de uma mesa. Ela ergueu o nariz de forma arrogante.
Kahlan podia distinguir a borda de um livro sob re aquela mesa. Os
dedos estendidos de Irmã Armina repousavam sobre a capa de couro do livro.
— Armina, — Jagang perguntou com uma voz calma, quase agradável.
— você consegue ao menos imaginar o quanto é divertido para mim estar na
mente de uma Irmã incôm oda que envio para as tendas, para que ela seja
compartilhada entre meus homens?
A mulher ficou pálida quando recuou um passo até sua costa
encontrara a parede da tenda. — Não, Excelência.
— Estar ali, testemunhando o pavor delas? Estar ali nas mentes de las,
vendo o quão completamente indefesas elas ficam enquanto mãos poderosas
rasgam suas roupas e apalpam seus corpos, enquanto elas são pressionadas
contra o chão, suas pernas são abertas forçadamente, e elas são montadas por
homens que as consideram sem valor a não ser como luxurioso entretenimento?
Homens que possuem absolutamente nenhuma simpatia por todas elas, que não
importam-se com o sofrimento que causam em sua busca sem freios por aquilo
que desejam? Consegue imaginar o quanto é satisfatório para mim estar ali, nas
mentes dessas Irmãs apavoradas, ser uma testemunha ocular, por assim dizer, da

324
bem merecida punição delas?
Com os olhos arregalados de pânico, Irmã Armina falou em uma voz
malmente audível. — Não, Excelência.
— Então sugiro que pare de protestar baseada não naquilo que você
pensa, mas naquilo que você pensa que eu quero ouvir. Não estou interessado
que você lamba minhas botas. Na minha cama você pode me bajular se acha que
isso conquistará minha consideração, coisa que não acontecerá, m as nesse caso
estou interessado apenas na verdade. Os seus argumentos obsequiosos não farão
com que tenhamos sucesso. Somente a verdade fará isso. Se tem algo que valha
à pena dizer, então diga, mas pare de interromper Ulicia para criticar a opinião
dela com aquilo que você acha que eu quero ouvir, ou você será enviada
novamente para as tendas mais cedo. Você entendeu?
O olhar da Irmã Armina desviou. — Sim, Excelência.
Irmã Ulicia deu um suspiro quando Jagang voltou sua atenção para ela.
Ela parou de cami nhar de um lado para outro. Levantou um braço em direção ao
livro sobre a mesa.
— O problema, Excelência, é que não existe jeito para que nós
possamos confirmar se a cópia ali dentro é verdadeira ou não. Sei que é isso que
você quer que façamos, e acredit e em mim, nós tentamos, mas a verdade é que
não conseguimos descobrir qualquer coisa que pudesse resolver o assunto.
— Porque não?
— Bem, se ali diz “posicione as Caixas voltadas para o norte”, como
podemos ser capazes de detectar se essa é uma instrução falsa ou verdadeira
apenas lendo ela? Até onde sabemos, colocá -las voltadas para o norte poderia
ser uma cópia precisa do manuscrito original, caso em que não fazer como
indicado provaria ser fatal... ou poderia ser uma corrupção da verdadeira direção
e fazer como indicado seria fatal. Como podemos saber? Você pode querer que
sejamos capazes de chegar a uma conclusão sobre a validade do livro apenas
lendo ele, mas não temos como fazer isso. Sei que você não quer que eu minta
para satisfazer o seu pedido. E stou servindo melhor a você sendo sincera.
Jagang olhou para ela com desconfiança. — Tenha cuidado, Ulicia,
para não cruzar o limite. Não estou com bom humor.
Irmã Ulicia abaixou a cabeça. — É claro, Excelência.
Jagang cruzou os braços grossos sobre o p eito massivo e voltou ao
assunto em questão. — Então você acha que por essa razão aqueles que fizeram
as cópias deixaram para nós essa outra forma para diferenciar o falso do
verdadeiro?
— Sim, Excelência. — disse Irmã Ulicia, a despeito de parecer ansios a
para assumir uma posição que, ela sabia, não o agradaria. Uma vez que o
Imperador podia ler os pensamentos dela, ele saberia a verdade daquilo em que
ela honestamente acreditava. Kahlan imaginou que Irmã Ulicia concluiu que sua
melhor chance de não ser a lvo da fúria dele era expor verdadeiramente aquilo
em que acreditava. Irmã Ulicia não era nada a não ser esperta.
— Você acredita que então essa é a verdadeira explicação, que isso não
é um erro, mas que isso foi calculado e deliberado.
— Sim, Excelência. Tem que haver alguma forma para saber. Caso
contrário, o uso bem sucedido do livro seria apenas resultado do acaso. As
Caixas de Orden foram criadas como uma contramedida para…
Ela fez uma pausa quando olhou brevemente em direção a Kahlan.
Kahlan mantev e os olhos quase fechados para que a mulher não soubesse que ela
estava acordada. Irmã Ulicia voltou sua atenção para Jagang.

325
— Eles teriam concluído que se algum dia fosse necessário usar essa
contramedida seria apenas porque a situação era desesperadora , então eles
precisariam saber que o livro era verdadeiro ou então arriscariam perder tudo
aquilo em que acreditavam. Afinal de contas, eles estariam usando o livro para
salvar tudo em que acreditavam. Se aqueles que usassem a contramedida das
Caixas estivessem errados a respeito da cópia que estavam consultando, então
poderiam perder mais do que apenas suas vidas... arriscariam perder o mundo
dos vivos.
— A não ser que aqueles que fizeram as cópias desejassem que as
falsas cópias enganassem um ladrão gana ncioso. — falou Jagang.
— Mas Excelência, — disse Irmã Ulicia. — para deter quaisquer
planos traiçoeiros, aqueles que cuidavam das Caixas precisariam ter uma forma
para diferenciar a cópia verdadeira das falsas. Se eles não deixassem um método
como esse p ara aqueles que viriam depois, então teriam abandonado seus
descendentes para viverem de acordo com a sorte. A razão para fazerem as
cópias em primeiro lugar foi porque estavam preocupados com os riscos que
poderiam surgir no futuro com a existência apenas do texto original. Afinal, o
único livro na existência estaria sujeito a diversas ameaças, desde o fogo, água,
até vermes, e isso sem contar com a variedade de ameaças propositais. Eles
estavam tentando garantir que houvesse uma cópia precisa se algum dia fosse
necessário usar as Caixas e o livro original não estivesse disponível por razões
que eles nem ao menos podiam ser capazes de imaginar. Arriscar esse futuro
dependendo da sorte iria contra o objetivo deles ao fazerem as cópias.
— Está vendo o que eu quero dizer? Uma vez que eles fizeram apenas
uma cópia verdadeira, e o resto falsas, estavam tentando desencorajar o uso
inapropriado das Caixas... colocando outro obstáculo no caminho para que elas
fossem utilizadas... mas ao mesmo tempo, se as Caixas re almente fossem
necessárias, certamente eles não desejariam que essa necessidade fosse satisfeita
de acordo com a sorte. Eles teriam deixado para aqueles que viriam depois um
jeito de confirmar a verdade.
— Já que o texto dentro do livro não é contraditóri o em si, parece que
aqueles que fizeram as cópias inquestionavelmente teriam criado outro meio
para diferenciar o verdadeiro do falso.
Jagang virou para a outra Irmã. — Ah, Armina teve um pensamento.
Fale, querida.
Irmã Armina limpou a garganta. — Pedem para acreditarmos que uma
palavra no singular ao invés do plural serviu como a única indicação de validade
deles? — Irmã Armina balançou a cabeça. — Embora eu reconheça a ideia geral,
acredito que essa seja uma resposta simples demais, se não uma mensagem
opaca demais. Isso significa que diferenciar o falso do verdadeiro torna -se uma
questão de sorte também, a não ser que eles nos forneçam uma maneira de
confirmar isso.
— E eles forneceram, não foi? — Irmã Ulicia arqueou uma sobrancelha
quando inclinou um pouco em direção a mulher. — Está bem ali, bem no início,
onde noz diz precisamente como detectar se o livro é verdadeiro ou não. Diz que
ela deve verificar isso. Ela verificou.
Armina cruzou os braços. — Como eu falei, acho que isso é simples
demais para ser a resposta.
— Se é tão simples, Armina, então porque você não viu? — perguntou
Irmã Ulicia.
Kahlan fechou os olhos um pouco mais quando Irmã Ulicia apontou

326
para ela. — Ela encontrou a falha. Porque nenhum de nós viu isso? Somente ela
viu. Sem ela nós provavelmente não teríamos notado ou, se tivéssemos,
provavelmente teríamos pensado que não poderia ser importante e teríamos
ignorado isso. Ela fez o que o livro disse que deveria. Ela encontrou isso. Disse
que isso significa que a cópia é uma falsa cóp ia. Esse é exatamente o propósito
para o qual o próprio livro disse que ela deveria ser usada.
— Algumas de nós podem não considerar aquela falha complexa o
bastante para ser o elemento determinante, mas isso é irrelevante. O fato de que
ela deve verifica r a veracidade desse livro permanece e, por causa de uma falha
que somente ela notou, ela alega que essa é uma falsa cópia. Isso é o que
importa. Temos que considerar esse pronunciamento como válido.
Avaliando as palavras de cada mulher, Jagang esfregou u ma mão
carnuda sobre o pescoço de touro enquanto caminhava de um lado para outro
diante da mesa. Ele olhou para o livro durante um momento, então falou.
— Há uma forma de termos certeza. — ele olhou para cada Irmã. —
Nós encontramos as outras cópias e as comparamos. Se todas elas, ou apenas
algumas, tiverem essa mesma falha no título, então isso indicaria que é uma
coisa sem importância. Por outro lado, se todas elas a não ser uma tiver essa
mesma falha, então aquela que não tem provavelmente seria a cópia verdadeira.
Então poderemos comparar todas as versões do texto e se aquela sem a falha no
título for diferente de todas as outras, nós teremos confirmado que essa é a
cópia verdadeira.
— Excelência, — disse Irmã Armina abaixando a cabeça levemente de
forma reverente. — essa é uma ideia excelente. Se conseguirmos localizar as
outras, e essa for a única com essa falha, então isso provaria minha teoria de
que isso nada mais é do que um simples erro isolado de um encadernador
ignorante.
Jagang ficou olhando para ela durante um momento antes de finalmente
quebrar o contato visual e ir até um baú. Ele abriu o topo e tirou um livro. Ele o
jogou sobre a mesa de forma que ele deslizou em direção às duas Irmãs.
Irmã Armina pegou ele e leu a capa. Mesmo na luz frac a das
lamparinas a óleo, Kahlan conseguiu ver o rosto da mulher ficar vermelho.
— O Livro das Sombra Contadas. — ela disse em um sussurro
incrédulo.
— Sombra? — perguntou Irmã Ulicia, espiando por cima do ombro da
Irmã Armina. — Não Sombras?
— Não. — disse Jagang. — Esse é o Livro das Sombra Contadas, da
mesma forma que aquele de Caska.
— Mas... mas... — gaguejou Irmã Armina. — Eu não entendo. De onde
é essa cópia?
Um sorriso condescendente uniu -se ao olhar raivoso dele. — Do
Palácio dos Profetas.
Irmã Armina ficou de boca aberta.
Irmã Ulicia franziu a testa. — O quê? Não pode ser. Tem certeza?
— Se eu tenho certeza? — ele grunhiu com escárnio. — Oh, sim, eu
tenho certeza. Vejam bem, tenho esse livro já faz algum tempo. Essa é parte da
razão pela qual eu permiti que vocês, tolas, continuassem sua busca. Eu
precisava da mesma mulher atrás da qual vocês estavam para descobrir se essa é
uma cópia verdadeira ou não.
— O tempo todo em que tive esse livro eu jamais notei a palavra
“sombra” no título como al go além do que deveria ser. Simplesmente assumi que

327
dizia o que deveria dizer. Mas a nossa amiga inconsciente ali notou isso
imediatamente.
— Mas como você pode ter pego isso do Palácio dos Profetas? —
perguntou Irmã Ulicia. — De acordo com o que aprendem os, essas cópias
estavam enterradas com ossos, como em Caska, em catacumbas escondidas.
Jamais foi descoberta qualquer catacumba no Palácio dos Profetas antes que ele
fosse destruído.
Jagang sorriu, como se estivesse explicando coisas para crianças. —
Você acha que é tão esperta, Ulicia, descobrindo sobre as Caixas, sobre o livro
necessário para abri -las, sobre as catacumbas, e sobre a pessoa necessária para
verificar o texto do livro. Mas eu já sabia durante décadas aquilo que apenas
recentemente você des cobriu.
— Estive visitando mentes durante um longo, longo tempo para ajudar
em nossa causa. Você ficaria surpresa com todas as coisas que aprendi há muito
tempo. Enquanto vocês, Irmãs, estavam engajadas em políticas do Palácio, em
batalhas por poder em su a própria pequenina ilha, em cortejar o Criador ou o
Guardião, buscando favores em troca da lealdade a um ou ao outro, eu estive
trabalhando para unir o Mundo Antigo na causa da Sociedade da Ordem, que é a
verdadeira causa do Criador e desse modo a única c ausa correta para a
humanidade.
— Enquanto vocês estavam ensinando jovens homens a serem magos,
eu estava mostrando a esses mesmos jovens a verdadeira Luz. Sem que as Irmãs
ao menos estivessem conscientes disso, muitos daqueles jovens magos já
tornaram-se devotos da futura salvação da humanidade ao tornarem -se
discípulos da Ordem. Eles passaram décadas caminhando pelos corredores do
Palácio dos Profetas, bem embaixo dos narizes das Irmãs, enquanto trabalhavam
como Irmãos da Sociedade da Ordem. E eu estava lá nas mentes deles enquanto
eles liam todos aqueles livros restritos nas Câmaras do Palácio.
— Como um Andarilho dos Sonhos , dei a eles direcionamento e
propósito em seus estudos. Eu sabia o que era necessário. Fiz eles procurarem
para mim. Como Irmãos d a Ordem eles encontraram há muito tempo a entrada
secreta para as catacumbas... ela estava escondida sob uma área de
armazenamento não utilizada e esquecida na área mais antiga dos estábulos. Eles
pegaram esse livro, assim como outros volumes valiosos, das catacumbas, e
então quando eu finalmente cheguei ao Palácio depois de triunfantemente
unificar o Mundo Antigo, eles os entregaram a mim. Tenho essa cópia em
particular faz décadas.
— A única coisa que eu não tinha era um jeito para cruzar a grande
barreira para que pudesse obter as Caixas e o meio para verificação. Mas então,
através da intromissão delas, as Irmãs me obrigaram a fazer coisas que
resultaram na destruição daquela barreira.
— Agora que o Palácio dos Profetas foi destruído, temo que as
catacumbas e os livros que elas guardavam estejam perdidos para sempre, mas
aqueles jovens procuraram na maioria daqueles volumes escondidos, e através
dos olhos deles eu li a maioria. O Palácio e as catacumbas agora se foram, mas
nem todo o conhecimento contid o lá foi perdido. Aqueles jovens cresceram para
tornarem-se Irmãos, muitos ainda vivem e servem em nossa luta.
— Quando testemunhei você criar o seu plano de capturar a Madre
Confessora, percebi que poderia usar esse plano para finalmente colocar minhas
mãos nela e usá-la para meus propósitos, então deixei que você achasse que
estava realizando exatamente o que pretendia, quando estava, de fato, realizando

328
o que eu queria. Agora tenho o livro, e a Madre Confessora que o livro diz que
deve ser usada para con firmar sua validade.
As duas Irmãs só conseguiam olhar fixamente.
A mente de Kahlan girava com a confusão. Madre Confessora. Ela era
a Madre Confessora.
O que seria uma Madre Confessora?
Jagang exibiu um sorriso malicioso para as Irmãs. — Vocês foram as
tolas perfeitas, não acham?
— Sim, Excelência. — ambas concordaram como uma só em vozes
baixas.
— Então, vejam bem, — ele prosseguiu. — agora nós temos duas
cópias do Livro das Sombras Contadas, e as duas possuem o mesmo erro... a
palavra “sombra” ao i nvés de “sombras” na capa.
— Mas ainda são apenas dois. — disse Irmã Armina. — E se todas as
outras cópias tiverem a mesma falha?
— Não acredito que isso acontecerá. — falou Irmã Ulicia.
— Bem, se elas tiverem, isso certamente provaria alguma coisa, não
provaria? — Jagang arqueou uma sobrancelha questionadora sobre um olho
negro. — Agora eu tenho duas, e elas possuem exatamente o mesmo erro. Nós
precisaremos ter o resto para confirmar a teoria de que uma delas terá o título
escrito corretamente, como “so mbras”. Então, desse modo precisaremos manter
a Madre Confessora viva até que possamos ver se ela realmente encontrou a
falha que verificará a cópia verdadeira.
— E se todas as cópias tiverem a mesma falha, Excelência? —
perguntou Irmã Armina.
— Então teremos aprendido que o erro no título não é o método para
verificar o Livro das Sombras Contadas. Pode até ser que nós precisemos dar a
ela acesso para a cópia em si para que ela possa ter uma base mais ampla para
fazer a verificação... para fazer isso em c oisas que agora ela não é capaz de ver.
Irmã Armina levantou uma das mãos. — Mas Excelência, eu não sei se
uma coisa como essa ao menos é possível.
Jagang não deu resposta parta a preocupação de Armina, e ao invés
disso pegou o livro dela e colocou -o ao lado daquele que estava sobre a mesa. —
A Madre Confessora ainda é vital para nós. Ela é a única forma de verificar a
cópia verdadeira. Ainda não podemos ter certeza de que ela fez isso. Até agora
ela fez um julgamento baseada na única informação disponíve l a ela. Por
enquanto, precisamos dela viva.
— Sim, Excelência. — disse Irmã Armina.
— Acho que ela pode estar acordando. — falou Irmã Ulicia.
Kahlan percebeu que estivera escutando tão atentamente que falhou em
fechar completamente quando Irmã Ulicia o lhou em direção a ela. A Irmã
chegou mais perto, olhando para ela.
Kahlan não queria que soubessem que ela ouvira eles a chamarem pelo
título de Madre Confessora. Ela esticou -se um pouco, como se tentasse escapar
das amarras da inconsciência enquanto tent ava imaginar o que poderia significar
um título como esse.
— Onde estamos? — ela murmurou, fingindo uma voz grogue.
— Estou confiante de que logo isso irá tornar -se bem claro para você.
— Irmã Ulicia bateu com força no ombro de Kahlan. — Agora, acorde.
— O que foi? Você quer alguma coisa, Irmã? — Kahlan esfregou os
olhos, tentando parecer descoordenada e surpresa. — Onde estamos?

329
Irmã Ulicia enfiou um dedo na coleira ao redor do pescoço de Kahlan e
levantou-a.
Antes que Irmã Ulicia pudesse falar mais a lguma coisa, a mão carnuda
de Jagang agarrou o braço dela e afastou -a do caminho. Ele estava concentrado
em Kahlan. Os punhos dele seguraram o colarinho da camisa dela perto da
garganta. Ele ergueu -a do chão.
— Você matou dois guardas de confiança. — ele disse entre dentes
cerrados. — Você matou Irmã Cecilia. — o rosto dele estava ficando vermelho
com a fúria que crescia rapidamente. As sobrancelhas curvaram -se sobre os
olhos escuros. Parecia que um raio poderia cintilar nas formas nebulosas que
deslizavam naqueles olhos negros. — O que fez você pensar que poderia ficar
impune ao matá -los?
— Não pensei que poderia ficar impune. — Kahlan falou tão
calmamente quanto conseguia. Como ela suspeitou, sua calma apenas serviu para
provocar a fúria dele.
Ele rugiu com ódio e sacudiu -a tão violentamente que pareceu como se
aquilo fosse romper os músculos do pescoço dela. Era óbvio que ele era um
homem que, ao menor sinal de provocação, mergulhava em explosões de fúria
incontrolável. Ele estava prestes a cometer um a ssassinato.
Kahlan não queria morrer, mas sabia que uma morte rápida podia ser
preferível levando em conta aquilo que ele prometeu para ela mais tarde. De
qualquer modo, ela nada podia fazer para detê -lo.
— Se não pensou que poderia sair impune, então po rque ousaria fazer
uma coisa assim!?
— Que diferença faz? — perguntou Kahlan com tranquila indiferença
enquanto os punhos dele em sua camisa a mantinham tão alto que as botas não
tocavam no chão.
— Do que você está falando?
— Bem, você já disse que o se u tratamento para mim será terrível além
de qualquer coisa que eu já tenha experimentado. Acredito em você; esse é o
único jeito através do qual pessoas como você podem conseguir vencer... com
ameaças e brutalidade. Porque você é um tolo pomposo, cometeu o erro de falar
para mim que eu não conseguiria ao menos imaginar todas as coisas terríveis
que pretende fazer comigo. Esse foi o seu grande erro.
— Erro? Do que você está falando? — ele aproximou-a do seu corpo
musculoso. — Que erro?
— Você cometeu um er ro tático, Imperador. — falou Kahlan,
conseguindo pronunciar o título dele de uma forma que fez com que soasse
como zombaria. Queria que ele ficasse com raiva, e podia ver que isso estava
funcionando.
A despeito de estar pendurada pelos punhos dele, Kahla n tentou soar
controlada, até mesmo distante. — Veja bem, você tornou claro para mim que
não importa o que eu faça, nada tenho a perder. Deixou claro que não é possível
fazer você mudar de ideia. Disse que vai fazer o pior que puder comigo. Isso faz
com que eu não fique mais presa a qualquer esperança de misericórdia de sua
parte. Ao revelar que não posso ter qualquer esperança de piedade, forneceu a
mim uma vantagem que anteriormente eu não tinha.
— Entenda que, ao cometer esse erro, mostrou a mim que eu nada tinha
a perder ao matar os seus guardas e, já que eu serei submetida ao seu pior de
qualquer jeito, eu também podia ter minha vingança sobre a Irmã Cecilia. Ao
cometer tal erro tático, mostrou para mim que você não é tão esperto afinal de

330
contas, que você é apenas um bruto e pode ser superado.
Ele relaxou a pegada apenas o bastante para Kahlan encostar as pontas
das botas e obter um pouco de apoio.
— Você realmente é surpreendente. — ele falou quando um leve
sorriso suplantou sua fúria. — Vou aproveitar bastante o que tenho planejado
para você.
— Eu já falei qual foi o seu erro, e você o repete? Aparentemente,
você também não aprende muito bem, não é mesmo?
Antes, quando ele aproximou -a furioso contra si e colocou o rosto dela
bem perto do dele, qua ndo as mãos dele estavam firmemente ocupadas
segurando-a de uma forma ameaçadora, Kahlan havia usado a distração para
retirar cuidadosamente a faca da bainha no cinto dele. Com dois dedos ela
escondeu-a em sua mão. Ele estava tão furioso que não tinha nota do.
Ao invés de entrar em outro ataque de fúria com o último insulto dela,
ele começou a rir.
Kahlan já estava com a faca firme em seu punho.
Sem cerimônia ou aviso, ela golpeou o mais forte que podia.
A intenção dela era enfiar a lâmina por baixo das c ostelas dele, para
cortar órgãos vitais, talvez até o coração dele se ela conseguisse enterrar tão
fundo. Porém, a maneira como ele a estava segurando, atrapalhou seu
movimento o suficiente para que ela errasse o alvo por uma fração de polegada e
ao invés disso acertasse a costela mais baixa dele. A ponta travou em osso.
Antes que tivesse tempo para removê -la e esfaqueá-lo novamente, ele
agarrou o pulso dela e torceu o seu braço, fazendo ela girar. A costa dela bateu
contra o peito dele. Ele arrancou a fac a da mão dela antes que ela conseguisse
fazer algo a respeito. O braço dele sobre a garganta dela cortou seu ar enquanto
ele a segurava contra os músculos massivos. O peito dele pulsava de fúria contra
a costa dela.
Ao invés de admitir a derrota, e antes que desmaiasse com a falta de
ar, ela usou toda sua força para enfiar o calcanhar da bota na tíbia dele. Pelo
grito ela soube que isso machucou. Ela golpeou com o cotovelo diretamente no
ferimento recente. Ele encolheu -se. Quando seu cotovelo ricocheteou d o golpe
ela moveu-o para frente para ganhar impulso e então atingiu a mandíbula dele.
Porém, ele era tão grande, tão forte, que isso não surtiu um efeito incapacitante.
Pareceu como se ela tivesse atacado um touro. E, e como um touro, ele apenas
ficou mais furioso.
Sem parecer ter ficado pior com o ataque, Jagang agarrou a camisa
dela antes que ela conseguisse afastar -se do seu alcance. Ele bateu no estômago
dela forte o bastante para fazer com que ela curvasse e para deixá -la sem fôlego.
Ela arfou, tentan do respirar em meio a dor estonteante.
Kahlan percebeu que estava de joelhos somente quando ele ergueu -a
pelo cabelo e colocou -a novamente em pé. Os joelhos dela tremiam sem
estabilidade.
Jagang estava sorrindo. A explosão de fúria dele havia sido elimin ada
por uma briga inesperada, perigosa, porém unilateral, e uma oportunidade para
infligir dor. Ele estava começando a gostar do jogo.
— Porque você simplesmente não me mata? — Kahlan conseguiu falar
enquanto ele ficava parado, observando -a.
— Matar você? Porque eu desejaria matar você? Então você apenas
estaria morta. Quero você viva para que eu possa fazer você sofrer.
As duas Irmãs nada fizeram para frear seu mestre. Kahlan sabia que

331
elas não teriam reclamado de qualquer coisa que ele fizesse com ela. Enquanto
sua atenção estivesse em Kahlan, não estava sobre elas. Antes que ele pudesse
bater nela novamente, luz inundou a tenda abruptamente, atraindo sua atenção.
— Excelência, — disse uma voz rouca. Tinha vindo do lado de fora.
Um dos grandes brutamon tes segurava levantado o tapete da tenda enquanto
aguardava. O homem tinha aparência similar aos dois guardas que ela matou.
Kahlan supôs que Jagang tinha um suprimento infinito de homens assim.
— O que foi?
— Estamos prontos para levantar acampamento, E xcelência. Sinto
muito interromper, mas você pediu para ser avisado logo que estivéssemos
prontos. Você disse que queria que nós fôssemos rápidos.
Jagang soltou o cabelo de Kahlan. — Está certo, então podem começar.
Ele girou inesperadamente, aplicando u m tapa no rosto dela forte o
bastante para fazer ela rolar pelo chão.
Enquanto ela permanecia no chão recuperando os sentidos, ele
pressionou com uma das mãos sobre a costela. Ele afastou a mão para ver o
quanto estava sangrando. Esfregou a mão nas calças , aparentemente decidindo
que aquele era um ferimento relativamente pequeno e nada com o que
preocupar-se. De acordo com o que Kahlan conseguia ver, ele carregava diversas
cicatrizes, a maioria atestando ferimentos muito piores do que aquele que ela
causara.
— Providenciem para que ela não tenha mais ideias brilhantes. — ele
disse para as Irmãs quando dirigia -se até o tapete que o guarda segurava
levantado para ele.
Kahlan sentiu fogo vindo da coleira, através de seus nervos seguindo
todo o caminho até as pontas dos dedos. A dor ardente arrancou um gemido
involuntário.
Ela queria gritar de fúria de fúria por ter aquela dor ainda espalhando -
se através dela. Odiava a forma como as Irmãs usavam a coleira para controlar
ela. Odiava a agonia que elas podiam fa zer ela sentir.
Irmã Ulicia aproximou -se e ficou sobre ela. — Aquela foi uma coisa
bastante estúpida, não foi?
Kahlan não conseguiu responder em meio a dor estonteante. O que ela
teria dito para a Irmã era que aquilo não foi estúpido, que tinha valido à pena.
Enquanto ela estivesse respirando, lutaria contra eles. Com seu último
suspiro, se fosse necessário, ela lutaria.

332
C A P Í T U L O 4 3

Na abertura fora da tenda do Imperador Jagang, Kahlan encolheu -se ao


ver o exército da Ordem Imperial de pe rto pela primeira vez. A distância havia
removido um pouco dos aspectos mais ásperos. Apesar de ter uma boa ideia
deles, essa ainda era uma visão perturbadora.
A densa massa de homens espalhava -se ininterruptamente pelo
horizonte. Com todos avançando e em movimento... curvando, levantando,
erguendo equipamento, entrando em fileiras, selando cavalos, preparando
carroças, com diferente grupos sobre cavalos movendo -se como ondas através da
massa de homens... aquilo parecia como um infinito mar negro ondulante
traiçoeiro.
Não havia um só homem à vista... e ela podia ver milhares e milhares...
que tivessem aparência gentil ou inofensiva. Cada homem parecia brutal e
sinistro, como se nada houvesse que ele buscasse na vida tanto quanto o
prospecto de cometer viol ência. Esses homens pareciam movidos pela singular
perspectiva de uma devastação sem freios. Kahlan temeu pensar naqueles que
poderiam encontrar -se no caminho desses homens.
Enquanto observava tudo, ela começou a notar que havia diferenças
entre os homens. Os grupos mais próximos ao Imperador eram mais
disciplinados, organizados, e centrados em tudo que faziam. Eram mais atentos
com suas armas. Todos os homens mais próximos ao redor das tendas do
Imperador eram muito parecidos com os dois que Kahlan matou.
Depois deles estavam outros homens vestindo tipos de uniformes
diferentes feitos com cota de malha e couro. Todos eles pareciam quase tão
grandes e bem treinados como os homens mais próximos ao Imperador, mas suas
armas primárias pareciam machados em for ma de lua crescente. Mais além havia
outras camadas circulares de homens, incluindo homens com bestas carregadas,
espadachins, e fileiras de homens com piques posicionados em formações bem
próximas, preparando -se para a longa marcha adiante.
Enquanto cada uma das camadas de homens em volta do Imperador
usavam seus próprios uniformes distintivos que combinavam com os do resto de
seu grupo, todos eram grandes, musculosos, tinham armadura, e estavam
pesadamente equipados com armas bem feitas. Esse era o núcle o da forca do
Imperador dos mais mortais, mais terríveis e formidáveis do exército dele.
No meio dos círculos internos estavam homens que pareciam oficiais.
Alguns davam ordens a mensageiros, alguns davam ordens a homens de menor
patente, enquanto outros reuniam-se em grupos, fazendo planos sobre mapas.
Outros ainda vinham de tempos em tempos para falar brevemente como Jagang.
Fora, além das barreiras dos soldados de carreira estava a ralé que de
longe constituía a maior massa do exército. As armas carreg adas por aqueles
homens... espadas, machados, piques, lanças, maças, clavas, e facas... eram
feitos de forma deselegante, e por causa disso pareciam ainda mais mortais.
Aqueles eram homens grosseiros que pareciam prontos para provocar baderna.
Uma coisa el es compartilhavam com os homens mais próximos ao Imperador:
todos pareciam ferozes idealistas dispostos a impor suas crenças embaixo das
solas de suas botas. Kahlan sentiu como se estivesse presa em uma ilha
traiçoeira, cercadas por monstros em um mar selv agem.

333
Kahlan viu algo mais diferente no meio do círculo interior. Havia
mulheres. No início não havia notado elas, porque suas roupas estavam tão
escuras que elas mesclavam -se no meio de todos os homens. Devido ao modo
como essas mulheres observavam todos , começou a suspeitar que elas eram
Irmãs que serviam para proteger o Imperador. Também havia homens que
estavam altamente desarmados, mas que tinham uma aparência que de certo
modo fazia Kahlan lembrar das Irmãs. Provavelmente eles também eram
dotados. Nenhum dos homens ou Irmãs ao menos olhou em direção a Kahlan.
Ninguém além de Irmã Ulicia, Irmã Armina, e Jagang sabia que ela estava ali.
Também havia homens jovens que, por suas calças simples e frouxas, e
total ausência de quaisquer armas, pareciam ser escravos tomando conta de
tarefas servis. De algumas das outras tendas na área do Imperador, Kahlan viu
emergirem mulheres jovens para serem arrebanhadas dentro de carroças antes
que as tendas fossem desarmadas. Pela forma como os homens encaravam
abertamente aquelas mulheres e pelas roupas escassas delas, o propósito delas
entre os homens de alta patente estava óbvio para Kahlan. A expressão morta,
vazia, nos olhos das mulheres indicou que elas deviam ser cativas forçadas a
servir como prostitutas.
A multidão além fez uma barulheira incessante, enquanto a maioria dos
homens mais perto estavam em silêncio enquanto cuidavam dos preparativos
para levantar acampamento. A maioria dos homens nas proximidades tinham
rebites, anéis, correntes, e rostos tatuados co m desenhos exclusivos que faziam
eles parecerem não apenas selvagens, mas deliberadamente menos do que
humanos, como se eles estivessem rejeitando um valor mais alto em favor de um
inferior. O objetivo na vida escolhido por eles claramente era a brutalidad e.
Enquanto tratavam de seu trabalho eles conversavam um pouco e prestavam
atenção a ordens gritadas por oficiais cavalgando pelo meio deles. Eles
trabalhavam com experiente precisão conforme empacotavam acessórios,
preparavam armas, e selavam cavalos.
Porém, as grandes massas de homens mais distante não eram tão
ordenados ou cuidadosos. Eles jogavam seus acessórios de uma forma aleatória.
Quando partiam eles deixavam para trás montes de refugos e pilhagens
quebradas. Não podiam incomodar -se com tais preocupações; sua vocação na
vida era repreender aqueles que não acreditavam em seus costumes superiores.
Ao ver a reação de Kahlan a todos os homens ferozes, Irmã Ulicia fez
um gesto apontando para os homens com a cabeça e então inclinou -se chegando
mais pert o de Kahlan. — Sei como você está se sentindo.
Kahlan duvidou disso. Ela não quis falar qualquer coisa porque tinha
certeza de que Jagang estava na mente da Irmã, vigilante a tudo que Kahlan
poderia ter a dizer quando ele não estava perto.
— Realmente não importa como eu me sinto agora, importa? — ela
disse para as duas Irmãs observando -a. — Ele fará o que quiser comigo. — ela
checou o corte em sua bochecha causado por um dos anéis de Jagang. Ele
finalmente havia parado de sangrar. — Ele deixou isso bem claro.
— Suponho que ele fará. — falou Irmã Ulicia.
— Ele fará o que quiser com todas nós. — Irmã Armina adicionou. —
Não consigo acreditar que fomos tão tolas.
Um grupo de oficiais retornou com Jagang. Soldados atrás deles já
levavam cavalos selados jun to com eles. Outros homens já estavam pegando
baús, cadeiras, mesas, e itens menores para fora da tenda do Imperador e
colocando tudo em caixotes nas carroças que aguardavam. Logo que a tenda

334
havia sido esvaziada, as cordas foram baixadas, seguidas pelos p ostes, e
finalmente a tenda em si. Em questão de momentos aquilo que parecia com uma
pequena cidade de tendas, com a grande tenda do Imperador no centro, era
apenas um campo vazio.
Jagang fez sinal a um homem para que ele entregasse as rédeas de um
cavalo a Kahlan. — Hoje você cavalgará comigo.
Kahlan imaginou o que ela estaria fazendo no dia seguinte, mas não
perguntou. Parecia como se ele tivesse planos para ela. Não conseguia ao menos
imaginar quais eram mas temia o que estava reservado para ela.
Ela enfiou uma bota em um estribo e subiu na sela, então observou o
mar de homens, estimando suas chances se tentasse correr para a liberdade. Ela
poderia ser capaz de passar pelos homens, porque, com exceção das duas Irmãs e
Jagang, os homens não conseguiriam lembrar dela tempo suficiente para lembrar
que a tinham visto. Lá fora entre aqueles homens, independente do quão
apavorante fosse tal pensamento, ela estaria invisível. Para eles pareceria como
se um cavalo sem cavaleiro estivesse fugindo, e eles provave lmente não
desejariam ser pisoteados sem uma boa razão.
As Irmãs, observando -a cuidadosamente, montaram também, uma de
cada lado dela para certificarem -se de que ela não tivesse chance de sair em
disparada. Mesmo que ela fosse invisível para os soldados, K ahlan sabia que as
Irmãs poderiam usar a coleira para derrubá -la. Elas também não precisavam
estar perto; ela aprendera isso do modo difícil. Suas pernas ainda estavam
doendo por causa do que elas tinham feito um pouco mais cedo. Era uma boa
coisa que ela tivesse de cavalgar, porque nesse momento ela não achava que
chegaria muito longe a pé.
O mar de homens já tinha começado a mover -se em uma onda escura. A
luz do amanhecer cintilava em milhões de armas, fazendo o exército parecer
líquido. Como se flutuass em na jangada formada pelos guardas pessoais do
Imperador e o séquito de Irmãs, serviçais, e escravos, eles começaram a deslizar
dentro do vasto oceano ondulante de homens seguindo para o norte em direção
ao horizonte.
Eles cavalgaram com o quente sol nas cente à sua direita. Kahlan, entre
as Irmãs, no meio dos guardas pessoais do Imperador, movendo -se na massa de
homens fluindo em direção norte. Ela teve uma boa visão de tudo isso do alto de
sua sela. Pelo menos ela não tinha que carregar as coisas das Irm ãs nas costas,
como sempre tivera que fazer.
A conversa entre os soldados logo morreu com o monótono esforço da
marcha. Falar tornava -se difícil demais para eles. Não demorou muito para
Kahlan suar no calor. Homens carregando pesadas mochilas caminhavam a diante
lentamente, os olhos em direção ao chão na frente deles. Parar provavelmente
significaria ser pisoteado. Devia haver uma força de milhões que ela podia ver
atrás deles, seguindo para o norte com eles.
Durante o dia carroças, ou homens sobre cavalos , abriam caminho
entre os homens, entregando comida. Carroças dispersas entre o exército em
intervalos carregavam água. Logo havia uma fila de homens, marchando,
aguardando sua vez de beber um pouco de água de cada uma das carroças
avançando entre eles.
Perto do meio dia uma pequena carroça chegou no meio do grupo do
Imperador. Tinha comida quente que foi entregue a todos os oficiais. As Irmãs
passaram a Kahlan a mesma coisa que o resto deles recebeu... pão envolto em
algum tipo de carne salgada pastosa. N ão tinha um gosto muito bom, mas

335
Kahlan estava faminta e feliz em receber aquilo.
Ao anoitecer todos estavam exaustos da árdua marcha. Eles comeram
em movimento e não pararam por nada. Estavam cobrindo mais terreno do que
ela achava que um exército desse tamanho fosse capaz em um dia. Ela sentiu
como se estivesse coberta por grande parte do solo que eles haviam cruzado.
Não sabia se ficaria mais feliz com a chuva que removeria a poeira, porque
então eles teriam que lutar coma lama.
Kahlan ficou surpresa q uando viu adiante deles aquilo que parecia com
a área do Imperador. Bandeiras sobre tendas ondulavam ao vento quente como
que para dar boas vindas ao Imperador. Ela percebeu que as carroças com todos
os equipamentos do Imperador deviam ter seguindo na fren te e montado
acampamento. O exército era tão vasto e cobria tanta área que levava horas, se
não dias, para que todos eles passassem no mesmo ponto, então as carroças não
teriam que avançar adiante fora da proteção do exército. Os homens
simplesmente teriam aberto um caminho para que elas seguissem na frente
através dos homens em marcha e antes do anoitecer começassem a montar
acampamento para que na hora em que o Imperador chegasse tudo estivesse
pronto.
Kahlan viu carne assando em espetos sobre várias fog ueiras. Os aromas
fizeram seu estômago arder de fome. Outras fogueiras tinham caldeirões
fervendo sobre suportes de ferro. Escravos corriam aqui e ali carregando uma
variedade de suprimentos, trabalhando em mesas, girando espetos, mexendo o
que estava nos caldeirões e adicionando ingredientes enquanto preparavam a
refeição da noite. Bandejas com pães, carnes, e fruta já estavam sendo
preparadas.
Jagang, cavalgando diretamente na frente de Kahlan, desmontou diante
de sua grande tenda. Um homem veio correndo para segurar as rédeas. Quando
as Irmãs e Kahlan desmontaram, mais homens jovens correram para levarem os
cavalos delas também. As Irmãs, como se direcionadas por comandos sem
palavras, conduziram Kahlan rapidamente junto com elas quando seguiram
Jagang entrando sob o largo tecido ornamentado cobrindo a abertura da tenda,
que estava sendo mantido afastado por um soldado musculoso sem camisa. Ele
estava melado de suor, provavelmente do trabalho de montar as tendas, e tinha
um fedor azedo.
Do lado de dentro , parecia exatamente como parecera naquela manhã
em que eles partiram. Só de olhar, era difícil dizer que eles tinham ido a algum
lugar. As lanternas já estavam acesas. Kahlan estava feliz com o cheiro do óleo
queimando porque ele encobria parte do fedor d e urina, esterco e suor. Havia
diversos escravos lá dentro, todos cuidando apressadamente da tarefa de
preparar a refeição do Imperador que estava sendo colocada sobre a mesa.
Abruptamente Jagang virou, agarrou Irmã Ulicia pelo cabelo e puxou -a
adiante. Inicialmente ela soltou um leve grito de dor e surpresa, mas
rapidamente conteve o choramingo e não ofereceu resistência quando ele puxou -
a mais perto. Os escravos olharam brevemente ao ouvirem o grito de Irmã
Ulicia, e então imediatamente voltaram ao seu t rabalho como se nada tivessem
visto.
— Porque ninguém mais enxerga ela? — perguntou Jagang.
Kahlan sabia do que ele estava falando.
— O feitiço, Excelência. O feitiço Cadeia de Fogo. — Irmã Ulicia
estava sendo segura em uma posição esquisita e desconfor tável, parcialmente
curvada e sem equilíbrio. — Esse era o propósito do feitiço.... que ninguém

336
pudesse enxergá-la. Ele foi criado especificamente para fazer uma pessoa
aparentemente desaparecer. Acredito que ele pode ter sido planejado como um
método de criar um espião que não poderia ser detectado. Nós usamos o feitiço
para esse propósito... para que pudéssemos pegar as Caixas de Orden do Palácio
do Povo sem que ninguém soubesse o que tínhamos feito.
Kahlan sentiu como se o seu coração subisse até a garg anta ao ouvir
como tinha sido usada, como sua vida e sua memória foram arrancadas dela. Um
nó formou-se em sua garganta ao ouvir o desprezo arrogante que as Irmãs
tinham pela sua preciosa vida. O que dava a essas mulheres o direito de roubar a
vida de alguém dessa forma?
Apenas há pouco tempo, ela pensava que era uma ninguém sem
memória, uma escrava das Irmãs. Agora, em um curto espaço de tempo, ela
descobriu que era Kahlan Amnell, e que era a Madre Confessora... seja lá o que
isso fosse. Agora descobriu q ue não sabia que seu nome era Amnell, ou que ela
era essa pessoa Madre Confessora, porque as Irmãs a enfeitiçaram.
— É desse jeito que ele deveria funcionar. — disse Jagang. — Então
porque aquele dono de hospedaria viu ela? Porque aquela ratinha da rochas em
Casca viu ela?
— Eu... eu... não sei. — Irmã Ulicia gaguejou.
Ele puxou -a um pouco mais perto. Ela começou a esticar -se para
segurar os pulsos dele tentando evitar que seu escalpo fosse arrancado, mas ela
pensou que era melhor não tentar resistir a q ualquer coisa que ele fazia e deixou
os braços caírem pendurados dos ombros curvados.
— Permita que eu refaça a pergunta para que até mesmo uma vadia
estúpida como você consiga entendê -la. O que vocês fizeram de errado?
— Mas Excelência...
— Vocês devem ter feito algo errado ou aqueles dois não teriam sido
capazes de enxergá -la! — Irmã Ulicia tremeu mas não respondeu enquanto ele
fazia um sermão. — Você e Armina conseguem ver ela porque vocês estavam
controlando o feitiço. Eu consigo ver ela porque estav a em suas mentes e assim
estava protegido pelo mesmo processo. Mas ninguém mais deveria ser capaz de
enxergá-la.
— Agora, — ele falou após uma pausa para cerrar os dentes. — vou
perguntar mais uma vez. O que vocês fizeram de errado?
— Excelência, não fiz emos nada de errado. Eu juro.
Jagang sinalizou com um dedo para Armina. Ela avançou
obedientemente com passos curtos.
— Você gostaria de responder minha pergunta e dizer o que vocês
fizeram de errado? Ou você também gostaria de ser enviada para as tendas junto
com Ulicia?
Irmã Armina engoliu seu terror quando abriu os braços. — Excelência,
se eu pudesse me livrar confessando, eu faria isso, mas Ulicia está certa. Não
fizemos nada de errado.
Ele direcionou de volta o seu olhar para a Irmã que segurava pe lo
cabelo. — Para mim parece bastante óbvio que vocês duas estão erradas... o
feitiço deveria torná -la invisível mas outras pessoas conseguem enxergá -la. E
ainda assim vocês continuam presas a uma história quando obviamente ela é uma
mentira? Você tinham q ue fazer alguma coisa errada ou aquelas duas pessoas
não teriam visto ela.
Irmã Ulicia, com lágrimas escorrendo das bochechas por causa da dor
que estava sentindo, tentou balançar a cabeça. — Não, Excelência... não

337
funciona desse jeito.
— O que não funci ona desse jeito?
— O feitiço Cadeia de Fogo . Uma vez iniciado, ele segue o seu curso.
O feitiço faz o trabalho. É auto direcionado; nós não guiamos ou controlamos
ele de forma alguma. De fato, nenhuma intervenção é possível durante o
processo. Ele é inici ado e então o feitiço executa suas rotinas predeterminadas.
Nem sabemos quais são essas rotinas. Em alguns aspectos elas funcionam de
forma similar a um feitiço construído. Não ousaríamos mexer em qualquer um
deles. O poder liberado no Cadeia de Fogo é muito maior do que aquilo que nós
sabemos como regular... e não temos como alterar um feitiço assim mesmo se
quiséssemos.
— Ela está certa, Excelência. Nós sabíamos o que ele deveria fazer,
qual deveria ser o resultado, mas não sabemos como ele trabalha. O q ue
mudaríamos? Nosso objetivo era que ele funcionasse, que ele fizesse aquilo para
o que foi projetado. Não tivemos qualquer razão para tentarmos mexer nele,
então nada existe que pudéssemos ter feito de errado.
— Tudo que fizemos foi iniciá -lo. — insistiu Irmã Ulicia, lágrimas
começando a sair junto com suas palavras. — Nós executamos as teias de
verificação para termos certeza de que tudo estava como deveria, e então
iniciamos ele. O feitiço fez o resto. Não temos ideia do porque aquelas duas
pessoas conseguiram ver ela. Ficamos completamente surpresas com isso.
Ele virou seu olhar furioso para Irmã Armina. — Vocês conseguem
consertar seja lá o que esteja errado?
— Não temos ideia de qual é o problema, — falou Irmã Armina. —
então não há jeito para que nós possamos consertar. Nem sabemos se tem mesmo
alguma coisa errada. Pelo que sabemos, simplesmente poderia ser desse jeito
que o feitiço trabalha... havendo algumas poucas pessoas que, por alguma razão
por nós desconhecida, ainda conseguem enxergá -la. O feitiço é muito mais
complexo do que qualquer coisa que já vimos. Não temos ideia do que está
errado... se é que realmente tem alguma coisa errada... ou de como corrigir.
— Acho que talvez tenha sido uma anomalia aleatória. — Irmã Ulicia
sugeriu quando o silêncio na tenda tornou -se nefasto. — Às vezes essas coisas
acontecem com a magia. Pequenos fatores que não são antecipados pelo criador
do feitiço escapam e não são afetados. Pode não ser algo mais do que isso.
— Afinal de contas, o feitiço tem milhares de anos. Aqueles que o
criaram nunca o testaram, então podem haver coisas não resolvidas das quais
eles não estavam cientes.
Jagang não pareceu convencido. — Deve ter sido algo que vocês
fizeram errado.
— Não, Excelência. Nem mesmo aqueles magos antigos podiam fazer
alguma coisa com o feitiço assim que ele era iniciado. Afinal, a magia de Orden
foi criada para lidar com o feitiço se algum dia ele fosse liberado. Nada mais
pode alterar o curso dele.
Os ouvidos de Kahlan ficaram mais atentos. Ela imaginou porque as
Irmãs teriam usado um feitiço para roubar as Caixas de Orden que foram criadas
como uma contramedida para o feitiço. Talvez a intenção delas fosse garantir
que ninguém pudesse usar essa contramedida.
Jagang finalmente soltou Irmã Ulicia atirand o-a ao chão com um
grunhido de desgosto. As mãos delas cobriram o seu escalpo, procurando
confortar a dor.
O Imperador Jagang andou de um lado para outro enquanto considerava

338
o que tinha ouvido. Vendo alguém espiando para dentro da tenda, ele parou e
sinalizou. Diversas mulheres entraram com jarras e despejaram vinho tinto em
canecas dispostas sobre a mesa. Garotos serviçais começaram a entrar na sala
carregando travessas e bandejas cheias com uma variedade de comida quente
fumegante. Jagang andou de um lad o para outro, prestando pouca atenção aos
escravos enquanto eles executavam seu trabalho.
Quando a mesa finalmente estava cheia, Jagang tomou assento na
cadeira entalhada atrás da mesa. Ele refletiu enquanto observava as duas Irmãs.
Todos os escravos alin haram-se silenciosamente atrás dele, prontos para atender
suas necessidades ou buscar qualquer coisa que ele pedisse.
Ele finalmente voltou sua atenção para o jantar e enfiou os dedos no
presunto. Ele espremeu a mão cheia com a comida quente. Com a outra mão ele
arrancou longas tiras do grande naco e comeu -as enquanto contemplava as Irmãs
e Kahlan, como se julgasse se elas deviam viver ou morrer.
Quando tinha acabado com o presunto, ele sacou a faca do cinto e
usou-a para cortar um pedaço carne bovina ass ada. Ele espetou a tira vermelha
de carne e ergueu-a, esperando. Sangue correu pela lâmina e descendo pelo
braço dele até o cotovelo descansando sobre o tampo da mesa.
Ele fez uma pausa e sorriu para Kahlan. — Um uso melhor para minha
faca do que o uso qu e você tinha feito, não acha?
Kahlan considerou manter silêncio, mas não conseguiu resistir. —
Gostei mais do meu uso. Só gostaria que a minha mira tivesse sido certeira. Se
isso tivesse acontecido, não estaríamos tendo essa conversa.
Ele sorriu. — Talvez. — tomou um gole de vinho de uma caneca antes
de usar seus dentes para arrancar um pedaço da carne presa na faca.
Enquanto observava Kahlan, e enquanto mastigava, ele disse. — Tire a
sua roupa.
Kahlan piscou. — O quê?
— Tire a sua roupa. — ele gesticulou com a faca. — Toda ela.
Kahlan cerrou a mandíbula. — Não. Se quer que elas sejam tiradas,
terá que arrancá-la de mim.
Ele balançou os ombros. — Farei isso mais tarde, apenas pela
satisfação, mas por enquanto, tire a roupa.
— Porque?
Ele ergueu uma sobrancelha. — Porque eu disse para fazer isso.
— Não. — ela repetiu.
Os olhos de pesadelo dele desviaram para Irmã Ulicia. — Fale para
Kahlan sobre as tendas de tortura.
— Excelência?
— Fale para ela sobre a extensa experiência que nós temos em
convencer pessoas a fazerem o que queremos. Diga a ela quais as torturas que
aplicamos.
Antes que Irmã Ulicia pudesse falar, Kahlan falou primeiro. — Apenas
vá em frente e me torture. Ninguém está interessado em ouvir a sua conversa
fiada a respeito disso. Tenh o certeza de que você acharia melhor fazer com que
eu sofra... então vamos logo com isso.
— Oh, a tortura não é para você, querida. — ele arrancou uma perna de
um ganso assado e usou -a para apontar uma jovem atrás dele. — A tortura é para
ela.
Kahlan olh ou para a mulher que repentinamente estava em pânico e
então fez uma careta para Jagang. — O quê?

339
Ele mordeu mais um pouco da carne escura de ganso. Gordura escorreu
pelos seus dedos. Ele sugou a gordura dos anéis.
— Bem, — ele disse enquanto beliscava a carne que pendia da perna.
— talvez eu devesse explicar. Veja bem, nós temos essa tortura onde o
inquisidor faz uma pequena incisão na parte baixa do abdômen da pessoa em
questão. — ele virou e enfiou a perna de ganso na barriga da jovem, logo abaixo
do umbigo. A perna de ganso deixou uma marca gordurosa na carne nua dela. —
Mais ou menos ali.
— Então, — ele falou, virando de volta. — o inquisidor empurra as
pontas de um par de tenazes bem fundo dentro da barriga e vai procurando até
que consegue agarrar um pouco do intestino delgado. Tudo é bastante
escorregadio lá dentro, e a pessoa que está sendo submetida a esse tratamento
não fica ali paradinha, se entende o que eu quero dizer, então geralmente leva
um tempinho para segurar a parte adequada do intesti no. Assim que ele
consegue, lentamente ele começa a puxar algumas polegadas dele para fora. É
um grande sofrimento.
Ele inclinou e arrancou outra tira de presunto. — Agora, se você não
fizer o que eu digo, então todos nós iremos até as tendas de tortura.. . — ele
gesticulou para a esquerda com a tira mole de presunto. — e vamos deixar que
um de nossos inquisidores experientes faça isso com essa garota atrás de mim.
Ele direcionou um olhar gélido para Kahlan. — Tudo porque você
recusa fazer o que eu digo. V ocê observará toda a coisa agonizante. Terá que
ouvir os gritos dela, ouvir ela implorar por sua vida, observará ela sangrar, verá
as entranhas vitais dela sendo arrancadas. Depois que o homem tiver puxado
uma certa quantidade, então ele começará a enrolar em uma vara, como uma
linha... só para manter a bagunça limpa e organizada. Depois disso, ele fará uma
pausa e olhará para mim.
— Nesse momento, pedirei outra vez educadamente que você faça
conforme eu falei. Se recusar novamente, então ele puxará lentam ente mais um
pouquinho das macias, delicadas, tripas ensanguentadas dela, enrolando na vara,
enquanto todos nós escutamos ela gritar, chorar e implorar para morrer. Esse
processo todo pode durar por um longo tempo. É uma experiência
excruciantemente doloro sa lenta. — Jagang exibiu um sorriso alegre para
Kahlan. — E então, perto do fim, você verá ela convulsionar em sua morte.
Kahlan olhou para a garota. Ela estava imóvel, mas havia ficado tão
branca quanto o açúcar amontoado na tigela em um lado da mesa.
Jagang mastigou lentamente e então engoliu com um gole de vinho. —
Depois disso, você poderá nos observar atirando a carcaça sem vida dela na
carroça dos mortos, junto com outros corpos arruinados de pessoas que foram
interrogadas.
— Então, oferecerei a U licia e Armina a opção de serem enviadas para
as tendas, para entreter meus homens, que possuem os desejos mais luxuriosos,
ou, se escolherem, pensar em formas de usar a coleira em seu pescoço para
causar a você mais dor do que você já experimentou com ela . A condição será
que elas não podem deixar você desmaiar. Vou querer, é claro, que você sint a
tudo.
Do lado de fora, o barulho do exército continuava sem trégua, mas
dentro da tenda estava mortalmente quieto. Jagang mordeu outra tira da carne
ensanguentada quando prosseguia.
— Depois que tiverem exaurido sua imaginação, e eu acreditar que o
incentivo vai gerar alguma ideias inventivas, então eu pessoalmente espancarei

340
você até bem perto da sua morte. Após tudo isso, arrancarei sua roupa e você
estará em pé nua diante de mim.
Os olhos de pesadelo dele estavam fixos nela. — A escolha é sua,
querida. De um jeito ou de outro, no final, você aceitará minha ordem e acabará
em pé nua diante de mim. Que método você escolhe? Decida rápido. Não vou
oferecer a escolha outra vez.
Kahlan não tinha escolha. Resistir a isso era inútil. Ela engoliu o nó na
garganta e imediatamente começou a desabotoar sua camisa.

341
C A P Í T U L O 4 4

Jagang pegou a mão cheia com Noz-Pecã de uma tigela prateada e


enfiou algumas na boca. Ele sorriu com seu triunfo enquanto observava Kahlan
começar a remover as roupas. A expressão satisfeita dele fez com que ela se
sentisse ainda mais miserável e impotente.
Ela estava certa de que seu rosto tinha ficado vermelho. Ela não
realizou qualquer tentativa posterior de lutar contra a ordem dele. Sabia que
precisava escolher suas batalhas, e essa não era uma que poderia vencer.
Imaginou se algum dia venceria qualquer outra. Começou a duvidar de que isso
fosse realmente possível. Não haveria sa lvação para ela. Essa era sua vida, seu
futuro, tudo que haveria para ela. Ela não precisava ficar ansiosa por qualquer
coisa adiante, não tinha razão para aspirar qualquer coisa boa.
Tão rapidamente quanto possível, ela foi jogando suas roupas em uma
pilha enquanto as removia, sem importar -se em dobrá-las. Quando acabou e
tinha removido cada peça, ela ficou em pé curvada na sala silenciosa, sem olhar
para Jagang porque não queria encarar o exultante triunfo dele. Ela tentou o
melhor que podia evitar que s ua tremedeira ficasse evidente.
— Fique ereta. — disse Jagang.
Kahlan fez o que foi ordenado. De repente ela sentiu -se cansada. Não
cansada por causa de esforço físico, mas cansada de todo esforço. Pelo quê ela
estaria lutando? Que vida poderia ter? Não tinha chance de algum dia ficar livre,
ou de algum dia experimentar o amor, de algum dia sentir -se segura. Que chance
tinha de algum dia alcançar qualquer felicidade na vida?
Nenhuma.
Naquele momento ela nada mais queria do que enrolar -se em uma bola
e chorar... ou simplesmente parar de respirar e acabar com isso. Tudo parecia
inútil. Seus esforços eram fúteis contra tal força, tais números, tais habilidades.
Ela deixou de ficar envergonhada. Não se importava se ele ficasse
olhando para ela. Tinha certez a de que não levaria muito tempo até ele acabar
com seu jantar e então fazer muito mais do que apenas olhar. Nisso ela também
não tinha escolha.
Em nada disso tinha escolha. Ela possuía apenas uma imitação de vida.
Sem a habilidade para controlar ao menos essa parte de sua vida, controlar se
ela teria que submeter -se a qualquer indignação, ela realmente não tinha vida.
Vida era algo que outros tinham. Ela respirava, enxergava, sentia, ouvia,
provava, até pensava, mas não vivia em um sentido que não possuía significado.
— Há uma formação rochosa na direção da abertura em minha tenda.
— Jagang falou quando recostou em sua cadeira. — Você lembra de ter visto
isso quando nós chegamos?
Kahlan olhou para ele, sentindo -se morta por dentro. Ela realizou a
tarefa de fazer conforme foi instruída, como uma boa escrava. Ela pensou na
pergunta dele; lembrou de ter visto aquilo. Estava a uma boa distância, mas ela
lembrava da forma como o mar escuro de homens espalhava -se ao redor da
projeção rochosa.
— Sim, eu lembro. — ela falou com uma voz vazia.
— Bom. — ele tomou um gole e colocou de lado a caneca. — Quero
que você caminhe até aquela rocha. Não vá diretamente até lá, dê a volta em

342
uma rota circular. — ele ergueu uma sobrancelha. — Não precisa ficar toda
vermelha, querida. Os homens não conseguem ver você... lembra?
Kahlan ficou encarando ele. — Então porque você quer que eu faça
isso?
Ele balançou os ombros. — Bem, você matou os meus dois guardas.
Preciso de mais alguns.
— Tem um monte de homens bem ali fora.
Ele sorriu. — Sim, mas eles não conseguem enxergar você.
Kahlan começou a compreender o que ele queria dizer. Repentinamente
ela começou a sentir -se bastante nua outra vez.
— Da maneira como eu vejo, provavelmente não há um jeito melhor de
selecionar homens que conseguem enxergá -la do que fazer você caminhar perto
deles mostrando tudo que tem a oferecer. — o olhar dele conferiu todo o corpo
dela antes de retornar aos seus olhos. — Acredite em mim, se eles puderem vê -
la, não há chance de que eles não sejam n otados. Não tenho dúvida de que se
eles puderem enxergá-la, como aquele dono de hospedaria ou aquela garota, e
vissem você assim, eles largariam qualquer coisa que estejam fazendo e viriam
gentilmente dar as boas vindas a você.
Ele riu bem alto de sua pró pria piada. Ninguém mais na tenda mostrou
ao menos um sorriso, mas ele não pareceu importar -se. Finalmente o ataque de
riso dele acabou.
— Com todos os homens que temos, eu apostaria que conseguiremos
encontrar alguns que podem ver você. Entre tantos home ns assim, tem que haver
mais “anomalias”, como chamou Ulicia. — ele inclinou a cabeça em direção a
ela. — Então, nós teremos guardas dos quais você não poderá aproximar -se, ou
passar por eles sorrateiramente, do jeito como fez com os outros.
— Está vendo, querida? Você cometeu um erro tático. Devia ter
guardado esse truque para uma chance melhor de fuga. Agora você o
desperdiçou.
Ela não havia desperdiçado. Tinha feito o que fez para salvar a vida de
Jillian. Kahlan sabia que não tinha chance de libertar a si mesma, mas pelo
menos fornecera esse presente a Jillian. Porém, não havia benefício em dizer
isso, então ela não discutiu aquilo que, ele pensou, tinha dado a ele uma
vantagem no jogo que estava fazendo com ela.
Kahlan não conseguiu pensar em qualque r coisa que fizesse esse
desistir de um plano como esse. Sua única esperança era permanecer invisível.
Mas ela não sentia-se invisível. Subitamente sentia como se, quando saísse da
tenda do Imperador, cada homem do acampamento fosse capaz de enxergá -la. Já
conseguia sentir milhões de homens lascivos olhando com desejo para ela.
Jagang gesticulou. — Ulicia, Armina, vocês irão junto, mas fiquem
recuadas a uma boa distância. Se algum homem puder vê -la eu não quero que ele
note vocês duas e fique tímido antes que tenha uma boa chance de revelar -se
para nós. Quero que qualquer homem que consiga enxergá -la fique ansioso o
bastante e audacioso o bastante para largar qualquer coisa que esteja fazendo
para aproximar-se e investigar nossa bela dama aqui.
As duas fiz eram reverência e como uma só disseram. — Sim,
Excelência.
Jagang perdeu sua pretensa alegria e ficou ameaçador. — Agora, vão
andando. Sigam em um grande círculo iniciando à direita, através do
acampamento, até aquela formação rochosa, e então continuem o círculo até
retornar aqui. Mexa-se, mulher!

343
Kahlan caminhou pelos tapetes macios até o tapete que pendia sobre a
porta. Podia sentir o olhar dele sobre ela. Ela empurrou o tapete para o lado e
passou pela abertura.
Do lado de fora, encarando o acampamen to, ela avançou rígida com
pavor. Forçou a si mesma, tremendo a cada passo, a caminhar entre os brutos
perto da tenda do Imperador. Lágrimas queimavam seus olhos. Ela sentiu -se
humilhada e completamente nua para todos os homens no acampamento.
Ela fez uma pausa no primeiro anel de soldados de defesa, apavorada
para sair entre os homens além. Ela queria gritar de fúria, com mortificado
constrangimento. Sentiu -se aprisionada por aqueles que a controlavam. Não
conseguia fazer suas pernas darem outro passo. Ol hou para trás por cima do
ombro.
O Imperador Jagang estava parado logo ali do lado de fora de sua
tenda, segurando pelos cabelos a mulher que ameaçara torturar. Ela estava
derramando lágrimas.
Kahlan tinha feito algo difícil para salvar a vida de Jillian . Decidiu
que se devotaria a fazer isso para salvar a vida da mulher que agora Jagang
segurava sob terrível ameaça. Ela também era uma escrava que não tinha escolha
em sua vida.
Somente Kahlan podia fazer uma escolha que pouparia a mulher de um
terrível so frimento.
Kahlan virou de volta para o pandemônio do acampamento e começou a
andar. O solo era acidentado e teve que pisar cautelosamente para evitar não
apenas rochas e pedaços de equipamentos quebrados, mas esterco fresco
também.
Lembrou a si mesma que nenhum desses homens poderia vê -la. Ela
parou em outra linha defensiva onde os grandes brutos mantinham guarda. Deu
uma olhada para o homem ao lado dela. Ele não a notou, ao invés disso
observava aqueles que estavam além. Até agora, nenhum dos homens cons eguia
enxergá-la. Olhou para trás e viu as Irmãs esperando que ela fosse mais longe.
Jagang ainda estava segurando a mulher pelos cabelos. Kahlan entendeu a
mensagem e sem perder um momento começou a mover -se outra vez.
Ela viu cavalos perto dali e brevem ente pensou em correr até eles. Em
sua mente imaginou-se saltando sobre um cavalo e galopando para longe,
escapando do acampamento. Sabia que isso era apenas uma fantasia. As Irmãs
liberariam uma torrente de dor através da coleira e derrubariam ela. Mais a inda,
a mulher que Jagang segurava morreria. Ele não era um homem que fazia
ameaças vazias. Ele as cumpria a fim de que ninguém imaginasse que ele era do
tipo que blefava.
Kahlan sabia que uma fuga como essa era impossível, mas pensar nisso
afastou sua me nte de todos os homens tão perto ao redor dela, de todas as mãos
sujas que ela não conseguia evitar olhar. Sentiu -se completamente vulnerável e
exposta. Ela destacava -se no meio do acampamento como um lírio d´água preso
no meio de um vasto pântano fedorent o.
Ela andou rapidamente, concluindo que quanto mais cedo completasse
o circuito, mais cedo estaria de volta dentro da reconfortante proteção da tenda.
Esse foi um pensamento terrível, a tenda de Jagang ser a proteção dela, aquele
homem horrível sendo a s ua segurança. Pelo menos ela estaria fora de vista
novamente e nesse momento isso era tudo que ela queria. Isso tornou -se o foco
de seus pensamentos. Cobrir a distância até as rochas e retornar. Quanto mais
cedo fizesse isso, mais cedo estaria de volta lá dentro.

344
A não ser que houvesse homens ali fora nessa massa de soldados que
pudessem enxergá -la. Isso fazia sentido. Ela encontrou duas pessoas que podiam
vê-la e isso entre um pequeno grupo. Havia milhões de homens nesse exército.
As chances eram que ela encontraria com homens que podiam enxergá -la bem
demais.
O que ela faria então? Ela olhou para trás por cima do ombro. Parecia
como se as Irmãs estivessem do outro lado de um rio de homens. E se um
homem a segurasse, derrubasse, e arrastasse para longe? F inalmente as Irmãs
começaram a seguir atrás dela, mas estavam a uma longa distância. Kahlan
estava preocupada com o que aconteceria se homens conseguissem vê -la e
agarrassem ela. E se todo um grupo de homens conseguissem enxergá -la? As
Irmãs seriam capazes de remover toda uma multidão de cima dela? Além disso,
as Irmãs estavam bastante recuadas. Kahlan preocupava -se com o quão longe
iria um estupro antes que as Irmãs aparecessem.
Mas as Irmãs podiam usar magia. Certamente, elas não permitiriam que
homens a violentassem.
Ela imaginou o que fazia com que tivesse qualquer confiança nisso.
Jagang. Ele a queria para si. Ele não era o tipo de homem que deixava
subordinados terem o prêmio dos prêmios dele. Desejaria possuí -la. O
pensamento dele em cima dela fez um calafrio de pavor espalhar -se nela.
Entretanto, o problema imediato não era Jagang, eram esses homens.
Em um movimento fluido, quando passava por um soldado com as costas para
ela, ela sacou uma faca da bainha no quadril dele. Ela fez o movimento
combinar com o balanço de seus braços, para que se as Irmãs estivessem
olhando não enxergassem o que ela havia feito. O homem olhou ao redor, ao
sentir algo. Ainda que ele olhasse diretamente para ela por um instante, o olhar
dele desviou e ele voltou à sua con versa.
Os homens entre os quais ela estivera caminhando estavam todos nos
anéis externos das muitas camadas ao redor da área do Imperador, mas agora ela
estava movendo -se além, entre os soldados comuns. Eles estavam bebendo,
rindo, apostando, e contando h istórias em volta de fogueiras. Cavalos estavam
presos entre eles. Carroças permaneciam nas proximidades em vários locais.
Alguns homens já tinham montado tendas rudimentares, enquanto outros
estavam contentes cozinhando sobre fogueiras, ou dormindo.
Ela viu também mulheres sendo levadas para dentro de tendas.
Nenhuma foi alegremente. Viu outras mulheres emergirem apenas para serem
agarradas por homens que esperavam e arrastadas para a tenda seguinte. Kahlan
lembrou de Jagang mencionando enviar as Irmãs pa ra as tendas como punição.
Ouvir as mulheres chorando dentro daquelas tendas fez Kahlan suar de pavor
com o seu próprio destino quando ela finalmente retornasse para a tenda de
Jagang. A despeito do quão aterrorizante poderia ser uma circunstância de ser
levada para dentro daquelas tendas com aqueles homens, Kahlan não conseguia
sentir pena das Irmãs. Se elas acabassem sendo estupradas por aqueles homens
isso não seria punição suficiente na mente de Kahlan. Elas mereciam coisa
muito pior.
Um dos homens nas proximidades olhou para ela. Kahlan conseguiu vir
o brilho de reconhecimento nos olhos dele... olhos que fixaram -se nela. Ele
enxergou-a. A boca dele ficou aberta, surpreso com a sua sorte por causa do tipo
de mulher que havia caído em seus braços, por as sim dizer.
Quando ele levantou, antes que estivesse totalmente ereto, Kahlan
abriu a barriga dele de um lado a outro enquanto continuou a passar movendo -se

345
rapidamente, como se nada tivesse acontecido. O homem, seu rosto registrando
o choque daquilo, tent ou fracamente segurar suas tripas quando elas saltaram
para fora em uma pesada massa. Ele caiu e foi ao solo enquanto emitia
grunhidos de pânico que não foram notados como algo mais além do confuso
ruído ao redor. Quando atingiu o chão, suas tripas espalha ram-se. Homens
viraram para olhar, alguns chocados, alguns rindo, todos achando que o homem
acabara de perder uma luta com facas.
Kahlan não reduziu o passo ou olhou para trás. Continuou em
movimento, ser quebrar o ritmo, lembrando a si mesma de sua taref a: chegar até
a rocha, voltar para a tenda. Fazer o circuito. Fazer como foi ordenada.
Quando um homem surgiu saindo da multidão e correu em direção a
ela, ela tensionou os músculos e usou o impulso dele para enterrar a faca sob as
costelas dele, rasgando seus órgãos vitais. O corte para cima, como um soco,
junto com o peso dele em descida, enterrou o punho dela através do ferimento
nas entranhas quentes dele. Pela forma que ele caiu como um saco de areia sem
pronunciar ao menos uma palavra, ela teve certe za de que conseguira atingir seu
coração. Como um lembrete do breve encontro, agora ela usava uma luva feita
com o sangue dele.
Pensou onde tinha aprendido a fazer tais coisas. Parecia como se elas
viessem instintivamente, do jeito como emoções simplesmen te vinham
naturalmente, sem a necessidade de invocá -las. Ela não conseguia lembrar de
qualquer coisa sobre si mesma, mas lembrava como usar uma arma. Imaginou
que devia ficar feliz em conseguir fazer isso.
Seguindo seu caminho dentro do mar de homens, ela chegou a uma
densa ilha de atividade. Todos os homens haviam recuado para deixar um campo
aberto no centro de uma área baixa, e times de homens estavam jogando Ja’La
ali. Soldados reunidos por toda parte ao redor torciam por um time ou pelo
outro. O jogo era uma coisa violenta, com o atacante encontrando o pior do
outro time. Quando ele caiu, ensanguentado, metade dos homens ao redor do
campo gritaram loucamente.
— Ora, ora. — disse um homem a esquerda dela. — Parece que uma
bela prostituta veio fazer uma visitinha para mim.
Quando ela começou a virar em direção a ele, outro homem a direita
segurou o pulso dela, torceu, e tirou sua faca. Em um instante, os dois homens
estavam em cima dela, arrastando -a, levando-a para longe da multidão reunida
para assist ir o jogo de Ja’La.
Kahlan lutou para libertar -se, mas eles eram muito mais fortes, e a
pegaram de surpresa. Silenciosamente ela ficou furiosa consigo mesma por ser
pega despreparada desse jeito. Nenhum dos homens em volta notou qualquer
coisa. Eles não c onseguiam vê-la; ela era invisível para eles, mas não para esses
dois, que estavam bem próximos, para escondê -la de seus colegas soldados ou
teriam que lutar pelo seu prêmio fresco. Ela poderia muito bem estar sozinha
com esses dois.
Um deles enfiou a mão entre as pernas dela. Ela arfou com a repentina
violação. Quando ele inclinou para apalpá -la, ela conseguiu soltar o pulso. Em
um instante ela girou o braço e bateu com o cotovelo no meio do rosto dele,
quebrando seu nariz. Ele caiu para trás gritando, sa ngue escorrendo pelas suas
bochechas e olhos. O outro homem riu, enxergando isso como sua oportunidade
para tê-la apenas para si. Ele mudou a direção, puxando ela junto, segurando os
dois pulsos dela unidos em uma de suas mãos poderosas enquanto usava a ou tra
para explorar os espólios.

346
Kahlan lutou e contorceu, mas ele era grande e forte demais para ela.
Ela não conseguia encontrar apoio para libertar -se do punho dele.
— Você é do tipo brigona. — ele falou no ouvido dela. — O que você
achou... que consegu iria evitar o seu dever sagrado com os soldados da Ordem?
Acha que é boa demais para servir nas tendas? Bem, você não é. Aqui está
minha tenda, então está na hora de cumprir o seu dever.
Kahlan torceu o corpo para tentar mordê -lo enquanto ele a arrastava
em direção a uma tenda vazia não muito longe. Ele deu um tapa nela. O golpe
deixou-a tonta. O barulho do acampamento pareceu desaparecer. Ela não
conseguia fazer seus músculos agirem como ela queria, não conseguia fazer eles
resistirem ao soldado encardido enquanto ele a puxava em direção à sua tenda.
De repente, Kahlan viu o rosto de Irmã Ulicia. Ela jamais tinha ficado
feliz em ver uma das Irmãs, mas agora ficou.
A Irmã desviou a atenção do homem de Kahlan por um instante, então
pressionou os dedos no l ado da testa dele. Finalmente livre, Kahlan saltou para
trás quando seu captor caiu de joelhos, colocando os punhos na cabeça enquanto
ele gritava de dor.
— Levante, — Irmã Ulicia disse a ele. — ou farei muito pior. — el e
levantou sobre pernas bambas. — Você tem ordem de ir imediatamente até a
tenda do Imperador para servir como um guarda especial.
O homem pareceu confuso. — Guarda especial?
— Isso mesmo. Você guardará essa jovem dama rebelde para Sua
Excelência.
O homem lançou um olhar ameaçador para K ahlan. — O prazer será
meu.
— Prazer ou não, mexa -se. Essa é uma ordem do próprio Imperador
Jagang. — ela apontou para trás com um dedão por cima do ombro. — Por ali.
O soldado baixou a cabeça em uma reverência, obviamente temendo a
habilidade com magia dela. Ele sentia pela Irmã uma espécie de cuidadoso,
mesmo que não pronunciado, desgosto. Claramente esses homens não gostavam
muito de pessoas com o Dom.
— Verei um pouco mais de você, em breve. — o homem prometeu a
Kahlan antes de correr para fazer conf orme foi ordenado.
Kahlan viu Irmã Armina transmitindo as mesmas instruções ao homem
com o nariz quebrado. Ela falou com uma voz que Kahlan não conseguiu ouvir
no meio do barulho das torcidas, mas o homem claramente ouviu porque ficou
rígido de medo, fez uma reverência para ela, e correu atrás do primeiro homem.
Irmã Ulicia voltou sua atenção de volta para Kahlan. — Lágrimas de
nada servirão a você. Afora, vamos andando.
Kahlan não discutiu. Quanto mais cedo isso acabasse, melhor. Ela
começou a andar imediatamente, considerando -se afortunada em ter eliminado
dois dos quatro que haviam sido capazes de enxergá -la até agora. Ela teve que
contornar o jogo de Ja’La que estava deixando a multidão de homens em um alto
nível de excitação. Fez uma pausa para ergue r-se nas pontas dos pés e certificar -
se de onde estava a rocha; então seguiu até ela.
No momento em que ela retornara para a tenda de Jagang, eles haviam
reunido cinco homens. Todos permaneciam do lado de fora da tenda, aguardando
ordens, incluindo aquele que cuidava do seu nariz quebrado. Ele olhou com ódio
quando ela passou, conduzida através da abertura da tenda pelas duas Irmãs.
Kahlan tinha conseguido armar -se rapidamente depois que Irmã Ulicia
resgatou-a na primeira vez. Dessa vez, porém, Kahlan pro videnciara para

347
guardar duas facas, uma em cada mão. Ela segurava os cabos nos punhos, com
as lâminas encostadas contra a parte interna dos pulsos de forma que as Irmãs,
seguindo-a a uma boa distância, não fossem capazes de enxergá -las.
Kahlan conseguira matar outros seis homens que conseguiam vê -la,
sem que as Irmãs percebessem o que ela fizera. Não havia sido difícil; eles não
enxergavam qualquer ameaça vindo de uma mulher nua. Estavam mortalmente
enganados. Com sua guarda baixa ela conseguiu usar suas a rmas rapidamente em
sem chamar atenção. Havia tanto barulho, confusão, bebedeira, gritaria, e lutas
no acampamento que as Irmãs não notaram os homens que Kahlan derrubou.
Quando ela não conseguiu despachar os homens que podiam enxergá -
la, porque Irmã Ulic ia ou Armina estavam perto demais ou porque elas estavam
observando atentamente e correram para resgatá -la e dar aos soldados suas
novas tarefas como guardas especiais, Kahlan sempre deixava suas facas
escorregarem até o chão e desaparecerem sob a multidão de soldados para que as
Irmãs não suspeitassem do que ela estivera fazendo. Sendo invisível para quase
todos os homens, tinha sido bastante fácil pegar mais facas durante a longa
caminhada entre os soldados.
Assim que estava dentro da tenda, Jagang atiro u as roupas de Kahlan
para ela. — Vista-se.
Ao invés de questionar as razões dele para um comando que ela não
esperava, ela não perdeu tempo em cumprir sua ordem. Sob o perturbador olhar
sombrio do homem, foi um grande alívio finalmente estar com suas rou pas de
volta. Porém, isso não pareceu diminuir o óbvio interesse naquilo que ele tinha
visto.
A atenção dele finalmente desviou para as duas Irmãs. — Eu instrui os
nossos novos guardas em seus deveres. — ele sorriu de um jeito que fez as duas
Irmãs engoli rem em seco de pavor. — O que significa que com alguns guardas
tirando o peso de suas costas, vocês terão algum tempo livre para as tendas,
usando suas costas para uma tarefa diferente.
— Mas Excelência… — Irmã Armina falou com voz trêmula. — nós
temos feito tudo que você pediu. Nós conseguimos os homens...
— Você acha que porque vocês fazem o que mandei por um curto
período eu esquecerei os anos que estiveram correndo por aí tramando e
executando esquemas contra mim? Acha que esquecerei tão facilmente a sua
negligência com o seu dever em relação aos outros, com suas obrigações na
causa da Ordem, com a sua responsabilidade moral de sacrificar seus desejos
mundanos para o bem dos outros?
— Não foi assim, Excelência. — Irmã Armina enxugou as mãos
enquanto procurava palavras que pudessem salvá -la. — Sim, nós fomos
vergonhosamente egoístas, eu admito, mas não tivemos intenção direta de
machucá-lo.
Ele soltou uma risada. — Você não acha que libertar o Guardião do
Submundo me machucaria? Não acha que entregar a humanidade para o Guardião
dos mortos seria algo contra mim, contra os costumes da Ordem, contra o
Criador?
Irmã Armina ficou em silêncio. Ela sabia que não tinha argumentos.
Kahlan sempre considerou as Irmãs como víboras. Mas agora elas estavam
serpenteando diante de alguém com a pele dura demais para enterrar suas presas.
As Irmãs Ulicia e Armina eram mulheres atraentes. Kahlan teve a
sensação de que a aparência delas apenas tornariam pior a coisa para elas entre
os animais que eram o exército da Ordem Imperial.

348
— Eu tenho controle da… — Jagang encontrou -se quase usando o
título dela. — … de Kahlan, através da coleira, através da habilidade de vocês.
Vocês não precisam estar presentes para que eu use esse poder se for
necessário... somente vivas. Vou i nformar aos homens que eu não quero vocês
duas assassinadas enquanto eles estão aproveitando os seus charmes femininos.
— Obrigada, Excelência. — Irmã Ulicia conseguiu falar com voz
baixa. Ela estava segurando a saia com os punhos fortemente cerrados.
— Agora, tem dois homens esperando do lado de fora que foram
instruídos naquilo que devem fazer com vocês duas. Vão com eles. — ele sorriu
para elas como a morte em pessoa. — Tenham uma boa noite, damas. Vocês
merecem isso... e muito mais.
Quando elas deixa ram a tenda, Kahlan permaneceu no centro,
aguardando um destino similar.
Jagang aproximou -se dela. Kahlan achou que poderia desmaiar de
medo, ou vomitar diante do pensamento daquilo que estava prestes a acontecer
com ela.

349
C A P Í T U L O 4 5

Kahlan ficou olhando para os traços no tapete sobre o chão aos seus
pés. Ela não queria olhar de forma desafiadora nos olhos negros de Jagang. Uma
demonstração de bravura nesse momento, ela sabia, de nada serviria.
Quando tinha sido obrigada a caminhar enquan to as Irmãs cavalgavam,
ela sempre dissera a si mesma que isso a tornaria mais forte para um momento
em que ela precisaria de força. De forma semelhante, ela não usaria sua
determinação para uma demonstração de desafio inútil. Praguejar contra seu
captor e aquilo que ele estava prestes a fazer com ela quando sabia que nada
poderia fazer para impedir apenas desperdiçaria sua força.
Ela queria guardar toda sua fúria para o momento certo.
E esse momento chegaria. Ela prometeu a si mesma que esse momento
chegaria. Mesmo que fosse quando ela saltasse nas presas da própria morte,
lançaria sua fúria naqueles que fizeram isso com ela e com todas as outras
vítimas inocentes da Ordem Imperial.
Ela viu as botas de Jagang surgirem bem na frente dela. Prendeu a
respiração, esperando que ele a agarrasse. Não sabia o que faria quando isso
realmente acontecesse, como seria capaz de suportar o que ela sabia que ele
faria. Seu olhar ergueu -se só um pouco, apenas o suficiente para ver onde estava
a faca dele no cinto. Ele de scansou a mão sobre o cabo da faca.
— Nós vamos sair. — disse ele.
Kahlan levantou os olhos fazendo uma careta. — Sair? Com que
propósito?
— Esta noite é uma noite de torneios de Ja’La dh Jin . Diferentes
unidades de nossos soldados possuem times. Há noi tes devotadas aos torneios.
Ter o seu Imperador lá para testemunhar como eles jogam anima os corações de
nossas forças.
— Homens também são coletados de todas as partes conquistadas do
Mundo Novo e recebem a chance de entrarem no desafio contra outros tim es.
Para eles é uma grande oportunidade de começarem a fazer parte da nova cultura
que nós trazemos a terras derrotadas, de tornarem -se parte constituinte da
Ordem, de participarem de nossos costumes.
— Os melhores jogadores às vezes podem virar heróis. M ulheres
brigam por homens como esses. Os homens do meu time são todos assim...
heróis que nunca perdem. Multidões de mulheres esperam por esses homens
depois dos jogos, ansiosas para abrirem suas pernas para eles. Jogadores de
Ja’La podem escolher qualquer mulher.
Kahlan notou que, como Imperador, Jagang provavelmente podia
escolher entre muitas mulheres que desejariam estar perto de um homem com tal
autoridade e poder, e ao invés disso acharia melhor tomá -las à força. Ele
gostaria mais de tomar o que não era oferecido, de ter aquilo que não
conquistara como resultado de mérito.
— Esta noite alguns desses times jogam por classificação. Todos eles
esperam que um dia possam ter a chance de jogar com meu time em uma grande
disputa pelas maiores honras. O meu time joga com o melhor dos melhores uma
vez ou duas por mês. Eles nunca perdem. Sempre existe uma esperança ardente
entre cada novo grupo de desafiantes de que eles serão aqueles que derrotarão os

350
melhores... o time do Imperador... e de serem coroados camp eões dos jogos.
Haveria muitos prêmios para um time como esse, nada menos que as mais belas
das mulheres que agora estão ansiosas para estarem com os homens do meu
time.
Ele pareceu gostar de contar a ela sobre os hábitos de tais mulheres,
como se estives se generalizando a respeito de todas as mulheres e ao fazer isso
dizendo a ela que no fundo a considerava igual a elas. Ao invés disso, ela
preferiria cortar uma veia. Ela ignorou a insinuação maliciosa e perguntou outra
coisa a ele.
— Se o seu time não e stá jogando, porque você quer assistir?
Certamente um homem como você não forneceria sua preciosa presença de
maneira regular apenas para ser generoso.
Ele olhou para ela com uma expressão de espanto, como se essa fosse
uma pergunta estranha. — Para ver a estratégia deles, é claro, aprender os
pontos fortes, as fraquezas, daqueles que serão os oponentes de meu time.
O sorriso malicioso dele retornou. — Isso é o que você faz... avalia
aqueles que podem tornar -se seus oponentes... e não tente dizer para mim que
não faz isso. Eu percebo o seu olhar para armas, composição de salas, a posição
de homens, cobertura, e rotas de fuga. Você está sempre procurando uma
oportunidade, sempre observando, sempre pensando em como derrotar aqueles
que ficam em seu caminho.
— Ja’La dh Jin é muito parecido. Ele é um jogo de estratégia.
— Já vi ele sendo jogado. Eu diria que a estratégia é secundária, que
ele é primariamente um jogo de brutalidade.
— Bem, se você não aprecia a estratégia, — ele falou com um sorriso
afetado. — então sem dúvida apreciará assistir homens suarem, fazendo força, e
lutando uns contra os outros. É por isso que a maioria das mulheres gostam de
assistir Ja’La. Homens o apreciam pela estratégia, o dar e receber da
competição, pela chance de torcerem im pulsionando seu time para a vitória, e
para imaginarem -se como se eles mesmos fossem esses homens; as mulheres
gostam de observar corpos parcialmente nus e músculos molhados de suor. Elas
gostam de assistir os homens mais fortes vencerem, de sonhar em sere m o desejo
de heróis conquistadores, e então de pensar em formas para tornarem -se
disponíveis para homens como esses.
— Para mim as duas coisas soam sem sentido. Tanto a brutalidade, ou
a luxúria gratuita.
Ele balançou os ombros. — Na minha língua, Ja’La dh Jin significa “o
jogo da vida”. A vida não é uma luta... uma disputa brutal? Uma disputa entre
homens, e de sexos? A vida, como o Ja’La, é uma luta brutal.
Kahlan sabia que a vida podia ser brutal, mas que tal brutalidade não
definia a vida ou o propó sito dela, e que os sexos não eram rivais, mas
destinados a compartilhar o trabalho e as alegrias da vida.
— Para pessoas como você, ela é. — ela falou. — Essa é uma diferença
entre você e eu. Eu uso a violência apenas como último recurso, somente quando
é necessária para defender a minha vida... o meu direito de existir. Você usa a
brutalidade como uma ferramenta para satisfazer seus desejos, até mesmo seus
desejos comuns, porque, a não ser através da força, você nada possui que valha
à pena para oferecer em troca daquilo que quer ou precisa... e isso inclui
mulheres. Você toma, não as conquista por mérito.
— Eu sou melhor do que isso. Você não valoriza a vida ou qualquer
coisa nela. Eu valorizo. É por isso que você tem que esmagar qualquer coisa

351
boa... porque isso transforma em mentira a sua vida vazia, mostra através do
contraste como você nada faz a não ser desperdiçar sua existência.
— É por isso que você e aqueles do seu tipo odeio pessoas como eu...
porque eu sou melhor do que você e você sabe disso .
— Uma crença como essa é a marca de um pecador. Considerar a sua
própria vida como algo significativo é um crime contra o Criador assim como é
contra os seus colegas homens.
Quando ela apenas ficou olhando para ele, ele arqueou uma
sobrancelha com uma expressão de aviso enquanto inclinava chegando mais
perto. Ele levantou um dedo grosso... adornado com um anel de ouro pilhado...
diante do rosto dela para destacar uma declaração importante, como se estivesse
fazendo um sermão para uma criança teimosa, eg oísta, que estava bem perto de
receber uma surra bem merecida.
— A Sociedade da Ordem nos ensina que ser melhor do que alguém é
ser pior do que todos.
Kahlan só conseguiu continuar observando diante de uma ideologia tão
vulgar. Essa declaração fanática d e vazia convicção deu a ela uma repentina
ideia verdadeira do abismo da natureza selvagem dele, e do caráter vingativo da
Ordem em si. Esse era um conceito que havia abandonado a distante fundação
sobre a qual tinha sido construído... de que toda vida igua lmente tinha o direito
de existir para o seu próprio bem... para justificar tomar vidas pela própria
noção artificial de bem comum da Ordem.
Dentro dessa estrutura aparentemente simples de um princípio
irracional, inconscientemente ele havia revelado tudo .
Isso explicava a depravação de toda a causa dele e as emoções
determinantes que direcionavam a natureza desses homens monstruosos reunidos
lá fora, prontos para matarem qualquer um que não se submetesse à crença
deles. Esse era um dogma que viera antes da civilização, enaltecia a selvageria
como uma forma de existência, e exigia constante brutalidade para esmagar
qualquer ideia nobre e o homem que a tivesse. Era um movimento que atraía
ladrões que queriam pensar em si mesmos como honrados, assassinos que
queriam santa absolvição pelo sangue de vítimas inocentes que manchavam suas
almas.
Isso associava qualquer realização não com aquele que havia criado,
mas ao invés disso, com aqueles que não haviam conquistado aquilo e não
mereciam, precisamente porque não fizeram aquilo e não a mereciam. Isso
valorizava o roubo, não o feito.
Era uma condenação para a individualidade.
Ao mesmo tempo, era uma assustadoramente triste admissão de um
núcleo podre de fraqueza perante a vida, uma inabilidade de existir em qu alquer
nível exceto o de uma besta primitiva, sempre com medo de que outra pessoa
fosse melhor. Não era apenas uma simples rejeição de tudo que era bom, um
ressentimento com a realização... era, de fato, muito pior. Era a expressão de um
ódio corrosivo por qualquer coisa boa, originada de uma falta de vontade
interior de lutar por qualquer coisa que valesse à pena.
Como todas as crenças irracionais, também era impraticável. Para
viver, essas crenças tinham que ser ignoradas para realizar objetivos de
dominação, que eram em si uma violação da crença pela qual eles estavam
lutando. Não havia iguais entre as pessoas da Ordem, os defensores da igualdade
forçada. Quer fosse um jogador de Ja’La, o mais profissional dos soldados, ou
um Imperador, o melhor não era apenas necessário mas procurado e altamente

352
valorizado, e como um só eles guardavam um ódio interior de sua falha em
viverem a altura de seus próprios ensinamentos e um medo de que seriam
desmascarados por isso. Como punição por sua inabilidade de cumprire m suas
crenças santificadas através da adesão a esses ensinamentos, ao invés disso eles
voltavam-se para a autoflagelação de proclamar o quão indignos eram todos os
homens e descarregavam seu ódio em bodes expiatórios: eles culpavam as
vítimas.
No final, a crença nada mais era do que uma divindade fabricada...
uma insensatez repetida em um mantra em uma tentativa de dar a isso
credibilidade, fazer parecer algo sagrado.
— Já assisti os jogos de Ja’La. — falou Kahlan. Ela desviou o olhar
dele. — Não tenho d esejo de ver mais.
Ele segurou o antebraço dela, fazendo ela virar para encará -lo. — Sei
que você está ansiosa para que eu a leve para cama, mas você pode esperar.
Nesse momento nós vamos assistir os jogos de Ja’La.
Um sorriso lascivo surgiu no rosto del e, como muco oleoso
borbulhando da sua alma purulenta. — Se não gosta de assistir os jogos pela
estratégia e competição, então pode deixar os seus olhos concentrarem -se na
carne nua dos rivais. Tenho certeza que visões como essas deixarão você ansiosa
por aquilo que acontecerá mais tarde esta noite. Tente não ficar impaciente
demais.
De repente Kahlan sentiu -se tola por descartar qualquer razão para
evitar a cama dele. Mas o jogo de Ja’La era lá fora entre os homens, e ela não
queria ir até lá novamente. E la também não teve escolha. Odiava estar no meio
desses homens vis. Ela lembrou a si mesma para manter sob controle os seus
sentimentos. Os soldados não conseguiam vê -la. Ela estava sendo boba.
Ele puxou-a em direção a passagem para fora da tenda. Ela foi sem
resistir. Esse não era o momento para resistir.
Do lado de fora, os cinco guardas especiais esperavam. Todos eles
notaram que Kahlan estava vestida, mas nenhum deles falou. Eles permaneceram
altivos, eretos e atentos, parecendo prontos para pular se fossem ordenados.
Obviamente eles estavam em seu melhor comportamento diante do Imperador,
querendo impressioná-lo.
Kahlan supôs que estava tudo bem ser melhor do que alguém se você
fosse o Imperador, e que isso não tornaria ele pior do que todas as pesso as. Ele
lutava por uma doutrina da qual ele estava isento, assim como cada um dos seus
homens. Kahlan sabia que era melhor não comentar isso.
— Esses são os seus novos guardas. — Jagang disse a ela. — Não
teremos uma repetição do último incidente, já que esses homens conseguem
enxergá-la.
Todos os homens pareciam bastante contentes consigo mesmos, e com
a aparente natureza inofensiva da mulher que eles deviam guardar.
Kahlan deu uma rápida mas boa olhada no primeiro homem que as
Irmãs haviam selecionado, o parceiro daquele com o nariz quebrado. Com um
olhar ela avaliou as armas que ele carregava, uma faca, e uma espada feita
grosseiramente com duas metades de um cabo de madeira enroladas com arame,
e como ele parecia carregá -las sem elegância. Naquele olh ar ela soube que elas
eram ferramentas que sem dúvida ele usava com valentia quando matava
mulheres e crianças inocentes. Ela duvidava que algum dia ele já as tivesse
usado em combate com outros homens. Ele era um valentão, nada mais. A
intimidação era a a rma escolhida por ele.

353
Pelo sorriso satisfeito dele, ele não parecia impressionado com ela.
Afinal, ele mesmo já tinha quase feito ela trabalhar, e na tenda dele. Em sua
mente ele estava apenas a alguns passos de distância para ter ela embaixo dele.
— Você. — ela falou, apontando diretamente entre os olhos dele. —
Você eu matarei primeiro.
Os homens todos riram. Ela direcionou um olhar avaliador sobre eles e
suas armas, aprendendo o que havia para aprender.
Ela apontou para o homem com o nariz quebrado. — Você morre em
segundo, depois dele.
— E quanto a nós três? — um dos outros perguntou, incapaz de conter
uma risada. — Em que ordem você nos matará?
Kahlan balançou os ombros. — Eu saberei pouco antes de cortar as
suas gargantas.
Os homens todos riram . Jagang não.
— Seria aconselhável vocês levarem ela a sério. — o Imperador falou a
eles. — Da última vez em que ela colocou as mãos em uma faca ela matou dois
dos meus guarda -costas mais confiáveis... homens muito melhores como
soldados do que vocês... e uma Irmã do Escuro. Sozinha, e tudo em uma questão
de momentos.
A risada morreu.
— Todos vocês ficarão em alerta. — Jagang falou em um baixo
rosnado. — ou eu mesmo estriparei vocês se ao menos achar que estão sendo
desatentos em seu dever. Se ela escapa r sob a vigília de vocês, eu os mandarei
para as tendas de tortura e ordenarei que suas mortes levem um mês e um dia,
que sua carne apodreça e morra antes de vocês.
Não houve mais qualquer dúvida nas mentes dos homens quanto à
seriedade das ordens de Jaga ng, ou quanto ao valor do prêmio dele.
Uma vasta escolta de centenas, se não milhares, dos guardas internos e
mais experientes do Imperador entraram em formação ao redor de seu líder
enquanto ele caminhava decidido para longe de sua tenda. Os cinco guarda s
especiais cercavam Kahlan por todos os lados exceto o lado em que Jagang
estava. Todos eles moviam -se dentro do acampamento em uma cunha de
armaduras e armas desembainhadas. Kahlan supôs que, como um líder, Jagang
estava apenas tomando precauções normais contra espiões, mas ela pensou que
era mais do que isso.
Ele era melhor do que todos os outros.

354
C A P Í T U L O 4 6

Na hora em que eles retornaram para a área do Imperador e para a


grande tenda dele depois das disputas de Ja’La, o nível de preocu pação de
Kahlan tinha elevado. Não era apenas o óbvio temor de ficar sozinha com um
homem tão imprevisível e perigoso... ou mesmo o quase pânico dela por causa
do que sabia que ele pretendia fazer com ela.
Foi tudo isso, com uma sinistra corrente oculta d a crueldade dele
revirando-se logo abaixo da superfície. Houve um rubor no rosto dele, um
caráter mais enérgico em seus movimentos, uma qualidade irritada nos curtos
comentários dele, uma intensidade feroz nos olhos negros. Assistir os jogos
tinha deixado Jagang com um humor ainda mais violento do que ela acreditava
que era o estado normal dele. Os jogos o estimularam. Eles o excitaram... de
todas as formas.
Nos jogos ele sentira que um dos times não jogou com todo o seu
potencial, não havia dado tudo que tinha. Ele pensou que eles estavam contendo -
se e não colocando tudo de si na disputa.
Quando eles perderam, ele ordenou que fossem executados no campo.
A multidão ovacionara mais com isso do que durante o tedioso
desenrolar do jogo. Jagang foi aclamado p or condenar os perdedores à morte. Os
jogos que seguiram desenrolaram -se com uma considerável maior paixão, e no
solo encharcado pelo sangue das decapitações. Ja’La era um jogo no qual
homens corriam, esquivavam, e disparavam passando uns pelos outros,
bloqueavam, ou perseguiam o homem com a pesada bola... a Broc... tentando
capturá-la, atacar com ela, ou marcar ponto. Frequentemente homens caíam ou
eram derrubados. Quando isso acontecia eles rolavam pelo chão. No calor do
verão, sem camisa, logo eles estav am melados não apenas com suor mas com
sangue. Pelo que Kahlan conseguia ver das seguidoras de acampamento que
assistiam das linhas laterais, elas não estavam preocupadas com o sangue. No
máximo, isso as deixava apenas mais ansiosas para atraírem a atenção dos
jogadores que agora estavam colocando a multidão em um frenesi com suas
velozes táticas agressivas.
Em todo o resto dos jogos depois daquele que resultou em execuções,
como nos anteriores, os times perdedores, já que pelo menos tinham jogado com
selvagem determinação, não eram condenados à morte mas açoitados. Um
chicote terrível, feito com várias cordas com nós unidas, era usado para a
penalidade. Cada uma daquelas cordas tinha pesadas esferas de metal na ponta.
Os homens recebiam uma chicotada por c ada ponto pelo qual eles perderam. A
maioria dos times perdedores havia perdido por muitos pontos, mas até mesmo
um golpe daquele chicote rasgava a carne nua das costas de um homem.
A multidão contou com entusiasmo cada chicotada para cada homem do
tipo perdedor ajoelhado no centro do campo. Os vencedores geralmente davam
pulos ao redor do perímetro do campo, exibindo -se para a multidão, enquanto os
perdedores, com as cabeças abaixadas, recebiam suas chicotadas.
Testemunhar uma coisa assim deixou Kahlan c om vontade de vomitar.
Isso tinha excitado Jagang.
Kahlan estava aliviada que os jogos finalmente tivessem acabado, mas
agora que ela estava de volta na área do Imperador e prestes a entrar na tenda

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dela, uma forte sensação de temor estava corroendo suas entranhas. Jagang
estava em um estado provocado pela violência e ampliado pelo sangue. Kahlan
podia ver nos olhos dele que ele não estava com humor para ser contrariado.
E a única coisa que restava para ele nessa noite era ela.
Quando os guardas especiai s estavam para ser posicionados do lado de
fora da tenda, ela avistou um homem correndo, sendo seguido por um pequeno
grupo de homens. Jagang fez uma pausa em suas instruções aos guardas
especiais de Kahlan quando os anéis de defensores abriram -se para deixarem o
homem e um grupo de oficiais passarem. Quando o homem parou sem fôlego, ele
anunciou que era um mensageiro.
— Então, o que foi? — Jagang perguntou ao mensageiro, examinando
cuidadosamente a meia dúzia de homens com ele. Jagang não estava contente em
ser incomodado quando estava com a mente concentrada em outras coisas.
Kahlan sabia que ela era o foco dos pensamentos dele, e que ele queria
levá-la para dentro, e sozinho. A hora chegara e ele estava impaciente para
possuí-la.
Até agora ele não havi a tocado nela de qualquer maneira imprópria.
Ele estava guardando tudo. De forma muito parecida com qualquer cidade no
caminho do exército dele tinha que esperar em um pavor agonizante pelo assalto
iminente, ela, também, sentiu a pressão do medo avassalado r enquanto esperava
por aquilo que ela sabia que viria. Ela tentou não imaginar o que ele faria com
ela e como seria, mas não conseguia pensar em qualquer outra coisa, nada que
pudesse reduzir a velocidade do seu coração galopante.
O mensageiro entregou u m tubo de couro. Ele emitiu um som oco
quando Jagang removeu a tampa. Com dois dedos ele retirou um pedaço de papel
enrolado. Quebrou o selo de cera, desenrolou -o, e segurou-o levantado para ler
na luz das tochas que flanqueavam a entrada da tenda dele. Os anéis que ele
usava em cada dedo cintilaram na luz bruxuleante das tochas.
Inicialmente franzindo a testa, o Imperador começou a sorrir enquanto
lia. Finalmente ele riu bem alto quando olhou para seus oficiais. — O exército
do Império D’Haraniano fugiu do campo de batalha. Batedores e Irmãs também
reportaram a mesma cosia, que os D’Haranianos estavam tão apavorados com o
prospecto de enfrentar Jagang, o Justo, e o exército da Ordem, que todos
desertaram e espalharam -se em todas as direções, provando os co vardes sem fé
que eles são.
— As forças do Império D’Haraniano não existem mais. Nada
permanece entre nós e o Palácio do Povo.
Os oficiais ovacionaram seu Imperador. De repente todos estavam com
um humor jovial. Jagang ofereceu suas congratulações aos of iciais por ajudarem
a colocar o inimigo para correr.
Enquanto ela escutava, parada em um lado enquanto todos os outros
observavam Jagang balançando o papel e falando do fim da longa guerra estar
próximo, Kahlan lentamente, cuidadosamente, ergueu uma perna até seus dedos
encontrarem o cabo da faca enfiada em sua bota direita.
Movendo-se o mínimo possível para não chamar atenção dos cinco
homens que conseguiam enxergá -la, ou do próprio Jagang, ela tirou a arma da
bota e colocou -a no punho. Logo que ela esta va em segurança na mão, ela pegou
a segunda faca da outra bota.
Ela segurou com firmeza o cabo enrolado com couro de cada arma,
posicionando os dedos para conseguir uma pegada segura nos cabos. Ter armas
nas mãos encheu -a com uma sensação de propósito, ba nindo o medo do que

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estava reservado para ela esta noite. Agora tinha uma forma de atacá -los. Ela
sabia que podia não ser capaz de impedir Jagang de fazer o que faria com ela,
mas não seria sem uma luta. Essa era sua chance de extrair um preço.
Ela não moveu a cabeça, apenas seus olhos, enquanto conferia onde
cada homem estava. Jagang, infelizmente, não estava perto dela. Ele tinha
caminhado até o mensageiro, e então para mais perto de seus oficiais. Kahlan
sabia que ele não era estúpido. Se ela andasse at é o seu lado ele ficaria
desconfiado instantaneamente. Saberia que ela não teria feito uma coisa assim
de boa vontade. Ela também sabia que ele era um lutador experiente. Reagiria
antes que ela conseguisse saltar em cima dele. Ter ele perto provavelmente n ão
teria mesmo adiantado para ela.
Havia alvos melhores, uma chance melhor para surpresa. Os cinco
guardas especiais estavam perto à esquerda dela, os oficiais um pouco mais
longe à direita. Os oficiais não podiam vê -la. Além estava um acampamento de
homens que não podiam vê -la. Mas ainda que os oficiais não pudessem enxergá -
la, os cinco podiam e logo que ela se movesse teria apenas um instante antes que
eles reagissem.
Ela sabia que podia derramar bastante sangue, mas havia pouca chance
para que ela escapasse.
A alternativa era submeter -se docilmente ao seu estupro iminente.
Kahlan invocou sua fúria. Segurou os cabos das facas com mais
firmeza. Essa era uma chance de contra atacar seus captores.
Com um golpe reto e poderoso ela enterrou a faca longa qu e estava em
sua mão esquerda no meio do peito do guarda especial que ela prometera matar
primeiro. Alguma parte da mente dela notou levemente a surpresa dele.
Logo atrás dele, os olhos do homem com o nariz quebrado ficaram
arregalados quando ele também fi cou rígido com o choque. Kahlan usou a faca
enterrada no peito do primeiro homem como uma âncora, para impulsionar -se.
Com aquele apoio para ajudá -la, ela girou ao redor do homem já esfaqueado. Ao
mesmo tempo, levou a faca na sua mão direita junto com ela, em um arco. A
lâmina abriu a garganta do homem com o nariz quebrado. Em duas batidas do
seu coração ela matou os dois.
Kahlan bateu com a bota esquerda no primeiro homem quando ele caiu,
para liberar a faca enterrada e para mover -se na direção oposta... em direção aos
oficiais. Na terceira batida de seu coração ela atingiu o primeiro oficial como
em uma jogada de bloqueio no Ja’La. Quando voou para cima dele, ela enterrou
a faca em sua mão direita fundo na barriga dele, puxando -a para cima enquanto
o fazia para rasgá-lo.
Ao mesmo tempo ela plantou a outra faca na garganta do homem
imediatamente ao lado e um pouco atrás do primeiro oficial. Ele era o oficial de
alta patente e aquele que ela realmente estava querendo alvejar. Ela o atingiu
com tanta força q ue a lâmina não apenas cortou a garganta do homem mas,
acertando o espaço entre as vértebras, atravessou todo o seu pescoço. Com sua
corda espinhal cortada, todo o peso morto dele caiu tão rápido que a pegada de
Kahlan na faca desequilibrou -a e puxou-a junto ele.
No mesmo momento, antes que ela pudesse recuperar -se e remover a
faca, o poder da coleira golpeou Kahlan como um raio.
Ao mesmo instante, os outros três guardas especiais a bloquearam,
derrubando-a o resto do caminho e lançando -a de cara no solo macio. Com a
coleira tornando seus braços moles e inúteis, e as pernas incapazes de
responderem aos seus desejos, os homens não tiveram dificuldade para desarmá -

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la.
Quando Jagang gritou a ordem, eles a colocaram de pé. Kahlan ofegou
com o esforço da breve batalha. Seu coração ainda estava acelerado. Mesmo que
não tivesse conseguido fugir, não estava inteiramente desapontada. Desde o
início ela não pensava realmente que suas chances de conseguir fazer isso
fossem boas. Tinha esperado, porém, pelo menos mata r um par de oficiais, e
isso ela conseguiu. Ela só ficou desapontada que os guardas especiais não a
tivessem matado e ao invés disso a tivessem capturado.
Jagang dispensou os oficiais confusos, explicando que isso foi um
pouco de magia que havia sido libe rada. Ele garantiu a eles que tinha tudo sob
controle. Eles eram homens acostumados com a violência e pareceram aceitar a
morte súbita de dois colegas oficiais por uma mão invisível, mesmo que não
fosse com muita calma, pelo menos com um nível de autocontr ole,
tranquilizados pela conduta de seu Imperador.
Quando seguiam seu caminho para fora da área do Imperador, eles
reuniram uma quantidade de homens que correram para removerem os corpos.
Os guardas que apareceram para ver do que se tratava a comoção fica ram
surpresos com um assassinato como esse dentro de suas linhas de defesa. Todos
eles olharam para Jagang procurando avaliar o humor dele e, vendo que ele
estava calmo, rapidamente foram tratar de sua tarefa da remoção dos quatro
homens mortos.
Assim que eles partiram, Jagang finalmente direcionou um olhar
raivoso para Kahlan. — Vejo que você estava observando os jogos atentamente.
Parece que esteve prestando mais atenção na estratégia do que na carne exposta
de homens musculosos.
Kahlan encarou os olhar es dos três guardas especiais que a seguravam.
— Só estava cumprindo uma promessa.
Jagang lentamente soltou um profundo suspiro, como se tentasse
manter o controle para que ele mesmo não cometesse um assassinato. — Você é
mesmo uma mulher admirável... e u ma oponente formidável.
— Sou aquela que traz a morte. — ela falou para ele.
Ele olhou para os quatro corpos sendo carregados para fora dentro da
noite. — Isso você é.
Ele voltou sua atenção intensa para os três homens que seguravam
Kahlan. — Existe alguma razão para que eu não mande vocês três para serem
torturados?
Os homens, que estavam tão convencidos por terem derrubado ela, de
repente não pareciam tão convencidos. Eles olharam nervosamente uns para os
outros.
— Mas Excelência, — um deles falou. — Os dois homens que falharam
com você pagaram com suas vidas. Nós três a detivemos. Não deixamos ela
escapar.
— Fui eu quem a deteve. — ele disse em meio a uma fúria malmente
contida. — Eu a detive com a coleira que ela usa no pescoço. — ele os avaliou
silenciosamente durante um momento, deixando sua explosão de fúria reduzir
um pouco. — Mas eu sou chamado de Jagang, o Justo, por uma boa razão.
Permitirei que vocês três vivam por enquanto, mas que isso sirva de lição para
vocês. Eu avisei que ela era perigo sa. Agora, talvez, consigam ver que eu sei do
que estou falando.
— Sim, Excelência. — os três falaram.
Jagang cruzou as mãos atrás das costas. — Soltem ela.

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Ele passou um olhar ardente sobre cada homem antes de agarrar o
braço de Kahlan e conduzi -la de volta em direção à abertura da tenda. Ela ainda
estava curvada por causa do choque da coleira. Suas juntas doíam, suas pernas e
braços queimavam por dentro.
Ela imaginou se Jagang estava falando a verdade sobre poder usar a
coleira sem precisar que as Irm ãs estivessem presentes. Agora ela sabia. Sem
aquela coleira ela podia ter uma boa chance de libertar -se; com ela, não tinha.
De agora em diante não ousaria menosprezar a habilidade de Jagang. Pelo menos
agora ela sabia. Às vezes, era muito pior apenas ima ginar se algo poderia ter
sido possível.
— Quero que vocês três montem guarda do lado de fora da minha tenda
esta noite. Se ela sair sem mim, é melhor que vocês a detenham.
Os três soldados fizeram reverência. — Sim, Excelência.
Eles não pareciam conven cidos de forma alguma. Pareciam o que
eram... homens que acabaram de escapar de uma sentença de morte.
Quando os homens assumiram seus postos, Jagang desviou sou olhar
sinistro para Kahlan. — Da última vez você apenas saiu para dar uma caminhada
entre os homens. Foi uma caminhada curta. Você viu apenas uma pequena
amostra do meu exército. Amanhã, você terá uma chance muito melhor de ver
muito mais dos meus homens. E muitos mais desses homens devem conseguir
enxergar você.
— Não sei que anomalia é essa da qual Ulicia falou, ou sua causa, mas
isso realmente não importa para mim. O que importa é que, como em todas as
coisas, pretendo usar isso em minha vantagem. Pretendo providenciar para que
você fique bem guardada. Você cavalgará novamente amanhã e faremos uma
passeio através das tropas, mas você fará isso sem as suas roupas. Desse jeito,
ajudará a encontrar para nós um bom suprimento de novos guardas especiais.
Esse deverá ser um dia bastante excitante.
Kahlan não ofereceu qualquer argumento... nenhum teri a adiantado.
Ela podia afirmar pela forma cuidadosa como ele explicou aquilo que ele falava
sério em deixá-la desconfortável. Suspeitou que sua humilhação estava apenas
começando.
O Imperador Jagang conduziu -a através da abertura de sua tenda como
se ela fosse da realeza. Ele estava zombando, ela sabia. Quando entrou ela
sentiu o poder da coleira liberar sua pressão. Finalmente ela podia mover os pés
e braços por sua própria vontade. A dor, felizmente, também começara a
desaparecer.
Dentro da tenda o ambi ente estava quase escuro, iluminado apenas por
velas. Elas espalhavam na tenda um brilho caloroso, fazendo ela parecer
acolhedora e segura, quase como um lugar sagrado. Podia ser qualquer coisa
menos isso.
Ela sentiu como se estivesse sendo levada para su a execução.

359
C A P Í T U L O 4 7

Os escravos que haviam preparado uma refeição com comidas leves


para o Imperador foram todos dispensados. Ao verem a expressão nos olhos
dele, e após terem ouvido os gritos de homens moribundos, todos ficaram
bastantes felizes em partir quando ele gritou para que eles saíssem.
Ele observou enquanto todos saiam rapidamente e então, com um dedo
grosso pressionado no meio das costas dela, Jagang conduziu silenciosamente
Kahlan passando pela mesa com canecas de vinho, ba ndejas com carnes, pedaços
de pão escuro, tigelas com nozes, e arranjos de frutas e doces, escoltando -a além
de outro tapete pendurado diante de uma abertura para um quarto dentro da
tenda.
O quarto estava isolado do resto da tenda e do lado de fora por a quilo
que pareciam painéis almofadados, provavelmente para torná -lo mais tranquilo.
As paredes também estavam cobertas com peles e tecidos de material trançados
com desenhos. O quarto estava calorosamente decorado com belos tapetes,
algumas pequenas peças de móveis refinados, estantes com a frente de vidro
cheias de livros, e lanternas ornamentadas prateadas e douradas. A cama,
coberta por camadas de seda, tinha postes escuros espiralados de madeira em
cada canto.
Kahlan escondeu seus dedos trêmulos atrás das costas enquanto
observava Jagang cruzar o quarto e remover sua vestimenta de lã de carneiro.
Ele atirou as roupas sobre uma cadeira junto a uma pequena escrivaninha. Seu
peito nú e costas estavam cobertos por cabelos escuros. Ele parecia com um urso
de várias maneiras. Ele parecia tudo menos um homem que teria cobertas de
cama de seda. Ela suspeitou que ele na verdade não apreciava coisas assim, mas
as queria como uma marca de sua posição. Ela imaginou que ele devia ter
esquecido que ninguém deveria ser melhor do que qualquer outro na Ordem. Ela
deduziu que ele jamais preocupou -se em saber se os homens do lado de fora das
tendas sujas tinham ou não cobertores de seda sob os quais dormiriam.
Jagang olhou para ela. — Bem, mulher, tire as suas roupas. Ou v ocê
acharia melhor que eu as arranque de você. A escolha é sua.
— Quer eu as tire, ou você as arranque, isso ainda é um estupro.
Ele ficou ereto e olhou para ela durante algum tempo em meio ao
silêncio dentro da tenda. O acampamento do lado de fora havia aquietado
consideravelmente, deixando apenas os sons abafados de palavras distantes
misturando -se em um leve murmúrio. Os homens estavam cansados da longa
marcha do dia, assim como pela excitação dos jogos de Ja’La, e Jagang tinha
decretado que cada dia d e marcha seria igualmente veloz até que eles chegassem
ao Palácio do Povo, então a maioria dos homens sem dúvida estavam em suas
tendas dormindo.
O único que não aquietara -se durante a noite foi Jagang. Se ele estava
em um estado de excitação depois dos j ogos, então depois que ela matou os
quatro homens ele estava à beira de enlouquecer. Kahlan realmente não se
importava. Se ele a espancasse até desmaiá -la, então ela não teria que ficar
consciente para qualquer outra coisa que ele faria com ela.
— Agora você é minha. — ele disse em um tom baixo, ameaçador. —
Você pertence a mim... a nenhum outro. Somente a mim. Posso fazer qualquer

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coisa que eu quiser com você. Se eu escolher cortar a sua garganta, então é seu
dever sangrar até a morte para mim. Se eu entr egar você para aqueles três
homens que conseguem enxergá -la, então você terá que submeter -se a eles, quer
você goste disso ou não, quer faça isso por sua vontade ou não.
— Agora você pertence a mim. O seu destino é aquele que eu escolher.
Não tem escolha naquilo que acontece a você. Nenhuma. Tudo que acontece a
você é apenas por minha escolha.
— Isso ainda é um estupro.
Ele atravessou o quarto com três passos furiosos e deu um tapa nela,
derrubando-a espalhada. Ele levantou -a pelo cabelo e jogou ela sobr e a cama. O
mundo girou enquanto Kahlan girava no ar. Ela não acertou o poste de madeira
por centímetros.
— É claro que é um estupro! É isso que eu quero que seja! É isso que
você vai receber!
Ele avançou até a cama como um touro enfurecido. Os olhos neg ros
dele estavam cheios com furiosas tempestades de formas. Antes que ela
percebesse, ele estava sobre ela. Kahlan tinha tudo planejado. Não tentaria detê -
lo, dar a ele a satisfação de ter que usar a força para possuí -la. Mas com ele bem
ali, em cima dela, pressionando os quadris dela, esses pensamentos foram
perdidos no pânico súbito de eventos que ela desesperadamente não queria que
ocorressem. Ela esqueceu de todos os seus planos e tentou desesperadamente
afastar as mãos dele, mas em tal estado não havia como pará-lo. Não tinha força
que fosse comparável com a dele. Ele nem mesmo preocupou -se em bater nela
para fazer com que parasse de resistir. Com um puxão, ele abriu a camisa dela.
Kahlan ficou imóvel quando ele parou, o peito dela pulsando por causa
do esforço. Ele ficou olhando para os seios dela.
Ela usou a repentina calmaria para controlar -se. Acabara de matar
quatro brutamontes. Conseguira fazer isso. Isso era nada comparado com ter
uma coleira em volta do pescoço, ter sua memória arrancada, perde r sua
identidade, perder que era, tornar -se a escrava impotente das Irmãs do Escuro e
de um Imperador de uma multidão de bandidos.
Isso era nada. Ela era esperta demais para lutar com ele de uma
maneira tão tola, como uma garotinha tentando afastar as mão s de um valentão.
Ela não lutava desse jeito. Não lutaria. Sabia o que era melhor. Sim, estava
apavorada, não tinha que render -se ao pânico. Estava assustada quando matou
aqueles quatro homens, mas controlou sem medo e agiu.
Ela era melhor do que ele. Ele era apenas mais forte. Só podia possuí -
la através da força. Esse conhecimento dava a ela um fio de poder sobre ele, e
ele sabia disso. Ele jamais poderia tê -la de forma consentida porque ela era
melhor do que ele, e ela merecia algo muito melhor. Ele nunc a poderia ter uma
mulher como ela a não ser pela força porque era um homem fraco e sem valor.
— O seu prêmio dos prêmios é satisfatório, Excelência? — ela
zombou.
— Oh, sim. — o sorriso maldoso de Jagang aumentou. — Agora tire
essa calça de viagem.
Quando ela não fez qualquer movimento para obedecer, ele o fez por
ela, abrindo os botões um por um como se estivesse abrindo algo valioso. Ela
ficou deitada com as mãos para os lados. Ele enganchou os dedos na cintura da
calça dela, abaixou -a pelas pernas del a, e removeu -a do avesso pelos pés. Ele
atirou-a para um canto quando fez uma pausa para observar o corpo dela quase
nu.

361
Silenciosamente Kahlan mordeu a parte interna da bochecha para evitar
empurrar a mão dele em pânico quando ele deslizava a mão subindo pela perna
dela, sentindo a maciez da sua coxa. Kahlan lutou contra as lágrimas. Teria dado
qualquer coisa para não estar ali, para estar em qualquer outro lugar menos a
mercê desse monstro.
— Agora, o resto. — disse ele em um sussurro rouco. — Tire essas
roupas de baixo.
Ela podia perceber que remover as roupas dela apenas o excitara ainda
mais, então fez o que ele mandou fazer, tentando fazer parecer qualquer coisa
menos sedutora quando o fazia.
Enquanto observava ela seguindo suas ordens, ele sentou na beira da
cama e tirou as botas. Ele deixou as calças caírem e chutou -as. Apavorada como
estava ao enxergá -lo nu, Kahlan entregou -se à fraqueza e desviou os olhos dele.
Ela imaginou quando seria novamente capaz de apaixonar -se e deixar
um homem tocá-la depois disso. Ela repreendeu a si mesma. Nunca teria a
chance de apaixonar -se. Estava preocupando -se com um problema que jamais
teria.
A cama moveu com o peso dele quando ele subiu e deitou ao lado dela.
Ele parou para contemplá -la, deslizar a mão sobre a barriga dela. Ela esperava
que esse fosse um toque grosseiro, um apalpar áspero, mas ao invés disso foi um
toque furtivo, uma lenta e comedida avaliação de algo bastante valioso. Ela não
esperava que a aproximação gentil dele durasse muito mais tempo.
— Você realmente é extraordinária. — ele falou com uma voz lenta,
quase mais para si mesmo do que para ela. — Perceber você através dos olhos
de outros simplesmente não era a mesma coisa... posso ver isso agora.
O tom dele mudou. A raiva havia derretido sob o calor do desejo dele
por ela. Ele estava prestes a entregar -se a uma luxúria desinibida.
— Não é a mesma coisa de modo algum… eu sempre soube que você
era excepcional, mas agora que a vejo, desse jeito… você é uma criatura
formidável. Simplesmente… for midável.
Kahlan imaginou o que ele queria dizer quando falou que havia
percebido ela através dos olhos de outros. Ficou pensando se ele queria dizer
que tinha observado ela através dos olhos das Irmãs. Ela foi assolada por um
pensamento inesperado que dei xou-a transtornada: foi o pensamento de que ele a
observara tirar a roupa quando ela pensava que apenas uma Irmã estava lá. Isso
preencheu-a com uma grande raiva diante de tal violação.
Então, ele estivera lá, observando -a, planejando isso. Mas ao mesmo
tempo ela teve uma sensação de que ele estava falando sobre outra coisa
também. Havia mais coisas nas palavras dele, mais significado nelas, algo
oculto. Algo na forma como ele dissera aquilo fez ela pensar que ele estava
falando sobre algo na vida dela ant es das Irmãs, antes que ela tivesse perdido
quem era. Ela estava com raiva ao pensar nele observando -a através das Irmãs,
mas pensar nele vendo -a antes, na vida da qual ela não conseguia lembrar,
mexeu com ela.
Abruptamente ele rolou para cima dela. — Você não consegue
imaginar há quanto tempo tenho esperado para fazer isso.
A respiração dela, e seu batimento cardíaco, apenas tinham começado a
acalmarem-se. Agora, isso estava acontecendo rápido demais. Mais uma vez o
coração dela estava pulsando forte con tra suas costelas. Ela queria atrasá -lo,
conseguir tempo para pensar em uma maneira de evitar que ele fizesse isso com
ela. Ao sentir a carne dele contra a dela, porém, sua mente ficou vazia. Ela não

362
conseguia pensar em qualquer jeito para detê -lo. Só conseguia concentrar -se no
quanto não queria que ele fizesse isso.
Lembrou a si mesma das promessas que tinha feito. Ela era melhor do
que ele; ela deveria agir de acordo com isso.
Ela nada falou. Ficou olhando para o teto iluminado suavemente na luz
de lamparina.
— Você não consegue imaginar o quanto eu quis fazer isso com você.
— ele disse com uma voz repentinamente ameaçadora. — Você não consegue
imaginar o quanto merece que isso aconteça.
Ela desviou o olhar para encarar os olhos de pesadelo dele. — Não, eu
não consigo. Então apenas vá em frente com isso e me poupe de um discurso que
nada significa para mim, uma vez que eu não faço ideia do que você está
falando.
Ela desviou os olhos para longe mais uma vez. Queria mostrar para ele
apenas indiferença. E la deixou sua mente vagar. Não era fácil com ele encostado
contra seu corpo, prestes a possuí -la, mas ela fez o melhor que podia para
ignorá-lo, para pensar em outras coisas. Não queria dar a ele a satisfação de uma
luta que ela apenas perderia. Pensou no jogo de Ja’La, não porque isso fosse
algo no qual queria pensar, mas porque estava fresco o bastante em sua mente
para ser fácil lembrar em detalhes.
Subitamente ele enfiou os braços atrás dos joelhos dela e empurrou as
pernas dela para cima quase encosta ndo no peito dela. Era difícil respirar.
Machucava as juntas dos quadris ser curvada desse jeito, com as pernas abertas
dessa maneira, mas ela conteve o grito e tentou ignorar a forma como ele estava
tentando controlá-la, dominá-la enquanto ele a possuía.
— Se ele soubesse… isso o mataria.
Os olhos de Kahlan voltaram -se para ele. Ela mal conseguia respirar
sob o peso dele. — De quem você está falando?
Ela pensou que talvez fosse o pai dela... um pai do qual ela não
lembrava. Talvez ela tivesse um pai que era um comandante no exército, e era
por isso que ela parecia saber como lutar com uma faca. Não conseguia imaginar
de que outra pessoa ele podia estar falando.
Ela queria dizer algo para atingir ele, mas pensou melhor e permaneceu
em silêncio, indiferen te.
A boca de Jagang estava no ouvido dela. A barba rala dele esfregou
dolorosamente contra a bochecha e o pescoço dela. A respiração ele estava
acelerada e irregular. Ele estava perdido na luxúria que estava prestes a lançar
sobre ela.
— Se ao menos você soubesse… isso mataria você. — ela falou, óbvia
e profundamente feliz com o pensamento.
Ainda mais confusa, ela continuou em silêncio, sua preocupação
voltada para aquilo que ele podia estar querendo dizer.
Ela pensou que ele estava para consumar sua n ecessidade obviamente
lasciva, mas ele ficou ali, segurando as pernas dela abertas, olhando para ela. O
corpo cabeludo dele pressionado contra o dela, no limiar de seu intento. Com o
peso dele sobre ela, ela mal conseguia respirar, mas ela sabia que qualqu er
protesto apenas seria recebido com desinteresse no desconforto que ele poderia
estar causando a ela.
De certo modo, ela gostaria que ele fosse rápido e terminasse logo com
aquilo. A espera a estava deixando louca. Ela queria gritar, mas recusava -se a
fazê-lo. Não podia evitar sentir medo do quanto ele a machucaria, de quanto

363
tempo isso poderia durar... de como isso sem dúvida seria repetido não apenas
esta noite mas nas noites que estavam por vir. Se o peso de touro dele não
estivesse esmagando -a na cama ela estaria tremendo com a terrível ansiedade.
— Não. — ele falou para si mesmo. — Não, não é isso que eu quero.
Kahlan estava surpresa. Não tinha certeza de que ouvira aquilo que
pensou ter ouvido.
Ele soltou as pernas dela, deixando -as escorregarem sobre a cama
enquanto apoiava -se sobre as mãos. Ela gostaria que ele não estivesse deitado
entre as pernas dela para que pudesse fechá -las.
— Não. — ele repetiu. — Não desse jeito. Você não quer isso, mas
isso seria apenas oneroso. Você não gostaria, mas nada além disso.
— Quero que você saiba quem você é quando eu fizer isso. Quero que
saiba o que eu represento para você quando eu fizer isso. Quero que você odeie
isso mais do que odiou outra coisa em toda sua vida. Quero ser aquele que fará
isso a vocês dois. Quero plantar a lembrança do que isso significa para vocês em
suas mentes quando eu plantar minha semente em você. Quero que essa
lembrança assombre você enquanto você viver, que assombre ele para sempre,
toda vez que ele olhar para você. Quero que e le aprenda a odiá-la por isso, a
odiar o que você passou a representar para ele. A odiar sua criança, a criança
que eu darei a você.
— Para isso, primeiro você tem que saber quem você é. Se eu fizer isso
com você agora, apenas a deixará indiferente a resp eito disso, estragará o
grande sofrimento que eu causaria se você soubesse quem era quando isso
tivesse acontecido com você.
— Então diga para mim. — ela falou, quase disposta a suportar o
estupro para saber.
Um lento sorriso malicioso surgiu no rosto de le. — Falar para você não
adiantará. Palavras seriam vazias, sem significado, sem emoção. Você tem que
saber. Tem que lembrar quem você é, tem que saber tudo, se isso tiver que ser
um estupro de verdade… e eu pretendo que esse seja o pior estupro que você
pode sofrer, um estupro que dará a você uma criança que ele verá como um
lembrete, como um monstro.
Olhando para ela, ele balançou a cabeça lentamente com a satisfação
da dimensão de seu objetivo. — Para que seja assim, você tem que estar
completamente ci ente de quem você é, e de tudo que isso significará para você,
tudo que isso tocará, tudo que isso vai danificar, tudo que isso vai macular para
sempre.
De repente ele rolou para o lado saindo de cima dela. Kahlan deu um
suspiro que foi quase uma arfada.
Ele cerrou os dentes, e a grande mão dele segurou o seio direito dela.
— Não pense que escapou de alguma coisa, querida. Você não vai a lugar
algum. Só estou providenciando para que seja muito pior para você do que teria
sido, esta noite. — ele riu quando apertava o seio dela. — Pior para ele também.
Kahlan não conseguia imaginar como alguma coisa poderia tornar isso
pior do que teria sido. Ela só conseguia imaginar que para ele, o estupro lançava
a culpa sobre a vítima. Era desse jeito que ele pensava, d esse jeito que a Ordem
pensava, que a vítima era culpada.
Repentinamente ele atirou -a para fora da cama. Ela pousou
dolorosamente no chão, mas pelo menos sua queda foi parcialmente amortecida
por tapetes macios.
Ele olhou para ela. — Você dormirá no chão , bem aí, ao lado da cama.

364
Depois, terei você em minha cama. — ele sorriu. — Quando a sua memória
voltar, quando isso for destruí -la. Então darei a você o que merece, aquilo que
somente eu posso dar a você, aquilo que somente eu posso fazer para arruinar
sua vida… e a dele.
Kahlan ficou deitada no chão, temendo mover -se, temendo que ele
pudesse mudar de ideia. Ela sentiu inebriante alívio que esta noite ela não teria
que suportar isso.
Ele inclinou sobre a borda da cama, mais perto dela, olhando para ela
com seus olhos negros perturbadores. Ele enfiou sua grande mão entre as pernas
dela tão inesperadamente que ela soltou um grito.
Ele sorriu para ela. — E se você tiver a ideia de tentar pensar em um
jeito de escapulir, ou pior, de acabar comigo enquanto e u durmo, é melhor
esquecer isso agora mesmo. Não vai dar certo. Tudo que isso vai fornecer a você
é algum tempo nas tendas, mais tarde, depois que eu tiver arruinado tudo para
você. Providenciarei para que todos aqueles homens tenham você, bem nesse
lugar onde estão os meus dedos. Você entendeu?
Kahlan assentiu, sentindo uma lágrima descer pela bochecha.
— Se você sair de cima desses tapetes ao lado da cama esta noite,
então o poder da coleira vai detê -la. Você quer testar?
Kahlan balançou a cabeça, teme ndo que sua voz pudesse falhar.
Ele recolheu a mão. — Bom.
Ela o escutou virar de lado, olhando para longe dela. Kahlan ficou
deitada perfeitamente imóvel. Mal conseguia respirar. Não tinha certeza do que
tinha acontecido esta noite, ou do que tudo isso podia significar. Sabia apenas
que sentia-se mais solitária do que já havia sentido em sua vida... pelo menos,
na parte de sua vida que conseguia lembrar.
De uma forma estranha ela quase desejou que ele a tivesse estuprado.
Se tivesse feito isso, agora el a não estaria tremendo de medo por causa do que
ele disse, imaginando o que ele queria dizer. Agora ela teria que acordar a cada
manhã sem saber se aquele era o dia em que recuperaria sua memória. Quando
recuperasse, de alguma forma isso tornaria aquele es tupro pior ainda, tornaria
tudo pior, muito pior.
Kahlan acreditou nele. Independente do quanto estava ansioso para
possuí-la, e ela sabia muito o quanto ele estivera ansioso, ele não teria parado
naquele ponto a não ser que tudo que dissera fosse verdade .
Kahlan percebeu que não queria mais saber quem ela era. Seu passado
havia se transformado em algo perigoso demais para ela, para que desejasse
saber quem era. Se ela soubesse, ele faria o pior com ela. Melhor seria
permanecer no esquecimento, e protegid a daquilo.
Quando ouviu a respiração compassada dele, e então o seu ronco baixo,
ela esticou o braço e com dedos trêmulos colocou de volta suas roupas de baixo
e então o restante das suas vestimentas.
A despeito de ser verão, ela estava tremendo com o gé lido pavor.
Puxou um tapete próximo cobrindo -se enquanto ficava deitada ao lado da cama,
sabendo que era melhor não testar a palavra dele sobre as consequências de
qualquer tentativa de fuga. Não havia como escapar. Essa era a vida dela.
Agora esperava apenas manter o resto dela enterrada e esquecida.
Se algum dia lembrasse de quem era, então sua vida ficaria
infinitamente pior. Não deixaria isso acontecer. Ficaria por trás da mortalha
escura. Esta noite ela era uma nova pessoa, separada de quem havia sido . Aquela
pessoa tinha que permanecer morta para sempre.

365
Ela imaginou quem poderia ser aquele homem sobre o qual Jagang
falou. Teve medo de pensar no que Jagang faria com ele, através dela, que o
destruiria.
Ela expulsou esses pensamentos. Isso era o anti go eu dela. Aquela
pessoa estava perdida para sempre, e assim permaneceria.
Nas profundezas da solidão e do desespero, Kahlan enrolou -se em uma
bola e choramingou silenciosamente em fortes soluços.

366
C A P Í T U L O 4 8

Richard caminhava atordoado, observando o chão diante dele


iluminado pela luz do luar. Através desse sombrio estado de entorpecimento,
apenas uma centelha de algo parecia capaz de brilhar.
Kahlan.
Ele sentia tanta falta dela. Estava tão cansado de lutar. Estava tão
cansado de tentar. Estava tão cansado de falhar.
Ele sofria querendo ter ela de volta. Ter sua vida com ela de volta.
Abraçá-la… apenas abraçá -la.
Lembrou de uma época, fazia anos, na Casa dos Espíritos, quando ele
não sabia que ela era a Madre Confessora e ela estava se ntindo-se
desesperadamente solitária e sufocada pelos segredos esmagadores que tinha de
guardar. Ela pedira que ele a abraçasse, apenas a abraçasse. Ele lembrou da dor
na voz dela, da dor de precisar ser abraçada, confortada.
Ele daria qualquer coisa para fazer isso agora.
— Pare. — uma voz sibilou para ele. — Espere.
Richard parou. Ele sentia dificuldade em tentar importar -se com o que
estava acontecendo, ainda que soubesse que deveria. Ele conseguia ler a tensão
na postura dela; ela era como uma ave de rapina inclinando a cabeça, abrindo as
asas um pouquinho.
Parecia que ele não conseguia escapar da forte letargia que pesava
tanto sobre ele que não conseguia pensar. A conduta dela parecia ser o grande
potencial para agressão, mas abaixo disso ele viu u m leve sinal de medo.
Finalmente ele conseguiu reunir a concentração para tentar entender.
Então, sob a luz da luz, ele viu o que Seis estava observando: o que parecia ser
um vasto acampamento espalhado sobre um vale. Porque era no meio da noite,
as coisas estavam relativamente quietas lá embaixo. Mesmo através do
entorpecido miasma da presença dela, Richard sentiu o nível de preocupação
dele aumentando.
Ele também viu mais uma coisa. Passando do acampamento no vale, ele
viu, sobre o solo alto além, um ca stelo que ele achou que reconhecia.
— Vamos lá. — Seis falou quando passou deslizando por ele.
Richard andou penosamente atrás dela, mergulhando mais uma vez na
nebulosa indiferença onde tudo em que ele conseguia pensar era Kahlan.
Eles caminharam duran te o que pareceram horas pelo campo no meio
da noite. Seis estava quieta como uma serpente, movendo -se, parando, então
movendo-se novamente enquanto seguia seu caminho por trilhas menores através
de floresta fechada. Richard sentiu conforto com o cheiro de bálsamo e abetos.
O musgo e as samambaias alegravam ele com lembranças da infância.
O prazer da floresta evaporou quando eles caminharam por ruas
pavimentadas com paralelepípedos, entre lojas fechadas, passando por
construções escuras. Havia homens nas s ombras, pares deles, carregando piques.
Richard sentiu como se estivesse em um sonho observando tudo isso passar em
sua mente. Ele esperou que tudo que tivesse de fazer fosse imaginar a floresta
outra vez e ela apareceria.
Ele imaginou Kahlan. Ela não apa receu.
Dois homens com armaduras de metal polidas correram saindo de uma

367
rua lateral. Eles caíram de joelhos diante de Seis, beijando a borda do vestido
negro dela. Ela reduziu apenas levemente a velocidade por causa da humilhante
súplica deles. Eles a se guiram enquanto ela continuava subindo a rua, tornando -
se escoltas para a sombra da noite trilhando a escuridão atrás dela.
Tudo isso parecia como um sonho. Richard sabia que devia combater
isso, mas não conseguia importar -se. Preocupava -se apenas em faze r o que Seis
mandava. Ele não conseguia controlar -se. Ver a forma flutuante dela o
encantava, olhar dentro dos olhos dela o cativava, ouvir a voz dela o
enfeitiçava. Sem o seu Dom, ela preenchia aquele vazio dentro da alma dele.
A presença dela de alguma forma o completava, o enchia de propósito.
Os dois guardas com eles bateram gentilmente em uma porta de ferro
em um grande muro de pedra. Uma pequena portinha do lado de dentro, sobre
uma pequena abertura na porta de ferro, abriu -se. Olhos espiaram para o lado de
fora. Eles arregalaram -se um pouco ao avistarem a sombra pálida diante deles.
Richard conseguiu ouvir homens do outro lado removendo uma pesada barra.
A porta abriu e Seis passou com Richard a reboque. Ele viu grandes
muros de pedra na luz do lua r, mas prestou pouca atenção a eles. Estava mais
fascinado com a forma serpenteante que o conduzia através da noite.
Assim que eles cruzaram grandes portas, homens correram, abrindo
mais portas, gritando ordens, e trazendo tochas.
— Por aqui. — falou um homem enquanto ele os levava até uma
escadaria de pedra.
Descendo eles seguiram, espiralando e virando, cada vez mais fundo.
Richard sentiu como se estivesse sendo engolido pela garganta de alguma grande
besta de pedra. Porém, contanto que Seis o estivess e levando, ele estava
contente em ser engolido. Em níveis mais baixos, em um corredor escuro, os
homens a conduziram até um lugar sombrio. Palha estava espalhada sobre o chão
lamacento. Água ecoava enquanto pingava ao longe.
— Aqui está o lugar que você p ediu. — um guarda falou para ela.
A pesada porta chiou em enferrujado protesto quando ele abriu -a.
Dentro, sobre uma pequena mesa, ele acendeu uma vela com a tocha.
— O seu quarto para esta noite. — Seis falou para Richard. — Logo
será dia. Então, eu vol tarei.
— Sim, Senhora. — disse ele.
Ela inclinou um pouco em direção a ele, um leve sorriso marcando seu
rosto sem sangue. — Se eu conheço a Rainha, ela cai querer começar
imediatamente. Ela é bastante impaciente, sem falar no fato de ser impulsiva.
Sem dúvida ela vai trazer os homens grandes com chicotes. Espero que antes do
fim da manhã ela tenha esfolado a carne das suas costas.
Richard ficou olhando. Ele não conseguia fazer sua mente processar
tudo isso. — Senhora?
— A Rainha não é apenas cruel, mas vingativa. Você será o alvo do
veneno dela. Mas não se preocupe; eu ainda preciso de você vivo. Você poderá
sofrer uma agonia excruciante, mas vai sobreviver.
Ela virou com um floreio ondulante e saiu pela porta, uma sombra
sendo engolida dentro da escur idão. Homens afunilaram na porta saindo atrás
dela. A porta bateu fechando. Richard ouviu o barulho da fechadura. Antes que
percebesse, de repente ele estava sozinho em uma sala de pedra, abandonado,
esquecido.
No silêncio, o terror começou a penetrar em seus ossos. Porque uma
Rainha desejaria machucá -lo? Para que Seis precisava dele vivo?

368
Richard piscou. Conforme os momentos passavam, ele sentiu sua mente
trabalhando para entender. Parecia como se quanto mais longe Seis ficava,
melhor ele conseguia pensa r.
Depois que as tochas foram embora, levou algum tempo antes que seus
olhos se ajustassem com a luz de apenas uma vela. Ele olhou ao redor da sala de
pedra. Havia somente uma cadeira e uma mesa. O chão era de pedra. As paredes
eram de pedra. O teto tinha grossas vigas.
Isso ocorreu-lhe como um choque.
Denna.
Essa era a sala para onde ele havia sido levado quando foi capturado
pela primeira vez por Denna. Ele reconheceu a mesa. Lembrou de Denna sentada
naquela mesma cadeira. Ele olhou para cima e ali, b em onde ele lembrava que
ela estava, viu a cavilha de ferro.
Os pulsos dele estiveram em algemas de ferro. Denna tinha pendurado
a corrente que as unia naquela cavilha de ferro. Ele ficou pendurado por ela
enquanto Denna o torturava com seu Agiel. Imagens apavorantes da noite em
que Denna tinha quebrado a vontade dele passaram em sua mente. Pelo menos,
na noite em que ela pensou que havia dobrado ele. Ele havia dividido sua mente.
Mas lembrava das coisas que ela tinha feito com ele naquela noite.
E ele lembrou o que havia levado ela a tal violência.
Ele estava pendurado ali quando a Princesa Violeta entrou para
assistir. A Princesa decidiu que ela queria participar, partilhar da tortura dele.
Denna entregou para a monstrinha o Agiel dela e mostrou a ela c omo usá-lo
nele.
Richard lembrou de Violeta alardeando sobre como ordenaria que
Kahlan fosse estuprada, torturada, e finalmente morta.
Richard tinha chutado Violeta forte o bastante para quebrar a
mandíbula dela e cortar sua língua.
Essa era aquela sala.
Richard encostou contra a parede de pedra e escorregou para sentar e
descansar. Precisa pensar, compreender isso, entender o que estava acontecendo.
Ele estava encostado contra sua mochila, então retirou -a e colocou -a
sobre o colo. Um pensamento surgiu e ele procurou na mochila, empurrando sua
roupa de Mago Guerreiro e a capa dourada para o lado até que encontrou o livro
que Baraccus havia deixado para ele. Ele folheou as páginas. Elas ainda estavam
em branco. Se ao menos ele não tivesse perdido seu Dom , ele teria sido capaz de
ler o livro. Se ao menos ele soubesse como usar a sua habilidade teria sido
capaz de salvar a si mesmo. Se ao menos ele soubesse.
De repente ele teve um pensamento. Não podia deixar que eles
encontrassem esse livro. Seis tinha o Dom. Pelo menos, alguma forma dele. Não
podia deixar que ela visse isso. Baraccus o escondera durante três mil anos. Ele
não devia ser visto por outros olhos a não ser os dele. Ele não podia falhar
diante de tal confiança. Não podia permitir que alguém sou besse a respeito
desse livro.
Ele levantou e caminhou de um lado para outro pela sala, procurando
qualquer lugar em que pudesse esconder o livro. Não existia lugar. Era uma
simples sala de pedra. Não havia esconderijos, qualquer nicho, quaisquer pedras
soltas. Não havia onde esconder qualquer coisa.
Enquanto Richard permanecia no centro da sala, pensando, ele olhou
para cima e viu a cavilha de ferro. Ele moveu -se pela sala, inspecionando as
vigas. Tinha uma viga, seguindo paralela a uma parede, sem muito espaço entre

369
a viga e a parede. A viga, como a maior parte do teto, tinha longas rachaduras
de quando ela fora recentemente cortada e havia sido talhada e então secada.
Uma ideia lhe ocorreu.
Imediatamente puxou a cadeira e subiu sobre ela. Não era alta o
suficiente. Ele empurrou a cadeira para fora do caminho e arrastou a mesa.
Depois de passar da cadeira para o tampo da mesa, ele finalmente conseguiu
alcançar a cavilha de ferro. Balançou -o, mas ele estava preso bem firme. Ele
precisava daquela cavilha de ferro se queria esconder o livro.
Ele enganchou as mãos sobre a cavilha e usou todo o seu peso para
balançar para cima e para baixo. Finalmente a cavilha começou a afrouxar.
Trabalhando rapidamente e usando toda sua força muscular, ele finalmente
conseguiu fazer a cavilha balançar. Ele balançou -a para frente e para trás até
conseguir soltá-la.
Richard arrastou a mesa até o lado da sala perto do canto escuro, e
subiu nela. Ele checou a rachadura na viga, encontrando um lugar onde ela
seguia em direção ao topo, perto das tábuas cruzadas acima. Ele enfiou a cavilha
de ferro dentro da fenda na viga, colocando força até que ela ficasse presa bem
firme.
Ele pegou a mochila e empurrou -a no espaço apertado entre a viga e a
parede. Assim que ela estava o mais alt o e comprimida que ele podia colocá -la,
ele empurrou-a pela viga até que ela ficasse engatada acima da cavilha de ferro.
Ele testou a mochila puxando -a mas ela estava presa bem firme no lugar. Ela
não iria a qualquer parte.
Ele desceu com um salto e coloc ou a mesa e a cadeira de volta onde
estavam. A mochila tinha uma cor parecida com o carvalho antigo da viga, e ela
estava nas sombras. A não ser que uma pessoa estivesse procurando por ela, ele
não achava que alguém notaria a mochila alojada ali em cima on de ele havia
colocado. Além disso, isso era o melhor que podia fazer.
Satisfeito em ter feito tudo que podia para esconder o livro, e impedir
que a roupa de Mago Guerreiro, caíssem nas mãos erradas, ele deitou no frio
chão de pedra contra a parede oposta e tentou dormir um pouco.
Ele achou impossível dormir pensando sobre aquilo que Seis prometera
a ele para o dia seguinte. O medo tomava conta dele, fazendo sua mente
acelerar. Ele sabia que precisava descansar um pouco, mas simplesmente não
conseguia acalmar-se.
Ele realmente tinha uma sensação de alívio por estar longe de Seis.
Perdera toda a noção do tempo desde que estivera com os Fogos Fátuos e Seis
estivera lá quando ele saiu do meio das árvores antigas. Não conseguia pensar
quando estava com ela, na da conseguia fazer. Ela consumia toda a mente dele.
Toda a mente dele.
Ele lembrou de quando esteve nesta sala, com Denna. Ela dissera que
ele seria o animal de estimação dela, e que ele cederia diante da vontade dela.
Lembrou de ter falado para si mesmo que deixaria ela fazer o que desejasse, mas
que salvaria uma parte de si, colocaria ela longe, e não permitiria que qualquer
pessoa entrasse naquela parte, nem ele mesmo, até que precisasse liberar aquele
lugar seguro e ser ele mesmo novamente.
Tinha que fazer aquilo outra vez. Não podia permitir que Seis
dominasse toda sua mente, do jeito que ela fizera desde que o havia capturado.
Ele ainda podia sentir o peso da influência dela, a pressão da vontade dela, mas
agora que não estava na presença imediata d ela isso parecia muito menor em
comparação ao que ele sentia livre dela e capaz de pensar. Capaz de decidir, até

370
certo ponto, o que ele queria.
O que ele queria era ficar livre da Bruxa.
Ele criou um lugar em sua mente, como tinha feito há tanto tempo
nessa mesma sala, e isolou uma parte de si mesmo, uma parte de sua força, o
núcleo de sua vontade, de forma muito parecida como tinha escondido sua
mochila em um canto onde ninguém a encontraria.
Com sua nova habilidade de pensar, e um plano, ele sentiu uma
sensação de alívio. Embora ainda pudesse sentir as presas da Bruxa nele, ele
sentiu que ela não possuía mais o controle que ela pensava possuir. Finalmente
ele conseguiu relaxar um pouco.
Então ele pensou em Kahlan. A lembrança dela trouxe um sorriso
triste. Fez um esforço para pensar nos momento alegres com ela. Pensou em qual
era a sensação de abraçá -la, beijá-la, estar sozinho na noite com ela sussurrando
o quanto ele significava para ela.
Pensando em Kahlan, ele mergulhou no sono.

371
C A P Í T U L O 4 9

Richard acordou com um susto quando ouviu a porta sendo


destrancada. Foi um despertar rude, porque Kahlan o visitara em seus sonhos.
Ele não lembrava dos sonhos, mas sabia que esses sonhos a envolviam. Ele
sentiu-se imbuído com a presença dela, co mo se realmente tivesse estado com
ela, apenas para ser levado para longe ao ser acordado. Assim que ele estava
acordado, a presença dela imediatamente começou a dominá -lo. A perda de ao
menos a presença sonhadora dela para uma fria, vazia consciência, era
desanimadora. O mundo parecia ter sido muito mais rico nos sonhos dele.
Mesmo que não lembrasse deles, aqueles sonhos pareciam doces, como uma
música distante. Apenas a sensação deles era o bastante para que ele soubesse
que acharia melhor não estar no mu ndo desperto.
Richard começou a sentar e perceber o quanto estava dolorido por ter
dormido no chão de pedra. Pela forma como sua cabeça parecia nebulosa, ele
duvidou que tivesse dormido mais do que poucas horas. Quando viu guardas
entrando na sala de pedr a, Richard levantou cambaleante, tentando esticar seus
músculos enquanto o fazia.
Seis entrou na sala como um vento furioso. Contra seu cabelo negro e
o manto negro esvoaçante, sua pele parecia fantasmagórica. Seus olhos azuis
pálidos fixos nele como se n ada mais houvesse no mundo dela a não ele. Richard
sentiu aquele olhar cair sobre ele como se fosse o peso de uma montanha.
Aquele olhar, a presença dela, esmagou a vontade dele.
Ele nadou na sensação que o inundava. Quando ela chegou mais perto,
ele lutou para manter sua cabeça acima das águas escuras d abdicação de sua
vontade. Pareceu como se estivesse lutando por sua vida em um rio caudaloso
cuja poderosa corrente o estivesse puxando para baixo.
— Venha, nós temos que chegar até as cavernas. Não temos muito
tempo.
Ao invés de perguntar o que ela queria dizer com não ter muito
tempo... uma pergunta para a qual ele duvida conseguir reunir a força para
fazer... ao invés disso ele perguntou outra coisa, algo para o qual ele teve força,
algo que ainda estava forte em seus pensamentos.
— Você sabe onde está Kahlan?
Seis parou e virou parcialmente para olhar em direção a ele. — É
claro. Ela está com Jagang.
Jagang. Richard estava profundamente surpreso. Seis não apenas
lembrava de Kahlan, mas sabia onde el a estava. Ela pareceu feliz com a dor que
obviamente havia causado a ele.
Seis virou e marchou até a porta. — Agora, vamos lá. Depressa. —
alguma coisa estava errada. Ele não sabia o quê, mas podia sentir isso no poder
dela sobre ele. Ela o mantinha sob o seu feitiço de influência sedutora, como
uma suave correia com a força de ferro, e mesmo assim não era do mesmo jeito
que antes. Ele podia sentir que algo estava diferente. Havia um traço de aflição
no comportamento dela.
Mas isso dificilmente era o que o preocupava. Jagang tinha Kahlan. Ele
não conseguia imaginar como Seis ao menos sabia quem era Kahlan porque
estava atordoado com o significado daquelas palavras: ela está com Jagang .

372
Se não fosse a magia de Seis arrastando -o no rastro dela, Richard
certamente teria desabado ao chão. Ele não conseguia conceber um pesadelo
pior do que Jagang ter Kahlan. Seus pensamentos embaralhavam -se em cego
pânico enquanto ele seguia a Bruxa através das curvas escuras das passagens de
pedra. Tinha que fazer alguma cois a. Tinha que ajudar Kahlan. Ela não apenas
estava nas mãos das Irmãs do Escuro, mas elas estavam em conluio com o pior
inimigo de Richard e Kahlan.
O pensamento principal na mente de Richard... além de seu medo por
Kahlan... era que ele sabia onde Jagang estava. O Imperador estava a caminho
de D’Hara, em direção ao Palácio do Povo. E agora Kahlan estava com ele.
Tão imerso estava em seus pensamentos que ele descobriu que estavam
do lado de fora antes que ao menos percebesse. Imediatamente ele entendeu o
que havia deixado Seis tão agitada. Havia tropas entrando no lugar vindo de
todas as direções. Essas eram as tropas que ele tinha visto acampadas no vale na
noite anterior.
Seis praguejou baixinho enquanto procurava por uma maneira de
escapar do terreno. Po r cada entrada soldados surgiam. A passagem de volta
para dentro do castelo, de volta para a sala de pedra, já estava bloqueada por
uma parede de homens marchando dentro da área do castelo.
Todos esses eram homens sinistros, alguns usando armadura de meta l,
alguns cota de malha, mas a maioria usava proteção de couro escuro. Tiras de
couro com rebites cruzando sobre os peitos deles continham bolsas de couro
com suprimentos, ou facas embainhadas de prontidão. Pendurados em grossos
cintos de couro eles carreg avam machados, maças, manguais e espadas. Eram os
homens mais ameaçadores que Richard já tinha visto. Os guardas, vestindo
camisas de cota de malha cobertas por túnicas vermelhas, não eram tolos o
bastante para fazerem uma tentativa de parar tais homens, e specialmente não
com números como esses.
Richard sabia sem dúvida que esses homens entrando nos terrenos do
castelo eram tropas da Ordem Imperial.
— Através de acordo, — disse um homem musculoso quando caminhou
até Seis. — viemos garantir que Tamarang es teja segura para a causa da Ordem
Imperial.
— Sim, é claro. — falou Seis. — Mas… isso é consideravelmente mais
cedo do que vocês deveriam chegar.
O homem descansou uma das mãos sobre o cabo da sua espada
enquanto os olhos escuros dele checavam a disposiç ão do lugar. Richard
reconheceu a qualidade das armas que o homem carregava, o quanto sua
armadura era bem feita, e o modo como ele imediatamente assumiu o comando.
Esse era o comandante de todos esses homens.
— Nós fizemos um bom tempo. — disse ele. — Algumas das cidades e
vilarejos pelo caminho não ofereceram resistência, então conseguimos chegar
aqui agora, ao invés de após o inverno, como havíamos pensado.
— Bem… por favor aceitem as nossas boas vindas em nome da Rainha.
— falou Seis. — Eu... bem... e u estava justamente indo procurá -la.
O comandante usava placas de couro moldado, junto com uma placa
peitoral de couro prensado enfeitada com desenhos. Parecendo ter servido a ele
muito bem, a placa de couro tinha cortes e arranhões por repelir armas. Ele tinha
anéis alinhados pela parte de trás da orelha esquerda e uma tatuagem de escamas
sobre a metade direita do rosto, como se ele fosse metade homem, metade réptil.
— A Ordem opera para o bem da Ordem e de nossa causa. Tamarang

373
agora é parte da Ordem Im perial. Acredito que todos aqui agora estão felizes em
serem pessoas da Ordem?
O som de botas na pedra cobriu o som das aves cantando ao iminente
nascer do sol. Homens aproximaram -se por todos os lados, fluindo para dentro
do caminho até Richard.
— Sim, é claro. — Seis falou para o comandante. Ela pareceu estar
recuperando sua compostura. — A Rainha e eu acreditamos que vocês honrarão
os acordos feitos, de que o castelo não deve ser invadido por qualquer pessoa da
Ordem, que o castelo em si deve ser deixa do para Sua Majestade, seus
conselheiros e servos.
O homem ficou olhando nos olhos dela durante um momento. — Para
mim isso não faz diferença. O castelo não tem utilidade para nós. — ele piscou,
como se estivesse um tanto quanto surpreso em ouvir a si mes mo concordando
com tal coisa. Ele estufou o peito, recuperando um pouco do seu fogo. — Mas
pelo nosso acordo, o resto de Tamarang agora é uma província do Império da
Ordem Imperial.
Seis baixou a cabeça concordando. O leve sorriso dela estava de volta.
— Pelo acordo.
Richard notou mas malmente ouviu a conversa. Ele estivera usando o
enfraquecimento da influência que Seis tinha sobre ele para escapar daquilo.
Usou a distração dela como uma barra de ferro para afastar as garras invisíveis
dela. Ele consegui u uma abertura naquela influência apenas o suficiente para
deixar sua mente escapulir.
Estava na hora de fazer algo por si mesmo, por Kahlan.
Ainda que ele tivesse perdido o Dom, e tivesse perdido a Espada da
Verdade, não havia perdido as lições aprendid as com aquela arma, muito menos
as lições aprendidas durante sua vida. Podia não ter o Dom, mas lembrava do
significado dos símbolos. Ele conhecia o ritmo da dança com a morte. Ele ainda
era um só com uma lâmina.
Agora ele só precisava colocar as mãos em uma lâmina.
Enquanto Seis e o oficial decidiam os limites de onde os homens iriam
nos terrenos, de onde eles ficariam longe, e o que era deles dentro da cidade em
si, Richard olhou para trás, notou os cabos de madeira nas espadas dos soldados,
e o cabo de couro na espada do oficial subordinado logo atrás, só um pouco à
direita de Richard.
Ele sorriu para o homem quando puxou uma moeda de cobre do bolso e
girou-a casualmente entre os dedos. Ele deixou a moeda escorregar e cair, como
se fosse desastrado. El e agachou para pegá-la, pressionando uma das mãos na
terra arenosa ao lado do caminho para equilibrar -se enquanto alcançava a
moeda, deixando grãos grudarem em suas palmas e dedos. Ele pegou a moeda,
pegando também uma pequena quantidade de terra. O oficia l atrás, observando
seu superior falando com Seis, olhou em direção a Richard somente quando
Richard esfregou a terra da moeda e então devolveu -a ao bolso. Seis
representava um objeto muito mais cativante do que um ninguém esquisito.
Richard agiu como se estivesse esfregando as mãos, mas na verdade ele estava
cobrindo suas palmas e dedos com os grãos.
Assim que ele iniciasse, não queria que suas mãos escorregassem no
couro.
Sem virar, ele inclinou para trás em direção ao oficial menor parada
atrás dele. O homem estava concentrado na encantadora figura de Seis enquanto
ela tecia a sua teia, dizendo aos homens o que ela queria que eles fizessem. Em

374
sua visão periférica, Richard podia ver o cabo da arma pendurado no quadril do
homem. Ela era melhor feita do q ue as armas carregadas pela maioria dos
homens.
Enquanto Seis e o comandante estavam conversando, Richard virou um
pouco, fingindo espreguiçar. Em um instante, sua mão estava na espada. Em
outro instante a lâmina estava livre.
Ter uma arma, uma espada, e m sua mão, instantaneamente inundou
Richard com memórias, formas, e habilidades que ele havia passado longas
horas aprendendo. Em parte as lições podiam ter vindo de fontes fora desse
mundo, mas o conhecimento não era magia. Era a experiência de incontávei s
Seekers antes de Richard. Mesmo que não tivesse aquela arma com ele, ainda
tinha aquele conhecimento.
O oficial, aparentemente pensando que Richard estava apenas sendo
tolo, fez um movimento para recuperar sua arma. Richard girou a espada e com
um golpe para trás atravessou -o.
Outros homens entraram em ação. Espadas foram sacadas no frio ar da
manhã. Grandes homens retiraram enormes machados de seus cintos, junto com
maças e manguais.
De repente Richard estava em seu elemento. A névoa tinha
desaparecido de sua mente. Ele não esperava que a parte de sua mente que
isolara como proteção fosse invocada tão cedo assim, mas a hora chegara e ele
tinha que agir. Essa era sua chance.
Sabia onde Kahlan estava, e tinha que chegar até ela.
Esses homens estavam no caminho.
Richard girou, arrancando um braço que empunhava um machado. O
grito, o jato de sangue, fez com que os homens nas proximidades hesitassem.
Naquele espaço de um instante, Richard fez seu movimento. Ele levou a espada
para cima atravessando outro homem que erguia sua espada. O homem morreu
antes mesmo que ele tivesse seu braço totalmente recuado. Richard girou para
fora do caminho de armas que aproximavam -se dele.
A despeito da súbita cacofonia de sons de metal, de homens gritando,
Richard já estava em um silencioso mundo de propósito. Ele estava no controle.
Esses homens podem ter pensado que tinham um exército contra ele, mas de
certo modo essa era a vantagem dele. Ele não lutava contra um exército. Lutava
contra indivíduos. Eles pensavam como um a massa coletiva, um elemento
coletivo, permitindo uns aos outros moverem -se, como se os soldados
estivessem tentando ser uma grande centopeia.
Isso era um erro. Richard aproveitou isso para cortá -los. Enquanto
hesitavam, esperando que os outros agissem, esperando por uma abertura,
Richard já estava movendo -se através de suas linhas, cortando -os. Ele deixava
que eles girassem e saltassem, usando força e esforço, enquanto ele flutuava
entre o ataque de aço. Toda vez que ele golpeava, fazia contato. Toda vez que
girava sua arma, ele cortava. Era como atravessar um espesso arbusto, cortando
os galhos que esticavam -se até ele. Ele deixava que o impulso da espada desse
força ao golpe seguinte, mantendo ela em constante movimento ao invés de usar
esforço, e um te mpo precioso, para recuá -la. Se ele levasse a espada para baixo,
cortando o lado do pescoço de um homem, ele continuava o movimento, levando
a arma subindo para trás para perfurar um homem que avançava, e então, quando
puxava a lâmina, ele rodopiava para l onge quando espadas, machados e
manguais desciam no lugar onde ele estivera apenas um momento antes. Era uma
dança fluida, mover -se entre os homens que grunhiam, mergulhavam e saltavam.

375
Cortar, cortar, cortar, deixando os gritos preencherem o ar da manhã, deixando o
alarme de não serem capazes de detê -lo fazer os outros hesitarem com medo do
que poderia estar acontecendo.
O tempo todo, Richard manteve seu objetivo em vista. Ele estava
dirigindo-se para a abertura para fora. Apesar de estar avançando, desvi ando, e
dissimulando seu caminho através do ataque dos homens, ele seguia
incansavelmente para aquela abertura, e para sua liberdade. Tinha que
atravessar, e então poderia chegar até Kahlan.
Richard cortou alguns dos homens em seu caminho enquanto girava
passando por outros. Seu objetivo não era matar o máximo que conseguisse, mas
chegar até o seu alvo naquele portal aberto.
Ainda que ordens estivessem sendo gritadas, soldados estivessem
gritando em fúria por uma chance de chegar até ele, e homens estives sem
gemendo de dor quando eram cortados, eviscerados ou perfurados, havia um
tranquilo propósito na mente de Richard. Ele cortava a partir daquele vazio.
Selecionava alvos rapidamente, e os cortava tão rapidamente quanto. Ele não
desperdiçava esforço brand indo a lâmina, e cortava com certeza. Quando via um
líder entre os homens, um homem que movia -se com mais habilidade, um homem
ao qual os outros recorriam durante o ataque, Richard cortava essa força.
Conforme seguia em direção à abertura na parede, ele de slizava através de
fendas na guarda deles, o tempo todo cortando. Não permitia -se fazer uma pausa
por um instante em seu avanço implacável. Não permitia que o inimigo
recuperasse o fôlego enquanto os cortava. Ele cortava sem piedade, derrubando
cada homem que podia. Quer ele parecesse feroz ou com medo, Richard o
cortava. Eles haviam esperado que ele ficasse intimidado por seus números, por
seus gritos de batalha enquanto corriam; ele não ficou. Ele os cortava
impiedosamente.
Finalmente ele chegou até a po rta, decapitando o homem logo à
esquerda e então aquele que estava à direita. A abertura finalmente estava livre
de soldados da Ordem Imperial. Richard mergulhou através dela.
Tudo chegou a uma parada abrupta. Além estava uma parede de
arqueiros, todos com arcos preparados, todos mirando suas flechas nele. Homens
com arcos e homens com bestas estavam posicionados em um semicírculo além
do portal, aprisionando ele naquele bolsão de flechas com pontas de metal
afiadas todas apontadas para ele. Richard sabia muito bem que não tinha chance
contra as centenas de flechas apontadas para ele, especialmente não a esta
distância tão curta.
O comandante surgiu no portal. — Muito impressionante. Nunca vi
algo parecido com isso.
O homem realmente soava surpreso, mas e stava acabado. Richard
soltou um suspiro e atirou sua espada no chão.
O comandante aproximou -se, fazendo uma careta enquanto
inspecionava Richard, olhando para ele da cabeça aos pés. Atrás, Seis apareceu
na abertura através da parede, uma silhueta negra c ontra o sol nascente.
O comandante cruzou os braços musculosos. — Você sabe como jogar
Ja’La dh Jin?
Richard achou que essa era a pergunta mais estranha que poderia
imaginar nesse momento. No fundo, além da consideravelmente pequena
abertura na parede qu e ele cruzara, homens seriamente feridos gritavam,
choravam, e imploravam por ajuda.
Richard não desviou os olhos do comandante. — Sim, eu sei como

376
jogar o jogo da vida.
O homem sorriu por Richard usar a tradução de Ja’La dh Jin da língua
do Imperador.
O comandante, não parecendo preocupado com os números de seus
homens que Richard havia derrubado, sorriu para si mesmo enquanto balançava
a cabeça, maravilhado. Richard também não estava preocupado com os mortos e
feridos. Eles escolherem fazerem parte de um exército conquistador, pilhar,
estuprar, e assassinar pessoas que nada fizeram de mal a eles, pessoas que
cometeram o pecado de não acreditarem nos costumes da Ordem, pessoas que
desejaram viverem suas próprias vidas livres.
Seis apareceu ao lado do co mandante. — Eu agradeço os seus valiosos
esforços para capturar esse homem perigoso. Ele é um prisioneiro condenado e
minha responsabilidade. A punição dele deverá ser conduzida pela Rainha em
pessoa.
O comandante olhou para ela. — Ele acabou de matar um grande
número de meus homens. Agora ele é meu prisioneiro.
Seis parecia pronta para cuspir fogo. — Eu não permitirei...
Centenas de flechas todas ergueram -se para apontarem diretamente
para a mulher. Ela ficou imóvel e em silêncio, avaliando a ameaça. Co mo
Richard, ela obviamente sabia que o seu talento não era páreo para esse grande
quantidade de homens com armas que podiam ser disparadas com um
movimento. Bataria apenas um apertar de dedos para acabar com a vida dela.
— Esse homem é meu prisioneiro. — Seis falou ao comandante com
uma voz calma mas firme. — Eu estava justamente levando ele até a Rainha
para...
— Agora ele é meu prisioneiro. Volte para o castelo. Agora os terrenos
pertencem à Ordem. Esse não é mais domínio da Rainha... ou seu. Agora esse
homem é nosso.
— Mas eu...
— Você está dispensada. Ou quer romper o nosso acordo, e fazer com
que nós acabemos com todos vocês?
Os olhos azuis pálidos de Seis observaram as centenas de homens
mirando suas flechas nela. — É claro que nosso acordo perman ece, Comandante.
— ela voltou seus olhos intensos para o homem. — Tenho honrado ele, como
acertado, e assim você fará.
Ele inclinou a cabeça em uma leve reverência. — Muito bem. Agora,
nos deixe com nosso dever. Como acertado, você, assim como aqueles que estão
no comando aqui, podem cuidar dos seus assuntos, ir aonde desejarem, e meus
homens não tocarão em você, neles, ou na equipe do castelo.
Com um olhar assassino final para Richard, ela virou e afastou -se.
Junto com o comandante e todos os homens dele , Richard observou a Bruxa
deslizar através da abertura na parede e subir o caminho ensanguentado entre os
mortos e moribundos, sem olhar para eles uma segunda vez enquanto seguia para
a entrada do castelo. Homens afastaram -se, deixando ela passar.
O comandante virou para Richard. — Qual é o seu nome?
Richard sabia que não podia dar o seu nome verdadeiro. Não podia ao
menos dar o nome com o qual crescera, Richard C ypher. Se fizesse isso,
arriscaria ser reconhecido por quem ele realmente era. Sua mente ace lerou
enquanto tentava pensar em outro nome que pudesse usar. O nome que Zedd
gostava de usar quando precisava esconder sua identidade surgiu na cabeça dele.
— Eu sou Ruben R ybnik.

377
— Bem, Ruben, darei uma escolha a você. Poderíamos arrancar a sua
pele com você vivo, prender você em uma estaca, abrir sua barriga, e deixar
você observar enquanto os abutres puxam os seus intestinos para fora e brigam
por causa deles.
Richard sabia que não teria que encarar um destino como esse porque
tudo que teria de fazer era atacar e os arqueiros o matariam. Ainda assim, ele
não queria morrer. Não poderia ajudar Kahlan se estivesse morto.
— Não gosto muito dessa opção. Você tem outra?
Um leve sorriso apareceu no rosto do homem, combinando a metade
reptiliana com as tatua gens de escamas. — Sim, para dizer a verdade eu tenho.
Veja bem, as diferentes divisões do exército possuem times de Ja’La. O nosso é
formado por uma mistura de meus homens e os melhores daqueles que
encontramos... homens abençoados pelo Criador com talent o excepcional.
— Foi bastante impressionante a forma como você passou por todos
aqueles homens e chegou até a abertura na parede, como se estivesse abrindo
caminho em direção a um objetivo. Você continuou em direção desse objetivo
sem permitir a si mesmo ser detido não importava o que os homens atirassem
contra você… bem, você é um atacante natural.
— É uma posição perigosa, ser o atacante.
O comandante balançou os ombros. — Esse é o jogo da vida. Nós
estamos com falta de um atacante nesse momento. Ele m orreu no último jogo.
Quando ele estava esquivando de um bloqueador ele errou uma pegada e a Broc
enterrou nas costelas dele. Elas perfuraram os seus pulmões. Foi uma morte suja
e dolorosa.
— Esse não parece um trabalho muito tentador.
Os olhos do comand ante brilharam com ameaça. — Se você preferir,
pode arriscar a sua sorte sem a pele, observando os abutres lutarem por suas
tripas.
— Eu terei chance de jogar com o time do Imperador?
— O time do Imperador. — o comandante repetiu. Ele olhou para
Richard durante um momento, interessado que ele tivesse feito tal pergunta. —
Você realmente é do tipo competitivo. — ele finalmente assentiu. — Todos os
times sancionados de Ja’La sonham em ter uma chance de enfrentar o time do
Imperador. Se você mostrar o seu va lor, e nos ajudar a vencer torneios com a
sua habilidade como atacante, então, sim, você pode muito bem ter a chance de
jogar com o time do Imperador. Se você sobreviver tanto tempo.
— Então eu gostaria de participar.
O comandante sorriu. — Está pensando em ser um herói? É isso? Um
jogador de Ja’La que é aclamado? Um jogador famoso?
— Talvez.
O comandante inclinou chegando mais perto. — Acho que você está
sonhando com as mulheres que ganharia com uma vitória assim. Os olhares de
belas fêmeas. Os sorriso s de mulheres atraentes.
Richard pensou nos lindos olhos verdes de Kahlan, no sorriso dela.
— Sim, esse pensamento passou pela minha cabeça.
— Passou pela minha cabeça! — o homem soltou uma risada. — Bem,
Ruben, esqueça o pensamento. Você não é um jogad or que veio para participar.
Você é um prisioneiro, e um prisioneiro perigoso. Nós temos condições para
jogadores do seu tipo. Você será colocado em uma jaula e levado de carroça.
Será solto para jogar, ou praticar, mas de outra forma nada mais será do que um
animal enjaulado. Durantes as sessões de treinamento terá que trabalhar duro

378
para aprender a trabalhar com o resto da equipe, para aprender as forças e
fraquezas deles... afinal de contas, você é o atacante. Mas ainda assim, não será
um homem sozinho.
Richard não viu alternativa. — Entendo.
O comandante deu um forte suspiro quando enganchou os dedões no
cinturão de armas. — Bom. Se jogar bem, se fizer o melhor em cada jogo, e se
acontecer de nós vencermos o time do Imperador, permitirei que você escol ha
entre as mulheres que estarão reunidas, ansiosas para deitarem com os
jogadores.
— Com os vitoriosos. — Richard corrigiu.
O comandante assentiu. — Com os vitoriosos. — ele ergueu um dedo.
— Dê um passo em falso nesse meio tempo, e será morto.
— Barganha aceita. — disse Richard. — Você tem o seu novo atacante.
O comandante levantou um braço, sinalizando para que outros oficiais
chegassem mais perto. Eles ficaram de prontidão diante do comandante.
— Mandem trazer a carroça... aquela com a caixa de ferr o... para o
nosso novo atacante aqui. Acho que vocês já sabem o quanto ele é perigoso.
Cuidem dele dessa forma. Quero lançar o talento dele sobre nossos oponentes.
O oficial lançou um olhar avaliativo para Richard. — Seria bom vencer
em mais de uma ocasião.
O comandante assentiu quando começou a transmitir ordens. —
Posicionem guardas perto do castelo e na cidade, o suficiente para garantir que
não haverá problemas com o povo de Tamarang. Então façam todos os
trabalhadores começarem a montar as estações p ara nossos comboios de
suprimentos. Primeiro terão que encontrar um lugar grande o bastante. Procurem
do lado de fora da cidade, perto do rio.
— O verão está acabando. O inverno estará aqui antes que vocês
percebam, e os comboios de suprimentos que em bre ve virão para cá serão
grandes e escassos. Todas as nossas tropas no Mundo Novo precisarão de
suprimentos que durem durante o inverno que está chegando.
— A cidade de Tamarang fornecerá aos nossos homens aquilo que eles
precisarão para a construção. Tem u m porto no rio para onde a madeira deverá
ser levada, então vocês terão que juntar provisões para as estradas até o novo
local, e para os quartéis, para todos os homens que eventualmente estarão
aquartelados aqui.
Um dos oficiais assentiu. — Nós temos todos os planos prontos.
Richard só podia assumir que a Ordem pretendia usar a cidade de
Tamarang como auxílio em toda a construção do depósito. J á tinha visto eles
fazerem coisas assim. Era mais fácil lidar com lugares que estavam ansioso para
juntarem-se à Ordem do que destruir tudo e então simplesmente ter que construir
tudo novamente.
— Partirei imediatamente com nossas tropas e esse comboio de
suprimentos. — o comandante falou aos oficiais. — Jagang quer todos os
homens que ele puder conseguir para o as salto ao Império D’Haraniano.
O líder do Império D’Haraniano ficou quieto escutando os planos para
o assalto final ao povo do Mundo Novo, para a chacina daqueles que
acreditavam em liberdade, para a batalha que ele havia garantido que jamais
aconteceria.

379
C A P Í T U L O 5 0

Rachel acordou quando escutou Violeta caminhando pelo quarto.


Através da pequena abertura na porta de sua caixa de ferro, Rachel podia ver a
alta janela do outro lado do quarto. Mesmo que as grossas cortinas reais azuis
estivessem fechadas, ela podia afirmar pela cor da luz que entrava pela estreita
fenda entre elas que estava amanhecendo.
Normalmente a Rainha Violeta não levantava tão cedo.
Rachel ficou escutando, tentando ouvir o que Violeta estava fazendo.
Ela ouviu um longo bocejo, e então os sons da rainha da caverna vestindo as
roupas.
As pernas de Rachel estavam doloridas por ficar dentro da caixa a
noite toda. Ela queria sair e esticar -se. Porém, esse não era um desejo que ela
ousaria pronunciar. Pelo menos eles não ha viam colocado a braçadeira de língua
nela na noite anterior; às vezes Violeta parecia não incomodar -se com isso.
De repente houve um BANG, BANG, BANG, que fez Rachel
estremecer, fez o coração dela acelerar. Era Violeta batendo com o calcanhar do
sapato no topo da caixa de ferro.
— Acorde. — disse Violeta. — É o grande dia. Um mensageiro enfiou
um bilhete por baixo da porta durante a noite. Seis retornou... alguma horas
antes do amanhecer.
A Rainha assoviou enquanto continuava vestindo -se. Isso era um pou co
incomum, porque geralmente a Rainha chamava suas assistentes para buscarem a
roupa dela e vesti -la. Agora ela estava se vestindo, e assoviando enquanto fazia
isso. Rachel raramente tinha ouvido Violeta assoviar. Estava bastante claro que
ela estava com bom humor por causa do retorno de Seis.
O coração de Rachel ficou pesado com tudo que isso significava.
A pouca luz que entrava na caixa de dormir escureceu quando os olhos
de Violeta surgiram logo ali na abertura da porta. — Ela está com Richard. Os
feitiços que eu desenhei funcionaram. Hoje será o pior dia da vida dele.
Providenciarei isso. Hoje, ele começa a pagar por seus crimes contra mim.
O rosto de Violeta despareceu. O assovio começou novamente
enquanto a Rainha cruzava o quarto, terminando de ve stir-se, e colocou meias e
botas com laços. Em poucos momentos ela retornou e inclinou -se bem perto
outra vez.
— Deixarei você assistir enquanto os homens chicoteiam ele. — ela
inclinou a cabeça. — O que você tem a dizer?
No fundo de sua caixa, Rachel en goliu em seco. — Obrigada, Rainha
Violeta.
Violeta soltou uma risada quando levantou o corpo. — Ele não terá
qualquer pedaço de carne em suas costas quando o sol baixar hoje. — ela seguiu
uma curta distância até a mesa no canto e voltou. Rachel ouviu a ch ave girar na
fechadura. A fechadura emitiu um som metálico quando abriu, batendo contra a
porta de ferro. Violeta tirou o trinco do fecho. — E isso é apenas o começo
daquilo que mandarei fazerem com ele. Eu...
Houve uma batida urgente na porta. Uma voz ab afada pediu que a porta
fosse aberta. Era a voz de Seis.
— Espere um pouco, estou indo. — Violeta gritou do outro lado do

380
quarto.
Rachel moveu-se um pouco mais perto da abertura e viu Violeta
enganchar o trinco no fecho apressadamente. Ela o empurrou par a trancar de
novo justamente quando Seis bateu na porta.
— Está bem, está bem. — Violeta falou quando largou o trinco e
correu pelo quarto. Ela girou o trinco na grande porta e quase imediatamente ela
abriu. Seis entrou no quarto, toda escura e imponente como uma tempestade.
— Você está com ele, certo? Ele está aqui, trancado onde eu falei para
colocá-lo? — perguntou Violeta, sua voz cheia de uma estremecedora excitação
quando Seis fechou a grande porta. — Podemos começar a puni -lo
imediatamente. Mandarei os guardas prepararem...
— O exército levou ele.
Rachel chegou mais perto da porta de ferro e cautelosamente espiou
através da abertura. Seis estava perto da porta. A Rainha estava de costas para
Rachel. Violeta usava um vestido branco de ceda com um ci nto azul escuro e
botas com laços sobre as meias brancas, olhando para a figura da Bruxa.
— O quê?
— Tropas da Ordem Imperial apareceram pouco antes do amanhecer.
Eles estão entrando na cidade enquanto eu falo, entrando nos terrenos do
castelo. Há milhar es deles... dezenas de milhares deles... talvez centenas de
milhares deles, de acordo com o que eu sei.
Violeta pareceu confusa, não querendo acreditar no que estava ouvindo
enquanto procurava palavras. — Mas não pode ser. A mensagem que você
enviou dizia que ele estava trancado, exatamente como eu ordenei, trancado na
cela onde ele me feriu.
— Ele estava no sentido próprio da palavra. Nós chegamos durante a
noite e eu o tranquei exatamente como você queria. Então enviei a mensagem
para você e fui cuidar de algumas coisas, esperando o amanhecer.
— Estava trazendo ele comigo agorinha mesmo. Estava trazendo ele
para encarar você quando encontramos com os soldados ocupantes. É uma
daquelas massivas colunas avançadas de reforços. O objetivo deles não é um
massacre e destruição; eles querem estabelecer uma área de apoio em Tamarang
para outros comboios de suprimentos que saem do Mundo Antigo. Eles estavam
abertos a minha oferta de...
— E quanto a Richard!
Seis soltou um suspiro. — Cheguei tarde demais. Nada h avia que eu
pudesse fazer. As tropas estavam entrando de todas as direções. Nosso homens
não tiveram chance para detê -los. Aqueles que tentaram foram derrubados.
Pensei que era melhor lidar com os homens da Ordem eu mesma, tentar
encontrar uma forma de gar antir segurança para você, e para sua equipe,
enquanto eu tinha chance.
— Enquanto eu estava falando com o comandante, garantindo termos
favoráveis para nós em troca da ajuda naquilo que eles querem fazer para
estabelecerem rotas de suprimentos, de repent e Richard apareceu com uma
espada.
Violeta plantou as mãos nos quadris. — O que você quer dizer com
“ele apareceu com uma espada”? — a raiva dela, junto com sua voz, estava
elevando-se a cada momento. — Você providenciou para que ele não tivesse a
espada dele.
— Não, não era a Espada da Verdade. Era apenas outra espada. Apenas
uma espada comum. Ele deve ter pego de um soldado quando ninguém estava

381
olhando. Ainda que ela fosse comum, ele sabia como usá -la. Repentinamente
estourou uma batalha. Richard era c omo a própria morte sendo liberada. Ele
estava matando dúzias de soldados da Ordem Imperial. Foi uma loucura. Os
homens pensaram que estavam enfrentando uma batalha maior. Todos correram
para o combate sem ao menos saberem contra o que estavam lutando. As coisas
ficaram loucas em um instante.
— Eu não podia controlar um pandemônio daquele nível. Havia homens
demais, havia violência demais. Eu teria precisado de algum tempo para ganhar
o controle e não houve tempo. Richard conseguiu atravessar o muro...
— Ele escapou! Depois de tudo isso, ele escapou!
— Não. Do lado de fora do muro aguardavam centenas de arqueiros.
Eles o encurralaram. Ele foi capturado.
Violeta suspirou com alívio. — Bom. Por um momento eu pensei...
— Não, isso não é bom. O comandante n ão libertaria ele. Porque
Richard matou tantos dos seus homens, o comandante quis Richard como
prisioneiro. Provavelmente eles pretendem executá -lo. Duvido que ele viva para
ver o dia de amanhã.
— Assim que estava no castelo, no caminho até aqui, olhei po r uma
janela e vi eles colocarem Richard em uma caixa de ferro, em uma carroça. Eles
o levaram embora junto com a coluna de tropas seguindo para o norte.
Violeta piscou com indignação. — Você deixou ele ir embora? Deixou
aqueles ninguém sujos levarem ele.. . levarem o meu prêmio?
Na súbita quietude, Rachel viu o olhar de Seis ficar sombrio. Ela nunca
tinha visto a Bruxa direcionar um olhar como aquele para a Rainha, e achou que
Violeta faria muito bem em ser um pouco mais prudente.
— Eu não tive escolha. — falou Seis com uma fria inflexão em suas
palavras. — Havia centenas de arqueiros apontando flechas para mim. Eles não
deixaram escolha para mim no assunto. Não foi como se eu quisesse entregar
Richard para eles. Isso consumiu um monte de trabalho.
— Você devia ter impedido! Você tem poderes!
— Não o bastante para...
— Sua idiota cabeça de vento! Sua estúpida, estúpida, imbecil sem
valor! Confiei a você uma importante tarefa e você não conseguiu fazer ao
menos isso para mim! Ordenarei que seja chicoteada até o limite de sua vida por
isso! Você não é melhor do que o resto dos meus conselheiros inúteis! Ordenarei
que seja chicoteada no lugar de Richard para ensinar a você!
Rachel encolheu-se com o som do tapa. Ele derrubou Violeta. Ela
pousou com a bunda n o chão.
— Como ousa tocar em mim desse jeito. — falou Violeta, confortando
sua bochecha. — Mandarei que seja decapitada por isso. Guardas! Preciso de
vocês!
Quase imediatamente houve uma batida nas portas duplas.
Seis abriu uma delas. Dois homens com pi ques olharam para a Rainha
sentada no chão, e então dentro dos olhos azuis pálidos da mulher segurando a
maçaneta da porta.
— Se vocês ousarem bater nessa porta outra vez, — sibilou Seis. —
comerei os fígados de vocês no meu café da manhã e lavarei eles c om o seu
sangue.
Os dois homens ficaram tão pálidos quanto Seis. — Sinto muito
incomodá-la, Senhora. — um deles falou. — Sim, sinto muito. — o outro disse
quando eles viraram e seguiram rapidamente no corredor.

382
Com um rosnado de fúria Seis agarrou Violet a pelo cabelo e levantou -
a. A Bruxa aplicou um golpe que lançou Violeta rolando pelo chão, deixando
rastros de sangue nos tapetes.
— Sua pestinha ingrata. Já aguentei tudo que podia suportar de você.
Suportei tempo suficiente. De agora em diante, você man terá essa língua quieta
ou arrancarei aquilo que devolvi a você.
Seus longos dedos finos agarraram Violeta pelo cabelo e a levantaram
novamente, e então bateram com a Rainha contra a parede. Rachel conseguiu ver
os braços de Violeta penderem moles. Ela nã o fez qualquer movimento para
defender-se enquanto Seis batia nela várias vezes. Sangue escorreu do nariz de
Violeta, da sua boca, e ficou espalhado na parede. Um pouco de sangue
destacou-se contra a seda branca do vestido de Violeta.
Quando a alta Bruxa soltou a Rainha, ela caiu no chão e começou a
chorar.
— Cale a boca! — rugiu Seis, sua fúria aumentando. — Levante!
Levante nesse instante ou jamais levante!
Violeta fez um esforço para erguer -se, finalmente ficando de pé diante
de Seis, olhando para ela , seus olhos cheios não apenas de lágrimas, mas de
terror.
Violeta levantou o queixo. Visivelmente ela colocou o medo de lado e,
ao invés disso, agarrou -se na indignação. — Como ousa tocar na sua Rainha de
um jeito como esse. Eu vou...
— Rainha? — zombou Seis. — Você jamais foi algo além de que uma
Rainha fantoche. Agora, nem isso você é mais. Você não é mais Rainha. Pois
nesse momento, você renuncia.
— Agora eu sou a Rainha. Não como você, uma pequena tola pomposa
que considera-se importante por causa d a extravagância dos seus rompantes de
raiva, mas uma Rainha de verdade. Uma Rainha com real poder. Rainha Seis.
Entendeu?
Quando Violeta começou a chorar com forte ressentimento, Seis
esbofeteou-a forte o bastante para inclinar a cabeça dela para o lado e lançar
mais sangue contra os desenhos feitos na cor azul na parede. Novamente,
encarada por uma Bruxa furiosa, Violeta não respondeu, nem mesmo para
reclamar do assalto.
Seis descansou os punhos nos quadris enquanto inclinava em direção a
Violeta. — Eu perguntei se você entendeu.
Violeta, no limiar do pânico ao ouvir a ameaça mortal na voz de Seis,
assentiu.
— Diga! — Seis esbofeteou -a outra vez. — Responda para sua Rainha
de forma apropriada!
Os gemidos de Violeta ficaram ainda mais altos, como se iss o fosse
salvar o trono dela.
— Diga ou ordenarei que seja fervida viva, retalhada, e entregue como
comida para os porcos.
— Sim… Rainha Seis.
— Muito bom. — Seis falou com um sorriso venenoso. Ela endireitou o
corpo. — Agora, que utilidade você pode ter para mim? — ela olhou para o teto,
encostando um dedo no queixo em contemplação real. — Eu deveria m e
preocupar em ao menos mantê -la viva? Sim, eu já sei... você será a artista da
corte. Um membro inferior da minha equipe. Faça o seu trabalho adequadament e
e você vive. Falhe comigo de qualquer forma, e será fervida e usada como

383
alimento para os porcos. Entendeu?
Violeta assentiu diante do olhar raivoso que concentrava -se nela. —
Sim, Rainha Seis.
Seis sorriu com sinistro orgulho pelo modo como rapidament e colocou
Violeta em seu lugar. Ela segurou o colarinho atrás do pescoço da antiga
Rainha.
— Agora, nós temos negócios urgentes. Ainda podemos dar um jeito
nessa bagunça.
— Mas como? — Violeta choramingou. — Sem Richard...
— Eu cortei as presas dele. Agora o Dom dele é meu e ele permanecerá
isolado dele. Eu decidirei quando será a hora certa para cuidar dele.
— Quanto ao resto, existe outro jeito, mas esse, infelizmente, é mais
difícil. Só usei Richard em primeiro lugar porque certos aspectos disso eram
menos complicados. Isso também manteve você quieta e trabalhando sem
reclamar enquanto eu puxava suas cordinhas. O outro jeito é muito mais
complexo porque, diferente de Richard, um certo número de outras pessoas estão
envolvidas, então devemos iniciar im ediatamente.
— Que outro jeito?
Seis exibiu um sorriso afetado. — Você fará mais alguns desenhos para
mim. — ela abriu a porta com uma das mãos e com a outra arrastou Violeta para
fora, entrando no corredor. — Preciso que você desenhe uma mulher. Uma
mulher com uma coleira de ferro no pescoço.
— De que mulher você está falando? — perguntou Violeta com uma
voz trêmula.
Rachel mal conseguia enxergá -las quando Seis esticou o braço até a
maçaneta da porta. — Você não lembra dela. Será mais difícil fazer ass im por
causa disso, mas posso instruir você sobre como obter os elementos de que eu
precisarei. Mesmo assim, isso será mais difícil do que qualquer coisa que você
já tenha feito. Temo que isso testará não apenas a sua habilidade, mas a sua
força e resistência. Se não quiser terminar como alimento para porcos,
concentrará todo seu esforço nisso. Entendeu?
— Sim, Rainha Seis. — Violeta falou com uma voz embargada por
lágrimas.
Quando Seis começou a marchar afastando -se, arrastando Violeta com
ela, fechou a porta do quarto atrás de si.
No súbito silêncio, Rachel prendeu a respiração, imaginando se elas
lembrariam dela e voltariam. Ela esperou, mas então finalmente voltou a
respirar. Violeta havia recolocado o trinco, então provavelmente não pensaria
em Rachel. Agora Violeta tinha um monte de problemas bem maiores, do que
preocupar-se a respeito de deixar Rachel sair.
Rachel temia que fosse morrer na maldita caixa. Algum dia alguém a
deixaria sair? Seis retornaria e condenaria Rachel à morte? Afinal de contas ,
Rachel só foi mantida para a diversão de Violeta. Não havia mais qualquer razão
para que Seis mantivesse o engodo.
Agora Seis estava no comando.
Rachel conhecia a maioria das pessoas que trabalhavam no castelo. Ela
sabia que nenhuma delas ousaria dizer uma palavra quando Seis falasse que
agora ela era a Rainha. Todos tinham medo de Violeta, porque ela mandava as
pessoas serem punidas e condenadas à morte, mas todos tinham mais medo de
Seis porque era ela quem apoiava os caprichos de Violeta. Além disso, quando
Seis dizia coisas para as pessoas, elas pareciam perder sua habilidade de

384
fazerem qualquer coisa a não ser o que ela mandava fazerem. Aqueles que
incomodavam Seis pareciam desaparecer. Ocorreu a Rachel que os porcos
pareciam muito bem alimentados.
Rachel pensou outra vez em como Seis estava batendo em Violeta,
Violeta nem ao menos fez uma tentativa de proteger -se com suas mãos. Rachel
sabia que Seis era uma Bruxa. Bruxas tinham um jeito de fazerem as pessoas
esquecerem como lutar contra o que estav a acontecendo. Elas simplesmente
faziam o que ela dizia, não importava o quanto não desejassem. Como os dois
guardas. Eles viram a Rainha no chão com o nariz ensanguentado, gritando por
ajuda, mas rapidamente escolheram fazer o que Seis falou, não Violeta.

385
C A P Í T U L O 5 1

Rachel ficou sentada em sua caixa de ferro durante algum tempo,


pensando, preocupando -se, imaginando o que aconteceria com ela.
E então teve um pensamento.
Cuidadosamente, silenciosamente, mesmo que não houvesse qualquer
pessoa no quarto e a porta estivesse fechada, ela pressionou o corpo contra a
porta. Colocou um olho bem na abertura. Primeiro, olhou ao redor, com medo
que de alguma forma a Bruxa pudesse estar observando. Às vezes a Bruxa
aparecia para ela durante a noite… e m seus sonhos. Se Seis tivesse se
materializado no meio do quarto, Rachel não ficaria surpresa. Havia muitos
sussurros entre o pessoal do castelo sobre as coisas estranhas que estiveram
acontecendo desde que a mulher tinha chegado.
Mas o quarto estava vaz io. Ninguém estava ali, nenhuma figura alta
com manto negro.
Confiante de que estava sozinha, Rachel espiou por cima da fechadura.
Teve que olhar fixamente durante um momento, porque não tinha certeza de que
aquilo que estava vendo era real.
O trinco, pendurado no ferrolho, não estava trancado.
Rachel lembrou de Violeta empurrando ele quando Seis bateu na porta,
mas com a pressa ela não deve ter trancado. Se Rachel conseguisse fazer o
trinco sair do ferrolho, ela poderia abrir a porta. Poderia sair.
Seis havia levado Violeta para a caverna. Violeta e Seis estavam longe.
Rachel tentou esticar-se através da abertura para puxar o trinco, mas
estava longe demais. Precisava de uma vara, ou alguma coisa para alcançá -lo.
Observou ao redor em sua caixa de dormi r, mas nada havia. Não havia qualquer
vara jogada por ali. Havia muitas coisas do lado de fora da caixa que ela poderia
ter usado, mas elas estavam fora da caixa.
Enquanto aquele trinco estivesse enganchado no fecho de aço que
atravessava a abertura no fe rrolho, não tinha jeito para que Rachel pudesse abrir
a porta. O trinco poderia muito bem estar trancado.
Ela caiu de volta sobre o seu cobertor, desanimada, sua esperança
desaparecendo. Sentia falta de Chase. Durante algum tempo sua vida foi um
sonho. El a teve uma família, um pai maravilhoso que cuidava dela e ensinava a
ela tantas coisas. Rachel distraidamente puxou a ponta solta da linha grossa que
havia sido usada para costurar a borda do cobertor. Chase ficaria desapontado ao
ver ela desistindo tão fa cilmente, ver ela choramingar, mas o que podia fazer?
Nada havia em sua caixa que pudesse usar para tirar o trinco. Ela estava usando
um vestido, e botas. Sua botas não passariam pela abertura. A única outra coisa
que tinha era o seu cobertor. Violeta tiro u tudo dela. Ela estava sem nada.
Conforme ela puxava, mais da grossa linha desenrolava. Quando
Rachel olhou para a linha enrolada na ponta do seu dedo, a inspiração ocorreu -
lhe.
Ela começou a puxar a linha, puxar as costuras, soltando mais dela.
Logo ela estava com toda a borda do cobertor desfeita e tinha uma longa
extensão de linha. Ela dobrou -a em duas pernas e enrolou -a entre a palma de
uma das mãos e uma perna, transformando -a em uma linha mais grossa. Levou
algum tempo para formar várias camadas, t odas trançadas em uma forte

386
cordinha. Ela fez um laço na ponta e então foi até a abertura.
Cuidadosamente, ela empurrou para fora a cordinha, tentando fazer o
laço entrar sobre o trinco para que pudesse enganchar e então puxá -lo, para fora
do ferrolho. Isso soou mais fácil do que era. A cordinha não era pesada o
suficiente para ser lançada com precisão. Rachel tentou diversas formas para
fazer isso, mas sempre caia fora ou, se realmente caísse sobre o topo do trinco,
ela escorregava para o lado. Ela simple smente não queria descer sobre o lado
mais distante do trinco para travar. A cordinha era leve demais para lançar
muito bem, mas ao mesmo tempo era suficientemente firme para cruzar por cima
do trinco nas vezes em que pousava onde ela queria.
Mais uma vez , ela conseguiu fazer a ponta da cordinha pousar sobre a
trinco. A ponta, porém, dobrava em um ângulo ao invés de descer onde poderia
escorregar sobre o ferrolho aberto da fechadura.
Ela recolheu a cordinha e molhou -a com cuspe, então tentou
novamente. A cordinha molhada estava um pouco mais pesada. Ela conseguiu
lançá-la com um pouco mais de precisão. Sua mão estava ficando dolorida e
cansada de tentar porque tinha que torcer para o lado para jogar a cordinha.
Pareceu como se ela estivesse fazendo isso du rante toda a manhã. A cordinha
continuava ficando seca.
Rachel puxou a cordinha de volta e molhou -a em sua boca, deixando -a
bem molhada. Foi até a abertura e atirou -a. Na primeira vez ela pousou sobre o
trinco. O laço da cordinha estava logo abaixo da pon ta do trinco.
Rachel congelou. Isso foi o mais próximo que ela chegara. Era difícil
ficar com a mão para fora da abertura e conseguir ver através do pequeno espaço
que restava. Entretanto, ela podia ver que se puxasse, a cordinha seria levada
para cima e não engataria n8a ponta do trinco onde ela precisava que engatasse.
A cordinha, molhada como estava, estava aderindo à longa barra que
travava quando estava trancada. Rachel teve uma ideia. Cuidadosamente ela
começou a rolar a cordinha entre o indicador e o dedão. Com a cordinha colada
com o cuspe dela no metal, ela rolou, colando, até que a ponta desceu. Rachel
piscou enquanto observava fixamente. Parecia que o laço estava exatamente
onde ela precisava que estivesse. Estava com medo de mover -se, com medo de
cometer um erro, com medo de perder sua chance, com medo de fazer o
movimento errado porque não havia pensado muito bem nisso tudo.
Chase sempre disse que ela precisava usar sua cabeça... o julgamento
dela, ele chamou isso... e então agir de acordo com esse julgamento.
Em cada forma que ela podia julgar, o laço estava no lugar certo. Se
puxasse, e a corda ficasse presa com o cuspe dela na trava do trinco, o laço
engataria na ponta da barra. Seu coração batia forte no peito. Ela percebeu que
estava ofegando.
Prendendo as respiração, Rachel começou a puxar cautelosamente a
cordinha. A ponta achatada do metal prendeu no laço. Se ela puxasse forte
demais, ele poderia simplesmente sair.
Ela baixou os dedos para mudar o ângulo do puxão, para ajudar a puxar
o laço sobre a ponta, ao invés de permitir que ele escorregasse.
O laço esticou e então deslizou sobre a ponta do trinco. Ela mal podia
acreditar. Cuidadosamente, com firmeza, ela puxou a cordinha para cima,
fazendo o trinco sair do ferrolho. Quando ele e stava quase fora da curva de
metal, a parte boleada da barra no trinco engatou no ferrolho. Ela tentou puxar
um pouco mais forte, mas do jeito que ele estava engatado isso apenas fez o
trinco torcer em um ângulo, ao invés de levantar. Rachel temeu puxar fo rte

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demais. Estava com medo que a cordinha quebrasse.
Havia dobrado a linha várias vezes, deixando a cordinha com diversas
camadas de espessura. Imaginou que provavelmente ela estava bem forte. A
pergunta que ela não podia responder era o quão forte estav a, e se ela seria forte
o bastante se puxasse com mais força. Ela aliviou um pouco da tensão e deixou
o trinco baixar, então sacudiu ele um pouquinho, balançando -o rapidamente para
cima e para baixo, tentando sacudir a barra de metal através do arco.
De repente, o trinco saltou do ferrolho e caiu. Ele ficou pendurado pela
cordinha, balançando para frente e para trás abaixo da mão de Rachel projetada
para fora da abertura.
Ela empurrou, e a porta abriu rangendo. Com as partes de trás das
mãos, Rachel enxugou as lágrimas de alívio das bochechas. Ela havia libertado a
si mesma. Se ao menos Chase pudesse ter visto o que ela conseguiu fazer.
Agora tinha que escapar do castelo antes que Violeta ou Seis voltasse.
Rachel não sabia se Violeta estava ciente de que não havia trancado a fechadura.
Se ela soubesse que não tinha trancado, e mencionasse isso para Seis, elas
voltariam.
Imediatamente Rachel seguiu em direção a grande porta, mas então
lembrou de algo importante. Virou e correu até a escrivaninha no canto. P uxou a
tampa inclinada na posição em que Violeta usava quando escrevia bilhetes sobre
quem devia ser punido ou condenado à morte. Rachel agarrou o puxador dourado
em baixo, na gaveta do centro e abriu a gaveta. Colocou -a de lado, e então
enfiou a mão até o fundo e começou a tatear. Seus dedos tocaram em algo de
metal.
Ela tirou aquilo. Era a chave. Violeta ainda não havia retirado ela.
Ainda estava ali, onde ela guardava durante a noite.
Aliviada, Rachel enfiou a chave em sua bota e então recolocou a
gaveta e fechou a tampa da escrivaninha.
Lembrando de sua caixa de dormir, ela fechou a porta e enfiou o trinco
no ferrolho. Ela empurrou a fechadura, certificando -se de que ela estava bem
fechada. Deu um puxão apenas para garantir que estava segura... algo q ue
Violeta tinha falhado em fazer. Se alguém entrasse no quarto poderia imaginar
que Rachel ainda estivesse trancada em sua caixa. Se tivesse sorte, Seis ou
Violeta nem mesmo olharia e até lá Rachel já estaria bem longe.
Ela correu até as grandes portas d uplas e abriu uma só um pouquinho
para espiar do lado de fora. Não viu qualquer pessoa no corredor. Deslizou
passando pela porta, fechando -a silenciosamente atrás de si.
Checando ao redor mais uma vez, ela foi em direção às escadas, então
subiu rapidament e o mais silenciosamente possível. No andar seguinte, em um
corredor com painéis de madeira sem janelas, Rachel seguiu até a sala que
estaria trancada. Ainda havia luzes acesas de refletores. Elas eram mantidas
acesas durante toda a noite caso a Rainha des ejasse ir até a sua sala de joias.
Enquanto descia apressada o corredor, ela saltou sobre um pé enquanto enfiava a
mão na bota para pegar a chave.
Com a chave na mão, Rachel olhou por cima do ombro quando chegou
até a porta que estava procurando. Justo ne sse momento ela viu um homem a
uma certa distância vindo pelo corredor. Ele era um dos copeiros. Rachel o
conheceu pelo rosto, mas não sabia o nome dele.
— Senhorita Rachel? — ele disse, franzindo a testa quando chegou
perto dela.
Rachel assentiu. — Sim, o que foi?

388
— Exatamente. — ele olhou para a porta. — O que foi?
Chase ensinou -a a virar as coisas a seu favor quando pessoas faziam
perguntas que ela não queria responder. Ele também ensinou -a como devolver a
suspeita para fazer parecer como se a outra pessoa estivesse tramando algo. Eles
frequentemente transformavam isso em um jogo de acampamento. Ela sabia que
precisava fazer isso agora. Dessa vez, porém, não era um jogo. Era mortalmente
sério.
Ela fez sua melhor careta. Chase também ensinou -a a fazer isso. Falou
para ela simplesmente imaginar que um garoto queria beijá -la.
— O que parece que é?
O homem arqueou uma sobrancelha para ela. — Parece que você está
prestes a entrar na sala de joias da Rainha.
— Você pretende roubar de mim as joias da Rain ha que ela mandou
que eu buscasse? É por isso que você estava espreitando ali na esquina,
esperando que alguém fosse enviado até a sala de joias da Rainha? Para que
pudesse roubar?
— Espreitando... roubar você... ora, não, é claro que não. Eu apenas
quero saber...
— Você quer saber? — Rachel colocou as mãos nos quadris. — Você
quer saber? Você está responsável pelas joias? Porque não vai perguntar para a
Rainha Violeta o que você quer saber? Tenho certeza de que ela não se
importará com um copeiro fazendo perguntas para ela. Talvez ela apenas mande
que você seja chicoteado e não decapitado.
— Estou a serviço dela, buscando uma coisa para ela. Será que eu
preciso chamar alguns guardas para proteger a mim e as joias da Rainha que
devo levar para ela?
— Guardas? Ora, é claro que não...
— Então o que você tem a ver com esse assunto? — ela olhou para um
lado e para outro, mas não avistou qualquer pessoa. — Guardas! — ela gritou,
mas não muito alto. — Guardas! Um ladrão está atrás das joias da Rainha!
O homem entrou em pânico, tentando fazer ela ficar quieta, mas então
abandonou a tentativa e saiu correndo sem dizer mais uma palavra. Ele nem
olhou para trás. Rachel rapidamente destrancou a porta, checou o corredor
novamente, e então entrou. Não achava que a alg uém a tivesse ouvido, mas não
queria demorar mais tempo do que o necessário.
Ela não olhou uma segunda vez para a parede brilhante, polida, de
pequenas gavetas de madeira. As dúzias e dúzias de pequenas gavetas estavam
cheias com colares, braceletes, broc hes, tiaras, e anéis. Ao invés disso ela
imediatamente seguiu até o requintado pedestal de mármore branco que estava
sozinho no canto oposto da sala de joias. Sobre ele um dia estivera o objeto
favorito da Rainha Milena, a caixa incrustada de joias que ela exibia em toda
oportunidade.
Agora no lugar dela estava uma caixa que parecia como se fosse feita
com os pensamentos mais negros do Guardião. Ela era tão negra que a sala a
sala cheia com preciosas joias parecia trivial na presença de algo tão
monumentalmente sinistro.
Rachel havia odiado tocar na Caixa de Orden incrustada com joias da
Rainha Milena. Ela odiava o pensamento de tocar nesta mais ainda.
Porém, tinha que fazer isso.
Sabia que precisava ser rápida se queria ter qualquer chance de fugir.
Não havia como saber se Violeta lembraria que a caixa de dormir de ferro no

389
quarto dela não tinha sido trancada. Ela podia falar para Seis... ou Seis podia
simplesmente ler os pensamentos dela. Rachel suspeitava que Seis era capaz de
fazer tais coisas. Se ela s soubessem que Rachel não estava trancada naquela
caixa, elas voltariam.
Rachel tirou a caixa negra do pedestal de mármore branco e colocou -a
dentro da sacola de couro que estava encostada na parede. Era a mesma sacola
que Samuel usou para trazer a caixa para Seis.
No caminho até a porta, Rachel parou diante do alto espelho com
moldura de madeira. Odiava olhar -se no espelho, odiava ver o seu cabelo, o
modo como Violeta havia cortado ele. Quando morou no castelo antes, quando
era dama de companhia da Prin cesa Violeta, Rachel não tinha permissão para
deixar seu cabelo crescer porque era uma ninguém. Logo que Violeta teve
Rachel de volta, uma das primeiras coisas que ela fez foi pegar um grande par
de tesouras e cortar o longo e belo cabelo loiro de Rachel. Essa era a primeira
vez que ela realmente teve uma chance de dar uma boa olhada nele, entretanto,
uma olhada bem de perto.
Ela enxugou lágrimas das bochechas.
Chase falou para ela, quando ela partiu com ele, que se ela queria ser
filha dele teria que dei xar o cabelo crescer. O cabelo dela crescera longo e
lustroso durante os últimos dois anos, e ela sentiu como se realmente tivesse
passado a ser filha dele. Agora ela não parecia a mesma no espelho, que era na
última vez em que esteve nesta sala, olhando -se no espelho quando estava
ajudando o mago Giller a roubar a caixa de Orden incrustada de joias. Seus
traços estavam diferentes agora. Menos infantis, menos… doces.
Agora ela estava começando a fase desengonçada, como Chase chamou
isso, antes que ela flor escesse tornando-se a bela mulher que ele prometeu que
um dia ela seria. Esse dia parecia a uma distância impossivelmente longa. Além
disso, sem Chase, ninguém estaria lá para ver ela crescer, ou se importar.
Agora Chase estava morto e o cabelo dela estav a cortado novamente.
Porém, Violeta não havia simplesmente cortado ele, havia cortado de forma
irregular, em fragmentos e pedaços, tufos e chumaços. Isso fazia ela parecer
com um cachorro vira-lata que dormis ao lado de um monte de lixo. Entretanto,
havia algo mais, que Rachel viu naquele espelho. Ela viu a mulher que seria um
dia, a mulher que Chase prometeu que ela seria.
O que Chase pensaria se pudesse vê -la agora, com o cabelo todo
cortado?
Rachel afastou os pensamentos para o fundo de sua mente e pen durou a
sacola de couro com uma alça sobre o ombro. Ela abriu a porta apenas o
bastante para olhar descendo o corredor, então abriu um pouco mais para olhar
para o outro lado. Tudo ainda estava livre. Ela saiu rapidamente para o corredor,
fechou e trancou a porta.
Lembrava dos corredores e passagens do castelo tão bem quanto
lembrava das curvas do sorriso de Chase ao fazer ele sorrir quando ele tentava
não sorrir. Sempre gostava mais daquilo quando ele ria no momento em que
estava tentando fazer uma cara s éria para ela.
Ela tomou a escada dos servos para evitar a maioria dos guardas. Eles
ficavam mais nos corredores principais. Pessoas estavam cuidando de seus
deveres sem pausa. Nenhuma delas sabia ainda que havia uma nova Rainha. Ela
não sabia o que as pessoas pensariam de uma coisa como essa. Rachel sabia que
as pessoas odiavam Violeta, mas elas estavam apavoradas com Seis.
Lavadeiras carregando trouxas viraram enquanto fofocavam,

390
observando Rachel passar correndo. Homens carregando suprimentos não
prestavam atenção a ela. Rachel não olhava nos olhos de qualquer um deles para
que não fizessem perguntas.
Ela alcançou a porta para um corredor lateral que tinha um caminho de
saída do castelo. Ela virou em uma curva e deu de cara com dois guardas. Eles
usavam os mantos vermelhos sobre suas cotas de malha e carregavam piques
com pontas brilhantes. Espadas pendiam em seus cintos.
Rachel conseguiu ver claramente que eles não tinham intenção de
permitir a passagem dela sem descobrir o que ela estava fazendo ali e para onde
estava indo.
— Vocês devem fugir! — Rachel gritou para eles. — Depressa! — ela
virou e apontou atrás dela. — As tropas da Ordem Imperial estão entrando no
castelo... por aquele caminho lá atrás!
Um dos homens segurou seu pique com as duas mão s e descansou o
peso sobre ele. — Nada temos a temer daqueles homens. Eles são nossos
aliados.
— Eles pretendem decapitar todos os guardas da Rainha! Ouvi o
comandante dando as ordens para eles! Decapitem todos, ele disse! Sobra mais
para nós, ele disse. Todos os soldados sacaram seus grandes machados de
batalha. Disseram para eles que podiam ficar com qualquer coisa dos homens
que cortassem as cabeças. Depressa! Eles estão vindo! Salvem -se!
Os dois homens ficaram de bocas abertas.
— Por ali! — gritou Rachel, apontando em direção à escada dos
servos. — Eles não pensarão em procurar ali. Rápido! Eu avisarei aos outros!
Os homens assentiram agradecendo e seguiram para a porta que levava
até a escada dos servos. Quando haviam desaparecido, Rachel começou a correr
outra vez, saindo rapidamente do castelo. Ela foi pelo caminho que os servos
usavam quando seguiam para a cidade para buscar as coisas que precisavam no
trabalho dentro do castelo. Havia grandes soldados, homens de aparência
assustadora, que estavam patrulhando por toda parte, mas eles pareciam não
incomodar os servos, então Rachel juntou -se a alguns carpinteiros e caminhou
ao lado da alta roda do carro de mão deles. Ela escondeu o rosto atrás da carga
de tábuas.
Os soldados mostravam interesse apen as casual aos servos cuidando de
seus afazeres, a maioria observando as mulheres mais bonitas. Rachel manteve a
cabeça abaixada e continuou andando. Com o cabelo todo cortado ela parecia
uma ninguém, e nenhum dos soldados a deteve.
Assim que estava além d o grande muro de pedra, ela continuou
andando junto com os servos até que eles foram através de um caminho na
floresta que subia à direita perto da trilha. Ela olhou para trás por cima do
ombro e não viu quaisquer soldados olhando em direção a ela.
Rápida como um gato, Rachel entrou no meio das árvores. Logo que
estava entre os grossos bálsamos e pinheiros, ela começou a correr. Ela tomou
caminhos mais profundos entre espinheiros, seguindo qualquer um que
conseguisse encontrar indo para oeste ou norte. Log o que estava correndo, o
pânico surgiu do nada e assumiu o controle de suas pernas. Tudo em que ela
conseguia pensar era fugir. Essa era sua chance. Precisava correr.
Se os soldados da Ordem Imperial pegassem ela aqui fora, sabia que
estaria com problemas. Não tinha certeza do que eles fariam com ela, mas tinha
uma boa ideia geral. Chase ensinara a ela essas lições em uma noite escura perto
da fogueira do acampamento. Ele dissera a ela um pouco daquilo que homens

391
como aqueles fariam com ela.
Disse a ela para não permitir ser capturada por homens como aqueles.
Falou que se ela estivesse encarando esse tipo de homens, e a captura, precisava
lutar com tudo que tinha. Chase disse que não queria assustá -la, mas que
esperava mantê -la segura. Ainda assim, isso a f ez chorar e ela sentiu melhor
apenas quando ele abrigou -a sob o grande braço dele.
Ela percebeu que nada tinha com o que lutar. Todas as suas facas
foram levadas. Gostaria de ter sido mais esperta e antes de sair do castelo ter
dado uma rápida olhada no q uarto de Violeta para ver se conseguia encontrar
alguma de suas facas. Ela estava tão ansiosa para escapar que nem pensou nisso.
Devia ter ao menos passado pelas cozinhas quando estivera nas áreas de serviço
e ter pego uma faca. Estava tão ocupada parabeni zando a si mesma por causa de
um pedaço de fio, e que tinha fugido, que não pensara em conseguir uma arma.
Chase provavelmente estava furioso o bastante para voltar a vida e fazer uma
careta para ela por ter sido tão negligente. O rosto dela ardeu de vergo nha.
Ela parou quando viu um grosso galho caído no chão. Ela o pegou e
testou sua força. Parecia bom. Bateu com ele contra uma árvore e ele emitiu um
som sólido. Ele era um pouco mais pesado do que ela teria desejado carregar,
mas pelo menos tinha alguma coisa.
Ela reduziu para um trote e continuou em movimento, tentando colocar
o máximo de distância que pudesse entre ela e o castelo. Não sabia quando
descobririam o desaparecimento dela, e não sabia se Seis poderia rastrear tão
bem quanto podia fazer tudo mais. Rachel imaginou se Seis poderia ser capaz de
olhar em uma tigela com água e ver onde ela estava. Isso a fez correr mais
rápido novamente.
No início da tarde ela encontrou uma trilha. Ela parecia seguir para o
norte. Ela sabia que Aydindril ficava e m algum lugar ao norte. Não sabia se
conseguiria encontrar algo tão longe assim, mas não conseguia pensar em
qualquer outro lugar para ir. Se conseguisse voltar até a Fortaleza, voltar até
Zedd, ele ajudaria.
Ela estava tão perdida em pensamentos que nem mesmo viu o homem
até quase dar de encontro com ele. Olhou para cima e percebeu que era um
soldado da Ordem Imperial.
— Ora, ora, o que temos aqui?
Quando ele começou a esticar a mão em direção a ela, Rachel girou a
clava com toda sua força, golpeando o joelho dele. O homem gritou e caiu ao
chão, segurando o joelho, gritando palavrões para ela.
Rachel saiu correndo. Ela tomou os caminhos mais fechados outra vez
porque era menor e era mais fácil para ela lidar com eles do que seria para
homens grandes. De repente soou como se houvesse uma dúzia de homens atrás
dela, atravessando pelos arbustos. Ela conseguia ouvir o homem que acertou
mais distante, ainda praguejando, gritando aos seus colegas para pegarem ela.
Quando ela saiu em uma clareira, ofegante e q uase sem forças, viu que
havia homens bloqueando o caminho adiante. Todos correram em direção a ela.
Rachel esquivou -se para o lado e correu. Parecia que tinha soldados
por toda parte. Ela estava em pânico, sem saber como escapar deles.
Ouviu um homem ca ir. Não olhou para trás, mas continuou correndo.
Ouviu outro cair, gritando brevemente, e então ficando em silêncio. Ela
imaginou se, quando estavam correndo em alta velocidade, eles estavam
enfiando os pés em buracos, ou torcendo os tornozelos em trepadei ras baixas.
Outro homem soltou um grunhido. Dessa vez Rachel parou e virou

392
tempo suficiente para dar uma rápida olhada. Não tinha sido uma queda, ou um
tornozelo torcido. Havia sido uma som emitido na morte. Os olhos de Rachel
estavam arregalados enquanto ela olhava fixamente. Outro homem gritou como
se tivesse a pele arrancada enquanto estava vivo.
Rachel pensou em que tipo de floresta ela estava, e em que monstros
estavam soltos nela.
Ela virou e correu. Não tinha chance se os homens a pegassem. Não
sabia o que mais estava nas proximidades, mas primeiro tinha que evitar ser
capturada ou eles poderiam cortar sua garganta por causar tanto problema.
Subitamente, três homens avançaram de um arbusto, rugindo em fúria.
Um pequeno grito soou enquanto Rachel c orria com toda sua força e medo. Os
homens, porém, tinham pernas mais longas e estavam alcançando ela.
Um deles parou repentinamente. Rachel olhou para trás por cima de um
ombro e viu o homem arqueando as costas, como se estivesse sentindo dor.
Então ela viu um pedaço de aço brotando do peito dele. Os outros dois voltaram -
se para o ataque inesperado por trás.
Quando o homem que foi atravessado por uma espada começou a cair,
Rachel ficou de boca aberta diante daquilo que viu atrás dele.
Era Chase, tão grande quanto a vida.
Ela não conseguia compreender.
Os dois homens avançaram até ele. Chase combateu -os com golpes
velozes, poderosos, derrubando os dois como se não estivesse fazendo mais do
que afastar animais de estimação, mas ao mesmo tempo mais homens brotaram
da floresta ao redor deles. Ela viu ao menos meia dúzia dos grandes soldados da
Ordem Imperial de um lado avançando contra os ainda maiores Guardas da
Fronteira.
Rachel correu de volta enquanto Chase lutava com todos os homens ao
mesmo tempo. Qu ando ele matou um homem ao lado dele, um homem do outro
lado usou a abertura para atacá -lo. Rachel golpeou atrás dos joelhos dele. Suas
pernas dobraram. Chase girou e perfurou o homem, então encarou o avanço
feroz de mais homens, todos grunhindo com o esfo rço de tentar derrubar esse
grande homem. Eles cerravam os dentes enquanto rosnavam e tentavam segurar
os braços de Chase para que outros homens pudessem acertá -lo. Rachel bateu
neles com toda sua força, mas sem resultado.
Quando um dos homens caiu morto, Rachel agarrou a faca em uma
bainha no cinto dele e imediatamente esfaqueou as pernas de um homem que
tentava atacar as costas de Chase. Ele gritou e virou -se. Chase derrubou-o em
um instante.
De repente tudo estava quieto, a não ser pela respiração ofeg ante de
Rachel e Chase. Todos os homens jaziam mortos.
Rachel ficou olhando para Chase. Não conseguia acreditar no que
estava vendo, não conseguia acreditar em seus olhos. Ela temeu que ele pudesse
desaparecer, como um fantasma.
Ele olhou para ela, e aqu ele maravilhoso sorriso dele surgiu em seu
rosto.
— Chase, o que você está fazendo aqui?
— Eu vim checar se você estava bem.
— Bem? Eu estava sendo mantida prisioneira no castelo. Pensei que
você estava morto. Tive que salvar a mim mesma. Porque demorou tanto?
Ele sacudiu os ombros. — Eu não gostaria de estragar a sua realização.
Não foi melhor ter feito isso sozinha?

393
— Bem, — disse ela, um pouco perplexa. — uma ajudinha teria sido
muito bem vinda.
— É mesmo? — ela não pareceu comovido com a reclamaçã o dela. —
Parece que você conseguiu.
— Mas você não sabe. Foi horrível. Eles me trancaram naquela caixa
outra vez, e prenderam minha língua para que eu não conseguisse falar.
Chase olhou de soslaio. — Suponho que não trouxe essa trava de
língua com você, trouxe? Ela parece um dispositivo bem útil.
Rachel sorriu e abraçou a cintura dele. Quando encontrou com ele pela
primeira vez teve que abraçar a perna dele porque isso era tudo que conseguia
alcançar. Ela desfrutou do conforto da grande mão dele em suas costas. Parecia
como se tudo no mundo estivesse certo novamente.
— Pensei que você estava morto. — ela falou quando começou a
chorar.
Ele arrepiou o cabelo cortado dela. — Eu não faria isso com você,
pequenina. Eu prometi tomar conta de você, e falei sér io.
— Acho que sou obrigada a continuar sendo sua filha.
— Acho que sim. Porém, o seu cabelo está feio. Terá que deixar ele
crescer de novo se quiser ficar comigo. Não pode continuar cortando ele desse
jeito se quiser ser minha filha. Já falei isso para você.
Rachel sorriu entre as lágrimas.
Chase estava vivo.

394
C A P Í T U L O 5 2

Com Cara em seus calcanhares, Nicci caminhou através das imensas


portas folheadas com bronze cobertas por elaborados símbolos. O cintilar de um
raio entrou pelas dúzias de janelas com topo arredondado entre as enormes
colunas de mogno para iluminar fileira após fileira de prateleiras por toda a sala
cavernosa. Eles conseguiram consertar apenas a pior parte dos danos nas altas
janelas... o suficiente, eles esperavam, para que a sala pudesse ser usada para o
seu propósito pretendido como um campo de contenção. Alguns dos tapetes de
veludo verde escuro com bordas douradas estavam ficando molhados enquanto a
chuva soprava nos buracos restantes em algumas das rajadas mais fort es.
Vendo o que estava no centro da sala, flutuando acima da larga mesa
sobre a qual a própria Nicci uma vez flutuara, ela esperou que um pouco da
chuva errante fosse tudo que entraria através das partes que faltavam nas
janelas.
Correndo para encontrar com ela, Zedd agarrou os ombros dela. O
desespero estava claramente evidente nos olhos dele.
— Você encontrou ele? Ele está vivo, não está? Ele está bem?
Nicci soltou um suspiro. — Zedd, ele sobreviveu aos eventos dentro da
Sliph... pelo menos isso eu de scobri.
A Sliph também já tinha falado isso para eles. Rikka estivera lá
montando guarda no poço, quando a Sliph inesperadamente havia retornado.
Todos ficaram surpresos que a Sliph tivesse retornado, quanto mais retornado
para dizer a eles o que acontece ra.
De repente a criatura prateada estava ansiosa para falar... até certo
ponto... para contar a eles o que aconteceu com Richard. Não foi porque a Sliph
queria contar onde estivera com um de seus viajantes, mas ao invés disso porque
Richard, seu mestre, dissera para a Sliph contar a eles que ele estava em
segurança e aonde ele tinha ido. Ela estava ansiosa para satisfazer o comando
dele.
Infelizmente, a natureza da Sliph era permanecer sigilosa, e eles não
conseguiram obter respostas diretas dela sobre m ais disso. Zedd tinha falado que
a Sliph não estava sendo perversa; ela simplesmente não podia evitar agir da
forma como foi criada para agir. Ela estava sendo consistente com sua natureza.
Ele dissera que eles simplesmente teriam que aceitar a forma da Sliph revelar
informação e fazer o melhor para obterem o que pudessem dela.
Zedd também havia detectado na Sliph o traço residual de poder
deixado por uma Bruxa. Eles tinham certeza de que tinha que ser de Seis. Não
tinham certeza do que Seis estava planeja ndo, mas ao menos sabiam através da
Sliph que Richard de alguma forma escapara das garras dela.
— Mas onde ele está? A Sliph levou você até lá? Levou -a até onde ela
disse que o deixou?
— Levou. — Nicci olhou para a Mord -Sith e então colocou uma das
mãos sobre o ombro de Zedd. — Depois que chegamos ao lugar para onde a
Sliph o havia levado, então ela nos disse para onde ele tinha ido: para a terra
dos Fogos Fátuos. Nós ainda tivemos que viajar uma certa distância para
chegarmos lá.
Zedd ficou olhando, sur preso. — Os Fogos Fátuos?

395
— Sim. Mas Richard não estava lá.
— Pelo menos ele está vivo. Parece que ele está agindo por sua própria
vontade, e não pela vontade de uma Bruxa. — falou Zedd, soando um pouco
aliviado. — O que eles disseram? O que os Fogos pud eram contar a vocês?
Nicci soltou um suspiro. — Gostaria que você pudesse viajar para que
pudesse ter ido até lá, Zedd. Talvez eles falassem a você mais do que falariam
para nós. Eles nem permitiram que nós entrássemos além daquela estranha
floresta morta.
— Floresta morta? Que floresta morta?
Nicci ergueu as mãos. — Eu não sei, Zedd. Não sou especialista em
viagens ao ar livre. Havia essa vasta área com carvalhos mas eles estavam todos
mortos...
— A floresta de carvalhos está morta? — Zedd inclinou aproximando-
se dela. — Está falando sério? Os carvalhos estão mortos?.
Nicci sacudiu os ombros. — Eu acho. Aquelas árvores eram carvalhos.
Richard ensinou para mim o que é um carvalho. Porém, eles estavam todos
mortos.
Zedd desviou os olhos enquanto coçava u ma sobrancelha. — Tinha
ossos entre esses carvalhos?
— Sim, isso mesmo. — Cara falou, assentindo. — Tinha ossos
espalhados por toda parte entre aquelas árvores mortas.
— Maldição. — Zedd praguejou baixinho.
— Porque? — Nicci perguntou. — Qual é o problema?
Zedd levantou os olhos. — Mas você falou com os Fogos?
Nicci assentiu. — Tam, ele disse que esse era o seu nome.
Zedd esfregou o queixo enquanto olhava para o vazio, pensativo. —
Tam… eu não conheço ele.
— Havia outro, chamado Jass. — Nicci complet ou.
A boca de Zedd torceu enquanto ele considerava o nome. — Temo que
eu não conheça esse também.
— Jass disse que Richard estava procurando por uma mulher que os
Fogos deviam conhecer.
— Essa teria que ser Kahlan. — Zedd falou confirmando com a cabeça.
— Isso foi o que nós imaginamos também. — falou Cara.
— Mas porque ele iria até os Fogos para procurar ela? — a pergunta
dele soou mais para si mesmo do que para Nicci, mas ela respondeu de qualquer
forma.
— A Sliph não contou para nós qualquer coisa d essa parte, apenas
aonde ela o levou. Aparentemente, Richard não foi suficientemente específico
naquilo que ele instruiu a Sliph para nos contar. Ela não foi além das instruções
explícitas dele. Como você disse, essa é a natureza dela.
— Os Fogos também não contaram porque ele estivera lá. Disseram
que as razões dele para estar lá eram apenas dele e não eram necessariamente
para o conhecimento de outros. Eles disseram que não podiam revelar tais coisas
em nome dele.
— Não para outros... mas, mas… — a voz dele morreu em uma grande
agitação. Zedd olhou de volta para as duas. — Mas eles não disseram qualquer
coisa sobre o que Richard estava fazendo lá? Nadinha? Temos que saber porque
ele iria até os Fogos. Ele estava a caminho daqui, e então algo aconteceu qu e
custou a ele seu Dom enquanto estava viajando... provavelmente alguma coisa
envolvendo Seis... então ele foi até os Fogos? Porque? O que eles falaram a ele?

396
O que aconteceu quando ele esteve lá?
— Sinto muito, Zedd. — falou Nicci. Nós realmente não cons eguimos
descobrir muito. A Sliph nos falou uma parte... o que aconteceu com Richard,
para onde ela o levou, e que ele foi até os Fogos... mas ela também não sabe
qualquer coisa mais, ou simplesmente não quer nos contar o resto por alguma
razão. Richard não retornou até a Sliph, mas já que ele não pode mais viajar isso
faz sentido. Poderia ser que a Sliph realmente não saiba mais.
— Provavelmente Richard teria partido a pé. Imagino que ele seguiria
de volta para cá, para a Fortaleza. Afinal de contas, era p ara onde ele estava
indo quando algo deu errado dentro da Sliph. Por algum motivo ele foi até os
Fogos, mas isso pode ter mais a ver com a geografia do que qualquer outra
coisa... ele estava muito mais perto deles do que toda a distância de volta até
aqui, então ele pode ter decidido fazer uma rápida parada lá antes de voltar até
nós. Pode não ser mais do que isso.
— De acordo com os Fogos, eles não nos contariam muita coisa
também. Não permitiriam que fôssemos além daquelas árvores mortas, entre
aquelas enormes árvores antigas além. Mas há uma boa notícia nisso. Pelo
menos sabemos que Richard está vivo, e que ele foi até a terra dos Fogos. Isso é
o que importa... Richard está vivo. Conhecendo Richard, ele tentará encontrar
um cavalo o mais breve possível e provavelmente aparecerá aqui antes que
percebamos.
Zedd apertou o braço dela. — Você tem razão, minha querida. — esse
foi um gesto que Nicci considerou confortador, quase como se fosse uma
conexão com o próprio Richard. Era o tipo de apoio que o próprio Richard teria
oferecido em um momento tão preocupante.
De repente Zedd fez uma careta. — Você disse que os Fogos não
deixariam vocês entrarem ente os grandes pinheiros?
Nicci assentiu. — Isso mesmo. Eles não deixariam que fôssemos além
da floresta de carvalhos mortos, ou que pudéssemos ver os outros Fogos.
— De certo modo isso faz sentido. — Zedd deslizou um dedo em sua
têmpora enquanto considerava. — Os Fogos são criaturas reservadas, e
geralmente não permitem que qualquer pessoa entre em sua terra, mas parece
estranho sob as circunstâncias... e com um recado meu... que eles não deixassem
vocês entrarem.
— Eles estão morrendo.
Os olhos de Zedd voltaram -se para ela. — O quê?
— Tam disse que os Fogos estavam morrendo e que era por isso que
eles não queriam permitir nossa entrada. Ele disse que esse é um tempo de
grande conflito entre os Fogos, grande tristeza e preocupação. Eles não queriam
estranhos no meio deles nesse momento.
— Queridos espíritos, — Zedd sussurrou. — Richard estava certo.
As entranhas de Nicci ficaram rígidas de ansiedade. — Do que você
está falando? Richard está certo sobre o quê?
— Os carvalhos morrendo. Eles protegem a terra dos Fogos. Os Fogos
também estão morrendo. Isso é parte de uma cascata de eventos. Richard já nos
contou porque, exatamente nesta sala. Como se eu precisasse de mais uma razão
para acreditar nele.
— Mais uma razão? O que você quer dizer com isso?
Ele segurou os cotovelos de Nicci e virou -a em direção às Formas de
Feitiços flutuando acima da mesa. — Olhe aqui.
— Zedd, — falou Nicci em um alerta. — essa é a teia de verificação do

397
feitiço Cadeia de Fogo... e parece suspeitamente com uma perspectiva interior.
— Isso mesmo.
— Eu sei que estou certa. A pergunta é, o que está acontecendo? O que
você está planejando?
— Encontrei um jeito de iniciar uma espécie de simulação de uma
perspectiva interior... um jeito sem que você precise estar dentro dela. Não é a
mesma coisa em todos os aspectos, — ele disse com um gesto de desdém. — mas
para o propósito que eu tinha em mente isso era bom o bastante.
Nicci estava admirada que ele tivesse sido capaz de fazer uma coisa
assim. Também era um tanto quanto inquietante ver novamente a coisa que
quase havia tomado sua vida. Mas isso não era o que ela considerava mais
perturbador.
— Porque há duas? — ela perguntou. — Existe apenas um feitiço
Cadeia de Fogo. Porque há duas Formas de Feitiço aqui?
Zedd mostrou a ela um leve sorriso. — Ah, aí é que está o truque. Veja
bem, Richard alegou que as Notas estiveram presentes no mundo dos vivos. Se
isso fosse verdade, a presença delas teria contaminado o mundo dos vivos, teria
contaminado a magia. E ainda assim nenhum de nós tem visto qualquer
evidência disso. Esse é o paradoxo de uma contaminação como essa; ela corrói a
sua habilidade de detectar a presença dela. Eu queria achar um jeito de verificar
se Richard tinha razão...
— Richard Rahl tem razão.
Zedd balançou um obro magro diante da declaração enfática dela. —
Mas eu precisava ver se podia encontrar qualquer evidência. Não ente ndi toda
aquela coisa de emblemas sobre a qual Richard estava falando. Eu também
acredito nele, Nicci, mas não entendo como ele consegue ver uma linguagem em
símbolos da forma que consegue, como ele foi capaz de chegar às conclusões
que chegou. Preciso ver uma prova que eu entenda.
Nicci cruzou os braços enquanto olhava fixamente para as Formas de
Feitiço gêmeas. — Acho que sei como você se sente. Acredito nele, e ele faz
sentido, mas às vezes eu me sinto perdida, como eu costumava ficar quando
noviça, quando haveria um teste em coisas que foram ensinadas quando eu não
estava na aula. Quando Richard…
Nicci ficou em silêncio. Os braços dela descruzaram.
— Zedd, aquelas Formas de Feitiço não são as mesmas.
O sorriso dele aumentou. — Eu sei disso.
Nicci chegou mais perto da mesa, mais perto das duas formas formadas
por linhas cintilantes. Ela inspecionou -as mais cuidadosamente. Apontou para
uma.
— Essa é o feitiço Cadeia de Fogo . Eu o reconheço. Essa outra é
idêntica, mas não é a mesma coisa. É uma imagem e spelhada do verdadeiro
feitiço.
— Eu sei. — ele parecia bastante orgulhoso de si mesmo.
— Isso é impossível.
— Eu também pensei isso, mas então lembrei de um livro chamado O
Livro da Inversão e Duplex...
Nicci virou para o velho mago. — Você sabe onde está o Livro da
Inversão e Duplex?
Zedd gesticulou vagamente. — Bem, sim, consegui colocar minhas
mãos em uma cópia.
Nicci olhou para ele desconfiada. — Colocar suas mãos em uma cópia?

398
Zedd limpou a garganta. — O importante, — disse ele, segurando o
braço dela e virando -a de volta para as linhas brilhantes e o objeto em questão.
— é que eu lembrei de ter lido esse livro faz muitos, muitos anos, que falava
sobre técnicas para duplicar Formas de Feitiço. Na época isso não fez sentido
para mim. Porque algué m iria querer duplicar uma Forma de Feitiço?
— Mas havia mais. O livro prosseguia fornecendo instruções sobre
como inverter a Forma de Feitiço que primeiramente havia sido duplicada. A
coisa mais louca sobre a qual eu já tinha ouvido falar. Naquela época eu deixei
o livro e seus procedimentos obscuros de lado. Qual poderia ser o propósito de
tal coisa? Quem algum dia precisaria fazer uma coisa como essa? Ninguém, eu
pensei.
Ele ergueu um dedo. — E então, quando estava pensando na
possibilidade da contamin ação deixada pelas Notas, e tentava pensar em um
jeito de provar a teoria de Richard, de repente lembrei de ter lido aquele livro
uma vez, e me ocorreu essa ideia. Eu soube porque alguém iria querer duplicar e
inverter uma Forma de Feitiço.
Nicci estava f icando perdida. — Muito bem, eu desisto. Porque?
Zedd apontou animadamente para as duas Formas de Feitiço. — Isso é
o porque. Olhe. Essa é a original, muito parecida com aquela na qual você
estava, mas sem alguns dos elementos mais complexos e instáveis. — Zedd
balançou uma das mãos, indicando que isso não vinha ao caso. — Não
precisamos deles para esse objetivo. Essa aqui, é exatamente o mesmo feitiço,
duplicado, e então invertido. É uma cópia.
— Essa parte eu entendi, — falou Nicci. — mas ainda não vejo a que
propósito isso poderia servir para realizar uma análise tão estranha.
Sorrindo de forma confiante, Zedd encostou os dedos no lado do ombro
dela. — Falhas.
— Falhas? O que... — Nicci arfou ao compreender. — Quando você
vira do avesso um feitiço, a falha não inverte!
— Isso mesmo. — Zedd disse com uma piscada travessa e um balançar
instrutivo do seu dedo indicador. — A falha não inverte. Ela não pode. A Forma
de Feitiço é apenas uma demonstração do feitiço, uma substituta para algo real.
Desse modo ela pode ser manipulada... invertida. Ela não é o feitiço real; você
não poderia inverter um feitiço real. Mas as falhas não estão sujeitas à
influência da magia nos livros de instrução... somente a específica magia alvo
está. A falha é real. A falha perma nece inteira.
Zedd ficou solene com a natureza seriamente mortal da questão
material. — Quando a Forma de Feitiço é ativada, carrega com ela a falha, que
já está embutida. Quando você duplica a Forma de Feitiço ela carrega a mesma
falha, mas então quando você a inverte, a falha não pode inverter porque ela é
real, não uma representação de algo real como são as Formas de Feitiço. Não
esqueça, essa contaminação foi o que quase matou você.
Nicci desviou o olhar dos intensos olhos castanhos de Zedd para as
duas Formas de Feitiço cintilantes. Elas estavam espelhadas. Ela começou a
vasculhar a estrutura, observando cada linha, cada elemento, procurando na
outra Forma de Feitiço aquilo que era correspondente, mas invertido.
E então ela viu.
— Ali. — ela suspirou, apontando. — Aquela parte ali é idêntica em
ambas. Não está invertida. Não é uma imagem de espelho como todo o resto. É a
mesma nas duas enquanto tudo mais está invertido.
— Exatamente. — falou Zedd com triunfo. — Portanto, esse é o

399
propósito do Livro da Inversão e Duplex... descobrir falhas que de outra forma
não podem ser vistas ou detectadas.
Nicci ficou observando o velho, vendo ele em uma nova luz. Ela
soubera do Livro da Inversão e Duplex, mas, como todos os outros que o
estudaram, ela jamais com preendeu seu propósito. Houve debate a respeito
disso, é claro, mas ninguém conseguiu apresentar um objetivo para um livro de
magia esotérico como esse. Ele desafiava a sabedoria convencional sobre o
funcionamento e o propósito da magia. No final ele foi c olocado de lado como
uma mera curiosidade de uma época passada. De fato, ele havia sido apresentado
em palestras exatamente assim, uma esquisitice, uma relíquia de tempos antigos,
inútil, mas ainda assim um objeto de nota simplesmente porque havia
sobrevivido.
Zedd, como Richard, nunca descartava qualquer fragmento de
conhecimento. Como todo conhecimento coletado, ele o mantinha catalogado em
algum lugar no fundo de sua mente caso isso aparecesse outra vez. Quando
sentia dificuldade em encontrar uma respos ta ele checaria em sua memória de
coisas esquecidas que residiam em uma lista em algum canto empoeirado de sua
mente.
Richard fazia a mesma coisa. Conhecimento, uma vez adquirido,
permanecia em seu arsenal. Isso permitia a ele juntar as coisas de formas n ovas,
surgir com soluções surpreendentes que frequentemente desafiavam velhos
costumes estabelecidos de fazer as coisas. Muitas pessoas consideravam tal
forma de pensamento, especialmente quando tinha algo a ver com magia, uma
coisa que trilhava perigosame nte perto da heresia.
Nicci enxergava o verdadeiro valor disso. Respostas reais para
problemas surgiam justamente de um processo de pensamento como esse, lógica
e razão... tudo baseado naquilo que era conhecido. Essa era a essência de um
Seeker, a fundação do que ele fazia em sua busca pela verdade. Essa também era
uma das qualidades centrais em Richard que tanto cativavam Nicci. Ele era um
aluno sem treinamento formal que era capaz de intuitivamente captar os
assuntos mais complexos de uma forma que ningu ém mais conseguia.
Zedd inclinou -se, puxando Nicci junto com ele. — Olhe aqui. Está
vendo isso? Você reconhece isso? A parte que não inverteu? — Nicci balançou a
cabeça. — Não. O que é isso?
— É a contaminação deixada pelas Notas. Isso, eu reconheço. Iss o é a
aranha na teia de magia.
Nicci endireitou o corpo. — Então isso prova que Richard estava certo.
— O rapaz captou isso direito. — Zedd concordou. — Realmente não
entendo como, mas ele conseguiu captar de forma exata. Assim que ela fica
isolada desse jeito, eu reconheço a corrosão deixada pelas Notas, do mesmo
jeito que reconheço o marrom avermelhado do ferrugem. Ele foi capaz de
enxergar isso na linguagem das linhas, e ele estava certo. O feitiço está
contaminado; a fonte dessa contaminação foram as Notas. Esse é o mecanismo
através do qual as Notas erodem e destroem a magia. Se isso infectou esse
feitiço, deve ter infectado outras coisas de magia também.
— É isso que está matando os Fogos Fátuos? — perguntou Cara.
— Temo que esse parece ser o caso. — Zedd disse a ela. — Os
carvalhos ao redor da terra natal deles também estão investidos com magia
protetora. O fato de que tanto os carvalhos quanto os Fogos Fátuos estejam
morrendo juntos é algo suspeito ao extremo.
Nicci caminhou até as janelas, obser vando os indistintos clarões de

400
raios através do vidro opaco. — Criaturas com magia estão morrendo.
Exatamente com Richard falou para nós.
Ela sentia tanta falta dele que uma grande angústia passou através dela
como a sombra da própria morte escurecendo s ua alma. Ela sentiu como se fosse
murchar e morrer se não encontrassem ele logo. Sentiu como se não conseguisse
sobreviver se jamais tivesse chance de vê -lo novamente, ver a vida nos olhos
cinzentos dele.
— Zedd, você acha que ele estava certo sobre o res to? Acha que
realmente havia dragões de guerra, e todos nós esquecemos que tais coisas
existiam no mundo? Acha que Richard estava certo que o mundo que
conhecemos esteja deixando de existir, desaparecendo dentro do reino da lenda?
Zedd suspirou. — Não sei, minha querida, realmente não sei. Gostaria
de pensar que o rapaz está errado nessa parte, mas aprendi há muito tempo a não
apostar contra Richard.
Nicci sorriu para si. Ela também aprendera a mesma coisa.

401
C A P Í T U L O 5 3

— Nicci, — Zedd falou, hesitando enquanto gesticulava de forma vaga,


parecendo procurar palavras. — você está… bem, alguém que considera Richard
tanto quanto eu, que sente uma paixão similar e lealdade em relação a ele. De
muitas formas quase parece que você…" — ele jogou as mãos para o alto e
deixou-as caírem de volta ao lado do corpo. — Eu não sei.
— Zedd, você, Cara, eu... todos nós amamos Richard, se é isso que
está tentando dizer.
— Acho que esse é o ponto central. Não tenho qualquer lembrança de
Kahlan, mas imagino que devo considerar você de uma maneira muito parecida
como posso apenas imaginar que devo ter considerado ela, como algo mais do
que apenas sua confidente compartilhando da mesma luta.
Nicci sentiu como se tivesse acabado de ser atingida por um raio. Ela
não ousava ao menos pensar na carga emocional nas palavras dele. Com a maior
dificuldade, ela conseguiu manter sua compostura e meramente franzir a testa,
finalmente perguntando. — Aonde você quer chegar?
— Como Cara e Richard, passei a ter grande considera ção por você,
especialmente levando em conta o que eu pensava de você no início. Passei a
confiar em você, como eu disse, como eu confiaria em uma nora.
Nicci engoliu em seco mas não encarou o olhar dele. — Obrigada,
Zedd. Considerando de onde eu vim, e o que pensava de mim mesma no início,
isso significa mais para mim do que você poderia imaginar. Que as pessoas
realmente, sinceramente…
Ela limpou a garganta e finalmente olhou para ele. A despeito do
quanto suas a atingiram, ela não achou que elas tivess em qualquer significado
mais profundo, a não ser meramente como prefácio para algo importante. —
Você quer dizer alguma coisa?
Ele assentiu. — Descobri algumas outras coisas. Coisas altamente
perturbadoras. Eu não falaria essas coisas para outras pessoas, mas, bem, além
do próprio Richard não há mais ninguém em quem eu confiaria mais do que em
você e Cara. Vocês duas tornaram -se mais do que amigas nisso tudo. Só estou
tentando encontrar um jeito de expressar o quanto…
Quando as palavras dele desapareceram e ele ficou olhando para o
vazio, Nicci gentilmente colocou uma das mãos no ombro dele. — Vamos trazer
ele de volta, Zedd, prometo isso a você. Mas você está certo a respeito de como
nos sentimos em relação a ele. Richard mudou completamente a minha vida. Se
existe algo a respeito do qual você precisa conversar, eu gostaria de pensar que
pode confiar em Cara e em mim quase tanto quanto confiaria em Richard.
Acredito que era nisso que você queria chegar? Todos nós sentimos o mesmo
sobre ele, e sobre a nossa causa. Eu… bem... — ela uniu as pontas dos dedos. —
Você sabe o que eu quero dizer.
Temendo já ter falado demais, Nicci sentiu o rosto ficar vermelho.
— O que eu estou tentando dizer... — finalmente Zedd falou. — e que
preciso da sua ajuda, e quero que saibam o quanto vocês duas significam para
mim... que eu não revelo essas coisas agora de forma leviana ou caprichosa.
Durante toda minha vida eu guardei segredos porque eles tinham que ser
guardados. Não é a coisa mais fácil de fazer, mas simplesmente foi desse jeito.

402
Porém, as coisas mudaram, e não posso mais guardar certo conhecimento apenas
comigo. Há muito mais coisas envolvidas do que já houve algum dia.
Nicci assentiu e voltou toda sua atenção ao mago. — Eu entendo. Farei
o que puder para ser merece dora da sua confiança.
Zedd lambeu os lábios. — Aquele livro, O Livro da Inversão e Duplex,
estava escondido em um lugar que ninguém além de mim sabe que existe. Ele
estava nas catacumbas embaixo da Fortaleza.
Nicci trocou um olhar com Cara. — Zedd, — ela perguntou. — você
está dizendo que tem ossos embaixo da Fortaleza? E que tem livros lá também?
Zedd assentiu. — Um monte de livros. Foi lá que encontrei o Livro da
Inversão e Duplex.
Ele afastou-se alguns passos para olhar as janelas cintilando com a l uz
da tempestade além do campo de contenção. — Que eu saiba ninguém jamais
soube que lugar dos ossos estava lá embaixo. Encontrei quando era garoto. Eu
soube que nenhuma outra pessoa estivera lá em eras. Nenhuma simples pegada
havia alterado a poeira nos a ndares em milhares de anos. Eu fui o primeiro a
fazer uma marca naquela poeira em eras. Não precisei ser informado da
significância daquele fato.
— Como garoto quase fiquei apavorado ao encontrar aquelas antigas
catacumbas. Eu já estava assustado porque e stava tentando encontrar uma forma
de entrar de volta sorrateiramente na Fortaleza. Quando encontrei as catacumbas
eu soube instintivamente que elas não estariam escondidas como estavam a não
ser que houvesse uma boa razão, então, independente do quanto eu quis algumas
vezes, jamais contei a qualquer pessoa a respeito. Quase senti como se o lugar
tivesse permitido a minha entrada, mas em troca exigisse o meu silêncio. Eu não
apenas levei a sério minha atitude de responsabilidade, eu me senti
genuinamente protetor de um lugar escondido como aquele. Afinal de contas, ele
continha os restos de muitas pessoas... talvez até dos meus próprios ancestrais.
Eu sabia que sempre haveria aqueles que explorariam tal encontrado e não
queria que isso acontecesse a um lugar tão claramente mantido em sagrada
consideração por aqueles que o tinham escondido.
— Somado a isso, eu me senti bastante culpado por ter perturbado um
lugar de sepultamento pela simples razão de tentar retornar para evitar
problemas ao ter saído sem perm issão. Eu tinha escapulido da Fortaleza para ir
até o mercado em Aydindril para olhar todas aquelas bugigangas excitantes
sendo negociadas lá. Isso pareceu muito mais fascinante do que os estudos aos
quais eu deveria estar devotando o meu tempo.
— Depois da minha descoberta ao acaso, discretamente fiz perguntas
veladas e descobri que nem mesmo os velho magos que eu conhecia possuíam
qualquer conhecimento do lugar sob a Fortaleza. Com o passar do tempo,
percebi que a existência de um lugar como aquele nem m esmo era suspeitada,
quanto mais comentada.
— Como garoto, tive muitas aulas que tomavam quase todo o meu
tempo. Naquela época, havia muitas pessoas morando na Fortaleza, e com minha
tarefas eu nunca tive chance de gastar... no total... mais do que duas h oras lá
embaixo. Rapidamente descobri que havia muitos dos mesmos livros que nós
guardávamos na Fortaleza, então, como garoto, passei a acreditar que aquela não
era uma descoberta tão importante quanto eu acreditei inicialmente.
Ele sorriu, distante. — Fingi que eu era um grande explorador,
descobrindo antigos tesouros. Esse tesouro era em maior parte ossos e livros.
Havia infinitos livros aqui na Fortaleza que eu tinha de estudar, então mais

403
livros não eram exatamente tão excitante quanto os pensamentos e m feitiços
construídos encapsulados em âmbar, ou caixas amaldiçoadas incrustadas com
joias. Mas nada disso havia lá embaixo. Somente ossos e livros velhos.
— Há salas em cima de salas naquelas catacumbas cheias com livros
antigos empoeirados. Nunca tive m uito tempo para explorar aquelas salas. Nem
consigo supor a quantidade de livros escondidos lá embaixo. Jamais tive tempo
para fazer mais do que dar uma olhada em uma pequena amostra. Como eu disse,
muitos eu já tinha visto na Fortaleza e daqueles que não tinha visto, em uma
idade tão jovem, nenhum me impressionou o bastante para lembrar, exceto
alguns, como O Livro da Inversão e Duplex.
— Quando cresci apaixonei -me pela mulher mais maravilhosa e logo
ela era minha esposa. Ela deu a luz a outra luz na minh a vida, uma filha... que
cresceu para ser a mãe de Richard. Como um jovem mago trabalhando na
Fortaleza, sempre houve mais a fazer do que horas no dia. Não havia tempo para
desperdiçar entre ossos velhos.
— E então o mundo foi lançado em uma guerra terrív el contra D’Hara.
Foi um tempo sombrio de terríveis batalhas. Eu tinha me transformado no
Primeiro Mago. As batalhas foram tão horríveis quanto as batalhas sempre são.
Tive que enviar homens para a morte. Tive que olhar nos olhos de magos, jovens
e velhos, que eu sabia, não estavam à altura dos desafios, e dizer a eles para
fazerem o melhor que pudessem quando eu sabia que o melhor deles não seria
bom o bastante, e que eles certamente morreriam no esforço. Sabia em meu
coração que se eu mesmo fizesse aquilo teria conseguido e poderia ter feito dar
certo, mas havia muitas daqueles tipos de tarefas que precisavam ser feitas, e
apenas um de mim.
— Às vezes, eu considerei que a responsabilidade, conhecimento, e
habilidade eram uma maldição. Olhar para todas aqu elas pessoas inocentes
contando comigo como Primeiro Mago, e saber que se eu falhasse eles
morreriam, quase foi mais do que eu podia suportar.
— Nesse aspecto, sei exatamente o que Richard está passando. Estive
no lugar dele. Carreguei o mundo nos meus om bros.
Ele gesticulou para colocar de lado seu melancólica fuga do assunto
em questão. — De qualquer modo, com todas as minhas outras
responsabilidades, as catacumbas permaneceram quase esquecidas, como
estiveram durante milhares de anos antes que eu surgi sse. Simplesmente não tive
tempo para olhar o que poderia estar lá embaixo. A partir da minha limitada
busca como um garoto eu acreditei que nada havia para ser encontrado a não ser
livros antigos e comparativamente sem importância enterrados junto com oss os
esquecidos. Parecia haver tantos assuntos importantes de vida ou morte.
— Para mim, a coisa mais importante sobre as catacumbas era que elas
forneciam uma passagem secreta para que eu entrasse na Fortaleza. Aquela
passagem acabou sendo inestimável quan do as Irmãs do Escuro tomaram a
Fortaleza do Mago.
— Quando eu era mais jovem, depois da guerra na qual minha esposa
tinha morrido, o conselho e eu tivemos uma amarga disputa por causa das
Caixas de Orden. E então… Darken Rahl estuprou minha filha. Então eu deixei
Midlands... abandonei -a para sempre... levando minha filha comigo através da
Fronteira para Westland. Ela era tudo que restava para mim e tudo que
importava. Pensei que viveria todos os meus dias além da Fronteira em
Westland.
— Então Richard nasceu. Vi ele crescer. Minha filha estava tão

404
orgulhosa dele. Secretamente eu estava preocupado que ele tivesse o Dom, e que
forças além das Fronteiras um dia viessem atrás dele. E então, aconteceu um
incêndio e de repente minha filha, a mãe de Richard, tin ha desaparecido da
minha vida, da vida de Richard.
— Voltei-me para Richard em busca de consolo. Dei a ele tudo que
pude para ajudá-lo a ser tudo que poderia ser. Tive alguns dos melhores
momentos da minha vida com ele.
— Sem o meu conhecimento enquanto fazia o melhor que podia para
esquecer o mundo exterior, Ann e Nathan, conduzidos pela profecia, ajudaram
George C ypher a recuperar o Livro das Sombras Contadas da Fortaleza do Mago.
Ele havia sido guardado no enclave particular do Primeiro Mago, onde eu o
havia deixado por segurança.
— Espere um minuto. — falou Nicci, interrompendo a história dele. —
Está querendo dizer para mim que o Livro das Sombras Contadas, um dos livros
mais importantes na existência, estava largado em algum lugar dentro da
Fortaleza?
— Bem, — disse ele. — não exatamente “largado”. Como eu falei, ele
estava no enclave do Primeiro Mago. Ele é mais seguro do que a Fortaleza em
geral e não é exatamente um lugar fácil de invadir.
— Se é tão seguro, — Nicci lembrou a ele. — então como A nn, Nathan
e George C ypher entraram para pegar o livro?
Zedd suspirou enquanto olhava para ela por baixo de suas grossas
sobrancelhas. — É isso que começou a me deixar tão perturbado... a única cópia
de um livro tão importante estar tão vulnerável...
— Era isso que Richard queria falar para você. — Nicci disse com um
repentino estalo de compreensão. — Era por isso que ele estava com tanta pressa
para voltar aqui... ele disse que precisa chegar até você imediatamente. Esse era
o motivo!
Zedd franziu a tes ta. — Do que você está falando?
Ela chegou mais perto do mago e tirou o pequeno livro do bolso. —
Esse é o livro que Darken Rahl usou para colocar as Caixas de Orden em
atividade...
— O quê?
— Esse é o livro que Darken Rahl usou para colocar as Caixas d e
Orden em atividade. — ela repetiu para o mago surpreso. — Nós o encontramos
no Palácio do Povo. Prometi a Richard que eu o estudaria e verificaria se há um
jeito de desfazer aquilo que Irmã Ulicia tinha feito, se existe um jeito de, talvez,
desativar as Caixas de Orden. Tentei explicar para Richard que a magia não
funciona assim, mas você conhece Richard, ele não aceita tão facilmente que
algo não pode ser feito.
Zedd ficou olhando para o livro que ela estava segurando como se ele
fosse uma víbora que po deria picar alguém. — Aquele rapaz possui uma
tendência para revirar pedras e encontrar problemas.
— Zedd, isso alerta que para usar este livro, a chave deve ser usada.
Caso contrário, sem a chave, tudo que veio antes, significando aquilo que foi
usado desse livro, não será apenas estéril, mas fatal. Ele diz que dentro de um
ano completo a chave deve ser usada para completar o que foi forjado com esse
livro.
— A chave. — Zedd sussurrou, como se isso fosse o fim do mundo. —
As Caixas devem ser abertas dent ro de um ano a partir do momento em que
foram ativadas. Você precisa do Livro das Sombras Contadas para abrir as

405
Caixas. Aquele livro tem que ser a chave.
— Eu também acho. — falou Nicci. — O fato é que encontramos
informação da época da Grande Guerra diz endo que alguns magos fizeram cinco
cópias do “livro que jamais devia ser copiado”.
— E você acredita que o “livro que jamais devia ser copiado” era o
Livro das Sombras Contadas!
— Sim. Existe um livro de profecias que diz “eles tremerão de medo
com o que fizeram e lançarão a sombra da chave entre os ossos”.
Zedd estava olhando para ela como se o mundo estivesse desfazendo -
se. — Queridos espíritos. Isso parece algo d os Contos de Yanklee .
— Isso mesmo. A questão é que... — disse Nicci. — todas as cópias, a
não ser uma, são falsas cópias. Cinco cópias... quatro falsas, uma cópia
verdadeira.
Zedd pressionou uma das mãos contra a testa. Nicci notou que a
respiração dele estava mais rápida que o normal. Ele parecia prestes a desmaiar.
— Zedd, o que foi?
Os dedos dele estavam tremendo. — Sabe aquilo que você falou sobre
ser fácil demais roubar o Livro das Sombras Contadas? Esse sempre foi o meu
pensamento também, mas não algo em que eu pensava conscientemente. Sempre
foi mais um daqueles pensamentos no fundo da mente que nunca vem totalmente
até a superfície.
— Sim. — disse Nicci, esperando pacientemente até que ele
continuasse.
— Bem, quando eu lembrei do Livro da Inversão e Duplex, finalmente
lembrei onde o tinha visto quando era garoto: as catacumbas. Pr ecisava dele
para testar esse feitiço, então enquanto vocês estavam fora com Richard indo até
o Palácio do Povo eu retornei para as catacumbas e procurei pelo Livro da
Inversão e Duplex.
Nicci sabia o que ele diria antes que ele falasse.
— E enquanto eu estava procurando pelo Livro da Inversão e Duplex,
encontrei uma cópia do Livro das Sombras Contadas.
— Eles tremerão de medo com o que fizeram e lançarão a sombra da
chave entre os ossos. — Nicci citou novamente.
Zedd assentiu. — Toda minha vida, eu nun ca soube que havia uma
cópia daquele livro. Fui ensinado que não existia outras cópias. Fui ensinado
que havia apenas uma cópia. Só isso já me indicou o quanto esse livro era
importante. Mas se ele é tão importante, então porque não estava em um lugar
mais seguro? Essa pergunta foi algo que sempre ficou no fundo da minha mente.
— Essa era uma das razões pelas quais eu fiquei com tanta raiva do
Conselho por entregar as Caixas de Orden como presentes ou favorecimento. Eu
sabia como aquelas Caixas eram perigo sas, mas ninguém acreditava em mim.
Todos eles pensaram que as coisas que eu disse eram apenas antigas
superstições, ou histórias para crianças.
— Parte da razão pela qual ninguém acreditava na verdade do perigo
que as Caixas representavam era que o livro necessário para colocar as Caixas
em ação nunca havia sido encontrado. Sem o livro, as Caixas eram apenas uma
bela história. — ele apontou para o livro na mão de Nicci. — De fato, ninguém
jamais ao menos soube o nome desse livro. Parece que o título está e m Alto
D’Haraniano. Precisaremos de alguém para traduzi -lo.
— Eu consigo ler Alto D’Haraniano. — falou Nicci.
— É claro que consegue. — Zedd disse como se nada mais pudesse

406
surpreendê-lo. — Então qual é o nome dele?
— O Livro da Vida.
Zedd ficou quase tão branco quanto seu cabelo. Aparentemente, ele
ainda não estava além do choque. — O Livro da Vida. — ele repetiu enquanto
passava uma da mãos pelo rosto aparentando cansaço.
— Que nome apropriado. — ele falou. — O poder de Orden é gerado a
partir da pró pria vida. Abra a Caixa correta, e você ganha o poder de Orden... a
essência da própria vida, poder sobre todas as coisas vivas e mortas. Teria um
poder invencível. Abra a Caixa errada, e a magia o reivindica... você está morto.
Mas abra a outra Caixa erra da, e toda coisa viva na existência é incinerada
transformando-se em nada. Seria o fim de toda a vida.
— A magia de Orden é gêmea da magia da própria vida, e a morte é
parte de tudo que vive, então a magia de Orden está conectada com a morte
assim como es tá com a vida. E a chave é o meio para saber qual Caixa é qual. A
pessoa que estiver abrindo pode arriscar, mas seria tola em fazê -lo sem primeiro
usar a chave, para ter certeza de qual é qual.
— Tola, — disse Nicci. — como Irmãs do Escuro que não se impo rtam
necessariamente se abrirem a Caixa errada?
Zedd só conseguiu ficar olhando para ela.
— Então, você estava dizendo que encontrou uma das cópias. —
finalmente Cara falou quando Zedd ficara em silêncio durante algum tempo,
perdido em pensamentos.
Nicci estava aliviada que fosse Cara aquela a trazê -lo de volta, quando
ele parecia tão afetado com a contemplação de eventos tão terríveis que ela
provavelmente não conseguiria ao menos começar a imaginar.
— Temo que isso nem seja a pior parte. — ele falou. — Vejam bem,
Richard memorizou o Livro das Sombras Contadas quando era garoto. George
Cypher temia que o livro caísse nas mãos erradas, mas ele foi sábio o bastante
para não ousar destruir o conhecimento que o livro continha, então fez Richard
memorizá-lo. Depois que Richard aprendeu cada palavra, ele e George C ypher, o
homem que o criou que, naquela época, Richard acreditava ser o seu pai,
queimou o Livro das Sombras Contadas .
— Quando Darken Rahl capturou Richard, e estava abrindo as Caixas,
ele fez Richard ler as instruções do Livro das Sombras Contadas. Eu não lembro
como... provavelmente isso é resultado do feitiço Cadeia de Fogo.
— O fato é que eu estava lá. Lembro dessa parte muito bem porque eu
estava tão chocado... por duas razões. Primeiro, ao d escobrir que o livro havia
sido roubado do meu enclave na Fortaleza para que Richard o memorizasse e,
segundo, porque ele era um livro de magia e esse fato significava que Richard
só conseguiu memorizar e pronunciar as palavras porque ele era dotado.
— Quando encontrei a cópia do Livro das Sombras Contadas nas
catacumbas, eu fiquei abalado. Eu o li e com certeza ele era palavra por palavra
exatamente o que Richard tinha memorizado.
Nicci inclinou a cabeça. — Era a mesma coisa? Tem certeza?
— Positivo. — falou Zedd, enfaticamente. — Os dois eram idênticos.
A própria Nicci estava começando a sentir -se mal. — Isso só podia
significar uma entre duas coisas. Ou um era o original, e o outro a verdadeira
cópia daquela chave… ou ambos eram chaves falsas, falsas cópias.
— Não, eles não podiam ser falsos. — Zedd insistiu. — Quando
Richard leu aquele livro, ele deixou de fora um elemento importante no final.
Foi deixando de fora essa parte do livro que ele derrotou Darken Rahl. Ele, em

407
essência, o transformou em um a cópia falsa, dessa forma enganando Darken
Rahl para derrotá -lo. Como eu frequentemente disse a Richard, às vezes um
truque é a melhor magia.
Nicci colocou o livro sobre a mesa. — Isso não significa
necessariamente que essa é a chave verdadeira e não a f alsa. Olhe para isso. —
ela abriu o Livro da Vida e bateu com um dedo sobre uma página bem no início
que tinha apenas uma coisa para enfatizar o quanto era importante... o quanto
era crucial.
— Essa é a declaração introdutória do Livro da Vida. Eu já trad uzi. É
um alerta para todo aquele que for ler esse livro.
— Isso diz, “Aqueles que vem aqui para odiar deveriam partir agora,
pois em seu ódio estarão apenas traindo a si mesmos”.
Zedd cerrou parcialmente os olhos sobre as palavras em Alto
D’Haraniano na página. — Então você está dizendo, o quê?… que pelo fato de
Darken Rahl recorrer às Caixas Orden motivado pelo ódio, ele teria sido
destruído pelo verdadeiro Livro das Sombras Contadas da mesma forma como
teria seria por um falso?
— Essa é uma possibilid ade. — Nicci falou.
Zedd balançou a cabeça. — Não acredito nisso. Algumas magia
trabalham através da leitura da intenção. A Espada da Verdade trabalha desse
jeito. Pessoas que odeiam geralmente não reconhecem essa mácula vil dentro de
si mesmos. Elas cons ideram seu ódio como algo justo. Essa corrupção é o que os
torna tão malignos... e tão perigosos. Elas são capazes de fazer as coisas mais
desprezíveis e pensar em si mesmos como heróis por terem feito.
— Então vai dizer a mim que você acredita que foi co incidência, sorte,
que esses dois livros por acaso são as únicas chaves verdadeiras? E
simplesmente aconteceu que eles estivessem tão próximos? Você acha que os
magos que fizeram as cópias, enviando -as para lugares escondidos, distantes,
teriam colocado a cópia verdadeira bem aqui, bem perto da única outra chave
verdadeira? Qual seria o propósito de espalhar as cópias?
Zedd esfregou o queixo com as pontas dos dedos enquanto pensava
naquilo. — Entendo o que você quer dizer.
— Com livros assim, tem que have r um jeito de confirmar as cópias...
de validá-las.
— Tem. — Zedd disse a ela. — No início do Livro das Sombras
Contadas está escrito, “A verificação da verdade das palavras do Livro das
Sombras Contadas, quando feita por outra pessoa, não lida por quem c omanda as
caixas, só pode ser garantida com o uso de uma Confessora”.
— Uma cópia constitui algo “falado por outra pessoa”. — ele disse. —
A pessoa que está fazendo a cópia está, em essência, pronunciando -a; na
verdade o leitor não está lendo o original. A não ser que seja a chave original, e
que essa chave original esteja na verdade sendo lida por aquele que colocou as
Caixas em atividade, esse alerta prévio invoca a necessidade de verificação.
— Kahlan. — falou Nicci.
Os outros dois olharam para ela, e pelas expressões em seus rostos,
eles entenderam o significado do que ela disse.
— Zedd, — finalmente Nicci perguntou em meio ao silêncio. —
nenhum de nós lembra de Kahlan. Se nós pudéssemos encontrá -la, e se de
alguma forma pudéssemos consertar esse fei tiço Cadeia de Fogo , ou algo
assim… existe um jeito de fazer ela lembrar daquilo que nesse momento ela não
lembraria?

408
O olhar de Zedd vagou até as formas de feitiço cintilantes acima da
mesa. — Não.
Nicci não estava esperando tanta certeza. — Tem certeza?
— Tanta quanto posso ter. O feitiço destrói a memória. Ele não
esconde, ou bloqueia o acesso a ela, ele a destrói. Ele não faz a pessoa esquecer,
na verdade ele apaga a memória. Para a pessoa sobre a qual uma coisa tão
terrível como essa foi lançada, su a memória está perdida.
— Mas tem que haver algum jeito. — Cara insistiu. — alguma magia
desse tipo ou daquele... que vai restaurar a mente dela.
— Restaurar com o quê? Com o que nenhum de nós consegue lembrar?
A memória é o recheio da vida. A magia funci ona de formas específicas, assim
como fazem todas as coisas que existem. A magia não é alguma consciência
superinteligente por trás de um véu que sabe o que queremos realizar e que pode
tirar toda a memória de uma pessoa... toda sua vida... de um bolso e e ntregá-la
de volta só porque nós queremos.
Cara não pareceu convencida. — Mas não podemos...
— Veja a coisa desse jeito. Se eu empurrar aquele livro para fora da
mesa, ele cairá no chão. A força invisível da gravidade faz isso acontecer. A
gravidade funciona de uma forma específica. Não posso balançar os braços e
através de um comando meu a gravidade irá fazer o meu jantar.
— A mesma coisa acontece com a magia e a memória. O feitiço Cadeia
de Fogo destruiu a memória dela. Ela não pode ser trazida de volt a. Você não
pode restaurar o que estava e não está mais lá. Simplesmente não pode. O que se
foi, se foi.
Cara deslizou a mão por sua longa trança loira. — Então parece que
estamos com um belo problema.
— Um problema certamente. — o mago concordou.
Nicci queria dizer que o coração de Richard estava com muitos
problemas, mas não ousou falar tal coisa em voz alta. Ela sentiu -se triste por
ele, por causa daquilo que um dia ele teria que encarar. Mas não queria ser a
pessoa a destacar isso.
— Então, se Richard encontrá-la, — Nicci perguntou com uma voz
fraca. — o que ele fará?
Zedd, com as mãos cruzadas atrás das costas, olhou fixamente para ela
durante um momento antes de desviar o olhar.
— Tem outro jeito para confirmar a cópia verdadeira. — disse Cara.
Zedd e Nicci franziram as testas para ela, ambos aliviados por terem
uma distração.
— Você simplesmente encontra as outras cópias, — ela falou. — e as
compara. Aquela que Richard memorizou se foi. Então, se encontrar as outras
pode compará-las. Aquela que for diferente tem que ser a única cópia
verdadeira. As outras quatro que são todas iguais devem ser as chaves falsas.
Zedd arqueou uma sobrancelha. — E se as pessoas que fizeram as
chaves falsas estivessem preocupadas que uma Mord -Sith esperta fosse pens ar
nisso e assim fizeram todas as cópias diferentes umas das outras, de forma que
elas não pudessem ser comparadas?
Cara fez uma careta. — Oh.
Nicci jogou os braços para o alto. — De qualquer modo, como
encontrar as outras? Quer dizer, elas estiveram esc ondidas durante três mil anos.
— Não apenas isso, — falou Zedd. — mas Nathan disse para nós que
havia catacumbas sob o Palácio dos Profetas, e aquele lugar foi destruído. Eu

409
sei, eu mesmo fiz o feitiço da luz. Nada teria sobrado, e mesmo se de alguma
forma uma parte das catacumbas sobreviveu, o Palácio foi construído em uma
ilha. Depois que a ilha foi destruída a água teria inundado qualquer sala
subterrânea que já não estivesse arruinada.
— Aquela cópia, se alguma delas estava lá, já foi destruída. Ela e ra
uma chave verdadeira ou falsa? E se, com o passar de todo esse tempo, outras
tiverem sido destruídas? A questão permanece, como dizer se aquela que
Richard conhece, e aquela que eu encontrei, são as duas únicas chaves
verdadeiras?
Nicci ficou olhando p ara o vazio. — Temo que elas possam ser cópias
falsas... aquela que Richard memorizou, e aquela que você encontrou nas
catacumbas.
Zedd começou a andar de um lado para outro. — Não conheço qualquer
jeito para ter certeza.
— Pode haver dois jeitos, — ela falou. — O primeiro, eu não posso
afirmar, ainda. Apenas comecei a traduzir o Livro da Vida. Mas há material que
tem a ver com a menção sobre usar a chave. Ali diz que se a pessoa que colocou
as Caixas em atividade falhar em usar a chave adequadamente, as Caixas serão
destruídas junto com aquele que as colocou em atividade.
— Usar a chave adequadamente… — Zedd falou, mergulhado em
pensamentos.
— Para mim isso parece dizer que se Darken Rahl tivesse falhado em
usar a chave adequadamente, como deixando a úl tima parte de fora... como você
disse que Richard fez quando recitava para ele... ele teria sido destruído, mas as
Caixas de Orden também. Como sabemos, as Caixas de Orden não foram
destruídas, então isso indica para mim que Richard pode muito bem ter lido para
ele a chave falsa e Darken Rahl simplesmente abriu a Caixa errada e isso o
destruiu.
— Ali não diz que as Caixas serão destruídas se uma chave falsa for
usada porque no momento em que isso foi escrito ainda não havia chaves falsas,
então esse problema não foi levado em consideração quando este material foi
criado.
Zedd franziu a testa, pensativo. — Tem certeza disso?
— Não. — admitiu Nicci. — Isso é complexo e eu apenas comecei a
traduzir. Verifiquei essa parte porque era pertinente ao uso da chave para
completar os passos requeridos. Ali também há fórmulas que devem ser levadas
em conta. Só estou transmitindo a você minha impressão preliminar.
Nicci passou os dedos de uma das mãos nos cabelos. Ela estava em pé
diante da mesa com o livro aberto sob re ela, com a outra mão em um quadril.
— Entretanto, você está percebendo o que eu quero dizer? — ela
apontou para o livro. — Se Richard tivesse corrompido a chave verdadeira,
fazendo Darken Rahl escolher a Caixa errada, isso parece indicar que as Caixas
teriam sido destruídas junto com Darken Rahl. Isso parece apoiar a ideia de que
Richard memorizou uma chave falsa.
— Talvez. Você disse que ainda não tinha certeza. — Zedd esfregou
atrás do pescoço enquanto caminhava de um lado para outro. — Não vamos
cometer o erro de tirar conclusões apressadas.
Nicci assentiu.
— Você diz que havia algo mais acontecendo? — Zedd perguntou.
Nicci assentiu e então citou a profecia central, aquela que Nathan falou
para eles. — “No ano das cigarras, quando o campeão do sac rifício e sofrimento,

410
sob a bandeira tanto da humanidade quanto da Luz, finalmente dividir o seu
enxame, então será o sinal de que a profecia foi despertada e que a batalha final
e decisiva está sobre nós. Tenha cuidado, pois todas as ramificações verdadei ras
e suas derivações estão entrelaçadas nessa raiz mântica. Somente um tronco
provém dessa origem primal conjugada. Se Fuer grissa ost drauka não liderar
essa batalha final, então o mundo, já permanecendo no limiar das trevas, cairá
sob essa terrível somb ra”.
— Está vendo? — perguntou Nicci. — “O campeão do sacrifício e
sofrimento, sob a bandeira tanto da humanidade quanto da Luz” é Jagang e a
Ordem Imperial. As palavras seguintes dizem que “quando ele finalmente dividir
o seu enxame, então será o sinal d e que a profecia foi despertada e que a batalha
final e decisiva está sobre nós”. Ele dividiu o exército dele. Metade está
bloqueando as passagens, enquanto a outra metade deu a volta para entrar em
D’Hara a partir do sul. Como está indicado, “a batalha fi nal e decisiva está
sobre nós”.
Como que para confirmar o que ela dissera, o cintilar de um raio
bruxuleou através das janelas, acompanhado de um trovão estremecendo a
Fortaleza sob os pés deles.
Zedd fez uma careta. — Não estou acompanhando o seu racioc ínio.
— Para início de conversa porque Ann e Nathan roubaram o livro para
Richard? Porque fizeram uma má interpretação da profecia... eles pensaram que
a batalha final era Darken Rahl. Eles pensaram que Richard precisava do Livro
das Sombras Contadas para combater Darken Rahl na batalha final. Eles
acharam a única cópia que existia... assim eles pensavam.
— Não percebe? Aquilo foi fácil demais. Richard nasceu para lutar
nessa batalha, agora, contra Jagang e aquilo que as Irmãs do Escuro fizeram ao
colocarem as Caixas de Orden em atividade. Isso, agora, é uma extensão da
mesma batalha final iniciada com Darken Rahl.
— Penso que as profecias podem dar uma pista de que Richard
aprendeu a chave errada: “ Tenha cuidado, pois todas as ramificações
verdadeiras e suas derivações estão entrelaçadas nessa raiz mântica ”. Todas as
ramificações verdadeiras... chaves verdadeiras?... estão na raiz profética dessa
batalha final. Isso diz que as outras ramificações são falsas. Talvez outras
ramificações contenham as chaves f alsas.
— Isso não poderia dizer que a batalha contra Darken Rahl era uma
ramificação falsa? Ann e Nathan não sabiam o bastante na época... não houve
eventos suficientes, então eles seguiram naquela ramificação, preparando
Richard para lutar contra Darken Rahl, não Jagang. Mas essa profecia diz, “ Se
Fuer grissa ost drauka não liderar essa batalha final, então o mundo, já
permanecendo no limiar das trevas, cairá sob essa terrível sombra ”.
— Essa terrível sombra é o poder de Orden liberado pelas Irmãs do
Escuro. Elas querem escurecer o mundo dos vivos. Ann, Nathan, e Richard
estavam preparando -se para a batalha errada. Essa é a batalha que ele deveria
lutar.
Zedd andou de um lado para outro, seu rosto pensativo. Ele parou,
finalmente, e virou em direção a el a. — Talvez, Nicci. Talvez. Você passou
muito mais tempo estudando profecia do que eu. Talvez você tenha algo.
— Mas, talvez não tenha. A profecia, como Nathan tem explicado, não
está sujeita ao estudo da forma que você acabou de explicar. A profecia é um
meio de comunicação entre profetas. Ela não pode, necessariamente, ser
estudada, analisada, ou compreendida por aqueles sem o Dom para a profecia.

411
— Exatamente como Ann e Nathan podem ter chegado a conclusões
precipitadas sem informações suficientes, ach o que também é cedo demais para
que você trace conclusões como essas.
Nicci assentiu, aceitando o ponto de vista dele. — Espero que você
esteja certo, Zedd... realmente espero. Essa não é um debate que eu quero
vencer. Só estou apresentando isso porque im agino que precisamos considerar as
implicações.
Ele concordou balançando a cabeça. — Tem mais uma coisa a ser
considerada. Richard não aceita profecia. Ele é uma criatura com livre arbítrio,
e a profecia tem uma tendência de adequar -se para encaixá -lo. Nesse caso, com
Darken Rahl, talvez Darken Rahl fosse uma falsa ramificação, mas caso ele
tivesse vencido também há raízes proféticas para cobrir essa eventualidade.
Defensores da profecia as teriam indicado para confirmar que Darken Rahl era a
verdadeira raiz. Agora nos encontraríamos em uma dessas outras ramificações, e
essa aqui seria falsa. Você pode achar uma profecia para suportar praticamente
qualquer crença.
— Não sei, — disse Nicci enquanto passava os dedos pelos cabelos. —
talvez você tenha razão.
Ela estava tão cansada. Ela precisava dormir um pouco; talvez então
ela pudesse pensar mais claramente. Talvez sua preocupação a estivesse fazendo
correr por falsas trilhas.
— Nesse ponto não há como afirmar se as cópias do Livro das Sombras
Contadas, aquela que eu encontrei e aquela que Richard conhece, são chaves
verdadeiras ou falsas.
— Então, o que faremos? — perguntou ela.
Zedd parou de andar e encarou -a. — Vamos trazer Richard de volta, e
ele encontrará um jeito para deter essa ameaça.
Nicci sorriu. Ele tinha uma maneira de fazê -la sentir-se melhor nos
momentos mais sombrios... exatamente como Richard.
— Mas uma coisa direi a você. — falou Zedd. — Antes que essa hora
chegue, é melhor descobrirmos se a chave que ele memorizou é a chave
verdadeira ou a falsa.
Nicci fechou a capa do Livro da Vida e pegou -o, segurando -o na curva
do braço. — Preciso aprender todo esse livro, de uma capa à outra. Preciso
descobrir se tem um jeito de fazer o que Richard pediu a mim... desativar as
Caixas, ou de alguma forma anular a ameaça.
— Se eu falhar nisso, é melhor que o conheça totalmente para que,
esperançosamente, eu possa ser útil a Richard ajudando ele a encontrar uma
resposta para isso tudo.
Zedd observou os olhos dela. — Isso exigirá bastante trabalho. Lev ará
bastante tempo... poderia levar meses para entender completamente um livro
complexo assim. Só espero que tenhamos tanto tempo. Porém, tenho que dizer
que eu concordo com você. Acho que é melhor você começar imediatamente.
Nicci enfiou o livro de volta em um bolso no seu vestido. — Acho que
é melhor. Pode ter livros aqui que ajudem. Se houver algum no qual eu consiga
pensar, ou que seja mencionado, avisarei você. De acordo com o que tenho visto
até agora, tem assuntos técnicos com os quais eu posso prec isar de ajuda. Se eu
ficar encalhada, a ajuda do Primeiro Mago seria bem recebida.
Zedd sorriu. — Você a tem, minha querida.
Ela balançou um dedo para ele. — Mas se você descobrir um jeito para
encontrar Richard, é melhor contar para mim antes de finaliz ar esse pensamento.

412
O sorriso de Zedd aumentou. — De acordo.
— E se não encontrarmos Lorde Rahl? — Cara perguntou.
Os outros dois ficaram olhando para ela. Um trovão ribombou através
de um vale distante. A chuva tamborilava continuamente contra as janel as.
— Traremos ele de volta. — Nicci insistiu, recusando -se a considerar o
impensável.
— Nada é fácil. — Zedd murmurou.

413
C A P Í T U L O 5 4

Independente do quanto estava cansada de cavalgar, Kahlan estava


surpresa com a visão que esticava -se ao longe. Passando por uma inundação
escura de homens da Ordem Imperial, cruzando as sombras cinza -púrpura que
espalhavam -se pela vasta planície, erguia -se um enorme planalto, recebendo os
últimos raios dourados do sol poente.
Sobre aquele planalto estava um lugar tão vasto quanto qualquer
cidade. Os altos muros externos cintilavam na luz minguante do final do dia.
Mármore branco, estuque, e rocha formando a vasta malha de construções em
uma variedade infinita de tamanhos, formas, e alturas, brilhando com o ru bor da
luz do dia que partia. Telhados abrigavam o lugar da noite fria que estava
chegando com o fim da estação como se estivessem reunindo tudo embaixo de
saias protetoras.
Foi como ver algo bom, algo nobre, algo lindo, depois de tudo que ela
tinha visto durante intermináveis semanas de viagem que foram sinistras,
deixando os homens impacientes por alguém sobre o qual lançar a sua vil
natureza.
Para Kahlan pareceu como se fosse uma profanação ter esses homens
na sombra de um lugar como esse. Ela sentiu -se envergonhada por estar entre a
multidão profana reunida aos pés de tal brilhante realização do homem que
erguia-se tão orgulhosamente diante deles. Por alguma razão, apenas olhar para
o lugar já deixava o coração dela mais leve. Ainda que ela não consegu isse
lembrar de algum dia já ter visto isso, sentiu como se devesse ter visto.
Por toda parte ao redor deles havia homens grunhindo, mulas balindo,
cavalos bufando, carroças estalando, e o retinir de armaduras e armas... os sons
da besta que vinha para as sassinar todos que eram bons. O fedor era como uma
nuvem tóxica que sempre seguia junto com eles para servir de lembrete a todos
com quem eles encontrassem o quão nocivos esses homens realmente eram.
Como se alguém fosse precisar da pista adicional.
Por todos os lugares Kahlan cavalgou com os guardas especiais que
durante semanas, agora mantinham olhos atentos sobre ela. Havia quarenta e
três deles. Kahlan contou para que pudesse acompanhar os movimentos de todos
eles. Ela transformou em seu trabalho apren der os rostos deles, seus hábitos.
Sabia quais eram desastrados, quais eram estúpidos, quais eram espertos, e quais
eram bons com armas. Como um jogo enquanto cavalgava eternamente dia após
dia, ela estudou as forças e fraquezas deles, planejando e visuali zando como
poderia matar cada um deles.
Até agora, não tinha morto qualquer um. Decidira que sua melhor
chance a longo prazo era fazer o jogo deles, por enquanto, em qualquer coisa
que mandassem ela fazer, ser dócil, ser obediente. Todos os homens foram
avisado de que ela pertencia a Jagang, e que não deviam encostar um dedo
nela... a não ser para impedir que ela escapasse.
Kahlan queria misturar -se com a monotonia da vida diária, fazer com
que os homens que a guardavam fossem embalados pelo pensamento de que ela
estava inócua, inofensiva, até mesmo amedrontada, de modo que ela se tornasse
apenas outra das tarefas tediosas deles. Ela teve algumas oportunidades para
matar vários dos homens. Ela nunca aproveitou a oportunidade, não importava o

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quão fácil pod eria ter sido, escolhendo ao invés disso deixar eles sentirem -se
confortáveis, seguros, até mesmo entediados com ela. Tal desatenção ao perigo
que ela representava um dia serviria a ela melhor do que um ataque inútil, que
nesse momento não poderia realment e ter qualquer serventia. Isso não a teria
ajudado a fugir, e apenas faria Jagang usar a coleira... se não as mãos dele...
para causar dor. Uma vez que ele não precisava de uma desculpa, ela não viu
propósito em fornecer a ele uma boa desculpa.
O único qu e não mergulhava na indiferença e no descuido era o próprio
Jagang. Ele não a menosprezava, ou a força de vontade dela. Ele parecia gostar
de observar as táticas dela, mesmo táticas não desinteressantes quanto nada
fazer. Como ela, ele carregava a paciênci a em seu arsenal. Ele era o único que
não deixava sua guarda cair por um instante sequer. Kahlan pensou que ele sabia
precisamente o que ela estava fazendo.
Ela o ignorou também; mesmo se ele soubesse o que ela estava
fazendo, ela concluiu que isso ainda reduzia o nível de cautela que ele podia
manter quando nada acontecia. Esperar por algo que nunca acontecia era
desgastante, mesmo se você soubesse que isso era inevitável. Mesmo se ele
soubesse que eventualmente ela tentaria alguma coisa, semanas e semana s da
mansa obediência forneceria a ela o elemento da surpresa, mesmo se fosse
apenas uma surpresa momentânea. Esse instante de vantagem poderia ser tudo
que faria a diferença quando chegasse a hora.
Às vezes, entretanto, ela não conseguia ignorá -lo. Quando ele estava
com péssimo humor e ela o enfurecia... geralmente por sua simples presença,
não importava o que ela tivesse feito... ele a espancava até sangrar. Duas vezes
ela teve que ser curado por uma Irmã ou teria sangrado até a morte. Quando ele
estava em um dos seus verdadeiros ataques de fúria, isso geralmente acabava
sendo muito pior do que um simples espancamento. Ele era um homem bastante
inventivo quando tratava -se de abusar de uma mulher. Quando ele estava com
humor abusivo, não simplesmente a dor mas a humilhação também parecia
fasciná-lo. Ela aprendera que ele não iria parar até finalmente fazê -la chorar por
uma razão ou outra.
Se ela chorasse, era somente quando não conseguia evitar, quando
mergulhava nas profundezas de tamanha dor, humilhação, ou desespero, que
simplesmente não conseguia conter suas lágrimas. Então, Jagang adorava
observar ela chorar. Ela não fazia isso apenas para entregar os pontos, para
fazer ele parar com aquilo que estava fazendo, mas apenas porque estava em um
ponto onde não conseguia resistir. E isso era o que ele gostava de ver.
Outras vezes ele trazia mulheres para a tenda dele enquanto Kahlan
tinha que ficar no tapete ao lado da cama, onde ela sempre era obrigada a
dormir, como se fosse o cão dele. Geralmente ele traz ia alguma mulher cativa
desafortunada que realmente não estava disposta. Ele parecia procurar as
prisioneiras que mais temiam sua atenção, e então fornecia a elas introdução
sobre o que era ser uma escrava do Imperador e da cama dele. Quando ele
dormia, Kahlan abraçava a mulher apavorada, dizia a ela que as coisas um dia
seriam melhores e a confortava da melhor forma que podia.
Ele podia ter feito isso porque gostava dessas coisas, mas isso era
apenas um benefício casual. O real objetivo dele era constante mente lembrar
Kahlan daquilo que aconteceria com ela assim que sua memória retornasse.
Kahlan queria que ela jamais retornasse. A memória dela seria sua
desgraça.
Agora que eles chegaram ao seu destino, haveria mais tempo para

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jogos de Ja’La. Kahlan imaginou que haveria torneios. Ela esperava que eles
desviassem a atenção de Jagang dela, mantivessem ele ocupado. Teria que
acompanhá-lo... era obrigada a ficar perto... mas isso era melhor do que ficar
sozinha com ele.
Quando eles chegaram até as tendas do Imperador no início ela ficou
um pouco confusa de que o local especificamente, e o acampamento em geral,
estivessem tão longe do distante objetivo deles. Ele estava tão perto. Parecia
que era apenas uma questão de outra hora ou duas de cavalgada e eles est ariam
lá.
Kahlan não perguntou porque eles tinham parado, mas logo ela
descobriu quando oficiais chegaram para uma breve reunião noturna.
— Quero todas as Irmãs de vigia esta noite. — Jagang disse a eles. —
Tão perto assim, não há como afirmar que tipos de poderes malignos o inimigo
pode enviar sobre nós.
Kahlan notou que as Irmãs Ulicia e Armina, não muito distantes,
ficaram aliviadas ao ouvirem tais ordens. Isso significava que elas não seriam
encaminhadas para o entretenimento dos homens. Na longa mar cha de semanas,
após serem enviadas para as tendas quase todas as noites como punição por suas
transgressões contra Jagang, ambas pareciam envelhecidas.
As duas haviam sido mulheres bastante atraentes, mas não eram mais.
As duas tinham perdido qualquer be leza que um dia possuíram. Seus olhos,
pesados com olheiras, estavam vazios e distantes. Os olhos azuis da Irmã
Armina pareciam sempre assustados, como se ela ainda não conseguisse
acreditar em seu destino. Rugas apareceram em seus rostos, transmitindo a e las
uma forte expressão esgotada. Elas estavam sempre sujas, seus cabelos
perpetuamente desgrenhados e suas roupas amassadas. Frequentemente elas
apareciam de manhã com hematomas horríveis.
Kahlan não gostava de ver qualquer pessoa sofrer, mas conseguia
sentir qualquer simpatia por essas duas. Se não fosse por causa delas, ela não
estaria nas garras de um homem que estava contando as horas até que ela
recuperasse sua memória e ele pudesse começar ansiosamente a fazer ela sofrer
o que ele havia prometido qu e seria uma agonia insuportável, tanto fisicamente
quanto mentalmente. Ele havia prometido, mais de uma vez, que quando ela
tivesse sua memória de volta, ele iria engravidá -la e ela daria a ele uma
criança... um menino, ele sempre dissera. Ele sempre adici onou uma terrível
mensagem a respeito de que, quando ela recuperasse a memória, então ela
realmente entenderia que monstro um menino como esse seria para ela.
Até onde Kahlan sabia, qualquer coisa que Jagang fizesse com essas
duas mulheres não era o basta nte.
Além do que elas fizeram com ela, ao ouvir fragmentos Kahlan captou
a natureza da trama delas e o que aquelas duas tinham planejado fazer com
todos. Só isso já tornava impossível tratá -las com brutalidade que fosse
considerada demasiada. Porém, se a escolha fosse de Kahlan, ela simplesmente
as condenaria à morte. Kahlan não gostava de tortura; ela simplesmente
acreditava que elas não mereciam continuar vivendo. Haviam perdido seu direito
à vida através dos danos que já tinham causado a outros, e por c ausa daquilo que
planejaram fazer para privar todos de suas vidas. De acordo com essa avaliação,
o exército todo merecia morrer.
Kahlan só desejava que Jagang pudesse sofrer um destino similar.
— Pelo menos o exército deles fugiu. — um dos oficiais sênio r falou
para Jagang enquanto o cavalo do Imperador era levado. Outro homem pegou a

416
égua de Kahlan.
O oficial estava sem a metade da orelha esquerda. Ela havia há muito
tempo cicatrizado formando um caroço, tornando -se uma distração que era
difícil ignorar. Homens que não ignoravam isso às vezes perdiam uma orelha.
— Não restou defensores para eles. — disse outro oficial.
— Tenho certeza de que eles possuem dotados lá, — falou Jagang. —
mas eles não devem representar um obstáculo que possa nos deter.
— Os relatórios dos batedores e espiões dizem que a estrada subindo
pelo lado é estreita... estreita demais para qualquer tipo de assalto em massa.
Também há uma ponte levadiça que eles ergueram. Levar materiais para
construção subindo aquela estrada, e então nos defender enquanto tentamos
cruzar o abismo, seria algo difícil de fazer.
— Quanto a grande porta que conduz ao caminho interior até o
planalto, ela está fechada. Ninguém acredita que será possível atravessar aquela
porta. Ela tem resistido durante mi lhares de anos contra qualquer ataque. Além
disso, os relatórios dos dotados dizem que os poderes deles ficam enfraquecidos
perto daquele lugar.
Jagang sorriu. — Eu tenho algumas ideias.
O homem com parte da orelha faltando fez uma reverência. — Sim,
Excelência.
Enquanto Jagang e seus oficiais conversavam, Kahlan notou um
pequeno grupo de homens a uma certa distância cavalgando em grande
velocidade através do acampamento. Eles estavam vindo de trás, do sul. A cada
ponto de checagem, os homens paravam os cavalos bruscamente, falavam
brevemente com sentinelas, e eram liberados.
Jagang também tinha notado os cavaleiros. A conversa dele com seus
oficiais foi reduzindo a logo todos estavam observando junto com o Imperador
enquanto os cavaleiros chegavam até a s defesas internas e desmontavam em uma
nuvem de poeira. Eles aguardaram no anel final de aço a permissão para
entrarem na área do Imperador.
Quando Jagang sinalizou, os homens foram direcionados adiante. Eles
vieram apressados, a despeito do quanto parec iam cansados.
O homem na liderança deles era um sujeito magro, mais velho, com
uma expressão dura nos olhos escuros. Ele fez uma saudação.
— Bem, — disse Jagang. — o que é tão urgente?
— Excelência, cidades no Mundo Antigo estão sob ataque.
— É mesmo. — Jagang soltou um suspiro impaciente. — São aqueles
insurrecionistas, a maior parte de Altur'Rang. Eles ainda não tinham sido
derrotados?
— Não, Excelência, não são insurrecionistas... embora eles estejam
causando problemas também, liderados por um homem chamado de ferreiro.
Lugares demais estiveram sendo atacados para que seja obra de insurrecionistas.
Jagang olhou para o homem, desconfiado. — Que lugares estiveram
sob ataque?
O homem tirou um pergaminho do interior de sua camisa empoeirada.
— Aqui está uma lista que montamos até agora.
— Até agora? — perguntou Jagang, arqueando uma sobrancelha
enquanto desenrolava o pergaminho.
— Sim, Excelência. A informação é que existe uma onda de destruição
varrendo as terras.
Jagang observou a longa lista de lo cais no pergaminho. Kahlan tentou

417
não chamar atenção enquanto espiava o relatório com o canto dos olhos. Ela viu
duas colunas de cidades e vilas listadas. Devia haver mais de trinta e cinco ou
quarenta lugares escritos no pergaminho.
— Não sei o que você quer dizer com “varrendo as terras”, — Jagang
rosnou. — Esses lugares são todos aleatórios. Não estão localizados em uma
linha, conjunto, ou em uma área do Mundo Antigo. Eles estão espalhados pelo
lugar.
O homem limpou a garganta. — Sim, Excelência. Esse é o relatório.
— Uma parte disso tem que ser exagerado. — para deixar claro seu
ponto de vista, Jagang bateu no papel com um dedo gordo. Os anéis prateados
em cada dedo cintilaram na luz fraca. — Taka-Mar, por exemplo. Taka -Mar foi
atacada? Não poderia te r sido muito efetivo para um bando de tolos descontentes
atacar um lugar como esse. Tem fortes guarnições lá. É uma estação de
transferência para comboios de suprimentos. O lugar possui amplas defesas.
Tem até Irmãos da Sociedade da Ordem no comando do lug ar. Eles não teriam
permitido que uma ralé entrasse em Taka -Mar. Provavelmente esse relatório está
sendo exagerado por tolos nervosos que sentem medo das próprias sombras.
O homem fez uma reverência. — Excelência, Taka-Mar foi um dos
lugares que eu vi com meus próprios olhos.
— Bem? — rugiu Jagang. — O que você viu então? Fale logo!
— As estradas para dentro da cidade de todas as direções estão
ladeadas por estacas com crânios queimados. — começou a contar o homem.
— Quantos crânios? — Jagang balançou a mão com desdém. —
Dúzias? Uma quantidade perto de cem?
— Excelência, houve números além da contagem, e eu parei de contar
em vários milhares sem ter feito muito progresso em uma verificação completa.
A cidade não existe mais.
— Não existe mais? — Jagang piscou, confuso. — O que você quer
dizer com “não existe mais”? Uma coisa como essa é impossível.
— Ela foi queimada completamente, Excelência. Não sobrou uma
construção em pé. As chamas eram tão intensas que não puderam salvar as
madeiras. Os pomares po r todo o caminho nas colinas foram todos destruídos.
Os campos com plantações maduras por milhas e milhas em todas as direções
foram todos queimados. O solo foi salgado. Nada mais crescerá ali novamente.
Um lugar que um dia foi fértil jamais suportará o pl antio de qualquer coisa outra
vez. Parece como se o próprio Guardião tivesse destruído o lugar.
— Bem, onde estavam os soldados?! O que eles estavam fazendo
durante tudo isso?!
— Os crânios nas estacas eram dos soldados posicionados lá. Até o
último deles, eu temo.
Jagang lançou um olhar para Kahlan, como se de alguma forma ela
fosse responsável pela catástrofe. O olhar furioso dele disse a ela que de algum
jeito ele associava o problema a ela. Ele esmagou o papel no punho quando
voltou sua atenção ao men sageiro.
— E quanto aos Irmãos da Ordem? Eles disseram o que aconteceu e
porque não conseguiram impedir?
— Havia seis Irmãos designados para Taka -Mar, Excelência. Eles
foram empalados em postes colocados no meio de diferentes estradas dentro da
cidade. C ada um deles teve a pele removida do pescoço até os pés. Um capuz do
ofício deles foi deixado sobre a cabeça de cada homem para que todos pudessem
saber quem eles eram.

418
— As massas de pessoas que fugiram da cidade dizem que o ataque
aconteceu durante a no ite. Apavoradas como elas estavam, nós não conseguimos
obter muita informação útil delas, a não ser que os homens que atacaram eram
soldados do Império D’Haraniano. Disso todas elas tinham certeza. Cada uma
dessas pessoas perdeu seu lar.
— Os atacantes não faziam qualquer movimento para matar os
fugitivos se eles não oferecessem resistência armada, mas deixaram bastant e
claro para as pessoas que fugiam que pretendiam devastar todo o Mundo Antigo
e qualquer um que apoie a Ordem Imperial.
— Os soldados diss eram para as pessoas que foram a Ordem e suas
crenças que causaram esse ataque sobre eles, e que levarão a eles e sua terra à
ruína. Os soldados juraram que assombrariam as pessoas do Mundo Antigo em
seus túmulos e depois nos cantos mais escuros do Submundo se elas não
abandonassem os ensinamentos da Ordem e seus costumes beligerantes que
vinham desses ensinamentos.
Kahlan só percebeu que estava sorrindo quando Jagang aproximou -se
dela e deu um tapa forte o bastante para derrubá -la. Ela sabia que esta noit e ele
a espancaria até sangrar.
Ela não se importava. Valeu à pena ouvir o que acabara de ouvir. Ela
não conseguia parar de sorrir.

419
C A P Í T U L O 5 5

Nicci fechou a capa com mais firmeza ao redor de si enquanto


inclinava um ombro contra o grande merlão de pedra. Ela espiou através da
ameia a estrada longe lá embaixo, observando os quatro cavaleiros subindo a
montanha em direção à Fortaleza. Eles ainda estavam a uma boa distância, mas
ela achou que tinha uma boa ideia de quem eram eles.
Nicci bocejou quando olhava a cidade de Aydindril abaixo, e o vasto
tapete de florestas ao redor. As cores vívidas do outono estavam começando a
empalidecer. Olhar para as árvores que espalhavam -se subindo as ladeiras da
montanhas em volta, e como elas tão audacios amente anunciavam a mudança de
estações, fez ela pensar em Richard. Ele adorava as árvores. Nicci havia
começado a adorá -las também, porque elas a faziam lembrar dele.
Ela também enxergava as árvores sob uma luz diferente por outras
razões. Elas marcavam a virada do tempo, a passagem de estações, a mudança de
padrões que agora faziam parte do mundo dela também, por causa da conexão
delas com todas as coisas que ela estivera estudando no Livro da Vida. Tudo
isso estava complexamente interconectado... como o poder de Orden trabalhava,
e como esse poder funcionava através de sua conexão com o mundo dos vivos. O
mundo, as estações, as estrelas, a posição da lua, eram partes da equação, todas
partes daquilo que contribuía para o poder de Orden e o governava. Qua nto mais
ela estudava e quanto mais ela aprendia, mais ela sentia esse pulsar do tempo e
da vida que estava por toda parte ao redor dela.
Ela também passara a reconhecer com completa clareza que Richard
havia memorizado uma chave falsa.
Ela nunca falou i sso para Zedd. Pareceu não ter importância no
momento. Também era um caso difícil de explicar. Não era tanto o que o Livro
da Vida disse, mas como ele disse. O livro estava em outra língua, e não apenas
em Alto D’Haraniano. Embora ele estivesse escrito em Alto D’Haraniano, o
verdadeiro idioma do livro era sua interconexão ao poder invocado através dele.
As fórmulas, feitiços, e procedimentos eram apenas um aspecto.
De muitas formas isso fazia ela lembrar de como Richard falou de
forma tão convincente da li nguagem de símbolos e emblemas. Ela estava
começando a entender o que ele queria dizer vendo isso por mesma tudo isso
colocado no Livro da Vida. Estava começando a enxergar as linhas e ângulos em
certas fórmulas como uma linguagem própria. Estava começando a captar
verdadeiramente o que Richard falou.
O Livro da Vida carregava um significado que havia forçado Nicci a
olhar para o mundo dos vivos de uma nova maneira... de uma maneira que muito
lembrava a ela do jeito como Richard sempre olhara para o mundo, através de
um prisma de excitação, maravilha e amor pela vida. De um jeito que era um
profundo reconhecimento da natureza precisa das coisas, uma apreciação das
coisas por aquilo que elas eram, não por aquilo que as pessoas imaginavam
delas.
Em parte, isso acontecia porque o Livro da Vida não era apenas de
Magia Aditiva, mas de Magia Subtrativa da mesma forma que a morte era parte
do processo da vida. Ele tratava com o todo. Por essa razão, Nicci não
conseguiria explicar isso para Zedd; ele não possuía a habilidade para usar

420
Magia Subtrativa. Sem essa habilidade, uma parte constituinte do que era
necessário para entender o Livro da Vida estava faltando. Ela podia explicar as
fórmulas, descrever os procedimentos, mostrar a ele os feitiços, mas grande
parte disso ele só conseguiria observar através do filtro de sua habilidade
limitada. Ainda que ele pudesse intelectualmente compreender uma parte disso,
ele não conseguiria na verdade fazer o que estava envolvido.
Era algo como a diferença entre ouvir sobre o amor, entender a
profundidade de tais sentimentos, captar como isso afetava as pessoas, mas
jamais realmente ter experimentado. Sem essa experiência, isso era uma coisa
apenas acadêmica, estéril.
Até que você pudesse sentir a magia, você não a conhecia.
Foi nesse sentido que Nicci soube que Richard havia memorizado uma
chave falsa. Ela estava certa, antes, ao dizer que se a pessoa que colocou as
Caixas em atividade falhar em usar a chave apropriada, as Caixas seriam
destruídas junto com aquele que ativou -as. Mas era algo mais do que essa
simples declaração. Havia toda a complexa natureza do processo envolvido em
usar as Caixas que demonstrava esse conceito em formas que as palavras
apresentavam apenas de um jeito simplificado, condensado.
Através dos mecanismos no livro, ela conseguiu ter um vislumbre de
como o poder funcionava. Ao compreender esse funcionamento em um nível
profundo, ela conseguiu ver como a magia, se invocada, precisava da chave e
usava ela para completar -se. Com a percepção desse processo , ela conseguiu
enxergar como se a chave fosse usada inadequadamente as Caixas eram
inevitavelmente destruídas junto com a pessoa que cometia o erro fatal. A magia
simplesmente não permitiria que uma ruptura como essa ficasse incompleta.
Seria como jogar uma pedra e sem qualquer influência ou intervenção
externa ela flutuasse no ar ao invés de cair de volta ao chão. Isso simplesmente
não aconteceria. Da mesma forma, a magia de Orden tinha leis com sua própria
identidade. Pela forma como ela funcionava, por estas leis de sua identidade, ela
precisava destruir as Caixas se a chave não fosse usada corretamente. A pedra
tinha que cair.
Quando Richard usou sua lembrança daquilo que ele acreditava ser o
Livro das Sombras Contadas, ele fez uma alteração para enga nar Darken Rahl e
fazer ele abrir a Caixa errada. Mas havia sido apenas a Caixa errada indicada em
uma sagaz simulação que parecia ter significado para o Livro da Vida. De fato,
aquele livro era apenas uma falsificação astuta, uma chave falsa. Se fosse rea l, e
usado incorretamente de tal forma, as Caixas não mais existiriam.
Uma chave falsa, uma falsificação astuta, simplesmente não poderia
disparar o poder de Orden para destruir as Caixas, mas a chave verdadeira, se
usada do jeito como Richard tinha feito , teria feito com que toda a estrutura do
feitiço entrasse em colapso, levando as Caixas com ele.
Afinal de contas, as Caixas de Orden foram criadas com o propósito de
serem uma contramedida ao feitiço Cadeia de Fogo. Usar inadequadamente a
chave significava que alguém sem a intenção e conhecimento apropriados estava
tentando obter acesso ao poder de Orden, em essência, interferindo no propósito
para o qual ele havia sido criado. O Livro da Vida deixava bem claro dentro da
estrutura das formas de feitiço q ue, como uma salvaguarda, se tudo não fosse
feito corretamente, explicitamente completado com a chave da forma exata como
prescrita, as fórmulas e feitiços se destruiriam... de maneira não totalmente
diferente como Richard havia desativado a teia de verifi cação, colapsando-a,
para salvar Nicci.

421
Richard tinha memorizado uma chave falsa, essa era a verdade.
— O que foi? — surgiu a voz de Zedd.
Nicci olhou para trás, por cima do ombro, para ver o velho mago
marchando pela vasta muralha. Ela sabia que devia colocar de lado as coisas que
estivera considerando. Falar para Zedd a respeito da chave falsa agora apenas
faria ele querer argumentar. Discutir com Zedd de nada serviria.
Richard era o único que realmente precisava saber que a chave que ele
possuía era falsa.
— Quatro cavaleiros. — Nicci disse a ele.
Zedd parou bem no muro. Ele espiou a estrada e grunhiu para indicar
que viu eles.
— Para mim parece que são Tom e Friedrich. — disse Cara. — Eles
devem ter encontrado alguém espreitando nas redondezas.
— Eu não acho. — falou Nicci. — Eles dificilmente parecem com
prisioneiros. Consigo ver o brilho de aço. O homem está carregando armas. Tom
teria desarmado qualquer um que ele considerasse uma possível ameaça. Além
disso, o outro parece com uma garotinha.
— Rachel? — perguntou Zedd, fazendo uma careta enquanto inclinava
um pouco mais para frente, tentando enxergar melhor entre as árvores descendo
a estrada. Não levaria muitos dias até que aquelas folhas marrom douradas
caíssem na estação. — Você realmente acha que poderia ser ela?
— Essa é a minha suposição. — Nicci disse.
Ele virou e observou -a de forma crítica. — Você está horrível.
— Obrigada. — ela falou. — Isso é exatamente o que uma mulher
gosta de ouvir de um cavalheiro.
Ele bufou deixando de lado sua observação rude. — Quando foi a
última vez em que você dormiu?
Nicci bocejou outra vez. — Eu não sei. No verão, quando retornei do
Palácio do Povo com aquele livro?
Ele fez uma careta diante da pobre tentativa dela de fazer uma piada.
Ela não sabia porque tentou ser engraçada com ele. Zedd podia fazer as pessoas
rirem apenas grunhindo. Sempre que ela dizia qualquer coisa que achava ser
bastante divertida, as pessoas apenas ficavam olhando sério para ela, do jeito
como Cara estava fazendo.
— Como estão as coisas? — perguntou ele.
Nicci sabia o que ele queria dizer. Ela afastou um pouco de cabelo do
rosto, mantendo-o fora do alcance do vento. — Sua ajuda seria útil com algumas
cartas estelares e cálculos de ângulos. Poderia acelerar as coisas se eu não
tivesse que fazer isso. Eu poderia seguir adiante até algumas das outras
traduções e problemas.
Zedd colocou uma das mãos suavemente nas costas dela, aplicando um
gentil movimento que transmitiu um reconfortante apoio pessoal. — Com uma
condição.
— Qual é? — ela perguntou quando bocejou novamente.
— Que você durma um pouco.
Nicci sorriu enquanto assentia. — Está certo, Zedd. — ela gesticulou,
apontando com o queixo. — Primeiro acho que seria melhor descermos lá para
vermos quem são nossos convidados.
Eles estavam acabando de cruzar a grande porta da Fortaleza na
entrada lateral com o cercado quando os cavaleiros surgiram sob a abertura
arqueada no muro.

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Tom e Friedrich estavam escoltando Chase e Rachel. O cabelo de
Rachel estava cortado bem curto, ao invés de longo do jeito que estivera, e
Chase parecia estar em surpreendente boa saúde para um homem que tinha sido
perfurado pela Espada da Verdade.
— Chase! — gritou Zedd. — Você está vivo!
— Bem, é difícil cavalgar com o corpo erguido quando você está
morto.
Cara riu. Nicci olhou para ela, imaginando de onde teria vindo o súbito
gosto pelo humor.
— Encontramos eles quando estávamos retornando. — Tom falou. —
As primeiras pessoas que vimos lá fora em meses.
— Foi bom ver Rachel de volta. — disse Friedrich. O homem mais
velho olhou para a garota com um sorriso, mostrando o quanto ele realmente
falava sério.
Zedd segurou Rachel quando ela deslizou da sela enquanto Cara pegou
as rédeas do cavalo.
— Nossa, mas você está ficando pesada. — Zedd falou para ela.
— Chase me resgatou. — Rachel falou. — Ele foi tão corajoso. Você
devia ter visto ele. Ele matou cem homens sozinho.
— Cem! Ora, ora, que grande feito.
— Você esfaqueou a perna de um para mim, — Chase disse enquanto
saltava da sela. — Caso contrário eu teria pego apenas noventa e nove.
Rachel balançou as pernas, ansiosa para ser colocada no chão. — Zedd,
eu trouxe uma coisa importante comigo.
Logo que estava no solo, ela desamarrou uma sacola de couro que
estava pendurada logo atrás da sela dela. Levou ela até os degraus de granito e
colocou-a ali, então desamarrou o cordão.
Quando ela abriu a cobertura de couro, a escuridão surgiu na luz do dia
de outono. Para Nicci, pareceu como olhar dentro da obscuridade dos olhos de
Jagang.
— Rachel... — Zedd falou admirado. — onde você pegou isso?
— Um homem, Samuel, que tinha a espada de Richard estava com ela.
Ele feriu Chase e me levou com ele. Então entregou isso para uma Bruxa
chamada Seis, e para Violeta, a Rainha de Tamarang, ainda que eu ache que e la
não seja mais a Rainha.
— Você não pode acreditar o quanto Seis é má.
— Acho que posso imaginar. — Zedd falou para ela.
Sentindo um pouco de dificuldade em acompanhar a história, ele
levantou o couro um pouco para dar uma olhada melhor lá dentro.
Olhando para uma das Caixas de Orden sobre os degraus diante dela,
Nicci sentiu como se o seu coração estivesse na garganta. Após semanas e
semanas de estudo do livro que acompanhava as Caixas, realmente ver uma era
assustador. A teoria era uma coisa, mas ve r a realidade daquilo que esse objeto
representava era algo completamente diferente.
— Não podia deixar elas ficarem com isso, — Rachel disse para Zedd.
— então quando tive uma chance de fugir eu roubei isso e trouxe comigo.
Zedd esfregou o cabelo loiro cortado dela. — Fez muito bem,
pequenina. Eu sempre soube que você era especial.
Rachel abraçou o mago pelo pescoço. — Seis fez Violeta desenhar
figuras de Richard. Fiquei assustada quando vi o que eles estavam fazendo.
— Em uma caverna? — perguntou Zedd. Quando Rachel assentiu, ele

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olhou para Nicci. — Isso explica muita coisa.
Nicci deu um passo aproximando -se. — Richard estava lá? Você viu
ele?
Rachel balançou a cabeça. — Não. Seis saiu um dia. Quando ela
finalmente voltou ela disse para Violeta que e stava trazendo ele de volta, mas a
Ordem Imperial capturou ele.
— A Ordem Imperial… — Zedd falou.
Nicci tentou imaginar o que era pior, a Bruxa ter Richard em suas
garras, ou a Ordem Imperial capturar ele.
Ela considerou que o que era pior, era Richard ter sido privado do seu
Dom, de sua espada, e estar nas mãos da Ordem.

424
C A P Í T U L O 5 6

Kahlan fechou mais apertada a capa enquanto caminhava ao lado do


Imperador, a dócil e constante companheira dele. Isso não era por escolha, é
claro, mas pela força, quer fosse aplicada ou implícita. À noite ela dormia no
tapete ao lado da cama dele, um constante lembrete de onde ela acabaria.
Durante o dia ela permanecia sempre ao lado dele, como o cãozinho dele em
uma coleira. A coleira dela, entretanto, era uma coleira de ferro com a qual ele
podia fazer ela cair de joelhos a qualquer momento.
Ela não conseguia imaginar o que poderia causar tanto ódio em relação
a ela, o que poderia ter criado a fervorosa necessidade dele de puni -la pelos
pecados que ele enx ergava em todos os seus inimigos. Seja lá o que fosse que
ela fizera para ganhar o ódio dele, ele mereceu.
Quando uma rajada de ar frio cruzou o acampamento, Kahlan escondeu
o lado do rosto atrás de sua capa. Homens viraram os rostos protegendo -se
contra o jato de poeira carregado no vento. Com o outono rapidamente chegando
ao fim, logo o inverno estaria sobre eles. Kahlan não achava que seria agradável
estar em terreno aberto ao redor do planalto que abrigava o Palácio do Povo,
mas ela também sabia que co m esse osso nos dentes, Jagang não largaria isso
por nada. Ele era persistente mais do que qualquer outra coisa.
Supostamente havia outra cópia do Livro das Sombras Contadas
escondida em algum lugar dentro do planalto, e Jagang pretendia possuí -la.
Lá fora na Planície Azrith, a construção avançava. Ela estivera
crescendo através do outono, ela sabia que entraria no inverno, todo o inverno
se fosse preciso, até que estivesse completa. Quer dizer, se o solo embaixo deles
não congelasse. Kahlan suspeitou que ele tinha planos caso isso acontecesse...
provavelmente fogueiras, se isso fosse necessário, para manter a terra em
degelo. Ela supôs também que se continuasse seco, o solo ainda poderia ser
cavado mesmo se estivesse congelando.
Não havia jeito de cruzar a grande porta interna para o planalto, e a
estrada subindo ao lado rapidamente havia provado ser inútil para um ataque
com um número tão vasto de homens.
Jagang tinha uma solução para a situação.
Ele pretendia construir uma grande estrada rampada que p ermitiria a
seu exército marchar direto até os muros do Palácio sobre o planalto. Ele tinha
falado para seus oficiais que assim que eles alcançassem os muros, máquinas de
cerco poderiam ser usadas para abrir caminho através dos muros. Porém,
primeiro eles precisavam chegar lá em cima.
Para esse fim, além do vasto acampamento, mais perto do planalto, o
exército estava construindo a rampa. A largura da rampa era surpreendente.
Precisavam dela larga por duas razões, ambas igualmente importantes.
Precisavam de uma rampa larga o bastante para eventualmente suportar um
ataque suficientemente massivo de forma que não pudesse ser repelido pelos
defensores. E tão importante quanto isso, o planalto erguia -se acima da Planície
Azrith. Para que a rampa atingisse aquela altura, a base tinha que ser
monumental para evitar que a coisa toda entrasse em colapso. Eles precisavam,
em essência, construir uma pequena montanha subindo contra o planalto para
alcançar o topo. Persistente, certamente.

425
A distância até o objetivo del es, a partir de onde haviam iniciado, era
assombrosa. Por causa da altura, ela exigia grande extensão para que homens e
equipamentos eventualmente pudessem marchar e subir a estrada que eles
estavam construindo até os muros do Palácio do Povo.
Inicialment e pareceu uma ideia louca, um projeto impossível, mas
aquilo que podia ser realizado com milhões de homens que nada mais tinham
para fazer e um Imperador decidido que não importava -se com o bem estar deles
não era menos do que algo surpreendente. Em cada m omento que havia luz, e às
vezes com a luz de tochas, longas filas serpenteantes de homens ou carregavam
containers com terra e pedras até o local da rampa sempre crescente ou
carregavam grandes montes de suprimentos. As pedras estavam misturadas com
aterro mais fino para dar estabilidade. Outros homens tinham simples
niveladores pesados para compactar a nova terra quando ela era espalhada.
Quase todos os homens do acampamento estavam engajados no
empreendimento. Ainda que a tarefa fosse assustadora, o pro gresso feito por
tantos homens era contínuo. Inexoravelmente, a rampa continuava a crescer. É
claro, quanto mais alta ela ficava, mais tempo levaria, porque isso exigiria
muito mais material.
Kahlan achou apropriado que homens como esses atacassem a fina
construção de mármore com terra. Isso encaixava -se com a filosofia da Ordem
de cavar a terra para derrubar um dos mais refinados trabalhos do homem.
Kahlan não conseguia imaginar quanto tempo levaria para completar
um projeto como esse, mas Jagang não tin ha intenção de abandonar seu plano
até que ele obtivesse o sucesso. O fim estava à vista, ele frequentemente
lembrava a seus oficiais, e ele esperava completa devoção e sacrifício de todos
em nome do nobre propósito deles. Ele era implacável em sua determi nação para
derrubar o último bastião da liberdade.
Do limite da área do Imperador, enquanto eles observavam a
construção, Kahlan avistou um mensageiro vindo sobre um cavalo. Ao sul, ela
podia ver a longa pluma de poeira elevando -se do comboio de supriment os que
aproximava-se. Ela estivera checando aquilo durante horas, observando aquilo
chegar cada vez mais perto, e agora as primeiras carroças estavam começando a
entrar no acampamento.
Jagang estava aliviado em ver o comboio de suprimentos finalmente
chegar. Um exército tão vasto quanto esse requeria suprimentos constantes de
todos os tipos, mas principalmente de comida. Lá fora na Planície Azrith, não
havia lugar onde o exército pudesse encontrar comida; não havia fazendas,
plantações, rebanhos. Seria nec essário um constante fornecimento de
suprimentos do Mundo Antigo para manter o exército vivo e construindo a
rampa do Imperador subindo ao céu.
Após desmontar, o mensageiro aproximou -se e aguardou
pacientemente. Jagang finalmente sinalizou para vários ofi ciais avançarem junto
com o homem que entrara cavalgando.
O homem fez uma reverência. — Excelência, eu venho com os
suprimentos que o bom povo de nossa terra natal enviou. Muitos sacrificaram -se
para garantir que nossas valiosas tropas tenham o que precis am para aniquilar o
inimigo.
— Os suprimentos serão úteis, sem dúvida. Todos os homens estão
trabalhando duro e eu preciso manter a força deles.
— Nosso comboio também traz alguns dos times de Ja’La dh Jin que
desejam participar dos torneios na esperança de terem a chance de um dia jogar

426
contra o renomado time de Sua Excelência.
— Que times são? — perguntou Jagang, distraidamente, enquanto
observava um manifesto que o mensageiro entregou a ele.
— A maioria são times de nossos soldados de várias divisões . Um é o
time que pertence ao comandante de nosso comboio de suprimentos. Para
complementar seus próprios homens, ele reuniu homens do Mundo Novo durante
nossa jornada ao norte. Ele acredita que, com tais homens do Mundo Novo em
seu time, ele pode fornecer um grande espetáculo para a diversão de Sua
Excelência.
Jagang assentiu enquanto continuava a ler a lista. — Isso fará esses
infiéis aprenderem nossos costumes. Ja’La dh Jin é uma boa forma de introduzir
outros povos em nossa cultura e costumes. Isso des via as mentes simples da
existência vazia que todos nós encaramos nessa vida sem sentido.
O homem fez uma reverência. — Sim, Excelência.
Finalmente Jagang terminou e levantou os olhos. — Tenho ouvido
rumores. Esse time com os cativos é tão bom quanto ouv i falarem?
— Parece que eles são formidáveis, Excelência. Derrotaram times que
ninguém pensou que poderiam derrotar. No início todos pensaram que havia sido
apenas sorte. Ninguém mais acha que é sorte. Eles possuem um atacante que é
considerado o melhor j á visto.
Jagang grunhiu sua descrença. — Eu tenho o melhor no meu time.
O homem abaixou a cabeça. — Sim, Excelência. É claro que você está
certo.
— Que notícias você traz de nossa terra natal?
O homem hesitou. — Excelência, temo que eu deva reportar al gumas
notícias inquietantes. Quando o comboio de suprimentos seguinte que devia
seguir atrás do nosso estava preparando -se no Mundo Antigo, ele foi atacado e
destruído. Todos os recrutas que deviam ser enviados ao norte com o comboio
para reforçar nosso ex ército… bem, eu temo, Excelência, que todos tenham sido
mortos. Suas cabeças foram deixadas em estacas ao lado da estrada. A fileira de
estacas estendia-se de uma cidade até a seguinte... ambas foram queimadas
totalmente. Algumas cidades, junto com florest as e plantações, estão
queimando. Os incêndios são intensos e, quando o vento está na direção certa,
podemos sentir a fumaça até mesmo tão longe assim ao norte. É difícil dizer
exatamente o que está acontecendo, exceto que os atacantes confiavelmente
descritos como soldados do Mundo Novo.
Jagang olhou para Kahlan. Ela suspeitou que ele estava querendo ver
se ela estava sorrindo, como da última vez. Ela não precisava sorrir. Podia
manter um rosto de pedra, e comemorar internamente. Sentiu vontade de
parabenizar aqueles homens desconhecidos distantes que estavam começando a
preocupar Jagang com o dano que estavam causando.
Quase tão ruins quanto o dano, rumores estavam espalhando -se através
do acampamento. Os ataques na terra natal deles estavam deixando inq uietos os
homens, que sempre consideraram o Mundo Antigo não apenas invulnerável a
esse tipo de ataque, mas também invencível. Conforme os rumores espalhavam -
se, o peso deles cresciam entre os homens. Jagang já tinha executado alguns dos
homens por espalha rem esses rumores. Uma vez que tinha pouca interação com
os homens... a maioria nem a enxergava... ela não sabia se as execuções
acabavam com os rumores mas, de alguma forma, ela duvidava. Se os rumores
de tais coisas perturbavam os soldados, Kahlan só pod ia imaginar o medo que
começava a tomar conta daqueles que estavam no Mundo Antigo. Enquanto o

427
exército deles estava longe buscando conquista, ela imaginava que as pessoas lá
estavam amplamente indefesas.
— Os informes, Excelência, são de que esses atacan tes estão
destruindo tudo em seu caminho. Eles queimam plantações, matam animais,
destroem moinhos, quebram represas, arruínam todo tipo de ofício que gera
produtos para o nosso nobre esforço de espalhar a palavra da Ordem.
— É um golpe particularmente di fícil para aqueles que dão suporte a
nosso povo ensinando a eles os costumes da Ordem... aqueles que incutem a
necessidade do sacrifício por nossos esforços em esmagar os infiéis ao norte.
Jagang continuava calmo por fora, mas Kahlan, assim como os oficia is
que observavam ele, sabiam que por dentro ele estava fervendo de fúria.
— Alguma ideia de quem está indo atrás de nossos professores, nossos
líderes? Alguma unidade em particular do inimigo?
O homem fez outra reverência. — Excelência, sinto informar q ue todos
de nossos professores e os Irmãos que foram assassinados tentando ensinar os
caminhos do Criador e da Ordem, bem… cada um dos cadáveres deles foi
encontrado com a orelha direita faltando.
O rosto de Jagang ficou vermelho de raiva. Kahlan podia ve r os
músculos nas mandíbulas e têmporas dele flexionarem quando ele cerrava os
dentes.
— Você acha que poderiam ser aqueles mesmos homens que nos
atacaram em nosso caminho entrando em Midlands, Excelência? — perguntou
um dos oficiais.
— É claro que são! — Jagang rugiu. — Quero que alguma coisa seja
feita a respeito disso, — ele disse, direcionando suas ordens aos oficiais. —
Vocês entenderam?
— Sim, Excelência. — todos eles falaram juntos enquanto abaixavam
as cabeças e as mantinham abaixadas.
— Quero que seja dado um fim nessa inconveniência. Precisamos que
aqueles comboios de suprimentos continuem vindo. Estamos perto de acabar
com essa guerra com uma grande vitória. Não permitirei que nossos esforços
falhem. Vocês entenderam!
— Sim, Excelência. — todos disseram juntos, novamente, abaixando
mais ainda as cabeças.
— Então vão cuidar disso... todos vocês!
Quando os homens partiram ara tratarem de suas ordens, Jagang
começou a marchar, para fora de sua área. Kahlan sentiu o choque de dor da
coleira avis ando a ela para continuar junto com ele. Homens armados, como
sempre, seguiram ao redor de Jagang como sua escolta e guarda real.

428
C A P Í T U L O 5 7

Richard observou através das barras que cobriam a pequena janela no


lado de sua jaula de ferro enq uanto a carroça sacodia pelo acampamento.
— Ruben, dê uma olhada nisso. — falou Johnrock. As mãos segurando
as barras, ele estava sorrindo como um homem em um dia de folga diante do que
viu.
Richard olhou para o seu colega de jaula. — Uma vista e tanto. — ele
concordou.
— Acha que tem alguém aqui que possa nos vencer?
— Acho que descobriremos mais cedo ou mais tarde. — disse Richard.
— Estou falando, Ruben, eu gostaria de rachar algumas cabeças do
time do Imperador. — o homem olhou com o canto dos olho s para Richard. —
Acha que se vencermos o time do Imperador eles nos deixarão ir para casa?
— Está falando sério?
O homem soltou uma risada. — Foi uma piada, Ruben.
— Uma bem ruim. — falou Richard.
— Suponho que sim. — Johnrock falou com um suspiro. — Ainda
assim, dizem que o time do Imperador é o melhor. Eu não gostaria de sentir
aquele chicote outra vez.
— Uma vez foi o bastante para mim também.
Os dois tinham compartilhado a jaula de ferro desde que Richard foi
capturado em Tamarang. Johnrock já er a um prisioneiro, capturado antes de
Richard. Era um homem grande, um moleiro, dos recantos ao sul de Midlands.
Pouco antes que o comboio de suprimentos tivesse cruzado pelo vilarejo dele,
soldados em patrulha adiante chegaram e pensaram que, por causa do seu
tamanho, Johnrock poderia ser uma boa adição ao time.
Richard não sabia o verdadeiro nome de Johnrock. Ele dissera a todos
para simplesmente o chamarem de Johnrock por causa do seu tamanho e do
quanto eram rígidos seus músculos por carregar sacos com grãos. Ele conheceu
Richard como Ruben R ybnik. Embora Johnrock fosse um colega cativo, Richard
não achou que seria seguro deixar alguém conhecer o seu verdadeiro nome.
Johnrock disse a Richard que havia quebrado os braços de três dos
soldados que tentavam capturá-lo antes que o derrubassem. Richard falou apenas
que eles apontaram flechas para ele, e então ele entregou -se. Aparentemente
Johnrock tinha ficado levemente constrangido com o que ele considerou um a
falta de coragem de Richard.
Independente do so rriso torto brincalhão dele, que ele exibia com
frequência, e apesar do seu comportamento, Johnrock tinha um raciocínio rápido
e uma mente analítica. Ele passara a gostar de Richard porque Richard era o
único que não o considerava estúpido e não o tratava como tal. Johnrock era
qualquer coisa menos estúpido.
Eventualmente ele decidiu que estivera errado a respeito da falta de
bravura de Richard e pediu para ser o ala direito dele nos jogos de Ja’La. Ala
era uma posição bastante ingrata que expunha ele a at aques e fermentos feitos
pelos oponentes. Johnrock enxergou o valor em tal posição porque permitia que
ele quebrasse as cabeças de homens da Ordem e ele era ovacionado ao fazê -lo.
Embora fosse um homem grande, Johnrock era veloz... uma combinação que o

429
transformava em um homem perfeito para ala direito de Richard. Ele adorava
estar peto de Richard durante o jogo pois assim podia ver Richard lançar sua
fúria no campo de Ja’La de uma forma que os outros times não esperavam.
Juntos, os dois tornaram -se um par formidável no campo. Isso nunca foi dito,
mas os dois sabiam que os outros valorizavam a chance de extrair um pouco de
vingança sobre aqueles que os capturaram.
O acampamento além das barras de ferro parecia continuar
infinitamente. Richard estava desolad o ao ver onde eles estavam... na Planície
Azrith ao redor do Palácio do Povo. Ele não queria mais olhar, e sentou
novamente, encostando -se contra o outro lado da caixa, repousando um pulso
sobre o joelho enquanto a carroça sacudia e saltitava no meio da ho rda sem fim.
Ele estava aliviado que as forças D’Haranianas tivessem partido fazia
muito tempo, ou agora eles teriam sido aniquilados por nada. Ao invés disso,
aqueles homens já teriam tempo suficiente para chegar ao Mundo Antigo.
Provavelmente eles já es tavam destruindo o lugar.
Richard esperava que eles seguissem o plano... ataques rápidos e
ferozes, manterem-se separados e atingir todos os lugares no Mundo Antigo,
nada poupando. Ele queria que ninguém no Mundo Antigo sentisse que estava
seguro. Tinha que haver consequências para as ações que originavam -se das
crenças deles.
Todos os homens no acampamento observavam o comboio de carroças
passando entre eles. Parecia que ele era bem -vindo, provavelmente pela comida
que trazia. Richard esperava que eles r ecebessem a sua parte. Conhecendo as
ordens que transmitira, provavelmente esse era um dos últimos comboios de
suprimentos a sair do Mundo Antigo. Sem suprimentos, lá fora na Planície
Azrith, com o inverno prestes a descer sobre eles, o exército de Jagang
inesperadamente se encontraria passando por tempos difíceis.
Quase todos os homens perto dos quais eles passavam olhavam dentro
da jaula de Richard, tentando dar uma espiada nele. Ele esperava que já
houvesse rumores espalhando -se através do acampamento s obre ele e seu time
de Ja’La. Aprendeu quando eles paravam para jogar contra times em postos do
exército pelo caminho que a reputação deles os precedia. Esses homens eram fãs
do jogo e estavam ansiosos pelos torneios, especialmente desde que sem dúvida
haveria um interesse elevado por causa da chegada do time de Richard... ou de
Ruben, como era formalmente conhecido. Na verdade o time pertencia ao
comandante com o rosto de cobra. Havia pouca coisa mais para entreter esses
soldados, além das prisioneiras. Ri chard tentou não pensar nisso, porque isso
apenas o deixava com raiva, e ele nada podia fazer a respeito dentro de sua
jaula.
Um dia, após um jogo particularmente violento que eles venceram com
folga, Johnrock admitiu estar confuso com o porque Richard te ria permitido ser
capturado tão facilmente. Finalmente Richard contou a ele a verdade sobre o que
aconteceu. Inicialmente Johnrock não acreditou nele. Richard disse para ele
perguntar ao rosto de cobra algum dia. Ele perguntou e descobriu que Richard
estava dizendo a verdade. Johnrock valorizava muito a liberdade e acreditava
que por ela valia à pena lutar. Foi nesse dia que Johnrock pediu para ser o ala
direito de Richard.
Onde um dia Richard tinha canalizado sua fúria através da Espada da
Verdade, agora ele a canalizava através da Broc e do jogo de Ja’La. Até mesmo
seu próprio time, independente do quanto gostavam que ele os liderasse, até
certo nível o temia. Exceto Johnrock. Johnrock não temia Richard. Ele

430
compartilhava a forma de jogar de Richard... co mo se o jogo fosse questão de
vida ou morte.
Para alguns dos oponentes deles das tropas da Ordem Imperial que
consideravam -se bons demais, havia sido. Não era incomum que jogadores,
especialmente oponentes do time de Richard, ficassem seriamente feridos, ou até
morressem durante uma partida. Um dos homens do time de Richard morreu
durante um jogo. Ele foi atingido na cabeça com a pesada Broc quando não
estava olhando. Isso quebrou seu pescoço.
Richard lembrou de ter caminhado pelas ruas de Aydindril com K ahlan,
observando crianças jogarem Ja’La. Ele deu bolas oficiais se elas trocassem
suas pesadas Brocs pelas mais leves que Richard mandara fabricar. Ele não
queria que elas se machucassem apenas para brincarem em um jogo. Agora todas
aquelas crianças tinham fugido de Aydindril.
— Esse parece um lugar ruim para nós estarmos, Ruben. — Johnrock
falou em voz baixa enquanto olhava o acampamento passar na pequena janela
deles. Ele soou incomumente sombrio. — Um lugar muito ruim para nós sermos
escravos.
— Se você pensa que é um escravo, então você é um escravo. — disse
Richard.
Johnrock olhou fixamente para Richard durante um longo momento. —
Então eu também não sou um escravo, Ruben.
Richard assentiu. — Bom para você, Johnrock.
O homem voltou a observar o ac ampamento infinito passar diante dos
seus olhos. Provavelmente ele nunca tinha visto algo como isso em sua vida.
Richard lembrou de sua própria surpresa quando deixou as florestas de Hartland
para descobrir o que estava além.
— Dê uma olhada naquilo. — Johnrock falou em voz baixa, olhando
através das barras.
Richard não sentiu vontade de olhar. — O que é?
— Um monte de homens... soldados... mas não como o resto dos
soldados. Esses são todos parecidos. Armas melhores, melhor organizados.
Maiores. Eles par ecem ferozes. Todos estão abrindo caminho para eles.
Johnrock olhou para trás por cima do ombro, para Richard. — Aposto
que é o Imperador que veio nos ver... que veio para ver os desafiantes do time
dele nos torneios. Pelas descrições que ouvi, aposto que o sujeito sendo
protegido por todos aqueles guardas usando cota de malha é Jagang em pessoa.
Richard voltou até a pequena abertura para dar uma olhada. Ele
segurou as barras quando colocou o rosto perto para ver melhor quando eles
passavam perto dos guar das e sua carga.
— Parece que aquele provavelmente é o Imperador Jagang. — Richard
falou para Johnrock.
O Imperador estava olhando para o outro lado, observando alguns dos
outros times de Ja’La formados por soldados da Ordem Imperial. Eles não
estavam trancados em jaulas de ferro em carroças, é claro. Jagang estava vendo
eles marcharem orgulhosamente em fileiras, carregando bandeiras de seus times.
E então ele enxergou -a.
— Kahlan!
Ela virou em direção à voz dele, sem saber de onde ela estava vindo;
Richard estava segurando as barras forte o suficiente para quase dobrá -las.
Ainda que ela não estivesse longe, ele percebeu que ela provavelmente não
conseguiria escutá -lo com todo aquele barulho. Homens ao redor estavam

431
ovacionando a parada de times que mar chavam.
O cabelo longo dela estava sobre a capa. Richard pensou que seu
coração explodiria do jeito que batia com tanta força no peito.
— Kahlan!
Ela virou mais em direção a ele.
Os olhos deles encontraram -se. Ele estava olhando direto nos olhos
verdes dela.
Quando Jagang começou a virar, imediatamente ela virou o rosto,
olhando para onde ele estava observando. Ele virou de volta junto com ela.
E então ela desapareceu, escondida atrás de homens, carroças, cavalos
e tendas, desaparecendo ao longe.
Richard caiu para trás, contra a parede, arfando.
Johnrock sentou ao lado dele. — Ruben... o que foi? Parece como se
você tivesse visto um fantasma caminhando entre todos aqueles homens.
Richard só conseguiu ficar olhando para o vazio, seus olhos
arregalado s, enquanto ele arfava.
— É a minha esposa.
Johnrock soltou uma forte risada. — Está querendo dizer que viu a
mulher que você quer quando ganharmos? O comandante diz que se nós
vencermos o time do Imperador, poderemos escolher uma. Viu aquela que você
quer?
— Era ela…
— Ruben, você está parecendo com um homem que acabou de se
apaixonar.
Richard percebeu que o sorriso dele parecia como se pudesse partir o
rosto.
— Era ela. Ela está viva. Johnrock... gostaria que você conseguisse
enxergar ela. Ela está v iva. Ela parece exatamente do mesmo jeito. Queridos
espíritos, era Kahlan. Era ela.
— Acho que seria melhor controlar a sua respiração, Ruben, ou vai
desmaiar antes que tenhamos chance de partir algumas cabeças.
— Nós jogaremos contra o time do Imperador , Johnrock.
— Primeiro temos que vencer um monte de jogos, para termos essa
chance.
Richard mal ouviu o homem. Ele riu de alegria, incapaz de controlar -
se. — Era ela. Ela está viva. — Richard jogou os braços em volta de Johnrock,
abraçando-o com força. — Ela está viva!
— Se você diz, Ruben.

*****

Kahlan controlou cuidadosamente sua respiração, tentando fazer o seu


coração acelerado reduzir a velocidade. Não conseguia entender porque estava
tão abalada. Não conhecia o homem na jaula. Tinha visto o rost o dele apenas
brevemente quando a carroça passava, mas por alguma razão isso mexeu com ela
até sua alma.
Na segunda vez em que o homem gritou o nome dela, Jagang agiu
como se achasse ter ouvido algo. Kahlan virou o rosto de volta para que ele não
suspeitasse de alguma coisa. Ela não sabia porque aquilo pareceu tão
desesperadoramente importante.
Isso não era verdade. Ela sabia porque. O home estava em uma jaula.

432
Se ele a conhecia, Jagang poderia ter machucado ele, até mesmo assassinado ele.
Porém, havia algo mais. Aquele homem a conhecia. Tinha que estar
conectado ao passado dela. O passado que ela queria esquecer.
Mas quando ela olhou nos olhos cinzentos dele, tudo mudara em um
piscar de olhos. Sua entorpecida aceitação tinha despedaçado. Ela não queria
mais que o seu passado fosse enterrado. De repente, queria saber tudo.
A expressão nos olhos daquele homem foi tão profundamente
poderosa... tão cheia de algo importante, algo vital... que isso fez com que ela
soubesse o quanto sua vida era importante.
Vendo a expressão nos olhos cinzentos dele, Kahlan percebeu que
precisava saber quem ela era. Quaisquer fossem as consequências, seja lá qual
fosse o custo, ela precisava saber a verdade. Tinha que ter sua vida de volta. A
verdade era o único jeito.
As ameaças de Jagang a respeito do que ele faria poderia ser uma
consequência bem real, mas subitamente ela sabia que o perigo real era que ele a
estava intimidando para que abdicasse de sua vida, de sua vontade, sua
existência… para que se entregasse ao control e dele. Pelas ameaças dele a
respeito do que faria com ela assim que ela soubesse novamente quem era, ele
estava ditando a vida dela, escravizando -a. Se ela continuasse satisfazendo a
vontade dele, então seria apenas porque havia desistido da sua.
Não podia permitir-se a pensar dessa forma. Sua vida significava mais
do que isso. Podia ser prisioneira dele, mas não era sua escrava. Uma escrava
era um estado da mente. Ela não era uma escrava.
Não entregaria sua vontade a ele. Ela teria sua vida de volta.
Sua vida era apenas dela e ela a teria de volta. Nada que Jagang
pudesse fazer, nada com o que pudesse ameaçá -la, conseguiria tirar isso dela.
Kahlan sentiu uma lágrima de alegria descer por sua bochecha.
Aquele homem do qual ela nem ao menos lembrava já havia fornecido
a ela a vontade de recuperar sua vida, o fogo para viver. Pareceu com a primeira
respiração verdadeira que ela experimentou desde que havia perdido sua
memória.
Só gostaria de poder agradecer a ele.

433
C A P Í T U L O 5 8

Nicci marcho u através do vasto corredor do Palácio do Povo seguindo


Cara, Nathan, e um grupo de guardas. Toda vez que alguém chamava Nathan de
“Lorde Rahl”, isso a deixava nervosa. Sabia que isso era necessário, mas em seu
coração o único Lorde Rahl era Richard.
Ela teria dado quase tudo para ver os olhos cinzentos dele outra vez.
Estar dentro do Palácio fazia parecer que ela quase podia sentir a presença dele
ao redor. Era o feitiço em volta do qual o Palácio foi construído, ela supôs. O
Palácio foi construído na for ma de um feitiço para o Lorde Rahl. Richard era
Lorde Rahl. Pelo menos na mente dela.
Para ser justa, ela sabia que havia outros... Cara, era uma... que
sentiam a mesma coisa. Quando ela estava sozinha com Cara, o que era
frequente, as duas pareciam compa rtilhar uma compreensão sem que palavras
fossem necessárias. Ambas dividiam a mesma angústia. As duas queriam
Richard de volta.
Cara avançou, conduzindo -os por uma rede de corredores de serviço
até uma escadaria de ferro subindo em um poço escuro. Chegand o ao topo, ela
abriu a porta. Eles foram recebidos por uma fria luz enquanto caminhavam
entrando no deque de observação. Estar bem na borda do muro externo, na borda
do planalto, parecia como estar na borda do mundo.
Lá embaixo, espalhado como uma mancha negra quase até o distante
horizonte, estava o exército da Ordem Imperial.
— Está vendo o que eu quero dizer? — Nathan falou quando parou ao
lado dela, apontando para a construção distante. Inicialmente foi difícil ver, mas
rapidamente começou a fazer sen tido.
— Você tem razão. — disse ela. — Realmente parece com uma rampa.
Você acha que eles realmente podem construir uma rampa subindo até aqui?
Nathan olhou para o local, estudando -o por um momento. — Não sei,
mas eu teria que dizer que se Jagang está pa ssando por todo esse trabalho para
fazer uma coisa como essa, só pode ser porque ele tem razão para acreditar que
consegue.
— Se eles chegarem até aqui com uma rampa tão larga, — falou Cara.
– estaremos com problemas.
— Está mais para “mortos”. — disse Nathan.
Nicci avaliou o que os homens da Ordem estavam fazendo, e a
distância até o local do trabalho. — Nathan, você é um Rahl. Esse lugar
amplifica o seu poder. Você deve ser capaz de mandar um pouco de Fogo do
Mago lá embaixo e destruir aquela coisa.
— Esse também foi meu pensamento – ele disse. — Suspeito que eles
tem Irmãs lá embaixo com escudos para evitar que alguém aqui em cima faça
justamente isso. Ainda não sondei procurando defesas como essas, e ainda não
tentei qualquer coisa. Quero esperar até que eles estejam trabalhando nisso por
mais tempo... para fazer com que eles fiquem relaxados. Então, quando eles
tiverem feito mais, e estiverem mais perto, e quando eu finalmente atingir eles,
terei uma chance melhor de causar um dano de verdade. Se eu conseguir destruir
isso agora, eles não terão perdido muito. É melhor esperar até que eles já
tenham investido muito mais tempo e trabalho nisso.

434
Nicci fez uma careta para o alto profeta. — Nathan, você é um homem
malvado.
Ele mostrou um sorriso de Rahl. — Prefiro pensar em mim como
alguém engenhoso.
Nicci voltou a observar o acampamento além do local da construção.
Estava suficientemente longe para fornecer aos dotados deles bastante tempo
para reagirem a um ataque. Nicci tinha passado tempo suficiente com o exército
de Jagang para saber muito sobre a forma como eles pensavam. Ela conhecia as
camadas de defesas que os oficiais de Jagang e dotados colocariam em volta do
exército. E alguns daqueles dotados eram Irmãs do Escuro.
— Vejam aquilo, — ela falou, apontando. — parece que um comboio
de suprimentos está acabando de chegar.
Nathan assentiu. — Em breve o inverno estará aqui. Parece que o
exército não vai a parte alguma, então eles precisarão de muitos suprimentos
para manterem todos esses homens vivo s durante o inverno.
Nicci pensou no que poderia ser feito, finalmente decidindo que, de
onde eles estavam, era muito pouco. — Bem, Richard enviou o exército ao sul,
para o Mundo Antigo, para atacar os comboios de suprimentos deles, entre
outras coisas. V amos torcer para que eles sejam efetivos e consigam realizar a
tarefa. Se todos esses homens morrerem de fome isso resolveria nosso problema.
Enquanto isso, Devotarei algum pensamento a respeito do que podemos fazer
para ajudar na morte deles.
Ela desviou da visão deprimente do acampamento, e do comboio de
suprimentos que trazia para todos aqueles homens o que eles precisavam para
ficar e montar cerco ao Palácio.
— Vamos lá. — disse ela para Nathan. — Preciso retornar, mas porque
não mostra para mim antes que eu vá?
Nathan levou-os através do Palácio por áreas menores dos
trabalhadores, ao invés dos vastos corredores. Foi uma descida rápida pelo
interior de pedra do Palácio, conduzindo -os ainda mais fundo nas escuras
regiões internas sob o Palácio que era m o que a maioria das pessoas jamais via.
Havia corredores elegantes, mesmo que simples, até mesmo nesses lugares não
vistos. Sem decoração elaborada, eles eram feitos com rocha polida em alguns
locais, e ricas madeiras em outros. Esses eram os corredores privados usados
por Lorde Rahl e sua equipe.
Nicci tinha vindo ao Palácio do Povo fazer uma visita ao Jardim da
Vida. Depois disso, checou para ver como estava Berdine em sua busca por
informações, e como estava o progresso de Nathan. Eles quiseram contar a ela
detalhes de suas dificuldades; ela realmente não queria perder tempo mas fez um
esforço para ouvir pacientemente.
Após ter visto novamente o lugar onde estiveram as Caixas de Orden,
ela estava distraída demais para ser capaz de realmente focar naqu ilo que eles
estavam dizendo a ela. Desse vez ela enxergou o Jardim da Vida deserto de
forma diferente, sentindo algo no lugar onde Darken Rahl havia aberto as
Caixas, onde elas estiveram colocadas. Ela estudara a posição da sala, a
quantidade de luz, os â ngulos com várias cartas estelares conhecidas junto com
a forma como o sol e a lua cruzavam o lugar, e a área onde os feitiços foram
invocados.
Desde estivera traduzindo o Livro da Vida, Nicci via o Jardim da Vida
de uma forma diferente. Ela o enxergava a través do contexto da magia de Orden
e de como a sala estivera sendo usada. Isso forneceu a ela uma valiosa

435
percepção do último lugar em que as Caixas haviam sido utilizadas. Esse tipo de
referência prática respondeu algumas questões que ela tivera, e conf irmou
algumas das conclusões a que ela chegara.
Finalmente Nathan alcançou portas duplas com guardas parados diante
delas. Ele gesticulou e os homens abriram o par de portas brancas. Além estava
uma sala de rocha branca que parecia como se tivesse sido pa rcialmente
derretida.
— Você já esteve ali dentro? — ela perguntou ao profeta.
— Não. — ele admitiu. — Com a idade que tenho eu tento o máximo
que posso permanecer fora de tumbas.
Nicci passou o pé sobre o baixo batente ao mesmo tempo em que
agachava at ravés da baixa abertura. — Espere aqui. — ela disse para Cara, que
estava prestes a seguir ela.
— Tem certeza?
— Isso envolve magia.
Cara franziu o nariz como se tivesse sentido o cheiro de leite azedo, e
aguardou do lado de fora com o profeta.
Nicci lançou uma centelha do Han na tocha que estava de um lado.
Após todo esse tempo ela ainda acendeu. Então ela viu que a enorme sala
abobadada era construída com granito cor de rosa. O chão era de mármore
branco. Nas paredes ao redor estavam dúzias e dúzias d e vasos dourados, cada
um posicionada na parede sob uma tocha. Nicci contou -os distraidamente.
Cinquenta e sete. Para ela pareceu ser um número que possuía significado.
Provavelmente os vasos e tochas representavam a idade do homem dentro do
caixão no cent ro da sala.
O lugar era perturbador, e não apenas porque era uma cripta. Ela
deslizou os dedos pelos símbolos talhados nas paredes de granito logo abaixo
dos vasos. As palavras que corriam ao redor de toda a sala e ao redor do caixão
dourado estavam em Al to D’Haraniano. As inscrições eram instruções de um pai
para um filho sobre o processo de ir para o Submundo e retornar. Que belo
legado.
Feitiços assim continham Magia Subtrativa. Isso era o que estava
fazendo as paredes derreterem. Contê -los emparedando o lugar com rocha
especial tinha atrasado bastante o processo, mas não o fizera parar inteiramente.
— Bem? — Nathan perguntou, enfiando a cabeça através do buraco
derretido. — Alguma ideia?
Nicci saiu, esfregando as mãos. — Não sei. Não acho que exist a
qualquer perigo iminente, mas isso envolve coisas sombrias então há uma
chance de que eu esteja errada. Penso que seria melhor isolar isso atrás de uma
Invocação de Três.
Nathan assentiu, pensativo. — Quer fazer isso? Entrelaçar com Magia
Subtrativa?
— Seria melhor se você fizesse isso. Você é um Rahl. Isso seria mais
efetivo. Mesmo se eu usasse Subtrativa, isso aqui dentro já tem ambas
misturadas, e isso foi criado por um Rahl. Tal poder poderia romper qualquer
invocação que eu poderia criar aqui dentro sob as limitações do feitiço protetor
do Palácio.
Ele refletiu apenas brevemente. — Cuidarei disso imediatamente. —
Nathan lançou um olhar de volta para a cripta. — Alguma ideia do que est á
fazendo esse feitiço avançar derretendo?
— No topo da minha list a eu diria que isso foi ativado devido uma das

436
Caixas de Orden ter sido aberta no Jardim da Vida. Suspeito que elas criaram
uma reação associada de algum tipo. Isso ainda não está ativo o bastante para
que eu possa dizer o propósito do elemento Subtrativo, mas as palavras inscritas
no caixão e nas paredes indicam que a composição constituinte ali dentro estava
planejada para ser usada como auxílio na aquisição do poder de Orden, então
elas agem em uma resposta harmônica após terem estado na vizinhança daque le
poder específico.
Nathan assentiu, refletindo. — Está certo. Farei uma Invocação de Três
e ficarei de olho nisso.
— Tenho que voltar. Virei checar mais tarde, só para ver se vocês
tiveram alguma notícia de Richard e para ver como a Ordem está saindo -se lá
fora.
— Diga a Zedd que estou com tudo sob controle, e que estou com o
inimigo cercado.
Nicci sorriu. — Direi a ele.

*****

Em seu caminho através dos vastos corredores do Palácio, com Cara ao


lado dela, Nicci estava perdida em pensamentos. Não ti nha certeza do que fazer
em seguida. Havia problemas perturbadores vindo de todas as direções. A
maioria parecia obscuro e mal definido. Não existia qualquer pessoa com quem
ela realmente pudesse discutir todas as coisas que passavam em sua mente. Zedd
ajudava em uma parte, enquanto Cara era boa para conversar outras coisas.
Mas Richard era o único que seria capaz de captar as formas com as
quais ela estava começando a compreender assuntos fundamentais. Richard, de
fato, foi quem a introduziu ao conceito d a magia criativa. Ela ainda lembrava
claramente daquela conversa com ele, uma noite no acampamento. Esse foi um
dos muitos momentos definidores com Richard.
Também havia coisas que Richard precisava saber. Aconteceram
incidentes envolvendo ele e as Caixas de Orden que eram inquietantes, para
falar o mínimo. De certa forma, ele tinha criado uma fogueira com ingredientes
que não eram meramente perigosos mas que também estavam começando a
borbulhar, ferver e talvez pudessem combinar -se sozinhos das formas mai s
insidiosas se uma ação não fosse tomada.
Havia profecias envolvidas que, não sendo profeta, ela não confiava
em si mesma para entender. Havia outras profecias que ela estava começando a
achar que entendera bem demais e que não podia evitar levar em cons ideração.
A principal entre essas era a profecia que dizia, “ No ano das
cigarras”... coisa que esse ano era... “ quando o campeão do sacrifício e
sofrimento, sob a bandeira tanto da humanidade quanto da Luz, finalmente
dividir o seu enxame ”... o que Jagang tinha feito... “ então será o sinal de que a
profecia foi despertada e que a batalha final e decisiva está sobre nós. Tenha
cuidado, pois todas as ramificações verdadeiras e suas derivações estão
entrelaçadas nessa raiz mântica. Somente um tronco provém de ssa origem
primal conjugada ”. Esse era o momento, sucesso ou queda, tudo ou nada, o
momento divisor de águas, que definiria para sempre o curso para o futuro. “ Se
Fuer grissa ost drauka não liderar essa batalha final, então o mundo, já
permanecendo no limi ar das trevas, cairá sob essa terrível sombra ”.
Essa profecia, ela estava começando a visualizar, estava relacionada
com as Caixas de Orden, mas ela não conseguia entender muito bem como. De

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vez em quando ela sentia que estava à beira da compreensão, mas nunca
conseguia alcançá -la. Tinha alguma coisa logo abaixo da superfície dessa
profecia que, ela sabia, era a chave.
Ao mesmo tempo, ela sentia que aqueles eventos estavam ocorrendo
em cascata, sem freio, e ela precisava fazer algo antes que esses eventos
ficassem fora de controle. A cada dia que passava, ela sabia que as opções
continuariam a diminuir para eles. O fato das Irmãs do Escuro terem colocado as
Caixas em atividade já tinha acabado com a capacidade deles de usarem o poder
de Orden para o seu ob jetivo pretendido: servir de contra medida para a
deflagração do evento Cadeia de Fogo. Com Cadeia de Fogo contaminado pelas
Notas, eles estavam rapidamente perdendo a habilidade de usarem o seu Dom
para corrigirem o dano.
Não havia como dizer durante qua nto tempo mais qualquer um deles
teria controle suficiente de seu Dom necessário para superar quaisquer dos
obstáculos que eles encaravam.
Ao mesmo tempo, O Livro da Vida começou a ter um significado para
ela que jamais poderia ter imaginado. Ela também h avia estudado diversos livros
bastante obscuros que Zedd encontrara para ela sobre Teoria Ordênica. Eles
também adicionaram profundidade na compreensão dela, mas tudo isso apenas
pareceu abrir outras áreas para questões maiores.
Assustada, Nicci parou e l evantou o rosto. — O que foi isso?
— O sino para a Devoção. — disse Cara, parecendo um pouco confusa
com a reação de Nicci.
Nicci observou pessoas começarem a reunir -se diante de uma praça ali
perto com uma piscina no centro. A piscina, com uma grande ro cha escura no
centro, estava aberta para o céu.
— Talvez devêssemos ir para a Devoção. — falou Cara. — Às vezes
isso ajuda quando você está perturbado, e posso afirmar que definitivamente
você está perturbada.
Nicci fez uma careta para a Mord -Sith, imagi nando como ela sabia que
algo a estava perturbando. Ela supôs que isso realmente não era tão difícil de
perceber.
— Não tenho tempo para ir até a Devoção, — disse Nicci. — Tenho
que voltar e desvendar isso.
Cara pareceu não achar que isso era uma boa ide ia. Ela ergueu uma das
mãos em direção à praça.
— Pensar em Lorde Rahl pode ajudar.
— Pensar em Nathan não fará bem algum para mim. Não me importo se
todos pensam que Nathan é o Lorde Rahl. Richard é Lorde Rahl.
Cara sorriu. — Eu sei. Era isso que eu qu eria dizer. — ela pegou Nicci
pelo braço, levando -a em direção à piscina. — Vamos lá.
Nicci ficou olhando para a mulher enquanto estava sendo arrastada, e
então falou. — Suponho que não machucaria parar um pouquinho para pensar em
Richard.
Cara assentiu, parecendo de alguma forma bastante sábia nesse
momento. As pessoas respeitosamente abriram caminho para a Mord -Sith
enquanto ela caminhava até um ponto próximo da piscina. Nicci viu que havia
peixes deslizando através das águas escuras. Antes que ela se de sse conta,
estava ajoelhando ao lado de Cara, encostando a testa no chão.
— Mestre Rahl seja nosso guia., — a multidão começou a entoar em
uma só voz. — Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz

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prosperamos. Na sua misericórdia nos abrig amos. Em sua sabedoria, nos
humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Nicci somou sua voz com as outras, e juntos elas elevaram -se para
reverberar através dos corredores. A pronúncia “Mestre Rahl” e Richard
pareciam indistinguíveis para e la. Elas eram a mesma coisa.
Quase contra sua vontade, os pensamentos turbulentos de Nicci
acalmaram-se enquanto ela entoava suavemente as palavras junto com todas as
outras pessoas.
— Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz
prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos
humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Ela perdeu-se nas palavras. A luz do sol estava quente nas costas dela.
O dia seguinte era o primeiro dia do inverno, mas dentro do Pal ácio de Lorde
Rahl o sol estava caloroso, de forma muito parecida como acontecia dentro do
Jardim da Vida. Pareceu estranho que Darken Rahl, e o pai dele, Panis, fossem
Lorde Rahl anteriores, transformando esse lugar no assento do mal.
Porém, ela percebeu que o lugar era apenas isso... um lugar. O que
importava era o homem. O homem fazia a diferença definidora. O homem
definia o tom que os outros seguiam, quer fosse algo correto ou errado. De certo
modo, a Devoção era a declaração formal desse conceito.
— Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz
prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos
humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Essas palavras ecoaram na mente de Nicci. Ela sentia tanta falta de
Richard. Ainda que o coração dele pertencesse a outra pessoa, ela simplesmente
sentia falta de vê-lo, de ver o seu sorriso, de conversar com ele. Se isso era tudo
que ela poderia ter, era o suficiente para sustentá -la. Apenas a amizade dele, o
valor dele na vida dela, e o dela na vida dele.
Apenas Richard sendo feliz, estando vivo, sendo… Richard.
Nossas vidas são suas.
De repente Nicci levantou ficando sobre os joelho.
Ela compreendeu.
Confusa, Cara fez uma careta para ela enquanto todos os outros
entoavam. — Qual é o problema?
Nossas vidas são suas.
Ela sabia o que tinha de fazer.
Nicci levantou rapidamente. — Vamos lá. Tenho que voltar para a
Fortaleza.
Enquanto elas corriam juntas pelos corredores, Nicci podia ouvir o som
de vozes sussurradas aumentando para ecoar de forma reverberante através dos
vastos corredores.
— Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz
prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos
humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vida s são suas.
Nicci sentiu -se perdida nas palavras que subitamente tinham um
significado para ela que jamais tiveram.
Ela entendeu como tudo se encaixava, finalmente, e sabia o que tinha
de fazer.
Zedd levantou de sua cadeira na escrivaninha dentro da peq uena sala
quando ele viu Nicci parada no portal. A luz de lamparina suavizava o rosto
familiar dele. — Nicci, você voltou. Como estão as coisas no Palácio do Povo?

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— Nicci mal escutou a pergunta. Responder estava além dela. Zedd chegou mais
perto, a preocupação surgindo em seus olhos castanhos.
— Nicci, qual é o problema. Você parece um fantasma que veio
assombrar os corredores.
Ela teve que fazer um esforço para falar. — Você confia em Richard?
As sobrancelhas de Zedd abaixaram. — Que tipo de pergunta é essa?
— Você confia em Richard com a sua vida?
Zedd gesticulou com um dos braços. — É claro. Do que se trata isso?
— Você confia a vida de todos a Richard?
Zedd segurou gentilmente o braço dela. — Nicci, eu amo aquele rapaz.
— Por favor, Zedd, você c onfia a vida de todos a Richard?
A preocupação nos olhos dele espalhou -se pelo rosto, aprofundando
suas rugas. Finalmente ele assentiu. — É claro. Se houvesse alguém a quem eu
confiaria minha vida, ou a vida de qualquer outra pessoa, seria Richard. Afinal
de contas, fui eu quem o nomeou para ser o Seeker.
Nicci assentiu quando virou.
— Obrigada, Zedd.
Ele levantou um pouco o manto enquanto seguia apressado atrás dela.
— Você precisa de ajuda com alguma coisa, Nicci?
— Não, — disse ela. — obrigada. Esto u bem.
Zedd finalmente assentiu, aceitando a palavra dela, e retornou ao livro
que estava estudando.
Nicci caminhou pelos corredores da Fortaleza sem enxergá -los. Ela
movia-se como se estivesse seguindo uma linha cintilante invisível até seu
destino, da jeito como Richard disse que podia seguir as linhas cintilantes de
uma Forma de Feitiço.
— Para onde estamos indo? — perguntou Cara, apressando -se para
seguir logo atrás.
— Você confia em Richard? Confia nele com sua vida?
— É claro. — disse Cara sem um instante de hesitação.
Nicci assentiu enquanto continuava avançando.
Ela passou por corredores, cruzamentos, salas, e escadarias sem
realmente ver tudo aquilo. Concentrada em seu propósito, ela finalmente chegou
até a área mais reforçada da Fortaleza e a grande sala onde a Teia de
Verificação quase havia tomado sua vida. Ela teria morrido se não fosse
Richard. Ele insistiu em encontrar uma maneira para salvá -la quando ninguém
mais acreditava que isso podia ser feito.
Ela confiava em Richard com sua vida , e sua vida era bastante preciosa
para ela, graças a ele.
Nas portas duplas, Nicci virou para Cara. — Preciso ficar sozinha.
— Mas eu...
— Isso envolve magia.
— Oh. — disse Cara. — Bem, então, está certo. Vou esperar aqui fora
no corredor caso você pr ecise de alguma coisa.
— Obrigada, Cara. Você é uma boa amiga.
— Nunca tive quaisquer amigos de verdade... amigos que realmente
valessem à pena ter... até que Lorde Rahl apareceu.
Nicci sorriu um pouco. — Nunca tive qualquer coisa pela qual valesse
à pena viver até que Richard apareceu.
Nicci fechou as portas duplas. Atrás dela, as altas janelas cintilaram
com raios. Nicci não sabia se algum dia estivera naquela sala quando não

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houvesse uma tempestade.
Agora o mundo todo estava no meio de uma tempestad e.
Quando o raio iluminou a sala com o forte brilho. Só houve uma coisa
na sala que, porém, não registrou o toque até mesmo de uma luz tão intensa
como essa. Aquilo aguardava como a própria morte.
Nicci colocou o Livro da Vida aberto sobre a mesa diante da negra
Caixa de Orden posicionada no centro. Parecia que toda vez que a luz tentava
brilhar, aquela caixa negra a engolia antes que ela conseguisse realmente
começar. Olhar para aquilo era como olhar dentro da eternidade.
Nicci recitou o primeiro feitiç o, invocando escuridão para equiparar
com a escuridão impossível da sinistra caixa diante dela. Ela lembrou a si
mesma que, como o Palácio do Povo, era a pessoa quem definia aquilo. Com o
som de um trovão de poder preenchendo a sala, a porta foi bloqueada. Ninguém
poderia entrar. O campo de contenção das janelas não importavam mais. Ela
havia conjurado algo mais poderoso. A sala estava silenciosa e totalmente
escura. A visão de Nicci veio dos poderes que ela invocara.
Ela pronunciou as palavras escritas na página seguinte, invocando o
próximo feitiço que abriu o caminho para as fórmulas governantes. Ela usou um
fio de Magia Subtrativa para remover um fino pedaço de carne da ponta do seu
dedo, e usou o sangue que começou a fluir para começar a desenhar os
diagramas necessários na frente da Caixa de Orden. Quando mais sangue
escorria da ferida aberta, ela desenhou um campo de contenção ao redor da
Caixa. Era algo parecido com o campo da sala, mas em uma escala muito mais
intensa. Se primeiro não fosse contido, tal poder como o que era liberado da
Caixa de Orden poderia involuntariamente romper o Véu, mas de um jeito que
mataria apenas a pessoa que tentava fazer o que Nicci estava tentando.
Quase sem precisar ler o livro que estivera estudando durante o que
parecia quase metade de sua vida, ela continuou com equações que envolviam o
tempo do ano: o primeiro dia do inverno.
Assim que aquilo estava completo, ela desenhou os dois símbolos
opostos e a junção do vértice dos gráficos apropriados com sangue.
Isso prosseguiu, uma intensa fórmula atrás da outra, durante a hora
seguinte, com cálculos trazendo a camada resultante de magia para que fosse
desdobrada no próximo passo. Cada nó no livro requeria que apenas o nível
adequado de poder fosse aplicado. Em cada pont o, Nicci deixou isso fluir sem
reserva.
Não havia outro jeito.
Conforme a noite passava, as linhas do feitiço espalhavam -se ao redor
da caixa... de certa forma como a teia de verificação do Cadeia de Fogo , com
linhas brilhantes verdes. Mas outras eram de uma cor branca pura, enquanto
outras eram construídas com elementos Subtrativos e eram pretas, parecendo
com vazios no mundo onde ao qual as linhas pertenciam, como pequenas fendas
para o Submundo.
Quando Nicci completou o último encantamento, ela finalm ente ouviu
o sussurro da própria Orden, a confirmação de que tinha feito tudo
apropriadamente. Ainda assim não era exatamente uma voz mas uma força que
formava o conceito em sua mente.
— O poder está aberto. — aquilo sussurrou através da escuridão, em
palavras que pareciam com gelo estalando.
— Eu invoco que esse tempo, esse lugar, esse mundo seja alterado por
essa execução das Caixas de Orden.

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— Diga o nome do executante.
Nicci colocou as mãos sobre a caixa negra diante dela.
— O executante é Richard Rahl. — disse ela. — Obedeça a vontade
dele. Obedeça as ordens dele se ele provar que é digno, mate -o se não for,
destrua todos nós se ele falhar conosco.
— Está feito. A partir desse momento o poder de Orden está em
execução por Richard Rahl.
A profecia disse, “se fuer grissa ost drauka não liderar essa batalha
final, então o mundo, já permanecendo no limiar das trevas, cairá sob essa
terrível sombra ”.
Nicci percebeu que para Richard vencer, ele deveria ser a pessoa
liderando eles nessa batalha final. O único jeito para que ele liderasse era com
as Caixas em atividade. Dessa forma, ele realmente estaria cumprindo a
profecia: fuer grissa ost drauka... aquele que traz a morte.
A profecia disse que eles deviam seguir Richard, mas isso era mais do
que profecia. A profecia apenas expressava a formalidade daquilo que Nicci
sabia, que Richard personificava os valores que promoviam a vida.
Na verdade eles não estavam seguindo a profecia; a profecia estava
seguindo Richard.
Esse era o caminho definitivo de Rich ard, que ele fosse seguido de
acordo com o que ele fizesse com as Caixas de Orden, naquilo que ele fazia com
a vida e a morte. Esse era o teste definitivo a respeito de quem ele era, quem ele
seria, quem ele se tornaria.
O próprio Richard tinha declarado os termos do compromisso quando
falou com as tropas D’Haranianas, dizendo a eles como a guerra seria travada de
agora em diante: tudo ou nada.
Isso não poderia ser diferente.
Agora isso realmente era tudo ou nada.
Da mesma forma Ulicia e suas Irmãs do E scuro abriram o portal para o
poder de Orden. Agora a luta verdadeiramente estava em equilíbrio. Se Nicci
estava certa a respeito de Richard, e ela sabia que estava, então agora estavam
engajadas apropriadamente na luta que decidiria tudo.
“Se fuer grissa ost drauka não liderar essa batalha final, então o
mundo, já permanecendo no limiar das trevas, cairá sob essa terrível sombra ”.
Eles tinham que confiar em Richard nessa luta. Por essa razão Nicci
teve que colocar as Caixas de Orden em atividade em nome de Richard. As
Irmãs do Escuro não eram mais os árbitros exclusivos do poder de Orden. Nesse
sentido, Nicci simplesmente havia colocado Richard no jogo, dando a ele a
habilidade para vencer essa batalha.
Sem aquilo que ela acabara de fazer, ele não poderi a vencer, muito
menos sobreviver.
Nicci parecia flutuar em um outro mundo. Quando ela finalmente abriu
os olhos, a tempestade tinha acabado.
Os primeiros raios de luz estavam começando a tocar as janelas.
Era o amanhecer, no primeiro dia do inverno.
Richard teve um ano para abrir a Caixa certa.
Agora as vidas de todos estavam nas mãos dele.
Nicci confiava em Richard com sua vida. Ela acabara de confiar a vida
de todos a ele.
Se ela não pudesse confiar em Richard, então a vida não valia à pena
ser vivida.

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F I M

443
444
A série “The Sw ord of Truth” é f ormada pelos seguintes livros:

Debt of Bones

Wizard´s First Rule

Stone of Tears

Blood of the Fold

Temple of the Winds

Soul of the Fire

Faith of the Fallen

The Pillars of Creation

Naked Empire

Chainfire

Phantom

Confessor

*****

The First Confessor – The Legend of Magda Searus

*****

The Omen Machine

The Third Kingdom

Severed Souls

Warheart

Death´s Mistress – The Nikki Chronicles Vol . 1

Shroud of Eternity – The Nikki Chronicles Vol. 2

Siege of Stone – The Nikki Chronicles Vol. 3

*****

Leia também:

The Law of Nines

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