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BRENO BAÍA MAGALHÃES

(ORGANIZADOR)

CURSO DE TEORIAS
CONSTITUCIONAIS BRASILEIRAS

Belo Horizonte
2022
Copyright © 2022 by Conhecimento Editora

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Conhecimento
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Capa: Waneska Diniz

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341.2 Curso de teorias constitucionais brasi-


C977 leiras / [organizado por] Breno Baía
2022 Magalhães. - Belo Horizonte: Conhecimento
Editora, 2022.
136 p.[PDF] ; 23cm

ISBN: 978-65-5387-102-1 (E-Book)


[Pode ser convertido em livro impresso]
Vários autores.

1. Direito constitucional. 2. Teoria


constitucional. 3. Brasil- Teoria
constitucional. 4. Constitucionalismo
liberal. 5. Neoconstitucionalismo. I.
Magalhães, Breno Baía (Org.). II. Título.
III. Grupo Estudos Constitucionais
Compartilhados – ECCOM. IV. Endereço
eletrônico http://www.

CDDir – 341.2
CDD(23.ed.)– 342

Elaboração: Fátima Falci – CRB/6-nº700


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.........................................................................................................5

​C APÍTULO 1 – A IMPORTÂNCIA DA TEORIA NO DIREITO CONSTI-


TUCIONAL: PANORAMA GERAL E APRESENTAÇÃO
DO CURSO
Breno Baía Magalhães............................................................... 7
CAPÍTULO 2 – A DOUTRINA DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL
Fabrícia dos Santos Santos
Breno Baía Magalhães............................................................. 31
CAPÍTULO 3 – CONSTITUCIONALISMO LIBERAL-CONSERVADOR
Beatriz Neder Mattar
Breno Baía Magalhães............................................................. 43
CAPÍTULO 4 – A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE
William Wallace
Breno Baía Magalhães............................................................. 55
CAPÍTULO 5 – CONSTITUCIONALISMO LIBERAL IGUALITÁRIO
Vitoria Gabriele Rodrigues de Almeida
Breno Baía Magalhães............................................................. 66
CAPÍTULO 6 – NEOCONSTITUCIONALISMO
Marcellia Sousa Cavalcante
Breno Baía Magalhães............................................................. 79
CAPÍTULO 7 – TEORIAS DO DIÁLOGO CONSTITUCIONAL
Valeska Dayanne Pinto Ferreira
Breno Baía Magalhães............................................................. 92
CAPÍTULO 8 – CONSTITUCIONALISMO PROCEDIMENTAL-
DEMOCRÁTICO
Gabriel Alberto Souza de Moraes
Breno Baía Magalhães........................................................... 108
CAPÍTULO 9 – CONSTITUCIONALISMO RADICAL
Arthur Pedroso de Almeida
Breno Baía Magalhães............................................................119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................... 131
4
APRESENTAÇÃO

O Grupo Estudos Constitucionais Compartilhados (ECCOM) foi pensado,


originalmente, como um grupo de estudos avançados em direito constitucional,
cujo foco era a leitura e discussão de textos aprofundados sobre temáticas can-
dentes do constitucionalismo brasileiro. Não obstante o formato basilar de grupo
de leitura, desde o início intencionávamos compartilhar com todas as pessoas os
conhecimentos construídos durante as reuniões.
No alvorecer de 2020, o projeto foi transformado em projeto de extensão aca-
dêmica direcionado à criação de conteúdos sobre Direito Constitucional nas redes
sociais que fossem acessíveis a todas as pessoas. As postagens intencionam al-
cançar, como público principal, estudantes, pesquisadores/pesquisadoras e pro-
fissionais do direito. Com a mudança de atuação do grupo, as reuniões passaram
a ser pensadas como momentos de capacitação dos membros e de produção das
postagens. A partir do segundo semestre daquele ano, decidimos estudar as teo-
rias constitucionais brasileiras produzidas nos últimos 30 anos e, após um ano de
reuniões, oferecemos aos nossos seguidores, como atividade extensionista, um
minicurso sobre cada uma das unidades analisadas no ano anterior.
O curso, ministrado no mês de julho de 2021, foi idealizado como uma intro-
dução às mais importantes teorias constitucionais brasileiras, seu lugar no pen-
samento jurídico, eventuais críticas de suas premissas e sua recepção (ou não)
pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O minicurso fora ministrado
por mim e um punhado de membros, enquanto os demais nos auxiliaram na or-
ganização dos módulos. Além de informações atualizadas e aprofundadas sobre
o estágio do debate teórico constitucional brasileiro, o Eccom elaborou material
didático aos cursistas, que contava com a sistematização das principais teses que
compunham a teoria analisada, seus principais defensores, eventual correlação
jurisprudencial e um guia de leitura sobre seu desenvolvimento.
Os direcionamentos, tópicos e textos básicos do material didático foram pensa-
dos e sugeridos por mim, mas os textos foram escritos, exclusivamente, pelos mem-
bros do grupo, ou seja, por estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Já imaginava que o resultado seria satisfatório, uma vez que nossos membros e
membras são jovens capacitados e inteligentíssimos. Mas, sendo sincero, não espe-
rava receber um material tão robusto, instigante e informativo. De pronto, assumi
perante o grupo a responsabilidade de rever, reescrever e acrescentar informações
ao material didático para que ele pudesse assumir o formato apropriado de um livro.
Dessa forma, o livro que o leitor ou leitora tem em mãos é um produto feito
por e para alunos e alunas, que objetiva oferecer bases seguras para que todas as
pessoas possam iniciar seus estudos em Teoria Constitucional Brasileira. Nosso
intento com a publicação desse livro é, portanto, desavergonhada e orgulhosamente
didático. Ou seja, oferecer subsídios para que seu público-alvo possa entender,
compreender, discordar, criticar e se aprofundar nos temas que são trazidos à luz
ao longo dos capítulos.
5
O livro é composto por nove capítulos, e, com exceção do primeiro, de conteúdo
mais introdutório e propositivo, cada um deles segue a mesma estrutura básica:
1) Exposição Contextual da Teoria: seção que contextualiza o momento político,
jurídico e social no qual a teoria foi proposta, bem como explica suas principais
premissas e identifica seus mais destacados autores ou autoras; 2) A Teoria em
Pontos: seção que sumariza as proposições estruturais da teoria para solidificar
a absorção do conhecimento do leitor ou leitora; 3) Aplicação Jurisprudencial:
nesta seção, a teoria é vista desde sua aplicação na prática interpretativa do STF,
sem descuidar de comentários que explicam o contexto da decisão e de seu resul-
tado; 4) Guia de Leitura: esta seção tem por objetivo oferecer um guia de textos
para aprofundamento na teoria e subsídios bibliográficos para sua eventual crítica;
5) Questões para debate em sala: por fim, esta seção apresenta questões abrangen-
tes que visam incentivar discussões em sala de aula.
A partir do segundo capítulo, o livro aprofundará o embate entre a doutrina
da efetividade e as teorias liberais conservadoras sobre a eficácia e aplicabilidade
das normas Constitucionais. O Constitucionalismo dirigente, tese progressista de
ampla aceitação em nossa dogmática, e as teorias baseadas em autores liberais
igualitários, preocupados com a coordenação política, serão discutidos em capítu-
los próprios. O sexto capítulo tratará do Neoconstitucionalismo, denunciado como
uma teoria que favorece o ativismo judicial, e o seguinte, discorrerá sobre as teo-
rias do Diálogo Constitucional, pensadas como contenção à postura mais ativa do
Judiciário. Os capítulos oitavo e nono, tratarão das teorias desconfiadas do papel
proeminente que vem sendo assumido pela justiça constitucional e que enfatizam
o resgaste dos ideais democráticos, respectivamente, as teorias do Constituciona-
lismo Procedimental-Democrático e Radical.
Por fim, gostaria de agradecer, com todas as minhas forças, a todas as pessoas
que foram e são membros do Eccom. Tudo o que conquistamos até aqui só foi
possível graças ao esforço abnegado de cada um de vocês. Estejam certos e cer-
tas de que seguiremos fortes no propósito de contribuir com a educação jurídica
de qualidade, sem deixar de lado nossas origens Amazônicas. Torço para que as
vindouras gerações de juristas brasileiros possam dar seus primeiros passos nos
acidentados caminhos do Direito Constitucional assentado seus pés na trilha des-
bravada e pavimentada pelas linhas escritas por vocês.
Belém, setembro de 2022
Breno Baía Magalhães

6
​Capítulo 1

A IMPORTÂNCIA DA TEORIA
NO DIREITO CONSTITUCIONAL:
PANORAMA GERAL E
APRESENTAÇÃO DO CURSO
Breno Baía Magalhães1

1 POR QUE FALAR DE TEORIAS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL?

Falar em teorias no Direito Constitucional não é tarefa fácil ou temática que, em


verdade, desperte o interesse de muitas pessoas. Estamos condicionados a operar
nosso sistema jurídico sem nos preocuparmos com a formulação de um conjunto
de interpretações abstratas, coerentes e que, ao mesmo tempo, consigam explicar o
que ocorre na prática e prescrever critérios que nos permitam antever ou formular
soluções para eventuais conflitos constitucionais. Esse modo pragmático de encarar
o fenômeno constitucional pode dar a impressão de que prescindimos de teoria para
atuarmos na operação do Direito, mas essa é uma compreensão simplista sobre o
funcionamento dos sistemas jurídicos ou, no mínimo, em última análise, o ponto de
chegada de uma investigação científica2.
Se dispomos de uma Suprema Corte nos moldes do STF, um Executivo forte, um
Congresso bicameral e o emprego de teses acadêmicas nas manifestações das pes-
soas que operam o direito3, é porque debates acadêmicos embasaram essas escolhas
de arranjo institucional, estejam elas certas ou não. Dessa forma, não obstante sua
atuação mais confortável no campo abstrato e acadêmico, teorias sempre almejam
interferir na realidade, seja por meio da proposta de alterações formais no desenho
das instituições, seja por meio do exercício de influência interpretativa na Suprema
Corte. Ademais, uma boa teoria nos ajuda a compreender as práticas das instituições,
na medida em que intenciona atribuir racionalidade e previsibilidade às suas ações.

1
Professor de Direito Constitucional da UFPA. Coordenador do ECCOM.
2
Trechos inspirados em Dworkin (1997) e Dimoulis (2006).
3
De forma exemplificativa, podemos citar as seguintes teses constitucionais trabalhadas pela jurisprudência
recente do STF: Mutação constitucional, transcendência dos fundamentos determinantes, supralegalidade,
capacidades institucionais, entre outras.
8 curso de teorias constitucionais brasileiras

Uma postura cética em relação às teorias constitucionais pode favorecer a com-


preensão de que o STF toma decisões baseadas tão somente na tentativa de alcançar
o melhor resultado possível para o caso concreto, em uma demonstração de casuísmo
pragmático alérgico ao pensamento sistematizador4. O ceticismo e o instrumentalis-
mo pragmático podem criar entraves para paradigmas fundantes defendidos por juris-
tas brasileiros, tais como a ideia de “Estado Democrático de Direito”, “Democracia”,
“Constitucionalismo”, “Direitos Fundamentais”, e “Precedentes”, todos eles conceitos
valorativos cuja inteligência depende de formulações teóricas, sejam elas quais forem.
Percebam, entretanto, por mais paradoxal que seja, que o diagnóstico de uma
Corte pragmática e instrumentalizadora depende da formulação de um conjunto de
argumentos abstratos semelhantes a uma proposição teórica, não obstante uma teo-
ria contrária à existência e à necessidade de teorias constitucionais. Em síntese, só
teremos certeza sobre a correção desse funesto diagnóstico se empreendermos em
pesquisas que sigam alguma metodologia investigava complexa e trabalhosa.
No Brasil, ao menos formalmente, estamos acostumados e condicionados a pen-
sar o Direito Constitucional em termos teóricos. Para comprovar a assertiva, basta
uma rápida passada de olhos em qualquer sumário dos mais tradicionais e mais ven-
didos manuais de Direito Constitucional ou nos Projetos Pedagógicos das principais
universidades do país. Há teoria constitucional para todos os lados!
A quase totalidade dos materiais didáticos nacionais reserva um destacado es-
paço para explicar um conjunto de tópicos que perfazem o que denominam “Teoria
da Constituição”. Nessas seções, geralmente tratadas uniformemente e com conte-
údo parecidos5, alguns temas são titulares de cadeiras cativas da atenção dogmáti-
ca: constitucionalismo, classificação das constituições, aplicabilidade das normas
constitucionais, interpretação constitucional, poder constituinte etc.6. Em muitas
Faculdades de Direito do Brasil, o que inclui a Universidade onde ministramos aulas,
a Universidade Federal do Pará (UFPA), esses temas são objeto da disciplina “Teoria
da Constituição” 7.
Com efeito, o tratamento da teoria constitucional dispensado pela dogmática brasi-
leira, ou seja, aquele baseado em tópicos específicos debatidos por meio de disposição
temática semelhante, repetitiva e desacompanhada de aplicabilidade prática, não faz

4
Vieira (2002, p. 231) denunciou a postura consequencialistas da jurisprudência da Corte em seus primeiros
15 anos de atuação sob a Constituição de 1988, em detrimento de um desejável critério “principista”. Para o
autor, argumentos sensíveis à eficiência, utilidade, conveniência, oportunidade, segurança e governabilidade
gozam de preferência em relação à “própria normatividade” constitucional.
5
Em outra oportunidade, pude constatar que o tópico sobre “Normas Constitucionais”, um dos mais destacados
dentre aqueles que fazem parte da “Teoria da Constituição” brasileira, é desenvolvido por 10 Cursos e Manuais
de Direito Constitucional de forma, praticamente, idêntica (MAGALHÃES, 2020, p. 12-14).
6
Esse modelo de sumário pode ser constatado, exemplificativamente, nos livros de Marcelo Novelino (Direito
Constitucional, 2012), Alexandre de Moraes (Direito Constitucional, 2014) e Gilmar Mendes e Gonet Branco
(Curso de Direito Constitucional, 2019).
7
Na Faculdade de Direito da UFPA, a disciplina em comento é ministrada no 1º semestre do Curso e está es-
truturada com base na seguinte ementa: “Noções preliminares. Constituição e constitucionalismo. Supremacia
constitucional, poder constituinte e reforma da Constituição. Princípios constitucionais. Normas constitucionais:
aplicação e hermenêutica constitucional”.
breno baía magalhães (organizador) 9

jus à produção acadêmica mais substantiva sobre nossa Constituição. Ao longo desses
mais de 30 anos, autores e autoras nacionais tentaram decodificar o sentido do pacto
constitucional, a fim de desvelar a melhor forma de concretizarmos as normas cons-
titucionais por meio de formulações teóricas ambiciosas, universalistas, complexas e
pouco semelhantes entre si. Independentemente do tipo, se a didaticamente padroni-
zada ou a mais substancial e acadêmica, é inegável que não conseguimos pensar a
Constituição brasileira sem teorias.

2 O QUE É UMA TEORIA CONSTITUCIONAL? DO MODELO DA


JUSTIFICAÇÃO AO DO DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL

Souza Neto e Sarmento (2016, p. 183-184) sugerem que as teorias constitucionais


se caracterizam por serem formulações feitas por juristas que intencionam descre-
ver o fenômeno constitucional, enquanto, por outro lado, os filósofos constitucionais
estariam mais preocupados com a justificação racional do modelo mais adequado de
Constituição, ou seja, sua perspectiva seria mais prescritiva ou normativa. No entan-
to, os autores reconhecem que há elementos prescritivos nas teorias constitucionais,
e descritivos nas filosofias constitucionais, sendo, portanto, difícil estabelecer limites
claros entre ambos os campos do conhecimento constitucional.
As teorias constitucionais contemporâneas, prosseguem os autores, devem
combinar descrição e prescrição, partindo das Constituições vigentes, mas sem
manterem-se passivas diante de seu objeto analítico. Os autores, então, propõem
a ideia de reconstrução, segundo a qual o teórico deve refletir sobres os ele-
mentos constitucionais existentes de modo a, simultaneamente, atribuir coerên-
cia ao ordenamento vigente e aproximá-lo do ideário democrático e igualitário
(SOUZA NETO; SARMENTO, 2016, p. 237). Lunardi e Dimoulis (2013, p. 11),
por outro lado, sustentam que teorias constitucionais explicam a natureza e a
função de uma Constituição, enquanto Pereira (2018, p. 301) defende que elas
estudam os paradigmas que definem o conceito de Constituição, isto é, a expli-
cação da essência de seu ser.
Em crítica similar, Gomes (2020, p. 151) pontua que as teorias tradicionalmente
produzidas no Brasil podem ser enquadradas em quatro modos de abordagem ca-
racterizados por seu déficit sociológico: 1) ciência política, quando há a descrição
do comportamento institucional de modo realista; 2) filosofia política, caracterizada
pela formulação de prescrições idealizadas de atuação das instituições; 3) compara-
tivismo, quando o desenvolvimento teórico se escora na comparatividade acrítica e
injustificada e baseada na aplicação de prescrições estrangeiras em contextos políti-
cos e sociais diferentes e, por fim, 4) teorias da argumentação, elaboradas com foco
na lógica interna da argumentação da decisão judicial. Esses modos de abordagem,
prossegue o autor, produzem efeitos em pelo menos três dimensões: “na compreen-
são equivocada de processos sociais mediados constitucionalmente. Na crítica im-
pertinente à dinâmica desses processos sociais; na propositura de soluções inadequa-
das para os problemas identificados”.
10 curso de teorias constitucionais brasileiras

Explicar a natureza, descrever o fenômeno ou seu conceito e justificar prescri-


ções não são tarefas idênticas ou sequer complementares. No entanto, elas parecem
corresponder ao que denominaremos de modelo teórico da justificação. De acordo
com esse modelo, as teorias constitucionais são tidas como um exercício de justi-
ficação no sentido ralwsiano, ou seja, como argumentos que buscam convencer os
outros sobre a razoabilidade dos princípios sobre os quais nossas reivindicações e
julgamentos se baseiam, formulados a partir daquilo que pode ser considerado como
um consenso entre as partes discordantes8. Dessa forma, uma teoria constitucio-
nal precisa reconstruir os pontos considerados como reconhecidos e estabelecidos
pela prática, bem como prescrever os meios para a solução de casos constitucionais
(STRAUSS, 1999, p. 582-584). A seguir, delinearemos o procedimento analítico do
modelo da justificação.
Se, como propõe Schmiditz (2009, p. 31-43), teorias são mapas que articulam e
sistematizam respostas às questões suscitadas sobre um determinado assunto, elas são
representações necessariamente simplificadas, mas úteis e que nos auxiliam a navegar
em um determinado tema. Em razão da simplificação, mapas e teorias são lacuno-
sas, fazem recortes e escolhas para que possam ser aplicadas e interpretadas. Uma
nova metodologia cartográfica e as eventuais lacunas dos mapas existentes justificam
a crítica e a formulação de novas teorias. Tendo em vista que as teorias dependem das
respostas formuladas de acordo com os problemas ou acidentes de um fenômeno espe-
cífico, a escolha da teoria não pode preceder ao mapeamento do terreno, sob pena de
selecionarmos um “destino que se encaixe no mapa” e não o contrário.
Além de prescrições normativas, as teorias constitucionais precisam passar por
um importante e rigoroso teste de ajuste – devem estar aptas a descrever práticas,
eventos e interpretações constitucionais relevantes, sob pena de distanciarem-se do
que os juristas brasileiros consideram como elementos representativos do fenômeno
constitucional. Reprovar no teste do ajuste redunda na inutilidade das prescrições
normativas, uma vez que elas não serão capazes de fazer cumprir um dos principais
papéis a serem desempenhados por uma teoria da justificação que propõe compre-
ender a Constituição, qual seja, o de oferecer respostas sobre a natureza da Cons-
tituição brasileira e de como os juízes e demais atores políticos e sociais devem
interpretá-la e aplicá-la.
O modelo teórico da Justificação envolve um conjunto de prescrições sobre como
algum problema constitucional deve ser resolvido. De acordo com esse modelo, a
teoria constitucional justifica suas prescrições para os casos ou questões em que
há divergência buscando base nos acordos que existem dentro da cultura jurídica e
tentando estender os princípios acordados na prática. Dessa forma, a teoria constitu-
cional precisa reconstruir os pontos considerados como paradigmáticos pela prática,

8
Rawls (2001, p. 394) encarava o consenso como o compartilhamento de premissas reconhecidas pelos deba-
tedores como verdadeiras ou aceitáveis para o estabelecimento de um argumento operativo sobre questões
fundamentais. Esse aspecto consensual, ou seja, de compartilhamento de premissas, é representado pelos
paradigmas descritivos que embasam uma teoria constitucional.
breno baía magalhães (organizador) 11

mas deve, igualmente, prescrever meios para a solução de casos constitucionais, do


contrário, a teoria constitucional careceria de utilidade.
Prescrições são importantes - são os pilares de toda e qualquer teoria que subs-
creve ao modelo da justificação - e precisam ajustar-se ao texto e às práticas consti-
tucionais, caso contrário, correríamos o risco de trabalharmos com uma teoria tão
abstrata e desconectada da realidade constitucional que ela seria incapaz de oferecer
qualquer base segura para o intérprete resolver delicados problemas interpretativos.
Nesse sentido, a justificação implica a seguinte relação: prescrições normativas pre-
cisam ajustar-se ao texto e à prática constitucional para que uma teoria possa ser
considerada como constitucional, isto é, para sermos mais específicos, como uma
teoria apta a explicar a prática e justificar as prescrições cabíveis a um determina-
do texto constitucional. Por outro lado, caso não houvesse ajuste entre prescrição e
descrição, a teoria constitucional perderia seu aspecto jurídico e desaguaria em uma
filosofia política.9
De acordo com os autores citados que investigaram a epistemologia de nossas
teorias constitucionais, elas são mais prescritivas do que descritivas, o que significa
dizer que elas se preocupam muito mais com a formulação de prescrições sobre o
que deve ser feito do que em justificar a aderência dessas mesmas estipulações nor-
mativas ao texto ou à realidade do funcionamento constitucional de 1988. Portanto,
a prescrição desacompanhada da descrição acaba por descaracterizar o fazer teórico
como uma forma de justificação. Mas, então, qual seria a função dessas formulações
abstratas dentro do panorama da teoria constitucional brasileira?
Para dificultar ainda mais nossa investigação sobre como a ideia de teoria cons-
titucional é construída em nosso país, quase nenhuma perspectiva apresentada no li-
vro tentou racionalizar de forma justificativa sua empreitada, com exceção das teses
democráticas. As formulações metateóricas simplesmente condenam nossos esforços
à inutilidade por não seguirem o modelo da justificação, o que nos faz suspender a
discussão por ora para que possamos apresentar-lhes as principais teorias constitu-
cionais produzidas no Brasil pós-1988.

2.1 Apresentando as teorias constitucionais brasileiras

A doutrina da Efetividade e o Liberalismo Conservador:


o constitucionalismo dos anos 90

Esse par de teorias surge como rescaldo do conturbado processo constituinte e


põe em contraste duas posições sobre a estimativa do sucesso do projeto de 1988.
De um lado, autores progressistas temiam que o projeto transformador da Constitui-
ção não vingasse por conta do formalismo jurídico que impregnava a dogmática na-
cional da época e pela postura conservadora do Judiciário e do Centrão congressual.

9
Trecho fortemente inspirado em Fallon Jr (1999), o qual, por sua vez, emprega o marco teórico da teoria inte-
pretativista de Dworkin.
12 curso de teorias constitucionais brasileiras

Do outro lado, um grupo de juristas não poupou críticas ao projeto constitucional de


1988, caracterizado como ingovernável e inefetivo.
No campo teórico, a doutrina da efetividade focou suas atenções na concreti-
zação das normas constitucionais programáticas, exatamente aquelas que prescre-
viam os objetivos transformadores e emancipatórios da recém promulgada Cons-
tituição. Luís Roberto Barroso, Maria Helena Diniz, José Afonso da Silva e Celso
Antonio Bandeira de Mello, partindo de diferentes posições do espectro político
progressista e de categorizações normativas, convergiram em uma tese importan-
te: todas as normas constitucionais seriam capazes de produzir efeitos jurídicos,
portanto, todas estariam aptas a serem, em alguma medida, concretizadas judi-
cialmente. Ainda que, em um primeiro momento, a conclusão hoje pareça simples
e banal, ela era revolucionária para a época, uma vez que instigava a intervenção
judicial na concretização de preceitos que veiculavam políticas públicas e, princi-
palmente, direitos fundamentais sociais.
As teses desses teóricos deveriam servir de base para a interpretação constitu-
cional legitimadora da aplicabilidade direta das normas constitucionais garantidoras
de Direitos Fundamentais, ou seja, daquelas decisões judiciais que eventualmente
aplicarem normas constitucionais independentemente da interposição legislativa,
portanto, que se anteciparem à ação dos ramos políticos da República. A dependên-
cia da boa vontade da atuação dos ramos políticos poderia colocar em risco o projeto
de uma sociedade menos desigual ao condicionar a concretização da Constituição à
necessária atuação legislativa de um Congresso conservador e elitista.
Por outro lado, a ala intelectual dos constitucionalistas do Centrão atacou fe-
rozmente a legitimidade e a eficácia do texto de 88. Penso ser seguro afirmar que,
por enquanto, esse é o único conjunto teórico situado à direita do espectro político
nacional, não obstante ser a leitura corrente entre a classe política e, por vezes, Judi-
cial10. Para as teses conservadoras, representadas, principalmente, pelos professores
Manuel Gonçalves Ferreira Filho e Ives Gandra da Silva Martins, a Constituição de
1988 estaria fadada ao fracasso uma vez que ela partia do pressuposto de que seria
possível realizar engenharias sociais por meio das formas jurídicas, em detrimento
do regular uso da política como processo de tomada de decisões e do decurso na-
tural dos fatos sociais. Os autores defendem que há um sentido natural e correto
sobre o que deveria constar em normas constitucionais, cuja eficácia e efetividade
dependeriam da exclusão e afastamento de objetivos sociais e de ambiciosas políticas
públicas. Normas constitucionais condicionam a atuação do poder público, mas não
devem regulamentar as relações sociais.

10
Justamente por essa razão, essa linha teórica ganhou sobrevida após a ascensão da direita radical ao poder com
o Governo de Jair Bolsonaro. Infelizmente não há espaço para nos aprofundarmos mais sobre o conservadoris-
mo constitucional redivivo que traveste o bolsonarismo jurídico, entretanto, vale notar que os representantes
intelectuais da teoria em sua formação clássica têm retornado aos holofotes para justificar as ações autoritárias
do governo federal, como, por exemplo, a ameaça de intervenção militar em face de decisões do STF. Ver, no
capítulo próprio, as recentes manifestações de Ives Gandra.
breno baía magalhães (organizador) 13

Outras características que unem ambos os autores são a repulsa às influências de


ideologias e de partidos de esquerda no processo constituinte e, no caso específico
de Manoel Gonçalves, à ideia de que a Constituição de 1988 teria criado uma nova
perspectiva legitimadora do direito. De acordo com o autor, a movimentação política
de 87-88 teria significado tão somente a continuidade do poder constituinte legítimo
e verdadeiro de outrora, no caso, aquele exercido pelos militares em 1964. A Cons-
tituição de 1988 deve ser traduzida, portanto, como uma grande e profunda reforma
constitucional, mas não como o resultado do exercício de uma força constituinte
revolucionária. Em contraposição à doutrina da efetividade, as teses conservadoras
negavam efeitos jurídicos às normas programáticas.

Constitucionalismo liberal igualitário e Constitucionalismo Dirigente:


o constitucionalismo progressista dos anos 2000

A partir desse momento, saem de cena as teorias de autores confessadamente de


direita e passam a competir entre si teorias progressistas que operam no espectro da
centro-esquerda e da esquerda. Inicialmente, aqui estão em disputa autores socialis-
tas como Bercovici e sua teoria da Constituição dirigente; e social-democratas, como
Oscar Vilhena Vieira, que formula sua teoria liberal seguindo de perto os autores da
esquerda norte-americana.
Bercovici denuncia o principal risco democrático e de legitimidade que corremos
quando optamos por judicializar todas as normas constitucionais – a política acabaria
sacada da Constituição, em prol de uma racionalização jurídica que alienaria o povo
da tomada de decisões constitucionais. Sem que renuncie à tese de que as normas
constitucionais dirigem a política e de que a interpretação constitucional deve levar
em consideração os objetivos da República, o autor considera que a Constituição é,
soberanamente, norma política e, portanto, deveria ser posta em prática pelas forças
políticas, e não exclusivamente pelo Judiciário. A teoria da Constituição dirigente
defende, dessa forma, uma postura de transformação social por meio de projetos
políticos, sem cair na armadilha do empoderamento judicial.
Por outro lado, Oscar Vilhena Vieira defende um tipo de teoria constitucional con-
testada por Bercovici, baseada no procedimento da coordenação política por meio da
Constituição. São teorias que, muito embora progressistas em temas relativos à prote-
ção e à garantia irrestrita de direitos fundamentais individuais, compreendem que a
Constituição deve desempenhar uma função coordenadora da política ou meramente
procedimental. Normas constitucionais não serviriam para produzir transformações
sociais ou para dirigir a política, mas para coordenar o conflito político, desde que ele
não ultrapasse ou incida em violações aos direitos fundamentais. Dessa forma, mesmo
que emendas constitucionais desconfigurem os dispositivos constitucionais sobre polí-
ticas públicas e enfraqueçam as intervenções estatais na economia, a Constituição de
1988 pode manter-se resiliente, desde que sua identidade, seu núcleo duro, sua verda-
deira razão de ser permaneçam inalteradas. O Poder Judiciário, por sua vez, deve agir
de maneira assertiva na proteção e na criação de direitos fundamentais individuais.
14 curso de teorias constitucionais brasileiras

Neoconstitucionalismo e Teorias dos diálogos constitucionais:


o ativismo judicial e seu antídoto

Os anos 2000 testemunharam o surgimento de teorias constitucionais que apro-


fundaram os desdobramentos da doutrina da efetividade, como aquelas listadas no
tópico acima. Não por outra razão, muitos dos defensores do neoconstitucionalismo
foram influenciados pela efetividade constitucional ou foram, como no caso de Bar-
roso, um de seus precursores. O neoconstitucionalismo defende uma postura muito
mais proativa do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais, prin-
cipalmente por meio de um conjunto de critérios interpretativos franqueados pela
superação do positivismo jurídico, portanto, formulados a partir da influência da
moral sobre o direito.
Esses critérios interpretativos evidenciam particularidades da interpretação
constitucional (princípios e métodos), além de municiarem a Suprema Corte com
uma poderosa ferramenta para a solução de conflitos constitucionais: a ponderação.
Por meio desse postulado, a revisão judicial se desprende de parâmetros mais especí-
ficos e rigorosos, como aqueles emanados do binômio constitucional/inconstitucio-
nal e passa a atuar na seara da perspectiva do que é possível ser feito ou do que é mais
razoável de ser implementado por meio de políticas públicas.
Ao final dos anos 2000, o neoconstitucionalismo parece ter influenciado a dis-
cussão que culminou na explosão de estudos sobre o Ativismo Judicial no Brasil.
Como uma proposta teórica alternativa, ou seja, que pretendia refrear o ativismo
judicial neoconstitucional sem romper completamente com algumas de suas pre-
missas, as teses dialógicas ou do diálogo interinstitucional entraram em cena para
serem subministradas como um leve antídoto para aquele mal. A premissa básica
esposada pela maioria de seus adeptos é a de que a construção do sentido da norma
constitucional não prescindiria da atuação dos demais poderes políticos, retirando do
Judiciário o monopólio da última palavra sobre a Constituição. Ainda de acordo com
as teses dialógicas, seria importante para o Judiciário exercer posturas prudenciais,
principalmente aquelas que favorecem a sua contenção no exercício da fiscalização
de constitucionalidade das leis e, principalmente, o reconhecimento de uma maior
“capacidade institucional” dos poderes políticos para solucionar demandas específi-
cas e que exijam conhecimento técnico.

Constitucionalismo Democrático e Radical: a força


da democracia contra o constitucionalismo

Ao mesmo tempo em que as teorias neoconstitucionalistas tomaram


conta da pauta acadêmica da área, um pequeno grupo de juristas sediados
em Minas Gerais começaram a desenvolver teorias que se contrapunham
àquelas perspectivas amplamente aceitas em nossa dogmática. Sua principal
base teórica é a teoria discursiva do Direito proposta por Habermas, segundo
a qual a produção jurídica deve refletir o processo de participação popular
breno baía magalhães (organizador) 15

e, para tanto, alguns direitos fundamentais básicos devem ser garantidos aos
cidadãos, reservando à jurisdição constitucional um papel de garantidora dos
meios que viabilizem a participação democrática igualitária, e de respeito às
discussões axiológicas que resultem do procedimento democrático, única via
de aferição da correção constitucional de uma decisão política.
Mais recentemente, partindo da mesma verve progressista mas adicionando tem-
peros de radicalidade, um conjunto de teorias pretende se aproximar de posturas que
enxergam o processo de resgate da normatividade constitucional a partir da mobiliza-
ção popular, dando azo a um constitucionalismo popular de corte democrático, a partir
do qual a jurisdição constitucional deverá passar por alterações que a tornem mais
permeável à participação popular no processo de tomadas de decisões constitucionais.

2.3 Características comuns às Teorias Constitucionais Brasileiras

Explorando o terreno das meta-teorias, ou seja, o campo que dispõe sobre o que
há de comum entre perspectivas teóricas, a fim de formularmos determinações abs-
tratas sobre os elementos compartilhados que explicam o empreendimento das teo-
rias sob análise, pensamos ser interessante investigar alguns pontos característicos
das teorias constitucionais de origem brasileira. Para tanto, focarei em dois fatores
analíticos que serão tratados simultaneamente, quais sejam, as inspirações acadêmi-
cas e a natureza descritiva ou prescritiva da empreitada teórica. Por fim, apresentarei
um rol de temas que considero constituir o esqueleto de todas as teorias constitucio-
nais produzidas no país nos últimos 30 anos.
Souza Neto e Sarmento (2016, p. 185) afirmam que a experiência do constitucio-
nalismo brasileiro não tem sido original em qualquer uma de suas dimensões, uma
vez que nele é possível observar-se a combinação de “padrões comuns às experiências
de outros povos”. Lunardi e Dimoulis (2013) avaliam que a produção teórica nacio-
nal é limitada, pois não faz parte do projeto analítico do direito positivo investigar a
natureza material de nossa Constituição. Por essa razão, a despreocupação para com
o sentido político da Constituição de 88 e seu significado fazem com que, na opinião
dos autores, o debate permaneça “em alto nível de abstração”, aproximando-se de
uma filosofia política, e distanciando-se de uma teoria, propriamente, constitucional.
As afirmações pessimistas acima querem dizer que não fomos capazes de produzir
teorias constitucionais, mas tão somente pensamentos constitucionais adaptados ao
Brasil? Isto é, no lugar de descrições apuradas e prescrições originais, que levam em
consideração o estado social brasileiro e o funcionamento de suas correspondentes
instituições, nossos teóricos e teóricas acabaram por operar transplantes de teorias es-
trangeiras tidas como sofisticadas e modernas, reduzindo seu trabalho intelectual ao
mero ajuste circunstancial e à aplicação do modelo teórico alienígena ao Brasil?11

11
A resposta a esse questionamento, seguramente, não será dada dentro dos contornos deste pequeno ensaio,
ainda que o título do livro e do presente capítulo possam denunciar alguma preferência por parte deste que
vos escreve.
16 curso de teorias constitucionais brasileiras

De saída, não parece exagero dizer que nenhuma das teorias brasileiras aqui
estudadas parte de pressupostos filosóficos originais ou de perspectivas constitu-
cionais desenvolvidas, exclusivamente, em solo brasileiro. Dessa forma, cada uma
das teorias objeto de estudo pode ser reconduzida a uma contraparte correspondente
formulada por estrangeiros. As formulações alienígenas foram, portanto, incorpora-
das pelos teóricos nacionais para explicar o texto constitucional de 1988 com variado
grau de sucesso, ponto que servirá para explicarmos a natureza de nossas teorias12.
Curioso notar que muitos dos textos, artigos e livros utilizados como referências bi-
bliográficas primárias neste Curso não consideravam estar produzindo teorias, ao con-
trário do observado nos capítulos iniciais de nossos tradicionais Manuais e Cursos de
Direito Constitucional, os quais, não obstante seus objetivos didáticos, não deixam de
elaborar tópicos estudados sob a rubrica “Teoria da Constituição”. Essa particularidade
pode ser explicada, ao menos em parte, pela tradição do pensamento político brasileiro
de considerar sua própria produção como um produto subalterno, um subproduto das
verdadeiras teorias, dignas desse nome porque produzidas em território estrangeiro e
avaliadas como modernas e mais desenvolvidas (LYNCH, 2013).
A hipótese do transplante é reforçada pelo fato de as teorias constitucionais bra-
sileiras não dialogarem entre si, ou seja, não serem estruturadas como um esforço
conjunto de uma mesma comunidade epistemológica de pensadores e pensadoras
ocupada com a explicação, crítica, reimaginação e prescrição de nossas instituições
constitucionais. Os padrões teóricos internacionais são incorporados sem, por exem-
plo, confrontações e questionamentos sobre a pertinência da produção teórica estran-
geira13 e, do ponto de vista nacional, novas teorias são apresentadas sem que se esta-
beleçam pontos de diálogo com as anteriores, a fim de justificar uma nova proposição
interpretativa sobre o texto constitucional14.
Não estamos, destarte, lidando com teorias inspiradas por teorias constitucio-
nais estrangeiras, mas devidamente aclimatadas ao Brasil por meio de uma adap-
tação e contextualização politicamente localizadas de fórmulas universais. Antes

12
Sobre essa questão, Pereira (2018, p. 316) afirma que “os espaços de construção teórica estão localizados nos
Estados Unidos e na Europa, não no Brasil, nem mesmo nos marcos históricos de fundação do país. As ideias
constitucionais brasileiras não são aproveitadas nem resgatadas, e muito menos elevadas ao nível de teoria
da constituição. A se julgar pelos resultados da pesquisa, parece que não houve, neste país, intelectuais que
pensaram em termos constitucionais, ou se existiram, que não merecem figurar como paradigmas”.
13
Com as expressões “confrontações” e “questionamentos” quero dizer que a teoria estrangeira é incorporada
desacompanhada da justificativa do autor nacional sobre sua escolha e sem explicações sobre onde ela está
situada dentro do debate feito em seu país de origem. Não sabemos, por exemplo, se a teoria de eleição é am-
plamente aceita ou ferozmente contestada. Em síntese, as teorias importadas são utilizadas pelos pensadores
nacionais “abstraídas de sua respectiva experiência jurídica, como se fossem conceitos totalmente independen-
tes de seu contexto” (RODRIGUEZ, 2019, p. 167).
14
Em importante análise, Rodriguez (2019, p. 167) condena a forma de pensar dos escritos nacionais que importam
teorias estrangeiras impondo um horizonte de reformas nas práticas jurídicas locais que postula a necessidade
de “um zero absoluto a partir do qual algo melhor possa ser edificado”. Ao proceder dessa forma, demite-se da
“tarefa de refletir sobre as razões pelas quais nosso direito é como é e qual a sua racionalidade específica”.
breno baía magalhães (organizador) 17

pelo contrário, a linhagem de importação do pensamento é traçada de forma direta


no sentido Norte Global - Brasil15.
É possível dividir, em sua maioria, as teorias constitucionais brasileiras em um
campo de inspirações europeias e outro de inspiração norte-americanas16. No campo
europeu, estão teorias que beberam da fonte de trabalhos italianos da década de 60,
como as teorias de Crizaffuli, que orientam as teses da efetividade; as teorias france-
sas do século XVI da Separação dos Poderes, que influenciaram as teses conserva-
doras; e, vindas da Alemanha, temos a teoria procedimental democrática e a teoria
do constitucionalismo dirigente. Da América do Norte, vêm as teorias do diálogo, do
constitucionalismo liberal igualitário e do constitucionalismo popular. O neoconsti-
tucionalismo parece ter sido a única teoria gestada na América-Latina, no entanto,
ela é, em si, o amálgama de um punhado de teorias norte-americanas (o interpretati-
vismo e o progressismo de direitos fundamentais) e europeias (ponderação alexyana,
teorias do direito não-positivistas).

Tabela 01: Teorias Constitucionais Brasileiras e inspirações estrangeiras.

Região País de origem Teoria Constitucional Brasileira.


Europa França Conservadora
Itália Efetividade
Alemanha Dirigente
Democrática
América do Norte Estados Unidos Liberal Igualitária/Diálogo
Canadá Diálogo
América Latina México Neoconstitucionalismo
Fonte: elaboração própria.

Feitas essas considerações sobre a natureza transplantada e prescritiva de nos-


sas teorias, e, em vez de condenar precocemente à condição de cópia desnecessária o
tipo de formulação do pensamento constitucional brasileiro por não seguir o modelo
da justificação, o mais interessante, penso, é considerá-lo como mais um exemplo da
materialização, agora no campo do Direito Constitucional, da tradição do pensamen-
to político brasileiro de projetar a modernização institucional por meio da adoção de

15
Essa é a razão pela qual foi difícil identificar, como será visto em alguns dos capítulos seguintes, textos que apre-
sentassem críticas explícitas a alguma abordagem teórica específica. Quando não era o caso de verdadeira tábula
rasa teórica surda ao diálogo, as críticas a pensamentos contrários eram feitas indiretamente, por exemplo, por
meio de contraposição às teses estrangeiras que embasavam uma teoria nacional rival. Manobra que poderá ser
observada na crítica de Bercovici dirigida ao liberalismo estadunidense, e não aos seus adeptos conterrâneos.
16
Esse mesmo conjunto de inspirações já havia sido captado por Pereira (2018, p. 312), que atestou a utilização
de “marcos paradigmáticos” da teoria constitucional estrangeiras, situados nos “Estados Unidos e na Europa”.
18 curso de teorias constitucionais brasileiras

prescrições estrangeiras (LYNCH, 2013)17. Teorias Constitucionais em nosso país,


portanto, englobam os esforços epistemológicos formulados como propostas de
desenvolvimento, aperfeiçoamento e modernização das instituições que compõem os tó-
picos relativos à Teoria da Constituição – Poder Constituinte, Classificação das Constitui-
ções, Normas Constitucionais, Interpretação Constitucional18. Com efeito, em contrapo-
sição ao modelo da justificação, nossos teóricos lançam mão do modelo que denominarei
de desenvolvimento institucional.
Por exemplo, a doutrina da efetividade foi formulada como uma teoria a ser ins-
trumentalizada pelo Poder Judiciário pós-88, ou seja, como uma prescrição pen-
sada para instigá-lo a acompanhar as novidades do texto constitucional agora em
vigência, e não como uma construção teórica formulada para explicar como se fazia
Direito Constitucional no Brasil dos anos 8019. Pelo contrário, ela pretendia fornecer
justificativas teóricas para que a postura do Judiciário se alterasse favoravelmente à
perspectiva ideológica dos seus autores. Na época de sua criação e formulação ini-
cial, nada na prática do STF se aproximava de seus cânones prescritivos.
Muito embora a leitura dirigente de Bercovici seja uma das poucas preocupa-
das em buscar indícios textuais de sua pertinência constitucional, principalmente no
art. 3 da CRFB/88 e em outros dispositivos que indicam o interesse do Estado em
intervir na economia, ela enfrenta, contemporaneamente, dois problemas graves. A
teoria dirigente parte do pressuposto de que é incontestável a intenção dos cons-
tituintes de criar uma Constituição nesses moldes intervencionistas, alegação que
encontra dificuldades de sustentar-se enquanto descrição daquele momento político,
em face da ausência de um projeto constitucional básico e da intervenção conserva-
dora do Centrão na comissão de sistematização que desfigurou muito de seu aspecto,
inicialmente, dirigente. Por fim, e mais importante, as teses dirigentes têm de dar
17
Holmes (2022, p. 282-291) não descarta a influência prática das teorias, porquanto elas constituem epistemo-
logias políticas que orientam a “compreensão que têm os atores sociais de seus respectivos campos de ação”.
Dessa forma, governos e as cortes constitucionais operam com base no quadro de expectativas formulado por
perspectivas teóricas difundidas pela cultura jurídica. Sobre a correlação entre teoria e modernização, o autor
estipula que, ao vincular-se a filosofia política moderna europeia e influenciada pela busca de respostas para
o problema de nossa formação nacional em voga a partir dos anos 30, as teorias constitucionais brasileiras
hegemônicas (a da efetividade e dirigente), ocupam-se da formulação de soluções para a falta de modernidade
na experiência política nacional.
18
Dessa forma, pretendemos escapar do debate formulado por nossa ciência social a respeito da dicotomia idea-
lismo/realismo. Taxar nossas teorias constitucionais como exemplos de idealismo epistemológico não é sufi-
ciente para explicarmos suas funções e significados, servindo apenas para adiarmos uma discussão necessária,
uma vez que esse mesmo tipo de classificação binária, na qual os modelos idealistas são tidos como falhos, é
feita por autores e autoras que inspiram muitas de nossas teorias. Insistir na ideia de que o liberalismo igua-
litário brasileiro é uma teoria idealista por representar a importação de uma ideia fora do lugar, por ignorar a
ausência de um projeto constituinte liberal ou de fazer vista grossa a seus elementos dirigentes apenas trans-
feriria o problema de definição para a teoria norte-americana que lhe serviu de inspiração, ela mesma objeto
de críticas em todo semelhantes. Posner (1995, p. 172), por exemplo, denuncia o elevado nível de abstração,
forjado a partir de um raciocínio top-down, de teorias liberais como as de Dworkin, que partem da adoção de
uma teoria idealizada e utilizada para organizar, criticar, aceitar ou rejeitar alguns casos da Suprema Corte até
que eles se conformem à teoria adotada e gerem resultados futuros consistentes com suas premissas teóricas.
19
Souza Neto (2003, p. 17), adepto do modelo da justificação, por exemplo não considera que a doutrina da
efetividade possa ser encarada como uma teoria constitucional, tendo em vista tratar-se de “um movimento de
ideias e de ação, exibindo também uma dimensão política”.
breno baía magalhães (organizador) 19

conta da reforma constitucional liberalizante que amenizou o aspecto intervencio-


nista da Constituição. Nesse último caso, ou os proponentes do dirigismo mantêm
suas teses intocadas, com a consequente declaração de ilegitimidade de quase todas
as mais de 100 emendas constitucionais propostas até aqui, ou, a partir de 2000 este
enfoque perdeu seu fôlego por não conseguir mais descrever, confortavelmente, a re-
alidade constitucional brasileira. Por fim, na prática, o STF tem chancelado as refor-
mas constitucionais e legislativas trabalhistas e previdenciárias denunciadas como
neoliberais, ilegítimas e inconstitucionais pelos defensores desta teoria.
As teorias procedimentais mineiras, por sua vez, pesam ainda mais forte nas tin-
tas prescritivas20, porquanto seu objeto de crítica direta, a legislação que estrutura o
processo constitucional, direcionada à concentração política nas mãos do STF, bem
como as decisões do STF sobre questões políticas, tomadas sem que houvesse parti-
cipação popular, negam todos os preceitos básicos dessa teoria, conclusão capaz de
condenarmos todo o projeto constitucional brasileiro como antidemocrático.
Por fim, as teses do diálogo, enquanto teses descritivas, colocam em xeque todo o
constitucionalismo pré-2010, uma vez que inexistiam a figura do amicus curiae e das
audiências públicas na jurisdição constitucional, bem como não havia a preocupação do
STF com as capacidades institucionais dos Poderes em suas decisões. Ademais, as teo-
rias dialógicas não deixam claras suas intenções prescritivas – o STF já dialoga com o
Congresso ou deve fazê-lo? Se não o fizer, a decisão judicial será considerada ilegítima?
Lunardi e Dimoulis (2013, p. 16-17) consideram que as teorias constitucionais
brasileiras descrevem aspectos importantes do projeto constitucional de 1988, muito
embora pequem por serem parciais, isto é, não holísticas. As proposições teóricas
acolhem um elemento que consideram saliente do texto constitucional e formulam
suas prescrições a partir dele.
As prescrições parciais são, então, encaradas como medidas aptas a melhorar
algum aspecto da prática que tem produzido, de acordo com o diagnóstico de cada
teoria, resultados subótimos. O modelo teórico do desenvolvimento institucional só
pode ser explicado se calcado em algum ponto ou pontos considerados falhos na
prática constitucional. Por essa razão, na base dessas teorias, encontramos problemas
constitucionais dogmáticos, teóricos, políticos e sociais que precisam ser superados
pelas prescrições modernizantes.

Teoria Problema constitucional a ser superado


Efetividade A ineficácia das normas constitucionais sociais
Liberalismo Conservador Os excessos sócio-políticos do constitucionalismo
progressista
Dirigismo A hermenêutica instrumentalista liberal

20
Para uma perspectiva contrária, conferir David Gomes (2019).
20 curso de teorias constitucionais brasileiras

Neoconstitucionalismo O conservadorismo bloqueador e amoral do positi-


vismo jurídico.
Liberalismo Igualitário A timidez interpretativa da Justiça Constitucional na
concretização de Direitos Fundamentais.
Democracia Procedimental Os déficits democráticos da Justiça Constitucional
e Radical
Diálogos Os déficits democráticos da Justiça Constitucional

Com base no que será apresentado a partir do capítulo seguinte, pude identi-
ficar que as discussões sobre teoria constitucional brasileira nos últimos 30 anos
centravam-se em quatro temas, quais sejam: 1) a natureza da constituinte de 1988;
2) a eficácia das normas constitucionais; 3) os métodos interpretativos aplicáveis à
Constituição e 4) o papel do Poder Judiciário na concretização dos Direitos Fun-
damentais21. Argumento que esses quatro temas fazem parte de uma meta-teoria
constitucional brasileira, porquanto todas as formulações que pretendem explicar a
experiência constitucional brasileira se estruturam a partir deles.
A definição da natureza da constituinte de 1988 – A necessidade de explicarmos
teoricamente esse importante momento de nossa história constitucional recente está
no fato de a natureza do processo constituinte ainda não ter sido muito bem equacio-
nada pela teoria constitucional, a qual, a depender de suas premissas teóricas, atribui
a ele os mais diversos sentidos.
A institucionalização de um Congresso Constituinte em 1986 foi fruto de con-
cessões entre as alas políticas conservadoras e progressistas que almejavam obje-
tivos distintos com a transição democrática: os primeiros, uma profunda mudan-
ça constitucional; enquanto os últimos, uma Assembleia Constituinte. Para a ala
conservadora, o projeto de 88 representava tão somente a consolidação jurídica
das forças políticas que editaram a Constituição de 67; por sua vez, os progres-
sistas pressionaram por uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente para
confeccionar o novo texto constitucional, a evidenciar a completa ruptura com o
ordenamento constitucional anterior e a necessidade de repactuação de elementos
centrais da República.
A formatação pactuada e compromissária de nosso processo constituinte serve
de base para interpretações dissonantes do pacto, como as desenvolvidas pelos li-
berais conservadores (que condenam o pacto por sua natureza socialista, ao mesmo
tempo em que atuam para retardar seu suposto projeto transformador), liberais igua-
litários (que diferenciam os níveis de consenso obtidos na constituinte para definir o
conteúdo das matérias verdadeiramente constitucionais), dirigentes (que enxergam
na constituinte a produção de um claro projeto socialista de transformação social),

21
Ao tratarem das pautas inerentes à Teoria da Constituição no Brasil, Lunardi e Dimoulis (2013, p. 11) identifi-
caram os pontos 03 e 04 referenciados no parágrafo acima como tendo sido os objetos de maior preocupação
dos teóricos nacionais.
breno baía magalhães (organizador) 21

democratas-deliberativos (que assentam a inexistência de uma integração ética e va-


lorativa capaz de conferir sentido único ao pacto, em função das constantes rupturas
constitucionais e do pluralismo social e cultural inerentes à experiência brasileira) e
radicais (que consideram que nossa força constituinte não se equivale à institucio-
nalização de uma assembleia ou que tenha se esgotado em 88, permanecendo em
estado de latência no seio do povo).
A eficácia das normas constitucionais – A inserção de normas constitucionais
que estipulam objetivos políticos complexos a serem realizados e das que preveem
direitos sociais que demandam políticas públicas para sua concretização suscitou um
conjunto de debates acadêmicos que podem ser descritos, buscando inspiração na
formulação de Faria (1989), como batalhas a respeito do futuro da regulamentação
constitucional.
Em face de um projeto constitucional heterogêneo e incoerente impulsionado pe-
los conflitos ideológicos travados na constituinte, a teoria constitucional, principal-
mente aquela produzida nos anos 90, não estava tão preocupada com a interpretação
da Constituição, mas sim com a sua aplicabilidade. Portanto, o enfoque acadêmico
estava voltado ao passo que antecedia o momento da interpretação, uma vez que
era preciso determinar, em primeiro lugar, se as normas constitucionais seriam ju-
dicialmente aplicáveis, especialmente aquelas garantidoras de direitos sociais e de
objetivos coletivos, ou não, em casos concretos para, posteriormente, determinar os
métodos interpretativos.
Teorias mais conservadoras apostaram na aplicação limitada das normas trans-
formadoras e em seu viés programático para ressaltar sua natureza política e não
jurídica, enquanto as progressistas defenderam sua aplicação direta e a sindicabili-
dade judicial. O debate restrito aos critérios classificatórios propostos por José Afon-
so da Silva perdeu muito de seu apelo nos anos 2000, após a esfuziante vitória da
doutrina da efetividade na batalha sobre a regulamentação constitucional contra os
conservadores. Contudo, a disputa sobre os efeitos das normas constitucionais ainda
permanece sob nova roupagem. Travada sobre os escombros da anterior e com um
arsenal atualizado pelo neoconstitucionalismo, atualmente a disputa sobre os efeitos
das normas constitucionais toma forma nas divisões que marcam a aplicação de prin-
cípios e regras na jurisdição constitucional.
Como os conservadores não têm mais condições de negar normatividade às nor-
mas sociais, seus defensores passaram a caracterizá-las como princípios normativos
não concretizáveis com exclusividade pelo Judiciário, além de ressaltarem que, quan-
do aplica­dos, especial atenção deverá ser dada à separação de poderes e aos limites
orçamen­tários do Estado (reserva do possível). (KOERNER, 2018, p. 315).
Os métodos interpretativos próprios da Constituição - De acordo com formula-
ções teóricas sobre a interpretação constitucional popularizadas a partir do final da dé-
cada de 90, a concretização da Constituição brasileira poderia ser aperfeiçoada a partir
do emprego de métodos e princípios específicos que orientariam tal interpretação e,
muito embora alguns desses princípios e métodos estejam ancorados em postulados
22 curso de teorias constitucionais brasileiras

filosóficos e teóricos distintos, eles são, em geral, complementares, inexistindo uma


relação fixa e hierárquica entre eles22.
Os métodos, vetores, princípios e critérios interpretativos variam de acordo com
a postura teórica avençada pelos autores, e estão diretamente atrelados aos valores
esposados pela perspectiva teórica. Liberais conservadores têm preferência por uma
hermenêutica constitucional “clássica” herdada do civilismo característico da prática
jurídica brasileira pré-88 como estratégia de contenção dos veios socialistas da Cons-
tituição e de controle temporal das transformações sociais. Os neoconstitucionalistas
apostam no sincretismo teórico interpretativo para acelerar o processo transformador
a ser empreendido pelo Poder Judiciário, para isso, criam listas de princípios e méto-
dos interpretativos para dar conta dessa nova tarefa judicial. Partidários do dirigismo
constitucional elegem o art. 3º da CRFB/88 como o único vetor legítimo para guiar
a extração das obrigações constitucionais substantivas dos Poderes Políticos, o que
não significa relegar essa tarefa exclusivamente ao Judiciário ou defender uma in-
terpretação constitucional procedimental e discricionária. Liberais igualitários, por
sua vez, partem das cláusulas pétreas para extrair os critérios interpretativos a serem
utilizados pelo Poder Judiciário na concretização de Direitos Fundamentais, os quais
serão aplicados segundo uma lógica individualista, mesmo em se tratando daqueles
direitos caracterizados como sociais.
O papel do Poder Judiciário na concretização dos Direitos Fundamentais23 –
Muito embora ambos os temas não estejam necessariamente conectados, os estu-
dos teóricos sobre a Constituição brasileira, com vistas a assegurar a concretização
de seu viés transformador carreado pelos Direitos Fundamentais (GARGARELLA,
2018), reservam um espaço especial para justificar a legitimidade da atuação do Po-
der Judiciário na concretização das normas constitucionais instituidoras de Direitos
por meio do Controle de Constitucionalidade.
Essa característica faz com que as teorias constitucionais brasileiras sejam ju-
riscêntricas, porquanto direcionadas, quase exclusivamente, salvo poucas exceções,
ao papel desempenhado pelo Poder Judiciário na República (SOUZA NETO, 2003,
p. 02). Poucas linhas são gastas para explicar a responsabilidade política do Congresso
Nacional e da Presidência da República no processo de concretização constitucional24.

22
A compreensão sobre interpretação constitucional exposta no parágrafo acima pode ser encontrada na obra de
Inocêncio Mártires Coelho (2007).
23
Souza Neto (2003, p. 01) indica que a pauta do debate entre as teorias constitucionais brasileiras dirigentes e
as democrático-deliberativas é, em suas palavras, a seguinte: “em um regime democrático, qual é o papel do
judiciário na promoção da igualdade material e, especialmente, na concretização dos direitos sociais”.
24
A ausência é analiticamente insustentável, uma vez que nosso sistema político constitucional opera com base
na contínua interação entre os três ramos do poder. Por outro lado, precisamos reconhecer que a lacuna analí-
tica só se configura como um problema grave se o modelo de teoria adotado em nosso país fosse o da justifica-
ção. O enfoque solitário na atuação judiciária parece compreensível se levarmos em consideração o modelo do
desenvolvimento institucional: as teorias almejam, simultaneamente, justificar a atuação proativa do judiciá-
rio, educá-lo nas formas de aplicar a constituição e indicar os resultados substantivos de preferência.
breno baía magalhães (organizador) 23

Tendo em vista que nossos autores não precisam problematizar a legitimidade do


exercício do controle de constitucionalidade em nosso país25, o papel do Poder Judi-
ciário na concretização dos direitos fundamentais é estudado a partir das diferentes
concepções construídas em torno da ideia de democracia e da natureza dos direitos.
O neoconstitucionalismo, a doutrina da efetividade e o liberalismo igualitário,
posturas teóricas progressistas, enxergam a democracia como a tensa, mas possível,
junção entre a regra procedimental de maioria e os direitos fundamentais, tratando
como natural o casamento entre majoritarianismo e constitucionalismo. Os direitos
fundamentais são considerados como normas jurídicas diretamente aplicáveis pelo Po-
der Judiciário e capazes de sobreporem-se à legislação infraconstitucional quando vio-
ladas. O controle judicial da produção política, portanto, não é considerado como uma
atividade antidemocrática, cabendo, tão somente, discutir-se o grau desta intervenção.
Para o liberalismo conservador, a democracia não chega a ser majoritaranismo
puro, isto é, um regime político no qual apenas as decisões do legislador ordinário
representam, com fidedignidade, a vontade da maioria. Todavia, a condição de re-
ceptáculo da vontade popular confere à lei a condição de intangibilidade em relação
à função judicial no controle de constitucionalidade, isto quer dizer que a postura,
por definição, do Judiciário tem de ser a de prudente autocontenção. Por essa razão,
o ativismo é encarado como uma grave patologia judicial a ser combatida, uma vez
que os direitos fundamentais atuam, tão somente, como garantias de não intervenção
governamental na esfera de liberdade dos cidadãos.
Posturas que elegem a democracia como ponto de partida de suas análises, como
o procedimentalismo e o radicalismo, desenvolvem suas teses distanciando-se das
visões liberais sobre aquele regime político, o que lhes faz lançar um olhar mais
cético a respeito da intervenção judicial na concretização de direitos fundamentais
feita por meio do controle de constitucionalidade. Os direitos fundamentais são com-
preendidos como normas jurídicas de concretização não exclusiva pelo Poder Ju-
diciário, cuja tarefa de interpretar a Constituição deve levar em conta as decisões
morais e políticas tomadas no âmbito dos procedimentos majoritários, porquanto
representativos da manifestação do consenso possível dentro de uma democracia
pluralista como a nossa. Direitos fundamentais, com especial menção aos políticos e
sociais, são vistos como condições e requisitos para a estruturação, e não como um
objetivo da democracia política.

3 A IDEOLOGIA POLÍTICA DAS TEORIAS CONSTITUCIONAIS


BRASILEIRAS

Discutir ideologias políticas no Brasil é uma tarefa inglória, tendo em vista a fragili-
dade e difusão programática dos partidos políticos que operam no Congresso Nacional.

25
Diferentemente dos estadunidenses, há base constitucional expressa para o exercício do Controle de Constitu-
cionalidade pelo Poder Judiciário brasileiro.
24 curso de teorias constitucionais brasileiras

No entanto, o ponto é necessário para contextualizarmos o perfil das teorias e o que


elas dizem sobre nossa Constituição e, mais importante, sobre os projetos políticos que
podem ser acomodados por ela. Para tanto, vamos sugerir a localização das teorias
constitucionais dentro de um espectro ideológico hipotético, reconhecendo que corre-
mos o risco de sermos injustos com os efetivos posicionamentos políticos dos autores.
A dificuldade de correlacionarmos as teorias constitucionais com ideologias políticas
é agravada pelo fato de que, após 1946, os constitucionalistas terem deixado de figurar
como os grandes expoentes da construção das instituições nacionais. O distanciamento
entre a imaginação nacional político-institucional e o pensamento teórico constitucio-
nal pode ser explicado por um punhado de fatores, entre eles: a progressiva institucio-
nalização do Ensino Superior no Brasil, que relegou aos constitucionalistas a tarefa de
sistematizar a jurisprudência e explicar, formalmente, os textos constitucionais por meio
da dogmática; outra razão, penso, é a herança formalista que nos foi legada pelo constitu-
cionalismo produzido durante a ditadura militar, subserviente e voltado, exclusivamente,
à justificação dos atos autoritários (SILVA, 2015).
O empobrecimento do debate constitucional do senso comum jurídico, ou seja,
aquele veiculado por meio dos materiais didáticos acessados por milhões de es-
tudantes de Direito espalhados pelo Brasil afora, atingiu em cheio a dogmática já
caudatária da jurisprudência e do idealismo funcionalista. Além de não cumprir a
contento a tarefa de sistematizar e racionalizar os conteúdos jurídicos produzidos
jurisprudencialmente e academicamente, os manuais de direito constitucional ofere-
cerem argumentos abstratos, descontextualizados e opinativos, capazes de favorecer
o cumprimento de sua autoproclamada multifuncionalidade, qual seja, a de servir
como material didático para a graduação, de ser base de consulta para os operadores
do direito e de atuar como fonte de preparação para concursos públicos. A amorfia
viabiliza a transposição da argumentação constitucional para diferentes âmbitos do
campo social jurídico (salas de aula, fóruns, bancas de concursos públicos etc.), e sua
maleabilidade garante-lhe acomodação confortável em qualquer campo ideológico
(MAGALHÃES, 2020).
No entanto, sem desprezarmos o diagnóstico apresentado nos parágrafos ante-
riores, o recorte proposto por este livro favoreceu a produção acadêmica que, muito
embora distante da produção de um pensamento político-institucional propositivo e
reformista ao estilo do constitucionalismo pré-1964, foi formulada durante um pe-
ríodo de estabilidade constitucional e que teve como base o mesmo texto constitu-
cional. Some-se a isso, o fato de os autores dessas teorias, inevitavelmente, sofrerem
influências das ideologias que orientam suas visões de mundo, das ideologias que
animam as teses que importaram e, consequentemente, da direção interpretativa que
fazem do desenvolvimento institucional.
De acordo com Lynch (2015, p. 77), os discursos ideológicos inerentes à cultura
política apresentam as seguintes características:

[eles servem de] “mapas para que indivíduos e grupos sociais se orientam
em meio à complexidade e à opacidade do mundo; são defendidas por
breno baía magalhães (organizador) 25

grupos identificáveis que disputam a preferência daqueles que detêm o


poder e almejam justificar, contestar e transformar os arranjos e processos
sociais e políticos”.

Para o autor, a cultura política brasileira é atravessada pelo mesmo conjunto de


ideologias básicas existentes alhures, como o liberalismo, conservadorismo e socia-
lismo. Adaptadas ao solo brasileiro, elas podem ser divididas em, pelo menos, duas
grandes tradições intelectuais e ideológicas: o nacional-estatismo e o liberalismo
cosmopolita (LYNCH, 2015, p. 77; LYNCH, 2021, p. 48)26.
Em síntese, a ideologia política nacional-estatista enxerga no Estado o motor do
desenvolvimento, e para isso o ente público deve ser detentor de autonomia decisó-
ria para intervir ativamente no domínio socioeconômico. Essas seriam condições
para que a autoridade, liberdade e igualdades, carentes desde a formação do país,
sejam alcançadas. Institucionalmente, a centralização política e predomínio do Exe-
cutivo sobre o legislativo são suas marcas, enquanto o planejamento econômico e
nacionalização de setores estratégicos caracterizam sua veia socioeconômica. Mais
recentemente, especialmente durante os governos do PT, o nacional-estatismo tem
sido reelaborado na forma de um social-desenvolvimentismo, que busca conciliar o
crescimento econômico com a expansão da justiça social. Por essa razão, adotaremos
a última nomenclatura no restante deste tópico.
Por sua vez, o Liberalismo Cosmopolita bebe na fonte do liberalismo oligárquico
presente entre nós desde a Primeira República. Em lugar do Estado, a sociedade e
o mercado são os motores do desenvolvimento do país, portanto, o papel do Estado
tem de ser limitado para que os cidadãos possam, livres da tutela pública, alcançar
a plenitude de sua liberdade. Do ponto de vista político-institucional, o liberalismo
cosmopolita brasileiro adota fórmulas de dispersão do poder, como o federalismo, bi-
cameralismo e controle de constitucionalidade. Em razão de sua maior preocupação
com o Estado de Direito do que com a vontade da maioria, o liberalismo brasileiro
tende a favorecer a criação de mecanismos antimajoritários, como observado de sua
propensão ao reforço da jurisdição constitucional.

26
O autor, mais recentemente, tem contestado a tradicional divisão dicotômica das ideologias inerentes ao pen-
samento político-social brasileiro, uma vez que ela não dá conta dos ricos entrelaçamentos que podem ser
feitos com os modelos intelectuais básicos e suas nuances adquiridas na América-Latina. Como não é nossa
intenção adentrar, especificamente, nessa discussão, adotaremos a categorização dicotômica, sem embargo
de reconhecermos a acomodação limitada que ela oferece às teorias constitucionais brasileiras. Ao mesmo
tempo, a divisão dicotômica nesses termos é defendida por autores liberais, como Lamounier (2014, p. 139)
e socialistas, como Werneck Vianna (2004, p. 46-48). Não inserimos o comunismo como ideologia política,
uma vez que todas as teorias estudadas pressupunham a defesa de uma democracia liberal e suas instituições,
como o Estado de Direito, Separação de Poderes, Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais
(CITTADINO, 2000, p. 05).
26 curso de teorias constitucionais brasileiras

Ideologia Política Teoria Constitucional


Conservadorismo Reacionário Liberalismo Conservador
Liberalismo Cosmopolita Efetividade
Neoconstitucionalismo
Liberalismo Igualitário
Teorias do Diálogo
Social-desenvolvimentista. Constitucionalismo Democrático
Constitucionalismo Radical
Constitucionalismo Dirigente

Não é muito difícil situar o grosso das teorias constitucionais no campo progres-
sista, uma vez que, em sua maioria, elas estão preocupadas com a concretização de
direitos fundamentais, principalmente os das minorias políticas e sociais e das polí-
ticas públicas que atuam na redução das desigualdades sociais27. A aliança progres-
sista em prol da Constituição, que uniu nacional-estatistas e liberais cosmopolitas,
foi firmada na constituinte (LYNCH; 2020)28 e desestabilizada pela crise política que
assola o Brasil desde 2013.
Os autores e autoras situados no campo progressista reconhecem problemas es-
truturais semelhantes do Estado brasileiro, com especial destaque para a desigual-
dade social, e elencam o fortalecimento da normatividade constitucional como um
importante mecanismo de combate às mazelas sociais do país. Entretanto, e em sin-
tonia com seus respectivos vínculos ideológicos primários, as teorias constitucionais
divergem sobre os meios de implementação dessa pauta igualitária.
As teorias constitucionais Liberais Cosmopolitas apostam no exercício do pro-
cesso político natural como fiador da concretização de seu ideal de igualdade, em
atuação desacompanhada de incentivos estatais na economia. Em função de sua des-
confiança em relação à intervenção política estatal, especialmente aquela viabilizada
por meio do Executivo e do Legislativo, como propulsora da transformação social,
apostam na atuação das Cortes como as entidades capazes de concretização desse
objetivo por meio do exercício ativo da Jurisdição Constitucional. Via de regra, essas

27
Uso a expressão “progressista” para denotar as posições constitucionais caracteristicamente associadas a po-
sições ideológicas de esquerda, desde as organizadas em torno do projeto socialista científico ou marxista, até
aquelas de centro-esquerda, defensoras da social-democracia ou as liberais. Em comum, o projeto progressista
ocupa-se do combate às desigualdades por meio, entre outras soluções, de políticas públicas redistributivas
e da defesa de direitos de grupos minoritários. O trecho foi inspirado em Sultany (2012), Fernandes (2019) e
Bobbio (2011). A proposta não leva em consideração a compreensão do eleitorado brasileiro sobre a dicotomia
“esquerda x direita” (SINGER, 2002).
28
Cittadino (2000, p. 33) emprega as expressões “conservadores” e “progressistas” para referir-se aos agrupa-
mentos formados durante a constituinte. No mesmo sentido, conferir Pilatti (2008).
breno baía magalhães (organizador) 27

teorias não enxergam no projeto constituinte um acordo mais substantivo que aquele
decorrente de um consenso sobreposto segundo o qual, no mínimo, os direitos rela-
tivos à cidadania deverão ser universalizados.
O foco na Justiça Constitucional como redentora dos Direitos Fundamentais em
razão de sua natureza incorruptível, principiológica, mais bem preparada e livre dos
tradicionais problemas atrelados à cultura política brasileira, como o “jeitinho”, o
patrimonialismo e o nepotismo, expõe a tendência do liberalismo cosmopolita de
recorrer aos magistrados como a vanguarda burocrática apta a concretizar os direitos
fundamentais (LYNCH, 2013, p. 76), uma vez que o controle de constitucionalidade
tem por alvo os atos ou omissões do Executivo e do Legislativo. Mesmo as posturas
conciliadoras, aquelas que tentam domar o avanço do constitucionalismo liberal so-
bre a democracia, partem da ideia de que a postura deferente e predisposta ao diálogo
do Judiciário (como as teorias dialógicas) depende de sua avaliação substantiva pré-
via acerca da qualidade da produção dos Poderes Políticos.
Por outro lado, as teorias constitucionais social-desenvolvimentistas retiram do Po-
der Judiciário a responsabilidade de concretizar, solitariamente, o projeto constitucio-
nal emancipador de recorte, primordialmente, socialista. A participação popular entra
em cena como elemento central do constitucionalismo social-desenvolvimentista bra-
sileiro. Por essa razão, direitos políticos são pensados em termos de igualdade política
e de intervenção popular nos destinos políticos do país. Para que esses direitos sejam
alcançados, políticas sociais redistributivas são necessárias, com ênfase em direitos
sociais coletivos, tais como os relacionados à educação, saúde e trabalhistas.
Como consequência da igualdade política e socioeconômica, os arranjos insti-
tucionais da teoria constitucional do social-desenvolvimentista dão proeminência à
maior porosidade à participação popular no momento da criação da norma constitu-
cional, seja por meio de instrumentos de apoio ao exercício da Jurisdição constitu-
cional, como os amici curiae e as audiências públicas; seja por meio da ampliação
do debate popular na construção dos programas que guiarão a atuação da política
congressual ou, por fim, por meio da dissolução das categorias do constitucionalismo
liberal, dominadoras do ímpeto genealógico da força popular constituinte.
Como as leitoras e leitores puderam perceber, as teorias conservadoras não foram
incorporadas na categoria de ideologias liberais cosmopolitas29. Se a ideologia liberal
encontra sua contraparte local no cosmopolitismo; e a socialista, no nacional-estatis-
mo, seria imprudente catalogar o conservadorismo constitucional dentro destas pers-
pectivas ideológicas tradicionais. Isso porque essa perspectiva teórica constitucional
entrou em estágio de hibernação com a mudança do regime político organizada a
partir do Presidencialismo de Coalizão de FHC e do início de suas políticas sociais.
O acordo progressista na constituinte e o novo regime político fizeram com que, ao
menos no campo teórico, projetos políticos conservadores, próximos à extrema direita,
não recebessem maior atenção da dogmática constitucional.

29
Talvez por elas não se enquadrarem dentro das duas grandes linhas gerais propostas por Lynch (2013).
28 curso de teorias constitucionais brasileiras

A versão do liberalismo conservador30 trabalhada neste livro perdeu, completa-


mente, sua força no final dos anos 90 (ENGELMANN; PENNA, 2014, p. 195-196).
Entretanto, em razão do surgimento de uma coalização política conservadora (LYNCH,
2020, p. 259) formada pela elite financeira neoliberal, neopentecostais e militares,
que tomou conta da política brasileira desde 2013, os mais destacados representantes
do conservadorismo constitucional voltaram à tona como líderes intelectuais de uma
modalidade teórica ainda mais regressiva e conservadora.
O que diferencia a postura conservadora das posturas progressistas é sua in-
terpretação libertária dos direitos sociais, tidos como normas programáticas e não
sindicáveis judicialmente. No campo dos direitos individuais, advogam por uma in-
terpretação inspirada em valores éticos cristãos, o que implica a restrição de direitos
de populações vulneráveis, como os direitos reprodutivos das mulheres e da comu-
nidade LGBTI+. Institucionalmente, o liberalismo conservador defende uma forma-
ção política centrada em uma leitura estática da separação de poderes, que leva em
consideração as disposições literais da Constituição. São contrários, por essa razão,
a qualquer forma de ativismo judicial.

4 A INTERRELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA, A POSTURA DO STF E


AS TEORIAS CONSTITUCIONAIS

Na esteira do observado na experiência comparada, é possível sugerir que há


uma interrelação entre o regime político, a percepção social e acadêmica das solu-
ções jurídicas propostas pelo STF e a criação de teorias constitucionais (FRIEDMAN,
2004; KOERNER, 2013), como visto, em sua maioria, prescritivas e voltadas ao de-
senvolvimento institucional. O que ainda não está muito claro é como estabelecer a
ligação direta entre regime político e teorias constitucionais na prática do STF.
Logo após a constituinte, disputavam espaço acadêmico e prático as teorias da
efetividade e conservadoras. A primeira apostava na defesa da eficácia jurídica das
normas programáticas que recheavam a nova Constituição e que clamavam por regu-
lamentação do Congresso Nacional, órgão que estava às voltas com a estabilização
da ordem política e do controle inflacionário. Por sua vez, as leituras conservadoras,

30
Lunardi e Dimoulis (2013, p. 12) preferem chamar essa corrente teórica de “liberalismo patrimonialista”.
Segundo os partidários desse modelo de constitucionalismo, apesar das aparências e retórica, a Constituição
de 88 tratar-se-ia de uma Constituição liberal-patrimonialista, que objetiva garantir direitos individuais de
propriedade e limitar a intervenção estatal na economia. Direitos sociais, não obstante a retórica constitu-
cional, seriam disposições programáticas, e, portanto, incapazes de exercer força vinculante semelhante aos
direitos individuais e patrimoniais, e, ademais disso, estes devem ser interpretados de maneira restritiva e de
forma a não atingir a tutela do patrimônio dos particulares. Engelmann e Penna (2014, p. 188) seguindo de
perto os embates constituintes, preferem atribuir aos autores que defendiam a ingovernabilidade da Constitui-
ção e a inefetividade das normas sociais, a nomenclatura de “constitucionalistas conservadores. Preferimos
posicionar esta linha teórica mais à direita do espectro político, aproximando-a do conservadorismo, para
diferenciá-la do liberalismo cosmopolita da esquerda americana que tem influenciado a produção constitucio-
nal brasileira. O liberalismo conservador brasileiro justifica-se pela forma com que essa ideologia política foi
incorporada ainda no Império, justificadora da escravidão, das desigualdades sociais, do elitismo social e por
práticas autoritárias (WOLKMER, 2003, p. 128).
breno baía magalhães (organizador) 29

críticas da ordenação constitucional, reputavam que o país seria ingovernável caso as


normas programáticas fossem concretizadas, por essa razão, insistiam em sua feição
política, diretiva e não dirigente. Em trabalho pioneiro para a época, e como forma
de balanço da atuação do STF durante seu primeiro decênio de funcionamento sob
a nova República, Oscar Vilhena (2002) defendeu que o tribunal fora omisso na pro-
teção dos direitos fundamentais e que estava mais preocupado com a manutenção e
chancela dos projetos econômicos do Executivo. Portanto, talvez a teoria explicativa
da ação do STF fosse a liberal conservadora, muito embora na dogmática esta fosse
a posição minoritária.
Com a chegada de FHC ao poder e, principalmente, por conta do direcionamento
que imprimira ao bloco político conhecido como “Centrão”, ajudando a formatar
o Presidencialismo de Coalizão, foi possível controlar os índices inflacionários por
meio do plano Real, emplacar o realinhamento neoliberal da Constituição, ao mes-
mo tempo em que houve a promoção de importantes políticas redistributivas. Nesse
período, o embate teórico principal estava centrado entre os autores progressistas do
social-desenvolvimentismo e do liberalismo cosmopolita.
Os sociais-desenvolvimentistas foram críticos das propostas de reforma constitu-
cional do primeiro governo FHC que enfraqueceram o papel do Estado como motor
do desenvolvimento econômico, e que colocaram em risco seu projeto transformador e
dirigente, além de terem conferido mais poderes ao STF, por meio da regulamentação
das ações em controle concentrado. Por outro lado, os autores liberais-cosmopolitas
defendiam a teoria liberal igualitária e a promoção de direitos fundamentais, inclusi-
ve sociais, e, concomitantemente, as reformas constitucionais liberalizantes de FHC,
sob a argumentação de que elas não seriam capazes de afetar a reserva de justiça da
Constituição, ou seja, as suas cláusulas pétreas. Economicamente, o colapso do socia-
lismo acentuado pela queda do muro de Berlim e o maior alinhamento aos projetos de
liberais norte-americanos acabaram por enfraquecer as teses do constitucionalismo
dirigente em favor das perspectivas liberais-igualitárias ao final dos anos 2000.
A postura mais receptiva da Corte às teorias estrangeiras e a renovação de sua
composição proposta pelo governo Lula foram catalizadores para a proliferação de
teorias em disputa por influência jurisprudencial e acadêmica. Durante os anos 2000,
preocupados com a centralização das disputas no STF decorrentes da concentração
proposta pelo governo FHC, cioso de que sua plataforma de desestatização ficasse
barrada na justiça de primeiro grau, a escola mineira urgiu pela volta da participação
popular ativa no processo de construção do sentido constitucional. Ao mesmo tempo,
com a perda de fôlego do dirigismo econômico estatal e das teorias dirigentes, o neo-
constitucionalismo assumiu a dianteira acadêmica, a partir da pauta distributiva e de
proteção de direitos sugestionada pelo governo Lula. Nesse período, por exemplo,
foram ratificadas pelo STF muitas de suas políticas públicas (cotas, PROUNI, células
tronco, liberdade de imprensa etc).
Ao final da primeira década do século XXI, a atuação, agora descrita como ati-
vista ou supremocrática, do STF incentivou a construção de uma teoria que buscava
30 curso de teorias constitucionais brasileiras

refrear a atuação do Tribunal, principalmente, na seara política. As teorias dialógicas


prescrevem que o STF ouça com atenção aos reclamos vindos do parlamento e que
suas decisões levem em consideração a perspectiva política inerente às decisões con-
gressuais, e, por fim, que suas decisões sejam tomadas com base em interações cons-
tantes com os poderes eleitos. Enquanto, por sua vez, o constitucionalismo radical
aposta na adoção de um modelo fraco de revisão constitucional, pontual e que conte
com a participação ativa da população na formatação do sentido constitucional.
Analiticamente, não é possível afirmar que a Suprema Corte tenha adotado alguma
posição teórica de forma expressa, o que nos impede de estabelecermos a formulação
de um regime jurisprudencial no Brasil, uma vez que o STF não segue padrões básicos
coerentes e homogêneos em suas decisões (MENDES, 2017, p. 143 e 152). Ao mesmo
tempo, as mudanças de postura da Corte são influenciadas, entre outros fatores, pelo
ambiente intelectual em que está imersa (KOERNER, 2018, p. 317). O desafio teórico é
explicar como essa influência ocorre na prática argumentativa do tribunal.

Governo Período Ideologia Postura do Teoria Constitucional


Política STF Preponderante
do Governo

Efetividade/Conserva-
Sarney 1985-1990 Direita Autocontido
doras

Efetividade/Conserva-
Collor/Itamar 1990-1995 Direita Autocontido
doras

Dirigente/Liberalismo
Centro- -igualitário/Neocons-
FHC I e II 1995-2003 Assertivo
Esquerda titucionalismo/Demo­-
cráticas

Lula I e II 2003-2011 Esquerda Ativista Neoconstitucionalismo

Diálogos/Neoconstitu-
Dilma I e II 2011-2016 Esquerda Ativista cionalismo/Liberalis-
mo/Democráticas

Temer/ Direita/Extre- Iluminismo/Crises


2016 - ?
Bolsonaro ma Direita constitucionais
Capítulo 2

A DOUTRINA DA EFETIVIDADE
CONSTITUCIONAL
Fabrícia dos Santos Santos1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA.

No final da década de 60, José Afonso da Silva


lançou o germe do que viria a ser a doutrina da efetivi-
dade com a publicação de sua hoje clássica monografia
intitulada Aplicabilidade das normas constitucionais,
cuja tese central, revolucionária para a época de enrijeci-
mento ditatorial no Brasil, assegurava a todas as normas
constitucionais algum grau de eficácia jurídica. Sua tese
foi amplamente recepcionada por setores progressistas
que exergavam na tese da aplicabilidade constitucional
uma for­ma de proteção de direitos fundamentais, princi-
palmente aqueles de natureza prestacional. Ao defender
que todas as normas constitucionais gozavam de alguma sorte de eficácia jurídica
e aplicabilidade, a tese de Silva favorecia a atuação judicial como via de sua con-
cretização.
Em face de um ensino jurídico formalista, de um ambiente político domi-
nado pelos militares e de uma postura conservadora dos agentes que ocupavam
cargos no Poder Judiciário à época, as teses de Silva surtiram poucos efeitos práti-
cos nos anos 60 e 70. Por essa razão, na década de 80, autores nacionais buscaram
aprimorá-las por meio do reforço da tese segundo a qual as normas constitucionais
seriam capazes de conferir direitos jurídicos às pessoas, bem como que poderiam
ser diretamente aplicadas pelo Poder Judiciário. Destacam-se, nesse campo, as teses
de Ayres Britto/Celso Bastos e a de Celso Bandeira de Mello.

1
Discente do 7º período do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do grupo de
pesquisa “Controle de Constitucionalidade” e do Eccom.
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Cons-
titucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
32 curso de teorias constitucionais brasileiras

Com a chegada da nova Constituição em 1988, e inspirado


pelos autores que lhe antecederam no estudo das normas cons-
titucionais, Luís Roberto Barroso propôs que os intérpretes do
Direito Constitucional também voltassem sua atenção à efeti-
vidade das normas constitucionais, e não apenas à sua aplica-
bilidade. A doutrina da efetividade foi, incialmente, apresen-
tada em 1990 no livro O Direito Constitucional e a
Efetividade de suas Normas
Com base em uma premissa centrada na efetividade social
e jurídica das normas constitucionais, esta vertente teórica
partiu das críticas feitas às teses focadas, exclusivamente, na
aplicabilidade das normas para adotar como objetivo de estudo a estipulação de um
equilíbrio a partir do qual as normas constitucionais pudessem ser desenvolvidas para
atender às várias situações condicionadas pelos âmbitos social e político do país. Nesse
sentido, com a efetividade espera-se que os dispositivos constitucionais legitimamente
positivados sejam disciplinados com exatidão e constância, a fim de que, com isto, os
poderes públicos e os interesses da elite dominante não os deturpem.
A Constituição de 1988, nesse sentido, disporia de um traço distintivo das demais
cartas constitucionais anteriores, a saber, sua ampla legitimidade e vocação para a
justiça social. Isso porque as constituições brasileiras pretéritas foram inseridas em
ambientes nos quais ocorriam — com frequência — violações ao valor normativo
dos dispositivos constitucionais, haja vista que o sistema normativo e, consequente-
mente, a força normativa da Constituição estava à mercê de uma elite estreita, patri-
monialista e desinteressada em garantir direitos básicos à população. Nas palavras
de Barroso (2019, p. 408):

A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais


aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade
normativa. Como consequência, sempre que violado um mandamento cons-
titucional, a ordem jurídica deve prover mecanismos adequados de tutela
– por meio da ação e da jurisdição -, disciplinando os remédios jurídicos
próprios e a atuação efetiva de juízes e tribunais.

Barroso (1996, p. 76) conceitua “norma” com base na perspectiva de José Afonso
da Silva, para quem é constitucional toda e qualquer norma jurídica inscrita em uma
Constituição rígida. Essa última, dotada de supremacia, situa-se no vértice do orde-
namento jurídico, servindo como fundamento de validade para todas as demais nor-
mas. Barroso (1996, p. 82-83) pontua que as teses de Silva se ocuparam da eficácia
jurídica das normas constitucionais, ou seja, sobre a capacidade da norma produzir
efeitos, mas não da investigação acerca da efetividade concreta desses efeitos. Em se-
guida, postula que seu objeto de estudo está voltado à eficácia social da norma cons-
titucional, ou seja, para os mecanismos aptos a garantir “sua real aplicação”. Citando
Kelsen, o autor pontua que, em sua visão, a efetividade não se confunde com a vigência
da norma, muito embora dependa de sua eficácia jurídica, uma vez que está voltada à
breno baía magalhães (organizador) 33

capacidade de uma norma ser aplicada e observada, conformando a conduta humana


na ordem fática3. Efetividade, portanto, é:
A realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela
representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e sim-
boliza a aproximação, tão intima quanto possível, entre o dever-ser norma-
tivo e o ser da realidade social (BARROSO, 1996, p. 83).

Dessa forma, graças à característica supracitada, as normas constitucionais pressu-


põem um plano de ação conjunta para sua efetividade. Elas emanam, assim, força efe-
tivamente jurídica e moral. O plano da eficácia jurídica satisfaz-se com o cumprimento
espontâneo da regra, no entanto, a efetivação de algumas prescrições constitucionais
podem encontrar resistência caso “contrarie[m] interesses particularmente poderosos,
influentes sobre os próprios organismos estatais, os quais por acumpliciamento ou im-
potência relutarão em acionar os mecanismos para impor sua observância compulsó-
ria”. Ao jurista, por sua vez, cabe a tarefa de formular estruturas lógicas e prover meca-
nismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas (BARROSO, 1996, p. 84).
A partir desses pressupostos, formulam-se os seguintes postulados sobre a efeti-
vidade constitucional:
1. A eficácia jurídica das normas constitucionais traduz-se, tão-so-
mente, na sua aptidão para produzir efeitos e na possibilidade de
sua aplicação;
2. A eficácia social, por sua vez, diz respeito à concretização do comando
normativo, isto é, à sua força operativa no mundo dos fatos;
3. É papel do jurista garantir a eficácia social das normas constitucionais
por meio da investigação dos instrumentos e mecanismos necessários à
realização, na prática, das diretrizes constitucionais;
4. A efetividade dos preceitos da Constituição significa o desfrute real
dos interesses e bens jurídicos tutelados constitucionalmente, tal como
positivados.
Com efeito, a afirmação da normatividade da Constituição é uma das principais
consequências da guinada experimentada pela teoria constitucional progressista a par-
tir da reabertura democrática e, especialmente, desde a entrada em vigor da Constitui-
ção Federal de 1988. Nessa perspectiva, a teoria da efetividade surge como uma dog-
mática que propõe assegurar o cumprimento do potencial democrático e emancipatório
previsto no texto constitucional. Nas palavras de Cláudio Neto (2006, p. 260):
Em face da antiga Ordem Constitucional, tal vertente do pensamento jurídico
brasileiro [progressista] tendia a assumir uma posição crítica, denunciando

3
Por fim, seria uma teoria baseada em uma demanda positivista (direito constitucional é norma) e de um critério
formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos (se está na Constituição, é para ser cumprido)
(BARROSO, 2019, p. 409).
34 curso de teorias constitucionais brasileiras

seus compromissos ideológicos conservadores. Todavia, instaurado o am-


biente democrático, passou a compreender que seu papel não mais seria o de
criticar o caráter ideológico da Constituição, mas precisamente o de desen-
volver mecanismos dogmáticos e processuais capazes de garantir a efetivação
de seus “potenciais emancipatórios”

Os juristas progressistas, dos quais Luís Roberto Barroso fazia parte, opu-
nham-se aos regimes totalitários, como o regime militar que subjugava o Estado
brasileiro, teciam críticas ao caráter ideológico do direito positivo (e ao positivismo
jurídico) e denunciavam a insinceridade normativa das elites4.
Como explicado por Barroso (1996, p. 03), a Constituição de 1988 trazia consigo a
tensão entre a possibilidade de concretização de valores elevados e os limites impostos
por uma ordem jurídica cooptada pela “vontade da classe dominante”. Constituições,
em razão de suas pretensões de espelhar a sociedade e constitucionalizar suas aspira-
ções vindouras, inevitavelmente albergarão em suas normas “aspirações muitas vezes
antagônicas” decorrentes do conflito de classes. A solução dessas tensões se dá pela
absorção desse confronto por “mecanismos institucionais, subordinando-o a regras le-
gitimamente estabelecidas e válida para todos”. (BARROSO, 1996, p. 49).
Tendo em vista sua compreensão da Constituição brasileira como um pacto polí-
tico compromissário firmado entre classes, cujo substrato está composto por interes-
ses sociais e políticos conflitantes que precisam ser canalizados institucionalmente,
Barroso (1996, p. 61-62) reconhece que alguns dispositivos contemplarão diretivas
de cunho social desprovidas de garantias efetivas de concretização, os quais serão
alvo de resistência por parte de “setores econômicos e politicamente influentes”.
A posição de classe dominante desses setores lhes permite controlar a efetivação das
normas constitucionais de combate às desigualdades sociais por meio da retórica
insincera de que elas só seriam aplicáveis após complementação legislativa infra-
constitucional.
Para os progressistas brasileiros, a Constituição de 1988 representava, simul-
taneamente, uma trincheira de resistência contra arbítrios estatais e uma carta pro-
gramática de viés emancipatório, capaz de criar uma utopia social igualitária. Por
essa razão, uma das técnicas da teoria brasileira progressista passou a ser a defesa
do incremento da força normativa da Constituição de 88 (SOUZA NETO, 2006,
p. 262). E essa defesa só poderia ser feita por meio de uma dogmática de natureza
prescritiva, e não por meio de uma síntese teórica formulada com base na realidade
do direito constitucional brasileiro dos anos 80.5

4
A “insinceridade normativa das elites”, nos termos de Luís Roberto Barroso, é uma farsa construída pelos gru-
pos de poder para ocultar a violência, o privilégio e a miséria por detrás da fachada constitucional copiada do
mostruário liberal-democrático. Isto é, a elite social, política e econômica, por conveniência, invoca os eleva-
dos direitos incorporados ao patrimônio da humanidade (representação popular, sufrágio universal, liberdades
públicas, direitos humanos, etc), mas cuida para que não se tornem efetivos. (BARROSO; 2003, p. 62).
5
“Tem-se por objetivo, sobretudo, resgatar a contemporaneidade e incutir na prática real do Estado e da socie-
dade os valores mais elevados da civilização, em sua maior parte disponíveis e não assimilados” (BARROSO,
1996, p. 03).
breno baía magalhães (organizador) 35

Tendo diante de si um direito positivo, fornecido pela Carta de 1988, favorável ao


projeto de uma sociedade mais justa e igualitária, os autores progressistas considera-
ram que sua tarefa não era mais trabalhar na justificação dessa projeção, mas em sua
efetivação. O modelo teórico da efetividade se completa com o desenvolvimento de
uma série de mecanismos processuais adequados à realização judicial das diretrizes
constitucionais – o processo constitucional é concebido, portanto, como um instru-
mento de realização do programa inscrito nas normas fundamentais da República
(SOUZA NETO, 2006, p. 267).
É um mérito do constitucionalismo da efetividade ter mudado a percepção da força
normativa da Constituição no Brasil, contribuindo, decisivamente, para a superação da
tese de que o documento constitucional era apenas uma proclamação política ou retórica.
Portanto, a partir da afirmação da efetividade, a Constituição se estabeleceu como uma
norma jurídica suprema e que deveria ter um plano de eficácia garantido. Barroso (2009,
p. 35-36) faz questão de pontuar essa particularidade da doutrina da efetividade, com o
intuito de afastar as críticas sobre a substituição da política pelo Direito Constitucional.
Em sua defesa, o jurista afirma que a doutrina da efetividade não substituiu a política pelo
direito, apenas auxiliou a norma constitucional a elevar-se ao patamar jurídico.
Nesse viés, o constitucionalismo da efetividade atinge todas os tipos de nor-
mas constitucionais. Barroso verifica que a Constituição apresenta três tipos de
normas, são elas: as normas de organização6, as normas definidoras7 de direitos e
as normas programáticas8. A proposição de Barroso sobre a classificação das nor-
mas constitucionais serve de complemento à tese da efetividade, e ambas operam
como uma “estratégia interpretativa” para convencer um judiciário conservador do
final dos anos 80 de que as normas definidoras de direitos albergavam interesses
subjetivos capazes de serem imediatamente concretizados judicialmente (CLÈVE;
LORENZETTO 2016, p. 46).
Sendo assim, com o fim de evitar abusos e a hipocrisia discursiva e política das
elites, o Poder Judiciário é instituído pela doutrina da efetividade como intérprete
maior das normas jurídicas e titular da competência de aplicá-las em casos contro-
vertidos, sem que precisasse aguardar a boa vontade da regulamentação vinda do
Congresso. Barroso, forte nessa premissa, indica dois caminhos a serem percorridos
para ensejar a efetivação dos comandos constitucionais:

O primeiro deles, que denominei PARTICIPATIVO, liga-se, essencialmente,


à atuação fiscalizadora da sociedade civil, por seus diferentes organismos.

6
São normas de organização as normas determinadoras da estrutura do Estado, instituidoras de poderes e
definidoras de competência. Assim, elas se referem diretamente à organização e funcionamento do Estado,
à articulação de seus elementos primários e ao estabelecimento das bases da estrutura política (BARROSO,
1996, p. 68).
7
As normas definidoras de direito dizem respeito à reserva do vocábulo “direito” às situações que se caracteri-
zem por sua pronta exigibilidade, correspondendo a um dever jurídico, realizável por prestações positivas ou
negativas (BARROSO, 1996, p. 71).
8
Classificam-se como programáticas as normas constitucionais delineadoras de um fim a ser alcançado ou de
um princípio a ser observado, sem especificar as condutas a serem seguidas (BARROSO, 1996, pp 75).
36 curso de teorias constitucionais brasileiras

O segundo, identificado como JURÍDICO, consiste na utilização e esgota-


mento do receituário legal disponível pela tutela jurisdicional dos direitos
constitucionais. (BARROSO, 1996, pp. 78).

Portanto, para além da atuação social, o Poder Judiciário torna-se protagonista


da efetivação das normas constitucionais. Desse modo, a doutrina da efetividade
assegura ao Judiciário que ele é competente para aplicar normas constitucionais,
mesmo as programáticas e, especialmente, as definidoras de direitos fundamentais
(BARROSO, 1996, p 82).
Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição tenha criado direitos
subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são eles, como regra,
direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via
das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamen-
to jurídico. O Poder Judiciário, como consequência, passa a ter papel ativo e
decisivo na concretização da Constituição (BARROSO, 2009, p. 36).

2 A TEORIA EM PONTOS

● A Constituição deve conter-se, sem que perca sua vocação prospectiva


e transformadora, em limite de razoabilidade no regramento das rela-
ções de que cuida, para que, dessa forma, não comprometa seu caráter
de instrumento normativo da realidade social;
● Todas as normas constitucionais dispõem de eficácia jurídica, são im-
perativas e sua inobservância espontânea configura violação de obriga-
ção jurídica passível de reparação;
● As normas constitucionais devem ordenar-se e estruturar-se de forma a
viabilizar a imediata identificação da posição jurídica em que investem
os jurisdicionados;
● Para que a efetividade constitucional se torne apta na prática, são ne-
cessários instrumentos processuais adequados de tutela;
● Os mecanismos de tutela e de concretização estão nas mãos do Poder
Judiciário. Isso é, a efetividade da Constituição depende de atuação
judicial proativa.

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: VOTO DO MINISTRO CELSO


DE MELLO NO RE 271.286/2000

3.1 Contexto do caso

Tratava-se de caso decidido pelo STF em 12 de setembro de 2000, e que tinha


como objeto a contestação feita pelo Município de Porto Alegre contra decisão ju-
dicial que lhe obrigou a distribuir gratuitamente medicamentos para portadores de
breno baía magalhães (organizador) 37

HIV/AIDS. Entre outros argumentos, o Município alegou a falta de recursos finan-


ceiros para arcar com a despesa, uma vez que a dotação exigida judicialmente não
estava previamente estipulada na Lei Orçamentária Anual municipal. Em seguida,
alegou que os artigos 165, §5º, III e 167, I da Constituição da República9 vedavam
despesas não previstas em regras orçamentárias, principalmente aquelas que dis-
ponham sobre a seguridade social. Por fim, o ente federado postulou que houvera
violação ao princípio da Separação de Poderes quando da interferência do Poder
Judiciário em atos do Poder Executivo.

3.2 Pontos fundamentais

“Na realidade, o reconhecimento judicial da validade jurídica de progra-


mas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive
àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, deu efetividade a preceitos funda-
mentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196), representan-
do, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço
à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada
possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua es-
sencial dignidade.

Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde


representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das
pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico cons-
titucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira res-
ponsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar -
políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos,
inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que
tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano insti-
tucional, a organização federativa do Estado brasileiro (...) - não pode con-
verter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder
Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade,
substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever,
por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina
a própria Lei Fundamental do Estado.
(...)
Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direi-
tos sociais - que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação
constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficá-
cia jurídica (...) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional

9
Art 165, § 5º A lei orçamentária anual compreenderá: III - o orçamento da seguridade social, abrangendo
todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fun-
dações instituídos e mantidos pelo Poder Público e Art. 167. São vedados: I - o início de programas ou projetos
não incluídos na lei orçamentária anual.
38 curso de teorias constitucionais brasileiras

consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em


ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento
da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de
garantias instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades
governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.
Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento
formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples decla-
ração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e ple-
namente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito - como
o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o
poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações posi-
tivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional”

3.3 Comentários

A decisão do STF em comento foi determinante para a mudança de trajetória da


judicialização da saúde no Brasil, uma vez que outras instâncias judiciais indeferiam
requerimentos semelhantes10 ao descrito acima, com base na natureza programática
do art. 196 da Constituição11. A postura judicial omissiva, a um só tempo, ignorava a
tese central de Silva (2007), segundo a qual todo e qualquer dispositivo constitucio-
nal dispõe de algum grau de eficácia, e bloqueava a capacidade de gerar efeitos nor-
mativos do dispositivo constitucional em tela ao afastar a competência do Judiciário
para efetivá-lo (1996).
O voto do Min. Celso de Mello evidencia a virada do entendimento do Supremo
Tribunal Federal sobre a aplicabilidade/efetividade das normas constitucionais que
veiculavam direitos relativos à saúde. Entendeu o ministro que o caráter programá-
tico da regra inscrita no art. 196 CF/1988 não poderia converter-se em uma mera
promessa constitucional, devendo o direito à saúde de todas as pessoas ser encarado
como gerador de efetividade no plano fático.
A partir dessa decisão, os mais variados tipos de demanda envolvendo ques-
tões sanitárias passaram a ser conhecidas pelo Judiciário, exatamente, porque a
barreira teórica que reforçava a eficácia das normas programáticas de recorte re-
distributivo e social havia sido rompida pelo STF por meio da tese da efetividade.
Entretanto, Barroso, em texto de 2009 (conferir abaixo), creditando à efetividade

10
“Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum, o direito a saúde – protegem um interesse
geral, todavia, não conferem, aos beneficiários desse interesse, o poder de exigir sua satisfação – pela via do
mandamus – eis que não delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o legislador exerça o
múnus de completá-las através da legislação integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da CF) são de
eficácia limitada, ou, em outras palavras, não tem força suficiente para desenvolver-se integralmente, ‘ou não
dispõem de eficácia plena’, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de legislação
complementar” (STJ, ROMS 6.564/RS, DJ 17/6/1996, p. 21448).
11
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.
breno baía magalhães (organizador) 39

a responsabilidade por essa virada jurisprudencial, reconheceu que o Judiciário


havia ido longe demais em sua sanha efetivadora de direitos sociais.

4 GUIA DE LEITURA

4.1 Embrião da efetividade: a tese da eficácia de todas as normas constitu-


cionais

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008. (data da publicação original: 1968).
BASTOS, Celso Ribeiro; BRITTO; Carlos Ayres. Interpretação e Aplicação das Normas
Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais e Direito
Sociais. São Paulo: Malheiros, 2011 (data da publicação original: 1982).
DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 5a ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2001 (data da publicação original: 1989).

As quatro monografias indicadas oferecem um retrato fiel do debate sobre nor-


mas constitucionais no Brasil e são bibliografia básica para qualquer pessoa que pre-
tenda estudar o desenvolvimento do pensamento constitucional brasileiro dos anos
80 e início dos 90. A primeira obra, de autoria de Silva (2007), como assentado
anteriormente, foi pioneira na defesa da eficácia de todas as normas constitucionais,
ao propor que mesmo as normas de eficácia limitada e aplicabilidade indireta de
princípio programático são capazes de produzir efeitos jurídicos, tais como: o de ser-
vir como parâmetro para o exercício do controle de constitucionalidade, guia inter-
pretativo para os Poderes da República de bloqueio contra o retrocesso político. Em
célebre classificação tripartite das normas constitucionais, podemos dizer que exis-
tem: a) normas de eficácia plena e aplicabilidade direta; b) normas de eficácia conti-
da e aplicabilidade direta e imediata – desde que não sobrevenha lei limitadora – e
c) normas de eficácia limitada e aplicabilidade diferida, dependentes de lei para gerar
todos os seus efeitos jurídicos.
A tese central de Silva (2007) foi mantida por diversos constitucionalistas na
década de 80, que observaram que a nomenclatura classificatória utilizada pelo autor
não era muito convidativa à atuação prática do Judiciário, uma vez que o critério
analítico eleito fora a capacidade abstrata da norma de gerar efeitos jurídicos extra-
ída de elementos semânticos, circunstância que facilitava a distorção das premissas
teóricas no momento da aplicação judicial, uma vez que bastaria ao intérprete de um
dispositivo constitucional vazado de conteúdo moral atribuir-lhe uma classificação
bloqueadora de sua eficácia exclusivamente com base no encadeamento das palavras
feito pelo legislador constituinte.
Para contornar essa falha na apreensão prática da teoria da aplicabildiade, as clas-
sificações posteriores, sem deixar de render homenagens ao pioneirismo de Silva, pas-
saram a adotar outros pontos de partida fundamentais, como, por exemplo, o do
40 curso de teorias constitucionais brasileiras

titular do direito constitucional agasalhado pelo texto constitucional. Bastos e Britto


(1982), por exemplo, deixam claro que algumas normas são “Normas de mera aplica-
ção irregulamentáveis”; ao passo que Mello (1982) defende a existência de “normas
concessivas de direitos”, e, por fim, Barroso (1987) fala em “Normas Fixadoras de
Direitos”. Todos esses autores, é importante reforçar, não abandonaram a tese central
de Silva sobre a eficácia de todas as normas constitucionais, no entanto, formularam
propostas alternativas que realçaram a aplicabilidade direta das normas sobre Direitos
Fundamentais.
No trabalho mais importante sobre o tema publicado pós-88, Maria Helena
Diniz (2001) fez pequenas alterações de nomenclatura às classificações de Silva, sem
preocupar-se em resgatar as teses materiais subjacentes à doutrina da efetividade, o
que acabou dando o tom da produção dogmática sobre o tema, esvaziando-a de seu
conteúdo político e restringindo-a a um debate quase estéril sobre categorizações
e classificações. Dessa forma, a questão dogmática mais importante passou a ser a
de saber categorizar um dispositivo constitucional descontextualizado, em vez de
problematizar a natureza progressista, ou não, das normas constitucionais. Para a
autora, as normas constitucionais podem ser: a) normas constitucionais com eficácia
absoluta, b) Normas com eficácia plena, c) Normas com eficácia relativa restrin-
gível e d) normas com eficácia relativa complementável, as normas constitucionais
podem ser: a) normas constitucionais com eficácia absoluta, b) Normas com eficácia
plena, c) Normas com eficácia relativa restringível e d) normas com eficácia relativa
complementável.

4.2 O desenvolvimento da doutrina da efetividade: a efetividade constitucio-


nal e a chegada do neoconstitucionalismo

BARROSO, L. R.. Efetividade das normas constitucionais. Revista de Direito da Procura-


doria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 39, 1987 (https://pge.rj.gov.br/
comum/code/MostrarArquivo.php?C=ODA5Nw%2C%2C).
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Limites
e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1990.
BARROSO, L. R.. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, v. 197, 1994 (http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/
article/view/46330/46902).
BARROSO, L. R.. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasi-
leiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista da EMERJ, v. 15, p. 11--,
2001 (https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista15/revista15_11.pdf)
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de . Teoria da constituição, democracia e igualdade. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filome-
no; LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. (Org.). Teoria da constituição: estudo sobre o
lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
BARROSO, L. R.; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história? A nova interpre-
tação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Interesse Público, v. 19,
breno baía magalhães (organizador) 41

p. 51, 2003 (https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista23/revis-


ta23_25.pdf).
BARROSO, L. R.. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, 2005 (http://bibliotecadigital.fgv.br/
ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695).
BARROSO, L. R.. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saú-
de, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Re-
vista de Direito Social, v. 34, p. 11-43, 2009 (https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/
tjmg/516/1/D3v1882009.pdf).
A tese da efetividade foi formulada por Barroso no final dos anos 80, mas foi na
década seguinte que ganhou corpo com a publicação do livro tantas vezes referen-
ciado neste capítulo. Em artigos acadêmicos subsequentes e nas atualizações da obra
nos anos 90, Barroso nunca fez referência a existência de uma “doutrina da efetivida-
de” como uma teoria constitucional em si, mas como uma contribuição autoral para
o debate da efetividade das normas constitucionais.
Claudio Souza Neto (2003), no início dos anos 2000, foi o responsável por
ressignificar a tese da efetividade na forma de uma “doutrina” da Constituição,
sugestão que foi prontamente acatada por Barroso em seus escritos do período
(BARROSO, 2009). Entretanto, neste mesmo período, Barroso buscava superar
os marcos teóricos tradicionais que o acompanhavam desde os anos 80, como os
alemães Konrad Hesse e Hans Kelsen, para acomodar autores que começavam
a ganhar popularidade no Brasil por suas críticas ao positivismo jurídico, como
Robert Alexy e Ronald Dworkin.
A superação das teses da efetividade por seu próprio criador ocorre em 2003,
com a publicação da nova teoria da Constituição esposada por Barroso, o Neocons-
titucionalismo, perspectiva que será aprofundada em capítulo próprio. Em suas pró-
prias palavras, a doutrina da efetividade cumprira sua função jurídica e política,
contudo, para que suas contribuições permanecessem atuais e relevantes, era preciso
atualizá-la com novos ares, dignos dos novos tempos políticos do país e do reconhe-
cimento da normatividade constitucional pelo STF.

4.3 Indicação de Leitura Crítica

1. LYNCH, C.E.C.; MENDONÇA J.V. Por uma história constitucional brasi-


leira: uma crítica pontual à doutrina da efetividade. Rio de Janeiro: Rev. Direito e
Práxis, 2017, pp 974-1007 (https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistacea-
ju/article/view/25654/20597).
2. BERCOVICI, Gilberto. A persistência das “normas programáticas” no de-
bate Constitucional Brasileiro. Fortaleza: Revista Latino-americana de Estudos
Constitucionais, 2019, pp, 671- 7678 (https://www.academia.edu/41288160/A_Per-
sist%C3%AAncia_das_Normas_Program%C3%A1ticas_no_Debate_Constitucio-
nal_Brasileiro).
42 curso de teorias constitucionais brasileiras

O texto de Lynch e Mendonça pretende revisitar de maneira crítica os funda-


mentos e pressupostos teóricos da doutrina da efetividade, a partir da premissa de
que nela há a incorporação ideológica da noção de força normativa da Constituição
(Hesse) e a pretensão de fundar um constitucionalismo “verdadeiro” (Faoro). Tais
pressupostos da efetividade acabariam, na visão dos autores, por colocar toda a
história constitucional brasileira em segundo plano. A sugestão defendida no ar-
tigo é a de levar a sério a história constitucional no Brasil, tal como já é feito na
Europa, tanto por seu valor crítico, quanto por sua potencialidade hermenêutica.
Bercovici, expoente do constitucionalismo dirigente no Brasil, pondera que a
doutrina da efetividade, ao reduzir o debate teórico constitucional às questões envol-
vendo a dicotomia entre regras e princípios e ao problema hermenêutico sobre o sen-
tido das normas constitucionais, consagrou um deslocamento do centro do sistema
constitucional da esfera dos poderes Executivo e Legislativo para o Judiciário. Esse
deslocamento, ademais, obscureceu pontos importantes sobre a Constituição econô-
mica e sobre a atuação política popular na concretização constitucional.
Por fim, ainda que não sejam necessariamente críticas, mas considerações im-
portantes sobre os limites e contradições da teoria, Souza Neto e Sarmento (2016,
p. 199) acenam corretamente para a fragilidade das bases teóricas da efetividade,
que negligenciava outros campos importantes da normatividade constitucional, bem
como para o fato da tese ter servido de base para constitucionalistas conservadores
taxarem de “programática” toda e qualquer norma constitucional de cunho social.

Vídeo de aprofundamento: POR UMA HISTÓRIA CONS-


TITUCIONAL BRASILEIRA: UMA CRÍTICA PONTUAL À
DOUTRINA DA EFETIVIDADE - Prof. Dr. Christian Lynch
(UERJ).

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Quais são os elementos básicos da doutrina da efetividade? Na resposta,


problematize a interpretação da histórica constitucional brasileira feita pela
doutrina, o papel dos acordos políticos no momento da constituinte, a força
normativa da Constituição e o papel do Judiciário em sua concretização;
2) É possível sugerir que a efetividade constitucional será alcançada
por meio da intepretação judicial feita pelo Judiciário de normas
constitucionais que albergam múltiplos significados? Na resposta,
considere o seguinte: os juízes estão situados, ou não, no campo da “elite
insincera»? As normas constitucionais carregam consigo conteúdos
pré-definidos? As inclinações ideológicas dos juízes são importantes
para aferir o que fora constitucionalmente efetivado, ou não, em suas
sentenças?
Capítulo 3

CONSTITUCIONALISMO
LIBERAL-CONSERVADOR
Beatriz Neder Mattar1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

Pouco antes da promulgação da Constituição de 1988, o campo teórico jurídico


estava divido entre adesistas ao regime militar ditatorial e aqueles que questiona-
vam a legitimidade do regime constitucional instalado em 1967. Para fins didáticos,
e para seguir com os conceitos expostos no capítulo anterior, é válido afirmar que
havia um embate teórico entre constitucionalistas conservadores e progressistas, que
se acirrou no momento da convocação para a Constituinte, quando as divergências
sobre o projeto de Constituição que iria coroar o processo de transição democrática
tornaram-se mais evidentes.
Uma das primeiras tensões que vieram à tona dizia respeito à institucionalização
do exercício do Poder Constituinte. Os constitucionalistas conservadores, favoráveis
a uma solução de continuidade, endossavam a edição de uma Emenda Constitucional
que serviria para reformar profundamente a Constituição de 1967, ao mesmo tempo
em que manteria o texto político representativo da “Revolução de 64”. Do lado dos
progressistas, eram fortes as reivindicações por uma Assembleia Constituinte exclusi-
va, totalmente desvinculada do regime autoritário e que pudesse recuperar a ideia de
refundação típica da formulação teórica francesa sobre o poder constituinte originário.
As elites políticas civis democráticas e a cúpula militar chegaram a uma solução de
compromisso, sugerindo um processo constituinte “originário” instaurado mediante
uma Emenda à Constituição de 1967, a EC 26/86. Nos termos da Emenda, os congres-
sistas eleitos para as eleições de 86 desempenhariam mandatos híbridos - de constituin-
tes e congressistas - tão logo a Constituição fosse aprovada.

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Estagiária bolsista da Clínica de Atenção à
Violência (CAV/UFPA). Membro do Projeto de Extensão Estudos Constitucionais Compartilhados (ECCOM).
Membro do Grupo de Pesquisa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Violência na Amazônia (NEIVA/
UFPA-CNPq). Presidente da Liga Acadêmica de Direito do Estado (LADE). Membro do grupo de estudos
Discriminações e Injustiça social (LADE).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do ECCOM.
44 curso de teorias constitucionais brasileiras

A particularidade do procedimento convocatório foi suficiente para o fomento de


narrativas distintas sobre a legitimidade, extensão e natureza da constituinte brasilei-
ra instaurada em 87. O campo conservador explorou o fato de a constituinte ter sido
convocada mediante uma Emenda Constitucional (26/86) para defender sua nature-
za reformadora, portanto, não originária da estrutura constitucional instaurada pela
revolução militar de 64. Isso é, a constituinte de 87/88 seria tão somente uma etapa
de consolidação do Poder Constituinte de 67, uma vez que, assim diziam seus defen-
sores, os constituintes convocados seriam competentes apenas para realizar ajustes
pontuais e limitados no texto constitucional em vigor na época. Progressistas, por
outro lado, voltaram seus olhos para as manifestações populares em prol das eleições
diretas e da refundação republicana para defender a tese de ruptura completa com o
regime ditatorial, ponto reforçado pelas reformas regimentais que garantiram efetiva
participação popular na definição das regras constitucionais3.
Tão logo a Constituição fora promulgada, autores conservadores questionaram vá-
rios aspectos do novo texto e do contexto político de sua aprovação. Entre outros argu-
mentos, vale sublinhar os seguintes: a contestável eficácia das normas constitucionais,
o “socialismo” mascarado de seu espírito, a ingovernabilidade política criada pelas
normas redistributivas e, por fim, sua legitimidade como um todo. Na política, o con-
servadorismo encontrou voz na manifestação do então presidente José Sarney que de-
nunciou publicamente a suposta ingovernabilidade do projeto constitucional em gesta-
ção. Entretanto, Sarney fora prontamente contestado por Ulysses Guimaraes,
presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, para quem ingoverná-
veis eram “a fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida”.
Na seara acadêmica, o conservador de referência é Manoel
Gonçalves Ferreira Filho, jurista intimamente ligado ao regi-
me militar4 e autor de livros que tentaram justificar e legitimar
o golpe militar de 1964. Crítico dos caminhos progressistas
traçados na constituinte, seus escritos pós-88 caracterizam-se
pela defesa de uma visão política liberal conservadora5, ques-
tionadora do Poder Constituinte, da perspectiva dirigente da
política, da separação de poderes estruturada na Carta de 1988
e do Papel Judiciário na interpretação Constitucional.

3
Como ficará muito claro nas páginas seguintes, Manoel Gonçalves Ferreira Filho(1995, p. 20) é um dos mais
ferrenhos críticos do constitucionalismo de 1988, e, além de considerar que a Constituição de 1988 é, em
verdade, fruto de uma grande revisão constitucional do texto de 67, e não uma nova carta constitucional
legitimada pelo povo, o autor afirma que sua feição progressista teria sido artificialmente instigada por um
“regimento interno distorcido, utilizado habilmente para fortalecer essa corrente [esquerda] pela liderança do
partido majoritário”.
4
Manoel Filho ocupou importantes cargos na administração militar, como o de assessor jurídico do Secretário
da Fazenda do Estado de São Paulo (1969), chefe de gabinete do Ministério da Justiça (1969-1970), secretário
do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (1969-1971) e secretário-geral do Ministério da Justiça
(1970-1971).
5
Conferir nota 30 do capítulo 1.
breno baía magalhães (organizador) 45

A Gênese da Carta de 1988

Ao tratar do Poder Constituinte no Brasil, Manoel Gonçalves (2003, p. 44-45)


critica o corriqueiro emprego das famosas teses do abade Sieyés, defendidas em sua
obra “Que é o terceiro Estado?”, como se fossem prescrições normativas ou deter-
minações obrigatórias a respeito da natureza essencial da gênese de uma verdadeira
Constituição. De acordo com o Francês, uma Constituição legítima precisa ser criada
por meio de uma assembleia de representes do povo escolhidos exclusivamente para
essa tarefa e que possa operar livre dos limites impostos pela ordenação jurídica
anterior. Manoel Filho, por sua vez, chama a atenção para o contraste entre a reali-
dade sobre a edição das Constituições e as perspectivas teóricas de Sieyés, citando
como exemplo o processo de edição de nossas Constituições outorgadas de 1824 e de
19376 (o autor omitiu a de 1967, veremos o porquê em breve).
Ferreira Filho (2003, p. 46-47) defende que algumas Constituições podem ser
criadas pelo Poder Legislativo, distanciando-se, portanto, do modelo da assembleia
constituinte exclusiva proposto por Sieyés em duas hipóteses: 1) em decorrência de
“poderes revolucionariamente outorgados”, como foi o caso da Constituição de 1967
ou 2) nas hipóteses de “transições”, como a de 1988. Portanto, não fica difícil cons-
tatar que o autor não apenas considera que o Golpe Civil-Militar de 1964 foi uma re-
volução, como também parte de sua contestável interpretação empírica para sugerir
a insubordinação do Poder Constituinte às fórmulas prescritas por Sieyés.
Seguindo os passos de Weber, Ferreira Filho (2003, p. 47-49) estipula que “poder”
é a possibilidade de alguém impor sua própria vontade sobre a conduta de outrem.
Dessa forma, o “poder constituinte” deve ser analisado a partir da perspectiva do
indivíduo, grupo ou órgão que estabelece uma Constituição devidamente obedecida
e seguida. Tendo em vista que um poder só faz sentido se tratado como um fenômeno
político, e não jurídico, o Poder Constituinte só surgirá quando houver o rompimento
de uma ordem constitucional e jurídica anterior, que deverá ser superada pela criação
de uma Constituição por meio de procedimentos não previstos pela ordem decaída.
Como afirmado anteriormente, a Constituição de 88 fora elaborada por congres-
sistas convocados por Emenda à Constituição de 1967, sem que tivesse havido uma
“revolução”. Muito pelo contrário, a convocação teria tido como pressuposto preve-
nir uma revolução socialista iminente. Dessa forma, pensa o autor, não seria válido
falar em Poder Constituinte no Brasil de 86-87, porquanto o Estado brasileiro criado
pela verdadeira revolução, a de 1964, manteve-se intacto, procedendo-se em 86 a
uma mera “reforma constitucional constituinte”7.
Para legitimar a Constituição outorgada de 1967 e simultaneamente minar as
bases que sustentam o constitucionalismo de 1988, Ferreira Filho defende que uma

6
O Imperador Dom Pedro I dissolveu, em novembro de 1823, a Assembleia Constituinte por ele convocada logo
após a declaração de Independência do Brasil para, dali a poucos meses outorgar uma Constituição em março
de 1824. Vargas inaugurou o Estado Novo por meio de uma Constituição outorgada em novembro de 1937.
7
“Não há, por isso, entre a Constituição anterior [1967] e a vigente [1988] qualquer ruptura” (FERREIRA
FILHO, 2003, p. 20).
46 curso de teorias constitucionais brasileiras

relação de poder se estabelece, tão somente, por meio de sua efetividade, ou seja,
quando aqueles sujeitos ao poder consentem com suas ordens, ainda que inconscien-
te ou coercitivamente. O povo é titular passivo do poder, detentor da última palavra
sobre sua incidência, uma vez que decide obedecê-lo ou não, muito embora não seja
sempre o responsável por ativá-lo. O ativador do poder constituinte, por outro lado,
opera como um representante povo, isto é, cria a Constituição em seu nome por meio
de uma elite ou classe governante.
O ativador é um portador eventual e circunstancial do Poder Constituinte, que
não se confunde com o povo, responsável pela proposição e condução de uma ideia
de direito que será, ou não obedecida popularmente. Em síntese, a “gênese da cons-
tituição completa-se pela efetividade de suas normas”. A efetividade global de uma
Constituição é o que determina sua juridicidade, ou seja, sua qualidade de norma
jurídica, além de ser condição suficiente para sua existência, independentemente do
procedimento de sua elaboração (FERREIRA FILHO, 2003, p. 50-52).
Como veremos a seguir, Ferreira Filho não apenas considera a Constituição de
1988 uma versão piorada da de 1967, mas também questiona sua natureza constitu-
cional ao sustentar sua ingovernabilidade e inefetividade, a demonstrar que ela não
é encarada pelo povo brasileiro como uma verdadeira norma jurídica. Ao mesmo
tempo, defende que o golpe de 1964 fora uma bem-sucedida revolução, a qual, não
obstante ter imposto uma ordem jurídica autocrática, era reconhecida como poder
político legítimo pelo povo, que cumpria passivamente suas estipulações normativas.

A ingovernabilidade da Constituição de 1988

Crítico de primeira hora da Constituição de 1988, Ferreira Filho (1990, p. 77) de-
nunciou sua inefetividade desde o começo de sua vigência. O então novo texto cons-
titucional, extremamente dependente de leis infraconstitucionais para fazer valer seu
dirigismo político, tinha de satisfazer-se com as leis editadas durante o período di-
tatorial. Entretanto, passados alguns anos de sua vigência, a crítica da inefetividade
constitucional não se sustentava mais, o que fez com que o autor passasse a criticar a
Constituição pelo viés da governabilidade.
Segundo Ferreira Filho (1995, p. 03), governabilidade significa conduzir os negó-
cios públicos de maneira eficaz, ou, dito de outra forma, seria a aptidão um Estado
de realizar os objetivos a que se propõe. No caso brasileiro, observa-se uma crise de
governabilidade acarretada pela conjunção de quatro fatores: 1) crise de sobrecarga:
o Estado não dá conta das tarefas que assume no presente, ponto que se agrava pela
falta de recursos públicos; 2) crise institucional: a organização constitucional dos
poderes não é capaz de dar conta das tarefas positivas a que se pretende; 3) crise
do modelo político: a democracia liberal contemporânea aproxima-se a um modelo
oligárquico e pouco representativo8 e 4) crise de legitimidade: a população começa a
questionar o consenso democrático representado pela norma constitucional.

8
De acordo com o autor, a democracia representativa liberal pura não criava esse tipo de problema por assen-
tar-se na ideia de representação-imputação, e não em uma representação-expressão. Dessa forma, naquele
breno baía magalhães (organizador) 47

Ferreira Filho (1995, p. 05) aduz que a grande responsável por essa ingovernabili-
dade é a Constituição de 1988. O vínculo normativo sob uma perspectiva finalística,
descrita a partir de objetivos políticos9, condiciona a legitimidade do texto constitu-
cional à criação dos meios materiais para o cumprimento daquelas finalidades. Por
sua vez, pressionado pelo povo a apresentar resultados condignos com os fins polí-
ticos constitucionais, o governo acaba por priorizar grupos políticos em detrimento
de outros na distribuição de dividendos sociais (FERREIRA FILHO, 1995, p. 10-13).
Em sua visão, as Constituições são normas que garantem a liberdade das pessoas
por meio da criação de instituições políticas que racionalizam, e por consequência,
limitam o poder do Estado. Nesse sentido, a Constituição deve ser uma lei proces-
sual, que cria competências, regula processos e procedimentos e define limitações.
Essa é a essência do liberalismo constitucional, que não é rompida quando a Consti-
tuição escolhe incluir regras sobre o social, desde que ancilares, ou melhor, que deem
suporte ao esquema político central. Por outro lado, uma Constituição será dirigente
quando preocupada com a regulamentação do político, também o é com a transfor-
mação social e econômica. Nesse caso, a regulamentação do social e do econômico
não está voltada apenas para o reforço dos limites do político, mas para um plano
de transição para uma sociedade sem classes (FERREIRA FILHO, 1995, p. 18-19).
A Constituição de 1988, portanto, seria a responsável pela ingovernabilidade do
país ao pesar nas tintas do “estatismo” e “xenofobia” gestores de uma versão “tota-
litária” de sociedade na qual tudo é Direito fundamental, forte em um “assistencia-
lismo paternalista” que excede aquilo que o Estado pode fornecer e preocupada em
excesso com a “igualdade”, em detrimento do “desenvolvimento” criador de riquezas
(FERREIRA FILHO, 1995, p. 21).
Ao estabelecer uma Constituição dirigente, voltada ao bem-estar dos cidadãos
e indo muito além das funções estatais clássicas do liberalismo (segurança exterior,
interna e subministração da Justiça), a Constituição brasileira sobrecarregou-se de
tarefas de impossível concretização, com a consequente afetação moral do povo, o
qual, em razão do assistencialismo, restará iludido pela possibilidade de bem-estar
sem esforço individual, tolhendo seu senso de responsabilidade pelo desenvolvi-
mento pessoal e familiar. Em outro campo, a Constituição fere de morte o pluralis-
mo, ao fechar “o campo aos grupos sociais”, e a sociedade civil, sufocando corpos
intermediários capazes de proteger o indivíduo do Estado (FERREIRA FILHO,
1995, p. 44-45).

regime o povo era representado por uma classe política ciente de seus deveres e preparada para endereçá-los
corretamente. No entanto, o intervencionismo estatal teria criado rusgas nesse ideal representativo, uma vez
que incentiva a interferência jurídica nas relações sociais e a formulação de políticas redistributivas de rique-
zas sociais, situações que conduzem ao surgimento de compreensões deturpadas sobre a representatividade, o
papel do Estado e o da sociedade.
9
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
48 curso de teorias constitucionais brasileiras

Vídeo de aprofundamento: Entrevista do Jurista Manoel Gonçalves


Ferreira Filho (18 de abr. de 2019)

Ives Gandra Martins


Ives Gandra Martins tem denunciado, como Manoel Filho, as mazelas políticas
decorrentes da Constituição de 1988, impulsionadas, em sua visão, pelos Governos
do PT. Crítico da atuação recente do STF, Martins (2018, p. 12) atribui a culpa de
uma postura ativista do tribunal aos presidentes Lula e Dilma, além de urgir para
que a Corte retorne ao que era antes, época em que atuava apenas como fiadora da
“estabilidade das instituições”.
Em seus textos, Martins condena o neoconstitucionalismo por ser uma teoria que
admite a relativização do texto a ser interpretado pelo Poder Judiciário, em nome de
uma suposta busca por justiça. A teoria teria sido capturada e instrumentalizada por
minorias ideologizadas, no intuito de verem seus interesses acolhidos judicialmente,
tendo em vista sua dificuldade em alcançar maiorias congressuais (MARTINS, 2018).
Não obstante sua visão conservadora, Ives Martins concorda que a Constituição
de 1988 é a “a mais democrática das constituições brasileiras” e que “seus méritos,
portanto, superam de muito suas insuficiências”. Por outro lado, o autor não deixa de
sugerir que o “marxismo” e o “bolivarianismo” são ideologias totalitárias de nature-
za ditatorial não recepcionadas pela Constituição, apesar de “muitos dos detentores
do poder serem seus simpatizantes” (MARTINS, 2018, p. 112-113).
Na linha defendida por Ferreira Filho sobre nosso processo constituinte, o autor
pontua que ele teria sido exercido por “um poder constituinte derivado, pois convo-
cado por um poder constituído. Constituições originárias decorrem da ruptura da
ordem pública anterior, visto que um poder constituído não pode convocar um poder
constituinte originário (...)”.
A interpretação conservadora das normas constitucionais, segundo a qual ainda
estamos sob a tutela dos Militares revolucionários, conduz Ives Martins a sugerir
que o art. 142 da Constituição sanciona que qualquer um dos Poderes da Repúbli-
ca possa acionar as Forças Armadas para “pontualmente” auxiliá-lo na reposição
de suas competências supostamente invadidas por outro ramo político. Se, por-
ventura, o Congresso entender que o STF esteja usurpando suas competências le-
gislativas, as Forças Armadas poderão ser provocadas para restaurar os poderes
congressuais anomalamente exercidos pelo Judiciário10. A situação descrita por

10
Recentemente, liminar do Ministro Luiz Fux afirmou a incompatibilidade constitucional de interpretações
como as de Martins. Para o Ministro, “ ... descabe a malversada interpretação de que essa segunda atribuição
breno baía magalhães (organizador) 49

Martins, eu sua visão, não configuraria um golpe de Estado, mas sim atuação pontu-
al para o reestabelecimento da lei e da ordem:

Pelo artigo 142 da CF/88 caberia ao Congresso recorrer às Forças Armadas


para reposição da lei (CF) e da ordem, não dando eficácia àquela norma que
caberia apenas e tão somente ao Congresso redigir. Sua atuação seria, pois,
pontual. Jamais para romper, mas para repor a lei e a ordem tisnada pela
Suprema Corte, nada obstante — tenho dito e repetido — constituída, no
Brasil, de brilhantes e ilustrados juristas.

Vídeo de aprofundamento: O Artigo 142 da Constituição Federal (Ives Gandra


Martins).

2 A TEORIA EM PONTOS

● A Constituição de 1988 representa tão somente a continuidade piorada


e corrosiva à democracia do constitucionalismo de 1967;
● O Poder Constituinte de 1988 foi exercido a partir de seu viés refor-
mador, não originário, portanto, instaurado como mecanismo contrar-
revolucionário de revoltas ou revoluções de movimentos golpistas de
esquerda;
● Constituições são mecanismos liberais de organização política e prote-
ção das liberdades individuais e, na hipótese de eventualmente regula-
mentarem elementos econômicos, não podem ditar-lhes suas regras de
funcionamento;
● A filosofia Pós-Moderna favoreceu o ativismo judicial no Brasil, tra-
zendo consigo o “consequencialismo jurídico”, “neoconstitucionalis-
mo”, “judicialização da política” e “politização da Justiça”, doutrinas
ou posturas não recepcionadas pela Constituição de 1988;
● Composições mais recentes do STF ultrapassam suas competências e
invadem as dos demais Poderes. Fato que resulta na intervenção direta
nos processos político e legislativo;

conferida às Forças Armadas pelo artigo 142 da Constituição permite que os militares promovam o “funcio-
namento dos Poderes constituídos”, podendo intervir nos demais Poderes ou na relação entre uns e outros.
Confiar essa missão às Forças Armadas violaria a cláusula pétrea da separação de poderes, atribuindo-lhes,
em último grau e na prática, inclusive o poder de resolver até mesmo conflitos interpretativos sobre normas da
Constituição”. ADI 6457, DJE nº 149, divulgado em 15/06/2020.
50 curso de teorias constitucionais brasileiras

● O não exercício de interpretações constitucionais conservadoras, libe-


rais clássicas, à direita do espectro político e de forte influência cató-
lica, gera insegurança jurídica, degradação moral, ingovernabilidade
política e instabilidade institucional.

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: VOTO DO MINISTRO SYD-


NEY SANCHES NA ADI 04/93

3.1 Contexto do caso

Desde a promulgação da Constituição (1988) até o momento de sua revogação


(2003), o § 3º, do art. 19211 foi objeto de inúmeras controvérsias doutrinárias e
jurisprudenciais sobre o papel que deveria desempenhar no sistema constitucio-
nal financeiro. De acordo com seu texto original, as taxas de juros reais não po-
deriam ultrapassar 12% ao ano. Portanto, o constituinte originário criou norma
constitucional com a clara intenção de interferir no sistema econômico e finan-
ceiro do país, ao estabelecer limite às taxas de juros praticadas, principalmente,
pelas instituições financeiras. O Parecer SR-70/1988 da Consultoria Geral da Re-
pública, editado dois dias depois da entrada em vigência da nova Constituição,
negava aplicabilidade imediata ao parágrafo 3º do art. 192 da Constituição de
1988. A ADI 04 foi proposta pelo PTB e pretendia questionar a força normativa
do parecer presidencial.

3.2 Pontos fundamentais

6. Tendo a Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema


Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por lei
complementar, com observância do que determinou no “caput”, nos seus
incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isolada do
disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de juros reais (12% ao ano), até
porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do Sistema
Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com a observância de
todas as normas do “caput”, dos incisos e parágrafos do art. 192, é que
permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes
também sejam conceituados em tal diploma.
(...)
27 - Objetou-se também que se a lei complementar referida no “caput”
nunca vier a ser votada pelo Congresso Nacional, a norma do § 3º nunca
terá eficácia. É verdade também. Exatamente porque só foi prevista, para

11
Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado
do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive
sobre: (...) § 3º - as taxas de juros reais não deverão ultrapassar 12% ao ano e que as taxas cobradas acima
deste limite caracterizarão crime de usura punido nos termos que a lei determinar
breno baía magalhães (organizador) 51

produzir efeitos, com a vigência da lei complementar, dados os termos


em que colocada, como simples desdobramento - e não como exceção
expressa - do “caput”. 28 — Nem se há de imaginar, com argumento “ad
terrorem”, que o Congresso Nacional deixe, para todo o sempre, de votar
a lei complementar que deve regular o sistema financeiro nacional, por
não lhe emprestar importância alguma na vida econômica do país. E se
isso acontecer, não será por culpa do Poder Judiciário.
(...)
Não ganha relevo decisivo, “data venia” , na interpretação de norma legal
ou constitucional, o debate que se travou no Poder Legislativo ou no Poder
Constituinte. Os constituintes podem ter votado, tanto acreditando, quanto
não acreditando que a redação (do parágrafo 3º do art. 192) lhe desse efi-
cácia imediata. Ademais, é princípio hermenêutico correntio o de que, na
exegêse das normas jurídicas, o que importa não é a “mens legislatoris”,
mas a “mens legis” ou “mens constitutionis”. E a norma em questão, como
colocada no artigo, no capítulo e no próprio sistema constitucional global,
não enseja sua eficácia imediata.
“Além disso, não se pode desprezar a controvérsia doutrinária em direito e
na economia, sobre o conceito de “juros reais”, que ficou bem evidenciada
nos autos. Tanto mais porque a expressão ingressa, pela primeira vez, no
ordenamento jurídico nacional. E sem conceituação. E mesmo que se deva
aceitar o conceito de juro real, como o de juro nominal deflacionado, é
preciso saber de que modo se medirá a inflação, com que índices, pois no
país já houve tantos e ainda não se sabe durarão a desindexação e a referida
“Taxa Referencial de Juros”.
(...)
“E tudo isso há de ser explicitado na lei complementar, ou seja, quais ativi-
dades lícitas e ilícitas, no Sistema Financeiro Nacional, para que se possa
saber, depois, quais as que devem ser convertidas em tipos penais, na lei de
usura, que há de ser uma lei ordinária, como se extrai da 2ª parte do § 3º do
art. 192.

3.3 Comentários

Em 1991, na ADI 0412, o STF decidiu, com base na tese classificatória de José
Afonso da Silva (2007), que o § 3º, do art. 192 era uma norma constitucional de eficácia
limitada, cuja aplicabilidade estava condicionada à edição de uma Lei Complementar
Genérica ou Global. De acordo com a maioria dos ministros, a função do intérprete
do direito não seria considerar o que o constituinte quis dizer quando produziu o texto
constitucional (ou seja, desde logo limitar as taxas de juros), mas sim interpretar o que
efetivamente foi escrito. José Afonso da Silva (1999, p. 801), proponente da classifica-
ção tripartite, discordou do STF:

12
DJ 25/06/1993, Plenário, Rel. Sydney Sanches.
52 curso de teorias constitucionais brasileiras

Pronunciamo-nos, pela imprensa, a favor de sua aplicabilidade ime-


diata, porque se trata de uma norma autônoma, não subordinada à lei
prevista no caput do artigo (192). (...) Se o texto, em causa, fosse um
inciso do artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria
na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas,
tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma,
sem referir-se a qualquer previsão ulterior, detém eficácia plena e apli-
cabilidade imediata.

Não apenas Silva (1999), mas igualmente o deputado constituinte que inse-
riu tal artigo na Constituição, Fernando Gasparian (1991, p. 09-12), defendeu
a eficácia plena e aplicabilidade imediata da norma constitucional. Durante os
debates constituintes, além do mais, Bernardo Cabral afirmou que a remissão
feita à lei no §3º dizia respeito ao crime de usura, e que a limitação de juros era
autoaplicável.
O relator da ADI 04, Sidney Sanches, elaborou as seguintes razões para não re-
conhecer a aplicabilidade imediata da norma constitucional: 1) o caput do art. 192,
o qual exige lei complementar, comanda todos os parágrafos, ou seja, a localização
tópica do parágrafo não denota sua “eficácia imediata”; 2) os debates constituintes
não são decisivos para o caso (o mais importante é a vontade da norma, não a do
legislador) e 3) apenas a lei poderá estabelecer os índices inflacionários para o cál-
culo do juro real, considerado como um juro nominal deflacionado. O relator pro-
cedeu à transcrição, em sua integralidade, de um punhado de pareceres e, ao final
delas, afirmou subscrever as suas conclusões. Adivinhem quem figurava entre os
pareceres acolhidos? Eles mesmos, os autores que compõem a visão conservadora
da Constituição de 1988. Ives Gandra da Silva Martins e Manoel Gonçalves Fer-
reira Filho, em suas peças, caracterizaram o § 3º do 192, utilizando a categoria de
José Afonso da Silva e, por vezes, citando-o nominalmente e a seu trabalho, como
uma norma de eficácia limitada.
O parecer de Saulo Ramos trazia argumentos políticos e econômicos alar-
mistas, que foram evitados pela Corte em seu julgamento, mas a decisão judicial
formalista acabou por chancelar a tese política do Executivo, segundo a qual ele
é quem seria responsável por definir as políticas de juros no país por meio de pa-
receres e à revelia da Constituição. O então Ministro da Justiça de Sarney tinha
razão - conseguiu fazer com que a força normativa de um parecer sobrebujasse a
da Constituição.
Em síntese, a intepretação conservadora das normas constitucionais, que se con-
trapõe à tese da doutrina da efetividade sobre a produção de efeitos de toda e qual-
quer norma constitucional, fez com que, no julgamento da ADI 04, o STF, de uma só
tacada, negasse o caráter dirigente e interventor da Constituição, além de distorcer
os parâmetros teóricos da efetividade, ao subordinar a produção de efeitos do art 192
à edição de Lei Complementar.
breno baía magalhães (organizador) 53

4 GUIA DE LEITURA

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito constitucional econômico. São Paulo:


Saraiva, 1990.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)
governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâ-
neo. São Paulo: Saraiva, 2003.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Uma breve teoria sobre o constitucionalismo. Author,.
Publisher, Lex Magister, 2015.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, como vocês puderam observar, não é ne-
nhum entusiasta da Constituição de 1988. Sua produção sob o novo regime ini-
ciou-se com a publicação de obra que pretendia investigar a inserção de uma
Constituição Econômica dentro da regulamentação do político. Por óbvio, o autor
aproveitou para tecer críticas ao dirigismo econômico constitucional, tido como
próximo a de um socialismo utópico. Em 1990, o autor denunciava a inviabilidade
econômica de nossa Constituição e defendia que grande parte de suas normas
seria de aplicação mediata e limitada, impedindo que seus objetivos fossem ime-
diatamente cumpridos.
Em meados dos anos 90, Ferreira Filho publicou sua obra de avaliação do siste-
ma constitucional de 88, na qual escancarou o risco que corríamos ao mantermos a
Constituição de 1988, custosa aos cofres públicos, criadora de uma burocracia paqui-
dérmica e que almejava a um tipo de democracia para a qual o povo brasileiro não
estava preparado, uma vez que distante de ideais morais católicos, que flertava com
o comunismo, com as alas progressistas da Igreja, com o neopentecostalismo e era
complacente com a corrupção política.
Tendo em vista que o autor nunca produzira uma obra que representasse a
solidificação de seu pensamento constitucional, suas obras dos anos 2000 supri-
ram parcialmente essa lacuna. Seus livros Princípios fundamentais do Direito
Constitucional e Aspectos do Direito Constitucional contemporâneo compilam
artigos publicados ao longo dos anos 90 e 2000 e nos oferecem uma visão pano-
râmica do pensamento do autor. No último, por exemplo, o autor defendeu seu
modelo liberal clássico de Constituição, ligado à limitação do poder e avesso a
questões sociais; sua teoria do poder constituinte, que se afasta da tradicional
perspectiva de Sieyès e é próxima da ideia de autoridade; e, por fim, sua crítica
à Constituição de 1988.

Indicação de Leitura Crítica

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.


Cadernos [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 23-32, p., 2012.
54 curso de teorias constitucionais brasileiras

Comentários:

Ainda que não tenham travado, propriamente, um debate direto e aberto, Barroso
e Ferreira Filho são, como pudemos observar, autores situados em espectros opostos
do campo político e teórico. Neste texto, Barroso versa sobre o maior alcance da
atuação do Judiciário, tratando, também, da atual crise de legitimidade do Poder
Legislativo. Analisa, portanto, o fenômeno da judicialização, discutindo o número
elevado de assuntos com importante repercussão política ou social que passaram a
ser objeto de decisões do Poder Judiciário. Conceituando o ativismo judicial como
a ampla e intensa participação do Judiciário na concretização de valores e objetivos
constitucionais, este é entendido como um método de atuação capaz de solucionar
problemas sociais e lacunas legislativas existentes. Tal perspectiva foi descontruída
por Ferreira Filho em texto de 2009.

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA

1) Como as teorias conservadoras explicam o nosso processo constituinte


mais recente? Como essa visão particular influencia as propostas da
teoria sobre a eficácia das normas constitucionais e o papel a ser desem-
penhado pelo Poder Judiciário?
2) Desde 2013, especialistas indicam que passamos por uma crise política
e institucional no Brasil. Entre outros fatores geradores da crise, des-
tacam-se os seguintes: falta de representatividade política; aumento da
desigualdade social; instabilidade constitucional (profusão de Emendas
Constitucionais); sistema partidário fragmentado e pouco ideológico
(não há pauta política visível e uniforme). Os fatores elencados podem
ser creditados à Constituição de 1988?
Capítulo 4

A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE
William Wallace1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

Muita embora, conforme o exposto no primeiro capítulo, a teoria da Constituição


Dirigente não fosse a mais influente nas décadas de 80 e 90, espaço ocupado pela
doutrina da efetividade e pelas leituras conservadoras, sua origem remonta ao pro-
cesso constituinte de 86/87.
Nossa transição democrática lenta, gradual e tutelada pelos militares “modera-
dos” sofreu seu primeiro revés com a rejeição da “Emenda Constitucional Dante de
Oliveira”, normativa que garantiria aos brasileiros o direito de eleger, pela primeira
vez em 20 anos, seu presidente diretamente. A manutenção das eleições indiretas3
poderia implicar a vitória de candidato vinculado aos militares. Entretanto, o habili-
doso político Tancredo Neves, governador de Minas Gerais e civil, conseguiu apoio
da oposição e de alas militares para obter importante vitória no colégio eleitoral.
Infelizmente, quis o destino que ele não assumisse a presidência da República em
razão de sua prematura morte.
Em seu lugar, o vice José Sarney, aliado dos governos militares e de postura
conservadora, foi quem assumiu a chefia do país no momento constituinte. Para que
cumprisse com a importante promessa feita por seu antecessor de instaurar uma
constituinte, Sarney trabalhou para que o projeto fosse posto em marcha a partir das
eleições de 1986. De pronto, Sarney convocou uma comissão4 para elaborar um an-
teprojeto de Constituição que viria a ser apreciado pelo vindouro Congresso.
A Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, apelidada de “Comissão
Afonso Arinos” ou “comissão dos notáveis”, foi composta por autores dos mais

1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Projeto de Extensão Estudos
Constitucionais Compartilhados (ECCOM).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
3
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), uma eleição indireta “É aquela em que as pessoas que vão
exercer mandatos políticos não são eleitas diretamente pelo povo, mas por um colégio eleitoral, composto por
delegados escolhidos pelo povo, para que, em nome deste, elejam seus representantes”
4
Decreto nº 91.450, de 18 de julho de 1985.
56 curso de teorias constitucionais brasileiras

diversos matizes ideológicos, contudo, entre eles destacaram-se as influências


de progressistas, como José Afonso da Silva e Pinto Ferreira e, de certa forma,
do próprio Afonso Arinos. O texto do anteprojeto, no entanto, acabou não sendo
enviado à Assembleia Constituinte. Sarney o rejeitou em virtude de seu viés
progressista. Para além da condenação do Presidente, acadêmicos e políticos vin-
culados às leituras conservadoras lançaram um punhado de livros que execravam
o anteprojeto5.
Dentre as críticas feitas ao malfadado anteprojeto, algumas das quais serão re-
quentadas pelas leituras conservadoras quando da promulgação da Constituição de
1988, podemos indicar as seguintes: sua forte tendência “socialista”, seu viés estatis-
ta que demandava intervenção estatal na economia e, por fim, a de que ela seria res-
ponsável pela elevação do déficit público. Realmente, para um liberal clássico ou
para um conservador o anteprojeto não parecia a melhor proposta constitucional a ser
adotada pela Constituinte, daí o porquê dos membros progressistas da Comissão
Afonso Arinos terem sido alvo da fúria canalizada de ambos.
Os autores progressistas do ante-
projeto buscaram inspiração nas cons-
truções teóricas socialistas e social-
-democratas em desenvolvimento na
Europa ibérica que serviram de base
para as Constituições de Portugal (76)
e Espanha (78). Entre as obras lidas
pelos comissionados, destacam-se as
monografias do português José Gomes
Canotilho, “Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador”, e a do es-
panhol Elías Díaz, “Estado de derecho
y sociedad democrática”. Ambas defendiam que a norma constitucional, de natureza
jurídica, era capaz de realizar um complexo processo de transformação social que
desaguaria na transição para o socialismo. Não obstante o anteprojeto tenha sido
rejeitado e a Constituinte tenha optado por não seguir nenhum texto base específico,
partes da redação e do espírito do anteprojeto se fizeram presentes durante todo o
funcionamento das comissões e subcomissões da constituinte.
Alguns aspectos institucionais e substantivos inspirados pelo socialismo dirigen-
te sobreviveram ao anteprojeto e encontraram abrigo na Constituição de 1988, como,
por exemplo, a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, asseguradora
da obrigação congressual de concretização dos objetivos da República; bem como a
ideia de Estado Democrático de Direito, fórmula quimérica e confusa, mas que para
Elías Díaz significava um processo de transição para o comunismo. Com efeito, é
fácil constatar que nossos constituintes progressistas tinham o constitucionalismo
dirigente ibérico em suas mentes quando da confecção da Constituição de 1988.

5
Conferir, por exemplo, o livro Os Notáveis Erros dos Notáveis (1987) de Ney Prado.
breno baía magalhães (organizador) 57

No campo teórico, coube ao professor Gilberto Bercovici desenvolver a mais bem


acabada defesa do Constitucionalismo Dirigente no Brasil em sua obra Desigualda-
des Regionais, Estado e Constituição. A teoria da Constituição Dirigente tem como
fundamento a sua relação com a realidade social da qual faz parte, sua dimensão
histórica e sua pretensão de transformação, por meio dos sentidos, fins, princípios
políticos e ideologia que conformam a Constituição de 1988. Desse modo, segundo
essa teoria, a Constituição não pode ser compreendida isoladamente sem que se es-
tabeleça um diálogo com a teoria social, a história, a economia e, especialmente, a
política de uma determinada realidade estatal. São constituições típicas do Estado
Social, uma vez que positivam direitos prestacionais e dispõem sobre a intervenção
estatal no domínio econômico.
No Brasil, como também na Europa, a teoria da Constituição Dirigente norteou
parte do pensamento constitucional da esquerda durante e após o processo de tran-
sição democrática. Entende-se, por um lado, que a justiça social está vinculada aos
aspectos centrais do modelo igualitário de organização da vida econômica. Por ou-
tro, parte-se da premissa de que a necessária transformação da sociedade deve ser
alcançada por meio de instrumentos do constitucionalismo democrático (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2016, p. 195).
Dentre as importantes contribuições de Bercovici ao debate teórico constitucio-
nal brasileiro, destacam-se duas: rigor acadêmico e coerência interpretativa. Como
será observado em outros capítulos, um dos problemas da produção acadêmica nacio-
nal é a junção de construções teóricas incompatíveis entre si para a formação de um
caldo sincrético confuso e pouco inteligível em suas proposições normativas. Desde
o início de sua empreitada, Bercovici foi direto: “adotar uma teoria da constituição
não significa a possibilidade de utilização de qualquer concepção de Constituição”.
Ou seja, uma teoria constitucional não pode contrariar seus próprios dispositivos ou
acolher prescrições contingentes impostas por conjunturas econômicas ou políticas.
Uma teoria da Constituição adequada, portanto, é aquela construída a partir do
texto constitucional positivado, orientada por seu caráter geral e finalidades normati-
vas e que é construída por meio de métodos racionais. Bercovici quer dizer, portanto,
que não podemos, a exemplo do que fazem as leituras conversadoras, desenvolver
uma teoria constitucional partindo da negação do texto constitucional em vigor. Uma
teoria adequada parte do texto constitucional e leva a sério as finalidades encartadas
em seus dispositivos, ponto que força a vinculação da tarefa constitucional ao esti-
pulado pelo modelo de Estado. Tendo em vista que nosso Estado é o de bem-estar
social e os dispositivos constitucionais indicam a adoção de uma postura socialmente
transformadora, logo, uma teoria constitucionalmente adequada deve partir desses
pressupostos descritivos.
Por essa razão, Bercovici pontua que o significado da Constituição não pode es-
gotar-se na regulação dos procedimentos de tomada de decisão política e de governo,
nem pode ter apenas por finalidade a criação de sua integração alheia a qualquer
conflito social, como é sugerido pelas teorias conservadoras e, de alguma forma,
58 curso de teorias constitucionais brasileiras

pelas liberais igualitárias. A Constituição é, em sua visão, uma ordem jurídica fun-
damental da comunidade que vincula tanto o Estado quanto a sociedade na direção
fixada pelos fins e objetivos que devem ser alcançados.
O dirigismo constitucional, nessa esteira, depende de um conceito material de
legitimidade, segundo o qual as Constituições legítimas cumprem com as regras de-
finidoras de finalidades políticas e econômicas. Dessa forma, afasta-se uma análise
procedimental da legitimidade constitucional, baseada na satisfação de regras que
estabeleçam limites à atuação política do Estado (Constituição garantia) ou regras
que regulamentam os processos de tomada de decisões políticas (Constituição como
processo ou instrumento de governo)6.
Teorias procedimentais partem do pressuposto de que em sociedades complexas,
nas quais o consenso é rarefeito e dificultoso, mais importante seria a desjuridifica-
ção das normas constitucionais, que faria com que o procedimento seja o responsável
pela legitimação dos resultados políticos. Bercovici julga que essas teorias não se-
riam constitucionalmente adequadas ao Brasil, uma vez que a desjuridificação signi-
ficaria a manutenção do status quo de desigualdades sociais e de privilégios da elite.
Desse modo, a Teoria da Constituição Dirigente elege alguns temas prioritários,
como a legitimação substantiva da legislação, a estrutura das normas programáticas,
bem como o grau e a forma de vinculação do legislador ao programa constitucional.
No entanto, sua questão central consiste em identificar em que medida o conteúdo
material fixado no programa constitucional é determinante para a atividade política.
Ademais, os princípios constitucionais fundamentais desempenham a função de
identificação do regime constitucional vigente, ou seja, fazem parte da fórmula política
do tipo de Estado que cria a Constituição, além de serem cláusulas transformadoras,
que demandam uma atitude positiva, constante e diligente do Estado voltada à trans-
formação da realidade brasileira e à superação de seu parco desenvolvimento.
Portanto, a Constituição Dirigente assume um caráter progressista e compromis-
sário que se fundamentam na realidade social que está inserida em seu projeto de
transformação para o futuro, com base nos fins, princípios e ideologias que confor-
mam a Constituição. Desse modo, normas ideologicamente carregadas de conteúdo
prestacional e sobre a intervenção estatal no domínio econômico são positivadas
como compromissos jurídico-constitucionais. Por essas razões, as constituições di-
rigentes contêm um programa de atuação, enquanto instrumento de transformação
social, que se impõe tanto ao Estado, quanto à sociedade.
A Constituição Dirigente, portanto, não é neutra - sua natureza assume um viés
político específico, uma vez que nele está contido um programa de atuação pró-
prio, enquanto instrumento de transformação social que se impõe ao Estado como

6
Em termos mais simples, uma concepção procedimental da Constituição defende que o mais importante em
um arranjo constitucional é a sua capacidade de canalizar conflitos políticos por meio de regras que produzem
soluções políticas que se legitimam pela realização do procedimento em si e não pelo resultado alcançado.
Nesse sentindo, a Constituição é vista como uma ordem estática de equilíbrio, isto é, uma ordem que não
incorpora regras para o futuro ou um projeto ou programa de transformação social.
breno baía magalhães (organizador) 59

expressão das opções ideológicas essenciais sobre as finalidades sociais e econômi-


cas da comunidade política. Porém, isso não significa dizer que ela retira a liberdade
de manobra das diversas posturas políticas assumidas pelos cidadãos, porquanto ela
é suficientemente aberta ao pluralismo político.
A abertura ao pluralismo significa que a Constituição dirigente não retira das
forças políticas sua agência própria, fornecendo meios para que questões políticas
centrais sobre procedimentos e competências possam ser debatidas socialmente. No
entanto, a abertura não implica a alteração de aspectos essenciais do programa, ou
seja, a Constituição “admite várias intepretações, mas não qualquer interpretação”
(BERCOVICI, 2003, p. 289). Essa vinculação interpretativa atinge as decisões gover-
namentais sobre políticas públicas, o que faz com que a legislação deva seguir, pari
passu, as diretrizes constitucionais.
O artigo 3º da Constituição de 1988 incorpora um programa de transformações
econômicas e sociais a partir de uma série de princípios de política social e econômica
que devem ser realizados pelo Estado brasileiro. Nesse sentido, as normas determi-
nadoras de fins do Estado dinamizam o direito constitucional, isso é, permitem uma
compreensão dinâmica da Constituição, com a abertura do texto constitucional para
desenvolvimentos futuros, implicando a obrigação do Estado em viabilizar a transfor-
mação da estrutura econômico-social. Em sendo assim, o artigo 3º deve ser entendido
como um instrumento que transmuta fins sociais e econômicos em normas jurídicas,
atuando como linha de desenvolvimento de todo o ordenamento constitucional.
Outrossim, o artigo 3º da CRFB/88 está imbuído de teleologia, o que lhe confere
relevância e a função de princípio geral fundamental de toda a ordem jurídica. Em
sua forma principiológica, o dispositivo define e informa a coletividade política e o
Estado ao enumerar as principais opções político-constitucionais a serem seguidas.
Sua vinculação imperativa conforma a legislação, a interpretação judicial e a atuação
dos órgãos estatais, “que devem agir no sentido de concretizá-los”. Como dito ante-
riormente, o viés transformador e progressista faz com que a Constituição dirigente
afaste interpretações constitucionais que afetem a concretização de seu “programa
de ação” encartado no art. 3º. Dessa forma, “qualquer norma infraconstitucional
deve ser interpretada com referência aos princípios constitucionais fundamentais”
(BERCOVICI, 2003, p. 289).
A vinculação do legislador ao projeto transformador da constituição dirigente obri-
ga-o a criar políticas públicas aptas a concretizar o programa constitucional, o que faz
com que eventuais omissões possam e devam ser solucionadas por meio da intervenção
do Judiciário. O controle de constitucionalidade de políticas públicas pode ser realiza-
do com base em perspectivas formais e materiais, ou seja, de acordo com a aferição da
aderência da política aos fins constitucionais fixados no art. 3º da CRFB.
No entanto, é válido destacar que o dirigismo constitucional não implica um neo-
constitucionalismo desenfreado ou um positivismo jurisprudencial, segundo o qual
o judiciário passaria a operar como a principal instância decisória e responsável so-
litária pelo sucesso do projeto constitucional. O positivismo jurisprudencial enxerga
60 curso de teorias constitucionais brasileiras

na norma e no direito os fins últimos de toda a pesquisa teórica sobre a Constituição


e sobre a atuação judicial, negligenciando, com isso, os contextos político e social, ao
mesmo tempo em que aliena os agentes políticos do cálculo jurídico. Bercovici alerta
para o fato da vinculação estender-se para todos os órgãos e poderes da República, e
não exclusivamente ao Judiciário.
No campo da jurisdição constitucional, Bercovici chama a atenção para os peri-
gos de um positivismo jurisprudencial praticado por Cortes que deixam de seguir o
projeto estipulado pela Constituição com base em argumentos ad hoc de conjuntura
política e econômica, de modo a obstaculizarem sua concretização.

2 A TEORIA EM PONTOS

● O Constitucionalismo Dirigente não se volta apenas para a forma cons-


titucional, mas também à matéria e conteúdo dos dispositivos constitu-
cionais, além de para os sentidos, fins, princípios políticos e ideologias
que conformam a Constituição, a realidade social da qual faz parte, sua
dimensão histórica e sua pretensão transformadora;
● A Constituição não pode ser compreendida em isolamento da realidade
histórico-social;
● O constitucionalismo dirigente é típico de constituições do Estado So-
cial, as quais positivam direitos prestacionais e dispõem sobre a inter-
venção estatal no domínio econômico, atuando como planejador, pro-
pulsor e executor dos programas de desenvolvimento social;
● A Constituição de 1988 fixa os fins e objetivos que devem direcionar o
Estado e a sociedade brasileiros. Os principais destinatários dos dispo-
sitivos desenvolvimentistas são os Poderes Legislativo e Executivo.
● O art. 3º da Constituição de 1988 opera como um guia interpretativo
para toda e qualquer decisão judicial, produção legislativa e ato
administrativo.

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: VOTO DO MINISTRO EROS


GRAU NA ADPF 46

3.1 Contexto do caso:

Em 2003, a Associação Brasileira de Empresas de Distribuição (ABRAED) propôs


ADPF que contestava a recepção da Lei 6.538/78 pela Constituição Federal de 1988,
especialmente no que concernia ao regime de monopólio da União sobre a recepção,
entrega e transporte de cartas7. Tendo em vista que esse monopólio aparentemente

7
Art. 21, X da Constituição de 88 - Compete à União: manter o serviço postal e o correio aéreo nacional. Art. 22,
V da Constituição de 88 - Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: V - serviço postal e Art. 9º
breno baía magalhães (organizador) 61

não se estendia à remessa e entrega de objetos com ou sem valor mercantil, disputas
judiciais foram travadas com base na possibilidade de empresas privadas atuarem no
ramo da entrega e distribuição de pacotes, documentos e objetos que não fossem ca-
racterizados como cartas.
A autora da ação argumentava que os Correios reivindicavam para si o monopó-
lio do envio de quaisquer encomendas involucradas por papel, fossem elas produtos,
mercadorias ou contas de luz, por enquadrarem-se no conceito de carta. A atuação
predatória dos correios, alegava nesses termos a inicial da APDF 46, representava clara
violação à livre iniciativa e à livre concorrência constitucionalmente garantidas8.

3.2 Pontos fundamentais

“[...]Assim, o significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço,


histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução
dele, mas sim o processo de contínua adaptação de seus textos normativos
à realidade e a seus conflitos.” “[...]o serviço postal é serviço público. Por-
tanto, a premissa de que parte a argüente é equívoca. O serviço postal não
consubstancia atividade econômica em sentido estrito, a ser explorada pela
empresa privada. Por isso é que a argumentação em torno da livre iniciativa
e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o sentido.”
“(...) a constituição está condicionada pela realidade histórica (...) não se a
pode separar da realidade concreta do seu tempo e a pretensão de eficácia
de suas normas somente pode ser realizada se for levada em conta essa rea-
lidade. (...) operar-se então a frustação material da finalidade de seus textos
que estejam em conflito com a realidade e ele se transforma em obstáculo
ao pleno desenvolvimento das forças sociais.
A realidade nacional evidencia que nossos conflitos são trágicos. A socie-
dade civil não é capaz de solucionar esses conflitos. Não basta, portanto,
a atuação meramente subsidiária do Estado. No Brasil, hoje, aqui e agora
--- vigente uma Constituição que diz quais são os fundamentos do Brasil e,
no artigo 3º, define os objetivos do Brasil (porque quando o artigo 3º fala da

da Lei 6.538/78 - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais: I - re-
cebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência
agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. § 1º - Dependem de
prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal; a) venda de selos e outras fórmulas
de franqueamento postal; b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência,
bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal. § 2º - Não se incluem no regime de mo-
nopólio: a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em
negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial; b) transporte e entrega de carta
e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento. Art. 47 -
Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições: CARTA - objeto de correspondência, com ou
sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer
outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário.
8
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
II - propriedade privada; e IV - livre concorrência.
62 curso de teorias constitucionais brasileiras

República Federativa do Brasil, está dizendo que ao Brasil incumbe cons-


truir uma sociedade livre, justa e solidária) --- vigentes os artigos 1º e 3º da
Constituição, exige-se, muito ao contrário do que propõe o voto do Ministro
relator, um Estado forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência
digna. A proposta de substituição do Estado pela sociedade civil, vale dizer,
pelo mercado, é incompatível com a Constituição do Brasil e certamente
não nos conduzirá a um bom destino.
Respeitar, fazer cumprir a Constituição, é fundamentalmente dar eficácia,
prover a eficácia dos artigos 1º e 3º”

3.3 Comentários

O Ministro Marco Aurélio, Relator originário do caso, votou pela procedência


da ADPF, portanto, pela não recepção da lei que estabelecia o monopólio dos cor-
reios na prestação dos serviços postais. Em sua leitura, o Ministro considerou ser
“necessária a devolução das atividades que ainda são prestadas pelo Poder Público à
iniciativa privada”, dando continuidade ao processo de transformação administrativa
do Estado brasileiro iniciada no final dos anos noventa. Em sua argumentação, não
existiria um sentido ontológico, constitucionalmente fechado sobre serviço público,
o que fazia com que houvesse espaço para a atuação do setor privado. O regime de
concorrência, ademais, induziria a busca de melhorias nos serviços prestados.
Para Eros Grau, por sua vez, não seria pertinente falar-se em violação à livre ini-
ciativa no caso, uma vez que os serviços postais não se enquadrariam como atividades
econômicas em sentido estrito, aptos, portanto, a serem explorados, em primeiro lugar,
pela iniciativa privada. Embora a escolha classificatória não mude o exercício exclusivo
da atividade, os Correios operariam, na visão do Ministro, em regime de privilégio,
típico dos serviços públicos, e não de monopólio, categorização mais acertada para
descrever aquelas situações em que há atividade econômica em sentido estrito.
Seria, exatamente, a situação de privilégio de um serviço público que o tornaria
atrativo, quando fosse o caso, ao exercício dessas atividades por empresas priva-
das sob o regime de concessão ou permissão. A interpretação do Ministro estava
embasada na ideia de que os serviços públicos sujeitos à concessão ou permissão
são aqueles explicitamente indicados pela Constituição, como a Saúde (art. 199) e a
Educação (art. 209). A Constituição, portanto, não sujeitou o serviço postal à livre
iniciativa privada, por isso a lei criou a Empresa Brasileira de Correios para operar
na prestação desses serviços de forma privilegiada.
O dirigismo constitucional é latente no voto do Ministro, para quem o Estado
brasileiro foi pensado pela constituinte como interventor em setores da economia em
regime de privilégio para, nesta quadra histórica e da situação de desigualdade da so-
ciedade brasileira, atuar vigorosamente de acordo com os objetivos transformadores
da República. Pensar de forma diferente, ou, no caso, atribuir a prestação de serviços
públicos à atividade privada não seria, tão somente, um erro político-econômico,
mas também uma violação ao programa constitucional formulado pelos arts 1º e 3º.
breno baía magalhães (organizador) 63

4 GUIA DE LEITURA

1) BERCOVICI, Gilberto. A Problemática da Constituição Dirigente: Algumas Considera-


ções sobre o Caso Brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 142, p. 35-51,
1999.
2) BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Edi-
tora Max Limonad, 2003.
3) BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, L. F. A Constituição Dirigente Invertida:
A Blindagem da Constituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. Revista
Trimestral de Direito Público, v. 45, p. 79-89, 2007.
4) BELLO, Enzo; BERCOVICI, Gilberto; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. O fim das
ilusões constitucionais de 1988?. Revista Direito e Práxis, v.10, n.3, 2019.

É inegável que a grande influência dos textos de Bercovici foi a obra de Canoti-
lho, inspirada pelo marxismo, escrita no final dos anos 70 e que fundamentou o texto
original da Constituição Portuguesa de 1976. De acordo com essa perspectiva, a
teoria constitucional deveria ser entendida como uma teoria sobre a materialidade do
pacto constitucional e sobre o seu cumprimento, pontos que desaguariam na discus-
são acerca da legitimidade da Constituição. Dessa forma, a normativa constitucional,
pensada como instrumento de viabilização da transformação social juridicamente
programada, depende do cumprimento efetivo de suas disposições para que possa
reivindicar sua legitimidade.
A leitura materialista da teoria constitucional foi avençada por Bercovici a
partir de meados da década de 90, período de nossa história política em que o
Presidente Fernando Henrique Cardoso começou a pôr em prática seu projeto de
desestatização de serviços públicos, de recentralização da federação nas mãos da
União e, o mais importante, de afrouxamento do viés intervencionista (dirigente)
do Estado brasileiro por meio de um pacote de Emendas Constitucionais. Portanto,
muitos dos escritos de Bercovici da década de 90 e início dos anos 2000 serviram
como denúncia e resistência a esse processo de desfiguração do projeto pactuado
na Constituinte.
Não bastasse o realinhamento constitucional brasileiro ao neoliberalismo, que
fora consolidado pelo lulismo, os defensores do dirigismo constitucional ainda ti-
veram de amargar a rasteira dada por Canotilho quando este reviu muitos de seus
posicionamentos intervencionistas que propugnavam a transição jurídica para o so-
cialismo. Sem chão ou teto, coube aos autores do dirigismo constitucional a denún-
cia, por meio da formulação da tese da “constituição dirigente invertida”, da fraude
constitucional em curso por meio da defesa irrestrita do capital estrangeiro e da fi-
nanceirização de políticas públicas. Diferentemente da formulação originária acerca
do dirigismo constitucional da política, em sua versão invertida, a constituição diri-
gente apregoa a necessidade de o Estado vincular-se irrestritamente aos ditames do
mercado internacional e à mergulhar em políticas de austeridade fiscal como forma
de garantir o desenvolvimento nacional.
64 curso de teorias constitucionais brasileiras

A crise econômica de 2015, o Golpe Parlamentar de 2016 e a aprovação da


PEC dos gastos em 2017 serviram de triste réquiem para a teoria do dirigismo cons-
titucional enquanto tese sobre a legitimidade material do pacto de 88. A postura as-
sumida pelo Estado brasileiro virou-se à direita, abandonando sua verve intervencio-
nista e transformadora da realidade social, com o governo neoliberal de Temer, que
diferentemente do lulismo dos governos do PT, não se preocupou com pautas redis-
tributivas e de superação das desigualdades, e com a ascensão de Bolsonaro, líder da
extrema-direita radical golpista.

Vídeo de aprofundamento: Entrevista de Canotilho sobre


a teoria dirigente e sua posterior revisão - Entrevista ao
programa da Tv Justiça “Direito sem Fronteiras”.

4.1 Indicação de Leitura Crítica'

1) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e Governabilidade. Revista de in-


formação legislativa, v. 31, n. 123, 1994.

Significativa porção dos críticos do constitucionalismo dirigente questiona a fi-


nalidade deste tipo de constituições, uma vez que, por se autointitularem “dirigentes”
(ou “governantes”), elas seriam, em verdade “totalitárias” por pretenderem dirigir ou
governar a sociedade, dando maior ênfase a um elemento periférico que é a nomen-
clatura. Por outro lado, a crítica aponta que elas estão repletas de “contradições” e de
“compromissos dilatórios”, como afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho.
Além disso, a crítica realizada à Constituição Dirigente estipula que ela “amar-
raria” a política, substituindo o processo democrático de decisão política pelas impo-
sições e ideologias constitucionais. Desse modo, de acordo com Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, ao dirigismo constitucional foi imputada a responsabilidade maior
pela “ingovernabilidade” estatal por “engessar” a política aos ditames constitucio-
nais, retirando assim a liberdade de atuação do legislador.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho analisa o problema da governabilidade a par-
tir de causas gerais que afetam todos os Estados e aspectos específicos que tocam
a realidade brasileira. A primeira causa diz respeito à falta de recursos suficientes
para o cumprimento das tarefas assumidas pelo Estado. Somada a essa, a segunda
agravaria a primeira pela inaptidão da organização governamental para dar conta de
todas essas tarefas, acarretando uma crise político-institucional, pois a organização
dos Estados contemporâneos seria imprópria para o desempenho de uma atuação
breno baía magalhães (organizador) 65

positiva. Ademais, estreitamente ligada à crise institucional, o autor aponta para a


deficiência do modelo democrático-representativo. Todas essas crises combinadas
encontram sua raiz na Constituição de 1988.

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Como a teoria dirigente caracteriza o nosso projeto constituinte? Como


essa visão particular sobre o art. 3º da CRFB/88 influencia as propostas
da teoria sobre a eficácia das normas constitucionais e o papel a ser
desempenhado pelos Poderes Legislativo e Judiciário?

2) Se a teoria da Constituição Dirigente entabula um critério material


de legitimidade, qual seja, o cumprimento dos objetivos socialmente
transformadores impulsionados pelo Estado, as reformas constitucio-
nais que congelam investimentos sociais e as leis que privatizam servi-
ços públicos podem ser consideradas inconstitucionais?
Capítulo 5

CONSTITUCIONALISMO
LIBERAL IGUALITÁRIO
Vitoria Gabriele Rodrigues de Almeida1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

Falar em uma “leitura liberal” do constitucionalismo brasileiro soa como


uma tautologia, uma vez que o constitucionalismo é, geneticamente, uma das
manifestações do liberalismo no âmbito da institucionalização política. De
alguma forma, portanto, todas as teorias que antecederam a essa e as que virão
a seguir aderem a preceitos básicos da ideologia política liberal. Até mesmo
as leituras conservadoras, por exemplo, arvoram-se em uma versão clássica,
puritana, do liberalismo para justificar sua interpretação da Constituição
brasileira. Então, sendo assim, o que justifica escrever um capítulo que corre
o risco da redundância?
Compartilhando do mesmo destino de outras ideologias políticas, o
liberalismo ramifica-se em um punhado de vertentes que reinterpretam,
constantemente, as raízes de seu pensamento. O liberalismo igualitário, por
sua vez, enxerga a igualdade como o bem mais importante a ser protegido
pela sociedade organizada politicamente, em detrimento de uma versão
individualista da liberdade, inspiradora das teorias conservadoras expostas
em capítulos anteriores. A vertente liberal igualitária, tradicionalmente
associada à centro-esquerda norte-americana, procura saídas para mitigar
as desigualdades sociais provocadas pelo capitalismo dentro dos esquemas
institucionais da democracia constitucional burguesa, como, por exemplo, por
meio do processo eleitoral, da separação de poderes, dos direitos fundamentais
e da Justiça Constitucional.

1
Discente do 8º período do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Estagiária do Tribunal
Regional Eleitoral do Pará, Membro do grupo de pesquisa “Filosofia Prática: investigações em política, ética e
direito”, ouvinte do Projeto de Extensão Estudos Constitucionais Compartilhados (ECCOM), Diretora Admi-
nistrativa do Centro Acadêmico de Direito Edson Luis.
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
breno baía magalhães (organizador) 67

O ideário liberal de controle da ação política por meio do direito gestou uma
compreensão sobre a Constituição, segundo a qual a limitação do poder estatal seria
o caminho mais seguro para a proteção das liberdades individuais contra o eventual
arbítrio das autoridades públicas. O liberalismo igualitário, como o conservador, en-
xerga na Constituição um documento que possui a função precípua de coordenar a
ação política. No entanto, para os liberais igualitários, a positivação de objetivos
transformadores da sociedade nas constituições não é propriamente um problema em
si, todavia, sua manutenção no texto não se afigura como necessária para a compre-
ensão da funcionalidade e legitimidade do pacto constitucional.
O constitucionalismo liberal igualitário brasileiro
foi fortemente influenciado pela seminal obra de John
Rawls, “Uma Teoria da Justiça” (1971), responsável
pelo reposicionamento das discussões sobre justiça
em torno da igualdade, que passou a figurar como
o elemento focal basilar de qualquer análise sobre o
funcionamento justo das instituições políticas. Se a
inserção das teses de Rawls foi recepcionada de braços
abertos pelos sociais-democratas, as formulações
teóricas de um dos mais destacados discípulos do
filósofo na área jurídica, Ronald Dworkin, seriam
acolhidas com ainda mais entusiasmo pela academia brasileira a partir de
meados da década de 90.
O liberalismo igualitário foi a ideologia política que serviu de base para
autores progressistas brasileiros, situados fora da ideologia socialista ou
comunista, justificar a legitimidade da recém promulgada Constituição de 1988
e sua intransigente batalha contra as desigualdades sociais. Portanto, trata-
se de um conjunto de constitucionalistas que, diferentemente do socialismo
advogado pelo constitucionalismo dirigente, não assume compromissos
políticos com o processo de transformação social do Brasil a partir de modelos
vinculados e particulares de sociedade, economia ou desenvolvimento.
A preocupação central desses autores está em assegurar a concretização de
nossa ambiciosa carta de direitos fundamentais, principalmente, por meio da
Jurisdição Constitucional.
Se nos for possível sumarizar uma parcela das ideias esposadas por esses
autores, diríamos que eles defendem uma postura liberal forte em relação à
proteção dos direitos fundamentais, sejam eles individuais, coletivos ou
sociais, os quais deverão ser, imediatamente, cumpridos pelo poder público.
A atuação dos agentes políticos não exclui do cálculo a atuação assertiva do
Poder Judiciário, arena importante para a concretização daqueles direitos por
meio da interpretação constitucional, ainda que isso signifique a interferência
em regras jurídicas majoritárias aprovadas por meio do procedimento
democrático. A Constituição, expressão do consenso político possível em uma
comunidade plural, é entendida como uma instituição procedimental
68 curso de teorias constitucionais brasileiras

importante e necessária para a formulação de políticas públicas, muito embora


não haja encartado em seu texto um modelo de desenvolvimento ou
planejamento econômico específicos a partir dos quais possa ser feito um juízo
de compatibilidade material (controle de constitucionalidade) entre as normas
originárias do pacto e suas eventuais alterações posteriores.
Dignas de menção e estudo são as contribui-
ções de Oscar Vilhena Vieira, responsável pela in-
corporação e adaptação mais bem sucedida das te-
ses do liberalismo igualitário para a realidade
brasileira. Além de destacado teórico, Oscar Vieira
notabiliza-se igualmente por sua militância prática
na área dos Direitos Humanos. Academicamente, o
jurista é autor de três indispensáveis obras que con-
densam, respectivamente, suas ideias sobre: 1) o
papel do STF na jurisdição constitucional brasileira
(2002), 2) a natureza, essência e estabilidade de
nosso pacto constitucional (1999) e 3) a crise políti-
ca pela qual passamos (2018).

O liberalismo igualitário nos EUA e sua influência nos constitucionalistas bra-


sileiros dos anos 2000.
Como é característico do liberalismo, o indivíduo é o cerne das discussões po-
líticas, devendo desfrutar de autonomia para perseguir os seus próprios planos de
vida, desde que não interfiram nos direitos individuais de outras pessoas. Assim
sendo, o papel do Estado, enquanto organização política da comunidade, consiste em
assegurar os meios necessários para a concretização dos planos de vida individuais,
e em não criar entraves ou obstáculos ao longo desse caminho (SOUZA NETO;
SARMENTO, 2016).
Em Uma Teoria da Justiça de Rawls, por exemplo, a organização de uma socie-
dade justa se dá a partir de dois princípios básicos hierarquicamente organizados
(dotados de prioridade lexical). O primeiro corresponde ao entendimento de que
cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades
básicas, compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos, o que
inclui a garantia material de ferramentas para que todas as pessoas concretizem
seus projetos de vida. Este princípio contempla o que chamamos tradicionalmen-
te de direitos fundamentais. Ainda que o ideal de justiça de Rawls advogue uma
perspectiva redistributiva, os direitos ou liberdades não entrariam nesse cálculo de
bens sociais aptos a serem redistribuídos de acordo com algum critério procedi-
mental de justiça.
Por sua vez, o segundo princípio estabelece que as desigualdades sociais e eco-
nômicas devem ser arranjadas de forma que ambas sejam: (a) para o maior benefício
breno baía magalhães (organizador) 69

dos menos favorecidos, de acordo com o princípio das economias justas, e (b) anexa-
do a cargos e posições abertas a todos em condições de igualdade justa de oportuni-
dades. Em razão da prioridade lexical desses princípios, um só pode ser satisfeito se
o anterior for cumprido, dessa forma, o acesso a cargos e posições em igualdade de
oportunidades só será possível caso todas as pessoas gozem, igualmente, das liber-
dades individuais e se o sistema político mantiver as desigualdades que beneficiem
os menos favorecidos.
Para o autor, tais princípios seriam adotados deliberadamente pela sociedade, caso
seus membros se encontrassem sob um “véu da ignorância”, que impediria o reconhe-
cimento de suas próprias características, levando, então, a uma eleição deliberativa,
racional e imparcial dos princípios de justiça (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012). As
principais influências do liberalismo igualitário no plano do constitucionalismo consis-
tem na defesa das liberdades individuais e afastamento de possíveis restrições calcadas
em argumentos paternalistas de utilidade social ou, por exemplo, justificativas emba-
sadas em vinculações tradicionais de uma comunidade. Ademais, o liberalismo igua-
litário no âmbito da teoria constitucional congrega uma leitura moral da Constituição,
corroborando para o entendimento do indivíduo como agente moral e livre, passível de
igual respeito e consideração (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012).
A estrutura de uma sociedade justa para Rawls representa a base do ideário li-
beral preocupado com questões sociais, uma vez que visa assegurar aos indivíduos
um conjunto de liberdades básicas a serem desfrutadas igualmente por eles, para que
possam fazer escolhas representativas de seu plano de vida. No entanto, em razão das
diferenças naturais entre as pessoas, é provável que nem todas desfrutem da mesma
sorte e acabem tendo sua situação afetada negativamente em uma economia de mer-
cado. Para tanto, mecanismos redistributivos serviriam para aplacar, de forma justa
e legitima, essa desigualdade.
Direitos civis clássicos, os direitos de liberdade, portanto, assumem precedência
em relação aos sociais e, seguindo essa linha, a legitimidade das políticas públicas
redistributivas é avaliada com base em seu respeito, ou não, aos direitos individuais.
Dessa forma, políticas sociais não são entendidas como direitos constitucionais per
se e a intervenção judicial está circunscrita à revisão das decisões majoritárias (polí-
ticas públicas) que, porventura, tenham afetado o esquema de liberdades titulariza-
do, igualmente, por todas as pessoas.

A reserva de Justiça da Constituição Brasileira

Em seu segundo trabalho de maior fôlego, fruto de sua tese de doutorado, Oscar
Vilhena defende a existência de uma reserva de justiça constitucional, encapsulada
pelas cláusulas pétreas e representada pelas normas que deverão ser consideradas
como essencialmente ou verdadeiramente constitucionais3. De acordo com a tese,
3
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a pro-
posta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e
periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.
70 curso de teorias constitucionais brasileiras

há uma diferença hierárquica e qualitativa entre as normas constitucionais positiva-


das no texto da Constituição de 1988, condição que legitima a comunidade política
a extrair do texto constitucional ordinário, por meio de emendas constitucionais, o
tecido adiposo conjuntural fruto de acordos frívolos firmados na constituinte sem
que essa reforma constitucional seja capaz de abalar a estrutura da Constituição.
A essência constitucional está fincada em solo firme pelas cláusulas superconsti-
tucionais que espelham as decisões fruto da escolha racional e consciente do povo
brasileiro em seu momento constituinte mais democrático.
Como liberal, o autor enxerga na Constituição um mecanismo de pré-compro-
metimento para colocar a salvo as liberdades fundamentais das decisões políticas
passionais das maiorias de turno. As normas constitucionais, portanto, condicionam
o procedimento democrático à realização de uma plataforma racional e ética. Ora, se
a constituinte representa, para os liberais, um momento decisivo, no qual a comuni-
dade política exerce seu juízo ponderado racional sobre quais serão as regras que a
regerão, o conteúdo desse acordo deve ser aceito, racionalmente, por todas as pessoas
como uma plataforma legítima e infundida de preceitos éticos.
Tendo em vista os incontornáveis e visíveis rastros dirigentes de nossa Consti-
tuição, Oscar não poderia simplesmente ignorá-los para sustentar a natureza liberal
igualitária de todo o pacto constitucional brasileiro, circunstância que o levou a su-
gerir que o texto de 1988 teria sido fruto de um “compromisso maximizador entre
diversos setores da sociedade e do Estado que detinham poder naquele momento. Ao
invés de um compromisso apenas em torno de regras fundamentais”.
Para o autor, portanto, a constituinte serviu, para, além da definição dos pontos
essenciais da Constituição (as cláusulas pétreas), mas também para o alavancamento
de interesses corporativos, momentâneos e demandas populares substantivas e legíti-
mas ao status de norma constitucional, ainda que, na verdade, esses temas devessem
permanecer no plano da legislação ordinária. Ademais desse desdobramento norma-
tivo, sua tese sugere que os constituintes cometeram um erro na formação do tecido
constitucional brasileiro, que afeta, na prática, a natureza da política brasileira, o
funcionamento das instituições e que gera o envelhecimento precoce do pacto.
Todavia, nem toda a normativa constitucional estaria tingida com as tintas do
pecado original do compromisso maximizador, e o próprio constituinte originário
teria reconhecido essa condição ao criar as cláusulas pétreas, essas sim, fruto de um
verdadeiro pacto constitucional, racional, ético e essencial para o desenvolvimento
político do povo brasileiro. Esse conjunto de regras está situado acima do excesso
adiposo enxertado pela barganha política mesquinha do compromisso maximizador,
além de fazer as vezes de critério interpretativo manejado pelo STF quando da aná-
lise das Emendas constitucionais que, porventura, atinjam algum elemento conside-
rado essencial da Constituição.
Por essa razão, explica Oscar, a Constituição brasileira escolheu um procedimen-
to de alteração formal pouco rigoroso, ao mesmo tempo em que atribuiu proteção
especial a cláusulas constitutivas de seu valioso e inestimável núcleo. Ou seja, o que
breno baía magalhães (organizador) 71

é periférico pode ser alterado, acrescentado ou removido sem maiores preocupações


sociais ou perturbações políticas por serem matérias inseridas no texto por meio de
uma decisão política, não obstante constituinte, pouco racional, frágil do ponto de vista
ético e não essencial para caracterizarem-se como essencialmente constitucionais.
Por outro lado, fruto de um consenso sobreposto digno de especial proteção,
as cláusulas pétreas espelham nossa “verdadeira reserva constitucional de justiça”
(VIEIRA, 1999, p. 30), o que significa dizer que não podemos conferir a dispositivos
constitucionais sem qualquer fundamentação ética (lembrem-se da tese do compro-
misso maximizador)4 a mesma importância conferida aos dispositivos superconsti-
tucionais. A legitimidade da Constituição não se limita à sua positividade legal, mas
a uma ideia racional de justiça formulada a partir de teorias éticas procedimentais,
típicas de sociedades democráticas e pluralistas. Nesse sentido, as decisões políticas
constitucionalizadas são pensadas como critérios racionais de justiça, cujo desen-
volvimento pode ser feito por tribunais, desde que apliquem um processo decisório
igualmente racional. Tendo em vista a natureza procedimental dos princípios de jus-
tiça, o que deve ser resguardado são os meios de participação popular no procedi-
mento, tendo em vista que os resultados serão sempre justos.
Os consensos sobrepostos são escassos e, na teoria constitucional, são formados
tão somente pelos princípios básicos de uma justiça política, ou seja, concretamente
representados pelos essenciais constitucionais cuja ética inerente resguarda a igual-
dade e a liberdade, e só serão aceitáveis se servirem como elementos estruturantes
que habilitam os cidadãos a constituírem, em sociedade, uma comunidade de indiví-
duos iguais e autônomos, que decidem ser governados por um direito justo. Ao mes-
mo tempo, esses consensos não podem ser instrumentos de bloqueio de mudanças e
de proteção de privilégios ou do status quo, ou seja, devem permitir mudanças sem
colocar em risco aquele conjunto de direitos (VIEIRA, 1999, p. 223-225).

A Resiliência da Constituição brasileira

Vieira (2018, p. 69) defende que a Constituição tem como principal função
“coordenar politicamente conflitos e divergências, tendo como baliza procedimentos
democráticos e os princípios jurídicos por ela assegurados”. No caso da Constituição
brasileira, o autor pondera que:

“a falta de confiança da classe política em si mesma, favoreceu a que todos


buscassem maximizar os seus interesses, entrincheirando-os na Constitui-
ção. Prevaleceu uma estratégia de curto prazo, em detrimento da adoção de
uma Constituição mais procedimental, que transferiria ao sistema político e

4
Dispositivos frutos de “maiorias eventuais, aglutinadas especialmente para a inserção de um tópico no texto
constitucional”. Em outro texto, Vieira (2018) atesta que a constituinte “foi a oportunidade para a inclusão
no texto de interesses específicos de natureza corporativista e patrimonialista, como a proteção à empresa
nacional, o resguardo a uma série de atividades econômicas monopolistas, o princípio da unidade sindical, ou
inúmeros prerrogativas de categorias de servidores públicos enraizadas na cultura política e nas estruturas do
Estado a buscarem entrincheirar no texto os seus interesses”.
72 curso de teorias constitucionais brasileiras

às futuras gerações o poder de ir conformando a vida política, econômica e


socia brasileira” (VIEIRA, 2018, p 148-149). Esse “compromisso maximi-
zador gerou um documento extensivo, detalhista e ambicioso”.

Esse tipo de Constituição está fadada a sofrer dos seguintes problemas: 1) sua
ambição normativa leva a uma frustração social, uma vez que o Estado não é capaz
de cumprir as promessas constitucionais; 2) dependência extrema de intervenção
legislativa posterior e 3) risco de sofrer de um envelhecimento precoce, exigindo
reformas constantes. Para Oscar, não obstante todos esses problemas, a Constituição
de 1988 tem se mostrado “surpreendentemente resiliente”5.
Sobre as reformas constitucionais pelas quais passaram nossa Constituição, o
autor aponta que elas não atingiram o “cerne da Constituição”, uma vez que o “siste-
ma político e a carta de direitos encontram-se basicamente preservados”. A maior
parte das reformas alterou a ordem econômica, políticas públicas e regimes jurídicos
corporativos (VIEIRA, 2018, p. 157). Em síntese, tendo em vista que essa reformas
não atingiram “os pilares fundamentais que organizam o edifício constitucional de
1988, estabelecido pelo art. 60, § 4º”, foi possível “uma intensa atualização da Cons-
tituição sem que sua identidade fosse alterada” (VIEIRA, 2018, p. 159-160). Para
Oscar, portanto, a reserva de justiça da Constituição permaneceu inalterada ou, no
mínimo, sofreu alterações pontuais legítimas, uma vez que não afetaram a função
constitucional básica de viabilizar a coordenação política e autonomia individual, ao
passo que as reformas constitucionais afetaram as decisões políticas tidas como
excessivas decorrentes do compromisso maximizador.

Vídeo de aprofundamento: O STF como guardião da


Constituição, com Oscar Vilhena

2 A TEORIA EM PONTOS

● Constituições do liberalismo igualitário possuem normas instituidoras


de direitos individuais e normas capazes de estruturar o Estado com
base no princípio da separação dos poderes. Desta feita, a Constituição

5
Tomando de empréstimo noção vinda da Física, um material resiliente é aquele que acumula energia sem que
se rompa ou modifique permanentemente sua natureza, além de, sob essas circunstâncias, ser capaz de retornar
a um ponto de equilíbrio.
breno baía magalhães (organizador) 73

ideal é aquela que possui o objetivo de conter o poder do Estado e coor-


denar a política;
● A Constituição brasileira agrega em seus dispositivos duas camadas
de decisões políticas coletivas: uma mais abrangente composta por um
compromisso maximizador efêmero e sujeita à reformas conjunturais
por meio de Emendas Constitucionais e outra mais profunda, represen-
tativa da decisão racional do povo brasileiro (consenso sobreposto) em
se autoconduzir por meio das funções habilitadores do Estado Demo-
crático e de um direito ético;
● As decisões constituintes frívolas do compromisso maximizador po-
dem ser desfeitas sem afetar a legitimidade e integridade do pacto de
88, o qual circunscreve-se ao plano das cláusulas pétreas – o núcleo li-
beral igualitário de nossa Constituição. Ou seja, a decisão política mais
relevante de nossa República é assegurar a proteção do Estado Demo-
crático de Direito e dos Direitos Fundamentais;
● Tendo em vista que não há um projeto político mais amplo e ambicioso
acolhido pela Constituição ou compromissos com uma ordem social
e econômica específicas, a função da Corte Suprema é assegurar que
Direitos Fundamentais sejam garantidos e protegidos, independente-
mente, das alterações formais feitas ao texto constitucional por Emen-
das Constitucionais;
● Tendo em vista que as condições habilitadoras da democracia que per-
fazem o núcleo constitucional exigem um elevado grau de inclusão
social e política, os Direitos Fundamentais calcados na igualdade as-
sumem posição de destaque na empreitada de construir uma cidadania
proativa e que seja capaz de atualizar o pacto constitucional sem des-
vencilhar-se do seu núcleo.

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: VOTO DO MINISTRO LUÍS


ROBERTO BARROSO NA ADPF 324

3.1 Contexto do caso

A ADPF 324, proposta pela Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG)


questionava um conjunto de decisões judiciais proferidas pela Justiça do Trabalho
sobre a terceirização de serviços em empresas e a responsabilidade do contratante.
Em síntese, a requerente alegou que a Justiça trabalhista brasileira havia produzido
entendimentos jurisprudenciais imprecisos e erráticos, que dificultavam a previsibi-
lidade quanto ao cabimento da terceirização em certa atividade meio ou fim, ponto
que inviabilizava a competitividade do agronegócio brasileiro no exterior.
Em seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso reservou expressiva porção à
explicação sobre como as transformações da economia internacional impactaram de
74 curso de teorias constitucionais brasileiras

forma determinante o direito brasileiro e seu substrato desenvolvimentista. A ideologia


econômica liberal esposada por Barroso serviu, em sua visão, para expor o anacro-
nismo de certas garantias normativas trabalhistas e, em última análise, da mentali-
dade socioeconômica que povoa o imaginário político nacional.

3.2 Pontos fundamentais:

(...) atualmente, estamos vivendo a revolução tecnológica, a chamada re-


volução digital, em que, dizem os técnicos, mudou-se de uma tecnologia
mecânica e analógica para a tecnologia eletrônica digital, o que permitiu a
massificação dos computadores, do telefone celular e a conexão de bilhões
de pessoas pela internet. (...) Nós vivemos sob a égide de um novo voca-
bulário, uma nova semântica e uma nova gramática. (...). Não há setor da
economia tradicional que não tenha sido afetado: todos estão atrás de novos
modelos de negócio.
A velha economia não morreu, mas tenta interagir com essa nova realidade.
A economia tradicional baseada na produção agrícola, baseada na produção
industrial, na transformação de matérias-primas, ouro, petróleo, trigo, essa
economia cede espaço a um novo tempo, em que o grande valor, a grande
riqueza é a propriedade intelectual, o conhecimento e a informação”
“enquanto a Revolução Industrial criou a classe trabalhadora, a revolução
que está em curso criará a classe inútil. O risco do desemprego é a assom-
bração das próximas gerações. A sociedade, as empresas, o direito do traba-
lho e o sindicalismo precisam adaptar-se ao novo tempo. (...). E, portanto,
nós temos que ser passageiros do futuro e não prisioneiros do passado”
É inevitável que, nesta realidade que eu acabo de descrever, o Direito do
Trabalho passe em todos os países de economia aberta por transformações
extensas e muito profundas. Não se trata – e eu queria deixar claro – de
escolhas ideológicas ou de preferências filosóficas. Trata-se do curso da
história. E é nesse ambiente que nós todos estamos aqui para pensar a me-
lhor forma de harmonizar os interesses e as demandas empresariais com os
direitos básicos dos trabalhadores. É preciso assegurar a todos os trabalha-
dores empregos, salários dignos e a maior quantidade de benefícios que a
economia comporte. Portanto, relativamente ao debate das questões traba-
lhistas que têm chegado ao Supremo, eu acredito que as posições que tenho
defendido aqui são as posições favoráveis aos trabalhadores”
(...)
“Quanto aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, esses
princípios asseguram às empresas a liberdade para o desenvolvimento de
atividades econômicas e das suas estratégias de produção em busca dos
melhores resultados, maior eficiência e maior competitividade. Desde que
respeitados os direitos mínimos previstos na Constituição e na legislação,
a Constituição não impõe adoção de um modelo específico de produção e
não impede o desenvolvimento de estratégias flexíveis. E, portanto, a Cons-
tituição não veda nem implícita nem explicitamente a terceirização. Essa é
breno baía magalhães (organizador) 75

uma projeção ideológica de quem a interpreta com viés antigo, com todo
respeito a quem pense diferente. E, no tocante à segurança jurídica, a inter-
pretação que tem sido dada pela Justiça do Trabalho a essa matéria criou um
ambiente de extrema insegurança jurídica, porque trabalha-se com concei-
tos jurídicos indeterminados como atividade-meio, atividade-fim, atividade
essencial, e, aí, cada um projeta nesses conceitos elásticos o que deseja”.

3.3 Comentários:

Em discussão travada na ADPF 324, o Supremo Tribunal Federal julgou proce-


dente, por maioria de votos (7 a 4), a constitucionalidade da terceirização de qualquer
atividade, meio ou fim, concernentes ao processo produtivo das empresas. A tese
firmada no julgado em questão foi a de que:

“I - É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não


se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da
contratada; II - Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a ido-
neidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsi-
diariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por
obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993.”

Em seu voto, o ministro-relator Roberto Barroso defendeu que a terceirização é


um importante instrumento para colaborar com a eficiência econômica e competiti-
vidade das empresas brasileiras, uma vez que a medida serve para estimular a cria-
ção de postos formais de trabalho. A decisão do Ministro segue à risca as premissas
do constitucionalismo liberal igualitário, uma vez que reconhece a inexistência de
projetos ou concepções de desenvolvimento acobertados pela Constituição de 1988,
mas tão somente de regras relativas à coordenação política e patamares mínimos de
cobertura social sujeitos à revisão conjuntural.
Dessa feita, a defesa de uma interpretação que defende a proibição da tercei-
rização da atividade-fim é encarada como uma postura ideológica contrária a um
modelo mais moderno de desenvolvimento econômico. Essa postura interpretativa
não nega força normativa aos direitos sociais, diga-se de passagem, no entanto, os
encara como direitos individuais cuja existência política se justifica para a garantia
de um patamar mínimo de dignidade, e não como obrigações estatais voltadas a um
projeto comunitário de emancipação social e de redução das desigualdades sociais
decorrentes do modo de produção capitalista6.
O compromisso maximizador que enxertou na Constituição princípios entre si
contrastantes, como os da livre iniciativa e livre concorrência, de um lado, e a va-
lorização ao trabalho de outro, demanda do intérprete a busca por um elemento in-
tra-constitucional que lhe permita julgar esse conflito sem engessar ou inviabilizar

6
Sobre os direitos sociais no modelo do constitucionalismo liberal igualitário: “Os direitos sociais básicos,
nesse sentido, podem ser defendidos como direitos políticos essenciais à realização da democracia” (VIEIRA,
1999, p. 246).
76 curso de teorias constitucionais brasileiras

o desenvolvimento econômico do país. No embate entre ambos os princípios, o guia


interpretativo são as cláusulas pétreas, o núcleo essencial de nossa Constituição, o qual,
realmente, parece “não veda (r) nem implícita nem explicitamente a terceirização”.

4 GUIA DE LEITURA

1) VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política São Paulo:
Malheiros Editores, 1994.
2) VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça. São Paulo: Malheiros
Editores, 1999.
3) VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, p. 441-463, 2008.
4) VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Comentários:

Os trabalhos de Oscar Vieira oferecem o que temos de mais moderno e sofisti-


cado em termos de teoria constitucional e análise política de nossa jurisprudência
constitucional, circunstância que pode ser creditada ao fato de o autor transitar, com
leveza e maestria, entre o estudo do Direito Constitucional e da Ciência Política.
Logo em sua primeira grande obra, Supremo Tribunal Federal (1994), o autor nos
apresentou a um tipo de pesquisa, até então, pouco comum na academia brasileira: o
estudo sistemático da jurisprudência do STF a partir de suas fundamentações e de seu
impacto político. Em síntese, o autor argumentou que a atuação da Corte como instân-
cia recursal impedia que ela exercesse, satisfatoriamente, sua função de proteção dos
direitos fundamentais. Por fim, Oscar alertou para o risco de a Corte consolidar uma
interpretação constitucional preocupada com as consequências econômicas e políticas
de suas decisões, em detrimento da coerência principiológica do texto constitucional.
Poucos anos depois, em A Constituição e sua Reserva de Justiça (1999), ambi-
cioso trabalho teórico sobre reformas constitucionais e seus eventuais limites, Oscar
defendeu tese já extensivamente explorada neste capítulo, segundo a qual nossas
cláusulas pétreas são nossa reserva de justiça, fruto e representação de nossa decisão
política mais fundamental - a de garantir que os indivíduos tenham condições mate-
riais igualitárias de participar ativamente do processo político. Foi nesta obra que o
autor cunhou importante conceito caracterizador de nosso processo constituinte em
seu léxico teórico, o de “compromisso maximizador”.
Em 2008, em meio a discussões sobre a suposta atitude ativista da Corte, invaso-
ra das competências constitucionais dos outros poderes, Oscar desenvolveu análise
mais nuançada e menos binária, pontuando que o STF tem agido de forma proativa
em razão dos poderes que lhes foram atribuídos pela Constituição e por eventuais al-
terações constitucionais posteriores, o que não significa dizer que não tenha tomado
decisões usurpadoras de suas competências constitucionalmente positivadas.
breno baía magalhães (organizador) 77

Sua mais recente obra, que sintetiza importantes aspectos de seu pensamento,
investiga a existência, ou não, de uma crise constitucional em curso no Brasil. Oscar
define as crises constitucionais como períodos específicos em que a capacidade cons-
titucional de canalizar os conflitos institucionais se encontra abalada, o que impõe
aos atores políticos e institucionais a necessidade de tomar decisões hábeis ao resta-
belecimento do equilíbrio e da funcionalidade do sistema constitucional. Contudo,
tais decisões devem ser constitucionalmente válidas. O que estaria em jogo, nessas
hipóteses, seria a própria sobrevivência constitucional, isto é, a capacidade dos atores
políticos e institucionais de coordenar seus conflitos em conformidade com as regras
e procedimentos constitucionais.
Portanto, crises constitucionais demandam o abandono das regras do jogo sem
que o desenho constitucional ofereça meios procedimentais para canalizar o conflito
político de forma efetiva ou de correção de eventuais violações. Em sua visão, o
mais importante seria a não usurpação da função atribuída a um Poder por outro,
o não abuso das competências próprias, e o respeito às decisões de cada Poder. As
premissas para esse estado de coisas são duas: uma norma constitucional atribuidora
de competências razoavelmente clara e autocontenção política. Por fim, após acalen-
tada e precisa análise do contexto político brasileiro dos últimos anos, Vieira (2018,
p. 42-43) constatou que estamos passando por um período de estresse constitucional,
mas não por uma crise.

4.1 Indicação de Leitura Crítica

BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Editora


Max Limonad, 2003.

Comentários.

O procedimentalismo atrelado ao projeto do Constitucionalismo Liberal em ge-


ral, mas que também encontra assento na tese igualitária da resiliência, é alvo de crí-
ticas por parte do Constitucionalismo Dirigente. De acordo com a premissa procedi-
mentalista, os valores substantivos de uma sociedade devem ser escolhidos por meio
de uma deliberação democrática, pelos poderes representativos do povo (Executivo e
Legislativo), de forma que os juízes só poderiam realizar o papel de garantidores do
processo democrático, manifestando-se apenas acerca de direitos de natureza pro-
cessual (BERCOVICI, 2003).
Para Bercovici, ferrenho defensor da vertente dirigente, tal desjuridificação do
sentido do projeto constitucional corrobora para a manutenção de privilégios e de-
sigualdades no cenário brasileiro, uma vez que a Constituição não consubstanciada
impede que haja um espaço de cidadania efetivo para que o pluralismo político seja
devidamente exercido. Ademais, uma Constituição munida de princípios e valores
materiais, tal como a Carta Magna de 1988, não pode ser avaliada apenas por meio de
seu aspecto formal, de modo que o procedimentalismo faz-se insuficiente de ambas
78 curso de teorias constitucionais brasileiras

as formas (BERCOVICI, 2003). De tal forma, a vertente dirigente se opõe ao Cons-


titucionalismo liberal, uma vez que o último favorece o interesse dos grupos privile-
giados, deturpando questões políticas e econômicas em prol de uma pequena parcela.

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Como a teoria liberal igualitária caracteriza o nosso projeto constituin-


te? Como sua interpretação sobre o art. 60, § 4º da CRFB/88 influencia
as propostas da teoria sobre o processo de reformas constitucionais e o
papel a ser desempenhado pelo Judiciário na concretização dos Direi-
tos Fundamentais?

2) Os objetivos constitucionais serão concretizados, tão somente, por


meio da proteção judicial de direitos fundamentais individuais? A au-
sência de projeto de desenvolvimento constitucionalizado afetará essa
tarefa da Justiça Constitucional?
Capítulo 6

NEOCONSTITUCIONALISMO
Marcellia Sousa Cavalcante1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

O processo constituinte legou ao povo brasileiro uma Constituição de objetivos


ambiciosos e transformadores, como tivemos a oportunidade de conferir em capí-
tulos anteriores. Entretanto, diferentes ideologias políticas e jurídicas entraram em
choque nos anos 90 a respeito da aplicabilidade das normas constitucionais. De um
lado estavam os autores de inclinação liberal clássica e juristas autoritários que não
encontravam mais suporte para sua visão antidemocrática de governo, ambos críti-
cos do constitucionalismo dirigente que influenciou a constituinte e defensores de
uma metodologia interpretativa constitucional semelhante ao positivismo exegético;
no outro canto da disputa teórica, restaram aglutinados autores progressistas social-
-democratas e socialistas, que apostavam na concretização da Constituição por meio
de critérios interpretativos arrojados e “pós-positivistas”.
A partir dos anos 2000, a preponderância do campo progressista acadêmico na
interpretação constitucional, representado por autores vinculados à tese da efetivi-
dade, fez com que as prescrições dessa escola fossem aperfeiçoadas para acomodar
e ajustar-se à chegada ao poder, pela primeira vez sob a Constituição de 1988, de um
regime político igualmente progressista. Uma vez atestada a vitória da batalha pela
efetividade constitucional no final dos anos 2000, restava agora pavimentar a criação
de teorias constitucionais que fossem capazes de municiar o STF com um arsenal
doutrinário capaz de fazer frente aos potenciais emancipatórios do texto constitucio-
nal. Entra em cena o Neoconstitucionalismo.
Criado por autores italianos ao fim da década de 90 para contraporem-se a ten-
dências positivistas da filosofia jurídica contemporânea, e não para criar uma teoria
abrangente sobre o Direito Constitucional do pós-guerra, o neoconstitucionalismo,

1
Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do projeto de extensão
Estudos Constitucionais compartilhados (ECCOM). E-mail: marcellia.cavalcante@icj.ufpa.br
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
80 curso de teorias constitucionais brasileiras

vindo da Itália, pode ser muitas coisas: uma teoria do direito, uma ideologia ou um
método de análise do direito. Portanto, os autores italianos que criaram o rótulo, no-
meadamente Susanna Pozzolo3 e Paolo Comanducci4, não intencionavam criar ou
formular uma teoria ambiciosa sobre as inovadoras características do direito consti-
tucional da América-Latina no período de consolidação democrática, mas simples-
mente apresentar uma metodologia jurídica superadora do positivismo jurídico e do
jusnaturalismo. Em síntese, os autores criticavam, em sua maioria, uma teoria do
direito emergente, mas não propunham uma teoria da Constituição5.
No capítulo sobre a doutrina da efetividade, vimos como Barroso, em seus tra-
balhos maduros, reconheceu que a base teórica “positivista” empregada naquele mo-
mento serviu aos seus “propósitos” e que suas prescrições precisariam ser aperfei-
çoadas com o aporte europeu do neoconstitucionalismo, o qual, ao menos em sua
vertente jurídica, advogava a favor de uma metodologia “pós-positivista”. A transi-
ção metodológica, capitaneada por Barroso, da efetividade para o neoconstituciona-
lismo não estava baseada na alteração formal ou material do texto constitucional de
1988, mas no reconhecimento de que a conjuntura política, econômica e social era
propícia para o desabrochar dessa nova abordagem teórica.
Para tanto, o neoconstitucionalismo é apresentado como um novo paradigma do
Direito, situado dentro de um marco histórico característico do pós-II Guerra Mun-
dial, ancorado em uma proposta jusfilosófica denominada “pós-positivismo” e, por
fim, embasado em um marco teórico composto por três elementos que alteraram a
compreensão da normatividade constitucional.
Segundo a análise de Barroso, o marco histórico dessa proposta, analisado em
contexto internacional (particularmente, o europeu), foi o constitucionalismo do pós-
-guerra, especialmente aquele desenvolvido na Alemanha e na Itália. No contexto
nacional, são destaques a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização
em que a primeira figurou como protagonista. Na Alemanha, a Lei Fundamental de

3
“o termo “neoconstitucionalismo, ainda que tenha sido pensado para identificar uma postura jus filosófica
antipositivista, muito rapidamente converteu-se em um termo ambíguo: sua extensa e vertiginosa difusão no
léxico de jusfilósofos e constitucionalistas ampliou sua capacidade denotativa e reduziu suas potencialidades
conotativas. Assim, rapidamente o termo foi empregado para indicar fenômenos diferentes, ainda que conec-
tados entre si” (COMANDUCCI, 2010, p. 209).
4
“neoconstitucionalismo é uma etiqueta que, ao final dos anos 90 do século passado, uns integrantes da escola ge-
novesa de teoria do direito (...) começaram a usar, como forma de classificar, para criticá-las, algumas tendências
pós-positivistas da filosofia jurídica contemporânea que apresentavam traços comuns, mas também diferenças
entre si. A etiqueta obteve muito êxito, mas, sobretudo, multiplicaram-se, na Europa e América Latina os estudos
dessas tendências, e sua comparação com o positivismo jurídico. (COMANDUCCI, 2010, p. 175).
5
“Por ‘neoconstitucionalismo’, como já adiantamos, não deveriam ser entendidas nem doutrinas e nem insti-
tuições, como no caso de ‘constitucionalismo’, mas somente doutrinas: em especial a teoria ou doutrina do
direito, intermediária ao jusnaturalismo e juspositivismo, pela qual entre direito e moral existiria uma inter-
ligação necessária, ainda que limitada aos Estados constitucionais. Segundo os neoconstitucionalistas, em
outros termos, a tese juspositivista da separabilidade entre direito e moral valeria no máximo para o direito do
Estado legislativo do século XIX: direito cuja fonte principal, se não única, era a lei. A mesma tese não valeria
mais, ao contrário, para o Estado constitucional do século XX, onde não apenas a fonte principal do direito é
a constituição, mas a totalidade do direito é constitucionalizada, refreada por princípios e valores constitucio-
nais” (BARBERIS, 2006)
breno baía magalhães (organizador) 81

Bonn de 49 e a atuação do Tribunal Constitucional foram os principais marcos de um


novo direito constitucional emergente dos escombros da guerra, mais sensível aos
Direitos Humanos e à democracia. Essa perspectiva constitucional aporta no Brasil
com a Constituição de 1988, responsável por promover a travessia “de um regime
autoritário, intolerante, por vezes, violento para um estado democrático de direito”
e por ter “propiciado o mais longo período de estabilidade institucional da história
republicana do país” (BARROSO, 2005, p. 99).
Quanto ao marco filosófico, o chamado “pós-positivismo” surgiu como uma res-
posta às críticas feitas à pretensão de neutralidade científica do positivismo, incapaz
de justificar-se, principalmente politicamente, por não ter fornecido instrumentos
críticos ao Direito e à Teoria do Estado no momento da ascensão de regimes totali-
tários e autoritários na Europa. Ademais , o pós-positivismo sedimentaria a supera-
ção histórica do jusnaturalismo metafísico e anticientífico. Barroso (2005, p. 100),
portanto, sugere que o pós-positivismo afigura-se como a confluência de dois para-
digmas opostos, o jusnaturalismo e o positivismo jurídico, afiançada pela “quadra
atual”, que demanda a sublimação daqueles rótulos em sua formação pura em favor
de um rótulo genérico e agregador.
A filosofia pós-positivista neoconstitucional estaria aberta a um conjunto
“inacabado” de reflexões que busca ir além da legalidade estrita, mas que não des-
preza o direito posto e que procura empreender uma leitura moral do Direito, mas
sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento
jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria da justiça, mas não podem comportar
voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais.
Apesar disso, a proposta não recorre a valores metafísicos para a consecução
da Justiça e nem retoma a uma proposta tipicamente jusnaturalista, assim como não
se esgota na lógica formalista comum às múltiplas teorias do positivismo, as quais
esse novo paradigma tem a pretensão de superar. Por conta disso, o pós-positivismo
é caracterizado pela busca de uma alternativa à crise científica, de modo a retomar a
ligação entre Direito e Moral, a partir da interpretação de princípios jurídicos abertos,
aos quais é reconhecido pleno caráter normativo nessa nova dinâmica (SARMENTO;
SOUZA NETO, 2012).
Por fim, do ponto de vista teórico, três transformações no direito constitucional
foram importantes para caracterizar o neoconstitucionalismo: (I) a força normativa
da Constituição; (II) a expansão da jurisdição constitucional e a nova interpretação
constitucional (III).
A força normativa da Constituição. Como continuidade dos esforços da teoria da
efetividade, Barroso elenca a atribuição de força normativa jurídica às normas cons-
titucionais como um dos maiores ganhos políticos do século XX. Esse status jurídico
serviu para reforçar a vinculatividade dos Poderes às determinações constitucionais
e sua concretização por parte do Judiciário. Esse debate tomou conta do país na dé-
cada de 80, capitaneado pela doutrina da efetividade como estratégia de combate à
insinceridade constitucional e ao autoritarismo.
82 curso de teorias constitucionais brasileiras

A expansão da Jurisdição Constitucional. A substituição da soberania parla-


mentar pela supremacia da Constituição abriu passagem para o reforço da jurisdição
constitucional, agora plenamente competente para concretizar direitos fundamentais
constitucionalizados, que por vezes ficavam “imunizados em relação ao processo
político majoritário”. A Constituição de 1988 foi a responsável pela expansão da ju-
risdição constitucional no Brasil, atribuindo ao STF novas competências e munician-
do-o de ações capazes de fazer frente à inércia política (ADI, ADC, ADO, ADPF,
Mandado de Injunção etc.).
A nova interpretação constitucional. Em síntese, Barroso parte da premissa
sobre a nova força normativa da Constituição para defender a especificidade in-
terpretativa das normas constitucionais, ponto que o leva a defender a existência
de um “elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional”.
Entre os princípios constitucionais próprios, é possível destacar os seguintes: a
presunção de constitucionalidade, o da interpretação conforme a Constituição,
o da unidade da Constituição, razoabilidade, efetividade, a ponderação e a argu-
mentação jurídica.
Dessa feita, conforme demonstra Ana Paula de Barcellos, o neoconstituciona-
lismo adota um plano metodológico-formal, no qual se percebe a normatividade e a
superioridade da Constituição, bem como a centralidade dessa nos sistemas jurídi-
cos. A proposta abrange um plano material relacionado à incorporação explícita de
valores e opções políticas nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à
promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais, e à expansão de confli-
tos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do
próprio sistema constitucional.

Neoconstitucionalismo(s)

Em vista das múltiplas classificações que podem ser feitas


ao mesmo fenômeno, é importante ressaltar que o neoconsti-
tucionalismo não é uma proposta teórica homogênea. Miguel
Carbonell, um dos principais divulgadores do termo no Brasil,
defende que não existe um único “Neoconstitucionalismo”,
mas sim Neoconstitucionalismo(s)6, chamando a atenção para
as variadas espécies de constitucionalismos que existem tanto
na América Latina, Europa, quanto em cada experiência na-

6
“Essa antologia pode ser considerada atualmente, talvez, o texto referencial em relação ao neoconstituciona-
lismo; junto aos trabalhos de autores que podemos chamar de neoconstitucionalistas, como Ferrajoli, Alexy e
Alfonso Garcia, ou que são contíguos ao neoconstitucionalismo, como José Juan Moreso, Juan Carlos Bayón e
Santiago Sastre, a antologia abriga também alguns textos dos inventores genoveses do neoconstitucionalismo:
Guastini, Comanducci, Pozzolo e Barberis. Como os livros já citados, contudo, também nos textos compreen-
didos na antologia de Carbonell confirmam a tendência de dilatar excessivamente o conceito de neoconstitu-
cionalismo: estendendo o seu uso pelas teorias das mesmas instituições teorizadas” (BARBERIS, 2006)
breno baía magalhães (organizador) 83

cional em particular. É nesse sentido que, já de pronto, é preciso ter em mente que o
termo “neoconstitucionalismo” incorpora em si uma miríade de autores e posturas
teóricas que nem sempre podem ser aglutinadas dentro de um mesmo conceito guar-
da-chuva.
Os adeptos do neoconstitucionalismo no Brasil buscam embasamento no pensa-
mento de juristas que se filiam a linhas teóricas bastante heterogêneas (por vezes,
incompatíveis entre si), como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gusta-
vo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino. Na verdade, nenhum desses
autores se define, ou se definiu no passado, como alguém que advoga em prol do
cânone neoconstitucionalista (SARMENTO, 2009, p. 02), apesar de terem fornecido
subsídios teóricos que respaldaram sua formulação, especialmente em relação à sín-
tese proposta por Carbonell.
Para fins didáticos, segue tabela com algumas das principais obras lançadas por
estrangeiros referenciadas com frequência por autores nacionais:

Autores/Autoras Obra e ano de lançamento

Miguel Carbonell Neoconstitucionalismo(s) (2003).


Robert Alexy Teoria dos Direitos Fundamentais (1985).

Teoria da Argumentação Jurídica (1978).

Ronald Dworkin Levando os Direitos a Sério (1977).


Uma questão de princípio (1985).

Carlos Santiago Nino A Constituição da democracia deliberativa (1998)

Ética e Direitos Humanos (1989).


Jürgen Habermas Entre facticidade e validade (1992)

Manuel Atienza As razões do direito (2002)

Autores/Autoras Obra e ano de lançamento

Suzana Pozzolo Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico (2001).

Luigi Ferrajoli Juspositivismo crítico e democracia constitucional


(2002).
Gustavo Zagrebelsky O Direito dúctil (1992)
84 curso de teorias constitucionais brasileiras

A obra mais referenciada nos textos brasileiros em análise foi a de Carbonell,


autor mexicano que versou sobre noções introdutórias e sobre os múltiplos neocons-
titucionalismos na obra “ Neoconstitucionalismo(s)”, publicada em 2003. É muito
provável que a nomenclatura difundida pelo mexicano tenha sido inspirada pela au-
tora italiana Suzana Pozzolo.
O que há de “neo” no Constitucionalismo?
Tão logo o termo “neoconstitucionalismo” foi proposto pelo mexicano, muitos
de seus detratores denunciaram a ausência de elementos que justificassem o prefi-
xo “neo”, ou seja, questionaram a ausência de novidades nas propostas da teoria.
O argumento dos críticos pode ser sumarizado da seguinte forma: ora, se a premissa
básica da ideologia política constitucionalista é a defesa da proposição de que nor-
mas jurídicas são capazes de viabilizar o controle do poder estatal, o que implica,
por óbvio, a formatação de várias e diversas soluções institucionais a depender das
circunstâncias políticas e culturais locais, o que haveria de novo nos arranjos que se
autoproclamam “neoconstitucionalistas”?
Carbonell (2009) respondeu, por sua vez, que a novidade da teoria neoconstitu-
cional está na cumulação simultânea dos seguintes elementos: 1) Alterações teóricas
no Constitucionalismo; 2) Textos constitucionais materiais e substantivos caracterís-
ticos do pós-2ª guerra; e 3) formulação de cânones interpretativos específicos (pon-
deração, razoabilidade, princípios etc.).
Em sua argumentação, o autor reconhece que já havia textos constitucionais
substantivos antes da segunda-guerra, como a Constituição Mexicana de 1917 e de
Weimar de 1919; e que algumas práticas jurisprudenciais anteriores a esse período
também poderiam ser enquadradas como ativistas, principalmente aquelas propostas
pela Suprema Corte dos EUA (Marbury v Madison) e que, por fim, traços de pós-po-
sitivismo já estavam presente nas discussões teóricas desde os anos 30.
Entretanto, o neoconstitucionalismo se destacaria por apresentá-los em conjunto
- a combinação dos três elementos acima mencionados. Entretanto, continua Car-
bonell, para além dessa concertação, a novidade também está nos efeitos, ou seja,
na observação do Estado constitucional de direito em funcionamento. No campo
prático, muitas das mudanças no campo constitucional dos últimos 50 anos podem
ser explicadas pelas ferramentas analíticas oferecidas pelo cânone neoconstitucional.

Vídeo de aprofundamento: Neoconstitucionalismo – por Luís Roberto Barroso


breno baía magalhães (organizador) 85

2 A TEORIA EM PONTOS

• Reconhecimento da força normativa da Constituição e valorização da


sua importância no processo de constitucionalização de todo o ordena-
mento jurídico. Como consequência da força normativa e da constitu-
cionalização, os direitos fundamentais passam a espraiar valores mo-
rais para a produção legislativa infraconstitucional e a serem aplicados
nas relações privadas;
• Rejeição de uma espécie de formalismo jurídico vinculado à exegese
estrita do texto constitucional em favor do recurso frequente a métodos
ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico, tais como: a pondera-
ção, tópica, teorias da argumentação, etc.;
• Judicialização da política como decorrência natural e desejada, posta
em prática por meio da irradiação das normas e valores constitucionais,
sobretudo aqueles relacionados aos direitos fundamentais;
• Direitos Fundamentais como valores objetivos, irradiadores de obriga-
ções morais e políticas para todo o ordenamento jurídico e fornecedo-
res, ao intérprete constitucional, de vasto campo para conformação;
• Reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez
maior da Filosofia Política nos debates jurídicos;

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: VOTO DO MINISTRO AYRES


BRITTO NA ADI 4277/ADPF 132

3.1 Contexto do caso:

Não obstante o pacto de 1988 soar como uma decisão política progressista, a
população brasileira, extremamente religiosa, ainda mantem um incômodo conser-
vadorismo em temas morais controversos. A possibilidade de casais homoafetivos
constituírem famílias e desfrutarem dos mesmos direitos e obrigações civis a que
se submetem casais heteronormativos enfrentava resistência de setores ligados às
religiões cristãs e das bancadas conservadoras do Congresso, fatores que impossibi-
litavam que esses direitos fossem garantidos pela atuação dos Poderes Executivo e
Legislativo.
Em 2011, o STF, antecipando-se às alas políticas do Estado, decidiu que casais
homoafetivos formavam entidades familiares e que, por essa razão, estavam subme-
tidos ao regime da união estável, não obstante a Constituição tenha estipulado que
“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento
(§ 3º, art. 226)”. A literalidade desse dispositivo constitucional serviu de base para
críticas conservadoras à decisão da Corte, que passou a ser caracterizada como “ati-
vista”, “violadora da separação de poderes” e de preceitos hermenêuticos básicos.
86 curso de teorias constitucionais brasileiras

O objetivo principal da ADI 4277, proposta pela PGR, era requerer ao STF o re-
conhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, desde que preenchidos
os mesmos requisitos necessários para a configuração da união estável entre um ho-
mem e uma mulher, e que os mesmos deveres e direitos originários da união estável
fossem estendidos aos companheiros nas uniões homoafetivas, tudo de acordo com a
interpretação conforme do art. 1723 do Código Civil brasileiro.

3.2 Pontos fundamentais

“Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já an-
tecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional
em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como
dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em
nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento
discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos.
Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado
pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontal-
mente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o
explícito objetivo que se lê no inciso em foco).
“Bem de todos”, portanto, constitucionalmente versado como uma situação
jurídica ativa a que se chega pela eliminação do preconceito de sexo. Se se
prefere, “bem de todos” enquanto valor objetivamente posto pela Consti-
tuição para dar sentido e propósito ainda mais adensados à vida de cada ser
humano em particular, com reflexos positivos no equilíbrio da sociedade.
O que já nos remete para o preâmbulo da nossa Lei Fundamental, consa-
grador do “Constitucionalismo fraternal” sobre que discorro no capítulo
de nº VI da obra “Teoria da Constituição”, Editora Saraiva, 2003. Tipo de
constitucionalismo, esse, o fraternal, que se volta para a integração comu-
nitária das pessoas (não exatamente para a “inclusão social”), a se viabili-
zar pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental
igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social) dos
estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados. Estratos
ou segmentos sociais como, por ilustração, o dos negros, o dos índios, o das
mulheres, o dos portadores de deficiência física e/ou mental e o daqueles
que, mais recentemente, deixaram de ser referidos como “homossexuais”
para ser identificados pelo nome de “homoafetivos”. Isto de parelha com
leis e políticas públicas de cerrado combate ao preconceito, a significar, em
última análise, a plena aceitação e subseqüente experimentação do plura-
lismo sócio-político-cultural. Que é um dos explícitos valores do mesmo
preâmbulo da nossa Constituição e um dos fundamentos da República Fe-
derativa do Brasil (inciso V do art. 1º). Mais ainda, pluralismo que serve
de elemento conceitual da própria democracia material ou de substância,
desde que se inclua no conceito da democracia dita substancialista a res-
peitosa convivência dos contrários. Respeitosa convivência dos contrários
que John Rawls interpreta como a superação de relações historicamente ser-
vis ou de verticalidade sem causa. Daí conceber um “princípio de diferen-
ça”, também estudado por Francesco Viola sob o conceito de “similitude”
breno baía magalhães (organizador) 87

(ver ensaio de Antonio Maria Baggio, sob o título de “A redescoberta da


fraternidade na época do ‘terceiro’ 1789”, pp. 7/24 da coletânea “O PRIN-
CÍPIO ESQUECIDO”, CIDADE NOVA, São Paulo, 2008). (...)
“Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família,
penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse
do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário im-
plicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso
indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data
vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Consti-
tuição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arre-
matados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e
pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no
igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida
esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo
doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as
mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de
se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a en-
contros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos. Uma canhestra
liberdade “mais ou menos”, para lembrar um poema alegadamente psico-
grafado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier, hoje falecido,
que, iniciando pelos versos de que “A gente pode morar numa casa mais
ou menos,/Numa rua mais ou menos,/ Numa cidade mais ou menos”/ E
até ter um governo mais ou menos”, assim conclui a sua lúcida mensagem:
“O que a gente não pode mesmo,/ Nunca, de jeito nenhum,/ É amar mais ou
menos,/ É sonhar mais ou menos,/ É ser amigo mais ou menos,/ (...) Senão
a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos”.
“com efeito, após falar do casamento civil como uma das formas de cons-
tituição da família, a nossa Lei Maior adiciona ao seu art. 226 um §3º para
cuidar de uma nova modalidade de formação de um autonomizado núcleo
doméstico, por ela batizado de “entidade familiar”. É o núcleo doméstico
que se constitui pela “união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento”. Donde a necessidade de se aclarar:
II.1. - que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma lógica
inicial: dar imediata seqüência àquela vertente constitucional de incentivo
ao casamento como forma de reverência à tradição sóciocultural-religiosa
do mundo ocidental de que o Brasil faz parte (§1º do art. 226 da CF), sabi-
do que o casamento civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de
sexos diferentes, até hoje. Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição
Federal sem a menor referência aos substantivos “homem” e “mulher”;
II.2. que a normação desse novo tipo de união, agora expressamente re-
ferida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito
constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações
jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero
humano, sabido que a mulher que se une ao homem em regime de compa-
nheirismo ou sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos
de sua honra objetiva, tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre
88 curso de teorias constitucionais brasileiras

nós (não se pode esquecer que até 1962, a mulher era juridicamente cate-
gorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil, nos termos
da redação original do art. 6º do Código Civil de 1916); tanto é assim que
o §4º desse mesmo art. 226 (antecipo o comentário) reza que “Os direitos e
deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo ho-
mem e pela mulher”. Preceito, este último, que também relança o discurso
do inciso I do art. 5º da Constituição (“homens e mulheres são iguais em di-
reitos e obrigações”) para atuar como estratégia de reforço normativo a um
mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes.

Comentários:

O Ministro Ayres Britto foi o autor de importantíssimas decisões da corte nos


anos 2000, e essa, de 2011, talvez tenha sido seu mais importante legado para a so-
ciedade brasileira e, incidentalmente, para a história do tribunal. A decisão do STF,
efetivamente, mudou o país, que passou, poucos anos depois, a reconhecer o casa-
mento entre pessoas do mesmo sexo como um direito fundamental.
O estilo do Ministro representa bastante o espírito do neoconstitucionalismo, em
toda sua plenitude de vícios e virtudes. A retórica inflamada, a citação de autores
nacionais e estrangeiros que não dialogam em suas bases teóricas, a crença de que há
um sentido mais abstrato e unívoco a ser atribuído ao texto constitucional (constitu-
cionalismo fraternal) e, o mais importante, a falta de respostas diretas aos problemas
centrais dos casos em julgamento na Corte.
Como visto, em relação ao uso dos substantivos “homem” e “mulher” no texto
constitucional, ponto mais delicado do julgado, o Ministro sustentou que o objetivo
do legislador constituinte fora o de atribuir imediata sequência ao incentivo ao casa-
mento, bem como, e o mais importante, o de reforçar o estabelecimento de relações
jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano,
nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Não
nos parece que a interpretação do dispositivo seja tão simples e clara como o Minis-
tro quer transparecer, uma vez que ele se eximiu de rebater a posição contrária, que
enxerga no texto constitucional uma defesa peremptória do casamento heteronor-
mativo a partir da literalidade constitucional (originalismo). Não obstante eventuais
deslizes na fundamentação, comuns às argumentações constitucionais das cortes
brasileiras, os autores do capítulo não deixam de reconhecer que essa decisão talvez
tenha sido a mais importante de toda a história do STF.

4 GUIA DE LEITURA

1) BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triun-


fo tardio do direito constitucional no Brasil. Bol. Fac. Direito U. Coimbra, v. 81, p. 233, 2005;
2) BARCELLOS, Ana Paula de. Um debate para o neoconstitucionalismo. Papéis do Direito
Constitucional no fomento do controle social democrático: algumas propostas sobre o tema
da informação. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 12, 2008;
breno baía magalhães (organizador) 89

3) SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Fi-


losofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 113-146,
2009.

As produções acadêmicas do início dos anos 2000 de Luís Roberto Barroso


foram fundamentais para o desenvolvimento teórico do Direito Constitucional
e é impossível dissociá-las do centro acadêmico de onde partiram, bem como
ignorar o fato de elas terem sido posteriormente impulsionadas pelos orientan-
dos do autor. Com efeito, a atuação de Barroso como professor da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi fator importante para o refinamento e
difusão de suas teses.
O texto “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tar-
dio do direito constitucional no Brasil)”, de autoria de Barroso (2005), apresenta a
tese dos marcos histórico, filosófico e teórico do Neoconstitucionalismo e pode ser
caracterizado como o marco-zero do debate neoconstitucionalista no Brasil. Para ter-
mos uma ideia da difusão e impacto desse texto, basta mencionar que, de acordo com
dados fornecidos pelo Google Acadêmico, o artigo foi citado por quase 1.300 (mil e
trezentos) trabalhos acadêmicos! Em linha com seu projeto de empoderar o STF em
prol da defesa dos Direitos Fundamentais, Barroso discorre sobre a judicialização da
política por meio de uma abertura maior ao papel do Judiciário, em razão da crise de
legitimidade ou crônica disfunção institucional por quais passam o Legislativo e o
Executivo no Brasil.
Nessa mesma esteira, Ana Paula de Barcellos, jurista formada na UERJ sob
orientação de Barroso, é autora de outro texto importante dessa linha teórica, in-
titulado: “Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas
Públicas” (2005), que identifica essa proposta sob o ponto de vista metodológico-
-formal e material, além de discorrer sobre a possibilidade de o Judiciário controlar
políticas públicas para a efetividade dos direitos fundamentais, por força de teorias
substancialistas.
Em “Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades” (2009), Daniel
Sarmento, professor de Direito Constitucional da UERJ que não foi discípulo direto
de Barroso e crítico pontual de algumas de suas teses, concorda que é possível ade-
rir à análise positiva do decano sobre o neoconstitucionalismo. O texto destaca-se,
também, por seu didatismo, uma vez que explica a formação do termo, como foi
recepcionado no Brasil e quais argumentos podem ser levantados para defendê-lo ou
criticá-lo.
Nesse importante texto, Sarmento explica que o “triunfo tardio”, aludido por
Barroso em seu clássico artigo, referia-se ao fato de as inovações constitucionais vin-
das do pós-guerra só terem aportado, com atraso, no Brasil em 1988. No entanto, as
alterações normativas não foram suficientes, e o autor destaca o relevante papel de-
sempenhado pela dogmática jurídica no que denominou de “mudança de paradigma”
marcada por momentos nessa “evolução”, começando na doutrina da efetividade e
chegando ao “pós-positivismo constitucional”. Ao sugerir que a efetividade defendia
90 curso de teorias constitucionais brasileiras

um positivismo de combate que almejava aproximar o direito constitucional do pro-


cessual, Sarmento confirma que a teoria elegeu o juiz como personagem central da
concretização da Constituição. Ainda que não seja neoconstitucionalista, a doutrina
da efetividade foi seu pressuposto. Sarmento atesta que formações do STF nos anos
2000 acolheram os pressupostos da teoria neoconstitucional em suas decisões.

4.1 Críticas

1) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional pós-moder-


no, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira. Revista de Direito Adminis-
trativo, v. 250, p. 151-167, 2009.
2) STRECK, Lênio. Contra o Neoconstitucionalismo. Constituição, Economia e Desenvol-
vimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2011, n. 4,
Jan-Jun. p. 9-27. Disponível em: http://www.abdconst.com.br/revista5/Streck.pdf. Acesso em
14 de jun. de 2021.
3) DIMOULIS, Dimitri. Anotações sobre ‘Neoconstitucionalismo’(e sua crítica). Artigo
Direito GV (Working Paper) 17. 2008.

O neoconstitucionalismo talvez seja uma das poucas teorias constitucionais bra-


sileiras a atrair críticas tão consistentes, sistemáticas, quanto qualificadas. Acredita-
mos que, dentre os problemas estruturais identificados pelos críticos do neoconsti-
tucionalismo, dois se destacam: 1) a ausência de um corpo teórico sólido e coerente,
capaz de oferecer aos seus adeptos uma pauta segura para interpretar a Constituição
e 2) suas permissivas perspectivas sobre a jurisdição constitucional podem ocasionar
uma interferência indevida do Judiciário em áreas sensíveis da política e da moral,
dando azo ao malsinado “ativismo judicial”.
Como postula Streck (2011), antes entusiasta do neoconstitucionalismo, hoje um
dos seus mais ferrenhos detratores, o neoconstitucionalismo não se debruçou sobre
os problemas atrelados à discricionariedade judicial, tendo se limitado a trazê-la
como elemento estrutural e caracterizador da atividade judicante por meio da valori-
zação da razão-prática no âmbito jurídico. Nesse contexto, a discricionariedade judi-
cial é associada à ponderação, que conferirá ao juiz o poder de sopesar princípios e
conferir pesos genéricos a cada um deles na atividade decisória. No entanto, diversos
problemas são atribuídos à técnica de ponderação, no que diz respeito à aplicação ge-
neralizada dela, especialmente como vem sendo disposta no neoconstitucionalismo
à brasileira (STRECK, 2011). Muitas vezes, uma maior discricionariedade judicial é
justificada pelo neoconstitucionalismo como condição necessária para a efetividade
da Constituição, sem, contudo, preocupar-se com a segurança jurídica.
Na perspectiva substancialista valorativa dos neoconstitucionalistas, é concedida
ao Poder Judiciário uma nova inserção no âmbito das relações dos Poderes do Es-
tado, que o leva a transcender as funções de freios e contrapesos, incidindo em um
maior controle sobre os demais poderes. Assim, em nome da garantia dos direitos
fundamentais, esse reforço à discricionariedade judicial e a consequente limitação
dos outros poderes esbarra em problemas de legitimidade democrática, tendo em vista
breno baía magalhães (organizador) 91

que um juiz não é democraticamente eleito e nem representa os interesses do povo para
assumir contornos subjetivos para além do que deveria em relação ao legislativo.
Dimitri Dimoulis, depois de denunciar a ausência de elementos suficientes para
conceituar o que seria a doutrina neoconstitucional (ver o tópico “O que há de “neo”
no Constitucionalismo?”), definiu-a como uma vertente do moralismo jurídico, pos-
tura teórica que enxerga na moral a métrica para aferir a validade das normas jurí-
dicas, bem como para interpretá-las. Em sua leitura, ou os neoconstitucionalistas
reconhecem que fazem parte de um grupo já consolidado que, desde o século XVIII,
defende o ideal político constitucionalista, ou que estão, em verdade, propondo pers-
pectivas que atualizam o jusnaturalismo como a teoria do direito paradigmática.
Como o conceito de “constitucionalismo” já é suficiente para expressar o primeiro
conjunto de ideias e autores; e o “moralismo jurídico”, o segundo conjunto, a prudên-
cia acadêmica sugere abandonarmos o nada original e confuso conceito “neoconsti-
tucionalismo”.
Por fim, Manoel Gonçalves aproveita a falta de definição e unificação teórica e de
originalidade do termo para vaticinar o que segue:

O neoconstitucionalismo à brasileira — apesar da sustentação científica de


sua principal estrela — não é, essencialmente, senão uma ideologia, uma
roupagem pretensamente científica, para coonestar um ativismo de opera-
dores do direito. Ele serve de instrumento para implantar o politicamente
correto, “reformar” o mundo e, de passagem, o país, num arremedo de so-
cialismo utópico (para lembrar a lição de Marx)

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Explique como a junção dos paradigmas histórico, político e jurídico


serviu para formar a teoria neoconstitucional. Se a concertação implica
o surgimento de uma nova compreensão de Constituição, e, por conse-
quência, do papel do Poder Judiciário, é pertinente atribuir uma cono-
tação pejorativa ao conceito “ativismo judicial”?
2) Como o neoconstitucionalismo se diferencia das teorias constitucionais
dirigentes e liberais igualitárias?
Capítulo 7

TEORIAS DO DIÁLOGO
CONSTITUCIONAL
Valeska Dayanne Pinto Ferreira1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

O STF dos anos 2000 atendeu ao chamado teórico do neoconstitucionalismo, que


urgia pela adoção de técnicas interpretativas modernas, concretização de direitos
fundamentais e aproximação do direito à moral, uma vez que a Corte passou a tomar
decisões que foram alcunhadas, nos discursos acadêmicos e populares, de “ativis-
tas”, “usurpadoras de suas competências constitucionais” e “antidemocráticas”. No
início da década seguinte, no entanto, havia chegado a hora de os autores brasileiros
endereçarem o problema que há séculos atormentava suas contrapartes norte-ameri-
canas: teria o STF, finalmente, assumido a posição de órgão político mais importante
da República? Este problema, o da supremacia judicial no seio do constitucionalismo
democrático, traz consigo outro questionamento acessório merecedor de resposta
igualmente complexa sobre a legitimidade democrática dos detentores da última pa-
lavra em matéria constitucional.
Em seu cerne, sob pena de simplificação superficial, as teses do diálogo consti-
tucional advogam, por meio de soluções institucionais diversas, que em um sistema
democrático todos os poderes são agentes da construção do sentido constitucional, o
que relativiza a ideia da consolidação de uma “última palavra” judicial. Curioso no-
tar que a teoria não foi formulada por autores brasileiros conservadores que ensaia-
vam sua volta à relevância dogmática constitucional, mas de progressistas preocupa-
dos com os desdobramentos de uma Corte empoderada e que poderia ser seduzida
pelos riscos de um neoconstitucionalismo desenfreado. Muito embora os autores que
se enquadram nessa vertente partam das linhas do pressuposto mencionado acima,
seus projetos e diagnósticos de e para nossa Justiça Constitucional não poderiam ser
mais diferentes.

1
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará
(PPGD-UFPA).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
breno baía magalhães (organizador) 93

As teorias do diálogo extraem sua força da relação que estabelecem entre os par-
ticipantes nas interações políticas, entendidas como horizontais e não hierárquicas.
Atualmente, as teorias democráticas e constitucionais abraçaram um ideal dialógico,
surgido, originalmente, no campo da filosofia política e moral. Suas fontes são a
crítica comunitarista (critérios de validade particulares a cada comunidade política
histórica; construção intersubjetiva dos valores) e pós-moderna (verdades particula-
res e contextuais) do liberalismo e da modernidade. Essa abordagem não implica o
abandono da racionalidade liberal, mas, ao contrário, a necessidade de trabalhá-la
como “racionalidade comunicativa”, como um diálogo ou discurso orientado para
o entendimento. Dessa forma, o foco das teorias do diálogo está nos benefícios da
deliberação como uma troca racional de argumentos desde um ponto de vista da
legitimidade dos resultados.
As abordagens dialógicas, especialmente no campo jurídico, ocupam-se dos
elementos autorreflexivos oportunizados pelas interações de decisões constitucio-
nais estatais ou normas transnacionais. Aida Torres Pérez (2009, p. 112-117) sugere
que são três as razões para o acolhimento de abordagens dialógicas: a) resultados
interpretativos mais bem fundamentados: a troca de argumentos estabelecida para
alcançar entendimentos comuns melhora a qualidade das decisões; b) participação:
o diálogo contribui para a legitimidade normativa do resultado porque confere aos
participantes a oportunidade de oferecerem inputs à decisão e reconhecerem seu
resultado como um esforço compartilhado; e c) respeito ao mosaico pluralista: o
diálogo fornece um modelo regulatório de interação horizontal entre as autorida-
des políticas ou judiciais de diferentes níveis de proteção de direitos humanos ou
fundamentais, oferecendo um modelo para gerenciar conflitos sem a dispersão da
estruturação nivelada.
Com o intuito de situar o leitor e evitar possíveis confusões entre as diferentes
vertentes teóricas do diálogo, agruparemos as abordagens desenvolvidas na acade-
mia em três grandes modelos.
1) Modelos das democracias da Commonwealth: abrangem as teorias constitu-
cionais desenvolvidas, principalmente no Canadá, para discutir as justificativas, a
legitimidade e a operacionalização da fiscalização judicial da compatibilidade das
leis em países parlamentares onde a inserção de declarações de direitos fundamen-
tais gestou soluções procedimentais estranhas aos modelos de raízes estadunidenses
(modelos da supremacia judicial), a fim de estabelecer o meio termo entre a suprema-
cia judicial e a soberania parlamentar. Os autores do modelo da Commonwealth em
sua versão canadense inseriram a discussão dialógica, por vezes de maneira empírica
(demonstrando que o legislativo não ficava inerte frente às declarações judiciais de
inconstitucionalidade baseadas na Carta), e por vezes de maneira normativa (defen-
dendo que a inserção da Carta e da cláusula not with standing alterou a postura po-
lítica do parlamento e da Suprema Corte, no sentido de que o conteúdo dos direitos
deverá, a partir de então, ser construído, necessariamente, por meio de interações
entre as instituições). Em ambos os casos, a forma de interação entre os poderes é
tida como dialógica (MACFARLANE, 2012, p. 97-98).
94 curso de teorias constitucionais brasileiras

2) Modelos da interpretação constitucional compartilhada ou coordenada: gru-


po que abarca teorias estadunidenses que defendem que a tarefa de interpretar a
Constituição deve ser compartilhada por todos os Poderes de forma igualitária (Exe-
cutivo, Legislativo e Judiciário), que interagem, cada um à sua maneira, lançando
mão dos procedimentos inerentes aos papeis desempenhados na estrutura constitu-
cional. Após análise conjunta dos elementos descritivos e prescritivos, a principal
vertente moderna da teoria postula que a Suprema Corte leva (e deve levar) em con-
sideração as interpretações constitucionais dos outros ramos estatais (e, por vezes, da
população) como forma de construção do conteúdo do direito constitucional em um
sistema de separação de poderes. A constante discussão (diálogo contínuo) acerca
das decisões constitucionais da corte pela população e pelos demais poderes sugere
que o Judiciário não profere a palavra final em termos constitucionais quando da
declaração de inconstitucionalidade de uma lei.
3) Modelos do diálogo entre juízes: composto pelas teorias que intencionam ex-
plicar as interações que ocorrem entre juízes de diferentes cortes constitucionais,
entre juízes nacionais e internacionais (incluindo os tribunais regionais de direitos
humanos) e entre juízes de diferentes tribunais internacionais. As interações variam
desde encontros formais, onde são discutidos casos semelhantes às jurisdições dos
juízes em seminários, simpósios, livros etc., até a citação e o desenvolvimento do
precedente de outra Corte internacional ou estrangeira. A via dos encontros e a ci-
tação mútua de precedentes seriam indícios dialógicos de que atores que desempe-
nham funções similares em uma rede de governança estão comprometidos com a
solução de problemas comuns.
No Brasil, os estudos relacionados à Teoria dos Diálogos Constitucionais po-
dem ser compreendidos a partir de duas escolas, que, de alguma forma, buscam
sintetizar as duas primeiras correntes dialógicas. A primeira, vinculada à Uni-
versidade de São Paulo (USP), tem como expoente Conrado Hübner Mendes,
para quem a interpretação constitucional acontece mediante interações institu-
cionais, tomadas em consideração as flutuações de legitimidade e o acento de-
liberativo, de forma que, a cada rodada procedimental, um Poder da República
será o prolator da última palavra provisória. Assim, a ideia de que o Judiciário
é o único responsável pela última palavra sobre a Constituição (interpretação
constitucional) é rechaçada.
A segunda escola é desenvolvida por autores vinculados à Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ), como Cláudio Pereira Souza Neto, Daniel Sarmento e
Rodrigo Brandão, que, dando maior acento ao viés comparativo entre Brasil e EUA,
buscam indicar mecanismos de diálogos constitucionais (formas de reação à decisão
judicial nem sempre legítimas), bem como estabelecer parâmetros de autocontenção
judicial (standards para o reconhecimento da presunção de legitimidade dos atos
normativos e, consequentemente, para a adoção de postura ativa ou deferente por
parte do STF), na tentativa de resolver o problema da “dificuldade contramajoritária”
e proporcionar correções recíprocas às interpretações constitucionais, dentro de um
espectro deliberativo.
breno baía magalhães (organizador) 95

Diálogos Constitucionais: Conrado Hübner Mendes (USP)

Para Conrado, todos os poderes da República estão pas-


síveis de cometer erros, inclusive o Judiciário. Compreender
a jurisdição constitucional sob a perspectiva da “última pa-
lavra” implica dizer que existe um único órgão dotado do
direito de errar por último sobre a interpretação constitucio-
nal, geralmente visualizado como a Corte Suprema ou Cons-
titucional, no nosso caso, o STF.
A independência judicial, segue o autor, é um mito. Todos
os poderes estão sujeitos à reatividade política, acomodações
prudenciais e flutuações de legitimidade. Por isso, a formatação da separação dos
poderes difere a cada momento, de acordo flutuações conjunturais de nível político.
A Corte Suprema, portanto, não se encontra “isolada”, antes pelo contrário, está no
meio do “calor da política”.
Por essa razão, a separação de poderes opera de maneira dinâmica, com as ins-
tituições negociando constantemente o seu raio de atuação, ou seja, há momentos
de ativismo e contenção, ocupação e desocupação de espaços políticos. Portanto, tal
dinâmica não pode ser quantificável, aprioristicamente, dentro de uma norma jurídi-
ca ou proposição teórico-normativa abstrata, de modo que é impossível formular-se
algum tipo de previsibilidade constitucional acerca do momento em que uma ou
outra instituição contará com maior legitimidade para a tomada de grandes decisões
controversas do ponto de vista moral.
Com base nessas premissas, a estruturação constitucional da separação dos po-
deres significa mais do que uma virtude moderadora (justificativa tradicional), com-
preendendo também uma relativização da ideia de que existe uma última palavra em
matéria constitucional, onde quer que ela esteja localizada, uma vez que a interação
entre as instituições sobre esses temas sempre acontecerá. A perspectiva teórica dia-
lógica, em termos analíticos, ao relativizar a última palavra, indica que a alternativa
à supremacia do parlamento não é a supremacia judicial, mas sim um jogo interativo,
complexo e dialógico entre tais instituições.
Com efeito, pondera Conrado, é possível avaliar a legitimidade das Cortes e dos
parlamentos de forma contextual e comparativa: seus órgãos serão considerados
mais ou menos legítimos a depender do seu respectivo desempenho, e não somente
em razão de suas credenciais prévias. Dessa forma, o autor considera que o desem-
penho deliberativo pode ser o princípio regulador das oscilações de legitimidade
entre Corte e parlamento3. Dentro dessa argumentação, a “última palavra” é sempre

3
Em trabalhos posteriores, Conrado desenvolveu os critérios para aferição do desempenho deliberativo das
Cortes. Separando sua análise em momentos (pré-decisional, decisional e pós-decisional) e tarefas (contesta-
ção pública, engajamento colegiado e decisão escrita deliberativa), o autor avalia que uma corte constitucional
deliberativa está comprometida com a formulação de decisões substantivamente boas expressadas, quando
96 curso de teorias constitucionais brasileiras

provisória e os Poderes não podem contar com mais do que uma expectativa probabi-
lística de acerto. Na mesma medida, o eventual erro decisório não implica a perda de
autoridade, mas, por outro lado, legitima que outro poder desafie a decisão (a disputa
argumentativa justifica o emprego da analogia dialógica).
Por fim, como as Cortes participam desse processo deliberativo? Para Mendes
(2011), elas podem modular os seus graus de intervenção e contenção a partir do
desempenho do Parlamento, de modo que façam um juízo de ocasião e optem por
uma expansão ou compressão ativa, a depender de uma análise prudencial do contex-
to apresentado, do tema discutido e/ou do caso analisado. A sugestão de Hübner é de
que a Corte faça uma modulação das virtudes ativas e passivas por meio da prudên-
cia. Dessa forma, a alternativa que resta à teoria normativa é uma receita pragmática
e particularista, pois abstratamente não há muito o que possa ser dito.

O enfoque normativo das teses do diálogo: Cláudio Pereira Souza Neto e


Daniel Sarmento (UERJ)

Para os autores indicados na chamada, em influente artigo, a combinação do


constitucionalismo social com o reconhecimento do caráter normativo e judicial-
mente exigível da Constituição foi responsável por uma tendência global no sentido
de produzir constituições ambiciosas – não limitadas à organização dos poderes,
mas extensas e garantidoras de direitos individuais, sociais e normas programáticas
vinculantes – cujas disposições são reconhecidas como normas jurídicas autênticas,
as quais podem ser invocadas judicialmente, ocasionando a invalidação de leis e atos
do Executivo via controle de constitucionalidade. Esta conjugação possibilitou, tanto
maior importância da Constituição no sistema jurídico, como também contribuiu
para o fortalecimento do Poder Judiciário, principalmente das cortes constitucionais
e supremas. No Brasil, a jurisdição constitucional foi fortalecida, especialmente, com
o advento da Constituição de 19884.
À progressiva ampliação da jurisdição constitucional, associada à função políti-
co-social que tem exercido, é dado o nome de judicialização da política. Este fenô-
meno, contudo, tem sofrido críticas em relação ao suposto déficit de “legitimidade
democrática da jurisdição constitucional”, tendo em vista o fato de os juízes (não
eleitos pelo povo) terem o poder de invalidar decisões do Poder Legislativo, este sim
eleito, por meio da interpretação de normas constitucionais abstratas, que são objeto
de fortes desacordos morais e políticos. Para a crítica da judicialização, a decisão so-
bre a interpretação mais correta das normas constitucionais em casos difíceis deveria

possível e desejável, por meio de uma única voz institucional, ou, quando assim for justificado, por vozes múl-
tiplas, desde que sejam responsivas e precedidas por contestações públicas sérias e de engajamento colegiado
(MENDES, 2013, p. 119).
4
“Entre os fatores que possibilitaram a expansão da jurisdição constitucional brasileira estão a previsão constitu-
cional de novas ações de inconstitucionalidade, a ampliação do rol de legitimados para o controle de constitucio-
nalidade abstrato, a grande quantidade de temas tratados no texto constitucional, o pluralismo político e social,
bem como o maior conhecimento sobre direitos por parte da sociedade” (SOUZA NETO; SARMENTO, 2013).
breno baía magalhães (organizador) 97

ser tomada pelo povo ou por seus representantes eleitoralmente escolhidos, mas não
por juízes.
A abstração e abertura das normas constitucionais conferem a quem as inter-
preta e aplica o poder de participar do processo de criação do sentido constitucional.
É neste quadro que se estabelece a dificuldade contramajoritária, da qual decorre
a crítica de que a jurisdição constitucional seria capaz de conferir aos juízes um
poder constituinte permanente, exercido à medida que esses moldam a Constituição
segundo suas preferências políticas e valorativas, em prejuízo às decisões tomadas
pelo legislador.
Há sinergia e tensão no relacionamento entre jurisdição constitucional e demo-
cracia. Por um lado, o controle de constitucionalidade pode proteger os requisitos
necessários ao bom funcionamento da democracia, como os direitos fundamentais
e as regras do jogo político. Neste aspecto, a sinergia também está comprovada pelo
fortalecimento da jurisdição constitucional em períodos de (re)democratização.
De outro lado, o exagero na limitação das decisões do legislativo pode ser considera-
do antidemocrático, por comprometer o autogoverno, problema que pode ser agrava-
do quando o Judiciário se torna central para a solução dos conflitos políticos, morais
e sociais, ocupando a posição de poder responsável pela “última palavra” acerca do
sentido da Constituição.
Por essas razões, os autores sustentam que o problema da dificuldade democráti-
ca (ou dificuldade contramajoritária) das cortes não está relacionado ao exercício do
controle de constitucionalidade, mas à dosagem em que é subministrado. A adequa-
da dose, portanto, dependerá de fatores outros, como o nível de representatividade
dos demais poderes e sua performance na proteção de direitos e grupos minoritários,
o grau de credibilidade e independência da esfera judicial etc.
Os autores (2013, p. 135) oferecem duas ideias, “que, se adotadas, podem mi-
nimizar a chamada dificuldade contramajoritária”, quais sejam: a) a utilização da
teoria dos diálogos institucionais, no sentido de negar ao Judiciário e às instâncias
majoritárias o poder de dar “a última palavra”; e b) o estabelecimento de parâmetros
de deferência do Judiciário em relação aos demais poderes, mediante padrões de
autocontenção judicial.
Sobre o primeiro ponto, indicam não ser verdadeiro que o Supremo Tribunal
Federal dê sempre a última palavra. No plano descritivo, em muitos casos não existe
uma última palavra e as decisões da corte podem provocar reações contrárias que,
eventualmente, implicarão a revisão da posição do STF em relação a um determina-
do assunto. Sob o ponto de vista prescritivo, não é adequado conceder a quaisquer
dos poderes a prerrogativa de dar a “última palavra” sobre a Constituição. Neste
quadro, mais interessante é a adoção de um modelo que não atribua a nenhum dos
poderes a possibilidade de errar por último, mas, ao contrário, que permita a realiza-
ção de correções recíprocas dentro da hermenêutica constitucional, a partir de uma
perspectiva dialógica.
98 curso de teorias constitucionais brasileiras

Por outro lado, a presunção de constitucionalidade dos atos normativos e o grau


de ativismo judicial devem ser calibrados com base em alguns parâmetros. Os auto-
res (2013, p. 149) listam, então, “alguns parâmetros que, em nossa opinião, devem ser
empregados para calibrar a presunção da constitucionalidade dos atos normativos,
e também, por consequência, o grau de ativismo do Poder Judiciário” no âmbito da
jurisdição constitucional:
1) grau de legitimidade democrática do ato normativo: o foco do Judiciá­
rio não será o conteúdo da regra, mas como ela foi elaborada. Quanto
mais democrático tiver sido o procedimento de criação da lei, mais
autocontido deverá ser aquele Poder em seu exame. (Emendas Consti-
tucionais, leis objeto de referendo, plebiscito de iniciativa popular);
2) condições de funcionamento da democracia: a atuação das Cortes deve
ser mais ativa quando estiverem em jogo direitos de participação polí-
tica fundamentais, como, por exemplo, os direitos políticos e de liber-
dade de expressão, uma vez que representam a proteção dos pilares da
democracia.
3) proteção de minorias estigmatizadas: o Judiciário deve estar atento
para que grupos minoritários e estigmatizados não sejam atropelados
em outras esferas políticas;
4) relevância material do direito fundamental em discussão: normas que
restringem direitos merecem escrutínio judicial mais rigoroso; em ou-
tras situações, nas quais não haja direitos fundamentais em jogo, maior
margem política deve ser conferida ao Legislativo;
5) capacidade institucional: o Judiciário tem de estar sensível à expertise
de alguns órgãos, principalmente quando do julgamento de casos que
envolvam conhecimentos técnicos situados fora do âmbito jurídico.
6) momento de edição do ato normativo: normas anteriores à Constituição
não desfrutam da mesma presunção de constitucionalidade daquelas
produzidas contemporaneamente.
7) inconsistência temporal: tendo em vista que os humanos tendem a so-
brevalorizar seus interesses de curto prazo, o mesmo ocorre com suas
instituições políticas, que subestimam “valores e interesses de longo
prazo – mais distantes das preocupações do dia a dia do eleito –, em
proveito de vantagens imediatas” (SOUZA NETO, SARMENTO,
2013, p. 156-157). A justiça constitucional precisa reforçar-se em cer-
tos campos para contornar esse problema.

2 A TEORIA EM PONTOS

Conforme o elaborado anteriormente, o desenvolvimento das teorias diálogo não


é unívoco, e suas construções substantivas dependem do referencial teórico adotado
por cada um dos autores. Todavia, não obstante as diferenças, há um núcleo que é
possível de ser resumido sistematicamente em quatro pontos:
breno baía magalhães (organizador) 99

i) As teorias do diálogo constitucional reconhecem que todos os Poderes


estão aptos a realizar a construção do sentido da interpretação constitu-
cional, não recaindo, portanto, sobre nenhum deles a responsabilidade
de oferecer a última palavra permanente em termos constitucionais;
ii) Todos os Poderes da República mantêm interações entre si na cons-
trução da interpretação constitucional, mediante correções recíprocas
e reações às decisões anteriormente tomadas. Dessa forma, não há a
consolidação de um sentido constitucional univocamente construído ou
decisão constitucional impossível de ser modificada;
iii) Seja do ponto de vista descritivo ou normativo, não há que se falar em
supremacia judicial ou de “ativismo judicial” do STF, uma vez que
a Corte atua tomando por base a necessidade de restrição mediante a
prescrição de acomodações prudenciais e parâmetros de autocontenção
suscitados por sua percepção da conjuntura política;
iv) Do ponto de vista democrático, a superação da dificuldade contramajori-
tária imposta pelo controle de constitucionalidade se viabiliza por meio
do ideal regulativo do diálogo entre instituições políticas e judiciais.

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: MANIFESTAÇÕES


DO MINISTRO LUIZ FUX NA E A RESPEITO DA ADI 4650

3.1 Contexto do caso:

A ADI 4.650 questionava dispositivos legais que autorizavam doações e contri-


buições financeiras por parte de pessoas jurídicas até dois porcento de seu faturamen-
to a campanhas eleitorais. O Ministro Fux iniciou seu voto afirmando a necessidade
de uma urgente reforma política no Brasil, para fins de correção de determinados
desvios e disfunções existentes na democracia brasileira. Nesse campo, o Ministro
indicou como problema central o financiamento privado de campanhas eleitorais.
Embora tenha reconhecido que reformas estruturais dentro do Estado devam
ser promovidas pelas instâncias políticas majoritárias, Fux entendeu haver espaço
para a jurisdição constitucional nessa área em nome da proteção dos pressupostos
do regime democrático. No caso do financiamento de campanhas eleitorais – por
tratar-se de matéria relativa ao processo político-eleitoral –, compreendeu-se pela
existência de terreno favorável para a realização de escrutínio estrito e criterioso
sobre as escolhas do Parlamento. Isso porque, de acordo com o Ministro, o debate
em torno da reforma política, no ponto das campanhas, afeta diretamente os próprios
representantes eleitos segundo as regras vigentes. Ademais, o relator sustentou que a
intervenção judicial nesse caso não implicaria o encerramento da controvérsia, mas
funcionaria como um catalisador deliberativo, no sentido de abrir canais de diálogo
com os demais poderes para a elaboração de um modelo de financiamento de campa-
nhas adequado à Constituição.
100 curso de teorias constitucionais brasileiras

3.2 Pontos fundamentais

Ementa: (...)
4. O hodierno marco teórico dos diálogos constitucionais repudia a adoção
de concepções juriscêntricas no campo da hermenêutica constitucional, na
medida em que preconiza, descritiva e normativamente, a inexistência de
instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das disposições
magnas, além de atrair a gramática constitucional para outros fóruns de
discussão, que não as Cortes
5. O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de ou-
torgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental,
não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou defi-
nitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compre-
endidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes
do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem,
em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional.
6. A formulação de um modelo constitucionalmente adequado de financia-
mento de campanhas impõe um pronunciamento da Corte destinado a abrir
os canais de diálogo com os demais atores políticos (Poder Legislativo,
Executivo e entidades da sociedade civil).

Voto do Ministro Luiz Fux (relator):


A Constituição, a despeito de não ter estabelecido regras impondo ou proi-
bindo diretamente um dado modelo de financiamento de campanhas, forne-
ceu uma moldura que traça limites à discricionariedade legislativa. É dizer:
o constituinte procedeu à escolha de questões fundamentais (e.g., princípio
democrático, o pluralismo político ou a isonomia política) que norteiam
o processo político, e que, desse modo, reduzem, em alguma extensão, o
espaço de liberdade do legislador ordinário na elaboração de critérios para
as doações e contribuições a candidatos e partidos políticos. Ressalte-se,
por oportuno, que com isso não se pretende advogar uma leitura puramente
procedimental da Constituição de 1988, de vez que, como bem destacam
Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, tal adesão implicaria
um paradoxo, notadamente em virtude do caráter profundamente substan-
tivo de seu texto, pródigo em normas de cunho valorativo (SARMENTO,
Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional –
Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012,
p. 226). Aqui se sustenta justamente o oposto: em razão de sua densidade
normativa, os princípios materiais paradigmas retiram a liberdade-total do
legislador ordinário para disciplinar o tema.

Portanto, a atuação da Corte in casu é, precisamente, a de definir se o


legislador atuou dentro dessa moldura constitucional, sem a pretensão
de substituí-lo, reformulando o modelo de financiamento de campanhas
vigentes, o que, aí sim (acredito), violaria o princípio da separação de
poderes.
breno baía magalhães (organizador) 101

Há ainda uma consideração final. Firmada a existência de controle jurisdi-


cional e delimitada a extensão dessa atuação na espécie, mister deixar es-
treme de dúvidas que tal intervenção em si não produz uma solução defi-
nitiva acerca da matéria. Conquanto finalize uma rodada de deliberações,
eventual pronunciamento da Corte (i.e., procedência ou improcedência)
se destina a abrir os canais de diálogo com os demais atores políticos,
notadamente o Poder Legislativo, para a formulação de um modelo cons-
titucionalmente adequado de financiamento de campanhas. Como bem
assinala Louis Fisher, “(…) o direito constitucional (...) é um processo
em que todos os três poderes convergem e interagem com suas interpreta-
ções separadas. Contribuições importantes também vêm dos estados e do
público em geral” (FISHER, Louis. Constitutional Dialogues. Princeton:
Princeton University Press, 1988, p. 3). No mesmo sentido, a jurista cana-
dense Christine Bateup preleciona que o uso judicial das virtudes passivas
promove o diálogo constitucional por propiciarem aos poderes políticos
de governo, em conjunto com a sociedade, a oportunidade de debater e
resolver questões constitucionais divisoras por meio de canais democrá-
ticos. (BATEUP. Christine. The Dialogic Promisse. Assessing the Nor-
mative Potential of Theories of Constitutional Dialogue. Brooklyn Law
Review. Vol. 71 (3), 2006, p. 1.132). Trata-se, à evidência, de desenho por
meio do qual o processo de interpretação constitucional reclama a atuação
comum entre o judiciário e outros atores constitucionais, como, no caso,
o Poder Legislativo.
Com espeque nesse hodierno marco normativo, a Corte Constitucional
deve promover, na espécie, de forma prudente e intencional, um “colóquio
contínuo” (continuing colloquy) com os demais poderes políticos e com
as entidades da sociedade civil em geral (BICKEL, Alexander. The least
dangerous branch. The Supreme Court at the Bar of Politics, 1962), sem
a pretensão de impor um modelo acabado de financiamento que engesse a
atividade legiferante. É exatamente dentro desse marco teórico de diálogo
institucional que deve se pautar a Corte. Ao assim proceder, este Supremo
Tribunal Federal agirá como um “catalisador deliberativo”, promovendo a
interação e o diálogo institucional, de modo a maximizar a qualidade demo-
crática na obtenção dos melhores resultados (MENDES, Conrado Hübner.
Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 214). Por outro lado, uma postura dialógica não asfixia a
atividade do legislador ordinário, impondo exegeses cerradas dos coman-
dos constitucionais. E, como resultado, as críticas de que a intervenção
judicial in casu usurparia a competência constitucionalmente confiada ao
Parlamento caem por terra, máxime porque, como anteriormente afirmado,
tal postura fortalece a democracia.
À luz dessas premissas que o Supremo Tribunal Federal deverá julgar a
presente ação direta. Passo, na sequência, ao exame das impugnações di-
recionadas às disposições da Lei nº 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos
Políticos) e da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições).”
102 curso de teorias constitucionais brasileiras

3.3 Comentários:

Proposta em 2011, a ação começou a ser julgada em dezembro de 2013 e fora


suspensa em abril de 2014, por conta de pedido de vista do Ministro Gilmar Men-
des, não obstante uma maioria já estivesse formada no sentido de sua procedência.
O processo voltou ao plenário mais de um ano depois, em setembro de 2015. O pe-
dido de vista pode ser lido como uma cartada estratégica do Ministro Gilmar para
submeter a corte ao escrutínio público e político, uma vez que ele defendia uma alte-
ração congressual dessas regras. A classe política mostrara-se desconfortável com a
intromissão da Corte no tema e ameaçava superar a decisão constitucional a partir de
leis e PECs que reestabeleceriam o financiamento privado de campanhas.
Dias depois da decisão que proibiu o financiamento privado de empresas, Renan
Calheiros e Eduardo Cunha tentaram superar a interpretação do Supremo por meio
de uma PEC. A mobilização política não fora muito bem recebida pelo relator da
ação, Ministro Fux, para quem seria “inaceitável” que o Congresso votasse uma Pro-
posta de Emenda Constitucional (PEC) que legalizasse o financiamento empresarial
de partidos e campanhas políticas após a decisão sobre sua incompatibilidade cons-
titucional. Para ele, a votação no Congresso representaria um “atentado à dignidade
da jurisdição, uma maneira de burlar decisão do STF”5.
No entanto, em 2014 e 2017, o Ministro Dias Toffoli, na presidência do TSE, e o
relator da ADI 4650 passaram a enviar mensagens indiretas ao Congresso, sugerindo
que talvez tivessem mudado de opinião sobre a vedação total e irrestrita de doações
empresariais para campanhas eleitorais. Em entrevista de 2014 à Folha, Toffoli reco-
nheceu que votou contra a doação privada, mas que “pode discutir solução em con-
junto com o Congresso que seja razoável. Com critérios e com limites e com valor
máximo de doação”. Em 2017, quando questionado sobre o fundo público bilionário
criado para financiar as eleições em decorrência da proibição proposta pelo STF,
Fux mudou de opinião sobre o tema, argumentado que “esse fundo é completamente
incompatível com o momento de crise econômica nacional. A proposta que eu faria
seria permitir a volta do financiamento eleitoral por parte de empresas que tenham a
mesma bandeira ideológica do candidato”6.

4 GUIA DE LEITURA

1) SAMPAIO, Marco Aurélio. A medida provisória no presidencialismo brasileiro. São Paulo:


Malheiros, 2007.

5
“O STF declarou a inconstitucionalidade (...) porque viola cláusulas pétreas relativas a democracia, sistema
republicano. É inaceitável que depois de decisão do Supremo o Congresso Nacional insista em algo que não é o
sentimento constitucional admissível, qual seja o de que empresas que não têm ideologia nenhuma continuem
a financiar campanhas políticas”
6
BRÍGIDO, Carolina. Luiz Fux acusa o Congresso de tentar enfraquecer o Judiciário em reação à Lava-Jato. O
Globo, Brasília, 28 de ago de 2017, Caderno de Política. Entrevista. Disponível em: https://oglobo.globo.com/
politica/luiz-fux-acusa-congresso-de-tentar-enfraquecer-judiciario-em-reacao-lava-jato-21754511 e https://
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/536864/noticia.html?sequence=1
breno baía magalhães (organizador) 103

2) MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação dos poderes e delibera-


ção. São Paulo: Saraiva, 2011.
3) BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Iuris, 2012.
4)SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Notas sobre jurisdição constitu-
cional e democracia: a questão da “última palavra” e alguns parâmetros de autocontenção
judicial. Revista Quaestio Iuris, vol.06, nº 02, p. 119-161, 2013.
Estimamos que o livro publicado em 2007, de Marco Au-
rélio Sampaio, tenha sido a primeira vez em que as discus-
sões teóricas sobre diálogo foram contextualizadas como fer-
ramenta analítica para entender as relações entre os Poderes
de nossa República. Em texto que antecedeu o diagnóstico da
“supremocracia” de Vilhena (ver o item 4 do capítulo 04), a
ideia de diálogos constitucionais no livro foi empregada para
explicar a dinâmica das Medidas Provisórias como meio legí-
timo de interação entre Executivo e Legislativo no seio do
Presidencialismo de Coalizão, demonstrando que o Congres-
so não seria refém de um Executivo voraz e violador da Separação de Poderes, mas
sim parceiro na identificação e formulação de políticas públicas no âmbito de um
presidencialismo que se estrutura a partir de coalizões entre governo e partidos polí-
ticos que lhe oferecem base congressual. Em suma, uma tese que seguiu à risca as
teses estadunidenses dos Modelos da interpretação constitucional compartilhada,
sem ocupar-se do STF como arquétipo da supremacia judicial ativista.
Em 2011, Conrado Hubner publicou a obra mais bem
acabada sobre a teoria dos diálogos no Brasil. Fruto de sua
tese de doutoramento em Ciência Política na USP, a pesquisa
parecia tentar responder às inquietações do autor que se se-
guiram após a decisão do STF de manter intacta a reforma
da previdência proposta por Lula. A reforma foi proposta via
Emenda Constitucional, a qual, por sua vez, pretendia rever-
ter a decisão da Corte que não permitiu taxação de inativos
mediante lei ordinária. Em sua dissertação de mestrado,
intitulada Controle de constitucionalidade e democracia,
Conrado ponderou sobre os riscos de uma jurisdição cons-
titucional detentora da última palavra constitucional tão forte a ponto de declarar
a inconstitucionalidade de uma Emenda Constitucional que contava com reiterado
apoio Legislativo e Executivo.
Conrado, como visto acima, não está preocupado com o aspecto normativo ou pro-
positivo do diálogo, exatamente por não aderir a um ideal simplista, segundo o qual a
resposta para os problemas constitucionais estaria na mera entabulação de um diálogo
entre poderes. O autor alega que última palavra e diálogo são complementares, uma
vez que as decisões do STF, muito embora encerrem um momento de debate político,
não se caracterizam como a última palavra em termos constitucionais, uma vez que
104 curso de teorias constitucionais brasileiras

a política fará com que o tema, a depender de conjunturas políticas e sociais, volte à
pauta nacional. Ou seja, sua preocupação não é sugerir que uma interação iniciada pelo
STF tenha de ocorrer de determinada forma ou por meio de um mecanismo institucio-
nal próprio. Para o autor, a qualidade deliberativa, como fiel da balança, deve ser o foco
das análises constitucionais sobre a legitimidade das instituições para tomar decisões
em uma democracia constitucional permeada pelas disputas políticas.
Por outro lado, os autores associados à escola da UERJ optaram por instrumen-
talizar as teses do diálogo, a fim de que pudessem servir de base para a elaboração de
critérios interpretativos de inspiração dialógica a serem manuseados pelo STF. Para
os autores, que escreveram seus principais trabalhos durante o período em que a Corte
estava sendo acusada de estar sendo por demais ativista, o neoconstitucionalismo
que favoreceu a consolidação de uma cultura de direitos nos anos 2000 precisava ser
abrandado, mas não necessariamente abandonado. Com base em uma perspectiva
normativa, segundo a qual essa seria a melhor forma de a Corte agir, os proponentes
do diálogo constitucional estariam encarregados de formular seus mecanismos inter-
pretativos instrumentais viabilizadores.
Firmes neste objetivo, os autores da UERJ se voltaram para as formas de reativi-
dade às decisões judiciais e ao estabelecimento de padrões para interpretação consti-
tucional das Cortes. Rodrigo Brandão (2012), por exemplo, aponta para mecanismos
de reação às decisões tomadas pelo Judiciário, os quais funcionariam como limites
à jurisprudência, de forma a apresentar os diálogos institucionais como inevitáveis
à definição do sentido da Constituição. Isso porque o constante risco de reatividade
implicaria uma postura de antecipação por parte dos tribunais, alterando as suas
preferências iniciais para um sentido mais aceitável pelos demais Poderes (BRAN-
DÃO, 2012). O diálogo, nesse sentido, seria um encargo prévio dos tribunais, como
condição para aceitabilidade de suas decisões. Paralelamente, Souza Neto e Daniel
Sarmento (2013) buscaram ofertar os parâmetros exatos para a interpretação cons-
titucional das Cortes, calibrando o nível de “ativismo judicial” a partir de critérios
relacionados à presunção de constitucionalidade dos atos normativos, de maneira a
antecipar, abstratamente, as repostas sobre quando o STF deveria atuar com maior
ou menor proeminência.
Com isso, podemos perceber que a principal diferença entre as escolas da USP
e da UERJ está na prescrição (ou não) de como o diálogo se estabelecerá e em que
circunstâncias caberá à Corte atuar de maneira contida ou protagonista. Enquanto
Conrado está preocupado com as flutuações de legitimidade e os casos concretos que
permitam a um Poder ou outro ofertar a última palavra provisória em determinado
momento, os autores da UERJ buscam, de antemão, explicar de que forma o diálogo
ocorre (ou deve ocorrer) e estabelecer parâmetros de interpretação constitucional,
como forma de mitigar as críticas lançadas contra o neoconstitucionalismo (ativis-
mo judicial e dificuldade contramajoritária), sem retirar o protagonismo do STF em
matéria de direitos fundamentais – conforme podemos extrair dos sete parâmetros
elaborados por Souza Neto e Sarmento (2013).
breno baía magalhães (organizador) 105

4.1 Leituras Críticas

Embora os proponentes das teses dialógicas exponham posicionamentos que va-


riam em grau de complexidade, a premissa da teoria é a mesma - a de contrapor-se
à ideia de que a última palavra sobre o sentido da Constituição é conferida exclu-
sivamente ao Supremo Tribunal Federal. Adicionalmente, tais posturas sustentam
a noção de que todos os Poderes da República são responsáveis pela interpretação
constitucional por meio de interações deliberativas entre si – sendo (ou devendo ser)
esse concerto a forma correta ou empírica de definição do sentido das normas cons-
titucionais. Não nos foi possível identificar, entretanto, na literatura recente, textos
críticos a essa tese central ou a outras típicas desse pensamento. Em sendo assim,
proporemos alguns questionamentos sobre essas ideias.
Sentimos que a principal questão a ser respondida pelas teorias dialógicas,
especialmente as desenvolvidas pela escola da UERJ, diz respeito à natureza nor-
mativa ou descritiva da estruturação dessas interações dialógicas em nosso ordena-
mento constitucional. A construção do sentido constitucional no Brasil acontece,
necessariamente, mediante postulações de intercâmbio político entre os ramos do
poder ou, de outra ponta, essas interações devem ocorrer para que o sentido consti-
tucional seja considerado legítimo ou correto? A questão nos parece ser relevante,
uma vez que, se já há diálogo entre os Poderes desde uma perspectiva empírica,
qual a necessidade de instrumentalizarmos mecanismos de autocontenção judicial
como medida prescritiva?
Por outro lado, tais teorias acabam pesando no caráter normativo de suas propo-
sições, querendo nos informar como deve acontecer a interpretação constitucional,
no sentido de reduzir o que se convencionou chamar de “ativismo judicial” e incen-
tivar o caráter deliberativo contínuo da definição do sentido da Constituição, sem,
contudo, nos oferecer indicativos sobre como essa interpretação constitucional opera
de maneira prática, principalmente quando os ministros do Supremo fazem uso re-
tórico do termo “diálogo institucional”, como um critério interpretativo, e não como
uma categoria analítica exterior á prática.
O que se verifica, ao contrário daquilo que o plano teórico indica, é uma dis-
puta pela última palavra. De acordo com Camargo, Vieira e Silva (2017), o caso da
vaquejada é exemplificativo dessa sugestão. No julgamento da ADI 4983, o STF
julgou inconstitucional, por seis votos a cinco, a lei do estado do Ceará que regula-
mentava a prática da vaquejada. Dias após a decisão, foi apresentada a Proposta de
Emenda à Constituição nº 50/2016, a fim de inserir o §7º no art. 225, da CRFB/88,
cuja justificativa mencionava o acórdão da ADI 4983, argumentando que o julga-
mento teria autorizado a regulamentação de manifestações culturais com animais,
com a ressalva de que fosse evitada a crueldade, sem descaracterizar a própria prá-
tica. Todavia, a decisão judicial não seguiu necessariamente esse raciocínio, tendo
expressamente declarado a inconstitucionalidade da legislação questionada, por
reconhecer a vaquejada como uma crueldade manifesta (CAMARGO; VIEIRA;
SILVA, 2017).
106 curso de teorias constitucionais brasileiras

A PEC foi aprovada, havendo a promulgação da EC nº 96/2017. Esta articulação,


ao contrário de ser entendida dentro da tese da deliberação institucional, mais se
aproxima de uma disputa pela última palavra, uma vez que “(...) a justificativa da
PEC não enfrentou o problema levantado para a declaração de inconstitucionali-
dade que é a crueldade com os animais. Ao invés disso, levanta a hipótese do que
teria sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal para tentar encerrar a discussão”
(CAMARGO; VIEIRA; SILVA, 2017, p. 9). Dessa forma, o caso da vaquejada, envol-
vendo tanto a decisão na ADI 4983 como a EC 96/2017, não representa um diálogo
institucional na busca pela melhor interpretação do dispositivo, e sim a pretensão de
colocar um ponto final na controvérsia, sem a discussão do relevante ponto anterior-
mente levantado pelo STF.
Em outro caso, referente ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais
(ADI 4650), a teoria dos diálogos institucionais é expressamente mencionada pela
Corte Suprema como um instrumento interpretativo. Ao contrário da ideia de diálogo
como via de autocontenção, o emprego da tese serviu para chancelar uma postura mais
ativa da corte em matéria eleitoral. A decisão não foi bem aceita pelo legislativo, que se
mobilizou para superar o acórdão mediante emenda constitucional. À época, conforme
descrito anteriormente, o Ministro Fux se pronunciou inicialmente, afirmando ser ina-
ceitável votação de emenda constitucional que legalizasse o financiamento empresarial
de campanhas eleitorais e partidos políticos após a decisão do Supremo.
É de se verificar, deste modo, que não houve o estabelecimento de nenhum diá-
logo institucional, muito menos a abertura de canais de deliberação com os demais
poderes. A tese do diálogo foi tão somente utilizada como instrumento retórico in-
terpretativo para legitimar a decisão da corte em matéria eleitoral. Além disso, os
Ministros, em um primeiro momento, por meio de entrevistas, posicionaram-se vee-
mentemente no sentido de não admitir entendimento diverso pelo Legislativo. A pos-
tura aguerrida da Corte começou a arrefecer posteriormente à crise constitucional
do impeachment e à aprovação do fundo bilionário de custeio das campanhas, abrin-
do-se para uma possível relativização do decidido, dando a entender que ela estaria
disposta a adotar uma posição muito confortável para ditar o sentido da Constituição
em uma determinada direção, como para, pouco tempo depois, externar posições
diametralmente opostas sobre suas conclusões.
As teses também reservam pouco espaço para explicar as interações políticas
entre Executivo e Judiciário. Como nossas práticas políticas recentes têm demons-
trado, o Presidente Bolsonaro não parece tão inclinado a estabelecer diálogos para
fins constitucionais com a Suprema Corte, embora seja considerado, de acordo com
a premissa da tese, parte integral da construção do sentido conjunto da Constituição.
Embora seja reconhecida a existência de interações e influências recíprocas entre
as ordens política e judicial (MENDES, 2011; KOERNER, 2013; VIEIRA, 2018),
enquadrá-las na tese dos diálogos institucionais, no caso brasileiro, exige também
uma avaliação sobre como o Legislativo e o Executivo recebem as interpretações
conferidas pela Corte Suprema e vice-versa. Se o núcleo das teses dialógicas está
ocupado com as correções recíprocas de interpretação (ou a disputa argumentativa
breno baía magalhães (organizador) 107

pela melhor compreensão do sentido constitucional), resta saber como essas rela-
ções se estabelecem e quais formas de interação entre os poderes correspondem
ao diálogo constitucional. Em síntese, a teoria precisa explicar como os Poderes
políticos absorvem, deliberam e discutem o conteúdo das decisões judiciais sobre
temas constitucionais.
Ademais disso, se partirmos de uma ideia que enfatiza o diálogo entre poderes,
por qual razão os parâmetros de autocontenção são teoricamente direcionados ape-
nas ao Judiciário? Essa limitação acaba por restringir a tese dos diálogos a um neo-
constitucionalismo mitigado, ou seja, a uma teoria voltada tão somente à solução dos
problemas da tese neoconstitucional (“ativismo judicial” e “dificuldade majoritária”).
Nesse aspecto, a escola da USP nos oferece respostas mais substantivas, à medida
que apresenta as flutuações de legitimidade como elemento prévio e determinante
para aferir qual poder oferecerá a última palavra provisória, dentro de uma rodada
procedimental específica.
Por tais razões, as teorias dos diálogos constitucionais no Brasil nos parecem
ainda estar em uma fase inicial, com poucos teóricos se inserindo diretamente nes-
te debate. Da literatura que possuímos, a escola da USP fornece argumentos mais
estruturados, enquanto os autores da UERJ ainda apresentam a tese com o objetivo
central de mitigar as críticas apresentadas aos neoconstitucionalistas ou oferecer al-
ternativas aos problemas gerados pelo neoconstitucionalismo. Portanto, novos estu-
dos acerca do tema são imprescindíveis para o aprimoramento das teses dialógicas
no cenário brasileiro. No entanto, o destino dessas propostas teóricas parece ter sido
selado pela literatura sobre “crise constitucional”, que inundou as prateleiras das
livrarias com a chegada de Bolsonaro à presidência. Afinal, como sugerir que um
Presidente autoritário dispõe de legitimidade para contribuir para a construção do
sentido constitucional?

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Explique as vertentes descritivas e normativas das teorias do diálogo


constitucional. Como a vertente descritiva se coaduna com o diagnóstico
de ativismo judicial proposto pelas teorias conservadoras? Do ponto de
vista prescritivo, quando o STF deve empregar as propostas sugeridas
pelos estudiosos da UERJ?

2) Como separar o Direito Constitucional da Política na interpretação


constitucional, de acordo com a teoria do diálogo, uma vez que esta su-
gere a interação entre Judiciário e Legislativo na construção do sentido
constitucional?
Capítulo 8

CONSTITUCIONALISMO
PROCEDIMENTAL-DEMOCRÁTICO
Gabriel Alberto Souza de Moraes1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

A partir de meados dos anos 90, os governos federais enxergavam no STF o


mais fiel escudeiro de seus interesses econômicos e políticos, uma postura judicial
que abriu espaço para reformas constitucionais e legislativas que visavam a aumen-
tar, ainda mais, o poder do tribunal no exercício de sua jurisdição constitucional.
Em 1993, por exemplo, a fim de criar bloqueios institucionais que dificultassem o
controle de constitucionalidade difuso de leis federais que versavam sobre matéria
tributária, o Governo Federal propôs Emenda Constitucional que, a um só tempo,
criava um tributo, uma ação no controle abstrato/concentrado de constitucionalidade
e o quimérico efeito vinculante3.
Se por um lado a ADC funcionou como um estratagema para blindar o Governo de
ações que contestassem seu poder fiscal arrecadatório; por outro, a regulamentação le-
gislativa da ADPF em 1999 serviu para que o Executivo Federal manejasse um instru-
mento processual capaz de avocar ao STF casos em tramitação na justiça ordinária que
ameaçavam retardar a privatização de empresas públicas, em embates jurídicos descri-
tos pela imprensa como a “guerra de liminares”. Nesse prisma, as constantes alterações
formais do texto constitucional, a expansão do exercício da jurisdição constitucional e
sua derradeira incorporação nas leis que regulamentaram as ações no controle abstrato

1
Discente do 8° período do curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Bolsista
de Iniciação Científica e Tecnológica - PIBICT 2022 do CESUPA. Monitor de Teoria Geral da Constituição e
Direito Constitucional I (2022). Ligante da Liga Acadêmica de Direito do Estado (LADE). Atualmente é mem-
bro do Grupo de Pesquisa “Judex Perfectus - História Política, Intelectual e Cultural do Direito Moderno”
(CNPq/CESUPA). Membro do Grupo de Pesquisa “Filosofia Crítica do Direito e Literatura” (CNPq/UFPA).
Integrante do Projeto de Extensão “Estudos Constitucionais Compartilhados” (ECCOM) (UFPA).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
3
Nada obstante a controversa inovação, o STF declarou a constitucionalidade da ADC e do efeito vinculante em
decisão plenária de 27 de outubro de 1993. (BARROSO, 2004; LEITE, 2014).
breno baía magalhães (organizador) 109

despertaram a desconfiança de um grupo de juristas mineiros que questionava as cre-


denciais democráticas desse avanço jurisdicional do STF.
A oposição teórica coordenada e frontal às leis da ADI, ADC e ADPF, vinda da
escola mineira de Direito Constitucional sediada na Universidade Federal de Mi-
nas Gerais (UFMG), foi fortemente influenciada pela teoria crítica de recorte ha-
bermasiano. Em uma série de livros e artigos que compartilhavam entre si o mes-
mo marco teórico, esses constitucionalistas denunciaram a ilegitimidade da decisão
legislativa a respeito do destino da ADPF, a subsidiariedade da ADC, a constitu-
cionalidade do efeito vinculante e o risco à democracia de um STF que concentra-
va poderes para decidir sobre temas sociais e políticos sensíveis sem que houvesse
participação efetiva do povo.
Uma nova geração de pesquisadores mineiros, inspirados
nos textos de Menelick Carvalho dos anos 90, aprofundou-se
nas teses de Jurgen Habermas para formular uma barreira
de contenção teórica contra o fortalecimento congressual da
Jurisdição Constitucional do STF. Dentre os jovens juristas
estudiosos da Teoria Crítica Constitucional, aquele que desen-
volveu seus estudos com maior desenvoltura e profundidade
foi, seguramente, Marcelo Cattoni, autor de importante livro
sobre “Teoria da Constituição”.
O constitucionalismo democrático ou procedimental mi-
neiro evoca tendência do constitucionalismo pós-guerra alemão, marcado por uma
tentativa de superação dos paradigmas do Estado Liberal e Social e de formulação
de uma proposta teórica que fosse capaz de simultaneamente oferecer significativa
proteção às garantias individuais sem recair em um dirigismo estatal ou em uma
atuação por demais expansiva do Poder Judiciário.
Cattoni tece críticas às teorias constitucionais brasileiras clássicas, preocupadas
em demasia com questões normativas, ou seja, com a construção de um modelo ideal
de normas constitucionais, o qual, via de regra, é reiteradamente contestado pela
dura realidade (CATTONI, 2021, p. 33). Como prática social interpretativa, o Direito
constitucional não se beneficia, pontua o autor, de construções teóricas que não le-
vem em consideração o ponto de vista normativo daqueles diretamente implicados
à prática. As teorias clássicas da Constituição, ao entabularem a cisão entre o real e
o ideal, não pretendiam estabelecer uma dialética entre ambas as instâncias, mas a
superação de algum dos lados dessa divisa.
Dessa forma, para dar conta da tensão existente entre facticidade e validade, uma
Teoria Discursiva do Direito e da Democracia não poderá deixar de abarcar múltiplos
pontos de vista metodológicos (participante x observador), objetivos (explicação x
descrição), diferentes papéis sociais (juiz, políticos, população etc) e as atividades
pragmáticas de pesquisa (hermenêuticas, críticas etc). Ao falar em tensão, Cattoni
abandona as perspectivas que seccionam o ideal do real em termos constitucionais.
Portanto, em vez de focar a atenção em teorias constitucionais especializadas no
110 curso de teorias constitucionais brasileiras

normativo, ou seja, naquilo que seria o ideal para nossa Constituição4, uma Teoria da
Constituição sob o paradigma procedimentalista irá reconstrui-la como uma teoria
da sociedade (CATTONI, 2021, p. 35).
A ideia de reconstrução está calcada na busca pela recuperação da idealidade
imanente à facticidade da realidade como elemento de tensão operante nessa mesma
realidade. Dessa forma, tratar-se-ia de uma teoria situada em um contexto histórico e
social específico e ciente das implicações ético-políticas que almeja na reconstrução
da normatividade “como um critério ou padrão de crítica social, todavia, imanente à
realidade social”.
Para essa corrente do pensamento constitucional, o direito atua como um mate-
rial fornecido pela política, ou seja, essa assume certa precedência sobre o primeiro e
a atuação do jurídico está condicionada aos resultados de um debate político prévio
e inclusivo. O direito, então, opera como um mecanismo de integração social, isto é,
como um procedimento para a contínua existência de uma sociedade democrática,
a única capaz de ensejar um debate político público justo e igualitário ou, em outras
palavras, de fomentar um debate no qual todos são considerados com igual conside-
ração e no qual cada voz importa5.
A Constituição, portanto, longe de ser um instrumento base para a efetivação de
valores principiológicos abstratamente inscritos ou para a promoção de uma certa
interpretação acerca de valores ou objetivos considerados como importantes pela
sociedade, deve, antes, servir para criar e garantir um procedimento democrático de
criação de leis ou de definição de valores. Dito em outras palavras, a Constituição,
como um todo, e o ordenamento jurídico têm como função permitir que esse debate
político democrático exista, continue e se aperfeiçoe. Para tanto, as normas cons-
titucionais são importantes para assegurar a cidadania e a capacidade das pessoas
influenciarem em seus rumos político-sociais.
Souza Neto (2003, p. 03) desenvolve uma teoria constitucional democrático-de-
liberativa que estipula que a Constituição tem de ser encarada como uma ponte para
a “formulação e a implementação de um projeto de futuro”. Na mesma linha pro-
cedimental-democrática, Cittadino (2000) contesta a leitura de que haja um projeto
comunitário ético e valorativo estruturado pelo pacto constituinte de 88, não obstan-
te a autora reconheça a influência determinante da leitura axiológica e comunitária
desses juristas na constituinte. Dessa forma, a Constituição representa um consenso
procedimental em torno de princípios jurídicos universais, cuja concretização depen-
de dos processos de formação da vontade popular soberana por meio dos mecanis-
mos democrático-participativos

4
Talvez a proposta teórica procedimental-democrática seja a única que tenta afastar-se do modelo do desenvol-
vimento, e se aproxima do modelo da justificação.
5
E, agora, mais do nunca, se não houvera a concessão de um significado substancial de cidadania com a ruptura
dos paradigmas liberal clássico e social, era a hora de buscá-la novamente sem recorrer a pressupostos diri-
gentes e planificados. A noção de cidadania não pode mais ser interpretada como uma concessão autárquica,
entregue, e sim fruto de fluxos, refluxos, contrapesos e luta pela política que versa sobre o reconhecimento. Em
seu termo, a cidadania seria fonte crucial para o fenômeno da deliberação.
breno baía magalhães (organizador) 111

Por essa razão, o direito e a Constituição são encarados como possibilitadores


da política democrática, mas não partícipes dela. Essa separação mais rígida entre
direito e política procura, para os autores dessa vertente procedimentalista, evitar
que magistrados não eleitos influam no processo democrático, que deve ficar a cargo
do poder legislativo eleito pelo povo e representante da soberania popular. Ao mes-
mo tempo, objetiva evitar que as desigualdades sociais “viciem” o debate público,
concentrando demais influência em poucas mãos e, assim, inviabilizando-o, como
acontecia no paradigma do Estado Liberal.
No âmbito de suas interações necessárias, sugere Cattoni, o constitucionalismo,
a democracia e a Constituição são pensadas em nosso país, seguindo a linha das
proposições tradicionais, a partir de dois paradigmas que devem ser superados: o
Culturalista (ou republicano) e o Liberal. De acordo com o modelo culturalista de
interação entre constitucionalismo e democracia6, a Constituição refletiria uma or-
dem concreta de valores, materializadores da identidade ético-cultural de uma nação
que se quer homogeneizada, restando às regras democráticas assegurarem a plena
realização dessa identidade. Caberia aos tribunais, portanto, garantir que as virtudes
cívicas sejam concretizadas pelo processo legislativo7. Com base na categorização
proposta neste livro e seguindo a construção de Cattoni, cremos que as teorias da
efetividade e o neoconstitucionalismo se encaixariam nos moldes culturalistas.
Por outro lado, o paradigma liberal8, baseado no consenso sobreposto, enxerga
na Constituição um mecanismo ou instrumento de governo capaz de regular o emba-
te entre os vários atores que concorrem entre si, ao passo que o procedimento demo-
crático serviria tão somente para estabelecer as regras que assegurarão a eleição de
um governo majoritário. Portanto, competiria ao judiciário assegurar a proteção dos
interesses privados das pessoas, para que possam participar livremente da política e
defender seus pontos de vista em face das decisões políticas majoritárias. Sem muito
esforço, é possível alocarmos o pensamento liberal conservador e igualitário dentro
dessa vertente.
Uma teoria discursiva da Constituição, por outro lado, enxerga-a como “a inter-
pretação e a perfiguração de um sistema de direitos fundamentais, que apresenta as

6
O culturalismo republicano, para Cattoni, tem sido a principal inspiração de muitos de nossos constituciona-
listas progressistas para explicar seu modelo preferido de institucionalização da democracia constitucional.
O culturalismo de Cattoni equivaleria, pensamos, às perspectivas comunitaristas de Cittadino. Tomando por
base os teóricos citados como partidários do culturalismo/comunitarismo, é possível dizer que os represen-
tantes desse tipo de teoria constitucional são aqueles aqui trabalhados como representantes das vertentes da
efetividade, dirigente e neoconstitucionalista.
7
Nessa vista, reconstrói-se a soberania popular por intermédio de um processo legislativo democrático e a le-
gitima, que deve considerar a equiprimordialidade da autonomia jurídica. Ou seja, não há estado democrático
sem autonomia jurídica e tampouco autonomia jurídica sem estado democrático.
8
O direito no traje liberal teria uma função normativa de auto-limitação e de estabilidade do sistema de direito, a
fim de que não houvessem conflitos dos interesses privados de cada indivíduo. Com o uso de leis gerais e abstra-
tas, busca-se garantir, ainda que apenas formalmente, a liberdade, a igualdade e a propriedade, de modo que todos
os sujeitos receberiam os mesmos direitos subjetivos. Pois bem, com a proeminência da liberdade, entende-se que
tais garantias fundamentais se tornam legítimas a partir da não-intervenção estatal. E é nessa conjuntura que a
estrutura da Constituição do Estado de direito (liberal) foi essencialmente negativa (abstencionista).
112 curso de teorias constitucionais brasileiras

condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunica-


ção necessárias para uma legislação política autônoma”. Nesse sentido, competiria
ao Judiciário garantir as condições processuais para o exercício da autonomia pública
e privada dos cidadãos. Dessa forma, a justiça constitucional deve referir-se aos pres-
supostos comunicativos e às condições processuais para uma gênese democrática do
direito, afastando o instrumentalismo liberal e a axiologia culturalista.

Vídeo de aprofundamento: Palestra do Prof. Titular


Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira por ocasião do
lançamento da obra Teoria da Constituição (2021).

2 A TEORIA EM PONTOS

• Parte de um modelo de democracia que procura superar o não interven-


cionismo do Estado Liberal e o dirigismo totalizante do Estado Social;
• Propõe um direito constitucional não como uma forma de efetivar certos
valores abertos e comunitários (princípios), mas como um procedimento
legítimo garantidor das condições para uma ordenação justa da sociedade;
• O Direito é acionado para possibilitar aos cidadãos as condições ade-
quadas a um debate público justo e igualitário;
• Não cabe aos juízes constitucionais decidir ou aplicar os valores da
comunidade, mas tão somente assegurar que haja um procedimento de-
mocrático adequado para que ela mesma interprete, decida e aplique
seus valores;
• O Direito enquanto procedimento procurará assegurar que cada um dos
participantes desse debate político possa ter sua voz igualmente pro-
tegida, isto é, ter assegurado seu status de cidadão, que envolve, entre
outras coisas, a ausência de discriminação ou, de modo mais geral, a
proteção de seus direitos políticos e individuais, dos quais dependem a
presença dele no debate público;
• Com isso, os procedimentalistas enxergam contornar o problema
de uma colonização do mundo da vida pelo direito, ou seja, tentam
evitar que ele adentre o âmbito dos valores que a comunidade consi-
dere relevante e impeça que ela escolha livremente o que fazer com
eles;
• O ativismo judicial restaria evitado em uma teoria procedimental
do direito por impedir que os juízes possam fazer escolhas subs-
tantivas sobre qual programa valorativo será aplicado como norte
societário;
breno baía magalhães (organizador) 113

3) APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: MANIFESTAÇÕES DO MI-


NISTRO MARCO AURÉLIO NA ADI 6121

3.1 Contexto do caso:

O Partido dos Trabalhadores (PT) questionou o Decreto nº 9.759/2019, edi-


tado pelo governo Bolsonaro, que extinguiu órgãos colegiados da Administração
Federal instituídos mediante decretos e atos de hierarquia normativa inferior, in-
cluindo aqueles encartados em leis ordinárias nas quais estivessem indicadas as
competências e a composição do órgão. O Partido alegou que, especialmente no
que diz respeito ao último caso, o Presidente usurpou competência do Congresso
Nacional, ou seja, teria havido supressão imprópria (pois feita mediante decreto) de
colegiados expressamente instituídos por lei em sentido formal, levando em conta a
existência de reserva legal.
Politicamente, o Presidente Jair Bolsonaro adotou o combate às “entidades apa-
relhadas” fortalecidas no Governo Dilma, como estratégia para dissolver e proibir
a criação de órgãos colegiados na Administração Pública que contavam com a so-
ciedade civil, organizada ou não, em sua composição. Segundo o Presidente, tais
entidades, além de funcionarem como instrumentos da “esquerda” (tese do aparelha-
mento), apenas serviam para consumir recursos públicos, ignorar a lei e atrapalhar
propositalmente o desenvolvimento do país.

3.2 Pontos fundamentais

Cumpre a este Tribunal definir, no campo precário e efêmero, a compati-


bilidade, com a Constituição Federal, da extinção, mediante ato normativo
editado pelo Executivo, de colegiados instituídos por “decreto, incluídos
aqueles mencionados em leis nas quais não conste a indicação de suas com-
petências ou dos membros que o compõem” – artigo 1º, cabeça e parágrafo
único, inciso I. (...)
Com a promulgação da Emenda de nº 32/2001, no que alterada a redação
do inciso VI do artigo 84, reintroduziu-se, na ordem constitucional, a figura
jurídica do decreto autônomo (...). Franqueou-se ao Chefe do Executivo a
possibilidade de dispor sobre a estruturação da Administração federal – res-
salvada, além da instituição de medidas a implicarem aumento de despesa,
a criação e a extinção de órgãos públicos, instituindo-se, no ponto, verda-
deira hipótese de reserva legal, na forma do inciso XI do artigo 48.
Na esteira do raciocínio lançado pelo requerente, surge intuitiva a neces-
sidade de perquirir se os colegiados citados nos incisos do artigo 2º do
Decreto questionado – a saber, conselhos, comitês, comissões, grupos, jun-
tas, equipes, mesas, fóruns e salas – devem ser considerados órgãos públi-
cos para o fim de enquadramento nas previsões contidas nos mencionados
preceitos constitucionais.
114 curso de teorias constitucionais brasileiras

(...) surge plausível compreender, no âmbito de abrangência da locução


empregada pelo constituinte no inciso XI do artigo 48 e alínea “a” do inciso
VI do artigo 84 – “órgãos públicos” –, a figura dos colegiados descritos
nos incisos do artigo 2º do Decreto questionado – circunstância a afastar,
em tese, a atuação individual do Chefe do Executivo, ante o princípio da
reserva legal? (...)
A questão resolve-se, isso sim, a partir da verificação de atuação anterior
do Parlamento no sentido de promover, sob o influxo dos ares democráticos
da Carta de 1988, a atuação dos diversos grupos representativos da socie-
dade civil organizada na tomada de decisões importantes da vida nacional,
ante a previsão, em diploma legal, no sentido da existência de determinado
colegiado, mostrando-se irrelevante o veículo normativo mediante o qual
efetivamente implementado.
O raciocínio justifica-se quando levadas em conta as bases estruturais do
Estado Democrático de Direito consagrado em 1988. Democracia não é ape-
nas o regime político mais adequado entre tantos outros – ou, parafraseando
Winston Churchill, o pior à exceção de todos os demais; antes, deve ser
compreendida como o conjunto de instituições voltado a assegurar, na me-
dida do possível, a igual participação política dos membros da comunidade.
Sob essa óptica, qualquer processo pretensamente democrático deve ofere-
cer condições para que todos se sintam igualmente qualificados a participar
do processo de tomada das decisões com as quais presidida a vida comuni-
tária: cuida-se de condição da própria existência da democracia.
Tem-se conceito ideal. Considerado o modelo liberal clássico de democra-
cia representativa, exerce-se o poder apenas indiretamente pelos membros
da sociedade e diretamente pelos representantes eleitos. A razão é simples:
surge inviável, nas complexas e plurais sociedades contemporâneas, a to-
mada de decisões políticas diretamente pelos cidadãos. Firme nessa pre-
missa, a soberania popular não é, necessariamente, autora das decisões fun-
damentais, mas, noutro giro, legitimadora do papel desempenhado pelos
representantes escolhidos por meio do voto em eleições periódicas, na quais
observado o sufrágio universal em processo justo e igualitário de escolha.
Daí resumir a participação política dos cidadãos ao ato de votar é passo
insuficiente ao fortalecimento da vitalidade prática da democracia, cujo
adequado funcionamento pressupõe o controle, crítico e fiscalizatório, das
decisões públicas pelos membros da sociedade. Povo que não a exerce não
se autogoverna
Mais: longe de pretender negar o papel central exercido pelo processo po-
pular de escolha de representantes, vale ter presente, na esteira de autores
partidários da chamada democracia deliberativa, a impropriedade de redu-
zir-se a vida democrática à representação clássica de matriz oitocentista,
devendo envolver “também a possibilidade efetiva de se deliberar publi-
camente sobre as questões a serem decididas” (...). A efetiva deliberação
pública racionaliza e legitima as decisões tomadas no âmbito da gestão
política da coisa pública. Para tanto, surge imprescindível a criação de con-
dições a franquearem, no debate público, idêntica oportunidade a todos os
breno baía magalhães (organizador) 115

cidadãos para influenciar e persuadir em contexto discursivo aberto, livre


e igualitário.
A conclusão é linear: a igual oportunidade de participação política revela-se
condição conceitual e empírica da democracia sob a óptica tanto representa-
tiva quanto deliberativa. Como ideal a ser sempre buscado, consubstancia-
-se princípio de governo a homenagear a capacidade e a autonomia do cida-
dão em decidir ou julgar o que lhe parece melhor para a definição dos rumos
da comunidade na qual inserido – requisito de legitimidade de qualquer
sistema político fundado na liberdade. (...). Tais preocupações não passa-
ram desapercebidas pelos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte
(1987/1988), cuja Carta, produzida em meio a ricos e intensos debates, foi
adequadamente chamada de Cidadã. “Estatuto do Homem, da Liberdade
e da Democracia”, nas palavras de Ulysses Guimarães. O Diploma Maior
expressa o reencontro da Nação com o Estado Democrático de Direito após
longos anos de regime de exceção.
(...) Ao consagrar, junto aos mecanismos representativos, o princípio de
participação direta na gestão pública, o texto constitucional, no que dotado
de inequívoca força normativa, promoveu a emergência de diversos insti-
tutos alusivos à gestão ou fiscalização de políticas públicas. A leitura dos
diversos capítulos da Lei Maior revela extenso rol de preceitos nos quais
mencionada, expressamente, a “participação da comunidade” na gestão pú-
blica, notadamente na área da saúde – artigo 198, inciso III –, da seguridade
social – artigo 194, inciso VIII –, da política agrícola, – artigo 187, cabeça
–, da gestão democrática da educação – artigo 206, inciso VI –, e da as-
sistência social, onde se estabelece, de forma específica, a participação da
população “por meio de organizações representativas” na formulação das
políticas e no controle das ações em todos os níveis – artigo 204, inciso II.
Ante o cenário descrito, a conclusão constitucionalmente mais adequada,
em sede precária e efêmera, consiste em suspender, até o exame definitivo
da controvérsia, a extinção, por ato unilateralmente editado pelo Chefe do
Executivo, de órgão colegiado que, contando com assento legal, viabilize a
participação popular na condução das políticas públicas – mesmo quando
ausente expressa “indicação de suas competências ou dos membros que o
compõem”.

3.3 Comentários

Inicialmente, vale mencionar a tentativa do Relator de afastar quaisquer suspei-


tas de um suposto ativismo judicial por parte do STF na sua busca por solucionar
o impasse conceitual criado pelo emprego das expressões “órgão”, como catego-
ria constitucional que somente pode ser extinta mediante atuação exclusivamente
legislativa, e “colegiado”, instituto criado por atos normativos inferiores ou igual
aos Decretos Executivos. Caso o STF estendesse aos “colegiados” o mesmo trata-
mento constitucional conferido aos “órgãos”, toda a empreitada de Bolsonaro seria
inconstitucional.
116 curso de teorias constitucionais brasileiras

Feita essa advertência, o Ministro intencionalmente recorre ao procedimentalis-


mo do Constitucionalismo Democrático como proposta para afastar qualquer pecha
de ativismo judicial, uma vez que essa proposta teórica impediria escolhas substan-
tivas no programa valorativo quanto à definição semântica do que seriam “colegia-
dos”. Em suas próprias palavras: “O deslinde da controvérsia há de encontrar guarida
no Direito instrumental, tão desprezado em tempos de crise, em que pese essencial
à adequada realização do direito material, inclusive no âmbito do processo objetivo”.
Busca, então, resolver o caráter contencioso da discussão, incumbindo tal res-
ponsabilidade à organicidade do direito, a qual apenas garante as bases para a dis-
cussão político-deliberativa, instrumentalizando-o. Doravante, nessa senda, arrisca
abarcar o Direito Instrumental (procedimental) – esse, nos dizeres do relator, esque-
cido – como escopo que satisfaz o Direito Material (substancial) e seria responsável
para o deslinde da controvérsia.
Nessa premissa, o relator, em seu voto, informa qual seria o apelo para a es-
truturação constitucional de colegiados, recorrendo à tese basilar dessa vertente do
Constitucionalismo, segundo a qual “a igual oportunidade de participação política
revela-se condição conceitual e empírica da democracia sob a óptica tanto represen-
tativa quanto deliberativa”. Dessa forma, tal qual na perspectiva habermasiana do
discurso como possibilidade democrática, a existência dos colegiados seria essen-
cial para um modelo democrático deliberativo de constitucionalismo, haja vista que
tal responsabilidade recairia nas Casas Legislativas e Parlamentos, havendo nelas a
possibilidade de decidir sobre os incursos substanciais da sociedade civil em diálogo
com a máquina estatal, restado ao Judiciário atuar como instrumento de correção
dessas deformações sociais para garantir a todos o direito e a possibilidade de influir
no curso do debate político de modo justo e igualitário.

4 GUIA DE LEITURA

4.1 Bibliografia Básica

CATTONI, M.. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle juris-
dicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Manda-
mentos/FHCFUMEC, 2000.
CATTONI, M. Contribuições para uma teoria crítica da constituição. Belo Horizonte: Ar-
raes Editores, 2017.
CATTONI, M. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Conhecimento, 2021.

4.2 Bibliografia Crítica

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do


Advogado, 2002.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
breno baía magalhães (organizador) 117

Com exceção do neoconstitucionalismo, pensamento que tem sofrido ataques


sistemáticos desde sua criação, pudemos observar que as críticas feitas às teorias são,
geralmente, indiretas e raramente endereçam nominalmente os autores da vertente
oposta. O procedimentalismo constitucional de Cattoni foi, no entanto, duramente
questionado por Lenio Streck, autor que advoga uma visão substancialista de nossa
Constituição.
A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) de Streck é proposta nacional gesta-
da da antropofagia de conceitos hauridos desde a hermenêutica filosófica alemã de
Gadamer e Heidegger e até o interpretativismo estadunidense dworkiniano, unidos
para formar uma posição substancialista (por isso antagônica ao procedimentalismo)
que procura conferir ao Direito um papel de maior centralidade na definição dos
rumos de uma sociedade democrática, não mais relegando-o ao papel secundário de
mantenedor das circunstâncias de um debate político, mas como material interpreta-
tivo criativo do substrato oferecido a ele pela política.
Essa atribuição dada pela CHD ao Direito é fruto direto de sua apropriação do
paradigma hermenêutico: nele, a interpretação (no caso do Direito, a interpretação
das normas jurídicas) nunca é mera repetição ou descoberta do conteúdo do texto,
mas uma nova rodada em um diálogo sem início nem fim. Isso significa que o texto
inicia um diálogo com seu intérprete, um diálogo cuja síntese será um novo texto
(sentença, decisão, etc.) que é um híbrido daquilo que o texto diz com a resposta do
intérprete, com sua interpretação, em última instância.
Portanto, qualquer interpretação sempre será criativa, pois o intérprete só poderá
ler o texto a partir de seus preconceitos e filtros, não de modo puramente analítico.
Isso significa dizer que quando um juiz lê o texto constitucional e especificamente
um princípio, ele não pode se manter apartado do debate político público. O juiz
também não pode evitar de colocar seu próprio programa de valores em sua interpre-
tação e simplesmente aplicar uma interpretação “da comunidade” ou que já estivesse
de algum modo na norma. Em outras palavras: ele não pode somente garantir as
condições para o debate, suas decisões já contêm um juízo de valor e, portanto, já
avançam determinadas peças no tabuleiro da política.
Então, para Streck, os juízes, por desempenharem papel substantivo no debate
público, como fruto do caráter hermenêutico de seu trabalho, devem ter um certo
compromisso democrático, porquanto suas decisões são meios válidos para o avanço da
agenda democrática. Em suma, Streck critica os procedimentalistas por não coloca-
rem nos seus devidos termos à interpretação jurídica e por não enxergar seu poten-
cial como arma na luta pela efetivação dos compromissos democráticos.
Por outro lado, a crítica apresentada pela CHD questiona também a separação
entre direito e política proposta pelos procedimentalistas. As problematizações teó-
ricas feitas pela CHD e pelo constitucionalismo procedimentalista compartilham,
além do alvo e do objeto, um outro aspecto relevante: ambas estão preocupadas com
o que juízes fazem quando decidem e quais as consequências dessas decisões para a
democracia. Todavia, as convergências param por aí. Enquanto os adeptos da CHD
118 curso de teorias constitucionais brasileiras

mantêm que a ordem vigente tem mais pontos positivos do que negativos e que o
Direito atual pode representar os interesses da sociedade como um todo desde que
tenha bons intérpretes, os teóricos críticos vêm a sociedade como inerentemente
conflituosa.
Para os críticos deliberativos, em todo caso levado a juízo, dois interesses confli-
tam entre si – uma posição de certo incontroversa e óbvia –, entretanto a lente com
a qual eles enxergam esses interesses não é com pretensa imparcialidade, mas à luz
das desigualdades e opressões materiais existentes na realidade não jurídica. Isto é,
para eles os dois sujeitos processuais não são partes iguais, mas indivíduos de carne
e osso com suas posições sociais e materiais pré-definidas e desiguais. Desse modo,
a norma existe para favorecer um desses dois sujeitos, para continuar ou interromper
os processos exploratórios inerentes ao capitalismo moderno. O juiz, portanto, quan-
do interpreta, seja concordando com o sentido usual da norma ou subvertendo-o, está
em verdade efetuando uma escolha política em um sentido ainda mais forte do que
aquele proposto pela CHD.

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Como a ideia de democracia proposta pelos procedimentalsitas contrasta


com aquela defendida pelo neoconstitucionalismo? Se os valores consti-
tucionais não estão previamente preenchidos, como coadunar a natureza
dirigente de nossa Constituição com o procedimentalismo participativo?
2) As teorias democráticas-procedimentais podem ser facilmente desenvol-
vidas em países tão desiguais como o Brasil, onde os requisitos básicos
da cidadania ainda são negados a significativa parcela da população, o
que inviabiliza por completo sua participação política igualitária?
Capítulo 9

CONSTITUCIONALISMO RADICAL
Arthur Pedroso de Almeida1
Breno Baía Magalhães2

1 EXPOSIÇÃO CONTEXTUAL DA TEORIA

A teoria em comento foi proposta no calor das revoltas populares que tomaram
conta do Brasil com as manifestações iniciadas em junho de 2013 e no rescaldo
provocado pela crise financeira global de 2008. A causa imediata das manifestações
ainda gera controvérsia na literatura social brasileira, no entanto, há consenso acadê-
mico na identificação de uma reivindicação específica: reforma política.
O clima nacional de insatisfação com os últimos governos petistas, somado à
recessão econômica que atravessava o país, foram suficientes para que pesquisadores
e pesquisadoras progressistas acendessem sinal amarelo em relação à capacidade
transformadora da realidade social sugerida pela Constituição de 1988, bem como,
em última análise, sobre sua capacidade de canalizar os conflitos políticos e sociais
presenciados naquele período. Em síntese, um dos questionamentos feitos pela im-
prensa, academia e pelos manifestantes dizia respeito à viabilidade da manutenção
do pacto republicano firmado em 88.
Calcada nas produções francesas pós-marxistas críticas da democracia liberal,
como a de Chantal Mouffe, e na interpretação dos textos jurídicos feita pelos pós-
-estruturalistas, como Jacques Derrida, a professora Dra. Vera Karam de Chueuri,
da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ofereceu como proposta ao quadro po-
lítico-téorico-constitucional descrito no parágrafo anterior a formulação de um novo
constitucionalismo intitulado de “Constitucionalismo Radical”3.

1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Projeto de Extensão Estudos
Constitucionais Compartilhados (ECCOM).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
3
O radicalismo democrático é crítico dos modelos democráticos liberais consensuais, como o procedimental
estudado no capítulo anterior e o igualitário, por buscarem um consenso inalcançável por meio da raciona-
lidade argumentativa, em vez de reconhecerem a inescapável confrontação agonística entre interpretações
conflitantes, adversariais mesmo sobre os valores liberais-democráticos que gravitam em torno da igualdade e
da liberdade (MOUFFE, 2000).
120 curso de teorias constitucionais brasileiras

Distanciando-se do resquício liberal presente no Constitucionalismo Procedi-


mental-Democrático, evidenciando sua contrariedade ao procedimentalismo como
pano de fundo para aferição da legitimidade das normas constitucionais e da pro-
dução normativa como o locus de realização e eficácia dos direitos fundamentais,
o constitucionalismo radical apela, por sua vez, à dimensão conflitual4 inerente à
ordem política cristalizada pela Constituição na figura do Poder Constituinte, o qual
é descrito pela autora como “a forma política da democracia”, isto é, como o elo de
conexão intrínseco entre o conflito político e a pacificação, que é objetivo do Direito.
E é exatamente nesse ponto, no que se refere ao conflito, que essa modalidade de
constitucionalismo assenta suas bases ao flertar com o significado político mais ínsi-
to do adversarismo no jogo, da tensão, do agonismo.
O Constitucionalismo Radical, portanto, não compartilha da visão apazigua­
doramente liberal sobre o momento pós-constituinte, segundo a qual a promulgação
da Constituição atesta o fim do Poder Constituinte Originário, uma vez que todos
os eventuais conflitos políticos e sociais passariam a ser canalizados por meio das
normas constitucionais formalmente institucionalizadas, restando, assim, somente o
Poder Constituinte Derivado como força, ainda que nem de longe tão poderosa, de
alteração do status quo constitucional.
A tensão, o conflito, afirma Chueiri, não se esgota no momento constituinte criador
de normas constitucionais voltadas ao estabelecimento dos limites do exercício do po-
der, persistindo ao longo de toda a experiência da comunidade política, uma vez que o
constitucionalismo, cujo resultado é a edição do texto Constitucional, não se afiguraria
como a coroação das decisões do passado em um presente castrado e acorrentado, que
é, ao seu ver, o cerne do pensamento constitucional tradicional (liberal).
Ao contrário, esse Poder representaria sempre uma possibilidade do porvir, de
uma democracia que nunca se realiza no presente, mas que serve como reafirmação
das promessas feitas no momento da promulgação da carta constitucional e, ao mes-
mo tempo, como chamado à ação política que visa a remover as injustiças presentes
e a manter aberto o fino espaço pelo qual a verdadeira democracia —de caráter mes-
siânico— poderá sempre entrar.
Essas promessas só poderão consolidar-se por meio de um permanente impul-
so constituinte capaz de produzir normas constitucionais a partir da destruição ou
desmonte das anteriores, sem que esteja limitado às “amarras rígidas do direito”.
O constitucionalismo limitado à uma ideia de Constituição, de texto constitucional,
é sempre um olhar para o passado, ou seja, para o tempo passado juridicamente
constituído, a menos que ele retenha o impulso constituinte (a promessa). Uma Cons-
tituição Radical é aquela que não se conforma aos mecanismos liberais de mútua

4
Em referência à base pós-estruturalista contrária aos fundamentos do liberalismo e ao procedimentalismo:
O modo como nos colocamos nesse debate é pelo entendimento de que a rejeição de fundamentos últimos
não está numa simples aplicação de um não paralisante, pois a recusa não é uma retirada e sim uma reflexão
sobre as próprias condições e qualidades do que se apresenta sob o signo de base fundante (normativismo
que não deixa de se colocar no terreno da metafísica da substância). (CHUEIRI, V. K. de; FONSECA, A. C.
M. ; HOSHINO, 2020, p. 86).
breno baía magalhães (organizador) 121

negociação entre os poderes constituídos, arriscando-se a ser mais do que isso, ou


seja, a ser objeto e sujeito da política democrática (CHUEIRI, 2013, p. 29).
Um Constitucionalismo Radical, em verdade, enverniza um pensar que discorda
que somente a constitucionalização procedimental institucionalizada dos direitos e
garantias fundamentais seja suficiente para suprir as demandas de uma comunidade.
Em tempo, muito pelo contrário, a constitucionalização mostra-se insuficiente, e so-
mente a partir da manutenção da centelha do conflito político no processo de inter-
pretação e aplicação da Constituição é possível respaldar sua força e legitimidade,
para além de suas meras normas formalmente positivadas.
Para realizar tal retenção do agonismo em seu Constitucionalismo Radical – ou
ainda, para radicalizar a Constituição, haja vista que sua tese é normativa, e não des-
critiva –, a Professora invoca uma possível reativação contínua do Poder Constituinte
Originário como fonte da promessa da democracia que é, ao fim e ao cabo, a fonte de
legitimidade constitucional. Somente com ele tensionado com o Poder Constituído
em uma dynamis na qual o triunfo momentâneo de um não implica a destruição do
outro, é e será possível encontrar uma interpretação constitucional radical que vá
para além das meras normas constitucionais formalmente instituídas, podendo ser
(re)pensadas constantemente longe dos limites do constitucionalismo procedimental
de corte liberal.

Eu diria que uma ação política sem mediações retém uma radicalidade inte-
ressante, porém não necessariamente insurrecional no sentido por ele dito.
(...) quero explorar a ideia da possibilidade de uma Constituição radical e,
assim, de uma possível mediação para a ação política através da Constituição:
não exatamente da norma promulgada em 1988, não do texto que a revela,
mas também isso, na medida em que a Constituição não se deixa reduzir ao
constituído, mas nela retém o poder constituinte e desta forma nos constitui,
radicalmente, como comunidade política (CHUEIRI, 2013, p. 26).

Ainda, ir além das paredes enclausurantes do texto constitucional para poder (re)
pensa-lo, algo que para a autora é imanente ao poder constituinte e à textura constitu-
cional, significaria uma possibilidade de, numa Constituição que vem, endossar uma
hermenêutica dos direitos fundamentais que não tem como fontes privilegiadas os
pronunciamentos do Poder Judiciário, dos jurisconsultos ou dos filósofos dirigentes,
mas que, inversamente, possa vislumbrar sua realização e interpretação a partir das
mobilizações sociais nas ruas.
Por essa razão, com um Poder Constituinte maleável e entregue nas mãos do
povo, o poder de ressignificar a Constituição (radical) em um conflito político me-
diado pela própria Constituição, entendida como a possibilidade de se estabelecerem
regras estáveis de conduta (aqui se apresenta a dynamis antes mencionada entre os
Poderes Constituinte e Constituído), ir às ruas e ecoar as múltiplas vozes se torna o
corolário para que a Constituição Radical se efetive. Desde uma perspectiva mais
prática, isso significa não excluir (ou limitar) mecanismos e formas de participação
popular a partir do discurso restritivo do constitucionalismo, mas que “a ausência
122 curso de teorias constitucionais brasileiras

dos limites finais assinala a possibilidade constante de modificação como a forma ima-
nente aos processos de disputas e participação” (CHUEIRI; FONSECA; HOSHINO,
2020, p. 87). Assim:

É preciso recuperar esta ideia e esta práxis de que o povo, soberano, ao se


autolegislar, cria e funda a Constituição, através de toda radicalidade que
está em tal ato fundante, impondo a si mesmo as regras e limites que vão
regular os seus poderes constituídos. Ainda, a ideia de que o ato fundante e
constituinte não se dissolve depois que a Constituição está feita, mas nela
permanece como o seu traço político próprio, aquilo que não alivia a sua
(da Constituição) responsabilidade em relação à democracia e aos direitos
fundamentais: seja no momento da sua aplicação, seja no momento da sua
própria revisão.

Consequentemente, Vera Karam considera que o Poder Constituinte que gestou


nossa Constituição de 1988 não se esgotou ou se exauriu no dia 05 de outubro de
1988, permanecendo até hoje como potência constituinte. Dessa forma, manifesta-
ções populares, como as de 2013, serviram para reavivar essa potência, no sentido
de reforçar a proteção de direitos por meio de uma tentativa de revolucionar o modo
como esses são interpretados pelas instâncias do Poder Judiciário. Vale mencionar
que a radicalidade não implica, necessariamente, o rompimento com o pacto consti-
tucional de forma insurrecional, mas a necessidade de fazer-se uma mediação políti-
ca através da Constituição.
poder soberano e poder constituinte, poder constituinte e poder constituído
estabelecem uma dinâmica que possibilita a instauração e a manutenção
de uma Constituição radical. Vista de outra perspectiva, essa dinâmica ou
esse movimento refere-se à capacidade de o povo se autolegislar e fundar
a ordem normativa que lhe regerá. Porém, a potência desse ato nele não
se esgota. Ao se impor uma Constituição e, com isso, se constituir como
comunidade política, o povo exige, ao mesmo tempo, que tal Constituição
seja agonisticamente vivida e experimentada. Para tanto, limites são, para-
doxalmente, estabelecidos ao poder soberano do povo.

A Constituição Radical constitui, a todo e qualquer momento, portanto, corpos


e subjetividades radicadas. Uma Constituição radical, ao contrário da tradicional
versão teórica vista até aqui, não sintetiza a tensão existente entre o poder consti-
tuinte irrestrito (representado pelas forças de mobilização democrática) e poderes
institucionalizados e constituídos (normas constitucionais características do cons-
titucionalismo), pelo contrário, “ela é performatividade e performatiza essa tensão
e permite novos processos performativos dela”. Dessa forma, a Constituição radical
está constantemente “se radicalizando na sua contingência constitutiva e na aporia
da despossessão” (CHUEIRI; FONSECA; HOSHINO, 2020, p. 93).
Com efeito, uma Constituição Radical retém consigo a potencialidade cons-
tituinte que se torna ato por meio de movimentos performativos que reivindicam
direitos fundamentais, que podem ser judiciais (decisões que garantem direitos) ou
breno baía magalhães (organizador) 123

populares (protagonizadas pelo povo por meio da ação política). Desde uma pers-
pectiva dinâmica, tanto corpos institucionalizados e constituídos quanto o povo são
sujeitos da Constituição Radical. Ao não se arrogar na avaliação de uma democracia
radical, Chueiri defende que a Constituição pode e deve mediar a ação política, ao
mesmo tempo em que a ação política pode e deve radicar a Constituição para que
mantenha sua promessa de futuro.
A ideia de corpos e subjetividades radicadas constitui importante etapa no per-
curso teórico trilhado, pois Vera Karam trata sua teoria como um pensamento em
formulação e desenvolvimento. Isso pois, apesar de em seus escritos pregressos as
manifestações de rua e as lutas populares serem o motor e maná da Constituição
Radical, é notório que tais processos somente têm legitimidade para o Constitu-
cionalismo Radical enquanto puderem ser lidos em função —como um momen-
to de efetivação— de promessas feitas dentro do contexto institucional que foi a
Assembleia Constituinte. Dito de outro modo, ativa-se pelas lutas populares o
Poder Constituinte específico que deu luz à Constituição sobre a qual tais lutas
visam a agir sobre:

Os protestos – e isto remete aos acontecimentos de 2011, 2012 e 2013 an-


teriormente mencionados – evidenciam não somente os conflitos (políticos,
sociais, econômicos, culturais, etc.), mas demandam a todo tempo e de to-
das as formas uma sociedade mais justa e igualitária. Eles reafirmam a po-
tência do poder constituinte na concreção dos direitos fundamentais e com
isso renovam o constitucionalismo (CHUEIRI, 2013, p. 32).

Todavia, em textos recentes, a autora efetua importante movimento ao se aproxi-


mar das ideias de Judith Butler e Chantal Mouffe, no sentido de integrar as ideias de
performatividade e agonismo em sua construção teórica. Nessa operação, ela clas-
sificará a Constituição radicalizada como performativa, ou seja, como texto que, ao
ser citado, falado ou interpretado, é ressignificado de modo a manter certos traços,
ao mesmo tempo em que é reimaginado em virtude do novo contexto em que se situa
o ato de fala. Nesse contexto, o texto não se dissolve diante do novo, mas se reconfi-
gura a cada aplicação.
A autora, então, traça um paralelo entre a performatividade de sua Constituição
com o relato da formação da subjetividade —também dependente da noção de per-
formatividade— oferecida por Butler, afirmando, em sintonia com a americana, que
os corpos que compõem, em assembleia, as lutas políticas também precisam rein-
terpretar e ressignificar as normas de inteligibilidade sociais do que seria uma vida
digna ou passível de luto, como dirá Butler em Quadros de Guerra.
Dessa forma, diz Karam, esses corpos, que precisam lutar pelo reconhecimento
de suas vidas, estão em situação de acentuada precariedade, condição que, não obs-
tante ser compartilhada por todos os seres humanas, é distribuída socialmente de for-
ma desigual por meio das desigualdades materiais e opressões. Com efeito, será essa
precariedade, então, a força motriz da ação política enquanto sentimento comparti-
lhado que leva os corpos à “praça” ao mesmo tempo em que sua redistribuição será o
124 curso de teorias constitucionais brasileiras

fim último de tal luta. As lutas populares, nesse contexto, partem da precariedade, da
despossessão, e aterrizam em uma reconfiguração de tal condição, performando para
isso novas formas de vida mais fraternas e justas durante as manifestações:

A inafastabilidade da situação precisa de precariedade vivida pelos corpos,


ao mesmo tempo mobilizam a política por essa comum dependência e cha-
mam pela diminuição da precariedade ao lutar por suportes materiais que
tornem a vida viável. O terreno da ação política está ligado a uma política
dos corpos (em suas interdependências) que a partir dos enquadramentos
diferenciais e contra eles se move (ação política, então, também ser exer-
ce, aqui, performativamente como práxis crítica) (CHUEIRI; FONSECA;
HOSHINO, 2020, p. 90).

O agonismo, por sua vez, representará o modo como esses conflitos políticos en-
tre as formas de vida e de subjetividade estabelecidas e aquelas que desejam se fazer
ouvidas e sentidas a partir das ruas se dará dentro da Constituição e da Democracia.
Isso ocorre pois ele, na definição dada por Mouffe, implica que a dimensão confli-
tual da via política não deverá ser extinta ou encarada como risco de se cair em um
faccionalismo inadmissível na Democracia, mas sim que ela deverá ser interpretada
como constituinte e sinal de vitalidade da vida política, como prova de que as portas
para a inovação continuam abertas e que o debate franco não fora ainda silenciado.
A Constituição Radical, por conseguinte, será performativa ao comportar a rein-
venção de seu texto em diferentes contextos citacionais, será agonista ao entender
que tais contextos decorrerão do debate democrático que não possui fim, e será radi-
cal ao ouvir os anseios daqueles corpos inviabilizados que sofrem com a desposses-
são e de expandir os horizontes de proteção e efetivação dos direitos fundamentais
por meio da reimaginação eterna do texto constitucional.
As adições ao já rico quadro teórico do Constitucionalismo Radical descritas
acima importam em uma ampliação da teoria que extrapola as possibilidades conti-
das no conceito de Poder Constituinte e passa a versar sobre a própria condição de
vulnerabilidade daqueles corpos que são os verdadeiros sujeitos da Constituição Ra-
dical. Com isso, não se exclui o Poder Constituinte, mas sim dá-se a ele novos con-
tornos e um alcance maior do que originalmente imaginado. A teoria da Constituição
e do Constitucionalismo Radical, de certo, é uma das mais instigantes proposições a
sair da academia jurídica pátria e seu vigor de prosseguir se atualizando e se aprimo-
rando é, sem dúvidas, prova disso.

Vídeo de aprofundamento: Percursos de Constituciona-


lismo e Democracia - Professora Doutora Vera Karam
de Chueiri (UFPR)
breno baía magalhães (organizador) 125

2 A TEORIA EM PONTOS

1. Tradicionalmente, o Poder constituinte é pensado como a forma jurí-


dica da democracia. Por outro lado, o constitucionalismo é visto como
a limitação do poder constituinte, a fim de que abusos e arbítrios do
Estado sejam contidos;
2. O Constitucionalismo radical intenciona pensar uma forma de mediar
(dar legitimidade social) a ação política na forma de uma Constituição
que se pretende radical, ou seja, que seja capaz de romper com a pers-
pectiva tradicional descrita em 1;
3. A constituição radical estabelece uma unidade, que não se sintetiza,
entre o poder constituinte (democrático) e poder constituído (constitu-
cionalismo);
4. Tentativa de reconstruir, constantemente, as promessas do poder cons-
tituinte (democracia) por meio de uma interpretação constitucional
que não se restringe aos formalismos institucionalizados pelas normas
constitucionais postas, impedindo que a Constituição permaneça presa
às amarras do constitucionalismo e possa se reinventar para garantir a
efetivação dos direitos;
5. Essa reinvenção é feita partindo da voz das ruas e das manifestações
que são ouvidas pelo direito para efetuar verdadeiras revoluções de
direitos. Todavia, há espaço para que os poderes constituídos também
operem essas mesmas revoluções jurídicas;
6. O direito é parte da política e a Constituição Radical, nesse ínterim, é
um documento jurídico e político, uma vez que não encerra os desejos
do poder constituinte enquanto democracia, mas os mantêm vivos e é
capaz de os concretizar;
7. Esse cumprimento de promessas não é, entretanto, nunca finalizado e
sempre há espaço para novas modificações com a mudança dos tempos
e das circunstâncias. Portanto, o poder constituinte nunca deixa de ser
promessa e uma força animadora para os intérpretes e para a sociedade
como um todo na luta por direitos.

3 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL: PROPOSTA DE CONSTITUINTE


EXCLUSIVA E CONSTITUCIONALISMO RADICAL

Diferentemente dos capítulos anteriores, o tópico sobre aplicação jurisprudencial


do Constitucionalismo Radical está parcialmente prejudicado. Em primeiro lugar,
porque, tendo em vista que a teoria se pretende formulação político-filosófica de
empoderamento do povo fora das Cortes, ela nos força a olhar por suas manifes-
tações fora do âmbito institucionalizado dos órgãos que operam dentro dos limites
dos textos constitucionais. Em segundo lugar, porque, em função de sua formulação
126 curso de teorias constitucionais brasileiras

recente, a teoria ainda não teve a oportunidade de ressoar pelas frias paredes do STF.
Por essas razões, focaremos nossa atenção nos movimentos que alimentaram a busca
pelo constitucionalismo radical e a resposta dos poderes instituídos.
A ex-presidenta Dilma Rouseff propôs, durante o final de seu primeiro mandato,
um plebiscito que tinha como tema a convocação de uma assembleia constituinte es-
pecífica destinada à reforma política. Os constituintes, de acordo com sua proposta,
teriam total liberdade para legislar a nível constitucional dentro daquele tema, com a
promessa de que tudo o que decidissem seria, prontamente, incorporado na Consti-
tuição. Em sua manifestação, a presidenta expôs que:

Mais do que um debate, estamos aqui para procurar e evidenciar, e apontar


soluções. Buscamos respostas, todas elas republicanas e participativas aos
problemas que inquietam e mobilizam o povo brasileiro. Nos últimos anos,
o Brasil vem passando por um inequívoco e ininterrupto processo, talvez
o maior processo de mudança da nossa história (...).O povo está agora nas
ruas, dizendo que deseja que as mudanças continuem, que elas se ampliem,
que elas ocorram ainda mais rápido. Ele está nos dizendo que quer mais
cidadania, quer uma cidadania plena. As ruas estão nos dizendo que o país
quer serviços públicos de qualidade, quer mecanismos mais eficientes de
combate à corrupção que assegurem o bom uso do dinheiro público, quer
uma representação política permeável à sociedade onde, como já disse an-
tes, o cidadão e não o poder econômico esteja em primeiro lugar. É muito
bom que o povo esteja dizendo tudo isso em alto e bom som. Cabe a cada
um de nós – presidenta, ministros, governadores, governadoras, prefeitas,
prefeitos –, cabe a cada um de nós cumprir essa nova e decisiva dimensão
da vontade popular. Nós todos sabemos onde estão os problemas. Nós to-
dos sabemos que podemos construir soluções. Mas também sabemos das
incontáveis dificuldades para resolvê-los (...) Quero, nesse momento, pro-
por o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o
funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma
política que o país tanto necessita. O Brasil está maduro para avançar e já
deixou claro que não quer ficar parado onde está.

A generalidade do tema de que trataria essa assembleia derivava, em grande


parte, de sua origem difusa. Longe de ter sido fruto maduro de um debate político
congressual ou de uma demanda popular desde há muito articulada em termos claros
e precisos em torno de certos dispositivos constitucionais, como o que ocorrera, por
exemplo, com as lutas pela transição democrática, a pauta da reforma política é con-
troversa, difusa e complexa, não obstante esteja arraigada no inconsciente coletivo
de uma grande parcela da população, especialmente por conta da corrupção sistêmi-
ca que marca a vida política brasileira.
Essa angústia tão dispersa quanto intensa explodiu nas manifestações de julho
de 2013, quando o povo foi às ruas em número recorde “contra a corrupção”. Em
verdade, as demandas daqueles presentes nas manifestações eram incrivelmente di-
fusas e muitas vezes contraditórias, e o próprio significado do que seria “corrupção”
breno baía magalhães (organizador) 127

nunca foi muito bem definido entre os manifestantes. O que reinava era somente um
sentimento cego de que “algo deveria ser feito contra isso que está aí” (“o que está aí”
sendo, nada mais nada menos, do que um substituto para o Mal cristão).
Com isso, a presidenta afirmou ter ouvido a voz das ruas e apresentou sua pro-
posta para alterar a Constituição com o mesmo entusiasmo ingênuo e ausência de
foco hauridos das manifestações de 2013. Guardando por um momento eventuais
críticas, a constituinte pretendida por Dilma talvez seja o mais próximo — apesar
das imperfeições— que o ordenamento jurídico brasileiro chegou de experimentar
o Constitucionalismo Radical de Vera Karam. Tal como propõe a autora, o que se
procurou naquela oportunidade foi superar o texto constitucional formal, libertar a
força política traduzida juridicamente como poder constituinte das amarras do cons-
titucionalismo enquanto limitação do poder do Estado. Essa reativação do poder
constituinte (não derivado, mas de algum modo originário por sua independência
das normas constitucionais até então previstas) necessitava, como afirma Vera, de
uma mediação.
O problema da mediação, central para o constitucionalismo radical, postula que
para que uma ação política (reforma política) seja tida como legítima, ela precisa con-
tar com uma mediação social (o Direito). Portanto, Dilma não propôs, simplesmente,
depor a Constituição vigente ou parte dela, suspendendo a ordem jurídica, mas sim
propôs utilizar-se de meios jurídicos previstos dentro da ordem vigente, porquanto
uma assembleia constituinte exclusiva não afeta o resto da Constituição. Além disso,
ela ainda contaria com um mandato do povo, visto que a assembleia seria criada via
plebiscito, o que lhe conferiria legitimidade democrática e mesmo jurídica, haja vista
a previsão constitucional do plebiscito5.
Desse modo, a presidenta Dilma Rouseff, mesmo sem saber, tentou aplicar uma
espécie de constitucionalismo radical, trazendo de volta a força do poder constituin-
te originário para revolucionar a vida política pátria. Isso, contudo, coexiste com a
falta de foco e direcionamento supracitadas, o que nos convida a pensar como, na
tentativa de dar ao constitucionalismo radical uma vida prática, poderemos capturar
o caráter fluído e plural das demandas do povo que vai às ruas, ao mesmo tempo em
que as moldaremos em uma forma que garantirá o sucesso das promessas do poder
constituinte em longo prazo.
Entretanto, é importante destacar, a autora manifestou-se contrariamente à pro-
posta de Dilma. Em artigo de opinião, Vera Chueiri, entre outros, sustentaram que
a Constituinte exclusiva “pretend[i]a modificar ou excepcionar o disposto no artigo
60 da Constituição da República, viola[ndo] a rigidez constitucional”. Para a autora,
a proposta:

“afronta a Constituição porque coloca em risco direitos e garantias das


minorias políticas em face dos interesses das maiorias e porque infringem

5
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito;
128 curso de teorias constitucionais brasileiras

as próprias condições constitucionais e processuais para deliberação por


maioria”. Por fim, “A Constituição brasileira de 1988, como poder consti-
tuído, possibilita a reforma política com participação popular, respeitadas
as regras do jogo democrático. Isso se dá por meio da representação e da
possibilidade de emendas ou mesmo pelo processo legislativo ordinário”.

4 GUIA DE LEITURA

CHUEIRI, V. K. de; GODOY, M. G. . Constitucionalismo e democracia, soberania e poder


constituinte. Revista Direito GV, v. 6, p. 159-174, 2010.
2) CHUEIRI, V. K. de. Constituição radical: uma idéia e uma prática. Revista da Faculdade
de Direito (UFPR), v. 58, p. 25-36, 2013.
3) CHUEIRI, V. K. de; FONSECA, A. C. M.; HOSHINO, T. A. P. . A Constituição (in)cor-
porada A Constituição performativa, o agonismo e a despossessão: Mouffe e Butler. Católica
Law Review, v. IV, p. 81-97, 2020.

4.1 Críticas

A tese de uma Constituição Radical ainda está em processo de desenvolvimento


e amadurecimento no pensamento da autora, portanto as observações críticas a ela
dirigidas possuem caráter provisório e visam a contribuir com o relevantíssimo deba-
te suscitado pela profa. Karam. Entretanto, já figuram para fora da névoa da novidade
certas dificuldades presentes nas formulações da teoria.
Acreditamos que o problema capaz de ser mais rapidamente diagnosticado diga
respeito à questão da historicidade da teoria. O problema da historicidade ocorre por
conta dos pressupostos exigidos para a validade normativa da tese de uma Constitui-
ção Radical. Em outras palavras: a tese da professora depende de um certo conjunto
de afirmações históricas para que seu fim de servir como uma alternativa ao consti-
tucionalismo vigente se configure. Esse problema é complexo e diversos argumentos
dessa natureza podem ser feitos em quase toda cadeia de raciocínio da professora.
A afirmação que dá o pontapé inicial na proposição da Constituição Radical é
a de que o poder constituinte é a forma jurídica da democracia. Essa igualdade não
se dá somente no plano conceitual, pois a professora enxerga nas manifestações de
rua (democráticas e políticas) uma manifestação do poder constituinte, então se
pode afirmar com segurança que ela enxerga essa identidade no mundo dos fatos
e, também, na história. Isso vincula sua teoria a uma certa descrição histórica que
dê suporte à tese normativa segundo a qual, quando o Poder Constituinte enquanto
Democracia invade a interpretação constitucional em detrimento de um constitu-
cionalismo como contenção do poder estatal na forma das “revoluções de direitos”
mencionadas pela professora, o saldo será positivo na forma de uma maior efetiva-
ção e concretização desses direitos e da própria promessa democrática que funda
o processo constituinte.
breno baía magalhães (organizador) 129

Era de todo esperado que tal afirmação histórica robusta gerasse uma variedade de
possíveis questionamentos, dentre os quais selecionamos os seguintes: a identificação do
poder constituinte com a democracia é válida, historicamente, para a experiência brasi-
leira? Há provas históricas de que as manifestações populares no Brasil foram responsá-
veis por um aumento na liberdade e no usufruto dos direitos (ao menos no exemplo de
2013 dado pela autora)? E, por fim, a ordem constitucional tal como compreendida hoje
pode realmente capturar os anseios de toda uma sociedade democrática e plural?
As duas primeiras perguntas nos conduzem a certas respostas difíceis para a teo-
ria do Constitucionalismo Radical. Em primeiro lugar, o processo constituinte de 1988,
apesar de diversos e inegáveis ganhos democráticos, conteve dentro de si outros tantos
elementos autoritários, como: a visão assimilcionista sobre os povos indígenas, como
lembrado pela autora em seu texto A Constituição (in)corporada, ao mencionar o discur-
so de Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte; a inexistência de uma reforma
agrária; a manutenção da tutela militar da democracia; e, por fim, a própria composição
constituinte feita por uma expressiva maioria de homens brancos heterossexuais. Assim,
a “democracia” representada pelo Poder Constituinte está longe de representar um marco
de pura inspiração democrática e sua invocação em uma interpretação constitucional
carregará consigo todos os vícios decorrentes do processo histórico.
No caso das manifestações, que a professora enxerga como instâncias de poder
constituinte-democracia em ação, o exemplo de 2013 não parece, em retrospecto,
favorável ao seu argumento. Desde lá, e especialmente após a captura conservadora
dessas manifestações em 2015, longe de termos o grande ganho de direitos — a re-
volução pretendida — tivemos, em verdade, o completo oposto: um desmonte sem
precedentes dos serviços públicos, uma crise política e de representação, governos
extremamente impopulares frutos de manobras antidemocráticas e um sempre pre-
sente risco de nos tornamos uma democracia antidemocrática. Portanto, parece que a
autora de, certo modo, romantiza tais momentos de nossa história política para neles
encontrar uma centelha de pura Democracia, sem dar-se conta de que inexistem mo-
mentos puramente democráticos, mas complexos instantes de forças contraditórias
se digladiando, e que instrumentalizar esses momentos sem considerar sua natureza
conflituosa é deixar a porta aberta para que as forças não democráticas cresçam
livres e sorrateiramente. Dito de outra forma, a Constituição Radical deve ser sub-
metida ao crivo das lutas políticas dos tempos, porque a própria noção da promessa
constituinte não pode ser desconstruída, para usar o vernáculo derridiano.
Não por outra razão, a proposta de Dilma sobre a convocação da constituição ex-
clusiva foi recebida com suspeitas pela autora, não obstante parecer, em um primeiro
momento, uma oportunidade de ouro para aplicar-se o ideário radical de compreender
um constitucionalismo que não inviabiliza a democracia, mas que, simultaneamente,
oferece meios institucionais para a mediação do poder6. As justificativas presentes
no artigo de opinião expõem dúvidas a respeito das justificativas políticas do governo

6
Para reforçar nossa tese, Cunha (2014; 2017), com base em Mouffe e na Democracia Radical, tem defendido a
legitimidade de uma constituinte exclusiva.
130 curso de teorias constitucionais brasileiras

e as justificativas que mobilizavam as forças populares naquele momento, não sendo


suficiente o plebiscito ratificador.
Muito provavelmente, inspirada pelo vertiginoso acento conservador tomado
pelas manifestações populares que antecederam a queda de Dilma e a ascensão do
Bolsonarismo, o radicalismo da tese foi temperado nos últimos anos. Esse movi-
mento foi marcado por um distanciamento da perspectiva do Poder Constituinte e
sua implicação de união ao redor de um projeto político democrático (sem dúvidas
influenciado pelos eventos políticos que acompanharam o desenvolvimento da argu-
mentação) em direção ao reconhecimento de potências transformativas latentes em
manifestações — e vidas — oriundas dos lugares sociais de maior vulnerabilidade.
A última pergunta ilumina, ainda que insuficientemente, um possível caminho a ser
tomado pela teoria para corrigir seu déficit de historicidade. De modo sucinto: enquanto
o monismo jurídico-constitucional for mantido intacto, isto é, enquanto o entendimento
errôneo de que em uma sociedade existe apenas um direito, uma Constituição jurídica,
dificilmente uma teoria da Constituição conseguirá responder, acuradamente, aos
anseios e sofrimentos de uma sociedade plural. Isso porque a ordem constitucional estatal
representa certos interesses parciais, e, para confrontar-se essa contingência, outras
ordens são criadas, em um chamado constitucionalismo “desde baixo”7. Essas ordens
constitucionais alternativas podem ser de diferentes espécies: uma empresa que disponha
de regras e valores próprios, uma população indígena ou quilombola, uma comunidade
de habitantes vítimas de violência estatal, todas essas instâncias podem ter sua própria
Constituição, seu próprio direito que se relacionará com o direito estatal.
Portanto, a ordem constitucional estatal é somente uma dentre as várias ordens jurí-
dicas que existem em uma sociedade, e, por isso, alcançar uma democracia real não sig-
nifica tentar encontrar todas as ordens em uma só (a estatal), mas criar mecanismos para
que todas possam falar e apresentar suas demandas, um processo dialógico inter-jurídico,
não mais intrajurídico. O monismo precisa ser abandonado em prol do pluralismo.
Portanto, o constitucionalismo radical, para encontrar formas reais de resistência e
alternativas que criem verdadeiras revoluções de direitos, precisará pensar fora do seu di-
reito enquanto teoria acadêmica de elite, e dentro dos outros direitos, do direito achado na
rua, do direito das favelas, das comunidades e populações e de todos aqueles cujos direi-
tos (e direito) são diferentes dos enquadrados nos rígidos moldes da constituição de 1988.

5 QUESTÕES PARA DEBATE EM SALA:

1) Como o constitucionalismo radical interpreta nosso momento consti-


tuinte? Como sua leitura influencia o exercício dos Direitos Fundamen-
tais dos cidadãos brasileiros?
2) Ainda que o STF não seja seu foco principal, seria possível sustentar o
emprego da teoria pela Corte Suprema, especialmente na interpretação
dos Direitos Fundamentais de minorias?
7
No original constitucionalism from below de autores como Andreas Fischer Lescano e Gunther Teubner.
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Editado em novembro de 2022

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