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(ORGANIZADOR)
CURSO DE TEORIAS
CONSTITUCIONAIS BRASILEIRAS
Belo Horizonte
2022
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Conselho Editorial
Fernando Gonzaga Jayme
Ives Gandra da Silva Martins
José Emílio Medauar Ommati
Márcio Eduardo Senra Nogueira Pedrosa Morais
Maria de Fátima Freire de Sá
Raphael Silva Rodrigues
Régis Fernandes de Oliveira
Ricardo Henrique Carvalho Salgado
Sérgio Henriques Zandona Freitas
CDDir – 341.2
CDD(23.ed.)– 342
6
Capítulo 1
A IMPORTÂNCIA DA TEORIA
NO DIREITO CONSTITUCIONAL:
PANORAMA GERAL E
APRESENTAÇÃO DO CURSO
Breno Baía Magalhães1
1
Professor de Direito Constitucional da UFPA. Coordenador do ECCOM.
2
Trechos inspirados em Dworkin (1997) e Dimoulis (2006).
3
De forma exemplificativa, podemos citar as seguintes teses constitucionais trabalhadas pela jurisprudência
recente do STF: Mutação constitucional, transcendência dos fundamentos determinantes, supralegalidade,
capacidades institucionais, entre outras.
8 curso de teorias constitucionais brasileiras
4
Vieira (2002, p. 231) denunciou a postura consequencialistas da jurisprudência da Corte em seus primeiros
15 anos de atuação sob a Constituição de 1988, em detrimento de um desejável critério “principista”. Para o
autor, argumentos sensíveis à eficiência, utilidade, conveniência, oportunidade, segurança e governabilidade
gozam de preferência em relação à “própria normatividade” constitucional.
5
Em outra oportunidade, pude constatar que o tópico sobre “Normas Constitucionais”, um dos mais destacados
dentre aqueles que fazem parte da “Teoria da Constituição” brasileira, é desenvolvido por 10 Cursos e Manuais
de Direito Constitucional de forma, praticamente, idêntica (MAGALHÃES, 2020, p. 12-14).
6
Esse modelo de sumário pode ser constatado, exemplificativamente, nos livros de Marcelo Novelino (Direito
Constitucional, 2012), Alexandre de Moraes (Direito Constitucional, 2014) e Gilmar Mendes e Gonet Branco
(Curso de Direito Constitucional, 2019).
7
Na Faculdade de Direito da UFPA, a disciplina em comento é ministrada no 1º semestre do Curso e está es-
truturada com base na seguinte ementa: “Noções preliminares. Constituição e constitucionalismo. Supremacia
constitucional, poder constituinte e reforma da Constituição. Princípios constitucionais. Normas constitucionais:
aplicação e hermenêutica constitucional”.
breno baía magalhães (organizador) 9
jus à produção acadêmica mais substantiva sobre nossa Constituição. Ao longo desses
mais de 30 anos, autores e autoras nacionais tentaram decodificar o sentido do pacto
constitucional, a fim de desvelar a melhor forma de concretizarmos as normas cons-
titucionais por meio de formulações teóricas ambiciosas, universalistas, complexas e
pouco semelhantes entre si. Independentemente do tipo, se a didaticamente padroni-
zada ou a mais substancial e acadêmica, é inegável que não conseguimos pensar a
Constituição brasileira sem teorias.
8
Rawls (2001, p. 394) encarava o consenso como o compartilhamento de premissas reconhecidas pelos deba-
tedores como verdadeiras ou aceitáveis para o estabelecimento de um argumento operativo sobre questões
fundamentais. Esse aspecto consensual, ou seja, de compartilhamento de premissas, é representado pelos
paradigmas descritivos que embasam uma teoria constitucional.
breno baía magalhães (organizador) 11
9
Trecho fortemente inspirado em Fallon Jr (1999), o qual, por sua vez, emprega o marco teórico da teoria inte-
pretativista de Dworkin.
12 curso de teorias constitucionais brasileiras
10
Justamente por essa razão, essa linha teórica ganhou sobrevida após a ascensão da direita radical ao poder com
o Governo de Jair Bolsonaro. Infelizmente não há espaço para nos aprofundarmos mais sobre o conservadoris-
mo constitucional redivivo que traveste o bolsonarismo jurídico, entretanto, vale notar que os representantes
intelectuais da teoria em sua formação clássica têm retornado aos holofotes para justificar as ações autoritárias
do governo federal, como, por exemplo, a ameaça de intervenção militar em face de decisões do STF. Ver, no
capítulo próprio, as recentes manifestações de Ives Gandra.
breno baía magalhães (organizador) 13
e, para tanto, alguns direitos fundamentais básicos devem ser garantidos aos
cidadãos, reservando à jurisdição constitucional um papel de garantidora dos
meios que viabilizem a participação democrática igualitária, e de respeito às
discussões axiológicas que resultem do procedimento democrático, única via
de aferição da correção constitucional de uma decisão política.
Mais recentemente, partindo da mesma verve progressista mas adicionando tem-
peros de radicalidade, um conjunto de teorias pretende se aproximar de posturas que
enxergam o processo de resgate da normatividade constitucional a partir da mobiliza-
ção popular, dando azo a um constitucionalismo popular de corte democrático, a partir
do qual a jurisdição constitucional deverá passar por alterações que a tornem mais
permeável à participação popular no processo de tomadas de decisões constitucionais.
Explorando o terreno das meta-teorias, ou seja, o campo que dispõe sobre o que
há de comum entre perspectivas teóricas, a fim de formularmos determinações abs-
tratas sobre os elementos compartilhados que explicam o empreendimento das teo-
rias sob análise, pensamos ser interessante investigar alguns pontos característicos
das teorias constitucionais de origem brasileira. Para tanto, focarei em dois fatores
analíticos que serão tratados simultaneamente, quais sejam, as inspirações acadêmi-
cas e a natureza descritiva ou prescritiva da empreitada teórica. Por fim, apresentarei
um rol de temas que considero constituir o esqueleto de todas as teorias constitucio-
nais produzidas no país nos últimos 30 anos.
Souza Neto e Sarmento (2016, p. 185) afirmam que a experiência do constitucio-
nalismo brasileiro não tem sido original em qualquer uma de suas dimensões, uma
vez que nele é possível observar-se a combinação de “padrões comuns às experiências
de outros povos”. Lunardi e Dimoulis (2013) avaliam que a produção teórica nacio-
nal é limitada, pois não faz parte do projeto analítico do direito positivo investigar a
natureza material de nossa Constituição. Por essa razão, a despreocupação para com
o sentido político da Constituição de 88 e seu significado fazem com que, na opinião
dos autores, o debate permaneça “em alto nível de abstração”, aproximando-se de
uma filosofia política, e distanciando-se de uma teoria, propriamente, constitucional.
As afirmações pessimistas acima querem dizer que não fomos capazes de produzir
teorias constitucionais, mas tão somente pensamentos constitucionais adaptados ao
Brasil? Isto é, no lugar de descrições apuradas e prescrições originais, que levam em
consideração o estado social brasileiro e o funcionamento de suas correspondentes
instituições, nossos teóricos e teóricas acabaram por operar transplantes de teorias es-
trangeiras tidas como sofisticadas e modernas, reduzindo seu trabalho intelectual ao
mero ajuste circunstancial e à aplicação do modelo teórico alienígena ao Brasil?11
11
A resposta a esse questionamento, seguramente, não será dada dentro dos contornos deste pequeno ensaio,
ainda que o título do livro e do presente capítulo possam denunciar alguma preferência por parte deste que
vos escreve.
16 curso de teorias constitucionais brasileiras
De saída, não parece exagero dizer que nenhuma das teorias brasileiras aqui
estudadas parte de pressupostos filosóficos originais ou de perspectivas constitu-
cionais desenvolvidas, exclusivamente, em solo brasileiro. Dessa forma, cada uma
das teorias objeto de estudo pode ser reconduzida a uma contraparte correspondente
formulada por estrangeiros. As formulações alienígenas foram, portanto, incorpora-
das pelos teóricos nacionais para explicar o texto constitucional de 1988 com variado
grau de sucesso, ponto que servirá para explicarmos a natureza de nossas teorias12.
Curioso notar que muitos dos textos, artigos e livros utilizados como referências bi-
bliográficas primárias neste Curso não consideravam estar produzindo teorias, ao con-
trário do observado nos capítulos iniciais de nossos tradicionais Manuais e Cursos de
Direito Constitucional, os quais, não obstante seus objetivos didáticos, não deixam de
elaborar tópicos estudados sob a rubrica “Teoria da Constituição”. Essa particularidade
pode ser explicada, ao menos em parte, pela tradição do pensamento político brasileiro
de considerar sua própria produção como um produto subalterno, um subproduto das
verdadeiras teorias, dignas desse nome porque produzidas em território estrangeiro e
avaliadas como modernas e mais desenvolvidas (LYNCH, 2013).
A hipótese do transplante é reforçada pelo fato de as teorias constitucionais bra-
sileiras não dialogarem entre si, ou seja, não serem estruturadas como um esforço
conjunto de uma mesma comunidade epistemológica de pensadores e pensadoras
ocupada com a explicação, crítica, reimaginação e prescrição de nossas instituições
constitucionais. Os padrões teóricos internacionais são incorporados sem, por exem-
plo, confrontações e questionamentos sobre a pertinência da produção teórica estran-
geira13 e, do ponto de vista nacional, novas teorias são apresentadas sem que se esta-
beleçam pontos de diálogo com as anteriores, a fim de justificar uma nova proposição
interpretativa sobre o texto constitucional14.
Não estamos, destarte, lidando com teorias inspiradas por teorias constitucio-
nais estrangeiras, mas devidamente aclimatadas ao Brasil por meio de uma adap-
tação e contextualização politicamente localizadas de fórmulas universais. Antes
12
Sobre essa questão, Pereira (2018, p. 316) afirma que “os espaços de construção teórica estão localizados nos
Estados Unidos e na Europa, não no Brasil, nem mesmo nos marcos históricos de fundação do país. As ideias
constitucionais brasileiras não são aproveitadas nem resgatadas, e muito menos elevadas ao nível de teoria
da constituição. A se julgar pelos resultados da pesquisa, parece que não houve, neste país, intelectuais que
pensaram em termos constitucionais, ou se existiram, que não merecem figurar como paradigmas”.
13
Com as expressões “confrontações” e “questionamentos” quero dizer que a teoria estrangeira é incorporada
desacompanhada da justificativa do autor nacional sobre sua escolha e sem explicações sobre onde ela está
situada dentro do debate feito em seu país de origem. Não sabemos, por exemplo, se a teoria de eleição é am-
plamente aceita ou ferozmente contestada. Em síntese, as teorias importadas são utilizadas pelos pensadores
nacionais “abstraídas de sua respectiva experiência jurídica, como se fossem conceitos totalmente independen-
tes de seu contexto” (RODRIGUEZ, 2019, p. 167).
14
Em importante análise, Rodriguez (2019, p. 167) condena a forma de pensar dos escritos nacionais que importam
teorias estrangeiras impondo um horizonte de reformas nas práticas jurídicas locais que postula a necessidade
de “um zero absoluto a partir do qual algo melhor possa ser edificado”. Ao proceder dessa forma, demite-se da
“tarefa de refletir sobre as razões pelas quais nosso direito é como é e qual a sua racionalidade específica”.
breno baía magalhães (organizador) 17
15
Essa é a razão pela qual foi difícil identificar, como será visto em alguns dos capítulos seguintes, textos que apre-
sentassem críticas explícitas a alguma abordagem teórica específica. Quando não era o caso de verdadeira tábula
rasa teórica surda ao diálogo, as críticas a pensamentos contrários eram feitas indiretamente, por exemplo, por
meio de contraposição às teses estrangeiras que embasavam uma teoria nacional rival. Manobra que poderá ser
observada na crítica de Bercovici dirigida ao liberalismo estadunidense, e não aos seus adeptos conterrâneos.
16
Esse mesmo conjunto de inspirações já havia sido captado por Pereira (2018, p. 312), que atestou a utilização
de “marcos paradigmáticos” da teoria constitucional estrangeiras, situados nos “Estados Unidos e na Europa”.
18 curso de teorias constitucionais brasileiras
20
Para uma perspectiva contrária, conferir David Gomes (2019).
20 curso de teorias constitucionais brasileiras
Com base no que será apresentado a partir do capítulo seguinte, pude identi-
ficar que as discussões sobre teoria constitucional brasileira nos últimos 30 anos
centravam-se em quatro temas, quais sejam: 1) a natureza da constituinte de 1988;
2) a eficácia das normas constitucionais; 3) os métodos interpretativos aplicáveis à
Constituição e 4) o papel do Poder Judiciário na concretização dos Direitos Fun-
damentais21. Argumento que esses quatro temas fazem parte de uma meta-teoria
constitucional brasileira, porquanto todas as formulações que pretendem explicar a
experiência constitucional brasileira se estruturam a partir deles.
A definição da natureza da constituinte de 1988 – A necessidade de explicarmos
teoricamente esse importante momento de nossa história constitucional recente está
no fato de a natureza do processo constituinte ainda não ter sido muito bem equacio-
nada pela teoria constitucional, a qual, a depender de suas premissas teóricas, atribui
a ele os mais diversos sentidos.
A institucionalização de um Congresso Constituinte em 1986 foi fruto de con-
cessões entre as alas políticas conservadoras e progressistas que almejavam obje-
tivos distintos com a transição democrática: os primeiros, uma profunda mudan-
ça constitucional; enquanto os últimos, uma Assembleia Constituinte. Para a ala
conservadora, o projeto de 88 representava tão somente a consolidação jurídica
das forças políticas que editaram a Constituição de 67; por sua vez, os progres-
sistas pressionaram por uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente para
confeccionar o novo texto constitucional, a evidenciar a completa ruptura com o
ordenamento constitucional anterior e a necessidade de repactuação de elementos
centrais da República.
A formatação pactuada e compromissária de nosso processo constituinte serve
de base para interpretações dissonantes do pacto, como as desenvolvidas pelos li-
berais conservadores (que condenam o pacto por sua natureza socialista, ao mesmo
tempo em que atuam para retardar seu suposto projeto transformador), liberais igua-
litários (que diferenciam os níveis de consenso obtidos na constituinte para definir o
conteúdo das matérias verdadeiramente constitucionais), dirigentes (que enxergam
na constituinte a produção de um claro projeto socialista de transformação social),
21
Ao tratarem das pautas inerentes à Teoria da Constituição no Brasil, Lunardi e Dimoulis (2013, p. 11) identifi-
caram os pontos 03 e 04 referenciados no parágrafo acima como tendo sido os objetos de maior preocupação
dos teóricos nacionais.
breno baía magalhães (organizador) 21
22
A compreensão sobre interpretação constitucional exposta no parágrafo acima pode ser encontrada na obra de
Inocêncio Mártires Coelho (2007).
23
Souza Neto (2003, p. 01) indica que a pauta do debate entre as teorias constitucionais brasileiras dirigentes e
as democrático-deliberativas é, em suas palavras, a seguinte: “em um regime democrático, qual é o papel do
judiciário na promoção da igualdade material e, especialmente, na concretização dos direitos sociais”.
24
A ausência é analiticamente insustentável, uma vez que nosso sistema político constitucional opera com base
na contínua interação entre os três ramos do poder. Por outro lado, precisamos reconhecer que a lacuna analí-
tica só se configura como um problema grave se o modelo de teoria adotado em nosso país fosse o da justifica-
ção. O enfoque solitário na atuação judiciária parece compreensível se levarmos em consideração o modelo do
desenvolvimento institucional: as teorias almejam, simultaneamente, justificar a atuação proativa do judiciá-
rio, educá-lo nas formas de aplicar a constituição e indicar os resultados substantivos de preferência.
breno baía magalhães (organizador) 23
Discutir ideologias políticas no Brasil é uma tarefa inglória, tendo em vista a fragili-
dade e difusão programática dos partidos políticos que operam no Congresso Nacional.
25
Diferentemente dos estadunidenses, há base constitucional expressa para o exercício do Controle de Constitu-
cionalidade pelo Poder Judiciário brasileiro.
24 curso de teorias constitucionais brasileiras
[eles servem de] “mapas para que indivíduos e grupos sociais se orientam
em meio à complexidade e à opacidade do mundo; são defendidas por
breno baía magalhães (organizador) 25
26
O autor, mais recentemente, tem contestado a tradicional divisão dicotômica das ideologias inerentes ao pen-
samento político-social brasileiro, uma vez que ela não dá conta dos ricos entrelaçamentos que podem ser
feitos com os modelos intelectuais básicos e suas nuances adquiridas na América-Latina. Como não é nossa
intenção adentrar, especificamente, nessa discussão, adotaremos a categorização dicotômica, sem embargo
de reconhecermos a acomodação limitada que ela oferece às teorias constitucionais brasileiras. Ao mesmo
tempo, a divisão dicotômica nesses termos é defendida por autores liberais, como Lamounier (2014, p. 139)
e socialistas, como Werneck Vianna (2004, p. 46-48). Não inserimos o comunismo como ideologia política,
uma vez que todas as teorias estudadas pressupunham a defesa de uma democracia liberal e suas instituições,
como o Estado de Direito, Separação de Poderes, Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais
(CITTADINO, 2000, p. 05).
26 curso de teorias constitucionais brasileiras
Não é muito difícil situar o grosso das teorias constitucionais no campo progres-
sista, uma vez que, em sua maioria, elas estão preocupadas com a concretização de
direitos fundamentais, principalmente os das minorias políticas e sociais e das polí-
ticas públicas que atuam na redução das desigualdades sociais27. A aliança progres-
sista em prol da Constituição, que uniu nacional-estatistas e liberais cosmopolitas,
foi firmada na constituinte (LYNCH; 2020)28 e desestabilizada pela crise política que
assola o Brasil desde 2013.
Os autores e autoras situados no campo progressista reconhecem problemas es-
truturais semelhantes do Estado brasileiro, com especial destaque para a desigual-
dade social, e elencam o fortalecimento da normatividade constitucional como um
importante mecanismo de combate às mazelas sociais do país. Entretanto, e em sin-
tonia com seus respectivos vínculos ideológicos primários, as teorias constitucionais
divergem sobre os meios de implementação dessa pauta igualitária.
As teorias constitucionais Liberais Cosmopolitas apostam no exercício do pro-
cesso político natural como fiador da concretização de seu ideal de igualdade, em
atuação desacompanhada de incentivos estatais na economia. Em função de sua des-
confiança em relação à intervenção política estatal, especialmente aquela viabilizada
por meio do Executivo e do Legislativo, como propulsora da transformação social,
apostam na atuação das Cortes como as entidades capazes de concretização desse
objetivo por meio do exercício ativo da Jurisdição Constitucional. Via de regra, essas
27
Uso a expressão “progressista” para denotar as posições constitucionais caracteristicamente associadas a po-
sições ideológicas de esquerda, desde as organizadas em torno do projeto socialista científico ou marxista, até
aquelas de centro-esquerda, defensoras da social-democracia ou as liberais. Em comum, o projeto progressista
ocupa-se do combate às desigualdades por meio, entre outras soluções, de políticas públicas redistributivas
e da defesa de direitos de grupos minoritários. O trecho foi inspirado em Sultany (2012), Fernandes (2019) e
Bobbio (2011). A proposta não leva em consideração a compreensão do eleitorado brasileiro sobre a dicotomia
“esquerda x direita” (SINGER, 2002).
28
Cittadino (2000, p. 33) emprega as expressões “conservadores” e “progressistas” para referir-se aos agrupa-
mentos formados durante a constituinte. No mesmo sentido, conferir Pilatti (2008).
breno baía magalhães (organizador) 27
teorias não enxergam no projeto constituinte um acordo mais substantivo que aquele
decorrente de um consenso sobreposto segundo o qual, no mínimo, os direitos rela-
tivos à cidadania deverão ser universalizados.
O foco na Justiça Constitucional como redentora dos Direitos Fundamentais em
razão de sua natureza incorruptível, principiológica, mais bem preparada e livre dos
tradicionais problemas atrelados à cultura política brasileira, como o “jeitinho”, o
patrimonialismo e o nepotismo, expõe a tendência do liberalismo cosmopolita de
recorrer aos magistrados como a vanguarda burocrática apta a concretizar os direitos
fundamentais (LYNCH, 2013, p. 76), uma vez que o controle de constitucionalidade
tem por alvo os atos ou omissões do Executivo e do Legislativo. Mesmo as posturas
conciliadoras, aquelas que tentam domar o avanço do constitucionalismo liberal so-
bre a democracia, partem da ideia de que a postura deferente e predisposta ao diálogo
do Judiciário (como as teorias dialógicas) depende de sua avaliação substantiva pré-
via acerca da qualidade da produção dos Poderes Políticos.
Por outro lado, as teorias constitucionais social-desenvolvimentistas retiram do Po-
der Judiciário a responsabilidade de concretizar, solitariamente, o projeto constitucio-
nal emancipador de recorte, primordialmente, socialista. A participação popular entra
em cena como elemento central do constitucionalismo social-desenvolvimentista bra-
sileiro. Por essa razão, direitos políticos são pensados em termos de igualdade política
e de intervenção popular nos destinos políticos do país. Para que esses direitos sejam
alcançados, políticas sociais redistributivas são necessárias, com ênfase em direitos
sociais coletivos, tais como os relacionados à educação, saúde e trabalhistas.
Como consequência da igualdade política e socioeconômica, os arranjos insti-
tucionais da teoria constitucional do social-desenvolvimentista dão proeminência à
maior porosidade à participação popular no momento da criação da norma constitu-
cional, seja por meio de instrumentos de apoio ao exercício da Jurisdição constitu-
cional, como os amici curiae e as audiências públicas; seja por meio da ampliação
do debate popular na construção dos programas que guiarão a atuação da política
congressual ou, por fim, por meio da dissolução das categorias do constitucionalismo
liberal, dominadoras do ímpeto genealógico da força popular constituinte.
Como as leitoras e leitores puderam perceber, as teorias conservadoras não foram
incorporadas na categoria de ideologias liberais cosmopolitas29. Se a ideologia liberal
encontra sua contraparte local no cosmopolitismo; e a socialista, no nacional-estatis-
mo, seria imprudente catalogar o conservadorismo constitucional dentro destas pers-
pectivas ideológicas tradicionais. Isso porque essa perspectiva teórica constitucional
entrou em estágio de hibernação com a mudança do regime político organizada a
partir do Presidencialismo de Coalizão de FHC e do início de suas políticas sociais.
O acordo progressista na constituinte e o novo regime político fizeram com que, ao
menos no campo teórico, projetos políticos conservadores, próximos à extrema direita,
não recebessem maior atenção da dogmática constitucional.
29
Talvez por elas não se enquadrarem dentro das duas grandes linhas gerais propostas por Lynch (2013).
28 curso de teorias constitucionais brasileiras
30
Lunardi e Dimoulis (2013, p. 12) preferem chamar essa corrente teórica de “liberalismo patrimonialista”.
Segundo os partidários desse modelo de constitucionalismo, apesar das aparências e retórica, a Constituição
de 88 tratar-se-ia de uma Constituição liberal-patrimonialista, que objetiva garantir direitos individuais de
propriedade e limitar a intervenção estatal na economia. Direitos sociais, não obstante a retórica constitu-
cional, seriam disposições programáticas, e, portanto, incapazes de exercer força vinculante semelhante aos
direitos individuais e patrimoniais, e, ademais disso, estes devem ser interpretados de maneira restritiva e de
forma a não atingir a tutela do patrimônio dos particulares. Engelmann e Penna (2014, p. 188) seguindo de
perto os embates constituintes, preferem atribuir aos autores que defendiam a ingovernabilidade da Constitui-
ção e a inefetividade das normas sociais, a nomenclatura de “constitucionalistas conservadores. Preferimos
posicionar esta linha teórica mais à direita do espectro político, aproximando-a do conservadorismo, para
diferenciá-la do liberalismo cosmopolita da esquerda americana que tem influenciado a produção constitucio-
nal brasileira. O liberalismo conservador brasileiro justifica-se pela forma com que essa ideologia política foi
incorporada ainda no Império, justificadora da escravidão, das desigualdades sociais, do elitismo social e por
práticas autoritárias (WOLKMER, 2003, p. 128).
breno baía magalhães (organizador) 29
Efetividade/Conserva-
Sarney 1985-1990 Direita Autocontido
doras
Efetividade/Conserva-
Collor/Itamar 1990-1995 Direita Autocontido
doras
Dirigente/Liberalismo
Centro- -igualitário/Neocons-
FHC I e II 1995-2003 Assertivo
Esquerda titucionalismo/Demo-
cráticas
Diálogos/Neoconstitu-
Dilma I e II 2011-2016 Esquerda Ativista cionalismo/Liberalis-
mo/Democráticas
A DOUTRINA DA EFETIVIDADE
CONSTITUCIONAL
Fabrícia dos Santos Santos1
Breno Baía Magalhães2
1
Discente do 7º período do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do grupo de
pesquisa “Controle de Constitucionalidade” e do Eccom.
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Cons-
titucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
32 curso de teorias constitucionais brasileiras
Barroso (1996, p. 76) conceitua “norma” com base na perspectiva de José Afonso
da Silva, para quem é constitucional toda e qualquer norma jurídica inscrita em uma
Constituição rígida. Essa última, dotada de supremacia, situa-se no vértice do orde-
namento jurídico, servindo como fundamento de validade para todas as demais nor-
mas. Barroso (1996, p. 82-83) pontua que as teses de Silva se ocuparam da eficácia
jurídica das normas constitucionais, ou seja, sobre a capacidade da norma produzir
efeitos, mas não da investigação acerca da efetividade concreta desses efeitos. Em se-
guida, postula que seu objeto de estudo está voltado à eficácia social da norma cons-
titucional, ou seja, para os mecanismos aptos a garantir “sua real aplicação”. Citando
Kelsen, o autor pontua que, em sua visão, a efetividade não se confunde com a vigência
da norma, muito embora dependa de sua eficácia jurídica, uma vez que está voltada à
breno baía magalhães (organizador) 33
3
Por fim, seria uma teoria baseada em uma demanda positivista (direito constitucional é norma) e de um critério
formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos (se está na Constituição, é para ser cumprido)
(BARROSO, 2019, p. 409).
34 curso de teorias constitucionais brasileiras
Os juristas progressistas, dos quais Luís Roberto Barroso fazia parte, opu-
nham-se aos regimes totalitários, como o regime militar que subjugava o Estado
brasileiro, teciam críticas ao caráter ideológico do direito positivo (e ao positivismo
jurídico) e denunciavam a insinceridade normativa das elites4.
Como explicado por Barroso (1996, p. 03), a Constituição de 1988 trazia consigo a
tensão entre a possibilidade de concretização de valores elevados e os limites impostos
por uma ordem jurídica cooptada pela “vontade da classe dominante”. Constituições,
em razão de suas pretensões de espelhar a sociedade e constitucionalizar suas aspira-
ções vindouras, inevitavelmente albergarão em suas normas “aspirações muitas vezes
antagônicas” decorrentes do conflito de classes. A solução dessas tensões se dá pela
absorção desse confronto por “mecanismos institucionais, subordinando-o a regras le-
gitimamente estabelecidas e válida para todos”. (BARROSO, 1996, p. 49).
Tendo em vista sua compreensão da Constituição brasileira como um pacto polí-
tico compromissário firmado entre classes, cujo substrato está composto por interes-
ses sociais e políticos conflitantes que precisam ser canalizados institucionalmente,
Barroso (1996, p. 61-62) reconhece que alguns dispositivos contemplarão diretivas
de cunho social desprovidas de garantias efetivas de concretização, os quais serão
alvo de resistência por parte de “setores econômicos e politicamente influentes”.
A posição de classe dominante desses setores lhes permite controlar a efetivação das
normas constitucionais de combate às desigualdades sociais por meio da retórica
insincera de que elas só seriam aplicáveis após complementação legislativa infra-
constitucional.
Para os progressistas brasileiros, a Constituição de 1988 representava, simul-
taneamente, uma trincheira de resistência contra arbítrios estatais e uma carta pro-
gramática de viés emancipatório, capaz de criar uma utopia social igualitária. Por
essa razão, uma das técnicas da teoria brasileira progressista passou a ser a defesa
do incremento da força normativa da Constituição de 88 (SOUZA NETO, 2006,
p. 262). E essa defesa só poderia ser feita por meio de uma dogmática de natureza
prescritiva, e não por meio de uma síntese teórica formulada com base na realidade
do direito constitucional brasileiro dos anos 80.5
4
A “insinceridade normativa das elites”, nos termos de Luís Roberto Barroso, é uma farsa construída pelos gru-
pos de poder para ocultar a violência, o privilégio e a miséria por detrás da fachada constitucional copiada do
mostruário liberal-democrático. Isto é, a elite social, política e econômica, por conveniência, invoca os eleva-
dos direitos incorporados ao patrimônio da humanidade (representação popular, sufrágio universal, liberdades
públicas, direitos humanos, etc), mas cuida para que não se tornem efetivos. (BARROSO; 2003, p. 62).
5
“Tem-se por objetivo, sobretudo, resgatar a contemporaneidade e incutir na prática real do Estado e da socie-
dade os valores mais elevados da civilização, em sua maior parte disponíveis e não assimilados” (BARROSO,
1996, p. 03).
breno baía magalhães (organizador) 35
6
São normas de organização as normas determinadoras da estrutura do Estado, instituidoras de poderes e
definidoras de competência. Assim, elas se referem diretamente à organização e funcionamento do Estado,
à articulação de seus elementos primários e ao estabelecimento das bases da estrutura política (BARROSO,
1996, p. 68).
7
As normas definidoras de direito dizem respeito à reserva do vocábulo “direito” às situações que se caracteri-
zem por sua pronta exigibilidade, correspondendo a um dever jurídico, realizável por prestações positivas ou
negativas (BARROSO, 1996, p. 71).
8
Classificam-se como programáticas as normas constitucionais delineadoras de um fim a ser alcançado ou de
um princípio a ser observado, sem especificar as condutas a serem seguidas (BARROSO, 1996, pp 75).
36 curso de teorias constitucionais brasileiras
2 A TEORIA EM PONTOS
9
Art 165, § 5º A lei orçamentária anual compreenderá: III - o orçamento da seguridade social, abrangendo
todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fun-
dações instituídos e mantidos pelo Poder Público e Art. 167. São vedados: I - o início de programas ou projetos
não incluídos na lei orçamentária anual.
38 curso de teorias constitucionais brasileiras
3.3 Comentários
10
“Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum, o direito a saúde – protegem um interesse
geral, todavia, não conferem, aos beneficiários desse interesse, o poder de exigir sua satisfação – pela via do
mandamus – eis que não delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o legislador exerça o
múnus de completá-las através da legislação integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da CF) são de
eficácia limitada, ou, em outras palavras, não tem força suficiente para desenvolver-se integralmente, ‘ou não
dispõem de eficácia plena’, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de legislação
complementar” (STJ, ROMS 6.564/RS, DJ 17/6/1996, p. 21448).
11
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.
breno baía magalhães (organizador) 39
4 GUIA DE LEITURA
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008. (data da publicação original: 1968).
BASTOS, Celso Ribeiro; BRITTO; Carlos Ayres. Interpretação e Aplicação das Normas
Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais e Direito
Sociais. São Paulo: Malheiros, 2011 (data da publicação original: 1982).
DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 5a ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2001 (data da publicação original: 1989).
CONSTITUCIONALISMO
LIBERAL-CONSERVADOR
Beatriz Neder Mattar1
Breno Baía Magalhães2
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Estagiária bolsista da Clínica de Atenção à
Violência (CAV/UFPA). Membro do Projeto de Extensão Estudos Constitucionais Compartilhados (ECCOM).
Membro do Grupo de Pesquisa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Violência na Amazônia (NEIVA/
UFPA-CNPq). Presidente da Liga Acadêmica de Direito do Estado (LADE). Membro do grupo de estudos
Discriminações e Injustiça social (LADE).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do ECCOM.
44 curso de teorias constitucionais brasileiras
3
Como ficará muito claro nas páginas seguintes, Manoel Gonçalves Ferreira Filho(1995, p. 20) é um dos mais
ferrenhos críticos do constitucionalismo de 1988, e, além de considerar que a Constituição de 1988 é, em
verdade, fruto de uma grande revisão constitucional do texto de 67, e não uma nova carta constitucional
legitimada pelo povo, o autor afirma que sua feição progressista teria sido artificialmente instigada por um
“regimento interno distorcido, utilizado habilmente para fortalecer essa corrente [esquerda] pela liderança do
partido majoritário”.
4
Manoel Filho ocupou importantes cargos na administração militar, como o de assessor jurídico do Secretário
da Fazenda do Estado de São Paulo (1969), chefe de gabinete do Ministério da Justiça (1969-1970), secretário
do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (1969-1971) e secretário-geral do Ministério da Justiça
(1970-1971).
5
Conferir nota 30 do capítulo 1.
breno baía magalhães (organizador) 45
6
O Imperador Dom Pedro I dissolveu, em novembro de 1823, a Assembleia Constituinte por ele convocada logo
após a declaração de Independência do Brasil para, dali a poucos meses outorgar uma Constituição em março
de 1824. Vargas inaugurou o Estado Novo por meio de uma Constituição outorgada em novembro de 1937.
7
“Não há, por isso, entre a Constituição anterior [1967] e a vigente [1988] qualquer ruptura” (FERREIRA
FILHO, 2003, p. 20).
46 curso de teorias constitucionais brasileiras
relação de poder se estabelece, tão somente, por meio de sua efetividade, ou seja,
quando aqueles sujeitos ao poder consentem com suas ordens, ainda que inconscien-
te ou coercitivamente. O povo é titular passivo do poder, detentor da última palavra
sobre sua incidência, uma vez que decide obedecê-lo ou não, muito embora não seja
sempre o responsável por ativá-lo. O ativador do poder constituinte, por outro lado,
opera como um representante povo, isto é, cria a Constituição em seu nome por meio
de uma elite ou classe governante.
O ativador é um portador eventual e circunstancial do Poder Constituinte, que
não se confunde com o povo, responsável pela proposição e condução de uma ideia
de direito que será, ou não obedecida popularmente. Em síntese, a “gênese da cons-
tituição completa-se pela efetividade de suas normas”. A efetividade global de uma
Constituição é o que determina sua juridicidade, ou seja, sua qualidade de norma
jurídica, além de ser condição suficiente para sua existência, independentemente do
procedimento de sua elaboração (FERREIRA FILHO, 2003, p. 50-52).
Como veremos a seguir, Ferreira Filho não apenas considera a Constituição de
1988 uma versão piorada da de 1967, mas também questiona sua natureza constitu-
cional ao sustentar sua ingovernabilidade e inefetividade, a demonstrar que ela não
é encarada pelo povo brasileiro como uma verdadeira norma jurídica. Ao mesmo
tempo, defende que o golpe de 1964 fora uma bem-sucedida revolução, a qual, não
obstante ter imposto uma ordem jurídica autocrática, era reconhecida como poder
político legítimo pelo povo, que cumpria passivamente suas estipulações normativas.
Crítico de primeira hora da Constituição de 1988, Ferreira Filho (1990, p. 77) de-
nunciou sua inefetividade desde o começo de sua vigência. O então novo texto cons-
titucional, extremamente dependente de leis infraconstitucionais para fazer valer seu
dirigismo político, tinha de satisfazer-se com as leis editadas durante o período di-
tatorial. Entretanto, passados alguns anos de sua vigência, a crítica da inefetividade
constitucional não se sustentava mais, o que fez com que o autor passasse a criticar a
Constituição pelo viés da governabilidade.
Segundo Ferreira Filho (1995, p. 03), governabilidade significa conduzir os negó-
cios públicos de maneira eficaz, ou, dito de outra forma, seria a aptidão um Estado
de realizar os objetivos a que se propõe. No caso brasileiro, observa-se uma crise de
governabilidade acarretada pela conjunção de quatro fatores: 1) crise de sobrecarga:
o Estado não dá conta das tarefas que assume no presente, ponto que se agrava pela
falta de recursos públicos; 2) crise institucional: a organização constitucional dos
poderes não é capaz de dar conta das tarefas positivas a que se pretende; 3) crise
do modelo político: a democracia liberal contemporânea aproxima-se a um modelo
oligárquico e pouco representativo8 e 4) crise de legitimidade: a população começa a
questionar o consenso democrático representado pela norma constitucional.
8
De acordo com o autor, a democracia representativa liberal pura não criava esse tipo de problema por assen-
tar-se na ideia de representação-imputação, e não em uma representação-expressão. Dessa forma, naquele
breno baía magalhães (organizador) 47
Ferreira Filho (1995, p. 05) aduz que a grande responsável por essa ingovernabili-
dade é a Constituição de 1988. O vínculo normativo sob uma perspectiva finalística,
descrita a partir de objetivos políticos9, condiciona a legitimidade do texto constitu-
cional à criação dos meios materiais para o cumprimento daquelas finalidades. Por
sua vez, pressionado pelo povo a apresentar resultados condignos com os fins polí-
ticos constitucionais, o governo acaba por priorizar grupos políticos em detrimento
de outros na distribuição de dividendos sociais (FERREIRA FILHO, 1995, p. 10-13).
Em sua visão, as Constituições são normas que garantem a liberdade das pessoas
por meio da criação de instituições políticas que racionalizam, e por consequência,
limitam o poder do Estado. Nesse sentido, a Constituição deve ser uma lei proces-
sual, que cria competências, regula processos e procedimentos e define limitações.
Essa é a essência do liberalismo constitucional, que não é rompida quando a Consti-
tuição escolhe incluir regras sobre o social, desde que ancilares, ou melhor, que deem
suporte ao esquema político central. Por outro lado, uma Constituição será dirigente
quando preocupada com a regulamentação do político, também o é com a transfor-
mação social e econômica. Nesse caso, a regulamentação do social e do econômico
não está voltada apenas para o reforço dos limites do político, mas para um plano
de transição para uma sociedade sem classes (FERREIRA FILHO, 1995, p. 18-19).
A Constituição de 1988, portanto, seria a responsável pela ingovernabilidade do
país ao pesar nas tintas do “estatismo” e “xenofobia” gestores de uma versão “tota-
litária” de sociedade na qual tudo é Direito fundamental, forte em um “assistencia-
lismo paternalista” que excede aquilo que o Estado pode fornecer e preocupada em
excesso com a “igualdade”, em detrimento do “desenvolvimento” criador de riquezas
(FERREIRA FILHO, 1995, p. 21).
Ao estabelecer uma Constituição dirigente, voltada ao bem-estar dos cidadãos
e indo muito além das funções estatais clássicas do liberalismo (segurança exterior,
interna e subministração da Justiça), a Constituição brasileira sobrecarregou-se de
tarefas de impossível concretização, com a consequente afetação moral do povo, o
qual, em razão do assistencialismo, restará iludido pela possibilidade de bem-estar
sem esforço individual, tolhendo seu senso de responsabilidade pelo desenvolvi-
mento pessoal e familiar. Em outro campo, a Constituição fere de morte o pluralis-
mo, ao fechar “o campo aos grupos sociais”, e a sociedade civil, sufocando corpos
intermediários capazes de proteger o indivíduo do Estado (FERREIRA FILHO,
1995, p. 44-45).
regime o povo era representado por uma classe política ciente de seus deveres e preparada para endereçá-los
corretamente. No entanto, o intervencionismo estatal teria criado rusgas nesse ideal representativo, uma vez
que incentiva a interferência jurídica nas relações sociais e a formulação de políticas redistributivas de rique-
zas sociais, situações que conduzem ao surgimento de compreensões deturpadas sobre a representatividade, o
papel do Estado e o da sociedade.
9
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
48 curso de teorias constitucionais brasileiras
10
Recentemente, liminar do Ministro Luiz Fux afirmou a incompatibilidade constitucional de interpretações
como as de Martins. Para o Ministro, “ ... descabe a malversada interpretação de que essa segunda atribuição
breno baía magalhães (organizador) 49
Martins, eu sua visão, não configuraria um golpe de Estado, mas sim atuação pontu-
al para o reestabelecimento da lei e da ordem:
2 A TEORIA EM PONTOS
conferida às Forças Armadas pelo artigo 142 da Constituição permite que os militares promovam o “funcio-
namento dos Poderes constituídos”, podendo intervir nos demais Poderes ou na relação entre uns e outros.
Confiar essa missão às Forças Armadas violaria a cláusula pétrea da separação de poderes, atribuindo-lhes,
em último grau e na prática, inclusive o poder de resolver até mesmo conflitos interpretativos sobre normas da
Constituição”. ADI 6457, DJE nº 149, divulgado em 15/06/2020.
50 curso de teorias constitucionais brasileiras
11
Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado
do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive
sobre: (...) § 3º - as taxas de juros reais não deverão ultrapassar 12% ao ano e que as taxas cobradas acima
deste limite caracterizarão crime de usura punido nos termos que a lei determinar
breno baía magalhães (organizador) 51
3.3 Comentários
Em 1991, na ADI 0412, o STF decidiu, com base na tese classificatória de José
Afonso da Silva (2007), que o § 3º, do art. 192 era uma norma constitucional de eficácia
limitada, cuja aplicabilidade estava condicionada à edição de uma Lei Complementar
Genérica ou Global. De acordo com a maioria dos ministros, a função do intérprete
do direito não seria considerar o que o constituinte quis dizer quando produziu o texto
constitucional (ou seja, desde logo limitar as taxas de juros), mas sim interpretar o que
efetivamente foi escrito. José Afonso da Silva (1999, p. 801), proponente da classifica-
ção tripartite, discordou do STF:
12
DJ 25/06/1993, Plenário, Rel. Sydney Sanches.
52 curso de teorias constitucionais brasileiras
Não apenas Silva (1999), mas igualmente o deputado constituinte que inse-
riu tal artigo na Constituição, Fernando Gasparian (1991, p. 09-12), defendeu
a eficácia plena e aplicabilidade imediata da norma constitucional. Durante os
debates constituintes, além do mais, Bernardo Cabral afirmou que a remissão
feita à lei no §3º dizia respeito ao crime de usura, e que a limitação de juros era
autoaplicável.
O relator da ADI 04, Sidney Sanches, elaborou as seguintes razões para não re-
conhecer a aplicabilidade imediata da norma constitucional: 1) o caput do art. 192,
o qual exige lei complementar, comanda todos os parágrafos, ou seja, a localização
tópica do parágrafo não denota sua “eficácia imediata”; 2) os debates constituintes
não são decisivos para o caso (o mais importante é a vontade da norma, não a do
legislador) e 3) apenas a lei poderá estabelecer os índices inflacionários para o cál-
culo do juro real, considerado como um juro nominal deflacionado. O relator pro-
cedeu à transcrição, em sua integralidade, de um punhado de pareceres e, ao final
delas, afirmou subscrever as suas conclusões. Adivinhem quem figurava entre os
pareceres acolhidos? Eles mesmos, os autores que compõem a visão conservadora
da Constituição de 1988. Ives Gandra da Silva Martins e Manoel Gonçalves Fer-
reira Filho, em suas peças, caracterizaram o § 3º do 192, utilizando a categoria de
José Afonso da Silva e, por vezes, citando-o nominalmente e a seu trabalho, como
uma norma de eficácia limitada.
O parecer de Saulo Ramos trazia argumentos políticos e econômicos alar-
mistas, que foram evitados pela Corte em seu julgamento, mas a decisão judicial
formalista acabou por chancelar a tese política do Executivo, segundo a qual ele
é quem seria responsável por definir as políticas de juros no país por meio de pa-
receres e à revelia da Constituição. O então Ministro da Justiça de Sarney tinha
razão - conseguiu fazer com que a força normativa de um parecer sobrebujasse a
da Constituição.
Em síntese, a intepretação conservadora das normas constitucionais, que se con-
trapõe à tese da doutrina da efetividade sobre a produção de efeitos de toda e qual-
quer norma constitucional, fez com que, no julgamento da ADI 04, o STF, de uma só
tacada, negasse o caráter dirigente e interventor da Constituição, além de distorcer
os parâmetros teóricos da efetividade, ao subordinar a produção de efeitos do art 192
à edição de Lei Complementar.
breno baía magalhães (organizador) 53
4 GUIA DE LEITURA
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, como vocês puderam observar, não é ne-
nhum entusiasta da Constituição de 1988. Sua produção sob o novo regime ini-
ciou-se com a publicação de obra que pretendia investigar a inserção de uma
Constituição Econômica dentro da regulamentação do político. Por óbvio, o autor
aproveitou para tecer críticas ao dirigismo econômico constitucional, tido como
próximo a de um socialismo utópico. Em 1990, o autor denunciava a inviabilidade
econômica de nossa Constituição e defendia que grande parte de suas normas
seria de aplicação mediata e limitada, impedindo que seus objetivos fossem ime-
diatamente cumpridos.
Em meados dos anos 90, Ferreira Filho publicou sua obra de avaliação do siste-
ma constitucional de 88, na qual escancarou o risco que corríamos ao mantermos a
Constituição de 1988, custosa aos cofres públicos, criadora de uma burocracia paqui-
dérmica e que almejava a um tipo de democracia para a qual o povo brasileiro não
estava preparado, uma vez que distante de ideais morais católicos, que flertava com
o comunismo, com as alas progressistas da Igreja, com o neopentecostalismo e era
complacente com a corrupção política.
Tendo em vista que o autor nunca produzira uma obra que representasse a
solidificação de seu pensamento constitucional, suas obras dos anos 2000 supri-
ram parcialmente essa lacuna. Seus livros Princípios fundamentais do Direito
Constitucional e Aspectos do Direito Constitucional contemporâneo compilam
artigos publicados ao longo dos anos 90 e 2000 e nos oferecem uma visão pano-
râmica do pensamento do autor. No último, por exemplo, o autor defendeu seu
modelo liberal clássico de Constituição, ligado à limitação do poder e avesso a
questões sociais; sua teoria do poder constituinte, que se afasta da tradicional
perspectiva de Sieyès e é próxima da ideia de autoridade; e, por fim, sua crítica
à Constituição de 1988.
Comentários:
Ainda que não tenham travado, propriamente, um debate direto e aberto, Barroso
e Ferreira Filho são, como pudemos observar, autores situados em espectros opostos
do campo político e teórico. Neste texto, Barroso versa sobre o maior alcance da
atuação do Judiciário, tratando, também, da atual crise de legitimidade do Poder
Legislativo. Analisa, portanto, o fenômeno da judicialização, discutindo o número
elevado de assuntos com importante repercussão política ou social que passaram a
ser objeto de decisões do Poder Judiciário. Conceituando o ativismo judicial como
a ampla e intensa participação do Judiciário na concretização de valores e objetivos
constitucionais, este é entendido como um método de atuação capaz de solucionar
problemas sociais e lacunas legislativas existentes. Tal perspectiva foi descontruída
por Ferreira Filho em texto de 2009.
A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE
William Wallace1
Breno Baía Magalhães2
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Projeto de Extensão Estudos
Constitucionais Compartilhados (ECCOM).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
3
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), uma eleição indireta “É aquela em que as pessoas que vão
exercer mandatos políticos não são eleitas diretamente pelo povo, mas por um colégio eleitoral, composto por
delegados escolhidos pelo povo, para que, em nome deste, elejam seus representantes”
4
Decreto nº 91.450, de 18 de julho de 1985.
56 curso de teorias constitucionais brasileiras
5
Conferir, por exemplo, o livro Os Notáveis Erros dos Notáveis (1987) de Ney Prado.
breno baía magalhães (organizador) 57
pelas liberais igualitárias. A Constituição é, em sua visão, uma ordem jurídica fun-
damental da comunidade que vincula tanto o Estado quanto a sociedade na direção
fixada pelos fins e objetivos que devem ser alcançados.
O dirigismo constitucional, nessa esteira, depende de um conceito material de
legitimidade, segundo o qual as Constituições legítimas cumprem com as regras de-
finidoras de finalidades políticas e econômicas. Dessa forma, afasta-se uma análise
procedimental da legitimidade constitucional, baseada na satisfação de regras que
estabeleçam limites à atuação política do Estado (Constituição garantia) ou regras
que regulamentam os processos de tomada de decisões políticas (Constituição como
processo ou instrumento de governo)6.
Teorias procedimentais partem do pressuposto de que em sociedades complexas,
nas quais o consenso é rarefeito e dificultoso, mais importante seria a desjuridifica-
ção das normas constitucionais, que faria com que o procedimento seja o responsável
pela legitimação dos resultados políticos. Bercovici julga que essas teorias não se-
riam constitucionalmente adequadas ao Brasil, uma vez que a desjuridificação signi-
ficaria a manutenção do status quo de desigualdades sociais e de privilégios da elite.
Desse modo, a Teoria da Constituição Dirigente elege alguns temas prioritários,
como a legitimação substantiva da legislação, a estrutura das normas programáticas,
bem como o grau e a forma de vinculação do legislador ao programa constitucional.
No entanto, sua questão central consiste em identificar em que medida o conteúdo
material fixado no programa constitucional é determinante para a atividade política.
Ademais, os princípios constitucionais fundamentais desempenham a função de
identificação do regime constitucional vigente, ou seja, fazem parte da fórmula política
do tipo de Estado que cria a Constituição, além de serem cláusulas transformadoras,
que demandam uma atitude positiva, constante e diligente do Estado voltada à trans-
formação da realidade brasileira e à superação de seu parco desenvolvimento.
Portanto, a Constituição Dirigente assume um caráter progressista e compromis-
sário que se fundamentam na realidade social que está inserida em seu projeto de
transformação para o futuro, com base nos fins, princípios e ideologias que confor-
mam a Constituição. Desse modo, normas ideologicamente carregadas de conteúdo
prestacional e sobre a intervenção estatal no domínio econômico são positivadas
como compromissos jurídico-constitucionais. Por essas razões, as constituições di-
rigentes contêm um programa de atuação, enquanto instrumento de transformação
social, que se impõe tanto ao Estado, quanto à sociedade.
A Constituição Dirigente, portanto, não é neutra - sua natureza assume um viés
político específico, uma vez que nele está contido um programa de atuação pró-
prio, enquanto instrumento de transformação social que se impõe ao Estado como
6
Em termos mais simples, uma concepção procedimental da Constituição defende que o mais importante em
um arranjo constitucional é a sua capacidade de canalizar conflitos políticos por meio de regras que produzem
soluções políticas que se legitimam pela realização do procedimento em si e não pelo resultado alcançado.
Nesse sentindo, a Constituição é vista como uma ordem estática de equilíbrio, isto é, uma ordem que não
incorpora regras para o futuro ou um projeto ou programa de transformação social.
breno baía magalhães (organizador) 59
2 A TEORIA EM PONTOS
7
Art. 21, X da Constituição de 88 - Compete à União: manter o serviço postal e o correio aéreo nacional. Art. 22,
V da Constituição de 88 - Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: V - serviço postal e Art. 9º
breno baía magalhães (organizador) 61
não se estendia à remessa e entrega de objetos com ou sem valor mercantil, disputas
judiciais foram travadas com base na possibilidade de empresas privadas atuarem no
ramo da entrega e distribuição de pacotes, documentos e objetos que não fossem ca-
racterizados como cartas.
A autora da ação argumentava que os Correios reivindicavam para si o monopó-
lio do envio de quaisquer encomendas involucradas por papel, fossem elas produtos,
mercadorias ou contas de luz, por enquadrarem-se no conceito de carta. A atuação
predatória dos correios, alegava nesses termos a inicial da APDF 46, representava clara
violação à livre iniciativa e à livre concorrência constitucionalmente garantidas8.
da Lei 6.538/78 - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais: I - re-
cebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência
agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. § 1º - Dependem de
prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal; a) venda de selos e outras fórmulas
de franqueamento postal; b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência,
bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal. § 2º - Não se incluem no regime de mo-
nopólio: a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em
negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial; b) transporte e entrega de carta
e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento. Art. 47 -
Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições: CARTA - objeto de correspondência, com ou
sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer
outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário.
8
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
II - propriedade privada; e IV - livre concorrência.
62 curso de teorias constitucionais brasileiras
3.3 Comentários
4 GUIA DE LEITURA
É inegável que a grande influência dos textos de Bercovici foi a obra de Canoti-
lho, inspirada pelo marxismo, escrita no final dos anos 70 e que fundamentou o texto
original da Constituição Portuguesa de 1976. De acordo com essa perspectiva, a
teoria constitucional deveria ser entendida como uma teoria sobre a materialidade do
pacto constitucional e sobre o seu cumprimento, pontos que desaguariam na discus-
são acerca da legitimidade da Constituição. Dessa forma, a normativa constitucional,
pensada como instrumento de viabilização da transformação social juridicamente
programada, depende do cumprimento efetivo de suas disposições para que possa
reivindicar sua legitimidade.
A leitura materialista da teoria constitucional foi avençada por Bercovici a
partir de meados da década de 90, período de nossa história política em que o
Presidente Fernando Henrique Cardoso começou a pôr em prática seu projeto de
desestatização de serviços públicos, de recentralização da federação nas mãos da
União e, o mais importante, de afrouxamento do viés intervencionista (dirigente)
do Estado brasileiro por meio de um pacote de Emendas Constitucionais. Portanto,
muitos dos escritos de Bercovici da década de 90 e início dos anos 2000 serviram
como denúncia e resistência a esse processo de desfiguração do projeto pactuado
na Constituinte.
Não bastasse o realinhamento constitucional brasileiro ao neoliberalismo, que
fora consolidado pelo lulismo, os defensores do dirigismo constitucional ainda ti-
veram de amargar a rasteira dada por Canotilho quando este reviu muitos de seus
posicionamentos intervencionistas que propugnavam a transição jurídica para o so-
cialismo. Sem chão ou teto, coube aos autores do dirigismo constitucional a denún-
cia, por meio da formulação da tese da “constituição dirigente invertida”, da fraude
constitucional em curso por meio da defesa irrestrita do capital estrangeiro e da fi-
nanceirização de políticas públicas. Diferentemente da formulação originária acerca
do dirigismo constitucional da política, em sua versão invertida, a constituição diri-
gente apregoa a necessidade de o Estado vincular-se irrestritamente aos ditames do
mercado internacional e à mergulhar em políticas de austeridade fiscal como forma
de garantir o desenvolvimento nacional.
64 curso de teorias constitucionais brasileiras
CONSTITUCIONALISMO
LIBERAL IGUALITÁRIO
Vitoria Gabriele Rodrigues de Almeida1
Breno Baía Magalhães2
1
Discente do 8º período do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Estagiária do Tribunal
Regional Eleitoral do Pará, Membro do grupo de pesquisa “Filosofia Prática: investigações em política, ética e
direito”, ouvinte do Projeto de Extensão Estudos Constitucionais Compartilhados (ECCOM), Diretora Admi-
nistrativa do Centro Acadêmico de Direito Edson Luis.
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
breno baía magalhães (organizador) 67
O ideário liberal de controle da ação política por meio do direito gestou uma
compreensão sobre a Constituição, segundo a qual a limitação do poder estatal seria
o caminho mais seguro para a proteção das liberdades individuais contra o eventual
arbítrio das autoridades públicas. O liberalismo igualitário, como o conservador, en-
xerga na Constituição um documento que possui a função precípua de coordenar a
ação política. No entanto, para os liberais igualitários, a positivação de objetivos
transformadores da sociedade nas constituições não é propriamente um problema em
si, todavia, sua manutenção no texto não se afigura como necessária para a compre-
ensão da funcionalidade e legitimidade do pacto constitucional.
O constitucionalismo liberal igualitário brasileiro
foi fortemente influenciado pela seminal obra de John
Rawls, “Uma Teoria da Justiça” (1971), responsável
pelo reposicionamento das discussões sobre justiça
em torno da igualdade, que passou a figurar como
o elemento focal basilar de qualquer análise sobre o
funcionamento justo das instituições políticas. Se a
inserção das teses de Rawls foi recepcionada de braços
abertos pelos sociais-democratas, as formulações
teóricas de um dos mais destacados discípulos do
filósofo na área jurídica, Ronald Dworkin, seriam
acolhidas com ainda mais entusiasmo pela academia brasileira a partir de
meados da década de 90.
O liberalismo igualitário foi a ideologia política que serviu de base para
autores progressistas brasileiros, situados fora da ideologia socialista ou
comunista, justificar a legitimidade da recém promulgada Constituição de 1988
e sua intransigente batalha contra as desigualdades sociais. Portanto, trata-
se de um conjunto de constitucionalistas que, diferentemente do socialismo
advogado pelo constitucionalismo dirigente, não assume compromissos
políticos com o processo de transformação social do Brasil a partir de modelos
vinculados e particulares de sociedade, economia ou desenvolvimento.
A preocupação central desses autores está em assegurar a concretização de
nossa ambiciosa carta de direitos fundamentais, principalmente, por meio da
Jurisdição Constitucional.
Se nos for possível sumarizar uma parcela das ideias esposadas por esses
autores, diríamos que eles defendem uma postura liberal forte em relação à
proteção dos direitos fundamentais, sejam eles individuais, coletivos ou
sociais, os quais deverão ser, imediatamente, cumpridos pelo poder público.
A atuação dos agentes políticos não exclui do cálculo a atuação assertiva do
Poder Judiciário, arena importante para a concretização daqueles direitos por
meio da interpretação constitucional, ainda que isso signifique a interferência
em regras jurídicas majoritárias aprovadas por meio do procedimento
democrático. A Constituição, expressão do consenso político possível em uma
comunidade plural, é entendida como uma instituição procedimental
68 curso de teorias constitucionais brasileiras
dos menos favorecidos, de acordo com o princípio das economias justas, e (b) anexa-
do a cargos e posições abertas a todos em condições de igualdade justa de oportuni-
dades. Em razão da prioridade lexical desses princípios, um só pode ser satisfeito se
o anterior for cumprido, dessa forma, o acesso a cargos e posições em igualdade de
oportunidades só será possível caso todas as pessoas gozem, igualmente, das liber-
dades individuais e se o sistema político mantiver as desigualdades que beneficiem
os menos favorecidos.
Para o autor, tais princípios seriam adotados deliberadamente pela sociedade, caso
seus membros se encontrassem sob um “véu da ignorância”, que impediria o reconhe-
cimento de suas próprias características, levando, então, a uma eleição deliberativa,
racional e imparcial dos princípios de justiça (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012). As
principais influências do liberalismo igualitário no plano do constitucionalismo consis-
tem na defesa das liberdades individuais e afastamento de possíveis restrições calcadas
em argumentos paternalistas de utilidade social ou, por exemplo, justificativas emba-
sadas em vinculações tradicionais de uma comunidade. Ademais, o liberalismo igua-
litário no âmbito da teoria constitucional congrega uma leitura moral da Constituição,
corroborando para o entendimento do indivíduo como agente moral e livre, passível de
igual respeito e consideração (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012).
A estrutura de uma sociedade justa para Rawls representa a base do ideário li-
beral preocupado com questões sociais, uma vez que visa assegurar aos indivíduos
um conjunto de liberdades básicas a serem desfrutadas igualmente por eles, para que
possam fazer escolhas representativas de seu plano de vida. No entanto, em razão das
diferenças naturais entre as pessoas, é provável que nem todas desfrutem da mesma
sorte e acabem tendo sua situação afetada negativamente em uma economia de mer-
cado. Para tanto, mecanismos redistributivos serviriam para aplacar, de forma justa
e legitima, essa desigualdade.
Direitos civis clássicos, os direitos de liberdade, portanto, assumem precedência
em relação aos sociais e, seguindo essa linha, a legitimidade das políticas públicas
redistributivas é avaliada com base em seu respeito, ou não, aos direitos individuais.
Dessa forma, políticas sociais não são entendidas como direitos constitucionais per
se e a intervenção judicial está circunscrita à revisão das decisões majoritárias (polí-
ticas públicas) que, porventura, tenham afetado o esquema de liberdades titulariza-
do, igualmente, por todas as pessoas.
Em seu segundo trabalho de maior fôlego, fruto de sua tese de doutorado, Oscar
Vilhena defende a existência de uma reserva de justiça constitucional, encapsulada
pelas cláusulas pétreas e representada pelas normas que deverão ser consideradas
como essencialmente ou verdadeiramente constitucionais3. De acordo com a tese,
3
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a pro-
posta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e
periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.
70 curso de teorias constitucionais brasileiras
Vieira (2018, p. 69) defende que a Constituição tem como principal função
“coordenar politicamente conflitos e divergências, tendo como baliza procedimentos
democráticos e os princípios jurídicos por ela assegurados”. No caso da Constituição
brasileira, o autor pondera que:
4
Dispositivos frutos de “maiorias eventuais, aglutinadas especialmente para a inserção de um tópico no texto
constitucional”. Em outro texto, Vieira (2018) atesta que a constituinte “foi a oportunidade para a inclusão
no texto de interesses específicos de natureza corporativista e patrimonialista, como a proteção à empresa
nacional, o resguardo a uma série de atividades econômicas monopolistas, o princípio da unidade sindical, ou
inúmeros prerrogativas de categorias de servidores públicos enraizadas na cultura política e nas estruturas do
Estado a buscarem entrincheirar no texto os seus interesses”.
72 curso de teorias constitucionais brasileiras
Esse tipo de Constituição está fadada a sofrer dos seguintes problemas: 1) sua
ambição normativa leva a uma frustração social, uma vez que o Estado não é capaz
de cumprir as promessas constitucionais; 2) dependência extrema de intervenção
legislativa posterior e 3) risco de sofrer de um envelhecimento precoce, exigindo
reformas constantes. Para Oscar, não obstante todos esses problemas, a Constituição
de 1988 tem se mostrado “surpreendentemente resiliente”5.
Sobre as reformas constitucionais pelas quais passaram nossa Constituição, o
autor aponta que elas não atingiram o “cerne da Constituição”, uma vez que o “siste-
ma político e a carta de direitos encontram-se basicamente preservados”. A maior
parte das reformas alterou a ordem econômica, políticas públicas e regimes jurídicos
corporativos (VIEIRA, 2018, p. 157). Em síntese, tendo em vista que essa reformas
não atingiram “os pilares fundamentais que organizam o edifício constitucional de
1988, estabelecido pelo art. 60, § 4º”, foi possível “uma intensa atualização da Cons-
tituição sem que sua identidade fosse alterada” (VIEIRA, 2018, p. 159-160). Para
Oscar, portanto, a reserva de justiça da Constituição permaneceu inalterada ou, no
mínimo, sofreu alterações pontuais legítimas, uma vez que não afetaram a função
constitucional básica de viabilizar a coordenação política e autonomia individual, ao
passo que as reformas constitucionais afetaram as decisões políticas tidas como
excessivas decorrentes do compromisso maximizador.
2 A TEORIA EM PONTOS
5
Tomando de empréstimo noção vinda da Física, um material resiliente é aquele que acumula energia sem que
se rompa ou modifique permanentemente sua natureza, além de, sob essas circunstâncias, ser capaz de retornar
a um ponto de equilíbrio.
breno baía magalhães (organizador) 73
uma projeção ideológica de quem a interpreta com viés antigo, com todo
respeito a quem pense diferente. E, no tocante à segurança jurídica, a inter-
pretação que tem sido dada pela Justiça do Trabalho a essa matéria criou um
ambiente de extrema insegurança jurídica, porque trabalha-se com concei-
tos jurídicos indeterminados como atividade-meio, atividade-fim, atividade
essencial, e, aí, cada um projeta nesses conceitos elásticos o que deseja”.
3.3 Comentários:
6
Sobre os direitos sociais no modelo do constitucionalismo liberal igualitário: “Os direitos sociais básicos,
nesse sentido, podem ser defendidos como direitos políticos essenciais à realização da democracia” (VIEIRA,
1999, p. 246).
76 curso de teorias constitucionais brasileiras
4 GUIA DE LEITURA
1) VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política São Paulo:
Malheiros Editores, 1994.
2) VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça. São Paulo: Malheiros
Editores, 1999.
3) VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, p. 441-463, 2008.
4) VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Comentários:
Sua mais recente obra, que sintetiza importantes aspectos de seu pensamento,
investiga a existência, ou não, de uma crise constitucional em curso no Brasil. Oscar
define as crises constitucionais como períodos específicos em que a capacidade cons-
titucional de canalizar os conflitos institucionais se encontra abalada, o que impõe
aos atores políticos e institucionais a necessidade de tomar decisões hábeis ao resta-
belecimento do equilíbrio e da funcionalidade do sistema constitucional. Contudo,
tais decisões devem ser constitucionalmente válidas. O que estaria em jogo, nessas
hipóteses, seria a própria sobrevivência constitucional, isto é, a capacidade dos atores
políticos e institucionais de coordenar seus conflitos em conformidade com as regras
e procedimentos constitucionais.
Portanto, crises constitucionais demandam o abandono das regras do jogo sem
que o desenho constitucional ofereça meios procedimentais para canalizar o conflito
político de forma efetiva ou de correção de eventuais violações. Em sua visão, o
mais importante seria a não usurpação da função atribuída a um Poder por outro,
o não abuso das competências próprias, e o respeito às decisões de cada Poder. As
premissas para esse estado de coisas são duas: uma norma constitucional atribuidora
de competências razoavelmente clara e autocontenção política. Por fim, após acalen-
tada e precisa análise do contexto político brasileiro dos últimos anos, Vieira (2018,
p. 42-43) constatou que estamos passando por um período de estresse constitucional,
mas não por uma crise.
Comentários.
NEOCONSTITUCIONALISMO
Marcellia Sousa Cavalcante1
Breno Baía Magalhães2
1
Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do projeto de extensão
Estudos Constitucionais compartilhados (ECCOM). E-mail: marcellia.cavalcante@icj.ufpa.br
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
80 curso de teorias constitucionais brasileiras
vindo da Itália, pode ser muitas coisas: uma teoria do direito, uma ideologia ou um
método de análise do direito. Portanto, os autores italianos que criaram o rótulo, no-
meadamente Susanna Pozzolo3 e Paolo Comanducci4, não intencionavam criar ou
formular uma teoria ambiciosa sobre as inovadoras características do direito consti-
tucional da América-Latina no período de consolidação democrática, mas simples-
mente apresentar uma metodologia jurídica superadora do positivismo jurídico e do
jusnaturalismo. Em síntese, os autores criticavam, em sua maioria, uma teoria do
direito emergente, mas não propunham uma teoria da Constituição5.
No capítulo sobre a doutrina da efetividade, vimos como Barroso, em seus tra-
balhos maduros, reconheceu que a base teórica “positivista” empregada naquele mo-
mento serviu aos seus “propósitos” e que suas prescrições precisariam ser aperfei-
çoadas com o aporte europeu do neoconstitucionalismo, o qual, ao menos em sua
vertente jurídica, advogava a favor de uma metodologia “pós-positivista”. A transi-
ção metodológica, capitaneada por Barroso, da efetividade para o neoconstituciona-
lismo não estava baseada na alteração formal ou material do texto constitucional de
1988, mas no reconhecimento de que a conjuntura política, econômica e social era
propícia para o desabrochar dessa nova abordagem teórica.
Para tanto, o neoconstitucionalismo é apresentado como um novo paradigma do
Direito, situado dentro de um marco histórico característico do pós-II Guerra Mun-
dial, ancorado em uma proposta jusfilosófica denominada “pós-positivismo” e, por
fim, embasado em um marco teórico composto por três elementos que alteraram a
compreensão da normatividade constitucional.
Segundo a análise de Barroso, o marco histórico dessa proposta, analisado em
contexto internacional (particularmente, o europeu), foi o constitucionalismo do pós-
-guerra, especialmente aquele desenvolvido na Alemanha e na Itália. No contexto
nacional, são destaques a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização
em que a primeira figurou como protagonista. Na Alemanha, a Lei Fundamental de
3
“o termo “neoconstitucionalismo, ainda que tenha sido pensado para identificar uma postura jus filosófica
antipositivista, muito rapidamente converteu-se em um termo ambíguo: sua extensa e vertiginosa difusão no
léxico de jusfilósofos e constitucionalistas ampliou sua capacidade denotativa e reduziu suas potencialidades
conotativas. Assim, rapidamente o termo foi empregado para indicar fenômenos diferentes, ainda que conec-
tados entre si” (COMANDUCCI, 2010, p. 209).
4
“neoconstitucionalismo é uma etiqueta que, ao final dos anos 90 do século passado, uns integrantes da escola ge-
novesa de teoria do direito (...) começaram a usar, como forma de classificar, para criticá-las, algumas tendências
pós-positivistas da filosofia jurídica contemporânea que apresentavam traços comuns, mas também diferenças
entre si. A etiqueta obteve muito êxito, mas, sobretudo, multiplicaram-se, na Europa e América Latina os estudos
dessas tendências, e sua comparação com o positivismo jurídico. (COMANDUCCI, 2010, p. 175).
5
“Por ‘neoconstitucionalismo’, como já adiantamos, não deveriam ser entendidas nem doutrinas e nem insti-
tuições, como no caso de ‘constitucionalismo’, mas somente doutrinas: em especial a teoria ou doutrina do
direito, intermediária ao jusnaturalismo e juspositivismo, pela qual entre direito e moral existiria uma inter-
ligação necessária, ainda que limitada aos Estados constitucionais. Segundo os neoconstitucionalistas, em
outros termos, a tese juspositivista da separabilidade entre direito e moral valeria no máximo para o direito do
Estado legislativo do século XIX: direito cuja fonte principal, se não única, era a lei. A mesma tese não valeria
mais, ao contrário, para o Estado constitucional do século XX, onde não apenas a fonte principal do direito é
a constituição, mas a totalidade do direito é constitucionalizada, refreada por princípios e valores constitucio-
nais” (BARBERIS, 2006)
breno baía magalhães (organizador) 81
Neoconstitucionalismo(s)
6
“Essa antologia pode ser considerada atualmente, talvez, o texto referencial em relação ao neoconstituciona-
lismo; junto aos trabalhos de autores que podemos chamar de neoconstitucionalistas, como Ferrajoli, Alexy e
Alfonso Garcia, ou que são contíguos ao neoconstitucionalismo, como José Juan Moreso, Juan Carlos Bayón e
Santiago Sastre, a antologia abriga também alguns textos dos inventores genoveses do neoconstitucionalismo:
Guastini, Comanducci, Pozzolo e Barberis. Como os livros já citados, contudo, também nos textos compreen-
didos na antologia de Carbonell confirmam a tendência de dilatar excessivamente o conceito de neoconstitu-
cionalismo: estendendo o seu uso pelas teorias das mesmas instituições teorizadas” (BARBERIS, 2006)
breno baía magalhães (organizador) 83
cional em particular. É nesse sentido que, já de pronto, é preciso ter em mente que o
termo “neoconstitucionalismo” incorpora em si uma miríade de autores e posturas
teóricas que nem sempre podem ser aglutinadas dentro de um mesmo conceito guar-
da-chuva.
Os adeptos do neoconstitucionalismo no Brasil buscam embasamento no pensa-
mento de juristas que se filiam a linhas teóricas bastante heterogêneas (por vezes,
incompatíveis entre si), como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gusta-
vo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino. Na verdade, nenhum desses
autores se define, ou se definiu no passado, como alguém que advoga em prol do
cânone neoconstitucionalista (SARMENTO, 2009, p. 02), apesar de terem fornecido
subsídios teóricos que respaldaram sua formulação, especialmente em relação à sín-
tese proposta por Carbonell.
Para fins didáticos, segue tabela com algumas das principais obras lançadas por
estrangeiros referenciadas com frequência por autores nacionais:
2 A TEORIA EM PONTOS
Não obstante o pacto de 1988 soar como uma decisão política progressista, a
população brasileira, extremamente religiosa, ainda mantem um incômodo conser-
vadorismo em temas morais controversos. A possibilidade de casais homoafetivos
constituírem famílias e desfrutarem dos mesmos direitos e obrigações civis a que
se submetem casais heteronormativos enfrentava resistência de setores ligados às
religiões cristãs e das bancadas conservadoras do Congresso, fatores que impossibi-
litavam que esses direitos fossem garantidos pela atuação dos Poderes Executivo e
Legislativo.
Em 2011, o STF, antecipando-se às alas políticas do Estado, decidiu que casais
homoafetivos formavam entidades familiares e que, por essa razão, estavam subme-
tidos ao regime da união estável, não obstante a Constituição tenha estipulado que
“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento
(§ 3º, art. 226)”. A literalidade desse dispositivo constitucional serviu de base para
críticas conservadoras à decisão da Corte, que passou a ser caracterizada como “ati-
vista”, “violadora da separação de poderes” e de preceitos hermenêuticos básicos.
86 curso de teorias constitucionais brasileiras
O objetivo principal da ADI 4277, proposta pela PGR, era requerer ao STF o re-
conhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, desde que preenchidos
os mesmos requisitos necessários para a configuração da união estável entre um ho-
mem e uma mulher, e que os mesmos deveres e direitos originários da união estável
fossem estendidos aos companheiros nas uniões homoafetivas, tudo de acordo com a
interpretação conforme do art. 1723 do Código Civil brasileiro.
“Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já an-
tecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional
em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como
dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em
nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento
discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos.
Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado
pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontal-
mente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o
explícito objetivo que se lê no inciso em foco).
“Bem de todos”, portanto, constitucionalmente versado como uma situação
jurídica ativa a que se chega pela eliminação do preconceito de sexo. Se se
prefere, “bem de todos” enquanto valor objetivamente posto pela Consti-
tuição para dar sentido e propósito ainda mais adensados à vida de cada ser
humano em particular, com reflexos positivos no equilíbrio da sociedade.
O que já nos remete para o preâmbulo da nossa Lei Fundamental, consa-
grador do “Constitucionalismo fraternal” sobre que discorro no capítulo
de nº VI da obra “Teoria da Constituição”, Editora Saraiva, 2003. Tipo de
constitucionalismo, esse, o fraternal, que se volta para a integração comu-
nitária das pessoas (não exatamente para a “inclusão social”), a se viabili-
zar pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental
igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social) dos
estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados. Estratos
ou segmentos sociais como, por ilustração, o dos negros, o dos índios, o das
mulheres, o dos portadores de deficiência física e/ou mental e o daqueles
que, mais recentemente, deixaram de ser referidos como “homossexuais”
para ser identificados pelo nome de “homoafetivos”. Isto de parelha com
leis e políticas públicas de cerrado combate ao preconceito, a significar, em
última análise, a plena aceitação e subseqüente experimentação do plura-
lismo sócio-político-cultural. Que é um dos explícitos valores do mesmo
preâmbulo da nossa Constituição e um dos fundamentos da República Fe-
derativa do Brasil (inciso V do art. 1º). Mais ainda, pluralismo que serve
de elemento conceitual da própria democracia material ou de substância,
desde que se inclua no conceito da democracia dita substancialista a res-
peitosa convivência dos contrários. Respeitosa convivência dos contrários
que John Rawls interpreta como a superação de relações historicamente ser-
vis ou de verticalidade sem causa. Daí conceber um “princípio de diferen-
ça”, também estudado por Francesco Viola sob o conceito de “similitude”
breno baía magalhães (organizador) 87
nós (não se pode esquecer que até 1962, a mulher era juridicamente cate-
gorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil, nos termos
da redação original do art. 6º do Código Civil de 1916); tanto é assim que
o §4º desse mesmo art. 226 (antecipo o comentário) reza que “Os direitos e
deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo ho-
mem e pela mulher”. Preceito, este último, que também relança o discurso
do inciso I do art. 5º da Constituição (“homens e mulheres são iguais em di-
reitos e obrigações”) para atuar como estratégia de reforço normativo a um
mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes.
Comentários:
4 GUIA DE LEITURA
4.1 Críticas
que um juiz não é democraticamente eleito e nem representa os interesses do povo para
assumir contornos subjetivos para além do que deveria em relação ao legislativo.
Dimitri Dimoulis, depois de denunciar a ausência de elementos suficientes para
conceituar o que seria a doutrina neoconstitucional (ver o tópico “O que há de “neo”
no Constitucionalismo?”), definiu-a como uma vertente do moralismo jurídico, pos-
tura teórica que enxerga na moral a métrica para aferir a validade das normas jurí-
dicas, bem como para interpretá-las. Em sua leitura, ou os neoconstitucionalistas
reconhecem que fazem parte de um grupo já consolidado que, desde o século XVIII,
defende o ideal político constitucionalista, ou que estão, em verdade, propondo pers-
pectivas que atualizam o jusnaturalismo como a teoria do direito paradigmática.
Como o conceito de “constitucionalismo” já é suficiente para expressar o primeiro
conjunto de ideias e autores; e o “moralismo jurídico”, o segundo conjunto, a prudên-
cia acadêmica sugere abandonarmos o nada original e confuso conceito “neoconsti-
tucionalismo”.
Por fim, Manoel Gonçalves aproveita a falta de definição e unificação teórica e de
originalidade do termo para vaticinar o que segue:
TEORIAS DO DIÁLOGO
CONSTITUCIONAL
Valeska Dayanne Pinto Ferreira1
Breno Baía Magalhães2
1
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará
(PPGD-UFPA).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
breno baía magalhães (organizador) 93
As teorias do diálogo extraem sua força da relação que estabelecem entre os par-
ticipantes nas interações políticas, entendidas como horizontais e não hierárquicas.
Atualmente, as teorias democráticas e constitucionais abraçaram um ideal dialógico,
surgido, originalmente, no campo da filosofia política e moral. Suas fontes são a
crítica comunitarista (critérios de validade particulares a cada comunidade política
histórica; construção intersubjetiva dos valores) e pós-moderna (verdades particula-
res e contextuais) do liberalismo e da modernidade. Essa abordagem não implica o
abandono da racionalidade liberal, mas, ao contrário, a necessidade de trabalhá-la
como “racionalidade comunicativa”, como um diálogo ou discurso orientado para
o entendimento. Dessa forma, o foco das teorias do diálogo está nos benefícios da
deliberação como uma troca racional de argumentos desde um ponto de vista da
legitimidade dos resultados.
As abordagens dialógicas, especialmente no campo jurídico, ocupam-se dos
elementos autorreflexivos oportunizados pelas interações de decisões constitucio-
nais estatais ou normas transnacionais. Aida Torres Pérez (2009, p. 112-117) sugere
que são três as razões para o acolhimento de abordagens dialógicas: a) resultados
interpretativos mais bem fundamentados: a troca de argumentos estabelecida para
alcançar entendimentos comuns melhora a qualidade das decisões; b) participação:
o diálogo contribui para a legitimidade normativa do resultado porque confere aos
participantes a oportunidade de oferecerem inputs à decisão e reconhecerem seu
resultado como um esforço compartilhado; e c) respeito ao mosaico pluralista: o
diálogo fornece um modelo regulatório de interação horizontal entre as autorida-
des políticas ou judiciais de diferentes níveis de proteção de direitos humanos ou
fundamentais, oferecendo um modelo para gerenciar conflitos sem a dispersão da
estruturação nivelada.
Com o intuito de situar o leitor e evitar possíveis confusões entre as diferentes
vertentes teóricas do diálogo, agruparemos as abordagens desenvolvidas na acade-
mia em três grandes modelos.
1) Modelos das democracias da Commonwealth: abrangem as teorias constitu-
cionais desenvolvidas, principalmente no Canadá, para discutir as justificativas, a
legitimidade e a operacionalização da fiscalização judicial da compatibilidade das
leis em países parlamentares onde a inserção de declarações de direitos fundamen-
tais gestou soluções procedimentais estranhas aos modelos de raízes estadunidenses
(modelos da supremacia judicial), a fim de estabelecer o meio termo entre a suprema-
cia judicial e a soberania parlamentar. Os autores do modelo da Commonwealth em
sua versão canadense inseriram a discussão dialógica, por vezes de maneira empírica
(demonstrando que o legislativo não ficava inerte frente às declarações judiciais de
inconstitucionalidade baseadas na Carta), e por vezes de maneira normativa (defen-
dendo que a inserção da Carta e da cláusula not with standing alterou a postura po-
lítica do parlamento e da Suprema Corte, no sentido de que o conteúdo dos direitos
deverá, a partir de então, ser construído, necessariamente, por meio de interações
entre as instituições). Em ambos os casos, a forma de interação entre os poderes é
tida como dialógica (MACFARLANE, 2012, p. 97-98).
94 curso de teorias constitucionais brasileiras
3
Em trabalhos posteriores, Conrado desenvolveu os critérios para aferição do desempenho deliberativo das
Cortes. Separando sua análise em momentos (pré-decisional, decisional e pós-decisional) e tarefas (contesta-
ção pública, engajamento colegiado e decisão escrita deliberativa), o autor avalia que uma corte constitucional
deliberativa está comprometida com a formulação de decisões substantivamente boas expressadas, quando
96 curso de teorias constitucionais brasileiras
provisória e os Poderes não podem contar com mais do que uma expectativa probabi-
lística de acerto. Na mesma medida, o eventual erro decisório não implica a perda de
autoridade, mas, por outro lado, legitima que outro poder desafie a decisão (a disputa
argumentativa justifica o emprego da analogia dialógica).
Por fim, como as Cortes participam desse processo deliberativo? Para Mendes
(2011), elas podem modular os seus graus de intervenção e contenção a partir do
desempenho do Parlamento, de modo que façam um juízo de ocasião e optem por
uma expansão ou compressão ativa, a depender de uma análise prudencial do contex-
to apresentado, do tema discutido e/ou do caso analisado. A sugestão de Hübner é de
que a Corte faça uma modulação das virtudes ativas e passivas por meio da prudên-
cia. Dessa forma, a alternativa que resta à teoria normativa é uma receita pragmática
e particularista, pois abstratamente não há muito o que possa ser dito.
possível e desejável, por meio de uma única voz institucional, ou, quando assim for justificado, por vozes múl-
tiplas, desde que sejam responsivas e precedidas por contestações públicas sérias e de engajamento colegiado
(MENDES, 2013, p. 119).
4
“Entre os fatores que possibilitaram a expansão da jurisdição constitucional brasileira estão a previsão constitu-
cional de novas ações de inconstitucionalidade, a ampliação do rol de legitimados para o controle de constitucio-
nalidade abstrato, a grande quantidade de temas tratados no texto constitucional, o pluralismo político e social,
bem como o maior conhecimento sobre direitos por parte da sociedade” (SOUZA NETO; SARMENTO, 2013).
breno baía magalhães (organizador) 97
ser tomada pelo povo ou por seus representantes eleitoralmente escolhidos, mas não
por juízes.
A abstração e abertura das normas constitucionais conferem a quem as inter-
preta e aplica o poder de participar do processo de criação do sentido constitucional.
É neste quadro que se estabelece a dificuldade contramajoritária, da qual decorre
a crítica de que a jurisdição constitucional seria capaz de conferir aos juízes um
poder constituinte permanente, exercido à medida que esses moldam a Constituição
segundo suas preferências políticas e valorativas, em prejuízo às decisões tomadas
pelo legislador.
Há sinergia e tensão no relacionamento entre jurisdição constitucional e demo-
cracia. Por um lado, o controle de constitucionalidade pode proteger os requisitos
necessários ao bom funcionamento da democracia, como os direitos fundamentais
e as regras do jogo político. Neste aspecto, a sinergia também está comprovada pelo
fortalecimento da jurisdição constitucional em períodos de (re)democratização.
De outro lado, o exagero na limitação das decisões do legislativo pode ser considera-
do antidemocrático, por comprometer o autogoverno, problema que pode ser agrava-
do quando o Judiciário se torna central para a solução dos conflitos políticos, morais
e sociais, ocupando a posição de poder responsável pela “última palavra” acerca do
sentido da Constituição.
Por essas razões, os autores sustentam que o problema da dificuldade democráti-
ca (ou dificuldade contramajoritária) das cortes não está relacionado ao exercício do
controle de constitucionalidade, mas à dosagem em que é subministrado. A adequa-
da dose, portanto, dependerá de fatores outros, como o nível de representatividade
dos demais poderes e sua performance na proteção de direitos e grupos minoritários,
o grau de credibilidade e independência da esfera judicial etc.
Os autores (2013, p. 135) oferecem duas ideias, “que, se adotadas, podem mi-
nimizar a chamada dificuldade contramajoritária”, quais sejam: a) a utilização da
teoria dos diálogos institucionais, no sentido de negar ao Judiciário e às instâncias
majoritárias o poder de dar “a última palavra”; e b) o estabelecimento de parâmetros
de deferência do Judiciário em relação aos demais poderes, mediante padrões de
autocontenção judicial.
Sobre o primeiro ponto, indicam não ser verdadeiro que o Supremo Tribunal
Federal dê sempre a última palavra. No plano descritivo, em muitos casos não existe
uma última palavra e as decisões da corte podem provocar reações contrárias que,
eventualmente, implicarão a revisão da posição do STF em relação a um determina-
do assunto. Sob o ponto de vista prescritivo, não é adequado conceder a quaisquer
dos poderes a prerrogativa de dar a “última palavra” sobre a Constituição. Neste
quadro, mais interessante é a adoção de um modelo que não atribua a nenhum dos
poderes a possibilidade de errar por último, mas, ao contrário, que permita a realiza-
ção de correções recíprocas dentro da hermenêutica constitucional, a partir de uma
perspectiva dialógica.
98 curso de teorias constitucionais brasileiras
2 A TEORIA EM PONTOS
Ementa: (...)
4. O hodierno marco teórico dos diálogos constitucionais repudia a adoção
de concepções juriscêntricas no campo da hermenêutica constitucional, na
medida em que preconiza, descritiva e normativamente, a inexistência de
instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das disposições
magnas, além de atrair a gramática constitucional para outros fóruns de
discussão, que não as Cortes
5. O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de ou-
torgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental,
não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou defi-
nitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compre-
endidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes
do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem,
em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional.
6. A formulação de um modelo constitucionalmente adequado de financia-
mento de campanhas impõe um pronunciamento da Corte destinado a abrir
os canais de diálogo com os demais atores políticos (Poder Legislativo,
Executivo e entidades da sociedade civil).
3.3 Comentários:
4 GUIA DE LEITURA
5
“O STF declarou a inconstitucionalidade (...) porque viola cláusulas pétreas relativas a democracia, sistema
republicano. É inaceitável que depois de decisão do Supremo o Congresso Nacional insista em algo que não é o
sentimento constitucional admissível, qual seja o de que empresas que não têm ideologia nenhuma continuem
a financiar campanhas políticas”
6
BRÍGIDO, Carolina. Luiz Fux acusa o Congresso de tentar enfraquecer o Judiciário em reação à Lava-Jato. O
Globo, Brasília, 28 de ago de 2017, Caderno de Política. Entrevista. Disponível em: https://oglobo.globo.com/
politica/luiz-fux-acusa-congresso-de-tentar-enfraquecer-judiciario-em-reacao-lava-jato-21754511 e https://
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/536864/noticia.html?sequence=1
breno baía magalhães (organizador) 103
a política fará com que o tema, a depender de conjunturas políticas e sociais, volte à
pauta nacional. Ou seja, sua preocupação não é sugerir que uma interação iniciada pelo
STF tenha de ocorrer de determinada forma ou por meio de um mecanismo institucio-
nal próprio. Para o autor, a qualidade deliberativa, como fiel da balança, deve ser o foco
das análises constitucionais sobre a legitimidade das instituições para tomar decisões
em uma democracia constitucional permeada pelas disputas políticas.
Por outro lado, os autores associados à escola da UERJ optaram por instrumen-
talizar as teses do diálogo, a fim de que pudessem servir de base para a elaboração de
critérios interpretativos de inspiração dialógica a serem manuseados pelo STF. Para
os autores, que escreveram seus principais trabalhos durante o período em que a Corte
estava sendo acusada de estar sendo por demais ativista, o neoconstitucionalismo
que favoreceu a consolidação de uma cultura de direitos nos anos 2000 precisava ser
abrandado, mas não necessariamente abandonado. Com base em uma perspectiva
normativa, segundo a qual essa seria a melhor forma de a Corte agir, os proponentes
do diálogo constitucional estariam encarregados de formular seus mecanismos inter-
pretativos instrumentais viabilizadores.
Firmes neste objetivo, os autores da UERJ se voltaram para as formas de reativi-
dade às decisões judiciais e ao estabelecimento de padrões para interpretação consti-
tucional das Cortes. Rodrigo Brandão (2012), por exemplo, aponta para mecanismos
de reação às decisões tomadas pelo Judiciário, os quais funcionariam como limites
à jurisprudência, de forma a apresentar os diálogos institucionais como inevitáveis
à definição do sentido da Constituição. Isso porque o constante risco de reatividade
implicaria uma postura de antecipação por parte dos tribunais, alterando as suas
preferências iniciais para um sentido mais aceitável pelos demais Poderes (BRAN-
DÃO, 2012). O diálogo, nesse sentido, seria um encargo prévio dos tribunais, como
condição para aceitabilidade de suas decisões. Paralelamente, Souza Neto e Daniel
Sarmento (2013) buscaram ofertar os parâmetros exatos para a interpretação cons-
titucional das Cortes, calibrando o nível de “ativismo judicial” a partir de critérios
relacionados à presunção de constitucionalidade dos atos normativos, de maneira a
antecipar, abstratamente, as repostas sobre quando o STF deveria atuar com maior
ou menor proeminência.
Com isso, podemos perceber que a principal diferença entre as escolas da USP
e da UERJ está na prescrição (ou não) de como o diálogo se estabelecerá e em que
circunstâncias caberá à Corte atuar de maneira contida ou protagonista. Enquanto
Conrado está preocupado com as flutuações de legitimidade e os casos concretos que
permitam a um Poder ou outro ofertar a última palavra provisória em determinado
momento, os autores da UERJ buscam, de antemão, explicar de que forma o diálogo
ocorre (ou deve ocorrer) e estabelecer parâmetros de interpretação constitucional,
como forma de mitigar as críticas lançadas contra o neoconstitucionalismo (ativis-
mo judicial e dificuldade contramajoritária), sem retirar o protagonismo do STF em
matéria de direitos fundamentais – conforme podemos extrair dos sete parâmetros
elaborados por Souza Neto e Sarmento (2013).
breno baía magalhães (organizador) 105
pela melhor compreensão do sentido constitucional), resta saber como essas rela-
ções se estabelecem e quais formas de interação entre os poderes correspondem
ao diálogo constitucional. Em síntese, a teoria precisa explicar como os Poderes
políticos absorvem, deliberam e discutem o conteúdo das decisões judiciais sobre
temas constitucionais.
Ademais disso, se partirmos de uma ideia que enfatiza o diálogo entre poderes,
por qual razão os parâmetros de autocontenção são teoricamente direcionados ape-
nas ao Judiciário? Essa limitação acaba por restringir a tese dos diálogos a um neo-
constitucionalismo mitigado, ou seja, a uma teoria voltada tão somente à solução dos
problemas da tese neoconstitucional (“ativismo judicial” e “dificuldade majoritária”).
Nesse aspecto, a escola da USP nos oferece respostas mais substantivas, à medida
que apresenta as flutuações de legitimidade como elemento prévio e determinante
para aferir qual poder oferecerá a última palavra provisória, dentro de uma rodada
procedimental específica.
Por tais razões, as teorias dos diálogos constitucionais no Brasil nos parecem
ainda estar em uma fase inicial, com poucos teóricos se inserindo diretamente nes-
te debate. Da literatura que possuímos, a escola da USP fornece argumentos mais
estruturados, enquanto os autores da UERJ ainda apresentam a tese com o objetivo
central de mitigar as críticas apresentadas aos neoconstitucionalistas ou oferecer al-
ternativas aos problemas gerados pelo neoconstitucionalismo. Portanto, novos estu-
dos acerca do tema são imprescindíveis para o aprimoramento das teses dialógicas
no cenário brasileiro. No entanto, o destino dessas propostas teóricas parece ter sido
selado pela literatura sobre “crise constitucional”, que inundou as prateleiras das
livrarias com a chegada de Bolsonaro à presidência. Afinal, como sugerir que um
Presidente autoritário dispõe de legitimidade para contribuir para a construção do
sentido constitucional?
CONSTITUCIONALISMO
PROCEDIMENTAL-DEMOCRÁTICO
Gabriel Alberto Souza de Moraes1
Breno Baía Magalhães2
1
Discente do 8° período do curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Bolsista
de Iniciação Científica e Tecnológica - PIBICT 2022 do CESUPA. Monitor de Teoria Geral da Constituição e
Direito Constitucional I (2022). Ligante da Liga Acadêmica de Direito do Estado (LADE). Atualmente é mem-
bro do Grupo de Pesquisa “Judex Perfectus - História Política, Intelectual e Cultural do Direito Moderno”
(CNPq/CESUPA). Membro do Grupo de Pesquisa “Filosofia Crítica do Direito e Literatura” (CNPq/UFPA).
Integrante do Projeto de Extensão “Estudos Constitucionais Compartilhados” (ECCOM) (UFPA).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
3
Nada obstante a controversa inovação, o STF declarou a constitucionalidade da ADC e do efeito vinculante em
decisão plenária de 27 de outubro de 1993. (BARROSO, 2004; LEITE, 2014).
breno baía magalhães (organizador) 109
normativo, ou seja, naquilo que seria o ideal para nossa Constituição4, uma Teoria da
Constituição sob o paradigma procedimentalista irá reconstrui-la como uma teoria
da sociedade (CATTONI, 2021, p. 35).
A ideia de reconstrução está calcada na busca pela recuperação da idealidade
imanente à facticidade da realidade como elemento de tensão operante nessa mesma
realidade. Dessa forma, tratar-se-ia de uma teoria situada em um contexto histórico e
social específico e ciente das implicações ético-políticas que almeja na reconstrução
da normatividade “como um critério ou padrão de crítica social, todavia, imanente à
realidade social”.
Para essa corrente do pensamento constitucional, o direito atua como um mate-
rial fornecido pela política, ou seja, essa assume certa precedência sobre o primeiro e
a atuação do jurídico está condicionada aos resultados de um debate político prévio
e inclusivo. O direito, então, opera como um mecanismo de integração social, isto é,
como um procedimento para a contínua existência de uma sociedade democrática,
a única capaz de ensejar um debate político público justo e igualitário ou, em outras
palavras, de fomentar um debate no qual todos são considerados com igual conside-
ração e no qual cada voz importa5.
A Constituição, portanto, longe de ser um instrumento base para a efetivação de
valores principiológicos abstratamente inscritos ou para a promoção de uma certa
interpretação acerca de valores ou objetivos considerados como importantes pela
sociedade, deve, antes, servir para criar e garantir um procedimento democrático de
criação de leis ou de definição de valores. Dito em outras palavras, a Constituição,
como um todo, e o ordenamento jurídico têm como função permitir que esse debate
político democrático exista, continue e se aperfeiçoe. Para tanto, as normas cons-
titucionais são importantes para assegurar a cidadania e a capacidade das pessoas
influenciarem em seus rumos político-sociais.
Souza Neto (2003, p. 03) desenvolve uma teoria constitucional democrático-de-
liberativa que estipula que a Constituição tem de ser encarada como uma ponte para
a “formulação e a implementação de um projeto de futuro”. Na mesma linha pro-
cedimental-democrática, Cittadino (2000) contesta a leitura de que haja um projeto
comunitário ético e valorativo estruturado pelo pacto constituinte de 88, não obstan-
te a autora reconheça a influência determinante da leitura axiológica e comunitária
desses juristas na constituinte. Dessa forma, a Constituição representa um consenso
procedimental em torno de princípios jurídicos universais, cuja concretização depen-
de dos processos de formação da vontade popular soberana por meio dos mecanis-
mos democrático-participativos
4
Talvez a proposta teórica procedimental-democrática seja a única que tenta afastar-se do modelo do desenvol-
vimento, e se aproxima do modelo da justificação.
5
E, agora, mais do nunca, se não houvera a concessão de um significado substancial de cidadania com a ruptura
dos paradigmas liberal clássico e social, era a hora de buscá-la novamente sem recorrer a pressupostos diri-
gentes e planificados. A noção de cidadania não pode mais ser interpretada como uma concessão autárquica,
entregue, e sim fruto de fluxos, refluxos, contrapesos e luta pela política que versa sobre o reconhecimento. Em
seu termo, a cidadania seria fonte crucial para o fenômeno da deliberação.
breno baía magalhães (organizador) 111
6
O culturalismo republicano, para Cattoni, tem sido a principal inspiração de muitos de nossos constituciona-
listas progressistas para explicar seu modelo preferido de institucionalização da democracia constitucional.
O culturalismo de Cattoni equivaleria, pensamos, às perspectivas comunitaristas de Cittadino. Tomando por
base os teóricos citados como partidários do culturalismo/comunitarismo, é possível dizer que os represen-
tantes desse tipo de teoria constitucional são aqueles aqui trabalhados como representantes das vertentes da
efetividade, dirigente e neoconstitucionalista.
7
Nessa vista, reconstrói-se a soberania popular por intermédio de um processo legislativo democrático e a le-
gitima, que deve considerar a equiprimordialidade da autonomia jurídica. Ou seja, não há estado democrático
sem autonomia jurídica e tampouco autonomia jurídica sem estado democrático.
8
O direito no traje liberal teria uma função normativa de auto-limitação e de estabilidade do sistema de direito, a
fim de que não houvessem conflitos dos interesses privados de cada indivíduo. Com o uso de leis gerais e abstra-
tas, busca-se garantir, ainda que apenas formalmente, a liberdade, a igualdade e a propriedade, de modo que todos
os sujeitos receberiam os mesmos direitos subjetivos. Pois bem, com a proeminência da liberdade, entende-se que
tais garantias fundamentais se tornam legítimas a partir da não-intervenção estatal. E é nessa conjuntura que a
estrutura da Constituição do Estado de direito (liberal) foi essencialmente negativa (abstencionista).
112 curso de teorias constitucionais brasileiras
2 A TEORIA EM PONTOS
3.3 Comentários
4 GUIA DE LEITURA
CATTONI, M.. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle juris-
dicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Manda-
mentos/FHCFUMEC, 2000.
CATTONI, M. Contribuições para uma teoria crítica da constituição. Belo Horizonte: Ar-
raes Editores, 2017.
CATTONI, M. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Conhecimento, 2021.
mantêm que a ordem vigente tem mais pontos positivos do que negativos e que o
Direito atual pode representar os interesses da sociedade como um todo desde que
tenha bons intérpretes, os teóricos críticos vêm a sociedade como inerentemente
conflituosa.
Para os críticos deliberativos, em todo caso levado a juízo, dois interesses confli-
tam entre si – uma posição de certo incontroversa e óbvia –, entretanto a lente com
a qual eles enxergam esses interesses não é com pretensa imparcialidade, mas à luz
das desigualdades e opressões materiais existentes na realidade não jurídica. Isto é,
para eles os dois sujeitos processuais não são partes iguais, mas indivíduos de carne
e osso com suas posições sociais e materiais pré-definidas e desiguais. Desse modo,
a norma existe para favorecer um desses dois sujeitos, para continuar ou interromper
os processos exploratórios inerentes ao capitalismo moderno. O juiz, portanto, quan-
do interpreta, seja concordando com o sentido usual da norma ou subvertendo-o, está
em verdade efetuando uma escolha política em um sentido ainda mais forte do que
aquele proposto pela CHD.
CONSTITUCIONALISMO RADICAL
Arthur Pedroso de Almeida1
Breno Baía Magalhães2
A teoria em comento foi proposta no calor das revoltas populares que tomaram
conta do Brasil com as manifestações iniciadas em junho de 2013 e no rescaldo
provocado pela crise financeira global de 2008. A causa imediata das manifestações
ainda gera controvérsia na literatura social brasileira, no entanto, há consenso acadê-
mico na identificação de uma reivindicação específica: reforma política.
O clima nacional de insatisfação com os últimos governos petistas, somado à
recessão econômica que atravessava o país, foram suficientes para que pesquisadores
e pesquisadoras progressistas acendessem sinal amarelo em relação à capacidade
transformadora da realidade social sugerida pela Constituição de 1988, bem como,
em última análise, sobre sua capacidade de canalizar os conflitos políticos e sociais
presenciados naquele período. Em síntese, um dos questionamentos feitos pela im-
prensa, academia e pelos manifestantes dizia respeito à viabilidade da manutenção
do pacto republicano firmado em 88.
Calcada nas produções francesas pós-marxistas críticas da democracia liberal,
como a de Chantal Mouffe, e na interpretação dos textos jurídicos feita pelos pós-
-estruturalistas, como Jacques Derrida, a professora Dra. Vera Karam de Chueuri,
da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ofereceu como proposta ao quadro po-
lítico-téorico-constitucional descrito no parágrafo anterior a formulação de um novo
constitucionalismo intitulado de “Constitucionalismo Radical”3.
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Projeto de Extensão Estudos
Constitucionais Compartilhados (ECCOM).
2
Doutor (2015) em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Consti-
tucional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenador do Eccom.
3
O radicalismo democrático é crítico dos modelos democráticos liberais consensuais, como o procedimental
estudado no capítulo anterior e o igualitário, por buscarem um consenso inalcançável por meio da raciona-
lidade argumentativa, em vez de reconhecerem a inescapável confrontação agonística entre interpretações
conflitantes, adversariais mesmo sobre os valores liberais-democráticos que gravitam em torno da igualdade e
da liberdade (MOUFFE, 2000).
120 curso de teorias constitucionais brasileiras
4
Em referência à base pós-estruturalista contrária aos fundamentos do liberalismo e ao procedimentalismo:
O modo como nos colocamos nesse debate é pelo entendimento de que a rejeição de fundamentos últimos
não está numa simples aplicação de um não paralisante, pois a recusa não é uma retirada e sim uma reflexão
sobre as próprias condições e qualidades do que se apresenta sob o signo de base fundante (normativismo
que não deixa de se colocar no terreno da metafísica da substância). (CHUEIRI, V. K. de; FONSECA, A. C.
M. ; HOSHINO, 2020, p. 86).
breno baía magalhães (organizador) 121
Eu diria que uma ação política sem mediações retém uma radicalidade inte-
ressante, porém não necessariamente insurrecional no sentido por ele dito.
(...) quero explorar a ideia da possibilidade de uma Constituição radical e,
assim, de uma possível mediação para a ação política através da Constituição:
não exatamente da norma promulgada em 1988, não do texto que a revela,
mas também isso, na medida em que a Constituição não se deixa reduzir ao
constituído, mas nela retém o poder constituinte e desta forma nos constitui,
radicalmente, como comunidade política (CHUEIRI, 2013, p. 26).
Ainda, ir além das paredes enclausurantes do texto constitucional para poder (re)
pensa-lo, algo que para a autora é imanente ao poder constituinte e à textura constitu-
cional, significaria uma possibilidade de, numa Constituição que vem, endossar uma
hermenêutica dos direitos fundamentais que não tem como fontes privilegiadas os
pronunciamentos do Poder Judiciário, dos jurisconsultos ou dos filósofos dirigentes,
mas que, inversamente, possa vislumbrar sua realização e interpretação a partir das
mobilizações sociais nas ruas.
Por essa razão, com um Poder Constituinte maleável e entregue nas mãos do
povo, o poder de ressignificar a Constituição (radical) em um conflito político me-
diado pela própria Constituição, entendida como a possibilidade de se estabelecerem
regras estáveis de conduta (aqui se apresenta a dynamis antes mencionada entre os
Poderes Constituinte e Constituído), ir às ruas e ecoar as múltiplas vozes se torna o
corolário para que a Constituição Radical se efetive. Desde uma perspectiva mais
prática, isso significa não excluir (ou limitar) mecanismos e formas de participação
popular a partir do discurso restritivo do constitucionalismo, mas que “a ausência
122 curso de teorias constitucionais brasileiras
dos limites finais assinala a possibilidade constante de modificação como a forma ima-
nente aos processos de disputas e participação” (CHUEIRI; FONSECA; HOSHINO,
2020, p. 87). Assim:
populares (protagonizadas pelo povo por meio da ação política). Desde uma pers-
pectiva dinâmica, tanto corpos institucionalizados e constituídos quanto o povo são
sujeitos da Constituição Radical. Ao não se arrogar na avaliação de uma democracia
radical, Chueiri defende que a Constituição pode e deve mediar a ação política, ao
mesmo tempo em que a ação política pode e deve radicar a Constituição para que
mantenha sua promessa de futuro.
A ideia de corpos e subjetividades radicadas constitui importante etapa no per-
curso teórico trilhado, pois Vera Karam trata sua teoria como um pensamento em
formulação e desenvolvimento. Isso pois, apesar de em seus escritos pregressos as
manifestações de rua e as lutas populares serem o motor e maná da Constituição
Radical, é notório que tais processos somente têm legitimidade para o Constitu-
cionalismo Radical enquanto puderem ser lidos em função —como um momen-
to de efetivação— de promessas feitas dentro do contexto institucional que foi a
Assembleia Constituinte. Dito de outro modo, ativa-se pelas lutas populares o
Poder Constituinte específico que deu luz à Constituição sobre a qual tais lutas
visam a agir sobre:
fim último de tal luta. As lutas populares, nesse contexto, partem da precariedade, da
despossessão, e aterrizam em uma reconfiguração de tal condição, performando para
isso novas formas de vida mais fraternas e justas durante as manifestações:
O agonismo, por sua vez, representará o modo como esses conflitos políticos en-
tre as formas de vida e de subjetividade estabelecidas e aquelas que desejam se fazer
ouvidas e sentidas a partir das ruas se dará dentro da Constituição e da Democracia.
Isso ocorre pois ele, na definição dada por Mouffe, implica que a dimensão confli-
tual da via política não deverá ser extinta ou encarada como risco de se cair em um
faccionalismo inadmissível na Democracia, mas sim que ela deverá ser interpretada
como constituinte e sinal de vitalidade da vida política, como prova de que as portas
para a inovação continuam abertas e que o debate franco não fora ainda silenciado.
A Constituição Radical, por conseguinte, será performativa ao comportar a rein-
venção de seu texto em diferentes contextos citacionais, será agonista ao entender
que tais contextos decorrerão do debate democrático que não possui fim, e será radi-
cal ao ouvir os anseios daqueles corpos inviabilizados que sofrem com a desposses-
são e de expandir os horizontes de proteção e efetivação dos direitos fundamentais
por meio da reimaginação eterna do texto constitucional.
As adições ao já rico quadro teórico do Constitucionalismo Radical descritas
acima importam em uma ampliação da teoria que extrapola as possibilidades conti-
das no conceito de Poder Constituinte e passa a versar sobre a própria condição de
vulnerabilidade daqueles corpos que são os verdadeiros sujeitos da Constituição Ra-
dical. Com isso, não se exclui o Poder Constituinte, mas sim dá-se a ele novos con-
tornos e um alcance maior do que originalmente imaginado. A teoria da Constituição
e do Constitucionalismo Radical, de certo, é uma das mais instigantes proposições a
sair da academia jurídica pátria e seu vigor de prosseguir se atualizando e se aprimo-
rando é, sem dúvidas, prova disso.
2 A TEORIA EM PONTOS
recente, a teoria ainda não teve a oportunidade de ressoar pelas frias paredes do STF.
Por essas razões, focaremos nossa atenção nos movimentos que alimentaram a busca
pelo constitucionalismo radical e a resposta dos poderes instituídos.
A ex-presidenta Dilma Rouseff propôs, durante o final de seu primeiro mandato,
um plebiscito que tinha como tema a convocação de uma assembleia constituinte es-
pecífica destinada à reforma política. Os constituintes, de acordo com sua proposta,
teriam total liberdade para legislar a nível constitucional dentro daquele tema, com a
promessa de que tudo o que decidissem seria, prontamente, incorporado na Consti-
tuição. Em sua manifestação, a presidenta expôs que:
nunca foi muito bem definido entre os manifestantes. O que reinava era somente um
sentimento cego de que “algo deveria ser feito contra isso que está aí” (“o que está aí”
sendo, nada mais nada menos, do que um substituto para o Mal cristão).
Com isso, a presidenta afirmou ter ouvido a voz das ruas e apresentou sua pro-
posta para alterar a Constituição com o mesmo entusiasmo ingênuo e ausência de
foco hauridos das manifestações de 2013. Guardando por um momento eventuais
críticas, a constituinte pretendida por Dilma talvez seja o mais próximo — apesar
das imperfeições— que o ordenamento jurídico brasileiro chegou de experimentar
o Constitucionalismo Radical de Vera Karam. Tal como propõe a autora, o que se
procurou naquela oportunidade foi superar o texto constitucional formal, libertar a
força política traduzida juridicamente como poder constituinte das amarras do cons-
titucionalismo enquanto limitação do poder do Estado. Essa reativação do poder
constituinte (não derivado, mas de algum modo originário por sua independência
das normas constitucionais até então previstas) necessitava, como afirma Vera, de
uma mediação.
O problema da mediação, central para o constitucionalismo radical, postula que
para que uma ação política (reforma política) seja tida como legítima, ela precisa con-
tar com uma mediação social (o Direito). Portanto, Dilma não propôs, simplesmente,
depor a Constituição vigente ou parte dela, suspendendo a ordem jurídica, mas sim
propôs utilizar-se de meios jurídicos previstos dentro da ordem vigente, porquanto
uma assembleia constituinte exclusiva não afeta o resto da Constituição. Além disso,
ela ainda contaria com um mandato do povo, visto que a assembleia seria criada via
plebiscito, o que lhe conferiria legitimidade democrática e mesmo jurídica, haja vista
a previsão constitucional do plebiscito5.
Desse modo, a presidenta Dilma Rouseff, mesmo sem saber, tentou aplicar uma
espécie de constitucionalismo radical, trazendo de volta a força do poder constituin-
te originário para revolucionar a vida política pátria. Isso, contudo, coexiste com a
falta de foco e direcionamento supracitadas, o que nos convida a pensar como, na
tentativa de dar ao constitucionalismo radical uma vida prática, poderemos capturar
o caráter fluído e plural das demandas do povo que vai às ruas, ao mesmo tempo em
que as moldaremos em uma forma que garantirá o sucesso das promessas do poder
constituinte em longo prazo.
Entretanto, é importante destacar, a autora manifestou-se contrariamente à pro-
posta de Dilma. Em artigo de opinião, Vera Chueiri, entre outros, sustentaram que
a Constituinte exclusiva “pretend[i]a modificar ou excepcionar o disposto no artigo
60 da Constituição da República, viola[ndo] a rigidez constitucional”. Para a autora,
a proposta:
5
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito;
128 curso de teorias constitucionais brasileiras
4 GUIA DE LEITURA
4.1 Críticas
Era de todo esperado que tal afirmação histórica robusta gerasse uma variedade de
possíveis questionamentos, dentre os quais selecionamos os seguintes: a identificação do
poder constituinte com a democracia é válida, historicamente, para a experiência brasi-
leira? Há provas históricas de que as manifestações populares no Brasil foram responsá-
veis por um aumento na liberdade e no usufruto dos direitos (ao menos no exemplo de
2013 dado pela autora)? E, por fim, a ordem constitucional tal como compreendida hoje
pode realmente capturar os anseios de toda uma sociedade democrática e plural?
As duas primeiras perguntas nos conduzem a certas respostas difíceis para a teo-
ria do Constitucionalismo Radical. Em primeiro lugar, o processo constituinte de 1988,
apesar de diversos e inegáveis ganhos democráticos, conteve dentro de si outros tantos
elementos autoritários, como: a visão assimilcionista sobre os povos indígenas, como
lembrado pela autora em seu texto A Constituição (in)corporada, ao mencionar o discur-
so de Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte; a inexistência de uma reforma
agrária; a manutenção da tutela militar da democracia; e, por fim, a própria composição
constituinte feita por uma expressiva maioria de homens brancos heterossexuais. Assim,
a “democracia” representada pelo Poder Constituinte está longe de representar um marco
de pura inspiração democrática e sua invocação em uma interpretação constitucional
carregará consigo todos os vícios decorrentes do processo histórico.
No caso das manifestações, que a professora enxerga como instâncias de poder
constituinte-democracia em ação, o exemplo de 2013 não parece, em retrospecto,
favorável ao seu argumento. Desde lá, e especialmente após a captura conservadora
dessas manifestações em 2015, longe de termos o grande ganho de direitos — a re-
volução pretendida — tivemos, em verdade, o completo oposto: um desmonte sem
precedentes dos serviços públicos, uma crise política e de representação, governos
extremamente impopulares frutos de manobras antidemocráticas e um sempre pre-
sente risco de nos tornamos uma democracia antidemocrática. Portanto, parece que a
autora de, certo modo, romantiza tais momentos de nossa história política para neles
encontrar uma centelha de pura Democracia, sem dar-se conta de que inexistem mo-
mentos puramente democráticos, mas complexos instantes de forças contraditórias
se digladiando, e que instrumentalizar esses momentos sem considerar sua natureza
conflituosa é deixar a porta aberta para que as forças não democráticas cresçam
livres e sorrateiramente. Dito de outra forma, a Constituição Radical deve ser sub-
metida ao crivo das lutas políticas dos tempos, porque a própria noção da promessa
constituinte não pode ser desconstruída, para usar o vernáculo derridiano.
Não por outra razão, a proposta de Dilma sobre a convocação da constituição ex-
clusiva foi recebida com suspeitas pela autora, não obstante parecer, em um primeiro
momento, uma oportunidade de ouro para aplicar-se o ideário radical de compreender
um constitucionalismo que não inviabiliza a democracia, mas que, simultaneamente,
oferece meios institucionais para a mediação do poder6. As justificativas presentes
no artigo de opinião expõem dúvidas a respeito das justificativas políticas do governo
6
Para reforçar nossa tese, Cunha (2014; 2017), com base em Mouffe e na Democracia Radical, tem defendido a
legitimidade de uma constituinte exclusiva.
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