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SEGUNDO DIA

SOMOS RESGATADOS

Para nós, que nos preparamos para professar a Consagração


montfortina, importa conhecer e aprofundar, em primeiro lugar, o
que somos em relação a Jesus Cristo. O fim dessa Consagração não é nos
tornar, por intermédio de Maria, seus fiéis, seus perfeitos escravos? “Ó
Sabedoria eterna e encarnada, ó tão amável e adorável Jesus, diremos
nós... eu vos louvo e glorifico por terdes desejado vos submeter a
Maria, vossa Santa Mãe, em todas as coisas, a fim de me tornar, por meio
dela, vosso fiel escravo.” E, no último parágrafo: “Ó Virgem fiel, tornai-me
em todas as coisas um escravo tão perfeito da Sabedoria encarnada, Jesus Cristo,
vosso Filho...”.
Que abundância de luz afluirá ao nosso espírito, se adquirirmos
desde agora a certeza racional de que somos, com toda verdade, pela
graça de nosso batismo, seus escravos resgatados pelo preço de seu sangue!
Nossa doação total vai aparecer para nós, então, como a ratificação
pessoal e amorosa das realidades redentoras. Dediquemo-nos, pois, a
reconhecer, antes de qualquer outra consideração, NOSSO INTEIRO
PERTENCIMENTO A JESUS CRISTO. Submeter-nos-emos com
maior generosidade às OBRIGAÇÕES que dele decorrem.
Roguemos ao Espírito Santo e à divina Mãe que nos iluminem.
Peçamos-lhes que desenvolvam em nossas almas sentimentos de gra-
tidão e de humildade, na lembrança da graça de nossa redenção. Veni,
Sancte Spiritus! Ave, Maria.

NÓS PERTENCEMOS A JESUS CRISTO NA QUALIDADE


DE ESCRAVOS. “Antes do batismo, escreve São Luís Maria de Mon-
tfort, éramos escravos do diabo; o batismo nos tornou os verdadei-
ros escravos de Jesus Cristo.” (V. D., n. 68 e 73.) Em consequência do
erro de Adão, cabeça do gênero humano, chegamos ao mundo com
uma alma manchada pelo pecado original, isto é, privada da graça

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santificadora, da participação na própria vida de Deus. Essa privação
da vida sobrenatural faz com que nasçamos submissos à influência do
demônio. Ele é o senhor em nós, um senhor tirânico, que não possui
nenhum direito, mas que ocupa seu espaço. É por isso que, antes de
derramar a água santa do batismo sobre nossa cabeça, o sacerdote
realiza os exorcismos contra Satanás: “Sai desta criança, espírito imundo,
e deixa lugar ao Espírito Santo!” Por duas ou três vezes, a mesma ordem
é reiterada: Sai! Vai-te! Não és mais o senhor aqui. Retira-te, espírito
do mal, e deixa lugar ao Espírito Santo.
Em virtude dessas palavras, unidas à do rito essencial, o demônio
é obrigado a se retirar; e Deus, Trindade santa, faz em nossa alma
sua entrada silenciosa e santificadora. A vida sobrenatural, que fora
dada ao nosso primeiro pai, e que ele havia perdido para si e para seus
descendentes, por sua grave desobediência, é misericordiosamente
devolvida a nós nesse instante. Tornamo-nos filhos de Deus. Satanás
não poderá exercer sua tirania, a menos que o obriguemos a retornar,
cometendo o pecado mortal.
Que os homens que vivem sem a graça do batismo sejam escra-
vos do demônio, podemos nos convencer disto ao refletir sobre o
que era o mundo pagão antes da vinda de Nosso Senhor, e sobre o
que ele é ainda hoje, depois de dezenove séculos de pregação evangé-
lica. Satanás reinava e reina ainda como senhor absoluto. Que estra-
gos provoca ele nas almas! Que degradação produz até nos corpos!
Mesmo em nossos velhos países cristãos, que retornam, em
grande parte, ao paganismo, ou – pecado ainda mais grave – que
professam abertamente o ateísmo, não vemos Satanás triunfar nova-
mente, e multiplicar por milhares e milhares o número de seus escra-
vos? É uma verdade experimentada que nos tornamos escravos de
nosso sedutor. “A ordem da justiça divina é assim constituída, ensina
São Tomás de Aquino,34 que se alguém cede à sugestão de outro
para pecar, deve submeter-se ao poder desse outro para ser punido,
segundo esta palavra de São Pedro em sua segunda epístola: a quo quis
superatus est, hujus et servus est.” (2, 19.) Somos escravos daquele por

34 Sum. theol.; Pars. Ia; quaest. 63; art. 8.

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quem nos deixamos vencer. É assim que Satanás se torna o tirano de
toda alma da qual Deus não é mais o Senhor.
Como devemos, então, estimar a graça de nosso batismo! Ao nos
arrancar da escravidão de obrigação do demônio, ela nos torna os
verdadeiros escravos de Jesus Cristo. Pois a vida divina não é então
derramada em nossa alma senão em virtude dos méritos da Paixão e
da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Adão, abusando de sua liberdade, pôde desobedecer a Deus e
ofendê-lo gravemente; todavia, depois do pecado cometido, ele não
podia justificar a si mesmo. Impotente para oferecer uma reparação
adequada, igual à ofensa, ele arrastava consigo toda a sua descendên-
cia à danação.
Foi então que, por uma misericordiosa condescendência, o Filho
de Deus se ofereceu ao seu Pai para satisfazer a Justiça divina, infinita-
mente ofendida. Ele se fez homem na plenitude dos tempos. Durante
os trinta e três anos de sua vida sobre a terra, ele rezou, trabalhou,
lutou, sofreu para arrancar nossas almas da escravidão do demônio.
Sendo todas as suas ações e sofrimentos, e principalmente sua morte
na cruz, de um valor infinito, ele pagou nossa dívida. Ele nos resgatou
por um alto preço, “não a preço de coisas corruptíveis, de ouro ou de
prata, mas a preço de todo o seu sangue”. (1Pdr 1, 18-19.)
Somos sua Conquista, seu povo adquirido, sua herança, seu bem,
sua propriedade. Pertencemos-lhe inteiramente. Estamos divinamente
marcados pelo selo de seu domínio. Eis que nos tornamos “seus verda-
deiros escravos” por meio de um prodígio inaudito de seu amor, pois
foi seu amor que o fez encarnar e aceitar morrer por nós.
Como testemunhar-lhe melhor nossa gratidão senão derramando
nosso espírito, nosso coração, toda a nossa alma na sabedoria desse
maravilhoso plano redentor? É precisamente isto que nos pede São
Luís Maria de Montfort, quando propõe aos batizados, em resposta
ao seu inteiro pertencimento a Jesus Cristo, que se consagrem ao seu
serviço por meio de uma dependência total, espontânea e livre, com
base unicamente no amor.

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II

Tal atitude de nossa parte parecerá ainda mais atraente, se con-


siderarmos, agora, as OBRIGAÇÕES que decorrem de nossa bem-
aventurada condição de escravos de Jesus Cristo. Roguemos nova-
mente ao Espírito Santo.
Não pertencendo mais a nós, mas inteiramente ao nosso divino
Redentor, fica claro que devemos viver, trabalhar e produzir frutos
somente para ele. Seus direitos de propriedade sobre nossas obras são
a consequência de seus direitos sobre nossa pessoa. O dono do campo
é o dono dos frutos que esse campo produz. “É por essa razão, diz-
nos Montfort (V. D., n. 68), que o Espírito Santo nos compara: a
árvores plantadas ao longo das águas da graça, no campo da Igreja,
que devem dar seus frutos em seu tempo; às varas de uma vinha da
qual Jesus Cristo é a vide, que devem produzir boas uvas; a um rebanho
do qual Jesus Cristo é o Pastor, que deve ser multiplicado e produzir
leite; a uma boa terra da qual Deus é o lavrador e na qual a semente se
multiplica e produz na espiga trinta vezes, sessenta vezes, cem vezes
o grão confiado ao solo.”35
Essas belas comparações bíblicas nos mostram, com efeito, muito
claramente, a obrigação de produzir obras de santidade e a proprie-
dade de Jesus sobre essas obras desde que elas se abrem e desabro-
cham em nossas almas. Os frutos do campo pertencem a ele, assim
como os cachos da vinha, o leite do rebanho e o bom grão multiplicado.
Tudo lhe pertence: o campo, a vinha, o rebanho, a terra, assim como
nossas pessoas. Nossa felicidade dever ser fazer valer seus bens, para
o enriquecimento de sua glória e para o louvor de sua graça, que ele
infunde incessantemente em nossas almas.
A imagem da vinha, tão amada por Nosso Senhor, é das mais
significativas. Jesus Cristo é a “Videira” que mergulha suas raízes
nas profundezas da Trindade, e nós somos os galhos cheios de seiva
divina. Os cachos de uva são o bem e a glória da vinha. Quanto
mais pesados e coloridos são esses cachos, mais glorificam a seiva
vivificante que sobe da videira e chega até as extremidades dos mais

35 Cf. Sl 1, 3; Jo 15, 1; 10, 11; Mt 13, 3, 8.

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longínquos galhos. A ninguém sucede pensar que os cachos que pen-
dem dos ramos pertencem a si mesmos, independentemente da vinha
que os suporta e produz.
Assim nossas obras, frutos da graça, pertencem em primeiro
lugar a Jesus Cristo. Quanto mais essas obras se mostram impregna-
das de seiva divina, embebidas e como que saturadas de santidade,
mais também elas reivindicam a honra de ser a riqueza e a glória de
sua incessante ação em nós.
Nossas obras sobrenaturais e meritórias são de tal modo o bem
de Nosso Senhor, que “Jesus amaldiçoou a figueira seca36 e proferiu a
condenação contra o servo inútil37 que não fizera valer seu talento” (V.
D., n. 68.) A árvore era o bem do Senhor, assim como o escravo e o
talento concedido; o Senhor tinha, pois, o direito de esperar frutos de
sua árvore e os lucros do trabalho de seu escravo. Se ele não os colhe
nem os recebe, vê-se frustrado com rigor de justiça, e é por isso que
amaldiçoa e condena.
“Tudo isto, acrescenta São Luís Maria de Montfort, prova-nos
que Jesus Cristo deseja receber alguns frutos de nossas frágeis pessoas,
conhecer nossas boas obras, porque essas boas obras lhe pertencem
unicamente (nossa cooperação com a graça sendo ela mesma o resul-
tado de uma graça): creati in operibus bonis in Christo Jesu,38 fomos criados
para realizar boas obras em Jesus Cristo.” Nossa regeneração é, com
efeito, uma criação nova no Cristo, cujo fim é nos fazer produzir obras
novas que Deus espera de nós e que são em nós o fruto de sua graça.
Assim, “Jesus Cristo é o único princípio e deve ser o único fim de todas
as nossas boas obras.” (V. D., n. 68.) Pertencemos-lhe inteiramente.
_______________

Dessa doutrina, Montfort não hesita em extrair a conclusão seguinte,


a saber, que devemos servir nosso divino Redentor e Senhor “não somente
como servos que recebem sua paga, mas como escravos de amor”. (n. 68.)

36 Mt 21, 19.
37 Mt 25, 24-30.
38 Ef 2, 10.

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Visto que somos “seus verdadeiros escravos” no sentido pleno do
termo, seria manifestar-lhe nossa mais amorosa gratidão entregar-
nos assim ao seu serviço, para honrá-lo pertencendo a ele. Não
temamos ostentar confiantemente, assim como fez o apóstolo São
Paulo (Rom 1, 1), esse nobre título de escravos de Jesus Cristo.
“Escravos”, e não simplesmente “servos”. O servo só depende par-
cialmente de seu senhor: ele trabalha pela contrapartida dos rendi-
mentos, e por um tempo limitado. Por isso, não se pode chamá-lo
de servo de amor.
Nós desejamos, ao contrário, dar-nos inteiramente e para sem-
pre, respeitando nosso inteiro e eterno pertencimento, reconhecido e
amado. Desejamos que nada possa limitar nossa doação, nem medi-la,
restringi-la ou condicioná-la.
Não se trata, aqui, senão da escravidão por vontade, a qual pro-
cede do coração; e a palavra “escravo”, como a entendemos, não é
de modo algum oposta a “livre”, mas somente a “Senhor”. Escravos
de um Senhor que se chama Nosso Senhor Jesus Cristo, o que pode
haver de mais espontâneo, de mais livre, de mais impregnado de amor
profundo? Nunca o amaremos ou pertenceremos a ele demais; é por
isso que prosseguimos utilizando a palavra mais forte em nossas lín-
guas humanas, para exprimir-lhe nossa total e absoluta dependência.
Compreendemos, com isso, a incansável insistência da Igreja em
terminar todas as suas Orações litúrgicas, todas as suas implorações
de graças, recorrendo à fórmula que relembra e honra seus direitos
de Redentor: Per Dominum nostrum Jesum Christum... Por Jesus Cristo,
Nosso Senhor e Mestre. Se o reconhecemos “Senhor e Mestre” (e
é o único Senhor e Mestre: Tu solus Dominus... Jesu Christe, dizemos
na Gloria da missa), é preciso que a esse título corresponda o nosso
título de escravos, assim como ao título de “pai” corresponde o de
“filho”. Um chama o outro; são inseparáveis.
Na manhã da Anunciação, quando a Virgem de Nazaré aceitou
essa divina Maternidade corredentora que o enviado do Céu lhe
propunha, não começou por inclinar toda a sua pessoa diante dos
direitos de Deus? Ela não hesitou em se proclamar sua escrava: Ecce
ancilla Domini, isto é, segundo a força do texto original, não somente
a serva, mas a escrava de seu Senhor e único Mestre, Deus. E de
modo semelhante, desde a primeira estrofe de seu cântico do Magnifi-

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cat: Minh’alma engrandece ao Senhor... pois contemplou a humildade
de sua escrava.
Ó esplendor de humildade! Maria pronuncia essas palavras,
quando se vê elevada à transcendente dignidade de Mãe de Deus. Já,
pela graça de sua Imaculada Conceição, ela era sua Filha amada, a
mais privilegiada e a mais agraciada; muito acima de todas as outras
criaturas angelicais ou humanas. E eis que ela se afirma sua escrava.
Ela é, pois, ao mesmo tempo a Filha, a Mãe e a Escrava de Deus.
Prova evidente de que essas palavras e esses títulos se harmoni-
zam. E se se harmonizam em Maria, por que não se harmonizariam
em nós as palavras e os títulos de filhos de Deus e de escravos de Jesus
Cristo? Filhos do Pai dos Céus pela graça de nosso batismo; escravos
de Jesus Cristo pelo reconhecimento de seus direitos de Redentor:
essa é nossa amorosa resposta ao infinito benefício do preço de seu
sangue. Sendo seus verdadeiros escravos, oferecemo-nos a “servi-lo
nessa qualidade, pela única honra de pertencer a ele”. (V. D., n. 73.)
Conformamo-nos, assim, ao ensinamento do Catecismo do
Concílio de Trento,39 quando prescreve aos pastores que conduzam
aos fiéis a relembrar e crer que estão ligados e consagrados a Nosso
Senhor Jesus Cristo como escravos ao seu Redentor e Senhor: non
secus ac mancipia Redemptori nostro et Domino. (V. D., n. 72 e 129.) Os
dois termos “Redentor e Senhor” são unidos propositadamente, para
mostrar que nosso pertencimento ao Cristo decorre diretamente dos
direitos que sua Redenção lhe confere.
Concluamos com São Luís Maria de Montfort: “Ou importa que os
cristãos sejam escravos do diabo, ou escravos de Jesus Cristo.” (V. D., n. 3.) Não
há meio-termo. Escravidão de obrigação, de um lado; escravidão de
vontade, do outro. Ambas começando durante a vida e consumadas
após a morte. No inferno, os reprovados são os eternos escravos do
ódio de Satanás. No Céu, os eleitos são os eternos escravos de amor
de Deus: o apóstolo São João os viu reunidos de todas as nações da
terra e gloriosamente marcados na fronte com o selo do Cordeiro
imolado (Apoc 7, 2-12.)
_______________

39 Pars Ia, cap. 3, art. 2, § 15. De secundo Symboli articulo, in fine.

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Conhecendo, pois, agora, o que somos em relação a Jesus Cristo,
amaremos nosso fundamental pertencimento de resgatados. Amaremos
o termo que o exprime: é o da humildade na verdade. As almas verdadei-
ramente humildes não experimentam qualquer dificuldade em assumi-lo,
pois ele vai ao encontro de sua necessidade de depender, de servir e de
doar-se. As objeções sobrevêm somente se nos colocamos diante dos
homens e de nós mesmos, enquanto importaria colocar-se unicamente
diante de Deus, como fez a Virgem em Nazaré. Se olharmos para os
homens, constataremos apenas violências e ultrajes à dignidade humana.
Se nos detivermos em nós mesmos, estaremos às voltas com pensamen-
tos de egoísmo e de amor-próprio.
Olhemos para o alto, bem acima dos homens e de nós mesmos!
Olhemos o adorável e amável Jesus, a Sabedoria eterna e encarnada,
que nos comprou ao preço de todo o seu sangue. Rendamos-lhe graças
por ele ter aniquilado a si mesmo, assumindo a forma de um escravo,
para nos tirar da cruel escravidão do demônio. Peçamos-lhe, pela santa
Mãe, a contrição e o perdão de nossas faltas, e ofereçamo-nos genero-
samente a todas as renúncias que exige nosso divino pertencimento.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 25, 14-30: Parábola dos


talentos.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro II, cap. V: Da consideração de si
mesmo.

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