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SOMOS RESGATADOS
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santificadora, da participação na própria vida de Deus. Essa privação
da vida sobrenatural faz com que nasçamos submissos à influência do
demônio. Ele é o senhor em nós, um senhor tirânico, que não possui
nenhum direito, mas que ocupa seu espaço. É por isso que, antes de
derramar a água santa do batismo sobre nossa cabeça, o sacerdote
realiza os exorcismos contra Satanás: “Sai desta criança, espírito imundo,
e deixa lugar ao Espírito Santo!” Por duas ou três vezes, a mesma ordem
é reiterada: Sai! Vai-te! Não és mais o senhor aqui. Retira-te, espírito
do mal, e deixa lugar ao Espírito Santo.
Em virtude dessas palavras, unidas à do rito essencial, o demônio
é obrigado a se retirar; e Deus, Trindade santa, faz em nossa alma
sua entrada silenciosa e santificadora. A vida sobrenatural, que fora
dada ao nosso primeiro pai, e que ele havia perdido para si e para seus
descendentes, por sua grave desobediência, é misericordiosamente
devolvida a nós nesse instante. Tornamo-nos filhos de Deus. Satanás
não poderá exercer sua tirania, a menos que o obriguemos a retornar,
cometendo o pecado mortal.
Que os homens que vivem sem a graça do batismo sejam escra-
vos do demônio, podemos nos convencer disto ao refletir sobre o
que era o mundo pagão antes da vinda de Nosso Senhor, e sobre o
que ele é ainda hoje, depois de dezenove séculos de pregação evangé-
lica. Satanás reinava e reina ainda como senhor absoluto. Que estra-
gos provoca ele nas almas! Que degradação produz até nos corpos!
Mesmo em nossos velhos países cristãos, que retornam, em
grande parte, ao paganismo, ou – pecado ainda mais grave – que
professam abertamente o ateísmo, não vemos Satanás triunfar nova-
mente, e multiplicar por milhares e milhares o número de seus escra-
vos? É uma verdade experimentada que nos tornamos escravos de
nosso sedutor. “A ordem da justiça divina é assim constituída, ensina
São Tomás de Aquino,34 que se alguém cede à sugestão de outro
para pecar, deve submeter-se ao poder desse outro para ser punido,
segundo esta palavra de São Pedro em sua segunda epístola: a quo quis
superatus est, hujus et servus est.” (2, 19.) Somos escravos daquele por
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II
36 Mt 21, 19.
37 Mt 25, 24-30.
38 Ef 2, 10.
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Visto que somos “seus verdadeiros escravos” no sentido pleno do
termo, seria manifestar-lhe nossa mais amorosa gratidão entregar-
nos assim ao seu serviço, para honrá-lo pertencendo a ele. Não
temamos ostentar confiantemente, assim como fez o apóstolo São
Paulo (Rom 1, 1), esse nobre título de escravos de Jesus Cristo.
“Escravos”, e não simplesmente “servos”. O servo só depende par-
cialmente de seu senhor: ele trabalha pela contrapartida dos rendi-
mentos, e por um tempo limitado. Por isso, não se pode chamá-lo
de servo de amor.
Nós desejamos, ao contrário, dar-nos inteiramente e para sem-
pre, respeitando nosso inteiro e eterno pertencimento, reconhecido e
amado. Desejamos que nada possa limitar nossa doação, nem medi-la,
restringi-la ou condicioná-la.
Não se trata, aqui, senão da escravidão por vontade, a qual pro-
cede do coração; e a palavra “escravo”, como a entendemos, não é
de modo algum oposta a “livre”, mas somente a “Senhor”. Escravos
de um Senhor que se chama Nosso Senhor Jesus Cristo, o que pode
haver de mais espontâneo, de mais livre, de mais impregnado de amor
profundo? Nunca o amaremos ou pertenceremos a ele demais; é por
isso que prosseguimos utilizando a palavra mais forte em nossas lín-
guas humanas, para exprimir-lhe nossa total e absoluta dependência.
Compreendemos, com isso, a incansável insistência da Igreja em
terminar todas as suas Orações litúrgicas, todas as suas implorações
de graças, recorrendo à fórmula que relembra e honra seus direitos
de Redentor: Per Dominum nostrum Jesum Christum... Por Jesus Cristo,
Nosso Senhor e Mestre. Se o reconhecemos “Senhor e Mestre” (e
é o único Senhor e Mestre: Tu solus Dominus... Jesu Christe, dizemos
na Gloria da missa), é preciso que a esse título corresponda o nosso
título de escravos, assim como ao título de “pai” corresponde o de
“filho”. Um chama o outro; são inseparáveis.
Na manhã da Anunciação, quando a Virgem de Nazaré aceitou
essa divina Maternidade corredentora que o enviado do Céu lhe
propunha, não começou por inclinar toda a sua pessoa diante dos
direitos de Deus? Ela não hesitou em se proclamar sua escrava: Ecce
ancilla Domini, isto é, segundo a força do texto original, não somente
a serva, mas a escrava de seu Senhor e único Mestre, Deus. E de
modo semelhante, desde a primeira estrofe de seu cântico do Magnifi-
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Conhecendo, pois, agora, o que somos em relação a Jesus Cristo,
amaremos nosso fundamental pertencimento de resgatados. Amaremos
o termo que o exprime: é o da humildade na verdade. As almas verdadei-
ramente humildes não experimentam qualquer dificuldade em assumi-lo,
pois ele vai ao encontro de sua necessidade de depender, de servir e de
doar-se. As objeções sobrevêm somente se nos colocamos diante dos
homens e de nós mesmos, enquanto importaria colocar-se unicamente
diante de Deus, como fez a Virgem em Nazaré. Se olharmos para os
homens, constataremos apenas violências e ultrajes à dignidade humana.
Se nos detivermos em nós mesmos, estaremos às voltas com pensamen-
tos de egoísmo e de amor-próprio.
Olhemos para o alto, bem acima dos homens e de nós mesmos!
Olhemos o adorável e amável Jesus, a Sabedoria eterna e encarnada,
que nos comprou ao preço de todo o seu sangue. Rendamos-lhe graças
por ele ter aniquilado a si mesmo, assumindo a forma de um escravo,
para nos tirar da cruel escravidão do demônio. Peçamos-lhe, pela santa
Mãe, a contrição e o perdão de nossas faltas, e ofereçamo-nos genero-
samente a todas as renúncias que exige nosso divino pertencimento.
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