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sincretismo dos sentidos
e-book

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sincretismo dos sentidos
e-book
Lali Krotoszynski | Mário Ramiro | Sérgio Basbaum

São Paulo, 2009


1ª Edição
Sumário [ F.A.q.2 ]

10 Apresentação
Lali Krotoszynski

4 Instituto Sérgio Motta


Falta

8 SESC - Seviço Social do Comércio


Danilo Santos de Miranda

4 Os sentidos e o sentido: O perceber e a pluralidade do mundo


Sérgio Basbaum

4 Ciências sem texto a priori | MOSTRA


Mario Ramiro

4 Para um Sentido Sincrético do “Eu”


Roy Ascott

Mesa 1 - Saber Do Sabor / Sabor do Saber


Relato | Tetê Tavares e Ananda Carvalho
Henrique Carneiro | Alimentos, bebidas e drogas: ingestões
corporais alterações sensoriais
Paula Pinto e Silva | Cheiros, ruídos e texturas
Carlos Dória | A gastronomia como arte da desnaturação
Entrevista | Norval Baitelo

MoSTRA
Elcio Rossini | Objetos para Ação
Roberto Ramos | D.A.M. - Continuum

Mesa 2 - Sentido da Arte / Arte dos Sentidos


Relato | Tetê Tavares
Jennifer Kanary | Psicótica labiríntica, uma conspiração dos
sentidos
Mike Phillips | Data Senso
4 Entrevista | Roy Ascott

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Sumário [ F.A.q.2 ]

MoSTRA
Paulo Nenflídio | Shiva
Sonia Guggisberg | Contra Corrente

Mesa 3 - Texto do Cheiro / Cheiro do texto

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Relato | Ananda Carvalho

4
Cristiano Perius | “Cheirar com os olhos”: Merleau-Ponty sinestésico
Renata Aschar | Olfato
Entrevista | Vinícius Pereira
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MoSTRA
Laura Lima | Arranjo
Lúcia Koch | Cocoon

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Mesa 4 - Sedução do Olhar/ Olhar da Sedução
Relato | Tetê Tavares
Luis Miguel Girão | Opera Som = Espaço
Glauce Rocha | Olhos de L S V_Er
Alexander Pilis | Paralaxe arquitetural: Crise visual
4 Entrevista | David MacConville

MoSTRA
Dudu Tsuda | Memórias Invisíveis

Mesa 5 - Camadas de Pele / Pele em Camadas


Relato | Ananda Carvalho
Natasha Vita More | Nano-Bio-Info-Cogno SKIN
Vinícius Pereira | Não tem título
Entrevista | Lula Vanderlei

4 Índice das questões ?

4 Ficha Técnica

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[ F.A.q.2 ]

sincretismo dos sentidos

Apresentação
Lali Krotoszynski

“A pergunta pode ser um meio poderoso para provocar movimento.


Nos coloca em marcha, procurando, revirando, vasculhando respostas.

Beatriz Blandy

O Planetary Collegium

O Planetary Collegium é uma rede internacional nômade de artistas e pesquisadores


que integram em seus trabalhos, arte, ciência, tecnologia e consciência no contexto da
cultura pós-biológica. Roy Ascott, teórico inglês, pioneiro na incorporação da cibernética,
telemática e meios interativos ao universo da arte, é quem personifica o eixo desta rede.
Seu objetivo é promover o desenvolvimento do discurso transdisciplinar entre artistas,
acadêmicos, cientistas e tecnólogos e assim identificar estratégias que otimizem as
capacidades humanas na amplitude de seu espectro de abrangência, semeando novas
visões para a sociedade planetária.

A oportunidade de receber Roy Ascott e membros do Planetary Collegium em São Paulo


foi o estímulo para a criação de um encontro com pesquisadores e artistas situados no
mesmo campo de interesse do Brasil. Ao mesmo tempo, também oportunidade para criar
um encontro acessível a um público variado, mais amplo que o público acadêmico, que
pudesse inquirir sobre as articulações neste universo de forma a levantar questões básicas,
muitas vêzes desprezadas diante das exuberância de questões mais eruditas. Retornar á
questões básicas neste campo entrelaçado e complexo é, com certeza um exercício útil a
todos os envolvidos. Desta forma, a pergunta surgiu como resposta ao desafio de mobilizar
diálogos inclusivos que gostariamos de instituir.

No processo de viabilizar o evento se estabeleceram as parcerias com o SESCSP, com o

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Sincretismo dos Sentidos [ F.A.q.2 ]

Instituto Sérgio Motta e com o British Council Brasil e a idéia do F.A.Q. tomou forma. Frequent
Asked Questions, um inventário de dúvidas frequentes é um tópico sempre presente em
manuais e sites, por exemplo. Os F.A.Q.s pretendem agilizar o processo de interação do
interessado com o programa ou produto que quer acessar. Foi neste registro que o evento
foi batizado em 2006.

Para que as mesas não só oferececessem, mas também estimulassem debates,


principalmente entre público e pesquisadores, o papel do mediador , ou coordenador das
mesas se transformou em relação ao formato tradicional. Passou a se chamar perguntador.
Os perguntadores convidados foram intelectuais e artistas com flexibilidade suficiente para
inquirir sob pontos de vista diversos dentro de um mesmo universo, provocandomais do
que pontuando.

A primeira edição de F.A.q. em 2006 no SESC Paulista não tinha foco específico, F.A.q. ? -
Perguntas sobre arte, consciência e tecnologia abria-se aos questionamentos suscitados
pelos assuntos abordados pelos convidados do Planetary Collegium e os artistas e
pesquisadores brasileiros. O nome de cada mesa era em sí uma pergunta, sugerindo um
ponto de partida. Além das mesas de debates, o programa contou com conferências de
Roy Ascott e dos supervisores do Planetary Collegium, Mike Phillips e Michael Punt, e
sessões de apresentação de trabalhos de arte-tecnologia comentadas por Mike Phillips,
Daniela Bousso, atual diretora do MIS e Solange Farkas, diretora do Vídeobrasil.

O site www.faq.art.br contém informações detalhadas sobre o evento e seus participantes,


além de uma mostra de arte digital.

Sincretismo dos Sentidos

A segunda edição de F.A.q. concentrou-se no lugar dos sentidos na confluência entre


arte, consciência e tecnologia. O programa do evento contou com a parceria conceitual e
operacional de Sérgio Bausbaum e Mário Ramiro. Tomamos a arte como vetor e procuramos
permear o espaço, desta vez do SESC Ipiranga, de estímulos cruzados aos sentidos –
obras, entre instalações, performances e apresentações criadas por seis artistas brasileiros
convidados.

Entre os dias 25 e 27 de novembro de 2008, F.A.q.2 explorou a idéia estimular a experiência


sensorial múltipla através da arte e da reflexão. O programa contou com instalações e
performances, uma conferência de Roy Ascott e cinco mesas de debates: Saber do Sabor

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Sincretismo dos Sentidos [ F.A.q.2 ]

/ Sabor do Saber, Sentidos da Arte / Arte dos Sentidos, Texto do Cheiro / Cheiro do Texto,
Sedução do Olhar / Olhar de Sedução e Camadas de Pele / Pele em Camadas.

Mais uma vez o SESCSP e o Instituto Sérgio Motta possibilitaram a realização do evento e
de sua extensão como publicação. F.A.q.2 – Sincretismo dos Sentidos, o e-book , é mais
uma possibilidade de irradiar idéias não institucionalizadas, articulações não convencionais,
olhares, narinas, ouvidos, peles e paladares apurados para quem tiver apetite para tal.

Lali Krotoszynski
Artista | Coordenadora Geral do Faq 2

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[ F.A.q.2 ]

Título
Autor

Falta

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[ F.A.q.2 ]

Serviço Social do Comércio

Todo novo saber começa numa boa pergunta


Danilo Santos de Miranda

Após cinco séculos de primazia visual, o olhar chega ao século XXI ao mesmo tempo
multiplicado e exaurido. Em meio a esse dilúvio de imagens da cultura tecnológica, o que
ainda pode surpreender nossos olhos?

Sob o olhar, uma rede até então clandestina, tecida no corpo pelos demais sentidos, vem
capturando a atenção e a imaginação de pensadores e artistas como um caminho para
fazer novas perguntas e experienciar novas possibilidades do mundo.

F.A.q. (frequent asked questions - perguntas muito frequentes) são aquelas que nos inter-
rogam sem cessar, e este segundo F.A.q. vem perguntar sobre as múltiplas formas e senti-
dos da experiência sensorial.

F.A.q.2 - Sincretismo dos Sentidos promove o encontro entre artistas e estudiosos para
um diálogo sobre a experiência sensorial movido por este espírito investigativo. Em cinco
encontros, artistas e intelectuais brasileiros interrogam de modo plural o universo sensível,
junto aos artistas e pesquisadores do Planetary Collegium -- a comunidade internacional
de pesquisa dirigida pelo artista e teórico inglês Roy Ascott, pioneiro no uso da ciberné-
tica, telemática e dos meios interativos no universo da arte.

Além disso, uma mostra com artistas brasileiros convidados estabelece, no SESC Ipiran-
ga, um diálogo com o espaço e com os temas do encontro. A simbiose entre o universo
destes artistas e as atividades do simpósio visa promover uma dinâmica de provocação
e interlocução no âmbito mesmo do evento: uma zona temporária de pensamento e ex-
periência, capaz de chegar, por meio de novas perguntas, a territórios menos mapeados e
ainda abertos à inquietação da prática poética e reflexiva.

Danilo Santos de Miranda


Diretor Regional do SESC São Paulo
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[ F.A.q.2 ]

Os sentidos e o sentido: O perceber e a pluraiidade do mundo


Sergio Basbaum

“Quando eu percebo o outro, há um grau


de violência que se torna impossível”
Merleau-Ponty

O que é a percepção? Percebemos o mundo tal como ele é? Ou o mundo é tal qual o
percebemos? Aquilo que percebemos é resultado dos estímulos externos -- imagens, sons,
aromas, toques, sabores, etc... --, ou há algo de criação, de invenção nossa, naquilo que é
o nosso “mundo”? Ou ainda: percebemos todos da mesma forma, ou cada um percebe a
seu modo?

Se atentamos à experiência do perceber, notamos que o que percebemos são sempre


relações. A partir dessa premissa, podemos também examinar as questões que formulamos.
Se percebemos sempre relações -- por exemplo: experimente tomar uma coca-cola após
comer um salgado, e após comer um donut, e veja quando é que ela parece mais doce --, do
que se tratam essas relações? De um modo muito sintético, podemos dizer que percebemos
sempre distinções figura-fundo: uma mancha sobre um fundo branco, por exemplo. Essa
configuração igualmente trivial já é percebida de um modo muito complexo. Para começar,
temos a impressão de que o fundo continua por debaixo da mancha. Ou, numa imagem
menos laboratorial, vemos um gato atrás de uma cerca, de tal forma que vemos apenas
partes de um gato, mas percebemos um gato inteiro, imediatamente. Isso implica que
nossa percepção nos dá sempre mais do que os dados objetivos do mundo percebido. Ou
seja, a percepção é ativa, ela busca no mundo as melhores soluções para que possamos
nos situar de um modo satisfatório na circunstância em que nos encontramos. Assim, ela é
amplamente dependente do contexto, no qual buscamos a solução mais satisfatória. Isso,
porém, não faz do perceber uma operação estática: os contextos são dinâmicos, e assim
também a percepção. Uma boa solução sempre poderá ser substituída por outra melhor:
quantas vezes nos enganamos, vemos uma pessoa que pensamos ser um amigo, até que
nos surpreendemos diante de alguém apenas parecido; ou ainda, vemos a lua no horizonte,
ela parece enorme, e quando está no meio do céu, subitamente tornou-se menor -- mas se
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Os sentidos e o sentido: O perceber e a pluraiidade do mundo [ F.A.q.2 ]

a acompanharmos com um tubo de cartolina, seu tamanho na verdade não mudou, fomos
nós que o percebemos num contexto diferente (esse belo exemplo é do filósofo francês
Maurice Merleau-Ponty).

Diremos então, que a percepção encena um mundo que seja habitável (tecnicamente,
hoje se diz que a percepção é “enativa”, uma tradução de “enactive”, mas “encenar” me
parece mais satisfatório). Respondemos, assim, boa parte de nossas perguntas: aquilo que
percebemos é uma mistura daquilo que está no mundo, com nossa própria disposição
perante a cena, de tal forma que, situados numa circunstância, dispomos um mundo. E
basta lembrar que temos um ponto cego na retina, sem que tenhamos qualquer buraco
no nosso campo visual, para confirmarmos queexperimentamos essa mistura das coisas
lá fora e das nossas intenções diante delas, de um modo dinâmico e sempre inacabado:
criamos, o tempo todo nosso mundo.

Mas, dessa forma, o que nos garante que possamos partilhar, uns com os outros,
experiências em comum, um mundo com o qual, numa parte suficiente de nosso tempo,
estamos de acordo? Certo, percebemos diferentes perspectivas de um mundo em comum;
mas além disso, a percepção é amplamente normatizada na cultura: aprendemos a perceber
e buscar as mesmas coisas, a configurar os mesmos objetos, de tal forma que podemos
nos comunicar a respeito deles, nomeá-los com palavras em comum -- que nos ajudam a
percebê-los --, interagirmos com os outros e com as coisas de diversas formas: trata-se
de uma constituição intersubjetiva, um subtexto tácito do mundo que nos dá um fundo
comum, uma tese do mundo na qual vivemos.

O mundo Ocidental atribui uma enorme ênfase à visão, mas as coisas não foram sempre
necessariamente assim: a antropóloga Constance Classen, por exemplo, mostrou muito bem
como até o século XVI as rosas eram valorizadas, nos concursos de flores, pelo seu perfume;
a crescente primazia da visão, ao longo da modernidade, fez com que, já no século XIX, não
se julgasse senão a forma da rosa. Diferentes culturas percebem de modo completamente
distinto seu mundo, com ênfase em diferentes sentidos, e nem sempre necessitam falar de
ponto-de-vista ou de visão de mundo. O filósofo alemão Martin Heidegger fará questão,
num certo momento, de subverter essa lógica visual propondo uma escuta do ser.

Se os sentidos podem constituir o mundo de diversas formas, cheias de intenções, podemos


dizer que eles nos dão um mundo que nunca é neutro, ou melhor: um mundo já banhado em
significação. Diremos então que os sentidos são o berço do sentido. Isso faz de todo nosso
campo percebido a instalação de um modo de significar e ordenar o vivido, segundo os
modos dominantes de perceber e significar pessoas, coisas, espaço e tempo. É aí, falando

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Os sentidos e o sentido: O perceber e a pluraiidade do mundo [ F.A.q.2 ]

de modo sintético, que intervém a arte: multiplicando os modos da experiência sensível


e da significação do mundo, por meio de práticas estéticas ao mesmo tempo sensíveis
e conceituais, a arte legitima um habitar essencialmente plural, aberto às singularidades,
implodindo assim as possibilidades de uma verdade hegemônica num mundo onde as
coisas e os outros são muito melhor compreendidos na medida mesma em que são melhor
percebidos.

Sérgio Basbaum
Músico e Doutor em Comunicação e Semiótica | Organizador do Faq 2

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[ F.A.q.2 ]

Ciências sem texto a priori | MOSTRA


Mario Ramiro

“Quando eu percebo o outro, há um grau


de violência que se torna impossível”
Merleau-Ponty

O que poderíamos esperar ao reunir artistas e estudiosos para um projeto de trabalho em


torno do tema “o sincretismo dos sentidos”? Como ainda conciliar as discussões propostas
em um simpósio com uma mostra de arte contemporânea que se instala nos espaços de
um centro de cultura, esporte e lazer? Será esta a forma mais eficaz de aproximar o grande
público da arte contemporânea e dos seus questiona¬mentos?

Estas foram algumas das questões presentes neste projeto, cujo título aponta para a existência
das “perguntas mais freqüentes” – questões que normalmente encontramos nos manuais
de usuários de aparelhos e serviços. Usualmente as FAQ são organizadas no formato de
um guia rápido, uma coletânea das perguntas mais comuns que surgem do nosso primeiro
contato com um determinado assunto. Seu propósito é o de nos libertar da dúvida e das
apreensões que temos quando nos aventuramos por terrenos ainda desconhecidos, e a sua
extensão deve estar de acordo com a nossa ânsia por respostas objetivas e breves. Assim
as FAQ representam, no sentido comum do seu termo, soluções em potencial e respostas
diretas para problemas ou dúvidas imediatas.

Neste sentido pode parecer que “FAQ” seria um título inapropriado para um evento que
reuniu especialistas e estudiosos para debater certas questões ao lado de artistas e suas
obras num debate sobre os sentidos. No entanto, não só o simpósio, como também as
obras de arte, deixaram claro que no lugar das respostas breves às perguntas mais comuns,
neste FAQ o que se apresentou foram questionamentos à certas perguntas, tais como: “do
que se ocupa a arte de hoje?”

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Ciências sem texto a priori | Mostra [ F.A.q.2 ]

Laura Lima, de certa forma responde a isso, dizendo que, “há quem diga que a obra se refere
a seu tempo e lugar”, noção sempre em voga nas tentativas de definição da arte. “Teimo
em discordar”, diz a artista, argumentando que “existem películas no entendimento de uma
obra de arte que talvez se coloquem mais no futuro”. Em outras palavras, muito daquilo que
hoje não identificamos como arte, poderá assim o ser em breve. A artista ainda afirma que
existem “ciências sem texto a priori”; enunciados que vão construíndo seus sentidos pela
lógica não linear de sua mecânica própria, tal como na arte. “Porvires de sentido” que se
anunciam e, mesmo assim, muitas vezes, parecem continuar invisíveis.

É sabido que o território das artes visuais é um dos campos mais abertos ao pensamento
conceitual e ao questionamento dos modelos e valores que parecem esta¬belecidos no
mundo. O questionamento é, na verdade, um dos “assuntos” mais presentes no trabalho
do artista, mesmo quando a sua obra parece ser uma afirmação de algum ponto de vista ou
uma tomada de posição em relação a um contexto.

Por isso mesmo o artista contemporâneo se sente atraído pelas situações limite, onde a
obra, muitas vezes, não se apresenta materialmente e tampouco é notada enquanto obra.
Ela pode se instalar num espaço comum – um espaço não especializado para exposições
de arte – e se confundir com a arquitetura, com os lugares de passagem ou com os objetos
com os quais, normalmente, convivemos no dia-a-dia. Mas ela pode também nos colocar
certas dúvidas quanto ao que vemos e julgamos ser real, ou ainda, pode ampliar a nossa
imaginação e revelar, a potência de um mundo latente de transformações.

Sincretismo entre objeto, corpo e espaço-tempo

Ao ocupar os mais diversos ambientes do edifício em que se instalaram, os trabalhos


integrantes dessa mostra se ofereciam para uma relação direta com o público. Instalados
no hall de entrada, no salão de vivências, nas imediações da piscina, no jardim e na quadra
de esportes, aqueles trabalhos ainda ocupavam um espaço no imaginário, nos deslocando
para outros tempos e lugares, distantes da obviedade momentânea do dia-a-dia.

Assim foi na “casa invisível” criada por Dudu Tsuda no hall do edifício. Ao caminhar sobre
o desenho de uma casa, colocado no chão, um visitante desatento poderia imaginar estar
caminhando sobre a planta de um empreendimento imobiliário qualquer das redondezas.
Mas ao colocar um fone de ouvido sem fio, oferecido pelo artista, abria-se a possibilidade
de mergulho na dimensão sonora daquela casa imaterial, reconstruída por meio de um
álbum sonoro onde os portões se abrem, cães latem e pessoas conversam num outro

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Ciências sem texto a priori | Mostra [ F.A.q.2 ]

espaço-tempo.

Da mesma forma Lucia Koch transportou para o ambiente da piscina a atmosfera mágica
de um filme dos anos oitenta, que retratava a experiência de um grupo de idosos que
rejuvenescia nas águas de uma piscina turbinada com casulos de seres extraterrestres.
O filtro violeta instalado pela artista sobre a grande clarabóia que ilumina e cobre aquela
piscina, criou uma atmosfera inédita para o lugar. Na fluidez da água a luz encontrou uma
superfície que a modulava por todo o ambiente, criando uma “excitação visual” contagiante,
que certamente concorreu para as aulas de ginástica aquática.

No recorte das escadas, que dão acesso à piscina, Sônia Guggisberg antecipava o mergulho
dos corpos reais na piscina de luz violeta, em uma vídeo projeção que mostrava um grupo
de nadadores num movimento incansável de braçadas, tentando vencer a inusi¬tada
verticali¬dade das águas. Sem conseguir se deslocar, os nadadores pareciam vivenciar
uma espécie de suspensão temporal e espacial de seus gestos repetitivos. Na correnteza
do tempo aqueles corpos pareciam ironicamente presos ao “eterno retorno do sempre
idêntico”, numa cela de imagens animadas por uma trilha sonora real da piscina há poucos
degraus abaixo e por uma atmosfera de cloro sempre presente.

A dimensão sonora dos espaços, dos objetos e dos seres reais, presente nestas três obras,
encontrou uma variante menos concreta nas obras de outros artistas.

A estrutura de material plástico e circuitos eletrônicos do trabalho de Paulo Nenflídio


ocupava uma área do jardim interno da instituição e se impunha visívelmente a todos que
por alí passavam. Seu corpo esquelético, repleto de braços-tentáculos, era um convite para
a proximidade e o toque, que logo se traduzia em ruídos e freqüências eletrônicas emitidas
pela peça. Nenflídio vem trabalhando no terreno da espacialização sonora feita a partir de
objetos escultóricos que não se limitam apenas à sua tridimensionalidade tangível. Eles
ecoam pelo espaço e se fazem notar também sem os recursos da visão.

Na performance apresentada por Élcio Rossini e seu grupo, a sonoridade que dominava
o ambiente era resultado da ação de dois performers sobre um conjunto de balões de
borracha com água, suspensos no ambiente como um grande instrumento. O seu ruído
rouco e estridente sonorizava o deslocamento de uma outra performer que segurava um
grande objeto de nylon colorido, que inflava como um balão quando ela corria com ele
pelo ambiente. Era o corpo em movimento dessa artista que induzia a criação de volumes
efêmeros, que pareciam respirar, aprisionando e libertando regularmente o ar do seu
interior. Élcio Rossini continua explorando em seu trabalho a resposta surpreendente que

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Ciências sem texto a priori | Mostra [ F.A.q.2 ]

os materiais oferecem quando submetidos ao desejo experimental do artista.

Neste sentido é que a arte da performance parece um grande meio para se alcançar o
sincretismo entre objeto, corpo e espaço-tempo.

Nos domínios do quase silêncio, uma outra performance, a de Roberto Ramos e seu grupo,
também nos mostrou o quanto a interação do corpo com um determinado objeto pode
resultar numa obra de múltiplos sentidos. A ocupação de uma área na quadra esportiva
do edifício se fez pelo uso de aparelhos metálicos de rolagem, muito singulares, que
demarcavam o chão com uma fita adesiva, criando linhas amarelas de notável força gráfica.
Foi essa demarcação que determinou o campo de atuação dos três performes ao explorar
todas as profundidades e dinâmicas do espaço, a partir do movimento aplicado à uma meia
esfera de borracha. Rodopiando no chão em todas as direções espirais no interior daquele
“terreiro”, aquela meia esfera era o agente que regia a mecânica dos corpos e a dinâmica
de linhas invisíveis pelo espaço.

E o único objeto aparentemente “estático” dessa mostra foi o arranjo com peças de cerâmica
e mais um vaso com flores naturais e pétalas falsas de Laura Lima. Durante as semanas da
mostra, rosas frescas eram colocadas regularmente naquele arranjo de peças de cerâmica,
tendo camufladas em seus botões, entre pétalas verdadeiras, espinhos e folhas, as pétalas
falsas. “Pétalas falsas e invisíveis dentro de botões de rosas frescas”, afirma quase que
laconicamente a artista. E apesar disso, continua ela, “os pratos estão empilhados, a
mesinha de reload é arrojada, o espectador se atém a isso e o segredo da obra [continua]
invisível”.

Tanto quanto o aroma das rosas, para ser apreendida a arte necessita apenas de uma
certa proximidade, de um certo gosto pela compreensão não verbal das coisas e de
ouvidos atentos à sua dicção pouco cotidiana. Só assim deixaremos as dúvidas sobre a
compreensão da arte de lado para então poder perguntar: não existe nada mais direto do
que a arte, não?

Mario Ramiro
Artista Multimídia | Organizador do Faq 2

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Para um Sentido Sincrético do “Eu”
Roy Ascott
[ F.A.q.2 ]

Para um Sentido Sincrético do “Eu”

Onde Aristóteles pensou ser adequado ROY ASCOTT


identificar apenas cinco sentidos, a Teórico da comunicação e Artista | Inglaterra
neurociência provê um sexto adicional.
Estes são sentidos da primeira ordem,
mas podemos reconhecer outros que
nos permitem atravessar campos de
experiência que, de outra maneira, estariam
ocultos, envolvendo consciência espiritual
e psíquica de um lado, e ciberpercepção de
outro. Este sensorium de segunda ordem
evoca uma cibernética de segunda ordem,
na qual observador e observado constituem
um fenômeno de campo (em muito similar
à interpretação de Copenhagen da Física
Quântica). Isto é pertinente, já que estados Fundador do Planetary Collegium, é profes-
espirituais e consciência psíquica requerem sor adjunto de Design/Arte Midiática, UCLA.
relatos imersivos em primeira pessoa e a Editor-fundador do periódico Technoetic Arts
ciberpercepção é inerentemente interativa. e membro do conselho editorial da revista
Durante a década passada adaptamos Leonardo, publicada pelo MIT. Participou
nossas sensibilidades de modo a adaptá- com seus projetos telemáticos de eventos
las em caixas separadas – real. Virtual, como a Bienal de Veneza, Electra Paris, Ars
espiritual, por exemplo – que eram vistas Electronica, V2, Trienal de Milão, Bienal do
como servindo a ontologias separadas. Mercosul, entre outros. Através de sua arte,
Agora muito fora transformado, combinado produção teórica e atuação acadêmica
e tornado sincretizado, de tal forma que vem desenvolvendo seu projeto visionário
podemos falar de uma realidade variável, fundamentado no desenvolvimento da
através da qual nosso fluxo é contínuo, pesquisa científica sobre a consciência
acelerado não somente pelas tecnologias desde os anos 60. Publicou diversos livros,
de comunicação, computação e química, entre eles: Engineering Nature, 2005.
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Para um Sentido Sincrético do “Eu” [ F.A.q.2 ]

mas também por nosso reengajamento com práticas e princípios culturais mais ancestrais
(enteogênicos, somáticos e técnicas meditacionais por exemplo) que possuem a capacidade
de transformar a percepção e ampliar nossa sensibilidade. Os efeitos podem vir a tornar-
nos mais permeáveis e transparentes, não apenas ao nível da superfície do corpo, como
também ao dos limites da mente, assim como não apenas em relação a outros, mas ao
próprio senso de si de cada um.

Uma conseqüência deste desenvolvimento tecnoético é que estamos não somente


repensando o que constitui o “eu”, cada um de nós está progressivamente envolvido em
construir e sincretizar nossos muitos “eus” que se movem nesta realidade complexa e
variável, de tal forma que não podemos mais nos considerar como constituindo um organismo
de “eu” singular. Quanto mais imergimos em nós mesmos, mais “eus” descobrimos. E
nossos sentidos, como nós mesmo, são gerativos. Novos modos de construir e perceber
a realidade constituem uma mudança qualitativa em nosso ser e geram nossa nova e pós-
biologica faculdade de ciberpercepção. A oposição binária entre real e virtual não pode
mais se sustentar, conseqüentemente explodindo a grande ilusão ocidental da mente
solitária de desconectada criando sua própria consciência separada em um cérebro
material singular. Esta Realidade Variável, da qual somos em ampla medida autores e
atores, é repleta de contradições, paradoxos e paranóia. A complexidade da desordem
ontológica e confusão categorial envolvidos constitui uma aporia que o pensamento linear
e a racionalidade rígida não podem resolver sozinhas. O tão alardeado rigor da investigação
científica leva de modo freqüente ao rigor mortis da imaginação criativa. A solução para as
contradições de nossa aporia cultural podem residir no domínio do pensamento sincrético.
O sincretismo historicamente tem servido como uma tentativa de reconciliar e analogizar
crenças religiosas díspares e ideolgias conflitivas, procurando similitude entre coisas
dissimilares. Pode contribuir em nosso presente aporiático para um entendimento das
visões de mundo multiniveladas, tanto materiais quanto metafísicos, que estão emergindo
de nosso envolvimento com tecnologias computacionais ubíquas e sistemas pós-biológicos.
O sincretismo desestabiliza ortodoxias, desafia a linguagem e pode libertar o “eu” de
racionalidades e dogmas presunçosos. Um entendimento da realidade sincrética pode
mudar como estimamos nossas identidade, nossa relação com outros e a fenomenologia
do tempo e do espaço. Uma abordagem sincrética do ordenamento e extensão dos
sentidos poderia contribuir para nossas necessidade e ambições ontológicas, cognitivas e
perceptuais.

Estamos passando por uma revolução na consciência que reside em nosso potencial de
ser muitos “eus”, de estar presente em muitos lugares ao mesmo tempo, telematicamente,
mesmo que ainda não teleportadamente, nossa auto-criação digital e pós-biológica

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Para um Sentido Sincrético do “Eu” [ F.A.q.2 ]

levando a muitas personas, muitos aspectos daquilo que podemos ser. O “eu” do século
XXI é emergente, auto-organizado, empreendedor e cooperativo; mais Vareliano que
Darwiniano, mais Margoliano que Marxiano. Aqui se origina o apelo de Second Life e do
Metaverso de forma mais generalizada, como também e o caso nas muitas narrativas e
jogos de identidade gerativa, shape-shifting e personalidade transformativa que a nova
media art criou. Na medida em que cada um de nós cria uma multiplicidade de “eus”
para navegar em uma multiplicidade de mundos, devemos adquirir uma multiplicidade de
sentidos. Por este motivo vemos uma renascimento do interesse que se encontra além da
barreira sensorial do senso-comum da ciência ocidental. Na medida em que o Eu Múltiplo
emerge das profundezas de nossa aporia contemporânea, a Pista da Mão-esquerda do
conhecimento e da experiência irá progressivamente ser explorado. Desta maneira, a Pista
da Mão-Direita reside no profundo materialismo e vacuidade espiritual que marca nossa
ciência ocidental, o qual, enquanto é eficiente em termos da engenharia e ordenação do
mundo físico, está em total defasagem para lidar com os domínios da psique e do espírito.
A Pista da Mão-esquerda é menos trafegado, de fato abandonado e proscrito pelos altos
sacerdotes do Iluminismo Ocidental. Os batedores da Pista de mão-esquerda são cultural,
espiritual e intelectualmente vários: David Bohm, Allan Kardec, J.B. Rhine, e Albert Hoffman
são exemplos. Até mesmo a CIA realizou experimentos de sexto sentido com visualização
remota. O misticismo oriental localiza muitos sentidos sutis em muitos tipos de corpos, por
exemplo o corpo supracelestial Sufi, o corpo de diamante no taoísmo, o corpo de luz no
budismo tibetano, o corpo imortal (soma athanaton) no hermeticismo.

O “eu” e uma mistura complexa e mutável de coisas, algumas das quais podem ser
experimentadas interiormente a qualquer momento e, em outros, não. A organização
bipartida do sistema nervoso faz de “eu” e “realidade” conceitos mais fluidos do que
usualmente supõe-se que sejam., criando uma capacidade inesgotável de conceber tanto
o mundo como a si mesmo de novos modos.

The Brain’s Image: Co-Constructing Reality and Self (A imagem do Cérebro: co-construindo
a realidade e o eu). Paul Grobstein, 2002.

Durante o século XX houve muito alarde a respeito de et pluribus unum: dentre muitos,
um, significando uma cultura unificada, um “eu” unificado, um pesnamento unificado e a
unidade do tempo e do espaço. Também pensamos o sensorium humano como unificado,
abrangente e finito. Agora no início do século XXI, há a emergência de ex uno plures: dentre
um, muitos, ou seja, muitos “eus”, muitas presenças, muitos mundos, muitos níveis de
consciência, nos quais uma diversidade de sensoria são emergentes. Assim como na
mecânica quântica, na qual um objeto tende a viver numa superposição de estados – um

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Para um Sentido Sincrético do “Eu” [ F.A.q.2 ]

elétron pode girar em duas direções de uma só vez u um átomo pode estar em dois lugares
distintos simultaneamente, até a interação com o resto mundo forçar o objeto a escolher um
dos estados, sendo que ao nível humano tendemos a viver numa superposição de estados
– pensando em duas direções ao mesmo tempo ou estando simultaneamente em dois
lugares distintos – até que a interação com o resto do mundo leva o indivíduo a escolher
um estado. Os espiritualmente incapazes devem notar que tanto psiconautas quanto
xamãs “voam”, apenas suas tecnologias os diferenciam: tecnologia digital da informação,
tecnologia química da infarmação, tecnologia das plantas verdes ou tecnologia orgânica
somática. Em cada caso, o sujeito está dentro e fora do corpo ao mesmo tempo. Estamos
simultaneamente presentes em muitas realidades: presença física no ecoespaço, presença
aparicional no espaço espiritual, telepresença no ciberespaço, presença vibracional no
nanoespaço. Second Life é a sala de ensaios para um futuro no qual criamos e distribuímos
infinitamente nossos muitos “eus”. O que construímos hoje no ciberespaço, construiremos
amanhã no nanoespaço.

A nova mídia artística é imaterial e úmida, numenal e fundada. A mente tecnoética tanto
habita o corpo como é distribuída através do tempo e do espaço. A realidade sincrética
emerge da coerência cultural e da interconectividade intensiva, coerência quântica na base
de nossa construção do mundo, coerência espiritual de nossa consciência multi-nivelada.
Estas contradições parencem ser aporiáticas em sua confusão aparente, mas quando são
reconciliadas e suas diferenças embaralhadas, arte e realidade tornam-se sincréticas. Quando
a arte confronta e abraça sua aporia intrínseca, ela celebra a ambiguidade, perplexidade,
incerteza e uma semiose aberta. Levando-nos á beira do desconhecido sincrético, trazendo
coisas contraditórias para o interior da ressonância mútua, enquanto abre nossa realidade
variável para estados indeterminados e instáveis. A aporia do “eu” é resolvida e mesmo
celebrada na nova media art, através de sua própria bifurcação e distribuição serial, adotando
a ontologia de Second Life e fundindo-a sem cesuras com uma realidade cotidiana.

Viver na cultura da realidade variável significa chance e mudança constantes, no ambiente


e em nós mesmos: ambos se tornando imprevisíveis, incertos e indeterministas. Estamos
constantemente nos atualizando, remodelando e reinventando, procurando por novas
relações, novas realidades, novas ordens de tempo e de espaço. A cultura não nos
define mais com suas regras de estética, estilo, etiqueta, normalidade ou privilégio. Nós
as definimos; nós da comunidade global que mapeia o mundo afora não com fronteiras
territoriais ou ambientes construídos, mas com redes abertas. Está é uma cultura que
opera de baixo para cima: não-linear, bifurcada, imersiva e profundamente humana. Todas
as tendências, gostos e persuasões culturais estão sendo realinhadas, interconectadas e
hibridizadas por uma vasta comunidade de usuários online. Nosso sensorium também é

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Para um Sentido Sincrético do “Eu” [ F.A.q.2 ]

parte do processo de realinhamento. Somos transdisciplinares em nossa abordagem da arte,


do conhecimento e da experiência, instintivamente interativos com sistemas e situações,
lúdicos, empreendedores, transgressivos e enormemente curiosos. Esta cultura vivente se
faz enquanto se movimenta; as instituições de estado, igreja e ciência não mais ditam o tom.
Nosso sistema de sentidos responde a este fluxo constante, construindo realidades, criando
identidades, promovendo hipóteses transitórias que provêem o pragmatismo cognitivo que
nosso comportamento visionário e pós-racionalista exige.

A biosemiótica de Jakob Von Uexkull tem mostrado que o organismo pode possuir
umwelten (ambientes) diversos, sentindo diferentes mundos mesmo que compartilhem o
mesmo ambiente. Seus mundos são revelados e delimitados por seus sentidos. Para nós,
não apenas nossos sentidos são estendidos computacionalmente e quimicamente para
acomodar mudanças em nosso umwelt, mas estamos nos equipando simultaneamente
para viver em muitos umwelten distintos, tanto aqueles dados pelo planeta e seu cosmos
(mediados natural ou tecnologicamente) como aqueles que construímos dentro das mídias,
tal como nos espaços de redes sociais ou metaversos paralelos como o Second Life. Não
somente nossas sensoria são assim estendidas, mas reconhecemos ao mesmo tempo que
nosso planeta é telemático, nossas mídias são úmidas, nossas mentes são tecnoéticas,
nossas identidades são múltiplas, nossos corpos são transformáveis, nossas artes são
sincréticas e nossas realidades são variáveis. A preocupação da arte do século XX com
o corpo está dando lugar a explorações tecnoéticas da mente e da consciência. A ciência
não pode explicar a consciência; nem pode apontar sua localização ou tampouco como
surge. Qualidades, no coração do problema do dualismo mente-corpo, constituem seu
problema mais intratável e sólido. De modo diverso, os artistas estão epistemológica e
emocionalmente livres para buscar a transformação e a transcendência de seus sentidos,
para navegar a consciência criativamente, por vezes com recurso às práticas e noéticas e
rituais de culturas ancestrais.

©Roy Ascott 2008

| 20
[
[ F.A.q.2 ]

[ [
Saber Do Sabor / Sabor do Saber Mesa 1

Mesa 2 - Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos


Henrique Carneiro | Alimentos, bebidas e drogas: ingestões
corporais alterações sensoriais
Paula Pinto e Silva | Cheiros, ruídos e texturas
Carlos Dória | A gastronomia como arte da desnaturação
faltam as fotos Entrevista | Norval Baitelo

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Detalhe da performance D.A.M. - Continuum de Roberto Ramos
[ F.A.q.2 ]

Saber Do Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1

Relato | Tetê Tavares e Ananda Carvalho

A primeira mesa do simpósio foi dedicada ao paladar. Não por acaso, talvez este seja o
sentido que melhor introduza o tema do evento já que, como define o pequeno texto que
apresenta a discussão ao público, “conjuga todos os sentidos e funda a idéia de gosto,
nutrindo corpo e espírito.” A simultaneidade dos sentidos na experiência do paladar foi
abordada pelos debatedores Henrique Carneiro, Paula Pinto e Silva e Carlos Doria, que
posteriormente foram questionados por Norval Baitello Junior e pelo público.

Alimentos, bebidas e drogas: ingestões corporais e alterações sensoriais

O historiador Henrique Carneiro pesquisa a história da alimentação, das drogas e das bebidas.
Sua apresentação partiu de uma analogia estrutural entre esses três tipos de substâncias para
depois diferenciá-los no âmbito da cultura. Segundo o palestrante, a principal semelhança
entre elas reside no fato de serem as únicas substâncias ingeridas pelo corpo. Em razão de
sua incorporação, compartilham também a qualidade de provocar experiências sensoriais
no que tange a aspectos emotivos, cognitivos, estéticos e sinestésicos. Suas diferenças,
no entanto, emergem na análise sócio-cultural da ingestão. A partir dos conceitos “técnicas
do corpo” (Marcel Mauss) e “tecnologias de si” (Michel Foucault), Henrique mostrou como
o consumo desses três tipos de substâncias baseia-se em um juízo sobre a sensação,
transformando o gosto em valoração cultural. Como conclusão, propôs que tanto o gosto
dos alimentos, como o efeito das drogas, devem ser aprendidos através de uma experiência
de consumo carregada de significados culturais e morais, extinguindo-se, dessa forma, a
distinção ontológica entre alimentos e drogas operada em nossa sociedade.

Henrique também lembrou que o ritual de alimentação pode ser entendido através de uma
metáfora com a linguagem, como propôs Levi-Strauss. Nela, o repertório dos produtos
substitui o léxico; as combinações nos pratos ou nas refeições, a sintaxe; e as formas de
preparar ou servir, a retórica. Por fim, provoca: não poderíamos pensar uma gramática das

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

drogas que, como a gastronomia ou a enologia, incorpore os critérios do gosto educado?


Nossa sociedade não deveria caminhar para uma equiparação dos estatutos de legitimidade
em que alimentos e drogas deixassem de ser distinguidos essencialmente?

Cheiros, ruídos e texturas

Paula Pinto e Silva é antropóloga e sua pesquisa enfatiza as relações entre antropologia
e alimentação na culinária brasileira. Em sua fala, apresentou o paladar como construção
cultural através de dois pontos de discussão: a culinária como atividade subjetiva que
incorpora informações dos diversos campos da sensibilidade e a formação do gosto como
identificador das diferentes classes sociais através de regras, etiquetas, protocolos e tabus.
Nesse sentido, a antropóloga defendeu a refeição como um sistema de comunicação capaz
de evidenciar os relacionamentos entre os grupos. Para exemplificar essa questão, Paula
relatou as dificuldades em sua experiência na interpretação de receitas escritas no Brasil
Colônia: como seria o ponto de bala mole descrito na receita? A quantos graus deveria
estar o fogo? Seria melhor utilizar uma panela de aço inox ou um tacho de cobre? No limite,
seria possível recompor o sabor, a textura e o aroma daquele doce?

A gastronomia como arte da desnaturação

A última apresentação foi a de Carlos Doria, sociólogo e gastrônomo. Sua fala partiu de uma
definição do gosto como multi-percepção para posteriormente compor os critérios para a
definição do que pode-se chamar de uma linguagem da gastronomia. Carlos, também,
questionou se a gastronomia pode ser considerada uma forma de arte. Neste sentido, citou
o caso do restaurante do chefe de cozinha Ferran Adrià que foi incluído como uma das
locações da Documenta de Kassel 2007.

Os outros quitutes, indigestos!

Com o objetivo de desenvolver as questões apontadas pelos três debatedores, Norval


Baitello Junior, teórico da comunicação, formulou três pontos de discussão.
No primeiro, partiu do pensamento de Boris Cyrulnik que, no livro “O sexto sentido”, compara
os comportamentos da boca com outros comportamentos patológicos de apropriação,
tais como a cleptomania. Para Cyrulnik, sempre que comemos roubamos algo do entorno,
devoramos, destruímos. Esse processo de apropriação começaria logo após o nascimento,
configurando-se como uma antropofagia original: nos alimentamos do corpo de nossa
própria mãe.

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

No segundo questionamento, o perguntador sugeriu uma hibridização entre visão e


paladar que chegaria ao ponto do primeiro quase substituir o segundo na alimentação
contemporânea. Como exemplo, relembrou os pratos citados por Carlos Doria que são quase
que inteiramente constituídos de marketing, pura imagem. Para Norval, o pensamento dos
participantes desta mesa estaria na contra-mão deste processo: resgatam a sensorialidade
na alimentação enquanto a indústria nega essa sensorialidade e exacerba a visualidade.

Por fim, o terceiro argumento de Norval inspirou-se em “A História do Diabo”, de Vilém


Flusser, para retomar a questão da alimentação como apropriação do entorno e devoração
da natureza. Para Flusser, enquanto os países subdesenvolvidos lutam contra a fome, os
países desenvolvidos sofrem em virtude da gula, do exagero e do desperdício.

Debate

Lançadas as três provocações, a mesa estava posta e o debate começou. Na cabeceira,


primeiro serviram-se os convidados principais do banquete, que depois seria colocado à
disposição do público.

Em resposta ao primeiro questionamento proposto por Norval, Paula discutiu a noção


de antropofagia original e explicou que, para algumas tribos indígenas, o alimento não
é produzido pela mãe mas sim pelo pai. A mãe é vista apenas como um veículo daquele
alimento. Essa pequena mudança de ponto de vista pode, a princípio, parecer simples
mas demonstra como o tratamento das questões referentes à alimentação depende de
uma certa ótica, da mesma forma como o entendimento da infância, da maternidade ou
da própria cultura. É importante ressaltar que a alimentação como construção cultural foi
o ponto principal da apresentação da antropóloga e teve grande importância também na
fala de Carlos sobre a valoração da gastronomia e na distinção social entre a ingestão de
alimentos, drogas e bebidas discutida por Henrique.

É exatamente por esta consonância entre os pesquisadores que a questão que Sérgio
Basbaum, um dos curadores do evento, propôs à mesa tornou-se desestabilizante.
Basbaum citou uma publicação sobre a fisiologia do gosto, organizada por Carlos Roberto
Douglas. Segundo este autor, o bebê, ao nascer, já possuiria um gosto que seria exercido
posteriormente ou não, dependendo de sua classe social. Mas se um bebê já tem gosto, como
pode o gosto ser construído socialmente? Carlos explicou que o sabor umami (considerado
por alguns autores o quinto gosto, além do doce, amargo, ácido e salgado) presente no leite
materno seria responsável pela formação do paladar do bebê. No entanto, tal explicação
não ilumina a questão da diferenciação do gosto entre os indivíduos, já que grande parte

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

desses é alimentado pelo leite materno. Em resposta, Paula retomou sua explicação inicial,
na crença de que a formação do gosto seja bem mais complexa que a fisiologia. Segundo
a antropóloga, o bebê aprende a comer de acordo com o que lhe é dado. Paula também
comentou a diferença entre culinária e gastronomia. Na primeira deve ser considerada a
importância das regras e preceitos culturais que a normatizam. Já na segunda, as forças
sociais não importam. Henrique ressaltou que para existir uma gastronomia é necessária
uma secularização - é o que vai permitir que o critério estético do gosto e do prazer ordene
e julgue a criação alimentar. Na história ocidental, isso só acontece a partir da sociedade
burguesa pós-iluminista do século XIX. Carlos Doria acrescentou que a gastronomia é um
discurso sobre comer. Um restaurante tailandês, por exemplo, oferece a cozinha de um país
imaginário.

As relações entre estética e alimentação nos levam ao segundo ponto de discussão proposto
por Norval Baitello. Em sua exposição, o perguntador havia citado Georges Bataille como
um dos primeiros a anunciar a devoração ocular do mundo, que privaria os homens da
devoração efetiva do paladar. Em resposta, Carlos Doria fez referência ao texto “A noção do
Consumo”, no qual Bataille afirma que o sentidos das trocas não baseia-se unicamente na
utilidade das mercadorias - uma explicação pioneira sobre a questão da singularização das
mercadorias, de acordo com o sociólogo. Esse processo de singularização das mercadorias
estaria relacionado diretamente com o processo de escolha dos consumidores. Carlos
exemplificou essa questão com o caso dos vinhos e azeites, produtos que chegam ao
mercado agregados de uma imensa estrutura informacional. Segundo ele, esse modelo
estaria invadindo toda a área da alimentação. Em resposta à exposição de Carlos, Sérgio
Basbaum, perguntou sobre a normatização do gosto no processo industrial. Para Carlos
Doria, o modelo de produção fordista que prezava pela normatização já estaria ultrapassado
e a multiplicação das mercadorias tornaria necessária a mediação da informação e do
marketing. “Nós só comemos sistemas dispersos”, afirmou.

Uma pitada de pimenta foi adicionada à discussão quando um dos participantes do evento
afirmou que não sente que exista uma diversidade cada vez mais ampla de produtos
alimentares e sim uma uniformização da alimentação. “Estamos ampliando ou perdendo
a riqueza gastronômica?” – pergunta. A primeira a responder foi Paula, que defendeu
que nunca a alimentação regional teria sido tão defendida como agora, inclusive pelas
instituições governamentais. Basbaum contrapôs a opinião da antropóloga, afirmando
que a singularização dos alimentos é elitizada. Sônia Guggisberg, artista que participa da
exposição que compõe o evento, afirmou que “a sociedade de consumo engana os sentidos.”
Sobre esse assunto citou o Prof. João Francisco Duarte (Unicamp) que pesquisa “O Saber
Sensível”. E outro participante do evento completou: “Não sabemos o que saboreamos

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

e não saboreamos o que sabemos, ou o que deveríamos saber. No supermercado, não


sabemos o que estamos consumindo. As políticas públicas não nos garantem certificados.”
Por fim, Henrique Carneiro concluiu: “a grande distinção entre a alimentação dos ricos e
dos pobres é que a primeira é variada e a segunda é monótona. A Revolução Neolítica e
a Revolução Industrial foram responsáveis por um empobrecimento da alimentação das
massas.”

Esta questão apontada por Henrique remeteu a última das provocações de Norval. O
historiador considerou importante notar que o dilema entre a fome e a gula existe desde
os fundamentos da alimentação judaica-cristã e o mito do fruto proibido. Segundo ele, o
fruto não é simplesmente um alimento, já foi interpretado por vários pesquisadores como
uma referência simbólica ou metafórica a outras drogas proibidas. “O fruto é portando, ao
mesmo tempo, um pecado de gula e de soberba, de querer saber ou de querer se apropriar
do domínio que era privilégio da divindade.” Percebe-se, portanto, que a raiz comum das
palavras saber e sabor advém do pecado original: o sabor e a vontade de saber.

Ao final da mesa, o perguntador Norval Baitello ofereceu uma questão a ser degustada em
casa: “já que falamos da qualidade dos alimentos ingeridos pela boca, qual é a qualidade
dos alimentos ingeridos pelos olhos?”

Tetê Tavares e Ananda Carvalho

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

Alimentos, bebidas e drogas: ingestões corporais e alterações


sensoriais

Ao se comer, beber, fumar ou fazer outras Henrique Carneiro


ingestões alimentares ou psicoativas, o Historiador | São Paulo
que se plasma é uma experiência sensorial
com múltiplos significados possíveis. Uma
história do corpo deve buscar dar conta dos
processos de aprendizagem dos gostos,
no seu duplo sentido de percepções
como de juízos. Médicos e cozinheiros
temperaram dietas para equilibrar humores
e temperamentos e hoje em dia, cada
vez mais, essas artes dos cuidados de
si se tornam uma esfera irredutível das
tensões entre a autonomia e a heteronomia
existenciais.
É historiador, bacharel, mestre e doutor em
Esta exposição buscará tratar dos paralelos
História Social pela USP. Realizou estágios
e analogias entre alimentos, bebidas e
acadêmicos na França e na Rússia. Foi
drogas como substâncias “psicosomativas”
durante cinco anos (1998-2003) professor
que o corpo assimila e que lhe conferem
na UFOP (Universidade Federal de Ouro
identidades e fronteiras, cujas localizações
Preto). Atualmente é professor na cadeira
e metamorfoses constituem um território
de História Moderna no Departamento
por excelência da expressão estética e da
de História da USP (Universidade de São
navegação psiconáutica.
Paulo). Publicou seis livros e diversos
artigos para jornais e revistas acadêmicas.
O tema central desta exposição é a analogia
Sua linha de pesquisa atual aborda a
existente entre comidas, bebidas e drogas.
história da alimentação, das drogas e das
Em primeiro lugar, são os únicos produtos
bebidas alcoólicas.
que o corpo ingere, assimila por todos
os orifícios possíveis, inclusive, no caso

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Henrique Carneiro | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

dos ungüentos e bálsamos, pelos poros microscópicos da pele. Digamos que os


perfumes e os cosméticos, cremes e óleos para a pele envolvem o corpo, mas não
são por ele incorporados como parte de sua própria substância.

Alimentos, bebidas e drogas além de serem experiências sensoriais, estéticas ou mesmo


religiosas, são produtos materiais, com uma substancialidade própria que deverá ser
incorporada à substancialidade do corpo, como nutriente ou agente farmacêutico, como
droga ou remédio, a diferença residindo, como dizia Galeno, em que o corpo vence o
alimento, mas a droga vence o corpo.

O paralelo estrutural entre drogas e alimentos reside assim, em primeiro lugar, no fato de
que na maior parte das vezes são os mesmos produtos, sua fronteira é fluida e a diferença
muitas vezes é uma peculiaridade cultural. Como já dizia Hipócrates, fazer do alimento um
remédio e do remédio um alimento é um preceito antigo.

Assim, folhas de coca, de cat ou de betel, nozes de cola ou de areca, flores de maconha
ou de camomila, folhas de chá ou de erva mate, leite de papoulas, bebidas fermentadas ou
destiladas de frutas ou cereais, sementes torradas de cacau ou de café são todos produtos
que partilham com o próprio açúcar e as especiarias a condição de alimentos-droga, na
expressão que Sidney Mintz consagrou em seu livro sobre a “doçura e o poder”.

Na longa tradição da medicina humoral, todos os alimentos agem como drogas. Dessa
forma, o médico e o cozinheiro sempre trabalharam com o mesmo repertório de produtos
e a mesma cosmovisão: a doutrina dos humores e sua correspondência universal com os
elementos, as estações, as fases da vida, as cores, os órgãos e os temperamentos.

Como lembra Massimo Montanari em seu livro Comida como cultura, a dieta ao longo
de quase dois milênios foi um preceito médico que visaria a obtenção do equilíbrio dos
humores. Por isso a ordem dos pratos, a combinação dos ingredientes e até mesmo
a estação do seu consumo são centrais para se determinar a correção ou não de uma
combinação de alimentos que, assim como as drogas, podem ser secos ou úmidos e frios
ou quentes em diversos graus (por isso se habituou a comer queijo junto com a fruta ao final
da refeição, e por isso as bebidas fermentadas e destiladas, as especiarias, o açúcar, o café
e o chá tiveram todos a reputação de substâncias quentes e secas e, portanto, benfazejas
e terapêuticas).

A própria origem holandesa da palavra “droga” indicaria sua condição de coisa seca. Os
temperos devem servir para equilibrar adequadamente as temperaturas produzindo o bom

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Henrique Carneiro | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

temperamento.

Mas os alimentos também se comparam às drogas no que se refere à sua condição de


produtores de experiências sensoriais, são experiências não apenas “gustativas” ou
“aromáticas”, mas “experiências totais” que congregam todos os sentidos e não apenas
os aspectos sensoriais como também os cognitivos e afetivos ou emotivos. Por isso
são essencialmente estéticos e “sinestésicos”, combinando sensações e agindo como
marcadores temporais ao evocar recordações e revivências (como nas madeleines de
Proust). E por isso também se combinam tão bem com drogas constituindo sistemas não
apenas alimentares, mas também psicoativos (ou melhor dizendo, psicosomativos): comer,
beber e fumar faz parte de um complexo de estimulações estéticas, sensoriais e cognitivas
que se tornou parte de um conjunto de convenções das formas de se servir: o aperitivo
alcoólico antecede as refeições e também as acompanha, ao seu término são usadas
drogas “digestivas” como café, licores, tabaco, coca, betel, chimarrão, etc, apurando
gostos e encenando situações de grande teatralidade que constituem o objeto de uma
“etnocenologia”.

O gosto assume assim, a acepção não só da experiência sensorial direta, causada por um
alimento, uma bebida ou uma droga, como também do juízo intelectivo sobre essa sensação,
ou seja, julga-se se é um bom ou mau gosto, num sentido empírico, mas, sobretudo cultural.
Assim, podemos dizer que há um gosto do sabor e um gosto do saber.

Como experiências sensoriais, o único critério legítimo de julgamento sobre elas é subjetivo,
ou seja, the proof of the puding is to eat. Essa condição “experimentalista” dos consumos
de alimentos, bebidas e drogas faz da sua escolha um espaço de exercício das margens
de liberdade em relação à produção de si mesmo, ou seja, em relação à livre disposição
do próprio corpo e da própria mente. Por isso, expressões idiomáticas que indicam uma
predileção qualquer costumam usar a metáfora das drogas e do alimento: ao dizermos, por
exemplo, isso é a “minha cachaça”, com o significado de coisa muito querida (o equivalente
em inglês seria “my cup of tea” ou mesmo “spice of life”).

Produzir-se a si mesmo é o que mais caracteriza a condição da humanidade. Tal consciência


emergiu de forma notável na época renascentista, quando Pico de la Mirandola definiu o
homem como o “eterno camaleão” que pode se plasmar como anjo ou como besta. Assim
se educam os sentidos, se aprendem os efeitos das plantas, se conhecem os produtos que
alimentam a sensibilidade. Os consumos humanos são, portanto, “técnicas do corpo”, na
acepção de Marcel Mauss, ou “tecnologias de si”, como definia Michel Foucault.

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Henrique Carneiro | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

Os gostos são aprendidos, como lembra Stephen Mennel, em All Manners of Food, da
mesma forma que o efeito das drogas (citando o clássico Becoming a Marijuana User, de
Howard Becker). Nesse sentido, podemos dizer que o “efeito” dos alimentos, assim como
das drogas, não é só um reconforto da carência de nutrientes, a impressão pura de estímulos
gustativos e olfativos ou a alteração específica da disponibilidade de neurotransmissores,
mas uma experiência carregada de sentidos coletivos, de significados culturais, entre os
quais o da intensa simbolização e uso como linguagem classificatória.

Talvez nas sociedades industriais contemporâneas a distinção mais marcante que subsiste
entre uma visão estereotipada do que seja alimento e do que seja droga diga respeito à
“densidade moral” dos atos praticados. O do consumo de alimentos, secularizados os
tabus religiosos e abstraídos os critérios auto-limitadores (como o dos vegetarianos, por
exemplo) é de uma densidade moral baixa no que se refere tanto à qualidade como à
quantidade. Podem-se comer qualidades de coisas pouco consensuais sem por isso perder
o respeito ou a reputação, assim como se pode comer muito, até demasiadamente, sem
maior reprovação do que aquela que a condição da obesidade produz de um ponto de
vista estético. Os critérios do “bom-gosto” e do “mau-gosto” regem um campo que, em
última instância, como reza o provérbio de gostibus non est diputandum, pertence à esfera
da liberdade na escolha do estilo de vida. O consumo de drogas já possui outra densidade
moral, pois as alterações de consciência que se produzem podem ser muito intensas e
ameaçadoras do autocontrole, de tal forma que na sociedade contemporânea seu uso não
foi ainda “secularizado”, remetido à esfera das opções da vida privada, mas permanece
vigiado pela tripla carga que lhe é atribuída de “crime”, de “pecado” e de “doença”.

Os alimentos podem ser analisados a partir da metáfora com a linguagem (como propôs
Lévi-Strauss e Montanari comenta nesse seu livro mais recente), sendo seu repertório de
produtos o léxico, as combinações possíveis nos pratos ou nas refeições a sintaxe e as
formas de preparar e de servir em todo seu ritual a retórica. Da mesma forma, podemos
pensar uma gramática das drogas que como a gastronomia, incorpore não só a noção
médica da dieta, mas também o critério estético do gosto educado. No campo das bebidas,
isso já ocorre tanto na especialização enológica ou de outras variedades de bebidas como
nos usos simbólicos, especialmente identitários, das preferências étnicas, regionais ou
nacionais (vide a idéia das bebidas “nacionais”).

Qual seria a gramática das drogas, no seu sentido mais genérico?

Evitar os extremos da bulimia e da anorexia, da obesidade ou da abstinência excessivas


continua sendo, depois de ao menos dois mil anos de formulação dos princípios da

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Henrique Carneiro | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

temperança como a virtude do ponto mediano, do equilíbrio, o grande pressuposto normativo


que estabelece, em cada cultura, os limites e fronteiras ao permissível, ao desejável e ao
inaceitável no que se refere ao comportamento dos consumidores de drogas, assim como
de alimentos e bebidas.

Dissemos que, supostamente, as drogas comprometem mais a capacidade de autogoverno


dos indivíduos, mas os alimentos também viciam, e a compulsão no seu uso vem sendo
talvez a fonte dos maiores problemas de saúde coletiva de nossa época.
Como analisaram antropólogos como Mary Douglas e Dwight Heath, os problemas ligados
ao consumo de bebidas alcoólicas são minoritários em relação aos usos integrados,
“construtivos”, existentes em quase todas as sociedades, que fazem das bebidas, drogas
e alimentos um consumo não só ritualizado e útil, mas com grandes características de
consumo “conspícuo”, ou seja, exemplar, modelar.

Por isso os brindes, os banquetes, os festejos são sempre mediados por usos ritualizados
de bebidas alcoólicas, especialmente o champanhe.

Um princípio central que permanece subjacente à experiência com os usos de alimentos,


bebidas e drogas é que o seu uso puramente estético ou cognitivo, “gastronômico” ou
“gastrosófico”, é muito recente, sucedendo a um modelo ocidental dietético médico-moral
e a diversas formas de sacralização. O Iluminismo já foi definido por Kant, como o direito
ao “debate público da razão”. Se no terreno do pensamento e da expressão das idéias
demarcou-se um campo definidor do sentido da própria liberdade, no campo dos costumes
as conquistas de autonomia e liberdade de escolha são mais recentes. No campo do
exercício da sexualidade, o final do século XX conheceu uma grande ampliação do próprio
conceito e abrangência dos direitos humanos.

No campo da alimentação, a laicização trouxe o direito de se comer o que se quiser da


forma que se preferir (mantidas as restrições apenas ao canibalismo e ao consumo de
certos animais que no Ocidente ainda são tabu alimentar, como cães, por exemplo). O
fim das tentativas de proibição das bebidas alcoólicas, levadas a cabo não só durante a
Lei Seca estadunidense de 1920 a 1933, como também nos regimes fascista e nazista da
Alemanha e Itália, deixou tais restrições vigentes apenas em alguns países islâmicos. O
consumo de drogas permanece, contudo, sob o mais severo dos controles estatais sobre
comportamentos e condutas íntimas e privadas.

Não deveríamos caminhar para uma equiparação dos estatutos de legitimidade em


relação aos produtos dos consumos corporais, em que alimentos e drogas deixassem

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Henrique Carneiro | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

de ser distinguidos essencialmente, e em que ambos os tipos de produtos se vissem


normatizados por controles mais autonômicos, comunitários e estéticos, do que por
coerções heteronômicas e repressão massiva?

Henrique Carneiro

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

Cheiros, ruídos e texturas.

Ingerir alimentos responde a uma das Paula Pinto e Silva


exigências naturais do corpo humano. Antropóloga | São Paulo
Cozê-los, no entanto, envolve a elaboração
e ordenação da própria natureza que, por
sua vez, implica em reconhecimento de
padrões sociais, econômicos, religiosos
e não puramente alimentares. Fazendo
uma analogia com a linguagem, tal como
propõe o antropólogo Claude Lévi-Strauss,
a cozinha seria, portanto, parte, condição
e produto de uma cultura, possibilidade
de transmutar entre o mundo anônimo
da natureza para o mundo particular da
cultura.
Mestre e doutora em Antropologia Social
Assim, se a descoberta do fogo e o surgi-
pela USP. Autora do livro Farinha, feijão
mento da cozinha marcam a emergência
e carne seca. Um tripé culinário no Brasil
da humanidade, a oposição entre cru e
colonial, SP, SENAC, 2005 (vencedor do
cozido pode revelar também uma outra
“Gourmand World Cookbook Awards
oposição, a da ausência ou presença
2005”, categoria Melhor livro de História
da culinária. A culinária, por sua vez,
da Culinária). Organizadora do livro Arte de
prescinde de outros dados que pertencem
cozinha de Domingos Rodrigues, RJ, Senac,
à lógica da sensibilidade, tais como as
2008. Desde 1997, é uma das editoras da
cores, os cheiros, os ruídos, as texturas.
revista Sexta Feira – Antropologia, Artes e
Corte em pequenos pedaços uma cebola
Humanidades, editada em parceria com
branca e crocante; descasque uma manga
a Editora 34. É sócia-diretora da Pletora
cheirosa e macia; coma sem fazer barulho.
Pesquisa e Realização, empresa de
Mas quem é que fala disso ao descrever
pesquisa especializada em Antropologial.
uma receita? Quem de nós já ouviu
Desde 2007 é professora da ESPM – SP
| 33
Paula Pinto e Silva | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

alguma dessas regras ao explicar uma receita? Como é possível definir algo que a
ciência moderna classificou como uma “qualidade secundária” – os sentidos - em
detrimento de uma “realidade objetiva”, que não dependeria dos sentidos nem da
subjetividade?

Categorias como doce, ácido, amargo ou salgado são muitas vezes reivindicadas como
próprias a cada pessoa. Mas as preferências alimentares não são um problema puramente
individual ou uma simples variação de gosto, ocorrida ao acaso; são, antes, formas de
compartilhar de um mesmo grupo social, que selecionou e aprendeu a comer determinados
alimentos e não outros. Todos nós conhecemos alguns hábitos alimentares aparentemente
irracionais, como a predileção dos chineses pela carne de cachorro, o uso do abacate
nas saladas ou sanduíches e pratos salgados pela maior parte dos povos latinos ou o
gosto particular por formigas assadas, disseminado entre alguns povos indígenas no Brasil,
hábito ainda presente no interior de São Paulo. Mas o que explica o fato de que algumas
pessoas gostem e outras detestem o mesmo alimento? Há um valor social conferido aos
alimentos, que também diz respeito ao status de quem come, de quem oferece a comida,
de quem serve. Neste sentido, entende-se que o paladar não é simplesmente uma versão
pessoal de um gosto particular. Trata-se, na verdade, de uma construção cultural, que ajuda
a contar uma história, a escrever um passado, a definir um presente e, porque não, a eleger
um futuro.

Aprendemos a comer o que comemos. Aprendemos a sentir nojo, desejo, prazer, satisfação
com um determinado prato ou cheiro de comida. Há, portanto, uma lógica simbólica maior
que organiza a procura por certos alimentos e que condena outros a virar tabu, ou a serem
desprezados ou pouco utilizados. É o caso das tripas, dos miolos ou dos intestinos da carne
de vaca, jogados fora ou vendidos a preço de banana no Brasil atual. Sem ir muito longe,
é o mito criado para a feijoada, de que foi concebida nas senzalas, com as sobras de tudo
o que os senhores de engenho não gostavam ou não queriam comer: rabo, orelha, pés,
gordura. Mas em algum momento paramos para pensar que os homens ricos desta época
apreciavam tais “partes” que agora consideramos menos nobres? Em algum momento
paramos para pensar que uma vaca não fornece apenas filé, lagarto e maminha, mas
também rins, língua, fígado e testículos? O que fazemos com todos eles? É preciso, então,
entender como o gosto e o apetite de grupos distintos foram se desenvolvendo ao longo
das diferentes fases de sua própria história e como eles se relacionam entre si. Para tanto,
é necessária uma etnografia da cozinha, que deve compreender todos os aspectos da
refeição e suas regras, tais como a escolha dos alimentos de acordo com a fauna e a flora
locais, os modos de cozinhar, os sabores, as texturas, as combinações entre os pratos, o
comportamento dos indivíduos, a etiqueta, o protocolo e o serviço. Se estivermos atentos

| 34
Paula Pinto e Silva | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

a tudo isso, a comida poderá ser enfim pensada como um código que fornece inúmeras
possibilidades de mensagens particulares, nas quais se pode expressar hierarquia, inclusão,
exclusão, transgressão e limites sociais.

Paula Pinto e Silva

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Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

A gastronomia como arte da desnaturação

Os freqüentadores do Madrid Fusión Carlos Dória


2007 tiveram a oportunidade de assistir Sociólogo e Gastrónomo | São Paulo
a um desabafo do celebrado chef Santi
Santamaría: “A verdade da cozinha é
cozinhar, cozinhar e cozinhar. Não creio na
cozinha científica nem na intelectualização
do fato culinário. Não me importa saber o
que ocorre com o ovo quando o frito, só
quero que fique bom”.

Esta declaração, claramente um ataque à


culinária de Ferran Adrià, soou como um
grito de guerra contra a culinária molecular
e evidenciou uma cisão na gastronomia
espanhola. Mas o mais extraordinário – É sociólogo, doutor em sociologia no
e não tão destacado pela imprensa - foi IFCH-Unicamp e autor de “Ensaios
o modo como Santamaria, no mesmo Enveredados”, “Bordado da Fama” e “Os
desabafo, situou o seu ofício: “nós somos Federais da Cultura”, entre outros livros.
um bando de farsantes, que trabalhamos Acaba de publicar “Estrelas no Céu da Boca
por dinheiro para dar de comer aos ricos e - Escritos Sobre Culinária e Gastronomia”
aos esnobes”. (ed. Senac).

Ora, a declaração de Santamaria aponta


duas questões críticas no quadro atual
da gastronomia mundial: a) os limites do
trabalho de desnaturação, empreendido
pela vanguarda culinária; b) os limites de
classe da fruição gastronômica.

Não é difícil reconhecer que a gastronomia

| 36
Carlos Dória | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

moderna possui uma dinâmica autofágica. Ela transformou no seu maior atrativo não
uma coleção de sabores, ou um conjunto de técnicas, mas a capacidade de inovação,

isto é, de destruição e regeneração dos seus próprios valores. Para realizar esse modelo ela
tem, teoricamente, dois caminhos. De um lado a descoberta e incorporação de matérias-
primas inéditas; de outro, tratamentos inéditos de matérias-primas conhecidas. Ao associar
os dois aspectos, a gastronomia espanhola de vanguarda, tendo à frente Ferran Adrià, vem
ditando por um bom tempo as tendências desse mercado e as declarações de Santamaría são
um convite para se refletir sobre os limites desse modelo de desenvolvimento da gastronomia.

Limites do modelo Adrià

Após tomar conhecimento da gastronomia molecular, Adrià pôde dedicar-se criativamente


ao desenvolvimento do seu próprio estilo, no qual procurou conciliar o aspecto mediterrâneo
da culinária requerida em seu país, o desenvolvimento técnico e uma criatividade singular.
Deixando de lado este último aspecto, ou aquilo que é absolutamente pessoal na criação,
está claro que o desenvolvimento da gastronomia de vanguarda foi altamente favorecido
por um forte investimento público nesta esfera da cultura, cujo objetivo era recriar um
campo de diferenciação entre os vários povos da Espanha. Bascos, catalães e tantos outros
se valeram da língua, das artes e da culinária para restabelecer diferenças que haviam
sido sufocadas durante o franquismo. No tocante ao desenvolvimento da gastronomia,
a montagem de restaurantes e as pesquisas sobre equipamentos contaram com apoio
público persistente, de organismos estatais e privados e até de universidades, criando
um campo forte de desenvolvimento que, com o tempo, resultou em inovações em várias
direções. Nesse sentido, o trabalho de Adrià foi apenas uma “antena” a indicar a direção
dos esforços coletivos, cujos resultados atestam a justeza e acurácia de sua intuição.

Seria necessário dispor de um estudo mais detalhado sobre a relação entre o processo
de takeoff da gastronomia espanhola e a retomada dos investimentos públicos em várias
esferas da cultura, mas parece óbvio que a linha de desenvolvimento que ela seguiu deve
muito ao reconhecimento da tecnologia como motor de desenvolvimento do mundo atual.
O modelo que Adrià arquitetou para o seu El Bulli tem no centro do processo criativo o taller,
hoje substituído pela Fundación Alicia, e a recente publicação do seu Léxico científico-
gastronômico mostra a pretensão de estabelecer as ações de pesquisa e desenvolvimento
de origem científica como um departamento da gastronomia, isto é, desenvolver aplicações
das ciências no campo da gastronomia, que a gastronomia molecular abandonou ao entrar
na sua segunda fase (restrita à modelização de receitas e ao estudo das precisions).

| 37
Carlos Dória | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

A expressão desse tipo de preocupações numa gastronomia que dramatize o tema da


inovação, tomando-o como um fluxo permanente de novidades ou surpresas, sempre
esbarrará nos limites do próprio desenvolvimento técnico e tenderá a se expressar em
produtos onde a marca da desnaturação será sempre forte. Em outras palavras, a pesquisa
técnica e tecnológica fará avançar o domínio sobre a naturalidade das matérias-primas,
permitindo apresentá-las em artefatos e arranjos novos, cada vez mais distantes da sua
origem. Não é de estranhar, portanto, que se procure situar o sentido dessa gastronomia no
terreno das artes, visto que ela já não encontra fundamento no terreno da natureza.

Carlos Dória

| 38
Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

Entrevista com Norval Baitelo

O que alimenta seu interesse Norval Baitelo


intelectual? Teórico da comunicação | São Paulo

É doutor em Ciências da Comunicação e


FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O
Literatura Comparada pela Universidade
TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO
Livre de Berlim e professor na Pós-
FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA
Graduação em Comunicação e Semiótica
O TEXTO FALTA O TEXTOmo Santamaria,
da PUC-SP. Foi diretor da Faculdade
no mesmo desabafo, situou o seu ofício:
de Comunicação e Filosofia da mesma
“nós somos um bando de farsantes, que
Universidade, tendo criado os cursos
trabalhamos por dinheiro para dar de comer
de Comunicação e Artes do Corpo e
aos ricos e aos esnobes”.
Comunicação em Multimeios. Fundou o
Centro Interdisciplinar de Pesquisas em
Semiótica da Cultura e da Mídia. Autor dos
Onde procura este alimento?
livros: O Animal que Parou os Relógios,
Dadá-Berlim: Des/Montagem, A Era da
FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O
Iconofagia: Ensaios de Comunicação e
TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO
Cultura e Os Meios da Incomunicação.
| 39
Norval Baitelo | Saber o Sabor / Sabor do Saber | Mesa 1 [ F.A.q.2 ]

FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO
FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO Não é difícil reconhecer que a gastronomia moderna
possui uma dinâmica autofágica. Ela transformou no seu maior atrativo não uma coleção de
sabores, ou um conjunto de técnicas, mas a capacidade de inovação, isto é, de destruição
e regeneração dos seus próprios valores. Para realizar esse modelo ela tem, teoricamente,
dois caminhos. De um lado a descoberta e incorpo

Quais os quitutes que seu trabalho oferece?

FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O
TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO
FALTA O TEXTO mo Santamaria, no mesmo desabafo, situou o seu ofício: “nós somos
um bando de farsantes, que trabalhamos por dinheiro para dar de comer aos ricos e aos
esnobes”.

Ora, a declaração de Santamaria aponta duas questões críticas no quadro atual da


gastronomia mundial: a) os limites do trabalho de desnaturação, empreendido pela vanguarda
culinária; b) os limites de classe da fruição gastronômica.

E os ossos duros de roer?

FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O
TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO FALTA O TEXTO mo Santamaria, no
mesmo desabafo, situou o seu ofício: “nós somos um bando de farsantes, que trabalhamos
por dinheiro para dar de comer aos ricos e aos esnobes”.

Ora, a declaração de Santamaria aponta duas questões críticas no quadro atual da


gastronomia mundial: a) os limites do trabalho de desnaturação, empreendido pela vanguarda
culinária; b) os limites de classe da fruição gastronômica.

Norval Baitelo

| 40
MOSTRA Objetos Para Ação | Elcio Rossini | Performance | 26/11/2008 às 16:45

| 41
Mostra [ F.A.q.2 ]

Objetos Para Acão | Performance

Na performance que apresentei na mostra Elcio Rossini


[F.A.q 2] Sincretismo dos Sentidos trabalhei Artista | Rio Grande do Sul
com objetos que eu já havia utilizado – os
Infláveis formas que se enchem de ar pelo
movimento do corpo e um conjunto de
balões cheios de água e ar suspensos por
fios de nylon. Os fios quando esfregados
produzem ruídos estridente que são a
sonoridade da performance.

Esta performance faz parte de um conjunto


de trabalhos que chamei de Objetos
para ação, nos quais forma e movimento
do corpo interceptam-se. São objetos
que vivem da transitória efemeridade do
É artista plástico, diretor de teatro e professor
instante, respiram e animam-se com o
do departamento de Artes Dramáticas da
movimento do corpo. Quando separados,
UFRGS. Seu trabalho investiga os meios e
objeto e movimento, o que podemos ver
procedimentos diversos para tratar o tempo
são apenas potencialidades, latências.
e as relações entre forma e ação. Entre seus
trabalhos de direção teatral estão: Parque
Nos objetos Infláveis o ar capturado é
extremo de diversões, Passagem para
a matéria que se deixa modular. O que
Java, As traças da paixão e Entre quatro
o aprisiona é um fino tecido com cores
paredes. Participa, juntamente com outros
vibrantes. O ar, esse elemento sem corpo
artistas, do projeto Arte Construtora que
visível, deixa-se ver porque assume a
vem realizando intervenções em paisagens
configuração da forma que o contém, e
e espaços arquitetônicos em todo Brasil.
o objeto que o captura torna-se inflado,
Em 2004, realizou a exposição individual
mole. O objeto ergue-se repleto de ar, para
Trama, na Galeria Xico Stokinger, em Porto
em seguida cair pesado sobre o chão,
Alegre.
que o acolhe. No chão, sem o ar que lhe

| 42
Elcio Rossini | Objetos Para Ação | Mostra [ F.A.q.2 ]

empresta o volume, ele achata-se até ser apenas um plano de cor.

O objeto não tem ele mesmo a capacidade de capturar o ar que está em todo o espaço.
É o movimento do corpo que conecta ar e objeto. O corpo movimenta-se, desloca-se pelo
espaço, desarruma o ar e agita a serenidade invisível de sua presença. O corpo sente o
ar, mas não o vê, respira, mas não o vê e, assim como a forma manipulada, está sempre
enchendo e esvaziando. O corpo, ligando essas duas naturezas, objeto e ar, desdobra
cores, formas, ritmos e durações.

Tantos olhares olham esses objetos e suas formas mutantes, para neles verem criaturas
marinhas, balões de gás, reis, rainhas, serpente, dragão, farto vestido, capa, anêmona,
bola, coelho, casa, casulo. Formas que o ar e o olho de quem vê distorce. O que os olhos
vêem nesses volumes e que insiste em se desfazer? Formas breves que o corpo conduz
pelo espaço. As formas nunca são as mesmas, por mais que o corpo movimente-se com
precisão repetindo o mesmo gesto escolhido. É o olhar que dilata esses corpos e amplia
suas formas para o espaço particular da imaginação.

É o movimento do corpo que conecta ar e objeto. O corpo movimenta-se, desloca-se pelo


espaço, desarruma o ar e agita a serenidade invisível de sua presença. O corpo sente o
ar, mas não o vê, respira, mas não o vê e, assim como a forma manipulada, está sempre
enchendo e esvaziando. O corpo, ligando essas duas naturezas, objeto e ar, desdobra
cores, formas, ritmos e durações.

Tantos olhares olham esses objetos e suas formas mutantes, para neles verem criaturas
marinhas, balões de gás, reis, rainhas, serpente, dragão, farto vestido, capa, anêmona,
bola, coelho, casa, casulo. Formas que o ar e o olho de quem vê distorce. O que os olhos
vêem nesses volumes e que insiste em se desfazer? Formas breves que o corpo conduz
pelo espaço. As formas nunca são as mesmas, por mais que o corpo movimente-se com
precisão repetindo o mesmo gesto escolhido. É o olhar que dilata esses corpos e amplia
suas formas para o espaço particular da imaginação.

Elcio Rossini

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MOSTRA D.A.M. - Continuum | Roberto Ramos | Performance | 27/11/2008 às 16:45

| 44
Mostra [ F.A.q.2 ]

D.A.M. - Continuum | Performance

Continuum é uma obra criada a partir da Roberto Ramos


percepção, onde espaço, tempo, corpo e Artista | São Paulo
objeto integram- se em uma lógica própria,
reconhecida através do estado sensorial
que se faz presente durante sua execução.
A idéia fundamental é ordenar a ação dentro
de estruturas aleatórias, identificadas
através da observação de uma situação
cinética especifica. Portanto, a estrutura do
trabalho é determinada pelas características
cinéticas dos objetos utilizados. Esses
objetos, quando impulsionados, descrevem
círculos, curvas e espirais. Da percepção
do deslocamento circular são geradas
possibilidades aleatórias, que estimulam
Tem participado do cenário da dança
o performer a encontrar novas respostas
contemporânea brasileira, desenvolvendo
e direções na circunstância a qual está ao longo dos últimos anos, uma linguagem
inserido. Assim, forma-se um ciclo, onde cênica de caráter inovador e experimental.
o objeto não é apenas um elemento que Tendo como foco principal a construção
cria uma forma ou estrutura no espaço, e a percepção sensorial do movimento, o
mas também, o causador do próprio artista desenvolve sua pesquisa a partir
da observação de situações cinéticas
movimento do performer. Objeto, corpo,
específicas, relativas às questões de
espaço, aleatoriedade e escolha tornam-se espaço, tempo e gravidade. Do trabalho
um só corpo híbrido, integrando todos os realizado em colaboração com o irmão
elementos em um mesmo fluxo contínuo. Gustavo Ramos, também artista e
pesquisador, surgiu a iniciativa de fundar
Dessa forma, o que acontece no espaço o D.A.M. - Desenvolvimento Anímico do
externo é apenas uma reação ou reflexo Movimento.
direto da soma dos elementos gerados
e visualizados no espaço interno do

| 45
Roberto Ramos | D.A.M. Continuum | Mostra [ F.A.q.2 ]

performer. O processo ocorre através da leitura precisa de todo esse conjunto e das situações
de casualidade que se formam, pois embora haja algumas estruturas de organização da
peça, o performer não pode definir com certeza, que tipo de resposta ou seqüência de
movimentos irá realizar, já que o objeto usado na interação desenvolve trajetórias pouco
previsíveis. A todo o momento, a escolha de cada performer determina as possibilidades de
escolha de todo o grupo. As linhas descritas espacialmente pelo objeto ou pelo corpo são
efêmeras, e a todo o momento se diluem no espaço. Cada ação, linha ou forma descrita se
dissolve constantemente, dando espaço às próximas que estão por vir, numa estrutura de
composição transitória. Assim, a casualidade torna-se um fator constantemente presente,
pois ao mesmo tempo em que direciona a construção do trabalho, o qual lida com questões
dimensionais e temporais, ela determina sua própria presença por este mesmo processo.

A integração do grupo em um mesmo fluxo de movimento circular e contínuo cria a sensação


da possibilidade de expansão da ação e do espaço ao infinito.

Roberto Ramos

Ficha Técnica

Direção Concepção - Roberto Ramos


Desenvolvimento - Gustavo Ramos e Roberto Ramos
Trilha Sonora - Gustavo Ramos
Objetos e Instrumentos Cênicos - Roberto Ramos
Performance - Catalina Cappeletti, Gustavo Ramos e Roberto Ramos
Produção - Zizi Giraud
Patrocínio - Petrobras

Duração: 60 minutos
Website: www.dam.art.br

| 46
[
[ F.A.q.2 ]

[ [
Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2

Mesa 2 - Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos


Jennifer Kanary | Psicótica Labiríntica, Uma Conspiração dos Sentidos
Mike Phillips | Data senso

Entrevista | Roy Ascott


faltam as fotos

| 47
Detalhe da performance Objetos Para Ação de Elcio Rossini
[ F.A.q.2 ]

Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2

Relato | Tetê Tavares

A Mesa “Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos” foi dedicada à reflexão sobre a experiência
sensorial no fazer artístico. Com esse objetivo, os artistas Jennifer Kanary e Mike Phillips,
membros do Planetary Collegium, foram convidados a expor seus trabalhos para,
posteriormente, responder às indagações de Roy Ascott e do público. Como já previa o
título da mesa, esta discussão não poderia acontecer sem que se trouxesse à superfície
questionamentos sobre o próprio sentido da arte, assunto que foi amplamente discutido
durante o debate.

Antes de apresentar os membros da mesa, Sérgio Basbaum, um dos curadores do evento,


informou a ausência de Michael Punt e Lucia Koch, artistas cujos nomes constavam na
programação original mas que não puderam comparecer.

“Sala de Pensar” (roomforthoughts): Labirinto Psicótico, uma conspiração dos


Sentidos

Jennifer Kanary (Holanda/Canadá) é artista e curadora independente, além de membro do


Planetary Collegium. No trabalho Roomforthoughts [http://www.roomforthoughts.com],
parte da crítica à psiquiatria feita por Wouter Kusters para tentar recriar a experiência
sensória de um psicótico em uma instalação interativa. Duas questões dão o norte à sua
pesquisa: “Poderá uma experiência artística fornecer novas maneiras de entender algo que
é tão difícil de se descrever? Que ferramentas deverão ser utilizadas para isso?”

Em sua apresentação, buscou as respostas através da análise de um simulador de psicose


- na verdade um projeto de realidade virtual para fins psquiátricos criado pela empresa
Jansen Cilag. Como resultado desta análise, a artista listou as preocupações necessárias
para o desenvolvimento de um labirinto interativo multi-sensorial onde o interator possa
experimentar as sensações provocadas pela psicose. Ao final de sua exposição, Jennifer

| 48
Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

deixou em aberto a questão: “pode esta proposta ir além de apenas uma ilustração da
psicose?”

Data-sense (inserir título do paper em português)

Mike Phillips (Reino Unido) é artista, orientador no Planetary Collegium, diretor do i-DAT
[http://www.i-dat.org] e também está à frente do Nascent Art & Technology Research Group
[www.nascent-research.net]. Sua pesquisa explora as relações entre percepção e informação
em projetos transdisciplinares como o Arch-OS, um sistema que pretende dar “vida” a um
edifício ao capacitá-lo a responder aos padrões de comportamento de seus usuários, e o
S-os.org, um “sistema de operação social” (uma brincadeira com sistemas operacionais
como Windows ou MAC OS) que busca medir a qualidade de vida dos habitantes da cidade
de Plymouth através de suas interações sociais.

Em sua fala, analisou esses e outros projetos interativos que lidam com a materialidade dos
dados computacionais, considerados por ele como o lixo da sociedade contemporânea.
Como em uma espécie de reciclagem, nos trabalhos apresentados, a informação torna-se
tangível e ganha um propósito específico. Mais que isso, segundo ele, essas propostas
respondem a uma nova percepção humana que pode ser associada ao que Roy Ascott
chamou de cyberpercepção.

As relações de espaço e poder na arte

Para expandir a discussão iniciada pelos debatedores, Roy Ascott, artista, teórico e
fundador do Planetary Collegium analisou as intersecções entre os trabalhos apresentados
antes de expor suas próprias questões. A primeira semelhança na poética de ambos
os artistas, segundo ele, está na constante articulação entre a experiência privada e
comportamento público. A segunda, pode ser encontrada nas propostas de interação dos
projetos apresentados onde o artista asssume uma posição de poder e controla, em grande
parte, a experiência dos interatores. Sobre estas afirmações, Roy formulou sua primeira
pergunta: “Qual é a dimensão ética do trabalho dos artistas da mesa?”

Debate

Em resposta, Mike Phillips explicou que, no caso dos projetos por ele apresentados, o
engajamento público alcança uma posição que ultrapassa o poder do artista, não suscitando
assim grandes dilemas éticos. Jennifer Kannary, por outro lado, mostrou como essa
preocupação está fortemente presente em sua pesquisa. Segundo ela, a abordagem da

| 49
Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

psicose no trabalho artístico requer extrema sensibilidade e com frequência torna complexo
o entendimento de seus limites. Um fator agravante nessa questão é a recorrência do
distúrbio em nossa sociedade: 1 em cada 35 pessoas pode ser psicótica.

Continuando a discussão, Roy perguntou como Roomforthoughts relaciona-se com a


sociedade e como se diferencia de um projeto médico. Questionou, também, se o projeto seria
capaz de fazer com que os médicos repensassem o ambiente de cura. Complementando,
uma pessoa que estava na platéia comparou o trabalho de Jennifer ao de Lygia Clark,
considerada pioneira na interseção entre arte e terapia. Em resposta, a artista disse que
seu interesse principal está na produção de conhecimento e não de uma terapêutica.
Mesmo assim, afirmou sua vontade em trabalhar com pacientes institucionalizados e disse
acreditar que, através de seu trabalho, as arquiteturas sociais e organizacionais que cercam
esses pacientes possam ser repensadas. Por fim, a artista considerou que necessitaria,
primeiramente, ter a completa consciência das possibilidades oferecidas pelas ferramentas
de realidade aumentada, para somente depois pensar em seus usos terapêuticos.

Essas relações entre produção artística e terapia fizeram eclodir uma discussão sobre a
utilidade da arte. Sérgio Basbaum, para colocar o assunto em pauta, citou Oscar Wilde:
“Toda arte é absolutamente inútil.” Depois, perguntou: a arte, que atualmente sofre a
pressão de ser útil, tem uma função social ou sua função é não ter função? Para Roy
Ascott, a inutilidade é um conceito muito importante, mas subestimado. Mike Phillips citou
uma função testada no projeto Arch-OS, aparentemente inútil, onde um botão em um
elevador levava seus passageiros a um andar randômico em um edifício. Segundo ele, essa
experiência mostrou-se como uma ótima ferramenta de interação social ao possibilitar uma
nova experiência da arquitetura e o contato com outras pessoas. “É a utilidade do inútil”,
comentou Roy. De outra perspectiva, Jennifer partiu da justificativa de seu trabalho, que
nasce de uma necessidade de contribuir com a sociedade, fazer perguntas e encontrar
novos significados, para defender a utilidade da arte. “Quando um artista faz perguntas, às
vezes ultrapassa fronteiras que nem pensava existir”, - explicou. Além disso, afirmou que
uma das questões que impulsiona seu trabalho atualmente é a investigação do significado
de usuário – outro ponto em comum com o trabalho de Lygia Clark, que investigava o
conceito de espectador-participante. Lali Krotoszynski, idealizadora e curadora do evento,
que estava na platéia, concordou com Jennifer: “Uma utilidade na minha arte é a de fazer
perguntas, reinventar o mundo, e é por isso que existe este evento que se chama F.A.q.,
Frequently Asked Questions”. Um participante na platéia resumiu a discussão: a arte pode
não ser funcional mas não é inútil.

Tetê Tavares

| 50
Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

Psicótica labiríntica, uma conspiração dos sentidos

Em seu premiado livro de 2004, Pure Jennifer Kanary


madness: A Search for the Psychotic Artista | Canadá/Holanda
Experience (Pura loucura: uma busca
pela experiência psicótica), o lingüista
Wouter Kusters tenta desenvolver uma
linguagem que seja capaz de articular o
que é ser psicótico . Kusters argumenta
que a psiquiatria é boa para suprimir,
controlar, curar e até mesmo prevenir a
psicose; mas que é leiga a respeito de
compreender e descrever a experiência
subjetiva da psicose. Partindo da crítica
de Kusters, podemos nos perguntar como
contribuir para um melhor entendimento
da experiência subjetiva da psicose se não Formada em design de moda (1994-1998)
possuímos nós mesmos as experiência e em artes visuais pela Academia de Arte
da psicose. Quais ferramentas podem ser de Maastricht, em 2000; além de mestre
utilizadas? Pode uma experiência artística pelo Instituto Sandberg, de Amsterdã, em
prover novos modos de entender algo tão 2002. A artista tem participado de diversos
difícil de descrever? projetos envolvendo as relações entre
arte e ciência, tendo sido artista residente
Na qualidade de uma artista que tenta no Museu Nacional de Psiquiatria, em
compreender a psicose ao construir Haarlem, nos Países Baixos, entre 2007
instalações, eu lido com a alteração de e 2008. Atualmente ela é doutoranda
sentidos, enquanto um dos aspectos centras do programa do Planetary Collegium e
da psicose. Como o psicanalista Fuller tutora do programa de Arte e Pesquisa da
Torrey explica, os sentidos são inundados, Universidade de Amsterdan e da Academia
“é como se o cérebro estivesse sendo Gerrit Rietveld, da mesma cidade. Todos os
bombardeado com estímulos externos seus trabalhos mais recentes são relativos
(sons e visões) e internos (pensamentos, à dinâmica psíquica do pensamento.

| 51
Jennifer Kanary | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

memórias)” (Torrey, 2006:9). É esta super-agudez dos sentidos e abundância de pensamentos


e significados engatilhados na psicose que, em minha opinião, faz a arte de instalação um
meio tão apropriado com o qual experimentar. Para realizar seu potencial a este respeito,
teríamos de olhar para a arte de instalação como um intrincado sistema de experiência
que é análogo à psicose (um sistema sendo um conjunto de entidades conectadas que
formam um todo complexo). Eu considero esta uma possibilidade, já que muitas instalações
combinam conceitos, espaço e multimídia para imergir o espectador em uma estrutura de
rede sensorial e contextual, no intento de criar uma experiência tanto física como mental.

Pavimentado com medo

Durante minha pesquisa tive a sorte de descobrir o simulador de psicose de Jansesn


Cilag, Paved with Fear (Pwf) [Pavimentado com medo], que, de certo modo, é uma grande
instalação multimídia, embora não seja uma artística. Janssen Cilag trabalhou com muitos
pacientes para desenvolver esta alucinação virtual, a qual eles afirmam demonstrar em um
nível prático o que uma pessoa em psicose pode enfrentar diariamente. Embora possa dizer
muitas coisas positivas sobre o PwF, após olhar mais de perto os aspectos cinemáticos e
dramatúrgicos do simulador, também creio haver espaço para muito aperfeiçoamento. Neste
paper denomino aspectos sensoriais da psicose que, em minha opinião, estão ausentes
ou reduzidos no PwF. Em minha pesquisa argumento a favor do uso da arte de instalação
nestes desenvolvimentos, em particular a arte de instalação que usa a forma arquitetural e
metafórica de um labirinto.

Ativo Passivo

Depois de visitar o PwF pude sentir o quanto sons caóticos me infiltravam diretamente e
tinham um efeito físico sobre mim. Mas o restante de minha experiência no PwF pareceu
ser uma mera ilustração de psicose. Meu papel como espectadora era muito passivo. De
acordo com Kusters, na experiência de psicose não se consegue distinguir entre experiência
que é criada pela doença e experiências “normais”. Psicose não é uma força externa, uma
que possa ser distinguida entre a pessoa que possui psicose e a psicose em si. A pessoa
é a psicose.

Medo e êxtase

O segundo aspecto que merece atenção é que o PwF põe seu foco exclusivamente na
experiência do medo, como o titulo sugere, ainda que muitos dos estágios iniciais da psicose
sejam positivos, como descrito por um dos pacientes de Torrey:

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Jennifer Kanary | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

De repente todo o meu ser foi preenchido com luz e afeição, com uma
explosão de sentimento profundamente comovente que vinha do meu
interior para encontrar e corresponder a influência que fluía para dentro
de mim. Eu me encontrava em um estado de mais vivida consciência e
iluminação (Torrey, 1983 [2006]: 11)

Para melhor compreendera experiência da psicose teríamos de criar uma experiência que
tenha o potencial de conter ambos os espectros de medo e êxtase.

Significado oculto

O terceiro aspecto e que na psicose há uma forte tendência a procurar significado em


tudo e aplicá-lo a própria pessoa. Onde a pessoa “normal” é capaz e filtrar significação da
variedade massiva de estímulos e eventos da vida cotidiana, o psicótico tende a interpretar
significância em tudo (Torrey, 1983 [2006]: 11; Kusters, 2004: 27). Como Norma MacDonald
escreve em 1960:

O caminhar de um estranho na rua pode ser para mim um sinal que


preciso interpretar. Todos os rostos nas janelas de um bonde que passa
estaria gravado na minha mente, todos eles concentrando-se em mim
e tentando m passar algum tipod e mensagem. (citado de Torrey, 1983
[2006]: 13)

Assim o objetivo seria construir um ambiente que pudesse sustentar a experiência de que
todo significado está ali especialmente para você, em oposição à experiência distante no
PwF. Neste sentido a arte parece ser um método ideal para criar tal experiência. Ao visitar
uma obra de arte estamos treinados a procurar por significados ocultos, mensagens que
estão ali para ser por nós decifradas.

Criando significado

Isto nos leva a um quarto aspecto da psicose e que é a criação de significado usando
artefatos com os quais a pessoa psicótica tenta comunicar-se. É sabido que a pessoa
criativa e a pessoa com esquizofrenia compartilham muitos traços cognitivos. (Torrey, 1983
[2006]: 389). Kusters descreve a pessoa psicótica como um artista performático que não
toma conhecimento de que a performance chegou a um fim. Ela é o artista “extrema forma”.
No PwF tudo está explicado. Não havia senso de significado oculto e chnace alguma
de participar ativamente na criação de novos significados. Instalações contemporâneas

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Jennifer Kanary | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

frequentemente exigem uma participação ativa do espectador contribuindo para a criação


de significado na instalação.

Tempo e espaço

O aspecto final da psicose no qual gostaria de concentrar atenção é a experiência de tempo


e espaço. De acordo com Kusters uma das indicações mais claras de psicose aguda é a
desorientação no tempo e no espaço. Ao entrar no PwF me disseram que a experiência
iria durar cinco minutos e foi exatamente o que pareceu, como cinco minutos. Não houve
perda do senso de tempo ou espaço já que era muito diminuto e minha visão geral era por
demais clara.

Como podemos criar uma experiência que possa ser considerada análoga a adentrar
outro mundo? Com nossa mente, podemos imaginar a memória de entrar em um sonho,
mas como traduzir isto em uma experiência física? O que estamos procurando é uma
experiência que possa engolfar o espectador em um ambiente completo repleto de sons
caóticos, movimento e imagens que incitem associações conscientes e inconscientes. Uma
experiência que seja análoga a entrar em outro mundo repleto de significados carregados
que sejam amedrontadores e encantadores, ao mesmo tempo manipulando o espectador
para que perca seu senso de tempo e de espaço.

O labirinto

E se pudéssemos repensar o labirinto em termos de uma realidade aumentada? Ao combinar


a tortuosa estrutura do labirinto poderíamos criar uma instalação multimídia labiríntica
interativa que, por sua vez, poderia prover ao espectador uma entrada para uma realidade
alternativa. A saber, a realidade da obra de arte na qual o artista criou seu próprio pequeno
universo com seu próprio conjunto de regras que é completamente diverso daquele ao qual
uma pessoa “normal” está habituada. Neste pequeno mundo poderia haver o potencial para
experimentar tanto o medo como o êxtase, dependendo em uma sinfonia coreografada de
luzes e escuridão, de odores, objetos, cores, materiais e sons perturbadores e maravilhantes.
Se o rumo que o espectador segue neste mundo possui muros que oscilam e convertem
em esquinas, isto perturbará literalmente o senso de tempo e espaço da pessoa, já que
perderiam todos os pontos de referência que estão acostumados a utilizar. E se os muros
começassem a falar com você, reagindo como se soubessem cada movimento seu? E se
elas começassem a lhe dar tarefas? Como você poderia interpretar o significado oculto do
artista se o tópico de sua experiência fosse sobre tornar-se psicótico ao entrar em uma obra
de arte labiríntica sobre psicose? Poderia tal estrutura ajudar a ir alem de uma ilustração

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Jennifer Kanary | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

da experiência de psicose? Poderia ajudar a afastar-nos da simulação ou representação,


literalmente trazendo o espectador a sua própria fronteira entre o louco e o normal?

Como uma pesquisadora artística apenas comecei a explorar as características da psicose


com relação à estrutura do labirinto. De um ponto de vista deleuziano. O labirinto é um
múltiplo consistindo de dobras nas pregas da matéria e dobras na alma, sendo infinito.
(Deleuze, 1993, [2006]: 3-4).

Jennifer Kanary

Referências:

Kusters, W. 2004, Pure Waanzin, een zoektocht naar de psychotische ervaring, Uitgeverij
Nieuwezijds, Amsterdam

Torrey, E Fuller, 2006, Surviving Schizophrenia, a manual for families, patients, and providers,
5th ed, HarperCollins Publishers, New York

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Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

Data Senso

“Languidamente, ele se perguntava o Mike Phillips


que estas formas geométricas realmente Arte e Tecnologia | Inglaterra
representavam – ele sabia que, apenas
alguns segundos antes, elas constituíram
uma parte imediatamente familiar de sua
experiência cotidiana – mas qualquer
que fosse a forma pela qual ele as
rearranjasse espacialmente em sua mente,
ou procurasse por suas associações, elas
ainda permaneciam como uma montagem
aleatória de formas geométricas.”
(Ballard, JG)

Esta apresentação explora a evolução da Mike Phillips é diretor do Instituto de Artes


percepção humana e as subseqüentes Digitais e Tecnologia (i-DAT) da Universidade
modificações do pensamento e comporta- de Plymouth. É supervisor sênior do
mento em resposta a nossa crescente Planetary Collegium. Suas atividades atuais
dependência em dados para experimentar incluem Arch-OS, um “Sistema Operacional”
o mundo. Dados são o detrito da existência para arquitetura contemporânea, que
humana moderna; da sombra dos dados manifesta a vida ecológica e social de um
que trilham nossos assuntos financeiros prédio e oferece aos artistas, engenheiros e
aos registros de servidores que traçam cientistas um ambiente único para pesquisa
interações sociais online, derramamos transdisciplinar. O projeto LiquidPress
dados como pele morta. A ambição destes explora a evolução e mutação das
projetos é colocá-los em uso efetivo ao tecnologias de transmissão e publicação
fazer dos dados algo manifesto e tangível. e os tipos de espaços colaborativos que
Como um material abstrato e invisível emergem da interação humana com eles.
suas aplicações são, no melhor dos
casos, enfadonhas e, no pior, medonhas,

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Mike Philips | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

mas reficados seu potencial háptico e metafórico são poderosas ferramentas de


transformação. A apresentação se baseia no trabalho do i-DAT (os projetos Arch-OS/i-500 e
o Teatro de Visão Imersiva da Universidade de Plymouth) e as atividades de uma comunidade
internacional de pesquisadores em Full Dome (como o Elumenati.com e o NCSA). Uma gama
de tipos de dados é explorada, de visualizações astraonômicas (como o Uniview) a dados
sociais manifestos através de projetos como Cornwallculture.com e o “Social Operating
System” (www.s-os.org) projetados para manifestar a vida social de uma cidade.

Mike Philips

Referências:
1. J.G. Ballard, The Overloaded Man, 1967.

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Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

Entrevista com Roy Ascott

Qual é o lugar ocupado pelos sentidos Roy Ascott


nos interesses gerais do Colégio Teórico da comunicação e Artista | Inglaterra
Interplanetário?
Fundador do Planetary Collegium, é profes-
sor de Design/Arte Midiática, UCLA. Editor-
Os interesses gerais constituem um denso
fundador do periódico Technoetic Arts e
composto de muitas práticas, atitudes e
membro do conselho editorial da revista
objetivos individuais, mas creio que lugar
Leonardo, publicada pelo MIT. Participou
dos sentidos em geral é provavelmente
com seus projetos telemáticos de eventos
menos exaltado que nas artes plásticas
como a Bienal de Veneza, Electra Paris, Ars
tradicionais na medida em que a consciência
Electronica, V2, Trienal de Milão, Bienal do
corporal imediada é referida. Entretanto,
Mercosul, entre outros. Vem desenvolvendo
em termos de mediação, a pesquisa é
seu projeto visionário fundamentado no
extensa e variada – na visão, som, toque,
desenvolvimento da pesquisa científica
propriocepção, movimento, de um lado, e
sobre a consciência desde os anos
sobre o senso de si, apercepção telemática,
60. Publicou diversos livros, entre eles:
os sentidos psíquicos e a consciência
Engineering Nature, 2005.
| 58
Roy Ascott | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

espiritual, de outro. Ao lado da inteligência artificial (AI) e da robótica, há alguns sinais de


que uma AS (sensoria artificiais) está emergindo.

Qual o papel da arte no mundo contemporâneo?

Suponho que seja um truísmo dizer que ela busca e por vezes provê novos modos de ver,
sentir, pensar e ser. Evidentemente, depende de com quem você fala. O ponto de vista
dominante parece ser o de que é um fenômeno de mercado, gerando riqueza em grande
parte para o investidor e, em alguma medida, para o artista. Este é o domínio de museus
e galerias de arte comerciais. Mantendo os negociantes ricos, dando aos curadores um
propósito para suas vidas e mantendo conselhos de arte intrometidos (dos quais há um
excesso) ocupados. Esta visão também provê uma objetivo conveniente para a educação
artística quando é, como atualmente, desprovida de criatividade e burocratizada por
responsabilidades impensadas. Outra visão é a de que seja um agente provedor da mente,
desencadeando idéias e talvez novos comportamentos no espectador.

Uma parte deste processo também pode envolver o reposicionamento, reestruturação ou


reciclagem de idéias, imagens e insights que se originaram em outros campos (atualmente
de modo mais popular entre as ciências). O contexto social correntemente provê motivação
para muitos artistas. A visão do Collegium poderia ser dita como sendo a de que a função da
arte é permitir ao artista e ao espectador navegarem através de novos níveis de consciência,
sincretizar novas condições de conectividade com e no mundo e no interior de nossas
muitas realidades, provendo o solo no qual novas identidades podem ser formadas, novas
linguagens geradas, novas estruturas e sistemas projetados.

Poderia dar-nos alguns exemplos de obras de arte envolvendo tecnologias nas


quais os estímulos sensoriais tenham sido de impacto especial para você?

Não, ou ao menos deveria dizer que não entendo a pergunta. Somente posso dizer, falando
apenas por mim e não pretendendo representar a opinião de qualquer de meus associados,
estímulos sensoriais per se são de pequeno interesse para mim e tê-los amplificados
ou estendidos tecnologicamente por si mesmos, por assim dizer, é pelo menos tão
entediante quanto ter de suportar rasos efeitos especiais no cinema. O impacto espiritual
é necessariamente nulo. Muita arte tecnológica dedicada ao sensorium ocidental comum é
mais demonstrativo que inventivo. (Sim, os sentidos são culturalmente determinados: outras
culturas, outros sentidos.) Tais obras, alardeadas e regurgitadas infinitamente pelas últimas
três décadas, me fazem gritar “Que se dane o Corpo, dê uma chance à Mente!”. Neste
mistério, que é a mente, reside outro tipo de sensorium, há muito ignorado, frequentemente

| 59
Roy Ascott | Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos | Mesa 2 [ F.A.q.2 ]

proibido, e que agora pode ser explorado, por todos os meios tecnológicos (antigos e
modernos, farmacêuticos e digitais), através do prisma da arte. A Grande Obra ainda está
por vir.

A arte tem sido progressivamente mais orientada por conceitos. Como você vê
a relação entre conceito e sensação?

Enquanto a consciência é certamente afetada pela sensação, a mente é muito mais


forte que o corpo. Eu diria que a sensação propõe, o conceitual dispõe. Nós somos o
que pensamos, consciência nos define; no entanto, enquanto acreditamos que podemos
localizar precisamente onde as sensações se originam, não temos entendimento algum
da localização da mente, e não mais que uma compreensão muito limitada e mecanicista
do processo mental. Até a alma é sabidamente evocada. Qualquer conhecimento objetivo
da fonte de nossas sensações não está disponível para nós, já que não possuímos meta-
sentidos ou recusamos a reconhecer sua existência. Kant afirma que o que é certo é ditado
pela mente (o que “posicionamos” nos objetos de nossa percepção), enquanto que o efeito
de um objeto sobre nossas sensações é sempre incerto. Obviamente a incerteza sensorial
é em si estimulante e pode levar a insights poéticos. Incerteza conceitual é aquele aspecto
da arte que encontro como o mais atraente. Neste sentido, eu me distancio de Pollock
(embora de maneira terna) em direção a Duchamp. Para compor tal movimento com a não-
linearidade de um hyperlink adiciona outra dimensão à arte que é digna de ser explorada.

Roy Ascott

| 60
MOSTRA Shiva | Paulo Nenflídio

| 61
Mostra [ F.A.q.2 ]

Shiva

Construi a obra Shiva, especialmente para Paulo Nenflídio


a Mostra FAq2. Fui convidado a realizar Artista | São Paulo
uma obra que dialogasse com minhas
obras anteriores quanto à questão da
espacialização sonora e a interatividade.
Pra isso pensei nesta escultura, que no
momento estava apenas em projeto. O
local onde seria instalado era o jardim.
Uma área aberta com sol, vento e chuva.
E em novembro, muita chuva. Pra que
a obra satisfazesse estas condições,
construí uma estrutura inteiramente feita
de tubos de plástico PVC com conexões
usadas em encanamentos. A parte
eletrônica principalmente não poderia
Paulo Nenflidio é artista plástico, inventor,
ser molhada, correndo o risco de curto
desenhista e construtor. É Bacharel em
circuito ou oxidação dos componentes.
Multimídia e Intermídia pelo Departamento
Então acondicionei todos os circuitos
de Artes Plásticas da ECA-USP, e Técnico
dentro de uma caixa de plástico vedada e
em Eletrônica pelo Colégio Técnico Estadual
translúcida de forma que ficou protegida
Lauro Gomes de São Bernardo. Utiliza
da chuva e ao mesmo tempo podia se ver
seus conhecimentos de eletrônica, artes
a construção eletrônica. Outra solução
plásticas e música para criar obras que se
técnica importante, foi ter colocado todos
relacionam com a história da música de
os falantes dentro da caixa também. Por
invenção. Atualmente produz objetos que
meio de condutos conectados na saída
são autômatos sonoros (produzem som
dos falantes o som era transportado até
automaticamente) e outros que podem ser
as cornetas fixas na extremidades opostas
manipulados. Faz parte do conceito de seus
dos condutos. Quanto ao funcionamento
trabalhos idéias como música autônoma,
eletrônico interativo, criei uma série de
acaso e interatividade.
circuitos semelhante ao do Theremin.

| 62
Paulo Nenflídio | Mostra [ F.A.q.2 ]

Quatro pares de antenas desempenhavam a função de interferir na produção do som da


obra. O público ao aproximar as mãos das antenas podia controlar simultaneamente quatro
vozes na amplitude e na frequência. O resultado foi uma espécie de sons sintetizados
lembrando trilha sonora de filmes de ficção científica.

Paulo Nenflídio

| 63
MOSTRA Contra corrente | Sônia Guggisberg

| 64
Mostra [ F.A.q.2 ]

Contra corrente

O vídeo “ Contra corrente” foi instalado Sônia Guggisberg


dentro da área de circulação onde era Artista | São Paulo
possivel ver o movimento das pes-
soas e da água de forma real e virtual
simultaneamente. Os navadores nadavam
sem se deslocar enquanto as pes-
soas passavam rapidamente subindo e
descendo as escadas para nadar na piscina
(real) ao fundo. Gostei muito da relação do
público com trabalho, a visão frontal do
local favoreceu a integração. O vídeo foi
editado para o Faq2 considerando todas
as condições do lugar e, o que eu não
sabia mas que acabou sendo interessante
foi a interferência da luz roxa trazida pelo
Desde a década de 90 participou de
trabalho da Lúcia Koch.
mostras coletivas, como o Projeto Antártica
Artes, com a Folha de São Paulo, Geração
Sonia Guggisberg
90, Heranças Contemporâneas, Projeto
Galpão15, Ares e Pensares e Pele Alma,
Projeto Ocupação, Visão Trocada SP/
Berlin, Virada Cultural e Mergulhos. Suas
individuais foram no Itaú Galeria, SP, Projeto
Macunaíma FUNARTE, RJ. Em 2008 realizou
a exposição individual “Lençol Freático”
CCBB-SP apresentando três instalações
em vídeo : a vídeo instalação “Nascente”,
“Linha d’água” e “Correnteza”.

| 65
[
[ F.A.q.2 ]

[ [
Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3

Mesa 2 - Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos

Cristiano Perius | “Cheirar com os olhos”: Merleau-Ponty sinestésico


Renata Aschar | Olfato

Entrevista | Vinícius Pereira


faltam as fotos

| 66
Parte dodamaterial
Detalhe usado
performance na experimentação
D.A.M. - Continuum de olfativa
Roberto oferecida
Ramos pela paletrante Renata Aschar
[ F.A.q.2 ]

Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3

Relato | Ananda Carvalho

A mesa Texto do Cheiro / Cheiro do texto evidenciou a percepção dos aromas por três
perspectivas diferentes: a perfumaria, a filosofia e a comunicação. Foi composta pelos
debatedores Renata Aschar e Cristiano Perius, além do perguntador Vinícius Andrade Pereira.
No debate, foi colocado que a construção e a percepção do olfato é configurada tanto
fisiologicamente como culturalmente, o que resultaria em uma diversidade de concepções
de olfato.

Memória Olfativa

A mesa iniciou com Renata Aschar, perfumista e especialista em aromas. Tem três livros
publicados sobre o assunto e foi responsável pela criação do Espaço Perfume Arte &
História (em Curitiba), museu de perfumes dedicado à história e a arte da perfumaria. A
apresentação de Renata abordou o olfato como um dos sentidos mais primários, ou seja,
em que prepondera aspectos fisiológicos, mas também como possibilidade de despertar a
imaginação a partir dos perfumes. A própria palavra perfume tem sua origem no latim: per
fummum. Per, que significa através, e fumum, fumaça, indicam a busca do homem pela
divindade por meio da fumaça exalada pela queima de incensos.

Renata contextualizou brevemente a história do olfato e, mais especificamente, do perfume.


Concatenou citações literárias e cinematográficas relacionadas ao tema, informações
históricas, dados estatísticos e biológicos para construir uma ambiência da percepção
olfativa. No final de sua apresentação, propôs uma vivência olfativa que reproduzia uma
parte de uma videoinstalação sensorial do museu do perfume em Curitiba. Distribuiu ao
público uma coleção de papéis, sendo que em cada um tinha uma essência diferente. Um
vídeo foi exibido e para cada seqüência o público era orientado a sentir o cheiro de um
dos papéis. Essa experiência reproduziu o ciclo da vida com imagens, sons e cheiros que
remetiam ao bebê, à infância, à juventude, à liberdade e ao amor. Desse modo, a fala de

| 67
Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

Renata foi construída não só verbalmente, mas também olfativamente.

Cheirar com os olhos: Merleau-Ponty sinestésico

Cristiano Perius expandiu sua fala sobre o cheiro para uma temática maior, a sinestesia, a
comunicação e a articulação inter-sensorial a partir da filosofia de Merleau-Ponty. Cristiano
Perius é filósofo com pós-doutorado em Filosofia pela USP e professor da Universidade
Estadual de Maringá.

O título da apresentação remete a expressões como Comer com os olhos e cheirar com as
mãos, que exploram a sinestesia, ou seja, o entrecruzamentos de sensações. A partir disso,
Cristiano questionou, baseado no pensamento filosófico, como o sentido é constituído? A
partir de Descartes, definiu a percepção dos sentidos através da significação intelectual.
Em seguida, apresentou o contraponto de Merleau-Ponty, que afirmou que Descartes
transformava a experiência de ver para o pensamento de ver. Por último, citou Kant, que
definiu o conceito de a priori sintético: os fenômenos sinestésicos como condições de
possibilidades dos objetos. Nessa concepção, é necessariamente que a alma se liga ao
corpo, é necessariamente que a aparência se liga a essência. Essa questão, segundo
Cristiano, não é diferente do que Merleau-Ponty entendia por logus do mundo estético.

Merleau-Ponty propôs a intersecção dos registros através de um corpo que se compõe


pela multiplicidade. Desse modo, o sentido dos objetos vem da percepção do todo e não
de suas partes constituintes de forma isolada. E ainda, na Fenomenologia da Percepção, o
mundo sensível não é apenas real, mas simbólico de toda a vida humana. Nas palavras de
Cristiano, “o nariz não é um órgão apenas fisiológico, mas um órgão do espírito. (...)O cheiro
é a poesia das coisas renascendo em nós.”

O olfato e a comunicação

Após as apresentações de Renata e Cristiano, Vinícius Andrade Pereira assumiu o papel de


perguntar e abriu os debates. Ele é Doutor em Comunicação (UFRJ), professor da UERJ e da
ESPM. Também é pesquisador associado do McLuhan Program in Culture and Technology,
da Universidade de Toronto, Canadá.

Vinícius questionou a percepção do olfato nas construções culturais contemporâneas, mais


especificamente através da Comunicação e do Marketing. O odor é bastante esquecido
nas práticas culturais quando se pensa a formação educacional dos sentidos. Por exemplo,
nas escolas de arte e nos museus há uma educação do olhar e do ouvir apenas. Por outro

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Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

lado, se o olfato está livre de uma escola, as sensações que são dele derivadas não são
codificadas. Essa constatação nos faz pensar se o olfato nos permite experiências mais
genuínas e originais.

Entretanto, o marketing detecta o olfato como uma grande possibilidade de comunicação ao


criar, por exemplo, a identidade olfativa da marca. Considerando-se que a cultura codifica
menos a experiência olfativa, como essa identidade é aplicada? Não seria arbitrário falar
este é o cheiro do amor, da liberdade? Vinícius introduziu o debate questionando o paradoxo
da liberdade e da codificação do olfato.

Debate

A codificação cultural das sensações estava implícita em toda a discussão. Cristiano defendeu
a despoluição teórica para a percepção do mundo. Na fenomenologia, qualquer órgão dos
sentidos compõe o todo de um corpo que permite a iniciação ao mundo. Entretanto, para
Vinícius, que segue a teoria das materialidades da Escola de Toronto de Comunicação, a
despoluição comentada por Cristiano não é possível, pois qualquer indivíduo está inserido
na cultura. As forças culturais de uma época são materializadas na percepção do perfume e
do cheiro. Além disso, de acordo com Renata, a produção de perfumes refletem construções
de uma indústria que sintetiza elementos culturais previamente escolhidos para serem
massificados.

Na medida em que o olfato faz parte da composição da subjetividade humana, pode ser
considerado como uma possibilidade de comunicação. Segundo Cristiano, na filosofia,
uma experiência sensível é sempre comunicável. Expandindo a percepção dos sentidos
para a arte, ele comentou que uma obra só é reconhecida a partir do momento em que o
outro a viu. Isso significa dizer que, a percepção dos sentidos reflete configurações sócio-
culturais.

Considerando, ainda, que os meios de comunicação constituem uma das grandes forças
sociais, pode-se dizer que nossas experiências são estimuladas por estes meios. Sobre
isso, Vinícius ressaltou que as novas mídias não emitem cheiros. Sérgio Basbaum, curador
do evento, lembrou que o tema do olfato esta há muito tempo banido da cultura ocidental.
Um bom exemplo para retratar a percepção cultural do olfato é a história dos concursos
de jardinagem que, no séc. XVI, avaliava a rosa pelo perfume, e já no século XIX, somente
avalia sua forma.

Roy Ascott afirmou em sua palestra de abertura que a cultura não mais define o sujeito através

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Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

de rótulos pré-definidos mas é capaz de lidar com diferentes subjetividades, configurando-


se como um sistema aberto e não linear. Apesar do termo cultura estar presente em todas as
falas, é preciso lembrar que este conceito engloba inúmeras possibilidades de definições.
Ainda, segundo Ascott, vivemos um momento em que estamos “engajados na construção
e sincretização de muitos selfs que se orientam no sentido de uma realidade complexa e
variável. (...) E nossos sentidos, (...) são generativos, em permanente estado de vir a ser”.
Resumindo, este debate apontou para uma rua de mão dupla. Por um lado, a falta de
educação do olfato na sociedade contemporânea, por outro, a possibilidade de experimentar
um sentido em estado mais bruto. A mesa deixou em aberto as seguintes questões: como
codificar as sensações? Existe uma educação dos sentidos? O olfato é natural, instintivo e
subjetivo? Ou, o olfato é educado culturalmente?

Ananda Carvalho

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Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

“Cheirar com os olhos”: Merleau-Ponty sinestésico

A cor do objeto já ensina, por uma espécie Cristiano Perius


de comunicação natural entre os sentidos, Filosofo | Paraná
a matéria de que é feito, o som que faria ao
toque e o cheiro ao olfato. Assim, ao olhar
para uma pétala de rosa eu já vejo o som
imperceptível que faria se fosse ao chão,
a suavidade perfumada da matéria, se me
aproximasse para senti-la, com as mãos e
com o olfato. De modo que “comer com
os olhos”, “cheirar com as mãos”, mais do
que expressões eróticas, são sinestésicas,
no entrecruzamento das sensações. Nesse
lugar ambíguo de comércio dos sentidos,
onde não há apenas cheiro, nem apenas
gosto, mas cheiro e gosto indiscerníveis, Pós-doutor em Filosofia pela USP e
está o fenômeno da percepção, segundo professor na Universidade Estadual de
o filósofo Maurice Merleau-Ponty. Através Maringá, no Paraná, com especialização em
da análise da “coisa intersensorial”, o Paris, na Sorbonne. Seus principais temas
filósofo compreende que o sentido dos de trabalho vão da fenomenologia à estética
objetos vem do todo e não de suas partes clássica, além da filosofia da linguagem
constituintes — embora elas não sejam de Saussure e o estatuto da metáfora de
descartáveis, isto é, a cor, o odor, o sabor, Aristóteles a Heidegger. Publicou “A leitura
etc, não são diferentes, mas sinônimos do da leitura”, em O que nos faz pensar, da
sentido (como o perfume é o seu odor). De PUC-RJ, em 2007 e “Merleau-Ponty:
modo que as qualidades sensíveis não são Fenomenologia e Estética” na Revista
apenas suficientes, mas necessárias, para Cult, em 2008 (dossiê Merleau-Ponty)
a constituição do objeto. Pois é da essência entre outros textos. Trabalha atualmente a
dos odores ser sensível, não encontraríamos edição de um estudo sobre a obra poética
na experiência 1do olfato equivalentes no de Dummond, e outros ensaios.
1 Lembrando que Descartes reduzia a experiência sensível à apreensão do “espírito” (mente, inteligência, intelecto).

| 71
Cristiano Perius | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

espírito1. Nesses dois modos de apreensão do objeto, um racional e outro sensível, um


conceitual e outro vivido, está a diferença entre os “entes de razão” e as “coisas mesmas”,
onde a fenomenologia abriu caminho.

Mas o que diz a fenomenologia sobre isto? Se o cheiro faz parte da percepção, é porque
somos dotados de um corpo, havendo por isso uma estrutura típica do mundo que
reclama a sua parte no cheiro, inacabada com este, mas sem a qual aquele não seria o
mesmo. Isto não significa apenas dizer que o mundo, sem a percepção do olfato, seria
outro. Com a tese da sinergia dos sentidos tudo muda: não só as coisas, as idéias, o
imaginário e o próprio mundo inteligível dependem da estrutura sinestésica e pré-objetiva
do meu corpo. As próprias coisas representam uma possibilidade imanente e a priori dos
reflexos do meu corpo, e por isso não podem ser representadas objetivamente pela ação
de seu engajamento nelas. Inesgotáveis, pertencem a uma “estrutura de sentido”, mais do
que o efeito ou o resultado dele. Mas essa transcendência ou impossibilidade de doação
completa não é defeito, pelo contrário, é a virtude do sensível. Sinestesia é a ordenação
orgânica e indivisa que me atira ao sentido sem a possessão intelectual dos conceitos.

“Se um doente vê o diabo, ele vê também seu cheiro, suas chamas e seu vapor, pois
a unidade significativa do diabo está nessa essência ácida, sulfurosa e ardente.” Com
essa analogia do odor e calor ácidos recaindo sobre o diabo, Merleau-Ponty ultrapassa
o domínio das coisas intersensoriais e passa ao mundo do imaginário. Que se evoque
aqui o cheiro da pessoa amada, o perfume da janela da casa da infância, os odores da
cozinha antiga, na hora do café... Como podemos perceber nessas passagens da memória,
o mundo sensível não é apenas real, mas simbólico de toda a vida humana. Porque o diabo
não existiria em nosso imaginário sem os odores quentes e sulfúricos do inferno. Porque a
casa da memória está associada ao cheiro de bolacha ao forno e pão caseiro, cujas receitas
não estão escritas e não podem ser reencontradas. Mitológica, a essência metafórica de
nossos medos e lembranças são do cheiro e vêm do cheiro, sem o qual não seríamos isso
que nós somos. Como conclui Merleau-Ponty: “Nós não somos um conjunto de olhos,
orelhas, órgãos táteis com suas projeções cerebrais... Como as obras literárias são apenas
o caso particular de permutações possíveis dos sons que constituem a linguagem e seus
signos, assim as qualidades ou sensações representam os elementos da grande poesia de
que o nosso mundo é feito.” Comparável a uma obra literária é o nosso corpo. Ele não é
a reunião de olhos, orelhas, nariz, boca, pernas e braços por agrupamento. Uma câmera
de cinema não é apta ao mecanismo da visão, mesmo se trocássemos metaforicamente
as partes eletro-mecânicas por células óticas e neurônios. Outros órgãos dos sentidos,
como os ouvidos e o nariz, jamais encontrarão equivalentes junto a técnica científica e
a cibernética. Como numa obra de arte, o sentido está nela e não alhures, embora seja

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Cristiano Perius | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

paradoxal e inesgotável. Mas essa é a idéia contida no fenômeno do olfato: o nariz


não é um órgão fisiológico, é um órgão do espírito (em razão de tudo que, sentindo as
coisas, transcende as coisas). O cheiro é a poesia das coisas renascendo em nós! (Não
porque o mundo é olfativo, como uma grande poesia de cheiros, mas porque povoam
— os odores — nossa mais íntimas lembranças, quer dizer, nossa melhor parte no ser.)

Cristiano Perius

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Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

Olfato

Assim como o cheiro é o principal fator da Renata Aschar


sobrevivência animal em seu hábitat natural, Especialista em aromas | São Paulo
o olfato é nosso sentido mais primário —
e talvez o mais apurado: somos capazes
de detectar e diferenciar mais de dez mil
odores, garante a ciência. Os odores afetam
o homem tanto do ponto de vista individual
(físico e psicológico) quanto coletivo (social
e cultural). No primeiro caso, a prova está
nas diferentes associações que um mesmo
aroma pode trazer — uma determinada
flor lembrar uma perda para um, evocar
um momento romântico para outro. No
segundo caso, é evidente a relação entre
olfato e vínculos sociais: cada um de nós Graduada em comunicação, é especializada
pode reconhecer o filho, a mãe ou o amado em perfumes e atua há 23 anos na área
pelo cheiro; do ponto de vista cultural, é como consultora. Autora dos livros
certo que os odores são codificados em Brasilessência: A cultura do perfume (Best
Seller); Banho: História e Rituais (Grifo)
valores capazes de definir nosso papel na
e Guia de Perfumes (Duetto Editorial).
sociedade. Correspondente internacional da revista
International Cosmetic News e Responsável
A percepção do cheiro depende não só pela criação do Espaço Perfume Arte &
da sensação que ele provoca, mas ainda História, museu de perfumes dedicado à
das emoções que ele resgata. Diretamente história e a arte da perfumaria.
ligado à nossa memória, o sentido do olfato
possui o misterioso poder de capturar a
essência exata das nossas experiências,
ao mesmo tempo tão difíceis de definir
e tão fáceis de reviver — por meio de
uma simples lembrança. Essa percepção

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Renata Aschar | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

aciona as emoções, trazendo de volta o aroma do frescor matinal, o cheiro da terra molhada
depois de uma chuva de verão ou a envolvente mescla de odores de uma noite de amor.
São sensações que podem ser revividas com um simples estímulo olfativo. São lembranças
que guardamos para sempre, mesmo inconscientemente: os aromas fazem parte de nossas
vidas.

Como o cheiro pode provocar em nós fortes reações emocionais e nos identificar como
integrantes de um grupo social, podemos concluir: o olfato é realmente poderoso! Uma bela
confirmação vem do escritor francês Marcel Proust , que fornece notáveis considerações
no monumental romance Em Busca do Tempo Perdido, escrito no início do século XX;
nele, o narrador é movido pela lembrança de sabores e cheiros que, quando tudo o mais
se dissipa, sustentam, “na minúscula e quase impalpável gota de sua essência, a vasta
estrutura da recordação” (volume I, “O Caminho de Swann”).

Cada momento de nossa vida, assim que passa, é registrado em um


cheiro,
um sabor, uma sensação que, encontrada novamente, pode disparar a
memória...
Os cheiros mudam com a estação, mas são sempre copiosos e
acolhedores,
neutralizando a inclemente aspereza da geada matinal com a fragrância
do pão quente...
Cheiros indolentes e pontuais como o soar das horas de um campanário
de aldeia...
Cheiros fugazes e constantes, distraídos e prudentes...
Cheiros de roupa branca, cheiros matutinos, cheiros de devoção...

Excertos de Marcel Proust

Memória Olfativa

No fim do século XX, Patrick Suskind dedicou todo um volume ao tema: O Perfume defende
o poder do aroma. Um trecho de seu aclamado livro ressalta:

As pessoas podem fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza;


podem tapar os ouvidos diante de uma melodia ou de palavras sedutoras.
Mas não podem escapar ao aroma. Ele é o irmão da respiração,
penetra nas pessoas — elas não podem escapar-lhe, caso queiram viver.

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Renata Aschar | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

Bem dentro delas vai o aroma, diretamente para o coração— que faz a distinção
entre atração e repulsa, horror e prazer, entre amor e ódio.
Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas.

A fragrância que emanamos é a nossa mais íntima ligação com os outros. O olfato é realmente
poderoso! Considerado nosso sentido mais primário ele está diretamente ligado ao sistema
límbico, por esta razão temos uma conexão tão forte entre perfume e emoções. Este sentido
tão precioso deve ser estimulado, mesmo no dia a dia, em pequenos momentos, as ervas
na cozinha, os cheiros dos lugares, enfim, as pessoas devem criar uma linguagem olfativa.
Cada pessoa tem sua memória olfativa e isto é uma experiência única. Um verdadeiro
arquivo pessoal de cheiros que as conecta a determinados lugares, momentos e sensações.
O olfato, como já dizia Rousseau, é o sentido da imaginação. Ele desperta sensações
imediatas, sejam elas boas ou ruins. Fechar os olhos e tentar registrar na memória cada
cheiro é o melhor exercício que podemos fazer para estimular o sentido do olfato.

E a magia do perfume? Não há quem não deseje um perfume. Este invisível auto-retrato
deixa um marca que não se apaga: um fino, misterioso rastro que se torna parte de sua
lenda pessoal. O prazer reside no fato de que ele é seu e único em sua pele.
Cleópatra entendeu este conceito – praticamente dopando Marco Antonio com incenso,
ungüentos e óleos essenciais em todos os seus grandes banquetes. Marilyn Monroe contou
ao mundo que não dormia com nada além de algumas gotas de Chanel no. 5 e milhões de
mulheres seguiram o mesmo. Não é para menos....

A criação de um perfume é uma arte comparável à composição de uma música. Exige


inspiração, harmonia, mistério e, principalmente, sensibilidade. Estas qualidades fazem do
perfumista um profissional único, capaz de transformar sonho em realidade

Ele é considerado um artista no mercado da perfumaria fina. Por dever de ofício, precisa
ter “o melhor nariz do mundo”. É capaz de distinguir mais de três mil cheiros diferentes
e consegue combiná-los em uma quantidade ilimitada de fórmulas, com química e odor
absolutamente singular. O perfumista usa a fantasia e o nariz para criar fragrâncias
inesquecíveis, que podem reunir até 300 matérias-primas. Como um maestro, ele compõe
num órgão as diferentes notas que darão caráter e personalidade a uma fragrância.

Dotado de sexto sentido, o perfumista sabe interpretar as nuances de uma essência,


imaginando o papel que cada ingrediente terá na composição olfativa final. Até os termos
usados por este maestro da perfumaria se assemelha à composição de uma música. Cada
aroma é chamado de “nota” e sua mistura compõe o “acorde” ou “harmonia” da fragrância.

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Renata Aschar | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

A diferença é que as notas musicais são objetivas, traduzidas em sinais impressos e


movimentos distintos. Na perfumaria, as notas estão no ar, em perfeita harmonia — saída,
corpo e fundo — do começo ao fim, todas juntas.

Cabe ao perfumista analisar as possibilidades de combinações e interpretar o mistério


da transformação de cada nota - ou tom - em um novo acorde. A força de um perfume
depende da concentração de fragrância e das matérias-primas utilizadas em sua
composição. Transformar esse mix em sucesso está nas mãos dessa categoria restrita e
valiosa de profissionais, que ganha salários astronômicos para desenvolver essências sob
encomenda.

Categorias como doce, ácido, amargo ou salgado são muitas vezes reivindicadas como
próprias a cada pessoa. Mas as preferências alimentares não são um problema puramente
individual ou uma simples variação de gosto, ocorrida ao acaso; são, antes, formas de
compartilhar de um mesmo grupo social, que selecionou e aprendeu a comer determinados
alimentos e não outros. Todos nós conhecemos alguns hábitos alimentares aparentemente
irracionais, como a predileção dos chineses pela carne de cachorro, o uso do abacate
nas saladas ou sanduíches e pratos salgados pela maior parte dos povos latinos ou o
gosto particular por formigas assadas, disseminado entre alguns povos indígenas no Brasil,
hábito ainda presente no interior de São Paulo. Mas o que explica o fato de que algumas
pessoas gostem e outras detestem o mesmo alimento? Há um valor social conferido aos
alimentos, que também diz respeito ao status de quem come, de quem oferece a comida,
de quem serve. Neste sentido, entende-se que o paladar não é simplesmente uma versão
pessoal de um gosto particular. Trata-se, na verdade, de uma construção cultural, que ajuda
a contar uma história, a escrever um passado, a definir um presente e, porque não, a eleger
um futuro.

Aprendemos a comer o que comemos. Aprendemos a sentir nojo, desejo, prazer, satisfação
com um determinado prato ou cheiro de comida. Há, portanto, uma lógica simbólica
maior que organiza a procura por certos alimentos e que condena outros a virar tabu, ou a
serem desprezados ou pouco utilizados. É o caso das tripas, dos miolos ou dos intestinos
da carne de vaca, jogados fora ou vendidos a preço de banana no Brasil atual. Sem ir
muito longe, é o mito criado para a feijoada, de que foi concebida nas senzalas, com as
sobras de tudo o que os senhores de engenho não gostavam ou não queriam comer: rabo,
orelha, pés, gordura. Mas em algum momento paramos para pensar que os homens ricos
desta época apreciavam tais “partes” que agora consideramos menos nobres? Em algum
momento paramos para pensar que uma vaca não fornece apenas filé, lagarto e maminha,
mas também rins, língua, fígado e testículos? O que fazemos com todos eles? É preciso,

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Renata Aschar | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

então, entender como o gosto e o apetite de grupos distintos foram se desenvolvendo ao


longo das diferentes fases de sua própria história e como eles se relacionam entre si. Para
tanto, é necessária uma etnografia da cozinha, que deve compreender todos os aspectos
da refeição e suas regras, tais como a escolha dos alimentos de acordo com a fauna e a
flora locais, os modos de cozinhar, os sabores, as texturas, as combinações entre os pratos,
o comportamento dos indivíduos, a etiqueta, o protocolo e o serviço. Se estivermos atentos
a tudo isso, a comida poderá ser enfim pensada como um código que fornece inúmeras
possibilidades de mensagens particulares, nas quais se pode expressar hierarquia, inclusão,
exclusão, transgressão e limites sociais.

Renata Aschar

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Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

Entrevista com Vinícius Pereira

Na sua opinião, o que poderia deter- Vinícius Pereira


minar uma mudança de destaque do Comunicólogo | Rio de Janeiro
papel do olfato na cultura mediática?
Graduado em Psicologia pela UFRJ (1991),
mestrado em Psicologia pela Universidade
Quando pensamos a articulação entre os
Federal do RJ (1996), pós graduação (lato
sentidos e as práticas de comunicação
senso) em Saúde Mental pelo Instituto de
midiáticas, notamos que o olfato -
Psiquiatria da UFRJ (IPUB) e doutorado em
juntamente com o seu sentido-irmão, o
Comunicação pela Universidade Federal
paladar – fica excluído de quase todas
do RJ (2002), com formação complementar
as formas de mídias atuais. Ou seja, ao
no McLuhan Program in Culture and
contrário de práticas de comunicação
Technology, da Universidade de Toronto,
que hoje poderiam ser consideradas mais
Canadá (2001). É professor da Faculdade
arcaicas, como a troca de cartas, que
de Comunicação Social e do Programa da
poderiam ser perfumadas, por exemplo,
Pós em Comunicação da Universidade do
os processos de comunicação hodiernos
Estado do RJ, e dos cursos de comunicação
ainda não nos possibilitam, em larga
e design da ESPM.
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Vinícius Pereira | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

escala, a troca de odores. Por outro lado, sabemos que há uma série de estratégias
de comunicação, especialmente aquelas voltadas para o mercado, ou seja, estratégias
fundamentalmente de marketing, que avançam sobre a possibilidade de se explorar o olfato
como um diferencial nos processos de construção, divulgação e fortalecimento de uma
marca. Refiro-me, aqui, a propostas tais como as de marcas multissensoriais (Lindstrom,
2006) que apostam na criação de identidades olfativas para as marcas através de produtos
e de espaços de contato com um público consumidor em potencial(espaços para branding
experience). Assim, parece que, por um lado, as práticas de comunicação negligenciam o
sentido do olfato como uma experiência sensorial relevante, por outro, apostam, exatamente,
neste sentido como um diferencial poderoso para evocar um sentimento relacionado à
marca. Como pensar esta ambigüidade da cultura contemporânea em relação ao sentido
do olfato, exatamente em um momento no qual vivemos o que muitos entendem como o
apogeu de uma sociedade midiática? Ou, ainda, de outro modo, seria a ambigüidade em
questão reflexo da própria cultura contemporânea que, ao mesmo tempo em que demanda
mensagens multissensoriais, ainda vive uma espécie de inconsciência frente ao papel e a
força do olfato na comunicação?

Quais tarbalhos de arte você considera referenciais para um entendimento do


odor como linguagem?

Acompanhando as práticas culturais ocidentais ao longo do tempo, percebemos que


o cultivo de sensorialidades relacionadas à visão, à audição, ao paladar e, agora mais
recentemente, ao tato, sempre foram destacadas e afirmadas frente àquelas relacionadas
ao cultivo do olfato. Assim, encontramos propostas que pretendem dar conta de uma
educação visual — geralmente relacionada às práticas ou estudos das artes visuais —, de
uma educação da audição — em geral relacionadas às práticas e estudos da música —,
de uma educação do tato — relacionadas aos estudos e práticas de diferentes modos de
se lidar e operar com os objetos técnicos —, e de uma educação do paladar — relacionada
diretamente aos estudos e às praticas culinárias. Contudo, a educação do olfato, salvo
poucas áreas como aquelas relacionadas à enologia, ou aquelas relacionadas ao fabrico de
perfumes, parece não interessar muito, como uma proposta formal de educação. Por quê
isso? Seria resultado de uma avaliação que toma o olfato como um sentido menor, submisso
ao paladar e, portanto, menos importante na formação dos gostos e das experiências
sensórias partilhadas socialmente?

FALTA A PERGUNTA AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA?

Acompanhando as práticas culturais ocidentais ao longo do tempo, percebemos que

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Vinícius Pereira | Texto do Cheiro / Cheiro do texto | Mesa 3 [ F.A.q.2 ]

o cultivo de sensorialidades relacionadas à visão, à audição, ao paladar e, agora mais


recentemente, ao tato, sempre foram destacadas e afirmadas frente àquelas relacionadas
ao cultivo do olfato. Assim, encontramos propostas que pretendem dar conta de uma
educação visual — geralmente relacionada às práticas ou estudos das artes visuais —, de
uma educação da audição — em geral relacionadas às práticas e estudos da música —,
de uma educação do tato — relacionadas aos estudos e práticas de diferentes modos de
se lidar e operar com os objetos técnicos —, e de uma educação do paladar — relacionada
diretamente aos estudos e às praticas culinárias. Contudo, a educação do olfato, salvo
poucas áreas como aquelas relacionadas à enologia, ou aquelas relacionadas ao fabrico de
perfumes, parece não interessar muito, como uma proposta formal de educação. Por quê
isso? Seria resultado de uma avaliação que toma o olfato como um sentido menor, submisso
ao paladar e, portanto, menos importante na formação dos gostos e das experiências
sensórias partilhadas socialmente?

Vinícius Pereira

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MOSTRA Arranjo | Laura Lima

| 82
Mostra [ F.A.q.2 ]

Arranjo

Existem películas no entendimento de Laura Lima


uma obra de arte que talvez se coloquem Artista | Minas Gerais
mais no futuro. Há quem diga que a obra
se refere a seu tempo e lugar. Teimo em
discordar. Existem apenas diferenciações,
ciências sem texto a priori. Porvires de
sentido. Olhares atentos ou desatentos. A
obra ARRANJO remonta estas questões.
Qual o total de percepção de realidade e
poesia, sem tentativas exatas de mesuras,
o espectador se propõe? Estamos viciados
em que tipo de comportamento? ARRANJO
é somente ironia e um pouco de beleza
frívola. Pétalas falsas e invisíveis dentro de
botões de rosas frescas. Os pratos estão
Formada em Filosofia pela Universidade
empilhados, a mesinha de reload é arrojada,
Federal do Rio de Janeiro, foi aluna da Escola
o espectador se atem nisso e o segredo da
de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio
obra está invisível.
de Janeiro. Os trabalhos mais conhecidos
da artista são suas performances da série
Laura LIma
“Homem=carne / Mulher=carne” como,
por exemplo, “O puxador”. Participou de
diversas exposições, entre elas o Panorama
da Arte Brasileira de 2001 no Museu de
Arte de São Paulo e realizou individuais
no Museu de Arte da Pampulha, em Belo
Horizonte e no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro. Dirige, junto com os artistas
plásticos Ernesto Neto e Marcio Botner, a
galeria A Gentil Carioca, espaço dedicado
à arte brasileira contemporânea.

| 83
MOSTRA Cocoon | Lúcia Koch

| 84
Mostra [ F.A.q.2 ]

Cocoon

No filme “Cocoon”, de 1985, septuagenários Lúcia Koch


de um asilo descobrem uma piscina Artista | São Paulo
abandonada e passam a frequentá-la. Como
a piscina está energizada pela presença de
casulos que contém seres extra-terrestres,
os banhos tem um efeito rejuvenescedor
que transforma suas vidas.

A piscina do SESC Ipiranga recebe


usuarios de todas as idades. Muitos deles
são idosos e assistem a aulas de hidro-
Expondo desde o final dos anos 80, explora
ginástica ou usam a piscina para recreação.
as relações entre arte e arquitetura produ-
Este Cocoon, pensado para o sincretismo
zindo alterações na luz ambiente de espaços
dos sentidos, foi uma intervenção para
institucionais ou domésticos. Participou do
intensificar/renovar a energia já circulando
projeto coletivo Arte Construtora, que atuou
ali, alterando a luz ambiente.
de 1992 a 1996. Apresentou trabalhos nas
Bienais de Pontevedra em 2000, Porto
O filtro violeta posto sobre a imensa
Alegre em 1999 e 2005, Istambul em 2003,
claraboia que cobre e ilumina toda a piscina,
Göteborg em 2005 e São Paulo em 2006.
cria um efeito de “luz negra” semelhante a
Entre as exposições individuais recentes
de um clube noturno: acentua brancos e
está Casa Acesa, em La Casa Encendida,
vermelhos com uma vibração cromática
Madrid em 2008 e Matemática Moderna
que altera a percepção de espaço, objetos
em 2005, na Galeria Casa Triângulo em São
e corpos. Corpos que são afetados por esta
Paulo. É doutornada em Poéticas Visuais
luz violeta em sua pele, e pela excitação
pela ECA/USP, com a pesquisa “Estados
visual que ela provoca.
Lucia Koch Alterados do Lugar”.
| 85
[
[ F.A.q.2 ]

[ [
Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4

Mesa 2 - Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos


Luis Miguel Girão | Opera Som = Espaço
Glauce Rocha | Olhos de L S V_Er
Alexander Pilis | Paralaxe arquitetural: Crise visual

faltam as fotos
Entrevista | David MacConville

| 86
Detalhe do público interagindo com o trabalho ““Shiva” de Paulo Nenflídio
[ F.A.q.2 ]

Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4

Relato | Tetê Tavares

A Mesa “Sedução do Olhar/ Olhar da Sedução”, dedicou-se à discussão sobre o processo


da visão - tanto do ponto de vista fisiológico quanto social/cultural - e sua intensa relação
com os outros sentidos. Para tratar desta questão, foram convidados Luis Miguel Girão,
Glauce Rocha, Alexander Pillis e o perguntador David McConville.

Opera Som = Espaço

Luis Miguel Girão (Portugal) é artista transdisciplinar, mestre em mídias digitais e


doutourando do Planetary Collegium. Fundou a Artshare, empresa de investigação
tecnológica aplicada à arte e, ao lado de outros dois artistas, formou o UnoDuoTrio que
desenvolveu o projeto CyberLieder. Além disso, foi assistente de curadoria e diretor técnico
do Laboratório de Artes Digitais da Bienal Internacional de V.N. de Cerveira. Em sua
exposição, explicou que considera a visão como um processo interativo multissensorial,
que articula o que vemos e o que conhecemos. Em seguida, apresentou alguns projetos
audiovisais interativos desenvolvidos para pessoas com necessidades especiais na Casa
da Música, em Porto.

Olhos de L S V_Er

Glauce Rocha é doutoranda pela USP em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês.


Em sua exposição, criticou a cultura grafocêntrica e propôs o entendimento da imagem
como texto, que deve ser interpretado conforme os sistemas simbólicos compartilhados
por uma sociedade. Segundo Glauce, a visão não está em nossos olhos, mas na interação
entre os seis sentidos. A pesquisadora também tratou da imagem no caso da realidade
virtual, que seria capaz de produzir uma “senestesia” - conceito que desenvolve no texto
escrito para o evento que pode ser encontrado neste e-book.

| 87
Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Arquitetura Paralaxe: Crise Visual

Alexander Pillis é artista, arquiteto e professor da Universidade Politécnica da


Catalunha. Em sua fala, apresentou o conceito de “Arquitetura Paralaxe” que já aplicou em
diversos projetos, entre eles os trabalhos apresentados na 25ª e 28¬ª Bienal Internacional
de São Paulo. O conceito de paralaxe, de acordo com Alexander, baseia-se em um teorema
geométrico grego e significa a tentativa de se posicionar através de dois pontos que não estão
fixos (como acontece na orientação através dos corpos celestes). Em analogia, a “Arquitetura
Paralaxe” pode ser vista como um instrumento de crítica da visão contemporânea. Através
dela é possível examinar objetos e idéias desde vários pontos de vista, contrariando o
sistema monocultural que defende uma verdade única.
Sedução da Visão

David McConville é artista, fundador da Eluminati (Empresa especializada em projeção


360º), responsável pela programação contemporânea do Black Mountain College Museum
+ Arts Center e é doutourando do Planetary Collegium. Na posição de perguntador, iniciou
sua fala indicando um ponto comum entre as apresentações. Segundo ele, as exposições
dos três participantes da mesa direcionaram para a análise e criação de dinâmicas que
propõem uma nova perspectiva sobre a experiência da consciência, utilizando a tecnologia
como ferramenta. Sobre esse ponto, questionou qual seria o papel do artista/perquisador
ao criar essas novas ferramentas de percepção da realidade.

Debate

A primeira parte do debate girou em torno da aplicação pragmática dos conceitos


e projetos apresentados pelos debatedores anteriormente. Luis Miguel Girão comentou
que, se colocarmos lado a lado as perspectivas dos membros dessa mesa, e mesmo das
anteriores, ficará clara a idéia de que nossos sentidos são construídos, informados. Partindo
desse princípio, todas as pesquisas apresentadas têm grande importância ao nos fornecer
informações sobre a percepção humana. Especificamente em seu trabalho, falou sobre
o desenvolvimento de softwares e interfaces utilizadas para auxiliar o desenvolvimento
motor, cognitivo e psicológico de pessoas com necessidades especiais. Já Alexander Pillis
contou que seus projetos, mesmo os que se desenvolvem a partir do contato com pessoas
cegas, não têm uma ambição pragmática específica além da produção de conhecimento.
Finalmente, Glauce Rocha falou de seu projeto pedagógico, que busca ampliar a percepção
e a consciência de seus alunos além de estimular o diálogo entre as diferenças através do
que chama de letramento crítico.

| 88
Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Abrindo uma nova rodada de discussão, Sérgio Basbaum, um dos curadores do evento,
retomou a questão que havia proposto na segunda mesa do evento: “A obra de arte tem
a obrigação de ser útil?” David foi o primeiro a debruçar-se sobre a pergunta: se a arte é
pragmática ou útil depende de como você a vê, disse. O trabalho de Magritte, por exemplo,
pode ou não ser de extrema utilidade para algumas pessoas. Miguel, de outra perspectiva,
afirmou a utilidade da arte. Segundo sua eplicação, a arte pode não ser funcional mas deverá
ser útil: o artista sempre teve uma função na sociedade que é a de criticar, propor soluções.
Por fim, Sérgio Basbaum, citou Ronaldo Brito para responder sua própria questão: “Se faz
arte ao implodir as ilusões da verdade com “v” maiúsculo e construir ilusões de verdade
com “v” minúsculo.”

Para concluir o debate, David McConville retomou a palavra e o tema da mesa que havia
sido deixado um pouco de lado. Afirmou, então, que sua função como artista é a de fazer
as pessoas mais conscientes sobre o ato de ver. Para ele, as questões relacionadas à visão
são muito importantes, pois exercem um grande papel no modo como percebemos nossa
própria existência.

Tetê Tavares

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Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Opera Som = Espaço

A visão pode ser interpretada de diversas


maneiras, mas neste pequeno texto eu irei Luis Miguel Girão
abordá-la a partir de duas perspectivas. Artista e Arquiteto | Portugal
Uma olha para o modo como os humanos
percebem a luz através do ponto de vista
de aspectos relacionados à cognição. A
outra encara a visão como a conjunção
das expectativas sobre desenvolvimentos
futuros na percepção aumentada. Em
suma, aqui apresentarei minha visão sobre
a visão. Como uma conseqüência, o bio-
eletromagnetismo será proposto como
a área de conhecimento a partir da qual
novas idéias poderão surgir.

A percepção humana através do Artista transdisciplinar. Fundou a Artshare,


espectro eletromagnético depende uma empresa de investigação tecnológica
consideravelmente da quantidade de aplicada às artes. Estudou arquitetura,
conhecimento envolvida neste processo música, artes visuais e musica eletrônica.
interativo. Tem mestrado em design e Mídias Digitais.
Em 2007 recebeu a bolsa Ernesto Souza
Um exemplo sagaz é o proposto por onde realizou Multiverse em colaboração
Kaya Optics. Sabendo que: populares com Rolf Gehlhaar, trabalho que apresentou
câmeras de vídeo domésticas padrão no Experimental Intermedia Foundation, em
possuem a possibilidade de enxergar no New York. Colaborou com vários artístas e
mais elevado espectro de infravermelho seus trabalhos sido apresentados em países
– visão noturna; as emissões solares de como EUA, Canadá, Alemanha, Dinamarca
luz infravermelha são muito fortes; e o e portugal. Atualmente concentra-se no
fato de que a maioria das roupas tingidas desenvolvimento de sistemas audiovisuais
manufaturadas não reflitam esta zona do interativos.
espectro eletromagnético, levaram esta
| 90
Luis Miguel Girão | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

companhia a desenvolver um sistema que permite enxergar através de algumas roupas.


Esta companhia desenvolveu um filtro de baixas freqüências que retém a luz no espectro
“visível” por humanos e deixa o infravermelho passar. Este filtro aplicado a uma câmera
de vídeo padrão com sua visão noturna ligada revela os corpos sob as roupas ou mesmo
texto impresso sob tinta permanente. Esta abordagem tecnológica ilustra a idéia de
conhecimento como um caminho que nos permita estender nossa percepção do espectro
eletromagnético.

Magritte com sua idéia de “Ceci n’est pas un pipe” já havia trazido à tona o tema de
aspectos cognitivos da visão. Abordando questões relacionadas à representação, ele
propôs um tipo de agnosia do ato de fruição. O desligamento da função e significação
do objeto representado abre novas formas de interpretação deixando de lado o caráter
representacional da pintura.

Um tipo diferente de agnosia leva à cegueira no livro homônimo do escritor português


José Saramago. Em sua obra, recentemente tendo sido adaptada para o cinema pelo
direto brasileiro Fernando Meirelles, as personagens perdem a habilidade de identificar o
ambiente que as cerca e portanto não são capazes de enxergar. Não é como se perdessem
suas capacidades visuais, mas ao invés, elas apenas não sabem nada a respeito do que
é percebido por seu sistema visual. Este fenômeno cognitivo é representado por Meirelles
como uma brancura total. Em oposição ao que e considerado como sendo a escuridão na
cegueira é brancura neste caso. Em termos análogos no âmbito sonoro isto poderia ser
como a diferença entre ouvir e escutar. Na verdade, a capacidade de escutar, junto a todos
os seus outros sentidos funcionais que permite às personagens desta estória sobreviverem
até o dia em que se recuperam da estranha cegueira.

A conjunção dos sentidos é algo que tem me fascinado por algum tempo. É muito importante
entender que os processos de visão pelos quais vemos são extremamente relacionados
aos da audição e outros processo sensoriais. Alem do exemplo clássico dos filmes, no
qual o som informa e condiciona o modo como “vemos” uma sequência de imagens em
movimento, um exemplo bastante completo é aquele descrito como Experiências Extra-
Corpóreas (OBE).

Olaf Blank e Gregor Thut, em seu artigo intitulado “Inducing Out-of-Body Experiences”
[Induzindo Experiências Extra-Corpóreas], consideram que OBE ocorrem quando “a agência
(ou a sensação de sermos o agente de nossas ações e pensamentos) está localizada na
posição do ‘eu’ elevado, desencorporado.” Em outras palavras, as pessoas, quando
experimentam estes fenômenos “vêem” seus “eus” do exterior de seus próprios corpos.

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Luis Miguel Girão | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Mas a OBE é, na verdade, uma experiência multi-sensorial: as pessoas realmente sentem


como estando presentes em algum lugar fora de seus corpos.

Isto obviamente levanta uma série de questões, incluindo qual é o real papel dos olhos no
processo de ver. Mas, a esta altura, eu gostaria de introduzir meu trabalho artístico anterior,
que foi crucial na formulação das perguntas que me levaram à minha real pesquisa. Antes
de estudá-las, eu já estava interessado em projetar experiências multi-sensoriais.

A Primeira Série de Estudos Audiovisuais para o Corpo em Espaço Sensorial, apresentados


na Fundação De Intermídia Experimental em Nova York, USA, no dia 22 de março de 2007,
eram compostos de três abordagens distintas em mapear a posição do corpo no espaço e
relacioná-la com saídas audiovisuais. Ali, uma câmera sobreposta olhava para o palco e as
imagens de vídeo geradas eram projetadas na parede de fundo do palco. A saída de som
estava conectada ao sistema de estéreo da casa.

[Figura 1 – Estudo I.]

O primeiro estudo tinha duas etapas. Em uma primeira etapa um algoritmo analisa a
quantidade de movimento percebida pelo corpo. Esta informação é usada para controlar
o volume de ruído gerado. Se o corpo pára, a contagem cumulativa é retornada ao zero.
O processo cumulativo recomeça quando o corpo inicia seu novo movimento. Quando a
quantidade de movimento alcança um certo limiar o programa muda para um modo diferente.
Neste modo a posição do corpo no espaço cartesiano é transferida com o proósito de
controlar um filtro para o gerador de ruído. No eixo X o corpo determina a freqüência central
do filtro e o eixo Y permite controlar a saída de volume.

[Figura 2 – Estudo II.]

I segundo estudo era baseado em um algoritmo que determina se o corpo no espaço esta
se movendo ou não. O movimento inicia a gravação do som ambiente e um algoritmo
de desenho. Ambos mantêm a gravação até que o corpo pare. O programa de gravação
sonora acumula até sete camadas e automaticamente as toca em modo cíclico. Para o
desenho, uma linha é desenhada em uma posição na tela determinada pela posição do
corpo no espaço. O tamanho da linha é determinado pelo volume do som produzido naquele

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Luis Miguel Girão | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

momento. A direção da linha é determinada por um algoritmo de rotação que também varia
de acordo com a intensidade da entrada de som.

O terceiro e último estudo foi baseado em uma analisador de trilhas. Uma trilha do corpo é
gravada entre ações de parada e recomeço. O valor máximo e o mínimo dos pontos no eixo
horizontal sã determinados quando o corpo para. Dezoito pontos intermediários também
são determinados e graduados de acordo com sua distancia dos pontos máximo e mínimo.
Cada um desses pontos recebe uma representação visual e audível. Em termos visuais
eles são traduzidos em círculos de tamanhos correspondentes e gradações de verde. Em
termos audíveis eles determinam o volume individual de uma parcial correspondente de um
harmonizador de ondas senóides de 60Hz.

[Figura 3 – Estudo III.]

Esta última peça de software também fora usada na Segunda série de estudos audiovisuais
em espaço sensorial, apresentada no Teatro Ellen Terry, em Coventry, Reino Unido, no dia 6
de junho de 2007. Ali, a saída de vídeo foi projetada no chão.

[Figura 4 – Segunda série de estudos audiovisuais em espaço sensorial.]

Considero ser o mais sofisticado dos estudos porque estabelece um novo paradigma de
interação. Seu uso implica a compreensão do sistema. Somente após isto acontecer é que
o usuário se torna capaz de interagir “apropriadamente” com o sistema. Funcionando de
tal maneira que o usuário pode predizer o resultado de suas intenções. Isto transforma o
sistema de um instrumento eletrônico de expressão audiovisual em uma ferramenta em
tempo real para composição de música audiovisual.

Neste conjunto de experimentos estabeleci um numero de princípios de correlação de


composição que permitiu a produção simultânea de saídas audíveis e visuais. Não obstante,
estas correlações eram artificiais no sentido de que eram estabelecidas por mim e não
eram baseadas em nenhum sistema natural universal. Este tipo de fenômeno na natureza
é de certa forma raro e específico, como por exemplo a sonoluminescência. Tanto que,
no campo de meta-materiais existe a necessidade de desenvolver combinações especiais
de matéria que permitam o controle simultâneo de som, luz e calor. Mandolvan et alia. do

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Luis Miguel Girão | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Departamento de ciência dos materiais e engenharia, desenvolveram um modelo teórico de


um meta-cristal que permite tais funções.

É esta busca por experiências multi-sensoriais significativas que me levou a minha pesquisa
de fato.

Como referido acima, a indução de Experiências extracorpóreas é Possível e uma das


técnicas utilizadas neste processo constitui um exemplo paradigmático do que considero
ser o domínio do bioeletromagnetismo: “Estimulação Magnética Transcraniana (TMS) é uma
técnica não-invsaiva para excitar ou inibir transitoriamente áreas relativamente circunscritas
do cérebro humano. [...] Durante a TMS, um forte, relativamente focado e rapidamente
cambiante campo magnético é aplicado sobre o escalpo, para estimular eletricamente uma
área cortical dada através de indução eletromagnética.” (Blanke & Thut)

TMS pode ser o ponto de partida do desenvolvimento de novas interfaces para expressão
multi-sensorial. É nestes contexto que proponho tecnologias relacionadas ao bio-
eletromagnetismo enquanto um meio para criação de novas experiências estéticas.
A intersecção de todos os sentidos como uma entidade única irá expandir nosso papel
na qualidade de agentes no processo interativo de visão. Tecnologias relacionadas ao
bio-eletrmagnetismo permitirão que vejamos através de roupas, através do corpo até o
“espírito”.

Luis Miguel Girão

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Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Olhos de L S V_Er

Introdução Glauce Rocha


Pesquisadora da Cultura Visual | São Paulo
Contrário à maneira tradicional de se tomar
a visão como um sentido auto-explicativo
(‘ver é crer’), transparente e imediato (‘uma
imagem vale por 1.000 palavras’), este artigo
propõe que a visão não está localizada nos
olhos, pois ocorre na interação de nossos
seis sentidos, de nosso corpo e dos lugares
físicos e simbólicos relativos às práticas
sociais às quais estamos culturalmente
ligados. É justamente neste jogo entre
nossos sentidos e esses lugares que damos
sentido àquilo que dizemos ver.
Doutora em Letras pela USP, defende que
Ver é crer
a visão não está localizada nos olhos, mas
na confluência de nossos seis sentidos e
Acostumados, por exemplo, ainda a olhar
no nosso corpo, conforme nossos espaços
para uma fotografia e acreditar que seu
e lugares socio-culturais. Assim sendo,
espaço bidimensional é ou refere-se a
aquilo que acreditamos ser real mais reflete
um espaço tridimensional ‘lá fora’, nós
nossas crenças do que é própriamente um
satisfazemos nossa compreensão a seu
testemunho isento do mundo.
respeito respondendo à pergunta “o que é
isso?” ou “quem é?”. Além disso, somos
muitas vezes levados a compreendê-
la a partir de outro sistema simbólico
(completamente diferente do da natureza
fotográfica), a escrita – como nos jornais
diários, “lemos” as imagens fotográficas
conforme suas legendas ou textos nos quais

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Glauce Rocha | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

essas imagens aparecem, para ilustrá-los.

Colocada às margens do papel, a fotografia, nesses jornais diários, ainda é tida como
prova incontroversa do fato narrado. Paradoxalmente, também é submetida às regras de
um espaço cartesiano e tempo cronológico para ser produzida ou compreendida (primeiro
e segundo planos e o tempo passado do fato retratado, por exemplo).

Essa postura grafocêntrica em relação à imagem está relacionada ao valor e ao poder que
a escrita tem em sociedades ocidentais, bem como a reflexos do iluminismo, positivismo
e racionalismo cujos valores estruturam o mundo em relações hierárquicas, restringem
nosso cotidiano a ações e reações de um passado, presente e futuro, onde nossos corpos
não podem ocupar vários lugares ao mesmo tempo, e restringem o status de real a uma
realidade mensurável, palpável, física e homogênea.

O turno visual (Mirzoeff, 1999), pelo qual passou nossa sociedade no final do século XX,
quando seu cotidiano não só foi impregnado de imagens, mas também e, sobretudo,
foi construído e organizado por imagens, bem como o surgimento da imagem pixelada,
desestabilizam a ordem cartesiana e o grafocentrismo, além do valor documental da imagem
fotográfica, nos levando a uma re-significação ou re-contextualização desses valores tidos
como base de nossa realidade.

Ver é interpretar

Nesse contexto, ver não é mais crer, mas interpretar conforme nossas crenças e nossos
valores socialmente construídos e compartilhados.

A sensação de clareza frente a uma imagem ou àquilo que vemos está ligada ao conhecimento,
aos valores e aos sistemas simbólicos consensuais entre os espectadores, ou seja, se tudo
isso estiver sobreposto ou compartilhado, tem-se a sensação de transparência ou a ilusão
de não-interpretação – álbuns de família, por exemplo.

No entanto, caso esses conhecimentos e sistemas simbólicos não sejam compartilhados,


temos a sensação de opacidade, de necessidade de interpretação – como em imagens de
tomografias e aquelas oriundas de culturas diferentes da nossa.

Observemos a imagem ‘Chocolate’ a seguir, gerada por um microscópio eletrônico.

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Glauce Rocha | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Fruto de um sistema simbólico não comumente compartilhado, essa imagem se distancia


do que se costuma tomar por um pedaço de chocolate – incomum para uns, comum para
outros, químicos, por exemplo.

Nesse sentido, como a veracidade ou transparência da imagem não é inerente a ela, convido
meus leitores a perceber como determinada imagem significa em seu momento de recepção
ou com base em quais valores e sistemas simbólicos foi construída.

Esse caminho explicativo de ver se vendo ou ver com olhos de ver, ou seja, ver que vemos
com base em conhecimentos prévios herdados e transformados culturalmente, desloca a
visão do olho para o olhar da visão – uma tomada de consciência de que vemos com aquilo
que temos em nós, através de nós, entre nós, o que implica um jogo de espelhos onde os
reflexos refletidos refletem não mais um referente externo ao olhar, mas nossas crenças ou
regimes de verdade (Veyne, 1984).

Ver é ser

A coexistência do turno visual e da comunicação mediada por computador e pela tecnologia


digital, nos chama para outra re-visão ou reflexão.

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Glauce Rocha | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

No atual espaço aumentado (Manovich, 2006) em que a tecnologia digital sobrepõe ao


espaço físico vários outros espaços de informação, nos deparamos com a simultaneidade
de lugares que estimulam ou requerem nossos seis sentidos e nosso corpo no processo de
construção de sentido.

Nosso conhecimento pode ser construído na confluência de várias práticas sociais e de


vários lugares momentaneamente ‘estáveis’, localizados num espaço –ação: transform-
ação, sens-ação e moviment-ação. E o intercâmbio entre esses espaços e nossos sentidos
gera as mudanças de nossas perspectivas ou visões.

É justamente nesse espaço aumentado que o fluxo ou a interação entre nossos sentidos
desencadeiam ou nos levam a determinadas significações conforme os regimes de verdades
dos contextos em que nos inserimos, ou seja, num cadinho tão diverso somos levados a
desenvolver uma visão senestésica, propositalmente assim grafada para nos lembrar desse
intercâmbio entre cin-, sin-, cen-estesia (sentido pelo qual se percebem os movimentos
musculares, o peso e a posição dos membros; a sensação em certa parte do corpo produzida
pelo estímulo em outra parte; e sensação que a pessoa experimenta de sua existência,
respectivamente). Nesse sentido, a tradicional oposição entre realidade e virtualidade não
mais se sustenta, pois ambas são construções sócio-históricas que refletem essa dinâmica
entre os distintos lugares e os regimes de verdades em transformação.

Aqui, 1+1=3. Ou seja, um sentido interfere ou estimula outro(s) sentido(s) na construção


de sentido por meio de afinidades, possibilitando nossa conexão com vários lugares ao
mesmo tempo, os quais também interferem em nossa percepção.

Interrompendo essa reflexão

Refletir sobre a visão como o ato de ser é perceber como seu processo de construção de
sentido se dá – ver se vendo é a percepção de quem percebe, bem como da posição desse
espectador. Assim sendo, refletir sobre a transparência da visão é também uma maneira
de questionar e refletir sobre uma convenção, uma suposta visão única construída a partir
de uma determinada posição. Ou seja, trata-se de um caminho explicativo conforme as
ontologias constitutivas conforme Maturana propõe colocar a objetividade entre parênteses
(2001).

Na verdade, essa reflexão reflete o jogo entre nossos sentidos e os lugares que ocupamos,
num estado de (im)permanência e aponta para a possibilidade de ampliar o limite de nossa

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Glauce Rocha | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

visão e nosso conceito de realidade, não mais restrita ao modelo cartesiano, numa atitude
sin-, cen-, cin-estésica de movimento contínuo.

Glauce Rocha
Referências

MANOVICH, Lev. The poetics of augmented space, In: JEWITT, C., TRIGGS, T. (ed.), Visual
Communication – special issue: Screens and the social landscape, volume 5, number 2,
june 2006, pp.219-240.

MATURANA, Humberto. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Organização e


tradução Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

MIRZOEFF, Nicholas. An Introduction to Visual Culture. London: Routledge,


1999.

ROCHA DE OLIVEIRA, Glauce. 2008. Sobre o Azul do Mar: Virtualidades Reais e Realidades
Virtuais. Tese. Universidade de São Paulo (FFLCH). Disponível em: http://www.dominiopublico.
gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=107928

VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação


constituinte. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Paralaxe arquitetural: Crise visual

Recognição Alexander Pilis


Artista e Arquiteto | Rio de Janeiro / Eapanha
Olá, meu nome é ap e eu sou um arquiteto
cego preocupado com a crise visual,
cegueira como uma crítica da modernização
da visão.

Eu costumava usar óculos bem escuros


para exagerar minha condição; hoje em
dia uso óculos claros para parecer um
intelectual.

Não consigo reconhecer-me no espelho;


não consigo me reconhecer na arquitetura.
Artista carioca e desde 1998 vive em
Recomendo que leiam isto: “How We See Barcelona. Considerado um indisciplinado
Straight Lines” [Como enxergamos linhas investigador da arquitetura, vem trabalhando
retas], de John R Platt. Scientific American, com o conceito da “Arquitetura Parallax”,
junho de 1960. uma metodologia que procura uma nova
ordem de pensar, articular e representar
O piscar de olhos é o momento no qual a realidade, por outros padrões que
podemos reconhecer a compleição de uma não apenas aqueles baseados na visão.
idéia. Alexander Pilis é professor no programa de
mestrado em arquitetura e urbanismo na
Fecho meus olhos para escutar de maneira Universidade Politécnica da Catalunha e do
atenta. programa de arquitetura e espaços públicos
na Universidade Pompeu, em Fabra. Em
Minha arquitetura é uma imagem mental, 2008 desenvolveu o projeto “Arquitetura
uma construção mental que depende tanto Paralax: aparecimento e desaparecimento”,
da descrição de meu cliente como da para a 28. Bienal Internacional de SP.
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Alexander Pilis | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

experiência de meus sentidos.

Louis Kahn disse uma vez que a luz era a estrutura de seus edifícios e não as paredes nuas
e colunas.

Meu olhar existe apenas através do simulacro de arquitetura que fora descrito por outra
pessoa.

Arquitetura como interface aborda a relação entre visão, cegueira e invisibilidade, que é a
representação do invisível.

Para entender a dimensionalidade da arquitetura preciso abranger sua estrutura, preciso


escutar seus chiados, seus aromas e seus ecos.

Fantasia nada mais é que um desejo de ver com seus olhos fechados.

O mundo das aparências desapareceu e eu pratico as realidades inacessíveis, já que a


visão é um instrumento de cegueira.

Posso olhar diretamente para o sol, estando já em completa escuridão.

Minha vida é uma câmara escura, eu sou uma câmara escura. Eu sinto o sol através de seus
efeitos térmicos.

O que vejo é que você me permite ver.

Possuindo uma necessidade para construtos arquitetônicos leva a criar um espelho interior,
em outras palavras, um speculum mundi, que expressa a colisão de nossa atitude em
relação à realidade que se encontra fora de nosso corpo.

O desejo por imagens é conseqüentemente o trabalho de nosso interior, que consiste em


criar, baseado em cada um de nosso pontos de vista válidos, um objeto Possível e aceitável
para nossa memória. Podemos apenas ver o que sabemos: não há visão alem de meu
conhecimento. O desejo por imagens reside na antecipação de nossa memória e no instinto
óptico, o qual procura apropriar-se do esplendor do mundo – sua luz e escuridão.

O ato de visão é a capacidade de ver detalhes e de reter atenção.

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Alexander Pilis | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Mas se estou em uma janela olhando para fora durante o inverno, poderia pensar que o dia
lá fora está quente apenas porque o aquecedor está quente e deslocaria meus sentidos.

A criação de arquitetura torna o cego mais “visível” para o que vê.

O que você realmente vê é aquilo que você realmente preconcebeu.

Em sua limitação ilusória, a experiência da visão é estruturalmente idiota: os que vêem


são profundamente cegos a sua própria cegueira, e a interação com o fisicamente cego é
o antídoto natural para esta condição crônica. Poucas experiências são tão iluminadoras
visualmente como a descrição de arquitetura para e com uma pessoa cega.

Se você pensou que eu fosse cego, o que é que você não consegue ver?

As relações entre arte e arquitetura e cegueira são um paradoxo, uma confrontação entre o
senso de visão e nossa visão do mundo.

Visão é um aparato da autoridade.

Uma experiência de visão é uma ausência do enxergar, uma incapacidade ocular. Não há
linha reta na natureza e assim também na arquitetura. É apenas uma invenção cultural,
conhecimento apreendido culturalmente.

Eu dependo de outros para fazer arquitetura. Eles precisam descrever a paisagem ou


qualquer outra coisa que esteja diante de mim ou o que eles quiserem que eu construa.
Outras pessoas me dizem o que vêem e eu ajo de acordo. Tenho de escutar o olhar físico
daqueles que servem de mediadores entre seu discernimento e visão e minha própria
realidade interior.

Nada ao redor mudou, apenas o que você deseja ver.

Freud propõe que a cegueira é um substituto simbólico para a castração. Ele também sugere
que a castração é o fator determinante na formação subjetiva e no processo civilizador
como um todo. Se for o caso, a natureza de todas as formações culturais em geral pode ser
avaliada com base na relação que mantêm com a cegueira e o invisível. A questão então
não é o que pode ser dito sobre a cegueira das diversas localidades da cultura, mas antes
o que a cegueira tem a dizer sobre tais localidades.

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Alexander Pilis | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Pessoas de visão

Pessoas que usam seus olhos para receber informação sobre o mundo são chamadas de
pessoas de visão. Elas estão acostumadas a observar o mundo em termos visuais. Em
muitas situações elas não serão capazes de comunicar oralmente e muitas podem recorrer
a apontar ou outro tipo de gesticulação. Expressões faciais sutis também podem ser usada
para expressar sentimentos em situações sociais.

Prepare calmamente a pessoa de visão para seu ambiente falando lentamente em um tom
normal de voz.

Questões dirigidas à pessoa de visão ajudam a focar a atenção de volta à comunicação


verbal ao invés da visual.

Pessoas de visão não conseguem funcionar bem sob condições de pouca luz e ficam de
modo geral completamente indefesas em total escuridão. Seus lares normalmente são
iluminados de maneira exagerada e com grande esforço, como são os negócios dirigidos
ao consumidor de visão.

Pessoas que podem ver geralmente têm medo da escuridão.

Espaços Teóricos.

A arquitetura pode existir sem luz.

O espaço medido teoricamente é a distância entre o que se espera que você veja e o que
você realmente está vendo.

Para entender a arquitetura você precisa colidir com ela.

Produtos e objetos do século dezenove para o uso de cegos, mediam e estendem seus
sentidos no mundo arquitetônico visto h. Produtos e objetos recentes substituem os
sentidos com mediação através de voz e som, transformando o espaço privado em um
espaço público e ocupando o silêncio.

Crise visual

Todos somos cegos, exceto os cegos, que podem novamente nos ensinar a enxergar, a

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Alexander Pilis | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

reter atenção.

Nós vemos demais. Não há fim para a visão. Há muito para se ver. Se não fazemos mais
nada, nós vemos. Vivemos em uma cultura tão repleta de coisas para serem vistas que a
visibilidade é o que determina o existir e o não-existir de objetos, experiências e identidade.
Há tanto para ver, e raramente uma oferta, quase nunca a oferta de um espaço ou um tempo
para enxergar. Menos ainda a oferta de um espaço ou tempo nos quais não precisemos
sequer enxergar, mas antes...

Alice Boa Vista, uma profissional de relações públicas, em uma ocasião perdeu sua visão
temporariamente, ela se tornou cega por sete meses, repentinamente, para então recobrar
sua visão. Tensão elevada provoca a contração do nervo óptico e a elevação da pressão no
fundo dos olhos, causando cegueira física. Uma crise visual.

Na Grécia Clássica Antiga, acreditava-se que a visão formava uma tela. A realidade se
movia por detrás da tela do visível, fluindo por baixo da superfície das aparências.

Referência situada

Você consegue compreender a arquitetura pela perspectiva ou mesmo pela percepção?

E se você fosse cego?

Profundidade de campo?

E se você fosse cego?

Quais são os pontos de referência quando não há perspectiva ou profundidade de


campo?

Luz?

E se você fosse cego?

Como o tempo passa se não há luz?

Você consegue compreender a arquitetura exceto ao colidir com ela?

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Alexander Pilis | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Como você vê?

O que você vê?

O que você espera ver?

O que você pensa estar vendo?

Como você percebe?

Como pensar, articular, representar um outro sistema ordenador não baseado na visão, não
dependente desta singularidade visual, não baseado no olhar como a verificação singular
da realidade e não visto a partir de um ponto de vista?

Quando uma pessoa cega diz, “eu imagino”, isto significa que ele ou ela também possui
uma representação interior de realidades exteriores.

Teorema da paralaxe

A investigação do teorema da Paralaxe originou-se no interior da profundidade de campo


em colapso da metrópole de São Paulo. Planejamento sem grade, descentralizado, um
desastre de construções arquitetônicas e interesses privados. Aqui meus sentidos foram
desorientados. Minhas referências históricas da arquitetura foram derrubadas. Meu corpo,
da maneira como é tradicionalmente conceptualizado, percebido, representado – tornou-se
provisional, um epifenônemo.

A profundidade de campo arruinada, sem distância, sem projeção, sem passado, sem
futuro.

Como pensar articular, representar um outro sistema ordenador não baseado numa posição
centralizada de visão, não baseada no ponto de fuga singular?

A metodologia ancestral da Paralaxe é uma metodologia para o discurso, o modelo para a


apreensão do fenômeno encontrado no tempo e no espaço.

Ponto A e Ponto B não são os únicos arquitetos concebendo um espaço (um lugar).
Ponto A e Ponto B não são as únicas pessoas que entram, atravessam, habitam ou deixam
este espaço. A Paralaxe como metodologia pede por mais do que um alfabeto finito de
pontos.

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Alexander Pilis | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

A Paralaxe como metodologia vislumbrou um ambiente visto pelo Ponto 1 através do Ponto
N, o que quer dizer por qualquer e toda pessoa qiue possa descrevê-lo.

Qualquer número de pessoas adicionam seu testemunho para a compreensão do espaço.

Podemos começar a imaginar um processo de inteligência coletiva.

Coletividade de inteligência.

Sem hierarquia, a compreensão do espaço é mais que monocular, mais que binocular,
mais... em meio a

Se você não pode ver, invente.

10 de dezembro de 2008 - Alexander Pilis

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Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2 ]

Entrevista com David MacConville

Na primeira edição de FAq, você David MacConville


apresentou uma obra em vídeo ( http:// Teórico da comunicação | São Paulo
www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/
Co-fundador da Elumenati, empresa de
faq/br.html ), na qual algumas questões
engenharia e design em Mineapolis, EUA.
sobre ver são discutidas. Como você
Dirige a programação contemporânea do
relacionaria estas idéias com os
Black Mountain College Museum + Arts
tópicos discutidos no debate da FAq
Center. Trabalha junto ao Buckminster Fuller
sobre a visão que você liderou?
Institute no desenvolvimento do conceito do
O tema recorrente de que a consciente Geoscope, de Fuller. É formado em música
emerge do processo de corporificação e engenharia de áudio na UNC-Asheville.
reitera que a própria percepção é um ato
– uma atividade dinâmica intimamente
vinculada à interação. Alex Pilis enfatizou
a natureza dinâmica do processo de
percepção em sua afirmação de que “Somos

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David MacConville | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2
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cegos, aprendemos como enxergar”. De modo similar, tenho explorado como uma
crescente consciência reflexiva deste processo de aprendizado do olhar pode ser cultivado
através de experiências imersivas mediadas, como minha obra Optical Nervous System
[Sistema nervoso óptico]. Ela explora como a experiência da visão surge de nossa cognição
corporificada e como aquilo que vemos é o que esperamos ver. Para experimentar a visão
de novos modos, é importante que, primeiramente, questionemos nossas suposições a
priori sobre o mundo.

Em seu artigo para este livro, Alexander Pilis coloca uma questão interessante:
Como pensar, articular, representar um outro sistema ordenador não baseado na
visão, não dependente desta singularidade visual, não baseado na visão como
a verificação singular da realidade e não visto a partir de um ponto de vista? O
que você diria a este respeito?

O apelo de Pilis para o desenvolvimento de modos de conhecimento que vão alem da


visão e de uma perspectiva singular possui uma relação apardoxal com meus próprios
interesses. Modos de conhecimento que vão alem do ocularcêntrico devem ser obviamente
explorados, e o papel privilegiado outorgado a um “ponto de vista” específico deve ser
reconhecido e notado. Entretanto, ao invés de percebê-los como problemáticos, prefiro
explorar a gestalt visual como um meio de trazer atenção para isto (não de forma distinta
dos brinquedos filosóficos do século dezoito). Já que a visão possui uma largura de banda
perceptual extraordinariamente alta, é uma ferramenta útil para explorar sua relação com
a construção e representação de modelos mentais. Enquanto Pilis parece destacar este
modo dominante de percepção ao apelar para a experimentação com sua ausência, meu
desenvolvimento de ambientes de mídia visual imersiva procura trazer atenção a modos
pelos quais nosso entendimento e experiência da visão podem ser desconstruídos através
de seus próprios dispositivos.

De acordo com Vilém Flusser, o alvo principal da Cultura Ocidental é transformar


o mundo externo, material, na projeção de cálculo. Como você vê esta percepção
enquanto moldada pela interação diária com aparatos digitais?

As metáforas que empregamos para abordar e compreender nossos processos perceptivos


são transformados por nossas mídias. Já que ferramentas digitais quantificam e representam
o mundo material, é tentador discutir a percepção de uma forma na qual isto é refletido. Os
sentidos podem ser comparados a dispositivos de entrada digital. Com os processos mentais
de um perceptor funcionando como um processador central no qual um “modelo” do mundo
percebido é construído. Esta metáfora é reforçada continuamente através de interação

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David MacConville | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2
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contínua com ferramentas digitais, especialmente quando elas servem para estender
efetivamente o alcance temporal, especial e espectral de nossos sentidos corporificados.
Embora a experiência desta extensão não seja particular a ferramentas digitais (o telescópio,
o microscópio, o raio-x e a fotografia em lapso de tempo, etc. proveram funcionalidade
semelhante), elas expandiram dramaticamente as possibilidades de “capturar” fenômenos
em várias escalas de realidade. Estas apresentações mediadas estão moldando nossa
percepção tanto das limitações inerentes quanto da “sintonizabilidade” potencial de
nossos sistemas sensoriais. De modo semelhante, praticantes espirituais há muito têm
experimentado com a manipulação perceptual pela utilização de práticas e substâncias
que lhes permitem acessar experiências que se encontram além da realidade cotidiana.
Mas a ubiqüidade e fidelidade constantemente crescentes das ferramentas digitais estão
provendo novas oportunidades para induzir tais modos alterados de percepção através de
meios tecnológicos socialmente aceitáveis.

Adicionalmente, outro conceito central para as tecnologias digitais, o da “simulação”, provê


uma metáfora moderna através da qual teorias ancestrais sobre a natureza da experiência
consciente da realidade pode ser interpretada. Numerosas especulações contemporâneas
sobre a realide como simulação (a precessão de simulacros de Baudrillard, o filme Matrix dos
irmãos Wachowski, Simulation Hypothesis [Hipótese da simulação] de Nick Bostrom) podem
ser vistos como concretizações nascentes relacionadas ao que ensinamentos e práticas
ancestrais têm proposto por milênios (tal como o conceito hindu de Maya, ou a ilusão que
emerge da auto-ilusão). Não é difícil imaginar que somos todos simulações de computador
que se convenceram de que somos “reais”, embora eu ache que este experimento de
pensamento apenas me ajuda a apreciar ainda mais a extraordinária fidelidade de nosso
mundo presente e fenomenal!

Qual imagem você diria que poderia ajudar-nos a definir o futuro da visão?

Creio que a figura arquetípica da cúpula do paraíso oferece uma imagem poética para
definir simultaneamente nossa relação com a visão e com o cosmos. Nas palavras dos
hermeticistas, “Como acima, assim abaixo”: creio que a conceptualização macrocósmica
da totalidade da existência é análoga e inseparável da experiência pessoal da visão. Ambas
são projeções moldadas por nossas ferramentas observacionais, suposições e expectativas
e ambas têm profundo impacto sobre os modos pelos quais escolhemos viver no mundo.

Estruturas cupulares têm funcionado historicamente como representações da ordem


cósmica através de diversas culturas e estou interessado em como elas podem servir
como lentes através das quais examinamos esta rerlação entre visão e visões de mundo.

| 109
David MacConville | Sedução do Olhar / Olhar da Sedução | Mesa 4 [ F.A.q.2
]
Ademais, em décadas recentes, a elucidação matemática, cognitiva e artística da dita
“perspectiva esférica” ilustrou a extensão pela qual a percepção da “cúpula do céu” é uma
função da configuração de nosso sistema visual. Contrariamente à compreensão ocidental
da perspectiva (altamente influenciada pela apresentação retilinear da câmara escura desde
Leonardo da Vinci), o mapeamento completo de nosso campo visual é consideravelmente
mais esférico que linear. Isto cria, antes de tudo, a ilusão da “tela celestial” hemisférica
– um fenômeno que está sendo replicado atualmente através do desenvolvimento de
fotografia panorâmica omnidirecional e visores “imersivos”. Assim, a cúpula, para mim, é
uma imagem interessante que simboliza esta interrelação entre percepção visual, cognição
e representação.

De modo mais importante, vejo esta mudança na compreensão perspectivista como


se espelhando na mudança mais ampla relacionada ao papel central da subjetividade,
relatividade e causalidade mutua dentro de cada ato observacional. Assim como os
padrões constelatórios variantes imaginados no céu por culturas de todo o mundo, nossas
interpretações da “visão” afetam como nossos modelos de consciência e o cosmo são
construídos. O objetivo de minha prática é cultivar uma consciência experiencial deste
“efeito do observador” de formas diretas e compreensíveis, destacanado o potencial de
uma perspectiva mais dinâmica não apenas no ato de “ver”, mas também no de “ser”...

David Mcconville

| 110
MOSTRA Memórias Invisíveis | Dudu Tsuda

| 111
Mostra [ F.A.q.2 ]

Memórias Invisíveis

A criação desta instalação foi muito diferente Dudu Tsuda


de outros trabalhos que já realizei, tanto em Artista e Músico | São Paulo
arte- tecnologia, como em música ou em
performance. Ela partiu de um sentimento
puro, do carinho e amor pela minha avó.

Coletei durante um período de cinco anos,


memórias pessoais sobre sua vida, vídeos,
gravações em áudio e fotografias, num
mergulho cada vez mais profundo na sua
história, e sobretudo na minha.
Como diria meu querido amigo e terapeuta
Rick Scaff, um resgate de um antepassado
em vida que estava sendo feito através de
um simples ímpeto criativo e de preservação
É músico (Jumbo Elektro, Trash pour 4, Pato
da memória da minha avó.
Fu, Cérebro Eletrônico, Fernanda Takai),
compositor, produtor musical e artista
As histórias foram se tornando mais e mais
multimídia. Realiza e concebe instalações
interessantes na medida em que ficávamos
interativas (Vestir Contemporâneo -
mais íntimos. Detalhes jamais falados em
Teorema 2006/Núcleo Artérias, Vestir
família e casos completamente estranhos
Contemporâneo - Corpo Instalação - SESC
ao nosso tempo, fruto deste hiato de 45
2007, A Grife da Contracultura - Vida Louca
anos de vida que nos separa. Passagens
Vida Intensa - SESC 2008) além de trilha
muito tristes que realçam ainda mais a
sonora para dança contemporânea (Núcleo
grandiosidade e generosidade de seu
Artérias/Adriana Grechi, Lali Krotoszynski,
espírito, sempre leve, alegre, risonha e de
Letícia Sekito), cinema (Marcus Bastus),
uma simplicidade ímpar.
vídeo-arte (Rodrigo Gontijo, Rosângela
Leote), instalação e teatro.
Mais que um trabalho de biografia,
um mergulho de auto conhecimento, e

| 112
Dudu Tsuda | Memórias Invisíveis | Mostra [ F.A.q.2 ]

sobretudo de muita revisão de valores. Poucas pessoas se dão conta de quão grandiosas
são as pessoas comuns e anônimas. E é sobre este leitmotiv que me mantive o tempo
todo em que dei início às idéias criativas, que mais tarde culminariam na realização da
instalação.

Música Contemporânea

O estudo da música contemporânea sempre me fascinou, mas sempre ocupou um lugar


distante para mim. Algo intangível, complexo e de difícil aproximação.

No entanto, nos últimos 5 anos, fui criando uma curiosidade e um interesse enorme em
música eletro-acústica e paisagem sonora. Interesse que me motivou bastante na pesquisa
de compositores e autores da época como o dodecafonismo de Schoenberg e a música
concreta de Pierre Schaeffer.

A obra e os textos de Schaeffer me fizeram ficar ainda mais instigado com a questão acústica
das minhas vivências documentais na casa da minha avó. De conversas gravadas, passei
a gravar ambientes durante horas, e comecei a realizar experimentações com este material
aferido em trabalhos de trilha sonora para dança contemporânea e performance.

As experimentações em aplicação geravam interesse e novas descobertas para novas


experimentações em gravação, e assim por diante, criando-se então um ciclo criativo. Cada
gravação intentava para uma qualidade acústica diferente, ora valorizando o ambiente
externo, ora priorizando o som da voz, o que me proporcionou um enorme aprendizado
empírico e acabou formando um pool extremamente diversificado de áudios.

Uma coisa puxou a outra, e elas foram se puxando até que, num dado momento, senti uma
extrema necessidade de colocar todas aquelas sensações, emoções e experimentações
para fora.

Tamanha não foi a providência em receber o convite da Lali para realizar uma instalação,
exatamente no período que eu já tinha amadurecido melhor a idéia de como seria transformar
todos aqueles sentimentos e sensações em uma instalação interativa, e que havia também
recém voltado de uma turnê pelo Japão.

Aceito. Fazendo a vez do noivo estarrecido por uma noiva irradiante. Mas tudo tem seu
preço. Tempo.

| 113
Dudu Tsuda | Memórias Invisíveis | Mostra [ F.A.q.2 ]

Levantar a Casa

Foram pouquíssimos e intensos 40 dias para organizar uma equipe, conceber um sistema de
interação que reforçasse a idéia de uma casa audível, e sobretudo, o conteúdo principal do
projeto, realizar a triagem de novas experimentações e gravações dos áudios e depoimentos
da minha avó.

O espaço, por outro lado, nos foi bastante generoso. O tamanho do saguão principal permitiu
que eu criasse uma planta grande o suficiente para dar a sensação de estar dentro de uma
casa. E a função daquele espaço era ainda mais interessante. Simplesmente a passagem
principal do SESC Ipiranga, nada mais nada menos, que a sua entrada.

Ora, estava querendo criar uma casa invisível, cujas paredes eram feitas de
sensações e emoções, apenas perceptíveis com um fone wireless, num
espaço de grande trânsito de pessoas. Trânsito que daria o contraste entre estar dentro da
casa e não estar, mesmo que todos estejam pisando sobre a mesma superfície de linóleo.
Melhor lugar impossível.

Exceto pela dificuldade que tivemos em calibrar o sensor de infra-vermelho dado a


luminosidade intensa dos raios solares, tudo naquele espaço parecia conspirar a favor.
Sobretudo a relação que se estabelecia com o trabalho da Sônia Guggisberg, na escada para
piscina, que alterava também a rotina espacial daquela aérea. Houve até quem interrogasse
a pessoa encarregada da entrega do fone, se o SESC estava vendendo apartamentos.

Dudu Tsuda

| 114
[
[ F.A.q.2 ]

[ [
Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5

Mesa 2 - Sentido da Arte/ Arte dos Sentidos

Natasha Vita More | Nano-Bio-Info-Cogno SKIN


Vinícius Pereira | Falta o nome do texto

faltam as fotos Entrevista | Lula Vanderlei

| 115
Usuário da piscina do Sesc Ipiranga com a intervanção da trabalho “Cocoon”, de Lucia Koch (foto)
[ F.A.q.2 ]

Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5

Relato | Ananda Carvalho


A mesa Camadas de Pele / Pele em Camadas propôs uma discussão que vai além do
tátil. A partir da nanorobótica, das artes e da comunicação, refletiu-se sobre um corpo
contemporâneo, transmidiático e híbrido. Contou com a participação dos debatedores
Natasha Vita More e Vinícius Andrade Pereira, e do perguntador Lula Vanderlei. O debate
trouxe à tona a elasticidade da pele, as influências da mídia e dos aparatos tecnológicos e,
ainda, a oposição entre mente e corpo.

Nano-Bio-Info-Cogno SKIN

Natasha Vita More é artista e designer. Pesquisadora do Planetary Collegium, desenvolve


pesquisa sobre a estética do futuro e a cultura do corpo. Escreveu o Transhumanist
Arts Statement, um manifesto TransArt, no qual defende a ciência e a estética para uma
arquitetura da vida humana. Em sua apresentação, Natasha buscou evidenciar como seu
trabalho estabelece uma relação entre os seguintes temas: nanotecnologia, biotecnologia,
informação, cognição e pele.

Em defesa da integração entre homem e nanotecnologia, Natasha explicou como a


integração entre organismos foi essencial para a origem das espécies. Relembrou que, no
início da vida no planeta Terra, foi a conjugação de mitocôndrias e células anaeróbicas que
deu origem às espécies. Também apresentou dados científicos que comprovam que, na
superfície do nosso corpo podem ser encontradas diversas células que não são as nossas:
bactérias, fungos, etc. Nesse sentido, Natasha defendeu que o corpo humano é híbrido, na
medida em que compartilha frequentemente DNAs estranhos. E, a partir desses argumentos,
questionou se o processo de integração entre seres humanos e outros organismos, como
as bactérias, seria natural. Por outro lado, também poderia ser natural a integração humana
com outros elementos que não sejam biológicos

E o que isso significa para os artistas que trabalham com tecnologia ou bioarte?

Sobre os avanços tecnológicos, Natasha comentou a importância da busca por uma


comunicação mais eficiente com nosso próprio corpo. Entretanto, perguntou: como
preservar a identidade física e intelectual dos nossos corpos? Por fim, a artista retomou a

| 116
Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

idéia de Realidade Variável proposta por Ascott e terminou sua apresentação questionando:
até que ponto os artistas irão ao manipular matéria viva? Para que futuro essas experiências
estão nos direcionando?

“Camadas da Tele / Tele em camadas”

Vinícius Andrade Pereira é Doutor em Comunicação (UFRJ), professor da UERJ e da ESPM.


Também é pesquisador associado do McLuhan Program in Culture and Technology, da
Universidade de Toronto, Canadá. As tecnologias da comunicacão, cibercultura e arte
midiática são seu campo de estudo. Escreveu sobre os impactos das tecnologias sobre
os sistemas sensoriais humanos, sobre a cultura dos games e sobre as novas linguagens
midiáticas. Para iniciar sua apresentação, Vinícius sugeriu o subtítulo acima para a mesa.
Este viés resume a sua apresentação, na qual abordou a emergência da linguagem tátil-
áudio-visual na cultura midiática contemporânea. Desse modo, criou um diálogo entre as
palavras pele e tele ou, em inglês, skin e screen.

A partir das idéias de Marshall McLuhan e da escola de Toronto de Comunicação, considerou


que as mídias, além de instrumentos de transmissão de informação, reprocessam o nosso
aparato sensório. Segundo Vinícius, toda nova tecnologia pode despertar um novo modo
de perceber o mundo. Para exemplificar, exibiu trechos de vídeos em que mostrava a
interação de pessoas, de diferentes culturas e idades, com novos “gadgets” interativos de
entretenimento.

Os vídeos serviram de suporte para a explicação de que, ao longo da história, o cinema


passou pelo desenvolvimento do som até chegar aos games e consoles táteis, além das telas
touch screen. De acordo com Vinícius, cada novo formato audiovisual requisita o corpo de
uma nova maneira. A partir disso, defendeu que na sociedade contemporânea, a tatilidade
configurada pela experiência midiática gera uma percepção que pode ser denominada
visualidade tátil. A gramática tátil pode ser identificada na perspectiva tridimensional
da linguagem visual. Entre os inúmeros exemplos que Vinícius citou para evidenciar as
mudanças de paradigmas sensoriais está o movimento de câmera 360 graus herdado do
filme “Matrix” e os games que apresentam a opção de controle de câmara para o usuário,
como se este estivesse imerso no espaço.

A flor da pele

O perguntador desta mesa foi Lula Vanderlei. Artista plástico, foi colaborador de Lygia Clark e
escreveu o livrou “O dragão pousou no espaço – arte contemporânea, sofrimento psíquico e
o objeto relacional de Lygia Clark”. Lula Vanderlei iniciou sua fala afirmando ser tímido e que
não se sentia confortável em falar em público. Entretanto, rapidamente o artista se soltou e
colocou a mesa em cheque com camadas e mais camadas de idéias questionadoras.

Entre diversas questões, perguntou porque corpo, sentido e afetos são temas tão recorrentes
hoje? “Nos reunirmos para falar do corpo é uma militância cultural? Não é um academicismo?
| 117
Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

Na década de 70, o corpo aparece como símbolo de liberdade. Na atualidade, o corpo some,
é simplesmente um agenciador entre a arte e a tecnologia. Continuamos tão modernistas a
ponto do corpo não aparecer na arte?”

O artista observou o corpo como superfície de inscrição, assim como, a veste é uma dessas
superfícies. Entretanto, segundo Lula, na arte brasileira a roupa feita pelo artista não é para
desfilar. Ninguém desfila com o Parangolé, com o Manto do Bispo do Rosário. Para Lula,
o corpo é muito mais fluido do que imagem. Aqui, é possível estabelecer um paralelo com
a constituição múltipla do self na contemporaneidade proposta por Roy Ascott na palestra
de abertura do evento.

Por fim, Lula Vanderlei observou que as tecnologias avançam muito e podem engrenar outros
saberes. No caso da nanotecnologia, constrói-se um corpo genético. Porém, questionou:
que domínio temos sobre o avanço das tecnologias?

Debate

No debate, o corpo evidenciou-se como um tema que perpassa diversas camadas da


sociedade contemporânea. Natasha ressaltou dois pontos na fala de Lula: o corpo como
uma entidade e a membrana do corpo entre as pessoas e o tempo. Vinícius destacou a
presença massiva do corpo nas novas tecnologias, na medida em que é constantemente
solicitado pelo aparato transmidiático. A partir dessa questão, comentou que um garoto ao
jogar videogame envolve seu corpo e com isso cria uma nova prática de consumo. E talvez
por esse motivo, os garotos não tenham mais interesse em assistir a “velha” televisão. Ainda
dentro desse tema, explicou que ao utilizar-se as telas touch screem, se está reinventando
uma arquitetura da informação que era totalmente visual. Porém, segundo Vinícius, as
tecnologias não substituem o corpo, constituem modos de potencializar, suscitar, ao corpo
novas experiências.

Lula Vanderlei chamou a atenção para a elasticidade da pele, explicando que a pele
humana não é contínua, é atravessada por objetos. Desse modo, o corpo vazio traz uma
potencialidade criativa que absorve esses objetos, metaboliza-os simbolicamente e os
devolve para o mundo. Segundo o artista, deve-se pensar uma identidade que se perde,
se acha e se constrói. As sobreposições entre múltiplas identidades mostram que a pele
não só é ambígua, mas é elástica. Nesse sentido, sugeriu instituir a idéia da idade da
borracha, assim como tivemos a idade do bronze, do ferro e do ouro. O debate foi aberto à
participação das pessoas que estavam na platéia. Sobre a dimensão elástica proposta por
Lula, Lali Krotoszynski (curadora do evento), comentou que essa dimensão corresponde ao
trânsito dos sentidos expandidos a partir das próteses tecnológicas. Essa elasticidade cria
uma nova pele através de reconfigurações constantes.

A oposição entre mente e corpo foi outro tema do debate. Sérgio Basbaum apontou as
diferenças nas idéias sobre corpo apresentadas por Vinícius e Lula. O primeiro defendeu
um corpo que quer se lançar num mundo virtual, engolido pela realidade midiática. Já o
| 118
Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

segundo, observou um corpo que quer voltar para si mesmo, que quer retornar para a
própria sensação. Roy Ascott, que também estava na platéia, apresentou um outro ponto
de vista: “passamos 20 anos enfatizando o corpo e nada mais que o corpo. Agora, é tempo
de darmos chance à mente.” Natasha comentou que a próxima Era será a da mente, da
química, da neurociência. E em seguida, questionou: quais serão as novas peles? Vinícius
trouxe ao debate um ponto de vista que afasta-se dos dialogismos e perguntou porque
ainda estamos separando corpo e mente?

Ainda sobre esse tema, Roy Ascott apontou para um exemplo prático. Lembrou das crianças
em uma lan house (que apareceram no vídeo apresentado por Vinícius) e perguntou se
elas, por acaso, querem saber do corpo dos outros jogadores espalhados pelo mundo.
As crianças estão considerando a mente, as redes telemáticas são a mente. Ainda sobre
este tema, Lali enfatizou que deve-se pontuar mais objetivamente o conceito de corpo. Se
mente e corpo são ou não coisas diferentes é uma questão de linguagem.

A última mesa do Simpósio encerrou com um desejo de aprofundar essas questões e ainda
levantar outras. Infelizmente, os ponteiros do relógio indicam um fim.

Ananda Carvalho

| 119
Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

Nano-Bio-Info-Cogno SKIN

O que é mais íntimo para cada pessoa do Natasha Vita More


que a própria pele do corpo – o toque, sabor Pesquisadora | EUA
e cheiro sensual de nossa própria pele? A
pele está visível e exposta, já que exibe
nosso caráter e emoções; ainda assim, ela
também é oculta e privada, já que cobre
as curvas e dobras de nossos corpos e
responde a cada fôlego, suspiro e tremor.
Enquanto a pele possui características
sensoriais, esquecemos que é um órgão
e serve a uma função precisa em nossa
fisiologia, sem a qual não poderíamos
existir em nossa forma biológica corrente.
A pele também é vulnerável ao ambiente,
assim como os casos câncer de pele
Artista e designer desenvolve pesquisa
aumentam e enquanto nossa pele tem sobre a estética do futuro e cultura do
nos protegido por eras, agora precisamos corpo, baseada em Austin, Texas, EUA.
protegê-la. Como podemos usar tecnologia Com graduação em Multimeios e mestrado
aplicável e ciência visionária para proteger em Estudos do Futuro (Future Studies), está
nossa pele e ao mesmo tempo manter sua atualmente desenvolvendo sua pesquisa
de doutoramento no Planetary Collegium.
integridade enquanto uma parte íntima
Em 1982, escreveu o Transhumanist Arts
de nossa identidade, nossa presença no Statement, um manifesto de TransArt que
mundo e nossa experiência do mundo a tem como princípio a visão positiva, meta-
nossa volta? criativa do potencial humano em que
prevalece a ciência e a estética de uma
Parece paradoxal que a intimidade e arquitetura da vida para o futuro. É diretora
do Transhumanist Arts & Culture que
sensualidade da pele possa ser preservada
promove trabalhos artísticos que se baseiem
nestas tecnologias e ciências emergentes.
no desenvolvimento humano através da
Mas é possível. Por exemplo, a pele tecnologia que inclui o Futures Podcast.
inteligente do “Primo Posthuman” [Pós- Foi presidente do Extropy Institute.

| 120
Natasha Vita More | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

humano Primevo], um protótipo de corpodo futuro, ilustra como a pele nano-bio-cogno-info


pode manter e acentuar as características da membrana da pele. Aqui a camada exterior
da pele inteligente seria composta de citos moleculares e células reunidos, conectados
para formar o tecido externo do corpo. A pele inteligente seria projetada para reparar,
refazer e repor a si mesma. Conteria nanorobôs através da derme e da epiderme para
comunicar-se com o cérebro ao determinar a textura e tom de sua superfície. A pele
inteligente transmitiria dados sensoriais acentuados ao cérebro numa base contínua. Seria
auxiliada por agentes de inteligência artificial para aprender como e quando se renovar,
alertar o mundo exterior da disposição da pessoa, ou manter a privacidade individual;
prover gradações específicas da temperatura do corpo de momento a momento; e refletir
símbolos, imagens, cores e texturas através de seus contornos. A pele inteligente seria capaz
de relacionar as percentagens de toxinas no ambiente e extrair efeitos radiativos do sol.

Esta idéia de uma pele inteligente e transformativa sugere uma sincretização potencial de
quatro campos principais – nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação e as
neurociências e ciências cognitivas. O uso destas tecnologias nascentes é tudo menos
humano, pois sugerem tecnologia fria, mecânica e invasiva. As ciências cognitivas e
neurociências são um pouco mais familiares de uma perspectiva biológica, mas também
sugerem mexer com nossos pensamentos e sondar nossa privacidade. Entretanto, estes
campos estão progredindo com rapidez e oferecem um enorme potencial que é relacionado
diretamente a este paper – o aprimoramento de nossa pele humana.

Uma questão central do aprimoramento humano é a combinação de sistemas singularmente


distintos – o biossistema e o nanossistema, por exemplo – a qual pode ser incômoda;
especialmente quando o sistema interno do bio-corpo é úmido e desarrumado e a maioria
de nós preferiria mantê-lo longe dos olhos e coberto. Contudo, mesmo que a bagunça de
nossos corpos esteja escondida sob nossa membrana da pele, como uma parte privada
de nossa anatomia com qual a nanotecnologia e a inteligência artificial não devem mexer,
nosso corpos já sofrem interferência, e não por parte de tecnologia criada pelo homem.

O humano é uma síntese de mais do que células humanas. Algumas dessas células possuem
seu próprio DNA e são conhecidas como micróbios. Alguns desses micróbios são agressivos
e um perigo para nossas próprias células. Outros micróbios apenas aterrissaram sobre e no
interior de nossos corpos e estabeleceram seu próprio domicílio. E ainda outros micróbios,
como as mitocôndrias de nossos intestinos, sempre viveram dentro de nós e nossos corpos
os sustentam porque tais micróbios são benéficos e relevantes para nosso bem estar.
Poderíamos dizer que, já que somos feitos de tantas células que não contêm DNA humano,
nós já somos, de certa maneira, uma combinação de sistemas singularmente distintos.

| 121
Natasha Vita More | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

Por exemplo, de acordo com o cientista Jeremy Nicholson, temos “mil espécies e mais de
dez trilhões de células bacterianas dentro de nós em qualquer momento dado.” Grande
parte de nossa evolução enquanto espécie foi resultado de bactérias, vírus e outros DNA
estranhos modificando nosso perfil genético. Sem esta convergência celular diversificada,
não teríamos sobrevivido como uma espécie.

Sendo que a maioria das células em nosso corpo não são nossas próprias, podemos nos
ver como superorganismos ambulantes, conglomerados altamente complexos de células
humanas e micróbios. E nossa pele? Bem, nossa pele é efetivamente um zoológico virtual .
Sendo povoado por um sortimento diverso de bactérias. Usando um poderoso novo método
molecular, pesquisadores encontraram evidência de 182 espécies de bactérias na pele
normal e aproximadamente 71,4% do número total de espécies bacterianas era diferente
de indivíduo para indivíduo . Sob esta luz, talvez injetar nano-robôs em nosso corpo não
pareça tão invasivo e possa ser até mesmo benéfico – quiçá tão benéfico, senão até mais,
quanto os micróbios que vivem dentro de nós.

Poderíamos nos perguntar se nossa integração com outros tipos de elementos – como
bactérias – é natural. Poderíamos questionar se seria natural nos integrarmos com outros
tipos de elementos que são não-biológicos, ou se seria crucial e, portanto, considerado
natural, para nós integrarmo-nos com outros tipos de elementos como nano-robôs, agentes
de informação e outros agentes eletrônica e quimicamente carregados que poderiam ter
desenvolvido uma interação mutuamente benéfica, evoluindo posteriormente em direção a
uma simbiose obrigatória.

O que isto significa para os artistas de mídia? Da perspectiva de minha própria prática artística,
isto significa que é natural que humanos integrem-se com outros tipos de organismos, que
evoluiremos com outros tipos de sistemas e que esta evolução é essencial para nosso futuro.
Como isto afeta nosso trabalho como artistas? Oferecendo desafios no aprendizado sobre
novos campos, novas ferramentas e novas visões de mundo. Também oferecendo novos
modos de comunicar, auxiliar, reparar, aprimorar, estender, atualizar e possivelmente efetuar
uploads de nossas mentes em plataformas não-biológicas. Oferecendo desafios para o
modo como abordamos as descontinuidades na base de conhecimento humano que nos
deixou, enquanto espécie, com a tarefa de construir novo conhecimento – novos campos
de investigação: para compartilhar um entendimento comum da estrutura de informação
entre artistas em um contínuo retorno e reavaliação daquilo que sabemos e o que podemos
saber sobre nosso futuro.

Existem muitas questões e preocupações sobre se o aprimoramento da fisiologia humana

| 122
Natasha Vita More | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

é vantajoso e há profundo interesse na proporção entre resultados positivos e negativos do


aprimoramento humano. Não obstante, a maior parte desta literatura relata um consenso
a redor da opinião de que as tecnologias nascentes – de maneira separada ou conjunta –
irão afetar a biologia humana inevitavelmente e trazer á tona um humano transformativo,
levando a uma extensão radical da vida. Isto irá indubitavelmente afetar o registro histórico
e futuro do que é ser humano.

Aqui devemos atentar para os prós e contras de acelerar a mudança tecnológica e decidir
qual tipo de ser humano podemos nos tornar à medida em que aumentamos, aprimoramos
e transformamos nossa biologia humana com novas tecnologias em desenvolvimento. Os
aprimoramentos são resultado de investigações e descobertas científicas, inovações e
aplicações tecnológicas, intenções e métodos projetuais e apelo visual e sensorial, pelos
quais a fisiologia humana é modificada ou transformada. Sugiro que a presença física
humana transformativa, sua biologia e sua cognição e identidade, deverão ser aprimoradas
e remodeladas através de nano-bio-info tecnologias, assim como através das neurociências
e das ciências cognitivas. Aqui, visões de mundo que abordam apropriadamente tais
mudanças e estão investigando como tais mudanças podem afetar-nos tanto individual
como socialmente, como o trans-humanismo, podem buscar a continuação da vida alem
da limitada temporalidade biológica humana atual e enfocar os meios pelos quais a ciência
e a tecnologia poderiam prover de modo ético valores positivos e práticos.

A pela é o primeiro órgão a ser clonado, projetado e cultivado e tem uma forte possibilidade
de ser o primeiro órgão a ser transformado com inteligência artificial geral e nanotecnologia.
Talvez possa ser que o aprimoramento e a transformação sejam uma matéria de vaidade
humana, ou talvez seja matéria de nossa sobrevivência humana. Em ambos os casos, é um
maravilhoso conceito considerar como o quarteto nano-bio-info-cogno de tecnologias e
ciências pode realmente nos ajudar a manter nossa saúde e felicidade ao proteger a própria
membrana que tem por tantos milhares de anos nos protegido.

Natasha Vita More

| 123
Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

Falta

Marshall McLuhan propunha que o Vinícius Pereira


incremento contínuo das tecnologias Comunicólogo | Rio de Janeiro
eletrônicas de comunicação permitiria
a emergência de uma cultura marcada
pelo espaço acústico, cuja característica
principal é a presença de todos os sentidos
nos processos de comunicação — apesar
do termo espaço acústico parecer dar
ênfase a apenas a um sentido (audição).
O espaço acústico, assim, típico das
culturas orais, é um espaço diretamente
relacionado ao tato e aos modos de
percepção decorrentes deste sentido: a
simultaneidade propioceptiva, o todo, o
contínuo e a ressonância Graduado em Psicologia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1991), mestrado
De muitos modos as previsões do mestre em Psicologia pela Universidade Federal do
de Toronto parecem se confirmar na Rio de Janeiro (1996), pós graduação (lato
contemporaneidade. Vivemos em meio a senso) em Saúde Mental pelo Instituto de
uma cultura que parece demandar, diária Psiquiatria da UFRJ (IPUB) e doutorado em
e continuamente, mensagens que venham Comunicação pela Universidade Federal
na forma de estímulos táteis, talvez como do Rio de Janeiro (2002), com formação
modo de alimentar um corpo que vem complementar no McLuhan Program in
sendo hiperestimulado, de modo crescente, Culture and Technology, da Universidade
desde a Modernidade, por ritmos, de Toronto, Canadá(2001). É professor
intensidades, sons e velocidades, que adjunto da Faculdade de Comunicação
surgem com os grandes centros urbanos Social e do Programa de Pós Graduação
formados na virada dos séculos XIX para em Comunicação da Universidade do
o XX. Assim, mensagens variadas parecem Estado do Rio de Janeiro, e dos cursos de
ser sempre traduzidas em estímulos táteis, comunicação e design da ESPM.
| 124
Vinícius Pereira | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

(re)percurtindo e tensionando a pele, os músculos e as vísceras, ao mesmo tempo em que


são processadas pelos sistemas sensoriais específicos (visual e auditivo).

Hoje somos preparados para lidar com uma nova linguagem midiática que vem demandar
uma relação radicalmente nova no que tange a articulação entre corpos e tecnologias.
Trata-se da linguagem tátil-áudio-visual que, herdeira das linguagens visuais, sonoras e
audiovisuais da Modernidade e da Cultura de Massa, ganha formas muito específicas em
mídias que servem a práticas de comunicação, entretenimento e de sociabilidades, como
os consoles e monitores de games, telas sensíveis ao toque (touch screen), celulares, e
arranjos e ambientes midiáticos diversos.

As reflexões que ora se delineiam querem explorar como o corpo vem sendo cultivado
em novas modalidades sensoriais, táteis por excelência, respondendo a uma espécie de
ajuste neuro-cultural (Kerckhove e de Vos) requisitado para se tornar apto para lidar com as
tecnologias midiáticas emergentes. Quais os efeitos e possíveis conseqüências disso para
a cultura contemporânea e futura, serão alguns dos pontos a serem também explorados.

Vinícius Pereira

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Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

Entrevista com Lula Vanderlei

Na Capela Sistina há uma imagem em que Lula Vanderlei


aparece uma figura segurando uma pele Artista | Pernambuco
que seria uma espécie corpo esvaziado
Estudou medicina, formando-se pela Faculdade
do próprio artista. Quando a pele se
Federal de PE. No Rio, desde 1976, participou
torna imagem onde esta a interioridade
do projeto de reformulação do Museu de
do artista?
Imagens do Inconsciente. Colaborou com Lygia
Clark na pesquisa sobre as potencialidades do
Se o espectador, indagando sobre esse
“Objeto Relacional”. Criou, para o MAM-Rio
corpo vazio, percorrendo o olhar pela
de Janeiro, o Projeto Lygia Clark. Indicado,
extensão da pintura de Michelangelo
pelo Ministério da Cultura, ao lado de Antônio
percebi detalhes em que ele distorce a
Manoel, Nelson Felix e Cildo Meirelles, para
perspectiva (algumas vezes para realçar o
representar o Estado do Rio de Janeiro na
aspecto arquitetural) numa tensão entre a
retrospectiva da arte brasileira em Paris.
ilusão e a superfície. Essa tensão chega a
Mostras recentes: “Arte e Diversidade”, 2005;
meus olhos como uma contra-ilusão que
“inTransit”, Encontro sobre Performance, Haus
revela ao espectador ser aquilo apenas
der Kulturen, Berlin, 2003.

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Lula Vanderlei | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

tinta sobre um plano feita por um homem com seu próprio olhar, suas emoções, seu
pensamento e sua musculatura movendo-se no espaço.

Quando a arte se torna excessivamante narcísica o corpo do artista torna-se superfície- pele
sem interioridade. Encontramos alguns exemplos na arte contemporânea. Principalmente
quando alguns artistas , ao tentar suplantar a exterioridade da imagem (a noção de superfície/
pela) o faz concretamente, mutilando-se, expondo víceras ou se submetendo a cirurgias
para reconfigurar o corpo.

Com relação à pele, você poderia elaborar as idéias de ambigüidade e elastecidade


que apresentou durante o debate?

O tema da pele me sugere, de imediato, uma radicalidade. Nela é que localizamos os afetos
intensos. É a pele o último suporte dos processos que determinam nossa forma/identidade
e até mesmo, ouso dizer, a última resistência da metafísica ocidental. Mas é, no entanto, na
sua ambigüidade que reside toda sua redicalidade.

A pele é ambígua e imprecisa desde sua origem. Quando o espermatozóide fecunda o


óvulo cria três camadas de células que vão da origem aos nossos órgãos: ectoderma,
endoderma e mesoderma. O ectoderma (camada externa) é a origem da pele e também
de todo o sistema nervoso. O mais externo/exposto tem a mesma origem do mais
guardado sistema biológico – Aquele que orquestra a complexidade da vida. A pele é,
também, uma membrana, maravilhosa invenção da natureza que está na origem da própria
vida. A membrana envolve um sistema biológico o isolando do seu entorno, mas como a
vida é própria do desequilíbrio entre sistemas, a mesma membrana/pele que protege é,
paradoxalmente, a mesma que introduz o sistema biológico/corpo no entorno/ambiente. A
pele é ambígua, paradoxal, tangente em qualquer ângulo que tentemos vê-la, como são,
também, os corpos, os sentidos e os afetos.

Não sei exatamente quantos anos, mas talvez próximo de um século nos separe de quando
Machado se Assis escreveu o conto “O Alienista”: o médico de Itaguaí, que influenciado
por novos ares do saber europeu, pensa em inaugurar um hospício em sua terra. Esse
médico num esforço reflexivo infinito de separação/purificação tenta classificar e identificar
os loucos da cidade. E quanto mais separa e purifica mais ambigüidades aparecem que o
levam a novo esforço de ordenação. A tarefa de dar sentido à loucura termina produzindo
um não sentido. Machado antecipa, com clareza, a visão do homem moderno, que toma a
razão e a língua como instrumento para as atividades humanas ordenadoras de mundo. Os
objetos se aquietam e se distanciam desse homem reflexivo que busca, sem conseguir, uma

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Lula Vanderlei | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

identidade perene, uma persona definitiva, mas sempre tendo ao lado a sombra de uma
dissociação pronta a emergir. O próprio mestre de Itaguaí interna-se no próprio hospício
que criou.

Quase um século depois Lygia Clark escreve uma carta para Mário Pedrosa (belo texto
literário) que descreve um documentário sobre o escorpião. Lygia impressiona-se pela forma
horripilante e bela como que o bicho perde e renova a pele constantemente e identifica-
se em seu próprio processo criativo. Na época Lygia tinha criado o conceito de Nostalgia
do Corpo: nunca na história da arte os objetos ganharam tanta vivacidade e autonomia,
necessitando de novas formas de produção e de circulação para a obra de arte. A obra
atinge diretamente nosso corpo a ponto de não existir nem mais o Objeto nem o Corpo, mas
sim a relação que se estabelece entre eles.É o fim da pele/superfície que suporta a nossa
identidade que se acredita estável e que agora terá que ser refeita incessantemente . Lygia
ao romper com a noção antiga de pele/superfície antecipa o fim das certezas absolutas,
das identidades definitivas.

Talvez, em algum ponto entre o médico de Itaguaí e a carta de Lygia a Mário Pedrosa esteja
o porquê do tema de pele/corpo/ afeto tem surgido tão insistentemente nos últimos anos.
Resta saber se é um novo tema acadêmico na moda ou uma nova militância cultural? Sinto
saudade do artista militante.

Se a cosmética, a tatuagem, o escareamento e o bronzeado são formas que empregam


a pele de padrões culturais, quais as outras formas em que a pele serve á expressão
criadora?

Não encontro, com clareza, o corpo na Arte Contemporânea. A Arte atual tem tomado o
corpo, apenas, como interlocutor da relação entre arte e ciência. O corpo molecular, o corpo
digital ou o corpo das técnicas de cirurgia plástica ou dissecação anatômica (laminações)
são apenas interlocutores para que as novas premissas da arte e da ciência se encontrem.
Mas talvez sejam alguns momentos da dança contemporânea, onde o corpo é recolocado
em cena por caminhos novos de poesia e saber.

Em algumas experiências da dança contemporânea o movimento e/ou o espaço são


decompostos e a pele se estende e se abre para o contato intenso com outro, com o
mundo. Nesse nível de vivencia corporal a percepção da pele é descontínua (assim como
também é descontínua a percepção dos movimentos do corpo) e o corpo é atravessado
por outros corpos num contínuo orgânico. A percepção do nosso corpo é simultaneamente
a percepção do outro. Ao iniciar o filme Fale com Ela com uma coreografia contemporânea

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Lula Vanderlei | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

(extensão da pele/sentido) Almodóvar parece apontar para a intempestividade do “a flor da


pele” o caminho para a criação de territórios existências flexíveis e diversificados. Lugar
onde podemos suportar as incertezas cotidianas.

A idéia que tenho da pele, trazida pelo olhar, é a de uma superfície envolvendo um corpo que
se desloca no espaço. Nele inscrevemos os códigos da comunicação do nosso corpo com
o mundo. A roupa é um deles: uma segunda pele que resignifica nosso corpo. Assistindo um
exposição de Jana Steinbek, em uma visita ao Museu da Arte Contemporânea de Marselhe,
na qual algumas obras (roupas) eram vestidas por modelos, assaltou-me a lembrança de
uma observação de um amigo (Marcio Doctor) a respeito da roupa na arte brasileira: ao
contrário da produção artística européia/estadunidense, não desfilamos com nossa arte
sobre o corpo. Não desfilamos com o Parangolé de Hélio Oiticica, com o Manto do Bispo
do Rosário ou com a Roupa- Corpo – Roupa de Lygia Clark . Ela envolve nosso corpo e nos
arrebata para uma experiência orgânica – vivencial/espiritual.

O que nos distingue? É a origem da roupa na arte brasileira? Algum traço cultural em
relação ou corpo/pele: um corpo mais fluido talvez?

A dobra e o corte, tão cara aos concretistas brasileiros, trazem, além de múltiplas
possibilidades para a leitura obra, o envolvimento do corpo através do tato, dando novo
significado à materialidade da arte. Logo, no percurso de Hélio e Lygia ela perderia a rigidez
e envolveria o corpo todo nos arrebatando para uma experiência orgânica – vivencial/
espiritual.

Se apele é um jardim selvagem que se define pela sua porosidade qual o significado
do toque num mundo em que o ser humano se transforma cada vez mais num hibrido
geneticamente modificado?

Sim, o toque, aparentemente, vem ocupando o lugar de nostalgia e resistência. Todavia


o toque pode, vendo-o por outros ângulos, ser ferramenta para reflexões sobre a vida
contemporânea.

Há anos venho realizando um trabalho (agora com menos intensidade) de tocar o


corpo de pessoas com grave sofrimento psíquico diagnosticadas pela psiquiatria como
esquizofrênicas. Um trabalho com alguns objetos de Lygia Clark. Descobrir através dessa
experiência que a pele não é contínua e abre-se, através do toque, para um espaço imaginário
interior do corpo. Esse espaço interior que ao abrir-se para o em torno (exterior) trás, para
além do caos de uma dissolução cósmica, um tensão de vida. Ora coincidindo ora se

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Lula Vanderlei | Camadas de Pele / Pele em Camadas | Mesa 5 [ F.A.q.2 ]

opondo, através do metabolismo próprio dessa superfície de fronteira ( a pele) o corpo é


permanentemente reconstruído: reconstrução de si, que é simultaneamente a reconstrução
do outro/do mundo. E o que é isso senão a vida como expansão de todos os começos.

O que aprendi tocando o corpo (e por extensão com a pele) a transitar entre espaços, que
é um pouco diferente de ser diverso/plural. É aceitar as ambigüidades e transitar entre.
Costumo dizer que vivemos na Era da Borracha, como antes tivemos a Era do Fogo, da
Pedra Lascada, do Ferro, etc . A borracha é flexível: adapta-se e ao mesmo tempo põe
resistência. Eu posso resistir a essa exagerada velocidade do tempo da vida contemporânea
e, simultaneamente, aceitar as novidades.

Deve-se localizar melhor quando se fala de corpo. Se mente e corpo são ou não
coisas distintas é somente uma questão de linguagem?

Hoje, sobre o clarão das novas descobertas ( principalmente da Neurociência) fica difícil
estabelecer fronteiras nítidas entre a mente e corpo assim como, também, entre o pensamente
e ambiente. A própria Psicanálise começa a reavaliar a questão do afeto; essa instância
intermediária capaz de unir corpo e mente. Antes, como me sugere o conto de Machado
de Assis que citei no início ( O Alienista), o afeto era visto como algo traumático que deveria
ser excluído para o surgimento do homem reflexivo que tinha a razão e a linguagem como
instrumentos para classificar/ordenar o mundo. A língua portuguesa tem uma imagem
lingüística tão bela para descrever a intempestividade dos afetos da qual proponho hoje
não termos medo: A flor da pele.

Lula Vanderlei

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? [ F.A.q.2 ]

Índice de Perguntas ?

O que é a percepção?

Percebemos o mundo tal como ele é?

Ou o mundo é tal qual o percebemos?

Aquilo que percebemos é resultado dos estímulos externos -- imagens, sons, aromas,
toques, sabores, etc... --, ou há algo de criação, de invenção nossa, naquilo que é o nosso
“mundo”?

Ou ainda: percebemos todos da mesma forma, ou cada um percebe a seu modo?

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Ficha Técnica [ F.A.q.2 ]

sincretismo dos sentidos


Mostra | Simpósio
Concepção e Coordenação geral Lali Krotoszynski
Curadoria Lali Krotoszynski, Mário Ramiro e Sérgio Basbaum
Material gráfico Site e Fotos Theo Craveiro
Produção da mostra Danilo Oliveira

e-Book
Coordenação editorial Camila Duprat Martins
Projeto gráfico e fotos Theo Craveiro
Relatos Ananda Carvalho e Tete Tavares
Revisão Dulce Rosell Marques
Tradução Francisco Raul Cornejo
Foto da Capa Público interagindo com o trabalho Shiva, de Paulo Nenflídio
ISNB FALTA

[
São Paulo Brasil, 2009

Instituto Sergio Motta


Presidente Luiz Carlos Mendonça de Barros
Vice- Presidente (Conselho Deliberativo) Wilma Motta
Secretária M. José Tenório de Paiva

Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia


Relações Institucionais Wilma Motta
Coordenação Geral Renata Motta
Direção Artística Giselle Beiguelman
Coordenação de Projetos Camila Duprat Martins
Coordenação de Produção Luciana Dacar
Produção Aline Minharro Gambin
Editora do Blog Marina Gazire
Administração Sadao Kitagawa

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Ficha Técnica [ F.A.q.2 ]

[
Serviço Social do Comércio
Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional


Abram Szajman
Diretor do Departamento Regional
Danilo Santos de Miranda

Superintendências
Técnico-Social Joel Naimayer Padula
Comunicação Social Ivan Giannini

Gerências
Ação Cultural Rosana Paulo da Cunha
Gerente Adjunto Paulo Casale
Assistente Marcelo Bressanin
Estudos e Desenvolvimento Marta Raquel Colabone
Gerente Adjunta Andrea de Araújo Nogueira
Assistente Vinícius Demarchi Terra
Artes Gráficas Helcio Magalhães

SESC Ipiranga
Gerente Mariângela Abbatepaulo
Gerente Adjunta Cristiane Lourenço
Assistentes André Luiz Santos, Ines Guilhem, Jose Aparecido
Fernandes, Gilberto Martins, Pedro Carlos dos Santos,
Thais Helena Queiroz
Programação Suzana Garcia, Soraia Iola Galves e Cíntia Nishida

Produção Equipe do SESC Ipiranga.

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[
sincretismo dos sentidos
e-book
e-book

2009

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