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Ritualisticamente, iniciamos com o relaxamento para a flexibilização da vigilante consciência. Portanto,
o relaxamento – exercício de incitação do imaginário, do inconsciente pessoal - que foi planejado de
modo a propiciar aos participantes o encontro consigo mesmo, permitindo-lhes dar asas à imaginação. A
importância desse momento, na oficina, deve-se ao fato de que “os membros do grupo-pesquisador
devem conseguir abaixar o seu nível de controle consciente, a fim de que se exprimam os saberes
submersos, os ventos raros, as lavas congeladas pela história coletiva e individual” (GAUTHIER, (1999,
p. 39).
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O corpo de cada um de nós é uma forma de vida, que por ter uma história [...]
e raízes ancestrais ainda atuantes, vivas, irradiantes, sabe muitas coisas –
algumas claras, outras escuras e outras claras-escuras. Assim podemos
afirmar que o corpo pensa. (GAUTHIER, 1999, p. 23).
sabem muitas coisas e que nós facilitadores aprendemos deles durante o processo da
pesquisa. A pesquisa é uma troca entre referencias de vida e referenciais teóricos,
políticos, culturais ou éticos parcialmente sistematizados, cruzando-se nas análises e nas
reflexões do grupo-pesquisador sobre os dados que produziu. Cada copesquisador, na
sociopoética, marca sua produção artística e sua fala como oriundas de um lugar
discursivo, onde assumem seu ser, criando assim um espaço e um tempo original,
criamos uma rede de linhas de fuga, que chamamos de pensamento do grupo-
pesquisador. Então, o princípio de pesquisar com as culturas de resistência é entender o
pensamento coletivo sobre os temas e os problemas que os mobilizam.
Entretanto, destacamos que valorizar os saberes das culturas de resistência não
trata de se fechar em culturas separadas, tampouco em estabelecer oposição frontal entre
brancos e negros, índios e não índios, fêmea e macho, infantil e adulto... Mas, sim, em
valorizar o minúsculo, o esquecido, o silenciado, o suspeito, o invisível, longe dos
habituais critérios intelectuais da racionalidade. Trata-se, portanto, de desorientarmos
nosso intelecto, caotizarmos nossa percepção e nossa categorização do mundo e
descobrirmos outros significados humanos para os dados de pesquisa produzidos –
tarefa descolonizadora e produtora de potência! Podemos chamar de prática
pluricultural na pesquisa, experimentação da vida, que não relação com o tempo
histórico, e sim com a produção de potências (GAUTHIER, 2003).
É por estar ‘entre’ todo mundo que acreditamos que é em grupo, ao acaso, que
se encontra uma ideia, porque o que se aprende e se conhece acontece a partir de
múltiplos e diversos domínios. É a partir da relação com o exterior – o de fora –, que
podemos respirar ar fresco, algo que produza no corpo dos copesquisadores o desejo de
se autoanalisarem e de contribuirem com experimentações outras em relação aos temas
que lhes provocam.
“É preciso fazer o múltiplo”, diz Deleuze. Nesse caso, o que mais conta não é
apenas o trabalho em grupo, mas o fato estranho de trabalhar ‘entre’ as pessoas de um
grupo. É deixar de ser um único autor e, ao contrário disso, proliferar encontros entre
pessoas diferentes, tanto de um lado quanto de outro. Enfim, é multiplicar os lados da
visão, da audição, do tato, do paladar e da razão.
A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. [...] a arte não tem
pensa: o olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver
o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso
desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde,
por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. Agora é só
puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar. (BARROS, 2004).
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Ele se caracteriza por um (ou uns) lugar(es), um (ou uns) tempo(s), ritmos,
pessoas, objetos, dinheiro, tarefas, que permitem ‘objetivar’, isto é, tornar
visível o que era escondido na vida ordinária.[...] Tornam-se visíveis e
analisáveis redes de desejos e poderes nas quais todos estão imersos, bem
mais amplas do que o que é mostrado pela instituição. (GAUTHIER, 1999, p.
12-13).
caminho do meio entre os saberes e os fazeres que os grupos produzem da vida social, e
a crítica desses saberes feitos pelo grupo-pesquisador.
Nesse caso, a vivência do pesquisar com a Sociopoética se assemelha a poesia, a
arte, a filosofia e a vida, porque permite olhar o mundo fora de suas naturalizações, de
suas verdades instituídas e poderosas. Algo como fazer os objetos e os sujeitos
consagrados chegarem a trastes para que se tornem visíveis e dizíveis de outra forma. É
saber que as coisas e as pessoas nos chegam aos pedaços e precisam ser montadas e
remontadas e, para isso, necessário se faz que tenhamos simpatia e empatia por elas,
encostemo-nos a elas, procuremos fazer com que se pensem em nós, e que continuarão,
mesmo assim, sempre cheias de recantos e de desvãos; nunca serão redondas e
inteiriças, pois somos formados de desencontros, de descontinuidades, pois são as
antíteses e as ambiguidades que nos congraçam. É por isso que a educação e a ciência
são a invenção de versões plausíveis de nossa trajetória nesse tempo, para delas nos
afastarmos e nos diferirmos.
E tudo está relacionado com o caráter fragmentário de nossas experiências; a
multiplicidade de temporalidades que se articulam em um instante; o caráter de
fabricação de objeto e de sujeito; a espessura própria da linguagem, inventora de nossos
mundos; a necessidade de redirecionar o olhar, transformar a matéria da ciência do
grandiloquente para o ínfimo, para o menor, para o abandonado, para o traste, para o
infame, para o cisco, como faz Manoel de Barros, em sua poesia. Os nossos temas de
pesquisa, portanto, são e fazem parte do mundo em pedaços e fluido que nos rodeia, e
isso significa que as coisas e as pessoas são como andarilhos que nunca estão onde as
palavras se acham; que do lugar onde estamos sempre já foram embora, pois as palavras
mais escondem que desvelam; as histórias mais verdadeiras são as que mais parecem
inventadas.
Pesquisar sociopoeticamente, nesse contexto, é entender que a pesquisa não se
encontra dada a priori, como se elas, as palavras, estivessem em uma cesta para ser
coletada. Pelo contrário, as palavras não estão guardadas do seu sentido, nós
produzimos os sentidos para nossos dados. Na Sociopoética, essa produção de dados
acontece em oficinas de produção de conceitos e confetos, que, posteriormente
analisados, cartografam as linhas de pensamento das pessoas, em grupo, que filosofam
sobre os temas que as mobilizam.
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Se queres te salvar, arrisca tua pele, não hesites, aqui, agora a entregá-la à
tempestade variável. Uma aurora boreal brilha na noite, inconstante. Propaga-
se como esses letreiros luminosos que não param de piscar, acesos ou
apagados, em clarões ou eclipses, passa ou não passa, mas em outro lugar,
flui, irisado. Não mudarás se não te entregares a essas circunstâncias nem a
esses desvios. Sobretudo, não conhecerás. (SERRES, 2001, p. 23).
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Por fim, ao final da nossa conversa sobre a Sociopoética, pedimos que algumas
pessoas falassem suas impressões, avaliando o nosso encontro. Elas disseram:
Quando eu entrei que vi a coisa aqui, pensei: é diferente! Eu já tinha
vivenciado em alguns momentos, aí eu pensei que aqui é meu lugar. Então,
quando eu vi a Shara, com quem já havia experimentado uma experiência
numa especialização, disse pra mim: - é aqui que eu vou ficar, porque eu
gosto do diferencial, eu não gosto da mesmice. Então vocês mostraram esse
diferencial, e eu gostei muito. Parabéns para todas!
Referências
ADAD, Shara Jane Holanda Costa. Corpos de Rua: cartografia dos saberes juvenis e o
sociopoetizar dos desejos dos educadores. Fortaleza: Edições UFC, 2011.
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_____. Pesquisar com o corpo todo: multiplicidades em fusão. In: Prática da Pesquisa
nas Ciências Humanas e Sociais: Abordagem Sociopoética. São Paulo: Editora
Atheneu, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
SERRES, Michel. Os cinco sentidos: filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.