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SOB O MESMO TETO

Stella França

Editora Ases da Literatura


Copidesque
Capa: Hugo Breves
Revisão: Antônio carlos

Ficha catalográfica
França, Stella
Sob o mesmo teto / Stella França
1. Ed. – Rio de janeiro
CDD B869.8
Abril: Ases da Literatura, 2021
(broch)
1. Literatura
2. Título
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ASES DA LITERATURA
Capítulo 1

Letícia sentou-se no sofá ao lado da mãe e a encarou


nervosamente.
— Diga logo o que você tem pra me dizer, mãe. Estou ficando
preocupada — comentou a garota.
— Então, filha, o que eu tenho pra te falar seria bem ruim... se
eu não tivesse dado meu jeitinho e consertado a situação.
— Por favor, fala logo, você vai me matar de ansiedade!
— Você não vai mais poder morar com a sua tia Lurdes.
— Como assim? — indagou Letícia, chocada.
Ela havia sido aprovada na Universidade de Brasília e já estava
se preparando para ir morar com a tia na capital. Por mais que
ficasse apreensiva em deixar a mãe e suas duas irmãs menores, a
ideia de morar longe de São Paulo a deixava muito animada. Mas,
agora, diante dessa nova notícia, ela não fazia ideia do que fazer.
— Ontem, sua tia me ligou contando que não pode mais te
receber na casa dela. Porque, bem, ela não tem mais casa.
— O quê? O que aconteceu? — A filha ficou confusa e
preocupada ao mesmo tempo.
— O aluguel dela aumentou, ela não pagou e foi despejada.
Agora está morando com uma amiga, junto com mais cinco
pessoas, em uma casa minúscula.
— Isso quer dizer que eu não tenho mais onde ficar. — Letícia
se sentiu mal pela tia, mas, no momento, o que realmente a
angustiava era a possibilidade de não poder mais se mudar para
Brasília.
— É aí que entra a parte boa. Então, eu pensei em um plano B
e comecei a ligar para várias repúblicas para procurar alguém que
pudesse dividir um apartamento com você. Porém, os custos
estavam completamente fora das nossas possibilidades.
— Ainda não vi a parte boa, mãe.
— Calma, estou chegando lá. Enfim, eu já estava bem
desanimada quando encontrei a Verônica.
Letícia conhecia Verônica desde sempre, porque ela era a
melhor amiga de sua mãe.
— Eu comentei com ela sobre o que tinha acontecido, falei que
você estava sem lugar para ficar em Brasília. Aí ela me contou, toda
animada, que o Daniel também iria morar lá. Ele passou em
administração na UnB, sabia?
— Eu sabia que ele tinha passado em administração, mas
pensei que fosse em alguma faculdade aqui de São Paulo —
sussurrou Letícia, sem querer acreditar no que estava acontecendo.
A garota também conhecia Daniel desde sempre. E, desde
sempre, nunca tinha se dado bem com ele. Graças à amizade entre
sua mãe e Verônica, que era mãe do rapaz, Letícia era obrigada
semanalmente a visitar a casa dele, desde pequena. Ambas as
mães até se esforçavam para manter a harmonia entre as duas
famílias, mas o resultado era sempre o mesmo: a junção de Letícia
e Daniel, em geral, resultava em encrenca. Os dois nunca
conseguiam se entender.
Letícia acreditava piamente que estava sendo afrontada por
algum tipo de perseguição ou, ao menos, um azar gigantesco. Além
de ser obrigada pela mãe a visitá-lo sempre, ela acabara de ter a
tremenda sorte de estudar na mesma escola que Daniel durante
grande parte do ensino fundamental. E, depois que ele fez o favor
de repetir de ano, os dois começaram a estudar na mesma turma.
Na mesma turma!
Com tantas turmas, com tantas escolas pelo mundo, eles
tinham que estudar justamente na mesma classe. E agora, quando
ela achava que finalmente se livraria dele, tinha acabado de
descobrir que ele tinha sido aprovado na mesma universidade que
ela.
Só podia ser perseguição.
— Eu também fiquei surpresa, mas acredite, Daniel vai estudar
na mesma universidade que você. E lá vem a melhor parte: eu
combinei tudo com a Verônica: você e Daniel vão dividir um
apartamento. Seu problema foi resolvido, filha.
Só pode ser brincadeira, pensou Letícia. Isso não está
acontecendo, repetiu para si mesma.
— Isso é algum tipo de pegadinha? Porque, se for, não estou
achando graça.
— Não é pegadinha nenhuma. A família do Daniel tem um
apartamento em Brasília. Ele iria morar sozinho, mas a Verônica
insistiu que você fosse morar com ele.
— Isso ia ser, tipo... morar de favor? Com aquele menino? —
Letícia estava horrorizada.
— Não, filha, não é exatamente morar de favor. Ficou
combinado de vocês dividirem as contas, as despesas gerais. Eu fiz
os cálculos e ficou supervantajoso pra gente. Como o apartamento é
da família dele, não precisamos nos preocupar com aluguel.
— Mãe, eu não acho que você esteja racionando muito bem —
alertou Letícia, tentando acusar a mãe de ter enlouquecido da forma
mais educada possível. — Deixa eu ver se eu entendi: você quer
que eu divida o apartamento com um cara? O que meu pai teria
achado disso, hein?
— Infelizmente, seu pai não está mais aqui, filha. Eu tomo as
decisões agora. E o que eu decidi é que eu tenho certeza de que
você é responsável e madura o suficiente para dividir um
apartamento com ele. Vocês vão dormir em quartos separados,
cada um vai ter seu espaço. Não vejo problema nenhum nisso. Você
dois se conhecem desde que nasceram.
Isso era verdade, Letícia o conhecia desde a infância. Contudo,
os dois se evitavam tanto (principalmente depois que entraram no
ensino médio), que Letícia tinha a impressão de que ele era um
completo estranho. E um estranho muito chato, por sinal.
— Mãe, eu não aguento o Daniel. E o Daniel também não gosta
de mim. Coloque nós dois sob o mesmo teto e você vai ter uma
terceira guerra mundial.
Lúcia riu. Sempre quis que sua filha e o filho de sua melhor
amiga se entendessem. Talvez aquela nova situação fizesse com
que eles finalmente conseguissem.
Capítulo 2

Daniel olhou para Letícia, que estava sentada no banco ao lado


dele, com o rosto voltado para a janela. Parecia um pouco nervosa.
Provavelmente, nunca tinha viajado de avião antes. Daniel se
perguntou no que ela estava pensando naquele momento, no que
estava por trás daquele olhar fixo nas nuvens.
— O que você vai cursar, mesmo? — ele tentou quebrar o
longo silêncio que reinara até o momento.
— Serviço Social. — Ela nem sequer tirou os olhos da janela.
— Ah, sim. O curso de distribuidora de cesta básica — ele
ironizou. A garota revirou os olhos e tentou ignorar a provocação,
mas Daniel continuou falando: — Você tirou uma nota
absurdamente alta no Enem. Poderia ter escolhido qualquer curso:
medicina, direito, relações internacionais... Foi escolher logo esse
treco. Aposto que nem dá dinheiro. É cada uma... A senhorita
Letícia-gênio cursando Serviço Social. Que desperdício de
inteligência.
— Bem, eu escolhi esse curso porque é o que eu quero fazer,
não porque o meu papaizinho me obrigou — a garota o alfinetou,
irritada.
Ela sabia que Daniel só tinha escolhido Administração por
pressão do pai, que era dono de uma imobiliária e achava
fundamental que o filho trabalhasse naquele empreendimento
futuramente.
— Calma, bebê. Eu só tava zoando. Acho que esse seu tom de
voz agressivo é só uma tentativa de disfarçar que você está
adorando a ideia de morar comigo.
Ela riu e finalmente fincou os olhos nele.
— Você não faz ideia do quanto... — respondeu, com o tom de
voz escorrendo ironia.
Letícia odiava ter que passar por aquela situação, mas não
havia outro jeito. Ela queria mesmo estudar na Universidade de
Brasília, então teria que encarar morar com aquele indivíduo. A
garota começou a pensar no quanto fora difícil se despedir da mãe e
das duas irmãs.
Malu era a caçula, de sete anos. A irmã do meio se chamava
Gabriela, tinha doze anos e uma personalidade bastante explosiva.
Ser filha mais velha era uma tarefa complicada, pelo menos para
Letícia. Ela só tinha dez anos quando o pai sofreu um acidente de
carro enquanto dirigia indo para o trabalho. Na época, a mãe dela
estava grávida de Malu e começou a trabalhar como louca para
conseguir sustentar as três filhas. O resultado: Lúcia nunca estava
em casa com as meninas. Era Letícia quem tinha que cuidar das
irmãs, arrumar a casa e manter tudo sob controle. Agora que estava
se separando da família, finalmente teria um tempo pra si mesma.
Curiosamente, "ter um tempo para si mesma" não era algo que
a animava muito.
Letícia também se lembrou, mais uma vez, de como tinha sido
se despedir da mãe de Daniel.
— Letícia, eu sei que, às vezes, o Daniel pode ser meio bobo,
mas ele é um bom menino. Tenho certeza de que você vai perceber
isso — Verônica dissera na ocasião. — Vou te confessar que eu não
fui, exatamente, um exemplo de mãe pra ele. Eu não o ensinei a se
virar sozinho. Acredita que ele tem medo de trovão até hoje? Então,
eu queria te fazer um pedido, de coração: cuida dele pra mim.
Aquela conversa com Verônica tinha sido muito estranha, e de
certa forma modificou um pouco a imagem que a garota tinha do
rapaz. Para Letícia, Daniel sempre tinha passado a impressão de
ser um cara arrogante, autoconfiante em excesso, irresponsável e,
principalmente, bastante egoísta. Talvez ele não fosse exatamente
do jeito que ela imaginava, afinal.
— No que você está pensando? — perguntou ele de repente.
— Isso é normal? Não estou gostando dessa turbulência —
afirmou a garota. Era a primeira vez que viajava de avião.
— Isso se chama aterrissagem, relaxa — respondeu o rapaz,
rindo.
Capítulo 3

Quando Letícia e Daniel chegaram ao prédio no qual morariam


pelos próximos quatro anos, ficaram impressionados com o fato de
ser muito perto da universidade. Em quinze minutos, dava para
chegar lá a pé. Por outro lado, Daniel não gostou muito aparência
do lugar.
— Esse prédio está meio acabado. E só tem três andares —
reclamou, enquanto tirava a bagagem de dentro do porta-malas do
táxi.
— Bem, o prédio parece ser um pouco velho, mas eu não achei
ruim — ponderou Letícia, enquanto se esforçava para arrastar a
mala enorme que trouxera.
— Eu estava esperando uma coisinha bem melhor. Meu pai não
me contou que era dono de um prédio mais antigo que ele.
— Seu pai é o dono do prédio? — perguntou Letícia.
— É sim — confirmou Daniel. — Achei que você soubesse.
— Eu pensei que ele fosse dono de um dos apartamentos, não
do prédio todo.
A família de Daniel tinha uma condição financeira muito boa.
Letícia parou para pensar que, talvez por causa disso, Daniel tenha
sido a criança mais mimada e mais insuportável de todos os
tempos. Agora ele era um rapaz alto, de dezenove anos, com um
porte atlético que desenvolvera graças à prática de todos os
esportes imagináveis. Era um cara bonito, mas, para Letícia, a total
falta de modéstia anulava essa qualidade.
O apartamento era no último andar e já estava mobiliado. Os
dois entraram, jogaram as malas num canto e começaram a
explorá-lo. Letícia achou o lugar grande o bastante e se
surpreendeu ao ver que ali já tinha tudo o que eles precisavam,
exceto comida e produtos de limpeza.
— Temos que fazer compras — percebeu ela.
— Pode ser amanhã? Agora que a gente chegou, tô com
preguiça de sair de novo.
— Tudo bem.
A garota foi até a pequena varanda do apartamento e viu os
carros em movimento na rua lá embaixo.
— Eu gosto dessa cidade. É tão bonita e organizada. Sabia que
Brasília é considerada patrimônio cultural da humanidade? —
comentou ela. — Não vejo a hora de conhecer os pontos turísticos.
— Bem, eu não. Acho essa cidade meio entediante. O único
atrativo daqui são essas construções estranhas do Niemeyer que,
aliás, não me interessam nenhum pouco — falou Daniel.
— Ei, e isso me lembra... — Letícia olhou para ele com
curiosidade. — Por que raios você foi escolher justamente a
Universidade de Brasília? Por que quis sair de São Paulo, se nem
gosta daqui?
— Eu não podia continuar morando com os meus pais. Sabe,
minha mãe me trata como se eu tivesse cinco anos de idade. E meu
pai... ele estava doido pra eu estudar em uma universidade pública,
de preferência longe de São Paulo.
— Por quê? — perguntou Letícia.
— Meu pai acha que eu preciso aprender a me virar sozinho,
ter mais responsabilidade e blá blá blá... Ele disse que eu
aprenderia muitas coisas saindo da minha zona de conforto. Como
ele tinha esse apartamento aqui em Brasília, eu vim pra cá. Fim.
Letícia gostava muito de Verônica, a mãe de Daniel. Já o pai
dele era um homem rígido, excessivamente focado no trabalho e,
sem dúvida, apegado ao dinheiro. Ele pressionava Daniel demais e
isso a incomodava, por algum motivo.
— As aulas começam depois de amanhã — lembrou Daniel. —
Animada?
— Para estudar e para conhecer a universidade, com certeza.
Para participar de trote? Nem tanto. Vou dedicar a minha primeira
semana a fugir de pessoas que queiram jogar tinta em mim.
— Ah, mas aí você perde a diversão — comentou Daniel.
— Claro, porque não há nada mais divertido do que passar
horas tentando tirar cascas de ovo do cabelo — ela respondeu,
sorrindo, enquanto observava a movimentação da rua lá embaixo.
Daniel riu e olhou para o braço dela, involuntariamente. Parou
de sorrir assim que viu a cicatriz fixada na sua pele. Não era uma
marca muito grande, mas estava lá, exposta. Aquilo não vai sair
nunca, pensou Daniel. Aquela pequena cicatriz estaria sempre lá,
obrigando-o a se lembrar de que Letícia tinha todos os motivos do
mundo para odiá-lo.
Capítulo 4

Logo na primeira semana de convivência, Daniel e Letícia chegaram


à conclusão de que não seria nada fácil conviver um com o outro.
Letícia estava impressionada com a total falta de habilidade de
Daniel para fazer absolutamente qualquer coisa que não fosse jogar
videogame e tocar violão. Ele não sabia cozinhar, não sabia limpar
nada, não sabia trocar uma lâmpada e parecia nunca ter lavado um
copo na vida. E, para piorar as coisas, ele era a criatura mais
displicente e bagunceira de todo o mundo.
Do outro lado, Daniel se perguntava como uma garota tão
jovem podia ser tão neurótica e controladora. A menina ainda nem
tinha completado os dezoito anos e agia como uma adulta paranoica
e obcecada por colocar ordem em absolutamente tudo. Ela não
suportava ver o menor indício de bagunça ou desordem.
Daniel começou a observar a rotina da garota e teve certeza
absoluta de que ela não era normal. Para começar, passava uma
parte enorme do dia na universidade. Estava cursando sete
matérias logo no primeiro semestre e estudava como louca. Quando
voltava para casa ao final do dia e Daniel achava que ela finalmente
descansaria um pouco, Letícia começava a organizar as coisas. O
quarto dela, por exemplo, estava sempre impecável. No armário,
suas roupas estavam cuidadosamente dobradas e organizadas por
cor. Quando terminava de organizar tudo e de reclamar do completo
desleixo de Daniel, voltava a estudar.
Para o rapaz, aquela situação ficou ainda mais absurda quando
ela anunciou animadamente:
— Consegui um estágio!
— Como é? — perguntou Daniel, enquanto enfiava um pedaço
de pizza de calabresa na boca.
Eram nove horas da noite e eles estavam jantando pizza,
sentados à mesa da cozinha.
— Tudo indica que vou trabalhar das sete da manhã ao meio
dia, e...
— Letícia, você estuda tanto que mal tem tempo pra dormir.
Sua rotina é uma loucura. Você já não tem tempo nenhum pra
descansar e agora ainda quer fazer estágio?
— Descanso é para os fracos — ela brincou, enquanto
colocava um pedaço de pizza no prato. — Mas é sério, eu consigo
encarar o estágio numa boa. Vou trabalhar pela manhã e estudar
durante a tarde e a noite.
— Meu Deus — murmurou Daniel.
Ele não conseguia entender como é que alguém podia ser
assim. Enquanto ele passava mais da metade do dia dormindo,
comendo e jogando videogame, Letícia não parava um segundo
sequer.
— Desse jeito, você vai ter um infarto aos dezessete anos de
idade — advertiu Daniel. — Deveria parar de levar as coisas tão a
sério.
Letícia suspirou.
— É que, você sabe, era eu quem cuidava das minhas irmãs,
desde que eu tinha, sei lá, dez anos. Elas me mantinham bastante
ocupada. Agora, a única coisa que eu tenho para fazer é estudar e
brigar com você. Estou me sentindo meio inútil.
— Você é inacreditável. Só digo isso — falou Daniel,
lembrando-se de que nem no final de semana ela parava para
descansar. Aos sábados e domingos, Letícia ia trabalhar como
voluntária em algum lugar no fim do mundo.
— Não, você que é inacreditável — respondeu ela. — Sabia
que ontem eu achei uma garrafa de Coca-Cola vazia atrás do sofá?
Acho que vou ter que te matricular em um curso intensivo chamado
“aprendendo a localização das lixeiras”.
Daniel fez uma cara de quem não estava nada preocupado com
a questão.
— E você deveria fazer um curso intensivo chamado
“aprendendo a relaxar”.
— Eu sei relaxar! Tô completamente relaxada. Não tá vendo?
— ela respondeu, mas então olhou para o chão da sala e encontrou
algo que preferia não ter visto. — Ei, você derramou cereal no
chão? De novo? Você vai limpar isso, e tem que ser agora, certo?
Ah, e eu esqueci de comentar que a torneira da cozinha não está
funcionando muito bem, eu tentei consertar, mas não tenho uma
chave de fenda, então...
Daniel a olhou fixamente, com um sorrisinho de vitória.
— Viu? Eu disse. Você não consegue relaxar. Nem por um
momento. Fica preocupada com tudo o tempo todo — argumentou o
rapaz, vencendo a discussão.
— Não é verdade — ela murmurou, franzindo as sobrancelhas.
— Certo. Então, hoje vamos assistir a um filme na TV.
— Mas eu tinha que estudar... — Letícia olhou para Daniel e se
deu conta de que queria provar que não era uma neurótica
obcecada por organizar as coisas e estudar. — Tudo bem, vou
assistir ao filme — anunciou, decidida.
Alguns minutos depois, eles estavam sentados no sofá, em
frente à televisão. Letícia tentou se lembrar da última vez em que
assistira TV. Não conseguiu.
— Ei, tem o Leonardo DiCaprio nesse filme! — Letícia
comentou animadamente. — Sou fã dele desde Titanic.
Os dois jovens estavam assistindo ao filme tranquilamente, mas
não demorou muito para que Letícia tivesse a infelicidade de olhar
para a mesinha de centro. Havia uma mancha escura e gosmenta
grudada na superfície do móvel. Ela sabia que existiam dois tipos de
pessoas no mundo: as que conseguiam assistir TV tranquilamente,
mesmo quando perto delas havia uma mancha grudada na mesinha
de centro gritando “me limpe, me limpe!”, e as que não conseguiam.
Decididamente, a garota pertencia ao segundo grupo.
Letícia começou a travar uma batalha com a mancha. Eu não
vou te limpar, pensou ela. Você não me incomoda, mancha
gosmenta. Este filme é ótimo e eu não vou parar de assisti-lo só pra
me livrar de você.
Letícia mudou de posição no sofá e tentou se concentrar em
olhar unicamente para o Leonardo DiCaprio. Não conseguiu. Só
conseguia olhar para a sujeira grudada na mesinha. A garota sentou
em cima das próprias mãos e decidiu que não sairia dali de jeito
nenhum. Depois de dois minutos de pura agonia, desistiu. Levantou-
se do sofá como um raio. Daniel achou que ela estava terrivelmente
apertada para ir ao banheiro, mas a garota retornou dois segundos
depois, com um paninho e um produto de limpeza nas mãos.
Ela esfregou a mancha como se sua vida dependesse daquilo.
Aproveitou para limpar rapidamente todo o resto da mesinha. Ela
guardou os objetos de limpeza na área de serviço, lavou
cuidadosamente as mãos e voltou a se sentar no sofá. Não olhou
para Daniel, estava constrangida demais para isso. Sabia que ele a
estava encarando e ficou extremamente frustrada consigo mesma.
— Nossa, seu caso é sério — Daniel comentou, pasmo.
Pretendia fazer alguma piada ou zoar a compulsão dela, mas
reparou que sua colega de apartamento estava vermelha e não
queria que ela ficasse chateada. — Desculpe ter sujado a mesa —
resolveu dizer, tentando ser o mais cauteloso possível.
Letícia finalmente parou de olhar a televisão e voltou o rosto
para ele, olhando-o em silêncio durante alguns segundos.
— Você tem razão, eu não consigo relaxar. Isso é uma droga —
ela desabafou, enterrando o rosto nas mãos por um segundo. — Eu
odeio essa situação. Isso é ridículo. Nós parecemos um casal
divorciado que ainda mora na mesma casa e eu estou fazendo o
papel da dona de casa rabugenta, neurótica e com mania de
limpeza.
— E eu?
— Você o quê?
— Se nós somos um casal divorciado e você é a dona de casa
neurótica, qual é o meu papel?
— Você é o marido folgado e preguiçoso, que passa os dias
deitado no sofá comendo coxas de frango com a mão.
— Tipo o Homer Simpson?
— É, tipo o Homer — ela concordou, rindo.
— Que tal se a gente tentasse ser mais normal? Eu vou tentar
ser menos vagabundo e você tenta ser menos pilhada — propôs
Daniel.
— Tudo bem. Trato feito — A garota assentiu. Eles apertaram
as mãos solenemente. — Mas já vou avisando que, se você
continuar escondendo garrafas de Coca-Cola atrás do sofá, eu te
mato. Vamos assistir ao filme, antes que acabe.
Capítulo 5

— Mãe, eu já disse que estou bem — respondeu Letícia,


tentando segurar o celular e dobrar as roupas ao mesmo tempo.
Não estava funcionando. Ela largou a camiseta que segurava e se
sentou na cama para conversar com a mãe ao telefone.
— Ah, tenho uma ótima notícia — a garota anunciou, animada.
— Você não precisa mais me mandar dinheiro. Consegui um
estágio, o dinheiro que eu estou ganhando é suficiente. Não. Sim.
Há uma semana, mais ou menos. Mãe, é um ótimo trabalho, juro.
Use o dinheiro para pagar a aula de karatê da Gabi. Aliás, posso
falar com ela e com a Malu? Tô morrendo de saudade.
Letícia estava conversando com suas irmãs com total
empolgação quando ouviu um barulho ensurdecedor. Parecia
alguma coisa explodindo.
— Ah, meu Deus — ela exclamou, desligando o telefone e
correndo até a cozinha, de onde tinha vindo o barulho.
A garota chegou ao local e encontrou o microondas pegando
fogo. A parede da cozinha estava em um estado deplorável. Havia
pedaços de coisas explodidas por todos os cantos. No meio daquele
cenário caótico, estava Daniel, fazendo uma cara bastante irritante
de foi-mal-aí-essas-coisas-acontecem.
Letícia correu até o corredor, pegou o extintor de incêndio e
apagou o fogo, tossindo.
— Daniel. Você devia saber que NÃO PODE COLOCAR
ALUMÍNIO DENTRO DO MICROONDAS! QUER EXPLODIR O
APARTAMENTO?
— Foi mal — ele respondeu, um tanto constrangido. — Eu vou
comprar outro.
Letícia suspirou.
— Tudo bem, mas quero que você tenha mais cuidado com o
que está fazendo, porque nem tudo pode ser consertado com
dinheiro, entende?
— É, nem tudo, mas com certeza muita coisa — o tom de voz
de Daniel foi bem-humorado.
Letícia nem tentou disfarçar seu olhar de desprezo.
— Bem, já que você decidiu explodir a cozinha, você vai fazer
com que ela volte a ser exatamente o que era. Vou me arrumar e ir
para aula.
— Ei, é isso mesmo? Você vai sair e eu vou ficar aqui
arrumando isso sozinho?
— Nossa, você até que é esperto, entendeu direitinho o que eu
quis dizer. Hoje é sexta-feira, o dia em que você não tem aula
nenhuma e fica em casa mofando. Vai ser bom você ter alguma
coisa pra fazer — sugeriu Letícia, dando uma olhada na parede que
costumava ser branca, mas que agora estava queimada e preta.
— Faça o favor de não destruir o resto do apartamento na
minha ausência, OK? — recomendou a garota sorrindo, enquanto
dava um tapinha nas costas dele.

Horas depois, quando Letícia voltou ao apartamento, o lugar


estava impecável.
A cozinha estava perfeita e já havia um microondas novo
substituindo o que havia explodido. Daniel estava no sofá, jogando
videogame, mas assim que Letícia chegou ele saiu correndo atrás
dela para ver com que cara ela ficaria quando encontrasse a
cozinha em perfeito estado.
— Isso é bastante impressionante, Daniel — A garota fingiu
estar tremendamente admirada.
— Eu sei — respondeu ele, estufando o peito. — Você achou
que eu não tinha a capacidade de...
— É de fato impressionante. As pessoas que você contratou
para arrumar aquela bagunça são muito boas — afirmou Letícia,
começando a rir.
— O quê? Você está insinuando que...
— Admita, Daniel. Você mal sabe lavar um copo. Você nunca
poderia ter arrumado isso sozinho.
— Mas que absurdo! É uma falta de consideração da sua parte
achar que...
— Daniel...
— Tá bom, eu chamei um pessoal pra me ajudar — ele admitiu,
enquanto Letícia ria.
— Por ajudar, subentende-se: o seu “pessoal” arrumou tudo
enquanto você jogava videogame.
Daniel respirou fundo. Estava meio chateado. Seria legal se ela
caísse na conversa de que ele tinha arrumado toda aquela bagunça
sozinho. Tinha certeza de que Letícia achava que ele não sabia
fazer absolutamente nada além de se divertir, e isso o incomodava
um pouco. Ele não gostava de pensar que ela sempre o enxergaria
como um menino bobo.
Aquela situação não era nada agradável. Por que Letícia tinha
que ser tão difícil? Todo mundo gostava dele. Afinal, era bonito e
popular. Tinha dinheiro e um carisma inegável. Desde a época da
escola ele era o tipo de garoto pelo qual as meninas suspiravam.
Por que somente aquela garota parecia achá-lo patético? Por quê?
Ele não conseguia entender.
Mais tarde, Daniel aproveitou o momento em que ela estava
lendo um livro, sentada ao lado dele no sofá, para anunciar uma
coisa que ele vinha adiando há alguns dias:
— Letícia, amanhã é sábado, certo?
— Certo — ela confirmou, sem tirar os olhos do livro.
— Então, eu ainda não te avisei, mas amanhã... — Daniel
pensou na forma mais sutil de dar aquela notícia. — Amanhã nosso
apartamento irá, digamos, ser o local que abrigará uma pequena
reunião social, em que teremos a oportunidade de...
Letícia virou o pescoço bruscamente em direção a Daniel e o
encarou com um olhar fuzilador.
— VOCÊ VAI DAR UMA FESTA AQUI? — ela perguntou,
desejando ter entendido tudo errado, mas sabendo, no fundo, que
era exatamente aquilo que ele tinha tentado dizer.
— Não é bem uma festa, exatamente. É tipo um happy hour,
não chamei muita gente, só uns poucos amigos da faculdade.
— Você só pode estar brincando comigo — murmurou a garota.
— Ah, Letícia, para de ser antissocial. Vai ser ótimo, meus
amigos vão adorar te conhecer. Eles são super gente boa.
— Faço ideia do quanto eles devem ser legais — murmurou
Letícia, lembrando-se dos amigos que Daniel tinha no colégio. Eles
eram tão legais que, uma vez, acionaram o extintor de incêndio em
cima dos alunos do grupo de estudo do qual ela fazia parte. Letícia
ficou dias tentando tirar pó químico do cabelo.
— É a sua chance de se divertir um pouco. Prometo que vai ser
legal — insistiu Daniel, sorrindo.
Letícia tinha certeza de que aquela festa seria tudo, menos
“legal”.
Capítulo 6

Letícia ficou parada em frente à porta do apartamento, pensando em


como fugir daquela situação. Era sábado e ela tinha passado o dia
inteiro trabalhando como voluntária em uma creche da periferia.
Enrolou o máximo que pôde para voltar para casa e agora não
estava nada a fim de entrar.
A garota olhou para o relógio de pulso e viu que já eram seis e
meia da tarde. Em pouco tempo, o apartamento ficaria infestado de
universitários embriagados. Ela detestava festas. Ou, pelo menos,
aquele tipo de festa. Eu deveria ter combinado de dormir na casa de
alguém, meditou, chateada por não ter pensado com mais
antecedência em um plano para escapar daquela “reunião social” do
Daniel. Agora, era tarde demais. Respirou fundo e abriu a porta.
Logo de cara, ela encontrou uma mesa de DJ instalada no
canto da sala. Havia caixas de som imensas ocupando o espaço.
Daniel, como sempre, estava jogando videogame tranquilamente.
Assim que a viu chegar, pausou o jogo e olhou para Letícia,
sorridente.
— E aí, Letícia? Animada pra nossa festinha? — comentou,
parecendo empolgado.
— Sua festinha — ela corrigiu. — E sim, eu estou
transbordando animação.
— Dá pra reparar... — ironizou Daniel, ao ver a cara dela.
— Precisava mesmo instalar essas coisas? — perguntou
Letícia, gesticulando em direção ao equipamento de som.
— Claro! O item principal pra uma boa festa é a música, boa e
alta — ele respondeu. — Um dos meus amigos é DJ e vai comandar
esse equipamento de som que eu aluguei.
Aquele garoto mal tinha chegado a uma cidade nova e já tinha
amigos suficientes para dar uma festa. Letícia tinha conhecido
pessoas legais na universidade, mas eram poucas. Daniel passava
a impressão de conhecer toda a população de Brasília.
— Não quero diminuir sua empolgação, mas acho que você
precisa saber que nós temos vizinhos que vão se incomodar com o
barulho. O prédio tem normas e é proibido colocar música alta
depois das dez — advertiu a garota.
Daniel fez uma careta.
— Lá vem a senhorita certinha...
— Eu tô falando sério. As pessoas vão reclamar.
— Olha, Letícia, eu acho que você não entendeu direito. —
Daniel se levantou do sofá e se aproximou dela. — Danem-se as
reclamações dos outros. Eu sou o filho do dono do prédio. Eu faço o
barulho que eu quiser, tá legal? Quem é que vai me impedir?
Letícia o encarou com desprezo, pensando em como alguém
poderia ser tão inconsequente e egoísta.
— A polícia, seu idiota. Existe uma coisinha chamada Lei do
Silêncio.
Ele fez uma expressão irritante de quem não estava dando a
mínima e Letícia decidiu que não perderia tempo discutindo com ele.
— Bem, lembre-se de que eu te avisei — Ela virou as costas e
foi para o quarto.

***

Logo o apartamento estava lotado de gente. A música eletrônica


tocava em um volume bastante alto e em cada canto daquele lugar
havia um jovem com um copo na mão. Um pequeno grupo estava
sentado no sofá, jogando truco. Algumas garotas usavam vestidos
bem curtos dançavam próximas à mesa do DJ. Daniel transitava de
um lugar para o outro, conversando com as pessoas. Ele era o
centro das atenções. Sempre fora e gostava disso. Uma coisa
apenas o incomodava: Letícia não estava na festa.
Ele deixou a sala de estar por um instante e bateu na porta do
quarto dela.
— Letícia, por favor, abre a porta!
A garota estava sentada na cama lendo um livro e usando
tampões de ouvido. Mesmo assim, conseguiu escutá-lo. Ela se
levantou e abriu a porta.
— Diga — o tom de voz dela foi desinteressado.
— Qual é, você vai ficar aí isolada? O que é que você tá
fazendo, afinal?
— Estou lendo um livro. Ou melhor, tentando ler um livro em
meio a esse barulho insuportável.
— Pelo menos uma vez na vida para de ser chata e vem curtir a
festa — solicitou Daniel.
— De jeito nenhum. Detesto música alta. E detesto ficar em
ambiente lotado e gente bêbada, me irrita. Ah, por falar em gente
bêbada, achei que você estivesse nas últimas.
Daniel estava perfeitamente sóbrio, o que era surpreendente.
Letícia achava que ele era o tipo de cara que bebia até cair em
festas.
— Bem, é meio constrangedor admitir isso, mas não sou muito
fã de bebida alcoólica. Acho o gosto ruim. Prefiro Coca-Cola —
admitiu Daniel. —, mas não conta isso pra ninguém.
Letícia riu, pensando que finalmente havia alguma coisa em
comum entre eles.
— Isso é ótimo. Você já é irritante naturalmente, imagina
bêbado. Ninguém te suportaria.
— Engraçadinha. Então, vamos lá?
Ele sorriu gentilmente e gesticulou em direção à festa. Letícia
olhou bem para Daniel e sorriu de volta. O garoto olhou para aquele
rostinho angelical e teve certeza de que aquele sorriso era o mais
lindo do planeta Terra. Ela continuou sorrindo e fechou bruscamente
a porta na cara dele.
— Ei, isso doeu! E não foi muito gentil da sua parte! — ela o
ouviu reclamar.
Letícia riu baixinho e voltou a se sentar na cama. Recolocou os
tampões de ouvido, abriu o livro na página que tinha parado e
continuou sua leitura.
Capítulo 7

Letícia estava lendo tranquilamente quando viu que alguém estava


abrindo a porta do quarto dela. Lá vem Daniel de novo para encher
o saco, pensou.
— Não acredito que esqueci de trancar a porta — murmurou a
garota.
Não era Daniel. Quem tinha entrado era um cara que ela nunca
tinha visto antes. O estranho deu uma olhada no aposento e depois
a mirou.
— Ah, desculpa. Tava procurando o banheiro — desculpou-se o
homem, sorrindo.
A garota ficou com a sensação horrível de estar sendo
analisada dos pés à cabeça. Indicou rapidamente onde era o
banheiro e esperou que ele saísse do quarto dela. Contudo, o
homem continuou ali, imóvel, encarando-a.
— Ei, você é a menina que divide o apartamento com o Daniel,
não é? — ele lhe perguntou.
Letícia assentiu e manteve os olhos firmes nele. Era um jovem
alto que estava usando uma regata terrivelmente apertada, numa
tentativa desesperada de exibir os seus músculos. Ela imaginou que
ele era o tipo de cara que usava as redes sociais para postar fotos
sem camisa.
— Agora eu entendi porque ele te esconde... — comentou o
rapaz, utilizando um tom de voz insolente ao extremo. Era
impossível não perceber que ele tinha bebido além da conta.
Letícia fez cara de nojo.
— Olha, eu estava lendo e você me interrompeu. Então, faça a
gentileza de dar o fora daqui — ralhou ela, sem a menor paciência.
O homem a ignorou e deu alguns passos em direção à cama
onde ela estava sentada.
— Esse Daniel é um egoísta. Manter uma coisinha linda como
você isolada neste quarto.
— Vá embora daqui! — ordenou a garota novamente, irritada.
— Não, acho que não estou a fim de ir embora — ele
pronunciou com alguma dificuldade e um sorriso malicioso —, tô
adorando a sua companhia.
O homem se aproximou mais e tocou os cabelos longos e
escuros de Letícia. Ela afastou a mão dele e se levantou da cama
bruscamente.
— Não se atreva a tocar em mim, seu imbecil. Eu já disse pra
você dar o fora!
O cara começou a rir. Letícia percebeu que seria inútil discutir
com aquele bêbado idiota e começou a andar em direção à porta. Já
que ele se recusava a sair, então ela sairia. Tudo pra me livrar dele,
pensou.
O homem, no entanto, não a deixou sair do quarto, apenas
posicionou o corpo enorme na frente dela e a encarou com um
sorrisinho de zombaria no canto da boca.
— O que é que você vai fazer agora, princesinha?
— Sai da minha frente — Letícia usou o tom mais autoritário
que conseguiu forjar. Estava começando a ficar assustada.
— Não estou entendendo porque é que você está querendo
fugir de mim, lindinha. Relaxa... — Ele ergueu a mão na direção da
garota.
Horrorizada, Letícia o chutou entre as pernas com toda a força.
O homem berrou e ela se precipitou rapidamente para a porta.
Chegou a girar a maçaneta, mas o cara a puxou, bloqueando
novamente sua saída. Ele a prendeu em um dos braços e apertou o
rosto dela com uma das mãos.
Letícia começou a gritar, mas o homem tapou sua boca e
metade do rosto com a palma enorme, impedindo-a inclusive de
respirar.
— Você não quer me deixar irritado, quer? — rosnou ele, com
uma expressão de quem já estava bastante irritado.
Foi exatamente nesse momento que Daniel abriu a porta do
quarto. Ele examinou a cena por dois segundos, chocado demais
para se mover. Observou aquela mão enorme tapando a boca de
Letícia, viu a garota se debatendo nos braços daquele cara que ele
nem se lembrava o nome e percebeu que ela estava lutando para
respirar. Além do pânico no olhar dela.
Aquela cena o atingiu como um míssil. Cada centímetro do
corpo de Daniel foi invadido por fúria. Em uma fração de segundo,
Letícia entendeu que nunca tinha odiado Daniel. O que ela
costumava sentir por ele, às vezes, não era ódio de verdade.
Ódio era aquela coisa intensa que brilhava nos olhos dele
naquele momento.
Capítulo 8

O cara que segurava Letícia a largou imediatamente assim que


percebeu que tinha sido surpreendido por Daniel. A garota apoiou o
corpo na parede e voltou a respirar, ofegante. Daniel correu até ela,
preocupado, e depois de olhar bem para Letícia, percebeu que ela
estava bem. Ao menos fisicamente.
O homem de regata apertadinha começou a falar alguma coisa,
provavelmente para tentar se justificar, mas não teve tempo para
isso. Daniel partiu pra cima dele e o socou no rosto cinco vezes
seguidas, enfurecido. Letícia gritou alguma coisa, mas Daniel não
estava ouvindo. Tudo o que importava para ele naquele momento
era destruir aquele cara.
A garota viu o sangue gotejando do nariz do seu agressor e
presenciou o momento em que ele finalmente conseguiu contra-
atacar, empurrando Daniel e batendo a cabeça dele contra parede.
Porém, isso não impediu que, segundos depois, seu colega de
apartamento continuasse a golpeá-lo. A fúria que o dominava estava
sem dúvida o ajudando a levar vantagem na briga.
Letícia finalmente conseguiu sair do estado de choque em que
estava e percebeu que seria inútil pedir que eles parassem. Saiu do
quarto correndo e gritou por ajuda, mas as pessoas que se divertiam
ao som da música alta nem pareceram escutar. Letícia se irritou
com aquilo e foi diretamente até a mesa de som. Sem pensar duas
vezes, puxou de forma ríspida o cabo que conectava o equipamento
a eletricidade. A música alta foi interrompida e, em um segundo, o
silêncio reinou na sala. Todos olharam para a garota, boquiabertos.
— Tem duas pessoas se matando dentro do meu quarto. SERÁ
QUE DAVA PRA ALGUÉM ME AJUDAR? — exclamou, exasperada.
Felizmente, Letícia conseguiu ajuda. Três caras entraram no
quarto e conseguiram impedir que Daniel e o homem da regata
continuassem brigando. O dono da casa tinha um pequeno corte na
testa, logo acima da sobrancelha, mas o outro estava em um estado
bem pior. Não parava de escorrer sangue do nariz dele e seu olho
direito estava terrivelmente inchado. O sujeito fugiu do apartamento
assim que Daniel prometeu que daria um jeito de colocá-lo atrás das
grades. O ódio que transparecia nos olhos dele só diminuiu depois
de algum tempo.
A festa acabou ali. A música não voltou a tocar, para o alívio
dos moradores do prédio. As pessoas saíram do apartamento de
forma ruidosa, conversando e terminando de engolir as bebidas
restantes. Em poucos minutos, Letícia e Daniel estavam sozinhos
no apartamento, em meio a caixas de som, copos de plástico
espalhados pelo chão e uma bagunça generalizada.
— Eu vou entrar em contato com os advogados do meu pai. A
gente vai acabar com a vida daquele cara — murmurou Daniel, sem
conseguir olhar diretamente para Letícia.
— Nós vamos fazer tudo o que for possível fazer, aquele cara é
um maníaco, mas agora eu preciso me acalmar um pouco. —
Letícia se sentou e se concentrou em respirar.
Ela e Daniel ficaram quietos por alguns minutos, até a garota
quebrar o silêncio.
— Você está sangrando... — ela comentou, olhando para o
corte na testa dele.
Daniel não disse nada. Parecia estar em um outro planeta.
— Senta aqui, me deixa dar uma olhada nisso. — A estudante
apontou um lugar do sofá que parecia o menos sujo e foi em direção
ao armário da cozinha procurar o kit de primeiros socorros, que
tinha guardado em algum lugar por ali.
Voltou com o material que precisava e encontrou seu colega
sentado no sofá. Letícia pegou uma cadeira e se posicionou bem
em frente a ele. Deu uma olhada no corte e viu que aquele tipo de
ferimento era bem fácil de tratar. Sua irmã, Gabi, era agitada demais
e costumava se machucar o tempo todo, por isso Letícia sabia o que
fazer naquela situação.
A garota começou a limpar o ferimento e encarou Daniel nos
olhos por um momento. O pensamento dele parecia estar a
quilômetros dali.
— Ei. Você está bem? — ela perguntou com um tom de voz
preocupado.
Era estranho ver Daniel daquele jeito. Letícia soube que,
embora ele tivesse assentido com a cabeça confirmando que estava
bem, a verdade é que não estava. Parecia dez vezes mais
perturbado do que ela mesma, e isso era inesperado.
Ela limpou o pouco de sangue que estava secando no rosto
dele e o silêncio se estendeu por mais alguns segundos, que
pareceram uma eternidade.
— Pelo amor de Deus, fala alguma coisa. Está sentindo muita
dor? Ah, caramba, será que você teve uma contusão? — Letícia já
estava angustiada.
Ela começou a procurar por sinais de que ele tivesse se
machucado, além daquele corte na testa.
— Eu estou bem — confirmou Daniel, finalmente fixando o olhar
no de Letícia.
Ela terminou de fazer o curativo e argumentou:
— Se você estivesse realmente bem, estaria se gabando de ter
dado uma surra naquele cara. Ou estaria dizendo algo como "Viu
só, eu coloquei aquele som no volume que eu quis e não arranjei
problema nenhum, porque eu sou o filho do dono do prédio e blá blá
blá"...
A garota sorriu para Daniel e ele tentou sorrir de volta.
— Me diz o que você está pensando... — ela pediu.
— Eu estou pensando... — começou Daniel, sério e um pouco
hesitante —, no modo como aquele desgraçado olhava pra você. No
que ele estava planejando fazer. E no que teria acontecido se...
— Ei, tá tudo bem agora, OK? — ela o interrompeu. — Já
passou. Por sorte, você chegou na hora certa.
— Eu cheguei na hora certa... — ele repetiu baixinho e deixou
escapar um riso que não tinha o menor humor. — Você tem noção
do que eu fiz? Fui eu quem abriu a porta para aquele psicopata
entrar! Eu só estava preocupado em ganhar uma partida de truco
idiota, enquanto ele estava no cômodo ao lado, à vontade pra fazer
o que ele quisesse, bem na frente do meu nariz! Quer dizer, como é
que eu pude deixar uma coisa dessas acontecer? Você não tinha
nada a ver com aquela festa estúpida e eu acabei te envolvendo em
uma situação que...
— Daniel, foi horrível o que aconteceu hoje. Eu acho que vou
ter pesadelos com isso, mas a culpa não foi sua, tá? Como é que
você iria adivinhar que seu amigo era um maníaco?
— Não. Chame. De. Meu. Amigo. Aquele. Filho. Da...
— Tá bom, tá bom. O que eu quis dizer é que a culpa é toda
daquele cara. Eu vou denunciar aquele cretino, talvez não dê em
nada, mas mesmo assim vamos tentar.
Daniel respirou fundo e tentou se acalmar. Odiava aquilo.
Estava sempre falhando com Letícia, vez após outra. Desde que
eram crianças as confusões que ele armava sempre a atingiam de
algum modo. No início, ele não se importava muito, mas as coisas
estavam tomando proporções maiores e, o que acontecera alguns
minutos atrás, era a prova disso. Ele só queria uma chance para
compensá-la de alguma forma. Precisava pagar aquela dívida que
estava se estendendo mais e mais.
Letícia olhou bem nos olhos de Daniel e se perguntou o que
estaria se passando naquela cabeça.
— Bem, você não deveria ter se metido numa briga com aquele
louco. Foi uma atitude idiota e perigosa, mas eu preciso admitir que
foi bem legal quando você socou a cara dele. Acho que o nariz dele
nunca mais vai voltar para a posição original — Letícia tentou
animá-lo.
— É claro que foi legal. Eu sou um boxeador profissional, não
sabia? Eu faço o Anderson Silva parecer tão ameaçador quanto a
Branca de Neve — brincou Daniel.
Letícia riu aliviada e usou as duas mãos para desordenar o
cabelo castanho dele.
— Esse é o Daniel que eu conheço.
Capítulo 9

— Que horas são? — perguntou Daniel, sem tirar os olhos do


computador, digitando freneticamente.
Naquela noite, Letícia e Daniel pareciam ter trocado de lugar:
enquanto ela estava assistindo a um seriado, Daniel estava sentado
com um notebook no colo, fazendo um trabalho da faculdade.
— 19 horas e 30 minutos — informou Letícia.
Ela parou de olhar para a televisão e deu uma longa encarada
na rachadura que crescia no teto da sala. Aquilo não parecia nada
bom.
— Droga. Eu nunca vou conseguir terminar a tempo —
reclamou o rapaz.
— Por acaso esse é aquele trabalho gigantesco que o seu
professor passou com três meses de antecedência?
— Isso mesmo — confirmou Daniel. — E não venha dizer que
eu devia ter começado antes.
— A entrega é pra quando?
— Amanhã de manhã. Às oito horas.
— Você definitivamente deveria ter começado antes —
provocou Letícia.
— Se eu tivesse começado antes, não teria zerado o GTA 5.
Letícia não conseguia imaginar como é que zerar um jogo bobo
de videogame poderia ser mais importante que ser aprovado em
uma disciplina obrigatória. Ela deu de ombros e continuou
assistindo televisão.
Recentemente, Daniel decidira contratar uma empregada. Na
ocasião, Letícia tinha comentado que aquilo era desnecessário, mas
logo ela percebeu que era um alívio. Dona Joana vinha no período
da manhã, arrumava o apartamento rapidamente e pronto. Eles não
viviam mais em meio à baderna. E agora, ela tinha tempo pra
assistir séries.
Letícia se impressionava, às vezes. Daniel sempre conseguia
tudo o que queria.
Só na semana passada, ele tinha comprado um carro bastante
caro (sendo que eles moravam a 15 minutos da universidade) e
contratado uma empregada. O que viria a seguir? Um mordomo?
Um motorista particular? Uma jacuzzi? Ela não podia prever.
— Daniel — chamou Letícia, assim que ouviu um som estranho
vindo da cozinha. — Você está ouvindo esse barulho?
Ele tirou os olhos do computador por um instante.
— Ahã. E é um barulho bem estranho.
Daniel e Letícia entraram na cozinha apressadamente e
descobriram, não sem alguma surpresa, que o barulho vinha da pia.
Daniel olhou bem para o ralo e viu o momento em que uma água
suja e oleosa começou a brotar dali.
— Que nojo. O que é isso? — perguntou Daniel.
Letícia fez uma careta.
— Deve ser algum problema na tubulação.
A água suja estava saindo do ralo rapidamente e enchendo a
cuba da pia. Em um minuto, começaria a transbordar.
— Você sabe consertar isso? — Letícia perguntou.
— Letícia. Eu ainda estou tentando aprender como trocar uma
lâmpada. É claro que eu não sei consertar nada — respondeu
Daniel.
— O que a gente faz agora?
— Sei lá. Vamos chamar alguém. Mas tem que ser rápido,
antes que a cozinha fique inundada por essa coisa nojenta.
— O síndico! — disse a garota. — Eu vou correndo chamar o
síndico e ver o que ele pode fazer.
— Ótimo. Mas vai voando! — disse Daniel.
A cuba da pia estava entupida e começando a transbordar.
Antes de sair, Letícia entregou um rodo para Daniel e o instruiu a
impedir que a água se espalhasse pela cozinha.
Quando a garota retornou, minutos depois, acompanhada de
um senhor parcialmente careca que atendia pelo nome de Silveira, a
água já estava começando a inundar o chão.
Silveira fechou a cara imediatamente assim que olhou para
Daniel.
— Vejo que vocês estão com um problema aqui — disse o
homem.
Ele parecia admirar aquela futura inundação com uma
expressão que dizia "bem feito!".
— Nossa, você percebeu? — Daniel falou ironicamente,
enquanto usava o rodo para manter aquela água nojenta longe dele.
— Isso é um problema com a tubulação. A caixa de gordura do
prédio está transbordando — explicou Silveira.
— E o que você vai fazer a respeito, hein? Estamos pagando
aquela taxa de condomínio pra quê? Meu pai é o dono do prédio, e
eu exijo que isso seja resolvido agora — ralhou Daniel.
Letícia o olhou com uma cara de desaprovação. Aquilo era uma
grosseria total.
Em resposta ao que Daniel tinha acabado de dizer, Silveira riu.
— Senhor digníssimo "Filho do dono do prédio" — começou a
dizer o homem, bastante mal-humorado —, se seu apartamento
está ficando inundado, a culpa é toda do seu querido pai. Ele decidiu
jogar esse prédio às traças. Por pura negligência dele, há anos não
acontece nenhuma manutenção, nenhuma reforma, nada. É um
desrespeito com todos os moradores. Quase todo mundo nesse
prédio está tendo problemas. Eu já cansei de exigir que seu pai
tomasse providências. Quem sabe agora, que o filhinho dele está
sendo afetado, ele decida fazer alguma coisa. Passa esse recado
pra ele, OK? E se vira.
Quando Silveira finalmente terminou de desabafar, ele olhou
para Letícia e disse em um tom mais tranquilo:
— Sinto muito, moça, mas eu não posso fazer nada. Sugiro que
você tente ligar para um encanador.
Assim que terminou de falar, o síndico se retirou do
apartamento. Daniel e Letícia se entreolharam por alguns segundos.
— Mas que felicidade. Acabo de receber mais uma
confirmação de que meu pai é um pilantra. Viva — falou Daniel.
A garota não sabia o que dizer diante daquilo. Preferiu apenas
alertá-lo de que tinha um pedaço de frango em decomposição
boiando no meio daquele aguaceiro e indo bem em direção a ele.
— Vou ligar pra um encanador — anunciou Letícia, tentando
não se estressar.
Capítulo 10

A inundação do apartamento foi resolvida pelo encanador de forma


bastante demorada. O pior é que havia possibilidade de que aquele
problema voltasse a ocorrer. Tirar aquela água suja da cozinha foi
uma experiência extremamente desagradável que Daniel e Letícia
tiveram que encarar juntos.
Daniel ligou para o pai diversas vezes, mas ele sempre estava
ocupado demais para ouvir o que o filho tinha a dizer. Antônio, pai
do rapaz, simplesmente não se importava. Para Daniel, não havia
nada mais irritante.
Uma semana depois, as coisas pareciam ter recuperado a
ordem. Numa terça- feira, tarde da noite, o apartamento estava
organizado e silencioso.
Letícia estava confortavelmente deitada em sua cama. Ela
ajeitou a cabeça no travesseiro, enquanto uma chuva violenta
molhava a cidade. Raios e trovões cortavam o céu, espalhando
clarões de luz pelo quarto dela. A garota fechou os olhos. Era
reconfortante dormir ao som daquele barulho de chuva. E ela estava
exausta.
Enquanto o sono começava a envolvê-la lentamente, a mente
da garota divagava sobre centenas de coisas. O estágio, os
problemas no trabalho voluntário, as boas notas que conseguira nas
últimas provas, Daniel... Ela estava prestes a apagar
completamente quando outro trovão emitiu um barulho estrondoso.
Daniel, ela pensou de novo. E então se obrigou a abrir os olhos.
Letícia se levantou da cama o mais rápido que pôde. Estava
tonta de sono.
— Daniel? — ela chamou, enquanto saía do quarto.
A garota o encontrou na sala, um pouco encolhido no canto do
sofá. A televisão estava ligada, mas ele olhava para a janela, para a
tempestade lá fora. Outro trovão ressoou, e cada parte do corpo
dele estremeceu.
Graças à mãe de Daniel, Letícia sabia que ele tinha medo de
trovão. E aquela seria a oportunidade perfeita para zoar com a cara
dele. Curiosamente, essa era a última coisa que ela queria fazer
naquele momento. Assim que viu o olhar apavorado dele, Letícia
soube que não ia conseguir sacaneá-lo nem um pouquinho.
Ela se aproximou e assim que Daniel notou a presença
dela, obrigou-se a olhar para a televisão
— O que você está fazendo aí, a essa hora? — perguntou a
garota.
— Assistindo televisão — respondeu ele, rispidamente. — Não
tá vendo?
— Você está assistindo a um programa sobre compra e venda
de gado? — ela perguntou de volta, olhando para a tela.
— Tá bom — ele desistiu. — Não tô assistindo. Só liguei a TV
num canal qualquer.
Letícia sentou-se no sofá ao lado dele. Mais um trovão cortou o
céu e Daniel estremeceu de novo.
— Vou te fazer companhia — disse Letícia. —, até acabar essa
tempestade.
— Ah, que maravilha. Você acaba de descobrir meu medo idiota
de trovão.
— É, eu descobri — ela confirmou, sorrindo. — Mas não é um
medo idiota. Você tem astrofobia. É o nome para o medo irracional
de trovões e relâmpagos. Muita gente tem esse problema. Pesquisei
na internet, uma vez.
— Ah, legal. É bem melhor pensar que eu tenho astrofobia, ao
invés de frescura — disse ele, tentando manter o bom humor. Não
estava funcionando, porque a voz dele soava apavorada.
Letícia pensou em uma forma de tranquilizá-lo.
— Bem, se isso ajuda em alguma coisa, você devia se lembrar
de que a velocidade do som é menor que a velocidade da luz —
disse a garota.
— Pelo amor de Deus, Letícia! Eu estou aqui morrendo e você
vem falar de física?
— O que eu quis dizer é que, como que o som é mais lento que
a luz, toda vez que você ouvir um trovão significa que ele já passou
e que você continua vivo.
— Nossa, saber que eu ainda estou vivo é super-reconfortante
— ironizou Daniel.
Letícia sorriu.
— Vai ficar tudo bem. Eu prometo. Você quer um chocolate
quente? — ela perguntou, olhando para ele com aqueles grandes
olhos castanhos e brilhantes.
O rapaz a encarou por alguns segundos e refletiu sobre o
quanto aquela situação era bizarra. Daniel tinha zoado Letícia
durante todo o ensino fundamental e médio. Agora, ela tinha a
oportunidade perfeita para dar o troco e, em vez disso, estava lhe
oferecendo chocolate quente.
Droga, pensou Daniel, aquilo era tão fofo que chegava a ser
irritante. Por que raios ela tinha que agir daquele jeito? Pra fazê-lo
se sentir um idiota? Aquilo não estava certo. Seres vivos do gênero
humano não podiam ser tão legais assim. Que ela fosse para a terra
dos Ursinhos Carinhosos!
Ela fez mesmo chocolate quente. E enquanto a tempestade
estourava lá fora, a garota tentou distraí-lo de todos os modos.
Ainda assim, ele continuava com medo.
— Estou me sentindo uma criança de quatro anos — comentou
Daniel, frustrado.
Detestava sentir aquele medo idiota. Achava aquilo ridículo.
— Todo mundo tem medo de alguma coisa. Não é razão para
ficar com vergonha. — ponderou Letícia.
— Ah é? Você tem medo do quê, então? — desafiou o rapaz.
— Do seu quarto, por exemplo. Se é que se pode chamar
aquilo de quarto. Mas tenho medo principalmente do seu guarda-
roupa, de abrir a porta do seu armário e ser soterrada pela bagunça
que você enfia lá dentro.
Os dois riram, e Daniel se esqueceu da tempestade por um
momento.
— Ei — disse Letícia, olhando para o teto. — É impressão
minha ou aquela rachadura está aumentando?
Daniel já tinha visto aquela rachadura antes. Ela realmente
parecia estar ficando maior.
— Esse apartamento está caindo aos pedaços. E meu pai não
está fazendo absolutamente nada a respeito — reclamou Daniel.
Eles ouviram um som estranho vindo do teto. A rachadura ficou
maior e mais larga.
— Daniel, levanta. Realmente acho que a gente devia sair
daqui.
Os dois se levantaram do sofá a tempo de ver a rachadura
crescer ainda mais, como um iceberg se partindo, emitindo um som
apavorante. Letícia puxou Daniel para o lado dela com toda a força,
e, meio segundo depois, o teto despencou.
Foi rápido demais. Com um estrondo enorme, quase tudo
acima deles desmoronou, com uma nuvem de poeira. Uma viga de
ferro caiu bem ao lado de Daniel. No meio de toda aquela poeira. O
rapaz olhou para Letícia e ficou extremamente aliviado ao perceber
que ela também não tinha se machucado. Eles tinham escapado por
muito pouco.
A sala de estar agora era apenas um monte de escombros.
Daniel olhou mais uma vez para a viga que tinha despencado do
teto e caído a centímetros do corpo dele. Foi aí que ele percebeu: se
Letícia não o tivesse empurrado, aquela barra de ferro enorme teria
esmagado a cabeça dele. Ela acabou de salvar minha vida, foi o
que passou pela cabeça de Daniel naquele segundo.
Capítulo 11

O apartamento de Letícia e Daniel estava inabitável. Eles não


tinham onde ficar.
Na noite em que o teto caiu, eles foram acolhidos por uma
família simpática que morava no andar de baixo.
— Passamos de universitários a sem-teto — Daniel comentou
com Letícia, na ocasião. — Olha só como estamos progredindo.
Daniel ficava pensando o tempo todo no fato de que Letícia
impedira que ele fosse esmagado. Curiosamente, não conseguia
falar sobre o assunto com ela. O que é que ele iria dizer, afinal?
Palavras não eram suficientes. Ele não ia dizer “Valeu por salvar a
minha vida, Letícia”. Não ia mesmo. O que Daniel queria era
arranjar uma forma de pagar aquela dívida, que estava crescendo
cada vez mais. E ele não fazia ideia de como faria isso.
A destruição do teto da sala de estar e o quase esmagamento
de Daniel finalmente foram suficientes para chamar a atenção de
Antônio, o pai do rapaz. O acontecimento foi um escândalo para os
moradores do prédio, e finalmente Antônio, percebendo a gravidade
dos problemas, começou a conduzir as reformas e manutenções
necessárias em todo o prédio.
Ficou previsto que a restauração da residência levaria, no
mínimo, um semana. Logo no dia seguinte à queda do teto, Daniel
informou à Letícia:
— Acabei de falar com meu pai pelo celular. Ele disse que hoje
mesmo vão começar as reformas no prédio e no nosso
apartamento. Mesmo assim, vai demorar no mínimo uma semana
até a gente poder voltar a morar lá.
— E onde é que a gente vai ficar enquanto isso? — perguntou
Letícia, um tanto desorientada.
— Meu pai disse que reservou um quarto de hotel pra gente.
Vamos dormir no hotel e fazer todas as refeições lá.
A história do “um quarto de hotel pra gente” chamou a atenção
da garota. Ela realmente esperava que não fosse, literalmente, um
quarto. Dividir um apartamento com Daniel era uma coisa, mas
dividir o quarto? Aí, já era sacanagem.
Os dois jovens tiveram que ultrapassar as ruínas da sala para
chegar até os quartos e conseguir fazer as malas. Havia poeira em
todo lugar. Letícia ficou satisfeita em pegar suas coisas e dar o fora
dali. Daniel ainda estava reclamando da destruição de seu
videogame, que fora soterrado por concreto.
Daniel pegou a chave do carro, colocou a bagagem no porta-
malas e verificou o endereço do tal hotel. Sentada no banco do
passageiro, ao lado de Daniel, Letícia não sabia muito bem o que
esperar. E ela detestava aquela incerteza.
Bem, ao menos de uma coisa ela esava certa: Daniel dirigindo
era uma ameaça à sociedade. O rapaz dirigiu até o hotel escutando
Letícia censurá-lo por todo o caminho, dizendo coisas como:
— Aquilo era um sinal vermelho. Eu não sei se você sabe disso,
mas O VERMELHO SIGNIFICA QUE VOCÊ TEM QUE PARAR!
QUER MATAR A GENTE, SEU DOIDO?
— Não atropele o cachorro. Pelo amor de Deus.
— Ande na velocidade da via, Daniel. Isso aqui não é "Velozes
e Furiosos".
— Você acaba de ser multado pela fiscalização eletrônica. Bem
feito. Pense em quantos jogos de videogame você poderia ter
comprado com o dinheiro que vai gastar pagando a multa. Não que
eu ligue, só estou falando isso pra você se sentir devidamente
punido. Ah, é, você nem tem mais videogame. Esquece.
— Você é a passageira mais chata de todos os tempos —
retrucou Daniel, depois de ouvir esse último comentário.
Assim que eles viram a fachada do hotel em que ficariam,
pararam de discutir na hora.
— Meu pai realmente deve estar se sentindo bem culpado pelo
que aconteceu — comentou Daniel. — Esse é o lugar mais incrível
que eu já vi.
Era um hotel cinco estrelas, com fontes de água decorativas,
pessoas uniformizadas abrindo a porta do carro pra eles,
manobristas, tapetes vermelhos e lustres de cristal pendurados no
teto inacreditavelmente alto da recepção.
— Não acha que seu pai exagerou um pouco? — perguntou
Letícia, depois que os dois fizeram o check-in e descobriram que a
suíte presidencial fora reservada para eles.
— Meu pai é assim mesmo, sabe? Deve estar se sentindo
culpado por ter negligenciado aquele prédio por tanto tempo e quase
provocado a nossa morte. O jeito dele de pedir desculpas é esse.
Enquanto os dois pegavam o elevador panorâmico até a suíte
presidencial, na cobertura, Daniel continuou explicando:
— Ele sempre agiu assim, desde que eu era criança. Sempre
que pisava na bola comigo, meu pai comprava alguma coisa cara
pra mim. Algum brinquedo que eu quisesse, um videogame novo,
uma televisão. Por exemplo, teve um dia em que ele não foi me ver
na final do campeonato estudantil de futebol, porque preferiu ir
trabalhar. No dia seguinte, eu ganhei um iPhone.
Os dois olharam pelo vidro do elevador panorâmico em silêncio
por alguns segundos.
— Aqui tem piscina, sauna, quadras de tênis, spa, academia e
pessoas uniformizadas fazendo tudo o que você mandar —
comentou Daniel, animadamente. — Vai parecer que estamos de
férias.
— Só que não — rebateu Letícia. — Eu tenho que ir para o
estágio todos os dias, fazer quatro fichamentos e ir para a reunião
do movimento estudantil.
Os jovens saíram do elevador e começaram a atravessar o
corredor, procurando pela suíte.
— Movimento estudantil, Letícia? — Daniel perguntou, rindo. —
Só faltava essa. Você tem cara de esquerdista, mesmo. Me avise
quando conseguir derrubar o capitalismo, tá bem?
Letícia riu e revirou os olhos.
— É cada uma que eu tenho que escutar.
Assim que os jovens abriram a porta, viram uma suíte grande e
luxuosamente decorada. Para o alívio de Letícia, havia dois quartos
separados, cada um com um banheiro privado. E com banheira de
hidromassagem em cada um deles! Ela mal podia acreditar.
Daniel ficou tão satisfeito com o lugar que disse:
— O teto do nosso apartamento podia cair mais vezes. Isso
aqui vai ser o máximo!
Capítulo 12

Letícia caminhou até a sacada e olhou a paisagem. Era incrível.


Daquela suíte na cobertura, ela podia ver o lago Paranoá e algumas
lanchas em movimentação em meio àquela grande porção de água.
Lá de cima, Letícia suspirou ao observar os pontos turísticos que ela
ainda não tivera tempo para visitar. Pelo visto, o passeio demoraria.
— Vamos, Daniel! Assim eu vou me atrasar! — exclamou a
garota. Era manhã bem cedo e ela estava esperando Daniel para
que eles fossem até o restaurante do hotel tomar o café da manhã.
Ela tinha que ir para o estágio, voltar para o hotel rapidinho no
horário do almoço e depois ir para a universidade, que era, por sinal,
um pouco longe dali. Seria um dia cheio, para variar.
Daniel apareceu pronto para sair. Geralmente ele acordava de
mau humor, mas naquela manhã, especificamente, parecia mais
disposto.
— Vamos nessa que eu quero comer — disse Daniel.
O restaurante era, como todo o resto do hotel, bastante
luxuoso. Havia um buffet gigantesco de café da manhã esperando
por eles. Letícia olhou para as pessoas que estavam ocupando
algumas mesas, tomando café da manhã, e achou que todas elas
tinham cara de ricas. Aquele hotel era sem dúvida um lugar ótimo,
mas Letícia ficava um pouco apreensiva, às vezes. Nunca tinha
estado em um ambiente como aquele. Ela ficava com receio de
quebrar alguma coisa cara (tudo naquele lugar, aliás, parecia
terrivelmente caro) e precisar vender a própria alma para pagá-la.
Enquanto Daniel e Letícia tomavam café, sentados à mesa, a
garota reparou que havia algo um pouco diferente em Daniel. Ele
parecia animado, e acordar cedo era algo que geralmente não o
deixava nada feliz.
— Daniel. Estou te achando meio estranho — comentou Letícia,
colocando açúcar dentro de um copo de suco.
Ele sorriu com vivacidade e olhou para ela com um olhar
curioso.
— Jura? Eu, estranho?
— É.
Ele olhou para o garçom e fez um sinal. Depois olhou para
Letícia com um sorriso ainda maior e disse:
— Estranho mesmo é o fato de que você parece não estar se
lembrando do seu próprio aniversário.
Nesse exato momento, um garçom apareceu com um bolo de
aniversário que tinha dezoito velas faiscantes no topo. Em menos de
um segundo, Daniel e todas as pessoas desconhecidas do
restaurante estavam cantando "Parabéns pra você". Um dos
funcionários do hotel estourou um lança-confetes e uma chuva de
papeizinhos coloridos caiu em cima de Letícia.
Daniel estava se divertindo horrores ao ver o quanto ela parecia
surpresa e envergonhada.
— Como você foi se lembrar do meu aniversário? Nem eu
estava me lembrando do meu aniversário — disse Letícia, sorrindo
nervosamente. Pessoas, parem de olhar pra mim, ela implorou
mentalmente.
— É claro que eu não podia esquecer. A gente se conhece há
tanto tempo.
Letícia olhou para as dezoito velas acesas em cima do bolo. Foi
um alívio o momento em que as pessoas pararam de olhar para ela
e seguiram com as suas vidas.
— Isso foi muito legal da sua parte, Daniel. Obrigada! Você só
podia ter sido um pouquinho mais discreto, né? Eu quase morri de
vergonha — ela disse, sorrindo, enquanto tirava pedaços de papel
colorido do cabelo.
— Era esse o objetivo — o rapaz respondeu, rindo alto. —
Parabéns, agora você já pode ser presa e assistir a filmes pornôs.
Vamos lá, faça um pedido e sopre as velinhas, bebê.
Letícia riu e soprou as velas.
Quando os dois retornaram à suíte, outra surpresa esperava
Letícia: Daniel tinha comprado um presente para ela. A garota mal
podia acreditar. Não estava esperando aquele comportamento dele.
Ele estava agindo como se gostasse dela. Era estranho.
Ela agradeceu e olhou a caixa grande que recebera, não sem
alguma desconfiança.
— Você não colocou uma cobra aqui dentro, certo? —
perguntou Letícia, lembrando-se de que ele sempre tinha gostado
de zoar com a cara dela e que aquela parecia uma excelente
oportunidade pra armar alguma brincadeira.
— Nossa, você acabou de me dar uma ótima ideia. Por que é
que eu não pensei nisso antes? — brincou Daniel.
A garota abriu a caixa e Daniel sorriu quando viu os olhos dela
brilhando, iluminados pelo que tinha lá dentro.
— Ah, meu Deus. É a coleção limitada da obra completa de
Jane Austen! — Letícia exclamou, olhando encantada para os seis
livros de capa dura encadernados em couro vermelho. Eram lindos.
Os títulos brilhavam em dourado.
A garota abraçou Daniel, extremamente entusiasmada,
praticamente se jogando em cima dele.
— É o melhor presente que eu poderia ganhar! Eu só não sei
como é que você adivinhou que eu adoro essa autora, quer dizer...
Eu nunca comentei com você sobre isso. Como é que você poderia
ter acertado o presente desse jeito?
— Ah, eu sempre soube que você curtia essas coisas, esses
livros chatos de escritoras que viveram no século retrasado —
respondeu Daniel, completamente satisfeito.
Na verdade, ele sabia que Letícia gostava daquela autora em
particular por outro motivo. E o motivo fazia parte das muitas
idiotices que ele já tinha aprontado com ela, na época do colégio.
Ele se lembrava como se fosse ontem: ela estava sentada em
um banco que ficava perto da piscina da escola. Ele se lembrava,
inclusive, do título do livro que ela estava lendo. Ela devia estar na
sétima série, e estava sozinha no intervalo. Ela costumava andar
com seus amigos nerds, mas estava tão apaixonada por aquele livro
que tinha preferido se isolar um pouco para lê-lo. Daniel, pelo
contrário, nunca estava sozinho. Naquela manhã em questão,
estava acompanhado por seu grupinho popular, como sempre. Ele
não perderia a oportunidade de zoar com ela, é claro.
Daniel e seus amigos se aproximaram de Letícia, mas ela nem
tirou os olhos do livro. Daniel detestava ser ignorado daquele jeito.
Quem ela achava que era, afinal? Ele disse uma besteira qualquer e
arrancou o livro da mão dela. Jogou-o para um colega, para dar
início à clássica e irritante brincadeira de bobinho. Letícia ordenou
que eles devolvessem o livro dela, e Daniel respondeu que ela teria
que pegar de volta, se fosse capaz. A garota, no entanto, nem se
moveu do lugar. Ficou olhando para ele e para os amigos dele com
uma expressão que oscilava entre desprezo e serenidade. Aqueles
olhos castanhos e inteligentes pareciam dizer apenas: “Pobrezinhos.
Eles ainda não descobriram o quanto são ridículos”.
Nada poderia ter deixado Daniel mais frustrado. Aquela garota
não era normal. Ela não tinha berrado, nem resmungado. Não tinha
nem se levantado do lugar. E ainda por cima, ela tinha que olhar
para ele com aqueles olhos, como se estivesse com pena de Daniel
por ser desocupado e idiota. Como se ela fosse superior demais,
perfeitinha demais, pra dar qualquer atenção a ele. Ela parecia
inatingível. Daniel ficou tão irritado com aquela atitude que, quase
instintivamente, lançou o livro dela na piscina. O volume chocou-se
com a água emitindo um splash.
Letícia deixou transparecer por um segundo que estava triste e
irritada. Ela adorava aquela autora. Estava amando ler aquele livro e
agora ele estava na piscina, encharcado e inutilizável. Daniel se
perguntou se ela iria chorar. Se ela o xingaria, se tentaria bater nele,
ou se ela o denunciaria para a diretora, o que faria com que o pai
dele tivesse que ir até a escola, e aí ele estaria ferrado. Ela não fez
nada disso. Olhou para ele fixamente, com aquele olhar que nunca
mais sairia da cabeça de Daniel. Depois se levantou do banco e foi
embora. Assim, sem mais nem menos. Como se simplesmente não
valesse a pena perder tempo com ele.
Agora, anos e anos depois, Daniel estava devolvendo aquele
livro que ele jogara na piscina, acompanhado dos outros livros
daquela mesma autora. Era por isso que Daniel sabia que Letícia
gostava dos romances de Jane Austen. É claro que ele não podia
apagar o que fizera no passado, mas achava que podia pelo menos
tentar consertar as coisas, de alguma forma. O estranho é que
Letícia agia como se não houvesse o que consertar.
Capítulo 13

Daniel estava à beira da piscina, usando óculos escuros e pensando


sobre o que levaria alguém a passar um dia bonito e ensolarado
como aquele trabalhando. Seja lá qual fosse o tipo de coisa que
Letícia costumava fazer aos sábados, era inacreditável que alguém
se recusasse a aproveitar o dia naquele hotel incrível.
Ela o irritava, às vezes. Por exemplo, no dia do aniversário dela,
a garota tinha decidido ir para o estágio e para todas as aulas da
universidade. Além disso, tinha passado a noite no apartamento do
hotel, fazendo um trabalho com uma antecedência absurda. Foi
inútil Daniel ter insistido para que ela faltasse a todos os
compromissos para fazer alguma coisa divertida e comemorar. Se
ele não tivesse tido a ideia de surpreendê-la no café da manhã, o
aniversário dela teria passado como se fosse um dia qualquer.
Aquilo o irritava, toda aquela preocupação dela em sair correndo de
um lado pro outro fazendo mil coisas, se preocupando com todo
mundo exceto com ela mesma. Ninguém pode ser desse jeito o
tempo todo, pensou Daniel. Era bizarro.
Quando Daniel finalmente decidiu subir para o apartamento,
quase esbarrou no corredor com uma mulher. Ela olhou para ele e
sorriu. E aí, ele percebeu que a conhecia. Aquilo estava mesmo
acontecendo? Como era possível ele se reencontrar com ela,
naquela cidade, especificamente naquele hotel? Era coincidência
demais.
— Daniel! — ela exclamou, abraçando-o com empolgação. Ele
ainda não conseguia acreditar.
— Paula, há quanto tempo! — ele exclamou de volta, tentando
ser igualmente simpático.
— Engraçado a gente ter se encontrado aqui. Você está
morando aqui em Brasília, não é? Por causa da faculdade?
Daniel confirmou com a cabeça, pensando que a vida dele não
andava muito boa ultimamente. Quer dizer, tudo bem o apartamento
dele ter desmoronado e ele quase ter tido a cabeça esmagada por
uma barra de ferro. Mas, reencontrar a ex- namorada? Isso já era
desgraça demais.
— E aí, quais são as novidades? O que você está fazendo aqui
em Brasília? — perguntou Daniel.
A mulher loira e bem vestida sorria para o rapaz, radiante.
— Estou noiva — anunciou, exibindo a grossa aliança em seu
dedo. — Meu noivo, o Robertinho, teve que vir para uma reunião de
negócios aqui em Brasília. Eu vim com ele, para conhecer a cidade
e fazer companhia.
— Nossa. Isso... Isso é ótimo. Muito bom mesmo — Daniel se
esforçou para sorrir de uma forma que parecesse ao menos um
pouco sincera.
— Mas e você, Danizinho? O que tem feito ultimamente?
Danizinho. Aquele apelido era o mais idiota da face da terra.
Lembrava Danoninho ou sei lá o quê. Daniel realmente gostaria que
Paula soubesse que, quando um namoro vai para o buraco, os
apelidos constrangedores vão também.
Ele disse, em poucas palavras, que estava cursando
Administração e estudando demais, e nada como passar um fim de
semana em um bom hotel para dar uma relaxada, antes de voltar
para a batalha.
E foi aí que ela lançou a pergunta que ele mais temia, que
esperava fervorosamente que não fosse feita.
— Você continua solteiro?
Daniel lembrava-se claramente daquela mulher dizendo, na
ocasião do término de namoro, que ele era “um moleque
irresponsável e mimado que garota nenhuma em sã consciência
poderia suportar num relacionamento”. Logo, era de importância
máxima que ele provasse que ela estava errada. Era uma questão
de honra.
Daniel analisou suas opções:
1) Admitir que estava solteiro, mas de uma forma que passasse
a impressão de “sou um cara completo e autosuficiente que não
precisa de relacionamentos fúteis e efêmeros atrapalhando minha
vida independente."
2) Mentir descaradamente.
3) Sair correndo.
A alternativa que ele escolheu fazia a terceira opção parecer
uma ideia de gênio.
— Estou namorando há três meses!
— Nossa, três meses, Daniel? Bateu seu recorde, hein? A coisa
deve ser séria, pra você ficar tanto tempo com uma garota —
alfinetou Paula. O “namoro” deles durara pouco mais que um mês.
— Pois é! Acho que dessa vez fui fisgado — disse Daniel,
sorrindo de forma simpática.
— Qual o nome dela?
Droga, pensou Daniel. Qual era o problema em ser ligeiramente
sensato de vez em quando? Que maravilha. Aquilo seria uma
catástrofe.
— Er... Letícia. Eu conheci a Letícia no primeiro dia de aula na
universidade. Foi amor à primeira vista, não teve jeito.
— Ah, não vejo a hora de conhecê-la. A gente devia marcar
alguma coisa. Que tal amanhã? Eu e o Robertinho, você e a sua
namorada? Vai ser superdivertido. A gente marca de jantar juntos
em um bom restaurante. Que tal?
É claro, a situação sempre pode ficar pior.
— Ótima ideia! Vai ser ótimo — ele disse, pensando que era
uma péssima ideia, com potencial para se tornar uma tragédia
gigantesca.
Capítulo 14

— Desculpa, eu acho que não entendi direito — disse Letícia,


olhando para Daniel como se ele tivesse enlouquecido.
Daniel se sentou no sofá ao lado dela e a encarou.
— Eu tô falando sério. Poxa, Letícia, o que é que custa você me
ajudar? Você só precisa fingir que é minha namorada por uns
quarenta minutos, depois do jantar vamos embora e nunca mais
falamos nisso. Por favor!
Letícia não podia acreditar naquilo. Era a coisa mais absurda
que ele já tinha inventado.
— Fingir ser sua namorada, Daniel? Você precisa parar de
assistir a esses filmes de comédia romântica. Francamente.
— Olha, agora já era. Eu já liguei pra Paula, já está tudo
combinado, certo?
A garota riu. Aquilo parecia uma piada.
— Daniel, eu não vou fazer parte dessa armação boba que
você arranjou pra fazer ciúme na sua ex. Sem chance.
— Não é pra fazer ciúme, tá legal? É pra defender a minha
honra. Há dois anos, ela me chutou dizendo que eu era “um
moleque irresponsável e mimado que garota nenhuma em sã
consciência poderia suportar num relacionamento” — disse Daniel,
usando uma vozinha fina e afetada para tentar imitar o tom de voz
da ex-namorada.
— Olha, o que ela disse até que faz sentido — provocou Letícia.
— Nossa, como você é engraçada — ironizou o rapaz.
— Daniel, aceite: isso nunca daria certo. Mesmo que eu
aceitasse participar dessa sua maluquice, é claro que essa mentira
não vai colar. Se eu fosse você, ligaria pra ela e desmarcaria esse
jantar agora mesmo.
Daniel respirou fundo. Teria que se empenhar mais, tentar fazer
um drama mais convincente.
— Eu não estaria insistindo tanto se isso não fosse importante
pra mim. É o meu orgulho que está em jogo! Minha dignidade como
ser humano!
Letícia não pôde conter uma risada enquanto ouvia aquele
discurso exageradamente dramático.
— Admita logo que você ainda gosta dela e só quer tentar
impressioná-la para fazer com que ela volte a se interessar por você
— disse Letícia, em tom provocativo.
— Mas que droga, eu já disse que não gosto mais dela. Só
quero provar que ela estava errada sobre mim. Só queria ter o
prazer de esfregar na cara dela o fato de que eu sei muito bem
como manter um relacionamento sério.
— Só que você não sabe. Nunca soube — retrucou Letícia.
— E aí, você vai me ajudar ou não? Vai mesmo me negar um
favor? Quer dizer que você ajuda criancinhas carentes da periferia e
se recusa a fazer caridade para um amigo querido que você conhece
desde sempre? É isso mesmo, senhorita Letícia? — pressionou
Daniel, usando o último recurso argumentativo.
Aquilo estava ficando cada vez mais engraçado, pensou Letícia.
— Eu também tenho uma pergunta para você, “amigo querido”.
Já que você conhece todas as garotas de Brasília, porque não
chama uma delas para fingir ser a sua namoradinha no jantar? Por
que é que tem que ser justamente eu?
Daniel a olhou em silêncio por alguns segundos.
— Bem, porque... está em cima da hora, eu não teria tempo de
convencer ninguém além de você. E além disso, eu quero você.
Você me conhece melhor que qualquer namorada que eu já tive, eu
não ficaria à vontade com outra pessoa.
A garota ficou extremamente confusa ao ouvir o que ele
dissera. O que ele queria dizer com aquilo, afinal de contas? Bem,
talvez ele estivesse falando aquelas coisas para fazê-la concordar
com o plano bobo dele.
— Olha, Daniel... Eu minto muito mal e você sabe disso.
Então...
— Por favor — ele implorou, tentando fazer uma carinha de
cachorro abandonado. Letícia suspirou e finalmente cedeu:
— Está bem, mas você fica me devendo uma.
Daniel comemorou e agradeceu animadamente, enquanto
pensava que, em meio àquela montanha de dívidas, uma a mais
não faria tanta diferença.
— E a gente não vai se beijar, tá legal? — advertiu
Letícia.
A animação dele diminuiu um pouco.
— Mas, Letícia, isso faz parte da atuação!
— Desista. Andar de mãozinha dada já está de bom tamanho.
— Se a gente não se beijar, a Paula vai achar que nós não
somos um casal apaixonado — argumentou o rapaz.
— Não, ela vai achar que nós somos um casal educado que
não fica se pegando em locais públicos — disse Letícia.
Daniel bufou e já ia fazer algum comentário sobre o quanto ela
era chata, mas conseguiu se conter. Não queria que ela se irritasse
e desistisse do plano.
Capítulo 15

Quando Letícia apareceu na sala de estar da suíte pronta para sair,


Daniel não pôde conter um sorriso. Ela estava linda. Não que ele
nunca tivesse reparado naqueles cabelos negros e longos, naqueles
olhos castanhos brilhantes, naquele rosto perfeito e delicado. Daniel
sempre soube que ela era bonita, mas nunca tinha realmente se
dado conta do quanto. Agora ela estava ali em pé, no meio da sala,
com aquele vestido azul, e misteriosamente Daniel tinha ganhado a
capacidade de perceber cada detalhe que confirmava o quanto ela
era linda.
O rapaz foi arrancado de seus devaneios quando ela disse:
— Vamos logo com isso, antes que eu mude de ideia — Letícia
respirou fundo, pegou a bolsa e seguiu em direção à porta. Daniel
pegou a carteira e as chaves do carro e a seguiu.
Enquanto o rapaz dirigia até o restaurante, aproveitou para
acertar os detalhes do plano com Letícia.
— Então, a história é a seguinte, para o caso de alguém nos
perguntar alguma coisa: nós nos conhecemos na universidade há
três meses e foi amor à primeira vista.
— Nossa, que original — Letícia comentou ironicamente, rindo.
— Eu sei que é tosco, mas foi o que deu pra inventar na hora,
tá legal? Enfim, você não resistiu ao meu charme e se rendeu à
minha beleza.
— Tá bem. E depois? — perguntou Letícia. Aquela conversa
era tão boba que chegava a ser divertida.
— Então, você me chamou pra sair...
— Eu te chamei pra sair? — disse Letícia, rindo.
— Certo, então eu te chamei pra sair. Você aceitou com muito
prazer, porque sabia que eu era um ótimo partido. A gente foi ao
cinema, e em vez de assistir ao filme ficamos nos beijando a sessão
inteira. Pouco tempo depois, você se impressionou com o meu
talento musical e pediu para eu te ensinar como tocar violão. Mas
você não aprendeu nada porque não tem nem um décimo da minha
habilidade. Depois de algum tempo, eu te pedi em namoro e você
aceitou, com a certeza de que você era a garota mais sortuda do
mundo. Estamos juntos desde então. E é isso.
— Uau. Mas que história de amor fantástica, a nossa. Olha só,
meus olhos estão até lacrimejando — brincou a garota.
— Não vejo a hora de esfregar o sucesso do meu
relacionamento amoroso na cara daquela mulher.
Letícia pensou no quanto aquilo era terrivelmente infantil. O
mais inacreditável era que ela estava se juntando àquela loucura, só
porque ele tinha pedido. Quem diria.
— Eu não tenho muita sorte com namoradas — comentou
Daniel. — Essa Paula, por exemplo, é uma louca. Sabe, na época eu
estava todo animado em ter arranjado uma namorada mais velha.
Eu acho que eu tinha uns dezessete anos, e ela devia ter vinte. A
gente se conheceu na academia. Ela era consumista,
exageradamente vaidosa e muito ciumenta. Loucamente ciumenta.
Sabe, eu decidi que iria ficar com ela por no mínimo um mês, mas
antes disso ela decidiu terminar o namoro. Que tipo de mulher
terminaria o namoro comigo? Estou te dizendo, essa mulher é louca.
Letícia deixou escapar uma risada. O ego de Daniel era maior
que o território brasileiro. E o engraçado era que, às vezes, ele
parecia não notar isso. Era um completo iludido.
— Imagino que ela teve bons motivos — replicou a
garota.
— Tipo qual?
— Bem, os homens são, por natureza, mais imaturos que as
mulheres. Para piorar a situação, ela é três anos mais velha que
você. Ela não ia aguentar por muito tempo o seu egoísmo, os seus
jogos de videogame e seus episódios de Dragon Ball Z.
— Injustiça! Eu deixei de assistir Dragon Ball aos treze anos, tá
legal? — Daniel se justificou, mentindo.
— A-hã. Sei. — retrucou Letícia. — Bem, só quis dizer que a
diferença de idade pode ter sido um motivo pelo qual ela te chutou.
Tirando o fato de que você é insuportável, claro.
— A questão é que as garotas nunca me dão fora. Sou eu
quem faço isso. Hoje, quando eu provar que estou bem melhor sem
ela, a ordem do universo será reestabelecida.
A garota revirou os olhos, rindo. Ela tinha que ouvir cada
coisa...
— Ei — disse Daniel. — Estou me lembrando aqui de que eu
não sou o único a ter azar com namorados. Mas, no seu caso, foi
uma questão de mau gosto, mesmo. Aquele seu namoradinho do
segundo ano...
— Ele era um fofo, tá legal?
— Fofo... — repetiu Daniel, rindo. — Só se o significado de
“fofo” for nerdzinho tapado. Ele era a mistura de tudo o que há de
mais bizarro. Ele usava aqueles óculos fundo de garrafa, falava
gaguejando e, principalmente, era chato pra caramba. Sabe, até o
nome dele é ridículo. Valentino... Uma mãe que dá um nome desses
pro filho deveria ser presa.
— É Valentim — corrigiu Letícia. — E ele é um cara super gente
boa, nós somos amigos até hoje. Eu nunca entendi essa sua
implicância com ele.
— É porque ele é um mané. Você deve ter namorado com ele
só por caridade mesmo, porque...
— Daniel, diminui a velocidade desse carro! — exclamou
Letícia. — Desse jeito, nem o cinto de segurança vai salvar a minha
vida.
— Relaxa, a gente já está chegando.
O restaurante não era muito longe do hotel e ficava à beira do
lago, localizado em uma área elevada de onde se podia ter uma
ótima visão da cidade. A construção moderna que impressionou
Daniel e Letícia tinha enormes janelas de vidro, de forma que era
possível admirar a paisagem sentado à mesa.
Daniel estacionou o carro, ignorando os manobristas que
estavam à disposição.
Ele abriu a porta para Letícia e pegou a mão dela, sorrindo.
— Não se esqueça do quanto você me ama, querida namorada
de mentira.
— Seria mais fácil me esquecer de respirar, querido namorado
falseta — respondeu Letícia, em um tom de voz falso.
— É esse o espírito da coisa — aprovou Daniel.
— Você sabe que isso tem uma grande chance de ser um
fiasco, não sabe? — perguntou a garota, parecendo um pouquinho
nervosa.
— Daqui a pouco a gente vai descobrir — ele respondeu.
De mãos dadas, os dois entraram no restaurante.
Capítulo 16

Quando Letícia cumprimentou a ex-namorada de Daniel, notou


imediatamente algumas coisas sobre ela: Paula era vaidosa, bonita,
expansiva e gostava de chamar atenção. O vestido espalhafatoso, a
maquiagem exagerada e as joias gigantescas que ela usava
pareciam comprovar isso. Quanto a Roberto, o noivo de Paula, não
dava pra saber muito. Ele era bem mais velho, bastante quieto, e,
como Letícia, parecia ter sido arrastado àquele jantar.
Sentados à mesa, os dois casais iniciaram uma conversa
amigável e superficial. Embora estivesse sorrindo e falando
educadamente, Letícia estava irritada. Ainda não acreditava que
Daniel a tinha convencido a fazer aquilo. Ela se distraiu várias
vezes, observando a musicista que tocava piano e cantava ao
mesmo tempo. Era dia de música ao vivo no restaurante.
Aquele era um lugar bastante agradável, com a linda paisagem
do lago que podia ser vista através das janelas de vidro e aquela
apresentação musical interessante.
Letícia só não conseguia entender a utilidade de todos aqueles
talheres que estavam sobre a mesa. Qual era a vantagem de comer
com três tipos diferentes de garfo, afinal?
— Então, Letícia…O que você faz da vida? — perguntou Paula,
animadamente.
— Bem, eu curso Serviço Social na UnB. Também estou
fazendo estágio.
— Nossa, é bom saber que ainda existem moças boazinhas
que deixam de escolher um curso bom para poder ajudar gente
pobre.
Caramba. Manter uma conversa com ela seria uma tarefa
árdua.
— Serviço Social é um ótimo curso — defendeu Letícia, o mais
educadamente que pôde.
— É claro que é, querida! Mas lembre-se de tomar cuidado
quando for tentar ajudar essas pessoas de periferia. Esses
favelados andam a cada dia mais perigosos. — disse Paula.
Letícia respirou fundo, tentando conter a irritação, e encarou
Daniel com uma expressão de “Eu não vou aguentar isso aqui”.
Daniel tentou mudar de assunto, na esperança de que Paula
parasse de falar besteira. Foi inútil. A mulher tagarelava como se
não houvesse amanhã, falando coisas aleatórias que não
interessavam a ninguém. Para não ficar muito entediado, o noivo
dela começou a mexer no celular.
— E então, eu disse que não ia sobreviver se não tivesse
aquela bolsa. Era uma Louis Vuitton, mas não era como as outras
dessa marca. Ela tinha aquele toque especial, sabe? Eu teria
assaltado um banco para comprá-la. Felizmente, não precisei
assaltar banco nenhum, porque, na manhã seguinte, o Robertinho
me deu a bolsa de presente. Eu fiquei louca de felicidade, não foi,
amor? Foi tão romântico! Você realmente sabe como ser romântico,
não sabe, Robertinho?
— A-hã — ele concordou, embora não parecesse ter ouvido
uma palavra que sua noiva dissera.
— Mas me contem sobre vocês. Qual de vocês é o mais
romântico da relação? — Paula perguntou, empolgada.
Letícia respondeu “Ele”, ao mesmo tempo em que Daniel
respondia “Ela”. Eles se entreolharam por um segundo e Daniel
decidiu falar:
— Na verdade, a Letícia não era nada romântica antes de me
conhecer. Ela era aquele tipo de garota fria que nem acredita no
amor, sabe? Foi só me conhecer e as coisas mudaram. Não é,
princesa?
Blergh. Aquilo a estava deixando enjoada. Ela não via a hora de
que aquele jantar ridículo acabasse. Enquanto isso, precisava
contra-atacar as bobagens que Daniel estava falando.
— Pois é, eu não sei o que me fez gostar tanto do Daniel. Sem
dúvida, não foram aquelas cantadas de nerd que ele fez no dia em
que a gente se conheceu — provocou Letícia, sorrindo de forma
simpática.
— Taí uma coisa que eu não imaginava, vindo de você — disse
Paula para Daniel, rindo.
— Qual é, Letícia. Eu nunca fiz nenhuma cantada de nerd —
defendeu-se o rapaz, olhando para a garota com um pouco de
irritação.
Ela sorriu e continuou a falar:
— Tá brincando, amor? Não acredito que você esqueceu… Mas
eu me lembro perfeitamente de que você disse: “Me joga no Google,
me chama de pesquisa e diz que eu sou tudo aquilo que você
procurava!”.
Até o noivo de Paula riu, mwsmo sendo incrivelmente sério e
quieto. Porém, Letícia ainda não estava satisfeita. Daniel a tinha
colocado naquela furada e teria o troco.
— Sabe, depois daquela cantada horrível, ele insistiu tanto pra
eu passar meu número do celular que acabei concordando, só pra
me livrar dele – falou Letícia, no tom bem-humorado de quem
estava contando uma ótima piada.
— E aí? — perguntou Paula, com um olhar de curiosidade. — O
que aconteceu depois?
— Você não vai acreditar, mas ele ficou me ligando a cada
minuto. Eu tentei ignorar as chamadas dele e as mensagens
infinitas, mas estava difícil. Quando ele decidiu me ligar às três
horas da madrugada, eu pensei: “Meu Deus, esse menino está
desesperado.” Daí, fiquei com dó e aceitei sair com ele.
— O que é que você está fazendo, Letícia?! — Daniel sussurou
discretamente para a garota, assim que teve oportunidade.
— Destruindo sua reputação, ué. Não percebeu? – Letícia
murmurou de volta, em tom de zombaria. Para ela, aquele jantar
estava finalmente ficando divertido.
— Então, como eu estava dizendo… — ela continuou.
— Ah, Letícia... Eles não devem estar interessados nisso… —
interrompeu Daniel, torcendo para que ela decidisse parar com
aquilo.
— Nada disso, Daniel — interrompeu Paula. — Nem pense em
atrapalhar. Continue, Letícia! Conta como foi a primeira vez que
vocês saíram juntos!
— Bem, a gente foi ao cinema e tivemos muito tempo pra
conversar, antes do filme.
— E o que vocês conversaram?
— Hum…
Daniel olhou pra Letícia com um olhar que ordenava que ela
não falasse besteira. Ela percebeu isso e começou a falar
animadamente:
— Não dá pra saber muito bem... Porque o Daniel ficou
gaguejando o tempo todo. Sério, eu não estava entendo nada do
que ele estava tentando dizer.
— O Daniel? Gaguejando pra falar com uma garota? Caramba,
quem é que poderia imaginar uma coisa dessas? — disse Paula,
rindo e parecendo enormemente surpresa. — É engraçado ouvir
isso, Letícia, porque o Daniel costumava ser metido a conquistador,
sabe? Ele era confiante de dar nos nervos!
— Mas eu sou confiante! — Daniel se defendeu. — Confiança é
o meu sobrenome, que fique claro!
O rapaz lançou um olhar para Letícia e ela entendeu
imediatamente que ele estava tentando dizer algo como “Pelo amor
de Deus, pare de me desmoralizar. Eu imploro.” Ela sorriu para ele
como se estivesse respondendo: “Tudo bem, vou quebrar seu galho,
mas é só porque eu sou legal e porque você implorou”.
Capítulo 17

Paula estava impressionada com o que Letícia acabara de contar.


— Poxa, isso é muito fofo — disse a loira, olhando para Daniel.
— Você se encantou tanto pela Letícia que nem conseguiu agir do
jeito como estava acostumado. Que gracinha você ter ficado todo
nervoso por causa dela!
Daniel disse um “pois é” constrangido e sorriu de forma
simpática.
Letícia ficou meio chateada. Afinal, mesmo com suas tentativas
de abalar a reputação de Daniel, ele ainda era chamado de “fofo” e
de “gracinha”.
O rapaz conseguiu mudar de assunto e Letícia achou melhor
continuar fingindo que estava curtindo aquele jantar.
Os garçons colocaram a refeição na mesa e Daniel encarou
longamente o prato que estava à frente dele. Que raios era aquilo?
Ele tinha pedido a comida mais normal que vira no cardápio e o
resultado era aquela pasta gosmenta em cima de um pedaço
minúsculo de carne, tudo enfeitado com umas folhinhas suspeitas.
Letícia também parecia não ter tido muita sorte com sua refeição.
Da próxima vez, pensou Daniel, o jantar será numa numa pizzaria.
Nada impedia Paula de continuar tagarelando:
— Sabe, eu fiquei totalmente sem reação. Eu nunca tinha tido
um problema como aquele em toda a minha vida. A minha
massagista disse que simplesmente não iria mais me atender! Olha
só que cara-de-pau! Eu, ali, pagando uma fortuna, aturando toda a
falta de profissionalismo dela, suportando todas as vezes em que o
trabalho dela tinha sido uma porcaria, e foi assim que ela me
agradeceu! E isso tudo, só porque ela ficou chateadinha depois que
eu a chamei de imprestável. E ela era uma imprestável, mesmo,
sabe? Eu não tinha dito mentira nenhuma.
Daniel não conseguia imaginar como é que já tinha gostado
daquela mulher. Tudo o que ela falava era fútil e idiota, e ela parecia
ser aquele tipo de pessoa que não tem o menor respeito por
ninguém além dela mesma. O rapaz olhou por um segundo para o
noivo dela, que continuava mexendo no celular. Aquele cara só
podia ser louco para conseguir aturá-la.
Ainda assim, Daniel estava satisfeito. Dava pra perceber que
Paula estava plenamente convencida de que ele não era mais um
“um moleque irresponsável e mimado que nenhuma garota em sã
consciência poderia suportar num relacionamento”. Apesar da
sacanagenzinha que Letícia tinha feito, tudo estava indo bem. Ele
estava feliz em jogar na cara de Paula o fato (ou melhor, a mentira)
de que ele tinha arranjado uma namorada mais jovem, mais
inteligente e mais bonita que ela.
Paula continuava falando, reclamando do péssimo trabalho que
a manicure dela fez e blá blá blá. Quando será que ela vai parar de
falar?, Daniel se perguntou.
— Se eu fosse a lagosta que está no prato dela, sairia correndo
e me jogaria no lago — Letícia sussurou para Daniel.
Aquele comentário pegou Daniel desprevenido. Ele não pôde
se conter e soltou uma risada. Isso não teria sido um problema se
ele não estivesse tomando um grande gole de suco exatamente
naquele momento. Mas, bem, ele estava. O resultado, como era de
se esperar, foi desastroso. Involuntariamente, Daniel cuspiu aquela
mistura de suco e baba diretamente no vestido caro de Paula, que
estava bem à frente dele. Os garçons e os clientes do restaurante
pararam para observar aquela cena constrangedora.
— Ops. Foi mal, aí — disse Daniel, enquanto a mulher olhava
para a mancha em seu vestido com um olhar de terror genuíno.
Paula ficou vermelha de raiva por um instante. Mentalizou por
um segundo que era uma lady e que não perderia toda a sua classe
por causa daquele pequeno incidente.
— Com licença — disse ela, em um tom calmo e
completamente falso. — Vou limpar isso aqui e volto num instante.
Robertinho respirou fundo e a seguiu. Talvez ele quisesse dar
algum apoio emocional a ela, pensou Daniel.
— Bem, pelo menos não vamos poder dizer que esse jantar foi
completamente entediante, certo? — disse o rapaz, olhando para
Letícia.
Ela finalmente pôde rir.
Letícia sabia que, depois daquela gafe horrível, aquele jantar
não duraria muito.
Chegou até a achar que Paula e Roberto nem retornariam à
mesa. Mas eles retornaram, e, para o alívio de Daniel, o jantar
continuou como se nada tivesse acontecido. Paula retornou com
seu falatório. Depois de quinze minutos de conversa furada, Letícia
já estava pensando que seria ótimo se Daniel cuspisse nela de
novo.
Não foi necessário, porque finalmente, para o alívio da garota,
aquilo estava acabando.
— Bem, está na nossa hora — disse Daniel, enquanto pedia a
conta. — Foi ótimo rever você, Paula, e foi muito bom ter tido a
oportunidade de conhecer seu noivo.
Finalmente, estavam se despedindo. Letícia mal podia
acreditar: eles estavam indo embora e ela poderia matar Daniel em
um local onde não houvesse tantas testemunhas. Tudo certo.
Mas, então, aquela pianista, a mulher da música ao vivo,
começou a falar. Disse que estava agradecida pela oportunidade de
tocar ali e que iria dedicar a última música a todos os casais ali
presentes. Depois de um pequeno discurso, ela convidou os casais
a dançarem ao som da última música que ela iria tocar. Vários
casais se levantaram e se dirigiram a um espaço vazio no centro do
restaurante, próximo ao palco onde estava a pianista.
Paula arrastou Robertinho até lá. E Daniel, é claro, arrastou
Letícia.
— Ah, não, Daniel. Que coisa mais brega. Vamos embora, pelo
amor de Deus — ela reclamou, inutilmente.
— Até parece que eu perderia a oportunidade de ter uma dança
lenta com a minha linda namorada falsa — disse Daniel, ostentando
seu conhecido sorriso despreocupado. Ele envolveu a cintura de
Letícia e ela se viu obrigada a colocar uma das mãos sobre o ombro
dele. Os dois começaram a se mover ao som daquela música de
melodia bela, lenta e tanto melancólica. Letícia achou que aquele
momento fosse o mais desconfortável de sua vida. Ainda mais,
porque Daniel a estava encarando sem parar. Ela decidiu que o
encararia de volta, pra que ele percebesse o quão constrangedora
estava sendo aquela situação.
O surpreendente foi que, depois de passar vários segundos
olhando nos olhos dele, ela deixou de se sentir desconfortável. A
proximidade do corpo dela com o dele deixou de incomodá-la.
Repentinamente, Letícia descobriu que não conseguia mais desviar
o olhar do dele.
Daniel se aproximou ainda mais e beijou os lábios dela,
inicialmente com suavidade. O beijo foi se tornando mais intenso e
se prolongou por segundos que pareceram horas.
Daniel estava confuso. Não sabia o que estava sentindo, mas
era sem dúvida algo novo. Não conseguiu se lembrar de ter sentido
aquilo antes, alguma vez na vida. Por que ele não conseguia parar
de olhar para ela?
Os dois se encararam, ofegantes, por mais alguns segundos.
Letícia parecia assustada. Aquilo tinha mesmo acontecido? Não
parecia real. Ela se obrigou a pensar racionalmente sobre o que
tinha acabado de acontecer.
Provavelmente, aquilo fazia parte da atuação de Daniel, certo?
Não tinha significado nada, ela repetiu mentalmente para si mesma.
Que droga, se aquilo não tinha significado nada, porque é que seu
coração estava acelerando tanto? Ela raciocinou que
provavelmente estava sendo usada por Daniel para chamar a
atenção de Paula, que estava ali por perto. E se odiou por um
segundo, por ter permitido que aquele beijo falso tivesse aquele
efeito sobre ela. Depois, odiou Daniel. Afinal, ele era um mentiroso e
um aproveitador. Eles tinham combinado que não iriam se beijar.
— Seu idiota — ela o insultou, socando de leve o ombro dele.
— Vamos embora daqui.
Capítulo 18

Daniel dirigia em silêncio de volta ao hotel. Letícia olhava a cidade


pela janela entreaberta do veículo. O silêncio era constrangedor.
Não que eles não tivessem nada a dizer. Simplesmente estavam
pensando em mil coisas e sabiam que boa parte desses
pensamentos não deveriam ser comentados, no momento.
— Hum… Eu… — Daniel começou a dizer algo, mas não tinha
muita certeza do quê. — Sobre o que aconteceu hoje…
— Por favor, Daniel — interrompeu Letícia. —, não vamos falar
sobre aquilo, OK? Melhor a gente fingir que nunca aconteceu.
— Hã… Tudo bem, então. Se você prefere assim.
Letícia se irritava ao pensar que Daniel a tinha usado para se
divertir. Tudo o que ela queria no momento era esquecer aquilo.
Esquecer principalmente do que havia sentido durante aquele beijo.
Daniel respirou fundo, pensando que provavelmente tinha feito
besteira. Mas, bem, ele não poderia ter feito nada diferente, ela o
tinha atraído feito a gravidade. Ele sentia como se alguma coisa
estivesse mudando dentro dele, tudo por culpa daquela garota.
Pensar nisso o deixava desconfortável.
— Caramba, eu tô morrendo de fome. Nem parece que eu
acabei de sair de um restaurante — ele mudou de assunto.
— Nem me fale... — concordou Letícia. — Ninguém me avisou
que iam colocar uma alga marinha na comida.
— Depois dessa, a gente merece uma pizza — disse Daniel.
— Com certeza. E viva o fast-food.

***
Daniel e Letícia estavam saindo do restaurante do hotel, depois
de tomar o café da manhã. Era um domingo de sol e Daniel estava
inconformado com o fato de que o apartamento já tinha sido
reformado e que eles estariam de volta no dia seguinte.
— Não dá pra acreditar que hoje é o nosso último dia no hotel.
Passou rápido demais! — ele comentou.
— Pois é.
— E você nem aproveitou nada.
— Não é verdade — Letícia respondeu.
— É sim. A piscina, por exemplo. Você nem olhou pra ela, e a
temperatura da água é ótima — disse Daniel, apontando para a
grande piscina azul, que estava perto de onde eles caminhavam.
Letícia se aproximou e fixou o olhar na piscina.
— Bem, estou olhando para ela, agora. É uma ótima piscina. Eu
só não vou entrar porque já tenho um compromisso pra hoje.
— Jura? Você tem um compromisso? Que novidade. Seria uma
pena, se…
Letícia percebeu o que Daniel ia fazer. Ela conhecia muito bem
aquele olhar de quem estava prestes a aprontar. Sabia o que
significava aquele sorrisinho no canto da boca.
— Daniel, nem pense nisso! — ela exclamou, mas era tarde
demais. Daniel a ergueu do chão, e ela se de bateu loucamente nos
braços dele. Foi inútil. Ele a jogou na piscina sem pensar duas
vezes.
— Seu idiota! Eu estou de calça jeans, caramba! — reclamou
Letícia, enquanto Daniel ria sem parar.
Ela nadou até a borda da piscina e ergueu a mão.
— Pára de rir e me ajuda a sair daqui. AGORA! — exigiu,
indignada.
Daniel estendeu a mão para ela, ainda sem conseguir parar de
rir. Letícia agarrou a mão dele, sorriu e o empurrou para dentro da
piscina.
— Ah, não, Letícia. Que droga — disse Daniel, passando a mão
pelo cabelo ensopado.
— Nossa, não acredito que você caiu no velho truque do “me
dá uma mãozinha”. Francamente, eu esperava mais de você —
caçoou Letícia, rindo enquanto jogava mais água da piscina no rosto
dele. Como se ele já não estivesse suficientemente molhado. Daniel
revidou imediatamente.
Qualquer pessoa que passasse naquele momento perto
daquele lugar veria dois jovens dentro da piscina, vestidos com
roupas casuais (e obviamente encharcadas), rindo e se divertindo
como crianças.
— Não se você percebeu, mas a gente está pagando o maior
mico — comentou Letícia entre risadas, quando finalmente houve
uma trégua na guerra de água.
— Nem ligo — disse Daniel, voltando a jogar água no rosto
dela.
— Ei, para com isso! Vão expulsar a gente daqui, você vai ver.
Sério, estou me sentindo uma criança de novo, depois dessa —
disse a garota.
— Por falar em criança… Eu reparei que você tem voltado meio
estranha daquele seu trabalho voluntário com as criancinhas. O que
é que está rolando, hein? — Daniel quis saber.
Letícia se surpreendeu, porque costumava achar que Daniel
não se importava nenhum pouco com aquilo. Ela hesitou um pouco
antes de responder.
— É que… Bem, eu não sei se eu já comentei com você, mas
essa creche onde eu estou trabalhando é um lugar improvisado pra
ajudar os pais que precisam trabalhar fora e não têm com quem
deixar os filhos. Eles deixam as crianças na creche, e os voluntários
ajudam dando refeições, preparando atividades, ajudando no dever
de casa, essas coisas. As crianças atendidas pela creche são todas
muito pobres e uma boa parte delas tem problemas familiares. A
questão é que, ultimamente, eu ando muito preocupada com uma
das crianças, em especial. É uma garotinha de cinco anos, e toda a
vez que eu olho pra ela ou consigo sentir que há alguma coisa muito
errada acontecendo. O problema é que eu não sei bem o que é.
Estou tentando descobrir.
— Poxa. Que tenso. Me mantenha informado sobre isso. E se
eu puder ajudar de alguma forma, é só falar — disse Daniel.
Letícia sorriu, pensando na raridade daquele comportamento.
Ele tinha mesmo dito aquilo?
— Uau, Daniel. Você sendo fofo e prestativo? Pessoas da
sociedade, peguem seus guarda-chuvas, porque vai chover —
brincou Letícia.
— Ei, isso foi ofensivo, tá legal? — reclamou Daniel, jogando
novamente uma quantidade enorme de água da piscina no rosto de
Letícia.
— Com licença, senhores… — disse um dos funcionários do
hotel, aproximando-se da borda da piscina e olhando para a
camiseta encharcada de Daniel — É expressamente proibido utilizar
a piscina sem roupas de banho adequadas. Infelizmente terei que
pedir que os senhores se retirem.
— Eu disse que iam expulsar a gente — Letícia sussurrou para
Daniel, e os dois falharam ao tentar segurar o riso.
Capítulo 19

O prédio estava, sem dúvida, muito melhor que antes. Algumas


reformas ainda estavam sendo feitas, mas já era possível perceber
que aquele edifício não parecia mais ser tão velho. Quando Daniel e
Letícia entraram no apartamento, encontraram o local em perfeito
estado. Na verdade, estava melhor do que era antes de o teto
despencar: a televisão tinha sido substituída por uma bem maior e
Daniel ficou satisfeito quando viu que um novo videogame tinha sido
comprado.
Apesar de ter sido ótimo passar alguns dias no hotel, Letícia
ficou feliz por estar de volta. Só o fato de o apartamento ser perto da
universidade já era uma ajuda e tanto.
A rotina dos dois jovens continuou a ser o que era: enquanto
Letícia estudava e trabalhava correndo incansavelmente de um lado
para o outro, Daniel ia às aulas da universidade quando estava a
fim, fazia os trabalhos na última hora e passava a maior parte do
tempo em casa jogando videogame.
Numa quarta-feira, às sete e meia da noite, Daniel assistia a
um filme que estava passando na televisão e se deu conta de que
Letícia já devia ter voltado. Ela sempre chegava em casa às sete
horas, pontualmente. Bem, pensou ele, talvez ela tivesse decidido
ficar na biblioteca da universidade, estudando. Quando o relógio
marcou oito e meia e ela ainda não tinha aparecido, Daniel decidiu
ligar para o número dela. A ligação caiu diretamente na caixa postal.
— Droga, qual é a utilidade de se ter um celular se você não
atende às ligações? — ele murmurou, irritado, depois da quinta
tentativa de falar com ela.
Daniel foi até a varanda e quase congelou com o vento forte
que soprava lá fora. A noite estava estranhamente fria, com uma
ventania que balançava os galhos das árvores com violência e, por
mais que tivesse procurado, o rapaz simplesmente não conseguiu
encontrar a Lua no céu.
Nove horas da noite e Daniel ainda não fazia a menor ideia de
onde Letícia estava. Ele tentou prestar atenção em um seriado na
TV, mas estava preocupado demais para isso. Tentou ligar mais
algumas vezes, pensou em um milhão de coisas que podiam ter
atrasado sua chegada e estava prestes a sair pela cidade
procurando por ela quando Letícia finalmente chegou.
— Oi, Daniel! — ela o cumprimentou sorridente, da mesma
forma como sempre fazia ao retornar da universidade.
— Meu Deus, onde é que você estava? Por que não atendeu
ao celular? Você quer me matar de preocupação? Você nunca
atrasou nem um minuto pra chegar em casa, o que é que custava
ter me ligado pra avisar que você ainda estava viva? Você sabe
quantas horas são? Achei que estivesse morta, ou sendo mantida
em cativeiro por um psicopata, ou sequestrada pela máfia! —
exclamou Daniel, visivelmente irritado.
Letícia teve que se esforçar muito para não cair na gargalhada.
— Acabou a bateria do meu celular. Foi mal.
— Foi mal? Isso é tudo o que você tem a dizer? Ei, qual é a
graça, hein?
— É que você falou igualzinho à minha mãe — respondeu
Letícia, e dessa vez foi impossível segurar o riso.
— Pára de falar besteira e me diz logo onde você estava —
retrucou Daniel, ainda mais irritado ao ver que ela estava se
divertindo com a situação.
Antes de começar a falar, Letícia pensou no quanto Daniel era
surpreendente. Como é que ela poderia imaginar aquela reação
dele? Sempre achou que ele não ligasse nenhum pouco para essas
coisas.
— Depois da aula, eu fui investigar a situação daquela
garotinha da creche, que eu te falei — disse Letícia, animadamente.
— E consegui descobrir algumas coisas bem úteis que podem me
dar uma pista do que está acontecendo com ela.
— Tá, mas da próxima vez que for bancar o Sherlock Holmes,
lembre-se de levar um casaco. Lá fora está frio pra caramba e você
está congelando — disse Daniel.
Letícia riu mais uma vez, pensando que, agora sim, ele estava
falando exatamente como a mãe dela.
— Não sei como correr o risco de pegar uma pneumonia pode
ser engraçado —murmurou Daniel. — Vamos, me conta logo o que
você descobriu.
— Bem, a Laurinha…
— Quem é Laurinha?
— Laurinha é essa menina de cinco anos da qual eu falei.
Então, ela sempre morou com a avó, porque a mãe dela morreu
quando ela ainda era um bebê. O que eu descobri é que, há duas
semanas, a Laurinha deixou de morar com a avó pra ficar na casa
do pai dela, que eu não faço a menor ideia de quem seja. Isso é
bem estranho, porque se a Laurinha mora com a avó dela desde
sempre, porque é que de repente ela ia passar a morar com o pai?
Ela nunca me falou nada sobre ele.
— E como é que você descobriu isso?
— Fazendo uma visita à casa da avó da Laura.
— Você foi sozinha até aquele fim de mundo? — perguntou
Daniel.
— Claro, ué. Aquele lugar é longe e foi por isso que eu demorei
a chegar.
— Você é muito doida, Letícia.
— Você é que é neurótico — ela respondeu com um sorriso,
antes de ir para o quarto.
Letícia parou para pensar por um segundo no quanto aquilo
tinha sido engraçado. Quem diria, Daniel estava bancando o
responsável! Sozinha no quarto, ela sorriu enquanto pensava que a
experiência de morar com ele não estava sendo tão ruim, afinal de
contas.
Capítulo 20

Geralmente, Daniel e Letícia acordavam pela manhã com um nítido


contraste de humor.Enquanto Daniel acordava como se tivesse sido
arrancado da cama por alguma força maligna, Letícia parecia ter
amanhecido na Terra dos Pôneis. Ele tomava café da manhã com
os olhos quase fechados e um mau humor terrível, enquanto ela
parecia feliz, disposta e cheia de energia. Daniel simplesmente não
conseguia entender como é que uma pessoa que dorme menos de
seis horas por noite poderia acordar daquele jeito. Para o rapaz,
aquilo era um mistério sobrenatural que ele ainda estava tentando
decifrar.
Ultimamente, entretanto, Daniel estava percebendo que as
coisas estavam meio diferentes. Não que ele estivesse acordando
com mais disposição. A diferença estava em Letícia, que embora
continuasse com seu bom humor matinal, andava com um aspecto
meio doentio e cansado nos últimos dias. A energia dela não era
infinita, afinal de contas, pensou ele. Daniel tentou aconselhá-la a
diminuir aquele ritmo de vida maluco, mas tudo o que ela respondia
de volta era “Nossa, melhor eu sair agora, antes que eu me atrase.
Tenha um ótimo dia, a gente se vê mais tarde.”
Certa tarde, quando Daniel chegou ao apartamento, esperou
encontrar Letícia se arrumando para ir à aula, como sempre
acontecia naquele horário. No entanto, Daniel se deparou com uma
cena que simplesmente não parecia normal.
Ele sabia que Letícia nunca parava para descansar durante o
dia. Nunca. E agora, lá estava ela, deitada no sofá, olhos fechados,
coberta por um edredom que normalmente só poderia ser utilizado
em uma noite muito, muito fria de inverno. Vê-la deitada no sofá
com aquele edredom, às duas horas de uma tarde quente, fez com
que Daniel tivesse certeza de que alguma coisa estava muito errada.
Ele se aproximou da garota e a encarou durante alguns
segundos. Letícia estava com uma leve expressão de incômodo ou
de dor, mergulhada em um sono inquieto. Olhando bem para ela,
Daniel teve a impressão que ela estava tendo um pesadelo horrível.
A garota tremia embaixo do cobertor, e aquilo era sem dúvida
preocupante. Ele precisava urgentemente saber o que estava
acontecendo ali. Ela devia estar doente. Só podia ser isso.
— Letícia... — ele a chamou baixinho, mas tudo o que obteve
em resposta foi um gemido.
Tentou chamar o nome dela pela segunda vez, dessa vez um
pouco mais alto. Foi inútil: Letícia continuava com os olhos
fechados, tremendo como se estivesse enfrentando uma nevasca
no Pólo Norte.
Daniel já estava ficando angustiado quando a chamou pela
terceira vez, sacudindo os ombros dela.
— Letícia... Você precisa acordar.
Dessa vez ela finalmente reagiu, olhando para ele com os olhos
arregalados.
— Ah, meu Deus. Que horas são? Eu estou atrasada, não
estou?
— Calma. Fica aí, relaxa. Pára de se preocupar tanto. Eu só
queria saber se você está se sentindo...
— Que horas são? — ela insistiu, interrompendo-o. — Fala
logo!
Daniel suspirou.
— São duas horas da tarde.
— Droga. Droga droga droga droga. Estou atrasada! — ela
resmungou, pulando do sofá. Ao se levantar de forma
exageradamente rápida e brusca, Letícia ficou tão tonta que teria
caído no chão se Daniel não a tivesse segurado.
— Letícia! Letícia, você está bem? — o rapaz perguntou,
preocupado. Mal tinha terminado de falar e chegou à conclusão de
que sua pergunta era desnecessária, já que estava bastante claro o
fato de que ela não estava nada bem. Só de ficar perto dela era
possível perceber que ela estava anormalmente quente.
A garota se desvencilhou dos braços dele assim que sua
tontura diminuiu um pouco.
— Estou bem. Na verdade, vou ficar bem se conseguir chegar
no horário — Letícia já estava indo apressadamente até o quarto
para trocar de roupa, mas Daniel a segurou pelo braço.
— Espera aí, Senhorita-Coelho-Branco-da-Alice — ele se
aproximou e colocou a mão direita sobre a testa dela.Ficou
horrorizado ao sentir uma temperatura altíssima.
— Ah, meu Deus. Letícia, você está queimando de febre. Cadê
aquele seu termômetro?
— Deve estar na gaveta da cozinha, sei lá — disse ela,
aproveitando para correr até o quarto. Precisava se arrumar em
menos de cinco minutos.
Daniel começou a revirar as gavetas de forma ruidosa e rápida.
Quando finalmente encontrou o termômetro, Letícia já tinha
reaparecido na sala com outra roupa. Ela tremia e tinha vestido um
casaco grosso.
Aquele termômetro era um aparelho bastante prático: bastava
inseri-lo no ouvido por um segundo e ele fazia a medição
instantaneamente. Mesmo assim, Daniel quase teve que obrigá-la a
medir a temperatura.
— Depois eu é que sou infantil — resmungou o rapaz,
indignado com a relutância dela em usar o termômetro.
Ele olhou para a temperatura que apareceu no visor do
aparelho e disse a si mesmo para manter a calma.
— Tudo bem, Letícia, vou te levar ao hospital e você vai ficar
bem, certo? — disse ele, já começando a procurar a chave do carro.
— Como assim, hospital? Eu tenho que ir pra aula. E,
francamente, seria muita frescura ir ao hospital só porque...
Ele olhou para Letícia quase sem acreditar no que ela estava
dizendo.
— Você está com quase quarenta graus de febre.
— E isso por acaso é motivo pra perder tempo indo ao hospital?
Qualquer pessoa normal só tomaria um comprimido e pronto. E é
isso o que eu vou fazer.
— Letícia, você sabe que não está na menor condição de ir pra
aula hoje.
Ela revirou os olhos, enquanto abria o armário da cozinha.
Encontrou a caixa de remédios e a vasculhou apressadamente até
encontrar uma cartela de comprimidos.
Daniel lhe ofereceu um copo de água e ela engoliu o remédio
em meio segundo.
Letícia deu mais uma olhada no relógio, pegou a bolsa e abriu a
porta do apartamento.
— Ei, onde você está indo? Volta aqui! — Daniel a chamou,
alarmado.
Ela já estava do lado de fora, seguindo em direção às escadas.
Daniel pegou as chaves do carro que estavam na bancada e saiu
atrás dela, correndo. Letícia tentou descer os degraus com
agilidade, mas segurando firmemente o corrimão, como se não
confiasse que suas pernas obedeceriam aos comandos.
Não demorou muito para que Daniel a alcançasse. Letícia
suspirou quando ele se posicionou ao lado dela, olhando-a com
incredulidade. Sabia que teria que ouvir as insistências dele. Ela
continuou a descer os degraus com esforço.
— Nem adianta fazer essa cara, senhorita. Você vai ao hospital
e pronto. Nem que eu tenha que arrastar você — afirmou Daniel, em
um tom de voz decidido.
— Para de ser exagerado, Daniel! Eu já tomei o remédio, em
quinze minutos vou estar ótima.
— Acontece que você já acordou mal, hoje. E agora, está
parecendo um zumbi. Olha bem pra você. Eu nem sei como é que
você está em pé!
Nem eu, pensou Letícia, sentindo sérias saudades do sofá. Ela
queria muito ter ficado deitada embaixo das cobertas, mas
realmente precisava ir à aula hoje.
— Eu não posso faltar aula hoje, Daniel. Tenho apresentação
de seminário — disse Letícia, em um tom de voz tão suave que
Daniel quase se esqueceu de protestar.
— E daí? Você vai ter um atestado médico, é óbvio que não vai
ficar sem nota. Não precisa se preocupar com isso — respondeu
Daniel, depois de dois segundos de silêncio.
— Mas é um trabalho em grupo! Se eu não for, todo mundo vai
se ferrar. Eu é que estou com o trabalho escrito e com os slides. E
além disso, não tem ninguém pra apresentar a minha parte. O
trabalho vai ser um fiasco total se eu não for, e quase todos os meus
colegas precisam dessa nota pra não reprovarem, então, eu...
Realmente preciso chegar lá a tempo.
Daniel estava extremamente incomodado em vê-la daquele
jeito. Olhou para o termômetro que estava em sua mão esquerda e
percebeu que saíra de casa tão apressado que nem o tinha
guardado. Colocou o objeto no bolso, enquanto a porta do elevador
se abria.
— Peraí, me deixa adivinhar: esse é mais um desses trabalhos
em grupo que você faz sozinha?
— Eu não fiz sozinha! Todo mundo fez a sua parte, e se eu não
chegar lá a tempo, todos vão se ferrar por minha culpa e... — ela
parou de falar quando a dor de cabeça que estava sentindo se
intensificou repentinamente.
Daniel viu a expressão de dor que se formou no rosto dela
durante meio segundo.
— Ah, meu Deus. Letícia, você...
Ela não ficou para ouvir. Chegou ao fim da escada e disparou
na frente dele, com passos rápidos e nada firmes.
— O que você tá fazendo, sua maluca? Volta aqui! — gritou ele,
enquanto tentava companhá-la.
— Já disse, eu estou indo pra aula.
— Não vou deixar você ir a pé! Eu te levo — disse Daniel,
agarrando o pulso dela.
Letícia parou de andar e olhou pra ele. Ela queria dizer não,
porque não confiava que ele realmente fosse deixá-la na
universidade. No entanto, a distância que ela teria que caminhar
parecia gigantesca naquele momento. A cabeça dela latejava, o
corpo parecia se recusar a fazer qualquer coisa. Ela suspirou e
cedeu:
— Tudo bem. Mas se eu souber que você não vai me deixar na
universidade, eu desço do carro e vou a pé. Sério mesmo.
Daniel revirou os olhos, irritado.
— Tá, vamos logo.
Capítulo 21

Letícia estava quieta demais no banco do passageiro. Daniel dirigia


mais rápido que de costume e ficava olhando para ela a cada dois
segundos. Meu Deus, essa garota está realmente muito mal,
pensou Daniel. Ele tinha cometido duas infrações de trânsito até o
momento e ela não tinha reclamado nenhuma vez. Era bizarro vê-la
apática daquele jeito.
— Letícia — ele chamou.
Ela fechou os olhos por alguns segundos e continuou calada.
— Letícia!
— Que foi?
— Olha, eu vou te levar ao hospital, tudo bem? Isso aqui é um
caso de vida ou morte e eu tenho certeza que o seu professor vai
compreender que...
— Eu vou descer do carro, Daniel. É sério — ela ameaçou.
— Ah, jura? Pode descer, se jogue de um carro em alta
velocidade — retrucou Daniel.
Letícia achou melhor nem responder. Insultou o rapaz
mentalmente e esperou que eles chegassem até o próximo
semáforo.
Daniel se viu obrigado a parar no sinal vermelho, enquanto
carros atravessavam a rua à frente dele. Letícia sorriu como uma
menininha de seis anos prestes a aprontar e destravou o cinto de
segurança.
— Ah não, Letícia. Você não teria coragem de...
— Obrigada pela carona — ela abriu a porta do carro e foi
embora, atravessando a rua apressadamente.
Daniel mal conseguia acreditar no que estava vendo. Aquela
garota era completamente maluca.
Enquanto caminhava mais rápido que podia suportar, Letícia
olhou novamente o relógio de pulso. Faltavam alguns minutos para a
aula, e a universidade estava perto dali. A garota tentou tranquilizar
a si mesma dizendo que chegaria a tempo.
Quando conseguiu entrar na sala de aula, Letícia sorriu,
comemorando internamente. Não sabia como fora possível chegar a
tempo. O remédio que ela tinha tomado devia ter feito algum efeito,
para que tivesse conseguido. Ela estava ofegante, trêmula e
ligeiramente tonta, mas estava ali.
Foi direto falar com os colegas para ajustar os últimos detalhes
do trabalho. Logo o professor solicitou que as apresentações
começassem, e o grupo de Letícia se organizou na frente da sala.
Era o primeiro grupo a apresentar.
Enquanto explicava sua parte, Letícia notou alguém diferente
sentado no fundo da sala. Era Daniel, que a encarava com uma
expressão de raiva absolutamente hilária. A garota se esforçou para
não rir e continuou a apresentação. Ela sentiu que não estava muito
concentrada, mas ficou feliz com o resultado final do grupo. O
professor elogiou o trabalho, para o alívio da garota. No final, pediu
que ela fosse até a mesa dele.
— Letícia, você está com uma cara péssima — disse o
professor, ajustando os óculos no rosto.
Nossa, ele tinha sido direto, pensou Letícia. Ela gostava
daquele professor, era sem dúvida um senhor muito gente boa.
— Você parece bem doente. Vou te dispensar, OK? Vá para
casa e se cuide.
— Obrigada, professor — ela agradeceu, pegou a bolsa e saiu
da sala.
Letícia não pôde conter uma risada quando viu que Daniel a
seguia pelo corredor, indignado.
— Por que você fez aquilo, sua doida? Você podia ter... —
Daniel começou a reclamar, mas foi interrompido.
— Eu avisei que desceria do carro. Quem sabe da próxima vez,
você leve mais a sério o que eu te digo — disse Letícia, com um
sorriso vitorioso no canto da boca. — Dá pra parar de
andar? Eu tô tentando falar com você! — protestou Daniel, mas a
garota só parou quando chegou ao elevador. Ela definitivamente
estava se sentindo esgotada demais para descer as escadas.
Apertou o botão e finalmente olhou para Daniel.
— Não sei por que você está tão nervoso. O que importa é que
eu consegui chegar a tempo, apresentei o trabalho e o grupo
conseguiu uma boa nota, o que significa que ninguém vai reprovar
nessa matéria por minha culpa.
— Nunca mais faça isso. Nunca mais, entendido?
— Tá bem, papai — ela retrucou sarcasticamente.
Daniel respirou fundo, tentando manter a calma. Olhou bem
para a garota e viu que ela tremia de frio. Tocou o rosto dela com
suavidade e sentiu uma temperatura absurdamente alta.
— Letícia, sua temperatura precisa diminuir. Você está me
deixando assustado.
O elevador se abriu e os dois entraram imediatamente naquele
pequeno compartimento de metal.
— Agora sim, eu vou te levar ao hospital. Já aproveita também
pra marcar uma consulta com um psiquiatra, você tem sérios
problemas mentais.
Ela ia começar a protestar dizendo que queria ir para casa, mas
um barulho a impediu. Um estalo alto ressoou naquele ambiente
apertado. Daniel viu as luzes do elevador pifarem, aterrorizado. Por
fim, o elevador parou completamente.
Daniel não podia acreditar que aquilo estava acontecendo.
Quedas de energia eram relativamente comuns naquela
universidade, mas precisava ser bem naquele momento? Bem no
exato dia em que uma garota febril estava ali com ele, precisando
urgentemente de tratamento médico? Aquilo precisava acontecer
justamente naquele minuto, sob aquelas condições? A lei de
Murphy estava, como sempre, implacavelmente certa.
Capítulo 22

— Ah, não, não, não, não, não, não, não — repetiu Daniel
baixinho, no escuro, recusando-se a aceitar aquela situação.
Letícia apertou o botão de alarme, o que chamava a assistência
técnica, e depois todos os botões imagináveis. Conforme esperado,
nenhum deles funcionou. Depois pegou o celular na bolsa e o
colocou no modo lanterna. Direcionou a luz para o rosto de Daniel.
— Você não tem claustrofobia, tem? Diz que não — disse
Letícia.
— Não — Daniel gemeu.
— Nesse caso, acho que vamos ficar bem até a energia voltar
— ela tentou tranquilizá-lo. O rapaz olhou bem para a garota, vendo-
a tremer e respirar com dificuldade.
— É o que eu espero — disse ele, embora não acreditasse
nenhum pouco nisso. Daniel se lembrou do termômetro que
tinha guardado em seu bolso e retirou-o de lá. Olhou para o objeto e
respirou fundo.
— Estou com muito medo de fazer isso, mas vamos lá — o
rapaz inseriu o termômetro no ouvido da garota, fez a medição de
temperatura e depois olhou para o visor. Letícia notou que ele
parecia aterrorizado.
Conforme ele suspeitava, a febre tinha piorado.
— Ah, não... — resmungou Daniel, sem tirar os olhos do visor
do aparelho. — Ei — ela se aproximou dele e o
olhou nos olhos. — Relaxa. Não tem motivo nenhum pra se
preocupar, OK?
— É,com certeza.Motivo nenhum — ele retrucou
sarcasticamente, angustiado.
Guardou o termômetro e pegou seu celular. Estava sem sinal, é
claro. Assim como Letícia havia feito, ele também ligou a lanterna do
aparelho, de forma que o pequeno compartimento ficou mais bem
iluminado.
— Quanto tempo você acha que vai demorar pra energia
voltar? — perguntou Letícia.
— O último apagão durou umas três horas... — respondeu o
rapaz, tentando imaginar que, daquela vez, a energia retornaria
rapidamente.
— Bem, acho melhor a gente se sentar, então — propôs Letícia.
Ela se sentia fraca demais para continuar em pé por um minuto que
fosse.
Os dois jovens se sentaram lado a lado, de costas para o
espelho do elevador, e se encararam por um tempo.
— Você sempre foi a aluna queridinha dos professores, né? —
disse Daniel, lembrando-se da cara de satisfação do professor
enquanto ela apresentava o trabalho.
Letícia riu.
— Não é verdade.
— É sim! Aquela nossa professora do colégio, a dona
Georgiana, quase erguia um altar pra você nas aulas.
Letícia sorriu ao se lembrar da professora.
— A dona Georgiana era bem legal.
— Realmente, ela era superlegal com você. Comigo, ela era o
cão. Caramba, como aquela velha me odiava.
— Será que é porque você jogava truco durante a aula dela? —
perguntou Letícia, rindo.
— É. Devia ser por isso — disse Daniel, pensando em tudo o
que ele tinha aprontado na época do colégio. Tentou afastar
algumas lembranças incômodas que o faziam ter vergonha de si
mesmo, mas elas vieram mesmo assim.
— Parece que faz um século, né? — comentou Letícia,
pensando sobre como as coisas haviam mudado.
— Pois é — concordou Daniel, ansioso para mudar de assunto.
Não encontrou nada pra dizer, então ficou em silêncio olhando
fixamente para a garota.
Os lábios dela estavam sem cor e ela continuava tremendo.
Parecia prestes a desmaiar, e Daniel torceu pra que as portas
daquele maldito elevador se abrissem antes que ela piorasse ainda
mais. Ele se aproximou e mediu a temperatura dela novamente.
— Que droga, sua temperatura não para de subir.
Tudo o que Daniel conseguia pensar é que alguém tinha dito
(ou ele teria lido em algum lugar?) que depois que a temperatura de
uma pessoa ultrapassa os 41 graus, é melhor começar a se
despedir dela.
Daniel tentou manter a calma e pensar no que poderia fazer
para que a temperatura da garota diminuísse.
— Letícia, você vai ter que tirar o casaco, tudo bem? — disse
Daniel. Aquela era a única medida que ele pôde imaginar no
momento.
— Ah, não — Letícia gemeu. — Não me pede pra fazer isso, eu
estou morrendo de frio.
— Você já está quente demais. Se tirar o casaco, talvez a sua
temperatura pare de subir tão rápido.
Ele tirou o casaco dela o mais gentilmente que pôde. Assim
que notou a bolsa que estava jogada num canto, começou a revirá-
la sem nem pedir permissão.
— O que você está fazendo? — Letícia perguntou.
Ele nem respondeu. Precisava encontrar alguma coisa útil ali
dentro. Água, por exemplo. Ele se lembrou de que pessoas febris
ficam facilmente desidratadas (especialmente dentro de um cubículo
abafado como aquele em que estavam). Só encontrou uma garrafa
de plástico vazia.
— Ah, que ótimo. Muito útil isso aqui — ele reclamou,
mostrando a garrafa para Letícia.
— Eu ia encher no bebedouro — ela explicou.
— Bem, eu acho que isso aqui comprova que essa história de
que “bolsa de mulher guarda tudo o que ela precisa” é mito. Quer
dizer, aqui não tem água, nem paracetamol, nem um pé de cabra ou
um machado pra gente arrombar a porta do elevador — ele largou a
bolsa dela, desanimado.
— Desculpe por ter me esquecido de trazer um machado — ela
disse, rindo. Ele olhou para ela e automaticamente sorriu
também. Reparou que Letícia estava muito mais bem-humorada e
positiva que ele, apesar de tudo. Ele respirou fundo e decidiu que, se
não podia fazer nada para ajudá-la, pelo menos tentaria ser um
pouco mais agradável.
— Daniel — Letícia pronunciou, em um tom de voz muito baixo.
— Posso pegar seu ombro emprestado?
Ela não esperou por resposta alguma e recostou a cabeça no
ombro dele, enquanto tremia de forma quase convulsiva. Daniel
sentiu o calor febril da garota sobre seu ombro, sentiu o cheiro do
xampu dela, ouviu de perto aquela respiração acelerada e
inconstante e foi invadido por uma onda de afeto tão intensa que o
desnorteou por um momento.
Acariciou o cabelo dela durante alguns segundos, enquanto o
silêncio absoluto reinava naquele ambiente apertado. Depois de dois
minutos, o silêncio passou a incomodá-lo ao extremo.
— Letícia?
— Oi. — A voz dela saiu como um sussurro.
— Eu não gosto de ver você tão quieta. Conversa comigo.
— Ahã — ela respondeu, em um tom de voz nada disposto.
— Me fala daquela vez em que você jogou meu Super-Homem
pela janela.
Letícia sorriu e começou a falar muito baixo e pausadamente.
— Você tinha uns sete anos. E era uma peste. Naquele dia...
Eu tive que ir com a minha mãe à sua casa, porque ela tinha me
obrigado. Eu odiava ir à sua casa. Sério. Era o pior lugar do mundo.
Toda a vez, mamãe dizia algo tipo... “Vá brincar com o Dani,
enquanto eu converso com a Verônica”. Eu nunca ia brincar com
você... Porque, bem, você era uma peste. Eu gostava de ficar
escondida no quintal da sua casa. Perto daquele jardinzinho que a
sua mãe tinha. Gostava de ficar lá, sozinha, olhando os insetos. Mas
você... Você sempre aparecia pra encher o saco. Toda vez, você
ficava insistindo...
A voz dela soava tão fraca e tão sonolenta que Daniel teve
medo de que ela parasse de falar, mas ela continou:
— Insistindo pra eu ir até o seu quarto ver algum brinquedo
novo que você tinha ganhado. Naquele dia eu fui lá, ver você se
exibir, como sempre. E então... Eu achei aquele bonequinho do
Super-Homem, esquecido embaixo da sua cama. Eu comecei a
brincar com ele. E aí você deu o maior chilique de criança mimada...
Porque você não queria que eu tocasse nas suas coisas. Eu já
estava de saco cheio... Você sempre agia daquele jeito. Aí, em vez
de te devolver o Super-Homem... Eu saí correndo até a janela do
segundo andar e atirei... Eu atirei o seu boneco pela janela, tão
longe que ultrapassou o portão. Você começou a surtar e a brigar
comigo. Daí, eu coloquei a cabeça pra fora da janela e berrei: “Você
está livre, Super-Homem! Voe! Voe pra longe desse menino chato!”
A garota sorriu, enquanto tentava recuperar o fôlego. Nunca
tinha imaginado que contar uma história pudesse ser tão difícil.
Daniel sorriu junto com ela.
— Eu gosto dessa história — ele disse, por fim.
— É, eu também — a garota sussurrou.
Outro longo período de silêncio se seguiu. A cada segundo, ela
ficava mais distante, e isso o apavorava. Ele não sabia o que fazer,
e o pior de tudo é que não havia o que fazer, a não ser esperar que
a energia voltasse.
— Aguenta só mais um pouco, tá bom? Você vai ficar bem. Eu
prometo — disse Daniel, em um tom suave e falsamente tranquilo.
Letícia não respondeu nada. Talvez nem estivesse ouvindo.
Daniel afastou carinhosamente uma mecha de cabelo que
encobria o rosto dela, desejando em desespero que a energia
voltasse logo. Ele tentou conter o pânico e manter a calma, mas,
naquela situação, fazer isso parecia praticamente impossível. Letícia
não tinha se movido um centímetro desde que recostara a cabeça
no ombro de Daniel. Era assustador vê-la daquele jeito. Afinal, ela
era a pessoa mais inquieta e enérgica que ele já conhecera.
— Letícia.
Não houve resposta.
— Letícia! — Daniel chamou novamente, enquanto a colocava
deitada no colo dele, em uma posição mais confortável e de um
modo que ele pudesse olhar melhor para o rosto dela.
— Ei, olha pra mim. Olha pra mim, tá bem? — ele implorou.
Ela abriu os olhos e o encarou com um olhar vazio por alguns
segundos. Letícia descobriu que gostava dos olhos dele. Gostava
daquela cor indefinida, daquele tom castanho claro que,
dependendo da luz, transformava-se em outras cores. Às vezes
ficava mais claro, às vezes mais escuro, de vez em quando meio
esverdeado. Ela queria continuar olhando, mas parecia impossível.
Sentia que suas pálpebras estavam pesadas demais. Lutou contra
elas o quanto pôde, até que seus olhos finalmente se fecharam e
ela não teve forças para abri-los novamente, embora conseguisse
escutar vagamente a voz de Daniel dizendo alguma coisa, ao fundo.
Quando a temperatura dela aumentou ainda mais, as luzes
finalmente se acenderam e a porta do elevador se abriu.
Capítulo 23

Hospitais sempre deixavam Daniel aflito.Aquele silêncio.Aquelas


enfermeiras de branco carregando bandejas cheias de injeções.
Aqueles tubos de soro horríveis. A impressão que ele tinha é que
tudo naquele lugar parecia colaborar para que o paciente ficasse
ainda mais doente.
Pelo menos, ele tinha conseguido permissão para ficar com
Letícia no quarto. Isso melhorava um pouco a situação. Afinal, ficar
esperando do lado de fora teria sido ainda mais desesperador e
agonizante. Ali, ele podia pelo menos ficar ao lado dela, ver o que
estava acontecendo. Daniel queria que ela acordasse logo. No
entanto, pelo que a enfermeira tinha contado, ainda ia demorar um
pouco até isso acontecer, por causa das medicações que ela estava
tomando na veia.
Ele já estava ali há um bom tempo, sentado ao lado da cama
dela, em silêncio. Enfermeiras apareciam ocasionalmente para
verificar o estado da garota ou injetar mais medicamentos. O
silêncio era perturbador, mas ele definitivamente não queria ligar a
televisão. Não iria conseguir assistir nada, mesmo.
Daniel se surpreendeu com o fato de que não conseguia parar
de olhar para ela há horas. Aproximou ainda mais sua cadeira e
apoiou a cabeça na cama, bem perto do rosto da garota. Observou
detalhadamente a expressão vazia dela por longos segundos. Era
tão estranho vê-la quieta e tranquila daquela forma. Finalmente,
Letícia parecia estar descansando um pouco daquela loucura que
era sua vida. Daniel teve certeza de que, pelo menos naquele
momento, ela tinha esquecido as responsabilidades, os horários, as
preocupações. Parecia estar sonhando com o nada. E sonhar com o
nada era uma coisa boa, especialmente para uma pessoa tão
agitada como ela.
Mesmo assim, Daniel sentia uma espécie de buraco dentro de
si. Estava inquieto, preocupado e inexplicavelmente angustiado.
Pensou em pegar na mão dela, mas desistiu imediatamente. Esse
negócio de pegar na mão de uma pessoa que está em uma cama
de hospital passava a incômoda ideia de que a pessoa em questão
está à beira da morte. E esse, felizmente, não era o caso de Letícia.
Aquela febre bizarra tinha sido causada por uma gripe comum, que
ela ignorara por dias, já que estava ocupada demais para cuidar de
si mesma.
Começou a acariciar suavemente o cabelo dela, enquanto
milhares de pensamentos o inquietavam. Então, ele olhou para a
marca no braço dela. Lá estava aquela cicatriz, obrigando-o
novamente a se lembrar de coisas que ele não queria.
Pela primeira vez, Daniel tocou aquela marca que ficaria
permanentemente fixada na pele dela. Passou os dedos
suavemente sobre a cicatriz, perguntando-se por que raios Letícia
nunca mencionava nada sobre aquela marca, nem sobre o incidente
que a tinha originado. Ela parecia ter se esquecido completamente
do que acontecera anos atrás. Mas como ela poderia não se
importar? Por que nunca tinha jogado na cara de Daniel o fato de
que ele podia ter impedido que aquilo acontecesse? Daniel tinha
plena certeza de que era o culpado por aquela cicatriz.
Para piorar, ele reconhecia que tinha sido um babaca, na época
do colégio. Tinha feito, junto com seus colegas populares, todo o
possível para infernizar a vida dela. Mas Letícia, de alguma forma,
conseguia ser completamente inatingível. Ela era forte demais. Não
importava o que Daniel fizesse, parecia impossível deixá-la mal.
Para o rapaz, o mais revoltante era pensar que, apesar de tudo,
ela ainda tinha decidido acalmá-lo durante uma tempestade, em vez
de zoar com a cara dele. Ela tinha topado se juntar à armação de
fingir ser a namorada dele, mesmo odiando a ideia. Tinha salvado a
vida dele ao impedir que ele fosse esmagado por uma barra de
ferro. Tinha conseguido aturar bravamente todas as suas manias e
maus hábitos. E, curiosamente, quando aquele elevador pifou, foi
ela quem olhou primeiro para ele e garantiu que tudo ia ficar bem.
O peso daquela dívida o oprimia. Daniel achava que talvez
fosse impossível pagá-la. Ele não conseguia entender o fato de que
Letícia claramente agia como se não houvesse nada para pagar.
Depois de pensar melhor sobre isso, ele concluiu que só porque ela
não estava cobrando nada não significava que a dívida não
existisse.
— Letícia, eu… — Daniel começou a falar, em um tom de voz
baixo e hesitante. — Olha, não entendo porque você tem sido tão
legal comigo mesmo que eu tenha sido um idiota com você. Eu
simplesmente não entendo. Você sabe como eu sou, não sabe? Se
alguém tivesse infernizado a minha vida no passado, eu ficaria
aguardando ansiosamente a oportunidade de dar o troco. Por que
você insiste em agir de forma tão diferente? Olha, eu sempre soube
me relacionar bem com as pessoas. Sempre soube o que dizer. Mas
o problema é que você é rara demais. Você não se parece em nada
com qualquer outra pessoa que eu tenha conhecido. Não sei como
agir, não sei o que falar quando eu estou com você.
Daniel fez uma pausa e olhou em silêncio por alguns segundos
para o tubo de soro. Observou o movimento fraco de respiração da
garota inconsciente e acariciou o rosto dela. Continuou a falar.
— Eu sei que não dá pra apagar o passado. Eu só queria ter a
oportunidade de te mostrar que eu não sou mais aquele moleque
idiota. Talvez eu continue sendo um idiota, mas com certeza não
sou tão idiota quanto eu era, e… Na verdade, eu… Não me
importaria em ser um idiota desde que eu pudesse ser o seu idiota.
Nossa, que cafona. Olha só, Letícia, você nem está acordada e
mesmo assim eu fico desconcertado ao falar sobre isso com você.
Obrigado por detonar minha confiança, a propósito. Enfim, eu só
queria avisar que eu quero fazer tudo o que eu puder por você.
Minha prioridade máxima vai ser fazer você feliz e te manter segura
e tranquila. Provavelmente eu vou falhar em algum ponto, porque,
diferentemente de você, eu tenho um monte de defeitos. Mas eu vou
tentar, prometo. Vou fazer o que eu puder. Talvez você ache que
não há dívida nenhuma, mas eu sei que há. Eu vou fazer de tudo
para consertar as coisas.
Daniel sabia que nunca teria dito tudo aquilo se ela estivesse
consciente. Ele ainda não se sentia preparado para se abrir para ela
daquela forma. Não naquele momento, pelo menos.
Letícia se moveu na cama, mas não abriu os olhos. Daniel
continuou sentado ao lado dela, desejando que ela acordasse logo.
Queria levá-la logo para casa.
Depois de meia hora, Letícia finalmente abriu os olhos. Ela viu
Daniel olhando para ela com um olhar que parecia atento e aliviado
ao mesmo tempo.
— Oi — ela sussurou para ele, fazendo uma breve análise do
ambiente onde estava.
— Oi — ele respondeu aliviado, tentando sentar na cama ao
lado dela.
— Então, quando eu vou poder sair daqui? Que horas são? —
ela perguntou, e Daniel observou a inquietude e a vivacidade de
sempre voltando ao olhar dela.
— Esqueça os horários, tá? Tô falando sério. Pelo amor de
Deus. Você quase me matou de preocupação. Por favor, prometa
que não vai fazer isso nunca mais. Nunca mais, tá legal? Como
você está se sentindo? Vou chamar a enfermeira pra verificar... —
disse Daniel, agitado.
— Eu estou ótima — interrompeu Letícia. — Só me diga que
você não ligou pra minha mãe.
— Ainda não, mas eu posso fazer isso agora, se…
— De jeito nenhum! Nem pense nisso — disse Letícia,
pensando que obviamente, não ia deixar sua mãe saber que ela
estava em um hospital. Deixá-la preocupada à toa era uma coisa
que não poderia acontecer em nenhuma circunstância.
Letícia e Daniel se encararam em silêncio por um momento.
— Então… — disse Letícia, animadamente. — Já posso dar o
fora daqui?
— É claro que não! — exclamou Daniel. — O médico me disse
que, se tudo der certo, talvez você receba alta amanhã. Talvez.
Letícia fez uma expressão que indicava claramente o quanto
ela estava contrariada com aquilo. Ela ia começar a protestar e já
estava tentando se levantar da cama, mas Daniel a impediu,
transtornado.
— Não sei se você se deu conta, mas você poderia ter morrido!
Que droga, eu quase perdi você!
Ela congelou por um instante, enquanto Daniel tentava se
recompor.
— Agora, você vai deitar nessa cama, vai deixar que cuidem de
você e vai descansar. Entendido? — disse ele.
A garota bufou, chateada. Achava tudo aquilo uma grande
perda de tempo.
— Ei, eu acabei de ter uma ideia bem melhor que a sua —
disse Letícia, pouco tempo depois. — Que tal se você me ajudasse a
fugir daqui?
Ela sorriu para ele e o encarou com seus grandes olhos
brilhantes.
Daniel respirou fundo, tentando reunir toda a paciência que
existia em seu interior. Depois de tudo o que acontecera, ele tinha
mesmo que ouvir aquilo?
— Você realmente precisa de um psiquiatra — o rapaz
murmurou.
Capítulo 24

— Enfim, liberdade! — comemorou Letícia, assim que ela e


Daniel deixaram o hospital.
— Letícia, você estava em um hospital, não na cadeia — disse
o rapaz, enquanto abria a porta do carro para ela.
— Dá tudo na mesma. Ah, e eu não precisaria ter perdido tanto
tempo da minha vida se você tivesse sido legal e me ajudado a fugir.
Eu tive que ficar lá, no maior tédio, até que o médico fizesse o favor
de me liberar. Demorou uma eternidade.
Letícia tinha ficado no hospital por pouco mais de vinte e quatro
horas, e tinha odiado cada segundo. Para uma pessoa como ela,
que odiava ficar quieta, aquilo era torturante. Em compensação,
Letícia sabia que Daniel tinha feito tudo parecer bem menos pior.
Primeiramente, ele não tinha saído do lado dela por um
segundo sequer. Por mais que ela dissesse que estava tudo bem,
que ele podia voltar pra casa e deixar o tédio daquele hospital,
Daniel tinha decidido ficar com ela, com total determinação.
Letícia se lembrou do comentário que uma das enfermeiras
havia feito quando Daniel finalmente dormiu no sofá que havia perto
da cama de Letícia:
— Seu namorado é um fofo — a enfermeira comentou em um
tom jovial e bem- humorado. — Desde que você chegou aqui, ele
não sai do seu lado. Você é uma garota de sorte, é bem difícil
encontrar caras assim hoje em dia.
Letícia ia dizer que eles não eram namorados, mas em vez
disso ela simplesmente sorriu ao olhar longamente para Daniel. Ela
percebeu o quanto gostava da companhia dele. Descobriu que
gostava da voz dele, do modo como ele ajeitava os cabelos fazendo
com que parecessem ainda mais bagunçados, das piadas ruins que
ele contava e daquela capacidade de fazer com que tudo ficasse
mais divertido.
Quando eles chegaram ao apartamento, Letícia parou para
pensar que, pouco tempo atrás, aquele lugar era apenas um imóvel
que pertencia à família de Daniel.
Agora, ela sentia que aquele apartamento (principalmente com
a presença de Daniel nele) podia ser chamado de lar. Mesmo longe
da sua casa em São Paulo, ela tinha um lar naquela nova cidade.
Isso significava muito.
— Ei. Acho que, se eu me apressar, ainda consigo pegar a
última aula do dia —disse Letícia, animadamente.
— Você está brincando, né? — Daniel perguntou, chocado com
aquela necessidade estranha e obsessiva que Letícia tinha em
querer fazer coisas chatas o tempo todo. — Você acabou de sair do
hospital. Será que você não aprendeu absolutamente nada com o
que aconteceu? Nadinha?
— É claro que aprendi. Aprendi que, se você quiser fugir de um
hospital, tem que manter essa informação em segredo, porque as
pessoas provavelmente vão tentar te impedir — respondeu ela.
Daniel revirou os olhos, irritado.
— Você deveria ter aprendido a cuidar melhor de si mesma, a
se importar mais com você e menos com os estudos, trabalho…
Enfim, essas coisas chatas que você valoriza tanto. Pra quê tudo
isso? Você só tem dezoito anos e com toda a certeza não deveria
ser tão séria, responsável e certinha. Isso é loucura, sabia?
— Você está exagerando, Daniel — justificou-se Letícia.
— Estou, é? Tudo bem, então fala pra mim da última vez em
que você saiu de casa pra se divertir.
Letícia parou um pouco para pensar sobre isso e percebeu que
não conseguia se lembrar. Todas as vezes em que saía de casa, era
para resolver algo, ir ao estágio, trabalho voluntário ou à
universidade. Diferentemente de Daniel, ela não tinha o menor
costume de sair de casa apenas para se divertir.
— Viu só? — disse Daniel, vencendo a discussão. — Eu tenho
toda a razão e você sabe disso. Então, por isso, hoje você vai ficar
em casa e descansar. Amanhã, você não vai nem pro estágio e nem
pra universidade. Dê a si mesma uma folga, pelo menos uma vez na
vida.
Letícia olhou para Daniel e estreitou os olhos ao ouvir aquelas
recomendações que mais pareciam ordens. Quem era ele para
achar que podia controlar o que ela fazia ou deixava de fazer? Foi
isso que passou pela cabeça de Letícia naquele momento.
— O que é que me impede de simplesmente ignorar tudo o que
você está dizendo? — a garota perguntou.
— Óbvio. Eu sou um cara influente e sensato. E tenho meu
imbatível poder de convencimento — respondeu Daniel, com sua
autoconfiança de sempre.
Letícia riu.
— Certo, veremos então. Fique sabendo que eu só não vou
para a universidade hoje porque a aula já deve estar terminando. Só
por isso. Mas amanhã, pode ter certeza de que eu não vou ficar
aqui, sem fazer nada de útil.
— Olha, se o seu objetivo era ganhar o Prêmio Internacional de
Teimosia, fica tranquila que ele já é seu — retrucou Daniel.
No dia seguinte, Letícia acordou disposta e cheia de energia,
como de costume.
Para Daniel, foi um alívio ver que ela estava se recuperando tão
rápido. Ele só não queria que ela voltasse tão cedo com aquela
rotina maluca. Mas era exatamente isso o que ela estava planejando
fazer, e o rapaz sabia que ninguém podia impedir aquela criatura
teimosa. Bem, mesmo assim, não custava tentar.
— É sério, Letícia... — disse Daniel, durante o café da manhã.
— A vida não é só ficar correndo de um lado pro outro, se
preocupando com um milhão de coisas chatas.
— Eu não gosto nem de pensar na hipótese de ficar mais um
dia sem fazer nada, trancada dentro desse apartamento.
Diferentemente de você, eu gosto de fazer alguma coisa além de
assistir televisão — a garota respondeu.
— Olha, eu posso até ser meio… Hum, qual é a palavra?
— Vagabundo. Mas como essa é uma palavra meio agressiva,
eu prefiro dizer “ocioso” — brincou Letícia.
Foi aí que Daniel teve uma ideia.
— Ei. Você com certeza já percebeu que nós somos totalmente
opostos, certo? Quer dizer, você é extremamente pilhada e
responsável, e eu sou extremamente… Hã… Ocioso, como você
disse. Se você se parecesse um pouco mais comigo, e eu um pouco
mais com você, nós não seríamos tão desequilibrados e estranhos.
— Isso faz algum sentido — admitiu Letícia.
— Então, o que eu proponho é o seguinte: hoje, você vai seguir
a programação que eu definir. Amanhã, você escolhe o que vamos
fazer. Então, hoje eu te ensino a se divertir, porque você,
obviamente, não faz a menor ideia do que seja isso, e no outro dia
você me ensina a fazer alguma coisa produtiva e responsável. Que
tal?
Letícia sorriu ao ouvi-lo dizer aquilo.
— Quer saber? Eu topo. Hoje eu faço o que você definir, mas
amanhã… Garanto que você não vai passar o dia jogando
videogame.
Capítulo 25

— Ah, Daniel. Eu estou curiosa! É sério, onde estamos indo? —


perguntou Letícia.
Ela estava sentada no banco do passageiro, morrendo de
curiosidade e sentindo certo receio. Daniel dirigia tranquilamente e
esboçou um sorriso.
— Logo, logo, você vai saber — ele respondeu, descontraído.
Daniel tinha analisado cuidadosamente a situação antes de
decidir levar Letícia até os lugares que estava planejando. A
princípio, ele tinha imaginado que seria melhor mantê-la em casa.
Mas Letícia tinha insistido dizendo que não queria ficar “trancada
dentro do apartamento”. Ela parecia tão saudável como se nunca
tivesse adoecido na vida. Então, ele decidiu aproveitar aquela
oportunidade única de poder arrastá-la para o lugar que ele
quisesse para fazer o que ele definisse.
— Conta logo, vai? Por favorzinho — insistiu Letícia.
— Você se lembra do que disse no nosso primeiro dia aqui em
Brasília? A gente tinha acabado de entrar no apartamento pela
primeira vez.
— Ahm… — Ela pensou durante alguns segundos. — Que eu
ia passar a primeira semana de aula fugindo do trote porque a ideia
de sujar meu cabelo de tinta é abominável?
Daniel riu, pensando se ela conseguiria um dia superar essas
neuras de limpeza e perfeccionismo.
— Isso também, mas... Você disse que mal podia esperar para
conhecer os pontos turísticos de Brasília. Faz meses que a gente se
mudou pra cá, e você é tão paranoica com os seus compromissos
que nunca teve tempo de fazer o que queria. Então, hoje…
Finalmente chegou o dia.
Letícia mal podia acreditar no que estava ouvindo. Ela sabia
que Daniel não dava a mínima para obras arquitetônicas, museus e
pontos turísticos em geral. Aquela não era a ideia dele de diversão,
de forma alguma. Ele tinha escolhido fazer aquele passeio por
causa dela, e somente por causa dela.
Era impossível não notar o quanto ele estava diferente. Daniel
não parecia mais aquele garoto egoísta do colégio. Ela não sabia
muito bem o que estava acontecendo, mas o que quer que estivesse
mudando, estava mudando para melhor.
Daniel achava engraçado que Letícia se interessasse tanto por
aquelas coisas sem graça. Eles visitaram dois museus, e um deles
só tinha uma coleção de quadros estranhos e impossíveis de se
entender. Depois foram ao Palácio do Itamaraty, onde havia uma
escultura que Letícia disse se chamar “O Meteoro”. Ela ficou
empolgadíssima ao vê-la pessoalmente. Usou o celular para tirar
umas mil fotos da escultura, enquanto explicava para Daniel por
quem ela tinha sido feita, o que representava, etc, etc, etc.
Daniel olhou para a obra com um olhar indiferente e disse que
aquilo parecia mais uma bola gigante de papel amassado. Letícia
quase bateu nele ao ouvir isso.
Eles continuaram o tour e passaram por todos os lugares que
Letícia sempre tinha desejado conhecer: a Catedral, o Palácio da
Alvorada, o Congresso Nacional, a Torre de Televisão, a Praça dos
Três Poderes e outros pontos turísticos nos quais Daniel não viu
graça nenhuma. Mesmo assim, ele se sentia satisfeito. Gostava de
ver aquele olhar empolgado no rosto dela. A felicidade dela ao fazer
aquele passeio chato fazia com que aquilo valesse muito a pena.
Depois do tour, eles pararam para almoçar em um ótimo
restaurante. Letícia continuava comentando animadamente sobre a
história de construção do Distrito Federal e Daniel se esforçava para
prestar atenção.
— Daniel, esse passeio foi incrível — ela disse, enquanto o
garçom colocava os pratos na mesa. — Eu sempre quis conhecer
de perto aqueles monumentos que eu só tinha visto nos livros! Foi
realmente muito legal da sua parte fazer aquele tour comigo, mesmo
esse tipo de coisa não sendo exatamente a sua praia.
— Com certeza não é a minha praia — respondeu Daniel,
sorrindo. — Mas fico feliz em saber que você gostou da primeira
parte do nosso passeio.
— Primeira parte? — ela perguntou.
— É. Eu quis te levar pra conhecer os pontos turísticos porque
é uma coisa que você queria muito fazer desde que chegamos à
cidade. Mas acontece, querida Letícia — disse Daniel, enquanto
colocava mais açúcar no suco — que isso não é diversão de
verdade. Esse passeio turístico pareceu uma excursão chata de
escola. Tem que ser muito nerd pra se divertir olhando aqueles
quadros bizarros. Hoje você vai fazer uma coisa realmente divertida.
Letícia suspirou. Aquilo estava sendo bom demais pra ser
verdade, bem que ela tinha desconfiado. Mas que raios ele estava
tramando, afinal?
— Certo, Daniel. Posso saber o que é essa tal coisa “realmente
divertida” que nós vamos fazer hoje? — ela perguntou. — Sabe
como é, melhor você falar logo pra eu ir me preparando
emocionalmente.
— Você já jogou paintball, Letícia? — disse Daniel, com um
sorriso enorme no rosto. Ver aquela garota neurótica por limpeza
ficar completamente suja de tinta seria algo muito interessante de se
assistir.
Letícia gemeu e só conseguiu pensar que aquilo seria uma
catástrofe.
Capítulo 26

Havia lama por todos os lados. Letícia fez uma careta ao ver seu All
Star limpinho afundar naquela terra cheia de germes. Ela achou o
campo de jogo um lugar imundo e esquisito. Havia barris e
barricadas espalhados por todo o canto. Havia uma pequena
construção de dois andares parecida com uma casinha de
playground caindo aos pedaços, e Letícia imaginou que as pessoas
deviam se esconder dos tiros de tinta lá. No centro do campo,
estava instalada uma bandeirinha vermelha.
Enquanto ela e Daniel pegavam os equipamentos do jogo, ele
explicou rapidamente que eles e as outras pessoas que estavam ali
formariam grupos que se enfrentariam.
O objetivo é pegar a bandeira vermelha que está no centro do
campo e depois colocá-la na base adversária. O grupo que fizer isso
primeiro ganha. Quem levar três tiros é eliminado do jogo e tem que
se retirar do campo até a próxima partida — disse Daniel.
— Olha, já que tem essa galera toda animada para jogar, que
tal se eu ficasse fora do campo torcendo por você? Hein? Eu te dou
apoio moral e você ajuda a manter a minha integridade física —
propôs a garota, com um sorriso nervoso.
— Nada disso, Letícia. Você não vai escapar dessa. Vai ser
legal, você vai ver — afirmou Daniel.
— O que tem de legal em ficar correndo de um lado para o
outro no meio desse barro nojento enquanto pessoas atiram tinta em
você? — ela perguntou, irritada.
— Levar um tiro de tinta não é a pior coisa do mundo. Quer
ver? — Daniel se distanciou e atirou uma bola de tinta amarela no
colete de proteção que ela usava.
— Viu só? Você ainda está viva — disse Daniel, entre risadas.
Para ele, nunca na vida Letícia estivera com uma expressão mais
hilária.
Letícia viu, indignada, que a tinta tinha escorrido, sujando sua
calça jeans preferida. Fuzilou Daniel com o olhar.
— Eu vou te matar, seu babaca! — ela apontou para Daniel a
arma que estava segurando e o atingiu com uma rajada de bolinhas
de tinta, uma após a outra, sem parar.
— Ei! — gritou um dos fiscais de jogo. — A partida ainda não
começou! Agora vou ter que repor a munição de vocês. Fiquem
sabendo que só é permitido atirar quando eu der o sinal!
Letícia riu quando olhou para Daniel e viu que ele estava
coberto de tinta colorida.
— Isso doeu. É em uma hora como essas que você descobre
se a garota que divide o apartamento com você é uma pessoa do
bem ou uma criatura rancorosa e vingativa — murmurou Daniel. —
Acabo de descobrir que você está mais para a segunda opção.
— Você ainda não viu nada — retrucou Letícia. — Pela honra
da minha calça jeans, eu vou me certificar de que o meu time vai
massacrar o seu.
— Achei que a gente fosse fazer parte do mesmo grupo… —
disse Daniel. — É, mas isso foi antes de você manchar minha calça
novinha com essa tinta gosmenta!
Daniel sorriu com uma irritante expressão de tranquilidade.
— Você vai ser eliminada nos dois primeiros minutos de jogo.
— É o que nós vamos ver. Boa sorte e que vença o melhor
time. O meu, no caso — disse Letícia, usando um falso tom de
superioridade.
— Boa sorte, princesa. Como você é iniciante, vou pegar leve
— disse Daniel, mantendo o sorriso despreocupado.
— Que bom. Porque eu não vou pegar nada leve com você —
ela rebateu, e Daniel riu.
Os times estavam equilibrados. Letícia gostou especialmente
do seu grupo, que era formado por três caras jovens e simpáticos e
um casal um pouco mais velho que praticava paintball há algum
tempo. Eram seis pessoas ao todo. No time de Daniel, também havia
só duas mulheres. Um cara barbudo bem-humorado e outros dois
rapazes completavam o time.
Todos os participantes colocaram as máscaras de proteção e o
jogo foi iniciado.
Logo nos cinco primeiros minutos, três pessoas da equipe de
Letícia tinham sido eliminadas e ela, surpreendentemente, não
levara um tiro sequer.A possibilidade de ficar manchada de tinta era
uma motivação e tanto para que Letícia se movimentasse pelo
cenário de uma forma discreta e estratégica.Ela tinha conseguido
até atingir alguém. Não foi o Daniel, mas ela dizia a si mesma que a
hora dele estava chegando.
No time de Daniel, restavam ainda quatro pessoas.Um homem
do grupo da Letícia conseguiu eliminar um competidor do time
adversário, deixando a situação dos dois grupos igual: agora eram
três contra três.
Letícia e seus dois parceiros se reuniram em um local
relativamente seguro e discutiram rapidamente sobre qual seria a
estratégia deles para pegar logo aquela bandeira e levá-la para a
base adversária.
Os dois rapazes do time da Letícia partiram para o ataque
repentino. Enquanto o time de Daniel tentava se defender e revidar
os tiros de tinta, Letícia atravessou o campo correndo e pegou a
bandeirinha.
Daniel a olhou sem acreditar no que estava vendo. Ela corria a
uma velocidade absurda e estava vindo diretamente para a base do
grupo dele.Se ela chegasse a tempo e colocasse aquela bandeira
ali, venceria o jogo.Para Daniel, a ideia de perder jogando contra
Letícia, que nunca tinha nem tocado em uma pistola de paintball, era
impensável.
Daniel precisava acertar três tiros nela antes que ela chegasse
à base.Ele mirou perfeitamente e errou o tiro. Desde quando aquela
menina sabia correr tão rápido? Letícia visualizou Daniel, apertou o
gatilho da pistola e o acertou,rindo de satisfação.
Na segunda tentativa, Daniel conseguiu acertar Letícia,
sujando-a de tinta verde. Ela retribuiu atirando de volta no colete
dele. A garota só precisava acertá-lo mais uma vez e ele estaria
eliminado.Ela se escondeu atrás de uma trincheira por um segundo,
com a bandeira vermelha na mão esquerda.Quando olhou em volta,
percebeu que só tinham sobrado ela e Daniel no campo!Todos os
outros já tinham sido eliminados e ela nem sequer vira como isso
tinha acontecido. Ela tinha que chegar até a base inimiga. Era agora
ou nunca.
Letícia saiu do abrigo como um raio e voltou a correr.Daniel
conseguiu acertá-la com tinta mais uma vez. Agora, eles estavam
na mesma situação. Mais um tiro e um dos dois perderia o jogo.
Ela estava se aproximando rapidamente. Daniel se concentrou,
respirou fundo e atirou na direção da garota. Para a surpresa dele, o
tiro passou longe. Letícia riu e gritou:
— Você tem a mira de uma velhinha míope!
Letícia conseguiu acertar a última bolinha de tinta em Daniel e
colocou a bandeira na base inimiga, vencendo o jogo.
O fiscal fez soar o alarme, sinalizando o fim de jogo.Letícia
comemorou a vitória animadamente. Daniel nunca a vira tão
empolgada. Eles tiraram as máscaras de proteção e o rapaz se
aproximou dela.
— Ahá! Quem é que ia ser eliminada nos dois primeiros
minutos, hein? — provocou Letícia, rindo enquanto apontava o dedo
na cara dele.
— Isso foi sorte de iniciante — defendeu-se Daniel, sorrindo.
— Ah, jura? — ela retrucou ironicamente. — Mas, espera, eu
tenho uma pergunta a fazer. Qual é a sensação de ser um
perdedor?
Daniel apontou para a calça manchada de Letícia.
— E qual é a sensação de ficar toda manchada de tinta,
senhorita neurótica por limpeza?
— Eu não sou neurótica!
— Claro que é.Mas olha pelo lado positivo:pelo menos hoje a
vida te presenteou com uma sorte de iniciante gigantesca.
— Ah, cala a boca — disse a garota.
— Me obrigue — respondeu Daniel, aproximando o rosto do
dela.
Letícia o puxou para mais perto e eles se beijaram longamente.
Capítulo 27

Alguma coisa dentro de Letícia gritava desesperadamente: “O que


você está fazendo, garota? Enlouqueceu? Para com isso!”.
Letícia não obedeceu a essa ordem. Se aquilo era realmente
uma loucura, por que parecia tão certo?
Daniel parecia disposto a não soltá-la nunca mais.O beijo se
prolongou até Letícia finalmente conseguir reunir força de vontade o
suficiente para interrompê-lo. Ela conseguiu se soltar dos braços
dele e o encarou com uma expressão que dizia algo como “Meu
Deus, o que foi que eu fiz?”.
O que ela disse em seguida não poderia ter deixado Daniel
mais confuso:
— Desculpa! Desculpa, eu... Foi um acidente. Não vai
acontecer de novo — ela se justificou, ofegante, com o coração aos
pulos.
— Como é que é? — perguntou Daniel. Ele não sabia mais o
que pensar. Por que ela estava pedindo desculpas?
— Olha, esquece. Acho que eu me empolguei... Por causa do
jogo, sabe? Isso foi realmente divertido.Sério, nem me lembro da
última vez em que me diverti tanto. De verdade — Letícia
pronunciou essas palavras rapidamente, parecendo desconcertada.
Daniel continuava confuso. Por um momento, ele tinha
considerado a hipótese de que ela gostava dele. Por que ela tinha
pedido desculpas e por que estava agindo como se nada de muito
importante tivesse acontecido? Daniel simplesmente odiou ouvir
Letícia dizer que aquele beijo tinha sido um “acidente”. Ele respirou
fundo e decidiu pensar nisso mais tarde, com calma.
— Vamos pra casa? — pediu Letícia. — Eu realmente preciso
tirar toda essa tinta de mim.
— Vamos nessa — disse Daniel, em um tom tranquilo que não
era muito condizente com a bagunça que se fazia em sua cabeça.
***

— Eu não devia ter feito isso. Por que eu fiz isso? Qual é o meu
problema? Eu não devia ter feito isso! — Letícia sussurrou,
enterrando a cabeça no travesseiro.
Eram oito horas da noite e Letícia estava trancada no quarto
repetindo essa frase sem parar.
A garota se olhou no espelho mais uma vez. Procurou qualquer
resquício de tinta que talvez não tivesse saído de seu corpo, apesar
de ter tomado um banho de uma hora de duração. Não encontrou
nada. Estava perfeitamente limpa.
Ela estava nervosa com a situação entre ela e Daniel e tentava
aliviar aquela tensão se certificando de que tudo estava em ordem
naquele quarto. Aparentemente, a cabeça dela era a única coisa
desorganizada.
Letícia só conseguia pensar que estava estragando tudo. Em
pouco tempo de convivência, ela tinha começado a gostar de ficar
perto dele, tinha descoberto nele um monte de qualidades. Quer
dizer, algumas qualidades. De qualquer forma, ela tinha aprendido a
gostar dele.
O problema é que ela sentia que estava começando a gostar
dele de um jeito diferente. Estava pensando nele mais do que
deveria. E, para piorar as coisas, eles tinham se beijado no meio de
um campo de paintball e ela simplesmente não tinha feito nada para
impedir. Na verdade, ela não queria impedir. Isso a assustava.
Letícia sabia que se apaixonar por Daniel seria uma grande
idiotice. Era um erro que ela decidiu que não poderia cometer de
jeito nenhum.
Daniel estava sentado no sofá da sala de estar, jogando
videogame. Naquele dia, ele estava estourando com muito mais
raiva as cabeças dos zumbis que apareciam na tela. Descontar as
frustrações neles parecia uma boa opção, no momento.
Aquela garota ia acabar deixando-o louco, ele pensou. Por que
raios ela parecia gostar dele de verdade em um momento, e no
momento seguinte ela simplesmente mudava de assunto e dizia
para ele esquecer tudo? Como ele podia esquecer? Letícia era
muito esquisita, ele concluiu, enquanto matava sete zumbis em
sequência. E ele odiava o fato de estar apaixonado por uma garota
tão complicada como ela.
— Droga, droga, droga — sussurou.
Depois de pensar mais sobre o assunto, ele começou a achar
que, talvez, fosse até compreensível aquele comportamento dela.
Quer dizer, Daniel se lembrava perfeitamente do quanto tinha sido
idiota com ela no passado. De todas as vezes que a provocou sem
motivo, das vezes em que destruíra os trabalhos de escola dela
antes que ela pudesse entregá-los, só pelo prazer de vê-la ficar sem
nota. Uma das atividades favoritas de Daniel na época do colégio
era provocar Letícia, e ele nunca tinha entendido muito bem o
porquê.
Claro, era compreensível que Letícia ficasse desconfiada dele,
concluiu o rapaz. Ele também ficaria se estivesse no lugar dela.
Finalmente, Daniel entendeu que precisava mostrar para a garota
que agora ele era alguém em que se podia confiar. Tinha que provar
que estava disposto a fazer o que fosse preciso por ela. Daniel ficou
ainda mais determinado em se redimir, em compensar Letícia pelas
coisas ruins que tinha feito. Ele ia pagar aquela dívida. Só não sabia
como, ainda, mas disse a si mesmo que um dia conseguiria fazer
algo de realmente importante por ela. Enquanto isso, ele iria esperar
e ser paciente. Cedo ou tarde, aquele momento chegaria.
— Ei, você quer refrigerante? — a voz de Letícia soou, vindo da
cozinha.
Daniel respondeu que sim, e ela trouxe uma latinha para ele.
Letícia se sentou no sofá e ficou observando aquele jogo que
parecia completamente sem sentido.
— Sério, eu não entendo como você consegue se divertir com
um jogo tão bobo — ela comentou.
— Não é um jogo bobo, tá legal? Isso aqui exige muita
estratégia e uma mente rápida e inteligente, além de anos de prática
— respondeu Daniel, usando seu tom de superioridade bastante
característico.
— Ah, claro — retrucou Letícia. — Agora me dá licença que eu
vou ali fazer algo útil. Imediatamente, ele pausou o jogo e olhou
para Letícia.
— Ei. Você se esqueceu de que hoje sou eu quem decide o que
você vai fazer?
Ela revirou os olhos. Tinha mesmo se esquecido, por um
momento.
— Letícia, hoje você será apresentada à magia e diversão do
mundo dos games. É claro que você nunca vai chegar ao meu nível,
mas todo mundo tem que começar, um dia.
— Achei que você já estivesse cansado de perder, por hoje.
Passa esse controle pra cá — respondeu Letícia, rindo.
Capítulo 28

— Bom dia! — berrou Letícia, abrindo bruscamente a porta do


quarto de Daniel e sentindo um prazer enorme em gritar no ouvido
dele às seis horas da manhã em pleno sábado.
Daniel gemeu e cobriu a cabeça com o travesseiro. Ele estava
com sono demais para pensar em qualquer coisa, mas sabia que
nada no mundo o faria levantar da cama naquele horário.
— Hora de acordar, Dani! O sol está brilhando, um belo dia te
espera e se você não se levantar em menos de um minuto serei
obrigada a jogar água fria na sua cara — anunciou Letícia, com um
grande sorriso e um tom de voz ironicamente simpático.
Entrar no quarto de Daniel era uma coisa que ela evitava fazer.
Letícia não gostava nem de imaginar que tipo de bactéria estava se
procriando no meio daquela baderna assustadora, mas naquela
manhã ela criou coragem para entrar lá e se certificar de que Daniel
se levantaria da cama.
Ela abriu as cortinas do quarto — o que não resolveu muita
coisa, já que o sol não estava tão forte àquela hora — e arrancou
bruscamente o travesseiro da cabeça dele.
— Vamos logo com isso, Daniel. Hoje o nosso dia vai ser cheio
e não podemos perder tempo.
— Pelo amor de Deus… Estamos no meio da noite, me acorde
quando for de manhã — ele resmungou, ainda de olhos fechados.
— Pela primeira vez na vida, você não vai dormir até meio-dia
no sábado. Anda logo e levanta daí, antes que eu perca a paciência.
— Nada no mundo vai me tirar da cama a essa hora —
murmurou Daniel, voltando a fechar os olhos.
— Ok, então. Diga isso para o balde cheio de água que eu vou
despejar em você — disse Letícia alegremente, enquanto ia saindo
do quarto.
— Olha, eu já levantei, tá vendo? Já estou superacordado —
falou Daniel, jogando as cobertas de lado e se sentando na cama.
Letícia riu e saiu do quarto dele.
Enquanto eles tomavam café da manhã, Daniel decidiu
descobrir o que é que Letícia iria obrigá-lo a fazer naquele dia. Ele
não estava com expectativas muito boas.
— Nós vamos sair — ela respondeu, e Daniel respirou aliviado.
— Cara, isso é ótimo. Eu já estava aqui, no maior desânimo,
pensando que você ia me obrigar a limpar a casa ou alguma coisa
desse tipo.
— Mas você vai fazer isso — disse a garota. — Quando
chegarmos, mais tarde. Mas não se preocupe, tenho ótimos planos
pra você.
— Dá pra imaginar — resmungou Daniel.

***

— Não, sem chance. Eu não vou andar de ônibus. Pra que


andar de ônibus se eu tenho um ótimo carro com ar condicionado e
bancos confortáveis?
— Daniel, sou eu quem decide as coisas hoje. E, acredite, você
não ia gostar de levar o seu carro para o lugar onde a gente está
indo.
— Sério, você está me enlouquecendo. Fala logo pra onde a
gente vai! E por que a gente não pode ir de carro?
Letícia olhou para Daniel como quem olha para uma criança de
cinco anos que não sabe muita coisa da vida.
— Acho que já está na hora de você conhecer um pouco da
realidade do transporte público nesse país. Tudo bem ser filhinho de
papai, mas nem por isso você precisa ser um completo alienado,
certo? É hora de sair da sua bolha.
— Prefiro ficar dentro da “minha bolha”, desde que ela tenha ar
condicionado e bancos confortáveis — Daniel retrucou.
Letícia riu. Ela sabia que talvez estivesse sendo chata com ele,
mas ela achava bizarro encontrar um marmanjo de dezenove anos
que provavelmente nunca pegou um ônibus na vida. Ele estava
muito acostumado àquela vida mansa e confortável, mas, pelo
menos naquele dia, ele iria ter experiências bem diferentes.
Daniel entrou com Letícia em um ônibus que ia para um lugar
do qual ele nunca tinha ouvido falar.
— Falando sério… Na propaganda do governo, o transporte
público não parece tão ruim — Daniel comentou, torcendo o nariz.
Letícia riu e deu um tapinha nas costas dele.
— Bem-vindo à realidade.
O ônibus se distanciou muito dos lugares que Daniel conhecia.
Ele não fazia ideia de onde estava, nem de onde iria parar. Além
disso, Letícia estava com uma expressão muito suspeita.
— E então… Você está planejando me levar para o histórico
lugar onde Judas perdeu as meias? — perguntou Daniel. — Porque
as botas ficaram há uns cinco quilômetros atrás.
— Isso era pra ser uma piada?
— Ah, Letícia, pára de ser chata. Só quis dizer que nós já
chegamos ao fim do mundo. Não tem mais pra onde ir.
A paisagem do lado de fora não era nada convidativa. Isso se
confirmou ainda mais quando eles desceram do ônibus e Daniel
pôde ver o quanto aquele lugar era miseravelmente pobre. A maioria
das ruas por ali não eram pavimentadas. As casas eram minúsculas
e feias, e os poucos postes de iluminação existentes estavam com
as lâmpadas quebradas. Aquele lugar devia ser aterrorizante à
noite, pensou o rapaz.
— O que é que a gente está fazendo aqui, hein? E essa favela
brotou de onde? Há uns trinta minutos, nós estávamos em uma
cidade limpinha e organizada. Não achei que esse tipo de coisa
existisse no Distrito Federal.
— É, mas existe. Existe em qualquer lugar — suspirou Letícia.
Eles se aproximaram de um portão meio enferrujado.
— Daniel, hoje você finalmente vai entender o que eu faço aos
sábados — anunciou Letícia, animadamente.
Ela e Daniel passaram pelo portão e entraram em uma
construção pequena pintada de azul claro.Passaram pela recepção,
cumprimentando a senhora simpática que estava lá, e que pareceu
muito feliz em ver Letícia. Seguiram por um corredor que tinha
várias folhas de papel grudadas na parede, com desenhos infantis e
coloridos. A essa altura, Daniel já tinha uma ideia bem clara do que
o aguardava, especialmente por causa daquele barulho
ensurdecedor. Letícia olhou para Daniel com uma expressão de
quem estava se divertindo muito e abriu uma das portas.
Na sala havia uma turma de crianças pequenas totalmente
descontroladas.Elas corriam de um lado para o outro,berrando e
tropeçando nos brinquedos espalhados pelo chão, esbarrando umas
nas outras. Uma bola de plástico arremessada por um garotinho
quase atingiu Daniel. Aqueles seres escandalosos e hiperativos não
eram crianças, pensou Daniel. Eram minimonstros.
— Anjinhos, hoje eu trouxe uma surpresa! — anunciou Letícia,
sorridente. — Esse aqui é o tio Daniel, e ele está muito animado
para se divertir com vocês!
Capítulo 29

Daniel olhou para Letícia, aterrorizado.


— Isso deve ser um pesadelo — ele sussurrou, olhando para
aquele pequeno cômodo lotado de crianças descontroladas.
A garota apenas riu e deu um tapinha nas costas dele.
— Pelo amor de Deus, Letícia. Você sabe que eu não me dou
bem com crianças.
— Mas você nunca tem contato com nenhuma criança. Como é
que você sabe disso? — perguntou Letícia calmamente.
— Eu convivo com crianças sim, tá? A sua irmãzinha, por
exemplo. E ela me odeia.
— É. A Malu te odeia, com certeza. Mas, enfim, isso é relativo.
A Gabi também te odeia e ela nem é mais criança — disse Letícia,
sorrindo discretamente enquanto se lembrava de que suas irmãs,
definitivamente, não iam com a cara dele.
— Ei, moleque. Larga a minha perna! — Daniel reclamou para o
menino que estava agarrando o tornozelo dele. Foi inútil.
— Tia! — chamou uma menininha, puxando a camiseta de
Letícia. — Ele é seu namorado? Vocês vão se casar?
Letícia riu e pegou a garotinha no colo por alguns segundos.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Daniel interviu.
— Ah, com certeza. Ela não vive sem mim. Não é, Letícia?
A garota revirou os olhos, rindo da total falta de modéstia que
era uma peculiaridade inseparável de Daniel.
— Tá bom, chega de papo furado. O Márcio está tentando
escalar o armário de novo, a Vitória e a Maria estão lutando MMA e
o João está chupando giz de cera. Você tem trabalho a fazer,
Daniel. Vai na fé e assuma o controle da situação.
Um caminhãozinho de plástico voou pela sala e acertou as
costas de Daniel em cheio.
— Ei! Quem foi a peste que jogou isso aqui? — gritou Daniel,
enquanto um grupinho de meninos gargalhava alto. — Ótimo,
continuem rindo. Eu quero ver se vocês vão achar engraçado
quando eu…
Letícia lançou um olhar fuzilador para Daniel.
— Criancinha fofa e adorável, faça o favor de descer da mesa
— o rapaz usou um falso tom carinhoso para falar com a criança
que estava perto dele.
— Melhor assim — disse Letícia. — Manter a calma é
essencial.
— Eu não poderia estar mais calmo — ralhou Daniel,
ironicamente.
Letícia riu e olhou em volta. Teve que procurar por alguns
segundos até conseguir encontrar Laurinha, que estava isolada em
um canto da sala. Já fazia algum tempo que aquela criança não
estava nada bem, e, apesar das insistências e tentativas, Letícia
ainda não tinha conseguido descobrir o motivo. De qualquer forma,
tentaria mais uma vez.
— Oi, princesa — disse Letícia, sentando-se ao lado da
menina, que estava encolhida no canto.
— Oi — Laura respondeu, olhando fixamente para a boneca
que estava segurando.
— Você não quer ir brincar com os outros? — perguntou Letícia.
A menina sacudiu a cabeça negativamente e nem sequer olhou
para Letícia, que há semanas já estava angustiada com o
comportamento estranho daquela criança. Havia algo de errado com
ela. Letícia tinha plena certeza disso. Só precisava descobrir o que
era.
— Tem alguma novidade pra contar, Laurinha?
— Não.
Letícia suspirou. Precisava pegar umas aulas de psicologia
infantil o quanto antes. Ela não tinha muita noção de como lidar com
aquela criança que se recusava a falar sobre o que quer que a
estivesse incomodando. Já tinha tentado conversar com ela muitas
e muitas vezes, mas nunca conseguia bons resultados.
— Você está gostando de morar com o seu pai? — Letícia fez
essa pergunta sabendo que, obviamente, a pequena não estava
gostando de morar com o pai.
Laura era orfã de mãe e sempre tinha morado com avó. De um
dia pro outro, o pai da menina decidiu que queria ficar com
ela.Letícia achava essa história extremamente suspeita.
A criança não respondeu nada. Ficou mexendo nos cachinhos
de seus cabelos escuros, em silêncio.
— Seu pai é legal com você, Laurinha? Ele te trata bem?
Pela primeira vez em muito tempo, Laura olhou nos olhos de
Letícia.
— Você pode me contar qualquer coisa, tá bem? — Letícia a
incentivou.
— Ele é legal comigo. Me deu uma bicicleta nova.
— Jura? Que legal, Laura! Ele te leva pra andar de bicicleta?
— Não. Tem essa moça, sabe? Ela me leva pra andar de
bicicleta todo dia.
— Quem é ela? — perguntou Letícia, confusa.
A menina ficou em silêncio durante um longo tempo, até
finalmente falar:
— Ela diz que é minha irmã. Mas não é não.
Caramba, pensou Letícia. A cada segundo ficava mais difícil
desvendar o que estava acontecendo.
— Como assim, Laura?
— Meu pai diz que ela é filha dele, mas que não é filha da
minha mãe.
“Uma meia irmã?”, Letícia se perguntou. Ela não fazia a menor
ideia de que Laura tinha uma meia irmã.
— Essa… Essa moça. Vocês se divertem juntas? Ela te trata
bem? — Letícia quis saber.
— Ela é um pouco chata. Meu pai disse que ela é chata porque
é uma aborrecente.
— Vocês passam muito tempo juntas?
— É. De noite, quando a gente vai ajudar o meu pai a… —
Laura parou de falar e comprimiu os lábios.
— Ei, você pode falar comigo. Pode confiar em mim.
— O papai não gosta que eu fique falando da nossa vida pros
outros.
Droga, pensou Letícia. Ela estava chegando perto. Sabia que a
Laurinha não voltaria a falar sobre aquilo, pelo menos não naquele
momento.
— Eu sou sua amiga, Laura. Você pode conversar comigo
quando quiser, OK? E se você estiver precisando de ajuda, pode
contar comigo. Tudo bem?
— Ahã... — respondeu Laura, sorrindo timidamente para
Letícia, que afagou os cabelos dela.
Letícia ficou pensando que precisava descobrir o que estava
acontecendo o quanto antes. Decidiu que, a partir daquele dia, ela ia
investigar aquele caso com total dedicação. Ela precisava descobrir
se havia realmente algo ruim acontecendo na casa da garotinha. Ia
começar investigando o pai, que era, sem dúvida, o mais suspeito.
A garota olhou para as crianças agitadas correndo pela sala e
por um segundo teve pena de Daniel, que estava obviamente
falhando em manter as coisas sob controle.
— Quantas vezes eu já disse isso? Giz de cera não é
comestível, mas que droga — ralhou Daniel para o garotinho que
saboreava um giz de cera azul. O menino o ignorou completamente.
Letícia pensou em se levantar e fazer alguma coisa para ajudar.
Ela definitivamente tinha mais moral com as crianças que Daniel.
Mas a cada segundo, a cena de Daniel tentando lidar com a situação
ficava mais engraçada. Ela decidiu ficar observando para ver no que
aquilo daria.
No meio da bagunça generalizada, Daniel pôde ver o sorrisinho
de diversão que Letícia não conseguia esconder.
— Garota, eu sempre desconfiei que por trás dessa sua carinha
de anjo havia um ser maligno e vingativo. Olha só, eu estava certo
— disse Daniel, estreitando os olhos para ela.
Letícia riu e se aproximou dele.
— Até o ser mais maligno teria dó de você por sua completa
falta de jeito. Não se preocupe, eu vou te ajudar. Quer dizer…
Depois que você salvar aquele pobre brinquedo — disse a garota,
apontando para um grupinho de meninos que estava maltratando
seriamente um instrumento musical infantil.
— Credo.Bando de vândalos em tamanho miniatura. Que horror
— murmurou Daniel.
— Ei, galera. Algo me diz que vocês não fazem a menor ideia
de como brincar com isso — Daniel disse aos meninos.
— Você é que não sabe — retrucou um dos garotinhos.
— Sei, sim. Quer ver? — respondeu Daniel, arrancando o
brinquedo deles.
Daniel encarou o objeto por um segundo. Era um violão de
brinquedo que parecia ter sido usado como capacho, o que
provavelmente acontecera. Mas suas seis cordinhas de nylon, por
algum milagre, pareciam intactas. Daniel decidiu testar o
instrumento e ver que tipo de som ia sair dali.
— Olha — comentou uma das crianças. — Ele sabe tocar a
música do Pica-Pau!
— Ei, tio! Você também sabe tocar a música do Ben 10?
Letícia mal conseguiu acreditar no que aconteceu naquela sala,
dali em diante. As crianças ficaram estranhamente comportadas,
olhando e ouvindo Daniel tocar aquele mini-instrumento. Algumas
estavam sentadas, com toda a atenção focada nele. Outras
decidiram desenhar enquanto ouviam a música. Os minimonstros se
transformaram, subitamente, em criancinhas fofas e tranquilas.
Daniel olhou para a expressão perplexa de Letícia e sorriu,
vitorioso.
A garota estava encantada com aquela cena.Ficou observando
Daniel em silêncio, enquanto um pensamento passava por sua
cabeça: “Droga, eu não posso estar gostando desse menino. Não
desse jeito.”
Ela sabia que estava se metendo em uma situação nada
agradável. Para Letícia, o grande problema é que parecia ser tarde
demais para evitar o que estava por vir.
Capítulo 30

O relógio marcava quase meia-noite e Daniel ainda estava jogado


no sofá, cansado demais para se mover.
— Você teve um dia cheio hoje, hein? — disse Letícia, sorrindo.
— Ah, não, imagina. Eu só tive que controlar uma manada de
crianças descontroladas e “aprender a fazer serviços domésticos
básicos”. Graças a você, perdi a minha tarde e uma boa parte da
minha noite arrumando esse apartamento sozinho. Valeu mesmo —
resmungou Daniel.
— Pára de choramingar. Você devia estar me agradecendo.
Finalmente aprendeu a trocar uma lâmpada. Pelo menos por um
dia, eu te presenteei com a ótima oportunidade de não ser um
vagabundo — ela respondeu.
— Ah, é mesmo, eu me esqueci de te agradecer. Onde é que eu
estou com a cabeça, hein? — ele ironizou.
Letícia riu e se sentou perto dele.
— Mas, olha, eu preciso reconhecer que você até que não foi
tão mal, no fim das contas. Há esperança pra você, relaxe.
Daniel se mexeu minimamente no sofá, tentando conter o mau
humor que estava sentindo naquele momento.
— Achei que você não fosse dar conta do recado, mas você se
virou muito bem com as crianças. Acho que elas gostaram de você.
— É claro que elas gostaram de mim. Todo mundo gosta de
mim.
— Metido — disse Letícia, jogando uma almofada na cabeça
dele.
— Letícia, eu vi você conversando com uma menina… Ela era
a…
— A Laura! Pois é, eu já tinha te falado dela. Eu fui tentar
conversar com ela hoje, e fiquei ainda mais intrigada. Eu sei que tem
alguma coisa errada com a Laurinha. E eu vou descobrir o que é —
disse Letícia, com determinação.
— Mas como você vai fazer isso?
— Sei lá, estou pensando em fazer uma visita à casa dela,
sabe? Eu quero conhecer o pai da Laura, porque eu nunca o vi
antes e, sei lá, talvez ele tenha alguma coisa a ver com tudo isso.
Amanhã, depois da aula, eu vou até lá tentar descobrir o que está
rolando.
— Eu vou com você — disse Daniel, imediatamente.
Letícia o encarou com uma expressão confusa.
— E por que você ia querer ir comigo?
— Bem, é que... Aquele lugar não parece ser muito seguro à
noite. Eu te levo de carro.
— Não precisa, Daniel. Eu me viro muito bem sozinha,
obrigada.
— Eu não perguntei se precisava. Eu disse que ia te levar até lá
e é isso o que eu vou fazer — ele afirmou categoricamente.
Letícia deu de ombros. Garoto estranho, aquele.

***

— Meu Deus, nós vamos chegar na Coréia antes de chegar


nesse lugar — resmungou Daniel, enquanto ultrapassava
imprudentemente o veículo que estava na frente dele.
Sentada no banco do passageiro ao lado dele, Letícia tentou
manter a calma.
— Eu devia ter feito o meu testamento e escrito uma carta de
despedida pros meus familiares antes de entrar nesse carro com
você — disse ela, olhando nervosamente o velocímetro do carro. —
O limite de velocidade é de oitenta quilômetros por hora, Daniel!
Sério, é tão difícil assim dirigir como se você não fosse suicida?
— Relaxa, Letícia. Tente ser um pouco menos neurótica, pra
variar.
Ele olhou para ela com o canto do olho e viu o quanto ela
estava nervosa. Pisou no freio e seguiu pela rodovia tentando
manter o carro dentro da velocidade permitida. Ela finalmente se
tranquilizou um pouco.
Daniel se perguntou por que Letícia era tão rígida com esse
lance de seguir estritamente as regras de trânsito. Ele não podia
ultrapassar cinco quilômetros do limite e ela já ficava agoniada.
Bem, ela era toda certinha. Talvez fosse por isso. Ou talvez tivesse
alguma coisa a ver com o que tinha acontecido com o pai dela.
Foi só pensar nisso e Daniel foi invadido por um monte de
lembranças antigas. Ele se lembrou da época em que o pai dela
morreu, embora não se lembrasse muito bem dele. Só sabia que era
um homem bem alto, que usava óculos e que tinha uma risada
engraçada. Daniel não sabia muito bem como o acidente tinha
acontecido, mas tinha quase certeza de que tinha a ver com
excesso de velocidade ou algo do tipo. Quando ele morreu, a irmã
mais nova de Letícia nem tinha nascido ainda. A irmã do meio, Gabi,
tinha uns cinco anos e Letícia tinha dez.
Daniel se recordava perfeitamente do enterro do pai de Letícia.
A mãe dela estava grávida, com uma barriga enorme. Estava
abalada demais para dar o apoio que Letícia e Gabi precisavam
naquele momento. Foi Letícia quem teve que segurar as pontas
sozinha. Daniel não conseguia esquecer aquela imagem: Letícia
fingindo que estava tudo bem, tentando sorrir para a irmã mais
nova, que não estava reagindo nada bem àquela situação. Daniel
podia ver o quanto Letícia estava mal. Podia ver que ela estava
segurando o choro, para tentar manter as coisas sob controle, para
tentar confortar Gabi.
Ele nunca poderia se esquecer do momento em que a viu
chorar pela primeira — e única — vez. O caixão foi colocado na
vala. Quando a terra começou a cobri-lo, Daniel viu algumas
lágrimas silenciosas escorrerem pelo rosto de Letícia. Gabi estava
agarrada à perna dela, sem entender direito o que estava
acontecendo. Letícia secou as lágrimas e respirou fundo, se
esforçando para conter o choro. Daniel olhava para a garota e não
conseguia entender. Ela só tinha dez anos. Por que ela precisava
agir como adulta? Por que ela estava assumindo a obrigação de
cuidar de outra pessoa? Não era justo. Ela estava sendo forçada a
crescer mais rápido que qualquer outra criança.
Depois daquele episódio, Daniel nunca mais a viu chorar.
Nunca, mesmo quando haviam motivos de sobra para isso. Ela
nunca mais derramou uma lágrima sequer. Não na frente dele, pelo
menos.
— Estamos chegando — comentou Letícia, olhando o ambiente
externo pelo vidro do carro. O relógio ainda não tinha marcado sete
horas da noite, mas o céu já estava escuro.Escuro o suficiente para
que aquele local pobre parecesse ligeiramente intimidante.
— Letícia… — Daniel hesitou um pouco antes de perguntar. —
Por que você nunca chora?
A pergunta não poderia soar mais aleatória e estranha. Letícia
franziu as sobrancelhas.
— Por que você está perguntando isso agora? — ela quis
saber.
— Sei lá, é só que… A gente se conhece há muito tempo, e eu
nunca te vejo chorar. Nunca mesmo. Por quê?
Letícia pensou um pouco antes de responder. Percebeu que,
realmente, não era do tipo que chora com facilidade.
— Sabe, acho que pra mim, chorar não é algo que se faça por
qualquer motivo. Eu só derramo lágrimas pelo que vale a pena.
Letícia mudou de assunto rapidamente. Ela ensinou a Daniel
como chegar ao lugar que ela queria, até que o carro parou em
frente a uma casa pequena, sem portão.
— Bem, é aqui a casa da Laurinha — anunciou Letícia,
conferindo o endereço. — Eu não sei quanto tempo isso vai
demorar, então você pode voltar para casa, se quiser. A gente se
encontra no apartamento.
— A gente se encontra no apartamento... — repetiu Daniel,
irritado. — Eu estava mesmo planejando te deixar sozinha nesse fim
de mundo, à noite, pra você conhecer um homem que você mesma
disse que é muito suspeito. Que cara legal eu sou.
Letícia encarou Daniel por alguns instantes, sem saber o que
dizer.
— Eu não vou te deixar sozinha aqui. Vou te esperar no carro, a
menos que você prefira que eu entre lá com você — disse Daniel.
— Bem... Obrigada. Não precisa ir comigo. Vou tentar ser
rápida, você pode ficar aqui ouvindo música. Mas tranca a porta do
carro, tá? Esse não é, exatamente, o lugar mais seguro da cidade —
respondeu Letícia, antes de sair do carro.
A garota caminhou até a casa e bateu na porta, esperando ser
atendida.
Capítulo 31

Depois de esperar por longos segundos, Letícia finalmente viu a


porta se abrir. Para a surpresa dela, quem abriu foi a própria
Laurinha.
— Tia Letícia! Você veio na minha casa? — exclamou a criança,
sorrindo animadamente. Letícia sorriu junto com ela. Há muito
tempo não via Laurinha se animar daquele jeito.
— É, eu vim fazer uma visita pra você. Seu pai está aí? —
perguntou Letícia.
— Não, ele saiu — respondeu Laura, tranquila. — Pode entrar,
tia.
A garota entrou na casa e Laurinha fechou a porta rapidamente.
Letícia olhou em volta. Não havia ninguém ali, naquela pequena sala
de estar.
— Laura, você está sozinha em casa? — perguntou Letícia, um
tanto preocupada.
— É, estou. Meu pai e a Marcela saíram.
Meu Deus, pensou Letícia. Que tipo de gente deixaria uma
criança tão pequena sozinha em casa?
— Quem é Marcela? — a garota quis saber.
— É aquela moça. Que o meu pai diz que é minha irmã.
— Ah. Quando eles chegam? Por que eles te deixaram aqui?
— Acho que eles vão demorar um pouquinho. Dá tempo de a
gente brincar um pouco! Mas você tem que ir embora antes que eles
cheguem, porque o meu pai… Acho que ele não gosta muito de
visita. E eu disse que não ia abrir a porta pra ninguém, mas abri pra
você, então talvez ele fique meio… Chateado.
Letícia estava tonta com aquela situação.
— Laura. Eu preciso conversar com o seu pai.
— Mas ele não gosta de conversar, tia.
Definitivamente, havia algo muito estranho acontecendo. Letícia
podia ver nos olhos de Laurinha. Aquela família estava escondendo
alguma coisa. Talvez fosse algo sério, talvez Laura estivesse em
alguma situação perigosa. Letícia sentia que era sua obrigação
descobrir o que havia de errado ali, e ajudar de algum jeito.
— Laurinha, eu preciso que você me diga… — Letícia começou
a falar, mas foi interrompida quando a menina pegou a mão dela
bruscamente e a arrastou até um dos cômodos da casa.
— Olha, tia, esse é o meu quarto! — Laurinha apresentou o
pequeno ambiente, orgulhosa, e pegou uma boneca loira que estava
em cima de sua cama. — Eu ganhei essa boneca ontem, meu pai
me deu de presente porque eu ajudei ele a…
Laura parou de falar imediatamente, como se tivesse se
lembrado de algo no meio da frase. Letícia franziu as sobrancelhas,
incomodada.
— Você estava ajudando seu pai a fazer o quê? Escuta, não
precisa ficar com medo. Pode me contar o que está acontecendo —
disse Letícia, suavemente.
Laura olhou para ela, longamente, estranhamente séria e
pensativa, para uma criança.
— O meu pai não vai gostar disso — disse a menina. — Ele
não gosta que eu fale com as pessoas sobre ele. Mas acho que não
tem problema se eu falar só pra você, não é?
Letícia se abaixou até ficar na exata altura de Laurinha e a
olhou nos olhos.
— Não se preocupe. Eu te protejo, mas pra isso eu preciso
saber o que está acontecendo. Pode falar.
— O papai precisa da minha ajuda com o trabalho dele. Eu e a
Marcela, nós duas. Toda a noite, a gente vai pro lugar que ele
manda. Sabe aquela bicicleta rosa que ele me deu? Então, eu saio
com a minha bicicleta e levo a minha mochila. A Marcela sempre vai
comigo. Daí, a gente…
O ruído da porta se abrindo interrompeu Laurinha. Ela encarou
Letícia com os olhos arregalados e sussurrou:
— Ele chegou. Ele não vai gostar disso.
Droga, pensou Letícia. Estava tão perto… Ele tinha mesmo que
chegar justamente naquele momento?
Quando Letícia e Laurinha ficaram de cara com o homem na
sala de estar, um clima estranho se instalou no lugar. Em uma fração
de segundo, Letícia o analisou dos pés à cabeça, e ele fez o mesmo
com ela.
O pai de Laurinha era um homem alto, com a barba por fazer.
Alguns traços do rosto dele lembravam a fisionomia da filha. Não
devia ter mais de trinta e cinco anos e era definitivamente um fã de
anéis. Usava um anel diferente em cada dedo.
— Quem é você? — ele perguntou para Letícia, olhando-a
como se ela fosse um alienígena. — Laura, o que eu disse sobre
não abrir a porta?
— Eu trabalho na creche da Laura. Meu nome é Letícia.
O homem estreitou os olhos e a encarou em silêncio por alguns
segundos. Foi só aí que Letícia notou a garota que estava ao lado
dele. Era uma adolescente morena e muito magra, que estava
usando uma saia jeans curtíssima. Ela mastigava um chiclete
enquanto olhava para Letícia com curiosidade.
— Acho que eu já te vi uma vez. Quando fui buscar a Laura na
creche — disse a adolescente.
Letícia não se lembrava de tê-la visto antes. Quem costumava
buscar a Laurinha era a avó dela. Aquela garota devia ser Marcela, a
meia-irmã de Laura.
— É reclamação? — perguntou o homem, com um tom de voz
rude. — Minha filha aprontou alguma coisa?
— Não! — exclamou Letícia. — Não, é claro que não. Sua filha
é uma ótima menina. Não dá trabalho nenhum. Ela é bem-educada e
inteligente, gosta de ajudar os outros, e…
— Por que é que você está aqui, então? — perguntou o
homem.
A desconfiança transparecia na voz e nos olhos dele.Letícia
precisava desesperadamente falar alguma coisa que fizesse
sentido. Mas estava começando a ficar nervosa, por causa daquele
olhar intimidador com o qual o pai de Laura a olhava.
— Bem, eu vim fazer uma visita que é parte do… Ahm…
Programa de acompanhamento familiar da creche. Nada é mais
importante que a integração entre a família e a instituição que...
— Agradeço a preocupação, mas a nossa família não precisa
de acompanhamento nenhum — interrompeu o homem. — A não
ser que… Alguma coisa tenha acontecido. Há algo de errado
acontecendo, Letícia?
A voz dele era tão grave e ameaçadora que ela teve calafrios.
Teve vontade de sair dali imediatamente, mas olhou para Laurinha e
decidiu que precisava encarar aquela situação.
— Me diga você — disse Letícia, em um tom de voz que soou
firme e mais desafiador do que ela gostaria. — Há algo de errado?
O homem sorriu, mas aquele claramente não era um sorriso
amigável.
— Olha só, eu nem me apresentei. Que cabeça, a minha. Meu
nome é Edgar Lobo. O pessoal costuma me chamar só pelo
sobrenome.
É um nome bastante apropriado, pensou Letícia.
— Por que você não senta? A Marcela vai fazer um cafezinho.
Você não está com pressa, está?
— Na verdade, eu estou sim. Eu só vim pra conversar
rapidamente sobre...
— Você quer conversar, maravilha. Ótimo, vamos conversar.
Senta aí — Edgar apontou para o sofá e encarou Letícia fixamente.
— Mas, bem, eu posso voltar outra hora. Tá tarde, né? — falou
Letícia, começando a ceder à vozinha que gritava dentro da cabeça
dela, ordenando que ela desse o fora dali.
— Não, não, não, não — murmurou o homem, colocando-se
entre Letícia e a porta. — Você veio pra conversar. É isso o que nós
vamos fazer.
Edgar segurou o braço dela e praticamente a obrigou a se
sentar no sofá.
Naquela altura da situação, Letícia estava prestes a surtar.
Deve ser a minha imaginação, a garota pensou. Não era possível.
Talvez ela estivesse interpretando as coisas errado. Ela tinha
mesmo motivos racionais para ficar com tanto medo daquele
homem? Também, com aquela cara de louco... A expressão que
estava no rosto de Edgar passava a ideia de que ele era o tipo de
pessoa que esconde esqueletos no armário.
— Meninas! — disse o homem, olhando para as filhas. —
Preparem um lanchinho pra essa mocinha, aqui.
— Mas eu não... — murmurou Letícia, antes de ser
bruscamente interrompida.
— Eu insisto — ele falou firmemente, sorrindo.
Então, Letícia se viu sozinha na sala de estar com aquele
homem. Ele se sentou ao lado da garota e continuou a encará-la. O
pior de tudo era que Letícia não conseguia abandonar a impressão
de que o homem estava avaliando qual seria a melhor maneira de
arrancar o fígado dela.

***

Estava abafado, ali dentro do carro. Daniel mudou a estação do


rádio mais uma vez, impaciente. Por que Letícia estava demorando
tanto a voltar? Ele olhou para o relógio e viu que, na verdade, ela
não estava demorando, tinha saído do carro há uns cinco minutos
apenas. Cinco minutos. Se bem que dava pra acontecer muita coisa
ruim em cinco minutos. Ele devia ter entrado naquela casa esquisita
com ela. Quer dizer, sabe-se lá o tipo de pessoa que esse pai da
Laurinha podia ser. E pensar que, se dependesse de Letícia, ela ia
parar naquele fim de mundo completamente sozinha. Aquela garota
não tinha o menor juízo. Talvez por isso ele sentisse tanta vontade
de cuidar dela.
Olhou o relógio novamente. Sete minutos tinham se passado
desde que ela entrara naquela casa. Daniel decidiu que já estava na
hora de ele ir até lá ver se estava tudo bem. Claro que seria meio
esquisito interromper a visita de Letícia, mas ele não se importava
muito com isso. Saiu do carro e caminhou em direção à casa.
Capítulo 32

A porta estava destrancada. Daniel a abriu sem hesitação.


Encontrou Letícia sentada no sofá, ao lado de um homem muito
estranho. Ela olhou para Daniel, parecendo aliviada. O homem o
encarou com cara de poucos amigos.
— Ahm… Oi — disse Letícia para Daniel, parecendo um tanto
desconcertada. — Desculpa ter te feito esperar no carro. Melhor a
gente ir nessa, né? Tá meio tarde.
Ela olhou para Lobo e sorriu.
— Obrigada pelo seu tempo. A gente se vê por aí.
Letícia se despediu rapidamente de Laurinha e de Marcela.
Daniel, que estava na porta, nem chegou a entrar na casa. Letícia
saiu e o puxou com ela para fora daquele lugar.
— Aquele era o pai da Laura? O que aconteceu? — perguntou
Daniel, assim que eles entraram no carro.
— Não aconteceu nada. O que é uma droga, porque eu preciso
saber o que ele está escondendo. A Laurinha ia me contar. Ela
estava quase falando quando o pai dela chegou. Sério, Daniel.
Aquele cara é muito estranho.
— Estranho é pouco — concordou Daniel. — Você viu o jeito
que ele me olhou?
— Nossa, essa visita foi estressante. Aquele homem tem um
jeito intimidador, eu fiquei tensa o tempo todo. Foi esquisito.
Simplesmente esquisito. Mas sei lá, talvez eu esteja aumentando as
coisas… Talvez não tenha nada de tão sério acontecendo. Eu só
espero que ele não esteja maltratando as filhas dele. Ainda não
consegui descobrir nada, mas vou ficar de olho. Com certeza, não
vou deixar essa história de lado.
— É, eu sei. Mas nem pense em voltar aqui sozinha, OK?
Aquele cara pode ser um psicopata ou sei lá o quê — disse Daniel.
Letícia concordou com a cabeça e não acrescentou nada. O
carro seguiu pela rodovia e Daniel tentou não pisar muito fundo no
acelerador. Pensou, meio desanimado, que, respeitando o limite
máximo de velocidade, eles levariam uma eternidade para retornar
ao apartamento. A favela onde Laura morava era em outra cidade, e
era tão distante que às vezes Daniel tinha a sensação de estar
viajando.
O carro passava por uma rua longa e sem trânsito, sem postes
de luz ou outros sinais de civilização, além do asfalto. Aquela era
uma longa rodovia. Quando passaram por ela, mais cedo, não
parecia tão deserta. Mas, àquela hora da noite, a estrada se
estendia infinitamente à frente deles, sem nenhum outro carro à
vista.
Um barulho estranho foi emitido pelo carro. Letícia, que estava
quase dormindo no banco do passageiro, olhou atentamente para
Daniel.
— Ouviu isso? — ela perguntou.
Outro barulho ainda mais alto respondeu à pergunta. Daniel
começou a diminuir a velocidade do veículo e o conduziu para o
canto da pista, parando perto do mato alto que cobria os arredores.
— Ah, não — reclamou Daniel. — Qual é, eu comprei esse
carro há pouco tempo. Eu não acredito que ele vai estragar agora.
O rapaz saiu do carro e abriu o capô. Letícia ficou dentro do
carro, observando a expressão desolada dele.
— Más notícias, Letícia. O motor já era. Eu não sei o porquê,
mas pode ter certeza de que alguém vai ser processado.
A garota suspirou. Maravilha, agora eles estavam sozinhos no
meio daquela estrada deserta, com um carro quebrado.
— Vou ligar pro seguro e mandar eles rebocarem o carro. Sério,
alguém vai ter que me pagar uma indenização por isso.
Daniel fez a ligação e avisou para Letícia que o pessoal do
seguro disse que chegaria em, no máximo, três horas.
— Três horas? Sério? — disse Letícia, meio chateada. Três
horas inúteis esperando, naquela estrada escura e deserta. E ela
ainda estava planejando começar a adiantar um trabalho da
faculdade, naquela noite. Mas agora, eles chegariam ao
apartamento bem tarde e ela não teria mais tempo de fazer nada.
Daniel abaixou a tampa do capô, batendo-a com força só pra
descontar a frustração.
— Tudo bem, Daniel — disse Letícia, saindo do carro. — Acho
que eles nem vão demorar tanto pra chegar aqui.
O rapaz se sentou no capô do carro, enquanto choramingava:
— Mas meu carro é tão jovem.
Ele falou como se estivesse lamentando a morte de uma
pessoa, e Letícia não pôde conter uma risada.
Ela se sentou ao lado dele e olhou para o céu.Aquela noite
estava especialmente agradável.Incontáveis estrelas cintilavam no
céu escuro, acompanhadas pela lua cheia. Letícia ficou fascinada
com aquela visão. Há quanto tempo não parava para admirar o céu?
Vivia correndo de um lado para o outro, sem parar para notar as
coisas incríveis que estavam ali, ao alcance dos olhos dela.
Letícia olhou para Daniel e viu que ele a olhava nos olhos. O
coração da garota disparou, e ela respirou fundo. Tinha se esforçado
tanto para esconder aqueles sentimentos absurdos e incômodos
que começaram a aparecer há algum tempo. Mas então, Daniel a
encarava daquele jeito, com aqueles olhos castanhos lindos, e todo
o esforço dela parecia ir por água abaixo. Garoto idiota, ela pensou.
Por que é que ele tinha que fazer aquilo?
Enquanto olhava para Letícia, Daniel só conseguia pensar que
todas as estrelas do céu estavam sendo refletidas no olhar dela.
Também pensava no quanto precisava daquela garota, no quanto a
queria. Chegou à conclusão de que nunca, em toda a sua vida, tinha
desejado tanto alguma coisa. Só queria ficar com ela. E, se a
tivesse, nem que fosse por um segundo, daria um jeito de nunca
mais deixá-la ir. Se ele a beijasse, talvez nunca mais conseguisse
soltá-la.
Ele estava ignorando aqueles sentimentos por tempo demais.
Estava chegando ao limite, e tinha a sensação de que ia explodir, ou
morrer, se não dissesse a ela a verdade. Se não dissesse logo o
quanto precisava dela.
No entanto, o olhar dele, como sempre, acabou recaindo sobre
a pequena cicatriz no braço de Letícia. E as memórias o invadiram,
como acontecia toda a vez em que ele olhava a cicatriz.
Provavelmente, era tarde demais para consertar as coisas idiotas
que fizera no passado.
Letícia viu que Daniel estava olhando de novo para a cicatriz no
braço dela.
— As pessoas vivem me perguntando como eu consegui isso
— ela disse, sorrindo, enquanto passava os dedos pela marca
gravada em sua pele. — Eu gosto de inventar uma história diferente
para cada pessoa que me pergunta. É divertido. Uma vez, quando
uma colega minha me perguntou como eu consegui essa cicatriz, eu
respondi que tinha sido atacada por um jacaré, quando fui visitar o
Acre. Ela não acreditou, é claro. Mas foi engraçado.
O modo como ela falou da cicatriz deixou Daniel atordoado. Era
como se ela mal se lembrasse do que tinha acontecido de verdade.
Pior ainda, era como se ela não se importasse nenhum pouco.
— Por que você nunca me disse nada sobre o que aconteceu
naquele dia, Letícia? — Daniel perguntou, com o coração acelerado.
Tanto tempo evitando tocar naquele assunto, e agora finalmente ele
estava trazendo à tona tudo o que tentou esquecer.
— Que dia? — ela perguntou distraidamente.
— No dia em você se machucou. Na minha casa. Por minha
culpa. Por que você nunca disse nada? — ele perguntou, parecendo
perturbado.
Ela olhou nos olhos dele, surpresa.
— Mas aquilo foi só um acidentezinho bobo! Não tem nada o
que dizer sobre isso. Nós éramos crianças, esse tipo de coisa
acontece. E como pode ter sido sua culpa?
— É claro que foi. Você não se lembra do que aconteceu?
— Eu me lembro de que foi um incidente idiota. Não foi culpa de
ninguém.
Para Daniel e Letícia, o dia do incidente tinha sido marcante.
Sentados no capô do carro, à luz das estrelas e do farol baixo do
automóvel, eles se lembraram mais uma vez.
Capítulo 33

Daniel sabia que jamais poderia se esquecer daquele episódio.


Letícia era uma garotinha de doze anos, que tinha um olhar
inteligente e cabelos longos impecavelmente lisos. Ela era um tanto
pequena, para sua idade. Aparentava ser um pouco mais nova do
que era, e, ainda por cima, estava um ano adiantada, na escola.
Todos os professores a adoravam.Na verdade, todos os adultos, em
geral, pareciam gostar dela. Letícia tinha doze anos, mas às vezes
falava como se fosse bem mais velha.Vivia lendo uns livros enormes
e aparentemente muito chatos, segundo o que Daniel imaginava.
Daniel, por outro lado, era um moleque de treze anos
impertinente e irresponsável.Era bem popular na escola e se divertia
zoando quem quer que aparecesse na frente dele. Integrante da
turma do fundão, era o tipo de aluno do qual os professores
desconfiavam antes mesmo de conhecê-lo.
Letícia e Daniel definitivamente não se davam bem. Letícia
tentava evitar o contato com ele ao máximo, porque sabia que
sempre que estivessem juntos, ele se esforçaria para tirá-la do sério.
O problema é que os pais deles não entendiam isso.
Ironicamente, as duas famílias eram muito amigas. Verônica e
Lúcia, as mães de Daniel e de Letícia, eram inseparáveis. Então,
Letícia era obrigada a ficar visitando a casa de Daniel quase uma
vez por semana.
No dia em que o incidente aconteceu, Letícia e as duas
irmãzinhas menores tinham ido à casa dele, como sempre,
obrigadas pela mãe. Malu, a caçula, ainda era um bebê e ficava
grudada na mãe. Enquanto os adultos ficavam conversando e
tomando café, Letícia e a Gabriela tinham que arranjar alguma coisa
para fazer.
Daniel, por sua vez, tinha a oportunidade de aprontar com elas
de todas as formas imagináveis. Naquele dia, ele estava planejando
assustar a irmã de Letícia com uma aranha de plástico. Gabriela
tinha oito anos, mas sabia como irritar uma pessoa. Vivia fazendo
birras de todo o tipo, e uma vez até destruiu o videogame portátil de
Daniel só porque ele se recusou a emprestá-lo para ela. Era a hora
da vingança, pensou Daniel. Aquilo seria hilário.
Antes que ele pudesse colocar o plano em ação, Letícia viu
que ele tinha uma aranha de plástico.
— Por favor, Daniel. A Gabi vai enlouquecer se ver isso. Ela
entra em pânico quando vê uma aranha. Vai ficar totalmente
descontrolada se você colocar esse negócio perto dela. Promete
que não vai fazer isso — Letícia pediu, fixando aqueles grandes
olhos castanhos no rosto do garoto.
— Tá, tanto faz — murmurou Daniel, revirando os olhos com
irritação. Que droga, ela falava com ele como se ele fosse uma
criancinha estúpida. Ele era o mais velho. E aquela casa era dele,
afinal. Por que é que ela estava dizendo o que ele tinha que fazer ou
não?
Daniel odiava o modo como Letícia o tratava. Ela o irritava de
um jeito que ele não conseguia entender direito. A única coisa que
ele podia fazer a respeito era irritá-la também. Daniel vivia
determinado a contrariar Letícia em tudo. Não seria diferente,
daquela vez.
Gabriela era uma chata e merecia ser zoada. E Letícia era uma
menina metida a muito inteligente, a superior. Daniel decidiu
provocar as duas de uma vez só.
Letícia e Gabi estavam na sala do andar de cima, um lugar
bem-decorado e que continha uma estante de vidro decorativa que a
mãe de Daniel adorava. A estante ficava posicionada bem no meio
da sala, entre as poltronas chiques e desconfortáveis. Poucos
enfeites a ocupavam, já que o objeto decorativo daquela sala
parecia ser a própria estante. Tanto Letícia quanto Gabi sabiam o
quanto a mãe de Daniel amava aquela estante, e por isso mal se
aproximavam do móvel.
Daniel estava animado para assustar Gabi. Aquela pestinha de
oito anos tinha destruído o videogame dele em uma de suas birras
irritantes. Ela definitivamente merecia a brincadeira. Também estava
animado porque ia fazer exatamente o que Letícia dissera para ele
não fazer de jeito nenhum, e nada era mais legal do que contrariar
aquela garota.
Ele se aproximou discretamente de Gabriela, que parecia
entediada, sentada em uma poltrona perto da irmã. Letícia estava
igualmente entediada. Elas nunca tinham nada de interessante para
fazer naquela casa. Pelo menos, pensou Daniel, o tédio delas não
duraria muito tempo.
Daniel sorriu para Letícia no momento em que colocou,
cautelosamente, a aranha de plástico sobre o cabelo de Gabriela.
Letícia tentou alertar a irmã, mas era tarde demais. Gabi sacudiu a
cabeça e a aranha caiu no colo dela.
Daniel percebeu que Letícia tinha mesmo falado a verdade:
Gabriela ficava descontrolada ao ver uma aranha.
A menina fez uma expressão de terror que Daniel achou hilária
e berrou como louca, enquanto fugia correndo desesperadamente.
Letícia seguiu a irmã, de imediato, tentando impedir que ela
esbarrasse em alguma coisa, no meio daquele pânico insano.
No meio de sua correria desesperada, Gabi acabou esbarrando
na grande estante de vidro da sala. Tudo aconteceu muito rápido. A
estante bambeou drasticamente, e Letícia só teve tempo de
empurrar a irmã para o lado, antes que o móvel desabasse.
A estante caiu e por poucos centímetros não atingiu Gabriela.
Já Letícia, que estava ao lado da irmã, não teve a mesma sorte.
Parte do móvel caiu em cima dela, e assim que o vidro se chocou
com o chão, a estante se desfez em um milhão de cacos
extremamente cortantes. Daniel ficou no meio da sala, chocado,
olhando para Letícia, que estava no chão em meio a um mar de
cacos de vidro. A pequena Gabi estava de pé bem ao lado dela,
imóvel como uma estátua.
O garoto percebeu que a primeira coisa que Letícia fez foi olhar
para Gabriela com um olhar preocupado. A garota examinou a irmã
mais nova com os olhos, procurando qualquer sinal de que Gabi
tivesse se machucado. Depois, Letícia fez o mesmo com Daniel:
olhou para ele de cima a baixo e viu que ele estava perfeitamente
bem. Todo mundo estava bem, pensou Letícia, sentada no chão frio
em meio ao vidro.
Mas Daniel já tinha reparado que nem todo mundo estava bem.
Não mesmo. Ele nunca esqueceria a imagem daquela garota, em
meio a um mar de cacos de vidro, perdendo sangue. Um pedaço
grande de vidro estava cravado em seu braço direito. E aquele não
era o único ferimento que havia no corpo dela. Daniel conseguiu
identificar outros cortes menores.
Ainda sem reação, o garoto esperou que ela gritasse. Em vez
disso, ela fez uma coisa que ele nunca esperaria, vindo de uma
menina de doze anos de idade. Ela simplesmente arrancou o vidro
que estava profundamente cravado em seu braço, gemendo
baixinho. Depois, jogou o pedaço de vidro ensanguentado no chão.
Horrorizado, Daniel viu o sangue dela jorrar ainda mais,
esvaindo-se rapidamente por aquele corte profundo. Ele nunca tinha
visto tanto sangue na vida. Obrigou-se a sair do estado de choque
em que ficara por alguns poucos segundos.
— Gabriela. Vá chamar algum adulto — disse Daniel, em um
tom de voz alto e firme, que camuflava muito mal seu desespero. —
Agora!
A pequena Gabi desceu as escadas correndo. Os adultos
estavam todos no primeiro andar da casa, na área externa dos
fundos. Deviam estar sentados à mesa, perto do jardim, tomando
café tranquilamente. Daniel pensou que, provavelmente, eles não
tinham ouvido nada.
Letícia viu Daniel desaparecer por um segundo. Ele voltou com
um pano limpo e correu até ela. O garoto se agachou ao lado dela e
envolveu o corte com o tecido.
Começou a pressionar o pano contra o ferimento, usando as
duas mãos, em uma tentativa desesperada de estancar o
sangramento, ou ao menos de tentar impedir que ela perdesse todo
o sangue do corpo. Porque era isso o que parecia estar
acontecendo.
Enquanto pressionava o tecido no braço dela, Daniel olhou para
o rosto de Letícia. Ela estava exageradamente pálida, com os lábios
sem cor, e ver aquilo o apavorou. Por um momento, ele achou que
ela fosse desmaiar, mas a menina continuou olhando para ele,
parecendo atordoada.
Daniel olhou para o pano que era branco, mas que agora
estava vermelho e úmido. Ele continuou pressionando o corte, com
as mãos trêmulas. Quanto sangue ela já tinha perdido? Um litro e
meio? O corpo dela era muito pequeno para perder tanto sangue.
Daniel mal conseguia respirar em meio ao pânico.
— Vai ficar tudo bem, certo? Olha pra mim, Letícia. Você vai
ficar bem — disse Daniel, em um tom de voz instável.
Ela fixou os olhos nos dele, mas o olhar dela parecia ir ficando
cada vez mais distante e vazio à medida que seu sangue se esvaía.
E Daniel jamais poderia se esquecer daquilo.
Tudo isso aconteceu em questão de um ou dois minutos. Logo
os adultos chegaram para ajudar. Foi um escândalo daqueles.
Letícia passou aquela noite no hospital, enquanto Daniel
passou a madrugada inteira rolando em sua cama, com o abajur
ligado, sem conseguir dormir. Só conseguia se lembrar de Letícia
sangrando no chão da sala, cercada por cacos de vidro. No modo
como o sangue começou a molhar o pano que ele pressionava
contra o corte. No olhar dela, calmo e distante, como se estivesse
atordoada demais para entender o que estava acontecendo. E,
principalmente, pensava que nada daquilo teria acontecido se ele
não fosse tão idiota. Se não tivesse aquela mania estúpida de agir
como um babaca só para tentar chamar a atenção dela. Agora,
Letícia o odiaria pelo resto da eternidade, ele pensou. E com razão.
Ele nunca conseguiria compensá-la por aquilo.
Pela primeira vez na vida, Daniel, que costumava ser o rei da
arrogância, sentiu ódio de si mesmo.
Capítulo 34

Daniel e Letícia estavam imóveis, sentados no capô do carro. Acima


deles, as estrelas cintilavam em meio à noite silenciosa.
Letícia estava chocada. Nunca poderia imaginar que Daniel se
sentia culpado por aquele incidente que tinha acontecido há tanto
tempo.
— Ei. Não foi sua culpa. Você só tinha treze anos, Daniel. OK,
você era um pestinha, mas… O que aconteceu foi só um acidente.
Você não teve a intenção de…
— Ah, por favor, pára com isso — ele interrompeu, desviando
os olhos dos dela.
Daniel tremia internamente. Nunca tinha pensado que teria
coragem de falar com Letícia sobre aquilo. Mas ele tinha chegado
ao limite. Não conseguia mais fingir ou disfarçar o que estava
sentindo. Já tinha feito isso por muito tempo.
— Eu sou o responsável por essa cicatriz — ele disse, tocando
a marca fina do corte que estava gravada no braço de Letícia. —
Não há nada que possa mudar isso. E se você pensar bem, vai se
lembrar de todas as vezes em que eu fui um idiota com você. Eu já
destruí seus livros favoritos, já tentei te prejudicar na escola não sei
quantas vezes, tentei te irritar de todas as formas imagináveis e,
como se não bastasse, provoquei um acidente que poderia ter te
matado.
Letícia encarava Daniel fixamente, atônita. Antes que ela
dissesse algo,ele continuou a falar:
— Por mais que eu tenha sido irresponsável e imaturo, e por
mais que eu gostasse de zoar as pessoas na época do colégio... Era
diferente com você. Com você, eu sempre peguei pesado nas
provocações, eu sempre fui mais babaca que o normal. Eu nunca
soube o porquê disso, mas acho que agora eu entendo.
Daniel respirou fundo e conseguiu encarar Letícia.
— A questão é que… Sabe, você sempre pareceu muito forte e
inteligente, e eu… Acho que eu só queria que você olhasse pra mim,
que você me notasse. Acho que eu queria ser alguma coisa além do
filho da amiga da sua mãe. Mas aí, eu acabei encontrando a pior
forma de chamar sua atenção e só te dei motivos pra me odiar.
— Daniel... — Letícia disse, em um tom de voz baixo e afável.
— Qualquer coisa ruim que tenha acontecido entre nós… É
passado, certo?
O rapaz a encarou, pensando no quanto aquilo era
inacreditável. Letícia falava como se nunca tivesse guardado a
menor pontinha de rancor ou de raiva, pelas coisas que ele tinha
feito.
— Letícia. Eu não sei se um dia eu vou conseguir consertar as
coisas, mas eu preciso que você saiba que eu faria qualquer coisa
pra te compensar pelo que aconteceu. E eu não posso mais
suportar a ideia de fazer qualquer coisa que te deixe infeliz, porque…
Daniel parou de falar por um segundo e continuou imerso nos
olhos de Letícia, que também estavam concentrados nos dele.
Tentou controlar sua respiração acelerada e finalmente concluiu o
que tinha a dizer:
— Porque, sem dúvida nenhuma, eu estou completamente
apaixonado por você.
Letícia não respondeu nada. Não encontraria as palavras,
então, em vez de dizer alguma coisa, ela simplesmente mostrou
como se sentia. Aproximou o rosto do dele, olhou para ele em
silêncio por alguns segundos e então o agarrou. Eles se beijaram
com tanta intensidade que o resto do mundo pareceu desaparecer.
Eles ainda estavam se beijando quando o homem responsável
pelo reboque do carro chegou, usando o uniforme azul da
seguradora. O senhor desceu de seu automóvel e caminhou até o
carro de Daniel. Ele esperou pacientemente que aqueles
jovenzinhos que estavam sentados no capô do carro escolhessem
um lugar e um momento mais adequado para dar seus amassos.
Essa juventude de hoje em dia está perdida, pensou o homem.
— Com licença, eu vim rebocar o carro, conforme solicitado —
disse ele, mal- humorado.
Nenhum dos dois pareceu ouvir. O homem do seguro teve que
respirar fundo e tentar conter a irritação.
— Ei! Vocês estão surdos? Querem que eu reboque o carro ou
não? Parem com essa agarração aí, tenham um pouco de respeito,
eu estou falando com vocês!
Daniel ouviu algum barulho, bem ao fundo, enquanto beijava
Letícia. Por que raios tinha alguém ali tentando interromper um
momento que deveria ser eterno?
Queria mandar aquele cara calar a boca. Mas, para fazer isso,
Daniel precisaria parar de beijar Letícia. E ele não conseguia parar
de beijá-la.
Capítulo 35

— Então, é por isso que estamos buscando uma abordagem da


evolução humana dentro de um processo biocultural. Em
“Antropologia Cultural”, de Felix Keesing, vocês vão perceber que...
A voz do professor sumiu da mente de Letícia. Pela primeira
vez em muito tempo, ela não estava conseguindo se concentrar na
aula. Só conseguia pensar na noite anterior. Nas palavras de Daniel.
No modo como eles se beijaram, sentados no capô do carro dele.
E ainda faltava mais de uma hora para aquela aula acabar,
pensou a garota, com desânimo. Daniel também estava tendo aula
em alguma sala, ali por perto. Letícia queria encontrá-lo logo. Ela
estranhou essa vontade incontrolável e esquisita de ficar perto de
Daniel o tempo todo. Até porque ela já passara uma boa parte do
dia com ele.
Naquela manhã, eles tinham tomado café da manhã juntos,
antes dela ir para o estágio. E quando ela finalmente conseguira sair
do apartamento, com medo de estar atrasada, eles ainda pararam
para se beijar no meio da escada do prédio. E ainda tinham se
encontrado de novo na hora do almoço. Apesar disso, ela ainda
conseguia ficar ansiosa para vê-lo de novo. Inacreditável, pensou a
garota.
Letícia se obrigou a ouvir o que o professor dizia. Fez algumas
anotações no caderno e tentou se concentrar.
Uma bolinha de papel caiu em cima da mesa dela. Letícia olhou
para o objeto, confusa. De onde aquilo tinha vindo? Olhou para trás
e se surpreendeu ao encontrar Daniel, sentado algumas carteiras
atrás dela. Como é que ele tinha aparecido ali?
Sério, essa mania que ele tinha de invadir as aulas alheias...
Ela adorava.
Daniel sorriu e fez um gesto, pedindo para que ela
desamassasse o papel. Ao fazer isso, a garota leu o que ele tinha
escrito:
“Minha aula estava um saco. A sua também está uma chatice,
mas pelo menos daqui eu tenho uma bela visão do seu
cabelo/costas. Ou seja, apesar do blá blá blá do seu professor, eu
não estou completamente entediado.”
Letícia revirou os olhos e riu baixinho, enquanto escrevia a
resposta e jogava a bolinha de papel de volta para Daniel.
“Não acredito que você está me fazendo jogar bolinhas de
papel pela sala de aula. Saudades do quarto ano, Daniel?”
De novo, a bolinha de papel retornou:
“Não. Saudades de você.”
Daniel conseguiu ver o sorriso lindo de Letícia ao ler o que ele
escrevera. Uma nova bola de papel amassado caiu sobre a mesa da
garota:
“O que é que você está esperando? Vamos dar o fora dessa
sala e ir a qualquer lugar onde eu possa te beijar.”
Letícia nem pensou duas vezes antes de guardar o caderno na
bolsa e sair da sala de aula com Daniel.

***

— Você é uma péssima influência — reclamou Letícia,


enquanto Daniel a abraçava. — Eu nunca mato aula.
Ele riu e beijou a testa dela.
— Ah, você está fazendo isso por uma boa causa — Daniel
respondeu.
— E a boa causa seria…?
— Ter o prazer da minha presença, é claro.
Letícia revirou os olhos, sorrindo.
— Seu idiota metido — ela o insultou, em um tom muito mais
carinhoso do que pretendia.
Eles começaram a se beijar parados no meio do corredor da
universidade, enquanto outros estudantes passavam
apressadamente, esbarrando neles.
Letícia pegou o braço de Daniel e eles saíram do corredor.
Foram se sentar em um banco de concreto que ficava na grama,
perto de algumas árvores e a alguns metros da biblioteca.
A garota olhava para Daniel e só conseguia pensar em como
tinha conseguido abafar o que sentia por ele por tanto tempo. Não
era humanamente possível resistir àquele sorriso lindo dele.
— Como a gente conseguiu ficar juntos por tanto tempo sem
realmente… ficarmos juntos? — perguntou Daniel, brincando com
uma mecha do cabelo dela.
Letícia entendeu a pergunta imediatamente. Era exatamente o
que ela andava se perguntando.
— Eu me esforcei muito pra não me apaixonar por você. De
verdade — ela comentou.
Daniel parou de mexer no cabelo dela e a encarou.
— Posso saber por quê?
— É que… Eu tinha medo. Você é do tipo que se apaixona por
qualquer garota que apareça na sua frente. Você se apaixona rápido
e se desapaixona mais rápido ainda. E comigo, pra variar, acontece
exatamente o oposto. Eu não me apaixono fácil. Não mesmo. Então
quando eu finalmente me apaixono, não consigo esquecer
facilmente. O que significa que, se você enjoar de mim semana que
vem, eu vou continuar gostando de você por sabe-se lá quanto
tempo. E como a gente mora junto, eu teria que ver a sua cara todo
santo dia, e eu nunca conseguiria superar o que eu sinto por você.
Eu ia ter que me mudar pra Rússia, sei lá — admitiu Letícia,
sentindo-se desconfortável em dizer aquelas coisas.
O coração de Daniel disparava incontrolavelmente enquanto ele
ouvia a voz da garota. Será que ela não tinha noção do que estava
acontecendo dentro dele?
— Ei. Olha pra mim — ele tocou o rosto dela gentilmente,
fazendo-a olhar nos olhos dele. — Por sua causa, agora eu sei o
que é gostar de alguém de verdade. Eu não sabia o que era isso,
antes. Você me mudou pra sempre. Eu não consigo suportar a ideia
de ficar longe de você.
Enquanto eles se beijavam apaixonadamente, Letícia descobriu
que não tinha mais medo. Não havia mais espaço dentro dela para
temer a nada.
Capítulo 36

Letícia ficou totalmente surpresa ao ver o quanto Daniel estava mais


paciente e gentil com as crianças. Claro, ele ainda se irritava
bastante, às vezes.Mesmo assim, dava pra ver que, no fundo, ele
estava se divertindo e gostando de ajudar os pequenos.
As crianças estavam sentadas nas mesas, brincando com
massa de modelar. Daniel estava supervisionando a atividade,
brincando junto com elas e discutindo com um menino de seis anos:
— É claro que parece um elefante — disse Daniel, exibindo sua
estranha escultura feita de massinha.
— Não parece não — o garotinho discordou enfaticamente.
— Você não entende nada de arte moderna, Pedrinho. Isso aqui
é uma obra- prima — brincou Daniel.
Enquanto organizava os brinquedos que estavam espalhados
pela sala, Letícia pensava no quanto as coisas tinham mudado.
Depois do dia em que ela tinha obrigado Daniel a ajudá-la com as
crianças, achou que ele nunca mais, sob nenhuma circunstância,
iria querer voltar àquela creche. Letícia quase não acreditou quando
viu Daniel acordar cedo no sábado de manhã e dizer:
— Eu vou com você, pra te ajudar com as crianças de novo.
Você não merece ter que enfrentar aqueles minimonstros sozinha.
Ela não precisou nem pedir. Nem tinha tocado no assunto, e
ele, de livre e espontânea vontade, tinha decidido ir com ela para a
creche. Inacreditável.
Apesar disso, naquela manhã, Letícia sentia que estava com
um enorme problema em suas mãos. Olhou para Laura, que não
tinha falado uma palavra desde que chegara, e que sequer estava
tentando modelar alguma coisa com a massinha.
Letícia suspirou. Odiava aquele sentimento de impotência. Já
tinha tentado fazer Laurinha contar para ela o que estava
acontecendo várias vezes, mas a menina estava determinada a não
dizer nada. Letícia não sabia como ajudar. O pai de Laura
certamente não estava disposto a colaborar. Talvez ele estivesse por
trás de tudo.
Letícia precisava arranjar um jeito de descobrir. E precisava ser
rápido, porque Laurinha estava piorando a cada dia. Letícia se
lembrava do quanto ela gostava de falar e de brincar com os
coleguinhas, algum tempo atrás. Agora, Laura parecia ter medo até
de se mover. Naquele dia, por exemplo, a menina se recusara a
falar com qualquer um sobre qualquer coisa.
Letícia estava tão preocupada com a situação que, naquele dia,
decidiu que tomaria uma medida drástica.
A garota ficou esperando a hora exata em que Marcela, a meia-
irmã de Laurinha, viria para buscá-la.Assim que a adolescente
apareceu, Letícia não esperou um segundo antes de ir até ela e
dizer:
— Eu preciso muito falar com você. Você se importaria de
entrar e…
— Agora não dá — respondeu Marcela, secamente.
— Isso é importante. É sobre a sua irmã.
Marcela ficou calada por alguns segundos, apenas mascando
seu chiclete com bastante força. Parecia incomodada.
— Eu já disse que agora não dá. Chama a Laura logo, por
favor. A gente tem que ir pra casa.
Letícia a encarou com determinação, do modo mais firme e
intimidador que conseguiu.
— Ah, tenho certeza de que um minuto a mais ou a menos não
vai fazer tanta diferença pra você. Eu não aceito um “não” como
resposta.
Marcela revirou os olhos e seguiu Letícia pelo corredor principal
da creche.
Enquanto isso, Letícia pensava onde elas poderiam conversar.
Precisava ser em um lugar reservado, onde pudessem ficar
completamente sozinhas… E então Letícia só pôde pensar em um
lugar possível.
Marcela ficou atônita quando Letícia a pegou pelo braço e a
arrastou para dentro de um cômodo minúsculo, lotado de tralhas. Era
uma despensa escura e isolada.
— Ei! Você enlouqueceu? — a adolescente reclamou,
encarando Letícia com indignação.
— Shhh. Esse é um lugar seguro, ninguém vai nos ouvir daqui.
Agora eu preciso que você me diga o que está acontecendo com a
sua irmã, o que está acontecendo na sua casa. Você precisa dizer
agora, OK? Se me disser, eu posso ajudar.
— Não tem nada acontecendo. Me deixa em paz — respondeu
Marcela.
Letícia percebeu imediatamente o nervosismo transparecendo
na voz dela.
— Escuta — disse Letícia, com calma e firmeza. — A Laurinha
sempre foi uma criança feliz, ela adorava brincar e conversar com
todo mundo. Mas já faz algum tempo que o comportamento dela
mudou completamente. Você sabe disso. Agora, ela se isola no
canto da sala, se recusa a falar com os outros… Ela parece estar
com medo o tempo todo. E eu não suporto assistir a isso de braços
cruzados. Você precisa me dizer o que está acontecendo.
— Fica fora disso. Não é da sua conta! — respondeu Marcela,
em um tom de voz agressivo.
— É da minha conta sim! E, principalmente, da sua. Assim
como você, eu também sou irmã mais velha. Se tem algo que eu
aprendi é que os irmãos mais velhos têm a obrigação de cuidar dos
mais novos. De fazer o possível e o impossível para mantê-los
seguros. Você sabe o que está acontecendo, você pode ajudar a
Laura. Faça alguma coisa! — exigiu Letícia, pensando que
provavelmente estava sendo severa demais com aquela menina,
que devia ter só uns quinze ou dezesseis anos. Mas estava
desesperada. Precisava, a qualquer custo, descobrir algo.
Marcela finalmente olhou nos olhos de Letícia.
— Eu não posso dizer nada. E… Também não há nada que eu
possa fazer — respondeu a adolescente, angustiada.
Letícia respirou fundo, mas não conseguia ficar calma ao
pensar no tipo de coisa horrível que aquele tal de Lobo devia estar
fazendo com aquelas meninas.
— Ah, meu Deus. Isso tem a ver com o seu pai, não é? Ele está
ameaçando vocês?
— Meu pai nunca fez nada pra machucar a Laura ou pra me
machucar. Ele não é esse tipo de pessoa. Mas às vezes, ele fica
bem irritado, principalmente quando desconfia que tem alguém se
intrometendo onde não deve. Então, já que você quer ajudar, pare
de se intrometer.
— Alguma coisa aconteceu, pra que a Laura ficasse desse jeito.
E essa situação, seja lá o que for, não pode continuar. Eu vou
chamar o conselho tutelar, ou pedir uma investigação policial,
porque há algo muito errado acontecendo. Você sabe disso.
— Não, você não pode fazer isso! — exclamou Marcela. — Se
ele souber que a polícia ou o governo, sei lá, está na cola dele, ele
vai descontar em mim e na Laura. Além disso, isso pode acabar
muito mal pra você e pra qualquer pessoa próxima a você. Você só
vai piorar as coisas! Que droga, deixa a gente em paz!
A adolescente encarou Letícia, parecendo furiosa. Letícia
estava imóvel, confusa com toda aquela situação, e ainda mais
preocupada que antes. Não sabia o que fazer.
— Ei, calma. Vai ficar tudo bem. Fica calma — disse Letícia,
tentando tranquilizar a menina.
Dentro do minúsculo espaço daquela despensa, uma música
eletrônica ressoou. O celular de Marcela estava tocando. Ela o
retirou do bolso, olhou o visor e ignorou a chamada.
Ao olhar para o smartphone da menina, uma ideia lampejou na
mente de Letícia.
— Tudo bem, eu não vou tomar nenhuma atitude precipitada,
por enquanto — disse Letícia, calmamente. — Eu vou te passar o
meu número, e quero que você me ligue se precisar de ajuda, certo?
Posso colocar meu número na agenda do seu celular?
— Tudo bem, desde que você largue do meu pé — disse
Marcela, secamente, e entregou seu celular para que Letícia
pudesse registrar o número.
Letícia respirou fundo. Pegou o celular de Marcela e passou os
olhos rapidamente pelos contatos do aparelho, até achar o número
que a interessava.
Gravou mentalmente os dígitos que estavam ao lado da palavra
“Pai”. Agora, ela sabia o telefone de Edgar Lobo. Ela adicionou,
conforme combinado, o próprio número de telefone no celular da
menina e o devolveu a ela.
Sem dizer palavra, Marcela olhou para Letícia com uma
expressão fria, enfiou o celular de volta no bolso e saiu daquele
cômodo apertado.
Depois daquela conversa estranha e preocupante, a primeira
coisa que Letícia fez foi escrever o número de Lobo em um pequeno
pedaço de papel e guardá-lo no bolso. Tinha medo de esquecer
aquela informação valiosa.
Letícia sentiu o coração apertar quando Marcela se aproximou
de Laurinha, pegando a mão dela delicadamente e levando-a para
fora da creche, provavelmente de volta àquela casa onde algo
horrível devia estar acontecendo.
— Letícia… — Daniel se aproximou repentinamente, tocando o
ombro dela com afeto. — Você está bem?
Em meio ao barulho das crianças e de seus pais, que
chegavam para buscá-las, a garota respondeu:
— Acabei de lembrar que ainda temos que organizar as caixas
de giz de cera.
Ela precisava desesperadamente de um tempo para pensar,
para definir um plano e decidir o que iria fazer. Só conseguia pensar
que, dali para frente, as coisas ficariam piores e mais assustadoras,
e que devia achar um jeito de manter Daniel fora da zona de perigo.
Capítulo 37

Letícia olhou para o relógio e suspirou. Eram onze horas da noite e


Daniel estava começando a fazer um trabalho que devia ser
entregue no dia seguinte. Ah, aquela mania de deixar tudo pra
última hora…
— Deixa eu adivinhar. O seu professor passou o trabalho com
um mês de antecedência e você decidiu, de novo, que seria uma
ótima ideia fazer na noite anterior. — disse Letícia, sentando-se ao
lado de Daniel no sofá da sala.
Ele estava com o notebook sobre o colo, sentado no sofá com
uma postura relaxada. Parou de digitar um segundo e olhou para
Letícia.
— Fazer o quê? Procrastinação é um estilo de vida.
A garota riu, revirando os olhos e socando de leve o ombro de
Daniel. Ele a puxou para mais perto e a beijou por um longo tempo.
— Você não tem tempo pra isso agora, Daniel — ela disse,
sorrindo, com a respiração ofegante e a testa colada na dele.
— Eu sempre tenho tempo pra você, princesa.
Letícia ficou parada por alguns segundos, admirando o sorriso
de Daniel.
Pensou que faria qualquer coisa para manter aquele sorriso no
rosto dele. Tudo naquele garoto parecia encantador. Ela gostava do
modo como ele passava a mão pelo cabelo, descontraidamente.
Gostava do modo como ele a abraçava, do modo como ele a
encarava longamente, às vezes, e do brilho que cintilava nos olhos
dele nessas ocasiões.
— Ok. Bem, já que você vai passar a noite toda fazendo esse
trabalho, vou ficar aqui com você — anunciou Letícia. — Melhor que
isso, vou te dar uma ajudinha. Vou pegar meu notebook, e aí eu
formato e reviso o arquivo pra você. Acho que vai ser mais rápido
assim.
Daniel piscou, um tanto surpreso.
— Não, Letícia, qual é. Vá dormir. Você não precisa…
Letícia o interrompeu imediatamente, dizendo que ia sim, dar
uma força, e que nem conseguiria dormir direito sabendo que ele
passaria a noite toda em claro, fazendo trabalho de última hora.
— O que seria de mim sem você? — perguntou Daniel, com um
suspiro teatral.
Letícia deu um sorriso brincalhão, antes de beijar os lábios dele
com suavidade.
— Um completo desastre — ela respondeu.
Depois que Letícia pegou seu notebook e se aconchegou no
sofá ao lado de Daniel, houve alguns minutos de silêncio e
concentração no trabalho. Eles não tinham muito tempo, mas
mesmo assim Daniel parou de digitar repentinamente e começou a
encarar Letícia, com aqueles olhos brilhantes que ela conhecia bem.
A garota não pôde evitar um sorriso e ergueu os olhos, que antes
estavam totalmente focados na tela do computador.
— O que foi? — ela perguntou, em um tom de voz que saiu
baixo e tímido.
— Você é tão linda — respondeu Daniel, ainda com os olhos
fixados nos dela.
Meu Deus, pensou Letícia. Como ele conseguia fazer aquilo?
Era como se tudo dentro dela começasse a derreter lentamente
diante de cada palavra dele.
Ela não sabia o que responder. Nunca sabia, em situações
como aquela. Quando ele a olhava daquele jeito, não havia palavras
que parecessem adequadas. Então, ela simplesmente sorriu, tentou
conter aquela estranha onda de afeto que crescia dentro dela e se
esforçou, em vão, para voltar a se concentrar no trabalho.
Letícia andava muito agitada ultimamente. Dias atrás, tinha
conseguido o telefone de Edgar Lobo e estava determinada a usar
aquela informação para alguma coisa útil. A primeira coisa que ela
fez, pouco depois de conseguir o número do sujeito, foi ligar para
Guto, seu amigo nerd confiável. Letícia conversou com o amigo e
perguntou se ele conseguia rastrear o celular de Lobo. Guto hesitou
a princípio, mas dois dias depois encontrou Letícia na biblioteca e
passou para ela todos os endereços e coordenadas que conseguira
rastrear. Foi o suficiente para que a garota traçasse um plano para
descobrir, de uma vez por todas, o que havia de errado com o pai da
Laurinha.
A garota não quis comentar nada sobre isso com Daniel. Ela
não sabia em que tipo de coisa estava se metendo e, de qualquer
forma, não havia motivo nenhum para envolvê-lo naquilo. Era bem
melhor que ele não soubesse de nada.
— Ei, Letícia — disse Daniel, quando eles estavam quase
concluindo o trabalho. — Lembrei agora que amanhã você tem a
tarde livre, e estava pensando que a gente podia sair pra jogar
paintball, como nos velhos tempos! E se você for me beijar daquele
jeito no final, eu até deixo você ganhar de novo.
— Pobrezinho. Ainda não conseguiu aceitar o fato de que
perdeu pra mim — retrucou Letícia, rindo. — Ei, mas amanhã você
tem aula a tarde toda! Nada de sair no horário das suas aulas. Você
deve estar no limite de faltas, menino. Nem pense em matar aula.
— Adoro quando você fica mandona desse jeito — ele
provocou, mexendo em uma das mechas do cabelo da garota. —
OK, eu vou assistir aula à tarde. Mas à noite, a gente podia sair pra
jantar. Sabe, em um restaurante legal.
— Desde que não seja aquele restaurante em que a gente foi
com a sua ex… Pra mim, tá ótimo — disse Letícia, sorrindo.
— Ei! Aquele lugar guarda boas recordações, tá?
— Ah, claro. Você cuspindo suco no vestido dos outros, uma
conversa interessantíssima sobre bolsas de marca…
— Nosso primeiro beijo… — completou Daniel, aproximando o
rosto do dela.
— Aquele beijo não valeu. Você estava tentando se aparecer
pra sua ex-namorada.
Daniel olhou fixamente nos olhos de Letícia.
— Isso não é verdade! Eu só conseguia olhar pra você naquela
noite, Letícia. Quando eu te beijei, foi quando eu percebi pela
primeira vez que eu estava me apaixonando por você.
— Sério? — perguntou a garota, visivelmente emocionada.
— É claro. Eu estava me apaixonando por você e sabia que
não ia ter mais volta. Daí, eu pensei: “Estou muito ferrado. Fui
inventar de gostar justamente dessa garota sem coração e nada
romântica. E que me odeia, ainda por cima. Linda, mas insensível
como uma pedra” — completou Daniel, em tom de provocação.
— Você tinha que estragar o clima! — reclamou Letícia,
tentando não rir enquanto atirava a almofada do sofá na cabeça
dele.
— Tá combinado, então. A gente vai jantar fora amanhã, certo?
— perguntou Daniel, animado.
Letícia respondeu com um “sim” e um beijo.
Depois que eles terminaram o trabalho, restou pouco tempo
para dormir. E nesse pouco tempo, Letícia ficou em sua cama
pensando no que estava planejando fazer na tarde do dia seguinte.
Pensando no tipo de coisa que ela iria encontrar no endereço
estranho que tinha sido rastreado. Se ela conseguisse alguma prova
contra Lobo, avisaria a polícia imediatamente. Se ele estivesse
fazendo alguma coisa que afetasse Laurinha, iria pagar por isso.
A garota finalmente pegou no sono, sem fazer ideia dos
acontecimentos que a perturbariam no dia seguinte.
Capítulo 38

— Daniel! Para de enrolar e anda logo! Você vai chegar


atrasado.
— E daí? Na verdade, eu não sei nem por que estou indo pra
aula hoje. De qualquer forma, não vou conseguir prestar atenção —
retrucou Daniel, enquanto abraçava Letícia. — Só vou ficar
pensando em voltar logo pra te levar pra sair. Ah, e eu quero ter
direito a dança lenta.
— Meu Deus, nós somos um casal tão clichê — disse Letícia,
rindo.
Você não faz ideia do quanto, pensou Daniel, antes de beijá-la.
Ele saiu de casa pensando em piquenique noturno, velas, céu
estrelado, tudo o que tinha em mente para aquela noite. Pensava,
principalmente, no pedido de namoro que ia fazer. Perguntou a si
mesmo se pedidos de namoro eram realmente necessários naquele
caso. Porque, na cabeça dele, ele e Letícia já estavam namorando
desde o dia em que se beijaram pela primeira — ok, talvez pela
segunda — vez. Aquilo que eles tinham nunca poderia ser
confundido com um “lance”. Era uma coisa forte demais. E ele tinha
certeza de que Letícia sabia disso também. Mas, de qualquer
forma, ele queria pedi-la em namoro. Queria usar qualquer
oportunidade que tivesse para mostrar o quanto ela era importante
para ele.

***

— Você tem certeza de que é esse o caminho? — perguntou o


taxista, olhando para a garota sentada no banco do passageiro. —
Porque eu acho que não tem nada aqui.
— Tem que ter alguma coisa. Vamos continuar procurando —
disse Letícia, sem muita convicção, olhando pela janela. O lugar não
parecia, nem de longe, familiar. Deviam estar quase fora da cidade.
Letícia conferiu mais uma vez o endereço. Tinha que ser por ali.
Infelizmente, tudo o que havia em volta era mato. Pouco tempo
depois, ela viu uma construção, ao longe, escondida atrás de
algumas árvores.
— O que é aquilo? — ela perguntou. — Deve ser o lugar que eu
estou procurando!
— Ah, não — retorquiu o homem. — Aquilo deve ser um galpão
abandonado, talvez alguma fábrica desativada. Não tem nada lá.
— Você pode parar por aqui?
— Aqui? — perguntou o taxista, erguendo as sobrancelhas.
— É, eu chego lá a pé — disse Letícia, pensando que parar
com um táxi em frente ao lugar que ela acreditava ser a toca do
Lobo talvez não fosse a coisa mais discreta e prudente a se fazer.
De todos os endereços que conseguira rastrear do celular de Lobo,
aquele era o mais estranho. E foi o primeiro que ela decidiu que iria
checar.
O taxista parou o automóvel e olhou para a garota, desconfiado.
— Obrigada. Você pode esperar aqui, se preferir, ou então eu te
ligo pra vir me buscar — disse Letícia, sorrindo com naturalidade.
— Vou esperar aqui — ele respondeu de imediato.
Ela pagou o taxista e foi andando em direção ao local com
passos rápidos. Mas, quando Letícia se aproximou da construção,
viu que o galpão parecia mesmo abandonado.
Depois de olhar mais detalhadamente para o ambiente em
volta, ela começou a perceber que havia alguns pequenos indícios
de que alguém estivera ali por perto. Havia algumas marcas de pneu
na terra, bem perto do galpão, e também restos de cigarro no chão.
Mas o lugar estava aparentemente vazio. A porta dupla de aço
estava trancada. “Que raios Lobo andava fazendo naquele lugar?”,
ela se perguntou.
Depois de circundar o galpão, ela percebeu que o lugar nem
tinha janelas. Mas ela encontrou uma pequena porta, nos fundos. A
porta era exatamente do mesmo material das paredes da
construção. Era quase imperceptível. E estava aberta.
A garota pensou duas vezes antes de entrar. Podia estar se
metendo em uma encrenca gigantesca. Além disso, pensou, bancar
a espiã não podia ser uma ideia muito boa. Mas ela precisava saber.
Se conseguisse descobrir alguma coisa, poderia ajudar Laura. E
Laurinha estava desesperadamente precisando de ajuda.
Letícia abriu a porta silenciosamente. Deu uma olhada. Só
conseguiu ver parte de um lugar um tanto escuro, lotado de tralhas.
Entrou.
Havia entulhos de construção abandonada por todo o canto.
Não havia ninguém ali e nada além de pilhas e mais pilhas de tralha.
Então, ela percebeu o tapete no chão.
Não fazia sentido nenhum colocar um tapete em um lugar como
aquele, especialmente um tapete tão grande. Como ela suspeitava,
ele só estava ali para esconder algo. Quando o ergueu, encontrou
uma espécie de tampa no chão, como a porta de um compartimento
subterrâneo.
Aquilo ainda podia ficar mais bizarro, pensou Letícia.
O cômodo subterrâneo parecia extremamente escuro. A garota
não hesitou em descer até lá pela escadinha de metal de segurança
duvidosa que dava acesso ao lugar.
Estava escuro demais para enxergar qualquer coisa. Letícia
ligou a lanterna do celular e encontrou um interruptor bem próximo a
ela.
Quando as luzes do lugar acenderam, Letícia perdeu o fôlego
com o que viu. Havia fileiras e fileiras de embalagens em formato de
tijolos, envolvidas com plástico e fita adesiva. Dezenas de sacos
contendo pó branco.
Lobo estava, obviamente, envolvido com tráfico de drogas.
Letícia ficou chocada ao ver a quantidade de “mercadoria” que
ele guardava ali. Ela já tinha cogitado essa possibilidade antes — a
possibilidade de ele estar metido em alguma coisa desse gênero.
Mas agora, ela estava vendo a comprovação. Pegou o celular e
fotografou o lugar. Percebeu que havia também um cofre, ali no
canto do cômodo.
A garota ficou inquieta pensando em como ele devia estar
envolvendo as filhas dele naquilo. Devia estar fazendo com que elas
vendessem as drogas para ele. Devia estar ameaçando Laurinha
para fazê-la manter o segredo sujo dele. Ou coisa pior.
Bem, a questão é que agora, Letícia podia ajudar. Ela
finalmente tinha provas contra ele. O que quer que Lobo estivesse
fazendo com as filhas, não ia durar mais um dia.
Letícia apagou a luz e subiu as escadas pensando em qual era
a delegacia mais próxima dali, e se o taxista ainda estava mesmo
esperando por ela na rodovia. Assim que saiu do depósito
subterrâneo, tentou colocar o tapete de volta no lugar.
E então, ela ouviu a porta do galpão ranger.
Sua primeira reação foi se esconder atrás da pilha de cimento
que estava próxima. Não teve tempo para fazer mais nada, porque a
porta foi aberta e alguém entrou no lugar. Letícia não conseguiu ver
o rosto da pessoa, mas imaginava que fosse Lobo ou algum
comparsa dele.
Letícia tentou conter sua respiração e seus batimentos
cardíacos acelerados. Tinha a impressão de que as batidas de seu
coração estavam fazendo um barulho ensurdecedor.
Ouviu passos. Passos que pareciam calculados, cautelosos, e
que estavam se aproximando rapidamente. Vinham na direção dela.
Letícia sabia que, se aquela pessoa se aproximasse mais, com
certeza a descobriria ali. O esconderijo que a garota improvisara era
péssimo.
A pessoa avançou mais dois passos. E então os olhos de
Letícia se cruzaram com os de Edgar Lobo.
— Você não devia estar aqui, menina — disse Lobo, sacando a
arma e apontando- a para Letícia.
Ele se aproximou ainda mais e Letícia sentiu o metal frio do
revólver tocar sua testa.
Capítulo 39

Letícia olhou para a arma que estava encostada em sua testa.


Depois, olhou para o homem que estava segurando o revólver.
— Nós já nos conhecemos, não é? Você é a garota que foi até
a minha casa, bisbilhotar.
Letícia não disse nada, e provavelmente nem poderia encontrar
a própria voz. Ficou apenas olhando para ele, imóvel como uma
estátua.
— Como você chegou aqui? — Lobo perguntou, em um tom de
voz estranho. A expressão do rosto dele era indecifrável.
Letícia continuou exatamente do jeito que estava.
— Eu perguntei... Como você achou esse lugar? — ele
questionou novamente, em um tom mais agressivo que o da
primeira vez.
Mais uma vez, a garota não disse nada.
— Inferno — praguejou Lobo, tirando um celular do bolso da
calça.
Ele fez uma ligação rápida. Pelo que Letícia entendeu, ele
estava chamando alguém para ajudá-lo a resolver o problema.
E o problema, no caso, era ela. Meu Deus. Estava tão ferrada.
A arma continuava grudada na testa de Letícia.
— Olha, se você colaborar e responder as minhas perguntas,
talvez eu não mate você — disse Lobo, com um meio sorriso que
Letícia achou detestável.
Mentiroso, ela pensou.
Letícia se surpreendeu um pouco consigo mesma. Numa
situação como aquelas, ela não devia estar chorando? Não devia
estar em completo desespero? Não devia estar respondendo às
perguntas dele e implorando pela própria vida?
Em vez disso, tudo o que ela conseguia fazer era ficar parada,
imóvel, olhando pra ele com um olhar assustado. E só. Talvez
estivesse atordoada demais para entrar em pânico, pensou Letícia.
— Quem sabe que você está aqui? — perguntou Lobo mais
uma vez, empurrando o corpo dela contra a parede.
Letícia começou a entender um pouco da situação. Aquele cara
estava tentando descobrir se havia mais gente na cola dele. Ele
queria saber se ia precisar se livrar de alguém além dela.
— Naquele dia em que você foi até a minha casa… Havia um
garoto com você. Ele sabe disso, não sabe? Vocês dois estavam
tentando se meter onde não devem, não é? — disse o homem,
segurando a arma com uma das mãos e coçando a barba com a
outra.
Ouvir aquilo fez o sangue de Letícia congelar. Daniel. Não.
Qualquer coisa, menos colocá-lo no meio daquilo.
— Ele não tem nada a ver com isso. Ele não sabe de nada —
disse Letícia, abrindo a boca pela primeira vez desde que Lobo a
encontrara.
— Ah, jura? Então quem te trouxe aqui? E quem te ajudou a
encontrar esse lugar? Vocês estavam me seguindo?
Letícia ficou em silêncio. Só conseguia ficar pensando em um
meio de convencer Lobo a deixar Daniel em paz.
— Responde! — berrou ele, perdendo o pouco de paciência
que lhe restava.
Lobo levantou a mão cheia de anéis e deu um tapa que acertou
em cheio o rosto de Letícia. A garota sentiu a bochecha arder.
Alguma coisa começou a crescer dentro dela. Raiva. Nojo. Ódio.
— Vá pro inferno, seu desgraçado — ela rosnou, imaginando
aquele monstro atrás das grades, o mais longe possível dela, das
filhas dele e do Daniel.
Lobo riu. A risada dele ressoou alta pelo galpão.
— Xingar o cara que está apontando uma arma pra sua cabeça
não é a coisa mais esperta a se fazer, não acha?
— O que você está fazendo com as suas filhas? — perguntou
Letícia, olhando para ele com um olhar de desprezo absoluto.
— Eu faço o que é necessário pra manter os meus negócios —
respondeu ele. — E eu sou capaz de fazer qualquer coisa. Inclusive
matar você agora mesmo. Então eu acho melhor você me responder
como é que achou esse lugar.
Dessa vez, Letícia achou melhor responder.
— Eu rastreei o seu celular.
Ele olhou para ela, incrédulo.
— Como você fez isso? Quem te ajudou? — ele perguntou, em
tom de voz furioso.
Letícia o encarou com um olhar superior.
— Eu fiz sozinha. Foi fácil — ela mentiu, com toda a
naturalidade. — Só precisei assistir a um vídeo do YouTube e
comprar um software. Demorei vinte minutos pra rastrear. Sem
querer ofender, mas você é bem descuidado.
Lobo usou todos os palavrões existentes na língua portuguesa
para xingar Letícia.
— Eu desconfiava de você, mas eu não tinha nenhuma prova.
Eu só achava que você estava fazendo algo contra a Laurinha, mas
eu não fazia ideia de nada disso. Eu acabei de descobrir o seu
“negócio”. Quando eu decidi rastrear o seu celular e vir até aqui… Eu
não contei pra ninguém, eu fiz tudo sozinha desde o início.
— Se você fez tudo sozinha desde o início… — Lobo começou
a falar, recuperando o fôlego. — Então por que aquele garoto
apareceu na porta da minha casa, quando você estava lá, fazendo a
sua investigaçãozinha de merda? — gritou ele.
Letícia olhou para o chão, pensando no que ela ia fazer para
que Lobo deixasse Daniel fora daquilo.
O olhar de Lobo se voltou para a bolsa que Letícia segurava.
Ele a arrancou da mão dela imediatamente.
— Quando cheguei aqui, vi um táxi lá fora, na rodovia. Ele está
esperando você, não é? Você veio até aqui de táxi, certo? Você
disse alguma coisa pro taxista?
A garota revirou os olhos.
— É claro que eu não disse nada! — ela respondeu, como
quem dizia a coisa mais óbvia do mundo.
O homem revirou a bolsa de Letícia e pegou o celular dela.
— Então — disse ele — você vai ligar pra esse taxista agora
mesmo. Vai conversar como se tudo estivesse perfeitamente bem, e
vai mandá-lo ir embora. Inventa uma história. Diz que algum amigo
seu vem te buscar de carro, sei lá. Mas seja convincente. Por que
se ele desconfiar que tem alguma coisa errada e chamar a polícia…
Ou se você tentar qualquer coisa... Eu enfio um tiro no meio da sua
testa. Eu não vou pensar duas vezes. Estamos entendidos?
Letícia foi, de fato, convincente, enquanto falava ao celular com
o taxista e olhava para a arma que estava apontada em sua direção.
O taxista simplesmente foi embora, um pouco chateado por ter
perdido tanto tempo à toa e ligeiramente curioso com o que Letícia
estava fazendo no meio do nada. Devia ser coisa de jovem.
Letícia não teve muita esperança de que o homem do táxi
percebesse, pela voz dela, que havia alguma coisa errada. Não
achou em momento nenhum que ele fosse desconfiar de algo e
chamar a polícia.
E agora, ela estava totalmente sozinha. O que, por um lado, era
bom, pensou Letícia. Se fosse pra se ferrar, pelo menos não
arrastaria ninguém com ela. Isso era o que ela esperava.
Mas o que Lobo disse em seguida a deixou em pânico.
— Agora... — disse o homem, tirando e colocando no dedo um
de seus anéis. — Você vai ligar pro seu namoradinho e vai pedir pra
ele vir até aqui.
Letícia sentiu todo o ar escapar dos seus pulmões.
— Eu já disse que ele não tem nada a ver com isso! Por favor.
— Ah, garota… — disse Lobo, com um tom falso de compaixão.
— Acredite, eu não queria isso. Você tem cara de criança. Parece
ter a idade da minha filha mais velha. Acontece que, se você e
aquele garoto foram até a minha casa naquela noite… É porque
vocês dois estavam desconfiando de algo. Você não vai voltar. Sabe
disso. E quando você sumir... Aquele menino sabe que você estava
me investigando, e é óbvio que ele vai achar que eu estou envolvido
com o seu “desaparecimento”. Então, a única solução é apagar
você dois. Eu realmente sinto muito.
Letícia lançou para Lobo um olhar de ódio, enquanto tentava
engolir o choro que começava a subir pela garganta.
— Eu não vou fazer isso. Não vou pedir pra ele vir até aqui —
ela disse, com a voz trêmula.
Lobo passou alguns segundos mexendo no celular de Letícia.
— O nome do garoto é Daniel, não é? — perguntou Lobo, com
uma expressão calma e divertida. — Reconheci pela foto que tem
aqui, junto do número dele. Eu nunca esqueço um rosto, sabia?
Letícia sentiu seu corpo começar a tremer convulsivamente.
Não podia deixar nada de ruim acontecer a Daniel por culpa dela.
— Bem, eu vou te dar as suas opções. Ou você liga pro Daniel
e pede pra ele vir até aqui, com toda a naturalidade do mundo… Ou
eu ligo pra ele e peço pra ele vir até aqui. Sabe, eu já fiz negociação
de sequestro antes. Eu sou bom nisso.
Letícia entrou em desespero. Se ela ligasse, Daniel viria
imediatamente. Se Lobo ligasse, Daniel também viria, e
provavelmente ficaria tão assustado que iria ceder às chantagens de
Lobo e nem envolveria a polícia nisso.
A garota tentou pensar em meio ao desespero. Devia haver um
jeito de manter Daniel a salvo. Tinha que haver.
E então ela teve uma ideia. Uma ideia que podia não funcionar.
Podia dar errado. Mas foi a única que ela conseguiu pensar, no
momento.
— Eu ligo pra ele — disse Letícia, por fim. A voz dela quase não
saiu.
Lobo sorriu, selecionou o contato e entregou o telefone para
Letícia. Encostou a arma na cabeça dela.
— Lembre-se. Seja uma boa atriz. Invente uma mentira
convincente. Se você disser qualquer coisa que não deve… Vocês
dois vão ter mortes muito dolorosas — ele sussurrou.
Daniel atendeu ao primeiro toque.
Letícia sentiu uma vontade incontrolável de chorar ao ouvir a
voz suave e despreocupada dele.
— Oi, princesa. Eu ainda estou aqui na universidade, mas daqui
a pouco eu chego em casa. Tá animada pra nossa programação de
hoje? — disse Daniel, em um tom carinhoso e empolgado.
— Oi… — disse Letícia, tentando a todo custo manter a voz
estável. — Eu não estou em casa, agora. Desculpa, mas acho que
não vou conseguir voltar a tempo pro nosso jantar.
— Como assim? Onde você está? — Daniel perguntou.
Lobo fez uma careta e sussurrou mandando que ela fosse
direto ao ponto e que parasse de enrolar.
— Eu amo você — Letícia disse para Daniel.
No segundo seguinte, a mão dela soltou o celular. O aparelho
caiu no chão. Lobo a olhou com fúria.
— Desculpa! Desculpa, foi sem querer — disse a garota. — Eu
estava nervosa. Eu vou ligar novamente.
Ela se abaixou para pegar o aparelho. A bateria tinha se soltado
com a queda. Letícia conseguiu pegar o chip, onde estavam
guardadas todas as informações do aparelho. E então, antes que
Lobo pudesse impedir, Letícia o partiu ao meio.
Ela se levantou do chão, olhou mais uma vez para o revólver
apontado para o corpo dela e olhou Lobo nos olhos.
— Acho que agora você não vai mais poder ligar pro Daniel.
A única informação que Lobo tinha sobre Daniel era aquele
número de celular. E essa única informação foi perdida no momento
em que Letícia quebrou o chip.
A garota não sabia o que esperar. Talvez ele a matasse naquele
instante. Talvez tentasse arrancar a informação dela à força. Talvez
desistisse de ir atrás de Daniel.
Lobo encarou Letícia por longos segundos. Começou a apertar
o pescoço dela, em silêncio. Em meio à falta de ar, Letícia ainda
conseguiu se perguntar por que raios Lobo tinha decidido matá-la
daquele jeito. Bastava dar um tiro e pronto. Aquele monstro devia
ser sádico o suficiente para matá-la de uma forma bem lenta,
pensou.
Mas então, a porta do galpão se abriu e três homens armados
entraram. Eram os caras que Lobo tinha chamado para ajudarem a
“resolver o problema”.
E então, Lobo soltou o pescoço de Letícia. O corpo dela
desabou no chão.
Eles começaram a conversar coisas às quais a garota não
conseguiu prestar atenção, nem ouvir direito. Um dos homens
amarrou as mãos e os tornozelos dela, mas ela não conseguiu
identificar o rosto dele. Estava ficando escuro demais.
As únicas frases que Letícia conseguiu registrar eram algo
como:
“Temos que pensar nas nossas alternativas.”
“Tirar a mercadoria daqui, com certeza…”
“Talvez ela seja útil...”
E nenhuma dessas frases fez muito sentido.
Os pensamentos de Letícia estavam flutuando entre outras
frases.
Oi, princesa. Daqui a pouco eu chego em casa. Desculpa, mas
acho que não vou conseguir voltar a tempo pro nosso jantar. Onde
você está? Eu amo você.
A dor foi ficando mais distante. As vozes também. Letícia sentiu
dentro de si um curto instante de calma e silêncio, antes que a
inconsciência a envolvesse por completo.
Capítulo 40

Daniel estava discando o número de Letícia pela décima quinta vez.


“Este número encontra-se desligado ou fora da área da cobertura”,
ele ouviu a voz automatizada repetir.
Havia algo errado. Havia algo muito errado acontecendo.
Ele não sabia o que fazer. Voltar para a aula estava
completamente fora de questão, não tinha mais cabeça para isso.
Tentou se tranquilizar em vão, dizendo a si mesmo que devia
estar exagerando um pouco, talvez não tivesse motivo para ficar tão
preocupado. Quer dizer, Letícia podia estar resolvendo algum
problema com a tia dela. Talvez a bateria do celular dela tivesse
acabado, talvez...
Não, havia algo errado. Ele não conseguia se convencer de que
estava tudo bem. A ligação tinha sido estranha demais. Ainda
conseguia ouvir a voz dela, soando muito baixa, quase sussurrada,
dizendo que não ia voltar para casa a tempo.
As perguntas se formavam incessantemente na cabeça de
Daniel, mas ele não conseguia respondê-las. Por que ela tinha dito
aquilo? Por que a ligação caíra do nada? E, pelo amor de Deus,
onde ela estava?
Aquele “Eu amo você” tinha sido apavorante. Ela nunca dissera
aquilo antes, não com aquelas palavras. Letícia tinha dito aquilo com
urgência, com um certo desespero que ele conseguia detectar pela
voz dela. Como se nunca mais pudesse dizer aquilo de novo. Como
se fosse a última vez.
Tudo dentro dele parecia congelar de pânico quando ele
pensava nisso. Não sabia o que fazer e não fazia ideia de onde ela
poderia estar. Dirigiu de volta para casa imediatamente, pensando
que talvez pudesse achar alguma pista que o ajudasse a descobrir o
que estava acontecendo.
Daniel sabia que Letícia não estava no apartamento. Ainda
assim, antes de abrir a porta, pensou no alívio que teria se a visse
sentada no sofá, lendo um daqueles livros chatos que ela adorava.
Daria qualquer coisa pra vê-la a salvo, em casa, perto dele.
Quando abriu a porta, encontrou um apartamento silencioso e
vazio. Não havia vestígios de bagunça na sala ou na cozinha. Daniel
foi direto até o quarto dela, que estava igualmente organizado. Ele
esperava encontrar algum bilhete ou qualquer coisa que o ajudasse
a encontrá-la, mas não havia nada em lugar algum.
Daniel conseguiu encontrar a agenda de Letícia e encontrou o
telefone da tia dela. A garota poderia ter saído para visitar a tia,
pensou ele. Talvez elas estivessem juntas. Pelo menos, era o que
ele esperava.
Ligou para a tia de Letícia no exato momento em que encontrou
o telefone dela, mas, para a sua mais profunda decepção, a mulher
não estava com Letícia. Então começou a ligar para todos os
números que havia na agenda da garota. Perguntou para os amigos
da faculdade, os colegas que trabalhavam na creche, no estágio
dela. Ninguém estava com ela nem fazia ideia de onde ela poderia
estar.
Foi um balde de água fria. Letícia tinha saído sozinha para
algum lugar que ele não fazia ideia de onde era, e Daniel não sabia
quando ela iria voltar. O medo de que ela não voltasse para casa o
consumia.
Ele tentou respirar fundo, pensar melhor sobre o que podia ter
acontecido. E então ele se lembrou de que fazia alguns dias que
Letícia não comentava sobre Laurinha e o pai esquisito dela. Daniel
pensou no quanto Letícia estava obstinada em resolver aquela
história, em ajudar a menina e descobrir o que estava acontecendo.
Daniel tinha pedido a ela para não sair sozinha atrás daquele
barbudo com cara de psicopata. Talvez ela tivesse feito exatamente
isso, pensou o rapaz. Era bem a cara dela, bem o tipo de coisa que
ela faria. Aquela garota era uma teimosa incorrigível.
Decidiu que não ficaria ali, sentado, sem fazer nada. Saiu do
apartamento, desceu as escadas do prédio pulando os degraus e
atravessou a portaria. Parou um segundo e olhou para o porteiro.
— Ei, Walter. Como vai?
O homem ergueu uma sobrancelha. Daniel nunca falava com
ele.
— Bem. E você?
— Você viu a Letícia sair do prédio hoje? — ele perguntou.
— Vi, sim. Ela saiu pouco depois de você, no início da tarde.
— Você reparou algo de estranho nela? Ela falou com você?
Disse pra onde estava indo?
— Ela só me cumprimentou normalmente, como faz sempre.
Não comentou nada não. Ela estava normal, eu não reparei nada de
estranho.
Daniel suspirou.
— Escuta, eu estou procurando por ela. Se ela voltar pra casa,
você me liga, está bem?
Anotou o telefone do celular dele no jornal onde o porteiro fazia
palavras cruzadas. O homem torceu o nariz.
— Tá, eu aviso.
Daniel entrou no carro e dirigiu com pressa até a cidade onde
Laurinha morava. Ainda se lembrava da casa de Lobo. O endereço
daquela casa era a única coisa que sabia sobre ele.
O lugar era bem distante, mas Daniel chegou lá em tempo
recorde. Andou em direção à pequena casa onde tinha estado dias
atrás com Letícia. Bateu na porta. Nada. Tentou de novo, e
nenhuma resposta. A porta estava trancada, as janelas fechadas,
não havia ninguém ali. A casa estava vazia.
Daniel esmurrou a porta pela última vez, frustrado. Pensou no
que ia fazer.
Decidiu passar na creche. Sonhou em encontrar Letícia lá, com
as crianças. Mas ela, é claro, não estava na creche. E ninguém por
lá a tinha visto ultimamente. Daniel procurou por Laurinha. Ela
também não estava lá. Foi até a secretaria e tentou conseguir
algumas informações sobre a família de Laura. Nada. Agora, ele
estava oficialmente perdido. Não sabia mais o que fazer.
Voltou para casa dirigindo mais lentamente que o normal. Tudo
o que ele queria era chegar lá e encontrar Letícia.
Quando retornou ao prédio, o sol começava a se pôr. O porteiro
avisou que Letícia não tinha voltado. Daniel sentiu tudo se comprimir
dentro dele.
Subir até o último andar e entrar naquele apartamento vazio foi
terrível.
Ela vai chegar, pensou Daniel, tentando não entrar em
desespero. Talvez ela chegasse dentro de alguns minutos, quem
sabe em uma ou duas horas, com uma história louca e engraçada
para contar. Daniel a beijaria como se ela fosse a coisa mais
preciosa do mundo, o que ela era, de fato, e contaria sobre como
ficou desesperado com aquela ligação estranha, sobre como ficou
em pânico tentando encontrá-la. Letícia acharia graça. Diria que ele
era um exagerado, que nunca houve motivo para se preocupar
tanto. Então, eles remarcariam o jantar e comeriam pizza juntos.
Meu Deus, ela tinha que chegar em casa sã e salva o mais
rápido possível, pensou Daniel. Tentou ligar de novo para o celular
dela, sem resultado. Decidiu que ia esperar até as oito da noite, e,
se ela não voltasse, ligaria para a polícia.
Mas os ponteiros do relógio pareciam se arrastar
dolorosamente, e ele estava ansioso demais pra se distrair com
qualquer coisa. Só conseguia pensar em um milhão de coisas
horríveis que poderiam ter acontecido. Cada segundo era um
desespero a mais.
Não esperou até as oito. Pegou o telefone e discou o número
da polícia. Para piorar tudo, o policial que atendeu não parecia nada
disposto a ajudar.
— Bem, pelo que você me contou, não há indícios de que isso
seja mesmo um caso de desaparecimento — dissera o policial, com
voz de tédio. — Ela tem dezoito anos, deve estar se divertindo em
algum lugar. O mais provável é que ela volte para casa ainda hoje
ou amanhã de manhã. Se até amanhã à tarde a garota não tiver
voltado, você volta a contatar a polícia, e teremos prazer em tomar
todas as providências.
Daniel começou a protestar, indignado, mas a ligação “caiu”.
Ele colocou o telefone de lado e começou a chutar a parte
inferior do sofá. Chutou várias vezes sem parar, como se pudesse
descontar no sofá toda a frustração e o desespero que estava
sentindo.
Todas as suas tentativas tinham falhado. Ele não conseguia
pensar em mais nada que pudesse fazer, mas a ideia de
simplesmente se sentar e esperar era horrível.
Sem Letícia, aquele apartamento era insuportavelmente vazio e
silencioso.
Aquela seria uma longa noite.
Capítulo 41

O nascer do sol nunca fora tão angustiante. Agora, Daniel tinha


plena certeza de que algo terrível tinha acontecido com Letícia. Ela
não teria simplesmente passado a noite fora de casa, sem avisar
nada, sem atender ao celular. A pequena esperança de que ela
voltaria com alguma história louca para contar já tinha se dissipado
completamente, desde a noite passada. Algo realmente ruim tinha
acontecido. Ela não tinha voltado, e agora ele iria buscá-la. Não
tinha nenhuma pista, mas daria um jeito. Iria trazê-la de volta a
qualquer custo.
Voltou a ligar para os amigos de Letícia, para descobrir se
algum deles sabia de alguma coisa que pudesse ajudá-lo a
encontrar a garota. No meio da agenda dela, achou um número
anotado em caneta vermelha. Sem nome nem nada. Só o número.
Fez a ligação, e quem atendeu foi um tal de Guto. Daniel
explicou que estava procurando por Letícia, que ela tinha sumido e
que ele precisava encontrá-la o mais rápido possível. O cara ficou
em silêncio por alguns segundos.
— Bem… — começou Guto, hesitante. — Da última vez que
nos vimos, ela…
Daniel estava impaciente.
— Ela o quê?
— A Letícia pediu pra eu rastrear o telefone de um cara. Ela
queria investigar alguma coisa sobre ele. Ela desconfiava de que ele
estivesse fazendo alguma coisa com as filhas dele, algo assim. E aí,
eu rastreei o número, e ela achou que um dos endereços era muito
estranho. E foi isso. Você… Você acha que ela pode estar com
problemas?
Daniel sentiu seu sangue congelar. Letícia indo sozinha até
sabe-se-lá-onde, investigar um possível criminoso maníaco. É claro
que ela estava com problemas.
— Passa o endereço — disse Daniel, e o desespero
transparecia em sua voz —Agora.

***

A alguma distância da rodovia, havia um galpão abandonado.


Daniel deixou o carro no acostamento e correu até o lugar. O
desespero em reencontrar Letícia parecia queimar dentro dele.
Dessa vez, pensou, cuidaria dela direito e nunca mais deixaria nada
de ruim acontecer.
Havia uma pequena porta nos fundos da construção. A porta
estava trancada. O lugar estava silencioso. Silencioso demais. Havia
outra porta, maior, também trancada. Chutou a porta pequena até
ela abrir.
Não hesitou um segundo antes de entrar no galpão escuro.
Havia materiais de construção e todo tipo de tralhas, mas, para o
desespero de Daniel, não havia ninguém ali. Encontrou uma entrada
para algo parecido com um porão, mas lá embaixo, no pequeno
cômodo subterrâneo, também não havia nada além de poeira.
O lugar estava abandonado. E Daniel estava mais confuso e
agoniado que nunca.
E foi então que o rapaz viu um celular, ou melhor, o que restou
de um celular, oculto atrás de um monte de tralhas. Pegou as partes
do objeto. A tela estava quebrada, a bateria solta, o chip tinha sido
partido em dois. Ele reconheceria aquele aparelho em qualquer
lugar.
Era o celular de Letícia. E estava destroçado.
Daniel tremia. Provavelmente de ódio, porque agora tinha
certeza de que Lobo tinha feito alguma coisa com Letícia.
— Eu vou matar aquele desgraçado — disse para si mesmo,
enquanto voltava para o carro.
Dirigiu até a creche de Laurinha.As crianças começavam a
chegar, acompanhadas de suas mães ou pais.
E então ele viu Laurinha, de mãos dadas com a irmã mais velha
dela. A garota deixou a criança na creche. Daniel foi andando
rapidamente em direção à adolescente.
— Você é filha do Lobo, não é? — perguntou Daniel para
Marcela, que andava pela rua com passos apressados.
— O que você quer? — ela perguntou, parecendo assustada.
— Eu quero saber onde está o seu pai. Eu quero saber agora.
— Não sei onde ele está, já faz um tempo que eu não o vejo.
Me deixa em paz.
— Escuta, você conhece a Letícia, não conhece? A que
trabalha na creche da Laura.
Marcela fez que sim com a cabeça, desconfiada.
— O seu pai está com ela. Eu não sei que tipo de monstro ele
é, não me interessa, mas eu vou trazer a Letícia de volta. E é bom
ela estar bem, porque se ele tiver tocado nela, só tocado, eu juro
que você vai ficar orfã. Agora me diz onde ele está.
Daniel agarrou o braço da garota, para impedi-la de fugir. Ele
parecia fora de si.
— Eu não sei! Me deixa em paz, ou eu vou gritar.
— Não, você vai me dizer pra onde o seu pai levou a Letícia.
Você vai fazer isso porque sabe que o seu pai é um criminoso
perturbado, e você sabe que a Letícia está em perigo. Ela nunca
teria se metido nisso se não fosse pra ajudar você e a sua irmã! É
sua responsabilidade. Você vai me dizer agora! — Daniel rosnou.
A garota cobriu o rosto com as mãos por cinco segundos.
Talvez estivesse chorando, pensou Daniel. Depois, Marcela olhou
para ele. Parecia aterrorizada.
— Ela não devia ter se metido nisso. O meu pai… Se ela tiver
feito alguma coisa que… Ele é capaz de tudo. Talvez ela nem esteja
viva. Eu posso te ajudar a encontrá- la, mas você tem que chamar a
polícia. Porque, se não prenderem ele, eu estou morta.
Letícia estava viva, repetiu Daniel mentalmente, vez após vez.
Ela estava viva, estava bem e ele a traria de volta pra casa. Aquele
pesadelo ia acabar logo.
Graças à Marcela, ele conseguiu descobrir o paradeiro de Lobo.
Ligou para a polícia informando tudo, é claro, mas sabia que os
policiais não conseguiriam chegar lá antes dele.
O carro dele praticamente voou pela rodovia, até chegar a um
lugarzinho parecido com um vilarejo de periferia. As casas se
espremiam, muito perto umas das outras. Não havia rua, nem
iluminação, apenas estradas muito estreitas de terra, cheias de
lama.
Letícia estava em uma daquelas casinhas minúsculas. Agora,
Daniel sabia que estava a um passo de encontrá-la.
Capítulo 42

Letícia olhou para as paredes mofadas daquele cômodo


minúsculo.Não haviam janelas. Só havia uma porta de metal,
trancada. Muito bem trancada. Estava sentada no chão, ao lado de
um colchonete velho que alguém colocara lá. Os pulsos estavam
amarrados, e ela já tinha desistido de tentar libertá-los.A mordaça a
incomodava terrivelmente. Não havia mais nada que pudesse fazer.
Não conseguia entender porque ainda estava viva. Talvez Lobo
fosse muito mais perturbado do que ela imaginara. Não gostava
nem de pensar no motivo para ele tê-la trancado ali.
Letícia ouviu ruídos. Devia ser Lobo, destrancando a porta.O
corpo dela começou a tremer. A porta se abriu, e lá estava ele. As
mãos cheias de anéis, uma expressão tranquila no rosto. Ele coçou
a barba antes de se aproximar de Letícia.
— Já está mais calma, agora?
A garota permaneceu exatamente como estava, imóvel.
— Escuta, garota — disse o homem, aproximando-se dela. —
Eu já devia ter acabado com você. Você tem muita sorte por eu não
ter feito isso ainda. Se você colaborar, se for gentil comigo… Eu não
vou precisar fazer isso, por enquanto. Entende?
Ela o xingou mentalmente, apoiou as costas na parede e
continuou sentada. Aquele cara era doente, pensou Letícia.
Lembrou-se de Laurinha e Marcela, as filhas de Lobo, e pensou nas
coisas horríveis que elas deviam ter enfrentado por causa dele.
Aquele homem precisava ser preso, as meninas não podiam ficar
mais um segundo sob a guarda daquele maluco.
— Você deve estar com sede — disse ele, com uma expressão
irritantemente calma. — Eu vou desamarrar os seus pulsos e tirar a
mordaça, OK? Mas eu espero que você tenha entendido a sua
situação. Se tentar qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, eu
destruo esse seu rostinho lindo. Sabe disso, não sabe? Você sabe
que não pode lutar contra mim.
Letícia fez um sinal afirmativo com a cabeça. Através da porta
aberta daquele pequeno cômodo em que estava, ela podia ver a
outra porta, a saída daquela casinha minúscula. Devia estar
trancada, obviamente. Mas a porta trancada não era a única coisa
que a separava da liberdade. Também havia aquele psicopata
armado de quase dois metros de altura que estava na frente dela.
Primeiro, ele tirou a mordaça. Depois, desamarrou os pulsos
dela.Letícia continuou quieta, estranhamente imóvel. Segundos
depois, o único movimento que ela fez foi esconder o rosto com as
mãos. Parecia estar chorando.
Lobo se aproximou ainda mais e tocou o cabelo dela.
— Você é tão jovem e frágil. Eu gosto disso.
Ele mal tinha acabado a frase quando Letícia agarrou seu
pescoço com fúria. A garota empurrou a cabeça dele contra a
parede, com força o suficiente para atordoá-lo por um segundo.
Nesse pequeno espaço de tempo, enfiou a mão no bolso da jaqueta
dele e pegou a chave.
Letícia conseguiu deixar aquele pequeno cômodo, mas Lobo a
agarrou pelo braço antes que chegasse à porta da casa. Ele ia
sacar a arma quando Letícia conseguiu dar uma joelhada no
estômago dele. Enquanto ele gemia, a garota o chutou entre as
pernas três vezes seguidas e correu até a única saída daquele
lugar.
Com as mãos trêmulas, conseguiu encaixar a chave na
fechadura e destrancou a porta. Foi nesse exato momento que Lobo
agarrou Letícia pelos cabelos e a arrastou para longe da saída,
enquanto ela se debatia e berrava loucamente. Ele a lançou contra
a parede e tentou tapar sua boca, o que logo se mostrou inútil,
porque ela não parava de se debater e de tentar morder a mão dele,
e os gritos continuavam audíveis.
Letícia só parou de gritar quando Lobo bateu no rosto dela com
o revólver. O impacto fez com que ela caísse no chão
imediatamente.
Deitada e incapaz de se mexer, a garota olhou para a pequena
poça de líquido vermelho no piso. Precisou de alguns segundos para
entender que aquele era o sangue dela. Não sabia ao certo de onde
ele vinha. De um corte na testa, talvez? Ela não podia ter certeza.
A garota estava tão imóvel no chão que Lobo sequer imaginou
que ela poderia estar consciente. Curvou-se para colocá-la de volta,
trancafiada, no cômodo do qual tinha escapado. Mas assim que
tocou nela, Letícia agarrou um dos dedos dele e o dobrou para o
lado com força, até ouvir um estalo.
— Se tocar em mim de novo — ela ameaçou — eu quebro os
dedos que restaram!
Lobo xingou todos os palavrões que conhecia, gemendo de dor.
Letícia tentou se levantar, mas estava tonta demais para
isso.Conseguiu apenas se sentar no chão, enquanto se dava conta
de que o sangue que escorria sem parar vinha mesmo de um corte
na testa, causado pela pancada com o revólver.
— Agora chega — disse o homem, olhando rapidamente para
seu dedo quebrado. — Eu tentei ser legal... Mas você não me deixa
outra opção. Você pediu por isso, garota.
Lobo apontou a arma para Letícia e se preparou para puxar o
gatilho.
Ela esperou ser atingida, mas o tiro não veio. Em vez disso, viu
uma cadeira sendo lançada na direção de Lobo. A cadeira o pegou
em cheio.O revólver foi parar no outro canto da sala.
E então, ela viu Daniel e ouviu a voz dele chamar seu
nome.Letícia se esqueceu de todo o resto. Daniel estava ali.
Ele se ajoelhou ao lado dela, com pânico no olhar.
— Ah, Deus — Daniel disse, assustado ao ver todo o sangue
que ela estava perdendo. — Letícia, eu estou aqui. Estou aqui com
você, tá bom? Vai ficar tudo bem.
O rapaz a abraçou com força, impulsivamente, como se
estivesse disposto a nunca mais soltá-la. Ele a tinha encontrado.
Estavam juntos de novo.
E então ele olhou para o sangue que escorria lenta e
incessantemente da testa da garota, e se lembrou de que ela ainda
não estava a salvo. Ele já tinha falhado com ela muitas vezes no
passado, e a ideia de falhar novamente era impensável. Precisava
tirá-la dali.
Foi quando percebeu que Lobo já estava se recuperando da
cadeirada que o tinha derrubado, e agora se arrastava em direção à
arma que estava jogada no chão.
Daniel se lançou na mesma direção, numa tentativa
desesperada de pegar o revólver primeiro. Apesar de seus esforços,
foi Lobo quem agarrou a arma.
— Pra parede — ordenou o homem, numa voz instável.
Voltando para perto de Letícia, Daniel se sentou à frente dela e
olhou-a nos olhos, virando as costas para o homem que os
ameaçava com um revólver.
— Amor, eu vou cuidar de você. Vai ficar tudo bem — repetiu
Daniel.
Ela tocou o rosto dele e sorriu. Tinha achado que nunca o veria
de novo, e agora ele estava ali, falando com aquela voz suave que
era a única voz capaz de acalmá-la.
O som das sirenes de viaturas da polícia ressoou alto pelo
lugar. Finalmente, pensou Daniel. Lobo, que segurava a arma com
dificuldade por causa do dedo quebrado e que parecia ainda sentir
dor por causa da cadeirada que levara, lançou-lhe um olhar
ensandecido.
As viaturas policiais cercaram a casa, e o criminoso pôde ver
isso por entre as grades da pequena janela da sala. Sabia que não
poderia mais fugir. Era isso. Fim de linha.
— Vocês acham que vão escapar vivos? — berrou Lobo. —
Vocês acabaram com a minha vida. E eu vou acabar com a de
vocês!
Daniel protegeu Letícia, abraçando-a instintivamente antes do
primeiro disparo. O som do tiro pareceu preencher todo o espaço.
Letícia percebeu que Daniel tinha sido atingido quando viu o
sangue se espalhando pelas costas dele, formando uma grande
mancha vermelha em sua roupa.
Ela perdeu a capacidade de respirar. Engasgou-se com o
próprio choro e imediatamente colocou a cabeça de Daniel sobre
seu colo. Ele olhou o rosto dela por um segundo e depois fechou os
olhos.
Letícia tentou chamar o nome dele, mas a voz não saiu em
meio às lágrimas.
Ainda não conseguia respirar. Ela começou a acariciar com
mãos trêmulas o cabelo de Daniel, incapaz de reagir à dor
massacrante que sentia. Letícia sentiu que estava flutuando para
fora da realidade, para um lugar sem ar, sem som, sem vida. Sem
ele.
Ela não tirou os olhos de Daniel para ver o momento em que a
polícia invadiu a casa. Lobo continuava parado em frente aos dois,
com a respiração ofegante. Antes que os policiais o rendessem, ele
atirou mais uma vez na direção da garota.
O barulho ensurdecedor do disparo foi a última coisa que
Letícia ouviu. Sentiu mais dor, um novo tipo de dor. Enquanto o
mundo escurecia, a dor foi ficando menos intensa, até desaparecer
por completo.
Capítulo 43

Havia um teto branco acima dela. Essa foi a primeira coisa que
Letícia conseguiu perceber, assim que abriu os olhos. No segundo
seguinte, as imagens horríveis do que tinha acontecido inundaram a
mente dela.
— Daniel — ela sussurrou, apavorada.
Sentiu o coração disparar loucamente e alguma coisa começou
a apitar, mas Letícia não deu a mínima. Precisava sair dali.
Precisava encontrar Daniel.
Ela se jogou da cama, sem hesitar um segundo.Seu corpo não
lhe obedecia prontamente, de forma que ela teve que forçá-lo a sair
do lugar.
Letícia caiu sobre a cerâmica fria que cobria o chão do
quarto.Sentia uma dor horrível na região do tórax.Achou que não
conseguiria se levantar, mas a imagem de Daniel sangrando sem
parar voltou à sua mente e ela se obrigou a ficar de pé.
Deu alguns passos em direção à saída do cômodo. Seu braço
estava preso a um longo tubo. Letícia arrastou o suporte de soro
consigo e saiu do quarto.
— Daniel? Daniel! — ela gritou pelo corredor do hospital como
louca.
A possibilidade de que ele estivesse morto a apavorava. Daniel
tinha que estar bem. Tinha que estar em algum daqueles quartos,
recuperando-se tranquilamente e vendo programas ruins na
televisão. Ela precisava desesperadamente saber que ele estava
vivo.
Começou a abrir todas as portas que via pela frente, em pânico.
— Ei! Você! — uma mulher de branco berrou, lá do final do
corredor.
Letícia continuou a abrir as portas, procurando por Daniel.
— Você não devia estar de pé. — A enfermeira se aproximou e
tocou o braço da garota. — Vem, vamos voltar para…
— Cadê o Daniel? — perguntou Letícia, enquanto lágrimas
começavam a se formar em seus olhos. — Me mostra onde ele
está. Eu preciso saber, por favor.
— Ei, calma — a mulher disse, em voz baixa. — Você tem que
se acalmar, ou…
— Eu quero ver o Daniel agora! — a garota insistiu, em
desespero. — Por favor, diz que ele está bem. Por favor.
A enfermeira voltou a dizer que ela precisava se acalmar e
voltar para a cama, mas Letícia a ignorou e continuou a abrir as
portas que encontrava, ainda mais alarmada que antes. Por que não
recebera nenhuma resposta?
E então, ao abrir uma das portas, Letícia o encontrou.
Ela se aproximou da cama e colocou a mão sobre a dele. Os
olhos de Daniel permaneceram fechados.
Letícia sorriu. Ele estava vivo. Ficariam juntos, como tinha que
ser. Passou os dedos pelo cabelo dele e sussurrou:
— Nem pense em me deixar. Eu preciso de você.
Assim que a garota acabou de pronunciar essas palavras,
Daniel abriu os olhos.
— Deixar você? — ele sussurrou de volta. — Jamais. Afinal, o
que você faria sem mim?
Letícia riu e secou uma lágrima de alívio.
— Vem cá — disse Daniel sorrindo, enquanto se ajeitava na
cama para dar espaço a ela.
Letícia se deitou na cama com ele e Daniel conseguiu envolvê-
la com um dos braços.
— Como é que a gente não morreu? — ele perguntou.
— Sei lá. Não era a nossa hora — disse Letícia. — Ei, você
sabe se o Lobo foi preso mesmo? Se as meninas estão bem?
— Pelo que ouvi as enfermeiras comentarem… O cara foi preso
em flagrante. As meninas vão ficar com a avó, provavelmente.
— Nossa, que bom ouvir isso. É, tudo vai ficar bem.
A essa altura, já havia cinco enfermeiras assistindo à cena, na
porta do quarto.
— Os pais de vocês chegam daqui a pouco — uma delas disse.
— É, quer dizer, nem tão bem assim — corrigiu Letícia, rindo.
— Daniel, acho que os nossos dias de convivência sob o mesmo
teto chegaram ao fim. É certeza que nossas mães vão fazer a gente
voltar pra São Paulo. Esse negócio de morar sozinhos em outra
cidade não foi, exatamente, um sucesso.
Ele sorriu enquanto a olhava nos olhos.
— Ah, qual é. Maior injustiça. A gente se virou muito bem, por
aqui. Eu só fiz um microondas explodir, nosso apartamento foi
alagado, o teto literalmente caiu, ficamos presos em um elevador
enquanto você queimava de febre, você foi sequestrada por um
maluco, nós dois fomos baleados… Nada demais.
A garota riu e Daniel aproximou o rosto do dela.
— A gente devia remarcar aquele jantar — propôs Daniel.
— Com certeza.
Ele a beijou acariciou o rosto dela. Os dois se encararam em
silêncio por um longo tempo, preenchidos pela sensação incrível de
saber que estavam juntos, enfim.
Daniel fez uma careta de dor. O efeito dos remédios devia estar
passando.
— O que foi? — perguntou Letícia, preocupada.
— Ah, nada. Deve ser só uma complicação pós-cirúrgica
eminentemente mortal.
A garota o olhou chocada por um momento.
Daniel começou a rir e explicou:
— Estou só brincando. Relaxa.
Ah, aquele peculiar senso de humor. Letícia pensou que devia
mesmo amá-lo muito, para aturar aquilo numa boa.
— Idiota — ela resmungou, mas foi o xingamento mais
carinhoso que já tinha proferido na vida.
— Quanto romantismo, meu amor — retrucou Daniel, em um
tom doce, enquanto olhava fixamente nos olhos brilhantes dela.
— Você é mesmo um idiota — disse Letícia, sorrindo. — Mas é
o meu idiota. É isso o que importa.
Aquilo era tudo o que ele precisava ouvir.
Capítulo 44

Daniel segurou com força a mão de Letícia enquanto a levava para


a cobertura do prédio do hospital. Estava ansioso para ver a reação
dela.
Mas, para levá-la ao lugar planejado, eles precisavam pegar o
elevador. Daniel apertou o botão, sentindo-se meio nervoso.
— Eu nunca mais vou confiar num elevador. Que Deus nos
proteja.
Letícia riu.
— Além de medo de trovão, agora vai ficar com medo de
elevador, é?
— Eu tenho meus motivos — o rapaz resmungou. — E não
venha ficar falando que eu tenho medo de trovão, eu já superei, tá.
— Sei... — Letícia respondeu, abraçando-o de leve, com medo
de tocar no ferimento dele.
Ao olhar no espelho do elevador, ela teve uma sensação boa.
Ela e Daniel estavam com roupas normais, em vez dos trajes azuis
claros do hospital. Era como se as coisas tivessem voltado ao
normal, como se aquele elevador pudesse levá-los de volta para o
apartamento deles.
— Não vamos levar bronca por tirar aquelas camisolas feias do
hospital e por sair pra passear à noite?
— A gente não tá saindo do hospital, então tecnicamente não
estamos fazendo nada errado. E trocar de roupa era necessário,
porque essa noite tem que ser perfeita.
Quando o elevador chegou ao último andar, Daniel pediu que
Letícia fechasse os olhos e a guiou pelas mãos.
— Antes de toda essa doideira acontecer, a única coisa que eu
queria era sair pra jantar com você. Eu tinha planejado um
piquenique romântico à luz das estrelas, e tudo mais. E aí você não
voltou pra casa e eu quase morri do coração, mas no fim deu tudo
certo porque eu pude pular na frente da bala e salvar a sua vida, e
agora eu sou o seu herói. Se bem que não adiantou muita coisa,
porque depois aquele cretino atirou em você de qualquer jeito, mas
pelo menos eu tentei. E ficar internado com a mulher mais linda do
universo até que tem sido uma boa experiência.
De olhos fechados, Letícia riu.
— Mas agora temos que resolver um assunto inacabado: a
nossa noite romântica. — Daniel continuou a falar, animado. —
Pode abrir os olhos.
Letícia viu, no chão da cobertura do prédio, uma toalha de
piquenique estendida, o jantar pronto, taças de vidro e uma
decoração chique com pequenas velas iluminando tudo. O céu
estava limpo, e, de forma quase mágica, era possível enxergar
algumas dezenas de estrelas. Um piquenique romântico à luz das
estrelas.
Letícia agarrou Daniel, esquecendo-se de que ele devia estar
com dor nas costas. Era como se estivessem se beijando pela
primeira vez.
Quando eles se sentaram sobre a toalha de piquenique, Daniel
beijou a testa de Letícia, e, à luz fraca das velas, beijou também a
cicatriz no braço dela.
— Letícia, eu não consigo imaginar a minha vida sem você. Eu
sei que fiz muita besteira no passado, mas agora eu prometo te
amar do jeito que você merece. Eu quero poder te chamar de minha
namorada, e depois de minha esposa. Você deixa?
— Isso é um pedido de namoro ou de...
— Só diz sim pra eu poder te beijar de novo — ele interrompeu.
Ela sorriu, e Daniel pôde ver felicidade verdadeira naqueles
olhos lindos e brilhantes.
— É claro que sim!
***

Perto dali, escondidas atrás de uma caixa d’água, duas


mulheres observavam a cena, empolgadas.
— Amiga, a gente não devia dar um pouco de privacidade ao
casal? — perguntou Lúcia, cochichando.
Verônica continuou a espiar.
— O médico provavelmente vai dar alta pra eles
amanhã.Depois de todo o susto que a gente passou, acho que é
hora de curtir o momento.
As mães de Daniel e de Letícia não podiam conter a alegria.
— Nosso plano deu certo! — disseram elas, partindo para o
abraço e para uma espalhafatosa dancinha da vitória.
— Eu sabia que essa ideia de colocar os dois pra morar juntos
ia funcionar — disse Lúcia. — A Lurdes até hoje reclama que eu
inventei uma história para não deixar a Letícia morar com ela, mas
valeu a pena! Tirando a parte que eles quase morreram, claro. Mas
o importante é que agora eles estão bem e nós já podemos começar
a planejar o casamento!
— Então, amiga... Acho que agora que o Daniel vai pedir a
Letícia em namoro.
— Afe, devia pedir em noivado, logo — resmungou a mãe de
Letícia.
— Esses jovens de hoje em dia são TÃO lentos! — a mãe de
Daniel concordou.
— De qualquer forma, já podemos começar a pensar na
decoração da cerimônia. O que você acha de rosas vermelhas?
— Amiga, era justamente isso o que eu ia falar! Esse
casamento vai ficar perfeito! — Animadas com a conversa, Lúcia e
Verônica se retiraram discretamente da cobertura do prédio.
Nem Letícia nem Daniel perceberam que elas estiveram ali.
Estavam muito ocupados. Daniel só conseguia ver o rosto lindo da
garota por quem ele estava apaixonado. Letícia só conseguia ouvir
a voz de Daniel, aquela voz capaz de derreter tudo dentro dela,
dizendo:
— Caramba. Eu te amo tanto.
Abraçados, eles olharam as estrelas. Daniel beijou a testa de
Letícia, e ela se aconchegou nos braços dele. Em meio àquele
universo enorme, contra todas as possibilidades, eles tinham se
encontrado. Estavam juntos, enfim, aproveitando o privilégio de
poder estar com quem se ama. E, em seus corações, eles estavam
decididos a não desperdiçar um segundo daquele presente.

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