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Stella França
Ficha catalográfica
França, Stella
Sob o mesmo teto / Stella França
1. Ed. – Rio de janeiro
CDD B869.8
Abril: Ases da Literatura, 2021
(broch)
1. Literatura
2. Título
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ASES DA LITERATURA
Capítulo 1
***
***
Daniel e Letícia estavam saindo do restaurante do hotel, depois
de tomar o café da manhã. Era um domingo de sol e Daniel estava
inconformado com o fato de que o apartamento já tinha sido
reformado e que eles estariam de volta no dia seguinte.
— Não dá pra acreditar que hoje é o nosso último dia no hotel.
Passou rápido demais! — ele comentou.
— Pois é.
— E você nem aproveitou nada.
— Não é verdade — Letícia respondeu.
— É sim. A piscina, por exemplo. Você nem olhou pra ela, e a
temperatura da água é ótima — disse Daniel, apontando para a
grande piscina azul, que estava perto de onde eles caminhavam.
Letícia se aproximou e fixou o olhar na piscina.
— Bem, estou olhando para ela, agora. É uma ótima piscina. Eu
só não vou entrar porque já tenho um compromisso pra hoje.
— Jura? Você tem um compromisso? Que novidade. Seria uma
pena, se…
Letícia percebeu o que Daniel ia fazer. Ela conhecia muito bem
aquele olhar de quem estava prestes a aprontar. Sabia o que
significava aquele sorrisinho no canto da boca.
— Daniel, nem pense nisso! — ela exclamou, mas era tarde
demais. Daniel a ergueu do chão, e ela se de bateu loucamente nos
braços dele. Foi inútil. Ele a jogou na piscina sem pensar duas
vezes.
— Seu idiota! Eu estou de calça jeans, caramba! — reclamou
Letícia, enquanto Daniel ria sem parar.
Ela nadou até a borda da piscina e ergueu a mão.
— Pára de rir e me ajuda a sair daqui. AGORA! — exigiu,
indignada.
Daniel estendeu a mão para ela, ainda sem conseguir parar de
rir. Letícia agarrou a mão dele, sorriu e o empurrou para dentro da
piscina.
— Ah, não, Letícia. Que droga — disse Daniel, passando a mão
pelo cabelo ensopado.
— Nossa, não acredito que você caiu no velho truque do “me
dá uma mãozinha”. Francamente, eu esperava mais de você —
caçoou Letícia, rindo enquanto jogava mais água da piscina no rosto
dele. Como se ele já não estivesse suficientemente molhado. Daniel
revidou imediatamente.
Qualquer pessoa que passasse naquele momento perto
daquele lugar veria dois jovens dentro da piscina, vestidos com
roupas casuais (e obviamente encharcadas), rindo e se divertindo
como crianças.
— Não se você percebeu, mas a gente está pagando o maior
mico — comentou Letícia entre risadas, quando finalmente houve
uma trégua na guerra de água.
— Nem ligo — disse Daniel, voltando a jogar água no rosto
dela.
— Ei, para com isso! Vão expulsar a gente daqui, você vai ver.
Sério, estou me sentindo uma criança de novo, depois dessa —
disse a garota.
— Por falar em criança… Eu reparei que você tem voltado meio
estranha daquele seu trabalho voluntário com as criancinhas. O que
é que está rolando, hein? — Daniel quis saber.
Letícia se surpreendeu, porque costumava achar que Daniel
não se importava nenhum pouco com aquilo. Ela hesitou um pouco
antes de responder.
— É que… Bem, eu não sei se eu já comentei com você, mas
essa creche onde eu estou trabalhando é um lugar improvisado pra
ajudar os pais que precisam trabalhar fora e não têm com quem
deixar os filhos. Eles deixam as crianças na creche, e os voluntários
ajudam dando refeições, preparando atividades, ajudando no dever
de casa, essas coisas. As crianças atendidas pela creche são todas
muito pobres e uma boa parte delas tem problemas familiares. A
questão é que, ultimamente, eu ando muito preocupada com uma
das crianças, em especial. É uma garotinha de cinco anos, e toda a
vez que eu olho pra ela ou consigo sentir que há alguma coisa muito
errada acontecendo. O problema é que eu não sei bem o que é.
Estou tentando descobrir.
— Poxa. Que tenso. Me mantenha informado sobre isso. E se
eu puder ajudar de alguma forma, é só falar — disse Daniel.
Letícia sorriu, pensando na raridade daquele comportamento.
Ele tinha mesmo dito aquilo?
— Uau, Daniel. Você sendo fofo e prestativo? Pessoas da
sociedade, peguem seus guarda-chuvas, porque vai chover —
brincou Letícia.
— Ei, isso foi ofensivo, tá legal? — reclamou Daniel, jogando
novamente uma quantidade enorme de água da piscina no rosto de
Letícia.
— Com licença, senhores… — disse um dos funcionários do
hotel, aproximando-se da borda da piscina e olhando para a
camiseta encharcada de Daniel — É expressamente proibido utilizar
a piscina sem roupas de banho adequadas. Infelizmente terei que
pedir que os senhores se retirem.
— Eu disse que iam expulsar a gente — Letícia sussurrou para
Daniel, e os dois falharam ao tentar segurar o riso.
Capítulo 19
— Ah, não, não, não, não, não, não, não — repetiu Daniel
baixinho, no escuro, recusando-se a aceitar aquela situação.
Letícia apertou o botão de alarme, o que chamava a assistência
técnica, e depois todos os botões imagináveis. Conforme esperado,
nenhum deles funcionou. Depois pegou o celular na bolsa e o
colocou no modo lanterna. Direcionou a luz para o rosto de Daniel.
— Você não tem claustrofobia, tem? Diz que não — disse
Letícia.
— Não — Daniel gemeu.
— Nesse caso, acho que vamos ficar bem até a energia voltar
— ela tentou tranquilizá-lo. O rapaz olhou bem para a garota, vendo-
a tremer e respirar com dificuldade.
— É o que eu espero — disse ele, embora não acreditasse
nenhum pouco nisso. Daniel se lembrou do termômetro que
tinha guardado em seu bolso e retirou-o de lá. Olhou para o objeto e
respirou fundo.
— Estou com muito medo de fazer isso, mas vamos lá — o
rapaz inseriu o termômetro no ouvido da garota, fez a medição de
temperatura e depois olhou para o visor. Letícia notou que ele
parecia aterrorizado.
Conforme ele suspeitava, a febre tinha piorado.
— Ah, não... — resmungou Daniel, sem tirar os olhos do visor
do aparelho. — Ei — ela se aproximou dele e o
olhou nos olhos. — Relaxa. Não tem motivo nenhum pra se
preocupar, OK?
— É,com certeza.Motivo nenhum — ele retrucou
sarcasticamente, angustiado.
Guardou o termômetro e pegou seu celular. Estava sem sinal, é
claro. Assim como Letícia havia feito, ele também ligou a lanterna do
aparelho, de forma que o pequeno compartimento ficou mais bem
iluminado.
— Quanto tempo você acha que vai demorar pra energia
voltar? — perguntou Letícia.
— O último apagão durou umas três horas... — respondeu o
rapaz, tentando imaginar que, daquela vez, a energia retornaria
rapidamente.
— Bem, acho melhor a gente se sentar, então — propôs Letícia.
Ela se sentia fraca demais para continuar em pé por um minuto que
fosse.
Os dois jovens se sentaram lado a lado, de costas para o
espelho do elevador, e se encararam por um tempo.
— Você sempre foi a aluna queridinha dos professores, né? —
disse Daniel, lembrando-se da cara de satisfação do professor
enquanto ela apresentava o trabalho.
Letícia riu.
— Não é verdade.
— É sim! Aquela nossa professora do colégio, a dona
Georgiana, quase erguia um altar pra você nas aulas.
Letícia sorriu ao se lembrar da professora.
— A dona Georgiana era bem legal.
— Realmente, ela era superlegal com você. Comigo, ela era o
cão. Caramba, como aquela velha me odiava.
— Será que é porque você jogava truco durante a aula dela? —
perguntou Letícia, rindo.
— É. Devia ser por isso — disse Daniel, pensando em tudo o
que ele tinha aprontado na época do colégio. Tentou afastar
algumas lembranças incômodas que o faziam ter vergonha de si
mesmo, mas elas vieram mesmo assim.
— Parece que faz um século, né? — comentou Letícia,
pensando sobre como as coisas haviam mudado.
— Pois é — concordou Daniel, ansioso para mudar de assunto.
Não encontrou nada pra dizer, então ficou em silêncio olhando
fixamente para a garota.
Os lábios dela estavam sem cor e ela continuava tremendo.
Parecia prestes a desmaiar, e Daniel torceu pra que as portas
daquele maldito elevador se abrissem antes que ela piorasse ainda
mais. Ele se aproximou e mediu a temperatura dela novamente.
— Que droga, sua temperatura não para de subir.
Tudo o que Daniel conseguia pensar é que alguém tinha dito
(ou ele teria lido em algum lugar?) que depois que a temperatura de
uma pessoa ultrapassa os 41 graus, é melhor começar a se
despedir dela.
Daniel tentou manter a calma e pensar no que poderia fazer
para que a temperatura da garota diminuísse.
— Letícia, você vai ter que tirar o casaco, tudo bem? — disse
Daniel. Aquela era a única medida que ele pôde imaginar no
momento.
— Ah, não — Letícia gemeu. — Não me pede pra fazer isso, eu
estou morrendo de frio.
— Você já está quente demais. Se tirar o casaco, talvez a sua
temperatura pare de subir tão rápido.
Ele tirou o casaco dela o mais gentilmente que pôde. Assim
que notou a bolsa que estava jogada num canto, começou a revirá-
la sem nem pedir permissão.
— O que você está fazendo? — Letícia perguntou.
Ele nem respondeu. Precisava encontrar alguma coisa útil ali
dentro. Água, por exemplo. Ele se lembrou de que pessoas febris
ficam facilmente desidratadas (especialmente dentro de um cubículo
abafado como aquele em que estavam). Só encontrou uma garrafa
de plástico vazia.
— Ah, que ótimo. Muito útil isso aqui — ele reclamou,
mostrando a garrafa para Letícia.
— Eu ia encher no bebedouro — ela explicou.
— Bem, eu acho que isso aqui comprova que essa história de
que “bolsa de mulher guarda tudo o que ela precisa” é mito. Quer
dizer, aqui não tem água, nem paracetamol, nem um pé de cabra ou
um machado pra gente arrombar a porta do elevador — ele largou a
bolsa dela, desanimado.
— Desculpe por ter me esquecido de trazer um machado — ela
disse, rindo. Ele olhou para ela e automaticamente sorriu
também. Reparou que Letícia estava muito mais bem-humorada e
positiva que ele, apesar de tudo. Ele respirou fundo e decidiu que, se
não podia fazer nada para ajudá-la, pelo menos tentaria ser um
pouco mais agradável.
— Daniel — Letícia pronunciou, em um tom de voz muito baixo.
— Posso pegar seu ombro emprestado?
Ela não esperou por resposta alguma e recostou a cabeça no
ombro dele, enquanto tremia de forma quase convulsiva. Daniel
sentiu o calor febril da garota sobre seu ombro, sentiu o cheiro do
xampu dela, ouviu de perto aquela respiração acelerada e
inconstante e foi invadido por uma onda de afeto tão intensa que o
desnorteou por um momento.
Acariciou o cabelo dela durante alguns segundos, enquanto o
silêncio absoluto reinava naquele ambiente apertado. Depois de dois
minutos, o silêncio passou a incomodá-lo ao extremo.
— Letícia?
— Oi. — A voz dela saiu como um sussurro.
— Eu não gosto de ver você tão quieta. Conversa comigo.
— Ahã — ela respondeu, em um tom de voz nada disposto.
— Me fala daquela vez em que você jogou meu Super-Homem
pela janela.
Letícia sorriu e começou a falar muito baixo e pausadamente.
— Você tinha uns sete anos. E era uma peste. Naquele dia...
Eu tive que ir com a minha mãe à sua casa, porque ela tinha me
obrigado. Eu odiava ir à sua casa. Sério. Era o pior lugar do mundo.
Toda a vez, mamãe dizia algo tipo... “Vá brincar com o Dani,
enquanto eu converso com a Verônica”. Eu nunca ia brincar com
você... Porque, bem, você era uma peste. Eu gostava de ficar
escondida no quintal da sua casa. Perto daquele jardinzinho que a
sua mãe tinha. Gostava de ficar lá, sozinha, olhando os insetos. Mas
você... Você sempre aparecia pra encher o saco. Toda vez, você
ficava insistindo...
A voz dela soava tão fraca e tão sonolenta que Daniel teve
medo de que ela parasse de falar, mas ela continou:
— Insistindo pra eu ir até o seu quarto ver algum brinquedo
novo que você tinha ganhado. Naquele dia eu fui lá, ver você se
exibir, como sempre. E então... Eu achei aquele bonequinho do
Super-Homem, esquecido embaixo da sua cama. Eu comecei a
brincar com ele. E aí você deu o maior chilique de criança mimada...
Porque você não queria que eu tocasse nas suas coisas. Eu já
estava de saco cheio... Você sempre agia daquele jeito. Aí, em vez
de te devolver o Super-Homem... Eu saí correndo até a janela do
segundo andar e atirei... Eu atirei o seu boneco pela janela, tão
longe que ultrapassou o portão. Você começou a surtar e a brigar
comigo. Daí, eu coloquei a cabeça pra fora da janela e berrei: “Você
está livre, Super-Homem! Voe! Voe pra longe desse menino chato!”
A garota sorriu, enquanto tentava recuperar o fôlego. Nunca
tinha imaginado que contar uma história pudesse ser tão difícil.
Daniel sorriu junto com ela.
— Eu gosto dessa história — ele disse, por fim.
— É, eu também — a garota sussurrou.
Outro longo período de silêncio se seguiu. A cada segundo, ela
ficava mais distante, e isso o apavorava. Ele não sabia o que fazer,
e o pior de tudo é que não havia o que fazer, a não ser esperar que
a energia voltasse.
— Aguenta só mais um pouco, tá bom? Você vai ficar bem. Eu
prometo — disse Daniel, em um tom suave e falsamente tranquilo.
Letícia não respondeu nada. Talvez nem estivesse ouvindo.
Daniel afastou carinhosamente uma mecha de cabelo que
encobria o rosto dela, desejando em desespero que a energia
voltasse logo. Ele tentou conter o pânico e manter a calma, mas,
naquela situação, fazer isso parecia praticamente impossível. Letícia
não tinha se movido um centímetro desde que recostara a cabeça
no ombro de Daniel. Era assustador vê-la daquele jeito. Afinal, ela
era a pessoa mais inquieta e enérgica que ele já conhecera.
— Letícia.
Não houve resposta.
— Letícia! — Daniel chamou novamente, enquanto a colocava
deitada no colo dele, em uma posição mais confortável e de um
modo que ele pudesse olhar melhor para o rosto dela.
— Ei, olha pra mim. Olha pra mim, tá bem? — ele implorou.
Ela abriu os olhos e o encarou com um olhar vazio por alguns
segundos. Letícia descobriu que gostava dos olhos dele. Gostava
daquela cor indefinida, daquele tom castanho claro que,
dependendo da luz, transformava-se em outras cores. Às vezes
ficava mais claro, às vezes mais escuro, de vez em quando meio
esverdeado. Ela queria continuar olhando, mas parecia impossível.
Sentia que suas pálpebras estavam pesadas demais. Lutou contra
elas o quanto pôde, até que seus olhos finalmente se fecharam e
ela não teve forças para abri-los novamente, embora conseguisse
escutar vagamente a voz de Daniel dizendo alguma coisa, ao fundo.
Quando a temperatura dela aumentou ainda mais, as luzes
finalmente se acenderam e a porta do elevador se abriu.
Capítulo 23
Havia lama por todos os lados. Letícia fez uma careta ao ver seu All
Star limpinho afundar naquela terra cheia de germes. Ela achou o
campo de jogo um lugar imundo e esquisito. Havia barris e
barricadas espalhados por todo o canto. Havia uma pequena
construção de dois andares parecida com uma casinha de
playground caindo aos pedaços, e Letícia imaginou que as pessoas
deviam se esconder dos tiros de tinta lá. No centro do campo,
estava instalada uma bandeirinha vermelha.
Enquanto ela e Daniel pegavam os equipamentos do jogo, ele
explicou rapidamente que eles e as outras pessoas que estavam ali
formariam grupos que se enfrentariam.
O objetivo é pegar a bandeira vermelha que está no centro do
campo e depois colocá-la na base adversária. O grupo que fizer isso
primeiro ganha. Quem levar três tiros é eliminado do jogo e tem que
se retirar do campo até a próxima partida — disse Daniel.
— Olha, já que tem essa galera toda animada para jogar, que
tal se eu ficasse fora do campo torcendo por você? Hein? Eu te dou
apoio moral e você ajuda a manter a minha integridade física —
propôs a garota, com um sorriso nervoso.
— Nada disso, Letícia. Você não vai escapar dessa. Vai ser
legal, você vai ver — afirmou Daniel.
— O que tem de legal em ficar correndo de um lado para o
outro no meio desse barro nojento enquanto pessoas atiram tinta em
você? — ela perguntou, irritada.
— Levar um tiro de tinta não é a pior coisa do mundo. Quer
ver? — Daniel se distanciou e atirou uma bola de tinta amarela no
colete de proteção que ela usava.
— Viu só? Você ainda está viva — disse Daniel, entre risadas.
Para ele, nunca na vida Letícia estivera com uma expressão mais
hilária.
Letícia viu, indignada, que a tinta tinha escorrido, sujando sua
calça jeans preferida. Fuzilou Daniel com o olhar.
— Eu vou te matar, seu babaca! — ela apontou para Daniel a
arma que estava segurando e o atingiu com uma rajada de bolinhas
de tinta, uma após a outra, sem parar.
— Ei! — gritou um dos fiscais de jogo. — A partida ainda não
começou! Agora vou ter que repor a munição de vocês. Fiquem
sabendo que só é permitido atirar quando eu der o sinal!
Letícia riu quando olhou para Daniel e viu que ele estava
coberto de tinta colorida.
— Isso doeu. É em uma hora como essas que você descobre
se a garota que divide o apartamento com você é uma pessoa do
bem ou uma criatura rancorosa e vingativa — murmurou Daniel. —
Acabo de descobrir que você está mais para a segunda opção.
— Você ainda não viu nada — retrucou Letícia. — Pela honra
da minha calça jeans, eu vou me certificar de que o meu time vai
massacrar o seu.
— Achei que a gente fosse fazer parte do mesmo grupo… —
disse Daniel. — É, mas isso foi antes de você manchar minha calça
novinha com essa tinta gosmenta!
Daniel sorriu com uma irritante expressão de tranquilidade.
— Você vai ser eliminada nos dois primeiros minutos de jogo.
— É o que nós vamos ver. Boa sorte e que vença o melhor
time. O meu, no caso — disse Letícia, usando um falso tom de
superioridade.
— Boa sorte, princesa. Como você é iniciante, vou pegar leve
— disse Daniel, mantendo o sorriso despreocupado.
— Que bom. Porque eu não vou pegar nada leve com você —
ela rebateu, e Daniel riu.
Os times estavam equilibrados. Letícia gostou especialmente
do seu grupo, que era formado por três caras jovens e simpáticos e
um casal um pouco mais velho que praticava paintball há algum
tempo. Eram seis pessoas ao todo. No time de Daniel, também havia
só duas mulheres. Um cara barbudo bem-humorado e outros dois
rapazes completavam o time.
Todos os participantes colocaram as máscaras de proteção e o
jogo foi iniciado.
Logo nos cinco primeiros minutos, três pessoas da equipe de
Letícia tinham sido eliminadas e ela, surpreendentemente, não
levara um tiro sequer.A possibilidade de ficar manchada de tinta era
uma motivação e tanto para que Letícia se movimentasse pelo
cenário de uma forma discreta e estratégica.Ela tinha conseguido
até atingir alguém. Não foi o Daniel, mas ela dizia a si mesma que a
hora dele estava chegando.
No time de Daniel, restavam ainda quatro pessoas.Um homem
do grupo da Letícia conseguiu eliminar um competidor do time
adversário, deixando a situação dos dois grupos igual: agora eram
três contra três.
Letícia e seus dois parceiros se reuniram em um local
relativamente seguro e discutiram rapidamente sobre qual seria a
estratégia deles para pegar logo aquela bandeira e levá-la para a
base adversária.
Os dois rapazes do time da Letícia partiram para o ataque
repentino. Enquanto o time de Daniel tentava se defender e revidar
os tiros de tinta, Letícia atravessou o campo correndo e pegou a
bandeirinha.
Daniel a olhou sem acreditar no que estava vendo. Ela corria a
uma velocidade absurda e estava vindo diretamente para a base do
grupo dele.Se ela chegasse a tempo e colocasse aquela bandeira
ali, venceria o jogo.Para Daniel, a ideia de perder jogando contra
Letícia, que nunca tinha nem tocado em uma pistola de paintball, era
impensável.
Daniel precisava acertar três tiros nela antes que ela chegasse
à base.Ele mirou perfeitamente e errou o tiro. Desde quando aquela
menina sabia correr tão rápido? Letícia visualizou Daniel, apertou o
gatilho da pistola e o acertou,rindo de satisfação.
Na segunda tentativa, Daniel conseguiu acertar Letícia,
sujando-a de tinta verde. Ela retribuiu atirando de volta no colete
dele. A garota só precisava acertá-lo mais uma vez e ele estaria
eliminado.Ela se escondeu atrás de uma trincheira por um segundo,
com a bandeira vermelha na mão esquerda.Quando olhou em volta,
percebeu que só tinham sobrado ela e Daniel no campo!Todos os
outros já tinham sido eliminados e ela nem sequer vira como isso
tinha acontecido. Ela tinha que chegar até a base inimiga. Era agora
ou nunca.
Letícia saiu do abrigo como um raio e voltou a correr.Daniel
conseguiu acertá-la com tinta mais uma vez. Agora, eles estavam
na mesma situação. Mais um tiro e um dos dois perderia o jogo.
Ela estava se aproximando rapidamente. Daniel se concentrou,
respirou fundo e atirou na direção da garota. Para a surpresa dele, o
tiro passou longe. Letícia riu e gritou:
— Você tem a mira de uma velhinha míope!
Letícia conseguiu acertar a última bolinha de tinta em Daniel e
colocou a bandeira na base inimiga, vencendo o jogo.
O fiscal fez soar o alarme, sinalizando o fim de jogo.Letícia
comemorou a vitória animadamente. Daniel nunca a vira tão
empolgada. Eles tiraram as máscaras de proteção e o rapaz se
aproximou dela.
— Ahá! Quem é que ia ser eliminada nos dois primeiros
minutos, hein? — provocou Letícia, rindo enquanto apontava o dedo
na cara dele.
— Isso foi sorte de iniciante — defendeu-se Daniel, sorrindo.
— Ah, jura? — ela retrucou ironicamente. — Mas, espera, eu
tenho uma pergunta a fazer. Qual é a sensação de ser um
perdedor?
Daniel apontou para a calça manchada de Letícia.
— E qual é a sensação de ficar toda manchada de tinta,
senhorita neurótica por limpeza?
— Eu não sou neurótica!
— Claro que é.Mas olha pelo lado positivo:pelo menos hoje a
vida te presenteou com uma sorte de iniciante gigantesca.
— Ah, cala a boca — disse a garota.
— Me obrigue — respondeu Daniel, aproximando o rosto do
dela.
Letícia o puxou para mais perto e eles se beijaram longamente.
Capítulo 27
— Eu não devia ter feito isso. Por que eu fiz isso? Qual é o meu
problema? Eu não devia ter feito isso! — Letícia sussurrou,
enterrando a cabeça no travesseiro.
Eram oito horas da noite e Letícia estava trancada no quarto
repetindo essa frase sem parar.
A garota se olhou no espelho mais uma vez. Procurou qualquer
resquício de tinta que talvez não tivesse saído de seu corpo, apesar
de ter tomado um banho de uma hora de duração. Não encontrou
nada. Estava perfeitamente limpa.
Ela estava nervosa com a situação entre ela e Daniel e tentava
aliviar aquela tensão se certificando de que tudo estava em ordem
naquele quarto. Aparentemente, a cabeça dela era a única coisa
desorganizada.
Letícia só conseguia pensar que estava estragando tudo. Em
pouco tempo de convivência, ela tinha começado a gostar de ficar
perto dele, tinha descoberto nele um monte de qualidades. Quer
dizer, algumas qualidades. De qualquer forma, ela tinha aprendido a
gostar dele.
O problema é que ela sentia que estava começando a gostar
dele de um jeito diferente. Estava pensando nele mais do que
deveria. E, para piorar as coisas, eles tinham se beijado no meio de
um campo de paintball e ela simplesmente não tinha feito nada para
impedir. Na verdade, ela não queria impedir. Isso a assustava.
Letícia sabia que se apaixonar por Daniel seria uma grande
idiotice. Era um erro que ela decidiu que não poderia cometer de
jeito nenhum.
Daniel estava sentado no sofá da sala de estar, jogando
videogame. Naquele dia, ele estava estourando com muito mais
raiva as cabeças dos zumbis que apareciam na tela. Descontar as
frustrações neles parecia uma boa opção, no momento.
Aquela garota ia acabar deixando-o louco, ele pensou. Por que
raios ela parecia gostar dele de verdade em um momento, e no
momento seguinte ela simplesmente mudava de assunto e dizia
para ele esquecer tudo? Como ele podia esquecer? Letícia era
muito esquisita, ele concluiu, enquanto matava sete zumbis em
sequência. E ele odiava o fato de estar apaixonado por uma garota
tão complicada como ela.
— Droga, droga, droga — sussurou.
Depois de pensar mais sobre o assunto, ele começou a achar
que, talvez, fosse até compreensível aquele comportamento dela.
Quer dizer, Daniel se lembrava perfeitamente do quanto tinha sido
idiota com ela no passado. De todas as vezes que a provocou sem
motivo, das vezes em que destruíra os trabalhos de escola dela
antes que ela pudesse entregá-los, só pelo prazer de vê-la ficar sem
nota. Uma das atividades favoritas de Daniel na época do colégio
era provocar Letícia, e ele nunca tinha entendido muito bem o
porquê.
Claro, era compreensível que Letícia ficasse desconfiada dele,
concluiu o rapaz. Ele também ficaria se estivesse no lugar dela.
Finalmente, Daniel entendeu que precisava mostrar para a garota
que agora ele era alguém em que se podia confiar. Tinha que provar
que estava disposto a fazer o que fosse preciso por ela. Daniel ficou
ainda mais determinado em se redimir, em compensar Letícia pelas
coisas ruins que tinha feito. Ele ia pagar aquela dívida. Só não sabia
como, ainda, mas disse a si mesmo que um dia conseguiria fazer
algo de realmente importante por ela. Enquanto isso, ele iria esperar
e ser paciente. Cedo ou tarde, aquele momento chegaria.
— Ei, você quer refrigerante? — a voz de Letícia soou, vindo da
cozinha.
Daniel respondeu que sim, e ela trouxe uma latinha para ele.
Letícia se sentou no sofá e ficou observando aquele jogo que
parecia completamente sem sentido.
— Sério, eu não entendo como você consegue se divertir com
um jogo tão bobo — ela comentou.
— Não é um jogo bobo, tá legal? Isso aqui exige muita
estratégia e uma mente rápida e inteligente, além de anos de prática
— respondeu Daniel, usando seu tom de superioridade bastante
característico.
— Ah, claro — retrucou Letícia. — Agora me dá licença que eu
vou ali fazer algo útil. Imediatamente, ele pausou o jogo e olhou
para Letícia.
— Ei. Você se esqueceu de que hoje sou eu quem decide o que
você vai fazer?
Ela revirou os olhos. Tinha mesmo se esquecido, por um
momento.
— Letícia, hoje você será apresentada à magia e diversão do
mundo dos games. É claro que você nunca vai chegar ao meu nível,
mas todo mundo tem que começar, um dia.
— Achei que você já estivesse cansado de perder, por hoje.
Passa esse controle pra cá — respondeu Letícia, rindo.
Capítulo 28
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Havia um teto branco acima dela. Essa foi a primeira coisa que
Letícia conseguiu perceber, assim que abriu os olhos. No segundo
seguinte, as imagens horríveis do que tinha acontecido inundaram a
mente dela.
— Daniel — ela sussurrou, apavorada.
Sentiu o coração disparar loucamente e alguma coisa começou
a apitar, mas Letícia não deu a mínima. Precisava sair dali.
Precisava encontrar Daniel.
Ela se jogou da cama, sem hesitar um segundo.Seu corpo não
lhe obedecia prontamente, de forma que ela teve que forçá-lo a sair
do lugar.
Letícia caiu sobre a cerâmica fria que cobria o chão do
quarto.Sentia uma dor horrível na região do tórax.Achou que não
conseguiria se levantar, mas a imagem de Daniel sangrando sem
parar voltou à sua mente e ela se obrigou a ficar de pé.
Deu alguns passos em direção à saída do cômodo. Seu braço
estava preso a um longo tubo. Letícia arrastou o suporte de soro
consigo e saiu do quarto.
— Daniel? Daniel! — ela gritou pelo corredor do hospital como
louca.
A possibilidade de que ele estivesse morto a apavorava. Daniel
tinha que estar bem. Tinha que estar em algum daqueles quartos,
recuperando-se tranquilamente e vendo programas ruins na
televisão. Ela precisava desesperadamente saber que ele estava
vivo.
Começou a abrir todas as portas que via pela frente, em pânico.
— Ei! Você! — uma mulher de branco berrou, lá do final do
corredor.
Letícia continuou a abrir as portas, procurando por Daniel.
— Você não devia estar de pé. — A enfermeira se aproximou e
tocou o braço da garota. — Vem, vamos voltar para…
— Cadê o Daniel? — perguntou Letícia, enquanto lágrimas
começavam a se formar em seus olhos. — Me mostra onde ele
está. Eu preciso saber, por favor.
— Ei, calma — a mulher disse, em voz baixa. — Você tem que
se acalmar, ou…
— Eu quero ver o Daniel agora! — a garota insistiu, em
desespero. — Por favor, diz que ele está bem. Por favor.
A enfermeira voltou a dizer que ela precisava se acalmar e
voltar para a cama, mas Letícia a ignorou e continuou a abrir as
portas que encontrava, ainda mais alarmada que antes. Por que não
recebera nenhuma resposta?
E então, ao abrir uma das portas, Letícia o encontrou.
Ela se aproximou da cama e colocou a mão sobre a dele. Os
olhos de Daniel permaneceram fechados.
Letícia sorriu. Ele estava vivo. Ficariam juntos, como tinha que
ser. Passou os dedos pelo cabelo dele e sussurrou:
— Nem pense em me deixar. Eu preciso de você.
Assim que a garota acabou de pronunciar essas palavras,
Daniel abriu os olhos.
— Deixar você? — ele sussurrou de volta. — Jamais. Afinal, o
que você faria sem mim?
Letícia riu e secou uma lágrima de alívio.
— Vem cá — disse Daniel sorrindo, enquanto se ajeitava na
cama para dar espaço a ela.
Letícia se deitou na cama com ele e Daniel conseguiu envolvê-
la com um dos braços.
— Como é que a gente não morreu? — ele perguntou.
— Sei lá. Não era a nossa hora — disse Letícia. — Ei, você
sabe se o Lobo foi preso mesmo? Se as meninas estão bem?
— Pelo que ouvi as enfermeiras comentarem… O cara foi preso
em flagrante. As meninas vão ficar com a avó, provavelmente.
— Nossa, que bom ouvir isso. É, tudo vai ficar bem.
A essa altura, já havia cinco enfermeiras assistindo à cena, na
porta do quarto.
— Os pais de vocês chegam daqui a pouco — uma delas disse.
— É, quer dizer, nem tão bem assim — corrigiu Letícia, rindo.
— Daniel, acho que os nossos dias de convivência sob o mesmo
teto chegaram ao fim. É certeza que nossas mães vão fazer a gente
voltar pra São Paulo. Esse negócio de morar sozinhos em outra
cidade não foi, exatamente, um sucesso.
Ele sorriu enquanto a olhava nos olhos.
— Ah, qual é. Maior injustiça. A gente se virou muito bem, por
aqui. Eu só fiz um microondas explodir, nosso apartamento foi
alagado, o teto literalmente caiu, ficamos presos em um elevador
enquanto você queimava de febre, você foi sequestrada por um
maluco, nós dois fomos baleados… Nada demais.
A garota riu e Daniel aproximou o rosto do dela.
— A gente devia remarcar aquele jantar — propôs Daniel.
— Com certeza.
Ele a beijou acariciou o rosto dela. Os dois se encararam em
silêncio por um longo tempo, preenchidos pela sensação incrível de
saber que estavam juntos, enfim.
Daniel fez uma careta de dor. O efeito dos remédios devia estar
passando.
— O que foi? — perguntou Letícia, preocupada.
— Ah, nada. Deve ser só uma complicação pós-cirúrgica
eminentemente mortal.
A garota o olhou chocada por um momento.
Daniel começou a rir e explicou:
— Estou só brincando. Relaxa.
Ah, aquele peculiar senso de humor. Letícia pensou que devia
mesmo amá-lo muito, para aturar aquilo numa boa.
— Idiota — ela resmungou, mas foi o xingamento mais
carinhoso que já tinha proferido na vida.
— Quanto romantismo, meu amor — retrucou Daniel, em um
tom doce, enquanto olhava fixamente nos olhos brilhantes dela.
— Você é mesmo um idiota — disse Letícia, sorrindo. — Mas é
o meu idiota. É isso o que importa.
Aquilo era tudo o que ele precisava ouvir.
Capítulo 44