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Como os físicos

quânticos explicaram os
padrões climáticos
oscilantes da Terra
Ao tratar a Terra como um isolante topológico – um estado
da matéria quântica – os físicos encontraram uma
explicação poderosa para os movimentos do ar e dos
mares no planeta
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Por Katie McCormick


23/07/2023 | 17h00

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13 minde leitura

Coloridas de acordo com a temperatura, as correntes oceânicas da


Terra giram e giram. Algumas dessas correntes parecem turbulentas e
caóticas, mas outras são ordenadas e estáveis, e alimentam padrões
climáticos periódicos em larga escala. Foto: NASA/Goddard Space
Flight Center Scientific Visualization Studio
QUANTA MAGAZINE - Embora muito do ar e dos mares do
nosso planeta esteja sujeito ao capricho de uma tempestade,
algumas características são muito mais regulares. No equador,
ondas de mil quilômetros persistem em meio ao caos.
Leia também
A causa da depressão provavelmente não é o que você está pensando

Tanto no oceano quanto na atmosfera, essas ondas gigantescas,


chamadas de ondas Kelvin, sempre viajam para o leste. E
alimentam padrões climáticos oscilantes como o El Niño, um
aquecimento periódico das temperaturas oceânicas que volta a
cada poucos anos.
Os geofísicos se apoiam em uma explicação matemática para as
ondas Kelvin equatoriais desde a década de 1960, mas para
alguns essa explicação não era totalmente satisfatória. Esses
cientistas queriam uma explicação física mais intuitiva para a
existência das ondas; eles queriam entender o fenômeno em
termos de princípios básicos e responder a perguntas como: o
que há de tão especial no equador que permite que uma onda
Kelvin circule por lá? E “por que diabos ela sempre viaja para o
leste?”, disse Joseph Biello, matemático na Universidade da
Califórnia, Davis.

Em 2017, um trio de físicos aplicou um tipo diferente de


pensamento ao problema. Eles começaram imaginando nosso
planeta como um sistema quântico e acabaram fazendo uma
conexão improvável entre a meteorologia e a física quântica.
Acontece que a rotação da Terra desvia o fluxo de fluidos de uma
maneira análoga ao jeito como os campos magnéticos torcem os
caminhos dos elétrons que se movem através de materiais
quânticos chamados de isolantes topológicos. Se você imaginar o
planeta como um isolante topológico gigante, disseram eles,
poderá explicar a origem das ondas Kelvin equatoriais.

Mas, embora a teoria funcionasse, ainda era só uma teoria.


Ninguém a havia verificado diretamente por observação. Agora,
em um novo estudo ainda não analisado por pares, uma equipe
de cientistas descreve a medição direta de ondas atmosféricas
retorcidas – o tipo de evidência necessária para reforçar a teoria
topológica. O trabalho já ajudou cientistas a usar a linguagem da
topologia para descrever outros sistemas e pode levar a novos
insights sobre ondas e padrões climáticos na Terra.
“É uma confirmação direta dessas ideias topológicas, obtidas a
partir de observações concretas”, disse Brad Marston, físico da
Brown University e autor do novo artigo. “Na verdade, estamos
vivendo dentro de um isolante topológico”.
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Geoffrey Vallis, matemático da Universidade de Exeter, no Reino


Unido, que não participou do trabalho, disse que o novo resultado
é um avanço significativo que fornecerá uma “compreensão
fundamental” dos sistemas de fluidos da Terra.
A forma da água
Há duas maneiras de começar esta história. A primeira fala sobre
a água e começa com William Thomson, também conhecido
como Lord Kelvin. Em 1879, ele notou que as marés no Canal da
Mancha eram mais fortes ao longo da costa francesa do que no
lado inglês. Thomson percebeu que essa observação poderia ser
explicada pela rotação da Terra. Enquanto o planeta gira, ele
gera uma força, chamada força de Coriolis, que faz com que os
fluidos girem em direções diferentes de acordo com o hemisfério:
sentido horário no norte, sentido anti-horário no sul. Esse
fenômeno empurra a água do Canal da Mancha contra a costa
francesa, forçando as ondas a fluir ao longo de seu litoral. Agora
conhecidas como ondas Kelvin costeiras, essas ondas já foram
observadas em todo o mundo, fluindo no sentido horário em torno
de massas de terra (com o litoral no lado direito da onda) no
hemisfério norte e no sentido anti-horário no hemisfério sul.
William Thomson, mais tarde conhecido como Lord Kelvin, foi um
engenheiro, matemático e físico matemático britânico do século XIX.
Suas observações das marés no Canal da Mancha levaram à
descoberta das ondas Kelvin. Foto: T. & R. Annan & Sons
Mas levaria quase um século até que os cientistas descobrissem
ondulações equatoriais muito maiores e as conectassem às
ondas Kelvin costeiras.

Isso aconteceu em 1966, quando o meteorologista Taroh


Matsuno estava modelando matematicamente o comportamento
dos fluidos – ar e água – perto do equador. Com seus cálculos,
Matsuno mostrou que as ondas Kelvin também deveriam existir
no equador. No mar, em vez de se chocarem contra a costa, elas
colidiriam com a água do hemisfério oposto, girando na direção
oposta. De acordo com a matemática de Matsuno, as ondas
equatoriais resultantes deveriam fluir para o leste e ser enormes
– milhares de quilômetros de comprimento.
Os cientistas confirmaram as previsões de Matsuno em 1968,
quando observaram pela primeira vez as enormes ondas Kelvin
equatoriais. Foi “uma das poucas vezes que a teoria (dos fluidos
geofísicos) antecedeu a descoberta”, disse George Kiladis,
meteorologista da Administração Nacional Oceânica e
Atmosférica dos Estados Unidos. Kiladis e um colega
confirmaram mais tarde outra previsão de Matsuno quando
relacionaram o comprimento de uma onda Kelvin à frequência de
suas oscilações – uma característica conhecida como relação de
dispersão – e descobriram que correspondia às equações de
Matsuno.
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Então a matemática funcionava. As ondas equatoriais existiam,


exatamente como previsto. Mas as equações de Matsuno não
explicavam tudo. E não eram uma explicação suficiente: só
porque você consegue resolver uma equação não significa que
você a entende. “Não ficamos satisfeitos com o porquê”, disse
Biello.

O El Niño-Oscilação Sul, um padrão climático alimentado por ondas


Kelvin equatoriais, ocorre quando as temperaturas da superfície do
mar são mais quentes que a média em uma determinada região.
Nesta imagem de outubro de 2015, as temperaturas quentes da
superfície são representadas nas cores laranja e
vermelho. Foto: NOAA
Torções e redemoinhos
Acontece que o porquê estava escondido no reino quântico – um
lugar onde os geofísicos raramente pisam. Da mesma forma, a
maioria dos físicos quânticos geralmente não aborda os mistérios
dos fluidos geofísicos. Mas Marston foi uma exceção. Ele
começou a carreira em física da matéria condensada, mas
também tinha curiosidade sobre a física do clima e o
comportamento dos fluidos nos oceanos e na atmosfera da Terra.
Marston suspeitava que havia uma conexão entre ondas
geofísicas e elétrons se movendo através de um campo
magnético, mas não sabia onde encontrá-la – até que seu
colega Antoine Venaille sugeriu dar uma olhada no equador.
Marston notou que a relação de dispersão das ondas ao longo do
equador (que Kiladis havia medido) parecia notavelmente
semelhante à relação de dispersão de elétrons em um isolante
topológico. Qualquer físico de matéria condensada “iria perceber
de imediato”, disse Marston. “Se eu estivesse prestando atenção
nas regiões equatoriais da Terra, teria percebido isso muito
antes”.
E é aqui que a história começa pela segunda vez, com a
descoberta relativamente recente do comportamento quântico
dos elétrons em isolantes topológicos.

Em 1980, um físico quântico chamado Klaus von Klitzing queria


saber como os elétrons se comportavam em um campo
magnético quando eram resfriados o suficiente para que sua
natureza quântica se tornasse aparente. Ele já sabia que um
elétron que tenta atravessar um campo magnético é desviado de
sua direção de movimento e acaba se movendo em círculos. Mas
ele não sabia como isso poderia mudar quando introduziu o
componente quântico.

Von Klitzing resfriou seus elétrons quase até o zero absoluto.


Como suspeitava, na borda de um material, os elétrons
completam apenas metade de seu círculo antes de atingir a
borda. Eles então migram ao longo desse limite, movendo-se em
uma única direção. Seu movimento ao longo do limite cria uma
corrente de borda. Von Klitzing descobriu que em temperaturas
superfrias, quando a natureza quântica dos elétrons se torna
relevante, a corrente de borda é surpreendentemente robusta: é
imune a variações no campo magnético aplicado, desordem no
material quântico e quaisquer outras imperfeições no
experimento. Ele havia descoberto um fenômeno chamado efeito
Hall quântico.
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Nos anos seguintes, os físicos perceberam que a imunidade da
corrente de borda insinuava um conceito agora amplamente
reconhecido na física. Quando um objeto é esticado ou
esmagado – ou deformado sem ser quebrado – e suas
características permanecem as mesmas, diz-se que o objeto está
“topologicamente protegido”. Por exemplo, se você fizer uma fita
de Möbius torcendo uma tira de papel uma vez e prendendo as
duas pontas, o número de torções não muda, independentemente
de como a forma é esticada. A única maneira de modificar a
torção é cortar a fita de Möbius. Portanto, o número de
enrolamento da tira, 1, é um recurso topologicamente protegido.

De volta ao experimento. À medida que os elétrons no interior do


material superresfriado de von Klitzing giravam no campo
magnético, suas funções de onda (uma descrição quântica de
sua natureza ondulatória) se retorciam em algo como uma fita de
Möbius. Por algum truque da física, as torções topológicas no
interior se traduziram em uma corrente de borda que fluiu sem se
dissipar. Em outras palavras, a imunidade da corrente de borda
era uma propriedade topologicamente protegida criada pelos
elétrons internos torcidos. Materiais como as amostras super
resfriadas de von Klitzing agora são referidos como isolantes
topológicos porque, embora seus interiores sejam isolantes, a
topologia permite que a corrente flua em torno de suas bordas.

Quando Marston e seus colegas observaram as ondas Kelvin


equatoriais, viram uma regularidade que os fez pensar se as
ondas eram análogas à corrente de borda em um isolante
topológico.

Em 2017, junto com Pierre Delplace e Venaille, ambos físicos da


École Normale Supérieure em Lyon, França,
Marston observou que a força de Coriolis gira fluidos na Terra da
mesma forma que o campo magnético gira os elétrons de von
Klitzing. Na versão planetária do isolante topológico, as ondas
Kelvin equatoriais são como a corrente que flui na borda de um
material quântico. Essas ondas imensas se propagam em torno
do equador porque é o limite entre dois isolantes, os hemisférios.
E eles fluem para o leste porque no hemisfério norte a rotação da
Terra gira no sentido horário e, no hemisfério sul, o oceano gira
na outra direção.
“Esta foi a primeira resposta não trivial que alguém deu sobre a
existência da onda Kelvin”, disse Biello. Para ele, o trio havia
explicado o fenômeno usando princípios amplos e fundamentais,
em vez de simplesmente equilibrar termos em equações
matemáticas.

Venaille até acha que a descrição topológica pode explicar por


que as ondas Kelvin equatoriais parecem surpreendentemente
fortes, mesmo diante da turbulência e do caos – o clima errático
do nosso planeta. Elas resistem às perturbações, explicou, da
mesma forma que a corrente de borda de um isolante topológico
flui sem se dissipar e sem levar em conta as impurezas do
material.

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A forma do ar
Apesar do trabalho teórico, a conexão entre os sistemas
topológicos e as ondas equatoriais da Terra ainda era indireta. Os
cientistas tinham visto as ondas fluindo para o leste. Mas ainda
não tinham visto nada análogo aos elétrons internos rodopiantes,
que em um sistema quântico seriam a fonte original da robustez
das ondas de fronteira. Para confirmar que, na maior escala, os
fluidos da Terra se comportam como elétrons em um isolante
topológico, a equipe precisou encontrar ondas topologicamente
distorcidas em algum lugar mais distante do equador.

Em 2021, Marston partiu para encontrar essas ondas, junto


com Weixuan Xu, então na Brown University, e seus colegas.
Para fazer isso, eles observaram a atmosfera da Terra, onde a
força de Coriolis agita as ondas de pressão da mesma forma que
agita a água do oceano. Para a busca, a equipe mirou em um tipo
específico de onda – chamada onda gravitacional de Poincaré –
que existe na estratosfera, uma região da atmosfera a cerca de
10 quilômetros de altitude. (Se a teoria deles estivesse correta,
disse Marston, essas ondas topológicas deveriam existir em toda
a atmosfera e na superfície do oceano. Só que eles tinham a
melhor chance de realmente encontrá-las no ambiente
relativamente calmo da estratosfera.)
Eles começaram vasculhando o conjunto de dados ERA5 do
Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo,
que coleta dados atmosféricos de satélites, sensores terrestres e
balões meteorológicos e os combina com modelos
meteorológicos. A equipe identificou as ondas gravitacionais de
Poincaré nesses conjuntos de dados. Eles então compararam a
altura das ondas com a velocidade de seu movimento horizontal.
Quando calcularam o deslocamento entre essas ondulações –
referido como a fase entre as oscilações das ondas – os
cientistas viram que a proporção nem sempre era a mesma.
Dependia do comprimento exato da onda. Quando traçaram a
fase em um “espaço vetorial de onda” abstrato – algo que é feito
na física quântica o tempo todo, mas não muito nas ciências da
terra – eles viram que a fase espiralava e formava um vórtice: a
torção nas fases das ondas se assemelhava às funções de onda
em espiral em um isolante topológico. Embora um pouco
abstrato, era a marca que eles estavam procurando. “Na verdade,
provamos que a teoria é verdadeira”, disse Xu.
Brad Marston, físico de matéria condensada da Brown University,
descobriu que algumas características do fluxo de fluidos na Terra
podem ser explicadas por princípios que tradicionalmente se aplicam a
sistemas quânticos. Foto: Ariel Green
Kiladis, que não fez parte da equipe de estudo, disse que essas
ondas nunca haviam sido analisadas dessa maneira e chamou o
estudo de “um grande avanço”. “Minha sensação é que isso
fornecerá uma perspectiva diferente sobre as ondas atmosféricas
que provavelmente levarão a novos insights”, escreveu ele por e-
mail. “Precisamos de toda a ajuda possível!”

Um planeta topológico
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Esses estudos recentes abriram as portas para os cientistas


estudarem a topologia em uma série de outros fluidos.
Anteriormente, esses materiais estavam fora dos limites porque
não compartilhavam uma característica fundamental com os
materiais quânticos: um arranjo periódico de átomos. “Fiquei
surpreso ao ver que a topologia pode ser definida em sistemas
fluidos sem ordem periódica”, disse Anton Souslov, físico teórico
da Universidade de Bath, no Reino Unido.
Agora, outros cientistas estão procurando conexões entre os
movimentos de partículas na menor escala e os movimentos de
fluidos em escalas planetárias – ou até maiores. Pesquisadores
estão estudando a topologia em fluidos desde plasmas
magnetizados até coleções de partículas autopropelidas;
Delplace e Venaille estão se perguntando se a dinâmica do
plasma estelar também pode se assemelhar a um isolante
topológico. E embora essas percepções um dia possam ajudar os
geofísicos a prever melhor o surgimento de padrões climáticos
em larga escala na Terra, o trabalho já está contribuindo para
uma melhor compreensão do papel que a topologia desempenha
em uma ampla gama de sistemas.

Em dezembro passado, David Tong, teórico quântico da


Universidade de Cambridge, analisou as mesmas equações de
fluidos que Thomson havia usado. Mas, desta vez, ele os
considerou de uma perspectiva topológica. Tong acabou
conectando os fluidos na Terra ao efeito Hall quântico mais uma
vez, mas agora por meio de uma abordagem diferente, usando a
linguagem da teoria quântica de campos. Quando ele ajustou as
variáveis nas equações de fluxo de fluidos, descobriu que essas
equações eram equivalentes à teoria de Maxwell-Chern-Simons,
que descreve como os elétrons se movem em um campo
magnético. Nesta nova visão do fluxo da Terra, a altura de uma
onda corresponde a um campo magnético e sua velocidade
corresponde a um campo elétrico. A partir de seu trabalho, Tong
pôde explicar a existência das ondas Kelvin costeiras que
Thomson descobriu.
Juntas, as ideias destacam a onipresença da topologia em nosso
mundo físico, desde a matéria condensada até os fluidos que
fluem na Terra. “É ótimo ter esses tipos de abordagens
paralelas”, disse Marston.

Ainda não está claro se, no cenário mais amplo, tratar a Terra
como um isolante topológico desvendará os mistérios dos
padrões climáticos em larga escala ou talvez até leve a novas
descobertas geofísicas. Por enquanto, é uma simples
reinterpretação dos fenômenos terrestres. Mas décadas atrás,
aplicar a topologia à matéria condensada também era uma
reinterpretação dos fenômenos: von Klitzing descobriu a
resiliência da corrente de borda em um material quântico, mas
não fazia ideia de que tinha algo a ver com a topologia. Tempos
depois, outros físicos reinterpretaram sua descoberta como tendo
uma explicação topológica, o que acabou revelando uma série de
novos fenômenos quânticos e fases da matéria.

“Esse tipo de reinterpretação”, disse Souslov, “é em si um avanço


significativo”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
História original republicada com permissão da Quanta Magazine,
uma publicação editorialmente independente apoiada pela
Simons Foundation. Leia o conteúdo original em How Quantum
Physicists Explained Earth’s Oscillating Weather Patterns

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