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Fotografia de Nápolis, de Eduardo Castaldo. Cortesia da editora italiana Edizioni E/O

Um presente
Por Socorro Acioli

Quando eu soube que Elena Ferrante lançaria um novo romance, senti como se alguém
estivesse me avisando a chegada de um presente em um futuro próximo. Gostaria de
viver essa espera na Itália, diante da vitrine das livrarias com as montanhas de livros co-
bertas com tecido vermelho, torcendo pra chegar logo a meia-noite. O lançamento foi em
novembro, isso já parece muito com o sabor dos presentes de Natal. Junto com os outros
críticos e jornalistas eu também viraria a noite lendo para falar da obra o mais rápido
possível.

Não é qualquer livro que me prende assim. Leio e escrevo diariamente, por exigência da
minha profissão. Sou professora de Literatura e escritora nas horas que sobram, vivo das
palavras. Muitos dos livros que termino de ler a cada mês são uma necessidade para pre-
paração de aulas e cursos, ou para servir de apoio a textos que preciso produzir, sempre
com um motivo prático, prazos, responsabilidades. Nesses casos costumo ler sentada,
com canetas e lápis, etiquetas, cadernos, fazendo anotações e pontes entre teorias e
percursos poéticos.

Já os livros de Elena Ferrante estão na categoria de leitura ao balanço da rede, prazer ab-
soluto, deleite, retirada estratégica da realidade. Preciso alertar, caso alguém não tenha
lido nada da autora ainda, que essa alegria não vem da leveza do texto, ou de uma lufada
de esperança que sai das páginas. Talvez seja até o contrário. Os personagens de Elena
Ferrante estão constantemente expondo velhas cicatrizes e novas feridas humanas, dos
amores profundos aos limites da sordidez.

Armei a minha melhor rede na varanda para ler A vida mentirosa dos adultos um mês antes
do lançamento no Brasil. Postei na internet uma foto das primeiras palavras, fiz um jura-
mento de sigilo e não contei nem às minhas melhores amigas, companheiras da chamada
“Febre Ferrante”, o que aconteceu nessa nova obra. A única coisa que anunciei talvez já
fosse esperada: acho que começa aqui uma nova saga.

Fui fisgada exatamente pelos mesmos motivos de sempre: a profundidade dos persona-
gens, a simbologia dos objetos, a força sinestésica da descrição dos ambientes, o pêndu-
lo que nos move torcendo contra e a favor da mesma pessoa em momentos diferentes e
sobretudo, o quanto eu me reconheci tantas vezes.

Dessa vez quem nos conta a história é Giovanna, as alegrias e agruras da vida dos doze aos
dezesseis anos. Não há engano, o livro começa com um golpe de palavras. Sabemos que
algo se romperá naquele frágil equilíbrio descrito, só que nunca esperamos de onde virá a
explosão e quais serão as suas proporções.

Giovanna fala do seu olhar para os pais, de uma tia que ela mal conhece, do bairro de onde
veio sua família paterna e seus gestos e decisões acabam por abrir o baú de um passado
secreto para todos. Novos personagens vão surgindo na companhia dos passos dessa me-
nina que amadurece cercada das questões sobre a própria imagem, os homens, as mulhe-
res, as mentiras.

Sinto que dessa vez eu estava ainda mais preparada para ler Ferrante por causa do livro
de Fabiane Secches, Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência. Foi com ela que
aprendi, dentre outras coisas, que a escritora genial lida com um jogo de oposições que po-
tencializa todas as características que amamos em seu universo de personagens e dramas.

Um bom crítico ilumina a obra, ensina a ler melhor, realça o sabor da experiência. Talvez
por ter esperado tanto, por ter lido o romance logo depois de mergulhar nos estudos de
Fabiane Secches e por sentir uma forte conexão com Giovanna logo nas primeiras páginas,
foi maravilhoso receber meu presente. Estou torcendo para que, enquanto escrevo estas
palavras, a misteriosa senhora esteja também digitando e vendo as frases nascerem e de-
senharem linhas nas folhas brancas, construindo nossa próxima alegria literária.

Socorro Acioli é jornalista e escritora,


autora de A cabeça do Santo e do
infantil Ela tem olhos de céu, premiado
com o Jabuti.

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