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Racionalizar o amor? Sim, ainda que não exage-
radamente, apenas o necessário para não nos intoxi-
carmos. Tanto o amor desejado (princípio do prazer)
como o amor pensado (princípio de realidade) são ne-
cessários; razão e emoção em proporções adequadas.
O amor não somente deve ser saboreado, mas também
incorporado ao nosso sistema de crenças e valores. Tra-
ta-se de incrementar o “quociente amoroso” e ligar o
coração à mente de tal maneira que possamos canalizar
o sentimento de forma saudável. Dito de outra forma:
é preciso organizar e regular o amor para torná-lo mais
compatível com os neurônios. Não falo de restringi-lo
ou de cortar as suas asas, mas de ensiná-lo a voar.
O que queremos dizer quando falamos de amor
ou quando dizemos que estamos apaixonados? Usamos
como sinônimos de amor inúmeras palavras que não
significam a mesma coisa: paixão, ternura, amizade,
erotismo, apego, simpatia, afeto, compaixão, desejo e
expressões desse tipo. Não conseguimos especificar o
que é o amor nem unificar a sua terminologia. Para al-
guns, amar é sentir paixão; para outros, amor e amiza-
de são a mesma coisa; e não poucos associam o amor
à compaixão ou à entrega total e desinteressada. Mas
quem tem razão? Aqueles que defendem o sexo, os que
preferem o companheirismo ou os que pensam que o
verdadeiro amor é um fato espiritual?
Assim como os filósofos Comte-Sponville e
Guitton, entre outros, penso que o amor poderia ser
mais bem estudado a partir de três dimensões bási-
cas. Quando esses elementos conseguem se unir de
maneira adequada, dizemos que estamos na presença
do amor unificado e funcional. De acordo com as suas
raízes gregas, os nomes que recebem esses três “amo-
res” são: eros (o amor que toma e se satisfaz), philia
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(o amor que compartilha e se alegra) e ágape (o amor
que doa e se compadece).
Há alguns anos, em outra publicação, propus uma
estrutura similar, tripartite, do amor: o do tipo I (mais
emocional), referente à paixão, o do tipo II (mais cog-
nitivo/racional), que tem a ver com o amor conjugal, e
o do tipo III (mais biológico), relacionado com o amor
maternal. No entanto, a nova classificação proposta é
mais completa e rica em conceitos, mais aplicável à vida
prática e mais fundamentada.
Um amor completo, sadio e gratificante, que nos
aproxime mais da tranquilidade do que do sofrimento,
requer a união ponderada dos três fatores menciona-
dos: desejo (eros), amizade (philia) e ternura (ágape).
Essa é a tripla condição do amor que se renova a si mes-
mo, repetidamente, de maneira inevitável.
Um casal funcional não precisa ter relações sexuais
cinco vezes por dia (a qualidade é melhor do que a
quantidade), concordar em tudo (as discordâncias le-
ves reafirmam a individualidade) ou viver em um eter-
no romance (muita ternura enjoa). O amor inteligente
é um cardápio ativado de acordo com as necessidades:
tudo em seu tempo, na medida e de forma harmoniosa.
Ainda que ao longo do texto eu aprofunde cada um
dos três elementos mencionados, farei aqui um pequeno
esboço conceitual para facilitar a leitura posterior.
Eros
É o desejo sexual, a posse, a paixão, o amor passional.
O mais importante é o “eu” que deseja, que apetece,
que exige. A outra pessoa, o “tu”, não chega a ser sujei-
to. É a face egoísta e libidinosa do amor: “Quero pos-
suir você”, “Quero que você seja minha”, “Quero você
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para mim”. O eros é conflituoso e dual por natureza,
nos eleva ao céu e nos faz descer ao inferno num ins-
tante. É o amor que dói, que se relaciona com a loucu-
ra e a incapacidade de se controlar. Mas não podemos
prescindir do eros; o desejo é a energia vital de qual-
quer relação, seja como puro sexo ou como erotismo.
O eros bem conduzido não só evolui até a philia de ca-
sal (amizade com desejo), mas também costuma ma-
nifestar-se de forma amável como dois egoísmos que
se encontram, compartilham e desfrutam um do outro
enquanto fazem e desfazem no amor. O eros por si só
não consegue configurar um amor completo, porque
sempre vive na carência, sempre falta algo. É a ideia de
amor de Platão.
Philia
É a amizade – no nosso caso, “amizade de casal” –,
o chamado “amor conjugal” ou amizade conjugal. A
philia transcende o “eu” para integrar o outro como
sujeito: “eu” e “tu”, ainda que o “eu” siga na frente.
Apesar do avanço, no caso da philia, a benevolência
não é total, porque a amizade ainda é uma forma de
se amar a si mesmo através dos amigos. A emoção
central não é o prazer como desejo ganancioso, mas a
alegria dos que compartilham: a reciprocidade, estar-
mos bem e tranquilos. A philia não requer uma união
total (nunca a conseguiremos com ninguém, nem se-
quer com os melhores amigos), basta que exista certa
cumplicidade de interesses, um traço de comunidade
de duas pessoas que convivem. Enquanto o eros decai
e ressuscita de quando em quando, se tudo vai bem,
a philia torna-se mais profunda com os anos. Mas de
nenhuma maneira a philia exclui o eros; ao contrário,
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ela o serena, o situa em um contexto menos libidinoso,
menos predador, mas não o aniquila. Nas relações mais
ou menos estáveis, fazemos mais uso da philia do que
do eros, mas ambos são indispensáveis para formar um
vínculo estável. Quando o eros domina, nos transfor-
mamos em seres libidinosos e sem limites, e somos
“objeto” e “sujeito” ao mesmo tempo: objeto, quando
nos devoram; sujeitos, quando devoramos. A philia e
o eros juntos supõem uma luxúria simpática e amena,
fazer amor com o melhor amigo ou a melhor amiga. A
philia é a amizade de Aristóteles e Cícero, por exemplo,
transportada ao casal.
Ágape
É o amor desinteressado, a ternura, a delicadeza, a au-
sência de violência. Não é o “eu” erótico que arrasa
tudo, nem o “eu” e o “tu” do amor amigável, mas o
amor da entrega: o “tu” puro e franco.
É a dimensão mais limpa do amor, é a benevo-
lência sem contaminações egoístas. Obviamente, não
estou me referindo a um amor irreal e idealizado, por-
que inclusive o ágape estipula condições; falo é da ca-
pacidade de renunciar à própria força para adaptar-se
à fraqueza da pessoa amada. Não se trata de prazer eró-
tico nem da alegria amistosa, mas da pura compaixão,
da dor que nos une ao ser amado quando sofre, quan-
do ele precisa de nós ou nos chama; é a disciplina do
amor que não requer esforço. O ágape não costuma ser
necessariamente a última etapa na evolução do amor,
mas a sua aparição tampouco desloca ou suprime os
seus antecessores: uma vez mais, os inclui e comple-
ta. Como será visto ao longo do texto, pode haver sexo
agápico (eros e ágape) e amizade desinteressada (philia
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e ágape). Em resumo, o ágape é o amor de Jesus, Buda,
Simone Weil e Krishnamurti.
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