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O pensamento de John Ruskin

Rogério Pinto Dias de Oliveira

Na Inglaterra de meados do século XIX, os movimentos intelectuais (1) em prol da conservação


dos monumentos históricos ganharam força a partir do protagonismo de John Ruskin (1819-
1900). Seu importante papel como um dos precursores na preservação das obras do passado
enriqueceu o conceito de patrimônio histórico, sendo possível afirmar que suas idéias já faziam
referências ao que hoje classificamos como patrimônio material e imaterial.

Ruskin foi escritor, crítico de arte, sociólogo, e um apaixonado pelo desenho e pela música. Suas
idéias adquiriram maior repercussão no ano de 1849 através do livro The Seven Lamps of
Architecture (2) – lançado cinco anos antes do primeiro tomo do Dictionnaire de Viollet-le-Duc
(3) –, e no ano de 1853 com The Stones of Venice (4), onde descreveu sua apologia ao “ruinísmo”
como um devoto às construções do passado, pregando o total e absoluto respeito à matéria
original das edificações.

Viveu em uma época de dicotomia entre os antigos costumes sociais e os emergentes


decorrentes da Revolução Industrial, que devido ao seu acelerado desenvolvimento substituía
de forma gradativa o sistema de produção das manufaturas. Sua luta contra os efeitos nocivos
da industrialização revelou sua forte ligação com a cultura tradicional.

Podemos compreender a luta de Ruskin contra as modificações desses valores através do


seguinte trecho: “no lo sería ahora cuando las inquietudes y los descontentos del presente
usurpan en nuestros espíritus su lugar al pasado y al porvenir. La calma misma de la naturaleza
nos es gradualmente arrancada” (5).

Ruskin acreditava que a conservação da arquitetura do passado, como expressão de arte e


cultura, nos permitiria entender a relação existente entre os estilos arquitetônicos e as técnicas
construtivas como a resultante do fruto do trabalho de determinada cultura, utilizando-se da
história dessas construções como o veículo de comunicação dos processos de desenvolvimento
cultural.

Manter vivo o testemunho cultural do passado no cotidiano da cidade, possibilita com que os
indivíduos identifiquem nos espaços urbanos, e, nos monumentos históricos, marcos
referenciais de identidade e memória. Nos termos de Ruskin (6), “Es preciso poseer, no sólo lo
que los hombres han pensado y sentido, sino lo que sus manos han manejado, lo que su fuerza
ha ejecutado, lo que sus ojos han contemplado todos los días de su vida”.

Defendia a idéia de que as edificações pertenciam ao seu “primeiro construtor” (7), ou seja, a
população de determinada localidade que se tornava herdeira desses bens culturais,
estabelecendo uma relação de compromisso social, entre a presente e as futuras gerações, para
a preservação das edificações históricas em sua concepção original, evitando assim, atos de
negligência e descaso.

De acordo com Ruskin, a integridade das edificações, como um conjunto formal e técnico-
construtivo, se tornava o bem de maior valor que se poderia legar às novas gerações. Essa
“herança” seria o mecanismo responsável por transferir ao espaço construído, os sentimentos
de pertencimento e apropriação de seus valores memoriais.
Para Ruskin, os arquitetos deveriam construir as edificações como se fossem obras de valor
histórico em potencial. Desta forma, as construções deveriam causar tamanha admiração em
seus “herdeiros” a ponto de virar referência cultural, independentemente de sua
excepcionalidade como obra arquitetônica, como mostram as idéias do autor (8),

“Dios nos ha prestado esta tierra durante nuestra vida; no es más que un bien sujeto á
restitución. Pertenece á los que vendrán después de nosotros [...] no tenemos el derecho, por
actos ó por negligencias, de conducirles á penalidades inútiles, o á privarles de beneficios que
estaría en nuestra mano legarles [...] Cuando construyamos diremos, pues, que construimos para
siempre [...] Que sea un trabajo por el cual nos estén agradecidos nuestros descendientes;
pensemos, colocando piedra sobre piedra, que llegará un tiempo en el cual estas piedras serán
conceptuadas sagradas porque nuestras manos las tocaron y que los hombres dirán
considerando la labor y la materia trabajada: !Mirad. He aquí lo que nuestros padres hicieron
para nosotros! La mayor gloria de un edificio no depende, en efecto, ni de su piedra, ni de su
oro. Su gloria toda está en su edad [...]”.

Entendia a Arquitetura como uma expressão forte e duradoura capaz de se eternizar carregando
em si uma enorme carga de valor histórico e cultural. Ruskin defendia a idéia de que as
edificações deveriam atravessar os séculos de maneira intocada envelhecendo segundo seu
destino, lhe admitindo a morte se fosse o caso. Com algumas exceções permitia pequenos
trabalhos de intervenção (9) que evitassem a queda prematura das edificações.

Do mesmo modo, recomendava a execução de reforços estruturais em elementos de madeira e


metal quando estes estavam em risco de se perder, assim como reparos pontuais de fixação ou
colagem de esculturas em risco de ruir, mas de maneira nenhuma admitia imitações, cópias e
acréscimos.

Para Ruskin o edifício só ganhava vida, tornando-se reconhecido como algo de valor, após ter
servido de testemunho da morte de várias gerações, ter sido abençoado com a pátina do tempo
e assistido a evolução da cidade resistindo mais que todos os seres vivos. Sua visão romântica
sobre os processo de conservação, nos remetem à idéia de que somente salvaríamos nossa
arquitetura patrimonial se os métodos de preservação permitissem o “congelamento” das
cidades, centros e sítios urbanos.

O conceito de pitoresco (10) é utilizado por Ruskin como uma forma de qualificar uma obra
arquitetônica de reconhecido valor histórico e cultural. A beleza acrescentada pelo tempo
confere às edificações um perfil peculiar e “estilo” característico. Seus elementos únicos captam
a atenção do espectador como se fossem, por exemplo, as linhas puras do Clássico ou o efeito
de luz e sombra do Gótico.

Desta forma, a idade é compreendida como o principal atributo da edificação onde à medida
que permanece íntegra ao longo do tempo adquire beleza ao sofrer os efeitos da pátina de
passados 400 ou 500 anos, tornando essas qualidades temporais e acidentais incompatíveis com
os processos de restauração. As ruínas se tornam sublimes a partir dos estragos, das rachaduras,
da vegetação crescente e das cores que o processo de envelhecimento confere aos materiais da
construção. A ruína é o testemunho da idade, do envelhecimento e da memória, podendo nela
estar expressa a essência do monumento.
O culto às ruínas se exprime em todo o seu romantismo quando Ruskin propõe uma reflexão
sobre o valor dos trabalhos de restauração sobre o antigo estado da edificação, pois acreditava
que aqueles remanescentes possuíam o encanto do mistério do que teriam sido e a dúvida do
que teria se perdido.

Neste contexto, vale ressaltar suas críticas contra as restaurações que estavam sendo
executados, contemporaneamente, na Europa e principalmente na França, tendo com figura
central Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc.

Para Ruskin a restauração era a mais completa e bárbara destruição que poderia estar sujeito
um edifício. Considerava impossível restituir o que foi belo e grandioso arquitetonicamente, pois
a alma dada ao prédio por seu “primeiro construtor” jamais poderia ser devolvida. É veemente
afirmando que outra época daria ao monumento outra alma, outro enfoque, outra cara,
transformando o objeto em uma nova edificação.

O processo de restauração se resumiria a uma imitação da arquitetura passada se transformando


em uma falsa descrição do que teria sido aquela obra, criando assim uma réplica e um falso
histórico, pois o novo estado pertenceria a uma nova época. Segundo Ruskin, o processo causava
a perda de grande parte do significado documental das edificações históricas afetando sua
autenticidade, seus valores evocativos e poéticos.

Acreditando que a degradação fazia parte da história da edificação e entendendo os processos


de restauração como um tipo de agressão às mesmas, Ruskin sugeriu a manutenção periódica
dos prédios históricos como forma de evitar os danos causados por intervenções de maior
amplitude preservando a ação do tempo e o testemunho histórico.

Sua contribuição para a salvaguarda do patrimônio cultural foi de ordem teórica, defendendo a
conservação como método de preservação. Seus pensamentos conformaram uma abordagem
ideológica onde o dueto romântico nostálgico coexiste de maneira profundamente melancólica,
servil e adoradora, como podemos observar em seus livros dedicados à apologia da passividade
e da não-intervenção em arquiteturas patrimoniais.

[este texto foi originalmente publicado em DIAS DE OLIVEIRA, Rogério Pinto. Conservação,
restauração e intervenção em arquiteturas patrimoniais. Monografia de conclusão do curso de
pós-graduação em Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico no Brasil. Porto Alegre, Pontifícia
Universidade Católica RS, 2007, p.11-16.]

notas

1
Destaca-se entre esses o movimento Arts and Crafts, que teve como seu principal articulador o
político e crítico de arte Willian Morris (1834-1896), e tinha como objetivo principal conservar
as características das atividades artesanais e da arquitetura tradicional, com base na importância
dos trabalhos manuais, opondo-se à produção em série da industrialização.

2
RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture. London: Smith, Elder, 1849. 205p.
3
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XI au
XVI Siècle. Paris: A.Morel, 1866-1868. 10V.

4
RUSKIN, John. The Stones of Venice. London: Smith, Elder, 1874.

5
RUSKIN, John. Las Siete Lámparas de la Arquitectura. Espanha, Valencia: F. Sempere, 1910. p.236.

6
RUSKIN, John. Las Siete Lámparas de la Arquitectura. Espanha, Valencia: F. Sempere, 1910. p.212.

7
O termo “primeiro construtor”, é uma ligação metafórica que Ruskin estabeleceu para
referenciar os grupos sociais como os responsáveis pela manutenção e conservação dos bens de
valor histórico e cultural, entendendo essa tarefa como um dever à preservação da memória.

8
RUSKIN, John. Las Siete Lámparas de la Arquitectura. Espanha, Valencia: F. Sempere, 1910. p.222-
223.

9
Ruskin admitia intervenções de pequeno porte, em nível de estabilização, a fim de consolidar a
estrutura da edificação, partindo do princípio de que essa ação não resultasse em elementos
visíveis.

10
Deve-se entender a expressão “pitoresco” como uma designação empregada nas Belas Artes, a
partir da segunda metade do século XVIII, referente aos efeitos de luz e sombra, cor, manchas e
contornos menos precisos aplicados na Pintura e na Escultura, em oposição aos detalhes
preciosistas da Arte Clássica. Para Ruskin, a ação do tempo acrescentava às edificações, a
“mancha”, a nuance e as indefinições das formas originais.

sobre o autor
Rogério Pinto Dias de Oliveira é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal
de Pelotas (2001) e especialização em Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico no Brasil pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Atualmente trabalha como
arquiteto na Secretaria do Patrimônio Histórico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
atuando principalmente nos seguintes temas: conservação, restauração e intervenção em
arquiteturas patrimoniais dos períodos da arquitetura historicista e moderna.

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