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Toda ela

De Letícia Andrade. leticiadramaturga@gmail.com

Composição livremente inspirada no texto “Essa propriedade está condenada”, de


Tennessee Williams, em contos da autora e de entrevistas a mulheres do ofício da
noite.

Estreou em 11 de maio de 2012, no SESC Ribeirão Preto, com a Cia Dita Cuja.

Figuras:

Wili, mulher-moça do ofício de puta.

Homem esguio, que a cuida e a ama à sua maneira, ele é o portador do chicote.

Primeira cena: entrada dos clientes e preparação de Wili

Estamos num espaço reduzido, como um grande corredor e dos dois lados os
espectadores estão sentados. Neste centro, vê-se o quarto de Wili, onde há uma
cômoda antiga, do tipo penteadeira de vovó. Sentada nela, está ela: a nossa Wili se
preparando para entrar em cena, e ao mesmo tempo, está num intervalo entre um
cliente e outro do ofício de puta. O quarto se torna, a partir da narrativa e ação de Wili:
estação desativada de uma linha de trem e o bordel do lugarejo pequeno onde mora
no meio do nada. É noite e a mulher-moça Wili continua a se arrumar. Enquanto isso, o
homem esguio acompanha as mulheres-espectadoras a se sentarem em seus lugares;
charmoso, delicado e cavalheiro com elas, e, ao mesmo tempo, ele olha com desdém e
espírito de disputa os homens do recinto. O homem esguio também arruma o som e
ajeita os apetrechos de Wili. Ele está à nossa disposição. O tempo é o do presente e, as
histórias narradas, as recordações de Wili. Ela cantarola e se arruma. Ela abre as
gavetas, colocando em cima da penteadeira os apetrechos de Wili e ele fecha as
gavetas, guardando os mesmos. Esse movimento vai se intensificando. Até o ápice e
termina. Wili diz.

Ainda sigo cheia de ais... E hoje, pela minha intuição, o movimento vai continuar em
alta. Pelo menos. Não param de chegar mais e mais interessados. É dia de

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pagamento. Por isso, não posso perder a vez. É preciso estar bem adequada e
asseada para qualquer ocasião e durante toda noite adentro. Minha irmã Alva
sempre me dizia, que uma mulhermoça não precisa de muito:

Wili assume a voz de Alva, sua irmã.

Você precisa é saber como se portar em sociedade.

Wili comenta, relembrando.

E ela me ensinou tudo que sei, como ninguém poderia fazer melhor. Mas do que é
mesmo que uma mulher precisa?

Pausa. Pensa alto, olhando-se no espelho.

Toda mulher quer ser bem tratada, e ser colocada num pedestal...

Pausa. Olha para um espectador masculino, colocando falsas joias...

É assim que você gosta? Sinta-se em casa, viu? Aqui ninguém fica insatisfeito...

Vai se aproximando do homem... muda repentinamente, pois lembra-se de se


apresentar, de modo meio juvenil, quase inocente...

Ah, que rude da minha parte, meu nome é Wili... é, eu sei que é um nome de
menino, mas é que minha mãe e meu pai já tinham um menino e eu acho que eles
estavam esperando que fosse menino, então, eles se enganaram, um pouco, eu
acho. Porque eu nasci menina, e agora eu sou uma mulher. Eu acho. Mas Wili, é um
bom nome, você não acha?

No momento que ele responde ou se responder... ela já rapidamente o corta, dizendo


para o deixar constrangido...

Se você quiser conversar no reservado, é só falar...

Homem se interpõe entre ela e espectador. Wili fala com o homem esguio.

Tá bom, eu só estava me aquecendo, neném, é só falar com ele...

Apontando o homem esguio para o espectador.

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Mas se mudar de ideia, estou aqui a noite inteira, de olho em você, inteirinha para
você!

Homem a julga de novo e olha para ela e ela muda de tom.

Entendi... Onde eu estava mesmo? Sim, Alva, minha irmã, amava a Greta Garbo no
filme A Dama das Camélias, Alva parecia uma estrela brilhante de puro glamour...
Mas ela não era essa santa toda não. Todos podiam ouvir seus gritos por toda vila.
Um dos prazeres dela era sua gritaria aguda. Seus gritos ainda ecoam na minha
cabeça, como marteladas secas e intermináveis de...

Wili assume a voz de Alva, sua irmã.

Wili, menina, vá se lavar decentemente: não se esqueça das partes baixas, viu! E
menina, vista o vestido azul, o seu melhor, que hoje é dia da sua apresentação oficial
à sociedade local, minha pequenina colibri! Todos estão a sua espera, meu colibri! E
não se esqueça: tudo o que você tem de fazer é ser gentil com os rapazes, e o resto:
deixe comigo.

Como se escutasse sua irmã, Wili se apressa, mas de repente pára. Pausa. Olha para o
espelho, e diz.

E ela repetia, com um disco arranhado, as funções do asseio, da boa conduta e da


delicadeza.

Com raiva, ressentimento e orgulho ferido em relação à Alva.

Ela e todas as suas meias de seda e perfumes fedidos que eu nunca podia brincar...
agora eu posso me cuidar sozinha.

Fala indiretamente com o homem esguio.

E não preciso de nenhum macho para me sustentar...

Pausa. Olha-se no espelho. Vê as marcas no rosto. Relação da ação com o espelho e


conversa consigo mesma, desdobrando-se em duas Wilis: uma sonhadora, outra
completamente ressentida.

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Estou mais cheia de ais do que o costume. O céu está branco como o leito. Todas as
noites é a mesma coisa, lavar as partes e me maquiar impecavelmente. Mas do que
mesmo que uma mulher precisa? Do que Wili precisa? A minha vida é tão bacana,
nunca roubei nem matei e tenho tudo que eu preciso bem aqui...

Vai até o vestido e o veste, elegantemente. Olha os homens na plateia. Mostra-se.


Ensaia seus olhares. Sobe nos saltos, mas o homem corre antes e pega os sapatos. Ele
se ajoelha em frente dela e calça os saltos em seus pés. O homem a ajuda com
delicadeza, ensaia um cavalheirismo. Olha os pés primeiro, e vai subindo o olhar até
ficarem face a face, como se fossem se beijar. Beijam-se? Não agora... Troca de olhares
de admiração e contemplação. Depois: dúvida, despeito, e inveja nesta troca de
olhares. Wili confessa. Sonha e delira.

Por um pequeno momento, me sinto vivendo dentro de uma fantasia possível, uma
imagem morna que me arranca da minha solidão diária. Onde nasce mesmo o seu
desejo, Wili?

O homem se aproxima lhe faz um carinho e diz tampando suavemente sua boca.
Pausa. E logo sai, deixando-a na mão. Ela continua no seu delírio. O homem esguio diz,
machamente e secamente.

Que a mulher conserve seu silêncio.

Wili sai do delírio, mas nem tanto.

Tudo desaparece, como se um velho corvo, negro e faminto, chegasse num sobrevôo
e me arrancasse com seu bico insaciável a última chama de um passado leve e doce,
que ainda me resta. Do que você é feita Wili?

Segunda Cena: Encontro com a infância

Momento de Lembrança de Wili. Ela escolhe um espectador, que é jovem, e fala com
ele durante a cena, como se fosse seu amigo de infância. Ela vai para o início do
corredor, equilibrando-se num trilho imaginário, segura uma boneca. Wili narra seu
passado.

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Não foi há muito tempo que conheci um garoto, não tão mais velho do que eu.

Narra suas roupas e seu aspecto corporal.

Ele gostava de ficar me observando nos trilhos. Os homens sempre gostavam de ficar
me vigiando. Uma vigília que me persegue até hoje.

Cai e recomeça a se equilibrar na linha de trem imaginária.

Menino meio bobo! Era um menino sem mãe, nem cabimento. Eu gostava da sua
pipa vermelha: tinha uma rabiola bonita e enfeitada. Eu sempre quis ter uma pipa.

Como se falasse com ele. Enquanto isso, homem esguio ronda, ele vigia sua
propriedade. Continua a andar pela linha imaginária, quase caindo em cima dele.

Não fale comigo antes de cair. Segure minha boneca manca, faz favor? Eu não quero
que ela quebre quando eu cair, quer dizer se eu cair! Acho que não vou aguentar
muito mais... Estou quase caindo.

Jogo com o espectador.

Não, não toca em mim! Se ajudar não vale. Tem de ser eu mesma sozinha. Meu
Deus, eu estou tremendo hoje! Não sei o que me botou nervosa! Deve ser porque
sigo cheia de ais... Tá vendo o reservatório d`água lá atrás? Foi lá que subi no trilho!
É o mais longe que eu já consegui!

Ela cai. Olha para o espectador, esperando reação.

Ralei o joelho, só. Fico é cheia de ais. Ainda bem que eu não estou com minhas meias
de seda, ainda bem.

Cospe no joelho, olhando lascivamente para o espectador.

O que foi? Ficou com nojo, neném? Os bichos todos fazem isso. Eles sempre lambem
as feridas.

Para o espectador.

Qual é o seu nome?

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Ele diz, se quiser...

O meu é Wili.

Pausa.

Engraçado. Nós dois temos nome de homem.

Pausa de constrangimento.

Me pergunta por que eu não estou na escola. Pode perguntar, sem medo, vai...

Ele pergunta ou não. Ela continua a falar.

Então, eu larguei, já faz dois anos que eu larguei. Desde que a Alva morreu daquele
jeito, danado de ruim. A professora, a Senhorita Pistão, sempre me dizia...

Wili assume a voz da Senhorita Pistão:

Menina, suas mãos estão imundas, vá se lavar! Você pensa que os rapazes vão se
interessar por você, se você se parecer como um muleque? Senhorita Wili você
deseja se tornar uma moça de recato e ter uma família decente, não?

Wili comenta.

Eu explicava que era cinza de trem, de tanto eu cair dos trilhos... Mas ela era fogo! E
é seca e mal-amada assim porque não casou e nem tinha homem que gostava dela
de jeito nenhum. Provavelmente ninguém quis a coitada.

Wili assume novamente a voz da Senhorita Pistão:

Eu digo o que a senhorita deve buscar para ser uma mulher de sucesso: em três
palavras repita comigo: aceitação, adequação e, principalmente, delicadeza! Uma
mulherdama deve primeiro aprender as boas maneiras, antes de qualquer coisa na
vida: não falar mais alto do que o seu homem, saber receber com elegância os
convidados na sua casa, saber conversar sobre assuntos devidos, e o menos
polêmico possível, mas cuidado para não parecer inteligente demais, nossa
sociedade não tolera mulherzinhas com ideias próprias é importante você saber seu
lugar Wili, desde cedo, sim, desde cedo, senhorita.

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Wili comenta.

A senhorita Pistão teve de ficar sendo a professora da quinta até morrer. E eu nunca
consegui entender pra que servia aquele x, muito menos o que a delicadeza iria me
ajudar hoje...

Pausa, reflete...

Você até pode me dizer que andar nos trilhos também não ensina ninguém, mas
fazer o que se eu nasci uma menina sem vocação para ser Senhorita Wili?

Muda de tom. Lasciva e inconsequente.

Ah, e uma menina não precisa muita coisa. Alva sempre tinha razão: precisa, sim, é
saber conviver na sociedade, isso sim, e isso já é muita coisa. Os homens da
ferroviária veneravam Alva: engenheiros, maquinistas, os caras da fornalha... Ela era
o que a gente pode chamar de “Atração Principal”. Linda? Parecia mais uma estrela
de cinema. Quase uma Greta Garbo... Um deles, da ferroviária, toda viagem trazia
pra ela uma caixa de bombom em forma de coração com um laço vermelho em de
veludo em cima, toda viagem. O inconveniente é que moço dos bombons não tinha
os dentes bons, não, não. E Alva me ensinou que é preciso olhar bem para os dentes
dos homens. Mas Alva não estava nem aí para o bobão. Ela sempre teve vários
rapazes aos seus pés. Não é maravilhoso?

Vê que se empolga demais. Pausa. Repara no espectador.

Você quase não fala, não é mesmo?

Continua falando sobre Alva.

Ah, me esqueci. Sabe onde Alva está agora? Você nunca vai adivinhar... Última
morada? Eu respondo: cemitério, túmulo, tumba, buraco, sete palmos abixo da
terra... ela morreu, mortinha!

Pausa. Ri nervosamente.

Não precisa sentir... Ela está melhor do que eu, e do que você também, se bobear...
Você não sabe nem da metade da missa, meu camaradinha. Nós passamos uns

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grandes tempos naquele casarão amarelo. Nós já fomos bem de vida... Tinha música
o tempo todo, música de verdade, gente, tocando. E tinha vitrola também, quando
eles cansavam. Todo mundo tocava alguma coisa. Agora não. Agora aquilo lá está
quieto. Horrivelmente quieto. Principalmente quando os corvos fazem aquele
barulho horrível... Você não houve nem som quando passa por lá, ouve? E pregaram
uma placa enorme na fachada. Outro dia uma mulher uma mulher raivosa passou
aqui e colocou uma placa com os seguintes dizeres: esta propriedade está
condenada. Por isso, sigo cheia de ais...

Pausa. Solitária.

Só que eu continuo morando lá. Mamãe fugiu com um homem que freiava o trem
das oito.

Som que lembra um trem.

Ouve isso? A coisa mais veloz que corre aqui nos arredores. Meu pai bebia muito. Era
um bêbado mesmo. E desapareceu. Acho que qualquer dia eu devia dar parte à
polícia, eles lá tem uma seção de desaparecidos. Sei porque ele deu parte quando
mamãe desapareceu. Aí ficaram: eu e Alva. Até os pulmões de Alva ficarem doentes,
como na doença da Dama das Camélias... Doença que vai chupando para dentro os
pulmões da pessoa. Só que no filme da Dama das Camélias, a história foi mais
bonita. Você sabe como é: no cinema, tem roupas chiques, violinos tocando, criados
servindo coisas gostosas, flores brancas e todos os namorados voltando pra ver ela
morrer.

Muda de tom.

Os de Alva sumiram todos, não apareceu um. Como ratos que abandonam um navio
naufragando! Assim é que ela falava.

Wili assume a voz de Alva, sua irmã:

Assim é que eles me pagam: Ratos. Fugiram todos os ratos...

Wili comentando.

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Todos, menos o dos bombons, o homem de dentes sujos e podres. Mas esse ela não
quis nem ver. Não foi como nos filmes, ah, não foi não. Não teve violinos. Não teve
nem vitrola! Ela pediu para ter música, mas o hospital não deixou, era contra os
regulamentos. Ela gostava muito de cantar, eu gosto muito de cantar.

Wili canta uma música.

Só que eu desafino, eu sou horrorosa, quando eu cantava Alva me mandava calar a


boca. Mas ela não, ela cantava à beça, a noite toda. Essas roupas eram dela. Herdei.
Tudo que era de Alva, agora é meu. Menos o colar de bolinhas de ouro puro. Ela
nunca tirou. Foi junto com ela para debaixo da terra. E eu herdei também todos os
namorados dela. Até o superintendente do almoxarifado. No início, eles sumiram
todos. Acho que ficaram com medo de ter de pagar alguma despesa, ou coisa assim.
Mas, de uns tempos para cá voltaram. Igual a andorinhas. Não tive outra saída e não
tenho o que reclamar. Alva tinha me ensinado bem.

Wili assume a voz de Alva, sua irmã:

Vai sair com os rapazes, sim, se preciso beber com eles, conversar o que ele quiser e
até dormir com eles por dinheiro. E não me diga que isso é se tornar uma puta, não,
não, isso é um ofício, minha colibri, como qualquer outro. E não tem nada de tão
terrível assim. Significa que você será rica, e terá muitos amantes. Não chore Wili
querida, por que você está chorando? Não vê quantos homens vão atrás das
prostitutas, e mesmo assim há tantas delas? Tem homem que deixa de comer para
foder, menina! E como elas ficam ricas! Olhe, eu posso me lembrar de quando eu
mesma estava na penúria. E agora, tudo mudou, olhe a sua classe, o que fiz com que
você se tornasse! E um dia você terá um monte de jóias, vestidos costurados só para
você e até uma mesa cativa no restaurante mais bem frequentado da cidade. Vá e
não deixe os convidados esperando...

Wili volta a narrar para os espectadores.

Me levaram para sair a noite. Agora eu sou popular: vou a todas as festas da
ferroviária. Como eu danço bem. Eu sei mexer minhas cadeiras, minhas ancas de
meninamoça... olha, pode pegar...

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Ela dança, música invade a cena. Ela delira, rodopia... Música se cessa. Pausa. Com
raiva e amargura se recompondo da fraqueza.

Eu poderia dizer que devia ter tido coragem de atravessar a linha desse trem,
quando pude, em tempo, e ganhar o mundo lá fora com minhas próprias pernas e
ancas, mas não. Não. Eu não consigo, sou egoísta e ciumenta por natureza. Eu
admito e não esqueço. O que eu aprendi é que mulher deve se conservar em silêncio.
Eu sei que nenhuma mulher é bem tratada mesmo. Foda-se, se mulher tem desejo.
Você não nasceu mesmo para ter uma vida.

Põe shortinho curto e top devassado. Retoca a maquiagem e passa batom vermelho.

Me diga a verdade: o que é uma puta, sem seu batom vermelho? Aqui ama-se por
um copo de qualquer coisa, pedaço de carne requentada na marmita, por um afago
mal dado, muita picardia, e pouco contato. Há corvos que me sobrevooam a noite
inteira e a qualquer instante, lançam suas merdas.

Pausa. Olha para cima. Wili prenuncia.

Vão começar, agorinha mesmo vocês verão. No entanto, eu posso me lembrar do


desprezo que me lambe o orgulho da minha bunda. Tudo que é vivo morre e se
morre um dia vai pra debaixo da terra. Chega de papo furado: Vai trabalhar, Wili!
Porque se de dia sou uma pessoa na multidão, de noite eu sou a multidão, neném...
Vamos agitar isso aqui um pouquinho...

Mudança de atmosfera, o homem esguio traz uma cadeira para ela se sentar.

Terceira cena: A clientela de Wili

Cheira uma carreira ou bebe uma dose. Talvez música alta, talvez luz baixa de
barmotelboteco coposujo. Olha para os lados e pede:
Ninguém serve nada aqui nesse muquifo? Mocinhoô? Eu sou filiada da casa, meu
rapaz...
Homem traz uma dose de algo forte. Ela toma. Vira tudo. Toma coragem. Wili
desabafa.

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23:43, nada acontece. O segundo cliente que é bom nada. E esses ais que me
consomem cada vez mais, tenho que fazer algo a respeito.
Olha para os lados.
É preciso ficar esperta pra ninguém me passar a perna hoje.
Desanima. Passa mais batom vermelho. Toma mais uma dose. Olha para outro homem
da plateia. Mais velho. Diz.
23:44, encara o próximo cliente. Chega mais titio... A hora 50, duas horas 70, vamos
para o reservado?
Espera reação. Senta-se. Começa a narrar a situação. Automaticamente e ironicamente
narra a trepa com o cara.
Mas ele veio, meio vacilão, mas veio porque tava precisado, custou a endurecer o
coitado, a idade chega para todos um dia. 23:50, e eu: ai! me pega, gostoso,
garanhão, nossa como o seu é grande, vai, vai, vai! 23:55, serviço feito, grana na
mão, um beijo de longe, e, valeu, bonito, que o dia não terminou, fui.
Pausa. Volta à penteadeira para lavar suas partes baixas, volta ao botecomotel...
00:15, de volta ao muquifo, outra dose, quer dizer algumas doses a mais...
Bebe mais um pouco. Respira fundo, saca o local, é preciso estar atenta.
00:20: este só gosta de ver, coloca a música, meu querido! Dança privativa é 20 a
mais, pagamento adiantado.
Como se recebesse a grana.
Obrigada, meu amor! Agora, vamos nós: você é que manda...
Pausa, como se escutasse o homem...
O quê?
Com surpresa e raiva, mas engole a seco e muda e diz com delicadeza...
Quer uma cadelinha, é? Então vamos lá, senta e se segura: au-au!
Sugestão: o homem esguio se sentar na frente dela e assistir à dança. Encena uma
dança sexy. Enquanto isso, ela narra seu pensamento...
É assim que você gosta né, seu idiota, mal amado, não consegue trepar com a
esposinha e vem pra cá, pra ficar me lambendo com os olhos, né? Eu acho digno...
Mesmo porque eu nem preciso gastar minha buceta com seu pau mole e muito
menos sentir o seu cheiro engordurado e acre na minha pele e você ainda me paga
só para ficar aí me vendo, babaca... me fala, sinceramente, quem é o desesperado

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nesta história: eu ou você? Pelo menos finjo que gosto disso tudo para viver, e você,
que acredita mesmo neste draminha de quinta categoria... E o melhor ganho em
cima da sua carência velada de macho fracassado. Me responde, benzinho: quem é a
cadela nesta história? Quem come quem, homenzinho solitário? É o homem ou a
mulher?
Volta à dança finaWiliando. Delicada.
Au-au! Gostou?
Muda o tom drasticamente. Grossa.
Ótimo, então lasca daqui que meu cliente da 1:00h já chegou. Vaza!
Volta a penteadeira mais rápido e lava as partes de baixo, mesmo sem ter tocado no
homem, ainda sente-se suja. Para si mesma.
Ai, estou mais cheia de ais...
Para o espelho, intimando-se.
Fica esperta Wili! Levanta essa cabeça, passa um batom vermelho e volta para o
matadouro de todo dia, que sua noite ainda não acabou. Desse muquifo que você
chama de casa, já não existe nem passado nem futuro. O que te resta Wili é apenas o
presente oleoso: essa é a vida: e não dê uma de “pobre meninamoça abandonada”,
que ninguém vai te escutar, sua vadia.
Bebe um gole. Toma tudo. Anda um pouco e olha o movimento. Retoca o batom.
Reconhece o macho. Apruma-se.
1:00 da manhã. Ele chegou. Sabia que vinha. Nunca me deixou na mão. Ele é o que
poderíamos chamar de um legítimo macho declarado, e delicadeza nunca foi o seu
melhor. Às vezes saia roxa ou bem dolorida, mas sempre me pagava um extra. E eu
sempre fingi bem seus joguinhos hipócritas.

Pausa. Comenta para o público.

Eu já sabia há algum tempo que meu cliente fiel tinha mulher, filhos, e uma casa
perfeita, daquelas de propaganda de margarina e sabão em pó, onde todos tem
dentes brancos, são engomados e terrivelmente feWilies. Já faz um tempo que sua
patroa veio aqui, gritando, aos quatro ventos, perguntando quem é a vagabunda que
está trepando com meu marido? E eu disse sem tremeliques: eu, queridinha! E sabe
o que ela fez? Chegou bem rente a mim, me olhou de baixo para cima, com se

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analisasse: o que ela tem que eu não tenho... Virou as costas e foi embora para
nunca mais voltar...

Comentando.

Como mulher pode ser um bicho tão previsível?

Falando como se estivesse numa instância pública.

O que eu tenho senhoras e senhores?

Pausa. Olha para os lados.

Eu não tenho nada de especial. Apenas sou uma puta e isso já é tudo! O que eu
posso fazer se eu tenho uma tarefa humanitária de manter os laços matrimoniais?
Vocês podiam pensar: coitado do homem casado, coitada da mulher do homem
casado. Mas saiba que é a puta que tem a função de manter vários casamentos por
ai. Se ninguém quisesse, eu não existiria, se não houvesse tanto homem babando, eu
não comeria, não pagava aluguel e muito menos me sustentava. Não haveria tanta
puta, em cada esquina de todo lugar, faturando todo dia com os casamentos happy
end que existem por aí. Porque vocês acham que ele faria com a mulherzinha dele o
que faz comigo? E acham que isso tem a ver com o fato de eu ter menos bunda, mais
peito? Nada disso, é porque sou puta. Porque todo homem quer sexo fácil, até
mesmo a mulher quer sexo fácil, se no fundo admitisse, mas isso ela nunca vai falar,
sabe por quê? Porque fodas se a mulher tem desejo! Isso porque toda mulher nasceu
foi para saber se comportar em sociedade,

Irônica.

como dizia minha estimada irmã Alva.

Pausa.

Ninguém fala nada?

Espera alguma reação...

Olha, que quem cala, consente...

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Descreve seu físico, como se conversasse com outro espectador homem.
Bom, voltando ao meu cliente fiel, ele era do tipo moreno claro, de 1,75 de altura, 85
KG, olhos e cabelos castanhos claros e um pau de 19X13cm, que na primeira vez, me
rasgou inteira. Eu me acostumei, porque Alva tinha me ensinado tudo direitinho...
Direciona o discurso para um espectador.
01:05, chegou já perguntando: tá lisinha hoje?
Comentando e distanciando para o espectador.
Eu disse que ele sempre gostou de joguinhos?
Voltando a narrar.
Pois é... e eu já dentro do seu climinha barato, arrematei: tá do jeito que você gosta:
com uma penugem bem no começinho assim, assim... Ele gemia palavras sujas e
obscenas na minha orelha, coisas que muitos não tem coragem de dizer, mas
adorariam escutar: que achava linda minha grelinha assim, que assim ele podia
meter a língua todinha dentro dela e puxar os meus pelinhos com os dentes... E eu
disse, já cortando aquela viagem, que só faz sentido no mundo dos machos que só
pensam no próprio pau:
Como se falasse com o cliente fiel.
Vamos para o reservado, neném? A noite hoje promete e tenho muito trabalho pela
frente...
Como se o homem falasse...
Tá com pressa, gata, calma, você sabe que sempre pago tudinho, até nosso papo...
Ela volta a narrar para a plateia.
Oh, homem teimoso, mas finalmente fomos pro reservado. Foram 20 minutos,
contados no relógio, daquele animal me socando por todos os lados, sem parar, sem
gosto nenhum, sem nenhum contato, e eu contando os minutos para ele conseguir
chegar até lá, falando: docinho: porque todo macho que se diz macho quer chegar lá
rápido, mas não tem ideia do tanto que isso não importa para uma mulher. Para ele,
o importante era: “me mete gostoso, me mete gostoso”. Enquanto eu mesma
pensava que não tinha combinado o preço antes.
Pausa. Como se acabasse a trepa.
01:25, serviço feito. E então? Como vai ser? Vai ficar calado, querido?
Pausa. Como se ouvisse o cliente fiel.

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Como assim? Você quer me pagar no fim de semana?
Pausa. Ódio. Mastigando as palavras uma a uma.

Você acha que está lidando com quem, seu idiota?

Como se chamasse o homem esguio.

Olha esse aqui, não quer pagar. Pode levar esse lá para fora e dar uma lição...

Narrando as ações do cliente fiel.

Na verdade, eu gostava do meu cliente fiel, mas eu sabia que aquela era a última
trepa, quem não paga, não leva, não podia deixar minha que minha reputação fosse
abalada por um mau pagador, afinal eu não posso dar de graça a única coisa que
tenho para vender.

Pausa. Vai novamente para a penteadeira, retorna ao ritual de limpeza das partes
baixas e batom vermelho.

A noite está no alto, e ainda nem faturei para o aluguel do mês.

Olha para o espelho, interrogando-se.

Foda-se, se você tem desejo. Você não nasceu mesmo para ter uma vida. Fica
esperta, Wili. Levanta essa cabeça e volta pro seu lugar, vadia!

Vai para o espaço onde é o botecomuquifo...

01:58, uma dose. As pessoas me olham, sempre como se nunca estivesse me vendo,
entra um homem que se destaca no meio daquele pardieiro já esfumaçado e
exalando alcóol barato.

Relaciona-se com um espectador ou com o homem esguio.

02:04, ele senta-se na minha mesa: bem apessoado, me pergunto o que ele está
fazendo ali, bem na minha frente. Ele exala um perfume de garoto que quase se
tornou um homem, meio tímido, meio desnorteado, puxa papo:

Como se o homem falasse.

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Posso te fazer uma pergunta?

Wili comentando, como se respondesse a ele.

Você já fez uma, querido, duas perguntas, o preço já sobe...

Ela narra a reação dele que supomos que sorri.

Ele sorriu com a boca inteira cheia de dentes brancos, numa naturalidade quase
irritante, pois aquilo me estremeceu: lá dentro meus ais foram ficando cada vez mais
agitados, onde outrora estavam adormecidos. Naquele instante, algo queria sair pela
minha boca afora, mas a confusão era tanta que eu não conseguia nem nomear o
que sentia.

Como se falasse com o moço apessoado.

Pode perguntar, sou toda sua, meu bem, tudo bem...

Comentando com o público.

Até mesmo porque queria ver se o cara ia comprar a mercadoria ou se ia ficar só de


lero-lero... Mas como eu tava num bom dia, e sabia que era dia de pagamento, deixei
o pobre babar algumas palavras...

Surpreendendo-se.

Me disse na cara dura: você gosta desse trabalho?

Como se respondesse.

E o que você tem a ver com isso? Você quer fuder comigo ou com minha carteira de
trabalho? E o ensebado continuava:

Como se o moço apessoado dissesse.

Não sente vontade de sair disso, não? Poxa, tem tanto trabalho no mundo que não
precisar tirar a roupa! Já pela sua figura, dá pra ver que você tem até um corpo
bonito.

Para o público.

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Fiquei muito surpresa e respondi que até sentia, mas qual o problema de tirar a
roupa?

Como se o moço apessoado dissesse.

E ele: acho que você ficaria bem melhor sempre vestida e fora desse trabalho!

Wili narrando.

Eu até olhei para a cara dele e joguei: Olha só: se eu encontrar alguém capaz de
manter meu padrão de vida sem ficar cobrando meu passado, ok, eu até pensaria no
seu caso, rapaz...

Comentando com o público.

Aquilo tinha cabimento? A minha a vida é bacana não faço nada de errado, nunca
atraso minhas contas, e cuido muito bem da minha saúde... E ele insistindo nesta
conversa de:

Como se o moço apessoado dissesse.

Você promete que um dia vai sair disso ai?

Pausa. Wili fala com ele.


Mas, com os diabos, você me lembra um rapaz que era apaixonado pela minha irmã
Alva, ele trazia bombons para ela todas as noites... ele parecia ser bom para ela. Só
que os dentes dele não eram bons e os seus são... Os seus são brancos como o
leito...
Delira um pouco, alucina, pausa.
Eu não conseguia ligar as palavras às pessoas, aquele moço perfumado se misturava
à imagem das gengivas podres do homem dos bombons das histórias de Alva, e eu
estava ficando cada vez mais zonza e parecia que meus ais estavam naquele instante
querendo sair cada vez mais pela minha boca afora. E ele repetia que queria que eu
saísse desse trabalho, dessa latrina de lugar e eu calada, ouvindo, até que o
filhodumãe conseguiu me rasgar por inteira, com a pergunta cretina: o que você
quer, Wili?
Pausa.

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O que eu quero? O que Wili quer? O que é isso? Eu quero o que todo mundo quer!
Dá uma risada irônica. Para a plateia, comentando:
Se fosse um cliente meu, que sempre bate ponto aqui: quem cala consente, mas que
raio de pergunta é essa?
Volta do delírio, com ódio e ressentimento.
Eu quero que você me deixe trabalhar em paz, oh, seu engomadinho filhodaputa,
sabia que você me fez perder 10 minutos do meu tempo. O último que me prometeu
me tirar da zona, sabe o que aconteceu? Me bateu tanto na cabeça, que fui acordar
numa merda de hospital público, me expulsou da minha própria casa, e até ficou
com meu radinho de pilha. Agora não divido nada com ninguém... Você acha o quê?
Que eu dou de graça, a única mercadoria que tenho pra vender, neném? Sai fora.
Vaza! Filhodumacachorramanca...

Narrando a saída do homem.

E foi-se num estalo porta afora, choramingando pitanga...


Para a plateia. Limpando a boca e se recompondo, mas está visivelmente alterada...
Vê se eu posso com isso? 02:45 da madrugada nesse muquifo e o camarada quer
saber o que eu quero? A Alva que tinha razão: uns doces na embalagem, mas na
realidade, todos são uns ratos roedores, por dentro... até o moço dos bombons era
gentil até conseguir o que queria, e o que deixou para Alva, não foram apenas os
farelos do chocolate, mas as dívidas, os roxos no rosto dela.
Pausa.
Eu não quero nada. Quero que me deixe trabalhar em paz e ninguém sabe o que
quer não, se soubesse...
Pausa. Cheira mais uma carreira.
Me traz mais uma, que o dia de pagamento e casa cheia, tá virando um consultório
sentimental de doidos... 02:55, chega mais um, meu cliente executivo discretíssimo
chegou e é ele quem diz, secamente:
Como se o cliente executivo falasse.
Vamos para o reservado?
Black-out.

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Epílogo: cena final?

Silêncio. Foco em Wili em pé no meio do espaço. Secamente. Para os espectadores.

Eu poderia dizer que sou uma infeWili para acalmar a sensação incômoda no coração
dos que tem vergonha de saber que eu existo. Mas não, desculpem-me se a minha
buceta não se encaixa no mundo. Pois eu encaixo ela bem onde quero e com quem
quero. Eu poderia também começar a me perdoar, esquecer meu passado e afirmar
que Alva nunca teve razão e que saber se portar em sociedade é uma tolice, mas
não. É uma necessidade. Eu poderia decidir tomar um caminho mais “honesto” neste
mundo, mas eu sou humana: eu não consigo: sou isso por natureza. É lógico que
você espera que algo aconteça, é óbvio que todos desejam que algo extraordinário
surja em nossas vidas miseráveis. Mas, você espera sem saber o que pode vir e acha
isso a maior coisa da vida.
Ri nervosamente.
Não perco meu tempo. Chega uma hora que é preciso dizer algumas coisas que ficam
guardadas aqui dentro: sabe o que é? Ah, o mundo caiu. E o problema é que não tem
só um derrubando o mundo. Homem, mulher, isso já não importa. Eu não sei mais
quem come quem.
Pausa.
Convenhamos: não há nada mais mais tolo e patético do que uma puta sentimental.
Quebra, rompe, sorri maliciosamente.
Ah, se mudar de ideia, estou aqui a noite inteira, de olho em você, e inteirinha para
você! Porque se de dia sou uma pessoa na multidão, de noite eu sou a multidão, meu
bem!

Black-out. Música cresce. Imagens em corredor de Wili caminhando de mãos dadas


com o Homem Esguio e ele a pegando pelo pescoço e fazendo ela chegar até sua
genitália. Sua bolsa cai, ela cai aos pés dele, catando suas coisas, de forma humilhante.
Repetições. Luz cai de forma decrescente. Ela termina em pé.

Fim. Outono de 2012. Que as folhas não caiam todas da árvore.

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