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mãe de Alice, pode ser considerada uma virtude de

Alice, porque é uma excelente senhora; e pode ser


considerada um defeito de Alice, porque tem ideias

Mistura muito esquisitas.


A sua ideia mais esquisita coube na quarta linha do
(Rubem Braga) telegrama: ela disse ao delegado que “Alice merecia
Nada sei, nada sei desse caso. Apenas sei que Alice um bacharel, tão alva e loura que era”. Disse isso
é muito branca e muito loura. A sua mãe se chama debulhada em lágrimas. Alice fugira com José
Rosa. Tudo isso veio em um telegrama que tem Cândido. José Cândido é um brasileiro de cor negra.
exatamente cinco Isso desgostou dona Rosa, e dona Rosa berra como só
linhas. Alice tem um as verdadeiras mães sabem berrar:
corpo muito branco, — “Ela merecia um bacharel!”
de neve, um corpo Calma, dona Rosa, Alice fugiu com um José que não
que tem a cor da é bacharel e que é preto. A senhora, dona Rosa, treme
espuma puríssima, de vergonha ao pensar que uma dura carapinha
levíssima, que o espeta o mesmo travesseiro em que repousam os
vento da tarde cabelos de seda loura de sua filha. Chora de amargura
espalha sobre as ao pensar que um corpo rude e preto de homem se
ondas do alto-mar. junta ao corpo alvo e fino de Alice. Essa confusão de
Seus cabelos são carnes brancas e pretas faz a senhora desesperar; e
louros e seus olhos... em seu desespero a senhora diz que as carnes alvas
— ai! — seus olhos de Alice mereciam carnes de bacharel.
não constam do Calma, dona Rosa. Se a senhora quer carnes de
telegrama. Isso não bacharel para sua filha, aqui estão as minhas. Eu as
quer dizer que Alice ofereço. São fracas e mofinas, mas brancas e jurídicas.
não os possua ou Porém, falando francamente, não creio que valha a
seja caolha. Os olhos estão subentendidos no pena.
telegrama, e devem ser perfeitos e lindos. Devem Há dois problemas a considerar: o problema da cor
também ser verdes. E sendo verdes, de que verdes e o problema do título. José Cândido não tinha nem a
hão de ser? Estudei longamente olhos verdes, e cor nem o título convenientes à sua filha. Mas ele
principalmente dois dentre eles. Eram estriados de raptou Alice, e as mocinhas não são raptadas
não sei que traços de ouro, felinos, fulvos, ruins. Há facilmente como um deputado paraense. As
verdes límpidos, esse verde que vemos nas folhas mocinhas, quando não querem ser raptadas,
molhadas das árvores adolescentes, quando a chuva esperneiam e fazem um berreiro medonho. Alice foi
passa e o sol fraco da tarde brilha muito louro, com porque quis. Uniu seu braço alvo ao braço preto de
meiguice. Há verdes marinhos, verdes minerais, José e partiu. As mocinhas partem assim, e não há
verdes escuros que são castanhos sob a luz elétrica, remédio, não há.
negros dentro de uma sala, verdes, verdíssimos Calma, dona Rosa. Alice está passeando no País
quando a luz natural os beija de lado. E por que não das Maravilhas. E se aquele país, pelo qual todas as
seriam azuis os olhos de Alice? Há por aí um azul mocinhas suspiram, é gostoso e bom, que importa a
claríssimo e suavíssimo, como aquele que vemos em cor do cicerone?
certos recantos esquecidos do céu, à tardinha. É um Neste país, dona Rosa, muitos brancos amaram
azul singelo e antigo, cor de roupa de brim azul muitas muitas pretas. Se a senhora não acredita, eu lhe
vezes lavada. mostrarei as provas. As provas andam aí por toda
Há tantos olhos de cores tantas olhando esta vida! parte, são dengosas e excelentes e se chamam, na
Até vermelhos há muitos, vermelhos de chorar. Que linguagem corrente, mulatas.
os olhos de Alice fiquem sendo para vós, leitor, Calma, dona Rosa, calma, dona Rosa. Alice está no
límpidos, belos, bem rasgados, da cor de vossa País das Maravilhas. E quem sabe se ela não voltará
preferência. Eu por mim, que os amo verdes, afirmo de lá um dia para a sua casa, trazendo pelo braço uma
em face da lamentável omissão do telegrama que eles criancinha mulata de olhos verdes? E a senhora não
são verdes, tão verdes como o selo de imposto de acha lindas, dona Rosa, as mulatinhas de olhos
consumo nacional. verdes?
Alice, a ebúrnea Alice (ebúrnea que dizer: Rio, fevereiro, 1935.
branquinha), Alice tinha um defeito e uma virtude, (Rubem Braga, O conde e o passarinho)
resumidos em uma só pessoa: a sua mãe. Dona Rosa,

Mistura, Rubem Braga “Você é único quando pensa diferente.” Pág. 1


1) Qual é o problema sociocultural focalizado pelo texto
Mistura?
✎_______________________________________ Na contemporaneidade, ainda existe o racismo
_________________________________________ cultural que defende que uma cultura seja superior à
outra. Vele lembrar que a Constituição de 1988 tipifica
_________________________________________
racismo como crime, isto é, confirma a existência do
_________________________________________ racismo e a realidade desigual entre pessoas brancas e
negras. Caso não existisse racismo, como a legislação
2) Ao descrever Alice, o autor satiriza um padrão de brasileira iria criar medidas para combatê-lo (seria
beleza feminina que a sociedade cultua. Que padrão é contraditório combater algo que não existe)?
esse? Infelizmente este é apenas um dos problemas que
✎_______________________________________ muitos brasileiros enfrentam.
_________________________________________ Observe as imagens e escreva a crítica sociocultural
_________________________________________ presente em cada uma delas e que também está
_________________________________________ presente na nossa atualidade.

3) “Alice merecia um bacharel, tão alva e loura que era.”


a) Qual o significado de bacharel no texto?
✎_______________________________________
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b) Nessa fala de dona Rosa está presente um


✎_______________________________________
preconceito? Qual?
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4) Como o autor ironiza o desejo de dona Rosa de que


sua filha Alice “merecia um homem branco e bacharel”?
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5) O autor diz que “Alice está passeando no País das
Maravilhas.” Que país é este? _________________________________________
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6) O texto Mistura foi escrito por Rubem Braga em 1935.


Você acredita que opiniões iguais às de dona Rosa
continuam existindo em nossa sociedade? Justifique.
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Mistura, Rubem Braga “Você é único quando pensa diferente.” Pág. 2
Gabarito – Mistura, Rubem Braga são verdes, tão verdes como o selo de imposto de
Lição Prática – www.licaopratica.com.br consumo nacional.
Sugestãode aplicação: 8º ano Alice, a ebúrnea Alice (ebúrnea que dizer:

Mistura branquinha), Alice tinha um defeito e uma virtude,


resumidos em uma só pessoa: a sua mãe. Dona Rosa,
(Rubem Braga) mãe de Alice, pode ser considerada uma virtude de
Alice, porque é uma excelente senhora; e pode ser
considerada um defeito de Alice, porque tem ideias
muito esquisitas.
A sua ideia mais esquisita coube na quarta linha do
telegrama: ela disse ao delegado que “Alice merecia
um bacharel, tão alva e loura que era”. Disse isso
debulhada em lágrimas. Alice fugira com José
Cândido. José Cândido é um brasileiro de cor negra.
Isso desgostou dona Rosa, e dona Rosa berra como só
as verdadeiras mães sabem berrar:
— “Ela merecia um bacharel!”
Calma, dona Rosa, Alice fugiu com um José que não
é bacharel e que é preto. A senhora, dona Rosa, treme
de vergonha ao pensar que uma dura carapinha
Nada sei, nada sei desse caso. Apenas sei que Alice espeta o mesmo travesseiro em que repousam os
cabelos de seda loura de sua filha. Chora de amargura
é muito branca e muito loura. A sua mãe se chama
ao pensar que um corpo rude e preto de homem se
Rosa. Tudo isso veio em um telegrama que tem
junta ao corpo alvo e fino de Alice. Essa confusão de
exatamente cinco linhas. Alice tem um corpo muito
carnes brancas e pretas faz a senhora desesperar; e
branco, de neve, um corpo que tem a cor da espuma
em seu desespero a senhora diz que as carnes alvas
puríssima, levíssima, que o vento da tarde espalha
de Alice mereciam carnes de bacharel.
sobre as ondas do alto-mar. Seus cabelos são louros e
seus olhos... — ai! — seus olhos não constam do Calma, dona Rosa. Se a senhora quer carnes de
telegrama. Isso não quer dizer que Alice não os possua bacharel para sua filha, aqui estão as minhas. Eu as
ou seja caolha. Os olhos estão subentendidos no ofereço. São fracas e mofinas, mas brancas e jurídicas.
telegrama, e devem ser perfeitos e lindos. Devem Porém, falando francamente, não creio que valha a
também ser verdes. E sendo verdes, de que verdes pena.
hão de ser? Estudei longamente olhos verdes, e
Há dois problemas a considerar: o problema da cor
principalmente dois dentre eles. Eram estriados de
e o problema do título. José Cândido não tinha nem a
não sei que traços de ouro, felinos, fulvos, ruins. Há
cor nem o título convenientes à sua filha. Mas ele
verdes límpidos, esse verde que vemos nas folhas
raptou Alice, e as mocinhas não são raptadas
molhadas das árvores adolescentes, quando a chuva
facilmente como um deputado paraense. As
passa e o sol fraco da tarde brilha muito louro, com
mocinhas, quando não querem ser raptadas,
meiguice. Há verdes marinhos, verdes minerais,
esperneiam e fazem um berreiro medonho. Alice foi
verdes escuros que são castanhos sob a luz elétrica,
porque quis. Uniu seu braço alvo ao braço preto de
negros dentro de uma sala, verdes, verdíssimos
José e partiu. As mocinhas partem assim, e não há
quando a luz natural os beija de lado. E por que não
remédio, não há.
seriam azuis os olhos de Alice? Há por aí um azul
claríssimo e suavíssimo, como aquele que vemos em Calma, dona Rosa. Alice está passeando no País
certos recantos esquecidos do céu, à tardinha. É um das Maravilhas. E se aquele país, pelo qual todas as
azul singelo e antigo, cor de roupa de brim azul muitas mocinhas suspiram, é gostoso e bom, que importa a
vezes lavada. cor do cicerone?

Há tantos olhos de cores tantas olhando esta vida! Neste país, dona Rosa, muitos brancos amaram
Até vermelhos há muitos, vermelhos de chorar. Que muitas pretas. Se a senhora não acredita, eu lhe
os olhos de Alice fiquem sendo para vós, leitor, mostrarei as provas. As provas andam aí por toda
límpidos, belos, bem rasgados, da cor de vossa parte, são dengosas e excelentes e se chamam, na
preferência. Eu por mim, que os amo verdes, afirmo linguagem corrente, mulatas.
em face da lamentável omissão do telegrama que eles

Mistura, Rubem Braga “Você é único quando pensa diferente.” Pág. 3


Calma, dona Rosa, calma, dona Rosa. Alice está no Infelizmente este é apenas um dos problemas que
País das Maravilhas. E quem sabe se ela não voltará muitos brasileiros enfrentam.
de lá um dia para a sua casa, trazendo pelo braço uma Observe as imagens e escreva a crítica sociocultural
criancinha mulata de olhos verdes? E a senhora não presente em cada uma delas e que também está
acha lindas, dona Rosa, as mulatinhas de olhos presente na nossa atualidade.
verdes?
Rio, fevereiro, 1935.
(Rubem Braga, O conde e o passarinho)

1) Qual é o problema sociocultural focalizado pelo texto


Mistura?
▶O problema sociocultural focalizado no texto é o
racismo.
▶Pessoal.
2) Ao descrever Alice, o autor satiriza um padrão de
beleza feminina que a sociedade cultua. Que padrão é
esse?
▶O padrão de beleza cultuado pela sociedade é o da
mulher loura, branca, de olhos verdes ou azuis.

3) “Alice merecia um bacharel, tão alva e loura que era.”


a) Qual o significado de bacharel no texto?
▶Refere-se a alguém formado em qualquer faculdade ou
a alguém formado especificamente em Direito.
▶Pessoal.
b) Nessa fala de dona Rosa está presente um
preconceito? Qual?
▶Mulheres “brancas e louras” merecem homens
“altamente qualificados”.

4) Como o autor ironiza o desejo de dona Rosa de que


sua filha Alice “merecia um homem branco e bacharel”?
▶Oferecendo suas próprias carnes “brancas e jurídicas”.

5) O autor diz que “Alice está passeando no País das


Maravilhas.” Que país é este?
▶O país do amor (felicidade, prazer...) ▶Pessoal.

6) O texto Mistura foi escrito por Rubem Braga em 1935.


Você acredita que opiniões iguais às de dona Rosa
continuam existindo em nossa sociedade? Justifique.
▶Pessoal.

Na contemporaneidade, ainda existe o racismo


cultural que defende que uma cultura seja superior à
outra. Vele lembrar que a Constituição de 1988 tipifica
racismo como crime, isto é, confirma a existência do
racismo e a realidade desigual entre pessoas brancas e
negras. Caso não existisse racismo, como a legislação
brasileira iria criar medidas para combatê-lo (seria
contraditório combater algo que não existe)?

Mistura, Rubem Braga “Você é único quando pensa diferente.” Pág. 4

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