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conselho editorial

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EDITORAÇÃO Laís Flores e Francine Sakata – NK&F Arquitetos Associados 2014


ELETRÔNICA nkfarquitetura@nkfarquitetura.com.br
Ilustração da capa por Alessandro Sbampato
Composto nos tipos Isidora por Laura Lotufo e Gill Sans por Eric Gill.

Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política


Ano 18 – 2014 – Niterói: Sociedade Brasileira de Economia Política, 2014
ISSN 1415-1979
Economia I. Sociedade Brasileira de Economia Política.
CDD – 330
NÚmero 38 REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA
jUNHO de 2014 DE ECONOMIA POLÍTICA

6 Apresentação

ARTIGOS;

9 “Capital Financeiro” versus “Capital Industrial”: um


exercício de desmistificação.
Gustavo Moura de Cavalcanti Mello

35 Mais uso indevido de dados sobre salários na Monthly


Review: a superacumulação de um excedente de erros
Andrew Kliman

57 A insustentável leveza do ter: crédito e consumismo no


Brasil
Hugo Chaves B. Ferreira e João Policarpo R. Lima

89 Um novo padrão exportador de especialização


produtiva? Considerações sobre o caso brasileiro
Carlos Américo Leite Moreira e Emanuel Sebag de Magalhães

107 Uma interpretação pós-keynesiana do Regime de


Metas de Inflação: poderia a Autoridade Monetária ser
capturada pelo sistema bancário?
Fábio Henrique Bittes Terra
RESENHA:

Karl Marx & Friedrich Engels, Lutas de classes na Rússia. 128


Informações editorais: Editora Boitempo, São Paulo, 2013.
Hugo F. Corrêa
APRESENTAÇÃO

O
lançamento de uma nova edição de qualquer periódico
exige da equipe editorial uma apresentação na qual sejam
evidenciadas não apenas suas virtudes, mas também suas
novidades. Não é novo o fato de que a Revista da Sociedade Brasileira
de Economia Política traga uma coleção de artigos representativos do
pensamento crítico no campo da economia. Creio que essa seja a marca
indelével da própria publicação, o que certamente se reafirma nesta
38ª edição, como esperamos deixar claro a seguir. Não foi, entretanto,
difícil reconhecer o “novo” na atual edição e talvez seja inclusive
possível afirmar que sua grande novidade é ter grandes novidades.

Em primeiro lugar, como todos prontamente perceberão, a Revista da


SEP veste uma nova roupa, um novo projeto gráfico, a partir desta 38ª
edição. Esperamos com isso aprimorar o impacto visual, a padronização
e a legibilidade das informações trazidas na Revista, tornando assim
ainda mais prazerosa e enriquecedora a experiência de leitura. O novo
projeto gráfico, ademais, é concebido como veículo para a transição da
Revista para o formato prioritariamente digital.

A segunda novidade, a propósito, é justamente esta: a Revista da


Sep passa a ser editada como revista eletrônica, funcionando no
consagrado sistema OJS (Open Journal System), adotado pelas mais
importantes publicações científicas no mundo inteiro. Todo o processo
de submissão, avaliação e revisão são agora migrados para o sistema e,
portanto, operados de forma familiar aos usuários.
Por fim, a Revista da SEP apresenta-se o campo marxista, do entendimento de que
explicitamente, nesta edição, como publicação todas as mazelas do capitalismo são produto
do XIX Encontro Nacional de Economia da influência maligna do capital “financeiro”.
Política, buscando nele artigos para suas Tal entendimento, de um lado, demoniza
próximas edições, e trazendo aqui textos que, o “capital financeiro” e, de outro, exalta o
de alguma maneira, dialogam com o tema “capital industrial”, prescindindo, portanto, da
do evento – (Neo)desenvolvimentismo em perspectiva de totalidade presente na análise de
questão. Aproveitamos aqui para, uma vez Marx.
mais, agradecer aos apoiadores do evento:
Em seguida, publicamos aqui o trecho de um
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de
artigo polêmico (Mais uso indevido de dados sobre
Pessoal de Nível Superior, CNPq – Conselho
salários na Monthly Review: a superacumulação
Nacional de Desenvolvimento Científico e
de um excedente de erros) no qual Andrew
Tecnológico, IPEA – Instituto de Pesquisa
Kliman contesta os dados com que Fred
Econômica Aplicada, BNDES – Banco Nacional
Magdoff e John Bellamy Foster amparam o
de Desenvolvimento Econômico e Social,
argumento de que a classe capitalista tem
BNB – Banco do Nordeste do Brasil, FAPESC
se apropriado contínua e crescentemente
– Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
da parcela de renda perdida pela classe
de Santa Catarina, CEF – Caixa Econômica
trabalhadora. A crítica de Kliman põe em
Federal e UFSC – Universidade Federal de
questão os métodos empregados por Magdoff
Santa Catarina.
e Foster e procura demonstrar que, na verdade,
De fato, de modo mais ou menos direto, com seus cálculos são motivados pelo esforço em
uma ou outra preocupação e orientação teórica, confirmar a tese subconsumista formulada por
todos os artigos da revista debatem o tema do Paul Sweezy. É preciso registrar que Foster
desenvolvimento capitalista (e da reflexão sobre foi convidado pela edição da Revista da SEP
ele). No primeiro artigo, “Capital Financeiro” para contribuir com uma réplica, convite
versus “Capital Industrial”: um exercício de que não pôde aceitar por causa dos inúmeros
desmistificação, Gustavo Moura de Cavalcanti compromissos profissionais previamente
Mello procura contrapor a influência, sobre agendados.
No artigo A insustentável leveza do ter: crédito O quinto e último artigo desta edição é
e consumismo no Brasil, Ferreira e Lima assinado por Fábio Henrique Bittes Terra.
apresentam a trajetória recente da economia Nele, o autor põe em questão o Novo Consenso
brasileira (pós-abertura comercial) como Econômico, em particular no que se refere à
ilustração de um argumento em que procuram defesa incondicional do Regime de Metas de
demonstrar que o capitalismo induz um Inflação. Partindo de um referencial teórico pós-
comportamento de consumo mimético nos keynesiano, Terra argumenta que, na realidade,
indivíduos que ocupam as faixas de renda o Regime de Metas torna a Autoridade
mais baixas. Impulsionados pelo crédito Monetária refém do sistema bancário,
fácil (e caro), de um lado, e pela propaganda limitando severamente sua capacidade de
mercadológica, de outro, os indivíduos que contribuir para a administração de política
ocupam as classes de renda mais baixas econômica, em geral, e da política monetária,
perseguem padrões de consumo da “elite” e em particular.
acabam por comprometer sua própria condição Por fim, Hugo F. Corrêa oferece uma bem-
financeira. construída resenha da coletânea de textos de
No quarto artigo desta 38ª edição, Um novo Marx e Engels lançada pela Editora Boitempo,
padrão exportador de especialização produtiva? em 2013, sob o título Lutas de classes na Rússia.
Considerações sobre o caso brasileiro, Carlos
Américo Leite Moreira e Emanuel Sebag
de Magalhães contrapõem a tese de Jaime
Osorio segundo a qual, por causa da falta de
dinamismo do mercado moderno, consolidou-se
um novo padrão de reprodução do capital na
América Latina, baseado no duplo processo de
reprimarização e desindustrialização. Sem negar
a existência deste novo padrão de acumulação,
os autores alegam que, ao menos no caso
brasileiro, o elemento causal determinante foi
o processo de financeirização das empresas
multinacionais.
“Capital Financeiro” versus “Capital
Industrial”: um exercício de desmistificação
Gustavo Moura de Cavalcanti Mello
“Capital Financeiro” versus
“Capital Industrial”: um exercício
de desmistificação

Resumo

O
propósito desse artigo é analisar brevemente, com base em um
estudo da madura crítica marxiana da economia política, os
papéis que o “capital financeiro” desempenha no interior da di-
nâmica global da acumulação de capital. Com isso, pretende-se comba-
ter uma concepção equivocada, bastante sedimentada no senso comum,
que toma o sistema financeiro como uma excrescência que parasita o
capital industrial – símbolo da abnegação e da laboriosidade –, e que
tende a tratar o capital industrial e o capital financeiro como meramente
“exteriores” entre si. Por vezes, e isso também será objeto de crítica, tal
concepção embasa e alimenta veleidades reformistas de supressão ou de
estabelecimento de um estrito controle sobre o capital financeiro, em
favor de um capitalismo “saudável”, dominado pela indústria.

Palavras-chave: Acumulação de capital; capital portador de juros; capi-


tal fictício; capitalismo contemporâneo.

Classificação JEL: F30; G00; P16.

1. Introdução
Gustavo Moura de A despeito de seu compromisso com os mercados financeiros, em meio
Cavalcanti Mello
à mais recente crise econômica mundial, pulularam nos grandes meios
Graduado em Economia pela
de comunicação o diagnóstico da carência de estruturas regulatórias
FEA-USP, mestre e doutor em
Sociologia pela FFLCH-USP. e fiscalizadoras do sistema financeiro internacional, frequentemente
acompanhada por invectivas contra a ganância, valorização do valor. (Marx, 1986, p.111-2) Nesses
a desonestidade e a irresponsabilidade social casos, o “capital usurário” perpetua-se como a
dos “investidores” financeiros. Subjaz a essa causa imediata da ruína individual, alimentan-
constatação uma noção ideológica, por conse- do o ódio de suas vítimas e a condenação moral
guinte fundamentada na aparência do modo de por parte de doutrinas religiosas que se revelam,
produção capitalista, segundo a qual as práticas dessa perspectiva, menos anacrônicas do que
diretamente produtivas adquirem conotação geralmente se supõe. A aversão à forma usurária
positiva, enquanto que as atividades votadas ao tende aí a ser dirigida ao conjunto das formas
empréstimo de dinheiro e às transações reali- assumidas pelo capital portador de juros.
zadas nos mercados financeiros são tidas como
Por outro lado, na atual fase de desenvolvimen-
“antissociais” e mesmo “imorais”. Vejamos de
to capitalista é bastante improvável que uma
saída, em largos traços, o fundamento material
empresa economicamente relevante dispense a
de tais concepções.
atuação nos mercados financeiros. No entanto,
Em primeiro lugar, o capital portador de juros pode-se encontrar essa limitação nas empresas
está longe de se identificar com o capital usu- industriais de pequeno e médio porte. Entre
rário, forma “antediluviana” do capital, cuja seus gestores, proprietários e mesmo trabalhado-
prática produzia um decisivo impacto “dissol- res, e também dentre aqueles que atuam na pro-
vente” nas formações sociais pré-capitalistas, dução industrial direta, no interior de grandes
“minando e destruindo a riqueza antiga e feudal empresas e corporações, pode surgir uma edifi-
e a propriedade antiga e feudal”. (Marx, 1986, cante imagem de uma “classe laboriosa”, pro-
p.109) Não obstante, sob bases especificamente dutora de “bens” que atendem às “necessidades
capitalistas, o capital portador de juros perpetua sociais”, em oposição à ociosidade parasitária
a forma usurária – liberta das restrições legais das “finanças”, cujos agentes nada produzem de
que vigoravam no mundo feudal –, quando útil e apenas sugam o fruto do trabalho alheio.
da tomada de empréstimo por parte daque- Tal noção é reforçada pela manutenção do culto
les que não detém meios de produção, ou que ao trabalho e da ascese protestante, que foram
são produtores diretos, ou que, sob quaisquer apontados por Marx como decisivos no interior
circunstâncias, dissipam os recursos empresta- do processo de consolidação do capitalismo.1
dos de modo não produtivo, da perspectiva da

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Àquela altura, havia a necessidade de formação p.226) decorrentes da crescente necessidade
de uma classe empresarial e de um proletariado de contração de crédito. A capacidade de
adequados às exigências da nascente produção esbanjamento e a imagem de prosperidade
capitalista. (Marx, 1996b, p.359) Não obstante, comumente se tornam proporcionais à
há tempos a reprodução ampliada do capital e confiabilidade do capitalista e ao montante
o correspondente processo de centralização e de monetário que ele consegue levantar junto a
concentração de capital garantiram ao capi- investidores e instituições financeiras.
talista as condições para o incremento de seu
Aos capitalistas interessa estimular, ao mesmo
consumo individual, sem que isso impusesse
tempo, a frugalidade e a disciplina de seus pró-
uma barreira à acumulação. (Marx, 1996a, p.237)
prios empregados, e o consumismo dos demais
Em oposição ao entesourador, cuja ascese “lhe
proletários.2 Como constatara Lacan (1975),
tira a manteiga do pão”, “seu esbanjamento [do
em seu “vigésimo seminário”, grosso modo, o
capitalista – GM] cresce, contudo, com sua acu-
imperativo do superego se tornara o “Goza!”, a
mulação, sem que um precise prejudicar a outra.
obrigação do gozo, em substituição à repressão
Com isso desenvolve-se, ao mesmo tempo, no
ao gozo que vigorava nos tempos de Freud. Tal
coração do capitalista um conflito fáustico entre
imperativo abstrato e irrealizável – posto que o
o impulso a acumular e o instinto do prazer”
gozo necessariamente dimana de uma experi-
(Marx, 1996a, p.227). Por outro lado,
ência específica, a qual trai a “pureza”, o caráter
com o desenvolvimento do modo de produção abstrato e a “desmesura” exigidos por esse supe-
capitalista, da acumulação e da riqueza, o capi- rego contemporâneo – coaduna-se e impele ao
talista deixa de ser mera encarnação do capital.
consumismo de massa, predatório e sem peias,
Ele sente um “enternecimento humano” por seu
tão importante para a realização do capital. Os
próprio Adão e torna-se tão culto que chega a
ridicularizar a paixão pela ascese, como precon- indivíduos são, portanto, premidos ao trabalho
ceito do entesourador arcaico. Enquanto o capi- de Sísifo da satisfação de suas pulsões, sempre
talista clássico estigmatiza o consumo individual frustrados em seu intento.
como pecado contra sua função e “abstinência”
Não é o momento de tratar do caráter contra-
da acumulação, o capitalista moderno é capaz
ditório dessa situação, mas apenas de frisar a
de conceber a acumulação como “renúncia” a seu
instinto do prazer. (Marx, 1996a, p.226) instabilidade, os riscos e as incertezas que lhes
são inerentes. Como contraponto a esse estado
Ademais, o desenvolvimento da acumulação
de coisas, e a despeito de sua relativa obsoles-
de capital impõe aos capitalistas vultosos
cência,3 a ideologia do self-made man e o mito
“custos de representação” (Marx, 1996a,

12
acumulação originária, que implica a positiva- financeira da acumulação capitalista, e vivificam
ção do trabalho como condição para a ascensão quimeras na linha da “eutanásia do rentier”,
social e como fonte de dignidade e de uma vida auspiciada por Keynes (1996, p.344), com vistas
moralmente virtuosa – cuja trágica e onipresen- à instauração ou à “refundação” de um “bom”
te verdade adquiriu uma materialidade extre- capitalismo, centrado na indústria, contra um
mada em Auschwitz, cujos portões de entrada “mau” capitalismo, dominado pelas “finanças”.
ostentavam a máxima “O Trabalho Liberta” –, Ao contrário, pretende-se demonstrar adiante,
mantém-se como peças ideológicas recalcitran- por um lado, que as diversas formas de capital
tes e relevantes. devem ser compreendidas em sua singularidade,
fruto de um processo de autonomização inerente
Sem dúvida, a rechaço moral das “finanças”
ao movimento de constituição e de reprodução
deve muito às frequentes fraudes, à corrupção
do capital, mas também como parte de uma
e à busca predatória por rendimentos rápidos e
totalidade contraditória e fragmentária, que
vultosos, que são características dos mercados
também possui uma existência objetiva, singu-
financeiros, e que por vezes revelam-se estopins
lar e determinante. Por outro lado, objetiva-se
de crises, nas quais um seleto grupo “bem po-
evidenciar que o caráter violento, predatório
sicionado” beneficia-se fartamente, enquanto o
e desmedido, comumente atribuído ao capital
grosso da população é penalizado.
financeiro, é inerente à forma capital.5
Por fim, diante de um colapso financeiro, que
desmente a apologética reinante e o culto aos
mercados, faz-se necessário apresentar um 2. O capital portador de juros e o pro-
“culpado”, e mesmo as grandes corporações que cesso global de produção de capital
ainda ontem esbaldavam-se em ousadas tran- 2.1. O capital como totalidade
sações financeiras se apressam em condenar o Cabe recordar que o capital é uma forma social
suposto desregramento do sistema financeiro.4 cuja exposição não pode ser reduzida a um mero
A especialização e as cisões no interior da classe amálgama de proposições isoladas, mas que se
capitalista, por seu turno, propiciam terreno constrói por uma longa via repleta de vicissitu-
fértil para tal desenlace. des, de aparentes aporias, de negações, de suces-
Em suma, e sobretudo sob os efeitos de uma cri- sivos retornos a pontos que, não obstante, não
se econômica tão profunda e abrangente como permanecem inalterados. Sem uma base axio-
a que eclodiu em 2007-8, todos esses elementos mática, donde se deduziria um corpo “teórico”
competem para a condenação da dimensão não contraditório, a crítica marxiana opera por

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meio do deslocamento entre distintos níveis de desenvolvimento e a essas relações. Se no sistema
abstração, num movimento em que as análises burguês acabado cada relação econômica pres-
subsequentes alteram as que as antecederam, supõe a outra sob a forma econômico-burguesa,
e assim cada elemento posto é ao mesmo tempo
em que tudo o que se expõe está carregado de
suposto, tal é o caso com todo sistema orgânico.
pressupostos, os quais no momento seguinte
Este mesmo sistema orgânico em sua totalidade
também serão objetos de apresentação; e aquilo tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento até
que se afigurava um resultado bem assentado alcançar a totalidade plena consiste precisamente
perde sua fixidez, e se revela em processo de em subordinar todos os elementos da sociedade,
constituição. Na interação entre múltiplas cate- e em criar os órgãos que ainda o fazem falta a
gorias que progressivamente vão se enriquecen- partir daquela. Desta maneira chega a ser histori-
camente uma totalidade. (Marx, 1973a, p.219-220)
do em determinações é que se constrói o concei-
to de capital, o qual não pode ser dissociado do Assim, a referida totalidade fragmentária é
seu próprio processo de acumulação – ou que, concebida como um movimento rigorosamente
na realidade, é esse próprio processo –; desse dialético de subsunção, de diferenciação e de au-
modo, o conceito de capital permeia e constitui tonomização de momentos copertinentes. (Marx,
os três livros da principal obra de Marx, e os 1980, p.936) Dessa ótica, a apreensão da socieda-
extrapola. de burguesa enquanto totalidade deve ser feita

A totalidade fragmentária, que Marx designa mediante o desenvolvimento de seu fundamento

como modo de produção capitalista, fundamen- contraditório, processo no qual as diferentes

ta-se em uma forma social totalitária que se categorias revelam-se como formas de mani-

ergue sobre seus próprios pés tendo como base festação da contradição constitutiva do capital.

formas sociais – econômicas, políticas, estéticas, Nas palavras sintéticas de Marx, o capital é “a

religiosas – pretéritas, que ela açambarca e sobre potência econômica da sociedade burguesa, que

as quais engendra formas novas, especificamen- domina tudo. Deve constituir o ponto inicial e o

te capitalistas. “Deve-se ter em conta”, afirma ponto final […]”. (Marx, 1982, p.45)

Marx nos Grundrisse, Ademais, “o capital não é uma relação simples,


que as novas forças produtivas e relações de mas um processo, em cujos diversos momentos
produção não se desenvolveram a partir do nada, nunca deixa de ser capital” (Marx, 1973a, p.198),
nem do ar, nem das entranhas da ideia que se põe conquanto se mantenha em movimento, hora
a si mesma; porém no interior do desenvolvimen- assumindo a forma de capital constante, hora
to existente da produção e das relações de pro- a de capital variável, hora a de capital-dinheiro
priedade tradicionais e contrapondo-lhes a esse
emprestável, e mesmo, por vezes, estancando-se

14
como capital fixo ocioso ou como tesouro não limite quantitativo da mais-valia se lhe apre-
aplicado e em franca desvalorização, em uma ou senta tão somente como barreira natural, como
outra etapa dos ciclos econômicos. Mas sempre necessidade, a que ele constantemente procura
derrubar;” (Marx, 1973a, p.277) [de modo que] “a
como parte desses ciclos, já que, como enfatiza
auto-conservação do capital é sua auto-valori-
reiteradamente Marx,
zação.7 (Marx, 1973a, 265)
a produção de mais-valia, que compreende a
Nessa etapa da conceituação, operando num
conservação do valor adiantado inicialmente,
apresenta-se assim como a finalidade determi- elevado grau de abstração, Marx define o capi-
nante, o interesse impulsor e o resultado final do tal, o valor que se valoriza, como o movimento
processo de produção capitalista, em virtude do de autossuperação de sua atual grandeza por
qual o valor originário se transforma em capital. meio da vampiresca extração sempre aumen-
(Marx, 1978, p.8) tada de trabalho excedente (mais-trabalho).8
O “trabalho de Sísifo da acumulação” que se im- Assim, o capital põe a si próprio como medi-
põe pela busca dessa finalidade absoluta respon- da, ou como um montante de valor que deve
de a uma dialética específica, por meio da qual ser ultrapassado num processo de constante
o capital, enquanto limite de si, erige-se como perda e subsequente reposição dessa medida,
6
barreira a ser incessantemente superada. Essa como se se tratasse de um jogo estritamente
ideia é formulada com clareza numa conhecida quantitativo.9 Numa palavra, o capital põe-se
passagem dos Grundrisse, segundo a qual enquanto medida de si próprio por meio da
desmedida;10 é a hybris em movimento.
o capital, pois, como representante da forma
universal da riqueza – o dinheiro – constitui o Um aspecto fundamental de toda a
impulso desenfreado e desmedido de ultrapas- argumentação marxiana, que se encontra
sar suas próprias barreiras. Para ele, cada limite
no cerne da sua crítica à economia política,
é e deve ser uma barreira. Em caso contrário
está enfaticamente explicitado na passagem
deixaria de ser capital, dinheiro que se produz
a si mesmo. Bastaria deixar de perceber um
supracitada: o capital enquanto sujeito,
determinado limite como uma barreira, bastaria enquanto forma social semovente que tende a
se sentir confortável dentro dele, para decair de governar suas próprias condições de existência
valor de troca a valor de uso, de forma universal e reprodução. É “ele” a forma universal da
da riqueza a determinada existência substancial riqueza; “ele” que se faz dinheiro; “ele” que
daquela. O capital como tal cria uma mais-valia encara seus limites como barreiras, e é “ele”
determinada porque não pode criar at once [de
que as supera e assim se faz capital. E se o
uma só vez] uma ilimitada; mas o capital é a
capital é o sujeito, o capitalista é o seu suporte,
tendência permanente a criar mais mais-valia. O

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sua personificação. Como se depreende daquele sentido de revolucionar os meios de produção,
trecho, a constituição do capital consiste no tendendo a substituir relativa e absolutamente o
processo fetichista de autonomização que capital variável.
engendra o império das formas, e é marcado
Longe de um mero “parênteses” metodológico,
pela tendência ao expurgo das determinações
tais considerações são relevantes, em primeiro
qualitativas, à homogeneização, à simplificação,
lugar, porque a abordagem de Marx não respeita
à racionalização quantitativista; um processo
o ímpeto positivista, definidor e classificatório,
que não se circunscreve ao plano das ideias
e faz da constituição dos conceitos um longo
ou à cabeça do crítico, mas que domina
caminho, que estamos impossibilitados de
distintos aspectos da realidade, sendo expresso
percorrer pelos limites desse texto. Além disso,
teoricamente pelo conceito marxiano de
salientou-se a concepção do capital como totali-
abstração real. No entanto, a tendência à
dade contraditória, e a necessidade de analisar
subjetivação do capital é contraditada por
os elementos constitutivos da acumulação de
elementos derivados do caráter exterior de sua
capital em sua singularidade, mas também em
própria substância, o trabalho abstrato, donde o
sua unidade, na medida em que o processo de
caráter “cego e automático” do sujeito-capital.
autonomização das formas particulares e de
Esquematicamente, pode-se dizer que o capital, totalização constituem realidades objetivas e
que tem como substância o trabalho abstrato, irredutíveis entre si, cujos nexos e as formas
precisa rebaixar a força de trabalho a um mo- de relação é necessário investigar, sob pena de
mento de si, reduzindo-a à condição de capital se perder o objeto e de se sucumbir a leituras
variável, e lhe fazer oposição. Para tanto, reduz- parciais (ideológicas) sobre o funcionamento
-se a si próprio à capital constante, e com isso, da sociedade capitalista. E, por fim, de acordo
constitui-se enquanto totalidade formal. Não com a interpretação ora proposta, no cerne da
obstante, sua existência como totalidade depen- conceituação de capital está o seu movimento
de do sucesso em estabelecer empecilhos para fetichista de subjetivação e a correspondente
a apropriação, pelos trabalhadores, dos meios reificação dos indivíduos, reduzidos à condição
de produção e do produto total do seu trabalho. de seus suportes. Tais elementos são decisivos
Assim, o capital ao mesmo tempo precisa incluir para a argumentação subsequente.
e negar a força de trabalho, movimento que se
2.2. O conceito de capital portador de juros
expressa na produção da mais-valia relativa,
Em oposição ao capital-mercadoria – a mercado-
baseada na subsunção capitalista da ciência e
ria recém-saída do processo produtivo, contendo
do desenvolvimento técnico e tecnológico, no

16
mais-valia a ser realizada na circulação – e ao base imediata o crédito comercial, contribui
capital-produtivo – os meios de produção e a para a sua conceituação e para apreensão de seu
força de trabalho combinados no interior da papel no interior do processo global de produ-
indústria –, o capital-dinheiro simplesmente de- ção. A importância do crédito é decisiva: 1) no
signa uma das formas – a forma-dinheiro – que interior do processo de concentração e centra-
o capital necessariamente assume no interior lização de capital, já que a) “as modernas insti-
do processo de valorização, com referência à tuições de crédito foram tanto um efeito quanto
produção imediata, ou seja, o dinheiro enquanto uma causa da concentração do capital” (Marx,
capacidade de aquisição dos elementos produti- 1973a, p.45-6); que b) foi decisivo para formação
vos. (Marx, 1984b, p.260) Se o considerarmos em das grandes sociedades por ações; e que c) por
escala social, uma parte desse capital assume esse motivo, e ao concentrar e disponibilizar
temporariamente a forma de tesouro, e outra, ao enormes montantes monetários oriundos de
ser emprestada, adentra o circuito do comércio miríades de prestamistas, o sistema creditício
de dinheiro, e se converte em capital portador de permitiu a exploração de ramos, de escalas de
juros, o capital em forma-dinheiro que é comer- produção e de um grau de produtividade outro-
cializado como mercadoria, um poder social, a ra inacessíveis aos capitalistas – o que tende a
potência de adquirir força de trabalho e meios significar a falência das empresas menos produ-
de produção. Nessa condição, erguendo-se sob a tivas, e por outro lado compete para conduzir à
base de sua existência enquanto meio de paga- bancarrota inúmeras empresas insolventes que
mento (Marx, 1996, p.259), o dinheiro adquire contraem empréstimos nas instituições credití-
um valor de uso particular, que é o de funcionar cias; 2) na garantia da continuidade do processo
como capital, o de propiciar lucro (médio), me- produtivo, a qual em sua ausência permaneceria
11
diante o devido investimento produtivo. E uma contingente; 3) na diminuição da necessidade de
determinação distintiva do capital portador de entesouramento, no aumento da velocidade do
juros consiste em circular não como mercadoria dinheiro e na economia de meios de circulação e
ou dinheiro, mas como capital, cuja propriedade de pagamento, ou na redução de “falsos custos”
não é alienada no processo. O que ocorre é a de produção, na medida em que a circulação de
transferência temporária de sua posse. (Marx, dinheiro como meio de pagamento e a manu-
1984b, p.258-9) tenção de tesouros – “capital monetário em
potencial: reserva de meios de compra, reserva
Uma análise, mesmo que superficial, do sistema
de meios de pagamentos, capital desocupado
creditício, que se ergue a partir do movimento
que, em forma-dinheiro, espera sua aplicação”
do capital portador de juros, e que possui como

Revista da sociedade brasileira de economia política 17


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– implicam diversas atividades contábeis, de Cabe destacar, de passagem, que a importância
compensação, de cobrança, entre outras, que do capital portador de juros, ainda em estado
envolvem o dispêndio de força de trabalho e de embrionário, na criação das condições para a
meios de produção, os quais são reduzidos quan- consolidação do capitalismo e da grande indús-
do se tornam função de uma categoria específica tria não pode ser exagerada. Afinal, como indaga
de capitalistas; (Marx, 1984b, p.238) 4) na redução Marx,
do tempo de rotação do capital, pelos motivos não é certo que a introdução dos bancos atuais
ora aventados e também pela diminuição do revolucionou as condições da produção? Sem a
montante de capital deixado em “alqueive” com concentração do crédito que produziu, sem a
vistas à aquisição de certos insumos, maqui- renda pública que criou em contraposição com
nário, produtos finais etc.; 5) no incremento da a renda territorial, criando assim as finanças em
contraposição à propriedade do solo, o juros mo-
mobilidade do capital; 6) na constituição do
netário em antítese à renda da terra – sem este
mercado mundial, por todos os seus impactos
novo instituto da circulação, haveria sido possí-
relativos à escala de produção e ao desenvolvi- veis a grande indústria moderna, as sociedades
mento das forças produtivas; e, por conseguinte, por ações etc., as milhares de formas de títulos de
7) na conformação das taxas médias de lucro e, circulação, que são ao mesmo tempo os produtos
consequentemente, na efetivação da lei do valor, e as condições de produção do comércio moderno
posto que e da indústria moderna? (Marx, 1973a, p.45)

o nivelamento dos valores a preços de custo só se Da mesma forma, há de se recordar que o pro-
dá porque o capital individual funcional como cesso de acumulação originária (ou “primitiva”)
alíquota da totalidade do capital da classe e ainda foi catapultado pelo sistema de dívida pública e
porque a totalidade do capital da classe se reparte pelo sistema internacional de crédito – público e
pelos diferentes ramos particulares segundo as
privado – ao qual este deu origem. Nas palavras
necessidades da produção. O veículo é o crédito.
de Marx, o sistema de crédito público é
O crédito possibilita e facilita esse nivelamento, e
além disso uma parte do capital – sob a forma de uma das mais enérgicas alavancas da acumula-
capital-dinheiro – revela-se na realidade um mate- ção primitiva. Tal como o toque de uma varinha
rial comum com que opera a classe toda. Este [é] mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de
um significado do crédito. O outro é a tentativa força criadora e o transforma, desse modo, em
incessante do capital de encurtar as metamorfoses capital, sem que tenha necessidade para tanto
por que tem de passar no processo de circulação.12 de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da
(Marx, 1980, p.1554; cf. Marx, 1984b, p.331-2) aplicação industrial e mesmo usurária.13 (Marx,
1996a, p.373-4)

18
Apesar de parciais e pouco desenvolvidos, tais de mágica, indiferente em relação à forma como
apontamentos contribuem para desfazer a o dinheiro emprestado é empregado.
imagem de um capitalismo puramente concor- Na forma do capital portador de juros, portanto,
rencial e industrial, que viria a ser avassalado esse fetiche automático está elaborado em sua
por uma torrente monopolista e especulativa, pureza, valor que se valoriza a si mesmo, dinhei-
capitaneada por banqueiros e financistas mi- ro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma
santropos. Sob a base do dinheiro como meio marca do seu nascimento. A relação social está
consumada como relação de uma coisa, do
de pagamento – os adiantamentos feitos entre
dinheiro, consigo mesmo. Em vez da transforma-
produtores, entre comerciantes, e entre uns e ou-
ção real do dinheiro em capital aqui se mostra
tros, e a crescente especialização dos empresta- apenas sua forma sem conteúdo.15 (Marx, 1984b,
dores de dinheiro –, o sistema de crédito evoluiu p.294)
como produto e como motor do desenvolvimento
Ademais, devido à difusão e à importância que o
capitalista,14 servindo inclusive de elemento
capital portador de juros adquire no interior do
ordenador da produção em escala local, regional
processo global de produção de capital, e pelo
e mesmo global. Por outro lado, e isso deve ser
caráter aparentemente mais objetivo dos juros
igualmente enfatizado, o sistema creditício tam-
como uma “grandeza efetiva” – um “fato dado e
bém se consolidou como veículo de incursões
tangível”, expresso diariamente nos índices da
especulativas e fraudulentas, e fonte de crescen-
Bolsa de Valores –, em oposição ao lucro médio
tes incertezas no que tange à possibilidade de
– uma tendência de difícil apreensão –, surge a
realização futura, sob condições adequadas, da
noção de que são as distintas variedades de juros
produção e da circulação. (Marx, 1984b, p.317)
que constituem o rendimento próprio ao capital
No bojo desse desenvolvimento, torna-se im- como tal, independente das atividades indus-
possível adentrar e se manter em praticamente triais e comerciais. Desse modo, é na forma-
qualquer ramo de produção em condições com- -juro que “se extingue toda mediação, completa-se
petitivas sem tomar empréstimos, ou mesmo a configuração fetichista do capital e a ideia do
sem abrir o capital nas bolsas de valores, sem fetiche-capital” (Marx, 1980, p.1502); trata-se de
realizar amplas operações de alavancagem, e as- uma nova inversão,
sim sucessivamente. O capital portador de juros
como se os juros fossem o produto típico do
afirma-se como elemento onipresente na vida capital, a matéria primária, e o lucro, na forma
econômica, e, com isso, o fetichismo do capital do ganho empresarial, fosse um mero acessório
se aprofunda, à medida que, ao emprestador, seu e um subproduto do processo de reprodução.
dinheiro “gera mais dinheiro” como num passe (Marx, 1984b, p.294)

Revista da sociedade brasileira de economia política 19


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Não obstante, não é apenas o dinheiro (como do próprio modo de produção capitalista. (Marx,
crédito) que pode assumir a forma de capital 1980, p.1511; cf. Marx, 1984b, p.216)
portador de juros; independente da maneira Ocorre que, tão logo consolidada, essa forma
como ocorre o reembolso, tudo aquilo que é em- adquire um movimento próprio, “descolando-se”
prestado visando à aferição de certo rendimento do capital produtivo; como se viu, o capital por-
no futuro – uma máquina, um edifício, um de- tador de juros deve sua existência à virtualidade
terminado insumo –, é recoberto por essa forma, de ser convertido em elementos de produção e
mesmo quando não é empregado em atividades ensejar a obtenção de lucro médio. Porém, o su-
produtivas. (Marx, 1984b, p.259; 1986, p.118) posto capitalista “funcionante” pode muito bem
Trata-se de um duplo movimento, distintivo ter consumido o capital-dinheiro (potencial) que
da totalitária forma-capital, a qual, por um ele tomou emprestado na forma de renda, ou
lado, tudo subsome à dinâmica da acumulação pagando uma dívida pretérita, tendo que arcar
de modo voraz, por meio de uma apropriação com o compromisso estabelecido com o credor
mais ou menos violenta, para depois plasmar à mesmo sem ter promovido os investimentos
sua imagem e semelhança; ao fazê-lo, por outro produtivos que redundariam efetivamente em
lado, produz formas que tendem a se autonomi- valorização do capital. Ainda assim a forma
zar entre si, apesar de sua unidade. Desse modo, capital portador de juros só seria desfeita se a
“coisas que em si e para si não tem valor” (Marx, dívida não pudesse ser paga de modo algum, o
1996a, p.226) são arrebatadas pela forma-merca- que equivaleria a uma destruição de capital.
doria, da mesma forma que coisas que em si e Igualmente, mesmo algo que nunca foi e nem
para si não são capital podem assumir a forma será capital também pode assumir a forma de
16
de capital portador de juros, por exemplo. O capital portador de juros, como é o caso dos
mesmo pode ser dito das formas “antediluvia- títulos da dívida pública. Chegamos aqui ao con-
nas” do capital, o capital usurário e o capital ceito de capital fictício, que se refere também às
comercial. (Marx, 1986, p.107) Apesar de sua exis- ações, e a todo um conjunto de instrumentos fi-
tência anteceder a do capital industrial, o capital nanceiros que, representando nominalmente cer-
usuário se torna a base do capital portador de to montante de capital ou exprimindo de modo
juros sob a égide do capital industrial. Assim, mediado os processos de extração e de realiza-
a formação do capital produtor de juros, sua dis- ção da mais-valia, autonomizam-se em relação a
sociação do capital industrial, é produto neces- eles, por meio de um processo de capitalização.
sário do desenvolvimento do capital industrial, (Marx, 1986, p.11) Noutras palavras, mesmo sem

20
ser ela própria um capital, a propriedade de um jogo bursátil. (Marx, 1986, p.11-12) Além disso,
capital fictício dá o direito ao recebimento de à medida que os bancos e outras instituições
certo juro. E, diz Marx, financeiras adquirem a capacidade de aumen-
a acumulação desses direitos, segundo o pres- tar a base monetária por meio da emissão de
suposto, deriva da acumulação real, isto é, da notas que não correspondem aos depósitos e ao
transformação do valor do capital-mercadoria conjunto do capital-dinheiro que possuem, eles
etc. em dinheiro; não obstante, a acumulação produzem capital fictício, de tal forma que uma
desses direitos ou títulos difere, como tal, parte importante da massa monetária é fictícia.17
tanto da acumulação real, da qual deriva,
(cf. Marx, 1986, p.69; 1984b, p.43)
quanto da acumulação futura (do novo proces-
so de produção), que é mediada pelo emprésti- Em certo sentido, outra “fonte” de capital fictí-
mo de dinheiro. (Marx, 1984b, p.44) cio é a propriedade da terra, que garante ao seu
No caso de um título da dívida pública, por detentor a extração de renda. Afinal, o que são
exemplo, seu caráter fictício é evidente, já que, as hipotecas senão títulos sobre renda futura?
em sua quase totalidade, tais títulos estão garan- As quais, diga-se de passagem, desenvolvem
tidos pela arrecadação futura de impostos, e não no interior dos mercados derivativos e junto a
diretamente por uma atividade produtiva. Ade- outros tipos de capital fictício a faculdade de dar
mais, sendo comercializáveis, e possuindo, via origem a um sem-número de novos instrumen-
de regra, uma liquidez tanto maior quanto mais tos financeiros, que por sua vez servem de base
desenvolvidos os mercados financeiros e mais a outros tantos, e assim sucessivamente, no bojo
“sólidas” as economias nacionais, os “preços” de de operações cada vez mais sofisticadas, como se
tais títulos adquirem um movimento próprio. Já patenteia nos momentos em que crises são defla-
no caso das ações de determinada empresa, que gradas, e trilhões de dólares se esfumaçam.
exprimem uma parcela de seu capital “real”, cujo Cabe frisar, por fim, que o capital fictício não
preço tem relação com o capital total da empresa consiste meramente numa excrescência pernós-
e com as expectativas de rendimentos futuros, tica; por meio dele, os produtores encontram
e cuja posse permite a aferição de rendimentos renovados meios de alavancagem, de refinancia-
– mas não dá o direito de dispor diretamente sobre mento de suas dívidas sobre uma base anual,
aquele capital “real” –, seu caráter fictício dima- ou de lançamento de títulos no mercado sobre
na justamente dessa “duplicação” (“em papel”) seu capital e sua produção de mais-valia futu-
do capital da empresa, que enseja o movimento ra, o que garante a este capital plasticidade e
autônomo do preço das ações no interior do liquidez, e proporciona mecanismos de ajustes

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nos preços das ações em função da variação na de capital; ademais, dentro de limites mais
produção de mais-valia (preços estes que expri- ou menos estreitos, competem para superar a
mem em alguma medida as variações do valor fixidez do capital produtivo, acelerar o tempo de
da reserva de capital fixo). Além disso, o capital rotação do capital, minimizar o risco de certas
fictício permite a intervenção de intermediá- operações produtivas, e reduzir custos próprios
rios financeiros capazes de combinar os riscos à circulação do capital monetário. Enfim, somos
a fim de equilibrar os pedidos e a concessão de aqui mais uma vez remetidos à tese da imbrica-
empréstimos. Em suma, ao aparecer como fonte ção entre o aperfeiçoamento da concorrência e
autônoma de rendimento, ou melhor, como a da realização da lei do valor, e o desenvolvimen-
forma-capital por excelência, o capital fictício, to de mecanismos “monopolistas”. (Landes, 1994)
junto a todas as formas de capital portador de
Antes de prosseguir, cabe considerar algo ape-
juros, interfere nas decisões de investimento,
nas mencionado, no que tange aos mercados de
lança sinais sobre a evolução dos preços e do
derivativos. É certo que o risco que justifica e
nível de produção, atua, portanto, como elemen-
legitima as operações de hedge, e que subjaz ao
to ordenador da produção e dos fluxos de capital
conjuntos desses mercados, em grande medida
(fictício e real); cria e aperfeiçoa os canais para
é artificialmente produzido e manipulado pelos
a circulação internacional de capital; influencia
grandes especuladores; ao mesmo tempo, serve
a formação da taxa de juros, e assim por diante.
de instrumento de precificação e compete para
Por outro lado, o desenvolvimento e a multipli-
identificar os mais heterogêneos e complexos
cação do capital fictício comprometem crescen-
instrumentos financeiros, que são expressões
tes massas de trabalho vivo com o pagamento
do processo de redução do capital à mercadoria-
de obrigações pretéritas, dá azo a uma migração
-capital. Num repuxo, reflete sobre a dimensão
exacerbada do capital para os mercados finan-
produtiva ou real da acumulação, e contribui
ceiros, enseja movimentos especulativos preda-
para a circulação de capital.
tórios e de cunho instabilizante, formadores de
Se o capital pode ser conceituado como a “abs-
bolhas financeiras e assim por diante.
tração em movimento”, o mercado de derivativos
Mais especificamente, os mercados de deriva-
e a avalanche de novos instrumentos financeiros
tivos, mediante a alavancagem e outros meca-
neles negociados exprimem e desdobram esse
nismos financeiros, propiciam colossais concen-
movimento de abstração. No mercado monetário,
trações de capital em forma monetária e, em
todas as formas especiais do capital, conforme
termos mais gerais, constituem instrumentos
seu investimento em esferas particulares
ímpares para a concentração e a centralização da produção ou da circulação estão aqui
22
apagadas. O capital existe aqui na figura particulares. A complexidade crescente das
indiferenciada, igual a si mesma, do valor redes comerciais e financeiras e a sua interco-
autônomo, do dinheiro. A concorrência entre nexão fazem com que a ruptura de certos elos
as esferas particulares cessa aqui; todas elas são
na cadeia de pagamentos e compensações possa
confundidas como mutuários de dinheiro, e o
desencadear uma reação em série, e conduzir a
capital as confronta todas também na forma em
que ele é indiferente à maneira especial de seu um colapso econômico de grandes proporções.
emprego. (Marx, 1984b, p.275) Ademais, o aumento da base territorial da pro-
dução capitalista e a complexificação dos merca-
Parece ocorrer algo semelhante no mercado
dos financeiros fortalece o caráter especulativo
de derivativos, que se baseia nas expectativas
e fraudulento das transações, o que aumenta os
acerca da produção e das variações nos preços de
riscos de turbulências.
todo tipo de mercadorias, ativos, instrumentos
e índices financeiros ao longo do tempo, e em Como constata Marx,
escala global, e que ensejou o surgimento de o sistema de crédito acelera, portanto, o desen-
mecanismos de precificação e de intercâmbio de volvimento material das forças produtivas e a
tais “produtos” financeiros, os quais gozam de formação do mercado mundial [...]. Ao mesmo
considerável autonomia em relação ao ativo do tempo, o crédito acelera as erupções violen-
tas dessa contradição, as crises e, com isso, os
qual nalguma medida derivam. Mais uma vez
elementos da dissolução do antigo modo de
se revela a contradição, própria a esses merca-
produção.18 (Marx, 1984b, p.318)
dos, entre seu papel de incrementar a circulação
de capital e de equacionar riscos e incertezas Nessa passagem, expressa-se de modo sintético

(entendidas devidamente como a impossibi- a contradição constitutiva do modo de produção

lidade de conhecimento antecipado acerca de capitalista, que se move por meio de sua genera-

conjunturas econômicas futuras, que no entanto lização e elevação a um patamar mais desenvol-

influenciam sobremaneira as decisões presentes), vido e explosivo.19 Porém, é a articulação entre

e a dimensão financeira da acumulação na qual o desenvolvimento do sistema de crédito e a

estão implicados, contradição essa que em deter- consolidação do mercado mundial que importa

minadas conjunturas torna-se explosiva. agora frisar. Segundo Marx,


a tendência a criar o mercado mundial está dada
Isso porque se o desenvolvimento do sistema
diretamente no próprio conceito de capital”
financeiro pode dar azo a uma tendência de
(Marx, 1973a, p.360), e “o próprio mercado mun-
dispersão dos riscos, ele certamente aprofunda a dial constitui a base desse modo de produção.20
interdependência econômica entre as atividades (Marx, 1986, p.250)

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O impulso desmedido de acumulação e a repro- em tese, com créditos do FMI. Portanto, no caso
dução ampliada – em sentido extensivo, com a de vigorosos desequilíbrios em seus balanços de
ampliação das bases geográficas da produção pagamentos, com o consentimento do FMI, os
capitalista; intensivo, por meio da revolução países poderiam interferir mais ativamente nos
incessante das forças produtivas, no interior do níveis gerais de preço e de emprego, sem as res-
processo de extração de mais-valia relativa; e trições externas que imperavam sob o sistema
imanente, com a subsunção das mais distintas do padrão-ouro.
dimensões da vida social à forma capital – dis-
Por motivos que não cabe considerar aqui, o
tintivos da forma social capitalista, faz com
período em questão foi marcado por altas taxas
que o mercado mundial seja ao mesmo tempo
de crescimento econômico, por um forte de-
o campo de desenvolvimento por excelência do
senvolvimento do comércio internacional, pelo
capital, e seu espaço de constituição e de efe-
estabelecimento de cadeias produtivas em escala
tivação. A forma capital tende à superação das
mundial, por um desenvolvimento agressivo dos
barreiras espaciais e temporais à acumulação, e
mercados offshore, e pelo consequente aumento
nesse sentido, a sua própria essência contradita-
da mobilidade de capital. Esses e diversos outros
va, em certo sentido, o estado de coisas vigentes
fatores competiram para a derrocada do Sistema
nos chamados Anos Dourados do capitalismo.
de Breton Woods e o fim da conversibilidade
Seguindo a tendência que se estabeleceu após do dólar em ouro. Em sua esteira, ocorreu uma
a crise de 1929, no pós-guerra foi criada uma avalanche de inovações financeiras – que se
série de mecanismos de “repressão financeira”, tornaram um elemento vital do processo con-
que buscavam disciplinar as finanças privadas, e correncial e de aferição de ganhos especulativos
mobilizar seus recursos para financiar o comér- –, concomitante à destruição dos chamados
cio e para promover determinadas modalidades “controles quantitativos” (controle sobre fluxos
de investimentos produtivos externos. Sob a internacionais de capitais, tetos sobre a taxa de
vigência do sistema de Bretton Woods, as moe- juros sobre depósitos, depósitos compulsórios
das deveriam ser fixadas em dólar, que por sua sobre depósitos a prazo, entre outros), bem
vez deveria ser conversível em ouro. Por meio de como das instituições, da legislação e das estru-
controles de capital – que não incidiam sobre turas reguladoras vigentes no período anterior,
as contas correntes – os mercados nacionais de no bojo de um processo geralmente designado
capitais preservavam certa autonomia, e quando por desregulamentação e desintermediação fi-
necessitavam intervir na taxa de câmbio podiam nanceiras – que a rigor se tratava do surgimento
contar com suas reservas cambiais e, ao menos de novas formas de regulamentação e uma nova

24
configuração e hierarquização das instituições confiáveis, para se tornarem, então, subprimes –,
financeiras. Dessa maneira, ainda na década e a eles ofereciam tipos de crédito “sob medi-
de 1970 foram destruídos os controles sobre a da”, cujo pagamento dos juros e do principal
conta de capital norte-americano; o imposto de do empréstimo ou o refinanciamento da dívida,
correção das taxas de juros foi eliminado; os conforme prometiam, estaria garantido pelo
tetos de tais taxas foram colocados em xeque; próprio aumento (esperado) dos preços dos
o Fed se afirmou como garantidor dos emprés- imóveis, impulsionado pela profusão do crédi-
timos; minaram-se diversas especializações to concedido. Esses contratos eram repassados
entre instituições financeiras, que restringiam para bancos, que por meio de seus “veículos
a competição entre elas; e foram eliminadas as especiais de investimento”, mesclavam-nos a
barreiras às operações de salvamento de institui- tantos outros contratos, por vezes igualmente
ções bancárias e financeiras sob risco de falên- obscuros e arriscados, e com isso formavam um
cia. Trata-se, evidentemente, da afirmação de novo título, que sob a chancela das agências
tendências fundamentais do capital no sentido avaliadoras recebiam uma embalagem dourada,
de aumentar sua liberdade de movimentação, e eram passados adiante a investidores públicos
diminuir seu tempo de circulação, dar vazão ao e privados, ao redor do mundo. Em cada uma
capital sobreacumulado, entre outros. dessas transações os partícipes abocanhavam
vultosas comissões, fiando-se em sua inesgotável
Um dos resultados desse processo foi a multi-
capacidade de empurrar a outrem os explosivos
plicação e a intensificação das crises financeiras
títulos que ajudavam a criar.
pelo mundo. À guisa de exemplo, tratemos bre-
vemente do processo de produção e de estouro De fato, como constata Morris (2009, p.107), em
da chamada “bolha imobiliária”, o estopim da meio a essa dinâmica, “conceder empréstimos
última grande crise econômica mundial. Grosso estava se tornando uma atividade sem custo”, e,
modo, valendo-se de uma dinâmica econômica deve-se acrescentar, aparentemente sem risco,
baseada em juros baixos, política monetária posto que a multiplicação desses instrumentos
altamente permissiva, grande liberdade nos financeiros, a aparência de ordem e controle des-
mercados financeiros, e estímulos econômicos ses mercados (com a hierarquização das securi-
baseados no endividamento público e priva- ties, a organização das tranches etc.), sua liquidez
do (tanto por parte das “famílias”, quanto das nada desprezível, além da existência de toda
empresas), imobiliárias e instituições finan- uma estrutura de transferência de risco, bem
ceiras saíram à caça de clientes – muitos dos como de um conjunto de garantias colaterais,
quais outrora eram desprezados como pouco e do envolvimento de milhões de “investidores”

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dispersos pelo globo, tudo isso, argumentava- semestre de 2004 e o segundo trimestre de 2007),
-se, dispersava e minimizava os referidos riscos. esse efeito-riqueza fez com que a expansão da
Ao contrário, nesse imenso castelo de cartas, os bolha sustentasse por algum tempo sua dinâ-
riscos foram potenciados; numa palavra, o es- mica autoalimentada. Mas em meados de 2006
quema era um exemplo de “finanças Ponzi”, nas a maré estava mudando a olhos vistos. Afinal,
quais os investidores endividavam-se num ritmo as hipotecas subprime tinham cláusulas que
que superava em muito sua capacidade efetiva dependiam do refinanciamento das dívidas a
de arcar com os compromissos assumidos. taxas reduzidas, no entanto, esse financiamento
pressupunha o aumento do preço dos imóveis;
As operações hipotecárias e a bolha imobiliá-
quando esses preços começaram a estabilizar-
ria em expansão conduziram, de todo modo, a
-se, uma onda de inadimplência se espalhou,
um enorme incremento tanto da oferta quan-
reforçando a tendência baixista dos preços dos
to da demanda por imóveis, com prevalência
imóveis. (Roubini & Mihm, 2010, p.103)
desta última, a qual contribuiu com a escalada
dos preços não somente desses imóveis, mas A despeito da sucessão de abalos, que se acu-
da enxurrada de títulos relativos ao mercado mularam desde a segundo semestre de 2006, um
imobiliário. (Roubini & Mihm, 2010, p.160) Por verdadeiro pânico se desencadeou apenas em me-
funcionar como garantias colaterais, o inchaço ados de setembro de 2008, com a decisão do Te-
do valor das residências, por sua vez, deu novo souro norte-americano de não socorrer o Lehman
estímulo à contração de créditos hipotecários, Brothers. A partir daí, as tormentas se espalha-
alimentando toda a ciranda financeira então ram pelos mercados que ainda haviam sido pre-
estruturada, e atingindo um número de pessoas servados: os mercados de crédito paralisaram, e
muito maior do que o jogo bursátil. Com a que- os bancos deixaram de emitir créditos comerciais
da das taxas de juros a partir de 2001, as famílias para as transações no comércio exterior, o que o
foram impelidas a refinanciar suas hipotecas solapou. (Roubini & Mihm, p.138) Além do mais,
e a contrair novos créditos no sistema do home quando se evidenciou que o fundo de renda fixa
equity lending. Dessa maneira, a crescente bolha Reserve Primary Fund havia investido em títulos
no mercado imobiliário provocou um poderoso podres, seus ativos despencaram, e o pânico
efeito-riqueza, que acabou por impactar forte- disseminou-se pelos demais fundos de renda fixa,
mente o consumo. até então de sólida reputação, tidos como conser-
vadores e seguros. E assim sucessivamente.
Apesar da elevação da taxa de juros pelo Fede-
ral Reserve (de 1% para 5,25% entre o segundo

26
Num momento em que o colapso dos merca- E ao “limpar” os mercados financeiros dos
dos de notas promissórias parecia iminente, as títulos podres com os quais estes se lambuza-
autoridades monetárias norte-americanas decidi- ram, em troca de títulos governamentais, o Fed
ram estender sua atuação como emprestador de e outros bancos centrais criaram um “mercado
última instância a empresas não financeiras, e artificial para ativos indesejados”, a custos ele-
passaram a socorrer as instituições insolventes vados. Apesar dessas poderosas intervenções, as
praticamente sem fazer distinções. Uma das bolsas de valores acumularam imensas perdas,
medidas tomadas nesse sentido foi a elimina- os mercados financeiros como um todo afunda-
ção das taxas de juros punitivas e o aumento ram, (Cagnin, 2009 p.162) e a economia mundial
do prazo dos empréstimos feitos diretamente entrou em recessão, tendo sofrido no auge da
no “guichê de redesconto” do Fed, bem como crise a maior contração desde 1929. (Roubini &
a organização de grandes leilões de dólares e a Mihm, 2010, p.150)
brutal elevação da capacidade de concessão de
Seria equivocado reduzir o processo de produção
empréstimos dos Federal Home Loan Banks. Ade-
de crises econômicas em geral, e especificamente
mais, estruturaram-se vários programas (como o
da mais recente crise econômica mundial a uma
polêmico Troubled Asset Relief Program – TARP),
causa única, concebida de maneira unilateral.
feitos sob medida para cada tipo de demanda do
Estamos, ao contrário, diante de tendências
grande capital; e junto com eles foram criadas
duradouras e nada mecânicas, que redundam
generosas linhas de swap que na prática funcio-
em crescente instabilidade econômica, e cujo
naram como empréstimos do Fed a instituições
verdadeiro significado se revela sob conjunturas
financeiras estrangeiras, valendo-se da mediação
específicas, nas quais cada crise é deflagrada, e
do Banco Central Europeu e de outros bancos.
que deve portanto ser investigada em sua sin-
(Roubini & Mihm, p.168) Da noite para o dia,
gularidade, o que escapa ao escopo do presente
cifras trilionárias passaram a pulular nos noti-
texto. Não obstante, trata-se, grosso modo, de
ciários econômicos e nos anúncios governamen-
um roteiro muitas vezes encenado ao longo da
tais dos países centrais (Kliman, 2012, p.181), na
história capitalista. Nas palavras de Marx,
tentativa de impedir o agravamento da crise.
supostas constantes todas as demais circunstân-
Tudo somado, em face do colapso financeiro, o cias, a massa do lucro destinado à transformação
Fed extrapolou a tarefa de emprestador de últi- em capital dependerá da massa do lucro feito
ma instância, e tornou-se também “investidor de e, portanto, da expansão do próprio processo
última instância”. (Roubini & Mihm, 2010, p.171) de reprodução. Mas, se essa nova acumulação
encontra dificuldades para ser aplicada, por falta

Revista da sociedade brasileira de economia política 27


38 / junho 2014
de esferas de investimento, havendo, pois, satu- uma postura nostálgica e idealista em relação
ração dos ramos de produção e oferta excessiva ao período que a antecedeu, e muito menos a
de capital de empréstimo, essa pletora de capital diferenciar um “bom” e um “mau” capitalismo:
monetário emprestável mostra unicamente os
um industrial, “laborioso”, conectado às neces-
limites da produção capitalista [...]. Já porque a
sidades sociais e disciplinado pelas estruturas
acumulação de capital de empréstimo é inchada
por tais momentos independentes da acumula- regulatórias keynesianas, e um financeiro, des-
ção real, mas que a acompanham, tem de haver, regrado, voraz e cego a quaisquer necessidades
em certas fases do ciclo, constantemente pletora que não a dos ganhos rápidos e vultosos.21
de capital monetário, e essa pletora tem de se
Ainda hoje se escutam os ecos dos anátemas
desenvolver com o aperfeiçoamento do crédito. E
proudhonistas contra aquilo que consideravam
simultaneamente com ela tem de desenvolver-se
a necessidade de impelir o processo de produção a origem de todo o “mal” capitalista: os “privi-
além de seus limites capitalistas: supercomércio, légios” dos metais preciosos e dos bancos, os
superprodução e supercrédito. Ao mesmo tempo, quais existiriam não em função das “necessida-
isso tem sempre de ocorrer em formas que provo- des do público” – as “necessidades da circulação”
cam uma reação. (Marx, 1986, p.34-5) –, mas antes negariam seus “serviços” justamen-
A tão discutida “desregulamentação financeira” te quando mais o público deles necessitava, e
e o fortalecimento dos mercados financeiros isso devido ao torpe imperativo de manter em
relacionam-se ao desenvolvimento do mercado certo nível suas reservas metálicas. (Marx, 1973a,
mundial e à tendência do capital a superar as p.42) Contra essa posição, há mais de 150 anos
barreiras ao seu movimento. Não se trata, por Marx se viu forçado a lembrar que os bancos
conseguinte, do resultado de um conluio entre são pautados pelos mesmos interesses que as
investidores inescrupulosos ou de decisões demais forças capitalistas; e a demonstrar que o
estatais por parte de governantes irresponsáveis, desenvolvimento e a autonomização do capital
mas antes, é fruto necessário da dinâmica da bancário e da própria forma-dinheiro, com todas
acumulação de capital enquanto totalidade. as “complicações e contradições” que implicam,
são inerentes à forma-capital, e não podem ser
compreendidas, e tampouco combatidas, sem
3. A crítica do capital portador de juros
essa perspectiva totalizante. (Marx, 1973a, p.70-1)
e a crítica da economia política
Ora, no interior do modo de produção capitalis-
A necessidade de criticar o caráter destrutivo e
ta a força universalizante é o próprio capital, em
predatório do capitalismo em sua atual fase de
seu processo de reprodução em escala sempre
desenvolvimento não nos autoriza a desenvolver

28
ampliada. Se se pode falar em “necessidades”, de apêndices das máquinas, desprovendo suas
sem maiores classificações (e portanto sem dar atividades de conteúdo, que nos coisifica a todos
conta das clivagens de classe), estas são as da e nos torna suportes das relações capitalistas,
acumulação de capital. Desse modo, torna-se atados ao processo de acumulação de capital,
bastante frágil opor os interesses dos especula- pelo mesmo movimento que progressivamente
dores a tais “necessidades” abstratas. No mesmo engendra as condições técnicas para a libertação
sentido, evidencia-se que são mal direcionadas dos indivíduos em relação ao “reino da necessi-
as forças que intentam afrontar o capital com dade”, e assim por diante.
a bandeira da ética ou da justiça, já que toda e
Logo, o capital se constitui enquanto totalidade
qualquer formação social é uma totalidade a
por meio de suas formas “produtivas” (capital
qual corresponde um conjunto de instituições,
fixo e capital circulante, ou capital constante
regras, padrões de conduta, tradições, saberes,
e variável) e “financeiras” (capital portador de
que conformam um mais ou menos coerente
juros), de tal maneira que elas não podem ser
e adequado sistema moral e de justiça.22 No-
isoladas entre si; novamente, sua autonomização
vamente, haveria de se localizar e minar os
deve ser analisada junto com sua unidade, sua
fundamentos de tais sistemas, e só no bojo desse
copertinência. Como assevera Marx,
processo prático-revolucionário que se tornaria
o capital, que tem tão “boas razões” para negar
cabível a discussão sobre ética e justiça.
os sofrimentos da geração trabalhadora que o cir-
Uma crítica mais circunstanciada não poderia cunda como pela possível queda da Terra sobre
se deter na condenação moral da corrupção, da o Sol, é condicionado em seu movimento prático
ganância e das falcatruas no interior do sistema pela perspectiva de apodrecimento futuro da
humanidade e, por fim, do incontrolável des-
financeiro, mas haveria de por em questão a vio-
povoamento. Em qualquer malandragem com
lência e a irracionalidade de um sistema social
ações ninguém ignora que um dia a casa cai,
que converte os indivíduos em mônadas, num porém todos confiam que ela cairá sobre a cabeça
estado de permanente competição e de guerra de do próximo, após ele próprio ter colhido a chuva
todos contra todos, que explora grandes massas de ouro e a posto em segurança. Après moi le
populacionais sob condições abjetas e em inter- déluge! É a divisa de todo capitalista e toda nação
mináveis jornadas de trabalho, que revoluciona capitalista. (Marx, 1996a, p.205)
os meios de produção, atingindo níveis inaudi- Em suma, o senso comum que tende a localizar
tos de produtividade, ao mesmo tempo em que nos “apostadores da bolsa” a fonte de todos os
relega à miséria boa parte da população mun- miasmas sociais que assolam as formações so-
dial; que reduz incontáveis pessoas à condição ciais capitalistas parece equivocado. Esperamos
Revista da sociedade brasileira de economia política 29
38 / junho 2014
ter demonstrado, ao menos de modo preliminar, Bibliografia
que a análise crítica do capital financeiro revela BORGHI, Roberto A. Z. & FARHI, Maryse. “Operações
com derivativos financeiros das corporações de economias
que suas determinações dimanam dos funda- emergentes”. Estudos Avançados, 23 (66), São Paulo, 2009.
mentos contraditórios do modo de produção Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex&
pid=S0103-4014200900200013.
capitalista. Se elas são condenáveis, então é a
BUKHARIN, Nicolai. O imperialismo e a economia mundial.
própria formação social capitalista que deve ser
Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.
combatida.
CAGNIN, Rafael Fagundes. “O ciclo dos imóveis e o cres-
cimento econômico nos Estados Unidos 2002-2008”. In:
Estudos Avançados, 23 (65), 2009.
Abstract
GRESPAN, Jorge. L. O negativo do capital. São Paulo: Hucitec,
This paper is based on a study of the mature 1998.
Marx’s critique of political economy. Its purpose HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. Coleção Os Eco-
is to analyze briefly the roles that the “financial nomistas. São Paulo: Nova Cultura, 1985.

capital” play within the global dynamics of HOBSON, John A. Estudio del imperialismo. Madrid: Alianza,
1981.
capital accumulation. We intend to criticize
KAUTSKY, Karl. (2002a). O imperialismo (1913-1914). In:
a misguided idea, rooted in common sense Teixeira, A. Utópicos, heréticos e malditos. Rio de Janeiro: Ed.
conception, which takes the financial system as Record.
a parasitic excrescence of the industrial capital ________. (2002b). Dois artigos para uma revisão (1915).
– symbol of self-sacrifice and hard work. Fur- In: Teixeira, A. Utópicos, heréticos e malditos. Rio de Janeiro: Ed.
Record.
thermore, this conception treats the industrial
KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, do juro e da
capital and financial capital as merely “external” moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
to each other. Sometimes – this point will also KLIMAN, Andrew. The failure of capitalist production: under-
be the object of criticism – that notion underlies lying causes of the great recession. Londres: Pluto Press, 2012.
and nourishes reformist inclinations that pre- LACAN, Jacques. Séminaire XX. Paris: Seuil, 1975.
tend to withdrawal or establish a strict control LANDES, David. Prometeu desacorrentado: transformação
tecnológica e desenvolvimento industrial na Europa ocidental,
over financial capital, in favor of a “healthy”
desde 1750 até a nossa época. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
capitalism, dominated by industry. ra, 1994.

Keywords: Capital accumulation; capital that LENIN,Vladimir I. Imperialismo: a fase superior do capitalismo.
São Paulo: Global, 1979.
bears interest; fictitious capital, contemporary
LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital. Contribui-
capitalism. ção ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova
Cultural, 1985.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I,
Tomo I. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural,
1996a.
30
________. O capital: crítica da economia política. Livro I, Notas
Tomo II. São Paulo: Nova Cultural: 1996b.
1 “Para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja
________. Manuscritos econômico-filosóficos e outros relação social geral de produção consiste em relacionar-
textos escolhidos. Lisboa: Edições 70, 1993. -se com seus produtos como mercadorias, portanto como
________. O capital: crítica da economia política. Livro III, valores, e nessa forma reificada relacionar mutuamente
tomo V. Coleção Os Economistas. São Paulo:Victor Civita, seus trabalhos privados como trabalho humano igual, o
1986. cristianismo, com seu culto do homem abstrato, é a forma
de religião mais adequada, notadamente em seu desenvol-
________. O capital: crítica da economia política. Livro II. vimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc.” (Marx,
Coleção Os Economistas. São Paulo:Victor Civita, 1984a. 1996a, p.204) Cf.: (Marx, 1996a, p.389).
________. O capital: crítica da economia política. Livro III, 2 “[...] Cada capitalista, certamente, exige que seus operá-
tomo IV. Coleção Os Economistas. São Paulo:Victor Civita, rios economizem, mas somente aos seus, porque se con-
1984b. trapõem a ele como operários; mas se previne de exigi-lo
________. Introdução aos esboços de uma crítica da ao resto do mundo dos operários, já que estes se contra-
economia política. In: MARX, Karl. Para a crítica da economia põem a ele como consumidores. Não obstante todas as
política / Salário, preço e lucro / O rendimentos e suas fontes. frases piedosas, recorre a todos os meios para incitá-los a
São Paulo: Abril Cultural, 1982. consumir, para dar a suas mercadorias novos atrativos, para
fazer-lhes crer que tem novas necessidades etc.” (Marx,
________. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamen- 1973a, p.230)
to econômico. 3 vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1980. 3 “[...] Todos os padrões de medida, todas as bases expli-
cativas ainda mais ou menos justificadas nos limites do
________. Capítulo sexto inédito de O capital: resultados do modo de produção capitalista desaparecem aqui [quando se
processo de produção imediata. Porto: Publicações Escorpião, trata do sistema de crédito desenvolvido – GM]. O que o
1978. comerciante atacadista especulador arrisca é propriedade
________. Contribuição à crítica da economia política. São social, não dele. Do mesmo modo torna-se absurda a frase
Paulo: Martins Fontes, 1977. sobre a origem do capital, a partir da poupança, pois aquele
demanda justamente que outros devem poupar para ele [...].
________. Elementos fundamentales para la crítica de la A outra frase sobre a abstinência é desmentida frontal-
economia política (borrador). Vol. I. Argentina: Siglo Veintiuno, mente por seu luxo, que se torna também ele um meio de
1973a. crédito. Concepções que numa fase menos desenvolvida da
________. Elementos fundamentales para la crítica de la produção capitalista ainda tinham sentido tornam-se aqui
economia política (borrador). Vol. II. Argentina: Siglo Veintiuno, totalmente sem sentido”. (Marx, 1984b, p.334)
1973b. 4 Cabe recordar aqui um curioso episódio brasileiro da
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Selected correspondence. última grande crise econômica mundial. Quando de sua
Moscou: Progress Publishers, 1965. eclosão, uma série de empresas brasileiras engajadas no
comércio exterior detinham hedges cambiais; aparentemen-
MORRIS, Charles. O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas ar- te como manda a prudência empresarial. No entanto, tais
riscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati, 2009. hedges foram feitos numa proporção que extrapolava em
ROUBINI, Nouriel & MIHM, Stephen. A economia das crises: muito o volume de suas exportações; ou seja, tratava-se da
um curso-relâmpago sobre o fiuturo do sistema financeiro inter- busca por ganhos decorrentes da especulação cambial, o
nacional. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010. que só veio à tona porque tais empresas (e outros “investi-
dores”, como a Previ) haviam apostado na manutenção da
trajetória ascendente do real, e com a deflagração da crise

Revista da sociedade brasileira de economia política 31


38 / junho 2014
financeira amargaram vultosos prejuízos: a Aracruz perdeu desaparece no ato mesmo da comparação: a unidade de
cerca de RS$ 1,2 bilhões, a Votorantim, cerca de RS$ 2,2 medida se converteu em mera unidade numérica: a qualida-
bilhões, já a Sadia, cerca de RS$ 2,13 bilhões. (Borghi e de desta unidade desapareceu”. (Marx, 1973b, p.339)
Farhi, 2009, p.177) O mais impressionante é que o hedge
10 “[…] a medida desta produção excedente é o próprio
foi feito principalmente por meio de operações designadas
capital, o nível dado das condições de produção e o impulso
target forward, com as quais a empresa assume duas vezes a
desmedido ao enriquecimento e à capitalização pelos capi-
posição vendida em dólar futuro; tamanha a “sofisticação”
talistas”. (Marx, 1980, p.928)
dessas operações, muitas empresas resolveram contestar na
justiça os prejuízos sofridos, alegando terem sido engana- 11 Ao ser emprestado, o dinheiro “produz lucro, isto é, ca-
das (!). Supostamente nem os poderosos departamentos pacita o capitalista a extrair dos trabalhadores determinado
financeiros dessas grandes empresas e fundos sabiam em quantum de trabalho não-pago, mais-produto e mais-valia, e
que tipo de solo estavam pisando. apropriar-se dele. Assim adquire, além do valor de uso que
possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, o
5 É amplamente sabido que Marx não desenvolveu o
de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui
conceito de capital financeiro. Ainda assim, em função de
justamente no lucro que, uma vez transformado em capital,
sua difusão e da posição destacada que ocupa em uma série
produz. Nessa qualidade de capital possível, de meio para a
de importantes debates clássicos e contemporâneos, o
produção de lucro, torna-se mercadoria, mas uma mercado-
conceito de capital financeiro será mobilizado aqui como si-
ria sui generis. Ou, o que dá no mesmo, o capital enquanto
nônimo do conceito marxiano de capital portador de juros.
capital se torna mercadoria”. (Marx, 1984b, p.255)
Fôssemos considerá-lo de modo mais rigoroso, haveríamos
de nos debruçar sobre o debate em torno do fenômeno 12 A concorrência entre capitais não interessa à presente
do imperialismo, em particular sobre as obras de Hobson discussão apenas por ser a fonte de determinação das taxas
(1981), Hilferding (1985), Luxemburgo (1985), Kautsky de juros, que redundam de uma repartição quantitativa da
(2002a; 2002b), Bukharin (1969) e Lenin (1979). mais-valia, e não respeita nenhum tipo de lei natural. (Marx,
1984a, p.259) O capital enquanto totalidade constitui-se sob
6 A argumentação que segue deve muito à rigorosa análise
as bases da concorrência entre capitais individuais, mas ao
apresentada em (Grespan, 1998).
mesmo tempo possui existência objetiva, “ao lado” desses
7 “Por isso, para o valor que se conserva como valor em si, capitais, e determinante para seu movimento. (Marx, 1984a,
seu aumento coincide com sua conservação, já que tende p.261) A concorrência entre capitais é a forma geral e con-
continuamente a superr sua limitação quantitativa, a qual traditória por meio da qual as leis essenciais do capitalismo
contradiz sua determinação formal, sua universalidade se efetivam. (Marx, 1973b, 168-9) Por exemplo, a extração
intrínseca. O enriquecimento se converte em sua finalidade de mais-valia relativa não existe como um objetivo na
em si”. (Marx, 1973a, p.211) consciências dos capitalistas, mas se efetiva indiretamente
por meio da busca por lucros extraordinários, com base no
8 “O capital tem um único impulso vital, o impulso de
aumento da produtividade e da redução relativa dos custos
valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte
das mercadorias individuais. (Marx, 1984b, p.35)
constante, os meios de produção, a maior massa possível
de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que apenas se 13 As origens desse sistema de crédito público, que se
reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo ergueu por necessidade do corrompido corpo burocrático
e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O absolutista, mas também como meio de financiamento da
tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo du- guerra, e de outras atividades próprias ao Estado, são en-
rante o qual o capitalista consome a força de trabalho que contradas nas cidades-Estado italianas, e a partir daí ele se
comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível afirma como fator determinante para a dinâmica do merca-
para si, então rouba ao capitalista”. (Marx, 1996a, p.347) do mundial. Assim, “o sistema de crédito público, isto é, das
dívidas do Estado, cujas origens encontramos em Gênova
9 “Em toda medida, enquanto serve de ponto de compa-
e Veneza já na Idade Média, apoderou-se de toda a Europa
ração […] a natureza da medida se torna indiferente e

32
durante o período manufatureiro. O sistema colonial com 17 “A maior parte do capital bancário é, portanto, pura-
seu comércio marítimo e suas guerras comerciais serviu- mente fictícia e consiste em títulos de dívidas (letras de
-lhe de estufa. Assim, ele se consolidou primeiramente na câmbio), títulos de dívida pública (que representam capital
Holanda. A dívida do Estado, isto é, a alienação do Estado passado) e ações (direitos sobre rendimento futuro). Não
– se despótico, constitucional ou republicano – imprime sua se deve esquecer que o valor monetário do capital que
marca sobre a era capitalista. A única parte da assim chama- esses papéis nas caixas fortes do banqueiro representam
da riqueza nacional que realmente entra na posse coletiva – mesmo à medida que são direitos sobre rendimentos
dos povos modernos é – sua dívida de Estado”. (Marx, seguros (como no caso dos títulos da dívida pública) ou
1996b, p.373) A base desse sistema de crédito era o sistema à medida que são títulos de propriedade de capital real
tributário estatal, que incidia sobremaneira sobre os meios (como no caso das ações) – é completamente fictício e que
de subsistência, penalizando os pobres, e disciplinando o é regulado de modo a se desviar do valor do capital real
proletariado nascente. Novamente segundo Marx, “o regi- que, pelo menos parcialmente, representam; ou onde repre-
me fiscal moderno, cujo eixo é constituído pelos impostos sentam mero direito a rendimentos e não capital, o direito
sobre os meios de subsistência mais necessários (portanto, ao mesmo rendimento se expressa num montante sempre
encarecendo-os), traz em si mesmo o germe da progressão variável de capital monetário fictício”. (Marx, 1986, p.13)
automática. A super-tributação não é um incidente, porém
18 “Ao mesmo tempo, o banco e o crédito tornam-se
muito mais um princípio. Na Holanda, onde esse sistema
assim o meio mais poderoso de impelir a produção capita-
foi primeiramente inaugurado, o grande patriota de Witt
lista além de seus próprios limites, e um dos veículos mais
o celebrou por isso em suas máximas, como o melhor
eficazes das crises e da fraude”. (Marx, 1986, p. 106-7) Ou
sistema para manter o trabalhador assalariado submisso,
ainda, “nesse sistema de crédito”, constata Marx, “tudo se
frugal, diligente e […] sobrecarregado de trabalho”. (Marx,
duplica e triplica e se transforma em mera quimera” (Marx,
1996b, p.375)
1986, p.15). Cf.: (Marx, 1984b, p.333-4) e (Marx & Engels,
14 “A auto-expansão do capital baseado na natureza 1965, p.317).
contraditória da produção capitalista permite um desenvol-
19 “[O] processo de troca das mercadorias encerra rela-
vimento verdadeiramente livre somente até certo ponto,
ções contraditórias e mutuamente exclusivas. O desenvol-
posto que ele constitui de fato um grilhão e uma barreira
vimento da mercadoria não suprime essas contradições,
imanentes à produção, que são continuamente quebradas
mas gera a forma dentro da qual elas podem mover-se.
por meio do sistema de crédito”. (Marx, 1984b, p.318) Cf.:
Esse é, em geral, o método com o qual contradições reais
(Marx, 1986, p.82; p.106-7).
se resolvem” (Marx, 1996, p.227); ou seja, a superação dos
15 “No capital portador de juros, a relação-capital atinge limites que se impõem à subjetivação do capital se dão por
sua forma mais alienada e mais fetichista. Temos aí D – D’, meio de sua reposição em escala mais universal, abrangente,
dinheiro que geral mais dinheiro, valor que valoriza a si e potencialmente explosiva. “Como objeto ele [o dinheiro
mesmo, sem o processo que medeia os dois extremos”. – GM] deve possuir este caráter universal que contradiz
(Marx, 1984b, p.293) “É a forma original e geral do capital, sua particularidade natural. Esta contradição pode ser
condensada num resumé sem sentido”. (Marx, 1984b, p.293) resolvida somente objetivando a própria contradição; ou
seja, se a mercadoria é posta de maneira dupla, uma vez em
16 “Se se quiser chamar o juro de preço do capital mone-
sua forma natural imediata, e depois em sua forma mediada,
tário, então essa é uma forma irracional de preço, com-
ou seja, como dinheiro” (Marx, 1973a, p.97). “Vemos então
pletamente em contradição com o conceito do preço da
como é imanente ao dinheiro o fato de alcançar seus fins
mercadoria. O preço se reduz aqui a sua forma puramente
negando-os ao mesmo tempo, o tornar-se autônomo com
abstrata e sem conteúdo, ou seja, ele é determinada soma
respeito às mercadorias; o passar de meio a fim; o realizar
de dinheiro paga por qualquer coisa que, de uma manei-
do valor de troca das mercadorias desvinculando-se delas,
ra ou de outra, figura como valor de uso”. (Marx, 1984b,
o facilitar da troca introduzindo nela um elemento de cisão,
p.265)
o superar as dificuldades da troca imediata de mercadorias

Revista da sociedade brasileira de economia política 33


38 / junho 2014
generalizando-as, o converter a troca em autônoma com 22 “A justiça das transações que se efetuam entre os agen-
respeito aos produtores na mesma medida em que os pro- tes da produção baseia-se na circunstância de se originarem
dutores se convertem em dependentes da troca”. (Marx, das relações de produção como consequência natural.
1977, p.77) As formas jurídicas em que essas transações econômicas
aparecem como atos de vontade dos participantes, como
20 “É, portanto, o caráter multilateral de sua origem, a
expressões de sua vontade comum e como contratos cuja
existência do mercado como mercado mundial, que carac-
execução pode ser imposta à parte individual por meio do
teriza o processo de circulação do capital industrial”. (Marx,
Estado não podem, como simples formas, determinar esse
1984b, p.81)
conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo
21 Mesmo um importante autor marxista como François contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe
Chesnais, cujos estudos há anos contribuem para a amplia- seja adequado. É injusto, assim que o contradizer”. (Marx,
ção do conhecimento crítico acerca da hodierna dinâmica 1984b, p.256) Cf.: (Marx 1993, p.212) e (Marx, 1980, p.551).
da acumulação capitalista, nalguns momentos flerta com
esse senso comum. Em uma obra de grande difusão no
Brasil, ao constatar a contradição essencial do regime
de acumulação financeirizado, relativa à necessidade de
transferência de recursos da esfera produtiva para a esfera
financeira, Chesnais a caracteriza como um problema “de
ordem macroeconômica e também de ordem ético-social”.
Do mesmo modo, o autor qualifica os amplos processos de
endividamento público e privado que se generalizaram nas
últimas décadas como um “verdadeiro câncer da economia
mundial” (Chesnais, 1996, p.251). Noutra passagem, Ches-
nais fala do “parasitismo financeiro que está gangrenando o
capitalismo mundial” (Chesnais, 1996, p.19), e denuncia uma
“estrutura de distribuição de renda em favor das receitas da
usura” (Chesnais, 1996, p.31; Chesnais, 2005a, p.50). Além
disso, ele protesta contra a “legitimidade social análoga à dos
capitais voltados para a acumulação industrial” que os fundos
especulativos haviam adquirido “com o apoio dos grandes
meios de comunicação e também de John Major e gente
como ele no G7” (Chesnais, 1996, p.269). Por fim, em outro
trecho da mesma obra, Chesnais assevera que “a esfera
financeira representa o posto avançado do movimento de
mundialização do capital, onde as operações atingem o mais
alto grau de mobilidade, onde é mais gritante a defasagem
entre as prioridades dos operadores e as necessidades mun-
diais” (Chesnais, 1996, p.239; grifo nosso), as quais o autor
se abstém de qualificar.

34
Mais uso indevido de dados sobre salários na Monthly
Review: a superacumulação de um excedente de erros
ANDREW KLIMAN
Mais uso indevido de dados sobre
salários na Monthly Review: a
superacumulação de um excedente de
erros1

Resumo

O
artigo Luta de classes e o declínio da participação do trabalho
no produto [Class war and labor’s declining share], de Fred
Magdoff e John Bellamy Foster (2013), argumenta que houve
“um declínio de longo prazo no poder relativo da classe trabalhadora,
com o capital ganhando crescentemente, por outro lado,” e que essa
mudança nas relações de poder produziu no longo prazo “um declínio
na parcela da economia apropriada pelo trabalho”. O presente artigo
mostra que eles não oferecem evidências válidas para sustentar estas
proposições. Em particular, nenhuma de suas evidências mostra que
a parcela do produto líquido que a classe trabalhadora pode comprar
com sua renda (i.e., sem contrair mais dívidas) declinou durante as
décadas que precederam a Grande Recessão. Ademais, algumas de suas
evidências-chave são obtidas por uma combinação claramente inválida
de dados provenientes de bases distintas, sem preocupar-se em saber se
os conjuntos de dados medem as mesmas coisas. Como resultado, eles
produzem aproximações extremamente exageradas da participação de
funcionários da administração e da supervisão no total da remuneração
dos funcionários e do aumento de sua participação.
Andrew Kliman
Andrew Kliman é profes- Palavras chave: Fred Magdoff; John Bellamy Foster; Marx; uso inapro-
sor do departamento de
Economia da Pace University priado de dados; Monthly Review; luta de classes; queda dos salários;
(EUA). O artigo foi traduzido
por Tiago Camarinha Lopes,
aumento dos lucros; subconsumismo.
professor da Universidade
Federal de Goiás. Classificação JEL: B51; E01; D31; O51.
1. Introdução Assim, o sistema é confrontado com a demanda
O artigo de capa na edição de Março de 2013 da efetiva insuficiente – com barreiras ao consumo
que levam, eventualmente, para barreiras ao inves-
Monthly Review é Luta de classes e o declínio da
timento. (Foster & McChesney, 2012, pp.33-4; grifo
participação do trabalho no produto [Class war
nosso)
and labor’s declining share] de Fred Magdoff e
John Bellamy Foster. Eles argumentam que tem O artigo Labor’s declining share é, portanto, par-

havido “um declínio de longo prazo no poder te integral de sua teoria subconsumista da crise.

relativo da classe trabalhadora, junto com um O declínio da parcela do trabalho no produto,

ganho crescente de importância do capital”, e e a noção de que a luta de classes é a causa

que esta mudança nas relações de poder produ- disso são também elementos indispensáveis da

ziu no longo prazo “um declínio da parcela da tentativa de Foster e Magdoff de explicar por

economia apropriada pelo trabalho”. Os mesmos que a Grande Recessão aconteceu. Dispensar

argumentos foram feitos em um artigo de 2008 estes elementos é dispensar sua explicação.

(Foster & Magdoff, 2008). Apesar do novo artigo Como eles notaram no artigo de 2008, a “luta

não mencionar o antigo ou as minhas críticas de classes acelerada contra os trabalhadores

sobre o uso indevido das estatísticas (Kliman, para aumentar os lucros ao baixar os custos do

2012, pp.152-8), parece existir um esforço para trabalho” é um “fator central para explicar” por-

defender os pontos de Foster e Magdoff con- que “o padrão de crescimento financeiro” que

tra estas críticas e talvez contra outras que as começou nos anos 1980 “foi incapaz de produzir

reforçaram. avanço econômico rápido em qualquer duração


de tempo, sendo assim insustentável.” Apesar
Mais importante, o novo artigo parece ser um
do “consumo doméstico ter continuado a subir,
esforço para defender sua teoria subconsumista
[esta subida] só foi possível devido ao amonto-
da crise econômica capitalista. De acordo com
amento da dívida do consumidor” e mais horas
a “escola Monthly Review”, tendências de crise
de trabalho por domicílio. (Foster & Magdoff,
oriundas do subconsumo são uma caracterís-
2008)
tica sempre presente do capitalismo. Como
escreveram recentemente Foster e Robert W. No livro A falha da produção capitalista [The

McChesney, failure of capitalist production] (Kliman, 2012),


eu apresentei uma explicação alternativa para
o capitalismo, ao longo de sua história, é caracte-
as causas da Grande Recessão, baseado na
rizado por um ímpeto incessante para acumular
[…] Mas isso se volta inevitavelmente contra a análise detalhada de dados oficiais assim como
privação relativa da população em questão […] na teoria de Karl Marx sobre a crise capitalista.

Revista da sociedade brasileira de economia política 37


38 / junho 2014
Começando pelos meados dos anos 1950, as evidências-chave – sobre a remuneração dos
taxas de lucro das companhias dos Estados Uni- empregados enquanto parte do produto inter-
dos caíram e jamais se recuperaram de forma no bruto (PIB), e sobre a parcela dos salários
sustentada sob o “neoliberalismo”. Isso acarre- totais referente aos trabalhadores que atuam na
tou uma diminuição do investimento produtivo produção e não na supervisão [production and
que, por sua vez, levou ao crescimento moro- nonsupervisory workers] (P&NS) – são obtidas
so do produto e da renda. (O crescimento da por combinação de dados de diferentes bases
remuneração aos empregados desacelerou por de uma forma claramente inválida, sem consi-
causa disso, não porque houve uma redistribui- derar se as duas bases estão medindo a mesma
ção dos salários para os lucros.) O crescimento coisa. Algumas de suas evidências são selecio-
moroso levou ao monte de dívidas, assim como nadas e tendenciosas, especialmente sua evi-
as políticas governamentais que repetidamente dência de que os salários reais (ajustados pela
tentaram administrar ou solucionar essa com- a inflação) caíram. A queda nos salários reais
plexidade de problemas por meio da emissão depende crucialmente no uso de um “deflator”
de mais dívidas sobre dívidas e encorajando inconsistente para ajuste, e Magdoff e Foster
um amontoado de dívidas do setor privado. O erram ou se recusam a nos dizer qual é a taxa
resultado foi uma série de explosões de bolhas e de crescimento dos salários reais quando outros
crises de dívida piores a cada vez, e, finalmente, deflatores amplamente usados são empregados.
a Grande Recessão. E sua evidência tecnicamente incorreta de que
a “participação do trabalho” caiu é ainda por
A falha da produção capitalista também argu-
cima irrelevante.
menta que a teoria subconsumista da crise fa-
talmente falha em bases lógicas, o que significa O problema é que “participação do trabalho” é
que a explicação de Foster e Magdoff das causas um termo ambíguo; ele pode significar coisas
básicas da Grande Recessão seria incorreta até diferentes. Por exemplo, os economistas costu-
mesmo se ela eventualmente se encaixasse aos meiramente o usam, ao lado do termo “partici-
fatos. (Kliman, 2012, 160-80) Esta crítica perma- pação do capital”, para se referir aos “retornos”
nece sem resposta. aos proprietários de diferentes “fatores de
produção” enquanto partes do produto. Quan-
Aqui, eu pretendo mostrar que o novo artigo
do Magdoff e Foster usam estes termos, no
deles não apresenta evidência válida em suporte
entanto, eles parecem dizer algo diferente – as
à tese de luta de classes/declínio da participa-
parcelas de uma ou outra medida do produto
ção do trabalho no produto. Algumas de suas
ou da renda que competem, respectivamente,

38
aos trabalhadores da “classe trabalhadora”2 e a por investimento não pode subir suficientemen-
todas as outras pessoas e coisas (apesar de não te, no longo prazo, para compensar o declínio
ser claro exatamente o que eles estão tentando relativo na demanda de consumo pessoal.
medir e por quê). Assim, para contar como evidência em favor desta
À luz desta ambiguidade, não deveria ser teoria, a “participação do trabalho” específica que
surpresa que alguns dados, mesmo os dados no deve ter caído nas décadas que antecederam a
novo artigo de Magdoff e Foster, mostrem que Grande Recessão é a parcela do produto líquido
houve um declínio das coisas que podem ser que a classe trabalhadora pode comprar com sua
chamadas “participação do trabalho” em algum renda – i.e., sem entrar ainda mais fundo em dívi-
sentido. Por exemplo, caiu a participação da da. Ademais, deve ser plausível que o declínio foi
renda da classe trabalhadora na renda pessoal e causado por uma aceleração da guerra do capital
a remuneração dos empregados caiu enquanto contra a classe trabalhadora. Como irei mostrar,
parcela do PIB. E os dados podem ser torcidos nenhuma das evidências trazidas por Magdoff e
de outras formas para produzir curvas descen- Foster satisfaz estes dois requerimentos, e nem ao
dentes. É crucial entender que isto não é sufi- mesmo chega perto de satisfazê-los.
ciente. Para mim, um declínio em alguma “parti- As controvérsias sobre as causas fundamentais
cipação do trabalho” não conta como evidencia em da Grande Recessão têm implicações políticas
favor da tese de Magdoff e Foster a respeito da luta profundas. A teoria de Marx da crise capitalista
de classes/do declínio da participação do trabalho. tem implicações revolucionárias, pois ela sugere
Para contar como evidência a seu favor, o que que a crise resulta do funcionamento normal do
tem de diminuir é a “participação do traba- sistema e que ela é inevitável nele. Em contras-
lho” no sentido específico requerido pela teoria te, a teoria subconsumista dobra-se ante os es-
subconsumista da crise da escola da Monthly forços de fazer o capitalismo funcionar melhor.
Review. De acordo com esta teoria, a renda da Nas palavras de Paul Marlor Sweezy, o editor
classe trabalhadora diminui como parte do fundador da Monthly Review e principal desig-
produto líquido (ou renda) que é produzido, o ner da teoria subconsumista esboçada acima,
que leva a uma queda na demanda de consumo se minha análise […] for aceita, para que conclu-
pessoal como parte do produto líquido. Isto, sões de política ela aponta? […]
por sua vez, leva a um nível de demanda total A segunda mudança indispensável necessária
que é insuficiente para comprar todo o produto para fazer a economia de iniciativa privada
líquido, dado que a teoria alega que a demanda funcionar melhor é a redistribuição de riqueza

Revista da sociedade brasileira de economia política 39


38 / junho 2014
e renda em direção a uma maior igualdade. Nós dos trabalhadores, seus salários estagnados e as-
vivemos em um período em que uma parcela sim por diante, mas menos sobre pesquisas que
crescente e sem precedentes da renda da so- desafiam estas noções. Eu peço para que estes
ciedade é apropriada pelas corporações e pelos
leitores coloquem estas preconcepções de lado
rentistas ricos, enquanto a parcela da população
e julguem o que Magdoff e Foster escreveram e
em geral fica estagnada ou diminui. Isso implica
um desequilíbrio permanente entre o potencial o que segue com base na evidência, na solidez
da sociedade de aumentar seu estoque de capital com a qual a evidência é interpretada e no po-
e seu poder de consumo cada vez mais fraco. A der de convencimento dos argumentos. Numa
classe capitalista como um todo, numa situação situação como essa, é errado dispensar a evidên-
limite, estaria disposta a desistir de metade do cia e os argumentos que conflitam com o que já
que tem para salvar a outra metade? Eu tenho o
se “sabe” sobre a matéria ou sobre o mundo em
sentimento de que o destino do sistema de inicia-
geral porque o que se “sabe” – a questão sobre
tiva privada pode depender da resposta a esta
se é realmente correto ou não – é precisamente
questão. (Sweezy, 1995, pp.9-11)
o que está em jogo.
Como a questão central aqui é o que causou a
Grande Recessão, eu vou limitar minha expli-
cação para os dados até o ano de 2007, quando, 2. A participação da remuneração
ao seu final, a recessão entrou em erupção. de empregados no produto bruto e
Obviamente, a queda abrupta nos salários e nas líquido
remunerações dos empregados (como parcelas Em apoio à tese da luta de classes/declínio da
de várias coisas) que ocorreram são efeitos da participação do trabalho, Magdoff e Foster in-
recessão, não sua causa. Estas quedas afetaram formam que a remuneração de empregados caiu
fortemente o bem-estar de dezenas de milhões enquanto parcela do PIB dos Estados Unidos.
de pessoas. É importante enfatizar isso para en- Seu Gráfico 1 indica que ela caiu de por volta de
tender a questão com mais profundidade. Mas 57% para 52,5% entre 1982 e 2007.
a discussão sobre as causas fundamentais da
No entanto, a participação da remuneração de
Grande Recessão não é o lugar para fazer isso.
empregados de Magdoff-Foster discrepa seria-
Eu compreendo que muito deste artigo vai en- mente da participação que obtemos quando
trar em conflito com preconcepções de pessoas usamos a remuneração oficial e os dados do
que ouviram bastante sobre o alegado sucesso PIB reportados pelas Contas de nacionais do
do ataque “neoliberal” sobre a classe trabalha- governo dos EUA (NIPA).3 A Figura 1 sobrepõe
dora, o suposto declínio na parcela do produto estas duas formas de mensuração, a baseada

40
nas NIPA e a de Magdoff-Foster.4 Note, primei- Como eles chegam a resultados tão diferentes
ramente, que a participação calculada por eles daqueles que obtemos usando dados oficiais?
é persistentemente menor. Mais importante, E por que eles perpassam caminhos tão longos
ela cai abaixo da participação calculada com para produzir seus resultados discrepantes? O
base nas NIPA cada vez mais conforme o tempo que eu quero dizer com “caminhos tão longos”
passa. Em 1955, a variável de Magdoff-Foster era é que os dados das NIPA sobre a remuneração
por volta de 1,5 pontos percentuais menor; já em de todos os empregados estão imediatamente e
2011, ela era 4 pontos percentuais mais baixa. prontamente disponíveis. Eles estão reportados
Portanto, entre 1982 e 2007, a participação base- na Tabela 1.12 das NIPA, uma tabela que Mag-
ada nas NIPA caiu por volta de 3 pontos per- doff e Foster citam mais adiante em seu artigo.
centuais, mas a queda da participação baseada Mas por alguma razão eles não utilizaram estes
em Magdoff-Foster caiu por volta de 4,5 pontos, dados. Ao invés disso, eles indicam que rece-
foi 50% maior. Em 2007, a participação baseada beram dados não publicados sobre a remune-
nas NIPA excedeu seu valor médio durante o ração dos empregados no setor privado de um
período de 1956-1965, enquanto a estimativa de departamento governamental diferente. Então,
Magdoff-Foster foi por volta de 1,5 a 2 pontos adicionando as estimativas de remuneração dos
percentuais mais baixos em 2007 do que o que empregados públicos das NIPA aos dados do se-
era entre 1956 e 1965. tor privado não publicados, eles obtiveram suas
estimativas alternativas para a remuneração de
Figura I. Remuneração total de todos os
empregados.
empregados como porcentagem do PIB
60 Obviamente, este procedimento é inválido. É
59 NIPA Efetiva o mesmo que adicionar maçãs com laranjas
58 das quais algumas seções foram removidas.
57 Visto que a estimativa alternativa deles são

56
menores – e crescentemente menores – do que
as estimativas oficiais, pode ser que alguns
55
empregados do setor privado tenham ficado de
54
fora daqueles dados não publicados, ou que os
53
dados não publicados omitam alguns compo-
52 Magdoff-Foster
nentes de remuneração de empregados que as
51 NIPA incluem, ou as duas coisas. Mas Magdoff
50
1955 1963 1971 1979 1987 1995 2003 2011
REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 41
38 / junho 2014
e Foster parecem não estar preocupados com Isto é particularmente verdade se aprendemos
este problema flagrante com os números de seus sobre a queda da participação das remunerações
cálculos da remuneração total, isto é, se eles es- com Magdoff e Foster, que nos guiam implaca-
tão de fato cientes disso. Eles não explicam por velmente à conclusão de que ela caiu devido ao
que optam por não usar os dados de remunera- fato de a luta do capital contra o trabalho estar
ção oficial das NIPA para todos os empregados. sendo um sucesso esmagador. Não é assim.
Eles sequer nos dizem que estes dados existem, Como a Figura 2 mostra, a parcela das remune-
menos ainda que eles conduzem a resultados rações no valor adicionado bruto das empresas
diferentes. realmente caiu entre 1955 e a Grande Recessão
– mas a parcela dos lucros também. De fato, a par-
Outro problema central é que, quando se
cela dos lucros caiu mais abruptamente do que
expressa a remuneração como percentagem do
a parcela das remunerações.7
produto interno bruto (como eles fazem), chega-
-se a conclusões muito enganosas. Em particu- A razão pela qual as parcelas apropriadas pelas
lar, este procedimento é simplesmente inapro- duas classes caíram é que uma parcela conside-
priado no contexto de uma análise de classes. rável e crescente do PIB é uma renda que não
vai para nenhuma das duas classes. É a parcela
Considere o valor adicionado bruto do setor
que consiste nos custos de depreciação. Então,
corporativo dos Estados Unidos,5 que é o PIB
se queremos expressar as tendências da distri-
que ele produz. Uma parte disso são os custos
buição do PIB numa “análise de classes”, nós
do trabalho, a remuneração dos empregados.
temos que dizer que a “classe da depreciação”
Os custos de depreciação são outra parte. Para
saiu ganhando, o que levou a uma queda no
não deixar nada fora dos “lucros”, vamos usar
longo prazo no poder relativo tanto da classe
o termo para nos referir a todo o resto. Esta ter-
trabalhadora quanto a da classe capitalista. De-
ceira e última parte do valor adicionado bruto é
preciar, depreciar! Isto é, Moisés e os Profetas!
a renda que recai sobre as empresas antes delas
pagarem despesas de juros, taxas variadas, con- O que acontece quando deixamos de lado a
6
fiscos e outros itens menos importantes. vitória da “classe da depreciação” contra o
trabalho e o capital e olhamos apenas para as
Agora, quando lemos que a parcela das remune-
parcelas das duas últimas classes vis-à-vis uma
rações no PIB caiu, nós somos naturalmente le-
a outra? Nas Figuras 3 e 4, a remuneração dos
vados a concluir que a parcela dos lucros subiu.
empregados das empresas dos Estados Unidos e

42
Figura 2. Remunerações e lucros no valor adicionado bruto das companhias

remuneração dos empregados (eixo da esquerda) lucro (eixo da direita)


linear (remuneração dos empregados (eixo da esquerda)) linear (lucro (eixo da direita))

os lucros são expressos como parcelas do valor a segunda metade dos anos 1960, mostra que
adicionado (também conhecido como produto estes dois componentes flutuaram mas não tive-
nacional líquido), isto é, valor adicionado bruto rem tendências positivas ou negativas durante
menos a depreciação dos ativos fixos. A Figura os 37 anos que antecederam a Grande Recessão.
3 mostra que a participação das remunerações Finalmente, a Figura 5 mostra que, se conside-
aumenta enquanto a participação dos lucros rarmos todo o setor produtivo – corporações,
diminui ao longo do período 1955-2007 como parcerias, propriedades individuais e cooperati-
um todo. A Figura 4, que abstrai da subida vas isentas de imposto – de novo não há queda
substancial da remuneração baseada na queda na participação da remuneração dos trabalhado-
da participação dos lucros que ocorreu durante res no valor adicionado líquido.8

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 43


38 / junho 2014
Figura 3. Participação da remuneração e dos lucros no valor adicionado líquido, 1955–2007

Figura 4. Participação da remuneração e dos lucros no valor adicionado líquido, 1970–2007

remuneração dos empregados (eixo da esquerda) lucro (eixo da direita)


linear (remuneração dos empregados (eixo da esquerda)) linear (lucro (eixo da direita))
44
Figura 5. Participação da remuneração no valor adicionado líquido, setores corporativo e
produtivo total, 1970–2007

corporativo (eixo da esquerda) setor produtivo total (eixo da direita)


linear (corporativo (eixo da esquerda)) linear (setor produtivo total (eixo da direita))

Com certeza, a classe trabalhadora e a classe questão aqui não é se o capital está engajado na
capitalista estão em guerra. Até a revista Time luta de classes. A questão é se a classe capita-
teve de se dar conta recentemente desta luta de lista teve sucesso estrondoso na condução desta
classes em curso. Mas não há nada de novo a luta nas décadas que culminaram na Grande
respeito disso. Ela existia antes da Grande Re- Recessão.
cessão. E em contrariedade a Bill Moyers – que
Seria o caso em que “foram eles que ganharam”,
é citado por Magdoff e Foster, aparentemente
como Moyers diz (na mesma citação), ou o caso
num tom favorável – ela existia antes dos anos
em que eles “crescentemente foram os vence-
1980s, do Reaganismo, do esmagamento do sin-
dores”, como Magdoff e Foster argumentam?
dicato PATCO (Organização dos Profissionais
Se a diminuição da parcela da remuneração no
do Controle Aéreo [Professional Air Traffic Con-
produto for a medição do sucesso, então clara-
trollers Organization]), do “neoliberalismo”, do
mente o capital não foi vitorioso e não pode ser
“capitalismo financeiro”, e todo o resto. Assim, a
considerado o ganhador. A luta continua.9
REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 45
38 / junho 2014
3. Renda pessoal e a participação da Renda pessoal consiste quase que totalmente
classe trabalhadora no produto líquido em (1) remuneração de empregados (salários,
Magdoff e Foster citam a descoberta de Ja- pensões e benefícios médicos) e uma porção de
mes K. Galbraith de que os salários enquanto benefícios sociais governamentais que não são
parcela da renda pessoal diminuíram consisten- custeados por taxas sobre os empregadores, em-
temente desde os anos 1950 até o fim do século. pregados e autônomos,10 e (2) dividendos, juros,
Eles não nos dizem o significado deste fato, aluguéis e renda de proprietários. Na Figura 6,
mas aparentemente querem que acreditemos os itens em (1) e (2) são chamados “renda pessoal
que esta queda foi causada pelas vitórias do ca- da classe trabalhadora” e “renda pessoal dos
pital na luta de classes. E eles também querem proprietários” respectivamente, e os dois são
aparentemente que acreditemos que isto indica expressos como percentual do produto interno
que a participação do produto que a classe líquido.11 Estes percentuais são as partes do pro-
trabalhadora dos Estados Unidos pode comprar duto líquido que as rendas da classe trabalhado-
com sua renda – i.e. sem contrair ainda mais ra e dos proprietários podem comprar.12
dívida – caiu significativamente ao longo do
Figura 6. Renda pessoal da classe traba-
tempo. E que este problema de subconsumo
lhadora e de proprietários (percentuais do
latente é a principal fonte da construção das
produto interno líquido)
dívidas que prepararam o terreno para a última
crise econômica, para a recessão e para o contí-
nuo mal-estar.

Entretanto, quando interpretamos as tendên-


cias das rendas pessoais adequadamente, vemos
que nada disso é verdade. A renda dos proprie-
tários de fato subiu significativamente enquan-
to percentagem do produto interno líquido dos
Estados Unidos nas décadas que antecederam
a Grande Recessão – mas isto também ocorreu
para a renda da classe trabalhadora! As duas
puderam aumentar porque a renda pessoal, que
renda pessoal da renda pessoal de
é a renda recebida pelas pessoas, subiu mais rá- classe trabalhadora proprietários (eixo
(eixo da esquerda) da direita)
pido do que o produto líquido, que é a mesma
coisa que renda que é produzida.
46
A participação da renda da classe trabalhadora 4. Participação das remunerações dos
no produto líquido subiu acentuadamente entre empresários e supervisores
1966 e 1970. Depois deste ponto, ela permaneceu Magdoff e Foster argumentam que a diminui-
estável no geral, mas teve tendência de alta em ção de sua participação do trabalho no PIB
nível moderado entre 1984 e 2007. A participa- subestima significativamente a verdadeira
ção dos proprietários subiu acentuadamente en- extensão pela qual o pagamento dos trabalha-
tre 1979 e 1984, sendo que depois ela continuou dores da classe trabalhadora despencou. “Os
com tendência de alta, mas nem tanto quanto salários e vencimentos (e benefícios) de cargos
a participação da classe trabalhadora. Assim, o de gestão superior têm aumentado aos trancos
aumento da renda pessoal dos proprietários como e barrancos nas últimas décadas, enquanto os
parcela do produto não se deu às expensas da classe salários dos trabalhadores da base perderam
trabalhadora. Ao invés disso, o que ocorreu foi terreno.” Assim, “a diminuição real dos salários
que, a partir dos anos 1980, as empresas paga- em percentagem do PIB é muito mais acentu-
ram uma parcela maior de seus lucros na forma ada quando se considera a classe trabalhadora
de juros para seus credores e na forma de divi- propriamente dita”.
dendos para seus acionários; uma parte menor
Em um esforço para apoiar esta proposição, eles
do lucro foi usada para financiar investimento
usam os dados para os salários dos trabalhado-
produtivo e outras despesas.13
res que atuam na produção e não na supervisão
Isso significa que a parte do produto líquido (trabalhadores P&NS), a fim de aproximar a
dos Estados Unidos que a classe trabalhado- remuneração recebida pela classe trabalhadora,
ra foi capaz de comprar – usando apenas sua e dados para os salários dos empregados não
renda, não dívida adicional – não diminuiu nas P&NS para aproximar a remuneração recebida
décadas que antecederam a Grande Recessão. por funcionários que não são da classe trabalha-
Este fato descarta a explicação subconsumista dora [non working-class employees]. Seu Gráfico
das causas da recessão. Ele também é incom- 3 indica que os trabalhadores P&NS receberam
patível com a má interpretação de Magdoff e apenas 55% do total de salários do setor privado
Foster sobre as classes e a diminuição da parte em 2007, enquanto os empregados não P&NS
do trabalho na renda pessoal. receberam os 45% restantes.

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 47


38 / junho 2014
No entanto, as Estatísticas de emprego ocupa- alternativamente expressar os números referen-
cional de maio de 2007 [Occupational employ- tes aos trabalhadores P&NS como percentual
ment statistics (OES)], publicadas pelo Bureau do total de salários computado pelas NIPA, que
of Labor Statistics dos Estados Unidos, indicam foi de US$ 5.326 bilhões.14 Existe uma diferença
que os salários combinados dos trabalhadores gigante entre os dois totais de salários, US$ 978
em ocupações de gestão e “supervisores de pri- bilhões. Magdoff e Foster tratam inapropriada-
meira linha / gestores” (funcionários cujo dever mente esta discrepância de US$ 978 bilhões entre
principal é o de supervisionar diretamente e co- duas bases de dados como se fosse composta somente
ordenar as atividades dos demais trabalhadores) de salários adicionais recebidos por empregados
foram apenas 16% do total de salários – menos não P&NS. Este procedimento infla artificial-
de três oitavos da estimativa de Magdoff e mente sua estimativa da parcela de salários
Foster da parcela recebida por funcionários que de 33% para 45% e artificialmente comprime a
não são da classe trabalhadora. Assim, enquanto parcela dos salários de trabalhadores P&NS de
os números de Magdoff e Foster sugerem que “a 67% para 55% (ver Figura 7). Com igual justifica-
classe trabalhadora” recebeu apenas 55% do total tiva – i.e., nenhuma – eles poderiam ter tratado
de salários, os dados da OES indicam que trabalha- esta discrepância entre os dados da CES e das
dores não gestores ou não supervisores receberam NIPA como salários adicionais dos trabalhado-
84%. res P&NS, o que teria levado sua estimativa de
parte dos salários totais no produto a 73%.15
Uma razão pela qual Magdoff e Foster produzi-
ram tal grosseira estimativa para baixo da parte O Apêndice 2 estima a parcela da discrepân-
dos salários recebidos pela “classe trabalhadora” cia que pode ser adequadamente alocada para
foi que – de novo – eles misturaram e combi- os empregados da administração/com cargos
naram diferentes bases de dados cegamente. Os de supervisão, retornando à questão para não
seus salários dos trabalhadores P&NS no setor deixar de estimar esta parcela.16 Estimo que não
privado vêm do Current Employment Statistics mais do que 37% a 45% da discrepância pode ser
(CES), enquanto a conta total de salários do alocada para eles e que sua quota de salários foi
setor privado vem das contas nacionais dos entre 16,4% e 20,6%.
EUA (NIPA). Os dados do CES indicam que os
Outra razão pela qual Magdoff e Foster subes-
trabalhadores P&NS receberam 67%, não 55%,
timam seriamente a parte dos salários da classe
dos salários totais em 2007, US$ 2.908 bilhões de
trabalhadora é que a categoria de empregados
US$ 4.348 bilhões. Mas Magdoff e Foster ignora-
que eles excluem da classe trabalhadora, os
ram ou não perceberam este fato, e escolherem

48
Figura 7. Como transformar 67% em 55% classe trabalhadora e sua participação no total
de salários.
100%
Uma das razões pela qual os dados P&NS
5000 18%
100% não conseguem captar uma grande parte dos
4000
salários dos funcionários não gerentes é que
33% 27%
bilhões de dólares

a categoria P&NS exclui os trabalhadores em


3000 indústrias produtoras de bens que não estão
diretamente envolvidos na “produção”, mas
2000
55%
que também não são gerentes ou supervisores
67%
1000 – por exemplo, trabalhadores de escritório em
empresas industriais e de construção.18 Ainda
0 mais importante, os dados de P&NS também
Salários nas estatísticas como percentual de
de emprego atuais... salários nas NIPA não conseguem captar os salários de milhões
de outros trabalhadores, em ambas as indús-
atribuído a não P&NS trabalhadores não P&NS
trias prestadoras de serviços e de bens, porque a
trabalhadores P&NS
categoria P&NS não faz muito sentido para as
empregados não P&NS, é demasiada abrangen- pessoas que respondem perguntas de pesquisa
te. Em 2007, 17,7% dos trabalhadores do setor do governo. Como o Departamento do Trabalho
privado estavam nesta categoria, enquanto os dos EUA observou,
dados da OES indicam que apenas 9,2% dos a produção e as horas de trabalho de não supervi-
trabalhadores do setor privado, apenas metade são e dados da folha de pagamento tornaram-se
deste número, eram empregados em ocupações cada vez mais difíceis de recolher porque essas
categorizações não são significativas para os
de gestão ou como supervisores de primeira
entrevistados. Muitos relatam que não é possível
linha/gerentes.17 Até certo ponto, Magdoff e
tabular os registros da folha de pagamento com
Foster estão cientes do problema, notando que a
base nas definições de produção de não supervi-
categoria deles “indubitavelmente inclui muitos são.19 (Department of Labor, 2005)
empregados que podem bem ser considerados
Assim, esses entrevistados ou deixam de
parte da classe trabalhadora”. Mas “muitos
fornecer os dados solicitados ou ignoram a
empregados” é uma proposição seriamente
definição oficial de trabalhadores P&NS e,
distorcida; eles não parecem perceber a enorme
assim, acabam fornecendo outros dados, muitas
extensão em que eles têm deixado de contar a
vezes para categorias de trabalhadores mais

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 49


38 / junho 2014
estreitas (por exemplo, os abrangidos pela Fair do tempo – e uma vez que a falta de resposta
Labor Standards Act ou horistas, ver Abraão e a perguntas sobre trabalhadores P&NS tem
Spletzer (2010)). sido um problema significativo, as tendências
Como resultado, a categoria P&NS conta o nos salários e horas destes trabalhadores são
número de empregados da classe trabalhadora questionáveis.
muito abaixo do número real. Esta é uma das
razões pelas quais a estimativa de Magdoff 5. A parte de lucros disfarçados nos
e Foster da participação do total de salários dados de salários
desses funcionários é muito baixa. Outra razão
Magdoff e Foster notam que os dados de remu-
é que os trabalhadores que devem ser contados,
neração dos empregados incluem “a remunera-
mas não são (por exemplo, aqueles que não
ção que vai para CEOs e outros cargos elevados de
estão cobertos pela Fair Labor Standards Act ou
gerenciamento,20 que devem ser contados como
não são horistas) são sem dúvida os trabalhado-
renda para o capital, em vez de para o trabalho
res mais bem remunerados, pelo menos, em mé-
[…] [e que ela] tem subido aos trancos e bar-
dia. Se os salários dos trabalhadores mais bem
rancos nas últimas décadas”. Para obter uma
pagos estão crescendo mais rápido do que os
medida presumivelmente melhor de remunera-
salários dos trabalhadores com baixos salários
ção que possa ser legitimamente tomada como
– como ocorreu nos EUA nas últimas décadas
rendimentos do trabalho, eles usam os salários
–, então, conforme o tempo segue, dados que
de trabalhadores P&NS. Mas os números da
erroneamente excluem os trabalhadores mais
categoria P&NS são lamentavelmente inadequa-
bem pagos irão subestimar a parte dos salários
dos neste contexto.
da classe trabalhadora cada vez mais.
Parte do problema é o discutido acima – a
Esta é uma das razões, talvez a principal razão,
exclusão de um segmento grande e relativa-
pelas quais Magdoff e Foster acham que a parti-
mente bem pago da classe trabalhadora a partir
cipação da classe trabalhadora nos salários caiu
dos dados de trabalhadores P&NS. Mas até
vertiginosamente. Também se deve notar que,
mesmo uma estimativa adequada da partici-
uma vez que os dados de trabalhadores P&NS
pação dos salários efetivamente recebidos pela
não são, na prática, baseados numa definição
gerência / empregados de supervisão – 16% do
padrão – as empresas parecem frequentemente
total em 2007, de acordo com dados OES, não
empregar suas definições “próprias” e as empre-
45% – exagera muito a parcela da remuneração
sas incluídas no levantamento mudam ao longo
dos empregados que é realmente “renda para o

50
capital” em vez de um verdadeiro “rendimento Assim, se quisermos estimar a participação dos
do trabalho”. Ou seja, trata-se de lucro disfarça- salários ou remuneração que é realmente “ren-
do. De acordo com os próprios Magdoff e Foster, dimento de capital” ou lucro disfarçado, parece
o lucro disfarçado inclui apenas “a remuneração aconselhável basear a estimativa sobre os níveis
que vai para CEOs e outros cargos elevados de salariais, ao invés de recorrer a categorias profis-
gerenciamento” (grifo nosso), e não o pagamento sionais específicas, como “executivo” ou “CEO”.
total de todos os funcionários da administração/ E parece aconselhável incluir, como destinatá-
supervisão. A remuneração recebida pelos super- rios de lucro disfarçado de salários, apenas a pe-
visores mais baixos e pela maioria dos empre- quena porcentagem de empregados da adminis-
gados da administração é legitimamente parte tração que foram pagos demasiadamente bem,
da “participação do trabalho”, mesmo que estes ou seja, acima do triplo do salário médio. Optei
trabalhadores não sejam membros da “classe por incluir os 10% mais bem pagos dos emprega-
trabalhadora” em algum outro sentido do termo. dos em ocupações administrativas.21

Os dados de 2007 da OES indicam que o salário O conjunto de dados OES carece de dados sobre
médio anual dos supervisores/gerentes mais salários muito elevados, mas fui capaz de usar
baixos era US$ 47.370,00, apenas 16% a mais do dados reportados para estimar os salários dos
que o salário médio total (US$ 40.690,00). Estes 10% no topo (ver detalhes no Anexo 3). Minhas
dados também indicam que três quartos das estimativas indicam que, para estar neste
pessoas em ocupações administrativas recebe- grupo, um(a) gerente precisava de um salário
ram um salário anual de US$ 121.690,00 dólares anual de pelo menos US$ 171.680,00, que foi de
ou menos, o que significa que seus salários eram 4,2 vezes o salário médio global e que, prova-
menos do que o triplo da média global. Não velmente colocou ele ou ela nos 2% ou 3% mais
seria razoável contar os salários destes dois gru- bem remunerados entre todos os assalariados,
pos de funcionários como lucro disfarçado ou mas não nos 1% mais bem pagos.22 Os 10% no
rendimentos de capital. Além disso, até mesmo topo dos empregados da administração recebe-
os salários recebidos por um grande segmento ram 23,34% do total de salários recebidos por
de “executivos” parece ser o pagamento dos ser- aqueles em ocupações administrativas, ou 2,46%
viços de trabalho que realizam, em vez de lucro do total de salários recebidos por todos os fun-
disfarçado, 25% deles receberam salário menor cionários. Como os 10% dos gerentes foram de
ou igual a US$ 97.960,00, o que é 2,4 vezes o 0,45% de todos os empregados, o salário médio
total salário médio. deles foi de 2,46% / 0,45% = 5,5 vezes o salário
médio geral.

Revista da sociedade brasileira de economia política 51


38 / junho 2014
Agora, o Gráfico 3 de Magdoff e Foster indica o que é menos de um oitavo do declínio que Magdoff
que a participação dos salários recebidos pelos e Foster relatam para os trabalhadores P&NS.
trabalhadores P&NS caiu 21 pontos percentuais
Os dados da OES recuam somente até 1997, por
entre 1965 e 2007, de 76% para 55% , o que signifi-
isso é impossível usá-los para estimar dire-
ca que a participação dos salários recebidos por
tamente as tendências de longo prazo. Mas a
“gestão, supervisão, e outros funcionários não
simulação para trás usando os dados de 2007 é
produção” quase duplicou, passando de 24% para
informativa. Como já observei, minhas estima-
45%. Eles sugerem que isso nos diz algo signifi-
tivas indicam que o aumento máximo possível
cativo sobre a queda da participação dos salários
na participação dos salários recebidos pelos 10%
que é genuinamente “rendimento do trabalho” e
empregados de administração mais bem pagos
o aumento da quota que representa “rendimen-
foi de 2,46 pontos percentuais. Mas sua parti-
tos de capital” ou lucro disfarçado. Meus resul-
cipação poderia ter subido este tanto apenas
tados – com base no que acho que é claramente
se, na famosa frase de Marx, eles “vivessem de
uma melhor medida de “cargo administrativo
ar” em 1965, o que não era o caso. Se eles não
elevado”, e, portanto, uma medida claramente
receberam mais do que o trabalhador médio
melhor da quantidade de lucro que está disfar-
em 1965, então sua quota de salários aumentou
çada como salários – indicam que as estimati-
2,02 pontos percentuais, e se seu salário médio
vas de Magdoff e Foster estão exageradamente
era originalmente o dobro do salário médio
fora dos limites. Como os 10% dos funcionários
geral, então sua quota subiu em 1,57 pontos (ver
administrativos receberam 2,46% do total de
Tabela 1).23 Mas estes casos também parecem ser
salários em 2007, sua participação no total dos
bastante improváveis. O salário médio de todos
salários não poderia ter aumentado em mais de
os funcionários administrativos poderia muito
2,46 pontos percentuais entre 1965 e 2007. Assim,
bem ter sido não mais do que o dobro do salário
a parte dos salários de outros funcionários não po-
médio global, mas é difícil acreditar que os 10%
deria ter caído em mais de 2,46 pontos percentuais,
deles mais bem pagos receberam tão pouco.
Tabela 1. Mudanças simuladas na participação dos salários e produto, 10% do topo de
administradores

Taxa salarial média original


0 1 2 3 4 5 6
(múltiplo da taxa média total)
Aumento em ponto percentual em 2007
em participação de salários
2,46 2,02 1,57 1,12 0,68 0,23 0,00
totais
em participação do produto
1,50 1,23 0,96 0,68 0,41 0,14 0,00
total líquido
52
É muito mais provável que sua média salarial datasets in a glaringly invalid way, without re-
fosse originalmente ao menos o triplo da média gard to whether the datasets are measuring the
global, o que implica que sua participação no same thing. As a result, they produce extremely
total das remunerações aumentou não mais do exaggerated approximations of managerial and
que 1,12 pontos percentuais. E isso, por sua vez, supervisory employees’ share of total employee
implica que qualquer aumento da sua quota de compensation and of the rise in their share.
salário que possa ter ocorrido levou a uma que-
Keywords: Fred Magdoff; John Bellamy
da na participação de outros funcionários na
Foster; Marx; misuse of data; Monthly Re-
produção (valor acrescentado líquido) inferior a
view; class war; wage’s decline; profit’s rise;
0,7 pontos percentuais, entre 1965 e 2007. Isto é
underconsumptionism.
um quinze avos dos 10,3 pontos percentuais de que-
da nos salários dos trabalhadores P&NS como uma
percentagem do PIB que Magdoff e Foster reportam. Bibliografia
Congressional Budget Office (U.S.). Changes in the distribu-
tion of workers’ hourly wages between 1979 and 2009. Dis-
ponível em: www.cbo.gov/publication/22010, 2009. [Último
Abstract
acesso em abril de 2014.]
Fred Magdoff and John Bellamy Foster’s (2013) Department of Labor (U.S.), Office of the Secretary. Submis-
Class war and labor’s declining share claims that sion for OMB review: comment request, April 8. Disponível
em: tinyurl.com/6bwrgt5, 2005. [Último acesso em abril de
there has been “a long-term decline in the rela- 2014.]
tive power of the working class, with capital
FOSTER, John Bellamy & MCCHESNEY, Robert W. The
increasingly gaining the upper hand,” and that endless crisis: how monopoly-finance capital produces stagnation
this shift in power relations has produced a and upheaval from the USA to China. New York: Monthly
Review Press, 2012.
long-term “decline in the share of the economy
FOSTER, John Bellamy & Magdoff, Fred. “Financial implosion
going to labor”. The present paper shows that and stagnation: back to the real economy”. Monthly Review,
they provide no valid evidence in support of 60:7 (Dec.). New York: Monthly Review Press, 2008. Disponí-
vel em: monthlyreview.org/2008/12/01/financial-implosion-
these claims. In particular, none of their evi-
-and-stagnation. [Último acesso em abril de 2014.]
dence shows that the share of net output that
KLIMAN, Andrew. The failure of capitalist production: under-
the working class can buy with its income (i.e., lying causes of the Great Recession. London: Pluto Books,
without going more deeply into debt) declined 2012.

during the decades that preceded the Great KLIMAN, Andrew & WILLIAMS, Shannon D. “Why ‘finan-
cialization’ hasn’t depressed U.S. productive investment.”
Recession. Moreover, some of their key eviden- Disponível em: http://akliman.squarespace.com/writings/,
ce is obtained by combining data from different 2012. [Último acesso em abril de 2014.]

Revista da sociedade brasileira de economia política 53


38 / junho 2014
MAGDOFF, Fred & FOSTER, John Bellamy. “Class war and 4 A participação baseada nas NIPA usa os dados para remu-
labor’s declining share”. Monthly Review, 64:10 (March). New neração de empregados das NIPA na Tabela 1.12 e para o
York: Monthly Review Press, 2013. Disponível em: mon- PIB das NIPA na Tabela 1.1.5, linha 1. Os URLs para as prin-
thlyreview.org/2013/03/01/class-war-and-labors-declining- cipais fontes de dados usados neste artigo estão disponíveis
-share. [Último acesso em abril de 2014.] no Apêndice 1. [N.Ed.] Ver versão online indicada na Nota 1.
MOHUN, Simon. “Unproductive labour in the US economy 5 [N.T.] O setor corporativo, na terminologia da contabili-
1964-2010”. Review of Radical Political Economics, no prelo. dade nacional estadunidense, refere-se à parte da economia
composta por empresas que contém o setor primário
SWEEZY, Paul M. “Economic reminiscences”. Monthly Review,
(matérias primas), secundário (processamento industrial)
47:1 (May), pp. 1–11. New York: Monthly Review Press, 1995.
e terciário (serviços), ou seja, a economia produtora de
mercadorias e capital, o que exclui o governo, os domicílios
e as organizações sem fins lucrativos.
Notas
6 Os custos de depreciação são perdas que representam
1 [N.Ed.] Esta versão traduzida suprimiu as demais seções reduções do valor das estruturas das empresas de seus
e os apêndices do artigo original em inglês para adequar o equipamentos e software – conhecidos coletivamente
artigo ao limite máximo que a Revista da SEP disponibiliza como ativos fixos ou capital fixo – que decorrem do seu
para todos os colaboradores. As demais seções tratam do uso na produção, obsolescência, tempo de desgaste e danos
crescimento de salários e remunerações, da importância acidentais. Similarmente, outros custos de produção – para
dos benefícios sociais e da crescente diferenciação dentro matérias primas ou materiais semiprontos, energia e ser-
da classe trabalhadora. Estas seções e os apêndices estão viços providos por terceiros – também não são contados
disponíveis no artigo original em inglês em www.marxisthu- aqui como lucro. Eles não precisam ser levados em conta
manistinitiative.org/economic-crisis/more-misused-wage- explicitamente porque eles já foram excluídos; o PIB é a
-data-from-monthly-review-the-overaccumulation-of-a- diferença entre “produto bruto” e o custo destes “insumos
-surplus-of-errors.html. Todas as citações foram traduzidas intermediários”.
a partir da própria reprodução de Andrew Kliman no artigo
original. As notas do tradutor estão marcadas com N.T. e as 7 As figuras de valor bruto adicionado e remuneração vêm
notas do editor com N.Ed. da Tabela 1.14, linhas 1 e 4 das NIPA. Lucro é o valor bruto
adicionado menos a remuneração dos empregados e os
2 [N.Ed.] A expressão “trabalhadores da classe trabalha- custos históricos de depreciação dos ativos fixos, repor-
dora” é uma tradução de “working-class workers”, empre- tados na Tabela 6.6, linha 2 da Bureau of Economic Analysis’s
gado no original. O emprego de tal expressão pressupõe, Fixed Asset Table. Eu uso os custos históricos para depre-
naturalmente, um entendimento de que a classe trabalha- ciação porque esta é a prática comum na contabilidade de
dora é formada pelos “trabalhadores de base”, da produção, negócios e porque, fazendo assim, elimina-se a volatilidade
pelo “operariado”, enfim. Os trabalhadores envolvidos nas causada pelas mudanças de curto prazo nas valorizações
atividades administrativas (colarinhos-branco) nitidamente dos ativos que afetam os custos atuais. No contexto deste
ficam de fora da “classe trabalhadora” assim concebida, artigo, a escolha dos métodos para contar a depreciação
ainda que trabalhem de forma assalariada. Seria, no entanto, não fazem diferença real, pois as mudanças nas tendências
um equívoco traduzir working-class workers por “operá- das parcelas das remunerações e dos lucros que são produ-
rios” porque assim se eliminaria o tom crítico da própria zidas por uma mudança nestes métodos não são ipso facto
referência de Kliman à concepção que Magdoff e Foster causadas por mudanças nas relações de poder entre capital
nutrem da classe trabalhadora, além de tornar intraduzível a e trabalho.
expressão antitética non-working-class workers.
8 As parcelas da remuneração do setor capitalista nas Tabelas
3 [N.Ed.] NIPA é a sigla formada por (US) National income 4 e 5 são as mesmas.Veja a nota 3 para fontes de dados
and product accounts. usados nas figuras 3 e 4. Para construir a participação da

54
remuneração do setor produtivo na Figura 5, eu dividi a do endividamento das empresas permitiu-lhes pagar mais
remuneração (na Tabela 1.13, linha 4 mais 11 das NIPA) pelo dinheiro em juros e dividendos, sem reduzir o investimento
valor adicionado líquido, que é o valor adicionado bruto (na líquido em percentagem do lucro.Veja Kliman e Williams
Tabela 1.3.5, linha 2 das NIPA) menos os custos históricos de (2012).
depreciação dos ativos fixos (na tabela 6.6, linhas 2 e 5 menos
14 As estimativas da CES para todos os trabalhadores não
linhas 8 e 9 da Bureau of Economic Analysis’s Fixed Asset).
agrícolas do setor privado e do setor P&NS são relatados
9 [N.Ed.] No original, está escrito “A luta continua” mesmo, na CES Tabelas B-3 e B-8, respectivamente. Os salários
razão pela qual a expressão está destacada em itálico (ou NIPA e os salários dos trabalhadores do setor privado são
seja, o itálico sinaliza texto redigido em língua estrangeira relatados nas NIPA Tabela 1.12, linha 5.
pelo autor).
15 Um artigo no prelo de Simon Mohun (no prelo) argu-
10 Entre 1984 e 2007, os benefícios de assistência (dinheiro menta que é razoável alocar toda a discrepância para os
direto de segurança social, Medicaid, tickets alimentação, salários totais dos empregados de gerência e supervisão.
retorno de impostos etc.) que recaem generalizadamente No entanto, isto é completamente fora de propósito, como
sobre os mais pobres da população, junto com o excesso eu mostro no Apêndice 2. [N.Ed.] Ver versão online indicada
dos benefícios do Medicare sobre as taxas [receitas] do Me- na Nota 1.
dicare foram em média igual a 100% dos benefícios sociais
16. [N.Ed.] O Apêndice 2 está disponível na versão online
do governo que não foram financiados por estas taxas. (ver
indicada na Nota 1.
as Tabelas 3.6 e 3.12 das NIPA; renda assistencial de benefí-
cio é a soma das linhas 21-25 e da linha 31 na Tabela 3.12). 17 Todas as outras referências a dados OES neste artigo di-
Magdoff e Foster reconhecem (na sua nota de rodapé 21) zem respeito ao conjunto de dados completos, que incluem
que “a classe trabalhadora […] pode incluir muitos destes os salários dos funcionários do governo. No conjunto
que estão na assistência pública e que se aposentaram, de dados completo foi também o caso de que 9,2% dos
junto com seus dependentes”. Mas a frase “muitos destes empregados estavam em ocupações de gestão ou super-
que estão na assistência pública” é um pouco problemática. visores/gerentes mais baixos. Os números de emprego
Quem são os outros receptores da assistência pública, a da CES para todos os trabalhadores do setor privado e
“classe subterrânea”? trabalhadores P&NS são relatados na CES, Tabelas B-1 e
B-6, respectivamente.
11 É claro que a classe trabalhadora recebe uma pequena
fração dos juros e dividendos, enquanto altos executivos 18 Não me refiro aqui aos “profissionais de alto nível, tais
recebem uma pequena fração da remuneração de empre- como médicos, advogados e contadores”, que Magdoff e
gados (um assunto que será discutido adiante). Seria muito Foster não consideram da classe trabalhadora, porque a
difícil estimar o tamanho destas “pequenas fracções”, e uma maioria desses funcionários parecem ser trabalhadores
enorme quantidade de conjecturas seria envolvida. Parece P&NS. De acordo com o Capítulo 2 do Manual de mé-
razoável supor que elas mais ou menos compensam um todos do Bureau of Labor Statistics Manual (www.bls.gov/
ao outro, e que as tendências apresentadas na Figura 6 são opub/hom/homch2.htm), os funcionários não supervisores
aproximadamente corretas. “incluem todos os indivíduos em indústrias, prestadoras de
serviços privados que não estão acima do nível de trabalho
12 Os dados de renda vêm das NIPA, Tabela 2.1. A renda
de supervisão. Este grupo inclui pessoas físicas, tais como
pessoal da classe trabalhadora é a linha 2 mais a diferença
escritório e trabalhadores de escritórios, reparadores,
entre as linhas 17 e 25. A renda pessoal dos proprietários é
vendedores, operadores, motoristas, médicos, advogados,
a soma das linhas 9, 12, 14 e 5. O produto interno líquido é
contadores […]”. (grifo nosso)
relatado nas NIPA, Tabela 1.7.5.
19 Por esta razão o Bureau of Labor Statistics planejou
13 Isto não implica, porém, que a acumulação de capital
descontinuar a publicação dos dados de P&NS; o Bureau de-
(ou seja, o investimento líquido em produção) caiu como
cidiu posteriormente manter a série, mas também publicar
parcela do lucro da empresa. Em vez disso, o aumento

Revista da sociedade brasileira de economia política 55


38 / junho 2014
a medida alternativa a ela que considera todos os trabalha-
dores do setor privado.
20 [N.T.] CEO é a sigla de chief executive officer, ou seja, o
executivo que ocupa a mais alta posição na hierarquia da
empresa.
21 Havia aproximadamente 600 mil empregados 10% do
topo, aproximadamente o dobro do número de chefes
executivos.
22 Um estudo realizado pelo Congressional Budget Office
(2009, Tabela 1) indica que, em 2007, uma pessoa com
renda anual de pelo menos 2,4 vezes o salário mediano
estava entre os 10% do topo. Combinando isso com ganhos
diferenciais, em 2005, entre os 1%, 5% e 10% do topo,
calculado usando dados da Tabela 3 do mesmo estudo, eu
estimo que um lucro necessário de pelo menos 3,2 vezes
ou 6,7 vezes para formar o salário mediano dos 5% ou 1%
do topo, respectivamente.Vale ressaltar que os dados da
OES de 2007 indicam também que 2,4 foi o múltiplo médio
de salários necessários para inclusão nos 10% do topo. O
conjunto de dados da OES indica ainda que US$ 171.680,00
foi 5,5 vezes o salário médio anual em 2007. Considerando
que 5,5 é cerca de dois terços do caminho entre os 5% e
1% do topo mais altos a partir do estudo do Congressional
Budget Office, isto sugere que os ganhos de US$ 171.680,00
provavelmente colocam a pessoa nos 2% ou 3% mais altos
de todos os assalariados.
23 A parcela do total de salários recebidos pelo topo 10%
dos funcionários de gestão é o seu múltiplo médio de taxa
de salário (na primeira linha da tabela) vezes a sua percen-
tagem do emprego total. A tabela assume que sua quota
de emprego total era uma constante 0,45%. Para calcular
sua quota de produção total, eu multipliquei sua parte
dos salários em 61%, o valor médio de remuneração de
empregados em percentagem do valor acrescentado líquido
no setor total corporativo dos EUA entre 1970 e 2007 (ver
Figura 5).

56
A insustentável leveza do ter: crédito e
consumismo no Brasil
HUGO CHAVES B. Ferreira
João Policaporpo R. Lima
A insustentável leveza do ter:
crédito e consumismo no Brasil

Resumo

O
contexto brasileiro pós-abertura comercial demonstra uma
preocupante “falência” individual, fruto do descontrole de
muitos indivíduos ao acompanharem o padrão de consumo
das elites. Não bastasse a cultura do consumo mimético aos moldes dos
países centrais, há que se considerar que a persistência capitalista pelo
consumismo gera externalidades positivas e negativas: positivas porque
a pessoa se sentirá realizada por fazer parte do “seleto” rol de pessoas
diferenciadas das demais; negativas por gerar um sentimento de im-
potência pela não aquisição do desejo ou por resultar em situações
delicadas de comprometimento financeiro. No sentido de lidar com essa
impotência, o capital financeirizado cria constantemente estímulos para
a obtenção de crédito ao consumo. No entanto, este crédito está camu-
flado em taxas de juros muitas vezes exorbitantes, raramente percebidas
pelo consumidor de baixa renda. Com isso, as instituições financeiras
Hugo Chaves B. incitam ao endividamento, o qual acaba se tornando um ciclo vicioso,
Ferreira
Mestre em Economia pelo
haja vista que pode ser pago com um novo empréstimo. Essa lógica
PIMES/UFPE. circular cria um mercado altamente rentável às instituições financeiras,
as quais se dedicam a explorar cada vez mais o limite do endividamen-
João Policarpo R. to da população. Define-se assim o foco principal deste artigo: a outra
Lima
Ph. D. Professor do Depto de face do consumo implícita e inconsequentemente induzido a popu-
Economia/PIMES da UFPE e
pesquisador do CNPq. lações pobres a partir da recriação de seus estilos de vida em função
do sentimento de status e de equiparação aos se tornar semirreal, e leva seus movimentos a ser
hábitos de consumo típicos das classes de renda tão livres como insignificantes. (Kundera, 1999,
mais elevada. p.11)

Palavras-chave: Consumismo; endividamento; Kundera explora a ideia de que o “ser”, ou seja,


financeirização. a vida em essência de cada pessoa está im-
pregnada de uma “leveza insustentável”. Dessa
Classificação JEL: G29.
forma, a vida parece ser insignificante e, por
consequência, as decisões também não impor-
1. Introdução tam, não prendem as pessoas a nada, logo são
O que escolher, então? O peso ou a leveza? leves porque não pesam, não representam um
(Milan Kundera) peso para o ser. No entanto, a aparente insig-
nificância das decisões e das atitudes do ser é
Uma obra-prima da literatura universal serviu insustentável, no sentido de ser insuportável, ou
de motivação para balizar o tema e o conteúdo ainda, não tolerável. Daí a ideia de insustentá-
deste trabalho. A insustentável leveza do ser, do vel leveza do ser, ou seja, não é possível não dar
escritor tcheco Milan Kundera, dedica-se a reve- importância às decisões e às atitudes tomadas
lar como as pessoas encaram a problemática da ao longo da vida.
liberdade frente a questões existencialistas.
Para explicar esse contraditório entre peso
A dúvida posta pelo escritor é sobre o significa- e leveza, Kundera se reporta ao filósofo pré-
do das relações amorosas, pois -socrático Parmênides quando explicara sobre
o mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, o fato de que o universo está dividido em pares
comprime-nos contra o chão. Na poesia amoro- de contrários, tais como quente/frio, grosso/
sa de todos os séculos, porém, a mulher deseja fino, ser/não-ser e, também, leve/pesado. Se tudo
receber o fardo do corpo masculino. O mais possui seu imediato oposto, existe, portanto,
pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo
um polo positivo e um negativo, mas, no caso
a imagem da realização vital mais intensa.
da discussão sobre leveza e peso, qual dos dois
[Continua sua introdução dizendo que,] em é o polo positivo? O grego afirmou que o peso é
compensação, a ausência total de fardo leva o ser negativo, o tcheco deixou a interrogação de que
humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o “a contradição peso/leve é a mais misteriosa e
a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a
ambígua de todas as contradições”. (ibidem, p.11)

Revista da sociedade brasileira de economia política 59


38 / junho 2014
Essa mesma ambiguidade entre peso e leveza negativo como afirmava Parmênides, ainda que
foi aqui adaptada para o lado econômico de este não se referisse a aspectos econômicos, e
modo a investigar se, de fato, o consumo eleva- um comprometimento do bem-estar financeiro
do, em relação aos ganhos, das classes de baixa das pessoas para com suas atitudes consumistas.
renda deve ser encarado como algo leve, simples A situação vivida pelo Brasil pós-abertura
e essencial para alcançar a felicidade material, comercial poderia ser classificada como uma es-
supondo esse ser o lado positivo pregado pelo pécie de intensificação dos padrões de consumo
capitalismo e seu modelo neoliberal, ou pesado herdados e adaptados dos países desenvolvidos,
no sentido de que comprime o orçamento, a a partir do momento em que o mercado possi-
renda, o bem-estar das pessoas e, consequente- bilitou – entenda-se criou – mecanismos para
mente, contribui para manter a desigualdade. as classes de baixa renda terem acesso a bens de
Assim sendo, a adaptação do tema da obra-pri- consumo típicos das classes altas. O contexto
ma de Milan Kundera parece adequar-se sobre- brasileiro pós-abertura comercial demonstra
maneira à realidade vivenciada no Brasil, sendo uma preocupante “falência” individual, fruto
bastante atual discutir os rumos da sociedade do descontrole de muitos indivíduos ao acom-
de consumo no país pós-abertura comercial, panharem o padrão de consumo das elites e,
bem como suas externalidades1 para o bem-es- inevitavelmente, sentirem-se mais importantes
tar das pessoas. A ideia de que consumir é algo e superiores do que os outros integrantes de
natural, “leve” e essencial parece sacrificar a real uma mesma classe.
soberania e o domínio das pessoas em virtude Não bastasse a cultura do consumo mimético
da propaganda, da força da mídia e das inúme- aos moldes dos países centrais, há que se con-
ras facilidades oferecidas pelo mercado. siderar que o consumismo gera externalidades
Daí a argumentação sobre a insustentável positivas e negativas: positivas porque a pessoa
leveza do ter, ou seja, de que é impossível não se sentirá realizada por fazer parte do “seleto”
dar importância ao consumo exacerbado nas rol de pessoas diferenciadas das demais; nega-
sociedades capitalistas, pois não se sustenta a tivas por gerar um sentimento de impotência
2
hipótese de que o consumismo, ou o ter, é algo pela não aquisição do desejo ou por resultar em
simples, natural, leve e sem importância quanto situações delicadas de comprometimento finan-
a seus efeitos para o bem-estar, ainda que ceiro (orçamentário).
proporcionem satisfação e mascarem a utilidade No sentido de lidar com essa impotência, o
dos bens. Do contrário, existe sim um peso, capital financeirizado cria constantemente

60
estímulos para a obtenção de crédito ao con- 2. Crítica à razão consumista
sumo. No entanto, este crédito está camuflado Para explicar e/ou justificar os atuais padrões
em taxas de juros muitas vezes exorbitantes, de consum(ism)o no Brasil e, ao mesmo tem-
raramente percebidas pelo consumidor de po, embasar uma crítica à razão econômica e
baixa renda em termos anualizados. Com isso, consumista dominante, há uma vasta literatura,
as instituições financeiras e as empresas que inclusive interdisciplinar. Com isso, pode-se
produzem os bens de consumo incitam ao construir uma lógica minimamente verossímil
endividamento, o qual acaba se tornando um sobre os fundamentos econômicos e socioló-
ciclo vicioso, tendo em conta que pode ser pago gicos que explicam o estímulo por parte da
com um novo empréstimo. Essa lógica circular população de baixa renda ao buscar diferentes
cria um mercado altamente rentável às institui- modalidades de crédito, acelerando os níveis de
ções financeiras, as quais se dedicam a explorar consumo, endividamento e inadimplência. Essa
cada vez mais o limite do endividamento da cesta conceitual serviu para compor o quadro
população. teórico e para esboçar uma síntese que trate das
De fato, é importante deixar claro o foco princi- implicações e/ou consequências decorrentes de
pal deste artigo: mostrar o consumo não como o uma suposta atitude consumista brasileira.
mais importante componente do Produto inter- 2.1. Visões do consumismo: Galbraith,
no bruto (PIB) e leitmotiv do desenvolvimento Bourdieu e Furtado
econômico, mas sua outra face, a do consumis-
No que tange ao consumismo, há na literatura
mo, em que o consumo é implícita e inconse-
argumentos de economistas e/ou sociólogos,
quentemente induzido a populações pobres, a
por exemplo, John Kenneth Galbraith, Pierre
partir da recriação de seus estilos de vida em
Bourdieu e Celso Furtado.
função do sentimento de status e de equipara-
ção aos hábitos de consumo típicos das classes Galbraith dedicou-se a analisar a chamada
de renda mais elevada, através do recurso ao sociedade afluente, a qual está pautada no
endividamento. Ao fazer isso, pretende contri- consumismo como resultante de um desejo
buir para mostrar a apropriação crescente de manufaturado e disfarçado sob a forma de bens
ganhos pelo capital financeiro num momento adquiridos. Bourdieu, por sua vez, desafiou
do capitalismo em que a financeirização afirma- a validade de inúmeros conceitos e modelos
-se cada vez mais.3 normativos ao propor a “gênese social dos sis-
temas de preferências” como forma de justificar

Revista da sociedade brasileira de economia política 61


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a tendência de os indivíduos consumirem para Uma importante leitura da obra de Galbraith a
se distinguirem socialmente. Por fim, mas não respeito do crédito e do processo de endivida-
menos importante, Furtado foi um forte críti- mento afirma que
co do chamado “mito do desenvolvimento” e para aqueles que carecem de meios, é um passo
da adoção de padrões de consumo incompatí- curto entre o estímulo do desejo pela publicida-
veis para a realidade brasileira. Alguns desses de e a sua realização através do crédito. A relação
autores, considerados mais pertinentes ao tema, entre emulação e endividamento é ainda mais
terão suas ideias sintetizadas a seguir. direta: toda comunidade tem indivíduos que
divergem enormemente quanto à sua capacida-
2.2. Galbraith e a sociedade afluente de de despender dinheiro e o exemplo dos que
John Kenneth Galbraith articula seus comentá- podem pagar produz um efeito imediato sobre
aqueles que não podem; para acompanhar os
rios em torno da criação de necessidades para
primeiros, os últimos precisam se endividar.
o consumo. Em outras palavras, na medida em
(Cohen, 2002, p.75)
que uma sociedade torna-se mais afluente, o
mercado torna-se responsável pela criação de Assim, a população de baixa renda, maior
desejos de consumo mediante a abundância de usuária dos mecanismos de crédito, seleciona
propaganda e de publicidade, ou seja, “a produ- adversamente inúmeras alternativas que levam
ção apenas preenche um vazio que ela própria ao endividamento, ciclicamente ao longo do
criou”. (Galbraith, 1974, p.58) Como resultado, o tempo, comprometendo seus recursos finan-
consumidor encantado pela variedade de bens ceiros e distorcendo suas ideias de bem-estar e
e de condições de pagamento busca suporte felicidade.
financeiro, no sentido de que 2.3. Bourdieu e o consumismo como distin-
a sociedade afluente aumenta suas necessidades ção social
[…] conseguiu transferir o sentido de urgência Pierre Bourdieu chama a atenção para a corre-
em ir ao encontro das necessidades do consu-
lação dos hábitos de consumo, ao que chamou
midor antes sentidas num mundo em que mais
de “gênese social dos sistemas de preferências”.
produção significava mais alimentos para quem
tinha fome, mais roupas para quem tinha frio Assim, Bourdieu contribuiu para uma crítica
e mais casas para quem não tinha onde morar, à ciência econômica ao introduzir uma nova
para um mundo em que o aumento da produção forma de leitura da racionalidade do homo
satisfaz a ânsia por automóveis mais elegantes, oeconomicus.
alimentos mais exóticos, roupas mais eróticas,
Em outras palavras, Bourdieu defende que,
diversões mais sofisticadas […]. (ibidem, p.56)
para entender as relações de consumo em

62
sociedade, seria necessário analisar o meio em um parque industrial em proporções menores,
que cada indivíduo fora criado e educado. É mas que possibilitasse replicar a capacidade ins-
nesse ínterim que se renovam o conhecimento talada dos mercados desenvolvidos, ou seja,
e a pesquisa acadêmica, fazendo interagir na prática, essa miniaturização assume a forma
Economia e Sociologia, de modo a de instalação no país em questão de uma série
abandonar a dicotomia do econômico e do não- de subsidiárias de empresas dos países cêntricos,
-econômico que proíbe apreender a ciência das o que reforça a tendência para reprodução de
práticas “econômicas” como caso particular de padrões de consumo de sociedades de muito mais
uma ciência capaz de tratar todas as práticas, in- elevado nível de renda média. (Furtado, 1996, p.25)
clusive aquelas que se reivindicam desinteressa- Quando de sua crítica à adoção de padrões de
das ou gratuitas, portanto libertadas da “econo-
consumo incompatíveis com a realidade brasilei-
mia” como práticas econômicas, orientadas para
ra, Furtado nitidamente denuncia o mimetismo
a maximização do lucro material ou simbólico.
(Bourdieu, 1980, p.209)
do consumo aos moldes dos países desenvolvi-
dos, no sentido de que
A discussão sociológica de Bourdieu teve como
o dinamismo econômico no centro do sistema
foco principal o desafio de desvelar os meca-
decorre do fluxo de novos produtos e da elevação
nismos de reprodução social, os quais acabam
dos salários reais que permite a expansão do
por legitimar formas de dominação através consumo de massa. Em contraste, o capitalismo
da violência simbólica, as quais se expressam periférico engendra o mimetismo cultural e re-
por meio dos gostos de classe e estilos de vida, quer permanente concentração de renda a fim de
gerando, portanto, a distinção social.4 que as minorias possam reproduzir as formas de
consumo dos países cêntricos. (ibidem, p.45)
2.4. Furtado e o padrão de consumo
brasileiro É imprescindível esclarecer, nos limites deste
artigo, que as referências feitas por Furtado em
Celso Furtado, entre outras coisas, argumenta-
relação ao consumo dizem respeito aos padrões
va que as políticas governamentais no Brasil,
adotados por países desenvolvidos e imitados
apoiadas pela conjuntura econômica, possibi-
pelos países subdesenvolvidos. No entanto,
litaram um cenário favorável para fundar as
sugere que, mesmo dentro de um país como o
bases da industrialização, ainda que tardia.
Brasil, testemunha-se o consumo mimético em
No entanto, a crítica furtadiana repousa na função de as classes mais pobres tentarem imi-
forma como inúmeras empresas estrangeiras tar os padrões das classes mais abastadas, haja
adentraram o país com o objetivo de introduzir vista o acesso a inúmeras alternativas de crédito.

Revista da sociedade brasileira de economia política 63


38 / junho 2014
2.5. Síntese e correlações das abordagens corresponde à irracionalidade do consumidor,
teóricas que incorre em sucessíveis endividamentos sem
discernir sobre as consequências de seus atos;
Mais poderia ser dito, não fossem as limitações
de espaço, com base na literatura econômica e/ iv. A característica conservadora de preservar o
ou sociológica, sobre o consumismo, bem como status quo das classes dominantes aponta para
sobre o papel do crédito e suas repercussões um mecanismo culturalmente estabelecido de
sobre as famílias de baixa renda. Para o escopo manutenção das desigualdades.
do presente trabalho, a breve revisão de literatu- É, portanto, dentro da lógica de que o processo
ra feita acima permite perceber os condicionan- de acumulação capitalista desenvolve-se com o
tes do que é entendido por consumismo e suas intuito de manter as desigualdades, mediante
vinculações miméticas e como o crédito induz o estímulo ao crédito para consumo, que, por
as famílias de menores posses ao endividamento questões de imaturidade e irracionalidade,
no afã de diferenciação. surge o endividamento da população de bai-
Das diversas abordagens visitadas, percebe-se xa renda. Isso não se limita ao fato de que as
que os atuais padrões de consumo sugerem classes de baixa renda simplesmente imitam os
semelhanças: padrões de consumo daquelas com os maiores
rendimentos. Na verdade, o próprio sistema
i. Na medida em que uma sociedade torna-se
econômico encarrega-se de criar a distinção
mais afluente, o mercado torna-se responsável
ou diferenciação social para que sempre haja
pela criação de desejos de consumo mediante a
a manutenção das desigualdades e o desejo de
abundância de publicidade; (Galbraith, 1974)
muitos em superá-las.
ii. A racionalidade dos consumidores é influen-
Assim, a população de baixa renda, maior usu-
ciada pelas condições e alternativas postas pelo
ária das políticas creditícias, seleciona adversa-
mercado como forma de favorecer a oportuni-
mente inúmeras alternativas de financiamento,
dade individual de crescimento, satisfação e
com as quais se endividará cumulativamente ao
distinção social; (Bourdieu, 2008)
longo do tempo, comprometendo renda e detur-
iii. “As forças que em nossa civilização engen- pando as ideias de bem-estar e felicidade.
dram a difusão da racionalidade conduzem
concomitantemente à destruição da capacida-
de criadora do homem, à sua desumanização”
(Furtado, 1978, p.141). Dita desumanização

64
3. Mensurando o consumismo 3.2. Afinal, quem compõe a chamada população
3.1. Como identificar os indícios do consu- de baixa renda?
mismo brasileiro? De acordo com a nomenclatura adotada pelo
Para essa identificação, providenciou-se a con- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
sulta a bases de dados e informações primárias (IBGE), as classes de rendimento monetário e
e secundárias: não-monetário mensal familiar são definidas
periodicamente em termos de salários-mínimos.
• Dados referentes à concessão de crédito (Ba-
Este critério sugere uma divisão da popula-
cen; Ipea; INSS) por faixa de renda familiar,
ção em grupamentos, conforme a Tabela 1. O
valor médio dos empréstimos e prazo para
salário-mínimo (SM) vigente na data referencial
quitação, que, aliados a pesquisas qualitativas
da pesquisa (janeiro de 2009) era de R$ 415,00.
e quantitativas, sugeriram um cenário desfa-
Logo, a população de baixa renda é identificada
vorável sobre a finalidade do crédito, tanto de
como aquela pertencente às classes C, D e E.
natureza pessoal quanto consignada;
Apesar de não existir uma definição comum
• Os índices de inadimplência e endividamento a respeito dos consumidores de baixa renda,
e o volume das operações de crédito a pessoa diversos autores e institutos de pesquisa concor-
física, que sugeriram que o discurso de estabi- dam com o Critério Brasil (Barki, 2005; Praha-
lização e posterior redução da inadimplência lad, 2001;), o qual foi levado em consideração
não pode ser definido apenas por variáveis como referencial quantitativo e metodológico
quantificáveis;5 para a leitura das Pesquisas de Orçamentos
• Dados relativos às consultas aos serviços USE- Familiares (POFs).
CHEQUE e SPC, que evidenciam a incitação ao Com base nesta informação, as classes de baixa
consumo em datas comerciais, fato este intuído renda quando da análise dos dados seriam
a partir dos índices de inadimplência do Serasa; aquelas que auferiram rendimentos de até
• As Pesquisas de Orçamento Familiar do IBGE 03 salários-mínimos, o que resulta no limite
serviram de referência para calcular o compro- superior de R$ 1.245,00 (POF 2008-2009). Ainda
metimento de renda das classes mais baixas, que haja discrepâncias relativas à necessidade
bem como avaliar a evolução de seus padrões de de deflacionar preços e calcular os salários reais,
consumo mediante análise comparativa entre esse critério foi utilizado intuitivamente ape-
rendimentos e despesas. nas para efeito de comparação entre as POFs.
Desconsiderou-se, ainda, o fato de a classe C

Revista da sociedade brasileira de economia política 65


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Tabela 1. Critério de Classificação Econômica Brasil 2011

Renda Média Familiar Renda Média Familiar


Classe Classe
(Valor bruto em R$) (Valor bruto em R$)
A1 11.480,00 C1 1.459,00
A2 8.295,00 C2 962,00
B1 4.754,00 D 680,00
B2 2.656,00 E 415,00
Fonte: Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP).

ser subdividida em C1 e C2. Assim, a título de Face à cultura do consumismo, já apontada


padronizar os cálculos e facilitar a interpretação por Furtado (1996) como impregnada no Brasil,
cruzada de duas fontes de dados com alto grau intensificada desde o início da década de 1990,7
de reconhecimento público e privado, tomou-se cada vez mais famílias de baixa renda buscaram
a média das classes C1 e C2, segundo propos- aumentar seus padrões de consumo para satis-
to pela Associação Brasileira de Empresas de fazer suas necessidades. Contam para tal com o
Pesquisa (ABEP), encontrando-se a renda bruta auxílio de variados instrumentos de crédito. Se-
média familiar de R$ 1.210,50, valor este mui- gundo estudo realizado pelo Banco Nacional de
to próximo ao segundo estrato mais baixo do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
6
IBGE (de 02 a 03 salários-mínimos). é possível citar alternativas tais como crédito ao
consumidor, cartões de crédito, cartões de lojas
varejistas, crédito junto a fornecedores, dentre
4. A insustentável leveza do ter
outros8 não diretamente relacionados ao sistema
Antes de explorar os dados que indicam a
financeiro formal. (Nichter, 2002, p.7)
exacerbação de padrões que podem ser consi-
derados como consumistas, vale observar que Além dessas, o estudo citado confirma também
o fenômeno torna-se mais “pesado” para as as novas estratégias encontradas pelo sistema
famílias de menor poder aquisitivo em vista das financeiro para estimular o crescimento do
desigualdades de renda historicamente consti- mercado de crédito brasileiro, quais sejam: foco
tuídas no Brasil. Foge ao escopo deste trabalho na classe de baixa renda; desenvolver produtos
explorá-las, mas cabe o devido registro. customizados às necessidades dos clientes;
promover os produtos através de estratégias
de marketing; explorar canais alternativos

66
de distribuição; construir uma estratégia De fato, a última década ficou marcada por
sustentável de longo prazo. (ibidem, p.11) um cenário de alto crescimento do crédito no
Brasil, especialmente a partir da regulamenta-
As informações empíricas para indicar esse ce-
ção da modalidade consignada em 2003 e de sua
nário foram divididas em três seções: a primeira
efetiva oferta ao mercado em meados de 2004.
dedicada a investigar a evolução do mercado
Supõe-se que o aumento desproporcional em
de crédito brasileiro (4.1); a segunda, focada em
relação aos anos anteriores seja decorrência de
examinar os graus de endividamento e inadim-
um duplo caráter estimulante desse tipo de cré-
plência associados aos padrões de consumo da
dito. Por parte das instituições financeiras, essa
classe de baixa renda (4.2); e a terceira, como
modalidade apresenta maior segurança contra a
decorrência das duas primeiras, concebida para
inadimplência, pois a devolução do saldo é feita
sugerir o peso resultante, ou as externalidades
diretamente através do débito em folha de paga-
negativas do consumismo no Brasil (4.3).
mento. De outra parte, os tomadores de crédito
4.1. O início da insustentável leveza do ter
consignado têm à disposição um mecanismo
É inegável que a economia brasileira vive nos que oferece os menores juros do mercado.
últimos anos uma situação mais confortável em
Além disso, aposentados e pensionistas também
relação à estabilidade econômica, com maiores
puderam obter acesso a este mecanismo através
taxas de crescimento do PIB e menor nível de
de suas contas bancárias vinculadas ao INSS.
inflação (em relação aos anos 1980 e início dos
Segundo os últimos dados relativos ao ano de
anos 1990). Esse cenário estimulou a demanda e
2011, os beneficiários do INSS que recebem até
a oferta de crédito a partir do Plano Real.
três salários mínimos responderam por mais
O mercado de crédito ao final de 2012 represen- de 70% do consignado com empréstimo médio
tou 53,48% do PIB brasileiro. O Brasil movimen- ponderado de R$ 2.731,79. Do total de contratos,
tou em 2012 R$ 2,36 trilhões em créditos, sendo pessoas que recebem apenas um salário
R$ 724 bilhões (30,68%) destinados apenas a pes- mínimo representaram 57,57%, solicitando
soas físicas. Importante observar que o cenário empréstimo médio de R$ 1.212,63. No que tange
imediatamente posterior à chegada do presiden- ao pagamento, quase 90% dos contratos são
te Lula ao poder em 2003 registrou aumentos no parcelados entre 49 e 60 meses. Em novembro
crédito para pessoas físicas na ordem de 24,20%, de 2012, em se considerando o total de
42,40% e 46,11%, respectivamente, nos três pri- operações de empréstimo pessoal e cartão de
meiros anos de seu mandato, segundo a Federa- crédito, 384.952 operações foram efetuadas por
ção Brasileira de Bancos (FEBRABAN). pessoas com renda de até um salário mínimo.

Revista da sociedade brasileira de economia política 67


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Esses aposentados e pensionistas responderam crédito, tanto que a curva se desloca dos outros
por R$ 1,05 bilhão em operações, contratando, grupos. Porém, a partir de abril de 2010, a
em média, R$ 2.731,80 em empréstimo pessoal. demanda cresceu muito a ponto de ultrapassar
(INSS) o comportamento geral das outras faixas e au-
mentar cerca de 80% em apenas um ano e meio.
4.1.1. Comportamento do Indicador de Demanda
por Crédito Por seu turno, o ano de 2012 revelou índice mé-
dio de 165,00 na demanda por crédito da popu-
Essa variável, segundo os dados da Serasa
lação que ganha até R$ 500,00, e média de 177,2
Experian, apresenta flutuações, ao lado de uma
no último trimestre (época em que começam as
tendência crescente, particularmente para as
compras de final de ano), conforme observado
faixas de renda mais baixas (Gráfico 01). En-
no grande descolamento dessa curva em relação
tretanto, o comportamento que mais chama
às demais; ao passo que a média de todas as
a atenção diz respeito ao início do segundo
outras faixas de renda, em conjunto, revelou
semestre de 2009. De julho de 2009 a janeiro
média de “apenas” 121,2. Estes dados significam
de 2010, os consumidores com renda de até R$
uma diferença de 36% na demanda por crédito
500,00 demandaram uma quantidade menor de
da faixa de consumidores de menor renda.10

Gráfico 01. Indicador Serasa Experian da Demanda do Consumidor por Crédito

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Serasa Experian.

68
4.1.2. Comportamento do Indicador de Qualidade em função do rápido aumento do endividamento
do Crédito de parte dos consumidores mais ativos no cré-
dito, verificado a partir de 2007, agravado pelas
Outro indicador a ser observado é a qualidade medidas de aperto monetário (elevação do IOF
do crédito, o qual demonstra que o consumidor e da taxa básica de juros) executado em grande
está reduzindo suas expectativas (Gráfico 02). parte de 2008. (Serasa Experian, 2009)

Por se tratar de um indicador criado recente- Note-se que os indivíduos com renda mensal
mente, os dados disponíveis estão limitados de até R$500,00 registram o pior índice (75,9)
ao período de 2007 a 2012 (apenas o primeiro em 2011 e 2012 e com recuperação pouco signi-
trimestre). Importante salientar que as três fai- ficativa. Este fato revela maior endividamento
xas de rendimento consideradas neste indicador de risco ou maior propensão a endividar-se.
representam 87% da população mapeada pelo Em outras palavras, quanto menor o indicador,
Serasa mensalmente. maior será o risco de inadimplência.
Segundo os analistas da Serasa Experian, a 4.2.1. Hábitos de consumo da classe de baixa renda
qualidade de crédito começou a apresentar uma
Outra maneira de perceber o consumismo é o
tendência de queda
exame das Pesquisas de Orçamentos Familiares

Gráfico 02. Indicador Serasa Experian de Qualidade do Crédito

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Serasa Experian.

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 69


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(IBGE), que servem de base para demonstrar a receberam de 2 a 3 SMs; e de 19,12% para 33,30%
evolução e as mudanças ocorridas na estrutura na classe com rendimentos de 3 a 5 SMs.
de rendimentos e despesas das famílias. Apesar
O item que mais impactou as despesas da baixa
de focar os grandes centros urbanos brasileiros,
renda foi o aluguel, o qual respondeu em 2003 e
é possível esboçar como o consumo foi prioriza-
2009 por quase metade dos gastos. Em segundo
do por cada classe de renda familiar e, portan-
lugar, os dispêndios com “serviços e taxas”, ape-
to, analisar os hábitos da baixa renda.
sar de terem sofrido pouca alteração entre 1996 e
As tabelas a seguir compararam a distribuição 2009, aumentaram drasticamente em relação ao
percentual da despesa média mensal familiar percentual registrado antes do início da década
por classe de rendimento nas quatro POFs em de 1990. Este item refere-se aos serviços públicos
questão. As despesas correntes são subdividi- e privados oferecidos à população, tais como
das em despesas de consumo, outras despesas energia elétrica, telefones, gás, água e esgoto e
correntes, aumento do ativo e diminuição do outros.11 Salienta-se que apenas as duas POFs
passivo. Por sua vez, as despesas de consumo mais recentes segmentaram esses gastos, não
compreendem os gastos com alimentação; habi- necessariamente prejudicando sua leitura. Intui-
tação; vestuário; transporte; higiene e cuidados tivamente, seria plausível aceitar que grande
pessoais; assistência à saúde; educação; recrea- parte dos gastos com “serviços e taxas” esteja
ção e cultura; fumo; serviços pessoais; e despe- relacionada de forma crescente à aquisição de
sas diversas. eletrodomésticos.12
Tendo em conta os propósitos desta investiga- Explica-se: na medida em que cresce a aquisi-
ção, enfatizam-se aqui as interpretações acerca ção de aparelhos domésticos, naturalmente au-
das despesas com habitação e com diminuição mentam os dispêndios com energia, gás, água e
do passivo, uma vez que se entende que este- telefone fixo. Portanto,
jam correlacionadas aos padrões de consumo alguns serviços públicos e privados utilizados
exacerbado, diante dos ganhos, da população de pela população, considerados como essenciais,
baixa renda. dada a localidade do domicílio, podem significa-
tivamente não somente aumentar o custo de vida
a) Despesas com habitação
dos consumidores mais pobres, mas também
No que concerne à habitação, percebe-se que reduzir sua qualidade de vida. (ibidem, p.23)
os gastos praticamente dobraram, passando
De acordo com pesquisa realizada pelo IPEA
de 19,74% para 37,20% na classe que recebia até
sobre a renda e a despesa familiar per capita no
2 SMs; de 19,57% para 36,50% nas famílias que

70
Brasil segundo a POF 2002-2003, aqueles que re- sejam necessárias para a utilização de aparelhos
ceberam até 2,5 SMs e entre 2,5 e 5 SMs despen- domésticos, tais como máquinas de lavar roupa
deram respectivamente 10,96% e 9,70% da renda e pratos.
em aparelhos domésticos, as maiores porcenta-
Isso significou gastos per capita na ordem
gens dentre todas as classes analisadas.
de 36,32% (até 2,5 SMs) e de 35,65% (entre 2,5
O que chamou a atenção dos pesquisadores foi e 5 SMs) apenas com os serviços públicos e
o fato de esses gastos aproximarem-se daqueles privados em habitação. Percebe-se ainda que
com energia (12,71% e 12,54%) e gás (12,58% e os gastos das famílias na classe de menor
9,32%). (Almeida & Freitas, 2006) Acrescenta- renda com o item “outras despesas” foi
se a essa interpretação as despesas com água e significativamente superior (3,75%) às das outras
esgoto (5,96% e 5,25%), haja vista que também classes. (ibidem, 2006)

Tabela 02. Distribuição % das despesas mensais familiares com habitação


Até
Até22SMs
SMs 2 a2 a3 3SMs
SMs 3 a35aSMs
5 SMs
1988 1996 2003 2009 1988 1996 2003 2009 1988 1996 2003 2009
Despesa total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
Despesas correntes 93,94 95,05 97,15 96,90 95,78 92,90 97,09 96,40 93,30 91,56 96,16 95,00
Despesas de consumo 91,21 93,07 94,60 93,90 92,04 89,95 93,35 92,00 88,44 87,58 91,62 88,70
Habitação 19,74 25,64 37,15 37,20 19,57 23,72 36,77 36,50 19,12 24,18 35,88 33,30
Aluguel 4,25 5,48 17,27 17,50 4,37 5,14 17,71 17,60 4,14 5,79 17,61 15,60
Serviços e taxas 5,48 9,15 8,93 8,90 4,72 8,59 8,90 9,10 4,63 8,28 9,10 8,60
Energia elétrica n/d n/d 3,02 3,50 n/d n/d 3,02 3,40 n/d n/d 3,13 3,10
Telefone fixo n/d n/d 0,91 0,70 n/d n/d 1,41 1,20 n/d n/d 1,90 1,50
Telefone celular n/d n/d 0,16 0,80 n/d n/d 0,20 0,90 n/d n/d 0,35 1,00
Gás doméstico n/d n/d 3,18 2,10 n/d n/d 2,72 1,70 n/d n/d 2,20 1,20
Água e esgoto n/d n/d 1,46 1,60 n/d n/d 1,41 1,50 n/d n/d 1,27 1,30
Outros n/d n/d 0,20 0,10 n/d n/d 0,15 0,10 n/d n/d 0,26 0,20
Manutenção do lar 2,16 2,82 4,18 3,50 1,88 2,24 3,27 3,20 1,55 1,73 2,92 3,10
Artigos de limpeza 1,55 1,14 1,25 1,10 1,37 1,13 1,21 0,90 1,21 1,08 0,99 0,80
Mobiliários e artigos do lar 2,69 1,95 2,55 2,50 3,07 2,26 2,62 2,20 3,18 2,73 2,49 2,00
Eletrodomésticos 1,82 4,54 2,62 3,20 2,60 3,73 2,69 2,90 2,97 3,91 2,38 2,60
Consertos de artigos do lar 1,77 0,56 0,35 0,30 1,57 0,62 0,37 0,30 1,45 0,65 0,38 0,30

Até
Até222SMs
Até SMs
SMs 2 2a a3 3SMs
SMs 3 a3 5aSMs
5 SMs
1988 1996 2003 2009 1988 1996 2003 2009 1988 1996 2003 2009
Despesa total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
Despesas correntes 93,94 95,05 97,15 96,90 95,78 92,90 97,09 96,40 93,30 91,56 96,16 95,00
Diminuição do passivo 0,24 0,48 0,62 0,90 0,53 0,95 0,72 1,30 0,59 0,84 1,05 1,80
Empréstimo e carnê 0,07 0,07 0,39 0,70 0,15 0,13 0,35 1,00 0,23 0,09 0,43 1,20
Prestação de imóvel 0,17 0,41 0,23 0,20 0,38 0,82 0,37 0,30 0,36 0,75 0,62 0,50
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

Revista da sociedade brasileira de economia política 71


38 / junho 2014
Tabela 03. Distribuição das despesas per capita (monetária e não-monetária) com
habitação por classes de renda e no Brasil em 2002 e 2003
Itens (0–2,5)SM (2,5–5)SM (5–10)SM (10–25)SM (25–mais)SM BRASIL
Água e esgoto 5,96 5,25 4,12 2,96 1,36 3,25
energia 12,71 12,54 11,14 9,29 5,48 9,22
Gás 12,58 9,32 5,74 3,18 1,46 4,69
Telefone fixo 5,07 8,54 10,81 10,54 6,82 8,84
Outras despesas 3,75 1,48 0,80 1,60 2,23 1,74
Outros serviços de habitação ou públicos 3,45 9,98 11,85 13,63 30,02 16,98
Manutenção do lar (pequenos consertos) 10,42 8,97 8,15 6,25 6,37 7,35
Construção (mão-de-obra e material) 6,12 7,50 9,90 9,57 6,48 8,19
Manutenção e consertos (eletrodomésticos + móveis) 1,46 1,58 1,33 1,38 1,00 1,28
Aluguel de eletrodomésticos ou móveis 0,01 0,01 0,01 0,01 0,01 0,01
Aluguel, condomínio e impostos da propriedade 17,74 15,64 16,40 20,20 18,63 18,11
Aquisição de aparelhos – uso doméstico 10,96 9,70 9,07 7,87 4,76 7,66
Aquisição de outros aparelhos 0,74 0,90 1,13 1,05 0,89 0,98
Aquisição de móveis 6,91 6,66 5,60 4,82 3,57 5,01
Aquisição itens para o lar (decoração) 0,42 0,44 0,47 0,54 0,65 0,54
Serviços domésticos terceirizados 1,71 1,61 3,48 7,12 10,27 6,16
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

Intui-se daí que a população de baixa renda primeiro refere-se ao período entre 1988 e 1996,
não consegue visualizar de maneira racional o segundo, em relação aos resultados de 2003 e
as consequências de seus hábitos de consumo, 2009, associado a uma aparente exacerbação dos
correndo o risco de elevar demasiadamente as hábitos de consumo das famílias.
contas mensais fixas e essenciais para suas fa- No que tange ao primeiro período, a diminui-
mílias, fato que pode ser entendido a partir das ção do passivo dobrou nas classes com rendi-
considerações de Galbraith e Furtado citadas mento de até 2 SMs devido às despesas com
anteriormente. “prestação de imóvel”, as quais passaram de
b) Despesas com diminuição do passivo13 modestos 0,17% (1988) para 0,41% (1996), ao passo
que os dispêndios com “empréstimo e carnê”
Outra mudança significativa na estrutura de
permaneceram inalterados. Situação semelhante
consumo das famílias diz respeito ao desem-
foi verificada para as classes com rendimento
bolso relativo à diminuição do passivo, o qual é
entre 2 e 3 SMs.
subdividido em “empréstimo e carnê” e “pres-
tação de imóvel”. Observaram-se dois compor- Entretanto, o segundo período registra mudan-
tamentos distintos a serem interpretados: o ças de comportamento no padrão de consumo

72
Tabela 04. Distribuição percentual das despesas mensais familiares com diminuição do
passivo
Até 2SMs > 2 a 3 SMs > 3 a 5 SMs
1988 1996 2003 2009 1988 1996 2003 2009 1988 1996 2003 2009
Despesas total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Despesas correntes 93,94 95,05 97,15 96,90 95,78 92,90 97,09 96,40 93,30 91,56 96,16 95,00
Diminuição do passivo 0,24 0,48 0,62 0,90 0,53 0,95 0,72 1,30 0,59 0,84 1,05 1,80
Empréstimo e carnê 0,07 0,07 0,39 0,70 0,15 0.13 0,35 1,00 0,23 0,09 0,43 1,20
Prestação de imóvel 0,17 0,41 0,23 0,20 0,38 0,82 0,37 0,30 0.36 0,75 0,62 0,50
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

das famílias em relação à diminuição do pas- 186% no estrato de 2 a 3 SMs; e 179% para o
sivo que servem, no mínimo, de alerta. terceiro estrato.

As despesas com empréstimos pessoais e 4.2.2. Endividamento e inadimplência


carnê de mercadorias, as quais passaram
O cenário brasileiro do endividamento e da
praticamente 10 anos inalteradas nos dois
inadimplência possui dois comportamentos dis-
estratos mais baixos da população, diminuí-
tintos. Um relativo aos consumidores desorga-
ram de forma irrisória para o segundo estrato
nizados que acumularam dívidas por causa dos
e significativa para o terceiro, mas aumenta-
maiores prazos para quitação dos empréstimos;
ram drasticamente nas mensurações feitas em
outro, em referência aos consumidores que as-
2003 e 2009.
sociaram maior prazo à queda da taxa de juros.
Em 2003, para as famílias com rendimento de Este último comportamento é apontado como
até 2 SMs, essas despesas saltaram de 0,07% um dos responsáveis pelo aumento da demanda
para 0,39%, o que corresponde a um aumento por crédito consignado. (Serasa Experian, 2013)
de 457%. No estrato de 2 a 3 SMs, o aumento
A Serasa divulga mensalmente dados relativos
foi de 169%, ao passo que na terceira classe de
ao seu Indicador de Inadimplência do Consu-
rendimento a elevação equivaleu a 378%.
midor, uma espécie de termômetro para que
Por seu turno, o ano de 2009 manteve as ele- o mercado possa sentir as ações dos consumi-
vações dessas despesas em relação à pesquisa dores frente às alternativas creditícias dispo-
anterior com variações na ordem de 80% para nibilizadas. Dito indicador é subdividido em
as famílias com rendimento de até 2 SMs;

Revista da sociedade brasileira de economia política 73


38 / junho 2014
categorias, dentre elas o PEFIN e o REFIN. O Os crescimentos nas variações da inadimplência
PEFIN refere-se ao fluxo mensal de anotações do consumidor, em 2010, foram resultados do
de dívidas em atraso junto às financeiras, car- maior endividamento, evoluindo acima da expan-
são da renda pessoal; dos prazos mais longos de
tões de crédito e empresas não financeiras. Por
financiamento, que facilitou o acúmulo de dívi-
sua vez, o REFIN mede o fluxo mensal de ano-
das e pelos estímulos ao consumo, como parte do
tações de dívidas em atraso junto aos bancos. combate aos efeitos da crise global, nos primeiros
O gráfico deste indicador (Gráfico 04) está cons- três meses do ano. Além disso, o aumento da in-
flação contribuiu para reduzir o poder aquisitivo,
truído em base 100, ou seja, tomou-se a média
afetando a parte da renda destinada ao pagamen-
das anotações ao longo de todo o ano de 2009
to de dívidas. (Inadimplência..., 2011)
(área circulada) definindo-a como 100. A partir
daí, qualquer variação registrada refere-se a Para os otimistas, que acreditavam que o
uma comparação percentual em relação à média cenário não poderia ficar pior, a inadimplência
de 2009. Isto posto, ao analisar a série histórica dobrou em relação a 2009 na metade de 2011,
de 1999 até 2012, duas realidades bem distintas atingindo pico de 201,8 no mês de julho e média
são identificadas para cada variável. de 189 pontos. Para a Serasa,
essa alta reflete o maior endividamento do con-
PEFIN
sumidor, com o acúmulo de dívidas e o encare-
De janeiro de 1999 a dezembro de 2008, ou seja, cimento do crédito, em decorrência da política
ao longo de exatos 10 anos, a média desta cate- monetária para controle da inflação. (Serasa
goria de inadimplência foi de 91,6. Em se consi- Experian, 2011)
derando que, na mensuração relativa a janeiro Entretanto, de acordo com a Serasa, “os recuos re-
de 1999, o indicador marcou 75,6, percebe-se que gistrados nos primeiros meses do ano de 2011 dão
as oscilações na inadimplência variaram algo sinais de que a inadimplência está perdendo o
em torno de 15%. A única exceção registrada foi fôlego”. Três meses depois desses comentários, o
em maio de 2006, quando o indicador alcançou recorde de julho é alcançado. Apesar das expecta-
um pico de 138,2. Após esse pico, o indicador tivas favoráveis, a média de 2012 foi de 243,5, com
corrigiu-se, voltando a oscilar num patamar recorde histórico de 265,5 em outubro (Gráfico 03).
mais baixo, apesar de já superior a 100.
REFIN
O comportamento mais preocupante ocorre a
De janeiro de 1999 a dezembro de 2008, a média
partir de 2010, cuja média foi de 139,7. Segundo
desta categoria de inadimplência foi de 44,5,
os economistas da Serasa Experian:
pouco menos da metade da base de referência
100 registrada em 2009 (Gráfico 04).
74
Gráfico 03. Fluxo mensal de anotações de dívidas em atraso, destaque 1

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Serasa Experian.

Gráfico 04. Fluxo mensal de anotações de dívidas em atraso, destaque 2

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Serasa Experian.

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 75


38 / junho 2014
Uma análise que chama a atenção diz respeito Ao longo do ano de 2010 não houve alteração da
ao ano de 2006. Explica-se: observando o gráfico inadimplência com os bancos, mas, a partir de
04, de 2003 a 2005, a inadimplência com os ban- 2011, o cenário novamente mudou, registrando
cos oscilou numa média de 49,6 ao mês. Entre- recorde histórico, em agosto, de 134,9 pontos,
tanto, ao isolar o ano de 2006 (período entre as ou seja, em apenas 08 (oito) meses as dívidas
linhas verticais no gráfico), percebe-se que nos em atraso com os bancos aumentaram 34,9%,
últimos meses de queda do PEFIN, houve uma mantendo-se nesse patamar ao longo de 2012.
alta do REFIN. Cabe destacar ainda que, de acordo com a Sera-
sa, o valor médio das dívidas bancárias foi de
Daí por diante, em pouco menos de 03 anos, as
aproximadamente R$ 1.310,31 em 2012. .
dívidas em atraso com os bancos simplesmente
dobraram (veja direção da seta cheia). Este fato Cheques sem fundo
pode estar relacionado com uma espécie de No que tange aos cheques sem fundo, apesar de
migração após o recorde registrado pelo PEFIN, não haver dados disponíveis e segmentados por
haja vista que sua média após o pico ficou osci- faixa de renda, cabe analisar a evolução históri-
lando em patamar mais baixo e com tendência ca (1991-2012) da quantidade de cheques devolvi-
decrescente (veja direção da seta tracejada). dos a cada mil emitidos (Gráfico 05).

Gráfico 05. Quantidade de cheques devolvidos


Início do Plano Real
1994 (FHC)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Serasa Experian e do IPEADATA.

76
Gráfico 06. Valor médio da dívida com cheque sem fundo e variação anual

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Serasa Experian e do IPEADATA.

É possível perceber que havia uma tendência de 13,10% respectivamente, ao passo que em 2009 a
queda constante nos anos anteriores à intro- variação foi de 42,97%. Esta variação, provavel-
dução do Real (R$). No entanto, a estabilidade mente relacionada aos efeitos da crise mundial
econômica parece ter sido traduzida ao consu- iniciada em 2008, elevou as dívidas contraídas
midor como o momento ideal para o consumo para um patamar bem superior ao registrado
com endividamento. Assim, o nível de cheques anteriormente.
sem fundo aumentou de 1,6 por mil para expres-
Datas comerciais
sivos 25,17 por mil em maio de 2009, com média
É sabido que os maiores picos de lucro no
de 21,48 em 2009, 17,61 em 2010, 19,49 em 2011 e
comércio acontecem no mês de dezembro por
20,16 ao final de 2012.
causa das festividades natalinas, da percepção
Por fim, a média da dívida contraída com
do 13º salário e da propaganda intensiva ao
cheques sem fundos foi, em 2012, de R$ 1.526,11,
consumo.
representando um aumento de 12,28% sobre
Esse fenômeno é confirmado em função das
os R$ 1.359,19 do ano anterior (Gráfico 06).
consultas feitas ao USECHEQUE e ao SPC.
Importante observar que a variação anual
O gráfico 07 revela que os picos regulares
de 2003 a 2008 e de 2010 a 2012 foi de 12,68% e

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 77


38 / junho 2014
correspondem exatamente aos meses de dezem- mais. Janeiro de 2013, por sua vez, registrou 2,38
bro, típicos por elevados níveis de consumo milhões de consultas, nível equivalente à média
durante as festas natalinas. A variação nas con- de janeiro a setembro de 2012.
sultas feitas nos meses de novembro, dezembro e
Comportamento idêntico é revelado através
janeiro, desde 1990, revela intuitivamente a ten-
das consultas ao SPC. Em novembro houve 2,08
dência de o próprio mercado saber que a popu-
milhões de consultas, ao passo que dezembro
lação consome mais no último mês do ano por
registrou 2,57 milhões ou 23,61% a mais. Janeiro
causa da cultura estabelecida de que o Natal (em
de 2013, por sua vez, registrou 1,9 milhões de
detrimento ao significado religioso) é uma data
consultas, nível equivalente à média de janeiro
típica para as compras, quer sejam individuais
a novembro de 2012 (Gráfico 08).
quer sejam para presentear amigos e parentes.
Apesar da dificuldade em conceituar o consumo
Tomando por base os dados referentes a 2012,
supérfluo, é minimamente aceitável considerar
observa-se que, em novembro, houve 2,81
que as compras de fim de ano não são destina-
milhões de consultas ao USECHEQUE, mas
das à satisfação das necessidades básicas.
dezembro registrou 4,34 milhões ou 54,62% a

Gráfico 07. Consultas ao USECHEQUE e ao SPC de 1990 a 2012


Início do Plano Real
1994 (FHC)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IPEADATA.

78
Gráfico 08. Consultas ao USECHEQUE e ao SPC de 1990 a 2012 (dez = média anual)

Início do Plano Real


1994 (FHC)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IPEADATA.

Gráfico 09. Pessoa Física: taxa anual de juros e nível de inadimplência

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IPEADATA.

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 79


38 / junho 2014
A partir da compilação de diversas fontes que 3. A cada aumento de 1% na renda, aumenta em
publicam informações diversas sobre endivi- 1,7% o endividamento do consumidor, man-
damento e inadimplência, alguns comentários tendo-se prazos de pagamento e taxas de juros
podem ser feitos: inalterados;

a) Em uma das pesquisas realizadas pelo 4. A cada aumento de 1% nos juros, o endivida-
Instituto Akatu, o índice de consumidores mento cresce em 0,84%.
endividados no Brasil alcançou 65%, dos quais
O Gráfico 09 sugere um cenário, no mínimo, dis-
22% confessaram não ter condições de quitar as
tinto em relação aos resultados compilados pela
dívidas. (Mattar, 2006)
pesquisa realizada pela FIA. Os dados mostram
b) Em agosto de 2005, a Associação Brasileira a comparação entre a taxa anual de juros para
de Bancos constatou que 69% dos entrevistados as operações de crédito com recursos livres e o
solicitaram crédito consignado para saldar dí- nível de inadimplência com saldo em atraso su-
vidas anteriores. Ainda mais alarmante é o fato perior a 90 dias, ambos referentes à pessoa física.
de que 51% deles afirmaram que nunca haviam
Como regra geral, se a taxa de juros diminui,
solicitado qualquer tipo de empréstimo bancá-
espera-se que a taxa de inadimplência tam-
rio antes.
bém diminua, pois o valor das parcelas, dos
c) O Programa de Administração de Varejo (Pro- empréstimos e financiamentos seria menor. O
var), da Fundação Instituto de Administração comportamento anômalo contradiz as expec-
(FIA), divulgou os resultados de uma pesquisa tativas do mercado de crédito, pois, no início
para avaliar os componentes que impactam a de 2003, a taxa de juros alcançou seu nível
demanda do varejo. Dentre as variáveis analisa- mais alto (87,3% a.a) para o período analisado e
das estão renda média, taxa de juros, crédito e despencou para 45% ao longo de cinco anos. No
endividamento. início de 2008, a taxa de juros voltou a crescer,
registrando 58,3% em novembro desse ano, mas
As conclusões do estudo apontaram para alguns
voltando ao patamar anterior em maio de 2009.
fatos importantes, quais sejam:
Por sua vez, seria esperado que o nível de
1. O aumento de 1% no endividamento do consu-
inadimplência também fosse reduzido, o que,
midor resulta em 0,56% de queda nas vendas do
de fato, aconteceu ao sair de 8,5% em meados
comércio;
de 2002 para pouco menos de 6% no primeiro
2. O aumento de 1% nos prazos do crediário
semestre de 2005. Entretanto, o segundo semes-
resulta em 0,31% de queda no endividamento;
tre de 2005 testemunhou a alta da inadimplência

80
para 7,7% em menos de um ano. Além disso, ape- de 42,4%, com novo recorde histórico de 34,8%
sar de a taxa de juros continuar a cair, a inadim- em novembro de 2012, a inadimplência atingiu
plência oscilou entre 7% e 8% até o início de 2008. 8%, com tendência crescente.

A tendência de aumento na inadimplência seria 4.2.3. Comprometimento da renda


natural, tendo em vista a alta dos juros. Não
Uma análise histórica comparativa entre rendi-
obstante, os juros reiniciaram uma trajetória de
mento e despesa média familiar, em linha com
queda acentuada, passando de 58,3% para 45,6%.
a tradição keynesiana, mostra claramente que
Contradizendo qualquer expectativa, um dos
as famílias que percebem os menores salários,
níveis mais baixos da taxa de juros nas últi-
sempre tiveram uma propensão a consumir e a
mas décadas foi surpreendido pelo recorde da
endividar-se muito elevada.
inadimplência de pessoas físicas, o qual atingiu
A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF)
8,6% em maio e junho de 2009.
possui a vantagem de decompor em detalhes a
Apenas no segundo semestre de 2009 a taxa de
destinação das despesas das famílias por faixa
inadimplência começou a cair, acompanhando a
de rendimento em série histórica para comparar
queda dos juros, até atingir um dos níveis mais
a evolução dos gastos em função dos aumentos
baixos da história recente em dezembro de 2010.
de renda, com o que se espera que os números
A partir de 2011 até novembro de 2012, apesar de e comentários a seguir possam servir de base
a taxa de juros ter oscilado em torno da média interpretativa para melhor entender os hábitos
da população

Tabela 05. Comprometimento da renda familiar com despesas 1987-1988


COMPROMETIMENTO DA RENDA FAMILIAR COM DESPESAS
Faixa de Rendimento Despesa % de despesas Quantidade % de
rendimento médio média acima do de famílias famílias
(Salário-mínimo) familiar familiar rendimento
Total 34.331,00 35.387,00 3,08% 11.014.088 100,00%
Até 2 SMs 3.238,00 5.437,00 67,91% 955,865 8,68%
6.454,00 8.831,00 36,83% 813,036 7,38%
10.331,00 12.491,00 20,91% 1.804.161 16,38%
14.149,00 15.904,00 12,40% 776,777 7,05%
17.942,00 20.101,00 12,03% 1.225.607 11,13%
22.655,00 23.654,00 4,41% 907,609 8,24%
30.938,00 30.887,00 -0,16% 1.546.770 14,04%
43.022,00 45.161,00 4,97% 902,051 8,19%
58.755,00 64.046,00 9,01% 890,459 8,08%
133.097,00 126.569,00 -4,90% 1.191.753 10,82%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

Revista da sociedade brasileira de economia política 81


38 / junho 2014
POF 1987-1988 1. As famílias que compõem as quatro primeiras
faixas de rendimento correspondiam a 39,49%
A partir da POF relativa ao biênio 1987-198814
do total das famílias brasileiras;
foi possível revelar o grau de comprometimen-
to da renda familiar por faixa de rendimento, 2. A classe de mais baixa renda possui uma
além da quantidade de famílias nessa situação. despesa média mensal 67,91% maior do que os
rendimentos recebidos;
Na tabela 05, ao observar a coluna que repre-
senta o percentual da renda comprometida com 3. Ao ponderar os percentuais de comprometi-
despesas, os resultados negativos significam mento de renda em função da quantidade de
que o rendimento foi suficiente para pagar as famílias nas faixas de rendimento inferiores,
despesas; logo, os positivos significam a por- percebe-se que 4.349.839 de famílias gastam
centagem que as famílias gastaram a mais do 32,69% a mais do que ganham;
que receberam. O cálculo foi feito simplesmente 4. As duas únicas faixas que gastaram menos
pela divisão entre “despesa média familiar” e do que receberam foram aquelas que auferiram
“rendimento médio familiar”. rendimentos entre 10 e 15 SMs (ainda que irrisó-
Algumas das considerações devem ser destaca- rio) e aqueles com renda superior a 30 SMs.
das a partir da leitura desses dados:

Tabela 06. Comprometimento da renda familiar com despesas 1995-1996

COMPROMETIMENTO DA RENDA FAMILIAR COM DESPESAS


Faixa de Rendimento Despesa % de despesas Quantidade % de
rendimento médio média acima do de famílias famílias
(Salário-mínimo) familiar familiar rendimento
Total 1.499,54 1.395,21 -6,96% 12.544.069 100,00%
Até 2 SMs 147,03 245,45 66,94% 1.304.756 10,40%
278,62 365,35 31,13% 1.049.593 8,37%
440,39 494,79 12,35% 1.911.708 15,24%
608,06 632,89 4,08% 891,959 7,11%
769,96 792,85 2,97% 1.386.995 11,06%
984,21 950,88 -3,39% 972,249 7,75%
1.337,71 1.276,44 -4,58% 1.661.569 13,25%
1.890,37 1.749,44 -7,46% 964,128 7,69%
2.562,58 2.394,94 -6,54% 945,184 7,53%
5.803,59 4.939,86 -14,88% 1.455.928 11,61%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

82
POF 1995-1996 de endividamento das classes com menor
poder aquisitivo. Uma realidade dessa natureza
Resultados similares são identificados na POF
deveria implicar maior restrição orçamentária e
referente ao biênio 1995-1996, logo após a intro-
consequente priorização dos gastos.
dução do Plano Real:
POF 2002-2003
1. As famílias que compõem as quatro primeiras
faixas de rendimento correspondem a 41,12% do O cenário relativo ao comprometimento de ren-
total das famílias brasileiras; da da POF 2002-2003 mostra que o percentual
da renda com despesas aumentou significativa-
2. A classe mais baixa possui uma despesa mé-
mente. Além disso, essa POF acrescentou a seus
dia mensal 66,94% maior do que os rendimentos
questionários algumas perguntas de cunho sub-
recebidos;
jetivo, de modo a tentar entender detalhes mais
3. Ao ponderar os percentuais de comprometi-
críticos, tais como o percentual de famílias com
mento de renda em função da quantidade de
dificuldade de arcar com seus compromissos fi-
famílias nas faixas de rendimento inferiores,
nanceiros ao final do mês. Os resultados seguem
percebe-se que 5.158.016 de famílias gastam
na Tabela 7 (página seguinte).
28,55% a mais do que ganham;
POF 2008-2009
4. Todas as faixas de rendimento acima de 08
A última edição da POF diz respeito ao biênio
SMs gastaram menos do que ganharam.
2008-2009, tendo sido publicada no final de 2010.
As POF de 1987-1988 e de 1995-1996 apresentam
Apesar do lapso temporal e dos dados aparente-
resultados similares, apesar de ligeiramente
mente melhorados, acredita-se que ainda deva
menores. Dita semelhança pode sugerir que a
ser mantido um alerta no que tange aos hábitos
abertura comercial e a estabilidade econômica
da população de baixa renda, com vistas a uma
do Plano Real foram apenas um paliativo para
maior conscientização para o destino de suas
uma tendência da modernidade: consumir
despesas. Observa-se que:
sempre mais, mesmo que não haja rendimento
1. As famílias que compõem as três primeiras
suficiente para tal.
faixas de rendimento correspondem a 68,4% do
O expressivo comprometimento de renda suge-
total das famílias brasileiras;
riu uma tendência à continuidade no processo

Revista da sociedade brasileira de economia política 83


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Tabela 08. Comprometimento da renda familiar com despesas 2008-2009
COMPROMETIMENTO DA RENDA FAMILIAR COM DESPESAS
Faixa de Rendimento Despesa % da renda % de famílias com
rendimento médio média comprometida Quantidade % de dificuldade ou muita
(Salário-mínimo) familiar familiar com despesas de famílias famílias dificuldade
orçamentária
Total 1.789,66 1.778,03 -0,65% 51.001.901 100,00% 50,88%
Até 2 SMs 260,21 454,70 74,74% 7.949.351 15,59% 77,11%
491,25 658,18 33,98% 6.747.421 13,23% 65,79%
770,79 920,69 19,45% 10.181.484 19,96% 55,88%
1.086,70 1.215,33 11,84% 3.528.908 6,92% 48,53%
1.366,31 1.494,43 9,38% 5.086.643 9,97% 43,45%
1.766,63 1.914,35 8,36% 3.349.073 6,57% 40,03%
2.411,04 2.450,03 1,62% 4.571.410 8,96% 32,29%
3.413,65 3.270,20 -4,20% 2.416.195 4,74% 28,71%
4.815,21 4.445,42 -7,68% 4.704.154 9,22% 24,22%
10.897,52 8.721,91 -19,96% 2.467.262 4,84% 17,71%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

2. A classe mais baixa possui uma despesa mé- 4. Igualmente à POF anterior, apenas as três fai-
dia mensal 37,88% maior do que os rendimentos xas com maiores rendimentos gastaram menos
auferidos; do que receberam. Importante lembrar que o
agrupamento das faixas de rendimento é dife-
3. Ao ponderar os percentuais de comprometi-
rente em relação aos anos anteriores, fato este
mento de renda em função da quantidade de
que pode sofrer alterações positivas ou negativas
famílias nas faixas de rendimento inferiores,
caso as mesmas faixas fossem mantidas.
percebe-se que 39.544.880 de famílias gastam
16,04% a mais do que ganham;

Tabela 08. Comprometimento da renda familiar com despesas 2008-2009


COMPROMETIMENTO DA RENDA FAMILIAR COM DESPESAS
Faixa de Rendimento Despesa % de despesas % de famílias com
rendimento médio média acima do Quantidade % de dificuldade ou muita
(Salário-mínimo) familiar familiar rendimento de famílias famílias dificuldade
orçamentária
Total R$ 2.641,63 R$ 2.626,31 -0,58% 57.816.604 100,00% 39,30%
Até 2 SMs R$ 540,32 R$ 744,98 37,88% 12.503.385 21,63% 63,10%
R$ 1.024,27 R$ 1.124,99 9,83% 10.069.184 17,42% 48,70%
R$ 1.747,32 R$ 1.810,69 3,63% 16.972.311 29,36% 37,10%
R$ 3.097,27 R$ 3.133,00 1,15% 8.890.463 15,38% 25,20%
R$ 4.843,69 R$ 4.778,06 -1,35% 4.181.485 7,23% 18,30%
R$ 7.508,65 R$ 7.196,08 -4,16% 2.994.837 5,18% 12,10%
R$ 16.203,45 R$ 14.098,40 -12,99% 2.204.938 3,81% 8,50%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE/POF.

84
Frente a esta realidade, é plausível supor que 5. Considerações Finais
essa discrepância no consumo das famílias seja Este artigo buscou analisar os padrões de con-
obtida através de empréstimos financeiros. Es- sumo da população de baixa renda no Brasil
ses consumidores, movidos pelo apelo do con- pós-abertura comercial no intuito de identificar
sumo terminam atraídos pelas alternativas de sinais que pudessem indicar, de forma razoavel-
crédito e a artificialidade de sua “renda extra”, mente clara, que o comprometimento orça-
míopes às consequências dessa ilusão. Isso por- mentário dos indivíduos não condiz com sua
que a maior parte dos empréstimos obtidos pela realidade, além de ser agravado pelos crescentes
população de renda mais baixa, conforme visto níveis de endividamento e inadimplência.
anteriormente, não se destina a complementar
Mesmo considerando que as classes de baixa
as necessidades básicas, mas sim para consumir
renda não busquem necessariamente reproduzir
itens de valor incompatível com a renda ou para
os hábitos das classes mais abastadas, suas de-
pagar dívidas pré-existentes.
cisões de consumo sofrem influência direta do
Portanto, é minimamente aceitável sugerir que mercado, ou seja, do capital financeiro, que con-
a lógica do mercado prevalece sobre os interes- cede acesso a modalidades de crédito com altas
ses coletivos, sendo estes camuflados em razão taxas de juros e longos prazos de pagamento.
do bem-estar material. Logo, para que produção
A partir dos dados levantados sobre o mercado
e consumo não diminuam, é preciso estimular
de crédito e os indicadores de endividamento,
o último através dos mecanismos de crédito,
inadimplência e comprometimento de renda,
independentemente de como a população arcará
percebeu-se a extensão dessa influência do siste-
com uma dívida de longo prazo.
ma financeiro sobre o limite do endividamento
De fato, não é possível negar que o consumo da população. A atuação de uma lógica perma-
responde por grande parcela do crescimento nente que facilita o acesso a crédito tem levado
econômico de qualquer país. No entanto, inci- a níveis recordes de inadimplência. Além disso,
tar o consumo de uma classe influenciada pela apesar de não ter sido explorada em profundi-
satisfação de necessidades desproporcionais a dade, a redução da taxa de juros não se mostrou
sua realidade é insustentável em longo prazo condizente com a redução da inadimplência de
e reforça em muito os ganhos de produtores e pessoas físicas.
instituições financeiras.
Aliadas a esse fato, há dados preocupantes: a
quantidade de endividados no país (aproxima-
damente 65%); e a confissão majoritária de que

Revista da sociedade brasileira de economia política 85


38 / junho 2014
os empréstimos obtidos pela população desti- o caráter insuportável do consumismo ou a con-
nam-se primeiramente ao pagamento de dívidas dição de uma… insustentável leveza do ter.
pré-existentes com juros mais altos.

Com base nas POFs foram vistos alguns aspec- Abstract


tos relacionados aos hábitos de consumo da In Brazil’s post commercial opening it is
população, particularmente as despesas com frequently observed a worrying individual
habitação e diminuição do passivo. No que “bankruptcy”, in view of desperate attempts of
tange aos gastos com habitação, o item eletro- many individuals in following the consump-
domésticos tende a aumentar imediatamente tion pattern of the elites. Besides the so-called
os dispêndios com serviços públicos e priva- demonstration effect from developed countries,
dos essenciais, tais como energia elétrica, gás, capitalist persistence for higher pattern of
telefone, água e esgoto, o que sugere a pressão consumption generates positive and negative
consumista sobre a população, pois, ao gastar externalities: positive because the person will
com eletrodomésticos e eletrônicos, raramente é be held as part of the “select” list of people dis-
levado em consideração o aumento das despesas tinguished from others; negative by generating
fixas do lar e o surgimento de outras (internet, a feeling of helplessness by the non-acquisition
celular, TV a cabo). As despesas com dimi- of desired goods or result in delicate situations
nuição do passivo revelaram uma significativa of financial commitment. To cope with this
alta no item referente a empréstimos pessoais e feeling, financial capital stimulates credit with
carnê de mercadorias, na ordem de 900%. exorbitant uncovered interest rates not percei-
Por último, mas não menos importante, cabe ved by low income consumers. A vicious cycle
ressaltar que este comportamento contribui para is formed: debt generates new loans and higher
a manutenção das desigualdades sociais, pois as debts, which benefits financial capital. Thus,
classes de baixa renda não consideram as conse- the main focus of this article: the other face of
quências do endividamento e da inadimplência, consumption induced to poor populations by fi-
comprimindo continuamente seus orçamentos nancial capital while re-creating their lifestyles
em função das dívidas contraídas a longo prazo. depending on the sense of status and assimila-
tion patterns of typical consumption of higher
Sacrificar o necessário para manter o supérfluo
income classes.
e estimular o conspícuo: essa é a resultante da
equação capitalista enquanto mantenedora de de- Keywords: Consumerism; indebtness;
sigualdades. Ao comprovar essa lógica, afirma-se financialisation.

86
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Revista da sociedade brasileira de economia política 87


38 / junho 2014
Notas 8 Alternativas, de acordo com o estudo do BNDES, seriam
1 Entenda-se por externalidade “o impacto das ações de o crédito junto a agiotas e a fontes de relações pessoais.
uma pessoa sobre o bem-estar de outras que não tomam 9 Tal comportamento pode ter sido influenciado pela flutu-
parte da ação”. (Mankiw, 2006, p.204) ação do crescimento do PIB, cuja taxa em 2009 foi de 0,3%,
2 Entendido aqui como um consumo de bens, muitas vezes tendo passado em 2010 para 7,5% e com isso trazendo
supérfluos, que comprometem uma parcela elevada da ren- mais confiança e reanimação das expectativas.
da familiar e levam ao endividamento, associado à tomada 10 Importante salientar que as três faixas de rendimento
de empréstimos e ao pagamento de juros elevados. consideradas neste indicador representam 84% da popula-
3 Vale lembrar que nesse impulso ao consumo via endivida- ção brasileira mapeada pelo Serasa mensalmente.
mento também se beneficia o capital produtivo ao ter assim 11 Segundo nota técnica do IBGE, “estão agregadas as des-
ampliado o mercado consumidor. pesas com acesso à Internet, TV por assinatura, condomínio,
4 Tendo em conta os limites de espaço, optou-se por não adicionais de condomínio, outras despesas com locação de
aprofundar a discussão deste autor além dos conceitos imóvel (contrato, depósito de locação etc.), seguros sobre o
expostos. imóvel (incêndio, roubo etc.) e taxas de serviços em geral”.

5 A Serasa Experian desenvolveu três indicadores para 12 Segundo nota técnica do IBGE, “aquisições de eletrodo-
monitorar os consumidores: 1. O Indicador de Inadimplência mésticos e equipamentos do lar, tais como: refrigerador, fre-
de Pessoa Física, concebido para determinar este com- ezer, máquina de lavar roupas, máquina de lavar louça, fogão,
portamento em âmbito nacional, consiste em um modelo aspirador de pó, grill, aparelho de fax, forno de microondas,
estatístico de múltiplas variáveis, o qual considera as varia- microcomputador, televisão, conjunto de som, aparelho de
ções registradas no número de cheques sem fundos, títulos DVD, aparelho de CD-ROM e equipamentos elétricos e
protestados, dívidas vencidas com instituições financeiras e eletrônicos diversos”.
cartões de crédito e financeiras; 2. O Indicador de Demanda 13 Segundo nota técnica do IBGE, “na diminuição do
do Consumidor por Crédito objetiva mensurar a procura de passivo, estão incluídas as despesas com pagamentos de
crédito por parte dos consumidores durante um determi- débitos com empréstimos pessoais e carnê de mercadorias.
nado mês. É construído a partir de uma amostra significati- Estão agregadas também as dívidas judiciais e prestação de
va de cerca de 11,5 milhões de CPFs, consultados mensal- imóvel”.
mente na base de dados da Serasa Experian. 3. O Indicador
14 Os dados sobre rendimento médio e despesa média
de Qualidade do Crédito do Consumidor, a partir de uma
familiar na POF 1987-1988 estão em Cruzados, moeda em
amostra significativa de cerca de 450 mil CPFs, constantes
vigor na época de apresentação dos resultados.
da base de dados da Serasa Experian e é segmentado por
classe de rendimento mensal, avalia trimestralmente, numa
escala de 0 a 100, a qualidade de crédito do consumidor:
quanto maior, melhor a qualidade de crédito; portanto,
menor é a probabilidade de inadimplência.
6 A título de esclarecimento, algumas análises ao longo
deste trabalho incluíram valores maiores ao definido para
classificar a população de baixa renda. Esta escolha deu-se
pelo fato das várias consultas a bases de dados diferentes
e que não poderiam ser transformadas ou isoladas de seu
conjunto.
7 Particularmente após o Plano Real e o controle da infla-
ção que estimulou o crediário a prazos mais longos.

88
Um novo padrão exportador de especialização
produtiva? Considerações sobre o caso brasileiro
CARLOS AMÉRICO LEITE MOREIRA
EMANUEL SEBAG DE MAGALHÃES
Um novo padrão exportador
de especialização produtiva?
Considerações sobre o caso brasileiro

Resumo

A
proposta de um novo padrão de reprodução do capital na
América Latina apresenta como traço distintivo a especiali-
zação produtiva e exportadora em commodities agrícolas e
metálicas. Tal configuração teria engendrado outro processo caracteri-
zado por desindustrialização. Esse modelo teórico assume que o cresci-
mento das exportações ocorre em detrimento da dimensão do mercado
interno. Contrariamente, observamos que, no caso brasileiro, o duplo
processo reprimarização/desindustrialização não resulta da falta de
dinamismo do mercado doméstico, o qual sofreu considerável expansão
nos últimos anos. Nessa conjuntura, o processo de financeirização das
Carlos Américo
Leite Moreira empresas multinacionais parece ter sido o fator determinante para a
Doutor em Economia pela
Universidade de Paris XIII,
consolidação desse duplo processo em nosso país.
com pós-doutorado em Eco-
nomia Política Internacional Palavras-chave: Teoria marxista da dependência; inserção internacio-
pela Universidade de Mon-
treal. Professor e Pesquisador nal brasileira; financeirização.
do Departamento de Teoria
Econômica e do Mestrado Classificação JEL: B50; F02; F21; F23; F50.
em Logística e Pesquisa
Operacional da Universidade
Federal do Ceará.
1. Introdução
Emanuel Sebag de Em artigo recente intitulado América Latina: o novo padrão exporta-
Magalhães
dor de especialização produtiva – estudo de cinco economias da região,
Mestrando em Economia
Política Internacional pela Jaime Osorio (2012) considera que se consolidou no continente latino-
Universidade Federal do Rio
de Janeiro. -americano um novo padrão exportador de reprodução do capital que
se caracteriza pela especialização produtiva, maquiladoras. Essa configuração não reflete
porém com diferenças marcantes em relação ao uma estratégia ativa de diversificação e geração
modelo primário-exportador vigente na região de novos mercados e oportunidades comerciais,
a partir da segunda metade do século XIX até o mas o aproveitamento de vantagens naturais ou
início do século XX. O principal diferenciador comparativas na produção e no comércio inter-
está associado ao maior grau de elaboração de nacional. Na verdade, o dinamismo exportador
muitos produtos exportados nesse novo padrão. reflete uma demanda externa aquecida por esses
produtos característicos da região assim como
Na sua avaliação, a consolidação desse novo
na rápida capacidade de reação das economias
padrão exportador de especialização produtiva
latino-americanas a tal demanda.
ocorre como o fim do modelo industrial vigente
nas principais economias da América Latina Adicionalmente, esse novo padrão exportador
entre a década de 1940 e meados de 1970. Na engendra a formação de enclaves com ativida-
verdade esse novo modelo significa efetivamen- des que operam com reduzidos efeitos de enca-
te uma destruição importante de segmentos deamento produtivos e tecnológicos na região,
da estrutura industrial, levando a processos de importando bens de capital, bens intermediá-
desindustrialização. Nesse novo contexto, mes- rios e até mesmo matérias-primas.
mo economias com estruturas industriais mais
Na constituição desse modelo exportador,
complexas, como México e Brasil, foram
Osorio destaca o papel determinante do grande
integradas ou subsumidas e submetidas ao novo capital nacional e estrangeiro. Na verdade, o
projeto exportador, no qual os eixos exportado- autor salienta que as grandes empresas
res constituem, em geral, segmentos de grandes
concentram as principais plataformas exporta-
cadeias produtivas globais sob a direção de em-
doras do novo padrão, assim como as atividades
presas multinacionais. (Osorio, 2012, p.106)
dinâmicas orientadas para o mercado interno,
Quais são as características desse novo pa- particularmente concentradas no setor de servi-
drão? Um traço distintivo está relacionado ços, as quais fornecem energia e telecomunica-
com a forte especialização da produção e da ções e constituem importantes cadeias comer-
base exportadora em commodities agrícolas ciais. (Osorio, 2012, p.111)

e metálicas assim como produtos industriais Nessa dinâmica, o capital nacional priva-
de baixo valor agregado de origem local ou de do concentra-se nos ramos do comércio, da

Revista da sociedade brasileira de economia política 91


38 / junho 2014
agroindústria, e da indústria alimentícia, com Portanto, a consolidação desse padrão de
participação importante na mineração, na ele- reprodução do capital pressupõe o avanço das
trônica e no setor elétrico. Já o capital estran- exportações em detrimento da dimensão do
geiro está presente em praticamente todos os mercado interno, em especial do consumo de
segmentos, com destaque para os segmentos massas. No caso brasileiro, percebem-se traços
automobilístico e de autopeças e eletrônica. diferenciadores desse modelo geral preconizado
O segmento de petróleo e gás é considerado para a América Latina. O duplo processo de re-
o único com pequena contribuição do capital primarização/desindustrialização no Brasil não
estrangeiro. Finalmente, as empresas estatais resulta da ausência de dinamismo do mercado
prevalecem nas atividades de petróleo e gás, interno. Na verdade, nos últimos anos, a expan-
mineração e energia elétrica. são do crédito, a geração de emprego formal
e a política de valorização do salário mínimo
Na avaliação do autor, faz parte da natureza
foram cruciais para a expansão da demanda
desse novo padrão econômico voltado para o
doméstica.
mercado externo a perda de poder aquisitivo
dos assalariados na dinâmica do mercado inter- Esse fato, combinado à redefinição das estra-
no assim como a precarização das condições de tégias das multinacionais, em uma lógica de
trabalho e de vida da maioria da população na financeirização das empresas, foi determinante
medida em que: 1) o consumo dos assalariados para a consolidação desse duplo processo de
não constitui um elemento de maior relevân- reprimarização/desindustrialização. De fato, o
cia visto que parte significativa da produção processo recente de internacionalização produ-
é orientada para os mercados externos. Isto tiva traduziu-se no aprofundamento dos mo-
porque o salário médio dos trabalhadores não vimentos de natureza patrimonial e de valori-
permite o acesso aos bens industriais e agrope- zação fictícia iniciados na década de noventa,
cuários exportáveis; 2) a competitividade dos reduzindo o horizonte temporal de valorização
produtos industriais está vinculada à deteriora- da empresa. Como decorrência, as estratégias
ção dos salários locais e à depreciação de tudo de produção assim como as modalidades de im-
o que implique aumento do custo do trabalho. plantação das empresas estrangeiras, implicam
Ou seja, os trabalhadores locais são vistos cada vez mais seu desengajamento produtivo.
muito mais como produtores do que como
consumidores.

92
2. O processo de reprimarização internacional do Brasil reflete a perda de com-
das exportações no contexto do petitividade da indústria brasileira assim como
capitalismo financeirizado uma transformação no padrão do comércio
A inserção da economia brasileira no capita- brasileiro no sentido da reprimarização das
lismo financeirizado decorreu de dois fatores exportações. Ou seja, o Brasil volta à indesejada
cruciais. Por um lado, consolida-se o processo situação de país exportador de bens primários e
de abertura comercial e financeira, bem como de baixo valor agregado.
as políticas monetária e fiscal extremamente Essa configuração permanece nos anos 2000. As
rígidas, e estabelece-se taxas de juros reais exportações brasileiras seguem ainda bastante
elevadas, visando a estabilidade monetária. Por especializadas em commodities metálicas, agrí-
outro lado, as reformas estruturais ocorridas no colas e pecuárias, demasiadamente dependentes
sistema financeiro, garantindo benefícios e con- da conjuntura externa. Esse fato incrementou
cessões tributárias ao capital financeiro, permi- a participação de produtos básicos nas expor-
tiram, em conjunto com os fatores anteriormen- tações totais do país. A parcela desse segmento
te citados, transformar o Brasil em plataforma saltou de 28,9% em 2003 para 47,0% em 2012.
de valorização do capital financeiro. (Paulani,
Tal configuração indica que o desempenho
2012; Moreira & Sherer, 2002)
das exportações brasileiras está associado ao
A lógica da política de estabilização, baseada na aproveitamento de oportunidades produzidas
elevação significativa das taxas de juros reais, pela expansão das importações de mercados
foi determinante para a sobrevalorização da dinâmicos. Nesse contexto, vale destacar o
moeda nacional. A combinação de juros eleva- papel crucial do comércio bilateral Brasil-China
dos e câmbio apreciado trouxe consequências para a consolidação do padrão de especialização
significativas para nossa inserção produtiva. O exportador baseado nos tradicionais bens do se-
primeiro impacto está associado à constituição tor primário. Constata-se uma concentração das
de um processo de reprimarização da pauta vendas internacionais brasileiras para aquele
exportadora brasileira. país em poucos produtos básicos. Isto não é um
Gonçalves (2003) chamava atenção para a fato isolado do comércio com o Brasil, já que,
consolidação desse padrão de especialização em geral, a China vem importando bens agríco-
exportador baseado em produtos básicos já na las e minerais dos países da América Latina.1
década de noventa. Na avaliação do autor, o A expansão das exportações de commodities
processo de regressão qualitativa da inserção minerais e agrícolas engendra substancial

Revista da sociedade brasileira de economia política 93


38 / junho 2014
entrada de moeda estrangeira, levando a um na série histórica. Nesse grupo, a indústria
excesso de oferta no mercado de câmbio e pro- automobilística e de máquinas e equipamentos
vocando um processo de apreciação da moeda foram os destaques negativos. Já a indústria de
nacional. Portanto, esse fenômeno também con- média-alta tecnologia, tradicionalmente supera-
tribui, juntamente com as taxas de juros reais vitária, assinalou pelo terceiro ano consecutivo
elevadas, para a apreciação do real. O impacto saldo negativo na balança comercial. O segmen-
negativo na produção e exportação da indústria to de baixa tecnologia foi o único a apresentar
manufatureira é notório. superávit na balança comercial, beneficiado
pelo desempenho do ramo de alimentos e bebi-
A participação das manufaturas na pauta
das. Vale destacar a deterioração do excedente
exportadora registrou uma queda de 54,3% em
comercial das atividades intensivas em mão-de-
2003 para 37,2% em 2012 (MDIC, 2013). Do total
-obra desse grupo (têxteis, calçados e vestuário).
exportado pela indústria de transformação,
constata-se o forte predomínio das vendas in- Essa dinâmica compromete o peso do setor
ternacionais dos segmentos de baixa e média- industrial no produto interno bruto assim como
-baixa tecnologia. o grau de sofisticação tecnológica dos bens in-
dustriais fabricados, levando a um processo de
A perda de dinamismo das exportações indus-
desindustrialização. Além da apreciação cam-
triais vem acompanhada de uma deterioração
bial, o movimento de desindustrialização reflete
da balança comercial de bens manufaturados.
igualmente a inoperância da política industrial
(IEDI, 2013) Em 2012, o déficit da indústria de
nacional combinada a um amplo e rápido pro-
transformação atingiu US$ 50,6 bilhões, contra
cesso de abertura comercial. (Moreira & Almei-
US$ 16,7 em 2003. Analisando por intensidade
da, 2012; Salama, 2011; Carneiro, 2009)
tecnológica,2 os maiores saldos negativos foram
observados nos grupos de alta e média-alta O duplo processo de reprimarização/desin-
tecnologia. dustrialização da economia brasileira parece
confirmar a tese da constituição de um novo
O grupo de alta tecnologia registrou um déficit
padrão exportador de especialização produtiva
de US$ 29,3 bilhões em 2012, o segundo desem-
que marca o fim do modelo industrial que pre-
penho negativo desde o início da série em 1989.
valeceu no regime de acumulação substitutivo
Esse saldo negativo só foi ultrapassado pelo
de importações. Nesse novo momento, observa-
registrado em 2011. O déficit mais expressivo foi
-se “uma destruição importante de indústrias
verificado no segmento de média-alta tecnolo-
ou então seu reposicionamento no projeto geral,
gia (US$ 54,5 bilhões), o maior para essa faixa

94
processos que foram caracterizados como de em que a base exportadora especializada em
desindustrialização”. (Osorio, 2012, p.106) A produtos essencialmente primários seria o ele-
constituição desse padrão exportador de espe- mento central da expansão capitalista.
cialização encontra-se vinculado à perda de po-
A observação mais detalhada da conjuntura
der aquisitivo dos assalariados e a precarização
econômica brasileira da última década leva
em geral das condições de trabalho. O mercado
ao não enquadramento deste país na dinâmi-
assalariado local não constitui um elemento di-
ca específica desta proposição teórica. Dessa
nâmico nesse padrão de reprodução do capital,
forma, abre-se espaço a outras conclusões acerca
já que grande parte da produção é destinada a
dos determinantes do duplo processo de repri-
mercados externos.
marização/desindustrialização, identificando a
No caso brasileiro, percebem-se traços dife- inserção brasileira na nova lógica do capitalis-
renciadores desse modelo geral preconizado mo financeiro, já discutido na seção anterior, e
para a América Latina. O duplo processo de compreendendo o novo papel desempenhado
reprimarização/desindustrialização no Brasil pela demanda doméstica para a realização da
não está associado à ausência de dinamismo do mais-valia extraída no país internamente, que
mercado interno dos assalariados. Na verdade, será abordado neste momento.
nos últimos anos, vários fatores contribuíram
Osorio (2012) afirma que a perda de poder de
para a expansão desse segmento da demanda
compra dos trabalhadores estaria no centro
doméstica.
da dinâmica deste novo padrão exportador
de especialização produtiva atuando de duas
3. A expansão do mercado interno formas. Primeiro, porque o mercado doméstico
brasileiro como elemento dinâmico da não se constituiria como elemento de maior
reprodução do capital relevância, já que parte substancial da produção
seria destinada ao exterior. Segundo, porque o
O modelo teórico proposto por Osorio (2012)
baixo nível do salário médio estaria bem longe
de um novo padrão exportador de especializa-
de permitir o acesso a bens manufaturados. Tal
ção produtiva para a América Latina associa
afirmação teórica é oriunda da análise do ciclo
elementos ditos estruturais destas economias,
do capital na economia dependente de Marini
ligados ao ciclo do capital na economia depen-
(2012). Influenciado pela macroeconomia kale-
dente (Marini, 2012), ao surgimento de um novo
ckiana, Marini (2012) identifica o descolamento
padrão de reprodução do capital para a região,

Revista da sociedade brasileira de economia política 95


38 / junho 2014
entre a produção nas economias dependentes e se observa no Brasil é exatamente o oposto. O
as necessidades de consumo local, mais especifi- mercado interno ganha relevância para a repro-
camente da massa trabalhadora. dução do capital concomitantemente ao proces-
so de reprimarização. Neste período, pode-se
Na lógica de uma industrialização tardia,
observar uma política de valorização do salário
mesmo dispondo de farta oferta de mão-de-
mínimo, uma ampliação do emprego formal e
-obra, as economias dependentes importam
uma expansão do crédito a pessoas físicas.
tecnologias produtivas poupadoras de trabalho,
o que amplia o exército industrial de reserva e Estes fatores, em especial o último, colocam em
consequentemente rebaixa o nível dos salários. evidente contradição a relação inversa entre for-
Constitui-se assim um mercado interno frágil, mação de um mercado interno e ampliação das
o que leva à inevitável orientação para fora das exportações proposta por Osorio (2012), aponta-
economias dependentes. Dessa forma, a análise da como centro do novo padrão de reprodução
de Osorio (2012) trabalha na perspectiva teórica do capital dominante na América Latina. Dessa
de uma relação automaticamente inversa entre forma, a análise acerca do comportamento do
formação de um mercado interno dinâmico mercado interno brasileiro busca contrapor-se à
e ampliação das exportações. Ou seja, ao se afirmação de Osorio:
perceber um padrão exportador de especiali- [...] de que a maior parte dessa produção [nacional
zação produtiva na América Latina, Osorio de matérias-primas e alimentos], gerada em núcleos
(2012) termina por afirmar que tal configuração produtivos reduzidos, é destinada a mercados
econômica prescinde do mercado interno em externos e a um reduzido mercado interno com alto
sua dinâmica de expansão. poder de consumo, levando ao declínio dos salários
e à conseguinte pobreza geral, uma vez que a popu-
Ao se analisar o comportamento do mercado lação trabalhadora local deixa de comparecer como
interno brasileiro na última década, compreen- elemento dinâmico na realização da mais-valia.
dendo o movimento de ampliação e reprima- (Osorio, 2012, p.104 e 105; grifo nosso)
rização das exportações, percebe-se uma dinâ-
Todavia, nossa ressalva à observação de Osorio
mica distinta entre o desempenho do mercado
(2012) não busca demonstrar que as condições
interno e a reprimarização no Brasil daquela ob-
dos trabalhadores no Brasil vêm apresentando
servada por Osorio (2012) para o amplo quadro
uma sensível melhoria a ponto de ser possível a
latino-americano. É preciso desfazer a tese de
constituição de um desenvolvimento autônomo
que o movimento de reprimarização se consti-
no país. O que a recente trajetória dos indicado-
tui porque prescinde do mercado interno. O que
res de emprego, remuneração e principalmente

96
de crédito ao trabalhador vem evidenciar é a trabalhadores no mercado de trabalho mostrou-
inserção desta parcela do mercado na dinâmica -se um dos fatores que ampliaram a relevância
de realização da produção capitalista a nível do mercado interno para a dinâmica capitalista
mundial, absorvendo cada vez mais bens de no país. É importante destacar que o cará-
consumo duráveis por meio do uso do crédito, ter predominante para a América Latina da
também fazendo parte da dinâmica financeira informalidade ainda representa uma parcela
global. Como propõe Saad Filho, o empobreci- significativa do mercado de trabalho brasileiro.
mento dos trabalhadores A trajetória da geração de emprego formal para
não se deve à queda absoluta dos padrões de regiões metropolitanas do Brasil é apresentada
vida dos trabalhadores, como frequentemente no gráfico a seguir:
presume, mas, ao contrário, à distância crescente
A evolução do emprego formal no Brasil a partir
entre suas “necessidades” e seu poder de compra,
de 2003 é reflexo da conjuntura positiva de
levando ao endividamento e ao excesso de traba-
crescimento do país no período. É importante
lho. (Saad Filho, 2011, p.13)
destacar seu comportamento ascendente mesmo
A geração de empregos formais no Brasil durante o momento da crise de 2008, apresen-
apresenta evolução considerável a partir tando apenas decrescimento em sua taxa de
de 2003 (Gráfico 1). A incorporação de mais ampliação. A expansão dessa massa assalariada

Gráfico 1. Emprego
Empregoformal regiões
Formal metropolitanas
Regiões (Brasil) –- Pessoas
Metropolitanas Pessoas(mil)
(mil)– 2002-2012
14,000

12,000

10,000

8,000

6,000

4,000

2,000

0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Emprego Formal Regiões Metropolitanas - Pessoas (mil)


Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.

REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLíTICA 97


38 / junho 2014
toma proporções consideráveis para a consolida- trabalhadora. Durante a década de 1990, sob a
ção do mercado interno brasileiro. égide liberal traduzida nos planos de estabili-
zação econômica, em especial o Real, o salário
A expansão do emprego formal traz fôlego
mínimo sofreu uma severa reversão em seu
ao mercado interno, pois, em contraposição à
poder de compra. Apenas com o recente aumen-
informalidade, permite ao trabalhador uma
to em janeiro de 2013, recupera-se o patamar
remuneração fixa e garantida ao final do mês, o
nominal do ano de 1983, o maior desde então.
salário. Contrariamente à remuneração incerta
(DIEESE, 2012)
proveniente do mercado informal, o salário per-
mite certo planejamento financeiro doméstico, Após o rigor dos planos de estabilização mo-
o que permite a oferta de contrapartidas para a netária, a elevação nominal do salário mínimo
obtenção de crédito, impulsionando, principal- a partir de 2003 pode ser entendida como uma
mente, o consumo. reversão de seu baixíssimo patamar apresenta-
do nas décadas anteriores. A ampliação nomi-
A política de elevação do salário mínimo nacio-
nal torna-se expressiva na nova conjuntura de
nal, empreendida também desde 2003, contribui
crescimento econômico e baixa inflação. Dentro
para a afirmação de um mercado interno cada
dos limites da acumulação flexível, os mercados
vez mais poderoso (Gráfico 2). O ganho real de
emergentes configuram-se não apenas como
mais de 70% no período compreendido entre
Salário Mínimo - Valores nominaisexportadoras
plataformas (R$) de commodities, mas
2002 e 2013 é indicativo de um forte movimen-
como potenciais mercados consumidores em
to de aumento do poder de compra da classe
800
expansão.
700
600 Salário Mínimo - Valores nominais (R$)
Gráfi
500 co 2. Salário mínimo, Brasil (2002-2013) – Valores nominais (R$)
400
800
300
700
200
600
100
500
0
400
300 Abril de Abril de Maio de Maio de Abril de Abril de Março de Fevereiro Janeiro Janeiro Janeiro Janeiro
200 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 de 2009 de 2010 de 2011 de 2012 de 2013
100
0
Abril de Abril de Maio de Maio de Abril de Abril de Março de Fevereiro Janeiro Janeiro Janeiro Janeiro
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 de 2009 de 2010 de 2011 de 2012 de 2013
mínimo - Valores nominais (R$)
Salário Mínimo
Fonte: Elaboração própria a partir de dados obtidos da nota técnica nº118 do DIEESE.

98
Salário Mínimo - Valores nominais (R$)
O potencial do mercado interno brasileiro, aumento da remuneração formal ao trabalhador
abrangendo cada vez mais parcelas da popu- foi possível, não há dúvidas de que a apropria-
lação pela elevação real do salário mínimo, ção capitalista da mais-valia gerada nesses anos
entra como fator dinâmico da economia. Dessa de bonança econômica foi certamente maior.
forma, a avaliação feita por Osorio parece não Assim, mesmo apresentando elevação de seus
captar as especificidades do caso brasileiro: salários, pode-se falar em empobrecimento
O declínio do mercado formado pelos rendimen- relativo da classe trabalhadora brasileira nesse
tos dos trabalhadores tem como contrapartida, período.
no mercado local, a conformação de um peque-
O aumento da velocidade do ciclo capitalista de
no, porém poderoso mercado interno [...], no qual
produção, advindo das inovações tecnológicas e
participam os setores que vivem de mais-valia,
renda ou salários elevados, seja no setor público, organizacionais produtivas, amplia ainda mais

seja no privado. (Osorio, 2012, p.132) a escala de produção e direciona uma parcela
cada vez maior da produção à classe trabalha-
No caso brasileiro, a trajetória de ampliação
dora. Faz-se necessário, portanto, que se amplie
do salário mínimo se faz notória. A expansão
a capacidade de absorção dessa produção pelos
do emprego formal transparece a ampliação da
assalariados. O potencial dos mercados internos
dimensão dessa parcela da população assalaria-
das economias emergentes, representado por
da no consumo doméstico. Pode-se assim dizer
suas consideráveis populações, realiza-se por
que para o Brasil, o momento iniciado em 2003
meio do processo de proletarização dessa popu-
apresenta-se como de expansão do poder de
lação. A necessidade crescente de ampliação do
compra da classe trabalhadora e de ampliação
valor, dentro da nova lógica financeira, faz com
de sua participação no mercado interno, contra-
que o salário simplesmente não seja suficiente
dizendo a tese levantada por Osorio (2012).
para dar conta de absorver o enorme fluxo de
O avanço salarial, porém, vem acompanhado mercadorias. É nesse cenário econômico que a
de novas formas de extração da mais-valia, figura do crédito entra como elemento defini-
como a precarização das condições de trabalho, dor da capacidade de realização da mais-valia
principalmente por meio da terceirização. É nas economias dependentes no capitalismo
importante destacar também o papel central da contemporâneo.
intensificação do trabalho, que amplia o abismo
A perspectiva da ampliação do crédito aos
existente entre a acumulação capitalista e a
trabalhadores abre uma dupla crítica ao novo
remuneração do trabalhador. Se esse expressivo
padrão proposto por Osorio (2012). Primeiro,

Revista da sociedade brasileira de economia política 99


38 / junho 2014
uma crítica quanto à leitura de conjuntura da Na economia brasileira, o recente movimento
economia brasileira, já que o consumo interno de ampliação do mercado interno deve-se mais
entra como forte fator de dinamismo da repro- à expansão do crédito do que aos já menciona-
dução do capital no país, aliando-se ao destaque dos aumentos do nível de emprego formal e do
das exportações, não havendo rivalidade ou poder de compra do salário mínimo. A amplia-
mútua exclusão como afirma o autor. Segundo, ção do crédito dirigido às pessoas físicas passou
abre-se espaço para a crítica teórica da leitu- por uma considerável ascensão a partir do ano
ra de Marini (2012) sobre o ciclo do capital na de 2003, relacionando-se à maior integração do
economia dependente que, baseado na macro- Brasil no circuito financeiro e produtivo inter-
economia kaleckiana, define a exiguidade do nacional (Gráfico 3).
mercado interno ao diferenciar a produção de A rápida ampliação do volume de crédito às
bens-salários e bens de luxo. O alargamento do pessoas físicas revela a nova orientação da polí-
crédito à classe trabalhadora faz cada vez mais tica econômica brasileira voltada para a amplia-
tênue a diferença entre essas categorias de bens ção do consumo, o que evidencia a importância
definidas por Marini (2012). do mercado interno para a expansão capitalista

Operações de crédito do sistema financeiro - Pessoas físicas -


Gráfico 3. Operações de crédito do sistema financeiro
(Milhões Brasil – 2002-2013 – Pessoas
de Reais)
físicas – (Milhões de Reais)
800 000
700 000
600 000
500 000
400 000
300 000
200 000
100 000
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Operações
Operações de crédito do sistema financeiro - Pessoas físicas - (Milhões de Reais)
decrédito
Fonte: Elaboração própria a partir das séries temporais dados do BACEN.

100
no país concomitante ao cenário internacio- O aquecido mercado interno brasileiro acelera a
nal que pressiona a expansão das exportações procura por mercadorias, gerando um descom-
primárias. São indicativas dessa perspectiva de passo entre oferta e demanda domésticas. Essa
alavancar o crescimento pelo consumo domésti- conjuntura, porém, não é capaz de estimular o
co as medidas de estímulo econômico adotadas investimento nacional. Esse vácuo de mercado
pelo governo para combate da crise de 2008, é rapidamente preenchido pelo capital estran-
como a redução do IPI para os automóveis e geiro, que, apresentando novas estratégias de
motocicletas produzidos no país e também para valorização do capital, dá especial atenção ao
a chamada linha branca, assim como as redu- mercado brasileiro, apresentando novas formas
ções das taxas de juros e a expansão do crédito de inserção comercial do investimento direto
habitacional. estrangeiro no país, terminando por enqua-
drar categoricamente o Brasil como mercado
Por fim, pode-se evidenciar que a cesta de
emergente na lógica do capitalismo financeiro
consumo dos trabalhadores brasileiros, nota-
global.
damente por meio dos mecanismos de crédito,
incorpora cada vez mais bens industrializados,
desfazendo a tese de Marini (2012) acerca da 4. As novas formas de inserção do
distorção da estrutura produtiva que se distan- investimento direto estrangeiro no
cia das necessidades de consumo local. Assim o Brasil
consumo doméstico toma crescentemente maior
O período recente foi marcado pela forte reto-
participação na dinâmica de reprodução do
mada dos fluxos de investimentos direto em
capital no país, o que nos leva a contestar a tese
direção à economia brasileira. De fato, constata-
de Osorio (2012) de que o movimento de repri-
-se que a entrada de investimento direto es-
marização constitui-se em negação à formação
trangeiro acelerou-se nos últimos cinco anos.
de um amplo mercado interno. Dessa maneira,
Em 2011, os investimentos diretos estrangeiros
todavia, não se pretende negar tais contribui-
somaram US$ 66,6 bilhões, incremento de 37,4%
ções teóricas. Torna-se, porém, imperativo à
em relação a 2010.
atualização da interpretação acerca da realidade
Esse dinamismo decorre de dois fatores prin-
latino-americana, trazer novos elementos desta
cipais. Em primeiro lugar, os investidores
fase do capitalismo financeiro para a análise e
buscam opções rentáveis em economias emer-
procurar ser o mais fiel possível às realidades
gentes com mercados internos dinâmicos e
específicas de cada país da região.
estabilidade monetária. A apreciação da moeda

Revista da sociedade brasileira de economia política 101


38 / junho 2014
nacional combinada ao maior poder de compra O perfil financeirizado das estratégias das
da população fortalecem as estratégias market empresas multinacionais e a lógica de política
seeking, beneficiando principalmente os setores econômica que ancora o padrão de inserção
de manufaturas e serviços. De fato, a indústria trazem transformações importantes no processo
manufatureira foi a principal receptora de IDE de internacionalização produtiva, com predomi-
no país, concentrando 46% das inversões, segui- nância das atividades comerciais e financeiras
da pelo setor serviços que foi responsável por sobre as produtivas.
44% do total.
Isto pode ser observado já na década de noven-
Ademais, os investimentos em busca de recur- ta, com o desengajamento produtivo das filiais
sos naturais são significativos, motivados pela instaladas no país. Com o processo de abertura
tendência altista dos últimos anos dos preços comercial e financeira, a valorização do capital
das commodities agrícolas e metálicas no produtivo das filiais das multinacionais traduz-
mercado mundial. A consolidação do Brasil en- -se em operações de reestruturação produtiva,
quanto grande produtor e fornecedor mundial que implicam a redução das operações propria-
de produtos básicos contribui para esse forte mente produtivas combinadas a uma expansão
influxo de IDE. Entretanto, os investimentos das atividades puramente comerciais. Ou seja,
ressource seeking registraram uma desaceleração as filiais engajam-se numa lógica de produção
em 2011 (9% do total de IDE) comparativamente mínima e de importação, acentuando a transfe-
aos anos anteriores. rência interna de excedente em direção a outras
unidades do mesmo grupo que exercem fun-
Apesar dos resultados positivos, é preciso
ções mais estratégicas em termos de criação de
chamar a atenção para o fato de que a inserção
riqueza. (Moreira, 2003)
ativa da economia brasileira no capitalismo fi-
nanceirizado implica a subordinação da dimen- Nos anos 2000, as filiais estrangeiras continuam
são produtiva aos critérios puramente finan- integradas a uma lógica global na qual se bene-
3
ceiros e de curto prazo imposto pela finança. ficiam das diferenças existentes em cada país.
Nesse contexto, constata-se uma adaptação do Nesse contexto, especializam-se em atividades
capital estrangeiro a essa lógica de curto prazo, que pouco contribuem para a constituição dos
com consequências importantes na dinâmica elementos que compõem a cadeia produtiva.
do investimento direto estrangeiro. (Moreira & Um exemplo nessa direção está associado à
Tavares, 2012) indústria automobilística. Um estudo do IEDI

102
(2011) revelou que a demanda doméstica de observa no segmento de autopeças. No último
veículos no Brasil registrou um incremento de ano analisado, as importações ultrapassaram as
1,8 milhões de veículos entre 2005 e 2010, alcan- exportações em US$ 3,5 bilhões.
çando 3,5 milhões. Esse valor é mais do que o
O caso da indústria automobilística ilustra bem
dobro do registrado no início do período (1,7
essa nova etapa do processo de internaciona-
milhão). O aumento real da massa salarial e a
lização produtiva no Brasil, na qual as filiais
expansão do crédito foram os grandes responsá-
estrangeiras não chegam a inserir-se fortemente
veis por esse desempenho. E, em 2009, as polí-
nas cadeias produtivas do país, com efeitos
ticas anticíclicas do governo direcionadas para
menos importantes na ampliação da capacidade
o aumento do consumo de setores estratégicos,
produtiva do que em fases pretéritas.
como o automobilístico, também contribuíram
Em verdade, a lógica de otimização da localiza-
para esse resultado positivo.
ção das firmas estrangeiras leva em considera-
O dinamismo do mercado consumidor interno
ção a possibilidade de importação de insumos
de veículos beneficiou, sobretudo, as importa-
e bens de consumo aberta pela liberalização
ções. De fato, as compras internacionais assi-
comercial e pelo contexto de juro alto e câmbio
nalaram alta de 650% nesse período, passando
apreciado. Nesse cenário, os setores dinâmicos
de 88 mil para 660 mil veículos. Esse resultado
de alta e média-alta tecnologia, onde se observa
elevou a participação dos importados na de-
uma clara dominância do capital estrangeiro,
manda total de apenas 5% em 2005 para 19% em
são os que apresentam maiores déficits na ba-
2010. Vale destacar que 45,8% do crescimento do
lança comercial, com consequentes esvaziamen-
mercado interno em 2010 foi atendido pelas im-
tos de suas cadeias produtivas. Nesse sentido,
portações, ou seja, quase a metade do total. Em
fica evidente que o Brasil é considerado uma
contrapartida, a produção nacional assinalou
extensão do mercado global para grande parte
um incremento bem mais modesto comparati-
das empresas estrangeiras. Porém em um cená-
vamente as compras internacionais: 75% entre
rio onde as importações são a opção preferida,
2005 e 2010.
ficando o investimento como second best choise.
Com relação às exportações, a pesquisa consta-
A inserção do país no regime de acumulação
tou um recuo de 30,6% no intervalo analisado.
de dominância financeira estimula as filiais
Esses resultados levaram a balança comercial
a buscar formas de valorização puramente
de automóveis a um déficit histórico de US$ 4,9
financeiras. Recentemente, as empresas es-
bilhões em 2010. Essa mesma configuração se
trangeiras vinham utilizando os empréstimos

Revista da sociedade brasileira de economia política 103


38 / junho 2014
intercompanhias para evitar o imposto sobre 5. Considerações finais
operações financeiras (IOF) para aplicação em A análise do processo de internacionalização pro-
renda fixa. Quando o governo elevou o IOF dutiva confirma o papel central do capital estran-
sobre aplicação em títulos de renda fixa em geiro na constituição do padrão de especialização
outubro de 2010, o fluxo de IDE estava em US$ produtiva defendido por Osorio (2012). Indubita-
6,8 bilhões. Em dezembro do mesmo ano, o velmente, é nas grandes empresas estrangeiras e
montante já estava em US$ 15,4 bilhões. As an- nacionais que se concentram as principais bases
tecipações dos empréstimos permitem às filiais exportadoras de produtos primários.
aplicar no mercado financeiro para somente em
Entretanto, a reprodução do capital estrangeiro
seguida realizar algum “investimento”. Ou seja,
está igualmente associada ao crescimento do
as empresas buscam com esses fluxos beneficiar-
consumo doméstico. As filiais das empresas
-se do diferencial de juros.
multinacionais do setor industrial e de serviços
Diante desse movimento especulativo, o gover- beneficiam-se substancialmente da ampliação
no decidiu aplicar uma tributação de 6% de IOF do mercado interno. Isto não implica a realiza-
para os empréstimos intercompanhias de curto ção de grandes investimentos na expansão da
prazo em março de 2011. O objetivo era conter a capacidade produtiva.
entrada de capital de curto prazo no país e a va-
Na verdade, o dinamismo do mercado consu-
lorização da moeda nacional. Inicialmente pre-
midor, no contexto regime de acumulação de
visto para operações com duração média de até
dominância financeira, acaba valorizando as
cinco anos, o governo reduziu esse prazo para
atividades comerciais e financeiras das empre-
apenas um ano em julho de 2012. Com a tributa-
sas estrangeiras em detrimento das atividades
ção o e ciclo de queda da Selic, os empréstimos
produtivas. Portanto não se pode associar o
intercompanhias caíram substancialmente.
desengajamento produtivo do capital estran-
A apropriação de lucros a partir de operações
geiro à ausência de um mercado consumidor
puramente financeiras evidencia o movimento
assalariado dinâmico e à consolidação de uma
de financeirização das firmas estrangeiras, que
base primária exportadora. O duplo movimento
assume uma dimensão importante nesse novo
de desindustrialização/reprimarização no caso
regime de acumulação.
brasileiro não se enquadra no padrão exporta-
dor de especialização produtiva. Na verdade,
é um reflexo da subordinação do país a lógica
financeira do capitalismo contemporâneo.

104
Abstract CHESNAIS, François. “Le capital de placement: accumula-
tion, internationalisation, effets économiques et politiques”.
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assumes that the increase of exports occurs at pressão do baixo dinamismo”. Carta IEDI nº 555. São Paulo,
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In contrast, we observed that, in the Brazilian tações. São Paulo, agosto de 2011.
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dustrialization does not result from a lack of pendente”. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Ma-
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dynamism in the domestic market, which has
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undergone considerable expansion in recent
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E
years. At this conjuncture, the process of finan- COMÉRCIO EXTERIOR. Balança comercial. Disponível em:
cialisation of multinational companies seems to www.desenvolvimento.gov.br. [Acesso em: 11/02/2013.]

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Revista da sociedade brasileira de economia política 105


38 / junho 2014
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dor de especialização produtiva – estudo de cinco econo- da capacidade produtiva, observada durante o período
mias da região”. In: Padrão de reprodução do capital: contribui- fordista, para uma lógica de centralização do capital e rees-
ções da teoria marxista da dependência. Carla Ferreira, Jaime truturação produtiva. Como consequência, as reengenharias
Osorio, Mathias Luce (Org.). São Paulo: Boitempo, 2012. produtivas que reordenam o modus operandi das megaem-
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SALAMA, Pierre. “Industrialisation et ‘desindustrialisation
precoce’”. Seminaire BRICS, Paris, 17 octobre 2011.

Notas
1 Estudo recentemente publicado pela Comissão Eco-
nômica para a América Latina e Caribe (Cepalc) revelou
que a China constitui-se a principal fonte de crescimento
das exportações da América Latina e Caribe, inclusive no
contexto da forte desaceleração observada nessa região
em 2009. Ademais, constatou-se um padrão eminentemente
interindustrial do comércio entre as duas regiões, com a
China exportando principalmente manufaturas e importan-
do matérias-primas. (Cepalc, 2010)
2 Por intensidade-tecnologia, a metodologia da OCDE clas-
sifica a indústria de transformação em quatro segmentos:
alta tecnologia, média-alta tecnologia, média-baixa tecnolo-
gia e baixa tecnologia.
3 Sobre a subordinação da produção aos critérios financei-
ros, Chesnais (2005) já chamava a atenção para o fato de
como a finança foi bem sucedida em colocar a “exteriorité
à la production” no centro dos grupos industriais. Na visão
do autor, essa é uma das características mais originais da
contrarrevolução social contemporânea. A partir dos anos
oitenta, os proprietários acionistas desenvolveram meios
jurídicos ou quase jurídicos para subordinar os executivos
industriais, transformando-os em pessoas preparadas para
seguir as prioridades e os códigos de conduta emanados do
poder do mercado acionário. Os grupos industriais devem
ser administrados de acordo com os critérios puramente
financeiros, satisfazendo os objetivos de rentabilidade de
curto prazo dos gestores de fundos especulativos. Passa-se

106
Uma interpretação pós-keynesiana do Regime de
Metas de Inflação: poderia a Autoridade Monetária
ser capturada pelo sistema bancário?
Fábio Enrique Bittes Terra
Uma interpretação pós-keynesiana do
Regime de Metas de Inflação: poderia a
Autoridade Monetária ser capturada
pelo sistema bancário?

Resumo

O
regime de metas de inflação (RMI) é uma proposição de
política econômica que decorre do chamado Novo Consenso
Macroeconômico e é o modus operandi da política monetária
em vários países. A partir do referencial teórico pós-keynesiano, crítico
ao referido Novo Consenso, o objetivo deste artigo é analisar se, sob a
vigência do RMI, a Autoridade Monetária (AM) pode tornar-se captura-
da pelo sistema bancário. A lógica aventada no artigo é a de que a AM,
sob o RMI, pode ser dominada pelos bancos haja vista que são eles, em
última instância, que decidem qual a magnitude da demanda agregada
e é o controle desta, em primeira instância, o foco da AM sob o Regime.
Após o desenvolvimento teórico da possibilidade de captura da AM,
o artigo busca evidências do problema em tela na história econômica
recente do Brasil sob o RMI.

Palavras-chave: Regime de metas de inflação; novo consenso macroe-


conômico; teoria keynesiana; economia monetária da produção.

Classificação JEL: E12, E42, E52, E58.

1. Introdução
Fábio Henrique
Bittes Terra A lógica operacional do Regime de Metas de Inflação (doravante RMI)
Professor Adjunto do Instituto ancora-se em pressupostos que encerram, por um lado, uma Autoridade
de Economia da Universidade
Federal de Uberlândia. Monetária que terá um constrangimento, dado pela meta de inflação, à
ação discricionária e, por outro lado, um agente bancos criadores de moeda. Nesse particular,
econômico bem comportado, com expectati- a lógica subjacente à ideia de captura da AM
vas racionais que possuem esperanças foward desenvolve-se da seguinte forma: por um lado,
looking, sendo que ambos os lados estão atu- o objetivo do Banco Central é o alcance da
ando em um jogo dinâmico e sem fim decla- meta de inflação, cujo atingimento, sob o RMI,
rado. Neste cenário, os agentes e a Autoridade depende do controle da demanda agregada via
Monetária são induzidos a cooperar, a fim do taxa de juros. Neste ínterim, é condição sine
alcance do bem-estar social, sem oportunismos qua non para o sucesso da AM sua reputação
de ambas as partes, de forma que “nenhuma crível, algo que conduz os agentes a com ela
punição surge de crimes do período passado”. cooperarem e reduzirem seus preços, desinfla-
(Barro & Gordon, 1983, p.110) cionando a economia. Por outro lado, os bancos
comerciais criam moeda e, ao fazê-lo, ofertam
Em termos de policy making, o referido RMI
poder de compra aos tomadores de recursos,
tornou-se, desde o início dos anos 1990, a regra
isto é, capacidade de demanda agregada. Por-
de condução da política monetária em diversos
tanto, o sucesso da AM – e de sua credibilidade
países, sejam avançados, sejam emergentes.
– depende crucialmente da forma pela qual o
Dentre estes, destaque-se o Brasil, que o adotou
sistema bancário se comportar, pois os bancos,
em 1º de julho de 1999. Então, é de se esperar
em última instância, influenciam a magnitude
que a lógica operacional do Regime sirva como
da demanda agregada e é o controle desta, em
um modelo do comportamento dos agentes
primeira instância, o foco da política monetá-
no sistema econômico. Entretanto, desde uma
ria sob o RMI. Neste cenário, a AM encontra
perspectiva teórica crítica ao Novo Consenso
restrições para enfrentar o comportamento es-
Macroeconômico propositor do RMI, pode-
tratégico dos bancos que, por sua vez, usam as
-se questionar: e se os agentes com os quais se
restrições de atuação da AM para enfrentarem
defronta a Autoridade Monetária (de agora em
suas expectativas incertas sobre a obtenção do
diante, AM)1 tiverem comportamentos diversos
lucro. É este o processo de captura da AM pelo
em relação àquilo que o arcabouço teórico do
sistema bancário.
RMI prevê?
O artigo está estruturado em cinco seções,
Substanciado pela teoria pós-keynesiana, este
além desta introdução. Na seção 2, os modelos
artigo objetiva mostrar, em âmbito teórico, que
teórico e operacional do RMI são descritos. Na
a AM pode ser, sob o RMI, capturada pelos

Revista da sociedade brasileira de economia política 109


38 / junho 2014
seção 3, a partir da perspectiva pós-keynesiana, (Barro & Gordon, 1983) Em função deste perfil
é apresentada a forma pela qual os bancos defi- de interação há a possibilidade de os ajustes dos
nem suas estratégias de precificação de ativos e mercados serem lentos e dependerem da reputa-
de composição de portfolio na busca pelo lucro, ção da AM.
essência de sua existência enquanto empresa
Por sua vez, os policy makers são imbuídos do
financeira. A seção 4 mostra como os bancos po-
viés inflacionário e, então, instituem políticas
dem capturar a AM sob o RMI, enquanto que
econômicas expansionistas financiadas por
a seção 5 analisa, utilizando-se de estatística
emissão de moeda que ampliam o emprego além
descritiva, se há evidências de captura do Banco
de seu nível natural e pressionam a demanda
Central do Brasil pelo sistema bancário, pós-
agregada. Em decorrência do aquecimento do
-RMI. Por fim, a última seção sumariza o artigo.
mercado de bens e serviços em geral, e do mer-
cado de trabalho em específico, tem-se o aumen-
2. O Novo Consenso Macroeconômico to dos salários nominais e, por consequência, a
e o Regime de Metas de Inflação expansão dos custos marginais. Neste cenário,
Embora novos clássicos e novos keynesianos os produtores elevam seus preços para evitarem
tenham agendas de pesquisa distintas, suas perdas em seus markups. Portanto, a expan-
proposições de policy making são consensuais, são monetária causa a ampliação da demanda
o que levou ao surgimento do chamado Novo agregada, do emprego e da produção correntes,
Consenso Macroeconômico (doravante, NCM), porém com aumentos nos preços. Assim, efetiva-
como “um conjunto de princípios-chave – um -se o trade-off de curto prazo entre emprego e
núcleo de [hipóteses] macroeconômicas sobre inflação previsto pela Curva de Phillips.
as quais há amplo consenso”. (Taylor, 1997, Todavia, as expectativas foward looking em
p.233) A estrutura teórica do NCM assume que um cenário de interação repetitiva tornam os
a racionalidade dos agentes está embasada na parâmetros das funções-objetivo dos agentes
hipótese de expectativas racionais e, portanto, bastante sensíveis às políticas econômicas. O
as variáveis relevantes são consideradas em ca- exercício do viés inflacionário provoca, então,
ráter foward looking. Os indivíduos maximizam uma inconsistência dinâmica na alocação de
funções intertemporais que implicam otimiza- recursos dos agentes, cujas expectativas fo-
ção dinâmica e em que a AM e os agentes par- ward looking fazem com que eles retaliem a
ticipam de jogos repetitivos e sem fim definido. AM, porquanto percebam seu oportunismo. De

110
acordo com Bernanke & Miskhin este jogo não qualquer desvio do emprego e do produto em
cooperativo, relação a seus níveis de equilíbrio.2 (Kydland &
leva a AM a tentar enganar o público com Prescott, 1977)
surpresa inflacionária, induzindo produtores [...] Deste arcabouço lógico surge a necessidade de
a crescer o produto e o emprego acima do nível
que o viés inflacionário dos policy makers seja
natural. Se o público possui expectativas racio-
contido, a bem de a economia trilhar seu per-
nais, entretanto, ele antecipará as ações do Banco
Central e os produtores não serão enganados. curso sem distorções nas alocações de recursos.
(Bernanke & Miskhin, 1997, p.14) Ao passo em que a inflação resulta das políticas
de easy money da AM, deve existir uma regra
Na ausência de credibilidade, em função de
que constranja a discricionariedade dela e torne
inconsistência dinâmica passada, os agen-
a política monetária consistente, crível e indu-
tes mantêm suas expectativas de inflação no
tora da cooperação dos agentes. Neste cenário,
futuro, mesmo diante do anúncio de políticas
a meta de inflação tornou-se a regra, ou seja, o
contracionistas para desinflação, e de esforços
constrangimento que demonstra todos os esfor-
operacionais da AM para tanto. Em oposição,
ços que a AM faz para “manter o crescimento
com transparência, consistência entre anúncio
da demanda agregada estável objetivando pre-
e resultado, boa reputação e, logo, credibilida-
venir flutuações no produto real e na inflação”.
de, a AM conseguirá fazer com que sua inte-
(Taylor, 1997, p. 234)
ração com os agentes provoque-lhes crenças
de que a política de estabilidade será perene. Para tanto, a política monetária é ativa e o
Por esperarem menor inflação futura, os agen- instrumento por ela utilizado é a taxa de juros
tes diminuem gradualmente seus preços, até nominal. (Goodfriend & King, 1997) Dada pela
que os desvios das expectativas se extingam chamada Regra de Taylor, a função de reação
e o sistema econômico siga sua trajetória de da AM baseia-se nos juros, pois eles são de
equilíbrio de longo prazo. No caso de a AM simples compreensão pelos agentes e oferecem à
no curto prazo persistir em utilizar-se do viés política monetária flexibilidade e eficiência para
inflacionário, os resultados alcançados no longo o gerenciamento da demanda agregada. (Taylor,
prazo serão “uma inflação mais elevada do que 1993) Os juros afetam a atividade econômica por
o ótimo, sem benefícios em termos de menor meio das expectativas que orientam as funções-
desemprego”. (Bernanke & Mishkin, 1997, p.14) -objetivo dos agentes vis-à-vis os preços relati-
Ou seja, a economia se encontrará em um ponto vos da cesta de bens e serviços que eles acessam.
subótimo, com maior patamar de preços sem Ao alterar-se a taxa de juros, mudam-se os

Revista da sociedade brasileira de economia política 111


38 / junho 2014
custos relativos presentes e futuros. Aumentos de âncora cambial ter sido eliminado em janeiro
nos juros sugerem maior benefício da poupança do referido ano. (Banco Central do Brasil, 2012)
no presente e provocam a substituição inter- Assim, o mainstream teórico sintetizado pelo
temporal nas alocações dos agentes, implicando NCM passou a ocupar de forma hegemônica a
menor demanda agregada. Reduções nos juros orientação dada às políticas econômicas em ge-
promovem reações no sentido contrário. Cabe ral; em particular, a política monetária tornou-
ressaltar que, quando a inflação é causada por -se a mais relevante, cabendo às políticas fiscal e
choques de oferta, a política monetária pode cambial um lugar subordinado à sustentação do
acomodá-la sem necessariamente alterar os ju- regime monetário. Como consequência, a taxa
ros, seja pelo uso de bandas de inflação ao invés de juros da AM consolidou-se como principal
da meta, seja pelo espaço de tempo de conver- instrumento de política econômica, responsá-
gência da inflação ao alvo. vel, sobretudo, por deixar a demanda agregada
dentro dos limites suportados pelas condições
Arestis et alii (2009) mostram outros aspectos
de oferta da economia. (Arestis & Saw yer,
operacionais que são auxiliares à taxa de juros
2003a; 2003b)
na condução da política monetária. Dentre tais
elementos os autores destacam os relatórios de O alastramento do RMI como modus operandi
inflação, a clareza nas informações publicadas, das políticas monetárias envolve a aceitação
as reações rápidas a choques de demanda, a do arcabouço lógico do NCM ou, no mínimo,
abrangência e o realismo dos modelos de pre- o seu não questionamento. Portanto, supõe-se
visão de inflação, a independência da AM ou, um mundo previsível, movido por pretensões
quando esta não for possível, sua autonomia individuais que são reativamente cooperativas
operacional. Todos estes aspectos conferem e em que a melhor atuação dos policy makers é
transparência à atuação da AM e servem para criar formas de constrangerem publicamente
construir a reputação crível que ela deve ter a si próprios. O exercício do RMI implica a
para que os agentes contribuam com o esforço realidade ser tal qual prevê a teoria ou, no
desinflacionário. limite, tender a isso. Mas o que acontece se
esta realidade invocada não for, e nem tender
Pois bem, a iniciar-se pela Nova Zelândia em
a ser, aquela em que se espera que o RMI seja
1989, o RMI foi implementado em diversos paí-
exercido?
ses,3 sendo que, no Brasil, sua efetivação ocor-
reu em julho de 1999, após o regime monetário

112
3. Bancos e a Autoridade Monetária salário mínimo e o nível de renda média, entre
em economias monetárias da produção outros.
Segundo Keynes, Consoante Keynes (1973), quanto mais elemen-
o empresário não está interessado no montante tos conhecidos estiverem disponíveis e mais
de produto, mas no montante de moeda que lhe estáveis eles forem, maior o peso do argumen-
será partilhado. Ele expandirá sua produção, to do investidor e, então, maior a confiança
pois espera, ao fazê-lo, aumentar seu lucro mone- dele nas proposições que faz sobre um futuro
tário. (Keynes, 1979, p.82)
incerto. Em outros termos, quanto maior e mais
Isso define a natureza do sistema econômico perene e perceptível no tempo for o conjunto
enquanto economia monetária da produção, de elementos conhecidos em que uma decisão
em que investimentos de moeda em recursos de investimento basear-se, maior o estado de
produtivos são realizados a fim de conseguir confiança do empresário em suas expectativas
mais moeda em um futuro próximo. Porém, sobre o futuro.4
o caminho de longo prazo entre o presente,
Keynes (1964) aponta que o processo de investi-
tempo do investimento, e o futuro, momento
mento ocorre em duas etapas: primeiramente,
no qual se espera que a produção se realize,
os empresários realizam a precificação dos
é desconhecido e não há cálculos que o
diversos ativos e, então, o investimento é ma-
antecipem.
terializado em uma determinada composição
Para que se animem a investir, mobilizando de portfolio de ativos. A precificação de ativos
recursos que ampliarão o emprego, a renda e a é o modo pelo qual os investidores calculam
riqueza, os empresários formam expectativas a renda líquida esperada, isto é, a expectativa
sobre o futuro baseadas, de retorno de um determinado investimento.
em parte, [em] fatos existentes que se podem Apreendendo os elementos conhecidos e formu-
supor sejam conhecidos mais ou menos com cer- lando expectativas sobre o futuro, os indivíduos
teza e, em parte, [em] eventos futuros que podem esperam do ativo uma quase renda, a que se
ser previstos com um maior ou menor grau de acresce o prêmio dado pelo grau de liquidez, e
confiança. (Keynes, 1964, p.147) em que se descontam os custos de carregamen-
A título de ilustração dos elementos conheci- to ao longo do tempo.
dos, cite-se a taxa de juros corrente, o nível de Dentre os diversos ativos passíveis de escolha,
capacidade produtiva, a escala de produção de a moeda também se configura em uma alterna-
um ativo de capital em específico, o patamar do tiva, não pelo retorno pecuniário que oferece

Revista da sociedade brasileira de economia política 113


38 / junho 2014
– que é nulo e, portanto, não respeita a lógica Pois bem, há uma importante peculiaridade da
de investir a fim do lucro – mas pelo seu prêmio circulação financeira, que diz respeito aos finan-
de liquidez máxima coadunado com seu custo ciamentos surgidos a partir dela poderem ser
de carregamento negligenciável. Contudo, se criados a descoberto, sem a necessidade de pou-
em primeira instância a precificação feita pelos pança prévia ou em nível superior às reservas
indivíduos aferir que a moeda é a melhor opção, existentes. Logo, a oferta de moeda na econo-
o que se tem é a precaução e não o investimen- mia não é função apenas da emissão feita pela
to. (Keynes, 1964) Por isso, o investimento é a AM, mas também depende do modo pelo qual a
última instância da decisão e, preferindo-se a composição de portfolio dos bancos criadores de
liquidez da moeda ao gasto com investimento, moeda-crédito atender à demanda por moeda.
não se gerará nova capacidade produtiva, nem Neste particular, a oferta de moeda é endógena
serão criados novos empregos, renda e riqueza. e sua magnitude dependerá da precificação que
os bancos fizerem das obrigações colocadas à
Portanto, caso não prevaleça a preferência pela
venda nos mercados financeiros.
liquidez, o investimento será dedicado a ativos
de duas naturezas, de capital real e financeiros. Embora varie em magnitude ao longo dos
A composição de portfolio em ativos de capital ciclos econômicos, a criação de moeda é uma
real, bem como as transações dos bens e ser- ação estrutural6 dos bancos, pois a oferta de
viços resultantes da produção, conformam a meios de pagamento a descoberto é um dos
esfera de circulação industrial. (Keynes, 1971b) principais caminhos pelos quais eles buscam
Por sua vez, os ativos financeiros podem ser lucros. Tal qual qualquer empresa, os bancos re-
definidos como “transações de moeda à vista em alizam transações ansiando lucro e percorrem o
troca de moeda depois. Neste sentido, são como mesmo caminho incerto entre a aposta presente
um título ou a aquisição de uma anuidade”. e o resultado futuro. Logo,
(Minsky, 1986, p.214) Os ativos financeiros são o os bancos comerciais [...] são instituições que têm
investimento que não redunda imediatamente o lucro como objetivo e operam sob restrições
em produção, embora seja de se esperar que a semelhantes às de qualquer outro agente, em
maior parte dos ativos nesta circulação sejam particular, sob incertezas do futuro iguais ou
instrumentos intermediários para o financia- maiores que as que atingem o resto dos agentes.
(Carvalho, 1993, p.119)
mento da produção.5 A oferta e a demanda por
ativos financeiros encontram-se na esfera da Nesse particular, como argumenta Paula (2014),
economia a que Keynes (1971b) chamou de circu- um dos elementos a ser considerado pelos
lação financeira. bancos em suas decisões de composição de

114
portfolio é a forma pela qual a AM exercerá sua do RMI, não adquira credibilidade. Para que as
política monetária, tanto na forma de regula- intenções dos policy makers sejam confirmadas e
mentações por ela colocadas sobre o mercado provoquem os efeitos desejados, os bancos pre-
monetário, quanto na instrumentalização da cisam ratificá-las e não há nada que implique
taxa de juros. As regulamentações, tais como isso de imediato. A rigor, a AM pode punir os
os encaixes compulsórios sobre depósitos à bancos que não confirmarem suas políticas, por
vista e a prazo, limitam as possibilidades de exemplo, imputando-os exigibilidades elevadas
concessão de empréstimos – isto é a oferta de sobre os depósitos captados, não sancionando
7
serviços bancários. A taxa de juros da AM, por demandas adicionais por reservas bancárias ou
sua vez, é o juro sobre o qual o sistema bancário estabelecendo taxas elevadas para a utilização
estabelece seu markup, conformando os preços do redesconto.
dos serviços que ofertarão ao público. Assim,
Porém, no conflito de poder com o sistema
bancos e Banco Central, diferentemente dos
bancário, a AM precisa lidar com duas ques-
postulados do RMI, não cooperam entre si, mas
tões que lhe enfraquecem as possibilidades de
travam uma relação do tipo regulador-regulado
sanções sobre o sistema bancário. Por um lado,
em que este considera as possíveis ações futuras
como ressalta Minsky (1986), os bancos são
daquele para estabelecer suas composições de
peças-chave nas economias monetárias da pro-
ativos em busca do incerto lucro futuro. Não é
dução, dado que o finance que concedem é fun-
por menos que
damental para que as decisões de investimento
a concretização dos objetivos de política busca- dos empresários sejam viabilizadas e ampliem
dos pelas autoridades monetárias depende da o emprego e a renda da economia. Por outro
reação dos bancos e suas políticas, podendo ser
lado, para desviarem-se dos limites colocados
confirmada, atenuada ou contraposta. (Paula,
pela AM, os bancos lançam mão de inovações
2003, p.333)
financeiras que alteram suas administrações de
Por conta disso, a AM pode enfrentar atributos balanços, tanto do lado das operações ativas
de resiliência dos bancos em relação às suas po- que fazem quanto no que diz respeito às formas
líticas e, na medida em que a operação bancá- de captação de recursos, isto é, suas operações
ria, por excelência, é criadora de moeda-crédito, passivas. (Minsky, 1986)
ou seja, poder de demanda, o desvio dos bancos
Como se não bastassem tais relações de poder
das ações da política monetária pode ser deter-
entre bancos e Banco Central é possível apontar,
minante para que o Banco Central, sob a lógica
a partir de Keynes (1964), outro problema a ser

Revista da sociedade brasileira de economia política 115


38 / junho 2014
enfrentado pela AM, qual seja, a eficiência da ativos em meio à incerteza radical, de modo que
política monetária decorrente de seu impacto toda informação disponível é elemento conhe-
indireto sobre a atividade econômica. Ao opera- cido para suas decisões de investimento. Neste
cionalizar a política monetária via open-market, cenário, o RMI, ao impor uma AM cooperativa
trocando títulos públicos por moeda no mer- e restringida pela busca de credibilidade, porém
cado de reservas bancárias, a AM modifica as confrontada por investidores que precisam agir
condições da liquidez na circulação financeira, com oportunismo para terem melhores expecta-
alterando, em sequência, (i) as condições ime- tivas de lucro, pode encerrar resultados diversos
diatas de oferta de moeda, (ii) as expectativas dos esperados pelo NCM.
dos ofertantes e demandantes de moeda e as
taxas de juros do mercado monetário, (iii) e,
4. Poderia a AM ser capturada pelos
a decorrer disto, altera-se todo o complexo de
bancos?
juros do sistema financeiro, o que implicará,
A partir das proposições do RMI, o compromis-
enfim, (iv) diferentes decisões na circulação
so único da política monetária é a acomodação
industrial. A título de ilustração, em ocasiões
inflacionária. A causa da inflação encontra-se
extremas como a armadilha pela liquidez, que
no viés inflacionário dos policy makers, que faz
representa a desconfiança plena dos agentes em
a AM expandir o volume de meio circulante,
relação ao futuro, a política monetária é inócua
forçando a demanda agregada para além do pro-
em estimular a atividade econômica. Daí, por
duto potencial. Para que se faça a desinflação,
sinal, a preferência de Keynes pela política fiscal
a AM utiliza-se da taxa de juros básica, a bem
como instrumento de estabilização automática
de desviar o dispêndio presente para o futuro
do ciclo econômico.8 (Keynes, op. cit.)
e acomodar a demanda nos limites colocados
Em suma, nas economias monetárias os bancos pela oferta. Uma ampla gama de elementos de
são peças-chave para a dinâmica de crescimen- publicidade subsidia a instrumentalização dos
to do produto, pois criam meios de pagamento juros e visa dar transparência às ações da AM,
de forma endógena e atendem à demanda por imputando-a, ao passar do tempo, credibilida-
moeda, seja para transações do público ou dos de, fator sine qua non para o sucesso da política
negócios. São eles que antecipam os recursos monetária.
que no futuro podem ser confirmados pelas ven-
Para a perspectiva pós-keynesiana, os ban-
das da produção constituída pelos investimen-
queiros são empresários em busca de lucro e
tos. Entretanto, bancos buscam lucro e, para
que atuam em um ambiente de incerteza. Para
tanto, tramam estratégias para composição de

116
decidirem em que investir, eles formulam pro- AM, o que significa que maiores terão de ser os
posições sobre o futuro que se ancoram, por um juros que ela deverá estabelecer para controlar
lado, em dados mais ou menos conhecidos e, a concessão de crédito. O resultado lógico, por-
por outro lado, em expectativas mais ou menos tanto, é que sob o RMI, a AM torna-se captura-
confiáveis. Quanto maior o conjunto de dados da pelos bancos, que se utilizam da constrição
imediatamente disponíveis, com maior convic- de ação do Banco Central como meio para redu-
ção poderá o banqueiro enfrentar o desconheci- zir suas incertezas sobre quais decisões tomar a
do percurso que o separa do seu desejado lucro. bem da obtenção de maiores lucros.

Pois bem, sob o RMI, como dados conhecidos Os bancos não agem baseados em funções de
em suas decisões de investimento, os bancos maximização de lucro com ponto de máximo
sabem: (i) qual é a meta de inflação, (ii) qual conhecido e alcançável, como é pressuposto
é o tempo proposto para seu alcance, (iii) que pelo RMI, e nem a razão de ser deles é, em si, a
o objetivo único da política econômica é a oferta de serviços financeiros. Estes são apenas
estabilidade de preços, (iv) que a instabilidade o meio pelo qual eles buscam o lucro, que é
de preços é compreendida como decorrente de incerto e, portanto, com ponto máximo variável
choques de demanda, (v) que a taxa de juros é e indefinido a priori. A partir das informações
o meio único pelo qual se realiza a política mo- conhecidas e das expectativas que elas substan-
netária e, sobretudo, (vii) pela própria natureza ciam, os bancos definem, via ponderações de
dos seus negócios, os bancos sabem que eles são rentabilidade versus liquidez, as suas operações
capazes de criar moeda para atender a procura ativas.
por liquidez que, em sua maior parte, se trans-
Como se não bastasse, há ainda outros elemen-
forma em demanda agregada.
tos do RMI que intensificam a captura da AM,
Ora, se a reação da política monetária destina- quais sejam:
-se ao controle da demanda, quem define o
(i) a ampliação das fontes – e dos tipos – de
preço pelo qual este controle será exercido não
captação de depósitos, por meio de uma rotina
é a AM, mas o sistema bancário, pois ele tem
de inovações financeiras do sistema bancário,
enorme poder de definir qual a magnitude da
cujo objetivo é ampliar suas operações passivas
demanda agregada. Nesse particular, embora
e ativas, dando-lhes maior capacidade de ação e
possa soar contraditório, sob o RMI quanto
de desviar das regulamentações impostas pela
mais os bancos reduzirem suas preferências pela
AM;
liquidez, mais intensa terá de ser a reação da

Revista da sociedade brasileira de economia política 117


38 / junho 2014
(ii) na medida em que o instrumento da polí- estratégias concorrenciais, fatores que, em mer-
tica monetária sob o RMI é único, o grau de cados menos concentrados, limitariam o poder
autonomia da AM é reduzido. Embora Keynes de dominação deles sobre a AM.
(1971b) apontasse que o controle da taxa de juros
Sob o RMI, portanto, a AM pode ser captura-
é o instrumento ideal de política monetária,
da pelas instituições criadoras de moeda, ou
suas declaradas preocupações (Keynes, 1964)
seja, os bancos. O esforço contínuo da política
com as limitações de uma política meramente
monetária centra-se no controle da demanda
monetária para influenciar a taxa de juros e, por
agregada que, contudo, os bancos têm o poder
conseguinte, os comportamentos dos investi-
de expandir, ao ratificarem (ou, até mesmo, in-
dores financeiros, deixam claro que apenas o
duzirem) a demanda por moeda-crédito. Assim
referido instrumento não basta.9
sendo, os bancos possuem uma extensa influ-
(iii) a existência de diversos fatores causais do ência sobre a magnitude da demanda detendo,
nível de preços, todos atuando concomitante- por consequência lógica, enorme capacidade
mente, mas para os quais a AM não se utiliza de de escolher a que preço – leia-se, a que taxa
instrumentos específicos, pode sensibilizar por de juros – desviará moeda do público para as
demais a resposta dos juros aos movimentos nos reservas bancárias.
preços. A depender da interação entre choques
Uma síntese dos argumentos pode ser assim
de oferta e de demanda, a volatilidade da infla-
descrita. A capacidade de criação de moeda
ção pode se ampliar, implicando que a reação da
endógena vis-à-vis o RMI pode tornar a AM
AM torne-se extremamente sensível a flutuações
refém do sistema bancário. Outros fatores
nos preços que são, na realidade, marginais.
podem intensificar esta captura, quais sejam, (i)
Assim, a elevada elasticidade inflação dos juros
as inovações na administração de balanços (ii)
pode fazer com que a AM reaja intensamente,
a utilização pela AM de um único instrumento
mesmo que os bancos ampliem pouco a liquidez.
de política monetária em concomitância (iii)
(iv) por fim, um último fator que intensifica à ausência de instrumentos que atuem sobre
a captura da AM diz respeito à estrutura do os demais fatores que causam variações nos
mercado bancário. Quando mais oligopolizado preços e (iv) a estrutura do mercado bancário.
o mercado for, maior será o poder de os ban- Sabendo-se que, em nível teórico, é possível a
cos capturarem a AM. Inclusive, processos de captura da AM pelos bancos, resta procurarem-
fusões e aquisições seriam benéficos aos bancos, -se evidências de este processo ter ocorrido no
pois reduziriam a divergência de opiniões e de Brasil, o que será feito na seção a seguir.

118
5. Há evidências de captura da Autori- mercado aberto são de crescimento enquanto
dade Monetária no Brasil pós-RMI? que a taxa Selic mostra-se decrescente ao longo
O método para se analisar se existem evidências do período. A inflação, por sua vez, apresenta-se
de captura do Banco Central do Brasil (BCB) bastante oscilante no início do período e seus
por parte do sistema bancário será o exame das ápices situam-se entre 1999 e 2003, em função
estatísticas descritivas entre a concessão de cré- das desvalorizações cambiais então ocorridas.
dito ao setor privado, o índice-meta de inflação, A partir de 2004, a inflação apresenta tendência
qual seja, o IPCA acumulado em 12 meses, a declinante, embora com sazonalidade ao longo
meta operacional da taxa de juros básica (Selic) de todo o período.
e os valores das operações de open market. Por sua vez, a Tabela 1 (página seguinte) sinte-
Sabendo-se que o objetivo da AM é alcançar a tiza os exames de correlação para as variáveis
meta de inflação, a relação entre as variáveis em análise, para o período de julho de 1999 a
assume a seguinte lógica causal: para atingir novembro de 2012. Como se pode perceber, as
a inflação anunciada, a AM precisa moderar o variáveis crédito, open market e Selic, guardam
volume de moeda-crédito em circulação para estreita relação linear sendo que as operações de
que possa influenciar a magnitude da demanda mercado aberto e o crédito privado caminham
agregada. Para tanto, a concessão de crédito em mesma direção em mais de 98% da série,
bancário ao setor privado é uma variável chave crédito e Selic trilham direções contrárias em
cujo controle dar-se-á pelo estabelecimento da 78% de suas trajetórias enquanto que Selic e
taxa de juros básica e pela circulação de títulos open market em 77%. Tais resultados expressam
no open market. A Selic é mantida em torno da que maiores volumes de open market relacio-
meta estabelecida pelo BCB por meio da com- nam-se à maior concessão de crédito enquanto
pra e da venda de reservas bancárias utilizando- que menores patamares da taxa Selic estão rela-
-se títulos públicos (isto é, dívida mobiliária) cionados com maiores volume de open market e
no mercado monetário secundário, ou seja, o de crédito concedido.
mercado aberto.
No que toca à correlação da inflação com as
O Gráfico 1 (página seguinte) descreve a trajetó- outras variáveis, seu valores mais significativos
ria das variáveis sob análise para o Brasil, entre residem na associação linear com a Selic,
julho de 1999 e novembro de 2012. Pela análise em que níveis mais altos dos juros básicos
do Gráfico, pode-se perceber que as tendências relacionam-se com índices mais elevados de
do crédito ao setor privado e das operações de inflação, algo esperado. Interessante notar,

Revista da sociedade brasileira de economia política 119


38 / junho 2014
Gráfico 1. Concessão de crédito ao setor privado, inflação (IPCA), operações de open market e
taxa Selic, julho de 1999 a novembro de 2012
0pen market

Crédito setor privado


Open market

Fonte: elaboração própria baseada em Banco Central do Brasil (vários anos).

Tabela 1. Matriz de correlação: crédito ao setor privado, open market e Selic

Crédito Selic Open Market Inflação


Crédito 1 -0,7866 0,9888 -0,3691
Selic -0,7866 1 -0,7724 0,7265
Open market 0,9888 -0,7724 1 -0,3496
Inflação -0,3691 0,7265 -0,3496 1
Fonte: elaboração própria baseada em Banco Central do Brasil (vários anos).
Nota: (i) série temporal mensal de 07/1999 a 11/2012; (ii) valores em base 1; e (iii) cálculo realizado via software Eviews.

120
ademais, que não há uma correlação tão intensa títulos públicos em operações compromissadas
entre inflação, open market e crédito, resultado e definitivas da AM no mercado monetário. Em
que pode ter decorrido da elevada volatilidade outros termos, ocorreu uma troca entre retorno
da inflação ao longo do período e da existência menor e quantidade maior na detenção dos
de outros elementos causadores da inflação, que títulos públicos por parte dos bancos comerciais
com ela se associam mais intensamente, como que operam no mercado aberto. A priori, a re-
fatores inflacionários de natureza cost push, tais dução da taxa de juros parece implicar uma não
como as desvalorizações cambiais, os preços captura do BCB pelo sistema bancário. Toda-
das commodities, os preços administrados e via, este é um efeito aparente, pois a crescente
indexados. detenção de dívida mobiliária pelos bancos
mostra que, embora a receita (juros) de cada
A bem da busca por evidências de captura do
título público se reduza, o estoque sobre o qual
BCB pelos bancos comerciais interessam (i) a
a taxa incide está em constante ampliação.
elevada associação linear entre Selic e inflação,
pois demonstra o modo pelo qual a AM busca Explica-se, então, porque mesmo diante da
controlar uma inflação multicausada, via taxa redução da Selic, o pagamento de juros nomi-
de juros básica, algo próprio às proposições de nais do governo federal, incluído o BCB, foi
política monetária sob o RMI e (ii) as elevadas crescente ao longo de todo o período do Brasil
correlações entre Selic, crédito e open market, sob RMI, conforme se pode ver no Gráfico 2
que ilustram o modo pelo qual a política mo- (página seguinte). Em concomitância aos meno-
netária se materializa. Defronte o Gráfico 1, que res patamares da taxa Selic, ocorridos a partir
reporta uma taxa de juros básica em constante de meados de 2006, como mostra o Gráfico 1,
queda e a Tabela 1, que mostra a elevada correla- o governo federal – responsável pela política
ção entre Selic e crédito, à primeira vista parece monetária – despendeu os maiores pagamentos
contrafactual que o BCB tenha sido refém do de juros nominais desde a introdução do RMI,
sistema bancário. Houve redução da taxa de ju- em julho de 1999.
ros básica sob a vigência do RMI no Brasil, per-
O crescente pagamento de juros apresentado no
mitindo a expansão do crédito e da demanda.
Gráfico 2 explicita o custo da efetivação da po-
Porém, a contrapartida da constante redução lítica monetária. Ele é o preço pelo qual o BCB
dos juros foi a elevação das operações de open comprou a composição de portfolio dos bancos,
market, o que evidencia que a queda da Selic desviando crédito do setor privado para a dívi-
só foi possível com o aumento da colocação de da mobiliária federal. Se a evidência de captura

Revista da sociedade brasileira de economia política 121


38 / junho 2014
Gráfico 2. Pagamento de juros nominais, julho de 1999 a novembro de 2012
200,000

180,000

160,000

140,000

120,000

100,000
R$ milhões

80,000

60,000

40,000

20,000

0
1999.07

2000.04
2000.07

2001.04
2001.07

2002.04
2002.07

2003.04
2003.07

2004.04
2004.07

2005.10

2006.04
2006.07

2007.04
2007.07

2008.04
2008.07

2009.04
2009.07

2010.04
2010.07

2011.04
2011.07

2012.04
2012.07
2005.07
2005.04
1999.10
2000.01

2000.10

2006.01

2006.10

2009.01

2009.10
2001.01

2001.10

2010.01

2010.10
2002.01

2002.10

2007.01

2007.10

2011.01

2011.10
2012.01

2012.10
2003.01

2003.10

2008.01

2008.10
2004.01

2004.10
2005.01

juros
Juros nominais
Nominais linear (juros nominais)
Linear(Juros Nominais)
Fonte: elaboração própria baseada em IPEADATA (2013).

do BCB pelo sistema bancário não pode ser ex- maiores de colocação e resgate de títulos públi-
pressa pela taxa de juros da AM, ela se explicita cos significaram esforços levados a efeito pela
pela ampliação das operações de open market e AM para dar vazão ao controle de liquidez. Sem
seus consequentes, e crescentes, pagamentos de qualquer instrumento para auxiliar os juros na
juros nominais. condução da política monetária, algo próprio do
RMI, o fluxo de operações com títulos públicos
A causa desta situação remonta àquilo a que
no mercado monetário elevou-se e, mesmo com
serviu a utilização dos títulos públicos: o
queda na taxa de juros ao longo do período,
exercício da política monetária. Portanto, tão
o pagamento de juros ampliou-se. Reitere-se,
importante quanto o estoque de endividamento
então, que os possíveis ganhos para as finanças
mobiliário acumulado – e por sinal, sintoma
públicas brasileiras de uma taxa de juros em
dele – foi a circulação da dívida mobiliária,
redução pós-RMI foram compensados desfavo-
representada pela crescente operacionalização
ravelmente por um estoque ampliado de fluxos
de títulos no open market. Fluxos cada vez
de dívida mobiliária, colocados em operações
122
de mercado aberto da política monetária, impli- estas informações, os bancos tomaram suas
cando gastos públicos com juros que se manti- decisões de investimento e seus retornos foram
veram em expansão. dados pela transferência dos recursos públi-
cos que custeiam a política monetária. Como
Desta maneira, em essência, a política monetá-
qualquer política pública, a política monetária é
ria teve como base a precificação das carteiras
financiada pelo orçamento público, cuja princi-
de ativos dos bancos, no sentido de oferecer-
pal fonte de receita é a arrecadação tributária.
-lhes uma alternativa de investimento em
Neste cenário, o custo de efetivação da política
relação ao fornecimento de crédito ao setor
monetária representou uma espécie de trans-
privado. Inverteu-se, assim, a lógica de controle:
ferência às avessas, em que recursos públicos
não foi a política monetária que efetivou limites
transferiram-se ao setor privado financeiro,
aos atores privados, mas estes que definiram
dando-lhe seus retornos.
a qual custo a política monetária tornar-se-ia
efetiva. Foram os atores do sistema bancário Além das evidências fornecidas pelos dados
que estiveram, a partir das palavras de Arida, apresentados, alguns eventos recentes parecem
“do outro lado do balcão [...] pensando o tempo corroborar a hipótese da captura do BCB pelo
todo em como arbitrar diferenças”. (Arida apud sistema bancário no Brasil. A taxa de juros bási-
Biderman et alli, 1996: p.325) Na outra ponta ca, entre agosto de 2011 e junho de 2012, caiu de
das mesas de operação da política monetária 12,50% para 7,50% (Gráfico 1), menor patamar da
estavam as instituições bancárias, cientes de história da Selic. Para que esta queda fosse possí-
que eram elas as ratificadoras da estabilidade vel e sustentável, o governo brasileiro instituiu
monetária, objetivo maior da atuação econômi- medidas macroprudenciais e de supervisão finan-
ca estatal sob o RMI. ceira10 sobre a concessão de crédito, controlando
a oferta de moeda por meio da restrição das
Enquanto investidores, a arbitragem de dife-
possibilidades de se demandar financiamento.
renças é a busca pelo lucro. Em um contexto
Em outros termos, controlou-se a oferta de moe-
em que pesa a incerteza acerca do futuro, os
da restringindo-a pelo lado da demanda. Houve
agentes em busca de lucros detiveram um con-
também, como mostra Rossi (2011), a colocação
junto de informação que oferecia um bom peso
de medidas macroprudenciais sobre operações
a seus estados de confiança sobre o retorno de
cambiais, para inibir, por exemplo, as operações
seus investimentos. Isso, pois a manutenção da
de linha dos bancos, que os permitiam ampliar
estabilidade monetária sob o RMI depende do
o crédito concedido no País a partir de aporte de
controle da criação de crédito ao público. Com
recursos de suas unidades no exterior.

Revista da sociedade brasileira de economia política 123


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6. Considerações Finais nesta direção recentemente tomados pela AM
Embora se tenha assistido à redução da taxa de brasileira mantenham-se e intensifiquem-se.
juros básica ao longo do período pós-RMI no Todavia, eles são sinais de uma flexibilização
Brasil, o pagamento de juros nominais elevou- do RMI “puro”, ainda que defronte a uma
-se. Como foi isso possível? Por conta da eleva- conjuntura de crise, o que em muito pode se
ção dos fluxos da dívida mobiliária federal, re- relacionar à busca por maior autonomia do BCB
sultado da materialização dos juros da política em relação ao sistema bancário.
monetária nos títulos públicos utilizados para Por sua vez, o ponto de partida das alternativas
controlar a moeda-crédito. Este processo foi o de política econômica keynesiana não trata de
resultado da captura da AM pelo sistema ban- otimizar a alocação de recursos escassos, mas
cário que absorveu como elementos conhecidos de produzir recursos, evitando que eles sejam
com um elevado grau de confiança para suas escassos. Porém, esta produção depende de ex-
decisões de investimento, as restrições dadas à pectativas, confiança, propensões e toda uma sé-
referida Autoridade pelo RMI. A possibilidade rie de elementos incalculáveis, portanto, impre-
lógica da ocorrência deste problema tornou-se visíveis e arriscados. A estabilidade monetária e
algo concreto na economia brasileira. todas as repercussões dela sobre o investimento
Entretanto, não há ilegalidade na ação dos produtivo são uma condição inquestionável
bancos. Eles apenas se aproveitam do cenário para uma dinâmica de crescimento do emprego,
oferecido pela AM, afinal eles estão no real da renda e da riqueza, como reiterou Keynes ao
world, para usar a clássica expressão de David- longo de sua obra. Contudo, ao passo em que se
son (1972), que não condiz com aquele previsto postula um eventual viés inflacionário da AM,
teoricamente pelo RMI. Assim sendo, para um é fundamental que se inclua um viés oportunis-
novo modus operandi da AM fazem-se neces- ta nos indivíduos. Culpada por natureza sob o
sárias medidas paralelas à política meramente RMI, restou à AM restringir a si mesma como
monetária, tais como a intensificação do uso das forma de clamar pela cooperação dos agentes.
medidas macroprudenciais, uma política fiscal Contudo, quanto mais regrada a AM, mais
ativa em investimentos públicos e a utilização oportunistas podem ser as instituições bancá-
de um câmbio administrado com controle de rias, pois maior o conjunto de informações que
capitais, o que confere maior autonomia à taxa elas possuem em suas decisões de investimento
de juros da política monetária em relação ao em busca do lucro.
setor externo. Espera-se que os apontamentos

124
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the inconsistency of optimal plans”. The Journal of Political
Economy, vol. 85, n. 3, p. 473-492, 1977. Notas
MEIRELLES, A. J. “Moeda endógena e teoria monetária da 1 Ademais, o termo Banco Central também será usado
produção”. Revista de Economia Política, vol. 15, n. 3 (59), como sinônimo de Autoridade Monetária.
p.18-30, 1995.
2 A propósito, para que ocorram modificações no produto
MENDONÇA, A. R. R. “Regulação bancária e arranjo ins- real de longo prazo, são necessários progressos técnicos
titucional pós-crise: atuação do Conselho de Estabilidade Fi- endógenos nas funções de produção. Apenas, isto fará, e
nanceira e Basileia III”. In: CINTRA, M. A. M. & GOMES, K. da R. não políticas econômicas expansionistas, com que as novas
As transformações do sistema financeiro internacional. Brasília, combinações de fatores provoquem ganhos de produtivida-
IPEA, 2012, pp.441.478. de e elevem o produto.

MINSKY, H. Stabilizing an unstable economy. New Heaven: 3 Modenesi (2005), Sicsú (2002), Teles & Nemoto (2005),
Twentieth Century Fund Report, 1986. além de Arestis et alii (2009), permitem listar os países que
adotaram o RMI. Por sinal, um dos argumentos favoráveis
ao RMI era que seu uso, ainda que implicitamente, já era

126
fato em alguns países, como apontam Bernanke & Mishkin o melhor ambiente para o investimento produtivo privado,
(1997) para o Bundesbank alemão e, conforme Taylor (2000, em busca do pleno emprego. Ademais, Ferrari Filho & Terra
p.91), “caso se olhe atentamente para a pesquisa sobre (2012) mostram que as políticas econômicas keynesianas
política macroeconômica nos anos 1990, encontra-se um deveriam ser articuladas e coordenadas, de forma. Assim,
modelo quase universal sendo usado para explicar as flutua- não se colocaria sobre a política monetária, por exem-
ções do crescimento. Os modelos agora utilizados para a plo, todo o esforço para o controle da inflação; ou, de
apreciação das políticas [...] também se encontram nesta outra forma, a política fiscal não se subsumiria à política
categoria”. monetária.
4 Não é por menos que Ferrari Filho & Terra (2011) 9 Como mostram Ferrari Filho & Terra (2012), são neces-
destacam que um dos papéis das políticas econômicas sárias medidas paralelas à ação meramente monetária, tais
ativas propostas por Keynes é justamente o de servirem de como o controle do risco endógeno inerente ao sistema
elementos conhecidos que deem peso ao argumento dos financeiro, o que limita, pelo lado da demanda por moeda,
indivíduos sobre o futuro. as possibilidades de concessão de crédito; uma política
fiscal ativa – e não subordinada à monetária – que garanta
5 Vale salientar, todavia, que não são todos os ativos
ao empresário melhor confiança na demanda futura de sua
financeiros que encontram o lado real da economia. Nesse
produção, resultando em eficiências marginais do capital
particular, podem ser citados, como exemplos, os títulos
que animem o investimento produtivo; políticas de controle
públicos utilizados para fins de política monetária, diver-
de capitais, entre outras.
sas modalidades de derivativos e os credit default swaps.
Inclusive, demandas por recursos para especulação também 10 No Brasil, são exemplos concretos de medidas macro-
podem ser atendidas pela própria circulação financeira, prudenciais, a imposição de um limite máximo de prazo
desde que a expectativa do spread entre as taxas de juros para a aquisição de carros, o aumento de exigências para
de captação e de empréstimo seja compensadora. tomada de crédito por pessoas físicas e a ampliação do
percentual mínimo de pagamento de faturas de cartão de
6 A posição deste artigo é a de que a oferta endógena de
crédito. Configura-se enquanto exemplo de supervisão
moeda é estrutural, isto é, decorre da razão de ser do siste-
financeira o monitoramento dos empréstimos bancários
ma financeiro. Esta posição não é unânime entre os pós-
superiores a R$ 1.000,00.
-keynesianos. Para mais, veja: Costa (1993; 1994), Carvalho
(1993), Meirelles (1995), Fiocca (2000), Davidson (2002) e
Paula (2003; 2014).
7 Neste mesmo sentido atuam as resoluções determinadas
pelos Acordos da Basileia, que regulamentam os requeri-
mentos mínimos para as atividades bancárias. Os disposi-
tivos de regulamentação dos Acordos estão em constante
atualização, atualmente encontrando-se na sua terceira
versão. Para mais, veja: Mendonça (2012).
8 Mesmo impactando a atividade econômica de forma in-
direta, a política monetária para Keynes (1964) deveria ser
ativa. Contudo, para Keynes (1971a) o objetivo da política
monetária não deveria se concentrar apenas na estabilidade
monetária, como quer o RMI, mas, também precisava criar

Revista da sociedade brasileira de economia política 127


38 / junho 2014
RESENHA

Lutas de classes na Rússia


Karl Marx & Friedrich Engels
Editora Boitempo, São Paulo, 2013
ISBN: 978-85-7559-349-3

É
muito bem-vinda a publicação do livro Lutas de classes na Rús-
sia, que reúne textos selecionados da obra de Marx e Engels
nos quais são analisadas a situação social e as perspectivas
colocadas para as forças revolucionárias russas entre 1875 e 1894.

O volume é composto basicamente por quatro textos: os textos de 1875


de Engels compilados com o título Questões sociais da Rússia (bem como
seu posfácio de 1894); a imprescindível, embora não enviada, missiva de
Marx à redação da revista russa Otechestvenye Zapiski, de 1877; a corres-
pondência entre Marx e Vera Zasulitch de 1881 (apresentada junto aos
esboços preparados por Marx antes de sua resposta final a Zasulitch e à
introdução preparada por D. Riazanov para a primeira publicação dos
rascunhos, em 1924); e, finalmente, o prefácio à segunda edição russa do
Manifesto comunista, escrito por Marx e Engels em 1882. Todos foram
traduzidos do original a partir das edições críticas que vêm sendo
produzidas pela MEGA-2, tendo sido mantida destas, inclusive, a boa
introdução que antecede cada um dos textos com informações sobre o
contexto nos quais foram escritos e publicados originalmente.

A organização do livro ficou a cargo de Michel Löw y, que também


assina uma breve introdução. Segundo Löw y, o material selecionado
é expressivo da reorientação teórica de Marx (e em menor medida de
Hugo F. Corrêa Engels), que teria, por volta de 1877, abandonado qualquer viés histó-
Doutor em Economia, profes-
sor da Universidade Federal rico unilinear, etapista, determinista e eurocêntrico de sua juventude.
Fluminense e integrante do
NIEP-Marx/UFF. Posturas como essa, tipificadas em Marx nos escritos sobre o “caráter
progressista” da ocupação britânica da Índia, o momento para um debate mais amplo sobre
da década de 1850, seriam agora superadas por a questão, somos da opinião de que Marx e
afirmações como: “Quanto às Índias Orientais, Engels já haviam, muito antes, delineado uma
por exemplo, todo o mundo [...] sabe que lá a teoria da história absolutamente inconsistente
supressão da propriedade comum do solo não com esta hipótese.1 Sob esse prisma, a passagem
passou de um ato de vandalismo inglês, que supracitada poderia ser interpretada a partir da
não impulsionou o povo indiano para frente, ausência de condições de possibilidade para uma
mas o empurrou para trás”. (p.108) revolução socialista na Rússia em 1877, o que
não se confunde com um “etapismo” econo-
Para Löwy, o ensaio Literatura dos refugiados
micista. Talvez por isso, entende-se, não haja
V de Engels, que abre a coletânea, guarda os
qualquer contraposição real na postura assumi-
sinais de um não declarado economicismo
da por Engels na referida passagem e aquela do
eurocêntrico, que ainda parece ver a Rússia
prefácio à segunda edição russa do Manifesto co-
como “último grande esteio de todo reacionaris-
munista (de 1882), onde Marx e Engels escrevem
mo europeu ocidental”. Seria por tal razão que
que a Rússia, reacionária durante a revolução
Engels não veria ali possibilidades revolucioná-
de 1848-49, agora formava “a vanguarda da ação
rias antes que se constituísse plenamente uma
revolucionária na Europa”. (p.125) No posfácio
ordem burguesa:
de Questões sociais da Rússia, Engels retoma tan-
Somente em certo estágio do desenvolvimento
to a passagem supracitada quanto o prefácio do
das forças produtivas da sociedade [...] torna-se
possível aumentar a produção a um nível em que
Manifesto, conjugando-os sem grande dificulda-
a eliminação das diferenças de classe seja um ver- de: enquanto em 1881, ele e Marx acreditaram na
dadeiro progresso e possa ser duradoura [...]. Po- capacidade do proletariado russo de desencade-
rém, as forças produtivas só chegaram a esse grau ar a revolução social na Europa, em 1894, Engels
de desenvolvimento pelas mãos da burguesia. retorna a seu ceticismo original, em virtude do
Sendo assim, a burguesia, também nesse aspecto, rápido avanço do capitalismo na Rússia, sem
é uma precondição tão necessária da revolução
entretanto abrir mão em momento algum do
socialista quanto o próprio proletário. (p.37)
caráter aberto da história.2
O trecho abre margem para a polêmica da
Mas se o texto de abertura de Engels ainda é
existência ou não de um “etapismo” no pensa-
capaz de levantar polêmicas dessa natureza, o
mento de Marx e Engels. Embora não seja este

Revista da sociedade brasileira de economia política 129


38 / junho 2014
mesmo não se pode dizer dos demais escritos filosófica do curso geral fatalmente imposto
que integram o livro e que certamente figuram a todos os povos, independentemente das
entre os mais conhecidos e importantes de Marx circunstâncias históricas nas quais eles se
encontrem, para acabar chegando à formação
e Engels sobre a Rússia. Marx dedicou um tem-
econômica que assegura, com o maior impulso
po substantivo de seus últimos anos de vida ao
possível das forças produtivas do trabalho
estudo de partes não-capitalistas do mundo, e social, o desenvolvimento mais integral possível
a Rússia parecia interessar-lhe particularmente. de cada produtor individual. Porém, peço-
Boa parte desse material permanece desconhe- lhe desculpas. (Sinto-me tão honrado quanto
cida, existindo cadernos que ainda não foram ofendido com isso.) Tomemos um exemplo.
publicados em qualquer língua. (Anderson, 2010) Em diferentes pontos de O capital fiz alusão ao
destino que tiveram os plebeus da antiga Roma.
Assim, os textos presentes no livro Lutas de clas-
Eles eram originalmente camponeses livres
ses na Rússia nos ajudam a entender um pouco
que cultivavam, cada qual pela própria conta,
da razão por trás do interesse dos autores pelo
suas referidas parcelas. No decurso da história
assunto, ao mesmo tempo em que (re)afirmam o romana, acabaram expropriados. O mesmo
caráter não teleológico e não linear de sua teoria movimento que os separa de seus meios de
da história com clareza desconcertante (para os produção e de subsistência implica não somente
críticos vulgares, evidentemente). a formação da grande propriedade fundiária,
mas também a formação dos grandes capitais
Nesse sentido, as cartas de Marx à redação do monetários. Assim sendo, numa bela manhã
periódico russo e à Vera Zasulitch são as me- (eis aí), de um lado homens livres, desprovidos
lhores notícias trazidas pelo livro. Em ambos de tudo menos de sua força de trabalho, e do
os casos, vemos Marx dialogando com inter- outro, para explorar o trabalho daqueles, os
pretações equivocadas de sua obra, difundidas detentores de todas as riquezas adquiridas. O
que aconteceu? Os proletários romanos não
entre os leitores russos – mas que poderiam
se converteram em trabalhadores assalariados
ser contemporaneamente lidos para rechaçar
[...] e ao lado deles se desenvolve um modo de
tendências deterministas que continuam a
produção que não é capitalista, mas escravagista.
deformar o pensamento marxista. Por isso, em Portanto, acontecimentos de uma analogia que
uma passagem essencial da primeira missiva, salta aos olhos, mas que se passam em ambientes
Marx observa: históricos diferentes, levando a resultados
totalmente díspares. Quando se estuda cada uma
Ele [o crítico a que Marx respondia] ainda tem
dessas evoluções à parte, comparando-as em
necessidade de metamorfosear totalmente o meu
seguida, pode-se encontrar facilmente a chave
esquema histórico da gênese do capitalismo
desse fenômeno. Contudo, jamais se chegará
na Europa ocidental em uma teoria histórico-

130
a isso tendo como chave-mestra uma teoria reiteradamente para o fato de que a própria
histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema longevidade da comuna, que convivia então ao
consiste em ser supra-histórica. (p.68-69) lado da produção capitalista na Europa ociden-
Exatamente a mesma perspectiva antidetermi- tal, abria-lhe novas possibilidades:
nista, antietapista etc. é apresentada por Marx De um lado, a propriedade comum da terra lhe
em sua carta a Zasulitch quando afirma que “a permite transformar de modo direto e gradu-
‘fatalidade histórica’ desse processo” – ele se al a agricultura parceleira e individualista em
refere aqui à acumulação primitiva, como des- agricultura coletiva [...]. De outro lado, a contem-
poraneidade da produção ocidental, que domina
crita em O capital – “está expressamente restrita
o mercado mundial, permite à Rússia incorporar
aos países da Europa ocidental”. (p.114) De fato,
à comuna todas as conquistas positivas produzi-
Marx havia ensaiado uma resposta bem mais
das pelo sistema capitalista sem passar por seus
longa e detalhada nesse mesmíssimo sentido forcados caudinos. (p.94)
nos quatro esboços que antecederam a versão
Mas, ao discorrer sobre estes problemas, Marx
final da carta.
provavelmente se dá conta de que a questão
Apesar de seu caráter fragmentário e notoria- carecia de um estudo mais detalhado e que,
mente inacabado, esses esboços contribuem embora ele mesmo já tivesse se debruçado
incrivelmente para entendermos por que o caso longamente sobre o tema das formas de proprie-
russo havia despertado o interesse de Marx. dade comunal russas, não lhe seria possível dar
Zasulitch o havia confrontado com a questão ao texto uma forma acabada – em função do
sobre o futuro da comuna rural russa – expli- estado de saúde degradado em que se encontra-
cando que parte dos “marxistas” russos afirma- va àquela altura da vida. Por isso, acaba optan-
va, “como se fosse a coisa mais indiscutível”, do por uma resposta sucinta que, não obstante,
que “a comuna rural [era] uma forma arcaica, mantém inalterado o fundamental: “a análise
condenada à morte”. (p.79) Marx se vê obrigado apresentada n’O capital não oferece razões nem
a responder tal perspectiva mostrando de forma a favor nem contra a vitalidade da comuna ru-
taxativa que sua teoria não deveria ser asso- ral, mas o estudo especial que fiz dessa questão,
ciada às perspectivas modernizantes que viam para o qual busquei os materiais em suas fontes
na transformação capitalista da comuna rural originais, convenceu-me de que essa comuna é a
uma expressão inevitável do progresso. Em alavanca da regeneração social da Rússia”. (p.115)
todos os esboços, Marx mostra disposição para
Perspectiva semelhante seria expressa por ele
rejeitar veementemente tal leitura, apontando
e Engels no já citado prefácio à edição russa

Revista da sociedade brasileira de economia política 131


38 / junho 2014
de 1882 do Manifesto, onde os autores, além de virtudes da publicação é, precisamente, permitir
reafirmarem que a Rússia se encontrava na van- o acesso à forma como Marx e Engels enca-
guarda da ação revolucionária europeia, con- raram a situação social russa sem a mediação
cluem que “se a revolução russa constituir-se no criada pelas distorções do marxismo “oficial”
sinal para a revolução proletária no Ocidente, soviético. E se é verdade que, de um lado, tais
de modo que uma complemente a outra, a atual textos nos ajudam a compreender as perspecti-
propriedade comum da terra na Rússia poderá vas então postas para uma revolução, de outro,
servir de ponto de partida para uma revolução é bastante claro que nenhuma responsabilidade
comunista”. (p.125) se pode atribuir a eles pelo caráter que assumi-
ria, na era soviética, tal revolução.
O livro Lutas de classes na Rússia tem o mérito
de facilitar o acesso do público brasileiro a um
material de extrema relevância, preparado com Bibliografia
cuidado numa boa (embora modesta) edição. SALUDJIAN, A. et al. “Marx’s theory of history and the
question of colonies and non-capitalist world”. In: Proceeds
Não é exato dizer, contudo, que se trata de um of the IV Annual Conference in Political Economy. Haia (Holan-
material inédito no Brasil. E não só porque dois da), 2013.
dos textos que compõem o volume já haviam ANDERSON, K. Marx at the margins. Chicago: The Universi-
aparecido em outros livros da própria Boitem- ty of Chicago Press, 2010.

po, mas porque já tinham sido publicados no FERNANDES, R. C. (Org.) Dilemas do socialismo: a contro-
vérsia entre Marx, Engels e os populistas russos. Rio de
Brasil anteriormente. (Fernandes, 1982) Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Por fim, parece-nos válida uma última nota,


certamente menor, no que diz respeito à capa. Notas
Seguindo a linha de sua coleção sobre a obra 1 Já expressamos em outro momento nossas opiniões
de Marx e Engels, o livro traz na capa uma acerca da evolução do pensamento de Marx e Engels sobre
o assunto, divergentes também com relação à perspectiva
ilustração do competente Cássio Loredano que apresentada por Löwy na Introdução. Cf.: (Saludjian, A. et al.,
poderia ser irrepreensível não fosse a insígnia 2013)
soviética posta (estrategicamente?) na testa de 2 Assim, Engels afirmava: “Não me aventuro a responder à
questão se ainda terá se salvado dessa comunidade o sufi-
Engels. É evidente que talvez se trate apenas
ciente para que ela eventualmente [...] se torne o ponto de
de uma brincadeira com um elemento visual partida de um desenvolvimento comunista em consonância
que povoa o imaginário popular de quase todos com uma reviravolta na Europa ocidental”. (p. 142)

que ouvem numa mesma sentença as pala-


vras “Marx” e “Rússia”. Mas uma das grandes

132
normas para publicação de artigos,
comunicações e resenhas

1. Os artigos, comunicações e resenhas encami- – Tamanho: máximo de 25 laudas em formato


nhados à REVISTA, que se encontrarem dentro A4, para artigos. Para as comunicações e rese-
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crita), serão submetidos à apreciação de pelo as notas, referências bibliográficas, gráficos e
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estrangeiras ou nacionais. do texto e não para o rodapé.

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autorização para sua publicação pelo autor. Não o seguinte: (Marx, 1982, p.124). As referências
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crédito(s) do(s) autor(es) e serem acompanha-
dos de um resumo de no máximo 10 linhas e • Livro:
palavras-chave em português e inglês. Em folha
PACKARD, Vance. Estratégia do desperdício. São
separada do corpo do texto, colocar o endereço
Paulo: Ibrasa, 1965.
completo para correspondência (incluindo tele-
• Capítulo de livro ou parte de obra coletiva:
fone, fax e correio eletrônico)
VOINEA, Serban. “Aspects sociaux de la décolo-
5. Enviar o texto para o email revista@sep.org.br
nisation”. In: FAY, Victor. En partant da Capital.
ou para os editores responsáveis, com a seguin-
Paris: Anthropos, 1968. p.297-333.
te formatação, em Word for Windows:
• Artigo publicado em periódico:
– Margens: de 3 cm para as margens direita e
esquerda e 2,5 cm para as margens superior e YATSUDA, Enid. “Valdomiro Silveira e o di-
inferior. aleto caipira”. Revista Novos Rumos. São Paulo:
Novos Rumos, Ano 1, n. 2. p. 27-40, 1986.
– Fonte: times new roman, 12 pontos e entreli-
nhas com 1,5 de espaçamento.
• Artigo publicado em Anais:

DUFOURT. D. “Transformations de l’éconornie mondiale et crises


de la régulation étatique”. In: COLLOQUE ÉTATET RÉGULA-
TIONS, 1980, Lyon. Anais do Colloque Étatet Régulations. Lyon:
PUF, 1980. p. 49-72.
• Teses, dissertações e monografias:
CRISENOY, Chantal de. Lénine face aux moujiks. Tese (Dou-
torado de 3° ciclo em Ciências Sociais) — École de Hautes
Études en Sciences Sociales – Paris, 1975.
• Outros Documentos:
IBGE. Anuário Estatístico do Brasil – 1995. Rio de Janeiro:
IBGE, 1996.

A Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política tem


ORIENTAÇÃO
publicado e continuará publicando artigos científicos de diversas
EDITORIAL
tendências teóricas – inspiradas sejam em Marx, Keynes, Schum-
peter entre outros – desde que mantenham atitude crítica em
relação ao capitalismo ou oposição teórica às correntes ortodoxas,
liberais ou neoliberais. Ademais, faz opção clara por artigos que
não privilegiam a linguagem da matemática e que não tratam a
sociedade como mera natureza. Em suma, ela discorda fortemen-
te dos critérios de cientificidade dominantes entre os economistas
por considerá-los inadequados e falsos. Considera, ademais, que
esses critérios têm sido usados como forma de discriminação
contra o que há de melhor e mais relevante em matéria de in-
vestigação científica nessa esfera do conhecimento. Dentro dessa
orientação editorial e desde que estejam respeitados os requisitos
básicos de um trabalho científico de qualidade, a Revista da SEP
mantém o compromisso de que os artigos recebidos serão julga-
dos isonomicamente, pelo critério da dupla revisão.
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