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Urbanismo & Habitação

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Universidade Nove de Julho – UNINOVE
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S olange de a ragão
d eniSe Falcão P eSSoa
c atharina t eixeira
organizadoraS

Urbanismo & Habitação

São Paulo
2017

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© 2017 UNINOVE
Todos os direitos reservados. A reprodução desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação do copyright (Lei nº 9.610/98). Nenhuma parte desta publicação pode
ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização da UNINOVE.

Conselho Editorial: Eduardo Storópoli


Maria Cristina Barbosa Storópoli
Patricia Miranda Guimarães
Jan Novaes Recicar

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores

Capa: Eugênia Pessoa Hanitzsch


Diagramação: Pedro Monte Cavalheiro
Revisão: Big Time Serviços Editoriais

Catalogação na Publicação (CIP)


Cristiane dos Santos Monteiro – CRB/8 7474
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Urbanismo & habitação / Solange de Aragão, Denise Falcão Pessoa,
Catharina Teixeira, organizadoras. — São Paulo : Universidade Nove de
Julho – UNINOVE, 2017.
220 p. ; il. (algumas color.)

ISBN: 978-85-89852-57-9 (e-book)


ISBN: 978-85-89852-62-3 (impresso)

1. Urbanismo. 2. Habitação. 3. Paisagem. I Autores II. Titulo

CDU 728.222
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SUMÁRIO

Prefácio ............................................................................................ 7
Apresentação ................................................................................... 9

Capítulo I
Planejamento e empreendimento: a experiência europeia
em requalificar áreas degradadas ................................................13
Denise Falcão Pessoa

Capítulo II
Da cidade moderna à cidade contemporânea: consensos
do pensamento urbanístico no século XXI .................................35
Rafael Giácomo Pupim

Capítulo III
Cidades novas no Brasil: projetos urbanos e planejamento
regional ..........................................................................................65
Luciana Lessa Simões

Capítulo IV
Do planejamento urbano integrado ao planejamento
estratégico: a cidade de Goiânia na virada do milênio .............89
Vinícius Luz de Lima

Capítulo V
Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida:
repensando estratégias para o Elevado (SP) ..............................103
Valéria Nagy de Oliveira Campos

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Capítulo VI
Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano
das grandes cidades – observados a partir da
cidade de São Paulo .....................................................................127
Giselly Barros Rodrigues

Capítulo VII
A relação do edifício habitacional com a cidade – uma
análise da herança brasileira .....................................................143
Catharina Teixeira

Capítulo VIII
Breve histórico da política habitacional em São Paulo – da
produção rentista do início do século XX à produção
habitacional do regime autoritário (1964 – 1986) ..................167
Mariana Cicuto Barros

Capítulo IX
Caracterização dos espaços livres de edificação no âmbito
residencial ....................................................................................193
Solange de Aragão

Capítulo X
Os espaços habitacionais contemporâneos no design de
interiores: uma relação física, social e sensorial ....................205
Eliana Maria Tancredi Zmyslowski

Os autores.....................................................................................215

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Prefácio - 7

PREFÁCIO

Este livro reúne capítulos produzidos pelos professores do curso de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nove de Julho que procuram
responder a algumas questões apresentadas pelos alunos, especialmente nas
Disciplinas que têm o enfoque do Planejamento Territorial, do Desenho Urbano
e da Habitação – sobre a contribuição do arquiteto e urbanista na produção do
espaço urbano em suas diversas escalas.
Assuntos que despertaram maior interesse durante as aulas, que suscitaram
perguntas específicas e debates que mereciam um tratamento mais detalhado e
uma análise mais profunda e crítica, foram os escolhidos para compor esse livro.
A oportunidade de apresentar as reflexões desenvolvidas pelos professores
em seus projetos de pesquisa e atividades profissionais extra acadêmicas a
partir do interesse manifestado pelos alunos em sala de aula faz com que a
publicação desses capítulos seja um instrumento auxiliar e importante para o
desenvolvimento de competências e habilidades – como o olhar crítico sobre
dados e levantamentos, a avaliação de cenários e a interpretação de problemas
– e de atitudes – como a consciência do coletivo e a empatia – no aluno da
UNINOVE.

Débora Faim Lazarini

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Apresentação - 9

APRESENTAÇÃO

Os capítulos reunidos neste livro abordam os processos de construção da


cidade e as diversas possibilidades de qualificação ou requalificação de seus es-
paços, bem como a conjuntura em que são produzidas: as cidades, a habitação
social e as áreas residenciais que os alunos vivenciam cotidianamente.
No primeiro capítulo, Denise Falcão Pessoa apresenta uma reflexão so-
bre três propostas de requalificação de trechos do tecido urbano da cidade eu-
ropeia: Docklands, em Londres, HafenCity, em Hamburgo e Potsdamer Platz,
em Berlim, analisando os motivos que levaram à degradação dessas áreas e, con-
sequentemente, à necessidade de revitalização; as razões pelas quais a municipa-
lidade buscou parcerias com a iniciativa privada; e os resultados finais obtidos
com a implantação desses projetos.
No segundo capítulo, Rafael Giácomo Pupim traz um estudo sobre o
pensamento urbanístico moderno, respaldado por conceitos, teorias e consensos
que geraram e consubstanciaram tal pensamento e suas respectivas repercussões
na área urbana, por meio de uma revisão crítica e analítica. Apresenta, ainda,
uma leitura da cidade contemporânea que leva em conta os desdobramentos e
as rupturas com os preceitos modernos e destaca a necessidade de revisão dos
paradigmas modernistas para a compreensão do pensamento urbanístico atual.
No terceiro capítulo, Luciana Lessa Simões parte de um breve panorama
das cidades novas, ou cidades planejadas, no mundo, passando pela criação de
cidades planejadas no Brasil, para aprofundar a análise de aspectos da implan-
tação de núcleos urbanos na área definida como “Amazônia Legal”, analisando
a relação entre os projetos urbanos desenvolvidos para algumas dessas cidades e
o planejamento regional no Brasil e comparando as diretrizes e estratégias deli-
neadas para esses núcleos urbanos com os papéis que desempenham nos cená-
rios – regionais e nacional – em que estão inseridos atualmente.
No quarto capítulo, Vinícius Luz de Lima investiga as estratégias adota-
das no planejamento e no desenvolvimento de Goiânia – capital do Estado de
Goiás, que teve seu núcleo original projetado pelo arquiteto Attilio Corrêa Lima
–, especialmente entre 1994 e 2007 – período de mudanças no cenário políti-
co brasileiro, com a redemocratização e a aplicação da Constituição de 1988 –
sua relação com o Plano Diretor municipal e seu rebatimento na esfera urbana.

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10 - Urbanismo & Habitação

De forma mais específica, no quinto capítulo, Valéria Nagy de Oliveira


Campos, partindo de uma breve análise sobre a reabilitação de áreas centrais, de
um modo mais abrangente, e sobre as experiências de reabilitação da área cen-
tral da cidade de São Paulo, contribui para o debate sobre o destino do Elevado
e sobre a relação dos projetos urbanos com o planejamento e a gestão da cida-
de, abordando a polêmica existente desde a época de sua construção e todo o
impacto que causou no entorno, as propostas de demolição a partir de 1993,
o concurso de ideias de 2006 – que gerou proposições para a área – e o futu-
ro do Elevado proposto pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo, de 2014,
com a gradual restrição ao transporte individual motorizado.
Ainda com uma temática relacionada à escala urbana, no sexto capítulo,
Giselly Barros Rodrigues destaca a importância da implantação de empreendi-
mentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades, apresentando
um histórico desse tipo de empreendimento na cidade de São Paulo, desde o
Martinelli, construído em 1929, até o Brascan Century Plaza, de 2003. A au-
tora aborda ainda o papel dos edifícios multifuncionais na requalificação de
áreas degradadas e a possibilidade de retrofit desses edifícios.
Já no campo da produção habitacional, o sétimo capítulo resgata o his-
tórico da habitação social. Por meio da análise da evolução morfológica das
cidades e das tipologias habitacionais entre a segunda metade do século XIX
e o final do século XX, Catharina Teixeira evidencia quais parâmetros urba-
nísticos têm sido adotados no Brasil, fazendo uma reflexão sobre as estratégias
projetuais nas diferentes formas de inserção da edificação de habitação coletiva
na cidade, destacando a relação entre os espaços públicos e privados e entre as
configurações edilícias e seus agrupamentos.
No capítulo oito, Mariana Cicuto Barros aborda, de forma breve, as prin-
cipais ações empreendidas no processo histórico de construção das práticas ha-
bitacionais no Brasil e, principalmente, como universo de análise, a história da
produção habitacional na cidade de São Paulo, buscando identificar os primór-
dios da transformação da habitação em uma questão social. Deste modo, apre-
senta a produção rentista do início do século XX, por meio das vilas operárias,
cortiços e casas geminadas; o debate sobre a necessidade da intervenção esta-
tal nos anos 1930 e 1940; os primeiros conjuntos residenciais públicos, edifi-
cados a partir do Estado Novo e a crise de habitação do pós-guerra, no quadro

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Apresentação - 11

de boom do mercado imobiliário e de acentuada verticalização; a consolidação


da periferia frente à inexistência de melhores alternativas, com a generalização
do auto empreendimento da casa própria e da precária urbanização; a produ-
ção habitacional do BNH e as perspectivas que se apresentam com a amplia-
ção de programas públicos habitacionais.
No capítulo nove, iniciando a aproximação com a escala do lote, Solange
de Aragão destaca a importância dos espaços livres de edificação junto à resi-
dência, enfatizando alguns aspectos que devem ser considerados em seu proje-
to de modo a qualificar a paisagem urbana.
Finalmente, no último capítulo, Eliana Maria Tancredi Zmyslowski es-
creve sobre o ambiente doméstico e os elementos que podem contribuir para
torná-lo mais agradável ao morador, salientando as relações sociais e sensoriais
exploradas no design de interiores dos espaços habitacionais contemporâneos.
Nos diversos e vários temas abordados, uma mesma preocupação: a pro-
dução do espaço (da cidade e da habitação), a participação e a contribuição
do arquiteto e urbanista nesse ofício – competências e habilidades desenvolvi-
das pelo aluno ao longo do curso de Arquitetura e Urbanismo da UNINOVE.

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Denise Falcão Pessoa - 13

CAPÍTULO I
PLANEJAMENTO E EMPREENDIMENTO:
A EXPERIÊNCIA EUROPEIA EM REQUALIFICAR
ÁREAS DEGRADADAS
Denise Falcão Pessoa

Em cada período da história, cidades enfrentam desafios no sentido de


adequá-las a situações e demandas de sua época. Cidades estão sujeitas a altera-
ções geradas por mudanças no cenário econômico, social, tecnológico, ambien-
tal e por isso estão em constante metamorfose, seja crescendo ou encolhendo,
progredindo ou decaindo.
Esse estudo busca especular sobre uma situação que muitas metrópoles
vêm enfrentando que é a recuperação de grandes áreas degradadas através da
ação de parcerias público/privadas. Indaga-se aqui quais são os prós e contras
de uma intervenção dessa natureza.
Para tanto, são estudados três projetos desenvolvidos na Europa com
o objetivo de dar um novo uso a lugares que perderam sua atividade econô-
mica principal. São elas: Docklands em Londres, HafenCity em Hamburgo e
Potsdamer Platz em Berlim. São investigadas nesse texto as razões que levaram
ao ocaso das áreas, a intenção de revitalizá-las, as razões que levaram a muni-
cipalidade a buscar parcerias na iniciativa privada e os resultados da implanta-
ção desses projetos.

Antecedentes
Primeiras experiências em revitalização urbana público/privada

A partir do fim da década de 1950 o planejamento urbano se viu frente


a uma nova situação. Algumas áreas das cidades perderam sua principal ativi-
dade econômica e foram parcial ou integralmente abandonadas, criando um
grande problema para os governos municipais. Isso aconteceu principalmente
em áreas industriais e portuárias.

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14 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

Cidades industriais do século XIX e início do século XX têm nos bair-


ros monofuncionais sua expressão mais clara1. As cidades cuja economia estava
voltada para a indústria, sobretudo as europeias e americanas, deslocaram gra-
dualmente essas atividades para países periféricos, deixando grandes áreas su-
butilizadas ou mesmo inativas.
Outro processo que gerou grande mudança em cidades portuárias foi a
conteinerização do transporte marítimo. Grandes navios que transportam con-
têineres precisam atracar em portos profundos. O uso de muitos dos antigos
portos passou a ser inviável, o que gerou seu declínio. Áreas com enormes gal-
pões tornaram-se subitamente ociosas. Áreas extensas localizadas próximas ao
centro urbano degradaram-se rapidamente, fazendo-se necessário recuperá-las,
atraindo novas atividades econômicas e mais moradores. O alto custo de revi-
talização, no entanto, apresenta-se frequentemente inviável para os cofres pú-
blicos. Uma possibilidade para viabilizar a recuperação é aliar o poder público
a investidores privados.

Cidades, a nova mensagem soou em alto e bom som, eram máquinas


de produzir riqueza; o primeiro e principal objetivo do planejamento
devia ser o de azeitar a máquina. O planejador foi-se confundido
cada vez mais com seu tradicional adversário, o empreendedor; o
guarda-caça transforma-se em caçador furtivo.2

Parcerias público/privadas tiveram início nos Estados Unidos, onde a


atuação da livre iniciativa é frequente3. As cidades de Boston e Baltimore rea-
lizaram essa nova prática, na época chamada de parceria criativa, para revitali-
zar suas áreas degradadas.
Em Baltimore, formou-se em 1956 o Comitê para a Grande Baltimore,
grupo financeiro de elite, para recuperar a área portuária então desativada do
Inner Harbor, situado no centro da cidade.

1
ASCHER, François. Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Romeno Guerra, 2010, p.27.
2
HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto
urbanos do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 381.
3
Ibid., p. 381.

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Foi feito um projeto de reurbanização de uma área de cerca de 100 hec-


tares com um edifício multifuncional, o Charles Center projetado por I. M.
Pei, complexo de escritórios, lojas, hotel, restaurantes e habitação. O projeto
de urbanização incluía outros edifícios comerciais e habitacionais para diferen-
tes níveis de renda. Posteriormente foram acrescentados equipamentos cultu-
rais como o aquário e museu de arte. O enfoque do projeto era dar novos usos
a estruturas pré-existentes, preservando assim a memória do local (Figura 1).
Embora tenha sido o principal articulador do empreendimento, o setor
privado entrou com apenas 22 milhões de dólares, contra 58 do município e
180 milhões do governo federal. Foi um grande investimento público que ge-
rou altos lucros para o setor privado. O Inner Harbor passou a atrair turistas, 7
milhões por ano, número comparável à Disneylândia californiana4.

Figura 1 – Inner Harbor, Baltimore 2008.


Foto da Autora

4
HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto
urbanos do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 415.

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16 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

A orla marítima de Boston, compreendida entre o distrito financeiro e o


Government Center, começou a ser revitalizada em 1961. O local inclui o Feneuil
Hall, construído a partir de 1740 e reconstruído em 1763, depois de um in-
cêndio que o destruiu, e o Quincy Market, datado de 1826. No início da déca-
da de 1970 o local estava degradado e havia um plano para demolir os edifícios
antigos, quando estudos começaram a ser feitos no sentido de recuperá-los. O
Feneuil Hall e o Quincy Market, antes mercados da cidade, foram reabertos em
1976, adaptados para lojas e restaurantes. Também foram construídos edifícios
de apartamento nas áreas adjacentes aos edifícios restaurados (Figuras 2 e 3). A
área revitalizada atrai hoje cerca de 12 milhões de turistas por ano5.

Figura 2 – Quincy Market, Boston 2010.


Foto da Autora

As experiências de Baltimore e Boston serviram de referência para inú-


meros projetos de revitalização em áreas degradadas em vários países. Três de-
las são tratadas nesse estudo.

5
A view on cities – Feneuil Hall. Disponível em: http://www.aviewoncities.com/boston/
faneuilhall.htm. Acesso em: 10 fev. 2015.

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Figura 3 – Feneuil Hall, Boston 2010.


Foto da Autora

Docklands – Londres

O declínio das Docklands de Londres, maior porto da Europa no sécu-


lo XIX, teve início com a conteinerização do transporte marítimo, somada
a dificuldades trabalhistas a partir da década de 1960. Suas atividades foram
sendo transferidas gradativamente para Tilbury até serem totalmente encer-
radas em 1980. Uma área gigantesca, de cerca de 2.226 hectares a leste da
City (centro da cidade) ficou subutilizada, o que causou um grande proble-
ma para a cidade.
Em 1963 o governo municipal de Londres criou o Conselho da Grande
Londres (GLC) para elaborar um plano de desenvolvimento estratégico para
que as docas continuassem a operar. Em 1973 foi criada a Comissão Mista das
Docklands, por iniciativa do GLC, para criar um plano de reurbanização com
habitação social para a população de baixa renda, ainda que na época os cortes
em gastos públicos estivessem dificultando programas de moradia popular. Os
fundos públicos (900 milhões de libras) deveriam se somar a fundos privados (1,1

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18 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

bilhão de libras) para viabilizar as obras, incluindo a expansão da linha Jubilee


do metrô, mas o setor privado não sentia confiança para investir no projeto.6
Em 1981 foi criada a London Docklands Development Corporation
(LDDC), uma corporação de desenvolvimento urbano para revitalizar a área.
A corporação buscava parceiros na iniciativa privada para investir. Entre 1981 e
1986 foram investidos 279 milhões de libras de dinheiro público e uma quan-
tia seis vezes maior de dinheiro privado.7
A revitalização urbana de Docklands vem sofrendo críticas, sobretudo em
Canary Wharf na Isle of Dogs, setor onde foram construídos grandes arranha-céus
de escritórios. As críticas são no sentido de que o mercado imobiliário tem uma
ação decisiva na estruturação da área. Esse fato resulta numa abordagem que visa
o uso de áreas urbanas para obtenção de lucros, favorecendo pequenos grupos
da sociedade em detrimento de avanços na qualidade dos espaços para usos mais
democráticos, atingindo a população de uma forma mais generalizada. Os edifí-
cios de Canary Wharf, com cerca de 50 andares, contrastam com o resto da cida-
de que ainda hoje apresenta uma unidade e continuidade espacial. O mais alto,
projetado por Cesar Pelli, tem cerca de 250 metros de altura – o dobro da catedral
de Saint Paul. O lugar constitui um enclave com áreas comerciais cujo acesso se
dá somente por dentro dos edifícios e não através do espaço público. A parceria
público/privada, nesse caso, não atingiu um equilíbrio entre essas duas forças. O
desenho da área mostra claramente a prevalência do setor privado. O neolibera-
lismo do governo de Margaret Thatcher (primeira ministra do Reino Unido en-
tre 1979 e 1990) se reflete na revitalização de Docklands. Ou seja, os ambientes
criados, voltados para as classes mais abastadas, inibem a mescla de estratos sociais.

[...] admitidamente, uma colagem de bom e ruim surgiu, uma


espécie de desconstrução a um nível urbano. Admitidamente tam-
bém, há bolsões de qualidade real e medíocre com a seletividade
de uma lente de câmara onde se pode criar uma ilusão de sucesso
como fez o LCCD. Que catálogo de oportunidades perdidas o
experimento de Docklands representa! Não há nada da sofisticação

6
HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto
urbanos do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 417.
7
The London Docklands Development Corporation 1981-1998. Disponível em: http://www.
lddc-history.org.uk. Acesso em: 12 fev. 2017.

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social ou ambiental da IBA de Berlim, pouco da conectividade e


ordem visual de La Défense e não muito da interação humana de
Baltimore ou Boston. Docklands não é a primeira liga dos projetos
de regeneração internacional – ainda, a península tinha o potencial
para assinalar a redescoberta o urbanismo britânico.8

Do ponto de vista comercial, Docklands pode ser considerada um suces-


so. Hoje a área é um gueto de ricos, tanto nos edifícios de escritórios quanto
nos apartamentos de luxo com vista para o rio Tâmisa. Quanto aos aspectos
sociais e urbanísticos, não houve êxito, pois a valorização imobiliária excessiva
gerou um espaço segregado na cidade9 (Figuras 4 e 5).

HafenCity Hamburg GmbH – Hamburgo

HafenCity é um projeto urbano que está sendo implantado em Hamburgo


em área previamente ocupada por indústrias e pelo antigo porto, hoje mui-
to raso para navios cargueiros modernos. O porto de Hamburgo é o maior
da Alemanha e o segundo maior da Europa, seguido de Roterdã na Holanda.
Localiza-se no rio Elba, próximo a sua foz.
O início do projeto deu-se em 1997, quando foi criado o GHS (Gesellschaft
für Hafen- und Standortentwicklung), companhia para gerenciar e desenvolver
uma área de 157 hectares que vinha sendo desativada em consequência da con-
teinerização do transporte marítimo e desindustrialização da cidade. O projeto
foi desenvolvido com o objetivo de atender à demanda de crescimento da cida-
de, ocupando uma área central com boa infraestrutura urbana. HafenCity situa-se
próxima ao centro de Hamburgo, a 800 metros da prefeitura.

8
EDWARDS, Brian. Deconstructing the City: London Docklands. (tradução nossa). Disponível
em: http://www.rudi.net/books/12383. Acesso em: Acesso em: 14 fev. 2017.
9
COPANS, Rose. Intervenções de recuperação de zonas urbanas centrais: experiências nacionais
e internacionais. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/v1/diver-
cidade/numero2/caminhos/08Rose%20Compans.pdf. Acesso em: 10 jan. 2017.

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20 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

Figura 4 – Canary Wharf, Londres 2009.


Foto: Wilis Miyasaka

O projeto visa criar 6 mil residências para 12 mil pessoas, edifícios para
escritórios, lojas, bares, restaurantes, escola primária, universidade, além de uma
filarmônica e um hotel. Há também o objetivo de atrair visitantes e turistas.
A área foi dividida em dez setores, sendo sua construção iniciada no senti-
do oeste-leste e norte-sul. A previsão inicial para o término das obras é de 2015.
O edifício da Elbphilarmonie (filarmônica) tem projeto de Herzog & de
Meuron. O projeto manteve a fachada do Kaispeicher, primeiro armazém constru-
ído nas docas de Hamburgo em 1875 e quase totalmente destruído na Segunda
Guerra Mundial. Foi reconstruído no mesmo local em 1966 e funcionou até 1990.
Além da filarmônica, o edifício abriga um hotel com 250 apartamentos, 45 apar-
tamentos privados de luxo com vista para o porto e estacionamento10 (Figura 6).

10
Elbphilarmonie Hamburg. Disponível em: https://www.elbphilharmonie.de/elbphilharmo-
nie. Acesso em: 10 jan. 2017.

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Figura 5 – Docklands, Londres 2009.


Foto: Wilis Miyasaka

O Kaispeicher foi um dos poucos edifícios mantidos na área. Ao norte de


HafenCity encontra-se um distrito com armazéns históricos que foram preserva-
dos e estão sendo restaurados e recebendo projetos de retrofit com usos diver-
sos, diferentes dos originais. Esse distrito no entanto não faz parte de HafenCity.
A construção HafenCity está sendo financiada por investidores priva-
dos. O custo estimado do empreendimento é de 8 bilhões de euros. Noventa
e sete por cento da área da urbanização pertencia à cidade de Hamburgo an-
tes do início da revitalização. Para administrar a venda de áreas para investi-
dores, foi criado o Fundo Especial para gerenciamento da cidade e do porto, o
HafenCity Hamburg GmbH11. A venda dessa terra gerou recursos para as obras
de infraestrutura como pontes, praças, passarelas, sistema viário, bem como o
esvaziamento do local. Apenas a linha U4 do metrô recebeu recursos federais.

11
HafenCity Hamburg – Essentials Quarters Projects, 2012.

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22 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

Ao contrário da maioria das revitalizações que foram feitas ou estão em curso


na Europa, HafenCity não recebeu recursos da União Europeia. Tudo foi cal-
culado para que os recursos fossem gerados dentro do empreendimento, sem
que a municipalidade tivesse que usar verba adicional da prefeitura, ou seja,
buscou-se gerar um equilíbrio entre arrecadação de recursos vindos da iniciati-
va privada e dinheiro gasto com as obras de infraestrutura. Considerando que
muitas obras públicas foram feitas antes da venda de áreas, precisou-se fazer
empréstimos para levantar recursos que, à medida que o projeto iria sendo im-
plantado, os investimentos públicos seriam ressarcidos.

Figura 6 – HafenCity – Edifícios residenciais e comerciais com o Elbphilarmonie ao fundo,


Hamburgo 2013.
Foto da Autora

Segundo Jürgen Bruns-Berentelg, chefe executivo da HafenCity Hamburg


GmbH, diferentemente de outras urbanizações recentes da Europa, HafenCity
não foi feita por um consórcio entre poucas empresas. Para diminuir o risco de
fracasso, os investimentos foram feitos por várias empresas.

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HafenCity foi criada com o objetivo de oferecer qualidade urbana numa


área degradada e central de Hamburgo. Seu Plano Diretor foi aprovado em
2000 e liderado pela HafenCity Hamburg GmbH, pelo Desenvolvimento Urbano
de Hamburgo e pelo Ministério do Meio Ambiente.12 Teve como principais
autores Kees Christiaanse da Holanda e ASTOC Architects and Planners da
Alemanha que venceram um concurso para a área em 1999.

Figura 7 – HafenCity – Maquete.


Foto: Wilis Miyasaka

Nesta época, havia uma necessidade de Hamburgo crescer, promovendo


novas habitações e locais de trabalho. Ao mesmo tempo, procurava-se evitar
que houvesse um acréscimo do perímetro urbano, com o intuito de otimizar a
infraestrutura já instalada. HafenCity foi desenvolvida com a intenção de que a
cidade crescesse para dentro. Foi prevista a construção de 2,32 milhões de m2,

12
Ibidem.

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24 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

sendo os novos edifícios predominantemente residenciais, promovendo um au-


mento de cerca de 9% da oferta de residências na cidade (Figura 7).

Figura 8 – HafenCity – Vista panorâmica, Hamburgo 2013.


Foto: Wilis Miyasaka

Para enfrentar as enchentes do rio Elba, o nível do local foi elevado em


8 metros13. A área foi pensada para conviver sem problemas numa situação de
cheia do rio. As ruas e pontes, assim como todas as edificações, estão acima da
cota de inundação, podendo a área funcionar normalmente mesmo no caso de
cheia extrema. Os estacionamentos também estão protegidos (Figuras 8 e 9).
O projeto foi desenvolvido visando um baixo consumo de energia. A
prioridade foi dada aos pedestres.
As áreas entre os edifícios, isolados uns dos outros, ainda que sejam de pro-
priedade privada, são de uso público. Muitos prédios têm grandes balanços que
se projetam sobre áreas de circulação de pedestres. Ou seja, as áreas de uso estri-
tamente privado se restringem aos térreos dos edifícios e aos andares superiores.

13
HafenCity Hamburg – Essentials Quarters Projects, 2012, p. 13.

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Denise Falcão Pessoa - 25

Há uma diversidade de usos em todos os distritos, embora cada um tenha


uma predominância, evitando-se assim que alguns locais fiquem sem movimen-
to em determinados horários. Buscou-se incentivar um senso de comunidade.
As edificações foram projetadas por diferentes arquitetos. Com isso, há
uma arquitetura bastante diversificada, ainda que exista uma forte unidade no
conjunto, definida no Plano Diretor por volumetrias e gabaritos semelhantes.
O uso abundante de tijolo aparente reforça a ideia de unidade, além de amal-
gamar bem com áreas mais antigas de Hamburgo, visto que esse material é lar-
gamente usado na cidade.

Figura 9 – HafenCity – Vista geral.


Foto da autora

As maiores críticas que o projeto vem sofrendo é no sentido de que a área


é cara e inacessível para parte da população. Não foi prevista a construção de
habitação para a população de baixa renda. As pessoas que viviam na área an-
tes da revitalização, a maior parte de imigrantes turcos, não têm condições de
se estabelecer hoje no local.

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26 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

Potsdamer Platz, Berlim

O caso de Berlin difere dos anteriores, pois não se trata exatamente da


revitalização de uma área deteriorada na cidade, mas sim de uma recomposição
do tecido urbano, fragmentado pela construção do Muro de Berlim.
Antes da reunificação da Alemanha, a então Berlim Ocidental já passa-
va por um processo de reestruturação urbana, quando, para isso, organizou a
IBA (Internationale Bauastellung – Exposição Internacional de Arquitetura), em
1987. Nessa ocasião, foi implantado um programa de reforma urbana baseado na
construção de habitação social, financiado pelo governo, nas zonas mais degra-
dadas da cidade, sem modificar o tecido pré-existente e sem expulsar as pessoas
que ali viviam. Havia uma premissa de manter a estrutura urbana, as tipolo-
gias e suas escalas, porém usando uma linguagem contemporânea. Manteve-se
o gabarito máximo das edificações em 22 metros, altura máxima que as esca-
das de incêndio podiam alcançar no período barroco. A essa postura, Josef Paul
Kleihues, um dos mentores do plano, juntamente com Hardt-Waltherr Hämer,
chamou de “racionalismo poético”14, muito criticado na época.
Com a queda do Muro de Berlim em novembro de 1989, a cidade pas-
saria por uma experiência urbanística sem precedentes. Dois anos depois da
reunificação da Alemanha, o Bundestag (parlamento federal) decidiu mudar a
capital do país de Bonn para Berlim, devolvendo à cidade o status perdido des-
de a Segunda Guerra Mundial. Começou então o projeto Berlim-2000, sinali-
zando o ano em que a mudança seria completada.15 Berlim havia passado por
44 anos de isolamento, 28 deles dividida pelo muro. Nesse período, o lado oci-
dental acumulou experiência de crescer dentro dos seus limites.
O muro de Berlim, ou muro da vergonha, começou a ser construído em
1961 e passou por quatro fases diferentes. No início foram fechadas 67 das 81
ruas que uniam o lado oriental e o ocidental. Aos poucos, uma faixa de 40 a
100 metros de largura e quase 2 quilômetros de comprimento da cidade foi
sendo demolida e construído um muro. No início, apenas um alambrado. Na

14
VÁZQUEZ, Carlos Garcia. Ciudad hojaldre: visiones urbanas del siglo XXI. Barcelona:
Gustavo ili, 2006, p. 41.
15
Ibid., p. 39.

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Denise Falcão Pessoa - 27

última geração, o muro era uma barreira de concreto armado de quatro me-
tros de altura (Figura 10).

Figura 10 – Exposição “Os muros no muro”, realizada em 2013, em parte remanescente do


muro de Berlim, mostrando os muros que ainda existem no mundo.
Foto da Autora

O muro dividia a cidade em Berlim Oriental, setor soviético, e Berlim


Ocidental, setor administrado pelas nações que ganharam a Segunda Guerra
Mundial: França, Reino Unido e Estados Unidos. A Potsdamer Platz, um lo-
cal pujante antes da guerra, foi muito danificada durante a guerra e o que res-
tou foi demolido com a construção do muro que a atravessava.16
A praça tem este nome desde 1831, em alusão ao Portão de Potsdam que
havia sido construído cerca de dez anos antes e era uma das entradas da mura-
lha que cercava Berlim. A construção, em 1838, da estação de trens Potsdamer
Bahnhof, que conectava Berlim com a cidade de Postdam (e mais tarde com

16
Berlin Story Verlag. El muro de Berlim 1961-1989. 2012, p. 16.

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28 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

outras cidades), impulsionou seu crescimento. Em 1907 foi inaugurada uma


estação do metrô e, como consequência, o local se desenvolveu tremendamen-
te tendo sido construídos hotéis, restaurantes, teatros, cinema, cafés e lojas. A
Potsdamer Platz teve seu auge nas décadas de 1920 e 1930, quando foi um pon-
to central da vida de Berlim. Nesta época foi um dos locais de trânsito mais
movimentados da Europa, e por conta disso, em 1924 foi instalado na praça o
primeiro semáforo de Berlim e um dos primeiros da Europa. Tratava-se de uma
torre, erguida no centro da avenida, com um semáforo, três lâmpadas nas cores
vermelha, amarela e verde, dispostas horizontalmente. Até a Segunda Guerra
Mundial, a praça foi um dos principais pontos da cidade.
Com a reunificação da Alemanha e a mudança da capital, a administra-
ção berlinense esperava um grande crescimento urbano. Esse fato, somado à
necessidade de recompor a área arrasada pelo muro, gerou vários projetos ur-
banísticos, entre eles o da Potsdamer Platz.
O encaminhamento da questão fundiária da cidade pós unificação ficou a
cargo da Treuhand-Anstalt, empresa pública criada para privatizar as proprieda-
des da República Democrática Alemã. A venda das áreas urbanas foi sendo feita
por quadras, sendo somente acessível a grandes empresas que se encarregavam
da construção e em seguida da venda dos empreendimentos. Os investidores ti-
nham uma preferência por construir edifícios comerciais e de escritórios, o que
fez com que a municipalidade criasse uma lei impondo que no mínimo, 20%
do empreendimento deveriam ser residenciais, garantindo assim o uso misto e
a manutenção da vida urbana em todas as horas do dia. A pressão dos investi-
dores fez com que o gabarito de 22 metros de altura fosse aumentado para 30
metros, sendo 8 andares acima do solo e 4 abaixo.
A atual Potsdamer Platz é o resultado de um grande investimento priva-
do das empresas Sony, Daimler Chrysler, Mercedes-Benz, ABB – Asea Brown
Boveri numa área que pertencia à prefeitura (Figura 11).
Assim, os poderes públicos se despreocupavam da tarefa de configurar
a cidade e a deixavam as mãos de multinacionais. Oficialmente, a desculpa
foi a operacionalização: se tentava evitar as intermináveis seções de debates
públicos que se produziram na IBA e que dilataram sua execução. Sem dú-
vida, atrás desse pretexto se ocultava a enorme debilidade da administração
municipal que chegou a eximir a Daimler-Benz do pagamento de seus en-

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Denise Falcão Pessoa - 29

cargos fiscais e a permitir que a densidade máxima de sua zona passasse de 4


m2/m2 para 5,5 m2/m2.17

Figura 11 – Potsdamer Platz – Vista panorâmica, Berlim 2014.


Foto da autora

Potsdamer Platz representava um esforço de torná-la o primeiro centro


financeiro de Berlim, cidade global numa área de 50 hectares. Um concurso
para o plano diretor foi elaborado por Heinz Hilmer e Christoph Sattler em
1991 que dividiram a área em 5 setores e traçaram algumas diretrizes. Dentre
as exigências estabeleceu-se que o projeto deveria manter o padrão de implan-
tação europeia, fazendo uma conexão com o passado e utilizar terracota no
exterior da fachada como um elemento unificador, variando de cinzento ver-
melho para amarelo. A empresa Daimler-Benz resolveu convocar um segundo
concurso, tendo como ponto de partida o projeto de Hilmer e Sattler. O pla-

VÁZQUEZ, Carlos Garcia. Ciudad hojaldre: visiones urbanas del siglo XXI. Barcelona:
17

Gustavo Gili, 2006, p. 46. (tradução nossa).

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30 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

no diretor vencedor foi o de Renzo Piano. Os edifícios da urbanização tiveram


vários autores: Christoph Kohlbecker, Arata Isozaki, Hans Kollhoff, Ulrike
Lauber,Wolfgand Wöhr, Raphael Moneo, Richard Rogers e o próprio Renzo
Piano. A diversidade de arquitetos configurou uma variedade de arquiteturas.
No plano de Renzo Piano, o foco foi o espaço urbano, com praças, bule-
vares, ruas corredor e espelhos d’água. A escala segue o padrão da cidade, com
exceção de dois edifícios que marcam o limite da área e superam os oito anda-
res em média. A área triangular reservada para o Sony Center teve projeto de
Helmut Jahn, um conjunto de edifícios ao redor de uma praça coberta. O úni-
co edifício pré-existente é o Haus Huth. Os novos prédios não seguem o mes-
mo alinhamento do edifício preservado, formando assim uma pequena praça
na sua frente (Figura 12).

Figura 12 – Haus Huth em Potsdamer Platz, único edifício que sobreviveu à guerra e ao
muro de Berlim, 2014.
Foto da Autora

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Denise Falcão Pessoa - 31

O programa da urbanização inclui apartamentos residenciais (19%), es-


critórios (56%), cinemas, teatro IMAX, dois hotéis, restaurantes, uma galeria
comercial, um edifício de três pavimentos (térreo, subsolo e andar superior)
que atravessa o conjunto e dois centros de saúde18.
Assim como no passado, Potsdamer Platz continua sendo um entronca-
mento de linhas de trem, metrô, ônibus e carros numa área que pretende ser o
coração da cidade. As críticas que o projeto recebe dizem respeito aos espaços
públicos e público/privados. Os lugares que atraem mais gente são a praça no
centro do Sony Center e a Arkaden (galeria). A praça do Sony Center é uma
área privada de uso público com uma cobertura que a protege da chuva e da
neve e tem entrada direta para as estações de trem e metrô. Seu uso é intenso
durante o dia e à noite. Existem poucas lojas na rua (Figura 13). Quase todo
o comércio acontece dentro da Arkaden que é um shopping center privado,
embora sua arquitetura o aproxime de uma rua coberta. Esse edifício também
possui entrada direta para as estações de trem e metrô. Todas as ruas do pro-
jeto de Piano levam à galeria, mostrando a ênfase do projeto ao consumo. As
áreas residenciais são alugadas, principalmente por empresas para seus funcio-
nários que veem de outras cidades e frequentemente de outros países. Parece
que o empreendimento atrai poucos moradores berlinenses, talvez por seu alto
custo de aluguel e venda.
Outra crítica que o projeto recebeu foi de que a área tem poucas vias para
o tráfego de veículos e isso não reproduz o que outrora acontecia. Potsdamer
Platz foi um entroncamento de avenidas e não um lugar onde prevalecia a cir-
culação de pedestres.

Werner Sewing argumenta que os designers tentaram construir


uma imagem de autenticidade histórica, mas resulta falsa. Os dois
andares da base remetem aos edifícios de escritório de Berlim do
fim da República Weimar e o local abriga o único edifício ainda
intacto, o Haus Huth. O padrão de rua densa, referenciando
ao período medieval, na verdade nunca existiu naquela parte de

18
MILLER, Rachel; REED, Amanda. Potsdamer Platz Renzo Piano Workshop. Berlin, Germany.
Disponível em https://courses.washington.edu/gehlstud/gehl-studio/wp-content/themes/gehl-
-studio/downloads/Autumn2008/Potsdamer_Platz.pdf. Acesso em: 28 jan. 2017.

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32 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

Berlim. Ao invés de ser um lugar revelando história verdadeira,


ele compreende o lugar mais como um palco.19

Figura 13 – Sony Center em Potsdamer Platz, Berlim 2013.


Foto da Autora

No entanto, essa crítica é tendenciosa pois na verdade, priorizar o pedes-


tre deu à nova Potsdamer Platz uma boa qualidade urbana além de ser um dos
aspectos favoráveis para que tenha muita vitalidade e seja bastante frequentada.

Considerações finais

As mudanças que ocorreram nas cidades no fim do século XIX e ao lon-


go do XX foram enormes. Implantaram-se indústrias, construíram-se portos,

19
MILLER, Rachel; REED, Amanda. Potsdamer Platz Renzo Piano. Workshop. Berlin, Germany.
Disponível em https://courses.washington.edu/gehlstud/gehl-studio/wp-content/themes/gehl-
-studio/downloads/Autumn2008/Potsdamer_Platz.pdf. Acesso em: 28 jan. 2017.

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Denise Falcão Pessoa - 33

ferrovias e seus pátios de manobra, grandes galpões de exposição etc. No fim


do século passado muitos desses locais experimentaram o ocaso. A migração
de atividades econômicas para outros locais onde são viáveis deixa cicatrizes no
tecido urbano. Esse processo gera um grande problema para as administrações
municipais, sobretudo quando os vazios gerados situam-se em áreas centrais,
dotadas de boa infraestrutura. Constituem espaços intra-urbanos que devem ser
readequados à nova realidade. Por um lado, essa áreas têm um ótimo potencial
para uma intervenção, pois possibilitam que a cidade cresça dentro da malha
urbana existente, evitando assim o seu espraiamento, o que gera um aprovei-
tamento da infraestrutura já instalada e minimiza problemas de mobilidade.
Por outro lado, a implantação de um projeto do porte exigido por muitas des-
sas áreas deterioradas tem um custo muito alto, fora das possibilidades dos co-
fres públicos da maioria dos municípios. Empresas privadas veem em áreas a
serem revitalizadas um potencial para investimento, sejam elas ligadas à indús-
tria da construção ou não.
Percebe-se que o que de fato ocorre é: em nenhuma outra situação, fica
tão evidente o uso do solo urbano como mercadoria quanto nas parcerias pú-
blico/privadas. A administração pública se submete às diretrizes traçadas pelo
empreendedor em maior ou menor intensidade. O que varia é o grau em que
a municipalidade atua. No caso de Docklands, a presença do setor privado es-
tabelece o rumo da intervenção com mais força em comparação às outras duas
urbanizações tratadas nesse texto: HafenCity e Potsdamer Platz. Todas elas no
entanto visam o lucro acima de tudo e por isso são voltadas para usuários de
renda alta, embora em Docklands e HafenCity moradia para pessoas de baixa
renda também tenham sido incluídas no projeto.
As três revitalizações estudadas, assim como a maioria das urbanizações
similares, acaba tendo um forte apelo turístico, reforçando as atividades econô-
micas e criando um ir e vir de pessoas que garantem o seu dinamismo.
A gentrificação também acontece com maior ou menor intensidade nas
parcerias público/privadas. No caso de Potsdamer Platz, não se pode dizer que
ocorreu, pois o local era uma terra arrasada antes da urbanização e antes da
Segunda Guerra Mundial era um local da elite berlinense, mas certamente ocor-
reu nos outros dois casos. A classe operária que antes habitava Docklands não
voltou a frequentar o local. O mesmo pode-se dizer no caso de Hamburgo.

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34 - Capítulo I – Planejamento e empreendimento

O que é fato é que a urbanização de grandes áreas seria inviável sem a par-
ceria com empresas privadas. O alto custo de um empreendimento dessa natu-
reza está acima das possibilidades da maioria dos governos municipais, mesmo
quando há uma cooperação do governo federal.
Um aspecto que facilitou a revitalização nos três casos abordados foi o
fato de as áreas serem de propriedade pública na sua maior parte. No caso de
Docklands, a prefeitura de Londres era proprietária de grande parte da área. Em
Hamburgo o governo municipal foi adquirindo as glebas sem fazer alarde e
Potsdamer Platz era lugar ocupado pelo muro que dividia a Alemanha Oriental
e Ocidental, e portanto não era de propriedade privada. Se a área estivesse pul-
verizada na mão de muitos donos, as complicações para viabilizar projetos de
tal magnitude teriam sido muito maiores.

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Rafael Giácomo Pupim - 35

CAPÍTULO II
DA CIDADE MODERNA À CIDADE CONTEMPORÂNEA:
CONSENSOS DO PENSAMENTO URBANÍSTICO
NO SÉCULO XXI
Rafael Giácomo Pupim

Este texto expõe um panorama dos conceitos e teorias que definiram o


pensamento urbanístico moderno, reunidos em termos de consensos, e sua
revisão crítica, a qual possibilita a afirmação das consonâncias do pensamen-
to urbanístico no século XXI. Para isso, apresenta uma leitura da cidade con-
temporânea sob o ponto de vista dos desdobramentos e das rupturas com os
pressupostos da modernidade, compreendendo que o pensamento urbanístico
recente explica-se muito a partir da revisão dos paradigmas modernos. Também
se trata de uma reunião de conceitos e denominações caros às leituras da cida-
de atual, a configurar um agrupamento que exponha a problemática das defi-
nições sobre o urbano contemporâneo.
Termo polissêmico, o adjetivo moderno, em uso comum, pode expressar
questões referentes ao tempo recente, atual. Entretanto, em história da arqui-
tetura e do urbanismo, este termo remonta ao pensamento racionalista-fun-
cionalista, trazido pelo Iluminismo, mas expresso, muito mais notadamente,
nas transformações da cidade a partir das inovações tecnológicas obtidas com
a Revolução Industrial, que configuraram um projeto ideal de sociedade e alte-
rações significativas nas artes, em especial com as vanguardas modernistas dos
anos 1910 e 1920, as quais ressoaram por todo o século XX. Desta forma, para
o urbanismo, o termo moderno é carregado de intenções ligadas a esse contex-
to, e referente a um longo período de sedimentação de ideias.
O adjetivo contemporâneo é recorrentemente utilizado na história da ar-
quitetura e da cidade para fazer referência à produção do momento presente.
Entretanto, faltam definições fortemente calcadas para amparar seguramente
a utilização do termo. Assim sendo, para referenciar a cidade contemporânea
a partir de consensos, é necessário procurar, primeiramente, as balizas que nos
fazem tratá-la a partir de tal qualificação, de forma a aproximarmo-nos de uma
periodização. Nesta busca, os limites temporais precisos escapam, como sem-

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36 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

pre o fazem ao se tratar de fenômenos recentes. Tal dificuldade pode ser ates-
tada pela compreensão que nos faz ter o urbanista italiano Bernardo Secchi,
ao considerar todo o século XX como um período de transição entre a cidade
moderna e a contemporânea20.
Em Primeira Lição de Urbanismo, Bernardo Secchi21 questiona a denomi-
nação “breve século XX” elaborada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm22,
segundo a qual, o período central desse século, compreendido entre a Primeira
Guerra Mundial e o início dos anos 1990, concentra e exprime todas as suas pe-
culiaridades. Para Secchi, neste mesmo intervalo, situam-se algumas das maiores
experiências da cidade e do urbanismo ocidental: a experiência do movimen-
to moderno, da construção da cidade soviética, da cidade do New Deal e das
cidades das ditaduras europeias, das duas reconstruções pós-bélicas, da forma-
ção, em algumas regiões do mundo, de imensas megalópoles, e, na última parte
desse período, finalmente, termina a transição da cidade moderna para a cidade
contemporânea – uma transição “iniciada nas últimas décadas do século XIX”.
Trata-se de transformações bastante intensas, desdobramentos de conjunturas
que não se circunscrevem a este curto período. Para a história da cidade e do
urbanismo, portanto, o século XX foi um longo século.
Se o século XX foi um século de transição, é o contexto do século XXI,
sob os aspectos da globalização e do capitalismo avançado, da reestruturação
produtiva, da telemática e da sociedade informatizada, que apresenta as orien-
tações para o entendimento do que podemos chamar de cidade contemporânea.
Porém, tal como se dá com a aproximação das acepções dos termos moderno e
contemporâneo, o momento recente não é uma ruptura integral com o ideário
pregresso, sendo possível notar desdobramentos dos pressupostos da moder-
nidade. Dentre esses desdobramentos, destaca-se a manutenção da figura da
mobilidade – exacerbada na contemporaneidade. As rupturas se apresentam
pela transformação das figuras da continuidade, da homogeneidade e da uni-
dade para as figuras do fragmento e da complexidade, que norteiam o pensa-
mento contemporâneo.

20
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
21
SECCHI, Bernardo. op. cit., p.85.
22
HOBSBAWN, Eric J. Age of extremes: the short twentieth century 1914-1991. London:
Random House, 1994.

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Rafael Giácomo Pupim - 37

Nas leituras recentes da cidade aparecem fortemente os aspectos de frag-


mentação, heterogeneidade e dispersão. Na base destas interpretações, estão os
desdobramentos da figura da mobilidade, expressos em adventos significativos
que marcam a transição da cidade moderna para a contemporânea, como o au-
tomóvel, a televisão, o computador, a internet, o cartão de crédito e o telefo-
ne celular. Isto porque eles dissolvem a ideia de proximidade, que é a base da
construção da ordem urbana tradicional. A partir destes aspectos, complexifi-
ca-se a leitura da cidade, e uma série de novos conceitos vem à baila para nor-
tear a análise das diversas faces dessa urbanidade.
As transformações das ideias sobre a utilidade e a funcionalidade da cida-
de, bem como das proposições modernas sobre a homogeneidade das partes que
produzia a continuidade urbana, revelam as rupturas significativas que definem
a transição da cidade moderna à cidade contemporânea. A figura introdutória
do pensamento moderno, a da ciência que ilumina e faz ler com clareza o mun-
do, ciência clássica que trilhou o percurso da especialização, no tempo atual, dá
passagem ao pensamento complexo, que opera um novo paradigma científico ao
clamar pela interdisciplinaridade e considerar a indeterminação e o caos organi-
zado. Neste sentido, ao invés de classificar e separar, o urbanismo atual procura
uma continuidade que articula as diferenças e vê com bons olhos a heterogenei-
dade e a diversidade nos espaços urbanos.

As rupturas: os consensos do pensamento urbanístico


moderno e a transformação das figuras da funcionalidade, da
continuidade homogênea e da unidade

As bases do pensamento urbanístico moderno, especialmente a racionalida-


de e a funcionalidade, são lançadas pelo Iluminismo no século XVIII e persegui-
das a partir da prática de isolar os problemas urbanos, classificá-los e solucioná-los
separadamente. Em apoio a estes ideais, os “engenheiros das luzes” concebiam o
território como um jardim atravessado por infraestruturas de mobilidade, no qual
as cidades apareciam como pontos articuladores das redes técnicas.23

23
PICON, Antoine. Racionalidade técnica e utopia: a gênese da haussmannização. In:
SALGUEIRO, Heliana Angoti (Org.). Cidades capitais do Século XIX: racionalidade, cosmo-
politismo e transferências de modelos. São Paulo: Edusp, 2001.

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38 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

No século XIX, a funcionalidade da cidade se relacionava à disposição or-


denada das atividades e à circulação eficiente requerida pela cidade industrial.
Neste contexto, o gesto de separar ganhou força no imperativo da construção de
uma cidade salubre, a qual, pelos pressupostos médicos, deveria ser aerada, ilumi-
nada e entremeada por espaços verdes. Este urbanismo de saneamento se associava
à ideia do embelezamento, por meio da proposição de uma cidade que, além de
saudável e funcional, resolvesse a balbúrdia em que tinha se transformado a cida-
de tradicional liberal. Para isto, o pensamento moderno dos reformadores urba-
nos organizou estratégias de desenho a fim de que se atingisse o juízo de unidade.

Figura 1 – A miséria, a insalubridade e a balbúrdia de uma rua de Londres em 1872.


Gravura de Gustave Doré. Fonte: Wellcome Library, London. Dudley St., Seven Dials
Engraving 1872. By: Gustave DoreLondon: a pilgrimage. Dore, Gustave and Jerrold,
Blanchard Published: 1872. Copyrighted work available under Creative Commons
Attribution only licence CC BY 4.0

O urbanismo do Movimento Moderno que marcou o século XX, por sua


vez, calcou suas formulações na busca de uma nova forma urbana, que se con-
trapunha veementemente à cidade tradicional. As diversas respostas dos urba-

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Rafael Giácomo Pupim - 39

nistas modernos aos problemas da cidade liberal tinham como ponto de partida
a pobreza e o caos resultante da cidade industrializada e, em grande medida,
se apoiavam nas inquietações atreladas à miséria do proletariado. As propostas
para a cidade moderna teriam, então, como pano de fundo, o ideal da justiça
social, da salubridade e da eficiência.
Como antecedentes às reformas urbanas de meados do século XIX e aos
modelos teóricos para as novas cidades industriais do final desse mesmo século,
têm-se, no início dos oitocentos, os urbanistas conhecidos como socialistas utó-
picos, que possuíam uma posição antiurbana, de inspiração romântica24, e que se
opunha à industrialização que gerava a metropolização. Nesta corrente, Robert
Owen, Charles Fourier e Etienne Cabet influenciaram profundamente o pensa-
mento e as ações políticas do século XIX ao pregarem mudanças na organização
social e nas relações de trabalho nas fábricas na busca de mais dignidade huma-
na. Esta nova ordem social induzia a formulação de um espaço que possibilitasse
a construção da sociedade idealizada. Os exemplos dessas novas concepções de
cidade se expressam em New Harmony (uma aldeia harmoniosa e cooperação es-
tabelecida ao redor de uma fábrica), arquitetada por Owen, no Falanstério (um
edifício monumental no qual as pessoas viveriam de forma comunitária), idea-
lizado por Fourier, no Familistério (uma redução do modelo fourierista edifica-
do por Godin), e na Icária, de Cabet, que se transformaram em símbolos desse
momento, propondo a alteração da estrutura física para abrigar a sociedade jus-
ta e sã, sem as lutas, a competição desenfreada e as tendências perversas da acu-
mulação de riquezas. A próxima geração de pensadores críticos, sobretudo Karl
Marx e Friedrich Engels, percebeu e pregou que entre a propriedade e a pobre-
za, o capital e o trabalho, as relações seriam de confrontação e de luta de classes.
Sob outro enfoque, as propostas para reformar a cidade liberal em mea-
dos do século XIX deram conta do problema da miséria e da degradação huma-
na como uma questão de salubridade e de controle social. Pela ação dos médicos,
que explicavam a proliferação das doenças a partir da teoria miasmática, a cida-
de sã deveria ser a cidade higiênica e descongestionada, na qual, além das redes
de água e esgoto, também eram fundamentais a abertura de espaços para a circu-
lação do ar, para a penetração da luz natural e para o contato dos citadinos com
espaços verdes. Na Paris de Haussmann, na Barcelona de Cerdá e na Ringstrasse
24
FILHO, Nestor Goulart Reis. Urbanização e teoria. São Paulo: Gráfica Urupês, 2000.

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40 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

de Viena, as questões comuns para a resolução dos problemas da cidade acumu-


lada e insalubre são os gestos da descongestão, do higienismo, da circulação rá-
pida e eficiente e do embelezamento com base na ideia de unidade. Em paralelo,
a decorrência de reformar a cidade também passava por transformar os locais da
habitação operária, retirada dos centros encortiçados e transferida para as perife-
rias. A cidade com o tecido liberado possibilitava a salubridade, a circulação fa-
cilitada e o controle dos movimentos sociais e das estratégias militares. Os eixos
viários criavam enquadramentos e efeitos de perspectiva. Surge a figura do quar-
teirão com lotes regulares, e os bulevares com arborização e controle de fachadas
e gabaritos constituem-se em cenários da cidade bela do século XIX, definindo
um modelo geral a ser exportado para diversas partes do mundo.25

Figura 2 – Uniformidade, higiene e circulação eficiente: Boulevard Haussmann. Fotografia


de Charles Marville, sem data indicada, realizada entre 1853 e 1870, período da renovação
urbana realizada por Haussmann em Paris.
Fonte: State Library of Victoria. Accession Number: H88.19/86b.
Arquivo livre de restrições conhecidas específicas a direitos autorais, incluindo todos os
direitos conexos

25
SALGUEIRO, Heliana Angoti (Org.). Cidades capitais do século XIX: racionalidade, cosmo-
politismo e transferências de Modelos. São Paulo: EDUSP, 2001.

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Rafael Giácomo Pupim - 41

Estes gestos comuns para a produção da cidade saudável e bela do sécu-


lo XIX criaram, então, um modelo de alcance global da cidade moderna, de-
duzido por vias técnicas e teóricas. Por mais incisivas que fossem as críticas às
generalidades do modelo, como as tecidas por Camilo Sitte26 sobre a perda da
urbanidade singular possibilitada pela cidade tradicional e as simplificações do
urbanismo meramente técnico, estavam firmados os alicerces para os consen-
sos do urbanismo moderno, que seriam sedimentados nas décadas seguintes.
Neste percurso, o século XIX gestou modelos teóricos para as novas cida-
des, tendo como imperativos o funcionamento da indústria e a circulação hábil
entre as cidades e o território. As propostas de Soria y Mata, Ebenezer Howard e
Tony Garnier definem esquemas teóricos nos quais a organização urbana se re-
definia completamente a partir da tentativa de eliminação, na economia capitalis-
ta, dos inconvenientes sociais causados pela organização da propriedade imóvel.
Nestas amostras, a organização da circulação fundamentava-se nos novos meios
de transporte e definia um tecido diferente de cidade, no qual seriam evitados os
congestionamentos, a especulação imobiliária e a marginalização da população.
No modelo da Cidade Linear, de Arturo Soria y Mata, de 188227, a alter-
nativa radical para a resolução destas questões era uma urbanização contida em
uma faixa de largura limitada, percorrida por uma ou mais ferrovias ao longo do
seu eixo, e de comprimento indefinido. Nesta proposta, reside o entendimento da
relação íntima entre os novos meios de transporte e a nova cidade, que se mante-
rá nas concepções urbanísticas posteriores baseadas na mobilidade do automóvel.

26
SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. (Ed. original
1889). São Paulo: Ática, 1992.
27
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1996.

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42 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

Figura 3 – Esquema de organização das quadras ao longo de um eixo viário entre duas cidades
originais no Modelo da Cidade Linear de Arturo Soria y Mata, 1882.
Fonte: Wikimedia Commons, 2015. Creative Commons Attribution-Share Alike 2.5 Generic
license

Na teoria da Cidade-Jardim, publicada pelo inglês Ebenezer Howard em


1898 , as questões de base da cidade moderna se somavam ao ideal de jun-
28

tar todas as vantagens da vida ativa do meio urbano à beleza e às delícias do


meio rural a partir de uma nova forma de organização urbana. A ideia cultura-
lista de Howard propunha uma urbanidade mais humana e integrada ao ver-
de, identificando na natureza não apenas o aspecto sanitarista, mas também as
questões de harmonia e equilíbrio espiritual. Em uma espécie de cooperativa,
industriais e moradores organizariam uma cidade de tamanho limitado e de
desenho radio-concêntrico. No centro desta cidade, se localizariam os edifícios
públicos, seguidos por um cinturão de comércio. Zonas residenciais se dispo-
riam ao redor deste núcleo, e todas as edificações e setores urbanos seriam en-
tremeados por generosas áreas verdes. Este organismo limitado deveria possuir
a qualidade da autossuficiência produtiva e cultural, de modo a minimizar a
dependência entre as cidades. Para isso, o controle rígido dos usos do solo ur-
bano era rebatido para a área rural. Largas avenidas e bulevares propiciariam a
interligação entre as partes da cidade, e a indústria se localizaria nas bordas ur-
banas, alinhavadas pelas ferrovias e estradas, que fariam a conexão desta à rede
de cidades satélites, firmemente estabelecidas no território, como uma cons-
telação equidistante. A conjunção de largas vias de circulação, que possibilita-

28
HOWARD, Ebenezer. Cidades-jardins de amanhã. São Paulo: Hucitec, 1996.

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Rafael Giácomo Pupim - 43

vam a organização bem definida das centralidades urbanas e regionais, com o


cenário bucólico das áreas residenciais da cidade-jardim, no qual imperava o
silêncio, a calma e o contato sadio do homem com a natureza, seria o traço de
continuidade da teoria culturalista de Howard no urbanismo progressista que
definirá a cidade do século XX.

Figura 4 – Diagrama nº2 do Modelo Cidade-Jardim de Ebenezer Howard, concebido em


1898.
Fonte: Ebenezer Howard, Gartenstädte von morgen, 1898

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44 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

Figura 5: Diagrama nº3 do Modelo Cidade-Jardim de Ebenezer Howard, concebido em


1898.
Fonte: To-morrow: A Peaceful Path to Real Reform, London: Swan Sonnenschein & Co.,
Ltd., 1898

Na Cidade Industrial de Tony Garnier, de 190429, a visão progressista de


cidade concebia uma ordem urbana de estrutura baseada em eixos e quadrícu-
las, que definia organizações físico-funcionais distintas por meio do zoneamento
funcional. Tratava-se de uma cidade desenhada pela e para a indústria. Os espa-
ços verdes, além de sanitários, também desempenhavam a função de isolantes dos
distintos setores urbanos. A proposta, de características lineares em planta, orga-
nizava a cidade por meio do seu sistema de transportes baseado na ferrovia e em
avenidas paralelas e perpendiculares, que conectavam o setor industrial às áreas
de residências e ao centro comercial e cívico. A possibilidade de efetivar seus pre-

29
CHOAY, Françoise. O urbanismo, utopias e realidade, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 1965.

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Rafael Giácomo Pupim - 45

ceitos teóricos na cidade de Lion, entre 1904 e 1914, onde constrói uma série de
edifícios públicos exemplares e bairros residenciais que resolvem em pequena es-
cala o caráter unitário da cidade racionalista, e sua defesa da técnica do concre-
to armado representam a ponte entre teoria e prática que faz da obra de Garnier
uma valiosa contribuição ao urbanismo do movimento moderno.

Figura 6 – Cité Industrielle de Tony Garnier. Um modelo influente para as propostas da


cidade funcional no qual a separação de funções promove a higiene.
Fonte: Wikimedia Commons, 2015: No known copyright restrictions

Das concordâncias entre estes primeiros modelos urbanos propostos no


final do século XIX e início do século XX, sedimentaram-se os consensos do ur-
banismo racionalista, que define a prática urbanística da primeira metade do sé-
culo XX e tem como principais nomes Le Corbusier, Walter Gropius e Ludwig
Hilberseimer.30 Tais consensos se resumem ao caráter extremamente segregacio-
nista dos modelos racionalistas de cidade, em que as áreas verdes eram conside-

30
FILHO, Nestor Goulart Reis. Urbanização e teoria. São Paulo: Gráfica Urupês, 2000.

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46 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

radas sob a ótica higienista, e nos quais o zoneamento funcional era enfatizado
fortemente. Neste contexto, as posturas gerais dos racionalistas se evidenciam por
descongestionar o centro das cidades e prever velocidade e eficiência na circulação,
por aumentar as densidades nos centros das cidades por meio da verticalização,
para realizar o contato exigido pelos negócios e em proporção elevar a quanti-
dade de áreas abertas para evitar a superlotação, por modificar completamente a
conformação tradicional da rua devido aos meios modernos de transporte (me-
trô, carros, trens, aviões), e por aumentar as superfícies verdes para assegurar a
higiene suficiente e a calma útil ao trabalho atento exigido pela era da máquina.
Nas propostas de Le Corbusier, estes consensos do pensamento urbanístico
moderno racionalista ficam evidentes. Na Cidade Contemporânea para 3.000.000
de habitantes, de 1922, a divisão da cidade em três setores distintos, organizados
em meio a grandes áreas verdes e interligados por uma rede viária de alta capacida-
de e de traçado geométrico, tem como pontos de destaque a sistematização viária,
que reduz a quantidade de vias de automóveis, a superquadra com os edifícios ele-
vados do solo, liberando ainda mais espaços abertos, e os “prédios-vila”. Esta pro-
posta é adaptada para o arrojado plano para Paris, o Plan Voisin, de 1925, segundo
o qual o centro da cidade seria completamente arrasado para dar lugar a uma nova
rede viária de autoestradas e a uma ordem geométrica de arranha-céus imersos em
amplas áreas verdes, rodeados por áreas habitacionais conectadas por vias de circu-
lação categorizadas por fluxo e tipo de tráfego. Na Ville Radieuse, de 1930, as fun-
ções urbanas, separadas, apresentam-se em faixas paralelas, e a ordem da cidade se
demonstra com clareza extrema na definição morfológica de cada setor. Com os
planos para Montevidéu, Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro, propostos entre
1929 e 1931, Le Corbusier formula a hipótese mais prodigiosa de sua visão urba-
nística: a solução única a partir de um gesto geral que aglutina arquitetura e cidade,
e que aparecerá mais acabada no Plano Obus para Argel em 1931.
Do pensamento racionalista sobre a cidade, destaca-se o quarto CIAM,
de 1933, que teve como produto a Carta de Atenas. Neste documento de com-
promisso, considerado a consubstanciação dos consensos do urbanismo moder-
no, a palavra de ordem é separar. Suas indicativas para a resolução das “quatro
funções urbanas” (habitar, circular, trabalhar e recrear-se) aparecem nos proje-
tos urbanos executados de Le Corbusier para Chandigard (projetada em 1950)
e de Lucio Costa para Brasília (concebida em 1956).

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Rafael Giácomo Pupim - 47

Figura 7 – Vista aérea do setor habitacional de Brasília, Asa Sul. As superquadras habitacionais
junto ao Eixo Rodoviário concebido sem cruzamentos em nível. Blocos de seis pavimentos
sobre pilotis em meio ao verde.
Fonte: GoogleEarth, 2016. Imagem do Satélite Landsat. Data das imagens: 18/02/2014.
Coordenadas 15º48”29,17”S 47º53”27,06”O elev 1099m altitude do ponto de visão
2,47km

Em Brasília, o imperativo da circulação automobilística – o “autódromo”


que preconizava Le Corbusier – ganha forma nos eixos que definem a cidade e
que se cruzam em desnível. A cidade-capital salubre e democrática – domina-
da pelos espaços abertos, de circulação rápida e eficiente e com setores homo-
gêneos, inclusive na standartização de grupos de edifícios – é a concretização
do ideal modernista da “cidade funcional”. É o seu auge, a representação de
um momento em que o urbanismo moderno havia se tornado hegemônico e
se convertido em ortodoxia. Mas é assim também que se torna o signo do seu
declínio, uma vez que é em 1956, quando Brasília é gestada, que os arquitetos
do Team X31 fornecem as mais contundentes críticas ao modo doutrinário mo-

31
BARONE, Ana Cláudia Castilho. Team 10: arquitetura como crítica. São Paulo: Annablume,
2002.

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48 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

derno de organizar a vida urbana e que, apenas um ano depois da inauguração


dessa cidade, Jane Jacobs publica Morte e Vida de grandes cidades32, em 1961.
Na crítica de Jane Jacobs, residem os pressupostos de projeto para a ci-
dade contemporânea. A relação estreita do urbanismo com a sociedade, a com-
plexidade dos elementos que compõem a vida urbana, e a defesa da diversidade
e da heterogeneidade dos espaços são pontos de ruptura assinalados neste mo-
mento e norteadores do pensamento urbanístico do século XXI.
Assim, a transformação das figuras da unidade, da continuidade homo-
gênea e da funcionalidade que regiam o pensamento urbanístico moderno é,
sem dúvida, linha de contorno da busca do entendimento do que seria a pas-
sagem da cidade moderna à cidade contemporânea. E a unidade não se refere
apenas ao desenho de uma coesão estilística, tal como no urbanismo de embe-
lezamento e saneamento, mas a um ato integral de desenho que responde ao
conjunto de elementos diversos e de atividades interdependentes que formam
uma cidade. Este ato integral de desenho é o plano urbanístico moderno. A vi-
são de conjunto, atingida em termos da continuidade espacial aparece exemplar
na obra de Le Corbusier, nos desenhos dos edifícios standard para os setores
urbanos, ou na forma urbano-arquitetônica dos edifícios-viaduto, e ainda no
desenho total da cidade, tal como se pronuncia na Vile Radieuse e em Brasilia.
A ideia do plano unitário moderno objetiva dar forma à inteira cidade, inte-
grando as partes diversas em uma ideia de conjunto, tornando o múltiplo uno.
O que parece claro é que essa unidade, quando falamos de cidade con-
temporânea é uma imagem inexistente. Em um movimento contrário, emergiu
outra figura a ser instrumentalizada, a do fragmento33 – a partir da atomização
dos contextos urbanos na urbanização dispersa – a qual, por sua vez, remete à
importância da diferença e da especificidade dos lugares – que encontra ampa-
ro na ideia do genius locci 34, e faz pensar na validade da cultura e da carga ima-
gética da paisagem existente35, resultante do processo de urbanização, e não do

32
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
33
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
34
ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. (Ed. original 1966) São Paulo: Martins Fontes,
1995.
35
VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las
Vegas. (ed. original 1977). São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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Rafael Giácomo Pupim - 49

projeto urbanístico, ressaltando que, o que à primeira vista aparece como ba-
nal, tem notável efeito comunicante e um efeito perceptivo rico de elementos36.
Outras figuras que atuaram como base para os consensos do urbanis-
mo moderno são as da utilidade e da funcionalidade. Tais figuras ganharam
vigor no ideal de distanciar e separar. Deste paradigma descende, a partir do
século XVIII, a geografia dos cemitérios, dos matadouros, dos hospitais, dos
quartéis e das prisões e, no século XIX, a disposição das fábricas e dos diver-
sos tipos de residência. No começo do século XX, esse ideal foi codificado na
pratica do zoning, consolidando na cidade um sistema de valores posicionais
que, ao longo do tempo, foi representado, de modo mais ou menos trans-
parente, nas características físicas e estéticas de suas diferentes partes e nos
correspondentes valores fundiários. A visão tardo-racionalista sobre a cidade
acompanhava o zoning da possibilidade de se desvencilhar da desordem ur-
bana e de se afastar da congestão por meio do conforto da circulação com o
automóvel, distanciando a moradia que, por sua vez, se inseria no verde do
espaço de ocupação rarefeita. O efeito dessa visão foram os bairros residen-
ciais fechados,37 afeitos à segregação social e sem estímulos à vivência urba-
na, pois não suscitam espaços compartilhados.
Na cidade moderna, como nos esclarece Secchi,38 alcançara-se gradual
e progressivamente certa coerência entre a forma urbana, o papel das diversas
partes, a disposição das diferentes atividades em seu interior e a distribuição
dos valores posicionais. No centro, as atividades direcionais e comerciais de
maior valor, as grandes instituições e a residência das classes mais abastadas; e,
gradualmente, em direção à periferia, atividades menos raras e classes sociais
menos ricas; na extrema fronteira, a fábrica, os quartéis, os manicômios e os
bairros populares. A pirâmide dos valores posicionais e estéticos espelhava a so-
cial. Porém, a cidade contemporânea é lugar de contínua e tendencial destrui-
ção de valores posicionais, de progressiva uniformização e democratização do
espaço urbano, de destruição de consolidados sistemas de valores simbólicos e
monetários, de contínua formação de novos itinerários privilegiados, de novos

36
LYNCH, Kevin. The image of the city. Cambridge: The M.I.T. Press, 1960.
37
MARCUSE, Peter. No caos, sino muros: el postmodernismo y la ciudad compartimentada.
In: RAMOS, Ángel M. (Ed.). Lo urbano. Barcelona: ETAB/UP, 2004.
38
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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50 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

lugares de comércio, de lazer, da comunicação e de interação social, de uma


nova geografia de centralidades, de novos sistemas de intolerância, de compa-
tibilidade e de incompatibilidade.
Essas novas territorialidades, espaços por vezes descolados da represen-
tação tradicional da cidade ou recombinados a situações pregressas, compõem
novidades que se contrapuseram aos modelos funcionais propostos pelo projeto
da cidade moderna. A uma separação em zonas, a iniciativa individual contra-
pôs a escolha de percursos (ao longo dos quais dispõe, por exemplo, os luga-
res da produção no contexto pós-industrial), de grandes interiores (as áreas do
mosaico agrícola onde instalar a própria casa), e a hibridação tipológica (viver
e trabalhar no mesmo lugar graças à telemática). Tais iniciativas, derivadas ou
de um projeto individual, ou de um projeto coletivo e/ou de um projeto insti-
tucional, mostram as alterações do modo de vida urbano rebatidas para a ocu-
pação do território na contemporaneidade, a qual carece, portanto, de novas
conceituações.

Os desdobramentos da figura da mobilidade:


reconceituar a cidade contemporânea

A manutenção do imperativo da mobilidade territorial e humana ao


longo da transição à cidade contemporânea é, ao mesmo tempo, promotora
de concentrações urbanas e industriais exigidas pelo capitalismo, e de disper-
sões territoriais possibilitadas pelas novas técnicas. Alguns dos mais evidentes
aspectos visíveis da cidade contemporânea – fragmentação, heterogeneidade
e dispersão – têm sido muitas vezes atribuídos às numerosas e sucessivas on-
das de progresso técnico no campo das comunicações e dos transportes, seja
o transporte de corpos e de matéria, seja o do tipo imaterial.
A partir do que foi proposto pelos ciclos de Kondratieff,39 pode-se com-
preender como o incremento nas possibilidades de circulação dos homens, dos
bens e da informação rebate os efeitos na urbanização. Tal rebatimento eluci-
da os desdobramentos da mobilidade ao longo da transição da cidade moderna
para a cidade contemporânea. O primeiro ciclo se inicia na primeira metade do
39
HALL, Peter. Megacities, world cities and global cities. Amsterdam: Stichting Megacities 2000
/ Megacities Foundation, 1997.

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Rafael Giácomo Pupim - 51

século XIX e está vinculado à melhoria da rede viária e ao início do transpor-


te ferroviário. O segundo, na segunda metade do mesmo século, relacionado
ao pleno desenvolvimento das redes ferroviárias e do telégrafo. O terceiro, na
primeira metade do século XX, ligado ao desenvolvimento rodoviário e ao rá-
dio. O quarto, na segunda metade do século, ao desenvolvimento da eletrôni-
ca e da telemática. E o quinto ciclo, que se estabelece no atual momento, está
relacionado à convergência desses desenvolvimentos tecnológicos em comple-
xas redes telemáticas e mecânicas.
O imperativo da mobilidade, reafirmado em várias e sucessivas ondas
desde o início da modernidade definiu a natureza polimorfa e descontínua do
investir do habitat humano sobre o território, que caracteriza o processo de
urbanização atual. Esta polimorfia faz com que os estudos recentes sobre a ci-
dade procurem novas definições, na tentativa de conceituar a natureza dos fe-
nômenos urbanos envolvidos. Assim, a profusão de novos termos relacionados
à cidade e ao urbano contemporâneos expõe a necessidade de reconceituar a
cidade devido às alterações nas balizas de análise tradicionais, e atestam que se
trata, de fato, do despontar de um novo período para a história do urbanismo.
Tais conceitos buscam denominar uma realidade que se distingue daque-
la da cidade histórica e revelam a preocupação das últimas décadas em evitar
o anacronismo do termo “cidade”. Neste momento, surge, segundo Solá-
Morales,40 uma série de neologismos criados a partir dos termos clássicos gre-
co-latinos como urbs, polis e civitas, para nomear fenômenos que configuram
as variadas facetas da realidade urbana recente. Por vezes superpostos, por ve-
zes excludentes e por vezes inclusivos, tais enfoques revelam, ao fim, situações
urbanas distintas que, em conjunto, pontuam as transformações sucedidas com
a cidade moderna.
Os conceitos selecionados tratam principalmente de dois aspectos da rea-
lidade urbana dos últimos decênios do século XX e do início do século XXI. O
primeiro, relacionado às transformações na forma urbana a partir do incremen-
to da capacidade de mobilidade absoluta dos territórios, isto é, da superação do
espaço através do tempo, graças à evolução das tecnologias para a circulação. O
segundo aspecto diz respeito às transformações nos comportamentos, leituras,

40
SOLÁ-MORALES, Ignasi de. Territórios. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

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52 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

representações e ações sobre o urbano com o advento da telemática, ou seja,


das possibilidades de fluidez potencial dos territórios, graças à introdução das
tecnologias de informação e comunicação. A conjunção dos dois aspectos rela-
cionados faz ver a vinculação entre a ordem econômica e a tecnologia de mo-
bilidade a esta relacionada na transformação da cidade.
As orientações do capitalismo avançado e a nova ordem econômica mun-
dial, sob os mandos da globalização, fazem lançar olhares sobre a homogeneização
dos padrões de consumo e comportamento, que se refletem na generalização das
formas urbanas, como atestam as representações da cidade genérica41 de Koolhaas.
No mesmo mote, os novos usos e densidades dos territórios implicam na refle-
xão sobre a interface entre o global e o local, que origina o neologismo “glocal”.42
Os dois conceitos situam questionamentos sobre a interface entre o território em
rede – global – e a importância dos lugares no estudo da urbanização, as espe-
cificidades do local e a riqueza cultural que a globalização tende a desmerecer.
Analisando a ordem econômica das últimas décadas, Manuel Castells inte-
ressa-se pelo processo geral de transformação dos lugares e das sociedades a partir
da sua articulação num sistema global regido pelo espaço de fluxos – forma de arti-
culação espacial do poder e da riqueza do mundo informatizado. Esta conjuntura
implica uma lógica organizacional que é a-espacial, pois mesmo que as organi-
zações estejam localizadas em lugares específicos e seus componentes sejam de-
pendentes do sítio geográfico, a lógica organizacional decorre essencialmente do
espaço de fluxos que caracteriza as redes de informação, o que promove proces-
sos concomitantes de centralização das atividades de alto nível nos centros finan-
ceiros e de descentralização das atividades de gerência da produção para lugares
distantes das grandes cidades. É nesse argumento que ele concebe o advento da
cidade informacional43, o contexto social e espacial de cidade da sociedade da era
da informação, na qual qualquer lógica produtiva precisa estar conectada aos mer-
cados financeiros e, portanto, dependente das interações no espaço dos fluxos.

41
KOOLHAAS, Rem. The generic city. In.: KOOLHAAS, Rem. MAU, Bruce. S, M, L, XL.
New York: The Monacelli Press, 1995.
42
LIPIETZ, Alain. O local e o global: personalidade regional ou inter-regionalidade? In.:
Revista Espaço & Debates, São Paulo: Neru, n. 38, p. 10-20, 1994.
43
CASTELLS, Manuel. The informational city. Oxford: Blackwell, 1991.

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Rafael Giácomo Pupim - 53

Outro conceito contemporâneo é o de megacidade, também abordado por


Manuel Castells44. As megacidades são definidas como aglomerações de grandes
dimensões, que concentram o essencial do dinamismo econômico, tecnológico,
social e cultural dos países. Conectadas entre si em uma escala global, elas se es-
tendem no território e formam verdadeiras nebulosas urbanas, nas quais campo,
cidade, criatividade e problemas sociais integram-se ao mesmo tempo. Forma es-
pacial presente nos diferentes contextos geográficos e sociais da nova economia
global e da sociedade informacional, as megacidades são definidas não apenas por
seu tamanho – aglomerações com mais de dez milhões de pessoas –, mas também
por constituírem os nós da economia global e por concentrarem as funções supe-
riores direcionais, produtivas e administrativas de todo o planeta.

Figura 8 – Gráfico das maiores Megacidades do munto de acordo com uchart.org (2014).
Fonte: Wikimedia Commons Internacional

44
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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54 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

A cidade 24/7/36545 designa cidades mundiais como Londres, onde as


atividades sociais, culturais e econômicas acontecem 24 horas por dia, sete dias
por semana e 365 dias por ano. Em uma cidade como essa, não há horas off,
nenhum dia fixo para descanso e não há turnos sazonais ou ciclos de utilização.
Refletindo sobre a organização da rede de cidades e sua hierarquia no co-
mando das atividades produtivas, Saskia Sassen elabora o conceito de cidade glo-
bal46. Seu pressuposto é que, na economia mundial do final do século XX, existem
duas características distintas: a integração dos sistemas e a dispersão geográfica das
atividades econômicas, e que este contexto contribuiu significativamente para o
papel estratégico desempenhado pelas grandes cidades, as quais, além de conti-
nuarem concentrando funções de comando, receberam duas outras funções: são
locais de produção pós-industrial para as principais indústrias, para o setor finan-
ceiro e para os serviços especializados, e são mercados multinacionais, nos quais
empresas e governos podem adquirir instrumentos financeiros e serviços espe-
cializados. Lugares-chave para os serviços avançados e para as telecomunicações
necessárias à implementação e ao gerenciamento das operações econômicas glo-
bais, elas constituem nós de circulação de recursos e tendem também a concentrar
as matrizes das empresas, sobretudo daquelas que operam em mais de um país.

Figura 9 – Mapa das cidades globais de acordo com Globalization and World
Cities (GaWC) (dados de 2010).
Fonte: Wikimedia Commons

45
ARAUJO, Rosane Azevedo de. A cidade sou eu?: o urbanismo do século XXI. Tese
(Doutorado). Rio de Janeiro, UFRJ/FAU, 2007.
46
SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998.

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A urbanização virtual ampara o surgimento de figuras como as do espa-


ço urbano simbiótico e da cidade ampliada.47 O urbano virtual, descendente das
possibilidades de interação, geração e troca de conhecimento por meio das tec-
nologias de informação e comunicação, é tratado no conceito de cibercidade48,
desenvolvido por Pierre Lévy. Para este autor, a relação entre a cidade e o cibe-
respaço dá-se mediante as articulações entre o funcionamento urbano e as for-
mas de inteligência coletiva que se desenvolvem no ciberespaço – uma forma de
compensação da inércia e rigidez do espaço territorial pela articulação realizada
em tempo real no ciberespaço. Isso permite que as questões urbanas sejam ela-
boradas por meio da comunicação interativa e coletiva, possibilitando a colo-
cação simultânea de competências, recursos e ideias, e a noção de ubiquidade.
A cidade dos bits49, de Willian Mitchel, é a esfera urbana na qual o aces-
so remoto e a telepresença são os meios de uma nova organização de espaços
públicos urbanos virtuais, sendo as pessoas o suporte de intersecção entre os
espaços concretos e o ciberespaço. Em e-topia,50 Mitchel conceitua uma urba-
nização mais econômica e ecológica, que considera a inteligência eletrônica
na desmaterialização de serviços físicos por virtuais, na desmobilização para a
economia de transportes de bens e pessoas, na personalização em massa e no
funcionamento inteligente dos sistemas e na transformação suave dos espaços
concretos em híbridos para as interações com o ciberespaço.
A cidade digital é aquela habitada pelos teletrabalhadores e pelas teleco-
munidades, que usam informação e comunicação tecnológica para trabalhar e
se comunicar à distância – comunidades que são aespaciais e de natureza ima-
teriais, tais como os grupos de discussões virtuais interativos, a rede bancária
24 horas, a rede digital de fornecimento de trabalho e a informação à distância.

47
FIRMINO, Rodrigo José. A simbiose do espaço: cidades virtuais, arquitetura recombinan-
te e a atualização do espaço urbano. In: LEMOS, André. (Org.) Cibercidade II: a cidade na
sociedade da informação. Rio de Janeiro: E-papers. 2005, p. 307-335.
48
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
49
MITCHELL, William J. City of bits: space, place and the infobahn. Cambridge: MIT Press,
1995.
50
MITCHELL, William J. e-topía: vida urbana, Jim, pero no la que nosostros conocemos.
Barcelona: Gustavo Gili, 2001.

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56 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

Os processos de metropolização contemporâneos são investigados por


François Ascher, que desenvolve o conceito de metápole,51 como sendo um
conjunto de espaços em que a totalidade ou parte dos habitantes, das ativida-
des econômicas ou dos territórios está integrada ao funcionamento cotidiano
de uma metrópole ou de um conjunto de grandes cidades. Com uma bacia co-
mum de emprego, de residência e atividades, a metápole é composta por es-
paços heterogêneos e não necessariamente contíguos, e compreende algumas
centenas de milhares de habitantes; são as vastas regiões urbanas que aglome-
ram cidades de todos os tamanhos, nas quais as zonas urbanas e as zonas rurais
se interpenetram, e onde o próprio desenrolar da urbanização faz configurar
um contexto, influenciado pela metrópole, do qual elas não podem escapar.
As possibilidades de fluidez do espaço atual e o generalizado modo de
vida urbano – que faz invalidar a antiga dicotomia rural/urbano, a partir da
ideia de uma urbanização exacerbada do território – respaldam o conceito da
urbanização extensiva52, também chamada de urbanização difusa53 ou dispersa.54
Essa dispersão ocupacional é tratada por alguns autores que investigam o
espalhamento, a fragmentação e a pulverização do habitat humano sobre os terri-
tórios. No tocante ao espalhamento da mancha urbana, o conceito de Edge city,55
criado por Joel Garreau, define o fenômeno acontecido nos Estados Unidos.
Segundo o autor, a Edge City é uma solução urbanística baseada na ocupação de
espaços para atividades de escritórios em subcentros, localizados no contorno da
cidade, sob a forma de unidades de ocupação planejada. Trata-se de áreas gigan-
tescas, do tamanho de cidades de médio porte, que se comportam, inclusive, com
a mesma estrutura geral de funções de uma cidade, com residências, comércio,
prédios de escritório e serviços.

51
ASCHER, François. Metápolis: acerca do futuro da cidade. Oeiras: Celta Editora, 1998.
52
MONTE-MÓR, R. L. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental.
In: SANTOS, Milton et. al. (Org.) Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/
Anpur, 1994, p. 169-181.
53
INDOVINA, Francesco. La Ciudad Difusa. In: RAMOS, Ángel Martins. Lo Urbano.
Barcelona: ETAB/UP, 2004.
54
Dois autores utilizam o termo “cidade dispersa” para tratar do fenômeno, Francisco Javier
Monclús (MONCLÚS, Francisco Javier. La ciudad dispersa. Barcelona: Centro de Cultura
Contemporanea de Barcelona, 1998) e Nestor Goulart Reis (REIS, Nestor Goulart. Notas
sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo: LAP-FAU-USP, 2006).
55
GARREAU, Joel. Edge city: life on the new frontier. New York: Doubleday, 1991.

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Rafael Giácomo Pupim - 57

Ainda no que concerne ao espraiamento urbano, a ex-urban city56 é um


modo de ocupação urbana conceituado por Mario Gandelsonas. Tal cidade se
baseia também na desconstrução dos limites entre subúrbio e cidade e no fe-
nômeno do “campus para escritórios”, somados a uma multiplicidade de ati-
vidades e não somente a centros de escritórios, incluindo centros de compras,
habitação, lazer e entretenimento. Trata-se de um processo posterior e evolu-
tivo da edge-city, em que a ordem planejada característica destes subcentros dá
lugar a uma reprodução do mesmo fenômeno no urban-sprawl, ou seja, no es-
palhamento urbano de baixa densidade e não planejado.

Figura 10 – Espraiamento urbano em no subúrbio de Rio Rancho, no Novo México, EUA,


2009.
Fonte: Wikimedia Commons

56
GANDELSONAS, Mario. X Urbanism: architecture and the american city. Nova York:
Princenton Architectural Press, 1999.

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58 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

A cidade difusa57 é um conceito elaborado para a reflexão da dispersão


urbana no continente europeu, e descrito como sendo uma expressão da explo-
são das cidades e da invasão das zonas tradicionalmente rurais pela vida urba-
na. O modo de vida é urbano, porém, o grau de dispersão que tal movimento
promove não permite uma imagem desenhada de cidade, bem como não se
liga a uma rede de infraestruturas e serviços urbanos. Essas tipologias se difun-
dem a partir dos centros urbanos, porém incorporam o conjunto do território,
sem diretrizes predominantes, em um fenômeno também chamado de “cam-
po construído”.

Figura 11 – Fragmentação da mancha urbana e o fenômeno do “campo construído” em


Bauru, SP.
Fonte: Imagem realizada pelo autor. Redesenho dos contornos da mancha urbana e da
ocupação edificada no campo sobre foto de satélite extraída de Google Earth, Image 2012
GeoEye. 2013

A cidade contemporânea é, em suma, o reflexo cumulativo e facetado dos


conceitos que definem suas manifestações. A partir desses termos, fica clara a
mudança de paradigma de um termo que, certamente, não se restringe à geo-

INDOVINA, Francesco. La ciudad cifusa. In: RAMOS, Ángel Martins. Lo urbano. Barcelona:
57

ETAB/UP, 2004.

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Rafael Giácomo Pupim - 59

grafia, à geometria ou ao tempo cronológico e que, em definitivo, está em ques-


tão. A dificuldade em conceituar a cidade contemporânea, uma vez que esta se
nos apresenta sob variadas formas, pode encontrar um testemunho importante
no uso recorrente da tradução do adjetivo “urbano”, tornado substantivo para
descrever as variadas formas de habitat humano no território de uma sociedade
urbanizada, marcada pelo paradigma da rede e da ubiquidade, graças aos avan-
ços tecnológicos que potencializaram a mobilidade dos homens e das ideias.

Projetar a cidade atual:


consensos do pensamento urbanístico contemporâneo

Diferentemente da cidade moderna, a cidade contemporânea não tem


características comuns em toda parte do mundo ocidental. Se a cidade moder-
na propõe temas e problemas que, em combinações diversas, são reencontra-
das em todo lugar e que, portanto, podem se tornar objeto de reflexões gerais,
a cidade contemporânea é o lugar da diferença. Daí o problema da maioria das
leituras sobre essa cidade, pelo fato de estas se darem sob as formas codificadas
do urbanismo moderno.
Ao indagar sobre o projeto da cidade contemporânea, são muitas as ima-
gens utilizadas para interpretar a fragmentação da cidade atual. Recorre-se, fre-
quentemente, a imagens do jogo, do puzzle, da marchetaria, do patchwork, da
hibridação, do zapping, dos layers que se sobrepõem e parcialmente se entrecru-
zam, do labirinto, do hipertexto, da rede, ou da figura fractal. Com o mesmo
objetivo, foram utilizadas técnicas gráficas combinando imagens e desenhos, fo-
togramas, com base na montagem cinematográfica. Os Manhattan Transcripts,58
de Tschumi, e o livro S, M, L, XL, de Koolhaas, são exemplares dessas técni-
cas de leitura. Tschumi utiliza a técnica da “desmontagem”, em que importa
mais uma trama de interpretações plurais sobre a cidade do que a delimitação
de um fato singular. “Form follows fiction”, afirma o arquiteto. Já a narrativa
do livro de Koolhaas recorre à estrutura dos sistemas complexos, exemplar do

58
TSCHUMI, Bernard. The Manhattan transcripts. London: Academy Editions, St. Martin’s
Press, 1981.

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60 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

pensamento da vertente pós-estruturalista59 e da teoria da complexidade.60 Mistura,


em um mesmo suporte, fotografias, textos, diagramas e desenhos com base em
uma organização capitular que sugere uma subversão da ideia de escala em ar-
quitetura: s, m, l, xl61, como ordenação dos projetos segundo o tamanho dos
edifícios faz uma analogia ao vestuário, reduzindo a arquitetura a um invólucro,
trabalhando a simplificação da casca em prol da complexificação das possibili-
dades programáticas. Importante dizer que o que parece unir essas estratégias
é a tentativa de restabelecer uma ordem, mesmo que fraca, a um campo que é
aparentemente desprovido dela, enfrentando novamente um dos mais impor-
tantes temas da cultura ocidental: a relação entre o uno e o múltiplo.
Entretanto, fragmentação e dispersão, embora contenham em si os distan-
ciamentos físico e social, não se colocam como termos de um antiurbanismo. Os
anos de 1970 e 1980 reiteraram, na cultura arquitetônica e urbanística, a tese de
que não há arquitetura e urbanismo sem evento, sem a combinação de ação, ativi-
dades, funções. Bernard Tschumi e Rem Koolhaas recuperam esses temas e fazem
do evento (conceito pós-estruturalista que substitui a noção de estrutura do estru-
turalismo) o tema para a sua arquitetura do “prazer” – uma arquitetura habitada
pela cidade. Assim, novos estímulos de vivência urbana se colocam em contrapo-
sição, fincados na capacidade catalisadora que tem a mixité urbana. A ideia de “ir-
rigar territórios” a partir de dispositivos de transporte e megaestruturas de serviço
e estadia soma-se ao conceito de “urbanidade interior” nas propostas urbanas de
Koolhaas62, apontando que a dispersão não é um caminho unidirecional, e sim um
par dialético da concentração, cabendo ao urbanismo o gesto articulador entre a
congestão e o espraiamento por meio da combinação das infraestruturas de trans-
porte com a mistura de usos, a ponderação sobre a disposição dos espaços aber-
tos como potenciais de múltiplos eventos, e o estímulo ao contato das diferenças.
Em âmbito geral, o grande tema para o projeto da cidade do século XXI
está relacionado aos impactos da urbanização generalizada do planeta e da forma

59
NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica. São Paulo, Cosac
Naify, 2006.
60
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre, Sulina, 2007.
61
Small, medium, large, extra large (pequeno, médio, grande, extra grande) faz referência aos
parâmetros de medidas usados na comercialização das peças prontas para vestir.
62
KOOLHAAS, Rem. MAU, Bruce. S, M, L, XL. New York: The Monacelli Press, 1995.

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Rafael Giácomo Pupim - 61

como os territórios são consumidos pelo homem: a busca pelo desenvolvimen-


to urbano sustentável. Uma cidade sustentável é aquela considerada economi-
camente vibrante, socialmente justa e ecologicamente viável. O termo inclui
comumente as noções de justiça e igualdade e requer que as demandas do pre-
sente sejam atendidas sem comprometer as futuras gerações de suprirem suas
próprias necessidades.
Neste sentido, a cidade sustentável é aquela que deve se orientar enquanto
contraposição ideal à cidade da distopia,63 conceito que alude ao amontoado in-
controlável de pobreza urbana, caos social, crime, poluição, população sem-teto,
mendicância e outras formas de privação. Tal contexto urbano pode ser traduzido
como o equivalente ao submundo da cidade global, ou seja, o efeito do predomí-
nio da ideologia neoliberal na sociedade e na urbanização pela ação dos capitais
transnacionais que dissolvem barreiras geopolíticas para atingir a máxima rentabi-
lidade, contando, para isso, com o enfraquecimento do Estado e com o controle
da propriedade do solo. Assim, o efeito sobre a ocupação humana dessa ideolo-
gia é a subeducação, a sublocação e as precárias condições de vida e de trabalho
que agravam a situação de marginalidade, em contraste com a fortuna crescen-
te de poucos. Para a manutenção das formas atuais de poder, este cenário não é
uma mera casualidade, mas sim parte de um projeto geral que entendeu a previ-
são de um futuro próximo solicitante de poucos trabalhos qualificados e de um
exército de trabalhadores localizados em qualquer lugar do mundo que se reno-
ve frequentemente, cenário que evidencia o interesse em deixar que o ensino pú-
blico se degrade, o consumo generalizado se mantenha, os contratos de trabalho
precários e temporários se naturalizem e a vida fast se imponha, qualificando um
fenômeno conceituado como modernidade líquida e vida lixo.64

63
ARAUJO, Rosane Azevedo de. A cidade sou eu?: o urbanismo do século XXI. Tese (Doutorado)
– Rio de Janeiro, UFRJ/FAU, 2007.
64
MONTANER, Josep Maria; MUXI, Zaida. Arquitetura e política. São Paulo: Gustavo Gili,
2014.

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62 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

Figura 12 – Vista da Favela Jaqueline, no distrito de Vila Sônia (São Paulo, Brasil), 2008.
Fonte: Wikimedia Commons

Os compromissos do urbanismo contemporâneo residem, portanto, na


retomada da função original que motivou a criação do planejamento urbano
no século XIX revista sobre novas bases. O conceito distorcido de desenvolvi-
mento urbano como sinônimo de crescimento econômico, que rendeu e ren-
de experiências nefastas sob o signo do planejamento estratégico de cidades e do
marketing urbano65 – afins à proposição da cidade-mercadoria66 –, deve ser re-
visto e então solicitado pela responsabilidade dos poderes públicos democrá-
ticos na sua função de alcançar uma sociedade mais justa e equilibrada, e da
cidade mais que um impulsionador de crescimentos desorbitados, em um ur-

65
ARANTES, Otília, VAINER, Carlos, MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento unico.
Desmanchando Consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.
66
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do plane-
jamento estratégico urbano. In: VIII ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 1999. Porto
Alegre. Anais eletrônicos. Porto Alegre: PROPUR – UFRGS, 1999.

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Rafael Giácomo Pupim - 63

banismo de fato integrador, que redistribua os benefícios urbanos a todas as


camadas sociais.
Assim, os consensos do pensamento urbanístico contemporâneo con-
sistem em novas epistemologias, decorrentes da revisão dos pressupostos que
embasaram a modernidade, de modo a enfrentar um duplo desafio, de or-
dem social e ambiental. As figuras norteadoras para as atuais proposições e te-
orias sobre o urbano são: a igualdade de direitos, a diversidade, a participação e
a sustentabilidade.
No eixo dos desafios sociais, a evolução das políticas de valorização da di-
mensão humana, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948
e a ideias relacionadas à moradia e ao bairro, à reivindicação da vida cotidiana
e à vontade de participar da cidade, tal como teorizou Henri Lefebvre em O
direito à cidade67, constituem o repertório da figura da igualdade.

Figura 13 – Espaço público democrático e diverso. Avenida Paulista pedestrianizada aos


domingos.
Fonte: Imagem realizada pelo autor em 2016

67
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. (Ed. original 1968). São Paulo: Centauro, 2001.

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64 - Capítulo II – Da cidade moderna à cidade contemporânea

A figura da diversidade diz respeito ao clamor de um urbanismo auten-


ticamente igualitário e democrático. Neste sentido, a consideração da igualda-
de de gêneros e a aceitação da diversidade sociocultural implicam, portanto,
em abandonar as pretensões de universalidade, unidade e identidade gerais de
um discurso urbanístico único. Sugerem um urbanismo que escape da lógi-
ca aparentemente irredutível da cidade global e seja regulado por bases locais,
com foco na participação popular. Tal proposta se vincula ao que Jan Gehl68
defende quando fala sobre o conceito de planejamento com dimensão humana.
A sustentabilidade é um ideal que articula os demais consensos atuais e,
por este sentido, deve ser pensada como signo da complexidade, na medida em
que envolve o entendimento de uma realidade em contínua transformação. Se
por um lado a ideia de desenvolvimento urbano sustentável tem como claros
os requisitos da compactação, da diversificação, da densidade e da heterogenei-
dade associados ao desenho da cidade verde e da cidade inteligente,69 por outro
lado, o anseio por uma sociedade mais justa e ecologicamente correta pressu-
põe uma ruptura crucial com os modelos teóricos anteriores que orientaram
os campos disciplinares modernos e a proposição de visões alternativas para os
atuais padrões de desenvolvimento econômico.

68
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
69
MIT, Massachusetts Institute of Technology. City science. 2015. Disponível em: <http://
cities.media.mit.edu>. Acesso em: 16 maio de 2015.

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Luciana Lessa Simões - 65

CAPÍTULO III
CIDADES NOVAS NO BRASIL:
PROJETOS URBANOS E PLANEJAMENTO REGIONAL
Luciana Lessa Simões

Em diversos períodos da história do urbanismo, sob diferentes formas, o


projeto de cidades e seu desenho estiveram associados a definições estratégicas de
ocupação do território. Mas foi na Idade Média que os assentamentos humanos
de localização privilegiada, junto ao entroncamento de importantes rotas e vias
de transporte de produtos, adquiriram um status diferenciado e uma importante
função, estreitamente associada a aspectos econômicos – essa foi uma das primei-
ras manifestações do fenômeno que deu origem ao conceito de “centralidades”.
A aceleração do processo de urbanização no mundo, o crescimento das ci-
dades e as dificuldades que emergem da convivência de um grande número de
pessoas em um espaço restrito foram responsáveis pelo surgimento de teorias e
modelos teóricos a partir do século XIX, em diferentes campos do saber científico.
Desde as formulações de Aristóteles70 a respeito da estrutura ideal de ci-
dade, até as investigações de Le Corbusier, Bakema e Candilis, acentuando-se
na concepção de modelos teóricos como os de Arturo Soria y Mata (Cidade
Linear, 1882), Ebenezer Howard (Cidade Jardim, 1898), Clarence Stein e
Henri Wright (a cidade e o automóvel, 1928), Clarence Perry (conceito de
unidade de vizinhança, 1929), Frank Lloyd Wright (teoria organicista, 1932)
e José L. Sert (unidade residencial, 1944), entre outros, encontram-se referên-

70
Aristóteles apresenta as condições e características que uma cidade deve ter como princípio
necessário ao bom funcionamento de uma política ideal para a manutenção do Estado – en-
tendido como guardião do bem estar de seus habitantes – nos capítulos IV a XI do Livro VII
da Política. Dentre essas características, apresenta: o estabelecimento de limites para o número
de habitantes, a fim de que a cidade ideal possa se autogerir e ser autosuficiente; a determinação
dos serviços necessários à “felicidade” de seus habitantes; a divisão das terras em propriedades
“públicas” e “individuais”, a fim de garantir a inexistência de disputas com cidades vizinhas
nas regiões de fronteiras; os modelos de disposição de residências e instituições, diferentes
segundo cada forma de governo (monárquico, democrático ou aristocrático); a localização da
“ágora para negócios”, dos “locais destinados aos edifícios consagrados ao culto dos deuses” e
aos “repastos coletivos”; a garantia de segurança através do desenho da cidade e da disposição
de suas ruas. Aristóteles. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.

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66 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

cias ao controle do uso e da ocupação do solo como instrumento para a obten-


ção de um desempenho – social, político ou econômico – de cidade desejado.
Estudos baseados na relação entre a configuração dos usos do solo e as
forças econômicas que tendem a governar a construção e as mudanças desta
configuração se tornaram frequentes a partir da década de 1920 e continuam
a exercer influência sobre as análises que, ainda hoje, fazemos sobre a rede de
cidades e suas “centralidades”.
Dentre esses estudos, podemos citar a teoria das zonas concêntricas, de
Burgess (1924); a teoria dos lugares centrais, de Christaller (1933); a teoria dos se-
tores, de Hoyt (1939); a teoria dos núcleos múltiplos, de Harris e Ulmán (1945);
e os estudos de localização de atividades nas áreas urbanas, de Firey (1947).
A crítica à rigidez desses modelos e a essa análise que privilegiava os fato-
res econômicos em detrimento de outros fatores, também importantes, levou
o movimento moderno a propor o tratamento da organização espacial das ci-
dades a partir da análise sistemática das “funções urbanas” e de sua decompo-
sição a seus elementos constituintes mínimos.
O que, nos primeiros investigadores, caminhava do estudo de situações
particulares para a formulação de teorias gerais, com o movimento moderno
passa a desenvolver o caminho inverso, propondo a aplicação de regras gerais
a situações específicas de cada cidade.
Embora diversos teóricos já tivessem imaginado e proposto alternativas
à cidade tradicional na primeira fase da Revolução Industrial71, foi a partir do
segundo pós guerra, com as new towns inglesas, as cidades satélite escandinavas
e as villes nouvelles francesas que se intensificaram os experimentos que preten-
diam buscar soluções para o problema das dimensões urbanas.
Com o tamanho e o grau de complexidade que os arranjos urbanos al-
cançaram no século XX, a necessidade de reestruturação de áreas em cidades
existentes e as discussões sobre o acabamento do ambiente urbano nas periferias
de centros urbanos consolidados acabaram se sobrepondo à busca da dimen-
são ideal de uma cidade autosuficiente a ser projetada a partir do zero – em-

71
O trabalho de PESSOA, Denise Falcão. Utopia e cidades: proposições. São Paulo: Annablume,
Fapesp, 2006, apresenta vários modelos propostos para as cidades ao longo da história e seu
reflexo em projetos urbanos.

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Luciana Lessa Simões - 67

bora muitas cidades continuem a surgir em países que ainda têm espaço a ser
ocupado, e economia em desenvolvimento.

Cidades novas no mundo

As cidades novas, ou planejadas, diferenciam-se das cidades “espontâneas”,


que surgem e crescem sem um traçado previamente concebido, segundo condi-
cionantes do meio físico e tecnológico e pela ação coletiva de seus habitantes.

Conforme o conceito apresentado por Galantay72, cidades no-


vas são comunidades planejadas e criadas conscientemente em
resposta a objetivos claramente formulados. A criação da cidade
como ato de vontade pressupõe a existência de uma autoridade ou
organização suficientemente efetiva para assegurar o lugar, reunir
os recursos necessários e exercer um controle contínuo até que a
cidade alcance o tamanho viável.

A construção de cidades novas pelo mundo73 esteve relacionada a diver-


sas e diferentes razões:

⇒ para redistribuir a população (em Israel, por exemplo);


⇒ para aliviar o congestionamento urbano (na França e no Reino Unido,
principalmente);
⇒ para prover habitação (nos Estados Unidos e na Suécia);
⇒ para reanimar economicamente áreas em depressão (no Reino Unido
e na Índia);
⇒ para melhorar a qualidade ambiental ou de transporte (na França e
no Reino Unido);

72
GALANTAY, Ervin. Nuevas Ciudades: de la antiguidad a nuestros dias. Colección
Arquitectura/Perspectivas, Barcelona: Ecitorial Gustavo Gili, 1977.
73
Para outras informações sobre conceitos e exemplos de cidades novas na história, ver tam-
bém o trabalho de TREVISAN, Ricardo. Cidades Novas. Tese (Doutorado) – Universidade de
Brasília-UnB, Programa de Pós -Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 2009.

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68 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

⇒ para desenvolver regiões metropolitanas e agrárias do país (na


Inglaterra, por exemplo);
⇒ para explorar recursos naturais (como no Canadá e na Austrália);
⇒ para implantar novas capitais (Chandigarh na Índia, Canberra na
Austrália, Islamabad no Paquistão, entre outras).74

Especialmente na Europa, a criação de novas cidades foi impulsionada


pelas guerras mundiais, que foram também propulsoras de projetos de (re)cons-
trução de cidades, criação de bairros e de conjuntos habitacionais destinados a
atender a população atingida.
O programa de implantação das new towns inglesas iniciou-se em 1947,
com o objetivo de oferecer moradias a quem havia perdido suas casas duran-
te a guerra. Em meados da década de 1960, em sua terceira fase, o programa
passou a focar a construção de novas cidades em locais onde pudessem atuar
como pólos catalisadores de desenvolvimento, visando o aumento da oferta de
empregos em áreas com declínio econômico.
Na França, os projetos das villes nouvelles estavam associados ao progra-
ma de implantação de uma importante e extensa rede de transporte regional
nas décadas de 1960 e 1970.
Esses projetos europeus passaram a ser referências importantes para es-
tudos que se tornaram “manuais” e influenciaram projetos de novas cidades
em todo o mundo75.

74
GOLANY, Gideon. New-Town planning: principles and practice. New York: Wiley-
Interscience Publication/John Wiley & Sons, 1976.
75
Dentre esses estudos, encontram-se os trabalhos de GALLION, Arthur B. The Urban Pattern.
Londres-New York-Toronto: D. Van Nostrand Company, 1950; DODI, Luigi. Elementi di
Urbanística. Milão: Cesare Tamburini, 1953; BARTHOLOMEW, Harland. Land Uses in
American Cities. Cambridge: Harvard University Press, 1955; RIGOTTI, Giorgio. Urbanismo – La
Composicion. Barcelona-Madri: Editorial Labor S.A., 1967; GIBBERD, Frederick. Town Design.
London: Architectural Press, 1956; BIGOT, François e LECOIN, Jean-Pierre. «Consommation
d’espace par l’habitat et les équipements» in Cahiers de L’IAURP, vol. 34, p. 1-98, 1974; DE
CHIARA, Joseph e KOPPELMAN, Lee. Urban Planning and Design Criteria. Chicago-Londres:
University of Illinois Press-Urbana, 1975; GOLANY, Gideon. New-Town Planning: principles
and practice. New York: Wiley-Interscience Publication-John Wiley & Sons, 1976; CHAPIN
JR, F. Stuart. Urban Land Use Planning. Chicago: University of Illinois Press, 1972.

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Luciana Lessa Simões - 69

Na década de 1980, um programa de construção de habitações para abri-


gar famílias de oficiais e soldados na Arábia Saudita deu origem à cidade nova
de Khashm-Al-Aan, em pleno deserto. O projeto desta cidade foi desenvolvi-
do pela equipe técnica do escritório francês Dumez S.A., devido à reconhecida
e bem sucedida experiência francesa no projeto de cidades novas.
Além desta, outras cidades continuaram sendo construídas nos Emirados
Árabes e seguem como grandes canteiros experimentais de arquitetura e urbanismo,
a exemplo da reestruturação que ocorre em Dubai e Abu Dabhi desde os anos 2000.

Cidades novas no Brasil

No Brasil, a criação de núcleos urbanos constitui parte do processo de


ocupação do território nacional, e um capítulo relativamente recente da histó-
ria do urbanismo brasileiro.
Belo Horizonte, Goiânia, Brasília e Palmas são exemplos de cidades criadas
como novas capitais; Serra do Navio, Monlevade e Carajás podem ser conside-
rados exemplos de cidades industriais, criadas para explorar recursos naturais76;
Itaipu e Tucuruí, Ilha Solteira e Nova Itá, são exemplos de “cidades temporá-
rias” que se tornam permanentes, criadas em razão de grandes obras de infra-
estrutura – como aquelas obras que também fizeram submergir cidades como
Fama77, Remanso, Santo Sé, Pilão Arcado, Nova Ponte e Sobradinho nas dé-

76
Em 1928, Henry Ford implantou a cidade chamada de Fordlândia (Fordland) próximo à cidade
de Santarém, no Pará, com o objetivo de abastecer sua empresa de látex necessário à confecção de
pneus para seus automóveis. Em 1945, com o fracasso do projeto de implantação das seringueiras,
a Companhia desistiu do empreendimento e o governo brasileiro assumiu os equipamentos e a
infraestrtura instalada na região. A cidade ficou conhecida como “a utopia de Ford”. Atualmente, está
abandonada, aguardando pelo seu tombamento (ver artigo de Lucas Fonseca, intitulado “Conheça
Fordlândia, a cidade construída pela Ford na Amazônia”, disponível em <http://www.tecmundo.
com.br/historia/42679-conheca-fordlandia-a-cidade-construida-pela-ford-na-amazonia.htm>).
77
Em artigo publicado no site Vitruvius, Carlos Teixeira relembra a história de cidades que foram
inundadas pela construção de represas e hidrelétricas. Em nota deste mesmo artigo, informa
que: “O Brasil é um dos países com mais usinas hidrelétricas do mundo e o terceiro ou quarto
em número de cidades submersas. São 34.000 km2 de terras inundadas para a formação de re-
presas, o que gerou o deslocamento de aproximadamente 200.000 famílias.” TEIXEIRA, Carlos
Moreira. Escala 1:1 Uma cidade protegida debaixo d’água. Minha Cidade, São Paulo, 07.082,
Vitruvius, maio 2007 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/07.082/1926>

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70 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

cadas de 1960 e 1970, e estão atingindo núcleos urbanos e indígenas no vale


do rio São Francisco hoje.
A maior experiência de criação de cidades novas no Brasil, no entanto,
foi a implantação de núcleos urbanos na área definida como “Amazônia Legal”
– que corresponde a mais da metade do território nacional78. (Figura 1)
Esta iniciativa era prevista pela Política de Desenvolvimento Rural e citada
explicitamente no Estatuto da Terra79; estava, portanto, atrelada à política nacional
concebida nos moldes da ditadura implantada no país em 1964. Talvez por isso,
seja um capítulo da história do urbanismo brasileiro pouco citado e conhecido80.

Figura 1 – As cidades novas analisadas neste capítulo e sua localização no perímetro da


Amazônia Legal.
Fonte: Desenho elaborado pela autora

78
São aproximadamente 5 milhões de Km2, compreendendo Amazonas, Acre, Amapá,
Rondônia, Roraima, Pará, Mato Grosso, parte do Maranhão e parte de Goiás.
79
A publicação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) chamada
aqui de Estatuto da Terra, reúne a Emenda Constitucional nº 10, a Mensagem nº 33 e a Lei
nº 4.504 de 1964.
80
Assim como os projetos de Sérgio Bernardes têm sido pouco estudados nas escolas de
Arquitetura do Brasil.

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Luciana Lessa Simões - 71

O processo de ocupação da região Centro Oeste já havia se iniciado com


a implantação pioneira de Brasília, projeto visionário e polêmico de JK. Ao as-
sumir o governo do país, os militares formularam uma política de desenvolvi-
mento que pretendia estender o processo de ocupação à região Norte do país.
Para viabilizar o plano de implantação de novas cidades, foi estabeleci-
da uma espécie de “parceria público-privada” com o objetivo de “desenvolver”
parte do território ainda pouco explorado, e, deste modo, também proteger as
fronteiras nacionais.
As empresas agropecuárias e as indústrias de exploração mineral, especial-
mente, receberiam incentivos fiscais e técnicos81 para “desenvolver” a Amazônia.
A implantação da Zona Franca de Manaus fez parte desse plano. Nesse senti-
do, os projetos das cidades novas brasileiras se aproximam do modelo de com-
pany towns inglesas.
Embora essa política de desenvolvimento tenha sido formulada na dé-
cada de 1960, as cidades projetadas em função deste plano só começaram a
se materializar na década de 197082. Em 1973, empresários do sul do país fo-
ram levados a Mato Grosso para serem apresentados à ideia embrionária do
POLAMAZÔNIA – Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da
Amazônia. Esse programa estabelecia 15 pólos a serem desenvolvidos; a cada
um desses pólos, correspondiam projetos de novos núcleos urbanos, ou de ex-
pansão de núcleos existentes.
Nas décadas de 1970 e 1980, muitos arquitetos ainda se beneficiavam da
oportunidade de projetar cidades a partir do zero no Brasil: dentre eles, Joaquim
Guedes projetou as cidades de Nova Marabá e Nova Barcarena; e Cândido
Malta Campos Filho projetou a cidade de Matupá.
Entre 1982 e 1989, as revistas Construção, AU e Projeto dedicaram edições
para apresentar os projetos elaborados para estas cidades e discutir sua influ-

81
O Decreto n. 59.428, de 27 de outubro de 1966, apresentava os estímulos concedidos às
empresas particulares de colonização.
82
O INCRA chegou a formular um plano de “urbanismo rural” (INCRA, Urbanismo Rural.
1973). Porém, os projetos de colonização oficial sofriam com a descontinuidade administrativa
dos órgãos envolvidos, e, a partir de 1974, o Estado passa a incentivar a colonização particular,
que já contava com o interesse de empresários nacionais e internacionais.

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72 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

ência sobre a dinâmica regional, bem como sua pertinência ao contexto físico-
-ambiental e socioeconômico local83.

Os projetos: ontem e hoje

Os projetos pioneiros de Oswaldo Bratke, elaborados e implantados na


década de 1950 – anteriores, portanto, ao Estatuto da Terra – ainda hoje re-
presentam importantes e adequadas referências de projetos que buscam enten-
der profundamente e se integrar às condições socioambientais locais84.
Vila Serra do Navio e Vila Amazonas foram cidades projetadas por
Oswaldo Bratke sob encomenda da ICOMI- Indústria e Comércio de Minérios,
concessionária do arrendamento de jazidas de manganês no Amapá. Eram li-
gadas por uma ferrovia de 200 Km.
Vila Amazonas foi localizada próximo ao Porto de Santana, a 20 Km
da capital Macapá, para uma população inicial de 2.500 habitantes. Em 1966,
a cidade já apresentava planos de expansão e contava com 47.000 habitantes.
O núcleo se expandiu conforme previsto e, atualmente, seu desenho original
é reconhecido como parte da área urbanizada de Santana, a segunda maior ci-
dade do Estado. (Figura 2).

83
A Construção n. 1805, setembro de 1982 e n. 1867, novembro de 1983; AU n. 10, feve-
reiro/março 87 e n. 12, junho/julho 1987; PROJETO n. 126, outubro 1989. Nessa época, a
preocupação com a ocupação da Amazônia e com a ameaça de desertificação da maior reserva
florestal do mundo já estava em pauta.
84
A adequação do projeto da Vila Serra do Navio às expectativas da população usuária é ava-
liada e confirmada pela manutenção das características originais de seus equipamentos e das
próprias habitações projetadas após 32 anos de utilização. Embora essa permanência possa ser
creditada ao fato de ter permanecido sob a gestão da empresa mineradora até 1992, com rígidas
regras de convivência e fiscalização, as manifestações que levaram ao tombamento da cidade
pelo IPHAN confirmam o reconhecimento de sua importância histórica e de suas qualidades
urbanísticas e arquitetônicas.

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Luciana Lessa Simões - 73

Figura 2 – Projeto de Oswaldo Arthur Bratke para Vila Amazonas sobre vista aérea da
cidade em sua configuração atual.
Fonte: OLIVEIRA, José Luiz Fleury de, 1984 (desenho). Imagem adaptada de Google
Earth, 2015. Imagem Digital Globe 2014. Data das imagens: 21/09/2014

O mesmo destino não teve a Vila Serra do Navio85. Apesar de seu projeto
ter sido mais completo e complexo, com base em um princípio de autosuficiên-
cia – pois se tratava de um núcleo urbano localizado em plena floresta amazôni-
ca, distante cerca de 200Km do porto de embarque de minérios – a cidade sofreu
com o abandono das atividades extrativistas, o isolamento e a falta de uma eco-
nomia que sustentasse sua infraestrutura e sua população. Após um período de
abandono que quase a transformou em uma “cidade fantasma”, e de seu tomba-

85
Sobre Vila Serra do Navio existem muitos trabalhos acadêmicos, artigos e publicações.
Dentre eles, podemos citar RIBEIRO, Benjamin Adiron. Vila Serra do Navio: comunidade
urbana na selva amazônica: um projeto do arq. Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo: Pini, 1992.
O livro de SEGAWA, Hugo. Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo: ProEditores, 1997 também
traz informações importantes sobre esses projetos.

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74 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

mento pelo IPHAN em 2010, a cidade busca, ainda hoje, um novo rumo, com
base no potencial ecoturístico e na exploração sustentável da floresta86. (Figura 3)

Figura 3 – Projeto de Oswaldo Arthur Bratke para Vila Serra do Navio sobre vista aérea da
cidade em sua configuração atual.
Fonte: OLIVEIRA, José Luiz Fleury de, 1984 (desenho). Imagem adaptada de GoogleEarth,
2015. Imagem Digital Globe 2015. Data das imagens: 27/08/2007

O fato de Vila Amazonas e Vila Serra do Navio serem, ainda hoje, as ci-
dades com melhor infraestrutura do Estado do Amapá é um testemunho de que
bons projetos de cidades podem atender ao objetivo de se tornarem indutores de
ocupação e desenvolvimento de regiões, gerando, inclusive, novas centralidades.

86
Ver notícia de Paul Meurs (Utrech-Holanda) na Revista Construção, Cenário, fevereiro de
1999, disponível em <http://www.piniweb.com.br/construcao/noticias/cenario-84535-1.asp>.
A partir de 2015 deu-se início ao processo de regularização fundiária de Vila Serra do Navio,
sob coordenação da Universidade Federal do Pará-UFPA e apoio do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional-IPHAN – ver notícias em https://www.portal.ufpa.br/imprensa/
noticia.php?cod=10101.

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Luciana Lessa Simões - 75

Outros sete projetos de cidades criadas por incentivo oficial e iniciativa de em-
presas que aderiram aos programas de desenvolvimento da Amazônia são apresentados
a seguir e comparados com sua situação atual a partir de imagens de satélite. Para esta
comparação, foram utilizados os projetos e croquis de seus autores, e os desenhos ela-
borados pelo arquiteto José Luiz Fleury de Oliveira em sua dissertação de mestrado87.
O Plano de Desenvolvimento Urbano de Nova Marabá foi elaborado
em 1973 pelo escritório Joaquim Guedes e Associados, com a finalidade de re-
estruturar a rede de cidades existente em decorrência da implantação do núcleo
de Carajás, da rodovia Transamazônica e das obras de infraestrutura associadas
ao desenvolvimento da região88.
A necessidade de implantação de um núcleo de apoio para a exploração do
minério de ferro a 200 Km da cidade de Marabá foi o condicionante apontado
para sua relocação, com o objetivo de transformar a cidade em pólo regional e,
ao mesmo tempo, superar problemas detectados no núcleo existente.
A implantação do novo núcleo, extensão do núcleo originário, foi prevista
em três etapas: na primeira, até 1976, seriam abertos 3 dos 11 setores propos-
tos, para uma população estimada de 10.192 habitantes; na segunda, a abertu-
ra de outros 3 setores; na terceira, até 1985, alcançaria a ocupação de 799,15 ha
para uma população final de 51 mil habitantes.
O sistema viário estrutural obedeceu ao desenho proposto para a cidade,
mas as quadras acabaram adotando traçado mais irregular e orgânico do que
o previsto no projeto. A ocupação dos lotes também se desvirtuou da propos-
ta inicial89. (Figura 4)

87
Em sua dissertação de mestrado, trabalho que também foi premiado pelo Instituto de
Arquitetos do Brasil (IAB), Fleury estudou 12 (doze) cidades novas da Amazônia. OLIVEIRA,
José Luiz Fleury de. Amazônia: condicionantes da ocupação e assentamentos. (Dissertação)
– FAUUSP, 1984. Detalhes sobre a distribuição e localização dos equipamentos públicos e
índices urbanísticos resultantes em alguns desses projetos podem ser encontrados também em
SIMÕES, Luciana Lessa Simões. Índices urbanísticos e planejamento urbano no Brasil: novas
experiências. Pesquisa de Iniciação Científica CNPQ e FAUUSP, 1987.
88
A construção do trecho da rodovia PA-70, que ligaria Marabá ao grande eixo rodoviário da
Belém-Brasília e à capital do Estado do Pará também foi uma importante obra relacionada a
esse desenvolvimento.
89
ALMEIDA, José Jonas. A Cidade de Marabá sob o impacto dos projetos governamentais
(1970-2000). In: Fronteiras, MS, v. 11, n. 20, p. 167-188, jul./dez. 2009.

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76 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

Figura 4 – Projeto do escritório Joaquim Guedes e Associados para Nova Marabá sobre vista
aérea da cidade em sua configuração atual.
Fonte: Joaquim Guedes e Associados (Plano de Desenvolvimento Urbano de Marabá).
Imagem adaptada de GoogleEarth, 2015. Imagem CNES/Astrium 2015. Data das imagens:
01/08/2013

Desde o Plano Diretor de 2006, Nova Marabá foi oficialmente conver-


tida em distrito urbano de Marabá, cidade mais populosa da região de Carajás,
importante entroncamento logístico, sede de uma região metropolitana e cota-
da para ser capital do futuro Estado de Carajás90.
Juruena foi projetada em 1975 pelo engenheiro Mario Montag por so-
licitação da Juruena Empreendimentos de Colonização Ltda para apoio à ex-

90
Apesar da proposta de separação do Estado do Pará ter sido rejeitada pela população em
2011, políticos da região voltaram a apresentá-la em 2014. Ver reportagem disponível em
<http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/12/11/paraenses-negam-criacao-
-de-estados-de-carajas-e-tapajos.htm >

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Luciana Lessa Simões - 77

ploração de madeira, lavouras de café, cacau e guaraná em Aripuanã, no Mato


Grosso. Em 1985, seu projeto foi modificado pela arquiteta Maria Izabel
Meirelles que adaptou seu partido urbanístico adotando o conceito de “uni-
dades de vizinhança” ou “bairros” com equipamentos e áreas verdes em dife-
rentes escalas, obedecendo a uma hierarquia de localização e prevendo diversas
etapas de implantação e comercialização.
A imagem de satélite mostra que a ocupação ocorreu conforme previsto:
de forma gradual e parcial, obedecendo, em linhas gerais, ao desenho propos-
to com alterações no sistema viário local e na disposição de diversas quadras.
(Figura 5)

Figura 5 – Adaptação de Maria Izabel Meirelles para o projeto de Juruena sobre vista aérea
da cidade em sua configuração atual.
Fonte: Revista AU (n. 12). Imagem adaptada de GoogleEarth, 2015. Imagem CNES/Spot
Image 2015. Data das imagens: 12/08/2013

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78 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

Projetada para uma população total de 100.000 habitantes, a cidade con-


ta atualmente com 11.201 habitantes91. Em 2009, aproximadamente 70% da
população ainda era de descendentes de alemães, italianos, poloneses, vindos
principalmente do oeste dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul. Ainda há, portanto, espaço para sua expansão segundo o projeto origi-
nal – aguardando o desenvolvimento da região.
Próximo a Juruena, localiza-se o núcleo urbano de Juina. Seu desenho
octogonal foi assinado pelo engenheiro agrônomo Jair Carvalho – embora
em desacordo com a legislação de exercício profissional – sob encomenda da
Companhia de Desenvolvimento de Mato Grosso (CODEMAT), como parte
do projeto de colonização agrícola oficial.
O comércio e os serviços foram localizados ao longo das arestas maiores
do octógono, enquanto os equipamentos institucionais e recreativos se distri-
buem no eixo linear que se desenvolve entre estas duas arestas. A cada encon-
tro de quatro “módulos” octogonais configuram-se áreas verdes retangulares.
A rigidez da forma geométrica adotada pelo traçado urbano do núcleo
contrasta com as características ambientais e paisagísticas da região. Atualmente,
o desenho dos módulos octogonais permanece como testemunho da proposta
original em meio à secção, interrupção e ocupação das áreas verdes e à expan-
são da cidade no padrão urbanístico tradicional. (Figura 6)
Criada com o objetivo de expansão das fronteiras agrícolas e ocupação
de áreas até então pertencentes a povos indígenas, a cidade foi beneficiada pela
descoberta de jazidas diamantíferas na região, em 1976, e se tornou cidade-pó-
lo da microrregião do Aripuanã.
O plano diretor de Alta Floresta foi elaborado pelo escritório M.K.
Arquitetura S/C Ltda, sob responsabilidade da arquiteta Maria Cristina Keating
e colaboração de Vallandro Keating, como parte do Projeto de Colonização
Agrícola Alta Floresta empreendido pela Integração, Desenvolvimento e
Colonização S.A (INDECO).
Projetada para 30.000 habitantes (previsão de 1975), a cidade já conta-
va com 15.000 em 1976, e em 1984 já ultrapassava os 60.000 habitantes, ru-
rais e urbanos.

91
IBGE, 2010.

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Figura 6 – Projeto de Jair Carvalho para Juina sobre vista aérea da cidade em sua
configuração atual.
Fonte: OLIVEIRA, José Luiz Fleury de, 1984 (desenho). Imagem adaptada de
GoogleEarth, 2015. Imagem CNES/Astrium 2015. Data das imagens: 14/07/2013

Na década de 1980, o projeto de colonização agrícola inicial foi substitu-


ído pela atividade garimpeira, impulsionada pela “febre do ouro” que se insta-
lou na região; nesse período, a cidade chegou a ter mais de 100.000 habitantes.
Com a queda no valor do metal, a cidade perdeu população e impor-
tância, contando atualmente com 49.233 habitantes que buscam alternativas
para a subsistência econômica do município na agricultura, pecuária e desen-
volvimento ecoturístico; a cidade também se apresenta como um pólo de edu-
cação regional, com a presença de universidades, faculdades e escolas técnicas.
As áreas verdes reservadas pelo projeto original foram mantidas; o siste-
ma viário local, no entanto, foi alterado: poucas vias mantêm o traçado em cul
de sac proposto. (Figura 7)

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80 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

Figura 7 – Projeto do escritório M.K. Arquitetura S/C Ltda para Alta Floresta sobre vista
aérea da cidade em sua configuração atual.
Fonte: OLIVEIRA, José Luiz Fleury de, 1984 (desenho). Imagem adaptada de GoogleEarth,
2015. Imagem Digital Globe 2015. Data das imagens: 16/07/2013

A instalação da usina hidrelétrica de São Manoel, na cidade vizinha de


Paranaita, tem atraído muitos trabalhadores e suas famílias para Alta Floresta,
o que se reflete em novo crescimento populacional para o município. O aero-
porto de Alta Floresta é um equipamento importante para as operações co-
merciais e logísticas necessárias à gestão das obras, e um diferencial na disputa
pela atração de postos de trabalho, serviços, taxas e impostos que está ocorren-
do entre as cidades envolvidas – do Pará e de Mato Grosso.
Paranaita também foi criada como parte do projeto de colonização
agrícola da INDECO, pelo mesmo escritório responsável pelo projeto de Alta
Floresta. As duas cidades apresentam um eixo principal que organiza a ma-
lha urbana: em Alta Floresta, esse eixo abriga os edifícios institucionais; em
Paranaita, o eixo é um parque linear que leva os pedestres das quadras ao cen-

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Luciana Lessa Simões - 81

tro de serviços. Nas duas cidades, o desenho urbano que se quer impor encon-
tra “resistência” das características naturais do sítio: em Alta Floresta, grandes
distâncias devem ser percorridas sem o sombreamento da área desmatada; em
Paranaita, a malha ortogonal tenta subverter o sistema de drenagem natural.
Criada em 1979, Paranaita permaneceu como distrito de Alta Floresta
até 1986, quando foi elevada à categoria de município. Também teve a vocação
agrícola substituída pelo garimpo e, além da usina hidrelétrica de São Manoel,
a usina Teles Pires está sendo instalada no município.
A imagem de satélite mostra que o traçado urbano original foi preservado
– embora também tenha “perdido” as vias em cul de sac – e que a área reserva-
da para expansão no projeto original foi utilizada, reproduzindo o conceito do
eixo central, sem os equipamentos públicos e com áreas residenciais. (Figura 8)

Figura 8 – Projeto do escritório M.K. Arquitetura S/C Ltda para Paranaita sobre vista aérea
da cidade em sua configuração atual.
Fonte: OLIVEIRA, José Luiz Fleury de, 1984 (desenho). Imagem adaptada de Google
Earth, 2015. Imagem Digital Globe 2015. Data das imagens: 27/06/2010

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82 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

Nova Barcarena foi criada como extensão da cidade de Barcarena e nú-


cleo de apoio às atividades do complexo Albrás/Alunorte, de industrialização
de bauxita no Pará. O núcleo urbano foi projetado pelo escritório Joaquim
Guedes e Associados com a finalidade de absorver também os egressos das
obras de construção da usina hidrelétrica de Tucuruí, além dos trabalhadores
do complexo industrial.
Distante 40 Km de Belém, a cidade foi organizada em uma unidade bá-
sica, ou setor, de forma quadrada de 800m de lado, com comércio e serviços
localizados nos vértices. Os equipamentos públicos locais foram situados nas
regiões contíguas aos vértices. No total, foram previstos 11 setores.
Sua implantação aconteceria em três etapas: na primeira, iniciada em
1981, a implantação do Bairro Pioneiro, do complexo industrial e do porto
em Ponta Grossa; na segunda, a construção do eixo central de comércio e ser-
viços e a zona central com o centro administrativo, centro cultural e escola de
ensino médio; na terceira, o restante do projeto, atingindo uma população to-
tal de 70.215 habitantes ao fim de 15 anos. Somente as duas primeiras etapas
mantiveram o desenho inicial proposto, marcante e reconhecível na imagem
de satélite. (Figura 9)
Em abril de 2014, a infraestrutura portuária da região recebeu investi-
mentos da empresa Bunge para consolidação da rota de exportação de grãos
para a Europa e para a Ásia92, conferindo uma importante posição para a cida-
de de Barcarena no contexto econômico regional e nacional.
O plano diretor de Matupá foi elaborado em 1983 pelo escritório URBE
– Planejamento, Programação e Projetos S/C Ltda, coordenado pelos arquite-
tos Cândido Malta Campos Filho e Luiz Carlos Costa.
Projetada segundo o conceito de “estrutura urbana flexível”, com a ex-
pectativa de se transformar em pólo urbano regional, a cidade surgiu associada
ao processo de ocupação rural implantado pela Agropecuária e Urbanizadora
Cachimbo e Fronteira Norte – Engenharia de Desenvolvimento S/C Ltda.

92
Ver artigo da Folha de São Paulo disponível em http://www1.folha.uol.com.br/
mercado/2014/04/1445694-no-para-dilma-defende-nova-rota-de-escoamento-da-soja.shtml.

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Luciana Lessa Simões - 83

Figura 9 – Projeto do escritório Joaquim Guedes e Associados para Nova Barcarena sobre
vista aérea da cidade em sua configuração atual.
Fonte: Joaquim Guedes e Associados (Revista Construção n. 1805). Imagem adaptada de
GoogleEarth, 2015. Imagem Digital Globe 2014. Data das imagens: 21/06/2014

A primeira fase do empreendimento previa a introdução de 12.500 habi-


tantes em um prazo de 5 anos, e a meta de 100 mil habitantes, com uma área
de expansão urbana capaz de abrigar mais 200 mil habitantes. Atualmente, o
município possui 14.174 habitantes93.
A implantação gradual do núcleo urbano, com a construção de equi-
pamentos a cargo dos empreendedores; a preocupação com a circulação de
pedestres e a previsão de um sistema de transporte coletivo; uma legislação
controladora do desenvolvimento urbano que garantia que novas áreas urbanas
fossem liberadas somente após consolidada a urbanização de cada segmento/

93
IBGE, 2010.

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84 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

setor proposto; e um traçado urbano orgânico são aspectos do plano urbanís-


tico que merecem destaque no projeto da cidade.
A expansão da cidade não aconteceu no setor localizado ao sul do “tron-
co” constituído pelo centro urbano linear, mas primeiramente ao norte, na
área de expansão urbana prevista. Embora apresente ainda muitas quadras do
centro urbano desocupadas, o traçado urbano preservado indica que o zonea-
mento e o modelo de implantação propostos foram adequados à dinâmica lo-
cal. (Figura 10)

Figura 10 – Projeto do escritório URBE – Planejamento, Programação e Projetos S/C Ltda,


coordenado pelos arquitetos Cândido Malta Campos Filho e Luiz Carlos Costa, para Matupá
sobre vista aérea da cidade em sua configuração atual.
Fonte: CAMPOS FILHO, Cândido Malta (Revista Construção n. 1867). Imagem adaptada
de GoogleEarth, 2015. Imagem CNES/Astrium 2014. Data das imagens: 11/07/2013

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Luciana Lessa Simões - 85

Considerações finais

As cidades novas brasileiras estão, inevitavelmente, associadas a um po-


lêmico plano de ocupação da região amazônica.
Nesse plano, a ideia de integração e desenvolvimento da região poderia
ter sido tratada com maior respeito a suas importantes características ambien-
tais e às populações indígenas originárias; a exploração das riquezas minerais
– travestida de colonização agrícola – não precisaria ter sido a atividade predo-
minante; os modelos de ocupação poderiam ter sido menos pré concebidos e
importados de outros contextos.94
Depois de um período de dinamismo econômico e social, relacionado às
atividades extrativistas, as cidades novas amazônicas conheceram um período
de estagnação e incerteza quanto ao futuro.
Os investimentos públicos necessários ao desenvolvimento da região não
foram realizados no momento oportuno, e o plano foi interrompido com o
fim do regime militar.
Os governos do período democrático questionaram o modelo de desen-
volvimento esboçado pelo plano extrativista e militarista com participação do
capital empresarial – nacional e internacional.
As cidades, já não tão “novas”, aguardavam a definição de seu futuro, e mui-
tas sofriam com o abandono – físico, social e econômico – na década de 1990.
A retomada dos investimentos federais em obras de infraestrutura na re-
gião, a partir dos anos 2000, corresponde a uma releitura do plano desenvol-
vimentista da década de 1960-1970: o foco é direcionado para o incentivo a
atividades agropecuárias e de produção de novas tecnologias, com a implanta-
ção de corredores logísticos para o escoamento dessa produção, e para a explo-
ração do potencial ecoturístico.
Depois de quase 40 anos, as cidades “novas” da década de 1970-1980
voltam, então, a assumir uma importância estratégica, resgatando o papel de-
94
Em 1987, uma equipe de pesquisadores do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
– IBASE – (RJ) elaborou um documento, conhecido como “dossiê Amazônia”, que apontava
para as graves consequências do processo de colonização em curso na região. Outro pesquisador
importante, o geógrafo e professor Aziz Ab’Saber também denunciava o que considerava serem
distorções praticadas na maior reserva florestal do mundo. (Revista AU, n. 10, fev./mar. de 1987).

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86 - Capítulo III – Cidades novas no Brasil

lineado na década de 1960; um novo ciclo de crescimento “sopra” sobre suas


antigas estruturas e desenhos urbanos.
Vila Amazonas e Nova Barcarena encontram-se totalmente integradas
aos núcleos urbanos que se expandiram em seus redores, desempenhando pa-
pel de suporte direto às operações dos portos exportadores de Macapá e Belém;
Nova Marabá, como distrito da cidade maior, é um importante entreposto
intermediário de apoio ao corredor logístico do Rio Tocantins; Alta Floresta,
Paranaita e Matupá, desenvolvidas e integradas em uma rede de centralida-
des regionais, constituem importante centro de apoio logístico ao corredor do
Rio Araguaia; Juina, principalmente, cresce em apoio ao corredor logístico do
Rio Tapajós, às margens do afluente Rio Teles Pires – e talvez Juruena possa
se beneficiar desse crescimento, abrigando os trabalhadores das obras de gran-
des usinas hidrelétricas em construção nos rios da região.
Enquanto isso, Vila Serra do Navio assiste a esse desenvolvimento eco-
nômico “de longe”, buscando um futuro ecoturístico como patrimônio histó-
rico e modelo de projeto urbano para a região.
Se esse “novo” plano de desenvolvimento será melhor ou pior do que o plano
que criou essas cidades, só o futuro dirá – embora os planejadores continuem ten-
tando encontrar o melhor caminho enquanto questionam se a melhor alternativa
para o país, e para o mundo, é mesmo a ocupação e o desenvolvimento dessa região.
Mas as cidades “novas” brasileiras permanecem, e permanecerão, “lá”,
à mercê do planejamento regional e urbano, como testemunhas da história e
oportunidades de futuro.

Figura 11: Situação


geográfica de Vila
Serra do Navio,
cercada por reservas
naturais da floresta
amazônica.
Fonte: Foto de
Sandro Figueiredo
Borges. 13/06/2016

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Luciana Lessa Simões - 87

ATUALIZAÇÃO: Em 17 de agosto de 2017, o governo federal publi-


cou o Decreto 9.142/2017 que determinava a extinção da Reserva Nacional
do Cobre e Associados (RENCA) criada em 1984 na Amazônia Legal, que
abrange parte dos Estados do Amapá e do Pará e fica na região cercada pelas
cidades tratadas neste artigo. Essa extinção abria, novamente, o caminho para
a exploração de importantes minerais, inclusive ouro, por empresas nacionais
e internacionais. A ICOMI chegou a se manifestar quanto à retomada das ex-
plorações na região, lembrando a importância de Vila Serra do Navio – cida-
de criada pela empresa.
O Decreto 9.142/2017 foi revogado pelo Decreto 9.147/2017, que man-
tém, no entanto, a extinção da RENCA, com algumas ressalvas. O Tribunal
de Justiça do Distrito Federal, por meio de uma ação liminar, suspendeu os
efeitos de “todo e qualquer ato administrativo tendente a extinguir a Reserva
Nacional do Cobre e Associados (Renca)”, em 29 de agosto.
No ano de 2017, portanto, a política de desenvolvimento da Amazônia e,
de certo modo, o POLAMAZÔNIA – concebidos nas décadas de 1960 e 1970
– voltam ao debate público. O destino da Amazônia – reserva de importância
mundial – e as cidades novas brasileiras criadas em consequência dos planos e
projetos de décadas passadas voltam a ter lugar no plano de desenvolvimento
nacional: como esse plano afetará essas cidades? A (re)abertura da região para a
exploração mineral é um bom caminho para elas? E para a reserva amazônica,
o meio ambiente e o destino do planeta?

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Vinícius Luz de Lima - 89

CAPÍTULO IV
DO PLANEJAMENTO URBANO INTEGRADO AO
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO: A CIDADE DE GOIÂNIA
NA VIRADA DO MILÊNIO
Vinícius Luz de Lima

A cidade de Goiânia, capital do Estado de Goiás, é um dos exemplos da


ação urbanizadora ocorrida no país no período conhecido como Estado Novo,
na década de 1930, durante o primeiro governo do presidente Getúlio Vargas.
Este realizou diversas medidas que buscaram modernizar o Brasil, dentre as
quais estava ocupar regiões como o Centro-oeste brasileiro, implantado me-
lhor infraestrutura, na busca de integrá-lo às regiões onde a industrialização já
havia se instalado. Getúlio Vargas promoveu a chamada “marcha para o oeste”
que, no caso de Goiás, foi realizada com a ajuda do seu interventor federal em
Goiás, o médico Pedro Ludovico – o que resultou na concretização de um an-
tigo desejo dos goianos, dentre os quais alguns grandes proprietários de terras:
a mudança da capital estadual goiana, antes sediada na cidade de Vila Boa de
Goiás. Assim, foi fundada, em 1933, a cidade de Goiânia, para onde foi trans-
ferida a capital goiana, com projeto do núcleo original feito pelo arquiteto e
urbanista Attilio Corrêa Lima, contratado por Pedro Ludovico, e que poste-
riormente sofreu diversas alterações, principalmente na década de 1940, ainda
sob o forte controle do governo estadual.
A intervenção estatal no planejamento das cidades, durante as décadas
de 1950 a 1970, no período desenvolvimentista brasileiro, gerou contrastes nas
condições urbanas de vida e segregação social nas cidades brasileiras, como a
expansão periférica e a ocupação informal e a valorização dos quadrantes urba-
nos ocupados pelas camadas de maior renda, devido aos investimentos públi-
cos e à atuação do setor imobiliário95.

95
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos. O futuro das
cidades brasileiras na crise. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando
Alves dos (Org.). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras
na crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997b. 432 p.

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90 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

Flávio Villaça96 aponta que a concepção modernista de plano diretor


aprovado por lei, foi a mais difundida até 1970, caracterizando-se pelo plano
como parte do planejamento integrado baseado num complexo diagnóstico,
com prognósticos da realidade urbana, medidas de longo prazo e conjunto dos
problemas urbanos e metas (físico-territoriais, sociais, administrativas e econô-
mico-financeiras) a serem cumpridas.
Já no final do século XX, o planejamento urbano integrado convencio-
nal revelou-se limitado pela ineficiência intrínseca de propostas racionalizado-
ras calcadas na regulamentação e normatização de um processo de urbanização
indutor de ocupações informais e irregulares, tornando-se superado frente aos
novos cenários político e econômico da década de 198097.
No período da redemocratização política na década de 1980 e com a
Constituição de 1988, o município passou a ser o protagonista no desenvol-
vimento de políticas urbanas. Raquel Rolnik98 afirma que embora o legado do
planejamento urbano integrado tivesse causado tantos problemas para as ci-
dades brasileiras, estas assumiram o papel de protagonistas nas esferas política
e econômica do processo de urbanização, num quadro em que se ampliava o
debate para a gestão democrática das cidades mediante novas formas de cons-
tituição da cidadania e de formulações estratégicas econômico-político-terri-
toriais das cidades.
No âmbito da política urbana, a Constituição Federal de 1988 passou a
exigir dos municípios a tarefa de organizar os planos diretores para cidades com
mais de 20.000 habitantes (Art. 182), por ser o instrumento básico da políti-
ca de desenvolvimento e expansão urbana. Este possibilitaria planejar a cida-
de, mediante critérios jurídico-urbanísticos, buscando a melhor ocupação do
solo e do território urbanos.

96
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1999.
97
ROLNIK, Raquel. Planejamento urbano nos anos 90: novas perspectivas para velhos te-
mas. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (Org.).
Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. 2. ed.Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 432 p.
98
Ibid.

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Vinícius Luz de Lima - 91

Para Villaça99 a década de 1990 foi marcada pela municipalização da


política urbana na eleição do espaço urbano e de sua produção como o obje-
to fundamental do planejamento e do plano diretor, ao disponibilizar aos mu-
nicípios novos instrumentos de natureza urbanística, tributária e jurídica, na
tentativa de equipar a terra urbana.
Nesse contexto da política urbana, o plano diretor seria o instrumento-
-chave dessa reconquista, capaz de tudo prover e de tudo ordenar nas cidades
brasileiras100.
Posteriormente, num outro estágio atingido pela consolidação do planeja-
mento estratégico das cidades, foi sancionado o Estatuto da Cidade, Lei Federal
n. 10.257 de 2001, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal de 1988. O papel do Plano Diretor Municipal como principal instru-
mento da política urbana foi fortalecido, com o intuito de promover a função
social da propriedade mediante o ordenamento territorial e o uso e ocupação
do solo que expressassem um “projeto de cidade”, regulando os assentamentos
informais e regulamentando via instrumentos urbanísticos os processos muni-
cipais de gestão urbana participativa e democrática pela população101.

O planejamento urbano estratégico entra em


cena na década de 1990

Na capital goiana não foi diferente, pois após a década de 1990, o plane-
jamento integrado e ambicioso da década de 1970 foi superado pelo planeja-
mento de visão mais estratégica, participativo e negociado, resultando no PDIG
2000 – Plano Diretor Integrado de Goiânia102. Este plano urbano se caracte-
99
VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil.
In: DEAK, Csaba; SCHIFFER, Sueli (Org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
100
LEITÃO, Lúcia. Remendo novo em pano velho – breve consideração sobre os limites dos
planos diretores. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico:
estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 392 p.
101
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros
e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 392 p.
102
GOIÂNIA. Lei Complementar nº 015, de 30 de dezembro de 1992. Define as Diretrizes
de Desenvolvimento para o Município e a Política Urbana, aprova o Plano Diretor, institui
os Sistemas de Planejamento Territorial Urbano e de Informações territoriais do Município, e

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92 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

rizou por ser um plano de transição, considerando-se seu conteúdo e metodo-


logia, que orientava a política urbana do município mediante a viabilização de
diretrizes Sócio-econômicas, Físico-Territorial-Ambientais, Culturais e do se-
tor Institucional-Administrativo.
O PDIG-2000 teve sua elaboração iniciada entre 1988 e 1991 e termina-
da em 1992, resultado da parceria entre o Instituto de Planejamento Municipal
de Goiânia (IPLAN) e a empresa privada de engenharia Engevix, contratada
como consultora pela prefeitura. Sua realização foi apoiada pelo prefeito Nion
Albernaz, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, eleito em 1988,
que conseguiu aprová-lo pela Lei Complementar n. 015 de 30 de dezembro
de 1992 e sua concepção aliava a política urbana ao Sistema de Planejamento
Territorial Urbano e de Informações Territoriais do município.
Segundo Moysés103, a elaboração do PDGI-2000 refletiu o momento em
que se constatou que era necessário buscar a estruturação urbana de Goiânia,
considerando a sua dimensão físico-territorial e também os seus aspectos eco-
nômico-sociais e político-institucionais. Buscava-se retomar o planejamento da
cidade, abandonando a posição reativa do desenvolvimento urbano da cidade,
buscando a antecipação e controle do crescimento da cidade.
A finalização da elaboração do PDIG-2000 ocorreu na gestão de Nion
Albernaz. Sua elaboração foi divulgada pela realização de reuniões entre a
Prefeitura, representantes da Engevix e vereadores, representando o Legislativo
Municipal. Nion Albernaz enfatizava a importância do plano como um conjun-
to de leis para a busca de soluções para o melhor ordenamento da cidade, frente
aos problemas do desenvolvimento urbano, a especulação imobiliária e a cons-
trução de prédios irregulares. Inicialmente, sugeriu-se a ampla discussão do pla-
no entre o secretariado e a população, o que ficou apenas no discurso oficial104.

dá outras providências. D. O., nº.1.019, Goiânia, 01 jan. 1993. Disponível em: https://www.
goiania.go.gov.br/html/gabinete_civil/sileg/dados/legis/1992/lc_19921230_000000015.html
Acesso em: 03 maio 2017.
103
MOYSÉS, Aristides. Goiânia – metrópole não-planejada. Goiânia: Editora da UCG, 2004.
420 p.
104
Diário da Manhã. Plano dará um melhor ordenamento à cidade. Goiânia, Diário da Manhã.
1991.

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Vinícius Luz de Lima - 93

Segundo o presidente do IPLAN, Harlen Inácio dos Santos, o plano


continha um conjunto de leis para disciplinar a expansão da cidade até o ano
2010, abrangendo a realidade sócio-econômica de Goiânia, por meio de uma
radiografia da capital e dependente de uma nova lei de Uso de Ocupação do
Solo, de Zoneamento Urbano.
O PDIG-2000 continha diretrizes gerais e específicas da política ur-
bana e definia estratégias de consolidação e reestruturação da estrutura ur-
bana, como: a manutenção do crescimento da cidade no sentido sudoeste
do município e a ordenação e controle do uso do solo e expansão urbana,
a ocupação dos vazios urbanos, redução dos custos de investimento da ci-
dade, a proteção e a recuperação do meio ambiente natural e construído,
a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural, a fixação de ati-
vidades de polarização regional e a criação de sub-centros e de oportuni-
dades imobiliárias.
O PDIG-2000 inovou ao incorporar na política urbana diretrizes se-
toriais habitacionais para promover moradia a todas as camadas da popula-
ção, especialmente a de baixa renda, a urbanização e regularização fundiária
das posses urbanas e dos parcelamentos ilegais e a ampliação dos sistemas de
infraestrutura urbana nos núcleos mais adensados e com melhor oferta dos
equipamentos públicos. Também estava entre as principais diretrizes do pla-
no o sistema de circulação com malha viária integrada associada ao sistema
de transporte coletivo, compatibilizado com o uso e ocupação do solo.
A estrutura urbana proposta pelo PDIG-2000 propunha três zonas onde
as ações da política urbana se voltariam para a ordenação dos usos residencial
e misto do solo, este último na maior parte da área urbana, e zonas de revita-
lização, majoritariamente concentradas no contexto do núcleo original plane-
jado da cidade, e uma grande extensão do município definida como zona de
preservação ambiental, que envolvia áreas de preservação permanente ao lon-
go de cursos d’água e áreas verdes de parques.
Segundo a arquiteta Celimene Arantes, a metodologia aplicada no PDIG-
2000 para o desenvolvimento de Goiânia considerava os aspectos sócio-econô-
micos, físico-territoriais, ambientais-culturais e institucionais-administrativos,
sendo que a perspectiva socioeconômica do PDIG-2000 devia abranger a dis-
tribuição de equipamentos públicos, a geração de emprego e a dinamização dos

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94 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

setores da economia, a maximização das oportunidades imobiliárias e a recu-


peração de valores imobiliários depreciados105.
Além das zonas previstas para a ordenação do uso do solo urbano, o PDIG-
2000 previa a consolidação de centralidades existentes que se caracterizavam
pela sua abrangência regional, denominadas “pólos de desenvolvimento regio-
nal”, articuladas à infraestrutura viária referencial. Acreditava-se também que
o crescimento da área urbana seria controlado a partir da delimitação de uma
grande área rural, delimitada a norte por uma grande zona denominada “área de
risco/contenção” e, nas outras direções, pela malha viária referencial proposta.
O Sistema de Planejamento Territorial e Urbano do PDIG-2000 previa
uma séria de ações para compatibilizar a atuação do poder público no territó-
rio com as da iniciativa privada e da comunidade, implementando-se planos
e programas setoriais relacionados ao ordenamento territorial e ao desenvolvi-
mento urbano, visando a maior eficácia na implementação do Plano Diretor
e dos Planos Setoriais.
O plano também propôs ações específicas nas “Áreas Funcionais”, que
seriam detalhadas nas leis relativas ao uso e ocupação do solo e onde se aten-
deria a legislação vigente, e as “Áreas-Programa”, cujas ações teriam um cará-
ter específico estando vinculadas aos programas específicos estabelecidos pelo
PDIG-2000.
No PDIG-2000, foram elencados diversos dispositivos, alguns previs-
tos em leis federais e estaduais, para o cumprimento das Diretrizes Gerais e
Setoriais da Política Urbana e de seus objetivos pelo Poder Público municipal,
como os instrumentos Tributários e Financeiros (Imposto Predial e Territorial
Urbano, progressivo e diferenciado por zonas, taxas e tarifas diferenciadas, con-
tribuição de melhoria, incentivos e benefícios fiscais e financeiros, fundos urba-
nos); Institutos Jurídicos (parcelamento, edificação ou utilização compulsória
do solo urbano não edificado, sub-utilizado ou não utilizado, desapropriação,
concessão de direito real de uso, servidão administrativa, limitação adminis-
trativa); Institucionais e Administrativos (ocupação provisória ou temporária,
regularização fundiária, Conselhos Municipais); e os Políticos, como a partici-
pação popular e a Operação Urbana.

105
LEI lança diretrizes para o desenvolvimento. O Popular. Goiânia, 17 jun. 1993.

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Vinícius Luz de Lima - 95

Dois anos depois, em 1994, na gestão do prefeito Darci Accorsi do Partido


dos Trabalhadores, foi aprovada a lei do zoneamento municipal embasada nas
diretrizes constantes do PDIG-2000, o que redefiniu as zonas Urbana e de
Expansão Urbana do Município de Goiânia, estabelecendo os padrões urbanís-
ticos. Segundo a nova lei, algumas áreas da cidade seriam destinadas ao maior
adensamento e/ou verticalização e receberiam importantes investimentos de in-
fraestrutura, o que contribuiria para a valorização do solo urbano, estimulando
a instalação de edifícios residenciais, comerciais e de serviços em determinadas
áreas da cidade. Com o tempo, elas se tornariam localizações privilegiadas, por
concentrarem investimentos imobiliários de médio e alto padrão promovidos
pelo setor imobiliário.
Dessa forma, o planejamento urbano da cidade de Goiânia se voltou
ainda mais para o crescimento e estímulo à expansão da área urbanizada e sua
infraestrutura, buscando consolidar os pólos de desenvolvimento de abran-
gência regional associados a poucos eixos de concentração de atividades eco-
nômicas. Esse modelo tinha a intenção de transformar a capital goiana no
centro urbano de referência estadual, refletindo a concepção ainda marcada
pela busca da eficiência e funcionalidade da cidade, em que a aplicação dos
instrumentos previstos no plano diretor mais definida no plano teórico, apre-
sentava pouca viabilização prática, em termos operacionais.

O plano diretor de 2007 e a política urbana estratégica revista

A tentativa de equacionar os problemas urbanos em Goiânia por meio do


PDIG-2000 de 1992 e de sua legislação complementar de uso e ocupação do
solo, como instrumentos eficazes de gestão da cidade, foi frustrada. Por um lado,
não interessou ao Poder Público aplicar a lei na sua totalidade, implementando
todos os instrumentos contemplados no PDIG-2000 e, por outro, pelas pres-
sões impostas pelo setor imobiliário, que condicionou a aplicação da lei privile-
giando determinados setores e frentes de valorização da área urbana da cidade.
Assim, na década de 1990, predominou em Goiânia o projeto de cidade
realizado pelos empresários do setor imobiliário (loteadores, incorporadores,
construtores, corretores, e grandes proprietários fundiários), que ignoraram a
cidade real e direcionaram os benefícios da urbanização para determinada par-

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96 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

te da população. Ao buscarem o lucro e aproveitarem as qualidades existentes


nas cidades como elementos valorizadores de seu negócio, promoveram empre-
endimentos que ignoravam a construção do espaço coletivo, fato evidenciado
também nas grandes cidades brasileiras106.
Com a política urbana frustrada da década de 1990 e a promulgação dos
instrumentos urbanísticos institucionalizados pelo Estatuto da Cidade (Lei
Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001), no sentido de promover a função
social da propriedade, foi elaborado em Goiânia, na década de 2000, o Plano
Diretor de Goiânia – PD-2007. Aprovado pela Lei Complementar n. 171, de
29 de maio de 2007, se diferenciou do PDIG-2000 metodologicamente, devi-
do aos conceitos de planejamento urbano empregados.
O Plano Diretor de Goiânia de 2007107 foi elaborado na gestão do pre-
feito petista Pedro Wilson (2001-2004), sob o enfoque da gestão democrática
popular. Inicialmente foi elaborado pelos técnicos da Prefeitura e, calcado nos
instrumentos e conceitos do Estatuto da Cidade, foi discutido com a participa-
ção da população. Sua concepção sustentava uma política urbana fundamen-
tada nos princípios de igualdade, oportunidade, transformação e qualidade,
objetivando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da pro-
priedade urbana, buscando requalificar o território do Município de forma jus-
ta e sustentável.
Sua concepção abandonou os detalhados e elaborados diagnóstico e
prognóstico e projeção de cenários para a cidade, nos moldes do PDIG-2000,
e se estruturou nos eixos estratégicos temáticos: Ordenamento Territorial,
Sustentabilidade Sócio-ambiental, Mobilidade, Acessibilidade e Transporte,
Desenvolvimento Econômico, Desenvolvimento Sociocultural e Gestão Urbana.
Seu zoneamento, definidor das regras de parcelamento, uso e ocupação do solo,
foi parcialmente incorporado no próprio plano diretor, constituindo um ma-

106
MARICATO, Ermínia. Reforma urbana: limites e possibilidades – uma trajetória incom-
pleta. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (Org.).
Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 432 p.
107
GOIÂNIA. Lei Complementar n. 171, de 29 de maio de 2007. Dispõe sobre o Plano Diretor
e o processo de planejamento urbano do Município de Goiânia e dá outras providências. D.
O. n. 4.147, Goiânia, 26 jun 2007. 1 CD-ROM.

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Vinícius Luz de Lima - 97

crozoneamento, que não se restringia à divisão tradicional do município em


zona urbana, zona de expansão urbana e zona rural.
Um dos seus avanços era a preocupação com as questões ambientais e
a discussão democrática junto à população sobre os limites da expansão urba-
na. “O objetivo principal do plano diretor é a geração de um desenvolvimen-
to local sustentável”, afirmou o Secretário de Planejamento Henrique Labaig,
em 2002. Para ele, o novo plano devia incorporar os interesses da população e
a proteção do meio ambiente, buscando a participação de todos os agentes lo-
cais para o desenvolvimento da cidade108.
Assim, a participação da sociedade civil marcou a elaboração do PD-
2007, ao ser discutido com diversas representações da população, como as
Organizações Não-Governamentais (ONGs), associações de bairro, o Clube
de Engenharia, sindicatos de categoria de classe, comunidade, entre outros109.
Dentre os pontos debatidos nas discussões das reuniões da comissão res-
ponsável pela revisão do Plano Diretor estava a questão da expansão urbana,
uma vez que se considerava prioridade ocupar os vazios urbanos e não aumentar
a área de expansão urbana. A Prefeitura propôs aumentar a área de expansão,
considerando os loteamentos irregulares ou ilegalmente existentes e consoli-
dados e as glebas inseridas parcialmente na Macrozona de Expansão Urbana,
seguindo as recomendações da Carta de Risco de Goiânia que indicava a ocu-
pação no sentido sudoeste. Henrique Labaig defendia a priorização da ocupa-
ção dos vazios urbanos e a urbanização das áreas em fase de ocupação, porém
sem ampliar a área de expansão urbana110.
Para induzir a construção nos lotes vazios e a ocupação de edificações
desocupadas, referenciando-se no Estatuto da Cidade, foram discutidos e in-
corporados no PD-2007 diversos instrumentos urbanísticos, como: a aplica-
ção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU) Progressivo
no tempo e o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórias para imó-
veis não edificados com área superior a 2.500m2 e lotes vazios (não-edificados,
subutilizados ou não utilizados) na Macrozona Urbana, isentando-se os bair-

108
Plano prioriza meio ambiente – Prefeitura debate os limites da expansão urbana e de-
senvolvimento sustentável. Diário da Manhã, Goiânia, 30 jul. 2002.
109
Câmara começa discutir hoje novo Plano Diretor. Diário da Manhã, Goiânia, 05 maio 2003
110
Expansão urbana ainda é polêmica. O Popular, Goiânia, 04 nov. 2003a.

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98 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

ros da periferia na Macrozona de Expansão Urbana, que ainda concentravam


terrenos vazios111.
Buscando o bem-estar de seus habitantes e o desenvolvimento das fun-
ções sociais da propriedade urbana, o PD-2007 propôs no seu ordenamento
territorial a inclusão de áreas rurais na “zona de expansão urbana” para o de-
senvolvimento de atividades rurais associadas às medidas de controle básico,
interesse de tráfego e restrição à ocupação urbana e estímulo à ocupação dos
espaços vazios, para evitar o estímulo à proliferação de novos loteamentos112.
No debate sobre a alteração do perímetro urbano da cidade na elaboração
do PD-2007, em 2006, foram incorporadas as áreas de interesse social e, pos-
teriormente, em 31/05/2007, foi aprovada a Lei n. 8.534, que passou a exigir
dos novos parcelamentos a destinação de parte dos lotes para casas populares.
A lei pretendia combater a especulação imobiliária na área urbana e foi consi-
derada uma das prioridades da política urbana municipal daquele momento,
evidenciando a preocupação com a produção de habitação de interesse social e
o combate do crescimento desordenado da cidade113.
Toda a concepção da Política de Desenvolvimento Urbano proposta pelo
Plano Diretor de 2007 se inspirou nos princípios da função social da cidade
e abrangeu a totalidade do território municipal, embasando-se tecnicamente
em análises e mapas, que, após organizados, resultaram no Mapa do Modelo
Espacial – a síntese do cenário considerado ideal para a construção e imple-
mentação da Política Urbana.
No Modelo Espacial, foram especializadas as macrozonas segundo ba-
cias-hidrográficas e as áreas caracterizadas por diretrizes urbanísticas específicas,
sendo: o Perímetro Urbano e o Macrozoneamento da Área Urbana e Rural; a
Macro Rede Viária Básica e o Sistema de Transporte Coletivo; a Rede Hídrica
Estrutural, que incorporava Unidades de Conservação e Áreas Verdes; as áreas
para o Desenvolvimento Econômico; os Programas Especiais, e os tão debati-
dos Vazios Urbanos.

111
Periferia pode ficar fora do IPTU progressivo. O Popular, Goiânia, 04 nov. 2003b.
112
Ibid.
113
VALE JUNIOR, Francisco Rodrigues. A função social da propriedade urbana em Goiânia:
teoria e prática. 2008. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial).
Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2008.

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Vinícius Luz de Lima - 99

Nele estavam representadas a síntese dos princípios e as diretrizes esta-


belecidos no território municipal para a implementação do PD-2007, con-
siderando: os elementos naturais (ecossistemas hídricos e florestais (Figura
6)) e construídos (sendo as rodovias municipais, estaduais, federais e o Anel
Rodoviário Metropolitano), a macro-rede viária básica componente do tecido
urbano; a rede estrutural de transporte coletivo; de interesse histórico e cultu-
ral (Setores Central, Campinas e Sul); as áreas especiais de interesse ambiental,
social, urbanístico e institucional e os equipamentos urbanos públicos e priva-
dos considerados estratégicos (como Estações de Tratamento de Água e Esgoto,
Estação de Captação de Água, Terminal Rodoviário Metropolitano, Centro
Cultural, Campi universitários, Paço Municipal, Centro de Abastecimento e
redes de serviços).
O ordenamento do uso e ocupação do solo se daria com os instrumen-
tos de regulação, definidores da distribuição das atividades econômicas que es-
tariam associadas à rede viária básica, privilegiando-se o sistema de transporte
coletivo, cicloviário e de pedestres e a produção de habitação de interesse social.
No PD-2007, o uso do solo se vincularia às medidas indutoras e aos
instrumentos jurídicos reguladores do desenvolvimento urbano, por ser um
recurso natural e um espaço social. Dentre esses instrumentos estava o plane-
jamento ambiental na escala municipal, cuja unidade territorial de referência
adotada foi a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e desenvolvi-
mento microrregional, resultando no desenho do macrozoneamento ambien-
tal e norteando a utilização dos recursos naturais, integrando-se as atividades
produtivas rurais às urbanas114.
Dessa forma, a estratégia de ordenamento territorial foi pensada a partir
da divisão do território urbano e rural do município em macrozonas, conside-
rando seu espaço construído, associadas às sub-bacias hidrográficas com ocupa-
ção rarefeita. Esta concepção priorizou a urbanização e a densificação da cidade
construída e o crescimento da cidade à dinâmica de sua ocupação concêntrica
e sua indução a sudoeste, a partir das características econômicas, sociais, físicas
e ambientais diferenciadas em cada sub-bacia, onde se pretendia manter as ca-
racterísticas de densificação.

114
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3.ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

urbanismo e habitação 2111 REALTERADO.indd 99 27/11/2017 18:12:16


100 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

Este ordenamento dividiu o território em macrozonas, a partir dos cri-


térios físico-ambientais e espaciais, o que resultou na delimitação de oito ma-
crozonas inseridas no perímetro municipal: a Macrozona Construída e, na área
rural, constituída por sete Macrozonas Rurais delimitadas pelas sub-bacias de
sete cursos d’água (córregos e ribeirões). Essa medida atendeu o pressuposto
do Estatuto da Cidade de incorporar o planejamento ambiental e o respectivo
zoneamento no planejamento municipal, pois como afirma Milaré115, “o zone-
amento ambiental municipal tem uma dupla relação político-administrativa:
com o uso e a ocupação do solo no âmbito do Município, e com o zoneamen-
to ambiental em âmbito e escalas maiores”.
A viabilização da estratégia de ordenamento territorial do PD-2007 ocor-
reria com o planejamento racional das ações públicas e a orientação das ações
privadas impulsionadas por diversos programas, dentro dos perímetros urba-
no e rural: sua Área Urbana abrangia as áreas mais centralizadas de seu territó-
rio, com maior grau de consolidação e otimização dos equipamentos públicos,
e seu anel periférico, para atendimento do crescimento populacional futuro; e
a Área Rural, fora da área urbana para uso agropecuário e instalação de ativi-
dades incompatíveis com o meio urbano, respeitando-se as condições ambien-
tais das bacias hidrográficas.
Além do macrozoneamento, outros instrumentos urbanísticos do Estatuto
da Cidade foram incorporados ao PD-2007, como a Transferência do Direito
de Construir, para os proprietários de imóvel urbano privado ou público que
poderiam exercê-lo em outro local, respeitando-se as restrições estabelecidas re-
lativas à destinação a equipamentos urbanos e comunitários, preservação, defi-
nido como de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural, ou
a servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas
por população de baixa renda e habitação de interesse social.
Segundo o plano, o potencial construtivo decorrente da Transferência do
Direito de Construir poderia ser utilizado nas Áreas Adensáveis da Macrozona
Construída, exclusivamente nas áreas dos Eixos de Desenvolvimento Exclusivo
e em áreas objeto de aplicação de projetos diferenciados de urbanização. Estaria
condicionado aos parâmetros urbanísticos como o Índice de Ocupação, à altura

115
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3.ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

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Vinícius Luz de Lima - 101

máxima e aos afastamentos frontal, lateral e de fundo. Assim, a verticalização e


densidades excessivas já consolidadas em alguns bairros seriam desestimuladas
nas Áreas de Desaceleração de Densidades, onde se estimularia a Transferência
de Potencial para outras áreas, contendo a área urbana e o melhor aproveita-
mento da infraestrutura da Macrozona Construída.
Dessa forma, o Plano Diretor de 2007 pode ser considerado um avan-
ço, tanto em termos de concepção e elaboração quanto de gestão, pois previu
e planejou não apenas o desenvolvimento urbano da cidade de Goiânia, mas
também medidas de urbanização e funcionalidade e principalmente medidas
de controle e gestão da área urbana já consolidada da cidade, mediante a apli-
cação dos instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade. Além disso, an-
tecipou a concepção e discussão de aspectos que geralmente seriam objeto de
leis posteriores, como os relativos ao uso e ocupação do solo, ou seja, do zone-
amento municipal.

Considerações finais

Com as mudanças ocorridas no cenário político brasileiro no período da


redemocratização brasileira, a Constituição de 1988 e as novas formas mundiais
de organização econômica, no final da década de 1980, os municípios brasi-
leiros passaram a ter em suas mãos a possibilidade de desenhar a política urba-
na das suas cidades, que haviam crescido de forma desordenada e com grandes
desigualdades sócio-econômicas, fruto do urbanismo do período do desenvol-
vimentismo nacionalista das décadas anteriores.
Tornando-se os entes administrativos responsáveis pelas políticas urbanas
de seus territórios, na década de 1990, os municípios brasileiros promoveram
a elaboração de planos urbanos que se referenciaram em soluções conservado-
ras inspiradas em modelos superados e que já não atendiam mais às necessida-
des das cidades brasileiras. Além disso, incorporavam às preocupações aspectos
considerados estratégicos, necessários devido ao novo quadro político e econô-
mico em que se encontravam as cidades brasileiras116.

VILLAÇA, Flávio. Dilemas do plano diretor. In: CEPAM – CENTRO DE ESTUDOS E


116

PESQUISAS DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL – FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA


LIMA. O município no século XXI: cenários e perspectivas. São Paulo: CEPAM, 1999. 384 p.

urbanismo e habitação 2111 REALTERADO.indd 101 27/11/2017 18:12:16


102 - Capítulo IV – Do planejamento urbano integrado ao planejamento estratégico

Nesse momento, o planejamento urbano da cidade de Goiânia foi mar-


cado pela elaboração do PDIG-2000 em 1992, cujas preocupações associavam
critérios e métodos de experiências anteriores às novas necessidades da cida-
de, principalmente em relação à condução e orientação do crescimento da área
urbana.
Esse panorama e concepção foram superados na década de 2000 com o
Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), o que condicionou a elaboração do
novo plano para a cidade de Goiânia, o Plano Diretor de 2007. Sob um novo
enfoque, o Poder Público priorizou não somente o crescimento urbano e a efi-
ciência econômica da cidade, mas também o desenvolvimento urbano e eco-
nômico. Além disso, associou as necessidades sócio-econômicas e ambientais
da população da capital goiana ao próprio desenvolvimento e crescimento ur-
banos da cidade, num contexto de ampliação do debate da gestão participativa
do desenvolvimento urbano e incorporação dos instrumentos urbanísticos pre-
conizados pelo Estatuto da Cidade, baseando-se conceitualmente na promoção
do cumprimento da função social da cidade e propriedade urbana.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 103

CAPÍTULO V
REABILITAÇÃO DE ÁREAS CENTRAIS E
QUALIDADE DE VIDA:
REPENSANDO ESTRATÉGIAS PARA O ELEVADO (SP)
Valéria Nagy de Oliveira Campos

Nas últimas décadas, visando alcançar maior qualidade de vida para seus
habitantes, tem se tornado cada vez mais necessário que as cidades contemporâ-
neas enfrentem os problemas decorrentes do processo de urbanização dispersa,
entendida como uma distribuição de áreas urbanizadas pelo território, normal-
mente ao longo de rodovias, espalhada e ineficiente, extremamente dependen-
te do automóvel e da mobilidade que ele proporciona para a população e para
as unidades produtivas, a qual assume diferentes configurações desde condo-
mínios residenciais de alto padrão até favelas117.
Este processo tem como desdobramentos, por um lado, o esvaziamento
populacional das áreas centrais de cidades médias e grandes, com a consequente
subutilização da infraestrutura instalada e a deterioração do patrimônio cons-
truído, e, por outro, a periferização, isto é, a expansão contínua das fronteiras
urbanas pela ocupação de grandes glebas, distantes das áreas centrais e caren-
tes de infraestrutura e equipamentos públicos, consumindo extensas partes do
território e causando impactos ambientais, tais como poluição das águas, es-
corregamentos ou desmoronamentos em épocas de chuvas e destruição de ve-
getação nativa ou de áreas agrícolas.
Os desdobramentos da urbanização dispersa afetam profundamente o
território no qual incidem e a qualidade de vida da população afetada, apre-
sentando custos sociais e ambientais118.
No que tange à qualidade de vida, especificamente, embora seu concei-
to seja algo abrangente e as formas de medi-la muitas vezes dependam de in-

117
REIS FILHO, Nestor G. Notas sobre a urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano.
São Paulo: Via das Artes, 2006.
118
CAMPOS, Valéria Nagy de O. Reabilitação de áreas urbanas centrais: uma contribuição
para cidades mais sustentáveis? In: Óculum Ensaios 16. Campinas: PUCCAMP, p. 64-81, jul./
dez. 2012, p. 64-81.

urbanismo e habitação 2111 REALTERADO.indd 103 27/11/2017 18:12:17


104 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

dicadores qualitativos – além dos quantitativos –, o que implica um grau de


subjetividade de acordo com as condições socioeconômicas e interesses de cada
indivíduo ou grupo, entende-se que um melhor nível de qualidade de vida pode
ser alcançado pela garantia de acesso às necessidades humanas básicas, indivi-
duais e coletivas, tais como abastecimento de água, habitação, mobilidade ur-
bana, etc. – aspectos de natureza física e de infraestrutura –, mas também pela
garantia de acesso a bens imateriais tais como um meio ambiente adequado
à vida humana, a preservação do patrimônio cultural, dentre outros itens119.
Em São Paulo, por exemplo, a urbanização dispersa ganhou impulso nos
anos 1970 favorecida por grandes investimentos realizados, em períodos ante-
riores, nos sistemas viário e rodoviário – em detrimento do sistema ferroviário
–, bem como nas indústrias automobilísticas, e pela evolução tecnológica e do
sistema de comunicações, que possibilitaram, em certa medida, uma modifi-
cação das relações de trabalho.
Nessa cidade, podemos verificar, nitidamente, os referidos desdobramen-
tos da urbanização dispersa. No que diz respeito ao esvaziamento populacional de
sua área central, especificamente, cabe ressaltar, porém que o mesmo se iniciou já
na década de 1940, momento em que o centro histórico perdeu sua importância
para as classes dominantes e um novo centro de negócios foi estabelecido: o centro
novo – área além do Vale do Anhangabaú em direção à Praça da República. Pari
passu com o desdobramento deste centro, houve o deslocamento das camadas de
mais alta renda para um novo local (vetor Sudoeste): a área que inicialmente cum-
pria o papel de principal centro de negócios da cidade acabou se degradando e a
população, que vivia no local recém ocupado com o deslocamento do centro de
negócios, acabou sendo expulsa para áreas mais distantes em virtude da valorização
da área em transformação120. E assim ocorreu, sucessivamente, de modo que, hoje,
São Paulo convive com diferentes centros de negócios correspondentes às diferen-
tes fases da cidade e de sua economia. Posteriormente, pode-se observar também o
esvaziamento de determinadas áreas centrais da cidade, ao longo da orla ferroviária

119
SANTOS, Luís D. e MARTINS, Isabel. A qualidade de vida da cidade urbana: o caso da cidade
do Porto. Working papers da FEP. Investigação – Trabalhos em curso – nº 116, maio de 2002.
120
CAMPOS, Valéria Nagy de O. Reabilitação de áreas urbanas centrais: uma contribuição
para cidades mais sustentáveis? In: Óculum Ensaios 16. Campinas: PUCCAMP, p. 64-81, jul./
dez. 2012.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 105

e fluvial, principalmente, em razão do deslocamento de grande parte das plantas


industriais, em especial as de grande porte e mais poluidoras, para áreas periféricas
ou outros municípios, ao longo dos principais eixos rodoviários, intensificando o
processo de urbanização dispersa. Se, por um lado, a saída dessas empresas fez com
que se formassem extensos vazios urbanos e fossem abandonados e se degradassem
vários edifícios fabris ou de usos correlatos – silos, moinhos, galpões industriais,
etc. –, por outro, os trilhos e pátios ferroviários remanescentes constituem extensas
barreiras físicas à continuidade do tecido urbano.
Somam-se a tais problemas – esvaziamento populacional e surgimen-
to de vazios urbanos –, as consequências das obras viárias, implementadas nas
áreas centrais de São Paulo, especialmente aquelas realizadas a partir de 1965,
que assumiram um “novo patamar” ao propor a ampliação do sistema viário
e a conexão de áreas da cidade, que começava a se dispersar rumo à periferia,
tal como a ligação Leste-Oeste. Como reforçam Nakano, Campos e Rolnik121

Destacaram-se então duas tendências, que teriam sérias conse-


quências para a região central: a ênfase em obras visando uma
significativa melhoria da acessibilidade para o automóvel no setor
sudoeste da metrópole e o tratamento do centro como nó de ar-
ticulação e passagem nessa grande estrutura.

Em decorrência da realização de tais obras, muitas em desnível, a região


central teve seu acesso dificultado e muitas áreas no entorno do centro antigo,
locais até então valorizados como Campos Elíseos e Santa Cecília, acabaram se
degradando pela presença de viadutos e vias expressas cortando o tecido urba-
no; isto modificou a dinâmica prevalecente, desvalorizou os imóveis da região,
desqualificou o espaço público existente e fez diminuir consideravelmente o ní-
vel de qualidade de vida na área. Uma dessas vias construídas é o Elevado João
Goulart122, objeto de análise desse capítulo. Popularmente conhecido como

121
NAKANO, Kazuo; CAMPOS, Cândido M.; ROLNIK, Raquel. Dinâmicas dos subespaços da
área central de São Paulo. In: Empresa Municipal de Urbanização – EMURB. Caminhos para o
centro: estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Paulo: 2004. p. 130
122
Em 25 de julho de 2016, foi sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad a Lei que
alterou o nome dessa via expressa de “Elevado Presidente Arthur da Costa e Silva” para “Elevado
Presidente João Goulart”, no âmbito do projeto da Secretaria Municipal de Direitos Humanos

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106 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

Minhocão, aqui o denominaremos Elevado por entender que tais nomes re-
velam concepções e propostas completamente diferentes; se fosse, de fato, um
“minhocão”, a referida intervenção passaria, como o nome indica, pelo subso-
lo, o que não teria causado tantos impactos negativos na região.
Assim, em um contexto no qual é evidente que o município de São Paulo
já alcançou os limites físicos impostos pela Serra da Cantareira, ao Norte, e pelas
Represas Guarapiranga e Billings, ao Sul, e que esgotou a capacidade de expan-
são no vetor Leste e no vetor Sudoeste, torna-se imperativo voltar as atenções
para os vazios urbanos e áreas subutilizadas da região central, buscar romper
suas barreiras físicas, costurando novamente o tecido urbano, e promover seu
repovoamento. Essa área possui grandes atrativos para os investidores – boa lo-
calização, infraestrutura já instalada, oferta de transporte público, patrimônio
arquitetônico e histórico –, mas necessita de “cuidados especiais” que equacio-
nem adequadamente os complexos problemas existentes, inclusive os sociais,
para que essas potencialidades se consolidem.
Tais problemas foram abordados pelo Plano Diretor Estratégico de São
Paulo aprovado em 2014123, o qual, no caso específico do Elevado, embora de
modo superficial, lançou a possibilidade de um outro futuro para esta via de
passagem, uma “cicatriz urbana”124 presente na área central.
Considerando, de um lado, os problemas socioeconômicos e urbanos exis-
tentes nessa área e, de outro, o regresso dos investimentos para a região ocorri-
do na virada do século XX para o XXI, estimulado pela mudança de orientação
do desenvolvimento urbano da cidade e da implementação de alguns planos
de reabilitação, esta abertura legal representa uma excelente oportunidade para
recuperar o local e proporcionar melhor qualidade de vida para todos. Porém,

e Cidadania que propunha alterar nomes de vias da cidade que homenageiam datas e pessoas
relacionadas ao período do regime militar brasileiro (1964-1985).
123
SÃO PAULO (SP). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Aprova a Política de
Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e re-
voga a Lei nº 13.430/2002. São Paulo: Diário Oficial do Município de São Paulo, 2014.
Disponível em: < http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/PDE-Suplemento-DOC/
PDE_SUPLEMENTO-DOC.pdf>. Acesso em: 03 maio 2017.
124
LUNA, Francisco V. e MAGALHÃES Jr., Manuelito P. Uma cicatriz urbana. In: ARTIGAS,
Rosa; MELLO, Joana e CASTRO, Ana Cláudia (Org.). Caminhos do Elevado: memória e pro-
jetos. São Paulo: Sistema Municipal de Planejamento – Sempla; Departamento de Estatística
e Produção de Informação – Dipro; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 7.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 107

para que isto ocorra é necessário que se comece a abordar a questão de modo
mais abrangente e não apenas do ponto de vista da estrutura física da via ele-
vada e de sua função no sistema viário estrutural da cidade.
A preocupação com os impactos do Elevado na cidade e na vida da po-
pulação ao longo do tempo, bem como com seu destino, norteia esse capítulo
em paralelo às discussões sobre reabilitação para as áreas centrais sobre a qual
será apresentada a seguir uma breve análise.

Reabilitação de áreas centrais: uma breve análise

A reabilitação de áreas centrais, desde que adote novos padrões e regras


claras de uso e ocupação do solo, que incidam não apenas sobre a proprieda-
de privada, mas também sobre as áreas públicas, conforme já afirmamos ante-
riormente125, pode contribuir para que se alcance um desenvolvimento urbano
mais sustentável – um modelo urbano com maior densidade, socialmente di-
versificado, baseado em trajetos a pé, servido por transporte público coletivo e
integrado, acompanhado de centralidades distribuídas pelo território e de uma
conexão adequada entre o homem e os serviços ambientais.
Propostas desse tipo podem reaproveitar a infraestrutura já instalada e
subutilizada em uma área, fato que por si só pode levar a uma diminuição dos
gastos públicos; além disto, a reabilitação de edifícios ou a ocupação de edifí-
cios vazios em áreas centrais possui vantagens em relação à reurbanização de
determinadas áreas e principalmente à abertura de novos loteamentos, porque
estas últimas demandam mais recursos financeiros para a realização de obras
viárias – pavimentação e drenagem –, que consomem quase metade dos custos
de urbanização, e implicam uma expansão considerável da mancha urbana126.
Contudo, as experiências de reabilitação de áreas centrais em vários países
vêm demonstrando que o grande desafio das propostas tem sido evitar a gen-
trificação, um processo de transformação do espaço urbano no qual, a partir de

125
CAMPOS, Valéria Nagy de O. Reabilitação de áreas urbanas centrais: uma contribuição para
cidades mais sustentáveis? In: Óculum Ensaios 16. Campinas: PUCCAMP, p. 64-81, jul./dez. 2012.
126
CAMPOS, Valéria Nagy de O. Reabilitação de áreas urbanas centrais: uma contribuição
para cidades mais sustentáveis? In: Óculum Ensaios 16. Campinas: PUCCAMP, p. 64-81, jul./
dez. 2012.

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108 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

uma intervenção pública ou privada, ocorre a valorização imobiliária deste lo-


cal e o consequente deslocamento dos moradores tradicionais, frequentemen-
te, de classes sociais menos favorecidas127.

Como ressaltado por Silva128, para alguns estudiosos, tal processo é


inevitável nas grandes cidades cujos centros antigos permaneceram
‘esquecidos’ pelas classes médias altas durante algumas décadas
e, por isso mesmo permitiram e estimularam o desenvolvimento
de atividades populares e mesmo moradia de famílias de menor
renda. Esse fenômeno tenderia a ocorrer por influência de dois
processos, que podem ser combinados ou não.
Pelo lado da demanda, as estratégias das classes médias de (re)
conquista de territórios e de volta a cidade depois de décadas de
encantamento pelos conjuntos e loteamentos fechados, estimuladas
pelo setor imobiliário. [...].
Pelo lado da oferta e das decisões dos produtores de espaços – as
estratégias dos governantes, em acordo com o setor privado, para
tornar as cidades competitivas, dotando os centros de características
que os tornariam atrativos para aquelas classes, seja para moradia
ou para consumo e lazer.

Para Arantes129, por sua vez, a gentrificação é inevitável porque ela faz
parte de uma ação estratégica (“gentrificação estratégica”) no desenvolvimento
da cidade sob a orientação empresarial, ou seja, havendo uma intervenção ur-
bana nestes moldes, a substituição de moradores e usuários não só é desejável
como também é necessária para que a operação tenha bons resultados – imo-
biliários principalmente.
Em outras situações, porém a análise de algumas experiências per-
mite identificar outra possibilidade: a de que haja uma “gentrificação às

127
BIDOU-ZACHARIASEN, C. (Coord.). De volta à cidade: dos processos de gentrificação
às políticas de revitalização dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006.
128
SILVA, Helena M. B. Apresentação. BIDOU-ZACHARIASEN, C. (Coord.). De volta à
cidade: dos processos de gentrificação às políticas de revitalização dos centros urbanos. São
Paulo: Annablume, 2006. p. 8.
129
ARANTES, Otília B. F. Berlim e Barcelona: duas imagens estratégicas. São Paulo: Annablume, 2012.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 109

avessas”130, isto é, antes mesmo de que sejam feitos os investimentos na


área, os moradores e usuários do local são expulsos por conta de algumas
medidas adotadas ou, apenas, anunciadas pelo poder público.
Pelo exposto, entende-se que uma avaliação de projetos de reabilitação de áre-
as centrais deve buscar compreender o pano de fundo que norteou a elaboração dos
mesmos; isto é, é preciso saber o que se queria para essas áreas e para quem tais pro-
postas se destinam; tratam-se de projetos para permitir apenas o retorno das classes
médias ou altas que por tempos deram as costas a essas áreas centrais ou tais proje-
tos pretendem permitir uma apropriação mais democrática dessa região da cidade?
Em que pesem prós e contras com relação a projetos de reabilitação de
áreas centrais, o fato é que a realização de intervenções pontuais – como a cons-
trução, pura e simples, de uma via – apresenta resultados menos abrangentes.
Assim, entende-se que as propostas do poder público para o urbano de-
vem redirecionar o desenvolvimento da cidade, voltando-o para as áreas mais
centrais; rever a forma de tratar o tecido urbano e reestruturar as rupturas exis-
tentes nestas áreas; bem como considerar estratégias e propostas que possam
gerar maior qualidade de vida para toda a população urbana e não apenas para
um grupo determinado. Em São Paulo, conforme será exposto a seguir, algu-
mas experiências têm buscado seguir nesta direção, mas outras parecem colidir.

Experiências de reabilitação da área central na


cidade de São Paulo

A área central da cidade de São Paulo, entre 1997 e 2008, foi foco de “pla-
nos de reabilitação” – como o Programa de Requalificação Urbana e Funcional
da Área Central (PROCENTRO) (aproximadamente 462 hectares), a Operação
Urbana Centro (aproximadamente 663 hectares), o “Programa de Reabilitação
da Área Central – Ação Centro” (aproximadamente 5.237 hectares), para citar
alguns –, que, em maior ou menor grau, têm lidado com os imensos desafios des-
sa área urbana – subutilizada, degradada e, por vezes, abandonada –, em virtude
dos problemas socioeconômicos, legais e urbanos existentes: elevada concentra-

130
CAMPOS, Valéria Nagy de O. Reabilitação de áreas urbanas centrais: uma contribuição para
cidades mais sustentáveis? In: Óculum Ensaios 16. Campinas: PUCCAMP, p. 78, jul./dez. 2012.

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110 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

ção de população de baixa renda, morando em assentamentos subnormais; alta


concentração de “moradores de rua” e drogadição; áreas públicas deterioradas e
sem manutenção; existência de grande número de imóveis tombados, em péssi-
mo estado de conservação, muitas vezes, desocupados ou ocupados ilegalmente;
grande número de imóveis vazios em processo de deterioração, etc.131
A mais significativa dessas propostas, principalmente por envolver um im-
portante financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
é a chamada “Ação Centro” (2002-2004), posteriormente revista e chamada
de Procentro (2005-2008), cujas negociações iniciaram no final da década de
1990. Ela ultrapassou mandatos e seu perfil acabou sofrendo mudanças para se
alinhar às prioridades do governo em vigor; por isto, a análise de sua implanta-
ção ao longo dos anos revela resultados diferentes e, por vezes, contraditórios.
Em um primeiro momento, em que o Programa abrangia vários distritos da
região central132, por vezes, pertencentes a mais de uma Subprefeitura, pode-
-se observar que houve uma melhora sensível nas condições socioeconômicas e
ambientais, favorecendo o retorno de pessoas, atividades e investimentos para
a área, mesmo que em níveis abaixo do esperado, e sem gentrificação. Em um
segundo momento (após 2005), porém, houve uma mudança de orientação e
o foco de atuação passou a ser a região da “Nova Luz”, que abriga a chamada
Cracolândia133. Várias medidas foram tomadas, algumas bastante impactantes
sobre as atividades econômicas do local e sobre a população, que acabou sendo
expulsa da região por conta do fechamento e da demolição de antigos hotéis
(“gentrificação às avessas”), e foi desenvolvido um Projeto Urbanístico Específico

131
CAMPOS, op. cit.
132
O Programa atuou em diferentes linhas: algumas delas concentraram-se nos distritos Sé
e República e outras ampliaram o recorte territorial, considerando também distritos das
Subprefeituras da Mooca e da Lapa. (SÃO PAULO. Prefeitura Municipal de São Paulo. Plano
reconstruir o centro: reconstruir a cidade e a cidadania. São Paulo: Procentro, 2001; SILVA, Helena.
M. B.; CAMPOS, Valéria N.O. (Coord.). Programa morar no centro. São Paulo: PMSP, 2004.)
133
Cracolândia é o nome dado popularmente a uma região no centro da cidade de São Paulo,
nas imediações das avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Casper Libero e Ruas
Mauá e Nothmann, na qual ocorre, há tempos, um intenso tráfico e consumo de drogas, em
particular o crack. Algumas administrações municipais, bem como a administração estadual,
têm tentado dar respostas a esse grande problema, mas sem sucesso até o momento; há muitas
controvérsias sobre o modo de tratá-lo.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 111

(PUE)134; contudo, esse projeto foi abortado pela equipe eleita para a Prefeitura
em 2013 (gestão 2013-2016), por ser considerado inviável economicamente.
Com a mudança de gestão e com a aprovação do Plano Diretor Estratégico
de São Paulo (Lei Municipal nº 16.050), em 2014, o que se verificou foi um re-
direcionamento das atenções do governo municipal para uma área mais abran-
gente, chamada de Macroárea de Estruturação Metropolitana (MEM)135 (Figura
1), para a qual se destacaram algumas propostas, vinculadas ao referido Plano
Diretor Estratégico (2014), tais como o Arco do Tamanduateí, o Arco do Tietê
e a já mencionada referência – genérica – ao futuro do Elevado na região central.

Figura 1 – Macroárea de Estruturação Metropolitana (MEM).


Fonte: Imagem retirada da Cartilha Plano Diretor Ilustrado (SP) (Plano Diretor Estratégico.
Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014). SMDU, 2014, p. 46

134
Projeto Nova Luz, São Paulo, Brasil. Projeto Urbanístico Específico. Prefeitura do Município
de São Paulo (PMSP), Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SMDU), Consórcio Nova
Luz. Julho de 2011. Disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/
desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_luz/201108_PUE.pdf. Acesso em: 18 mar. 2015.
135
A MEM, que envolve as orlas ferroviária e fluvial de São Paulo, tem um papel estratégico
na reestruturação urbana no Município por apresentar grande potencial de transformação
urbana, que precisa ser planejado e equilibrado.

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112 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

A gestão seguinte, que cobrirá o período entre 2017-2020, continua a


trabalhar com a Macroárea de Estruturação Metropolitana, definida pelo Plano
Diretor em vigor, a qual foi, inclusive, incorporada e aprimorada no Plano de
Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) para a Região Metropolitana de
São Paulo. Porém, a julgar pelas ações que vêm sendo realizadas em 2017 pela
Prefeitura, a área da chamada Nova Luz parece estar novamente no centro das
atenções do governo municipal – e do governo estadual –, tendo ocorrido no-
vas ações policiais na região da Cracolândia.
Tais propostas revelam o entendimento de que a presença de áreas subuti-
lizadas e de vazios urbanos na região central representa um potencial a ser explo-
rado, entretanto, os debates que se iniciam revelam que não há consenso sobre
quem deverão ser os favorecidos com a empreitada do poder público.
É neste contexto que será abordado a seguir o objeto de estudo desse capítulo

Elevado: construção e impactos

O Elevado, localizado em sua maior parte no distrito de Santa Cecília,


em São Paulo, é uma via expressa aérea com cerca de 3 km de extensão que faz
parte da conexão viária Leste-Oeste de São Paulo; começa na região da Praça
Roosevelt, no centro da cidade, segue sobre a Rua Amaral Gurgel, depois sobre
a Avenida São João – entre as Ruas Helvetia e Glete – e continua por sobre a
Avenida General Olímpio da Silveira até desembocar no Largo Padre Péricles,
no distrito de Perdizes, onde se inicia a Avenida Francisco Matarazzo (Figura 2).
Idealizado na gestão do prefeito Faria Lima (1965-1969), desde sua con-
cepção gerou muita polêmica pelos impactos que causaria na paisagem urbana
da região central de São Paulo e sofreu reação negativa tanto de técnicos quan-
to da população local, sendo por isto engavetado. O próprio Plano Urbanístico
Básico de São Paulo (1968) apontou para o fato de que

As vias expressas elevadas são barulhentas e comumente conside-


radas antiestéticas, embora tais inconvenientes possam ser contor-
nados por cuidadoso tratamento arquitetônico. [...] elas provocam
sérias obstruções visuais ao longo das ruas de cruzamento e devem

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 113

ser construídas longe dos edifícios não industriais existentes a fim


de preservar o ambiente urbano.136

Figura 2 – O Elevado e seu entorno, São Paulo.


Fonte: Elaborado pela autora sobre base do Google Earth (imagens 5/8/2015), 2016

Entretanto, na gestão seguinte, do então prefeito Paulo Maluf, embora


fosse uma solução viária ultrapassada e já abandonada em outros países, como
os Estados Unidos, o projeto foi implantado e sua inauguração ocorreu em 24
de janeiro de 1971. A sua construção em apenas 11 meses, graças a uma escala
contínua e ininterrupta de trabalho, demonstra a urgência e a importância desta
obra para o governo naquele momento, um período no qual se incentivou tan-
to os investimentos no sistema de transporte sobre pneus, em detrimento dos
investimentos no sistema sobre trilhos, como na indústria automobilística, que
ampliava seu espaço no território paulista. Isto fica ainda mais evidente quan-
do se constata que a construção do Elevado impactou negativamente sobre as
obras de construção da Linha 3 (Vermelha) do Metrô; em virtude dos pilares e
fundações da via expressa elevada, o método construtivo da linha Vermelha foi
alterado e foi necessário construir um túnel profundo, com maquinário impor-

136
Elevado, o triste futuro da avenida. O Estado de São Paulo, São Paulo, 01 dez. 1970. Geral,
p. 23. Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19701201-29342-nac-23-
999-23-not/. Acesso em: 18 fev. 2015. Apud Plano Urbanístico Básico, setor de Circulação e
Transporte, página 290, volume 4.

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114 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

tado, mais caro e mais lento, fato que atrasou as obras. Mais um motivo para
que as críticas fossem severas:

A via elevada ‘Presidente Costa e Silva’ [...] não é resposta a ne-


nhuma pesquisa de origem/destino da população, não tem um
objetivo definido. É apenas uma obra.137

Poucos anos após sua inauguração, em 1976, o quotidiano dos mora-


dores e usuários do entorno do Elevado já estava profundamente modificado:
a via passou a ser interditada à noite para evitar os acidentes noturnos, que se
tornavam rotina, e para diminuir o barulho na região.
Hoje, a região no entorno do Elevado, que anteriormente abrigou um
dos primeiros loteamentos de alto padrão da cidade, onde se fixaram vários dos
antigos fazendeiros do café, e depois foi palco do início da verticalização resi-
dencial, apresenta-se bastante abandonada e degradada.
As edificações mais antigas, ao longo de seu trajeto, foram construídas
no alinhamento do lote e, na maioria das vezes, sem recuo lateral; a negligên-
cia a este fato e a proposta de uma distância extremamente pequena entre a via
expressa de tráfego segregado e as edificações – cerca de 5 m – impactou pro-
fundamente na qualidade dos espaços e no conforto ambiental (pouca ilumi-
nação natural, poluição sonora e atmosférica, por exemplo); soma-se a isto o
fato de que a elevação desta via a 5,5 m acima do solo alcançou os níveis in-
termediários contíguos de muitos edifícios – frequentemente residências –, ti-
rando a privacidade de seus usuários. Com isto, os cerca de 3 mil imóveis nas
proximidades se desvalorizaram e houve uma mudança no perfil de seus ocu-
pantes: os moradores de média renda foram substituídos pelos de baixa renda.
O Elevado sombreou as vias por onde passa, bem como diminuiu a in-
solação nos compartimentos internos dos primeiros pavimentos das edificações
situadas junto à via elevada, ocupados principalmente com comércio e serviços;
além disto, arruinou o projeto da Praça Marechal Deodoro e impossibilitou
a arborização das referidas vias. Pesa ainda o fato da estrutura do Elevado ter
137
Elevado, o triste futuro da avenida. O Estado de São Paulo, São Paulo, 01 dez. 1970. Geral,
p. 23. Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19701201-29342-nac-23-999-
23-not/. Acesso em: 18 fev. 2017.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 115

uma forma rude, que não “ultrapassou os critérios exclusivamente funcionais/


estruturais”138 e de não ter sido incorporado ao desenho da via respiradouros e
outros elementos para permitir melhor ventilação e circulação da fumaça dos
ônibus e automóveis que passam ao nível do solo, bem como iluminação na-
tural: o “térreo” ficou sufocado.
Neste contexto grotesco, os baixios do Elevado foram ocupados por pes-
soas sem teto e outros usuários, como aqueles que usam drogas, em parte expul-
sos da Cracolândia pelas ações adotadas anteriormente no âmbito do Projeto
Nova Luz; juntos compartilham o canteiro central, transformado em ponto de
ônibus, com os usuários de transporte coletivo – “as privilegiadas classes mo-
torizadas” 139, os usuários de transporte individual motorizado, se locomovem
na parte superior que se torna mais democrática somente à noite e nos feriados
e finais de semana quando a via é fechada para o fluxo de automóveis e aberta
para pedestres, corredores e ciclistas.
Assim, em um momento em que o Plano Diretor Estratégico de São
Paulo (Lei 16.050/2014) abriu espaço para que o destino do Elevado seja re-
visto, torna-se necessário repensar estratégias, instrumentos e parâmetros urba-
nísticos que possam ser adotados nesse caso, a fim de garantir melhor qualidade
de vida urbana.

O destino do Elevado

Os problemas – de natureza social, econômica, ambiental e estética – veri-


ficados na região do entorno do Elevado causados por esta solução de engenha-
ria, voltada para a circulação de veículos e pautada pelo crescimento extensivo
da cidade, são incontestáveis. Mesmo assim, desde sua construção, apesar das
críticas negativas, poucas vezes se aprofundou a discussão sobre quais medidas

138
ANELLI, Renato L. S.; SEIXAS, Alexandre R. O peso das decisões: o impacto das redes
de infraestrutura no tecido urbano. In: ARTIGAS, Rosa; MELLO, Joana e CASTRO, Ana
Cláudia (Org.) Caminhos do Elevado: memória e projetos. São Paulo: Sistema Municipal de
Planejamento – Sempla; Departamento de Estatística e Produção de Informação – Dipro;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 59-73.
139
FERRARA, Lucrécia d’Alessio. Ver a cidade: cidade, imagem e leitura. São Paulo: Nobel,
1988. p. 51.

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116 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

poderiam ser adotadas para mitigar tais problemas ou sobre qual seria o desti-
no do Elevado.
Em 1993, por exemplo, a então prefeita Luiza Erundina propôs sua de-
molição sob a justificativa de que esta via degradava a região por onde passava,
mas a proposta não seguiu adiante. Gestões seguintes voltaram a abordar de al-
gum modo a questão, mas não foi dada continuidade. Em 2006, na gestão do
então prefeito Gilberto Kassab, a discussão sobre o futuro do Elevado140 en-
trou novamente na ordem do dia; porém, naquele momento, decidiu-se lan-
çar um concurso de ideias:

mobilizada por uma proposta de demolição parcial do Elevado


elaborada pela EMURB (Empresa Municipal de Urbanização) e
por mais um debate através de jornais com arquitetos, urbanistas
e especialistas em transportes sobre a conveniência ou não de sua
demolição, a Prefeitura de São Paulo colocou o tema do Elevado
na segunda edição do Prêmio Prestes Maia de Urbanismo. 141

Reveladoramente, a maioria dos competidores, assim como quase todos


os projetos premiados, adotou como partido a manutenção da estrutura – ape-
nas uma menção honrosa considerou a demolição do Elevado; além de se ava-
liar os custos elevados para seu desmonte, esta decisão implica uma revisão das
prioridades para o desenvolvimento da cidade e da manutenção do transporte
individual motorizado como alternativa principal142.
Posteriormente, em 2010, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Urbano (SMDU), ao apresentar a proposta para a Operação Urbana Consorciada

140
Prefeitura de São Paulo abre discussão sobre demolição de Minhocão. Anúncio foi feito
durante a apresentação da Operação Urbana Lapa/Brás. Disponível em http://noticias.r7.com/
sao-paulo/noticias/prefeitura-de-sao-paulo-anuncia-demolicao-de-minhocao-20100506.html.
Acesso em: 16 fev. 2017.
141
FELDMAN, Sarah. Aprendendo com o Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão.
Resenhas Online. São Paulo, ano 08, n. 091.04, Vitruvius, jul. 2009. Disponível em <http://
www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.091/3029>. Acesso em: 16 fev. 2015.
142
ARTIGAS, Rosa; MELLO, Joana e CASTRO, Ana Cláudia (Org.) Caminhos do Elevado:
memória e projetos. São Paulo: Sistema Municipal de Planejamento – Sempla; Departamento
de Estatística e Produção de Informação – Dipro; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2008. p. 84.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 117

Lapa-Brás, desenvolvida em conjunto com outras Secretarias da administração


municipal, anunciou a possibilidade de demolição do Elevado. No contexto
dessa Operação – até o momento não efetivada –, uma das alternativas apre-
sentadas para absorver o tráfego de veículos que passam pela via elevada foi o
enterramento da via férrea (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos –
CPTM) no trecho entre a Lapa e o Brás – cerca de 12km – e, sobre esta construir

uma via parque estrutural, e não expressa, com ciclovias, calçadas


largas, cruzamentos em nível e arborização intensa de forma a
propiciar a ligação entre os dois territórios.
[...]
Com a efetivação da via parque, o projeto pode criar condições
para a eliminação do Minhocão entre o trecho da Praça Roosevelt
(centro) até o Largo Padre Péricles (zona oeste).143

Em 2014, com a aprovação do Plano Diretor Estratégico de São Paulo,


um novo futuro passou a se esboçar para o Elevado. Em suas “disposições fi-
nais e transitórias”, o Plano Diretor estabeleceu:

Parágrafo único. Lei específica deverá ser elaborada determinando


a gradual restrição ao transporte individual motorizado no Elevado
Costa e Silva [atual Elevado João Goulart], definindo prazos até
sua completa desativação como via de tráfego, sua demolição ou
transformação, parcial ou integral, em parque.144

Contudo, em razão do modo vago com que foi tratado o assunto, a aná-
lise deste “Parágrafo único” leva a diferentes interpretações e questionamentos
sobre esse texto legal como apresentado a seguir.

143
NAGATOMI, Fernanda. Reurbanização de São Paulo em foco. Especial Operação Urbana
Lapa Brás. Jornal do Instituto de Engenharia, n. 59. jun./jul., 2010. p. 17.
144
O artigo 375, da Lei 16.050/2014 que instituiu o novo Plano Diretor de São Paulo, estabelece
que: “Ficam desde já enquadradas como ZEPAM: I – os parques urbanos municipais existentes;
II – os parques urbanos em implantação e planejados integrantes do Quadro 7 e Mapa 5 desta
lei; III – os parques naturais planejados. Parágrafo único. Lei específica [...] determinando a
gradual restrição ao transporte individual motorizado no Elevado Costa e Silva [...].”

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118 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

• “Gradual restrição ao transporte individual motorizado no Elevado Costa


e Silva [atual Elevado João Goulart]” – a redação desse trecho não
permite compreender, exatamente, qual é a proposta que se vislum-
bra para a via elevada. Ao se referir à “gradual restrição ao transporte
individual motorizado”, não fica claro se o transporte coletivo moto-
rizado não poderá ser permitido, em substituição, ou se nenhum tipo
de transporte motorizado será consentido. Caso seja permitida a cir-
culação de coletivos, porém, é fundamental que fique estabelecida a
restrição a veículos poluidores a fim de garantir baixos níveis de polui-
ção sonora e atmosférica; também deverão ser especificadas medidas
para manter a privacidade dos andares junto ao Elevado e melhorar
as condições de salubridade nos andares inferiores das edificações e
sob a estrutura. Há que se destacar, contudo, que a inclusão do ter-
mo “gradual” é bem-vinda pois, dada a “restrição ao transporte indi-
vidual”, deverá ser definido o destino dos 80 mil veículos individuais
motorizados, que passam pelo Elevado diariamente; tal solução de-
verá ser implementada a priori, pois caso isto não ocorra, outras vias,
já saturadas, que permitem um deslocamento semelhante (conexão
Leste-Oeste) serão impactadas pela ação e tenderão a se paralisar nos
horários de pico. Como aponta o arquiteto Nabil Bonduki,
Pode-se, a curto prazo, ampliar o horário de restrição ao tráfego.
E, aos poucos, à medida em que avança a ampliação da rede estru-
tural de transporte coletivo (novas linhas de metrô e de BRT [Bus
Rapid Transit, conhecido em português como Veículo Leve sobre
Rodas]) e o estímulo à mobilidade não motorizada – garantindo
uma menor dependência da população em relação ao uso do au-
tomóvel – pode se propor um processo gradativo de desativação
do elevado viário sem causar um caos no trânsito145.
• “Desativação como via de tráfego” – essa opção só deverá ser adota-
da se houver uma alternativa para a mobilidade urbana e uma pro-
posta efetiva de uso para o Elevado, que seja, de fato, implementada,

145
BONDUKI, Nabil. Minhocão é um desastre urbanístico, mas é impossível fechá-lo agora.
Notícias UOL Opinião. 22 ago. 2014. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/opiniao/
coluna/2014/08/22/minhocao-e-um-desastre-urbanistico-mas-e-impossivel-fecha-lo-imedia-
tamente.htm. Acesso em: 18 fev. 2017.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 119

para não correr o risco de se ter uma estrutura viária abandonada e


obsoleta. Caso a estrutura fique abandonada e sem utilidade, os usos
pouco qualificados das áreas sob o Elevado, bem como nas áreas do
entorno, permanecerão, serão agravados e poderão se transferir para
a superfície da via elevada e, no que diz respeito à mobilidade, outras
áreas sofrerão o impacto do deslocamento do fluxo de carros. Neste
contexto, os imóveis já desvalorizados tenderão a ficar completamen-
te degradados;
• “Sua demolição” – a opção pela demolição do Elevado requer a defini-
ção de uma série de propostas, bem como um planejamento adequa-
do de toda a operação. Em primeiro lugar, seria preciso definir se a
demolição seria integral ou parcial; caso seja parcial, caberia identifi-
car quais seriam as partes / áreas a preservar e quais a desmontar, jus-
tificando tais opções. O desmonte parcial dessa estrutura permitiria
preservar a memória do local e, embora os impactos dessa obra para
a região tenham sido devastadores, eliminar todo e qualquer resquí-
cio de sua presença poderia funcionar negativamente na medida em
que, no futuro, já não se lembraria dos impactos de ações desse tipo
e poderia haver a possibilidade de se recorrer no erro. Para os trechos
mantidos caberia designar alguma função ou permaneceriam como
ruínas de um passado mal sucedido? Em segundo lugar, seria necessá-
rio deliberar sobre como seria feito seu desmonte e para onde seriam
encaminhados os resíduos e o que fazer com os mesmos. Para o arqui-
teto e urbanista Lúcio Gomes Machado, professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP)
por ser uma estrutura pré-fabricada apenas montada ali, seria uma
demolição barata, que poderia render uma reciclagem nobre de
materiais para que se façam obras de mobilidade na periferia da
cidade146.
O que se observa, entretanto, é que se existem estudos mais detalha-
dos sobre o impacto ambiental e os custos da demolição do Elevado,

LAMAS, Julio. Afinal, o que será do Minhocão? Planeta Sustentável. 18 ago. 2014. Disponível
146

em http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/urbanidades/afinal-o-que-sera-do-minhocao/.
Acesso em: 18 fev. 2017.

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120 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

eles não são divulgados. Em terceiro lugar, caberia planejar a logís-


tica da operação pois o desmonte/demolição da estrutura implicará
em vários transtornos à população; será preciso definir etapas de ação
e fechamento – total ou parcial – das vias de acesso e mesmo edifi-
cações lindeiras em virtude da produção de poeira, das questões de
segurança contra possível queda de materiais, do alto nível de ruído
que será produzido, da circulação de caminhões para transportar o
entulho, etc. Neste contexto, a via sob o Elevado terá seu tráfego par-
cial ou integralmente interrompido enquanto durarem as obras de
desmonte e o fluxo de automóveis e ônibus – sobre e sob o Elevado
– deverá ser absorvido forçosamente pelo sistema viário do entorno,
causando contratempos não só para a região central, mas para toda
a cidade. Isto posto, cabe ressaltar, porém que, mesmo que estas eta-
pas sejam cumpridas, entende-se que a demolição, pura e simples do
Elevado, não irá requalificar o local; para isto, será necessário que o
Poder Público defina um conjunto de medidas, abordando aspectos
sociais, econômicos, ambientais, urbanísticos e de circulação, e pa-
râmetros para orientar a atuação dos diversos atores, de modo geral.
Além disto, é oportuno também considerar que hoje, de forma sim-
ples e sem requinte, o Elevado é apropriado, de modo democrático,
pela população como área de lazer aos finais de semana e à noite; en-
tretanto, dependendo da intervenção, poderá ocorrer a gentrificação
e a população que no momento tem acesso ao “Elevado – Parque”
poderá perdê-lo;
• Sua “transformação, parcial ou integral, em parque” – a análise da al-
ternativa de transformar o Elevado em um parque leva a uma diversi-
dade de considerações. É importante ressaltar que, embora na região
central de São Paulo haja grande concentração de espaços livres pú-
blicos, em parte degradados, inclusive, por conta do esvaziamento
populacional, muitos deles são espaços impermeabilizados e sem co-
bertura vegetal, como pode ser verificado, por exemplo, na Praça da
Sé, no Vale do Anhangabaú e na Praça Roosevelt, mesmo com mo-
dernizações. Na área da Subprefeitura da Sé, na qual se encontra o
Elevado, as áreas verdes – importantes para qualidade de vida – estão

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 121

escassas e mal distribuídas no tecido urbano, sendo que o índice de


cobertura vegetal por habitante nessa Subprefeitura, em 2012, era de
apenas 6,18m2/habitante (metade do que se tem considerado como o
ideal147). Sendo assim, a criação do referido parque, se for entendido
como uma área verde, mesmo que não permeável, pode trazer mais
qualidade para a região e ampliar o número de usuários, para além
daqueles que já frequentam o Elevado em seus momentos de lazer.
Deverão ser definidas, então, regras para seu uso, funcionamento e
manutenção; também deverá haver uma proposta que propicie segu-
rança aos usuários do parque e também do entorno, pensando-se na
necessidade de haver fechamento dos acessos e horários pré-definidos
e gradis de proteção ao longo da via para impedir quedas ou outros
acidentes, etc. Se a opção for deixar o acesso aberto permanentemen-
te, deverá ser adotada uma estratégia para diminuir o incômodo dos
vizinhos à área – barulho de transeuntes, reunião ou festa de pessoas
–, como controlar usos inadequados do parque ou mesmo proibir seu
uso como moradia, transferida da parte inferior insalubre para a parte
superior renovada – ressalta-se, porém que tanto uma situação, como
a outra, não são desejáveis, devendo haver políticas públicas para dar
resposta aos problemas sociais e às carências habitacionais. Porém, de
um jeito ou de outro, uma vez mantida a estrutura, será fundamen-
tal pensar em medidas para melhorar a insolação e a ventilação sob a
mesma, trazendo mais vida à parte inferior: canteiro central mais bem
aproveitado – resolvida a questão de seus atuais usuários – e requalifi-
cado, bem como valorização das edificações adjacentes. No que tange
aos atuais moradores e usuários dos imóveis no entorno do Elevado,
é mister reforçar a preocupação com a necessidade de medidas que
incidam sobre o tecido urbano cortado pelo Elevado, e não exclusi-
vamente sobre a via, a fim de evitar que a valorização da região, pela
criação do parque, eleve sobremaneira os preços de todos os imóveis,
aluguel e venda, dificultando a permanência dos atuais locatários ou
incentivando a venda dos referidos imóveis, o que pode conduzir a

Segundo se difunde no Brasil, o ideal seria 12m2/habitante; tal índice é atribuído à


147

Organização das Nações Unidas (ONU), mas a fonte não é divulgada.

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122 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

um processo de gentrificação. Cabe destacar ainda que a manuten-


ção integral da estrutura do Elevado e a implantação de um parque
sobre o mesmo não impossibilita que se pense na adoção de um sis-
tema de transporte leve que ocupe parte da via. Por fim, cabe ressal-
tar ainda que, embora a criação de um parque resulte em uma ação
de melhoramento e de embelezamento da região, esta ação – isolada
– não eliminará necessariamente o triste cenário sob o Elevado: o tér-
reo continuará pertencendo a Hades148.

Para cada uma destas possíveis interpretações do “Parágrafo único”, trans-


crito anteriormente do Plano Diretor, no que concerne ao destino do Elevado,
delineiam-se várias consequências, algumas positivas e outras negativas, mas
todas do mesmo modo decisivas para direcionar o desenvolvimento da cidade
e para alcançar melhor qualidade de vida para a população. Mas de onde virá
a redenção?

Redenção do Elevado: algumas considerações

O destino do Elevado ainda está incerto; gestão após gestão, em função


da proposta de cada governo e do entendimento de cidade que embasa cada
administração, adota-se um encaminhamento para a área central, de modo ge-
ral, e para o Elevado, em particular.
Embora o Plano Diretor tenha aberto a possibilidade de transformar o
Elevado em um Parque para a população, com possível eliminação dos fluxos de
veículos, o fato de não haver uma proposta concreta incluída no Plano ou em
etapa posterior ao mesmo, fez com que a proposta, até o momento não tenha
vingado. Em 2016, ainda na gestão do então prefeito de São Paulo, Fernando
Haddad (2013-2016), foi sancionada a lei que criou o “Parque Minhocão” no
Elevado, a qual tornou possível a criação de um conselho gestor para discutir
melhorias para o mesmo; na prática, não foi feita nenhuma intervenção física
nem houve alteração no horário de abertura e fechamento para veículos – du-

Hades, na mitologia grega, é o nome dado ao deus do submundo e das almas, um lugar
148

onde só impera a tristeza.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 123

rante a semana, o Elevado fecha entre 21:30 e 6:30 e, aos finais de semana, fe-
cha às 15h do sábado e reabre às 6:30 na segunda-feira. Já em 2017, na gestão
do prefeito João Doria (2017-2020), é possível identificar uma abordagem di-
ferente e já houve audiência pública para discutir sua intenção de restringir a
circulação de pessoas durante dias úteis no Elevado e a sua abertura para pe-
destres somente das 15h30 às 19h aos sábados e das 10h às 16h aos domingos.
A redação dada ao Parágrafo único do Plano Diretor Estratégico de São
Paulo – nem sequer um artigo –, que trata desta questão, deixou as intenções, as
responsabilidades e os prazos muito vagos, ficando a mercê do processo político
eleitoral e da alternância de grupos de interesse na administração municipal, a
qual levará o futuro do Elevado a rumos completamente distintos.
O Plano Diretor, tendo passado em vários momentos pela discussão com
diferentes atores, com interesses díspares e, por vezes conflitantes, poderia ter
avançado nesta proposta e encaminhado o processo. Ao contrário, porém tra-
tou-a de modo genérico e pontual e a abordou apenas do ponto de vista da via
expressa elevada, não demonstrando preocupação com o que ocorrerá com seu
entorno frente às medidas adotadas e nem definindo quais serão os atores que
participarão desta empreitada, que, como se pode perceber pela análise do con-
texto, tem atraído muitos setores, em especial do setor imobiliário, interessa-
dos na transformação do Elevado e na renovação das áreas adjacentes, tão bem
localizadas na cidade.
A questão continua em aberto e o debate parece se acirrar na medida em
que governos menos abertos à participação popular assumem a gestão muni-
cipal; corre-se o risco de repetir o que ocorreu no momento de sua constru-
ção, ou seja, ignorar completamente os desejos e necessidades dos moradores e
usuários da região, bem como os impactos da intervenção sobre a vida de toda
a população.
O Plano diz que o tráfego de veículos individuais motorizados será gra-
dualmente desativado no Elevado, então, qualquer que seja a proposta adotada,
ela deverá vir necessariamente articulada com uma proposta de mobilidade ur-
bana e de reabilitação da região na qual ele se insere, acompanhada de um pla-
no urbanístico, englobando soluções técnicas em diferentes níveis, bem como
as etapas de sua implantação e custos.

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124 - Capítulo V – Reabilitação de áreas centrais e qualidade de vida

A alternativa para a circulação viária, apontada no âmbito da, apenas de-


lineada, Operação Urbana Consorciada Lapa-Brás, isto é, o enterramento da
ferrovia e a construção de uma avenida sobre a mesma, tem múltiplas e comple-
xas implicações: custos elevados; prazos extensos; logística para dar alternativas
aos atuais usuários da ferrovia no período em que esta estiver sendo rebaixada;
revisão das áreas de Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), concentradas nas
áreas lindeiras à ferrovia.
Até o momento, não se assinalou a necessidade de uma proposta de re-
abilitação urbana da região; contudo, ela é fundamental para que a proposta
tenha um alcance maior do que exclusivamente a revisão de um projeto viário
mal sucedido. As estratégias de intervenção devem ser pensadas visando a mi-
nimizar seus impactos negativos e garantir mobilidade, moradia, diversidade
social, valorização da identidade e do patrimônio arquitetônico e paisagístico,
bem como alcançar melhores níveis de qualidade de vida na região. Salvo situ-
ações em que a estrutura fique abandonada, seja por falta de uso efetivo seja por
sua demolição parcial, haverá uma valorização imobiliária nas faixas ao longo
do Elevado. “Esta preocupação aumenta quando se considera que, no início do
Século XXI, estimulada por mudanças de orientação na política de desenvolvi-
mento urbano do município, com apoio dos governos federal e estadual, hou-
ve um regresso dos investimentos para a região central”149 ; para que os atuais
moradores e usuários da região possam usufruir das eventuais melhorias, sem
sofrer pressão do mercado imobiliário, deverão ser tomadas algumas medidas.
Vários instrumentos têm sido disponibilizados, especialmente com a pro-
mulgação do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257, de 2001); com eles é
possível elaborar planos e projetos para a reabilitação das áreas centrais incorpo-
rando um conjunto de ações abrangentes, mais adequado para alcançar maiores
níveis de satisfação com os resultados dos planos implementados.
Uma alternativa, por exemplo, seria dar continuidade aos estudos da
Operação Urbana Consorciada Lapa-Brás ou ainda criar uma “Operação Urbana
Consorciada Santa Cecília”, envolvendo o Elevado e suas imediações, a fim de
promover as necessárias transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais

149
CAMPOS, Valéria Nagy de O. Reabilitação de áreas urbanas centrais: uma contribuição
para cidades mais sustentáveis? In: Óculum Ensaios 16. Campinas: PUCCAMP, p. 64-81, jul./
dez. 2012.

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Valéria Nagy de Oliveira Campos - 125

e valorização ambiental, previstas em um Projeto de Intervenção Urbanística


elaborado para a área. Caberia ainda elaborar um Estudo Prévio de Impacto
de Vizinhança (EIV), a cargo do poder público municipal, para obter a licença
para o desmonte do Elevado; este documento contemplaria os efeitos positivos
e negativos dessa empreitada quanto à qualidade de vida dos residentes na área
e suas proximidades, incluindo a análise de adensamento populacional, valori-
zação imobiliária, geração de tráfego e demanda por transporte público, venti-
lação e iluminação sob a via elevada, caso seja mantida, etc.
O importante, nesse processo, é discutir amplamente sobre os destinos
da cidade, colocando em debate:

1) o modelo que deve guiar seu desenvolvimento – cidade dispersa ou


compacta? – e a alternativa que deve ser priorizada para a mobilida-
de urbana – transporte individual ou coletivo; sistema sobre pneus
ou sobre trilhos;
2) a relevância da participação popular nessa discussão e o modo como
as políticas públicas devem ser construídas e entendidas – ações pon-
tuais frente a ações mais abrangentes; e, acima de tudo,
3) o modo como o Poder Público vem atuando para planejar e gerir a ci-
dade, visando considerar os interesses coletivos e construir consensos.

O destino do Elevado deve ser definido pelo poder público com partici-
pação popular, em especial, aquela que vive, mora e circula pelo seu entorno e
que convive com sua estrutura.
Esta é a responsabilidade do poder público: planejar e gerir os destinos
da cidade, com participação popular, priorizando as ações que possam garantir
o bem-estar e melhorar a qualidade de vida de todos seus cidadãos.

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Giselly Barros Rodrigues - 127

CAPÍTULO VI
OS EMPREENDIMENTOS MULTIFUNCIONAIS NO ESPAÇO
URBANO DAS GRANDES CIDADES – OBSERVADOS A PARTIR
DA CIDADE DE SÃO PAULO
Giselly Barros Rodrigues

Desde os primórdios até a Revolução Industrial, os espaços eram multifun-


cionais, ou seja, integrados no espaço urbano de povos e cidades europeias. As ci-
dades possuíam uma estrutura simplificada onde o homem se deslocava a pé e não
havia separações do lugar onde as pessoas moravam, trabalhavam e se divertiam.
Novas atividades surgiram com a Revolução Industrial provocando a
expansão das cidades. Com isso aumentaram os deslocamentos, mudaram as
necessidades básicas e de consumo e alteraram-se drasticamente as formas de
construir. A segregação funcional entre morar e trabalhar iniciou-se150.
No início do século XX, Le Corbusier – junto com outros integrantes do
movimento moderno – desenvolveu o “novo modo de morar”. Para ele a ha-
bitação deveria ser construída em ampla escala, prevendo todos os equipamen-
tos e serviços necessários à vida dos usuários. As residências deveriam constituir
verdadeiras cidades-jardins verticais vinculadas aos equipamentos, que exerce-
riam funções complementares à moradia.
Le Corbusier entendia que a unidade de habitação deveria incorporar os
complementos necessários para uma comunidade viver adequadamente, ten-
do à disposição tudo o que fosse necessário. Estes deslocamentos deveriam ser
feitos por meio de um trajeto a pé e os equipamentos estariam instalados no
centro, de forma que atendessem a vizinhança.151
O que foi idealizado por Le Corbusier no início do século XX necessita ser
retomado e aprimorado em pleno século XXI. Com a alta e rápida expansão ur-

150
GRASSIOTTO, Maria Luiza Fava et. al. Novos modelos de empreendimentos imobiliários
a partir de direcionamento do Plano Diretor. 11ª Conferência Internacional da Lares – Latin
American Real State Society – Centro Brasileiro Britânico, São Paulo, 2011.
151
ANTONUCCI, Denise et. al. Verticalização, habitação social e multifuncionalidade. Edifícios
dos IAPS em São Paulo. II Fórum de pesquisa FAU Mackenzie I, São Paulo, 2007.

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128 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

bana e a imensa dependência da população pelos veículos motorizados, a quali-


dade de vida das pessoas e do meio ambiente vem sendo degradados dia após dia.

Definição de espaços multifuncionais

Existem várias terminologias para o multifuncional. Como as discussões


sobre esta tipologia ainda são recentes por todo mundo, os nomes e as des-
crições ainda não são um consenso. Encontram-se na literatura termos como
“multifuncional”, “multiuso”, “edifícios híbridos”, “uso misto”, e enquanto
alguns autores descrevem esta tipologia a partir de dois tipos de usos, outros a
descrevem a partir de três. Neste capítulo, utilizaremos o termo “multifuncio-
nal” para espaços com no mínimo três usos distintos.
A característica principal do uso multifuncional é a combinação de fun-
ções – residencial, serviço, comércio, lazer, institucional, entre outras – em di-
versas dimensões espaciais, seja na escala da cidade, do bairro, da rua, da quadra,
do lote ou em uma composição destes locais. Os mesmos representam um novo
paradigma do viver na cidade. Hoje, os espaços multifuncionais estão sendo
retomados no mundo todo, como solução para a renovação e reocupação das
áreas centrais das grandes cidades152.
O conceito de “multifuncional” vem desde as antigas aldeias e cidades
da Grécia e China, passando pelas cidades da Europa Medieval, atravessando
os séculos e resistindo até hoje em cidades como Londres, Paris, Cairo, Tókio
e Pequim. Na América, a tipologia se inseriu primeiramente nas cidades de
Nova Iorque, Toronto, Buenos Aires e Sidney. Hoje, esse conceito de multi-
funcionalidade tem se tornado uma influência crescente153.
Os termos “Multiuse” e “Mixed-use” foram criados no mercado americano,
que é especialista nesse tipo de edificação, afirmando que os empreendimentos mul-
tifuncionais nasceram a partir dos shopping centers, que vieram das galerias comer-
152
NARDELLI, Eduardo Sampaio et. al. Arquitetura multifuncional paulistana: forma, técnica e
integração urbana. In: III Seminário Docomo Estado de São Paulo. Permanência e transitoriedade
do movimento modernista paulista. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2005.
153
DZIURA, Giselle Luzia. Permeabilidade espacial e zelo urbanístico no projeto arquitetônico:
da Modernidade à Pós-modernidade nos edifícios multifuncionais do Eixo Estrutural Sul de
Curitiba, 1966-2008. 2009. 438 f. Tese – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2009.

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Giselly Barros Rodrigues - 129

ciais, ou seja, a relação do comércio com o cliente e com a infraestrutura viária foi
se modificando com o tempo e interferindo também no convívio social urbano.

Perfil dos empreendimentos multifuncionais na


cidade de São Paulo

O edifício Martinelli (Figura 1) foi o primeiro empreendimento mul-


tifuncional e “arranha-céu” erguido na cidade de São Paulo. Construído em
1929, o mesmo possuía os usos comerciais, de serviços e residencial, uma vez
que havia um palacete de três pavimentos na cobertura, destinado à residên-
cia do proprietário e construtor José Martinelli. Considera-se que o edifício
Martinelli possui 30 pavimentos e 130 metros de altura154. Hoje o edifício não
é considerado multifuncional, pois suas características e funções foram altera-
das, substituindo-se a área residencial por serviços, possuindo assim, apenas
dois usos – comercial e de serviços.

Figura 1 – Edifício Martinelli – Jan./2015.


Fotografia da autora

CHAGAS, Carolina (Coord). São Paulo vertical. São Paulo: CUSHMAN & WAKEFIELD
154

SEMCO, 2004.

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130 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

A partir da década de 1950 a cidade de São Paulo transforma-se em uma


metrópole moderna. Há um grande aumento na construção de edifícios com
no mínimo dois usos, além das galerias comerciais. A característica principal
dos edifícios nesta época era o uso do pavimento térreo com comércio ou ser-
viços (galerias) e uma grande quantidade de apartamentos, com diversas tipo-
logias, nos andares superiores155.
Entre os anos de 1956 e o início dos anos 1960 ocorreu no Brasil um
grande desenvolvimento econômico-industrial – consequentemente o volume
de investimentos estrangeiros era grande. A capital paulista foi a “porta de en-
trada do capital internacional”. Neste período foi construído o Edifício Copan
(Figura 2), projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com a colaboração de
Carlos Alberto Cerqueira Lemos.

Figura 2 – Edifício Copan – Jan./2015.


Fotografia da autora

155
GALVÃO, Walter José Ferreira. Copan/SP: a trajetória de um mega empreendimento, da con-
cepção ao uso. 2007. 197 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

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Giselly Barros Rodrigues - 131

O edifício Copan foi um monumento aos novos paradigmas adotados na


década de 1950 em São Paulo: gigantismo, verticalização e adensamento po-
pulacional. O mesmo possui galeria comercial no pavimento térreo e mezani-
no – com comércio e serviços disponíveis – além de apartamentos residenciais
de diversas tipologias nos andares superiores156.
Na década de 1960, o Brasil intensifica seu desenvolvimento, criando so-
luções tecnológicas e buscando a industrialização da construção. Neste período,
foi implantado o Conjunto Nacional (Figura 3) o primeiro empreendimento
verticalizado – e que não possuía o uso exclusivamente residencial – construído
na Avenida Paulista. O mesmo foi projetado pelo arquiteto David Libeskind.
O empreendimento possui galeria comercial no pavimento térreo e nos primei-
ros pavimentos da edificação, com comércio e serviços, e, nos andares superio-
res, foram construídos apartamentos residenciais. Atualmente, nesses andares
superiores há uma mescla de usos residenciais e de serviços157.

Figura 3 – Conjunto Nacional – Jan./2015.


Fotografia da autora

156
FIORIN, Evandro. Arquitetura paulista: do modelo à miragem. 2009. 190 . Tese – Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
157
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. 2. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1999.

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132 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

O empreendimento passou a ser um marco na cidade de São Paulo, dan-


do a largada para a verticalização da região. O centro comercial do conjunto
nacional também marcou a tendência paulistana, que se tornou moda na dé-
cada de 1960: as galerias comerciais. Ao mesmo tempo, inspirou a construção
do primeiro Shopping Center da cidade, o Iguatemi (1966)158.
As décadas de 1970 e 1980 possuem as mesmas características em rela-
ção à construção de empreendimentos multifuncionais. Neste período, não há
registros de construções multifuncionais; há, porém, um crescimento expressi-
vo na construção de Shopping Centers na cidade de São Paulo.
No que concerne à classificação das edificações quanto à verticalização,
o período de 1972 a 1988, é chamado de “verticalização do zoneamento”159.
Em São Paulo, desde que foi aprovado o Plano Diretor de Desenvolvimento
Integrado (PDDI) em 1971, complementado pela Lei de Uso e Ocupação do
Solo (1972), a construção dos empreendimentos multifuncionais foi desesti-
mulada. Isto ocorreu em função das exigências do zoneamento e da adoção dos
índices urbanísticos previstos na norma, como coeficiente de aproveitamento,
taxa de ocupação e recuos a partir das divisas. Resultando em uma tipologia
estratificada – com programas específicos para uso residencial, comercial ou
de serviços – focada exclusivamente no lote, sem integração com a cidade160.
O empreendimento multifuncional mais emblemático da década de 1990
é o complexo World Trade Center São Paulo – o primeiro do grupo WTC (World
Trade Center) implantado na América Latina (Figura 4). Foi considerado, na
época, um dos maiores complexos imobiliários multifuncionais de alto padrão
do Brasil. O empreendimento é composto por edifícios corporativo, hotelei-
ro e há ainda o edifício que abriga o shopping center focado em decoração161.

158
IACOCCA, Angelo. A conquista da Paulista: Conjunto Nacional. São Paulo: Editora
Fundação Peirópolis, 1998.
159
SOMEKH, Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo: EDUSP;
Estúdio Nobel; FAPESP, 1997.
160
NARDELLI, Eduardo Sampaio et. al. Arquitetura multifuncional paulistana: forma, técnica
e integração urbana. In: III Seminário Docomo Estado de São Paulo. Permanência e transitorie-
dade do movimento modernista paulista. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2005.
161
WORLD TRADE CENTER SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.worldtradecen-
tersp.com.br>. Acesso em: 20 ago. 2017.

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Giselly Barros Rodrigues - 133

Figura 4 – World Trade Center São Paulo – Jan./2015.


Fotografia da autora

A partir dos anos 2000 iniciam-se as modificações no cenário das constru-


ções da cidade, com a implantação do novo Plano Diretor de Desenvolvimento
Integrado (PDDI) de São Paulo, em 2002. Após a implantação do PDDI há
uma nova configuração de realidade, possibilitando a implantação de grandes
empreendimentos multifuncionais. Em função da legislação, os empreendimen-
tos necessitam de lotes cada vez maiores para implantar edifícios mais altos162.
Neste período, destaca-se o complexo Brascan Century Plaza (Figuras 5 e
6), projetado pelo escritório Königsberger Vannucchi Arquitetos Associados. O
mesmo abriga edifícios corporativo, comercial, flat hoteleiro, área de entreteni-
mento com praça de alimentação, cinema e praça. O empreendimento foi im-
plantado em quadra aberta, promovendo o espaço semipúblico para os usuários.

162
FIALHO, Roberto Novelli. Edifícios de escritórios na cidade de São Paulo. 2007. 385 f.
Tese – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

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134 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

Figuras 5 e 6 – Brascan Century Plaza – Jan./2015.


Fotografias da autora

A partir da análise das principais características dos edifícios multifuncionais


produzidos ao longo do século XX e no início do século XXI, constata-se que des-
de a década de 1920 até os anos 1960, os multifuncionais eram compostos basica-
mente por uma única edificação ou por mais de uma edificação, porém vinculadas
internamente. Estas ocupavam todo o lote com altas taxas de ocupação, permitidas
pela legislação. Os pavimentos inferiores eram destinados às atividades de comércio
e/ou serviços, enquanto eram implantadas áreas residenciais (Copan e Conjunto
Nacional) ou de serviços (Edifício Martinelli) nos pavimentos superiores.
Entre as décadas de 1970 e 1980, como foi citado anteriormente, não
há registros de construções multifuncionais, em função da legislação (PDDI
e zoneamento).
A partir dos anos 1990 nota-se a diversidade do multifuncional contendo
mais de uma edificação no mesmo lote e estas desvinculadas fisicamente, com
grandes áreas abertas (verdes e/ou espaços não edificados), diferentemente, do
que ocorria nas décadas anteriores. Identifica-se também a inserção de espaços
hoteleiros nos empreendimentos, substituindo as residências.

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Giselly Barros Rodrigues - 135

Já nos anos 2000, o empreendimento multifuncional ganha outra carac-


terística fundamental que é a presença de grandes áreas abertas, mais espaços
verdes, áreas de convivência e a integração dos espaços público e privado, obje-
tivando a integração com o espaço urbano e com a população local, transeun-
tes ou usuários, como já ocorre em países da Europa e nos Estados Unidos. As
principais características dos edifícios multifuncionais inseridos na cidade de
São Paulo – citados neste capítulo – são identificadas no Quadro 1 a seguir.

Quadro 1 – Características do multifuncional em São Paulo ao longo dos anos.


Fonte: Autora, 2015

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136 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

Os espaços multifuncionais na requalificação


de áreas degradadas

A partir da década de 1950 inicia-se a segregação centro-periferia em São


Paulo, ou seja, as classes sociais são separadas por grandes distâncias. A forma
como a periferia é ocupada caracteriza-se pela ausência de infraestrutura e de
equipamentos públicos, além das residências construídas e implantadas de for-
ma precária163.
Em relação à região central, embora seja o grande patrimônio da cidade
de São Paulo, o centro deixou de ser prioridade do Poder Público a partir da
década de 1980. Durante o processo de desenvolvimento da cidade, os espa-
ços edificados vagos aumentaram na região central. Desde as últimas décadas
do século XX surgiram diversos vazios construídos, mas os imóveis não estão
abandonados, e sim vagos ou fechados, sem uso164.
Para tratar dos problemas urbanos, três técnicas devem ser abordadas:
o Planejamento Urbano, o Planejamento de transportes e o Planejamento da
Mobilidade. O objetivo do planejamento urbano – que tem mais aderência com
este capítulo – é definir a forma como o espaço deve ser ocupado e usado. O
mesmo produz códigos e leis que definirão os usos e ocupações permitidos165.
Nos últimos 30 anos são identificados nos grandes projetos urbanos à
introdução de novas atividades como residência, comércio, serviços e equipa-
mentos culturais, onde antes existiam fábricas, depósitos e terminais ferrovi-
ários, por exemplo. Os projetos urbanos de grande magnitude nas periferias
industriais criaram também um novo nicho de mercado para muitas cidades,
apresentando um produto imobiliário diferenciado166.

163
ANTONUCCI, Denise et. al. Verticalização, habitação social e multifuncionalidade. Edifícios
dos IAPS em São Paulo. II Fórum de pesquisa FAU Mackenzie I, São Paulo, 2007.
164
BARBOSA, Eunice. Evolução do uso do solo residencial na área central do município de São
Paulo. 2001. 230 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia) – Escola Politécnica, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2001.
165
VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara de. Mobilidade urbana e cidadania. Rio de Janeiro:
Senac Nacional, 2012.
166
MARTINS, Anamaria de Aragão C. Transformação urbana: projetando novos bairros em
antigas periferias. Brasília: Thesaurus, 2012.

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Giselly Barros Rodrigues - 137

Já na periferia – onde os bairros são predominantemente residenciais – a


implantação de comércio e serviços, além de espaços institucionais, culturais e
de lazer, transformariam as regiões em espaços multifuncionais, contribuindo
qualitativamente para a requalificação das regiões populares. Estancando a de-
gradação e dando uma qualidade ao lugar de morar, que seria também de tra-
balhar, de estudar e de lazer.
Os espaços multifuncionais podem contribuir para a requalificação de
regiões servidas por apenas um ou dois tipos de usos, predominantemente,
como por exemplo, no centro de São Paulo, onde diversas áreas são ocupadas
por comércio e serviços. Após o horário comercial estas regiões transformam-
-se em “desertos urbanos”. Sem a presença humana e com a falta de “vida no-
turna”, muitos locais tornam-se inseguros, incentivando a presença de usuários
de drogas e realização de atividades ilícitas. Estas regiões estão frequentemen-
te sujeitas à violência.
Com a inserção de residências nas edificações vagas do centro da cidade, o es-
paço já edificado passaria a ser multifuncional, atendendo o Plano Diretor Estratégico
de São Paulo (2014). Contribuindo para que este espaço da cidade tenha vida no-
turna, fluxo de pessoas em diversos horários do dia e da noite – aspectos que inibi-
riam parte da degradação por meio da presença humana constante.
Claro que as transformações urbanas em larga escala possuem diversos
aspectos que devem ser avaliados. Um dos pontos criticados amplamente está
relacionado com o processo de “gentrificação” dos bairros onde novas obras
são construídas. A gentrificação significa a elitização dos bairros, ou seja, a ex-
pulsão da população residente de uma área urbana, como consequência da va-
lorização imobiliária resultante da transformação urbana167.
Evidentemente devem ser implantadas medidas que impeçam a gentri-
ficação das áreas urbanas – centrais e periféricas – que passarão pelo proces-
so de transformação urbana promovendo espaços multifuncionais. Este tema
deve ser estudado e debatido profundamente, além de serem realizadas análi-
ses individuais dos projetos, assim como os impactos que poderão ocasionar
em cada região.

167
MARTINS, Anamaria de Aragão C. Transformação urbana: projetando novos bairros em
antigas periferias. Brasília: Thesaurus, 2012.

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138 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

Renovação e requalificação de espaços edificados degradados

Além das razões socioculturais e estéticas da mistura do novo com o ve-


lho, existem motivos econômicos para manter edifícios antigos, porque toda
edificação vem de um processo construtivo e da organização que gerou riqueza
e esta deve ser preservada e não simplesmente destruída. A utilização ou reu-
tilização de edifícios históricos trazem uma qualidade ambiental e um grande
significado estético para o repertório da paisagem urbana, com uma importân-
cia vital para o desenvolvimento de projetos de reformulações urbanísticas.168
Em São Paulo, nos distritos da Sé e República, por exemplo, aproxima-
damente 45% do total de área construída têm mais de 50 anos, ou seja, aproxi-
madamente 4.000.000 m² que necessitam de adequações ao mercado, evitando
assim a obsolescência. Estes distritos apresentam as maiores densidades verticais
construídas e, em contrapartida, a vacância dos imóveis é de aproximadamen-
te 20%. Para ser possível a reutilização futura do enorme parque imobiliário
existente no centro de São Paulo e em outras regiões da cidade, é necessária a
renovação dos edifícios degradados, resultantes do envelhecimento, da falta de
modernização e de manutenção169.
“Reabilitação”, “requalificação”, “renovação” ou “retrofit” são os termos
utilizados para definir o conceito conhecido popularmente como “reforma”
das edificações. Embora tenham características diferentes, estas práticas visam
manter o edifício já construído e adequá-lo ao uso. O aumento da consciência
ambiental posiciona estas práticas nos edifícios como uma das questões cen-
trais da agenda ambiental urbana.

168
SANTOS NETO, Adelino Francisco dos. (Re) leituras de Santa Ifigênia: diretrizes de reno-
vação urbana. 2000. 146 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
169
DEVECCHI, Alejandra Maria. Reformar não é construir: a reabilitação de edifícios verticais:
novas formas de morar em São Paulo no século XXl. 2010. 552 f. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2010 e RIGHI, Roberto; MACHADO, Pedro de Assis Sousa. A Requalificação
de Edifícios na Área Central da Cidade de São Paulo. Informativo 38 FAUUSP, Dez. 2002.
Disponível em <http://www.usp.br/fau/antigo/informa/infor38-03.html>. Acesso em: 11
fev. 2012.

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Giselly Barros Rodrigues - 139

É importante salientar que existem diversos pontos que devem ser apri-
morados para que estas práticas sejam, de fato, sustentáveis e vantajosas, como:

I) Soluções de compartimentação espacial que comprometem a


qualidade espacial do produto;
II) Falta de controle sobre as condições das estruturas originais
das edificações;
III) Falta de experiência das empresas construtoras gerando a
inadequação dos métodos de construção civil;
IV) Dificuldade de viabilizar o projeto quanto ao
atendimento da Legislação – Código de obras; e
V) Patologias.

Independentemente dos pontos que ainda necessitam ser aprimorados,


é de extrema importância que estas práticas deslanchem no Brasil, reduzindo
a vacância e o déficit habitacional, aproveitando os imóveis vagos em regiões
bem servidas de infraestrutura, além de promover a mescla de usos e melhorar
a mobilidade urbana.

A contribuição do multifuncional no espaço urbano

Para compreender as cidades é preciso “admitir de imediato, como fenô-


meno fundamental, as combinações ou as misturas de usos, não os usos sepa-
rados”. Deve ser defendida a diversidade de usos, fluxos diferenciados, pessoas
saindo e chegando à casa ou ao trabalho em horários diferentes com objetivos di-
versos, além da alta densidade de pessoas circulando e habitando o espaço. Essas
condições associadas criariam combinações de usos economicamente eficazes170.
As medidas a serem adotadas no planejamento urbano das cidades de-
vem ter dois objetivos centrais: criar um espaço saudável ambientalmente e com
acessibilidade equitativamente distribuída. O caminho para ambos é a reorde-
nação do crescimento urbano, sujeitando-o a novos condicionantes – o que

170
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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140 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

implica diretamente no conflito com direitos e costumes estabelecidos, assim


como com a propriedade privada da terra171.
Os espaços multifuncionais podem contribuir para a redução do caos ur-
bano, pois as pessoas não precisam se deslocar de uma região para a outra, de
modo a exercer suas atividades. Com a velocidade da internet, das notícias e
do dia-a-dia de trânsito com longas distâncias a percorrer – típicos das grandes
cidades como São Paulo – a população vive sob constante estresse. O homem
contemporâneo possui aversão à perda de tempo que pode significar perda de
dinheiro e/ou perda de qualidade de vida172.
Os conceitos referentes à mescla de uso e de renda na cidade de São Paulo
vão de encontro ao que o PDDI (Projeto de Lei n. 688/2013 de 02 de julho de
2014) defende. O PDDI foi reformulado pensando nos desafios que a cidade
deverá enfrentar durante o século XXI. Aqueles que fazem parte da problemá-
tica que está sendo abordada neste capítulo estão citados a seguir173:

1. Reduzir a desigualdade socioterritorial.


2. Conter a expansão horizontal.
3. Reduzir a necessidade de deslocamento, aproximando o emprego da
habitação.
4. Reestruturar a mobilidade urbana estimulando o transporte coletivo,
a bicicleta e os deslocamentos a pé.
5. Gerar trabalho e renda na periferia.
6. Dirigir o adensamento construtivo e populacional para as áreas bem
servidas de infraestrutura de forma planejada e sustentável.

171
VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara de. Mobilidade urbana e cidadania. Rio de Janeiro:
Senac Nacional, 2012.
172
RODRIGUES, Giselly Barros. Retorno das classes A/B à região central de São Paulo por meio
da implantação de quadras multifuncionais. 2012. 142f. Dissertação (Mestrado em Habitação:
Planejamento e Tecnologia) – Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo.
Área de concentração: Planejamento, Gestão e Projeto, São Paulo, 2012.
173
SÃO PAULO (SP). Projeto de Lei n. 688/2013, de 02 de julho de 2014. Aprova a Política de
Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e revoga
a Lei 13.430/2002. Disponível em: <http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/PDE-
Suplemento-DOC/PDE_SUPLEMENTO-DOC.pdf>. Acesso em: 03 maio 2017.

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Giselly Barros Rodrigues - 141

Considerações finais

Como pôde ser observado, os espaços multifuncionais estão sendo reto-


mados atualmente nas grandes cidades brasileiras, mas com características di-
ferentes das iniciais e focados preferencialmente nas regiões compostas pelas
classes sociais mais elevadas. Porém, uma das soluções para a redução do caos
vivido nas grandes cidades vem sendo a mescla de uso no espaço urbano, não
apenas nas regiões nobres e centrais. Ao que tudo indica, é imprescindível a
utilização de espaços multifuncionais – eventualmente com adaptações – tam-
bém nas regiões periféricas das cidades, uma vez que a população residente nes-
tas áreas, de fato, é a que mais sofre com os grandes deslocamentos necessários
para chegar ao trabalho ou às áreas de lazer.
É indispensável que os arquitetos e urbanistas pensem e projetem espaços
multifuncionais em todas as regiões, incluindo a periferia e os empreendimen-
tos de interesse social. Além do aumento na qualidade de vida da população,
a mescla gera emprego, aumento na economia local, implantação de áreas de
lazer e entretenimento para as regiões. Com isto, caminha-se em direção a ou-
tro conceito precioso que é o da sustentabilidade, evitando-se a degradação em
curto prazo, que normalmente caracteriza os empreendimentos populares174.
Durante o processo de desenvolvimento urbano, as cidades de diversas
partes do mundo têm implantado espaços multifuncionais, mesclando não só
os usos residenciais, comerciais e de serviços, como também de entretenimen-
to, lazer, espaços cívicos e culturais, em uma área restrita175.
Atualmente vem sendo discutida a retomada dos empreendimentos mul-
tifuncionais como alternativa de renovação das áreas centrais nas grandes metró-
poles. As mudanças de paradigmas, provocadas pela tecnologia da informação
e da comunicação no mundo contemporâneo, têm confirmado o conceito de

174
RODRIGUES, Giselly Barros. Retorno das classes A/B à região central de São Paulo por meio
da implantação de quadras multifuncionais. 2012. 142f. Dissertação (Mestrado em Habitação:
Planejamento e Tecnologia) – Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo.
Área de concentração: Planejamento, Gestão e Projeto, São Paulo, 2012.
175
ROSSI, Oriode José. Espaços multiuso: o projeto de arquitetura do espaço Brooklin – da
concepção à implantação. São Paulo: Dupla Editora, 2011.

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142 - Capítulo VI – Os empreendimentos multifuncionais no espaço urbano das grandes cidades

proximidade entre as funções, otimizando e, eventualmente, renovando as áre-


as urbanas bem servidas de infraestrutura urbana, porém, degradadas176.
Os espaços multifuncionais também devem ser implantados em regiões
já edificadas, como visto anteriormente, visando à requalificação das áreas de-
gradadas. Porém, esta prática ainda não deslanchou no Brasil, como ocorre nos
países da Europa e nos Estados Unidos. Em relação a esta prática é necessária
uma especialização generalizada, tanto de mão-de-obra, quanto de processos
e equipamentos necessários para atender a grande demanda existente nas ci-
dades brasileiras, assim como há necessidade de uma legislação específica para
este tipo de prática, facilitando o processo legal quanto à aprovação dos proje-
tos e obras nos órgãos competentes.
Em relação à prática e cultura da construção de espaços multifuncionais,
cabe às três esferas do Poder Público criar medidas e destinar recursos, estimu-
lando construções com este perfil.
Finalmente, é imperioso considerar que a implantação de multifuncionais
no espaço urbano deve ser vista apenas como uma das soluções para os graves
problemas de mobilidade, urbanos e sociais das cidades. A natureza estrutural e
de longo prazo destes problemas continuam a demandar de agentes públicos e
privados planejamento, racionalidade e ações condizentes visando sua solução.

176
ANTONUCCI, Denise et. al. Verticalização, habitação social e multifuncionalidade.
Edifícios dos IAPS em São Paulo. II Fórum de pesquisa FAU Mackenzie I, São Paulo, 2007 e
NARDELLI, Eduardo Sampaio et. al. Arquitetura multifuncional paulistana: forma, técnica e
integração urbana. In: III Seminário Docomo Estado de São Paulo. Permanência e transitorieda-
de do movimento modernista paulista. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2005.

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Catharina Teixeira - 143

CAPÍTULO VII
A RELAÇÃO DO EDIFÍCIO HABITACIONAL COM A CIDADE –
UMA ANÁLISE DA HERANÇA BRASILEIRA
Catharina Teixeira

A arquitetura da grande cidade depende essencialmente da solução dada


a dois fatores: a célula elementar e o conjunto do organismo urbano. O
simples espaço vazio como elemento constitutivo da habitação determi-
nar-lhe-á o aspecto, e na medida em que as habitações formam, por sua
vez, os quarteirões, o espaço vazio tornar-se-á um fator de configuração
urbana, aquilo que representa a verdadeira finalidade da arquitetura;
reciprocamente, a estrutura planimétrica da cidade terá uma influência
substancial no projeto da habitação e do espaço vazio.177

O processo de urbanização e a relação campo-cidade

A urbanização resulta fundamentalmente da transferência de pessoas do


meio rural (campo) para o meio urbano (cidade). Assim, a ideia de urbanização
está intimamente associada à concentração de um grande número de pessoas em
um espaço restrito e à substituição das atividades primárias (agropecuária) por
atividades secundárias (indústrias) e terciárias (serviços). Desta forma, as cida-
des vão se constituindo a partir da transformação de territórios rurais em área
urbanas, atendendo a forças sociais e econômicas de cada local, em um proces-
so de ocupação que configura e distingue as áreas centrais das periféricas, for-
malizando espaços com usos necessários ao modo de vida humano.
Seja de forma espontânea ou planejada, as cidades se formam concretizan-
do tipos de ocupação territorial, promovendo composições espaciais de cheios e
vazios, que por sua vez delimitam locais de uso público e de uso privativo e zo-
nas de transição entre os mesmos. Nesta composição todos se beneficiam, ora a
cidade como sujeito, definindo as regras da ocupação dos edifícios, sua forma e
volumetria e, em outros momentos, as edificações é que delimitam o espaço pú-
blico. No entanto, desde a cidade industrial, o papel da habitação na ocupação
e parcelamento do solo tem sido preponderante, sobre os outros usos urbanos.

177
TAFURI, Manfredo. Projeto e utopia. Lisboa: Presença, 1985.

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144 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

O processo de urbanização moderno teve início no século XVIII, em con-


sequência da Revolução Industrial desencadeada primeiramente na Europa; tendo
por base a mudança para o modo de produção capitalista. A cidade pré-industrial,
caracterizada pela simplicidade das estruturas urbanas, com economia artesanal
organizada em base familiar, sofre o impacto da industrialização e é pressionada
pela concentração demográfica para uma nova ordem social e territorial de expan-
são urbana. Neste período, as cidades são o espelho da diferença social e da luta de
classes, promovendo o caos nos aglomerados despreparados para absorverem a mi-
gração de mão de obra do campo. Existe estreita correlação entre os processos de
urbanização, industrialização e crescimento demográfico e muitos dos principais
tipos habitacionais surgem nesta época, para atender esta demanda populacional.
Uma particularidade deste período está na divisão entre o “trabalho” e a
“moradia”, que influenciou na ocupação territorial e na configuração da unidade
habitacional. Esta separação, uma vez que antes se acomodavam duas ativida-
des sob o mesmo teto, sofre uma ruptura com a nova realidade, com desdobra-
mentos para além da unidade habitacional, e será o foco do desenvolvimento
das teorias urbanísticas do século XIX em diante.
Neste período, ao mesmo tempo em que ocorre esta divisão entre o tra-
balho e a moradia, a unidade habitacional unifamiliar, individual, passa a não
atender mais a demanda humana que se desloca do campo para as cidades. A ha-
bitação, então, adquire novo caráter: de unifamiliar passa a ser coletiva ou mul-
tifamiliar e, por conta do seu contingente, alcança uma escala urbana e social.
Segundo Steiner178 vários tipos de edificações buscaram abrigar a de-
manda de trabalhadores, solucionando, de formas diversas, a necessidade de se
construir para o coletivo.

A evolução dos agrupamentos e as tipologias habitacionais


internacionais e seu reflexo no cenário brasileiro

O impacto do adensamento populacional sobre as cidades no final do sécu-


lo XIX provocou uma mobilização dos segmentos sociais, gerando uma nova onda
de interesses e soluções sobre as condições impostas pela realidade da cidade indus-
trial. É principalmente a classe dominante que se organiza diante deste fenômeno,

178
STEINER, et al. Viviendas en bloques aislados. México: Gustavo Gili, 1992. 182 p.

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Catharina Teixeira - 145

mostrando interesse no capital produtivo e na propriedade imobiliária, construin-


do as primeiras habitações coletivas com interesses voltados à locação. Eram edifi-
cações erguidas no alinhamento dos lotes e ocupavam a quadra, tendo em algumas
situações somente pequenos pátios internos para iluminação e ventilação.
A Europa, nesta epóca, estava sob a influência do Plano de Haussmann
em Paris (1852-1869), e da reforma de Idelfonso Cerdà (1859-1864) na cidade
de Barcelona. Ambas as propostas com intervenções radicais, de lógica racional
e geométrica, sobre o tecido urbano da cidade antiga. Propostas que vinham de
encontro às aspirações da classe burguesa em ascensão. A edificação habitacional
resultante, delimitada a partir do traçado viário e da quadra, espelhava nas edifi-
cações a estratificação social, a exemplo da tipologia adotada em Paris, que abri-
gava, no piso térreo, área para o comércio, no primeiro pavimento, o senhorio,
no segundo, os artistas e profissionais empregados, no terceiro, os trabalhado-
res da indústria e, no último, imigrantes e pessoas sem domicílio e ocupação179.
Em Barcelona, Cerdà previu uma quadra criada a partir de uma malha
ortogonal de 113 x 113m e vias com 20m de largura, ocupadas em seu perí-
metro em dois ou no máximo três lados. Os edifícios não ultrapassariam mais
do que dois terços da superfície do quarteirão e os espaços internos resultan-
tes se abririam para a cidade, oferecendo equipamentos públicos e áreas ar-
borizadas. Do desejo original de Cerdà permaneceu apenas o traçado viário;
as quadras foram maciçamente ocupadas no perímetro junto ao alinhamen-
to da calçada, retomando um caráter que a reaproximou da quadra da cidade
antiga180, com o miolo destinado ao uso privativo das unidades habitacionais
do térreo – proposta de ocupação resultante de uma intervenção que parte
de fora para dentro da quadra, o inverso do que acontecia na cidade medie-
val. Originalmente, as quadras foram concebidas em média com 67.000m2
de área construída. Atualmente, após 150 anos de adensamento progressivo,
temos em média 295.000m2 de área construída por quadra.

[...] O importante é enfatizar que neste momento a quadra passa


de uma condição de residual para se tornar suporte de uma com-

STEINER, Op. cit.


179

FIGUEROA, Mario. Habitação coletiva e a evolução da quadra. Vitruvius/Arquitextos –


180

069. 11 ano. 06 fev. 2006.

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146 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

posição urbana que a tem como espaço da cidade. Dá-se um passo


adiante da relação edifício-rua como definidor da quadra, ou seja,
o perímetro da quadra deixa de ser o limite do espaço público.181

O edifício em lâmina, ou alinhado, foi a forma mais utilizada para este


tipo de agrupamento urbano. O uso desta tipologia de alta densidade foi
adotado em grande parte das cidades europeias e americanas no século XIX.
Nos EUA, ficou conhecida como Dumbbell182 apartments- ou Tenements
(cortiços) nos anos de 1860 (Figuras 01e 02) e seguia a configuração do edi-
fício em linha de 5 ou 6 pavimentos, fechando a quadra com pequenas áre-
as para ventilação e iluminação na forma de um haltere, promovendo uma
clara distinção entre o espaço público da rua e o espaço privado do edifício.

Figura 1 – Morfologia da quadra composta pela tipologia “Dumbell” ou


“Tenement “em Chinatown, Manhattan, Nova York.
Figura 2 – Vista das Edificações.
Fonte: Fotografia: Nicksarebi. Imagem de domínio público by Creative Commons
CC 2.0 Universal Public Domain Dedication

Eram poucos os parâmetros de salubridade destas construções e, paula-


tinamente, vai surgindo a necessidade de regulamentação dos processos cons-
trutivos. Criam-se, principalmente em Paris e Viena, regulamentações que
181
FIGUEROA, Op. cit.
182
A tradução de Dumbbell é haltere. Uma barra com um peso de cada lado. Nome dado
devido a forma da tipologia.

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Catharina Teixeira - 147

organizam a forma como os edifícios habitacionais deveriam ocupar os lotes.


Começam a ser exigido padrões construtivos específicos no que se refere à re-
lação dos edifícios com as calçadas e na criação de vazios nos miolos de qua-
dra, permitindo iluminação e ventilação, por meio do trabalho com cheios e
vazios, assim como regras na configuração interna das unidades habitacionais
e no atendimento a aspectos de salubridade.
A experiência da quadra formada a partir da composição entre o edifício
habitacional e o sistema viário avança no final do século XIX e no início do XX.
Outras cidades desenvolvem experiências extremamente significativas desta tipo-
logia urbana e edilícia, como Amsterdã, Viena e Praga (Figura 03). Em Amsterdã,
Berlage propôs, para a expansão da Região Sul (1917), quadras (de 50 x 200m) com
blocos residenciais de 5 pavimentos, que reforçam o sistema viário e contribuem
como elementos de ordenação dos edifícios perante uma nova hierarquia de vias e
de espaços urbanos. Inicialmente, nos exemplos de Paris e Barcelona, na proposta
perimetral, os miolos de quadra eram destinados ao uso privativo das unidades re-
sidenciais térreas. Nesta proposta de Berlage, a quadra se modifica e garante que os
pátios internos tenham um caráter semipúblico, sendo destinados ao uso comum
da vizinhança. Esta evolução permite três escalas de uso: a primeira, de uso públi-
co, formada pela circulação da cidade de automóveis e pedestres; a segunda, de uso
semipúblico, no centro da quadra; e, por fim, a escala privativa, interna à habitação.

Figura 3 – Ruas do centro da cidade de Praga, mostrando a tipologia habitacional


resultante do traçado viário aplicada em diversas cidades da Europa a partir das
experiências de Hausmann, Cerdà e Berlage Fonte: Arquivo da autora

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148 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

A produção arquitetônica e do urbanismo brasileiros, na segunda metade


do século XIX caminhou também no sentido de atender o crescimento acele-
rado das principais cidades. De 1872 a 1875, especificamente a cidade de São
Paulo sofreu o segundo ciclo de urbanização com o incremento da economia
cafeeira, a chegada da ferrovia e dos imigrantes. Em 1900 a cidade concentra-
va 240.000 habitantes na área urbana.

[...] é nesse período de 1886 a 1900 que São Paulo explode,


desencadeando-se sua primeira crise habitacional, [...] entre 1890
e 1893, acentuou-se o incremento demográfico, chegando a 28%
(ou seja, mais de 20 mil habitantes) por ano.183

O adensamento populacional, sem saneamento básico, levou as capitais


brasileiras a problemas de saúde pública, fazendo com que o Poder Público
se manifestasse com ações normativas e restritivas de uso e ocupação do solo,
a exemplo do que aconteceu na Europa. O primeiro Código de Posturas
Municipal de São Paulo, datado de 1886, estabeleceu critérios para as edifica-
ções visando garantir as condições mínimas de salubridade. Ficaram delimi-
tados, para as habitações populares, um gabarito e um afastamento mínimo,
além da proibição de casas que servissem de moradia para mais de uma família.
Dois tipos habitacionais foram bastante utilizados no início do século XX:
o cortiço e a vila operária184. A vila era formada por casas geminadas de pequeno
porte, construídas geralmente em lotes compridos e empreendidas pela iniciati-
va privada para fins de renda. Este tipo de construção se apresentava, no período,
como a única solução disponível para o atendimento da demanda habitacional
de baixa renda. Tanto os cortiços quanto as vilas operárias dispunham da mesma
implantação, configuradas por um corredor central com as unidades habitacionais
geminadas nas duas laterais, sendo as unidades de início do corredor com fren-
te para a rua pública para o uso comercial185. O que diferenciava a habitação do
cortiço da casa de vila era o tamanho das unidades habitacionais e o fato de ter
ou não o equipamento sanitário dentro da unidade. Nos cortiços, o banheiro e o

183
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, São Paulo. São Paulo: Estação
Liberdade, 1998, apud ROLNIK, 1981.
184
Ibid.
185
Ibid.

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Catharina Teixeira - 149

tanque eram equipamentos comunitários que se localizavam na área comum do


pátio – local de concentração das atividades domésticas e onde se intensificava a
vida comunitária. A área privativa se limitava à área de dormir, ao estar e à cozi-
nha. Nas vilas, os espaços privativos das unidades habitacionais se definiam pela
divisão dos lotes, sendo um espaço coletivo a rua ou o corredor central.
A primeira intervenção urbanística na cidade de São Paulo aconteceu em 1910,
quando Bouvard, arquiteto francês convidado por Victor Freire, propõe um plano
de melhoramentos para o centro da cidade nos locais de maior densidade. O centro,
nesta época, era constituído por edificações alinhadas às ruas, com os fundos de lotes
como vazios ou “quintais”. Estas construções se estabeleciam ao longo dos caminhos
urbanos, demarcando o espaço público. Os parâmetros colocados pelo arquiteto se
baseavam no urbanismo europeu e reproduziram o quarteirão edificado e fechado.
No entanto, para algumas regiões da cidade ele propôs outro tipo de ocupação no
lote, designando um recuo frontal com gradil, criando uma área de uso privativo de
caráter transitório entre o uso público da rua e o privativo da edificação.

Figura 4 – Esquema para uma seção da Cidade Jardim: O esquema mostra a distribuição
básica dos espaços e atividades dentro da Cidade Jardim. Desde o Centro, composto por
um parque rodeado pelas edificações públicas, passando por outro parque central, maior,
rodeado pelo Palácio de Cristal, seguindo pelas áreas residenciais até chegar à área das
indústrias, localizada na periferia, junto à linha férrea.
Fonte: Montagem da autora a partir da imagem publicada no texto Garden Cities of
Tomorrow (1902), de Ebenezer Howard

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150 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

Na Inglaterra, outro pensamento entrou na discussão sobre as cidades


nas primeiras décadas do século XX. A proposta, desenvolvida por E. Howard
e Raimund Unwin, conhecida como City Garden (Cidades Jardim) (Figura
04), influenciou outras concepções urbanísticas na mesma linha no pós-guerra
como as New towns ou Ville Nouvelles (Cidades Novas) e também as Siedlungen
(Assentamentos). O movimento City Garden recomenda outro tipo de ocu-
pação baseado no baixo adensamento das cidades, que se contrapõe às teorias
de embelezamento e propõe o abandono da vida urbana preconizando a vol-
ta à natureza. Tinha como foco principal os assentamentos residenciais novos,
próximos aos grandes centros, onde fosse possível reconquistar a qualidade de
vida perdida nas cidades devido aos malefícios da aglomeração urbana. Foram
propostos assentamentos de baixa densidade, com casas isoladas e com grande
apelo às questões de preservação de áreas verdes e criação de parques naturais.
A primeira City Garden, Letchworth, foi projetada em 1903, com tra-
çado simples, contendo um centro urbano com edifícios municipais, próximo
à estação. Essa cidade foi dividida em regiões de 5.000 habitantes com infra-
estrutura própria. O projeto proposto pelos arquitetos Unwin e Parker segue
também o pensamento de Camillo Sitte, com traçado orgânico adequado à es-
cala humana e habitações para as diversas classes sociais em blocos isolados en-
tre si, recuados do alinhamento do terreno, com jardins fronteiriços; as ruas
possuem acesso secundário a um “cul de sac” e a circulação de pedestres con-
templa passeios com gramas, arbustos e árvores que dão continuidade ao ver-
de dos espaços públicos.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, no período entre guerras, a gera-
ção de arquitetos e pensadores que ficou conhecida como a geração dos anos 20,
apresenta uma outra forma de atender as demandas econômicas, sociais e políti-
cas da época. Imbuídos do espírito da sociedade moderna e da social democracia
europeia, pretendiam um novo tempo capaz de suprir as deficiências deixadas
pela destruição. Estes anos foram marcados por uma grande ebulição cultural e
política em que a discussão do morar teve sua vez com a produção de projetos ha-
bitacionais excepcionais que demonstraram a origem do pensamento moderno.
Imbuídos do espírito da social democracia europeia, que tinha como pro-
posta política a produção do bem-estar social através de ações do estado, a políti-
ca habitacional proposta pela municipalidade da cidade austríaca de Viena, por

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Catharina Teixeira - 151

exemplo, tinha como pano de fundo um plano de governo comprometido com


esta ação. Este período ficou conhecido como “Viena Vermelha” e colocou em
prática um plano de produção municipal de habitações proletárias, executadas nos
centros urbanos, ocupando os vazios pré-existentes. A forma de inserção urbana
ficou conhecida pela utilização da construção perimetral da quadra, associada a
espaços de caráter semipúblico internos de grandes dimensões com equipamen-
tos de uso comum, como creches e centros comunitários (Figuras 05 e 06).

Figura 5 e 6 – Karl Marx Hoof. Fotos da entrada e foto do espaço semipúblico interno.
Fonte: Arquivo da autora

Esta tipologia ficou conhecida como “Half-open”. O höfe de maior im-


pacto feito em Viena é o Karl-Marx Höfe, que contempla quatro tipos de uni-
dades. Implantado em um vazio urbano de 15 hectares, os blocos residenciais
ocupam apenas 18% do solo, com 1382 unidades de habitação e aproximada-
mente 5000 habitantes, compreendendo ainda área para centro juvenil, biblio-
teca, consultório médico, farmácia, lavanderia, creche e lojas.
Com outro viés, a Alemanha buscou a solução para o adensamento hu-
mano das cidades modernas, lançando base para novos assentamentos com a
ocupação da periferia. Estes novos locais possuíam geralmente uma pequena
área comercial e, em alguns casos, uma área verde comum para plantio de hor-
tas comunitárias. Este urbanismo com foco na produção habitacional ficou

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152 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

conhecido como Siedlungen (Assentamentos) (Figura 07) e se mostrou como


um laboratório para a proposição de diversos tipos habitacionais e diversas im-
plantações. Esses novos bairros se apresentavam como proposta para a solução
da deficiência de infraestrutura dos centros urbanos. No entanto, as Siedlungen
foram as percursoras do parcelamento de áreas rurais que se transformaram em
áreas urbanas e contribuíram para a expansão periférica e territorial das cida-
des. Estes projetos buscavam novos padrões de morar, mas continham, como
pano de fundo, as propostas das City Gardens de Howard.

Figura 7 – Implantação da Siedlungen de Rommerstadt Frankfurt – 1927-28. Projeto de


Ernst May.
Fonte: Google maps

[...] as diferentes soluções formais e as articuladas definições ti-


pológicas que caracterizam as Siedlungen seguem sendo modelos
insuperáveis da arquitetura radical e certamente se recordam como
uma das mais importantes conquistas da política urbanística al-
cançada pelas organizações sócio democráticas.186

STEINER, et al. Viviendas en bloques aislados. México: Gustavo Gili, 1992. p.12, apud
186

TAUT,1880-1938.

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Catharina Teixeira - 153

A deficiência de moradia e de estrutura urbana dos centros urbanos an-


tigos provocaram uma eclosão das propostas das Siedlungens no período, o que
colaborou para a consolidação do modo moderno de morar e de ocupar novos
territórios. Nesta ocasião, foram construídos trinta e três novos assentamentos
com diferentes tipologias construtivas, entre elas os blocos de apartamentos, as
casas unifamiliares isoladas e as casas em fita ou alinhadas, que experimentaram
um novo vínculo entre o edifício e a natureza, entre o edifício e os espaços públi-
cos e privados. Este cenário frutífero teve na Alemanha a base de apoio a partir
das exposições internacionais de Stuttgart, em 1927, e depois da segunda guerra,
a exposição de 1957 em Berlim187. Na exposição de 1927, organizada por Mies
van der Rohe, foram convocados importantes arquitetos como Walter Gropius,
Jacobus Johannes Pieter Oud (J.J.P.Oud), Le Corbusier e Max Taut, entre ou-
tros, para a construção de um bairro novo, denominado Weissenhofsiedlung,
como uma demonstração expressa da coerência do funcionalismo e do raciona-
lismo internacionais, propagando um novo conceito de habitar, cuja extensão se
dava desde o interior da unidade habitacional, passando pelas relações entre o edi-
fício e a cidade e, ainda, com o emprego de materiais e sistemas construtivos in-
dustrializados. No catálogo da exposição, aparecia a frase de Mies Van der Rohe:

A racionalização e a normalização são só meios, nunca podem ser


o objetivo. O problema da nova vivenda é fundamentalmente um
problema espiritual e a luta pela nova vivenda é só uma escaramuça
mais da grande luta pelas novas formas de vida.188

Nesta exposição, foram fomentadas várias soluções para a habitação em


larga escala, constituindo um momento de reflexão sobre a racionalização e so-
bre o dimensionamento da unidade familiar, assim como sobre a inovação de
aspectos tecnológicos construtivos, como o uso do ferro e do concreto, que fa-
cilitou o desenvolvimento da produção em larga escala.

187
CABRAL, Claudia Piantá Costa . Do Wissenhofsiedlung ao Hanservierten – Arquitetura
Moderna e a cidade pensadas desde a Habitação. Vitruvius-Resenhasonline – 117.02, ano
10, set. 2011.
188
Mies Van der Rohe. Catálogo da Exposição de 1927.

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154 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

A exposição de Stuttgart forneceu ainda material de pesquisa para o II


CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), em 1929, quan-
do Ernest May investiga a célula habitacional mínima, influenciada pela visão
marxista que se espalhava pelo leste europeu. A experiência dos anos vinte no
âmbito da habitação coletiva representa um dos grandes momentos da tradição
centro-europeia de investimento público na moradia social, através da qual se
funda uma nova prática de pensar a cidade e a habitação189.
No turbilhão de necessidades do período entre guerras, o processo de
busca de soluções para a questão habitacional se acelera e também os esforços
no sentido de promover uma construção racional e industrializada. A ideia do
modulor e da “unité d´habitation” desenvolvidas por Le Corbusier exemplificam
a necessidade de simplificação através da racionalização do projeto e da cons-
trução. É a manifestação do pensamento difundido por Mies Van der Röhe:
menos é mais, aplicado no edifício de apartamentos na exposição de Stuttgart e
também divulgado por Walter Gropius posteriormente em Berlim (Figura 08).

Figura 8 – Edifício Habitacional, Walter Gropius, Hansaviertel Housing, Berlin 1957.


Fonte: Fotografia de SEIER + SEIER. Creative Commons CC 2.0 Universal Public Domain
Dedication

189
STEINER, et al. Viviendas en bloques aislados. México: Gustavo Gili, 1992. 182 p.

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Catharina Teixeira - 155

Segundo Steiner (1992), este pensamento conduziu a uma série de in-


vestigações e ao estabelecimento de normativas visando à racionalização dos
espaços domésticos por meio do uso de equipamentos voltados à habitação.
Foi estabelecido que todos os dormitórios deveriam receber o sol da manhã e
a sala, o sol da tarde; que a família tivesse separado os dormitórios do casal e
dos filhos; que todas as habitações deveriam possuir uma cozinha, integrada
ou não à sala, e um banheiro. A unidade média com três cômodos deveria ter
um espaço em torno de 44m2, para famílias com até 3 filhos.
Difundindo o espírito moderno, em 1924 Le Courbisier apresenta a Ville
Radieuse, ou Cidade Contemporânea, onde propõe diferentes tipologias habi-
tacionais, orientadas pelo percurso do sol com uma ocupação rarefeita e geomé-
trica do território com vastos espaços verdes de uso público, propondo uma área
residencial central de alta densidade e outras no entorno com menores índices.
Com efeito, os eventos que se sucederam nos anos vinte no panorama da
habitação e das cidades, potencializados pela feira de Stuttgart e pelo CIAM, re-
fletiram internacionalmente em uma nova forma do morar e da cidade.
No Brasil, os reflexos chegam para colaborar com a discussão habitacio-
nal em 1931, com o Primeiro Congresso de Habitação Brasileiro, que reuniu
o meio técnico para discutir as necessidades de barateamento da construção e
a tese apresentada por Ernest May, trazida pelos profissionais que haviam par-
ticipado dos dois eventos.
O Movimento Moderno e o pensamento racionalista, com a ideia da má-
quina de morar, permeavam todas as iniciativas do período pós-guerra no Brasil
e no exterior. Os usos de módulos mínimos, de sistemas construtivos com no-
vas técnicas, colocavam-se de acordo com as necessidades da época.
Derivou do ideário moderno o pensamento standard para a produção
habitacional, que teve início com os russos durante os anos que se seguiram
à Revolução de 1917, como forma de enfrentar a questão da moradia com o
foco na quantidade e na produção em escala. Esta tônica, que preza a quanti-
dade, a racionalização e a industrialização dos processos, simplificou o ideário
moderno. Posteriormente, a União Soviética levou ao extremo a racionaliza-
ção, associada aos agrupamentos verticais. O reflexo destas propostas no traçado
urbano soviético é evidente, e a relação dos edifícios com a cidade faz lembrar
uma linha de montagem.

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156 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

O ideário moderno da unidade habitacional e a forma de agrupá-las em


edifícios que irão se relacionar com a cidade significaram uma ruptura com a qua-
dra anterior, promovendo nova relação entre os espaços públicos e os privados190.

Com isto, ocorre uma mudança dos padrões anteriormente es-


tabelecidos, onde o quarteirão fechado prevalecia, em defesa dos
modelos ditados pelo Movimento Moderno, em que os arranjos
espaciais mais livres, com edificações soltas nos terrenos geram
mais espaços com áreas verdes para a cidade.191

Mas é a proposta de Le Corbusier que irá romper com a forma anterior


de organizar o edifício no lote. Ele ofereceu uma nova visão do bloco linear,
que ganha o pilotis192, liberando o edifício do chão e promovendo fluidez dos
espaços. Nesta implantação, os edifícios são envolvidos por grandes áreas ver-
des, rompendo-se as fronteiras que separavam os espaços públicos dos priva-
dos e criando-se a noção de que não se habita apenas a casa e sim um conjunto
de equipamentos e de serviços coletivos. A arquitetura e o urbanismo tornam-
-se indissociáveis.

Habitação e cidade moderna, dois termos de uma equação comum


que historicamente interpretou o morar associado a vida urbana.
Para ficarmos num exemplo, lembramos o conceito de unidade de
vizinhança (mesmo que não tenha sido formulado no núcleo do
Movimento Moderno, mas por ele adotado sob muitas formas), ou
seja, a cidade, e o empreendimento habitacional enquanto um fato
urbano e dependendo da escala (uma porção urbana com comple-
xidade social) devem oferecer uma série de equipamentos sociais,
de educação, convívio e lazer, além de outros serviços, que animam
e dão suporte à vida dos indivíduos193

190
FIGUEROA, Mario. Habitação coletiva e a evolução da quadra. Vitruvius/Arquitextos –
069. 11 ano. 06 fev. 2006.
191
ESKINAZI, Mara Oliveira- A Interbau e a Requalificação Moderna do Oitocentista
Hansaviertel em Berlim – 1957. Anais do 7º Docomomo. Porto Alegre, 2007.
192
Tipologia que possui o térreo sem construção somente com os pilares estruturais.
193
MIGUEL et al. Construir Cidade ou Construir Habitação: Programa Minha Casa Minha
Vida no Município de São Carlos. Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono.

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Catharina Teixeira - 157

Após a Segunda Grande Guerra, em 1957, a Alemanha promoveu uma


nova Exposição Internacional de Construção, a Interbau, em Berlin. A exposi-
ção, que trouxe para a paisagem do parque Tiergarten, bairro de Hansarviertel,
projetos de edifícios residenciais que expressavam valores políticos como a li-
berdade e o pluralismo, utilizou-se do lema conhecido como “a cidade do ama-
nhã” (die Stadt von Morgen) entre suas premissas básicas para a criação de
uma área habitacional modelo do Movimento Moderno. Outro ensaio de ca-
ráter realista, tanto quanto o da primeira exposição de 1927; desta vez, o bair-
ro de Hansarviertel abrigou grandes nomes da arquitetura internacional com
propostas de ocupação com todo tipo de alternativa construtiva e tipológica.
Nesta amostra, Oscar Niemeyer apresentou uma solução de edifício com pilo-
tis e espaços coletivos no quinto pavimento e na cobertura. Os edifícios deste
assentamento não possuíam ligação entre si; porém, formaram uma amostra
significativa de possibilidades construtivas voltadas para a habitação em massa.
O período pós-segunda guerra se caracterizou pela questão emergencial
em relação à questão habitacional. Há ao mesmo tempo uma expansão dos
centros antigos e sua reconstrução. Uma nova onda da discussão sobre a rela-
ção cidade-campo toma conta das propostas de descongestão urbana à maneira
das Siedlungen. Na Inglaterra, as New Towns, passaram a investir na constru-
ção dos novos bairros ou subúrbios, formando um grande laboratório para a
proposição de novas tipologias.
Na França, as intervenções do pós-guerra, na mesma linha de descon-
gestão, ficaram conhecidas como “Grands Ensembles” cujo principal foco foi a
busca de solução para as questões que dizem respeito à cidade, como: locomo-
ção, trabalho e serviços. As cinco “Villes Nouvelles”, como ficaram conhecidas,
se localizam na periferia de Paris, possuem como atividade econômica o setor
primário e o terciário e integram as áreas residenciais.
No Brasil, a influência internacional foi em grande parte responsável pela
aplicação do ideário modernista em escala de produção. Nada parecia tão mo-
derno quanto a construção de grandes conjuntos habitacionais ou a construção
dos bairros novos com equipamentos sociais. Há um adensamento dos centros
urbanos nos anos que se seguem e, pouco a pouco, se altera a relação populacio-

2º CHEL-LINEC, Lisboa, 2013.

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158 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

nal entre o campo e a cidade – inclusive no Brasil, onde a classe operária urbana
saiu do ambiente rural para viver nas cidades em um período de somente 50 anos.

[...] entre 1940 e 1980, dá-se verdadeira inversão quanto ao lugar


de residência da população brasileira. Há mais de meio século atrás
(1940) a taxa de urbanização era de 26,35%, em 1980 alcança
68,86%. Nesses quarenta nos, triplica a população total do Brasil, ao
passo que a população urbana se multiplica por sete vezes e meia.194

A questão habitacional, por conta da grande demanda, tornou-se uma


questão de dimensões urbanas e de importância política, estando ligada à pre-
sença do Estado. Assim, nos anos 1940, a produção habitacional brasileira pas-
sou para as mãos dos Institutos de Aposentadoria – IAPs e para a Fundação da
Casa Popular, cuja equipe técnica defendia conceitos como edificação de con-
juntos habitacionais isolados do traçado urbano existente, construção de blocos
com limitação da altura, uso de pilotis, adoção de apartamentos duplex, proces-
sos de construção racionalizados, edificação de conjuntos autônomos e articula-
ção dos conjuntos habitacionais com planos urbanísticos.
A produção dos Institutos de Aposentaria e Pensão – IAPs seguia a visão
de que habitação não se resumia somente à moradia e sempre previa a criação,
junto às edificações, de equipamentos como escolas, creches e serviços de assis-
tência médica. Os arquitetos que trabalhavam nos institutos criticavam a solução
da habitação unifamiliar ou da casa isolada no lote, sendo esta aplicável somente
nas cidades menores com o custo do terreno condizente. Para estes técnicos, nas
cidades populosas a solução de casas isoladas levaria à expansão horizontal, pro-
vocando investimentos maiores em infraestrutura.
Em seu livro Origens da Habitação Social no Brasil, Nabil Bonduki mos-
tra claramente a relação entre os conjuntos produzidos por estes institutos
e a influência dos movimentos internacionais e relaciona, por exemplo, um
dos principais conjuntos produzidos na época no Rio de Janeiro, o Conjunto
Residencial do Realengo, com 2.344 unidades, entre casas e apartamentos, lo-

194
BARREITOS, M. F. e ABIKO, A. K. Reflexões sobre o parcelamento do solo urbano. São
Paulo: USP-Poli, 1998. 27 p. (Boletim Técnico da Escola Politécnica – Depto de Engenharia
de Construção Civil).

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Catharina Teixeira - 159

calizado próximo à linha ferroviária, como as Sidlungen, com tipologias dife-


renciadas. Além do Realengo, o Conjunto Residencial Vila Guiomar, em Santo
André, abriga diferentes tipologias em uma única implantação: casas isoladas,
casas geminadas e blocos em lâmina (Figuras 9, 10 e 11), constituindo-se em
novo urbanismo de expansão da cidade.

Figuras 9, 10, 11 – Siedlung Vila Guiomar – Vista geral urbanística/ Vista dos blocos de
apartamentos/ Vista da tipologia de casas isoladas Santo André.
Fonte: Google Earth

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160 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

Do ponto de vista da tipologia habitacional, foi o bloco linear a grande


referência moderna brasileira. Baseados nos blocos executados por Mies Van
der Röhe e Gropius, com 4 ou 5 pavimentos e um corpo de escada para cada
2 unidades, podemos observar esta influência em vários empreendimentos do
IAPs, como no Conjunto Residencial da Mooca e no próprio Vila Guiomar.
O conjunto de Pedregulho, no Rio de Janeiro, e o Edifício Japurá, no
bairro do Bexiga, em São Paulo, são inspirados na unite d’habitation de Le
Corbusier. Outros edifícios são produzidos com a mesma intenção, mas pela
iniciativa privada, como o Copan (Figura 12), o JK e o Nações Unidas.

Figura 12 – Vista Geral Edifício Copan. Centro de São Paulo. Projeto Arq.
Oscar Neymeier.
Fonte: Fotografia de Mark Hillary – Creative Commons CC 2.0 Universal
Public Domain Dedication

No Brasil, o diferencial urbano propiciado pela herança do movimento


moderno teve em Brasília seu principal representante, constituindo-se em um

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Catharina Teixeira - 161

repertório edilício e de implantação que influenciou o território brasileiro como


um todo. O conceito de unidades de vizinhança, pensados como módulo de
adensamento urbano para fins de parcelamento do solo, atendidos por unidades
habitacionais, comerciais e de serviços, a setorização da cidade em atividades do
viver, o uso do pilots, o bloco em lâmina e outros tantos elementos do repertório
moderno, estão aplicados ali de forma integral (Figura 13).

Figura 13 – Vista geral das superquadras de Brasília.


Fonte: Fotografia Aérea de Ibolya – Creative Commons CC 2.0 Universal Public Domain
Dedication

Após a construção de Brasília e o golpe militar de 1964, a produção ha-


bitacional passa para as mãos do Banco Nacional de Habitação (BNH) – órgão
financiador e gestor dos recursos para fins habitacionais. Muito rapidamente se
dá uma nova orientação na reorganização da intervenção pública, que, atuan-
do como apoio financeiro e normativo, termina por condicionar a quantidade
e a qualidade dos resultados com a introdução de tipos standards195 da unidade
habitacional, estabelecendo critérios para o enquadramento dos financiamen-

195
Modelo, protótipo, padrão.

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162 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

tos públicos. Este período foi marcado pela preocupação com a redução dos
custos e a racionalização da construção. Divulgam-se repertórios tipológicos
que constituem um autêntico manual de produção em série, o que acabou in-
fluenciando, no Brasil, o modo operante das companhias públicas habitacionais
municipais e estaduais que constroem seus programas habitacionais a partir de
tipologias padrão aplicadas indiscriminadamente pelo território.

Considerações finais

A evolução na forma de ocupar os territórios e a adoção dos tipos habita-


cionais no Brasil acompanharam, em vários momentos, os movimentos interna-
cionais; porém, a maior influência se deu pela absorção do ideário modernista.
O solo fértil do desenvolvimentismo que se encontrava o Brasil nos anos 1950
e 1960 propiciou a assimilação dos conceitos de unité d’habitation, Siedlungen
e de outros elementos do repertório moderno, surpreendendo o próprio Le
Corbusier em sua visita ao Brasil em 1962.

Brasília está construída. Eu vi a nova cidade. É grandiosa em sua


invenção, coragem e otimismo; ela nos fala desde o coração. É
obra de dois grandes amigos e, através dos anos, companheiros
de luta: Lucio Costa e Oscar Niemeyer. No mundo moderno
Brasília é única. No Rio há o Ministério da Educação e Saúde
Pública (1936-1945). Há as obras de Reidy. Há o monumento
aos que tombaram na grande guerra. Há muitos outros testemu-
nhos. Minha voz é a de quem viaja através do mundo e da vida.
Permitam-me amigos do Brasil, dizer-lhes muito obrigado! (Le
Corbusier, Ouevre Complète) 196

A evolução dos parâmetros projetuais adotados ao longo da construção


das cidades brasileiras perpetuou a tipologia do edifício isolado no lote urba-
no, uma ocupação urbana de herança moderna, característica da ocupação con-
temporânea nos bairros novos e nos vazios urbanos, seja em empreendimentos

LE CORBUSIER apud FONSECA, M.A. Le Corbusier e a conquista da América. Resenhas


196

on-line. Revista Vitruvius. 001.08 ano 01, jan. 2002.

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Catharina Teixeira - 163

de iniciativa pública ou privada. Essa morfologia do edifício isolado no lote é a


proposta de uso e ocupação do solo consolidada ao longo das últimas décadas
pela legislação que, ao estabelecer os parâmetros urbanísticos de recuos, taxa
de ocupação e coeficiente de aproveitamento, define a proporção entre cheios
e vazios, a volumetria das edificações no lote, quadra ou gleba e, por consequência,
a relação das edificações com o espaço urbano. No caso brasileiro, tem promo-
vido uma relação dos edifícios entre si e destes com a cidade de independên-
cia e unicidade, adotando recuos frontais, laterais e de fundos no lote. O recuo
frontal deveria estabelecer uma relação de transição entre o espaço público e
o privado. No entanto, por questões culturais tem sido incorporado ao espa-
ço privativo sem promover a integração com a cidade. Os recuos laterais e de
fundos reforçam na paisagem o isolamento, impedindo outras formas de con-
figuração como, por exemplo, formas perimetrais da quadra.
As cidades brasileiras se expandiram indiscriminadamente a partir dos
anos 1970 apoiadas na ideia dos novos assentamentos, tendo como referência
as Siedlungens, legalizados pela Lei Federal 6766/79 e suas revisões, de parcelamen-
to do solo urbano. Este tem sido o parâmetro de definição urbana no que diz
respeito à quantidade e qualidade dos espaços públicos e privados, sejam eles
produzidos para uma classe social de baixo, médio ou alto poder aquisitivo.
Para o atendimento das classes sociais de mais alta renda, temos obser-
vado a reprodução das City Gardens, em loteamentos nas regiões metropolita-
nas das capitais brasileiras idealizados principalmente pela Cia Urbanizadora
Alphaville. Neste tipo de assentamento, o padrão de habitação e de ocupação
do solo se dá pela distinção dos territórios público e privado e pela adoção de
um suposto modo de vida condominial, configurando núcleos isolados, mu-
rados e ligados entre si por um sistema viário, promovendo uma cultura dife-
renciada da vida pública das cidades.
Outra forma de ocupação do solo que reflete como a habitação tem con-
figurado nossos territórios está ligada à paisagem das periferias das metrópoles
brasileiras – paisagem composta por habitações precárias, sem infraestrutura e
em territórios de fragilidade ambiental. Nestes locais, o adensamento provo-
cado pela migração a partir dos anos 1970197 colocou o tema da habitação e

197
BARREITOS, M. F.; ABIKO, A. K. Reflexões sobre o parcelamento do solo urbano. São
Paulo: USP-Poli, 1998. 27 p. (Boletim Técnico da Escola Politécnica – Depto de Engenharia

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164 - Capítulo VII – A relação do edifício habitacional com a cidade

da ocupação precária das cidades brasileiras dentro de um panorama teórico à


parte das correntes europeias, que dizem respeito somente à realidade dos pa-
íses em desenvolvimento.
A produção arquitetônica praticada ao longo dos anos 1970 pelo BNH e
replicada posteriormente pelas Companhias estaduais e municipais de habita-
ção promoveram a ocupação da periferia com grandes conjuntos habitacionais
de pouca qualidade urbanística e edilícia, que convivem com ocupações habi-
tacionais informais. Nestas áreas, não são obedecidos os parâmetros oficiais de
parcelamento, produzindo-se um adensamento residencial com a ausência de
equipamentos públicos e sem a integração ou continuidade urbana, segregadas
do entorno. São espaços onde a presença do Poder Público é percebida pelo uso
indiscriminado de uma tipologia habitacional em forma de “H”, com 5 pavi-
mentos, enaltecida por sua eficiência construtiva e econômica da produção em
série em detrimento da diversidade urbana. Essa herança perdura ainda hoje,
quando observamos os projetos produzidos pelo Programa Minha Casa Minha
Vida, que reproduzem os mesmos padrões praticados até então; ou seja, assen-
tamentos nas áreas periféricas das cidades, com tipologias habitacionais repe-
tidas e um traçado urbano racional reproduzindo padrões estabelecidos pela
arquitetura moderna dentro do viés da produção industrial.
A herança difundida pelos órgãos públicos consolidou um tipo de ocupa-
ção cuja performance foi adotada também pela produção do mercado imobiliá-
rio, seja para a construção popular ou não. O empreendimento habitacional em
forma de condomínio, murado, composto por um edifício isolado no lote, ou
por vários edifícios iguais, isolados entre si de alta densidade, com uma planta
que varia entre 4 quatro e “x” unidades habitacionais por circulação vertical,
agrupadas por pavimento, compõe a cesta habitacional e da paisagem urbana
que as cidades brasileiras têm produzido. São empreendimentos cuja vida in-
depende da vitalidade urbana e não estão ligados a ela; verdadeiros clubes ou
ilhas, isolados do contexto social de cidade.
No entanto, há que se olhar para uma nova geração da produção pública
habitacional e urbana do município de São Paulo, que tem se colocado à par-
te desta herança, e que vem produzindo empreendimentos baseados, não mais

de Construção Civil).

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Catharina Teixeira - 165

na cidade moderna, e sim na terceira era da cidade198. A produção arquitetôni-


ca de habitação a partir dos anos 1980 tem criado novos parâmetros edilícios e
urbanísticos, capazes de romper com o paradigma criado até então. Um destes
projetos é o projeto Heliópolis, Setor A, do escritório de arquitetura Vigliecca
e Associados.

PORTZAMPARC, C. A terceira era da cidade. In: Revista Óculum, n. 9, Fau Puccamp,


198

Campinas,1997.

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Mariana Cicuto Barros - 167

CAPÍTULO VIII
BREVE HISTÓRICO DA POLÍTICA HABITACIONAL EM
SÃO PAULO – DA PRODUÇÃO RENTISTA DO INÍCIO
DO SÉCULO XX À PRODUÇÃO HABITACIONAL DO
REGIME AUTORITÁRIO (1964 – 1986)
Mariana Cicuto Barros

A história da habitação social no Brasil está diretamente relacionada aos


processos que marcam o desenvolvimento político, econômico e social da so-
ciedade brasileira, em especial ao longo do século XX – período marcado pelo
intenso processo de urbanização e formação das metrópoles. A busca por opor-
tunidades de emprego e moradia nos centros urbanos não foi acompanhada
por uma equivalente oferta de infraestrutura, que ocasionou a informalidade
urbana e desigualdades sociais. No que se refere à habitação, podemos obser-
var a formação e consolidação de loteamentos irregulares, favelas e cortiços.
Deste intenso processo de urbanização nos centros urbanos resultou um
déficit habitacional avaliado em 5,792 milhões de moradias. Cerca de 70% da
produção de habitação têm ocorrido fora do mercado formal, 4,6 milhões de
domicílios estão vagos, essencialmente em áreas centrais de aglomerados urba-
nos, e 79% dos recursos do FGTS têm sido destinados à população com renda
acima de 5 salários mínimos. Dentre as regiões com o maior déficit habitacio-
nal absoluto destacam-se o Sudeste e o Nordeste que sofrem, respectivamente,
com a falta de 2,184 e 1,961 milhões de moradias em 2011 e 2,356 e 1,791
milhões em 2012.199
Como ressalta Nabil Bonduki (1998), o atual quadro da habitação no
Brasil é resultado do processo de exclusão territorial que se deu ao longo século
XX. Apesar dos avanços observados após o fim da ditadura militar e no perío-
do de redemocratização do país, e em especial com a intensificação das políti-
cas de erradicação da miséria no início do século XXI, ainda se observa que, em
diversos momentos, a Política de Habitação Social esteve mais relacionada às

FJP (Fundação João Pinheiro). Nota técnica. Déficit Habitacional no Brasil. Anos 2011 e 2012.
199

Belo Horizonte, 2014, p. 6.Disponível em: http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/


deficit-habitacional/360-nota-tecnica-deficit-habitacional-no-brasil-anos-2011-e-2012/file.

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168 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

políticas de desenvolvimento econômico do que às estratégias de Planejamento


Urbano e de Inclusão Social. A falta de um planejamento fundiário adequado
à realidade urbana dos centros urbanos favoreceu o surgimento de loteamentos
clandestinos e de favelas, e a consolidação de um número expressivo de unida-
des habitacionais em condições precárias de moradia, agravando a situação ha-
bitacional da população de baixa renda 200.
Apesar das dificuldades encontradas para a materialização dos progra-
mas habitacionais no país, com a repetição de fórmulas sem sucesso através da
lógica da produção em grande escala e sem as devidas preocupações urbanís-
ticas e de qualidade arquitetônica, podemos identificar, em alguns períodos,
uma produção habitacional que desenha um sentido contrário nesta lógica, e
que possibilita que as práticas tradicionais e os problemas verificados em al-
guns programas habitacionais sejam de certa forma superados ou, ao menos,
vislumbrar alterações positivas.
No período analisado neste trabalho, que percorre desde as primeiras ini-
ciativas no campo da habitação no final do século XIX até as práticas do perí-
odo da ditadura militar, realizadas pelo BNH, os projetos habitacionais serão
apresentados de maneira que seja possível identificar os períodos e programas
habitacionais que obtiveram maior êxito através da qualidade arquitetônica e
urbanística, assim como os projetos que ilustram as práticas problemáticas da
produção habitacional, como o modelo da casa isolada no lote, os conjuntos
habitacionais em áreas distantes sem urbanidade e infraestrutura e a repetição
de tipologias.

As primeiras iniciativas e realizações no campo da habitação


– os cortiços e as vilas operárias no Brasil: a produção rentista
do início do século XX

A questão habitacional constitui uma problemática já antiga na história


das cidades. Entretanto, foi com a revolução industrial201 ocorrida no século

200
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade/ Fapesp,
1998.
201
Historicamente, a Revolução Industrial foi um processo que se iniciou na Europa, em me-
ados do século XVIII, mais precisamente na Inglaterra, quando a população teve um aumento

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Mariana Cicuto Barros - 169

XVIII e com o processo de urbanização que esta problemática adquiriu contor-


nos quantitativos. A revolução industrial trouxe como uma de suas consequên-
cias um modelo que reformulou a ideia de cidades e vidas vigentes. Diante do
crescimento populacional e da necessidade de mão de obra para as novas indús-
trias, iniciam-se práticas para a adequação das cidades e para o setor habitacio-
nal. Os baixos salários e a lógica de mercado aplicada à produção imobiliária
urbana foram responsáveis pela constituição de um quadro de grande precarie-
dade das condições habitacionais, em um contexto de urbanização acelerada.
O grande contingente de trabalhadores que surgiram fez nascer uma
nova classe social – o proletariado. Para abrigar essa nova classe de trabalhado-
res, foi criado um novo modelo urbano, onde a fábrica era seu núcleo princi-
pal formador, juntamente com um conjunto de estabelecimentos erguidos com
a intenção de dar aporte aos novos bairros operários, que surgiram para abri-
gar a grande demanda dessa mão-de-obra. Nas diferentes cidades europeias, os
primeiros bairros possuíam precárias condições para a vida humana, apresen-
tavam grande densidade, intenso aproveitamento do terreno e ausência de es-
paços livres202.
No contexto brasileiro, o cenário urbano no final do século XIX carac-
teriza-se também, na maioria das cidades brasileiras, por um processo inicial
de industrialização203. Este cenário era marcado por péssimas condições sanitá-

de 50% no período de 1750 a 1801, alcançando, em 1901, mais de 40 milhões. Um fator


determinante foi a migração em massa da população rural que via na indústria possibilidades
de melhoria de suas condições de vida, através do trabalho remunerado, passando de uma
economia agrária para uma economia privada monetária onde todos os membros da família
poderiam trabalhar.
202
Não é objetivo de este trabalho aprofundar as questões habitacionais e urbanas das cidades
europeias neste período. Para este tema, sugere-se: BENEVOLO, Leonardo. História da cidade.
São Paulo: Perspectiva, 1983; CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo: Editora Perspectiva
S.A., 1965; COHEN, Jean Louis. O Futuro da arquitetura desde 1889: uma história mundial.
São Paulo: Cosac Naify, 2013; PEVSNER, Nikolaus. Os pioneiros do desenho moderno: de
William Morris a Walter Gropius. Tradução João Paulo Monteiro. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
203
Podemos exemplificar o processo da industrialização pela implantação da indústria têxtil no
país, iniciada por volta de 1840 – 1850 na Bahia (no período escravocrata). Além da Bahia,
Minas Gerais e Rio de Janeiro começam a se tornar centros manufatureiros (BLAY, Eva. A.
Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo, Nobel, 1985).

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170 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

rias e de higiene. O aumento populacional204 verificado neste período ocasio-


nou problemas referentes à infraestrutura e moradias adequadas e a noção de
habitação destinada às classes sociais mais baixas era vista como um problema.

Os cortiços em São Paulo

Este cenário, caracterizado pelas más condições de higiene e pelo aumen-


to populacional, desencadeou problemas como a falta de moradia adequada à
população. No caso da cidade de São Paulo, podemos caracterizar este período
por meio de seu processo de metropolização, que trouxe um aumento popula-
cional exponencial entre 1890 e 1900, quando passa de 64.934 para 239.820
o número de habitantes205, causando uma expansão territorial desordenada e a
ocupação de várzeas e encostas.
É improvável que se saiba dizer onde, como e quando surgiu ou se for-
mou o primeiro cortiço em São Paulo. Não há registros exatos que nos ilus-
trem o início dessas habitações coletivas na cidade. A história, porém, retoma
o final do século XIX nos bairros centrais como Sé, Santa Efigênia, Bela Vista
e nos bairros operários como Mooca e Brás. Nesse período, a população de São
Paulo também sofreu significativo aumento populacional, passando de 15 mil
habitantes em 1850206 para quase 65 mil habitantes em 1890, constituídos por
grande massa trabalhadora, revelando-se uma grande oportunidade rentista e
lucrativa para os empreendedores imobiliários.

204
Em 1808, o Brasil tinha uma população estimada em 2,4 milhões de habitantes, que pas-
sou, em 1874, para 9,9 milhões de habitantes (BOTELHO, Tarcísio. R. População e nação no
Brasil do século XIX. (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo,
1998). Devemos considerar, nestas estimativas, a população cativa e os escravos e a transição
para o trabalho livre, no sentido de direcionar os escravos para áreas como as de cultivo do
café. Outro ponto a ser considerado são as diferenças das regiões brasileiras nesta trajetória.
Para uma análise mais aprofundada do tema sugere-se: BOTELHO, Tarcísio R. “População e
espaço nacional no Brasil no século XIX”. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 7, n. 8,
p. 67-83, 2º sem. 2005; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 21. ed. São Paulo:
Nacional, 1986. (1ª edição 1959).
205
BIANCHINI, L. H.; SCHICCHI, M. C. Cortiços no centro de São Paulo: um convite à
permanência. Cuadernos de Vivienda y Urbanismo, v. 2, n. 3, 2009. p. 12-37.
206
Até 1850, a cidade de São Paulo estava pouco expandida e concentrava-se no “triângulo
histórico”. A partir de 1870, com o advento da ferrovia, a expansão cafeeira, entre outras causas,
a cidade inicia sua expansão territorial e a segregação sócio espacial.

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Mariana Cicuto Barros - 171

Outros fatores, conjugados com o aumento populacional, contribuíram


para o surgimento deste tipo de moradia, como a abolição da escravatura, a
implantação de novas indústrias, a ausência de uma oferta de habitações para
os novos trabalhadores das indústrias e os altos valores dos aluguéis. Estes tra-
balhadores, geralmente remunerados com baixos salários, não tinham condi-
ções de adquirir um imóvel ou de pagar aluguéis nas habitações unifamiliares.
Assim, de proibidos, os cortiços se tornaram a opção de moradia mais viável e
recorrente dessa parcela da população.
Para Celine Sachs (1999), os cortiços caracterizavam-se como uma filei-
ra de moradias desprovidas de conforto, amontoadas em um pátio, construídas
para serem alugadas para a população de baixa renda207. Eva Blay (1985) ca-
racteriza os cortiços como casas de moradia em comum, transformadas e cons-
truídas para tal finalidade208. Os cortiços, ou habitações coletivas de aluguel,
configuravam uma boa alternativa para a população trabalhadora de baixa ren-
da, mas com a expansão da cidade e a pressão por um “mercado crescente”,
os proprietários dos cortiços deixaram de lado as preocupações básicas com as
condições de higiene, ventilação, conforto e iluminação. As habitações eram
divididas cada vez mais entre um número maior de famílias submetidas às con-
dições de insalubridade.
Ainda no final do século XIX, ocorrem epidemias (varíola, febre amare-
la) na cidade de São Paulo – fato que foi atribuído às más condições dos cor-
tiços209 – e observa-se a necessidade de o Poder Público elaborar um plano de
saneamento para a cidade. Em 1893, é publicado um Relatório da Comissão
de Exame e Inspeção das habitações operárias e cortiços no Distrito de Santa
Efigênia210, que oferece uma descrição das condições de habitabilidade, além de

207
SACHS, C. São Paulo: políticas públicas e habitação popular. São Paulo: Edusp, 1999.
208
(BLAY, E. A. Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo,
Nobel, 1985).
209
Um médico da Câmara Municipal, o Dr. Eulálio da Costa Carvalho, em 1885, expõe o
grave problema sanitário, e que necessitaria impor normas para a construção dos cortiços, e
que neles são esquecidos “todos os conselhos de higiene [...]”. In: BLAY, Op. cit., p. 61.
210
Segundo o Relatório, em 1893, no bairro de Santa Ifigênia, havia “60 cortiços de todos os
tamanhos e feitios onde se agasalha uma população de 1.320 indivíduos de todas as naciona-
lidades e condições” (LOPEZ SILVA, A. A recuperação de cortiços na área central da cidade de
São Paulo. Dissertação (Mestrado) – Escola Politécnica/USP, São Paulo, 2011, p. 25)

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172 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

caracterizá-los em seis diferentes tipos de cortiços211. A proliferação dos corti-


ços era divulgada como um grave problema para o Poder Público e a sociedade,
pois, se a arquitetura paulistana, entre os séculos XIX e XX, sofria as consequências
de tal ação, havia ainda outro fator que começava a ser questionado na época: a
qualidade de vida das pessoas que viviam nesses imóveis deteriorados. Cerca de
um século depois do relatório apresentado à Câmara pela Comissão de Exame
e Inspeção, São Paulo continuava a ter habitações com péssimas condições de
salubridade para seus moradores:

As fachadas dos casarões são as mesmas do passado. Dentro, po-


rém, a realidade é outra: os amplos salões que abrigavam famílias
da aristocracia paulista já não existem. Foram transformados em
vários cubículos – sem espaço, ventilação, iluminação e higiene
– pelos ‘comerciantes da sublocação’. [...] Hoje, cerca de 800 mil
pessoas moram em cortiços, em São Paulo, em situação não muito
diferente das favelas que chegam a ter melhoramentos públicos. 212

Entre as décadas de 1970 e 1990, a problemática das condições de salu-


bridade e qualidade de vida nos cortiços continua a ser questionada, estudada e
denunciada por pesquisadores. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980,
houve uma fase de criação de incentivos e investimentos no processo de auto-
construção da casa própria em regiões periféricas, mas devido à grande distân-
cia destas às áreas de trabalho, muitos deixaram suas casas e voltaram para as
áreas centrais da cidade. Essa mudança da periferia para o centro se caracteri-
zou por um aumento do encortiçamento nesse período213. Esta situação favo-
receu a criação, em 1991214, da Lei n. 10.928, a Lei Moura, que regulamentava

211
Cortiço-páteo, casinha, hotel-cortiço, prédios sobrados convertidos em cortiços, vendas e
cortiços improvisados.
212
O Estado de S.Paulo, 21/6/1979. In: LÓPEZ, A; FRANÇA, E; COSTA, K. (Org.).
Cortiços: a experiência de São Paulo. Secretaria Municipal de Habitação, São Paulo, 2010, p.
26. Disponível em: http://www.habitasampa.inf.br/documentos/publicacoes/corticos/index.
html. Acesso em: 03 maio 2017.
213
PICCINI, A. Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro urbano
de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2004, p. 43.
214
Na década de 1990, calculava-se que naquela época existiam em São Paulo mais de 90 mil
cortiços, abrigando uma população de aproximadamente 3 milhões de pessoas.(SÃO PAULO

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Mariana Cicuto Barros - 173

as questões de habitabilidade dos cortiços paulistanos. O principal objetivo da


lei era garantir condições mínimas de qualidade de vida a esses moradores, por
meio de algumas regras claras sobre as condições dos imóveis e das relações lo-
catícias. Entretanto a aplicação da lei para a regularização dos cortiços só teve
início em 2000.
A partir de 2000, inicia-se a implementação de alguns programas públi-
cos que tiveram como objetivo a regularização dos cortiços e a moradia na re-
gião central da cidade. Na esfera municipal, podemos citar o programa “Morar
no Centro” (200-2004) e o “Programa de Cortiços” (em vigor desde 2005).
Já através do governo estadual, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano) desenvolve um programa especificamente destinado
aos cortiços, através do Programa de Atuação em Cortiços (PAC). Todas estas
ações visam à melhoria da qualidade de vida e à segurança dos seus moradores,
empreendendo esforços para adequar os cortiços às exigências de habitabilida-
de estabelecidas pela Lei Moura215.
Os cortiços, hoje, são menos numerosos, mas estão presentes em todos
os distritos da capital, alcançando significativa proporção nas áreas centrais da
cidade, por possibilitarem o acesso a pé ao trabalho, proximidade com vasta
oferta de bens e serviços coletivos, como creches, postos de saúde, escolas de
ensino fundamental, etc.216 O cortiço foi a moradia popular mais significativa
na cidade de São Paulo até as primeiras décadas do século XX, cedendo lugar,
em meados do século XX, às casas autoconstruídas nas periferias, desprovidas

(SP). Sempla. Cortiços em São Paulo: frente e verso. São Paulo: Sempla, 1986, p. 133. Apud
SIMÕES JUNIOR, J. G. Cortiços em São Paulo: o problema e suas alternativas. São Paulo:
Polis, 1991).
215
Não é objetivo de este trabalho apresentar as especificidades de cada programa atual de rea-
bilitação dos cortiços. Para mais detalhes sobre os programas, sugere-se: LÓPEZ, A; FRANÇA,
E; COSTA, K. (Org). Cortiços: A experiência de São Paulo. Secretaria Municipal de Habitação,
São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.habitasampa.inf.br/documentos/publicacoes/
corticos/index.html. Acesso em: 03 maio 2017; SOUZA, T. C. S. Os Cortiços em São Paulo.
Programas/Vistorias/Relatos. Dissertação de mestrado apresentada na FAU-USP. São Paulo, 2011;
KOWARICK, L. Cortiços: a humilhação e subalternidade. Tempo Social. Revista de Sociologia da
USP. v. 25, n. 2, p. 49-77. São Paulo, 2013.
216
KOWARICK, L. Cortiços: a humilhação e subalternidade. Tempo Social. Revista de Sociologia
da USP. V.25,n.2, p. 49-77. São Paulo, 2013.

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174 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

de infraestrutura, e mais recentemente, após 1980, substituídas pela favela, que


se espraiou pelas fronteiras do município.

Vilas Operárias

As vilas operárias constituem um aspecto de mais um processo amplo de


construções de moradia popular que se inicia no final do século XIX. Este mo-
delo de moradia é fruto do processo de industrialização do país e da formação
do operariado. Segundo Blay (1985), é na última década do século XIX que se
inicia a implantação das vilas operárias no Brasil, especificamente na Bahia e Rio
de Janeiro. No interior Estado de São Paulo, ainda segundo a autora, antes de
1900, há o registro de oito vilas operárias, nas cidades de Itu, Sorocaba e Tatuí.
Como já apresentado, o cenário urbano brasileiro no final do século XIX
caracteriza-se por um processo inicial de industrialização. Na cidade de São
Paulo, a partir de 1870, há um amplo processo de transformação econômica.
A comercialização e exportação do café geram as bases para a produção indus-
trial, por meio da instalação de um centro financeiro, comercial, administrati-
vo e industrial na cidade.
São Paulo ainda é caracterizada, na última década do século XIX, pelo
aumento populacional, em sua maioria resultante da vinda de imigrantes ita-
lianos para o trabalho no café. O financiamento da imigração para São Paulo
gerou quantidades de trabalhadores superiores às reais necessidades do merca-
do cafeeiro. Desta forma, fatores como o excedente populacional217, as baixas
remunerações do trabalho nas fazendas e a impossibilidade de os imigrantes
acumularem capital para a compra de terras resultaram em uma corrente mi-
gratória da zona rural para a zona urbana, pois a instalação de uma produção
industrial na cidade abria um novo mercado atraente que o trabalho nas fa-
zendas não permitia.
A trajetória das vilas operárias na cidade está diretamente ligada aos pro-
blemas apontados pelas condições de habitabilidade dos cortiços. Após a publi-

217
Entre 1893 e 1900, teriam entrado 126.100 pessoas além do necessário para o trabalho
nas fazendas. Entre 1901 e 1909, este excedente alcança 215.200 pessoas (SPINDEL, C.R.
Homens e máquinas na transição de uma economia cafeeira: formação e uso da força de trabalho.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. In: BLAY, 1985, p. 40).

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Mariana Cicuto Barros - 175

cação do Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das habitações operárias


e cortiços no distrito de Santa Efigênia, aumenta a preocupação com medidas
de higiene e o controle para a construção de novos cortiços e habitações cole-
tivas. Em 1894, os sanitaristas da Câmara Municipal chamam a atenção para
as especificações necessárias para a construção das vilas operárias, propondo a
altura mínima do pé-direito, a área mínima construída e o número de cômo-
dos, entre outros aspectos, bem como a sua localização218.
Desta forma, nas proximidades das indústrias, iniciam-se as construções
das casas para os operários, ou as vilas operárias, com o objetivo de manter os
empregados próximos ao trabalho e fornecer moradias adequadas à população.
Quando ao aspecto da ocupação do espaço urbano, verifica-se que as indústrias
e as vilas operárias se instalam ao longo das vias férreas. Segundo Caio Prado
(1941), estas se estendem pelas baixadas onde ocupam terreno mais igual e fá-
cil, pois não havia interesse dos demais empreendedores por serem terrenos
inundáveis e insalubres219. As vilas operárias, até o século XX, são construídas
ao longo das ferrovias, junto às indústrias e em terrenos inundáveis.
A presença da ferrovia era determinante também, em alguns casos, para
a implantação das indústrias. Ao longo da Estrada de Ferro Inglesa, na Mooca,
instalam-se algumas indústrias, como a Cervejaria Bavaria e a Fábrica de te-
cidos Regoli. Além da Mooca, observamos este fenômeno em bairros como
Brás, Bom Retiro, Luz, Ipiranga, Água Branca e Lapa, que vão se constituin-
do como bairros operários.
Especificamente sobre as vilas operárias, sua caracterização, localização,
mapeamento, etc., encontra-se, nos estudos da socióloga e pesquisadora Eva
Blay (1985), a descrição de algumas habitações operárias que merecem desta-
que pela sua importância histórica, tais como a Vila Maria Zélia (Belenzinho),
a Vila Crespi (Mooca), a Vila Nadir Figueiredo (Vila Maria) e a Vila Cerealina
(Belém), entre outras. Segundo Bonduki (1998), a Vila Operária Maria Zélia,
construída pelo industrial Jorge Street, em 1919, da Companhia Nacional de

218
SÃO PAULO (ESTADO). Decreto n. 233, de 2 de março de 1894. Estabelece o Código
Sanitário. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1894/
decreto-233-02.03.1894.html>. Acesso em: 03 maio 2017.
219
PRADO, C. Nova Contribuição para o estudo geográfico da cidade de São Paulo, Estudos
Brasileiros, Ano III, vol. 7, Rio de Janeiro, 1941.

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176 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

Tecidos de Juta, em São Paulo, possuía, além das casas unifamiliares, equi-
pamentos coletivos (igreja, biblioteca, teatro, creche, jardim da infância, gru-
po escolar, consultório médico e dentário, associação recreativa e beneficente
e armazém), caracterizando a habitação não somente com o fornecimento da
casa, mas com infraestrutura de serviços necessários para que a família ocupas-
se seu tempo livre220. Essa Vila foi adquirida, nos anos 1940, pelo Instituto de
Aposentadoria e Pensão dos Industriários, pois representava um ideal em ha-
bitação a ser atingido.
A expansão das indústrias ao longo das ferrovias, principalmente nas áreas
de várzea, ocorreu simultaneamente à ocupação do espaço pela habitação operá-
ria. Concluindo brevemente alguma descrição da segregação espacial da cidade
de São Paulo, a localização das habitações operárias configurou a formação de
bairros com características diversas daqueles localizados em zonas “mais altas”,
mais caras, que são caracterizados pela ocupação das casas da burguesia, como
a Avenida Paulista, o bairro de Cerqueira César, os Jardins, etc. Compreender
este processo histórico da ocupação dos espaços pelos cortiços, vilas operárias
e pela moradia dos donos das indústrias, vinculado com a transformação dos
aspectos econômicos, contribui para o entendimento do desenho urbano atu-
al da cidade de São Paulo.

Intervenções governamentais na habitação


social – a moradia adequada (1930-1960)

A necessidade de construir habitações em grande quantidade está dire-


tamente relacionada ao processo de urbanização das cidades e o consequen-
te crescimento populacional. Em muitos países, os processos de urbanização e
industrialização se misturam. A produção de conjuntos habitacionais foi uma
das soluções fornecidas pelo Poder Público e também por empreendedores pri-
vados, tanto no Brasil como na Europa, para suprir a demanda habitacional.
Como já apresentado, na Revolução Industrial, diante do crescimento
populacional e da necessidade de mão de obra para as novas indústrias, iniciam-
-se práticas para a adequação das cidades e para o setor habitacional. Os baixos

BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade/ Fapesp,
220

1998.

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Mariana Cicuto Barros - 177

salários e a lógica de mercado aplicada à produção imobiliária urbana foram


responsáveis pela constituição de um quadro de grande precariedade das con-
dições habitacionais, em um contexto de urbanização acelerada. A população
passa a abrigar moradias sem condições físicas e higiênicas adequadas, devido
ao aumento de densidade, surgindo uma nova disposição de moradias, agru-
padas e concentradas. Ocorreu uma mudança de unidades unifamiliares para
unidades multifamiliares, inclusive com mudança de tipologia e com a inser-
ção de edifícios com gabaritos mais altos.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) fez com que essa situação che-
gasse ao limite. Houve restrições aos créditos, insegurança financeira, escassez
de materiais de construção e as preocupações e urgências passaram a estar rela-
cionadas com as questões de sobrevivência da própria guerra221.
As discussões sobre as moradias foram temas de debates nos Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs, a partir de 1928. Os
CIAMs222 foram criados com o intuito de reunir arquitetos preocupados com
a qualidade físico-espacial das cidades em função da consolidação dos proces-
sos industriais, e sobre como poderiam ocorrer em relação à construção de edi-
ficações. As edificações deveriam atender as necessidades da sociedade atual223.
As questões que estavam sendo discutidas neste período na Europa aca-
baram influenciando a produção de conjuntos habitacionais no Brasil, sendo
alguns desses princípios incorporados, porém, com a ressalva de que a realida-
de brasileira em que apareceu o problema da falta de moradias foi distinta da
europeia. As características das bases produtivas brasileiras foram apoiadas na
“necessidade” de absorver um grande contingente de mão de obra não qualifi-
cada pelo setor da construção civil.

221
GRUPO DE ARQUITETURA E PLANEJAMENTO (GAP). Habitação popular: inventário
da ação governamental. Rio de Janeiro: Finep, 1983.
222
Não é objetivo de este trabalho discorrer sobre os CIAMs e suas especificidades. Para apro-
fundamento neste tema, sugere-se: BARONE, A. C. C. Team 10: arquitetura como crítica.
São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.
223
AYMONINO, C. (Ed.) L’abitazione razionale atti dei Congressi CIAM: 1929-1930.
Barcelona: Gustavo Gilli, 1972.

urbanismo e habitação 2111 REALTERADO.indd 177 27/11/2017 18:12:25


178 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

Esse debate, que ocorreu na Europa, sobretudo nos anos 1920, sobre as
Edificações Habitacionais, bem como o conteúdo das discussões, chegaram ao
Brasil basicamente por meio de três maneiras:

[...] pelos profissionais que estudaram ou estagiaram no exterior,


como Attílio Corrêa Lima, que cursou urbanismo na França,
e Carmem Portinho, que estagiou na Inglaterra logo após a 2a
Guerra, acompanhando o programa de implantação de cidades
novas -; pela influência trazida diretamente, com grande destaque
para Le Corbusier, que deixou profundas marcas na produção
de habitação econômica realizada pelos arquitetos brasileiros e,
finalmente, através do estudo do tema através de livros, revistas
e publicações, que eram importados com grande atualidade. É
evidente, no entanto, que foi a existência de um clima interno
favorável às novas ideias – do ponto de vista político, ideológico e
econômico –, gerado pela Revolução de 30, que permitiu a difusão
destas concepções e sua concretização em obras. 224

Os Conjuntos habitacionais no Brasil – Institutos de


Aposentadoria e Pensão – IAPs

Com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência do Brasil, em 1930, a


questão da habitação passou a receber maior atenção do Estado. Esta mudan-
ça pode ser justificada por vários fatores, dentre eles, a política de desenvolvi-
mento nacional instituída pelo presidente, que tinha como principal objetivo a
industrialização do país. Por essa ótica, a moradia destinada aos trabalhadores
tornou-se fator primordial para a reprodução da força de trabalho.
Desta forma, o governo225 autorizou as Caixas de Aposentadoria e Pensão
a financiar casas. As Caixas foram criadas em 1923 para regulamentarem a
Previdência Social. Existiam, em 1930, 47 órgãos desse tipo e, em 1933, fo-

224
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade/ Fapesp,
1998.
225
Foi criado, em 1930, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que entre várias
medidas regulou o trabalho das mulheres e dos menores, instituiu a jornada de 8 horas de
trabalho e o direito às férias, além de organizar sindicatos e criar mecanismos para conciliar
conflitos entre patrões e operários.

urbanismo e habitação 2111 REALTERADO.indd 178 27/11/2017 18:12:25


Mariana Cicuto Barros - 179

ram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensão, em âmbito nacional; mui-


tos dos quais substituíram as Caixas de Aposentadoria e Pensão. Os Institutos
eram divididos por categorias profissionais, a saber: Instituto de Aposentadoria
e Pensão dos Marítimos (IAPM), Instituto de Aposentadoria de Pensão dos
Industriários (IAPI), Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários (IAPB),
Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC), Instituto de
Aposentadoria e Pensão dos Condutores de veículos e Empregados de empresas
de petróleo (IAPETEC) e Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Estivadores
(IAPE), e as construções só poderiam ser financiadas para os associados dos di-
versos institutos226.
Esta política habitacional não se materializaria apenas pela construção de
casas isoladas, ou nos moldes das vilas operárias já apresentadas, mas se caracte-
rizaria também pela construção de grandes conjuntos habitacionais multifami-
liares, racionalmente projetados e construídos. A localização destes conjuntos
também se diferenciaria das vilas operárias. Enquanto estas se localizavam nas
várzeas e próximo às linhas férreas e indústrias, as condicionantes para a loca-
lização dos conjuntos habitacionais dos IAPs era, em sua maioria, os eixos de
transporte público. Segundo Paulo Bruna (2010)227, “a criação de um banco
de terras ao longo dos eixos munidos de transporte de massas era um indica-
dor de que havia consciência da necessidade de planejar em longo prazo o cres-
cimento das cidades.”
Os IAPs, por meio do arquiteto Rubens Porto, assessor técnico do
Conselho Nacional do Trabalho – órgão do Ministério do Trabalho responsável
pela normatização, fiscalização e aprovação de procedimentos dos IAPs, formu-
lou diretrizes para a implantação de Conjuntos Residenciais desta Instituição,
defendendo “[...] uma arquitetura funcional e moderna: solução racional da
planta, estandardização dos elementos de construção, emprego racional dos
materiais, eliminação de toda decoração supérflua e uma arquitetura lógica e
sincera que procura soluções internas perfeitas”228.

226
GRUPO DE ARQUITETURA E PLANEJAMENTO (GAP). Habitação popular: inventário
da ação governamental. Rio de Janeiro: Finep, 1983.
227
BRUNA, P. Os primeiros arquitetos modernos: habitação social no Brasil 1930-1950. São
Paulo: Edusp, 2010.
228
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade/ Fapesp,
1998.

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180 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

Bonduki (1998) apresentou as diretrizes que Rubens Porto defendeu para


a elaboração de Conjuntos Residenciais, que demonstram a preocupação na
implantação dos novos conjuntos e a influência dos princípios do movimen-
to moderno europeu 229:

1. A edificação de conjuntos habitacionais isolados do traçado existen-


te, como forma de evitar o contado das novas moradias com os cor-
tiços existentes;
2. A construção de blocos, buscando economia por meio da fabricação
e estandardização dos elementos construtivos;
3. A limitação da altura dos blocos até quatro pavimentos, sendo desne-
cessário o uso de elevadores que encareceriam a construção;
4. O uso de pilotis, permitindo que todos os apartamentos tivessem vi-
sibilidade e contato com a natureza, além da utilização do térreo para
atividades de lazer;
5. A adoção dos apartamentos dúplex, que além de reduzir em 20% as
despesas com corredores, móveis e iluminação e oferecer uma econo-
mia de 15% de espaço, divide as áreas de uso diário com as de uso es-
porádico, que necessitam de maior privacidade;
6. Os processos de construção racionalizados e a edificação de conjun-
tos autônomos – os primeiros garantindo processos realizados em sé-
rie e, o segundo, que os habitantes do conjunto encontrassem tudo o
que precisassem no próprio conjunto: escolas, igreja, lazer e comér-
cio, menos o trabalho;
7. A articulação dos conjuntos habitacionais com planos urbanísticos, pois
as habitações econômicas deveriam fazer parte de um plano maior de
organização dos espaços da cidade;
8. A entrega da casa mobiliada de forma racional, buscando desta forma
vantagens de ordem econômica e higiênica, com móveis compatíveis
com as dimensões dos espaços.

BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade/ Fapesp,
229

1998.

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Mariana Cicuto Barros - 181

O primeiro grande conjunto residencial construído pelo IAPI, concluí-


do em 1943, foi o Conjunto Residencial do Realengo, no Rio de Janeiro, com-
posto por tipologias diversificadas, casas geminadas duas a duas ou em fileiras
e blocos de apartamentos de quatro andares; além de infraestrutura completa
(rede de água, luz, esgoto, galeria de águas pluviais, pavimentação e estação de
tratamento de esgoto) e serviços de caráter coletivo – “[...] escola primária para
1500 alunos, creche para 100 crianças, ambulatório médico, gabinete dentário,
quadras para a prática de esportes, templo católico e horto florestal – que foram
totalmente implantados”.230 Este conjunto inovou também em relação à área
técnica, pois foi o primeiro conjunto feito com blocos prensados de concreto,
através de máquina importada dos Estados Unidos; havia uma busca pela ra-
cionalização e pelo barateamento da construção.
Até a década de 1930, predominava no Brasil a lógica rentista da pro-
dução habitacional presente nas vilas com moradias geminadas ou nos grupos
de casas isoladas sem o apoio de equipamentos públicos e, muitas vezes, sem
rede de esgoto, água, energia e transporte. A intervenção do Estado no campo
da habitação ocorreu de maneira que fossem introduzidas as práticas do movi-
mento moderno, trazendo um “novo conceito” de moradia.
A seguir apresentaremos dois conjuntos construídos na cidade de São
Paulo, com tipologias diferentes: o Conjunto Residencial Várzea do Carmo, de
1942, que contempla edifícios de até cinco andares, e o Conjunto Residencial
Santa Cruz, de 1950, que possui edifícios de três pavimentos.

IAPs em São Paulo – o Conjunto Residencial Várzea do


Carmo e o Conjunto Residencial Santa Cruz

Conjunto Residencial Várzea do Carmo

O conjunto do Carmo foi projetado para o Instituto de Aposentadoria e


Pensão dos Industriários (IAPI) em 1942, pelos arquitetos Atílio Corrêa Lima,
Hélio Uchôa Cavalcanti, José Theodulo da Silva e pelo engenheiro Alberto de
Mello Flôres. O projeto foi publicado na Revista Municipal de Engenharia

BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade/ Fapesp,
230

1998.

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182 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

nas edições n. 6, de novembro de 1942, e n. 4, de outubro de 1943. O con-


junto está localizado nas proximidades do centro de São Paulo, nas imediações
do Parque D. Pedro II, junto à Avenida do Estado e entre as ruas Luiz Gama,
Otto de Alencar, Leopoldo Miguez e Praça Nina Rodrigues, entre os bairros
da Liberdade e Cambuci.
O Conjunto é composto por 22 edifícios laminares, orientados longitu-
dinalmente pelo eixo norte-sul, que expõe as faces dos quartos para o nascente
e as salas e serviços para o poente. O espaço público consiste na praça, localiza-
da no alargamento da Rua Pedro Severiano, que atravessa o conjunto. O espa-
ço semiprivado sofreu alterações em relação ao projeto original. Cada edifício
cercou o seu térreo, formando condomínios separados. A maioria das áreas li-
vres foi coberta e transformada em estacionamento, mas alguns jardins previs-
tos no projeto ainda se encontram atualmente em bom estado de conservação.
O conjunto efetivamente construído em 1950 corresponde apenas a 10%
do conjunto habitacional projetado. De todo o plano, foi construído 22 lâmi-
nas de quatro andares, “do tipo B” e do “tipo C”, totalizando 602 unidades
habitacionais. O tipo B é composto por três tipos de unidade: a unidade tipo
5, com 75,04m², três quartos, sala, banheiro, cozinha e terraço de serviço; a
unidade tipo 6, com 85,04m², quatro quartos, sala banheiro, cozinha e terra-
ço de serviço; e a unidade tipo 7, com 60,04m², dois quartos, sala, banheiro,
cozinha e terraço de serviço. O tipo C é composto por unidades semelhantes,
intituladas de “tipo 8”, com 54,03m², dois dormitórios, sala, banheiro, cozi-
nha e terraço de serviço.231

Conjunto Residencial Santa Cruz

O Conjunto Residencial Santa Cruz foi projetado pelo IAPB, entre 1946
e 1950, pelos Arquitetos Marcial Fleury de Oliveira e Roberto J.G. Tibau. O
projeto contempla 282 unidades habitacionais e localiza-se no bairro da Saúde,
entre as ruas Santa Cruz e a avenida Ricardo Jafet.
O conjunto é composto por 32 blocos “tipo A” e quinze blocos “tipo B”,
ambos contendo três dormitórios, sala, cozinha, banheiro social e serviço, des-

231
MENEGHELLO, I. B. Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo: do projeto ideal ao
projeto real. In: 8° DOCOMOMO Brasil, Rio de Janeiro, 2009.

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Mariana Cicuto Barros - 183

pensa e área de serviço. Os blocos possuem três pavimentos e dois apartamen-


tos por andar. A maioria deles, com exceção de cinco blocos, possui suas faces
orientadas para nordeste e sudoeste.
Com o passar do tempo, os espaços públicos originais foram cercados e
neles foram instalados postos de vigilância, transformando-os em espaços semi-
privados. Atualmente, o espaço semiprivado consiste nas ruas internas para ve-
ículos, na circulação vertical e na área junto aos jardins externos. A disposição
original das unidades habitacionais possui duas tipologias: tipo A, com 71,60
m², e tipo B, com 80,64 m².

As Políticas de Habitação no regime


autoritário: 1964-1986

Em São Paulo, assim como em todo o Brasil, a questão da produção ha-


bitacional foi realizada, durante o período do regime autoritário, por um agen-
te institucional federal: o Banco Nacional de Habitação (BNH). A promoção
da habitação em São Paulo permaneceu fortemente ligada ao BNH durante
todo este período.
Este período foi marcado pela restrição das liberdades individuais e so-
ciais, sendo, portanto, contrário à participação auto-organizada dos setores e
classes sociais na definição de políticas públicas. Como afirma Bonduki (1997),
não havia lugar para o diálogo nem compromisso com o contexto e com os va-
lores culturais nesse modelo, e as intervenções do governo caracterizavam-se

pelo autoritarismo e centralização da gestão, ausência da partici-


pação – em qualquer nível – dos usuários e da sociedade em geral,
desrespeito ao meio ambiente e ao patrimônio cultural, numa
lógica na qual predomina o mito da modernidade como sinônimo
de transformação.232

232
BONDUKI, 1997, apud BARROS,. BARROS, M.C. Autogestão na implementação de po-
líticas habitacionais. O mutirão autogerido Brasilândia B23. Dissertação de Mestrado, EESC/
USP, São Paulo, 2011. p. 261.

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184 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

Transformando as políticas de habitação em chave mestra de sua polí-


tica social, o regime autoritário propunha-se a atingir simultaneamente obje-
tivos políticos, ideológicos, sociais e, antes de tudo, econômicos233. Em 21 de
Agosto de 1964, o BNH, o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Serviço
Federal da Habitação e do Urbanismo (SERFHAU) foram instituídos pela Lei
n. 4.380. Seus objetivos eram, segundo o artigo 1° desta Lei:

Estimular a construção das habitações de interesse social e finan-


ciamento da aquisição, em regime de propriedade, das habitações,
particularmente para as camadas da população de menor renda.234

O BNH foi uma resposta do governo militar à forte crise de moradia pre-
sente em um país que se urbanizava aceleradamente, buscando, por um lado,
angariar apoio entre as massas populares urbanas, segmento que era uma das
principais bases de sustentação do populismo afastado do poder e, por outro,
criar uma política permanente de financiamento capaz de estruturar em mol-
des capitalistas o setor da construção civil habitacional, objetivo que acabou
por prevalecer235.
O SFH também administrava, desde sua criação em 1966, o Fundo de
Garantia de Tempo de Serviço (FGTS)236 e distribuía, por intermédio de ou-
tros bancos, os créditos de financiamento de habitações e de infraestruturas

233
SACHS, C. São Paulo: políticas públicas e habitação Popular. São Paulo: Edusp, 1999.
234
BRASIL. Lei n. 4.380, de 21 de agosto de 1964. Institui a correção monetária nos contratos
imobiliários de interêsse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria, cria o Banco
Nacional da Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias,
o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4380.htm. Acesso em: 03 maio 2017.
235
BONDUKI, N. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas
perspectivas no governo Lula. Revista Eletrônica de Arquitetura e Urbanismo, n. 1, 2008.
Disponível em: http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf.
236
A criação do FGTS modificou a legislação do trabalho, e, por este motivo, deu lugar a
diversos posicionamentos, sendo que alguns viam nele uma regressão em relação à estabilidade
no emprego, garantida pela legislação do trabalho anterior (que nunca fora aplicada), enquanto
outros afirmavam que o novo sistema flexibilizava o mercado de trabalho, ao mesmo tempo
em que oferecia uma garantia aos trabalhadores.

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Mariana Cicuto Barros - 185

urbanas. A maior parte dos recursos utilizados pelo SFH provinha do FGTS,
bem como dos recursos voluntários, provenientes das cadernetas de poupança.
A Lei n. 4.380/64 atribuiu ao Estado Federal a responsabilidade da po-
lítica de habitação. O SERFHAU ficou encarregado da assistência técnica e
financeira aos Estados e municipalidades responsáveis pela elaboração dos pla-
nos para a construção de habitações. Os créditos deveriam privilegiar as popu-
lações menos favorecidas e o BNH não teria o direito de atribuir empréstimos
superiores a quinhentos salários mínimos.
De 1964 ao primeiro semestre de 1985, o SFH financiou perto de 4,4
milhões de habitações, mas seus investimentos favoreceram a classe média, se-
gundo Ermínia Maricato (1997):

Favoreceram predominantemente as classes médias emergentes


e classes altas, sustentáculos do regime ditatorial. Considerando
que os juros do FGTS eram menores que os do mercado, os tra-
balhadores subsidiaram a moradia para a classe média [...]. Mas
não foi apenas a classe média que se beneficiou com os recursos
do FGTS. Obras de infraestrutura urbana e gigantescas obras de
saneamento básico foram financiadas com ele.237

Ao contrário do período anterior apresentado, em que, na produção habi-


tacional pelos IAPs, havia a possibilidade de elaboração de projetos por arquite-
tos e urbanistas com localizações privilegiadas nos centros urbanos, no período
abrangido pelo BNH, a produção habitacional, em sua maioria, pautava-se na
construção de casas para a venda, e favoreceu a implantação de grandes con-
juntos em áreas periféricas desprovidas de infraestrutura urbana, o que trouxe
graves consequências para o desenvolvimento urbano.
A nova política contemplava a necessidade de estimular quantitativamen-
te um importante setor industrial – o da construção civil, e com isso absorver
significativo número de empregados sem qualificação profissional, amenizan-

237
MARICATO, E. Habitação e cidade. São Paulo, Editora Atual, 1997.

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186 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

do as possíveis pressões contra o desemprego que o controle da inflação ame-


açava provocar238.
Os objetivos centrados no desenvolvimento econômico com geração de
empregos, a não adoção de medidas eficientes para o barateamento de insumos
essenciais para a produção de moradia, o desvio dos recursos que eram desti-
nados inicialmente para a baixa renda, alocados em outras finalidades e setores
(média e alta renda, obras de infraestrutura), entre outros fatores, determina-
ram algumas características dos empreendimentos financiados pelo SFH e pelo
BNH, dentre as quais está a homogeneidade da produção habitacional, tanto
física (em termos arquitetônicos e urbanísticos) como social.
Os conjuntos habitacionais eram construídos para populações de ren-
da semelhante, com um sistema construtivo tradicional, as unidades habita-
cionais eram destinadas exclusivamente para a compra dos moradores, e a casa
própria deveria ser o objetivo de todos os envolvidos no programa. Baseado
nestas características, este programa habitacional não possibilitou outras expe-
riências voltadas para o problema do déficit habitacional e para outros modelos
de produção de habitação popular. Não havia, assim, investimentos para ou-
tras propostas que não fossem as orientadas pelo SFH e pelo BNH. Segundo
Alexandre Tanaka:

A organização do Sistema Financeiro da Habitação sempre impe-


diu a implantação de novas experiências. O SFH tinha programas
unificados para o Brasil inteiro e o Banco Nacional de Habitação
só financiava projetos de interesse de seus agentes financeiros.
Em nenhuma hipótese os recursos podiam ser repassados, por
exemplo, a uma Universidade que estivesse fazendo experiências
na área da habitação popular e mesmo a associações e entidades
populares organizadas, que contassem com técnicos responsáveis
pelo projeto e pela construção. 239

238
GRUPO DE ARQUITETURA E PLANEJAMENTO (GAP). Habitação popular: inventário
da ação governamental. Rio de Janeiro: Finep, 1983.
239
Ibid.

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Mariana Cicuto Barros - 187

Em relação às tipologias habitacionais, neste período o Estado limitava-se


à elaboração de novos padrões de implantação, de novos modelos de projetos
arquitetônicos e à inclusão de novos modelos de gestão de empreendimentos
habitacionais. O BHN não possibilitava outras formas de construção das mo-
radias, além do sistema formal da construção civil. Para Bonduki (2008), um
dos equívocos do SFH foi não ter estruturado qualquer ação significativa para
apoiar, do ponto de vista técnico, financeiro e administrativo, a produção de
moradia ou urbanização por processos alternativos, que pudesse incorporar o
esforço próprio e a capacidade organizativa das comunidades. Como consequên-
cia, o autor aponta que ocorreu um intenso processo de urbanização informal
e selvagem, onde a grande maioria da população, sem apoio governamental,
não teve alternativas senão autoempreender a casa própria em assentamentos
precários, loteamentos clandestinos, favelas, etc.240
A maioria da produção habitacional do BNH, como já apresentado, não
serve de modelo para práticas inovadoras no campo da arquitetura e do urba-
nismo. Mesmo com suas características pouco propositivas no campo da ar-
quitetura, podemos identificar, por meio da análise de Lícia Valladares (1983),
os quatro períodos de sua produção habitacional, e que, mesmo que estas não
tenham modificado o perfil da sua atuação, observamos que, em algum mo-
mento, há a proposta de gestão para a produção habitacional para as classes de
menor renda241:

1) De 1964 a 1967, corresponde à implantação e estruturação do BHN


como órgão central do SFH. Com a criação do FGTS em 1966 e do
SBPE, em 1967, o BNH pode contar com o acesso a uma fonte im-
portante de poupança obrigatória, ao mesmo tempo em que captava
a poupança voluntária por meio das cadernetas de poupança.
2) O segundo período, de 1967 a 1971, foi marcado por transformações
no modo de funcionamento do BNH, por um alargamento de suas

240
BONDUKI, N. Política Habitacional e Inclusão social no Brasil. Revisão histórica e no-
vas perspectivas no governo Lula. Revista Eletrônica de Arquitetura e Urbanismo, n° 1, 2008.
Disponível em: http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01.
241
VALLADARES, Licia. Estudos Recentes sobre a Habitação no Brasil: Resenha de literatura.
In: Repensando a habitação no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, pp. 21-77, 1983.

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188 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

funções e por uma participação cada vez maior dos financiamentos di-
rigidos para as faixas de renda mais altas. O alargamento do campo de
ação do BNH traduziu-se pela criação de programas de financiamen-
to da infraestrutura urbana, com a criação, em 1986, do Programa de
Financiamento para o Saneamento (FINASA) e, em 1969, do Plano
Nacional de Saneamento (PLANASA).
3) O terceiro período, de 1971 a 1979, corresponde à transformação do
BNH em uma empresa pública que assumia as funções de banco de se-
gunda linha, funcionando por meio de uma complexa rede de agentes
promotores, financeiros e depositários. A década de 1970 caracteriza-
-se também por uma intensificação dos programas de desenvolvimen-
to urbano, através da criação de fundos regionais de desenvolvimento
e pelo lançamento, a partir de 1972, de um programa de renovação
urbana – o projeto Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada
(CURA), que financiava as obras de infraestrutura e os equipamen-
tos urbanos. Para a habitação popular, em 1973, houve a criação do
Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAB), destinado ori-
ginalmente às famílias de baixa renda, com renda inferior a três salá-
rios mínimos, dirigiu-se para o segmento do mercado representado
por famílias que dispunham de três a cinco salários mínimos e, em
1975, surge o Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados
(PROFILURB)242.

242
Programa concebido pelo BNH, destinado, fundamentalmente, às famílias sem condições
financeiras para adquirir uma habitação completa. Tal programa contemplava tanto a urba-
nização de novas áreas, com seu loteamento e venda dos terrenos a pessoas de renda baixa,
como a aquisição de lotes em áreas já urbanizadas e a urbanização e regularização fundiária em
áreas faveladas. A atuação do BNH através do financiamento de unidades habitacionais e do
Profilurb evoluiu, em 1983, ao lançar o Programa Nacional de Autoconstrução, que recebeu
o nome de “Projeto João-de-Barro”. Experiências de promoção de mutirões foram realizadas
em todo o Brasil, porém houve resistência para essa nova modalidade de atuação por parte
das Companhias Estaduais e Municipais de Habitação (COHABs), que fizeram com que o
programa não tivesse uma expressão maior. Com a extinção do BNH, em 1986, o Programa
Nacional de Autoconstrução foi definitivamente encerrado pelo Governo Federal.

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Mariana Cicuto Barros - 189

4) O quarto período inicia-se em 1979, com importantes mudanças na ati-


tude dos poderes públicos, quando foram lançados o PROMORAR243,
um programa de urbanização de favelas, de tramas saneadas com nú-
cleo de habitação e autoconstrução assistida, e o programa do BNH
acessível às populações de baixa renda. Em 1984, foi criado o progra-
ma nacional de autoconstrução assistida “João-de-barro”, destinado
às famílias com renda inferior a 1,5 salários mínimos.

Os sistemas de crédito baseados no FGTS e poupança entram em cri-


se com a recessão econômica e seus efeitos no mercado de trabalho, desde o
início da década de 1980. O próprio BNH e a gestão da política habitacional
passam a sofrer forte questionamento. Em 1985, organizou-se uma discussão
nacional, envolvendo diversos setores da sociedade.
Foram questionadas a natureza dos recursos utilizados, a falta de sub-
sídios e a falta de integração com o desenvolvimento urbano, e foram feitas
recomendações concretas envolvendo recursos, aplicações, desenvolvimento ur-
bano, organização e funcionamento do Ministério de Desenvolvimento Urbano
(MDU) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) bem
como do BNH. No entanto, o governo decidiu pelo fechamento do banco,
em 1986, passando a gestão dos créditos à Caixa Econômica Federal (CEF),
como visto anteriormente.

Considerações finais

Foi a partir de 1850, com a Lei de Terras244, que a propriedade fundi-


ária foi instituída no país e transformou a terra em mercadoria. Com o cres-
cimento dos centros urbanos no final do século XIX, decorrente da libertação

243
PROMORAR: Programa de Erradicação da Habitação Subintegrada. PROMORAR e
PROFILURB eram programas que adotaram a autoconstrução e o mutirão como alternativas
possíveis da produção habitacional. Nessa fase, os mutirantes não participavam das decisões,
fornecendo apenas a mão de obra para os empreendimentos.
244
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm. Dispõe sobre
as terras devolutas do Império.

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190 - Capítulo VIII – Breve histórico da política habitacional em São Paulo

dos escravos, da chegada dos imigrantes e da industrialização, as cidades brasi-


leiras apresentam nova realidade.
Na virada do século, como foi apresentado, cortiços e favelas são as for-
mas de provisão habitacional para as classes de menor renda e um problema para
as autoridades dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Desde as ações reguladoras da produção rentista do início do século XX,
com os cortiços e vilas operárias, passando pela produção habitacional com a
intervenção do Estado nos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPI), e ain-
da com a intervenção estatal – desta vez com outros objetivos e contexto po-
lítico e econômico – no período do regime autoritário (BNH), observamos as
várias tentativas de tentar resolver a questão habitacional para a classe de baixa
renda no país, especialmente na cidade de São Paulo.
É importante ressaltar que estas tentativas sofreram continuidade e estão
presentes até os dias de hoje. Após o período do BNH, contextualizado pelo
processo de redemocratização do país, houve uma nova postura e prática de
gestão das políticas habitacionais, baseadas na participação da sociedade e dos
arquitetos e urbanistas.
As experiências no campo da habitação social no período pós-BNH não
são contempladas neste trabalho, mas não por isto trazem menos importância
para a nossa arena de discussões e apresentam ricas experiências nas políticas
habitacionais, que merecem ser apresentadas de forma mais detalhada.
Para as experiências habitacionais produzidas recentemente e para aque-
las que ainda estão por vir, através deste breve histórico apresentado, podemos
refletir sobre a necessidade de intervirmos com projetos com mais qualidade
arquitetônica e urbanística. As políticas públicas, voltadas à habitação, deve-
riam apresentar a complexidade produzida nas cidades, revendo modelos an-
tigos que são não apenas anacrônicos, como também totalmente inadequados
no que se refere à otimização das infraestruturas, às perspectivas de expansão
e às densidades urbanas.
O alcance quantitativo dos programas públicos habitacionais deve ser
acompanhado de um desempenho que contemple resultados para minimizar
os efeitos de situações problemáticas, como a reprodução do modelo periféri-
co de expansão urbana, que implanta empreendimentos habitacionais além da

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Mariana Cicuto Barros - 191

malha urbana, desprovidos de infraestrutura consolidada. O exemplo da casa


isolada no lote, dos empreendimentos habitacionais implantados em áreas dis-
tantes e sem urbanidade, a repetição de tipologias, perduram como proposi-
ções que devem ser reformuladas e aprimoradas em conjunto com a realidade
das cidades brasileiras.

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Solange de Aragão - 193

CAPÍTULO IX
CARACTERIZAÇÃO DOS ESPAÇOS LIVRES DE
EDIFICAÇÃO NO ÂMBITO RESIDENCIAL
Solange de Aragão

O pequeno jardim em frente às casas, a praça, o parque e mesmo a rua e


a calçada são espaços livres de edificação. De acordo com Miranda Martinelli
Magnolli, espaços livres de edificação são todos os espaços da cidade que não
são ocupados pelos edifícios245. Esses espaços podem ser públicos246 (como as
praças, os parques, as ruas, as calçadas, os canteiros e os calçadões junto à praia),
privados247 (como as áreas ajardinadas junto às residências, os quintais e os re-
cuos laterais no interior dos lotes) ou semipúblicos, sendo de acesso ao públi-
co de um modo geral, ainda que de propriedade privada (como alguns espaços
abertos e de acesso a todos, situados entre os edifícios de grandes empresas).
No âmbito residencial, os espaços livres correspondem às áreas no inte-
rior dos lotes ao redor das casas térreas, sobrados e edifícios isolados, ou entre
as casas de vila, as casas dos condomínios fechados e os edifícios de apartamen-
to implantados em conjunto. Esses espaços têm uma importância e um signi-

245
MAGNOLI, Miranda Martinelli. Espaços livres e urbanização: uma introdução a aspectos
da paisagem metropolitana. São Paulo: FAU-USP, 1982.
246
“Se a vida privada e social tem nos espaços edificados seu maior abrigo, a vida pública tem
seu maior suporte físico-material para ocorrer nos espaços livres públicos, são eles os espaços de
maior acessibilidade, de maior capacidade para receber a diversidade, a pluralidade e o impre-
visto, características de uma esfera pública mais rica.” QUEIROGA, Eugenio Fernandes. Da
relevância pública dos espaços livres um estudo sobre metrópoles e capitais brasileiras. Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 58, São Paulo, Junho de 2014. http://dx.doi.org/10.11606/
issn.2316-901X.v0i58p105-132.
247
“Os espaços livres privados constituem boa parte dos espaços livres das cidades brasileiras,
apresentando importância no sistema de espaços livres urbanos, sobretudo pelo aspecto de
complementaridade funcional, mas também contribuindo em aspectos ambientais – da escala
do lote à das metrópoles. São quintais, jardins, estacionamentos de centros comerciais ou de
logística, pátios fabris, vias de acesso de condomínios, são também lotes e glebas urbanas
desocupadas, com diferentes graus de cobertura vegetal. Nesses locais, ocorre importante
parcela da vida cotidiana, do trabalho doméstico ao corporativo, das festas familiares ao lazer
em clubes, etc.” QUEIROGA, Eugenio Fernandes. Da relevância pública dos espaços livres
um estudo sobre metrópoles e capitais brasileiras. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.
58, São Paulo, Junho de 2014. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i58p105-132.

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194 - Capítulo IX – Caracterização dos espaços livres de edificação no âmbito residencial

ficado para os moradores, de um modo mais específico, e para a paisagem, ou


para a cidade, de um modo mais amplo.
É possível pensar na caracterização desses espaços e na análise do papel
que desempenham para os moradores e para a cidade, de acordo com o tipo
de residência ou com o tipo de habitação, entendendo-se a habitação como o
abrigo do homem ou como a casa no sentido proposto por Gaston Bachelard:
“[...] todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”248.
Assim, nas casas térreas e sobrados, os espaços livres de edificação corres-
pondem às áreas definidas como recuos249 (frontal, lateral, posterior) ou a even-
tuais pátios ou jardins internos descobertos, cercados pela habitação.
Normalmente, quando se tem um recuo frontal junto à casa (na cidade
brasileira de um modo geral e na cidade de São Paulo de um modo mais es-
pecífico), ora este é destinado ao jardim, ora à garagem do automóvel e, even-
tualmente, quando há espaço, é constituído por ambos – jardim e vaga de
garagem. O jardim no recuo frontal é um elemento que agrega valor estético
não apenas à construção, mas também à paisagem, especialmente quando não
é cercado por muros altos que impedem a sua visualização. Além disso, quan-
do ajardinado, o recuo frontal representa uma quantidade significativa de áre-
as permeáveis no interior do lote que, se somadas no tecido urbano, podem ter
um papel ambiental bastante expressivo – no quesito permeabilidade do solo
–, contribuindo para reduzir as enchentes e para manter o lençol freático em
níveis adequados, além da questão da preservação, recuperação ou mesmo ma-
nutenção da flora e da fauna urbana. Por outro lado, quando o recuo frontal
corresponde ao cimentado da garagem não agrega nem valor estético nem am-

248
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço [1957]. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 25. E
ainda: “[...] a casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo.
É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.” (p. 24).
249
Em Morfologia urbana e desenho da cidade, José Lamas, ao analisar os elementos morfológicos
do espaço urbano denomina essas áreas de “logradouro”:
“O logradouro constitui o espaço privado do lote não ocupado por construção, as traseiras, o
espaço privado, separado do espaço público pelos contínuos edificados. [...]
Teve várias utilizações ao longo das épocas, desde a horta ou quintal até a oficina, garagem
ou anexo, ou utilização coletiva em situações mais recentes, em sistema de condômino. É, em
boa medida, na utilização do logradouro que se torna possível a evolução das malhas urbanas:
densificação, reconstrução, ocupação.” LAMAS, José. Morfologia urbana e desenho da cidade. 3.
ed. Porto Fundação Calouste Gulbenkian: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2004. p. 98.

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Solange de Aragão - 195

biental à paisagem ou à construção250. E nos casos em que é possível compa-


tibilizar ambos – garagem e jardim –, é possível atribuir um sentido útil, um
valor estético e um valor ambiental a esses espaços, embora a imagem do auto-
móvel desqualifique a paisagem. Em Cidade brasileira, Murillo Marx salienta
essa disputa do jardim com o automóvel ao longo do século XX:

Neste século, numa sociedade em transformação e renovação de


valores sociais afirmados, o jardim passa a ser aspiração geral e se
difunde. Em frente de casas, maiores e menores, em lotes de todo
o tamanho, aparece um verde fronteiro, ainda que amenizando
um mínimo de recuo. E disputa com as imposições dos códigos
de obras, com as necessárias ampliações das casas e com o abrigo
do automóvel um lugar ao sol.251

O recuo posterior é quase sempre “quintal” – uma área com piso que
pode ou não apresentar canteiros ou áreas com vegetação (por vezes, com árvo-
res frutíferas como a jabuticabeira), e que pode servir de área de estar, de área
de lazer e, quase sempre, de complemento à área de serviço, onde se estendem
as roupas ao sol. É importante para os moradores por se tratar de um espaço
livre mais privativo, onde se pode estar sem ser visto pelos transeuntes e, nesse
sentido, é um complemento não apenas à área de serviço, mas à própria habita-
ção. Esse espaço pode ou não receber tratamento paisagístico, do que dependerá
o nível de qualidade estética, e sua qualidade ambiental estará intrinsecamente
ligada à existência de áreas permeáveis e de vegetação (a qual costuma atrair a
fauna local252). Mas dessas áreas situadas atrás das casas só é possível ver uma

250
Há casos ainda que são essencialmente contraditórios, em que o proprietário da casa térrea
ou do sobrado coloca um cimentado em todo o recuo frontal e em seguida dispõe alguns
vasos com plantas, como se quisesse fazer lembrar a ideia do jardim. Neste caso, essa área é
totalmente impermeabilizada e o que o proprietário pretende é agregar algum valor estético
ao espaço, que se tornou árido com o cimentado.
251
MARX, Murillo. Cidade brasileira. São Paulo: Melhoramentos: Edusp, 1980. p. 61.
252
Em O jardim de granito, Anne Whiston Spirn afirma que: “Parques e jardins privados com-
postos por uma topografia diversa e diversos tipos e arranjos de plantas abrigam um número
maior de espécies de pássaros”. SPIRN, Anne Whiston. O jardim de granito. São Paulo: Edusp,
1995, p. 245. Alguns paisagistas da atualidade têm procurado escolher espécies que atraiam
pássaros para os jardins implantados nos recuos frontal ou posterior. Existem algumas obras

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196 - Capítulo IX – Caracterização dos espaços livres de edificação no âmbito residencial

ou outra árvore ou palmeira sobressalente, ou ainda, a massa de vegetação que


se forma pelo conjunto de árvores de todos os lotes (especialmente quando to-
das as residências têm quintais arborizados) e isto a certa distância ou mesmo
em pontos privilegiados da cidade.
No que concerne aos recuos laterais, estes correspondem, em sua maio-
ria (à exceção do que acontece nas residências que ocupam lotes de maiores di-
mensões), a corredores laterais cobertos com piso e, às vezes, com um pequeno
canteiro de vegetação de traçado linear, onde nem sempre é possível cultivar
arbustos ou árvores, apenas uma vegetação mais rala ou uma trepadeira que
avança pelos muros que delimitam o terreno.
É preciso lembrar ainda que esses tipos de espaços livres junto à casa vão
desaparecendo com o processo de verticalização no espaço urbano. Quando as
casas dão lugar aos edifícios, desaparece o jardim do sobrado e da casa térrea e
surge o jardim do condomínio – “mais para ver do que para tratar ou frequen-
tar”, como tão bem salienta Murillo Marx em sua obra Cidade brasileira253.
Os espaços livres condominiais254 correspondem a todos os espaços li-
vres de uso comum dos condomínios verticais (com um ou mais edifícios de
apartamentos) e horizontais (formados por casas de arquitetura semelhante ou
diferenciada). Esses espaços podem apresentar um programa de necessidades
simples, composto por áreas ajardinadas, áreas de circulação, áreas de estar e
áreas de recreação infantil, ou mais complexo, à semelhança de um clube, com
piscinas, quadras esportivas e pistas de cooper; podem estar isolados da cidade
por meio de grades baixas ou altas que permitem sua visualização a partir da
rua, ou cercados por muros altos, constituindo áreas segregadas no tecido ur-

elaboradas por especialistas que podem ser consultadas nesse sentido, entre elas, destacam-se:
FRISCH, Johan Dalgas. Aves brasileiras e plantas que as atraem. 3. ed. São Paulo: Dalgas Ecoltec,
2005 e FRISCH, Johan Dalgas. Jardim dos beija-flores. São Paulo: Dalgas Ecoltec, 1996.
253
MARX, Op. cit., p. 61.
254
Sobre esses espaços livres, ver também os artigos da autora: ARAGÃO, Solange de. Espaços
Livres Condominiais. Risco (São Carlos), v. 6, p. 49-64, 2007. Disponível em: http://www.
revistas.usp.br/risco/article/view/44712 e ARAGÃO, Solange de. Do conjunto ajardinado ao
conjunto parque – variações tipológicas na paisagem paulistana. Pós – Revista do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, v. 20, p. 106-120, 2007. Disponível
em: http://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/43488.

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Solange de Aragão - 197

bano, conformando uma “cidade de muros”, por meio da constituição de “en-


claves fortificados”, como observa Teresa Caldeira:

Os condomínios fechados são a versão residencial para uma cate-


goria mais ampla de novos empreendimentos urbanos que chamo
de enclaves fortificados. Eles estão mudando consideravelmente a
maneira como as pessoas das classes média e alta vivem, consomem,
trabalham e gastam seu tempo de lazer. Eles estão mudando o
panorama da cidade, seu padrão de segregação espacial e o cará-
ter do espaço público e das interações públicas entre as classes.
[...] Todos os tipos de enclaves fortificados partilham algumas
características básicas. São propriedade privada para uso coletivo e
enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que
desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente
demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes
arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à
rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por
guardas armados e sistemas de segurança, que impõem as regras
de inclusão e exclusão.255

Além das questões urbanas e sociais, a qualidade ambiental dos espaços


livres condominiais fica muitas vezes comprometida em função da existência
da garagem no subsolo, que não apenas reduz a quantidade de áreas perme-
áveis, como leva à necessidade de criação de jardins sobre laje, o que limita o
porte e a diversidade das espécies.
Outra crítica referente a esses espaços diz respeito à composição do pro-
grama de necessidades, uma vez que muitas das áreas propostas e exigidas pe-
las imobiliárias e construtoras acaba ficando sem uso, seja pelos corredores de
vento formados pela própria disposição, altura e volume dos edifícios, seja
pela incidência do sombreamento desses edifícios nas áreas e equipamentos
de uso comum, seja pelo constrangimento de ser observado pelos outros mo-
radores (particularmente nas áreas com piscinas), seja pela necessidade de ter
de deixar o apartamento (ou “sair de casa”) para fazer uso desses espaços –

255
CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2. ed.
São Paulo: Editora 34: EDUSP, 2003. p. 258-9.

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198 - Capítulo IX – Caracterização dos espaços livres de edificação no âmbito residencial

diferentemente do que acontece nos quintais das residências, onde os mora-


dores têm maior privacidade e acesso direto de suas casas aos espaços livres,
o que pode ser verificado da mesma forma nos quintais das casas de condo-
mínios horizontais. Nestes, embora não existam prédios altos sombreando as
áreas de uso comum, nem formando corredores de vento, os espaços condo-
miniais também não são muito utilizados em função da existência do quin-
tal, onde cada morador dispõe de uma piscina própria e de áreas de estar e
lazer. Uma das raras exceções é a quadra esportiva, que costuma atrair jo-
vens, crianças e adolescentes do condomínio. Nesses conjuntos horizontais,
a quantidade de áreas permeáveis e de áreas ajardinadas implantadas direta-
mente no solo pode ser mais expressiva, criando uma condição mais favorá-
vel à flora e à fauna urbana, não obstante toda a devastação da vegetação que
precede sua construção256. Mas do mesmo modo que os condomínios verti-
cais, parte considerável desses conjuntos horizontais é cercada por altos mu-
ros, isolando-se no tecido urbano e resultando em paisagens muradas em vez
de paisagens conformadas por jardins.
Ainda em relação aos conjuntos de edifícios, um caso bastante específico
de espaços livres são as áreas comuns dos conjuntos habitacionais, que não raro
correspondem aos espaços livres residuais entre os edifícios quase sempre dispos-
tos paralelamente, sem um cuidado maior com a implantação. Considerando-se
que é também da disposição dos edifícios que resultam ou não espaços livres de
qualidade, a repetição dos blocos ou torres sem uma preocupação maior em re-
lação à implantação, como se tem visto com frequência (uma forma de herança
equivocada do Movimento Moderno), tem como consequência a produção de
áreas residuais que acabam sendo apropriadas pelos moradores individualmen-
te. São espaços concebidos sem tratamento paisagístico, como simples corre-
dores entre blocos, que, se pensados em conjunto com a habitação, poderiam
melhorar significativamente a qualidade da paisagem local e atrair os morado-
res do conjunto – poderiam contribuir para o aumento do valor estético e não
para sua anulação como usualmente acontece nesses conjuntos.

256
Sobre esse aspecto – de devastação da vegetação para construção dos condomínios horizontais,
ver o artigo: ARAGÃO, Solange de & SILVA FILHO, Carlos Alberto da. As antigas e as novas
vilas de São Paulo: conceituação e estudos de caso. Paisagem e Ambiente, São Paulo, v. 1, n.12,
p. 29-68, 1999. O coautor, Carlos Alberto da Silva Filho, é engenheiro-agrônomo do DEPAVE
(o Departamento de Áreas Verdes da cidade de São Paulo) e acompanhou todo esse processo.

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Solange de Aragão - 199

Outro tipo de espaço livre junto à habitação ainda bastante comum em


algumas cidades brasileiras é o pátio das vilas – um espaço conformado pelas
casas de mesma arquitetura, que pode ser simplesmente coberto por paralele-
pípedos e utilizado como estacionamento de veículos ou pode apresentar al-
gum tratamento paisagístico, com piso diferenciado, canteiros com árvores e
palmeiras e até mesmo fontes257. Trata-se de áreas “escondidas” no interior dos
quarteirões, às quais se pode atribuir a riqueza do “elemento surpresa”, aprego-
ado por Gordon Cullen em seu texto Paisagem urbana:

[...] mas siga-se o percurso: o primeiro ponto de vista é a rua; a se-


guir, ao entrar no pátio, surge novo ponto de vista, que se mantém
durante a travessia na segunda rua, porém, depara-se com uma
imagem completamente diferente; e, finalmente, a seguir à curva,
surge bruscamente o monumento. Por outras palavras, embora o
transeunte possa atravessar a cidade a passo uniforme, a paisagem
urbana surge na maioria das vezes como uma sucessão de surpresas
ou revelações súbitas.258

Essa sucessão de surpresas é muito frequente no caso das vilas. Da rua


vê-se apenas a rua estreita entre duas casas, adentrando a quadra. É preciso
percorrer a rua para descobrir e vislumbrar o pátio. Este, quando coberto por
paralelepípedos ou pisos permeáveis e quando apresenta canteiros de vegeta-
ção, representa uma contribuição ainda que pouco expressiva por suas dimen-
sões, à permeabilidade do solo urbano e ao desenvolvimento ou manutenção
da flora e da fauna; por outro lado, quando é todo cimentado não contribui
para a amenização dos problemas ambientais urbanos.
É importante lembrar que os espaços livres junto à habitação de uma
forma geral apresentam potencialidades no que diz respeito à permeabilidade
do solo, à manutenção da flora e da fauna urbana, ao valor estético da paisa-
gem e ao uso pelos moradores como áreas de estar, de lazer e de contemplação.

257
Sobre as vilas e seus espaços livres de edificação, ver também o livro: ARAGÃO, Solange
de. No interior do quarteirão: um estudo sobre as vilas da cidade de São Paulo. São Paulo:
Annablume, 2010.
258
CULLEN, Gordon. Paisagem urbana [1959]. Lisboa: Edições 70, 1971. p. 11.

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200 - Capítulo IX – Caracterização dos espaços livres de edificação no âmbito residencial

Todavia, é necessária uma conscientização da população, dos governantes e


dos agentes imobiliários em relação ao importante papel que esses espaços de-
sempenham (ou podem desempenhar) na qualificação da paisagem e do meio
ambiente urbano. E não se trata apenas da elaboração de projetos paisagísti-
cos adequados para esses espaços, mas da compreensão do que representam no
contexto urbano – das cidades que se expandem continuamente diminuindo
dia após dia a reserva de áreas florestadas ou cobertas por vegetação. A escolha
muitas vezes depende do próprio morador ou do futuro proprietário: a opção
é por áreas permeáveis, arborizadas e ajardinadas ou por áreas cimentadas sem
vegetação alguma? Outras vezes depende do olhar do arquiteto: a opção é pela
criação de espaços livres residuais ou por espaços livres que agregam valor ao
empreendimento e à paisagem como um todo?
Cabe ainda perguntar como se deve conceber esses espaços livres junto
à habitação. Antes de tudo, da mesma forma que no projeto dos espaços livres
públicos mais amplos e complexos como as praças, é preciso pensar nos espa-
ços que se pretende criar e na qualidade desses espaços, em vez de simplesmente
traçar caminhos relativamente estreitos a partir dos fluxos existentes ou futuros
e deixar o restante da área para canteiros de vegetação. Os espaços livres jun-
to à habitação também necessitam de bons projetos paisagísticos, sejam eles as
áreas de uso comum em um condomínio ou os recuos de uma residência. No
primeiro caso, deve-se levar em conta o norte, a insolação, a topografia do ter-
reno, a vegetação existente, os acessos (de veículos e pedestres) principais ou
secundários, sociais ou de serviços, as áreas de circulação, as áreas sombreadas
pelos edifícios, a quantidade de áreas permeáveis, as áreas onde se pode ou não
ter árvores plantadas diretamente no solo, as espécies (de árvores, palmeiras, ar-
bustos, grama e forração) que sobrevivem no tipo de solo existente no terreno
em suas condições climáticas, os ambientes que se pretende criar e as caracte-
rísticas desses ambientes (ensolarados, sombreados, amplos ou aconchegantes,
isolados ou agrupados, claros ou escuros, sérios ou lúdicos) e qual o traçado a
ser adotado (com predomínio de linhas curvas ou retas, mesclado, com diago-
nais, radial, concêntrico). Muitas vezes o próprio desenho do edifício ou sua
forma de implantação sugere uma ou outra linguagem projetual, mas edifícios
retilíneos, por exemplo, ou quadrangulares, podem inspirar tanto um traçado
mais orgânico e sinuoso, como um traçado mais linear.

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Solange de Aragão - 201

Quando se vai elaborar o projeto paisagístico de uma residência, deve-se


tomar o mesmo cuidado em relação a cada uma das áreas criadas (sejam áreas
de piso ou áreas de vegetação). Todavia, quando o lote é muito estreito ou de
reduzidas dimensões, deve-se explorar ao máximo a composição das espécies
vegetais e o tratamento das superfícies verticais (como muros e paredes) por
meio de texturas diferenciadas, cores, vegetação ou materiais variados. O tra-
balho com águas também é possível neste caso em meio ao jardim, no recuo
frontal, ou em ambientes acolhedores no recuo posterior, ou acompanhando
os muros no recuo lateral, ou mesmo em um eventual pátio existente no inte-
rior da residência.
Da mesma forma que os espaços livres públicos, como salienta Fabio
Mariz Gonçalves em sua tese de doutorado intitulada O Desenho da Paisagem
e a Relação entre os Padrões de Urbanização e o Suporte Físico259, os espaços livres
de uso privado, junto à habitação, situados no interior dos lotes podem desem-
penhar um papel importantíssimo na qualificação da paisagem e do meio am-
biente urbano. Por isso seu projeto deve ser considerado cuidadosamente pelos
profissionais especializados e o papel que desempenham na paisagem e no espa-
ço da cidade deve ser levado em conta nas alterações propostas pelos moradores.

259
MARIZ, Fabio. O desenho da paisagem e a relação entre os padrões de urbanização e o suporte
físico. (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
São Paulo: FAUUSP, 1999.

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Eliana Maria Tancredi Zmyslowski - 203

CAPÍTULO X
OS ESPAÇOS HABITACIONAIS CONTEMPORÂNEOS
NO DESIGN DE INTERIORES:
UMA RELAÇÃO FÍSICA, SOCIAL E SENSORIAL
Eliana Maria Tancredi Zmyslowski

Na contemporaneidade, percebe-se um envolvimento do indivíduo cada


vez mais presente nos espaços. Envolvimento este que pode estar marcado pela
integração de uma relação experimental do individuo, seja ela, física, social ou
emocional.
Percebemos cada vez mais que há uma humanização nos espaços, que é
fortemente marcada por meio de sua relação experimental. Notamos, especi-
ficamente, que os espaços domésticos estão mudando, ou melhor, se transfor-
mando em função do comportamento dos habitantes.
Muitas dessas mudanças, além de comportamentais, são culturais e so-
ciais, e um dos fatores fundamentais na contemporaneidade que contribui para
essas mudanças é a inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TIC) provocando transformações nos espaços domésticos.

A configuração do espaço doméstico contemporâneo:


comportamento e perfil do usuário

Verificamos que o homem contemporâneo passa a maior parte do dia em


espaços fechados, utilizando-se cada vez mais dos interiores destes.
Citamos como exemplo um indivíduo que dorme, estuda, trabalha e se
locomove de um espaço ao outro dentro de um veículo. Entre outras ativida-
des corriqueiras do seu dia-dia, podemos dizer que ele passa quase dia e noite
inteiros dentro de espaços fechados, como o dormitório, a sala de aula, o es-
critório, o carro, etc.
Tal fato nos permite perceber que na contemporaneidade há uma hu-
manização nos espaços, ou seja, um envolvimento cada vez mais presente das
pessoas nos espaços, seja para criar (designer) e/ou participar (usuário) desses

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204 - Capítulo X – Os espaços habitacionais contemporâneos no design de interiores

espaços. O fato de o indivíduo querer humanizar os espaços podemos dizer que


está relacionado à quantidade de tempo que ele passa dentro dos mesmos, o que
favorece a busca do seu “interior”, o “cocconing” – comportamento individual
do ser humano que acaba exigindo dos espaços bem-estar, conforto, estabili-
dade ou satisfação e, por outro lado, que ele possa almejar elementos que dão
o tom a um espaço, transformando-o em uma espécie de “cápsula protetora”.

Por exemplo, em 1981, vimos à emergência do Encasulamento.


Embora fosse a época do sexo, drogas e rock and roll, acreditamos
que o consumidor futuro estaria ansiando por enroscar-se na cama
com uma deliciosa pizza. Criar um casal de filhos, quem sabe
iniciar um negócio em casa.260

“Faith Popcorn”, criadora do verbo encasular e “grande guru” de tendên-


cias pessoais e de negócios, identifica as dezesseis principais tendências mun-
diais para as próximas décadas, entre elas, o encasulamento261.

Quando cunhamos o termo Encasulamento, queríamos nos refe-


rir a entocar-se, encomendar comida em casa e ver os programas
favoritos na televisão. O encasulamento evocava imagens calorosas
de lares. De ninhos. De carinho. De diversão em casa. De entrar
em sintonia com aqueles de quem gostamos.262

As tendências citadas por “Popcorn” estabelecem uma complexa relação


entre o homem e o espaço – dados diagnosticados há alguns anos, mas que ain-
da podem ser percebidos e estão cada vez mais presentes nos espaços residen-
ciais e comerciais nos projetos de interiores. Contudo, isso nos faz pensar em

260
POPCORN, Faith, MARIGOLD, Lys. Click: 16 tendências que irão transformar sua vida,
seu trabalho e seus negócios no futuro. Tradução de Ana Gibson. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
261
Encasulamento – impulso de ficar dentro de casa, quando o lado de fora se torna muito
difícil e ameaçador. Um número cada vez maior de pessoas está transformando suas casas
em verdadeiros ninhos – fazem nova decoração, assistem a filmes pela TV a cabo, utilizam
a Internet para fazer compras e usam a secretária eletrônica para filtrar o mundo exterior. A
segurança do lar é o que importa.
262
POPCORN, op. cit., p. 53.

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Eliana Maria Tancredi Zmyslowski - 205

uma organização e construção desses espaços, que diretamente transferem um


atendimento das necessidades, anseios e desejos, que são específicos e indivi-
duais para cada usuário.
Os habitantes de um espaço, por serem seus usuários, fazem desse lugar
um ambiente próprio, um lugar produzido, determinado pelos aspectos dos
usuários que o utilizam. Um lugar caracterizado que muitas vezes pode ser até
imaginário e inatingível.
Para isso percebemos que para um espaço ser próprio ele precisa ter a
participação não só física e social de um individuo, mas também emocional.

Os espaços físicos, sociais e sensoriais nos espaços


habitacionais domésticos

Dentre as várias áreas do conhecimento que atribuem significados à pa-


lavra espaço263, tomaremos como base a arquitetura, pois o estudo dos espaços
domésticos desse texto está inserido no design de interiores264, que está direta-
mente relacionado à arquitetura.
Segundo Mirian Gurgel: “É chamado de espaço a área compreendida en-
tre paredes, piso e o teto de um determinado ambiente, ou ainda a área com-
preendida entre limite da marcenaria de um armário”265.
Portanto, para um reconhecimento conceitual de espaço físico no design
de interiores, este será tratado neste capítulo como um espaço construído ou,
melhor dizendo, arquitetonicamente construído.
Ao descrever graficamente o espaço construído266 por meio dessa repre-
sentação, geralmente usa-se um sistema de projeção ortogonal bidimensional
– largura e comprimento. Esse sistema estabelece uma relação geométrica com
o espaço arquitetônico, que gera uma projeção tridimensional – com três di-
mensões tradicionais – largura, comprimento e altura. Neste sentido, podemos

263
A palavra espaço possui várias acepções dentro de várias ciências.
264
O Design de Interiores é muitas vezes confundido com decoração. Trata-se na verdade de
uma “técnica cenográfica, visual e arquitetônica” aplicada nos ambientes internos da construção.
265
GURGEL, Mirian. Projetando espaços: guia de arquitetura de interiores para áreas residen-
ciais. São Paulo: SENAC, 2005. p. 26.
266
Espaço estruturalmente edificado.

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206 - Capítulo X – Os espaços habitacionais contemporâneos no design de interiores

afirmar que a construção geométrica de um espaço construído vem consequen-


temente da representação gráfica e física desse espaço.
Aproveitando também o viés da arquitetura para dar significado ao espa-
ço social, dizemos que ele determina ou é determinado por áreas que são seto-
rizadas de acordo com a função destinada a esse espaço, por exemplo, íntimos,
sociais, de serviços, de lazer, entre outros.
Portanto, o espaço social tratado no design de interiores é composto
pelo mobiliário e/ou habitantes que pertencem a esse espaço doméstico e que
se apropriam desse espaço, estabelecendo relações sociais e funcionais que de-
pendem do fim a que este se destina.

O espaço social, é o espaço destinado à sociabilizarão, deve ter


uma atmosfera que propicie a convivência entre as pessoas.”267
É a sociedade que produz o espaço social, através da apropriação
da natureza, da divisão do trabalho, e da diferenciação. O próprio
espaço físico é também construção do imaginário individual e
coletivo.268

O espaço sensorial é conceituado no espaço doméstico através das relações


experimentais com os habitantes. Buscamos componentes abstratos que o defi-
nem em sua natureza física e social, a serem experimentados emocionalmente
através dos sentidos, como visão, tato e olfato, entre outros. Portanto, o espa-
ço sensorial no ambiente doméstico é resgatado pelos sentidos através de seus
habitantes. Dizemos que o espaço sensorial é imensurável, instável e não linear.
Para Antonio Fernandes, trata-se “de um espaço descontínuo, em cor-
respondência com a própria visualidade do mundo simbólico. É uma repre-
sentação que resulta de uma repreensão sensorial e imagética da realidade”269.

267
GURGEL, Mirian. Projetando espaços: guia de arquitetura de interiores para áreas residen-
ciais. São Paulo: SENAC, 2005. p. 121.
268
FERNANDES, Antonio Teixeira. Espaço social e suas representações. Revista da Faculdade
de letras da Universidade do Porto, Porto-Portugal, 1992. p. 62.
269
FERNANDES, op. cit., p. 69.

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Eliana Maria Tancredi Zmyslowski - 207

A configuração do espaço em setores:


social, íntimo e serviços

Percebemos, nos dias de hoje, que os espaços domésticos, em grande parte


das classes sociais, culturais e regionais do Brasil, seguem ainda o mesmo mo-
delo tripartido270 burguês francês do século XIX, que serve como exemplo pa-
drão de divisão e organização para espaços domésticos contemporâneos. Uma
das características marcantes de tal modelo é sua configuração interna triparti-
da em setor social, íntimo e de serviços.
Verificamos esse modelo repetitivo e refletido várias vezes nos espaços
domésticos, principalmente no ocidente, onde satisfaz a convivência social e
familiar entre os habitantes.
Também podemos verificar o mesmo modelo em várias plantas e
“layouts”271 residenciais projetados por profissionais da área de engenharia e
arquitetura – modelo padrão de espaços residenciais independentemente da
metragem de sua área, localização ou mesmo padrão econômico das regiões
em que se situam.
Contudo, cria-se uma linguagem arquitetônica visual e espacial entre as
pessoas, a qual todas conhecem e compreendem, independentemente de seus
conhecimentos culturais, sociais e regionais.

Para falar ou entender uma língua, não é preciso ser alfabetizado;


não precisamos ser visualmente alfabetizados para fazer ou com-
preender mensagens. Essas faculdades são intrínsecas ao homem,
e, até certo ponto, acabam por manifestar-se com ou sem o auxílio
da aprendizagem e de modelos.272

Por exemplo, ao analisarmos uma planta atual de uma casa na cidade de


São Paulo (ou em qualquer lugar do Brasil), notamos claramente a presença
da tripartição em setores: social (living, sala de jantar e lavabo), íntimo (quartos
270
Modelo de tripartição burguesa de classificação do espaço residencial: entre área social,
íntima e de serviços; modelo utilizado pela burguesia europeia do século XIX.
271
Estudos preliminares, croquis.
272
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 86.

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208 - Capítulo X – Os espaços habitacionais contemporâneos no design de interiores

e banheiros) e de serviços (cozinha, lavanderia e dormitório de empregados),


respectivamente identificados no layout com as cores vermelho, azul e amare-
lo (Figura 1):

Figura 1 – Modelo tripartido de espaços interiores residenciais.


Layout decorado para um cliente criado pela autora out./2013

Percebemos, assim, que a imagem possui uma distribuição nitidamente


setorizada e compartimentada.
Portanto, ao abordar esse assunto, observamos que o sujeito busca, por
meio da semelhança e associação, o modelo tripartido, que acaba sendo adequa-
do ao seu perfil e transferido ao seu espaço doméstico.
Para tanto, é notável o quanto o espaço influencia o sujeito, e como o
sujeito é influenciado pelo espaço. E também o quanto o espaço traduz o com-
portamento e o perfil do sujeito.
Esses dados são muito importantes para a organização e hierarquização
dos ambientes domésticos e também para o atendimento das necessidades, an-
seios e desejos, que são específicos e individuais para cada habitante do espa-
ço doméstico. Cria-se, dessa forma, um espaço construído chamado de casa.

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Eliana Maria Tancredi Zmyslowski - 209

Nota-se que ‘casa’ não é apenas a edificação, o conjunto arquite-


tônico, ainda que possa ser tomado como tal, até porque o que a
define, em arquitetura, não é configuração espacial, mas seu uso.
Grosso modo, a casa seria resultante de uma modalidade de uso
de um espaço construído, ou seja, quando atendesse às funções
previstas para operar como uma casa. 273

A casa como um lugar caracterizado por um espaço imaginário, um es-


paço chamado de “lar”, muitas vezes denominado “Lar-doce-lar”. Entretanto,
para um espaço ser chamado de “lar”, precisa ter a participação não só física e
social do sujeito, mas também emocional.
A casa é um espaço-lugar e o “lar” é um não-espaço/não-lugar. Para Marc
Augé o não-lugar é próprio da contemporaneidade, designando um espaço que
não pode ser definido e construído. Portanto, a casa e os seus habitantes criam
um contato físico, social e emocional com esse espaço doméstico. Desta ma-
neira, podemos dizer que o espaço doméstico, como “nossa” casa, pode “falar”
por nós e se torna um “lar”, que significa em inglês home274, e traduzido para o
português é casa.
Podemos dizer que os espaços e lugares estão interligados com os não-
-espaços e não-lugares. A casa é um espaço-lugar e, para Marc Augé275, o espa-
ço é produzido pela prática dos lugares.

Na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços,


os lugares e os não lugares misturam-se, interpenetram-se.276
A possibilidade do não-lugar nunca está ausente de qualquer
lugar que seja. A volta ao lugar é o recurso de quem frequenta
os não-lugares (e que sonha, por exemplo, com uma residência
secundária enraizada nas profundezas da terra). Lugares e não-

273
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afetos e espaços domésticos. São
Paulo: Perspectiva, 2002. p. 64.
274
Home significa não só casa em inglês, mas também tudo que se refere a ela, por exemplo,
home-office, home-theater.
275
AUGÉ, Mac. Não Lugares: introdução a uma antropologia da super modernidade. São
Paulo: Papirus, 1994, p. 80.
276
Ibid., p. 98.

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210 - Capítulo X – Os espaços habitacionais contemporâneos no design de interiores

-lugares se opõem (ou se atraem), como as palavras e as noções


que permitem descrevê-las.277

Portanto, a casa como lugar “certo” de seus habitantes configura-se mais


com os seus usuários em um contato físico, social e emocional, do que em uma
relação de um espaço limitado para acomodar seus habitantes. Tal ideia nos
possibilita entender a teoria das Cinco Peles de Hundertwasser278, que Suzana
Barreto Martins utiliza em seu texto “Ergonomia e moda: repensando a segunda
pele”, para argumentar a sobrevivência do ser humano em sua existência terrena.

Correspondem às Cinco Peles: a primeira pele – a epiderme, a


segunda pele – a vestimenta, a terceira pele – a casa do homem,
a quarta pele – o meio social e a identidade e a quinta pele – a
humanidade, a natureza e o meio ambiente.279

Pensar o ser humano com cinco peles é, de alguma forma, sugerir outras
possibilidades para seus limites e suas fronteiras. Uma pele que incorpora di-
ferentes dimensões e múltiplas formas, uma vez que se apresenta como sendo
muito mais do que uma simples membrana física, funcionando não só como
uma capa, mas como dimensão e extensão do próprio corpo. Desse modo, po-
demos dizer que a casa é a extensão do ser280.

277
AUGÉ, Mac. Não Lugares: introdução a uma antropologia da super modernidade. São
Paulo: Papirus, 1994, p. 98.
278
Pintor, artista gráfico e arquiteto (Viena, 15 de dezembro de 1928-19 de fevereiro de
2000). Friedrich Stowasser, mais conhecido pelo nome de Friedensreich Hundertwasser neto
do conhecido filósofo Joseph Maria Stowasser.
279
MARTINS, Suzana Barreto. Ergonomia e moda: repensando a segunda pele. In: PIRES,
Dorotéia Baduy (Org). Design de moda: olhares diversos Barueri, SP: Estação das Letras e
Cores Editora, 20086. p. 319-336.
280
No sentido de todo ente vivo e/ou animado.

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Eliana Maria Tancredi Zmyslowski - 211

As inter-relações nos espaços habitacionais domésticos com o


sujeito e a tecnologia na contemporaneidade

Muitas mudanças culturais e sociais influenciam os ambientes domésti-


cos, e um dos fatores fundamentais que contribui para essas mudanças é a in-
serção TIC que provocam alterações e transformações nos mesmos.
Por exemplo, percebemos que antigamente os dormitórios eram muito
espaçosos e tinham apenas como mobiliário a cama, o armário e, quando muito,
uma cômoda, pois sua função era apenas de descanso e depósito de vestimentas.
Hoje, os dormitórios são pequenos e triplicaram suas funções. Nesse am-
biente precisamos estudar, assistir à televisão, jogar videogame, entre outras ati-
vidades, exigindo um planejamento mais detalhado. Muitos desses dormitórios
são suítes multifuncionais281 (ver Figura 2).

Bancada para estudos e Suíte (dormitó-


computador e acessórios rio e banheiro)

Apoio para TV e
vídeo-game com
acessórios. Armário para
roupas

Figura 2 – Dormitório multifuncional.


Layout decorado para um cliente criado pela autora out./2013

281
“Multifuncional” (substantivo feminino) é uma palavra de origem francesa, utilizada ori-
ginalmente para indicar aquele dormitório que possui um banheiro agregado.

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212 - Capítulo X – Os espaços habitacionais contemporâneos no design de interiores

A cozinha foi o primeiro e talvez, o principal, até os dias de hoje, ambien-


te doméstico a sofrer modificações em seus projetos espaciais devido à influên-
cia tecnológica. Antigamente, elas eram espaçosas para receber muitas pessoas;
um local onde acontecia de tudo, desde o ato de cozinhar e conversar, até re-
ceber os amigos, entre outros.
Hoje, as cozinhas são pequenas, compactas, e não recebem tantas pesso-
as, mas possuem máquinas (ou eletrodomésticos) para os mais diversos usos:
trituradores, multiprocessadores, purificadores, entre outros, além do sofisti-
cado fogão, da geladeira e do freezer (Figura 3).
As alterações e transformações dos ambientes domésticos estão direta-
mente relacionadas à evolução da tecnologia em nosso cotidiano.

Figura 3 – Cozinha compacta, integrada à sala de jantar.


Layout decorado para um cliente criado pela autora out./2014

Será que os ambientes domésticos estarão sempre em mudança em função da


tecnologia? De fato, percebemos que a tecnologia contribui para suas mudan-
ças e transformações, gerando sempre um planejamento e projeto para esses

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Eliana Maria Tancredi Zmyslowski - 213

espaços, que surgem por meio de formas diferenciadas do padrão que estamos
acostumados a viver.
Essa nova forma de “pensar” nos ambientes domésticos faz com que o de-
sign, especificamente o design de interiores, crie estratégias de espacializações
para um novo modelo, que diretamente tem a tecnologia como papel funda-
mental. “Para pensar casas contemporâneas convém começar por suas trans-
formações mais evidentes. Novas atitudes e novas máquinas combinam-se
produzindo novos espaços domésticos”.282
Com isso, conseguimos compreender como a tecnologia pode ser in-
fluenciar na relação do habitante com os ambientes domésticos no design de
interiores, tornando esses espaços integrados e multifuncionais (Figuras 4 e 5).

Figuras 4 e 5 – Espaços integrados: sala de TV/sala de jantar/copa/cozinha.


Layout decorado para um cliente criado pela autora out./2014

BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afetos e espaços domésticos. São
282

Paulo: Perspectiva, 2002. p. 94.

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214 - Capítulo X – Os espaços habitacionais contemporâneos no design de interiores

De certa forma, percebemos que o ambiente doméstico é influenciado


pelo habitante e o habitante interage com o mesmo, interferindo na sua rela-
ção física, social e emocional.
Podemos dizer que os ambientes domésticos são reconfigurados em fun-
ção das novas tecnologias, que estimulam os designers de interiores a criarem
espaços domésticos lúdicos, abrigando novas formas espaciais com novas e vá-
rias funções, tornando-os um verdadeiro laboratório de experimentações físi-
cas, sociais e sensoriais.

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Os Autores - 215

OS AUTORES

Solange Moura Lima de Aragão – docente e pesquisadora do curso de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) desde
2013 e coordenadora do Grupo de Pesquisa EAUT – O Espaço Arquitetônico
e Urbano e o Território, junto ao CNPq. Doutora (2005), Mestre (2000),
Arquiteta e Urbanista (1996) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo-USP, com Pós-Doutorado pelo Departamento de
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (2010)
e Pós-doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (2012).
Autora de livros sobre história das cidades, das edificações e dos jardins brasi-
leiros. Organizadora do livro São Paulo: história, memória e construção (2015).

Denise Falcão Pessoa – docente e pesquisadora da Universidade Nove de


Julho (UNINOVE) desde 1997. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade de São Paulo-USP, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela
University of Michigan, Arquiteta e Urbanista pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professora e Pesquisadora do Centro Universitário Belas Artes de
São Paulo. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase
em planejamento e projeto de edificação. É autora do livro Utopia e Cidades:
Proposições, publicado em 2006 pela Editora Annablume.

Catharina Teixeira – lecionou no curso de Arquitetura e Urbanismo da


Universidade Nove de Julho (UNINOVE) entre 2012 e 2016. Doutoranda
pelo IAU- USP São Carlos, Mestre em Habitação pelo Instituto de Pesquisas
Tecnológicas do Estado de São Paulo (2006), especialista em Desenho Urbano
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1996), Arquiteta e Urbanista
pela Universidade Católica de Santos (1988). Arquiteta responsável da Assessoria
Técnica Brasil Habitat, desenvolvendo projetos de arquitetura e urbanismo
ligados às políticas públicas habitacionais em parceria aos movimentos so-
ciais. Participou da pesquisa junto ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo –
IAU-USP – São Carlos para avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida.
Atualmente está ligada ao grupo de pesquisa CNPQ de Arquitetura, Inovação
e Tecnologia (ARQUITEC), da Universidade de São Paulo-USP.

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216 - Urbanismo & Habitação

Eliana Maria Tancredi Zmyslowski – docente na graduação do curso de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) desde
2010. Atua nas áreas de design, arquitetura e projeto de interiores. Mestre em
Design pela Universidade Anhembi Morumbi (2009), Arquiteta e Urbanista
graduada pela Faculdade Farias Brito (1986). É professora e coordenadora no
curso de Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá e sócia-diretora da em-
presa Zmyslowski Arquitetos Ltda.

Giselly Barros Rodrigues – docente e pesquisadora na graduação do curso


de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE)
desde 2013. Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie, Mestre em Habitação pelo Instituto de Pesquisas
Tecnológicas do Estado de São Paulo – IPT (2012), Arquiteta e Urbanista gra-
duada pela Universidade Anhembi Morumbi (2001). Professora na pós-gradu-
ação da Universidade Estácio de Sá (2015), além de atuar no escritório próprio
– GBARQ Arquitetura e Planejamento (2007), com ênfase em projetos de edi-
ficações e arquitetura de interiores.

Luciana Lessa Simões – docente e pesquisadora do curso de Arquitetura


e Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) desde 1995
e coordenadora adjunta desde 2013. Mestre em Planejamento Urbano
pela Universidade de Brasília (1997), Arquiteta e Urbanista graduada pela
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo-USP
(1987). É gerente da Prefeitura de Santo André, onde atua desde 1989, com
participação em conselhos gestores de políticas públicas, em convênios e
acordos de Cooperação Técnica com instituições de ensino superior – British
Columbia University (Canadá) e Politecnico di Torino (Itália) – e no grupo téc-
nico responsável pela adequação e acompanhamento dos ODMs – Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (ONU). Tem experiência em urbanização e
regularização de núcleos habitacionais, atuando principalmente nas seguin-
tes áreas: política habitacional e urbana, regularização fundiária, habitação
de interesse social, planejamento urbano e regional.

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Os Autores - 217

Mariana Cicuto Barros – docente e pesquisadora da Universidade Nove de


Julho (UNINOVE) desde 2012, representa a Universidade na Red ULACAV-
Red Universitaria Latinoamericana de Cátedras de Vivienda. Doutoranda
em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC
(UFABC), bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche (PDSE/CAPES) no
Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) de Lisboa (março/agosto
de 2017), Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Engenharia de
São Carlos (2011), Arquiteta e Urbanista pelo Centro Universitário Belas Artes
de São Paulo (2003). Foi arquiteta colaboradora da Assessoria Técnica Brasil
Habitat no período 2004 – 2014 e participou da pesquisa junto ao Instituto de
Arquitetura e Urbanismo – IAU-USP – São Carlos para avaliação do Programa
Minha Casa Minha Vida. Tem experiência na área de políticas públicas de
Habitação de Interesse Social, atuando principalmente nos seguintes temas:
autogestão e programas públicos habitacionais.

Rafael Giácomo Pupim – docente e pesquisador do curso de Arquitetura


e Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) desde 2010.
Doutor em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pelo Instituto de
Arquitetura e Urbanismo de São Carlos da Universidade de São Paulo – USP
(2013), Mestre em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pela Escola
de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo – USP (2008),
Arquiteto e Urbanista pela Unesp – Universidade Estadual Paulista (2003).
Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em projeto
urbano e teorias urbanísticas.

Valéria Nagy de Oliveira Campos – docente e pesquisadora do curso de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) desde
2009 e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Cidades Inteligentes e
Sustentáveis (PPG-CIS), no campo do urbanismo, planejamento regional e ur-
bano, projetos de intervenção urbana e implementação de Operações Urbanas
Consorciadas. Doutora (2008) e Mestre (2001) em Integração da América
Latina (PROLAM-USP), Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo-USP (1993). Trabalhou na Prefeitura
do Município de São Paulo e na COHAB-SP (2003-2006), com participa-

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218 - Urbanismo & Habitação

ção em convênios e acordos de Cooperação Técnica e em programas de capta-


ção de recursos no exterior (BID e UE). Atuou como pesquisadora do grupo
GovAgua USP, sediado no PROCAM-USP (2007-2008), e como colaboradora
junto ao Projeto “Gestão Integrada da Água e seus conflitos” da Universidade de
Wageningen, Holanda. Tem experiência em políticas públicas, atuando princi-
palmente com os seguintes temas: política habitacional voltada para baixa ren-
da, gestão de recursos hídricos e de uso do solo, planejamento regional, comitê
de bacia hidrográfica, participação da sociedade civil.

Vinícius Luz de Lima – docente e pesquisador do curso de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) desde 2013, com
atuação acadêmica nas áreas de planejamento urbano e regional, projeto urba-
no, história do urbanismo e projeto de arquitetura. Mestre em Arquitetura e
Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2011), Especialista em Saúde Ambiental pela Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo (2008), Arquiteto e Urbanista pela Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (2005). É
arquiteto e urbanista na Prefeitura Municipal de São Paulo (desde 2012) e tam-
bém possui experiência profissional em projetos de arquitetura de espaços co-
merciais, planejamento regional (Planejamento Ambiental do Setor Hidrelétrico
na Amazônia brasileira), planejamento urbano (equipamentos públicos, zonea-
mento urbano, Geoprocessamento) e licenciamento de edificações.

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Livro composto com as fontes Adobe Garamond Pro 12/16 no
corpo de texto e 13/15 nos títulos, impresso em papel offset 90 g/m2,
dezembro de 2017.

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