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Frei MAURO A.

STRABELI

BÍBLIA
perguntas que o povo faz
Nova edição, revista e atualizada

PAULUS

,
foi O dilúvio? Aconteceu mesmo? (Gn 6-8)
16, o que
'lúvio quer dizer enchente, inundação. Pela Bíblia (Gn 6-9), 0
DI e . . l . '
. aconteceu e 101 umversa , isto e, envolveu o mundo inteiro No
d'JúV!O .
, . morreram todos os homens e animais, exceto os que estavam
d1Juv10,a de Noé. As causas do d"l ' .
1 uv10 foram a maldade e a depravação
na are com o d'l' . D eus castigou
1 uv10,
. e purificou a humanidade·
hurna nas · , '
ois do dilúvio, Deus fez com Noe uma nova aliança, simbolizada
dep
pelo arco-íris, e d.1sse que nao
- mais . castigaria
. o h ornem com novo
dilúvio.
o relato do dilúvio é, na Bíblia, interpretação teológica de catástrofe
acontecida e conhecida por todos os povos da antiguidade. 15 Mais abaixo
falaremos sobre essa interpretação teológica.
Historicamente todos os povos antigos conhecem uma tradição sobre
dilúvio. Essas tradições existem tanto no mundo oriental (p. ex., na Palesti-
na, na Babilônia, na Mesopotâmia), como também no mundo ocidental (p.
ex., na América, na África). Todos os povos guardam na memória coletiva
alembrança de uma inundação catastrófica acontecida em tempos imemo-
riais. Na tradição mesopotâmica, principalmente, há uma narração sobre o
herói de um dilúvio; chama-se Utanapistim, que quer dizer o "Muito sábio':
Entre essa narração e a narração bíblica há muita semelhança literáriã'e de
conteúdo. O dilúvio é descrito, nessa narrativa, como universal (mas no
sentido antropológico, isto é, atingiu todo o gênero humano); salvaram-se
da destruição somente os homens e animais que estavam numa barca; a
chuva parou depois de sete dias e a barca parou num monte também; o
monte Nizir, no norte da Mesopotâmia. Utanapistim soltou uma pomba, a
seguir uma andorinha e depois um corvo. As duas primeiras aves voltaram,
0
~orvo não. Era sinal de que as águas haviam baixado; o corvo encontrara
alimento na terra. O herói oferece então um sacrifício de ação de graças
aos deuses.
Em todas as tradições orientais, o dilúvio não é descrito como fenô-
men? natural, mas como castigo dos deuses; segundo tais tradições, a hu-
manidade descende dos sobreviventes
. ·
que estavam na barca; a mun daçao
-
aconteceu por causa das muitas chuvas ou por causa do mar revolto; e em

-;--_
Cf. Coment ' · B .
ano íbhco "São Jerônimo': AT, vol. I, p. 79.

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l
1
todas essas tradições há - como se disse - a presença de pássaro
unciam O fim do d1·1uVIo.
, . 16 s que an.
Diante disso tudo, a narração bíblica parece sem novidade.
08
de contato entre a narração bíblica e a narração mesopotâmica sã P~nto8
tes Uma coisa fica b em c1ara: o d1·Iuv10
' · 101
e · 1nun
· d açao
- imensa q 0 e\ri.den-
. ue de fa
aconteceu. to
Qual é então a diferença entre o relato bíblico e o relato mesopot' .
A origina l1.d a d e d a narraçao
- b'bl.
1 1ca esta' na interpretação
· arnico?·
dá ao fato. É o que se chama de interpretação teológica de umque ela
tecimento. acon.
E qual é a interpretação teológica da Bíblia sobre o dilúvio?
O autor bíblico afirma, com seu texto, que o dilúvio aconteceu por
causa da depravação humana e não por causa das desavenças entre os
deuses, como diz o relato mesopotâmico. O dilúvio, diz a Bíblia, foi cas-
tigo infligido pelo Deus único e verdadeiro, o Deus de Israel, e não pelos
deuses. O dilúvio não destruiu toda a humanidade, mas "todos os ho-
mens" da região atingida (exceto os que estavam na arca); a humanidade
teve novo começo com Noé e seus filhos, isto é, os homens, mesmo dife-
rentes, são descendentes ainda de um só casal.
Por isso, podemos considerar a narração bíblica como relato etiológi-
co também, isto é, relato que procura dar o motivo, a causa, o porquê
de determinado fato, do qual todas as pessoas tinham lembrança na
consciência coletiva. Não foi inundação universal no sentido de mundo
inteiro, como sugere a Bíblia, pois isso seria geologicamente impossível,
mas universal no sentido de mundo conhecido.
A narração etiológico-teológica da Bíblia sobre o dilúvio sublinha
então algumas ideias religiosas centrais e profundamente diferentes
das ideias veiculadas pela narração mesopotâmica: o dilúvio foicas-
tigo enviado pelo Deus único e verdadeiro; foi enviado por causa do
pecado dos homens; a humanidade descende de um só casal, apesar
das diferenças raciais. .
.
Podemos dizer que o núcleo histórico da tradição sobre O 1. u e
d'l 'VlÜ
C
ons t 1·tui· pat nmon10
· "' · cu1tural comum dos dois povos: os isr· aehtas
,. .
os mesopo t am1cos. É uma tradição cultural, semítica. No co rrer do 5

16
C( ANET (Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament), P· 42 -44·

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,
séculos, a tradição comum ~oi sendo enxertada com as concepções
religiosa_s ~e cada povo._ ~ss~m, ª _tradição mesopotâmica é marcada
pelo po1Ite1smo e a trad1çao israelita pelo monoteísmo. É a diferença
fundamental entre ambas.
A paleontologia (ciência que estuda os fósseis animais e vegetais) e
a etnografia (ciência que eS t uda as raças e culturas) garantem cientifi-
camente a existência de inundações imensas acontecidas entre os anos
.700-2.800 a.C. na Mesopotâmia. O dilúvio foi então uma imensa in-
3
undação -que ocorreu em determinado período imemorial da História
e que é lembrada por todos os povos nas suas tradições religiosas. A
Bíblia também a lembra, mas purifica teologicamente o relato sobre
ela. A narração bíblica não pode, portanto, ser tomada ao pé da letra
porque se tornaria inexplicável, incompreensível. Não caberiam, por
exemplo, na arca de Noé exemplares de todos os animais; a água que,
segundo a Bíblia, caiu sobre a terra ( '½ água alcançou a altura de sete
metros e meio acima das montanhas" Gn 7,20) teria desviado o eixo da
própria terra etc.
Convém lembrar aqui que o dilúvio é visto pelo autor bíblico, dentro
de um esquema teológico, como relato do pecado de toda a humanidade.
Ele já relatara antes o pecado do homem (= Adão e Eva: Gn 3); relatara o
pecado do irmão contra o irmão (família-Caim: Gn 4); relata agora, aqui,
o pecado de todos os homens. O pecado, diz ele, pessoal, social ou coletivo,
sempre traz sérias consequências para o homem e para a comunidade. É
sempre rompimento da aliança com Deus.
Para finalizar, podemos dizer que o dilúvio existiu de fato. Foi uma
imensa inundação acontecida na antiguidade. A Bíblia, porém, viu esse
f~nômeno como castigo de Deus para uma humanidade depravada e
0
VIu também nesse fenômeno a ocasião para reafirmar a aliança que
homem deve manter sempre com seu Deus. Segundo a ótica bíblica, ª
narração do dilúvio pode ser lida também como relato que quer moSt rar
°
0 poder de Deus na História e sobre a criação. Ele é o Senhor, Criador;
pode até destruir a criação. É ele também aquele que a conserva e ª sus-
tenta (Gn 8,22; 9,lss) .17
p

e houve a confusão das línguas? (f'I


de Babel? Por qu . \lll
17. Existiu a torre
11,1-9)
torre de Babel (Gn 11) vem logo depois d
b 'blico
1 so b re a 1 d , da família da
o relato . _1O) que termina fa an o que e
d'l 'VIO (Gn 6 . e
narração do 1u povos do mundo. Daqui se percebe que o relat
•ginaram os . o
Noé que se on . , . t mbém isto é, a de dar a causa, explicar por qu
·d de etlo1og1ca a , ibl' e
tem fin al1 ª , mundo. Para tanto, o autor bi ico se valeu de re-
. tantas hnguas no d . .
existem. , .stentes no seu tempo , de lendas, como e sua visao religiosa . Fez
latos J~ exi 1 t arma apologética: combater o orgulho dos babilônios
tambem de seu re a o
e O politeísmo deles. . .,.
Na Babilônia, existiam, de fato, torres muito altas e ~e d1ametro
imenso chamadas zigurates. Hoje, restam delas apenas ru1nas. Dizem
os especialistas que tais zigurates eram também expressão da religião do
povo, porque, segundo a concepção mesopotâmica, os deuses habitavam
nas alturas; tais torres eram tão propositadamente altas para servirem, se-
gundo a crença deles, de moradia para seus deuses. Eram, de certa forma,
templos religiosos. Disso se orgulhavam muito os babilônios, os quais,
segundo a lenda, queriam, por meio da torre, chegar um dia ao céu; To-
davia, os deuses os tinham castigado por causa desse orgulho e pretensão.
. O a~tor bíblico relê essa história dentro da teologia monoteísta:
a dispersao dos povos e a divisão das línguas são um mal e procedem da
s~berba dos homens. A união de todos os homens seria o ideal desejado. A
dispersão é castigo de Deus.

davam Ta~bém polemiza O autor bíblico contra o orgulho dos babilônios, que
as suas torres d b d'
enc 1 o nome e ab-ilu, isto é: "Porta de deus"; o autor iz
ao que e as nao são b b ·z (P •
segundo etimol . ª -i u artas de deus), mas Babel, isto é, confusao,
zação e potênciaogia popular. Babel lembra certamente Babilônia, a ci~-
opressora (tamb , d d trUlu
por sua autossufi ·,. . em o povo hebreu) mas que se es
c1enc1a e org lh C , f rde
re alidades histór' u º· om uma história inventada a par 1
ho icas, o autor expl. do· o
mem, pelo orgulh0 ica a razão de tantas línguas no mun ·,
ato d 1Ob , perdeu a u 'd d , ·dadee
, e g alização q d , . ni a e social. Contruir uma so ci .
e possív 1e 1
.
ue estro1 a ·d ·
e ia ar uma só l' i entidade das pessoas e dos povos, .
Nªº
mia. Cada p ingua, a líng d O . d conº
Ç ão E , essoa, cada povo t . ua interesse, da ambição, a e . ª,
. sse e o . em d1re1·t0 , d rJ!llP 11

proJeto de oeus. a sua autonomia e auto ete


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