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O Primeiro Selo

Esses Quatro Selos estão também muito interligados, como


veremos. O primeiro diz que todas as coisas compostas são
impermanentes. Não há um único fenômeno que possamos
imaginar que não seja composto e, portanto, não esteja sujeito à
impermanência. Podemos aceitar facilmente certos aspectos da
impermanência, como a mudança do tempo; há, porém outros
aspectos, igualmente óbvios, que não aceitamos. Embora nosso
corpo seja visivelmente impermanente, envelheça a cada dia, não
queremos aceitar isso. Certas revistas populares que vendem a
juventude e a beleza exploram essa atitude. Se pensarmos em
termos de visão, meditação e ação, a visão de seus leitores
poderia ser concebida em termos de não envelhecer, passar
adiante do envelhecimento de algum

Contemplando essa visão de permanência, a ação desses leitores


é freqüentar academias de ginástica, fazer cirurgia plástica e se
meter em todo tipo de complicações. Aos seres sublimes isso
pareceria ridículo, baseado em uma visão equivocada. Ao olhar
para esses diferentes aspectos da impermanência, como o
envelhecimento, a morte, a mudança do tempo, etc., os buddhistas
têm uma única coisa a declarar – esse primeiro selo: fenômenos
são impermanentes porque são compostos. Tudo que é feito de
partes reunidas, cedo ou tarde, irá se dispersar.
Quando dizemos “composto”, isso inclui o tempo, o espaço e as
dimensões. O tempo é composto e, por isso, impermanente. Sem o
passado e o futuro, o presente não existe. Se o momento presente
se tornasse permanente, não haveria futuro, pois o presente
estaria sempre aqui. Tudo que podemos fazer – por exemplo,
plantar uma flor ou cantar uma canção – tem um começo, meio e
fim. Se enquanto estivéssemos cantando uma canção faltasse o
começo, o meio ou o fim, não haveria como cantar a canção, o que
faz desse ato algo composto.

Poderíamos, então, nos perguntar, “E daí?” “Por que se preocupar


com esse tipo de coisa?” “O que há de tão importante nisso?”
“Tem um começo, meio e fim – e daí?” Não é que os buddhistas
estejam de fato preocupados com começos, meios e fins. Esse não
é o problema aqui. O problema está no fato de que, quando a
impermanência está presente, a incerteza e o sofrimento também
estão presentes.

Algumas pessoas acham que o buddhismo é pessimista, sempre


falando de morte, morrer, impermanência, velhice – mas isso não é
necessariamente verdade. A impermanência é um alívio! Eu não
tenho uma BMW hoje e é graças à impermanência desse fato que
eu posso vir a ter uma amanhã. Sem a impermanência eu ficaria
preso à não-posse de uma BMW e nunca poderia vir a ter uma. Eu
posso estar me sentindo muito deprimido hoje e, graças à
impermanência, amanhã eu posso estar me sentindo ótimo. A
impermanência não é necessariamente uma má notícia; tudo
depende de como a interpretamos e a compreendemos. Mesmo
que hoje nossa BMW seja riscada por um vândalo ou que nosso
melhor amigo nos deixe na mão, não vamos ficar tão preocupados
assim.
Quando não reconhecemos que toda coisa composta é
impermanente, isso é um engano, uma ilusão. Quando
compreendemos isso – e não só intelectualmente – ficamos livres
desse engano. É a isso que chamamos de liberação: ficar livre da
crença unidirecionada e bitolada de que as coisas são
permanentes. Mesmo o caminho, o precioso caminho buddhista,
também pertence à esfera do composto, quer gostemos disso ou
não. Ele tem um começo, tem um fim, tem um meio.

Quando você compreende que todas as coisas compostas são


impermanentes e você vive alguma perda, você tem condição de
aceitar esse fato. Visto que todas as coisas são impermanentes,
esse fato é de se esperar.

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O Segundo Selo
Todas as emoções são dor. Nós aceitamos que certas emoções,
como a raiva ou o ciúme, são dor. Mas o que dizer do amor e do
carinho, da bondade e da devoção? O que dizer dessas emoções
que são agradáveis, belas, adoráveis? Nós não as encaramos como
sendo dor. No entanto, as emoções implicam em dualidade, o que,
ao final, cria sofrimento. Emoções como o choro, a dor, a raiva, são
na verdade apenas o amadurecimento de emoções mais sutis;
surgem no final de um processo. Elas são as menos perigosas e
logo se exaurem. A causa é a verdadeira emoção, a mente
dualista, e isso inclui quase todos os pensamentos que temos.

Por que isso é dor? Porque é equivocado. Toda mente dualista é


uma mente equivocada, uma mente que ignora a natureza das
coisas. O que é que se entende por dualidade? De um lado,
estamos nós; de outro, nossa experiência. Ela é relativa, pois
podemos ver que pessoas diferentes percebem o mesmo objeto de
diferentes modos. Um homem pode pensar que uma mulher seja
bonita, e para ele isso é verdade. Mas se essa verdade fosse
independente, então uma outra pessoa também teria que ver essa
mesma mulher como bonita. Essa verdade não é independente;
depende da mente de cada um, da projeção de cada um.

A mente dualista cria muitas expectativas, muito medo, muitas


esperanças. Onde quer que a mente dualista exista, existe a
esperança, existe o medo. A esperança é uma forma perfeita e
sistematizada de sofrimento. Com relação ao medo nenhuma
explicação é necessária, mas nossa tendência é pensar que a
esperança não é sofrimento. Na verdade, porém, é um grande
sofrimento e definitivamente é uma fonte de dor.

O Buddha ensinou “conheça o sofrimento”. Essa é a Primeira Nobre


Verdade. Muitos de nós tomamos erroneamente o sofrimento pelo
prazer. O prazer que tenho hoje é, na verdade, a própria causa da
dor que vou estar experimento mais cedo ou mais tarde. Uma outra
forma que o buddhismo tem de colocar isso é dizer que, quando
uma grande dor fica menor, tomamos isso por prazer. Esse é o
período que chamamos de felicidade.
Além disso, a emoção é algo que não tem uma existência

intrínseca. Quando uma pessoa que está com sede vê água em


uma miragem, tem um sentimento de alívio, “Ah, encontrei água!”
Porém, à medida que se aproxima, a qualidade e a percepção
desaparecem e, por fim, resta a decepção. Esse é um aspecto
bastante importante da definição de emoção, segundo o
buddhismo: “Algo que não tem nada em sua essência”. “Algo que
não tem existência autônoma” – isso mesmo, existência autônoma.
Os buddhistas concluem que todas as emoções são sofrimento
porque são dualistas, o que quer dizer que estão envoltas em
incerteza e vêm acompanhadas de esperança e medo, não tendo,
em última análise, qualquer natureza dotada de existência
intrínseca. Então, podemos dizer elas não valem a pena tanto
assim. Tudo o que criamos por intermédio das emoções, ao final, é
completamente fútil e doloroso. Por essa razão os buddhistas
fazem meditação shamatha e vipassana. O benefício que isso nos
traz é soltar o laço com o qual as emoções nos prendem, soltar a
fixação que temos em relação às emoções.

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O Terceiro Selo
Todos os fenômenos são desprovidos de existência intrínseca.
Aqui estamos falando de shunyata, vacuidade. Quando dizemos
todos os fenômenos, isso inclui todas as coisas, até mesmo o
Buddha, a iluminação ou o caminho. Os buddhistas definem
fenômeno como algo que possui características e que seja um
objeto percebido por um sujeito. É a ignorância que toma o objeto
como algo externo e faz com que ignoremos a verdade daquele
fenômeno. A verdade do fenômeno é o que denominamos shunyata,
vacuidade, o que dá a entender que ele não possui uma essência
que exista verdadeiramente.

Quando um sujeito enganado vê um objeto, este é interpretado


como algo que existe verdadeiramente. No entanto, a existência
que o sujeito imputa ao objeto é uma suposição equivocada que
aparece apoiada em diferentes condições. Como no caso de
alguém que vê uma miragem, a pessoa não tem diante dos olhos
uma miragem dotada de existência verdadeira. Ao falar em
vacuidade, o Buddha queria dizer que as coisas de fato não
existem como equivocadamente acreditamos que elas existam, e
que as coisas são, em realidade, vazias dessa existência
falsamente imputada.

Por que acreditam no que é, na realidade, apenas projeções


confusas, os seres sencientes sofrem, e para corrigir isso o
Buddha ensinou o Dharma.

De modo muito simples, podemos nos referir à vacuidade dizendo


“a maneira como as coisas aparecem não é como elas realmente
são”. Como expliquei ao falar sobre as emoções, quando você olha
para um fenômeno como se estivesse olhando para uma miragem,
ele desaparece à medida que você se aproxima, ainda que no
princípio parecesse real.

A vacuidade é, às vezes, denominada dharmakaya e, em um


contexto diferente, poderíamos estar descrevendo como o
dharmakaya é permanente, imutável, permeia tudo – todas essas
palavras poéticas e belas. Essas são palavras místicas que dizem
respeito ao caminho. Agora, porém, estamos tratando do terreno,
da base, estamos nos esforçando para adquirir uma compreensão
intelectual. No caminho é possível retratar o Buddha Vajradhara
como um símbolo do dharmakaya ou da vacuidade, mas do ponto
de vista acadêmico até mesmo pensar em pintar o dharmakaya é
um erro.
Pergunta: Se nós próprios somos dualistas, podemos chegar a
compreender a vacuidade, que é algo que está além de qualquer
descrição?

Os buddhistas são muito escorregadios. Você tem razão: não


podemos nunca falar da vacuidade absoluta, mas podemos falar de
uma “imagem” da vacuidade. Então, você pode avaliá-la,
contemplá-la e, por fim, chegar à verdadeira vacuidade. E se você
dissesse, “Mas isso é facilitar as coisas demais, isso é uma
embromação”, os buddhistas diriam, “Mas é assim que as coisas
funcionam”. Se você precisa encontrar alguém com quem nunca
tenha estado antes, eu posso descrever essa pessoa para você,
mostrar-lhe uma fotografia dela e, com a ajuda dessa imagem,
você pode ir e achar a verdadeira pessoa. O caminho, em última
instância, é irracional mas, do ponto de vista relativo, é muito
racional, pois se casa com as convenções relativas do nosso
mundo. Quando estou falando da vacuidade, tudo que estou
apresentando é uma “imagem” da vacuidade. Não posso lhe
mostrar a verdadeira vacuidade, mas posso lhe contar porque as
coisas não são dotadas de existência intrínseca.

O Buddha ensinou três caminhos diferentes em três momentos


separados, conhecidos como Os Três Giros da Roda. Porém, ele
resumiu esses três caminhos em uma única frase: “Mente; não há
mente; a mente é luminosa”.

Aqui “Mente” se refere ao “primeiro giro da roda”, o primeiro


conjunto de ensinamentos. Indica que o Buddha ensinou que há
uma “mente”, e isso serve para afastar a visão niilista de nenhum
céu, nenhum inferno, nenhuma causa e efeito. Quando ele disse,
“Não há mente, isso reflete o ponto de vista de que a mente é
apenas um conceito e que não existe algo como uma mente
dotada de existência verdadeira. A terceira afirmação, “A mente é
luminosa,” aponta para a natureza búddhica, a sabedoria sem
equívocos nem ilusões que existe deste o começo.

Nagarjuna, um grande comentarista, disse que a finalidade do


primeiro giro foi afastar tudo que é não-virtuoso. Quando a não,
virtude aparece? Quando você se torna eternalista ou niilista.
Portanto, para pôr fim aos atos e pensamentos não virtuosos, o
Buddha fez o primeiro sermão. O segundo giro, no qual o Buddha
ensinou sobre a vacuidade, foi apresentado para afastar o apego
ao eu, bem como o apego aos fenômenos como verdadeiramente
existentes. O terceiro giro destinou-se a afastar todos os pontos
de vista, todas as visões, até mesmo a visão da ausência do eu. Os
três conjuntos de ensinamentos do Buddha não pretendem
introduzir algo de novo; sua finalidade é apenas eliminar a
confusão.

Como buddhistas, praticamos compaixão, mas, se nos falta a


compreensão deste terceiro selo, a compaixão pode ser um tiro
que sai pela culatra. Se você fica apegado à meta da sua
compaixão, ao solucionar um problema é possível que você passe
por cima do fato de que a sua idéia de solução está inteiramente
baseada na sua interpretação, e você pode acabar vítima da
esperança e do medo, vítima da decepção. Você pode se tornar um
bom praticante do Mahayana e, uma vez, duas vezes, você tenta
ajudar os seres sencientes. Mas, porque lhe falta a compreensão
deste terceiro selo, pode ser que você fique cansado de ajudar os
seres sencientes.

Um outro tipo de problema que também vem da falta de


compreensão da vacuidade e que ocorre com buddhistas mais
superficiais ou enfastiados, tem a ver com a questão de que, nos
círculos buddhistas, se você não aceita a vacuidade, então você
não está por dentro. Assim, fingimos que apreciamos a vacuidade
e fingimos meditar sobre ela. No entanto, quando não a
compreendemos adequadamente, pode surgir um efeito colateral
nocivo.

Dizemos, “Ah, tudo é vacuidade. Posso fazer tudo o que eu quiser”.


Ignoramos e violamos os detalhes do karma, a responsabilidade
sobre nossos atos. Você se torna deselegante e também uma fonte
que leva os outros a perder inspiração. Sua Santidade o Dalai
Lama muitas vezes faz referência a essa falha que é a não-
compreensão da vacuidade. A compreensão correta da vacuidade
nos leva a ver como as coisas são inter-relacionadas e como
temos responsabilidade por nosso mundo.

Você pode ler milhões de páginas sobre esse assunto. Só de


Nagarjuna você pode ler cinco comentários diferentes que tratam
basicamente deste tópico.

Há também comentários escritos pelos seguidores de Nagarjuna.


Há incontáveis ensinamentos sobre o estabelecimento da visão da
vacuidade.
Nos templos ou monastérios Mahayana canta-se o Sutra do
Coração da Prajnaparamita, que também é um ensinamento sobre
o terceiro selo.

As filosofias ou religiões podem dizer “as coisas são ilusórias”, “o


mundo é maya, ilusão”, mas há sempre uma ou duas coisas que
ficam de fora por serem tidas como verdadeiramente existentes –
como Deus, a energia cósmica, seja lá o que for. No buddhismo,
não é isso que acontece. Tudo no samsara e no nirvana, da cabeça
do Buddha até um pedaço de pão, tudo é vacuidade. Não há nada
que não esteja incluído na verdade última.

Pergunta: No buddhismo há tanta iconografia que parece ser


objeto de meditação ou de adoração. No entanto, seu ensinamento
parece me conduzir para a compreensão de que tudo isso é
inexistente?

Quando você vai a um templo, vê muitas belas estátuas, cores e


símbolos.

Eles são importantes no caminho. Isso é o que chamamos


“imagem” da sabedoria, “imagem” da vacuidade. Ainda assim,
mesmo enquanto seguimos pelo caminho e aplicamos seus
métodos, precisamos saber que o caminho, em última instância, é
uma ilusão. O caminho, de modo bastante hábil, coaduna-se com a
nossa mente habitual e, ainda assim, tem o potencial de, ao final,
despertá-la.

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O Quarto Selo
Com a explicação dada sobre a vacuidade acho que de algum
modo já descobrimos que o nirvana está além dos extremos. Esse
último selo também é um ponto de vista único ao buddhismo. Em
muitas filosofias ou religiões a meta final é alguma coisa na qual
podemos nos firmar, a qual podemos conservar: “a meta final é a
única coisa verdadeira que existe”. No buddhismo, porém, a meta
não é fabricada; por isso não pode ser guardada. Por isso dizemos:
ela está “além dos extremos”. Talvez imaginemos que, de algum
modo, poderíamos ir para um lugar onde houvesse um sofá melhor,
um chuveiro melhor, uma rede de esgotos melhor, algum tipo de
nirvana onde você não precisa nem mesmo de controle remoto,
onde todas as coisas aparecem no momento em que você pensa
nelas. No entanto, como disse antes, nós não introduzimos alguma
coisa que não estava presente antes. A meta é alcançada quando
removemos o que havia de artificial e obscurecedor. Não ficamos
apegados a uma verdade última dotada de existência real, a um
nirvana que realmente existe.

Quer você seja um monge ou monja que tenha renunciado à vida


mundana, quer seja um yogi que pratique métodos tântricos
profundos, quando você busca abandonar ou transformar o apego
às suas próprias experiências, se você não tem familiaridade com
esses quatro selos você estará encarando suas experiências como
manifestação de alguma coisa má, satânica, ruim. Isso quer dizer
que você estará longe da verdade. Todo o buddhismo tem por
objetivo levar à compreensão da verdade. Se houvesse alguma
permanência verdadeira nas coisas compostas, se houvesse
prazer verdadeiro nas emoções, o Buddha teria sido o primeiro a
recomendá-las, dizendo: “Por favor, guardem e prezem essas
coisas”, porque o que ele queria, em sua grande compaixão, era
que tivéssemos o que é verdadeiro, real.

Quando você tiver uma clara compreensão desses quatro selos


como a base da sua prática, você se sentirá confortável,
independentemente das experiências que surgirem. Desde que
você mantenha esses quatro selos como a sua visão, nada pode
sair errado. A pessoa que mantém esses quatro selos no coração
ou na mente, a pessoa que os contempla, é buddhista. Ainda que
não ostente o rótulo de buddhista, ela será uma seguidora do
Buddha.

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