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enfoque (DES)ORDENAMENTOS

E (DES)ENCAIXES NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES
CONTEMPORÂNEOS

Frente aos sólidos marcos que ergueram as instituições


e preceitos modernos, os jovens parecem desencaixados,
desordenados, “alienígenas” que desafiam constantemente
os modos de pensar que outrora nos constituíram

Elisabete Maria Garbin


Daniela Medeiros de Azevedo Prates

E
ste artigo tem como base produções teóricas a partir de determinadas contingências históricas,
debatidas e desenvolvidas em estudos sobre econômicas e sociais, tomando visibilidade sobre-
culturas juvenis, que permitem (re)pensar os maneira diante das intensas mudanças ocorridas
currículos escolares da contemporaneidade. Infere a partir da Segunda Guerra Mundial, permitindo
que as diferentes maneiras de “estar” jovem que que múltiplas possibilidades culturais entrassem
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são visibilizadas nas cenas escolares estão imbri- em cena.


cadas à própria superfície da contemporaneidade, Do mesmo modo, uma série de condições
tensionando práticas e currículos escolares que as- como classe, lugar onde se vive, gerações a que
sumem outros sentidos para os jovens do século XXI. se pertence e a própria diversidade cultural per-
As profundas, amplas e rápidas transforma- passam os modos de ser/estar jovem, impossibi-
ções sociais, econômicas e culturais ocorridas no litando falarmos de uma juventude única, como
âmbito mundial que caracterizam a contempora- ressaltam Margulis e Urresti (1998), mas tratarmos
neidade são analisadas em diferentes concepções. de juventudes — no plural. Logo, há múltiplas ma-
Conforme discute Veiga-Neto (2006, p. 4), “(...) neiras de “ser” e “estar” jovem, considerando as
alguns chamam hipermodernidade (Lipovetsky), diversas possibilidades que se apresentam nos pla-
modernidade tardia (Rouanet), modernidade avan- nos econômico, social, político e cultural. O que
çada ou modernidade líquida (Bauman), e que, se poderíamos nomear de “juventudes plurais” vêm
descartando das metanarrativas iluministas, ressig- se constituindo na própria superfície da contem-
nifica as percepções e usos do tempo e do espaço”. poraneidade, produzindo significativas mudanças
Assumimos que as experiências vivenciadas não somente nos sujeitos, mas também nas pró-
coletivamente pelos jovens, ou seja, as práticas prias instituições responsáveis por sua formação,
constituidoras das culturas juvenis, são construídas a exemplo da escola.

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Os jovens nos inquietam
por nos parecerem “estranhos”,
“alienígenas”, “fora da ordem”

Pesquisas acadêmicas sobre práticas culturais Referindo-nos a Bauman (2010), essa superfície
juvenis contemporâneas trazem importantes pau- fluida e líquida que caracteriza a contemporanei-
tas para o debate ao propor tomar como foco de dade vem derretendo os sólidos construídos ao lon-
suas análises diferentes cenários em que se pro- go da modernidade e produzindo novos sujeitos:
duzem determinados modos de “ser” e “estar” adaptáveis, maleáveis, flexíveis. Sendo o currículo
jovem nesse “efeito-superfície”. Os jovens muitas parte dessa máquina de formação dos sujeitos para
vezes nos inquietam por nos parecerem “estra- a sociedade, o processo de disciplinaridade, tendo
nhos”, “alienígenas”, “fora da ordem” da paisagem como meta a constituição de sujeitos dóceis, não
moderna que nos constituiu como sujeitos a partir pode mais ser a ênfase contemporânea. Diante das
de um conjunto de instituições e procedimentos. novas formas de assujeitamento e subjetivação, as-
Esses jovens que adentram a cena contemporânea sume ênfase a formação de sujeitos flexíveis (Vei-
têm-se caracterizado por suas diferentes culturas, ga-Neto, 2008).
que se constituem em muitos lugares ao mesmo Nesse “efeito-superfície” de fluidez, de va-
tempo. São jovens que convivem desde a infância lores embaralhados, pistas que se movem e mar-
com o surgimento de novas tecnologias, o que mo- cos que se derretem, não servem mais identidades
difica suas noções de tempo e espaço, permite no- que ofereçam igualdade ou continuidade (Bauman
vas relações e formas de conhecimento. 2003; 2009), pois diminuiriam as opções. Em tem-
Nessas condições, a própria relação de assi- pos que evoca abertura às mudanças, torna-se im-
metria entre os mais jovens e os adultos passa a se perativa a flexibilidade.

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modificar, já que o acesso quase que irrestrito a Assim, não há uma única juventude a ser nar-
diferentes informações parece “borrar” os sólidos rada, mas múltiplas formas de “ser” e “estar” jo-
limites construídos na modernidade entre crianças, vem que se produzem contingencialmente. Filhos
jovens e adultos. Assim, a legitimação do lugar de desse “efeito-superfície” de fluidez, de conectivi-
saber, da experiência do adulto como aquele capaz dade, de consumo, de descartabilidade e perfor-
de conduzir os mais jovens a um estado de auto- matividades, controle e flexibilidade, os jovens —
nomia, já que estes não possuiriam capacidade de frente aos sólidos marcos que ergueram as institui-
discernimento operativo, epistêmico e moral para ções e preceitos modernos — parecem sujeitos ou-
responsabilizarem-se por sua formação, conforme tros, desencaixados, desordenados, “alienígenas”
a concepção de Kant, parece assumir outros sen- que desafiam constantemente os modos de pensar
tidos. Concomitantemente, assumem também ou- que outrora nos constituíram.
tros sentidos as relações do que e como educar Entretanto, talvez não sejam os jovens pro-
esses sujeitos (Naradowski, 2011). priamente que estejam desordenados. Parece que
Tais relações trazem significativas mudanças vivemos na era dos desencaixes, remetendo-nos
nos currículos escolares, face aos próprios desloca- a Bauman (2003; 2009): diferentes tamanhos, for-
mentos presentes na racionalidade de nossa época, mas, estilos mutáveis que colocam os homens em
como nos permite compreender Veiga-Neto (2008). movimento, sem prometer um lugar de chegada.

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enfoque

Não há uma única juventude


a ser narrada, mas múltiplas
formas de “ser” e “estar” jovem

Nota
Este artigo é uma versão abreviada e ligeiramente alte-
rada de capítulo do livro Currículo e inclusão na escola
de ensino fundamental, de Clarice Salete Traversini et
Nesse caleidoscópio, não são apenas os valo- al. (EDIPUCRS, 2013).
res que se embaralham e os marcos que se derre-
tem; as instituições erguidas sob a égide da ordem Referências
— a exemplo da escola — veem-se desafiadas dian- BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mun-
te do papel de formação de outros sujeitos para do atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
outra sociedade. ______. A sociedade individualizada: vidas contadas
Nessa perspectiva, a escola, os currículos es- e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
______. Legisladores e intérpretes. Rio de Janeiro: Jorge
colares, caracterizados como um conjunto de má-
Zahar, 2010.
quinas cuja operação incide na formação de deter-
MARGULIS, M.; URRESTI, M. La construcción social de la
minados tipos de sujeitos para a sociedade, (re)in- condición de la juventud. In: CUBIDES, H. J.; TOSCA-
ventam espaços/tempos e saberes. Lançando mão NO, M. C. L.; VALDERRAMA, C. E. H. (Ed.). Viviendo
das palavras de Veiga-Neto (2008), mais que disci- a toda – Jóvenes, territorios culturales y nuevas sen-
plinar e ensinar conhecimentos, o que engrena esta sibilidades. Série Encuentros, Fundación Universidad
maquinaria na contemporaneidade são as formas Central, Santafé de Bogotá: Paidós, 1998, p. 3-21.
de controle, ou seja, “relatórios, formulários, se- NARODOWSKI, M. No es fácil ser adulto. Asimetrías
nhas de acesso hierarquizadas, cartões, cadastros, y equivalencias en las nuevas infancias y adolescen-
portfólios, registros (em banco de dados) e uma in- cias. Revista Educación y Pedagogía, Universidad de
finidade de outros documentos” (Veiga-Neto, 2008, Antioquia, Facultad de Educación, vol. 23, n. 60,
p. 101-114, mai.-ago. 2011.
p. 47). Portanto, trata-se de um deslocamento de
TRAVERSINI, C. S. Currículo e inclusão na escola de ensi-
ênfase nas lógicas curriculares, da disciplina para o
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no fundamental. V. 1. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2013.


controle, o que se encontra intimamente relaciona-
P. 209-224.
do com a liquidez contemporânea e a flexibilidade VEIGA-NETO, A. Crise da Modernidade e inovações cur-
com que hoje é pensado o currículo. riculares: da disciplina para o controle. Revista Sí-
Assim, os tensionamentos vivenciados no coti- sifo: Revista de Ciências da Educação, Faculdade de
diano das escolas e os movimentos que vêm sendo Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade
produzidos nos currículos escolares talvez não de- de Lisboa, n. 7, set.-dez. 2008.
vessem ser depositados sobremaneira na sensação
de desordenamento dos jovens, quando o próprio
“efeito-superfície” que engendra toda essa “ma-
Elisabete Maria Garbin é doutora em Educação,
quinaria” torna o desígnio da flexibilidade a pala- pesquisadora e professora da Faculdade de Educação
vra de ordem. Remetendo-nos a Traversini (2012), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
o próprio desencaixe parece que vem sendo assu-
mido como forma de existência (resistência?) de Daniela Medeiros de Azevedo Prates é doutora
muitas escolas contemporâneas. Afinal, em tem- em Educação, pesquisadora e docente do Instituto
pos de fluidez, flexibilidade parece ser a palavra Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-
do momento. -Grandense (IFSUL).

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