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Um roteiro original de
Jean-Luc Godard.
1. ABERTURA
Série de Planos.
A visão é de alguém que espreita o mundo da janela
de um carro em movimento.
Imagens borradas, sem contornos, mal definidas que
se assemelham a pinturas impressionistas.
Apenas compreendemos a matriz cromática
predominante em cada imagem. Uma sucede a outra em
fusão. Começamos no verde-escuro passando pelo
verde-claro, verde-queimado, cinza, branco, seco.
É como se percorrêssemos diferentes regiões do
Brasil, diferentes paisagens representadas pelas
suas cores características.
A primeira imagem que rasga a tela tem contornos
onde predomina o verde-escuro de uma floresta
densa, úmida, uma Mata Atlântica.
Sincronizada à imagem, um ruído de um rádio
tentando sintonizar uma estação.
LOCUTOR
Senhoras e senhoritas a partir desse momento
a Rádio Nacional transmite diretamente dos
seus estúdios no Rio de Janeiro. a novela de
maior sucesso do rádio brasileiro: Em Busca
da Felicidade. Um vento de emoção que varre o
país.
Uma música romântica segue a apresentação.
JOHANN faz uma parada brusca. Ele está sobre uma ponte
de ferro que contém uma data 1929. Ele desce do carro e
observa a paisagem. Uma grande ponte e embaixo um rio
totalmente seco.
JOHANN
Mas o que o senhor caça?
CAÇADOR
Mas o senhor não é daqui não?
JOHANN
Alemão.
CAÇADOR
Ah sim.
JOHANN oferece cigarro e o caçador diz que não quer e
mostra o fumo de rolo. O caçador fica a olhar para o
relógio de JOHANN. O alemão tenta continuar a conversa.
JOHANN
Mas para quem o senhor caça?
CAÇADOR
Para mim mesmo.
JOHANN
E para quê?
CAÇADOR
Para comer.
JOHANN
Caçar muito aqui?
CAÇADOR
Agora somente Arribação.
JOHANN
É uma ave?
CAÇADOR
Um pássaro.
Essa época é só o que tem.
Não tem três dias, eu cacei um tatu bola lá
pro lado de Deserto Feliz.
Carne pouca, mas boa.
JOHANN
Mas o senhor vive de caçar?
CAÇADOR
As vezes a gente tem que fazer uns serviço
por fora.
JOHANN
O que o senhor caçou?
caçador
Uma raposa. A carne é dura, mas é boa. O
senhor me deu sorte. Quer ficar com um
pedaço? Eu corto agora.
JOHANN
Não obrigado.
JOHANN extremamente incomodado com o fato do sangue se
espalhar no carro vira o olhar e coloca sua atenção na
paisagem ao invés de mirar aquele animal morto. A
viagem reinicia.
JOHANN
O senhor vai ficar aonde?
12. EXT/INT. - CABINE DO CAMINHÃO - DIA
MARCONDES
O senhor quer ir para onde?
JOHANN
Eu estou indo...
MARCONDES
Mas o senhor não é daqui, não é?
JOHANN
Sou da Alemanha.
MARCONDES
Vige Maria, a situação lá está uma
calamidade. Não é mesmo?
JOHANN
É. Um absurdo! Um louco está no poder.
MARCONDES
Que horas são?
JOHANN
12 horas.
MARCONDES
1 horas a gente está lá.
Uns quinze quilômetros à frente, tem um posto
de gasolina.
Eu fico lá.
JOHANN
Ah, bom. Eu também preciso de gasolina.
MARCONDES
Eu preciso comprar querosene Jacaré para
matar um ninho de cupim que apareceu na minha
casa.
Um rapaz pede carona na estrada.
MARCONDES
Esse aí deve estar indo pro posto também.
Johann pára. Estamos no meio de uma bifurcação.
Enquanto os rapazes continuam a conversa podemos ver
pela janela do caminhão o rapaz se despedindo de uma
senhora que está na frente de uma casa. É uma despedida
emocionada.
MARCONDES
Que carrão esse.
Quantos quilômetros faz por litro?
JOHANN
Depende da estrada, faz uns cinco quilômetros
por litro.
MARCONDES
Isso é que é a ciência.
Eu era motorista, faz mais dez anos atrás e
naquela época, era um Ford 29. Na época era
um litro para cada quilômetro.
Viajei muito por aí. É a coisa que eu mais
gosto.
JOHANN
Eu também gostar muito.
Agora aqui é difícil.
MARCONDES
Não está vendo que eu estou conversando com o
doutor.
RANULPHO
Pode continuar conversando mas não precisa me
apertar por causa disso.
Seu MARCONDES não gosta da observação de RANULPHO, mas
não fala nada, afasta um pouco e continua a conversa.
MARCONDES
É melhor fazer Picote e deixar Triunfo por
último.
Caminho difícil viu. É longe, estrada ruim.
Se eu tivesse com saúde eu levava o senhor lá
e agora.
É difícil chegar lá sozinho.
JOHANN
Mas como faço para chegar lá.
RANULPHO
O moço está indo pras banda de Triunfo? Eu
também.
MARCONDES
Mas você não ia ficar no posto.
RANULPHO
Eu ia ficar no posto esperando uma condução
para lá.
MARCONDES
Mas que coincidência. Danosse, todo mundo
agora vai para Triunfo.
RANULPHO
Todo mundo não, o senhor, por exemplo, não
vai.
JOHANN
(para RANULPHO)
O senhor sabe este caminho?
RANULPHO
Se estou falando que sei é porque sei.
seu MARCONDES
É fácil. Eu explico para ele(se volta para
RANULPHO).
É o seguinte, em São Caetano tem uma
estradinha que o senhor tem que pegar.
Pega essa estrada e depois, na primeira saída
a esquerda, o senhor segue toda vida, passa
por Picote e depois pega a estrada para
Triunfo.
RANULPHO
Tem caminho melhor.
Seu MARCONDES
Então me diga qual é?
RANULPHO
A estrada para São José do Egito.
MARCONDES
Eu não conheço.
RANULPHO
É nova.
JOHANN
O senhor pode ajudar?
RANULPHO
O moço me ajudando eu posso.
JOHANN
Como?
RANULPHO
Paga quanto pelo serviço?
JOHANN
Paga?
MARCONDES
Paga?
RANULPHO
Uma coisinha para ajudar a continuar a minha
viagem.
MARCONDES
Mais é o fim do mundo mesmo. Tu não estás
indo para lá, é somente ensinar o caminho.
RANULPHO
(ignorando MARCONDES e falando para JOHANN)
É porque eu vou ter que esperar o moço nas
cidades que vai parar.
Isso vai atrasar o meu passo porque por mim
eu chegava em Triunfo amanhã.
MARCONDES
Amanhã, Triunfo? Nem por milagre.
RANULPHO
É, e com milagre fica mais caro o serviço.
MARCONDES
Tu pensa que tem o rei na barriga, é sujeito?
JOHANN
Eu pago.
MARCONDES fica sério calado olhando para RANULPHO, um
olhar desconfiado. JOHANN feliz com o negócio que fez
mantém sua marcha em frente. RANULPHO observa a estrada
e mantém o mesmo olhar de abuso.
RANULPHO
Chegando hoje em Picote está de bom tamanho.
RANULPHO
É isso. Ninguém pode morar aqui, nessa seca
infame.
JOHANN
O senhor não gosta daqui?
RANULPHO
Gostar de quê?
Daqui? Eu gosto agora porque estou indo
embora.
E o senhor vem de onde?
JOHANN
Da Alemanha.
RANULPHO
Eu perguntei onde o senhor começou sua
viagem, de onde veio com esse caminhão e não
de onde o senhor é?
RANULPHO
Não. Obrigado doutor.
JOHANN
É comida enlatada.
RANULPHO
(titubeando) Conheço.
Ele experimenta a comida como quem achasse aquele gosto
normal, conhecido.
RANULPHO
Faltou o doutor combinar o preço do meu
trabalho.
JOHANN
Como é seu nome mesmo?
RANULPHO
Ranulpho. E seu mesmo como é que se diz?
JOHANN
Johann.
RANULPHO
O senhor podia repetir.
JOHANN
Jo-hann. E o seu diga de novo.
RANULPHO
Ra-nul-pho.
JOHANN
Eu não posso pagar mais que 800 réis.
RANULPHO
(abre um sorriso)800.
Tudo bem eu aceito somente para lhe ajudar.
RANULPHO
E qual o negócio do doutor?
JOHANN
Medicamentos.
RANULPHO
E qual é o remédio que o senhor vende?
JOHANN
Chama aspirina? Já ouviu falar?
RANULPHO
Ah, é o nome que está escrito no carro.
Nunca ouvi falar.
JOHANN
É novo. É ácido acetil-salicílico.
RANULPHO
(titubeando) Sei.
JOHANN
É a primeira vez que é vendida aqui no
sertão. É muito bom para dor de cabeça e
dores em geral. Vende muito.
RANULPHO
Se servir para matar a fome do povo aqui o
senhor vai fazer dinheiro.
JOHANN
Gosta de música?
RANULPHO
Esse rádio é uma potência!
JOHANN
O rádio é a única companhia às vezes.
RANULPHO
Faz tempo que o moço trabalha nisso?
JOHANN
Faz quase um ano. Somente viagens pequenas.
Essa é a mais longa que fiz.
RANULPHO
O senhor estudou para fazer isso?
JOHANN
Não. Quer dizer estudei, mas não para fazer o
que faço.
RANULPHO
Ah sim! E é bom o trabalho?
JOHANN
(sem muito interesse) É. A viagem é a melhor
parte.
RANULPHO
Gosta da viajar?
JOHANN
Não há viagem que eu não goste. E aqui bem
diferente. Gosto muito.
RANULPHO
Viajou para muito lugar?
JOHANN
Eu trabalhava de garçom em um navio somente
para viajar.
RANULPHO
E já foi para onde?
JOHANN
Somente pela Europa e América.
RANULPHO
É muita viagem não é?
JOHANN
Quero viajar mais, o mundo inteiro.
RANULPHO
O mundo inteiro?
JOHANN
Junto todo dinheiro que recebo somente para
isso.
RANULPHO
E quando vai ser?
JOHANN
Quando tiver o dinheiro.
RANULPHO
Então o negócio do moço é viajar. Gosta até
de viajar por aqui por esse lugar infame.
JOHANN
Sim. O senhor viaja muito?
RANULPHO
Não. Viajo pra trabalhar. É isso.
Um homem trabalha na roça. O caminhão passa, a poeira
baixa, tudo volta a ser igual: o cotidiano inerte
permanece.
O caminhão levanta uma poeira fina e segue por uma
estrada onde a seca está em todas as direções.
JOHANN
É, mas eu já acertei o pagamento com o senhor
por isso.
RANULPHO
Apois está certo, a diferença fica por conta
da carona que o senhor vai me dá até o Rio de
Janeiro.
JOHANN
Como isso?
JOHANN
Não entendi nada do que você falou.
RANULPHO
O povo daqui é cismado com novidade. Como o
senhor vai vender um remédio novo a esse povo
atrasado?
RANULPHO
Deixe ver. É Marimbondo.
JOHANN
O que é isso?
RANULPHO
Incha. Dói. Depois passa.
Em um calendário da aspirina do ano de 1942, pregado no
volante do carro, JOHANN marca os dias de viagem.
RANULPHO
Mas me diga uma coisa, seu, seu..
JOHANN
Jo-hann.
RANULPHO
Ganha muito dinheiro para fazer isso?
JOHANN
O suficiente para juntar.
RANULPHO
É.
JOHANN
Está doendo muito. Difícil dirigir. Você sabe
dirigir?
RANULPHO
(com olhar constrangido responde) Não.
Para arder desse jeito, deve ter sido mesmo
marimbondo.
E o doutor fica aqui quanto tempo?
JOHANN
Eu tenho mais uma semana para terminar aqui,
voltar para o Rio de Janeiro e começar outra
viagem.
RANULPHO
Isso é que é vida.
JOHANN
Ainda vai ser. Isso aqui ainda é trabalho.
Ainda tenho serviço, depois quero fazer o que
quiser. Ir para qualquer lado da estrada, e
passar o tempo que eu quiser em cada cidade.
O que mais gosto de fazer é conhecer lugares,
conhecer gente.
RANULPHO
Já notei, o moço não pára de dar carona.
Com um carro desse deve ter muita diversão no
caminho?
JOHANN
Na Bahia foi muito bom. Em um lugar chamado
Valença.
Tinha um cabaré lá, muito bom.
RANULPHO
Essa parte é a que mais me interessa.
Alguém pede carona na estrada. Eles param. É uma MULHER
COM UMA GALINHA. Eles deixam o assunto de lado.
A agricultora sobe no carro cumprimenta e agradece aos
viajantes e RANULPHO vai logo reclamando.
RANULPHO
E se essa galinha sujar tudo aqui, como é que
vai ser?
MULHER COM UMA GALINHA.
É logo ali. Eu vou ficar logo ali, meu filho.
Não vai dar nem tempo do bicho fazer os
serviços dentro do carro.
JOHANN faz sinal de que não há problema. Ela entra e
fica calada o tempo inteiro.
JOHANN
Nessa época de guerra o emprego é difícil.
RANULPHO
Mas é uma loucura essa guerra mudando a vida
de todo o mundo. Uns indo para a Amazônia,
outros perdendo o emprego. E o senhor, mudou
a sua vida essa guerra?
JOHANN
Quando sai da Alemanha ainda não tinha
guerra.
RANULPHO
E depois?
JOHANN
Depois não voltei mais. Fiquei no Brasil e
aqui pacífico. Nada de guerra.
RANULPHO
É aqui nem guerra chega.
JOHANN
Que comida é essa?
RANULPHO
(apontando para um bode)Está vendo aquele
bicho ali no pasto. É aquilo que o moço está
comendo: bode.
JOHANN
É saudável?
RANULPHO
Já dizia minha avó. Feliz do bicho que come o
outro.
JOVELINA
O senhor tem rádio?
JOHANN liga e procura uma das poucas rádios que toque
música. Ele consegue sintonizar uma música, é uma
música triste que fala de partida. Ela fica feliz com a
música para depois desandar a chorar novamente.
JOHANN
Se chorar de novo vai perder a carona.
JOVELINA
(rindo com a piada)
Está certo não vou chorar mais.
RANULPHO olha para o decote da moça que é um tanto
ousado para aquela região. JOHANN flagra RANULPHO
olhando para os seios de JOVELINA. A moça também
percebe os dois rapazes olhando para seus seios.
Silêncio.
RANULPHO
Mora em Flores?
Está voltando para casa?
Está com saudade, não é?
JOVELINA
O senhor quer mesmo saber por que eu estou
chorando desse jeito, não é?
RANULPHO
Não. O que é isso.(encantado com a moça)
JOVELINA
Meu pai chegou em casa depois de ter tomado
umas e me mandou embora.
JOHANN
Como umas?
RANULPHO
Tava bêbado.
JOHANN
E agora vai fazer o quê a moça, como é seu
nome?
RANULPHO
O meu é Ranulpho.
JOVELINA
Jovelina. Vou para a casa da minha irmã em
Ricifi. Vou pegar o trem que sai amanhã
cedinho.
E o seu nome?
JOHANN
Johann.
RANULPHO
Bom, a vida em Ricifi é melhor que aqui.
JOVELINA
E a minha mãe e meus irmãos. E a saudade
deles?
RANULPHO
Saudade é bom porque passa.
JOVELINA
Passa para o senhor, a minha só aumenta.
JOHANN
Olhe moça, também estou muito longe da minha
família e tenho muita saudade.
JOVELINA
É. O senhor é o quê?
JOHANN
O quê? De onde eu sou? Alemão.
JOVELINA
Não é isso, o signo. Eu sou Câncer. E
você(para RANULPHO).
RANULPHO
Nasci dia 05 de novembro, é o quê?
JOVELINA
Vige. Escorpião.
RANULPHO
É bom?
JOVELINA
É bom e é ruim. Agora tem um fogo. E o
senhor?
JOHANN
Eu o quê?
JOVELINA
Seu signo?
JOHANN
Signo?(fica pensando)
Ah, stern zeichen.
Sou stier.
JOVELINA
Tem esse não.
JOHANN
20 de abril.
JOVELINA
É finzinho de Áries.
Rapaz feliz, aventureiro e sonhador.
JOHANN
É.
RANULPHO
E eu? Fale mais.
JOVELINA
Tu és os pés da besta.
Eu tenho uma revista que só fala disso. Eu
posso ler?
JOVELINA
Pois é, sou de Câncer.
RANULPHO
Qual a sua idade moça?
JOVELINA
19 anos. E o senhor(para JOHANN).
JOHANN
25 anos.
JOVELINA
E tu?(para RANULPHO)
RANULPHO
(titubeando e falando baixo) 22.
JOVELINA
quantos anos?
RANULPHO
(para JOVELINA)É , é 23. Ele é mais velho.
JOVELINA
Parece mais.
Chegam a uma bifurcação. JOHANN fala em um tom mais
alto.
JOHANN
E agora Ranuulpho, para que lado?
RANULPHO
Por aqui, doutor à esquerda.(avisa para
JOHANN)
JOVELINA
É esse o caminho? Tem certeza?
JOHANN
Já está escurecendo, daqui a pouco a gente
pára.
Eu não gosto de dirigir à noite.
JOVELINA
Mas não vai chegar hoje?
JOHANN
Somente amanhã. A senhora poderá dormir aqui
dentro do caminhão. Eu dormir do lado de
fora.
JOVELINA
Que é isso?
JOHANN
Por favor.
JOVELINA
Me Desculpe o trabalho.
RANULPHO
Não tem nenhum.
JOVELINA
Mas me diga uma coisa, vocês tão viajando
para onde? Fazem o quê?
36. EXT. SEGUNDA EXIBIÇÃO NA PEDRA– NOITE.
JOHANN
A moça está triste com a vida? Eu também
estou.
JOVELINA
Mas nem parece. O senhor parece feliz.
JOHANN
É o meu jeito, mas estou muito triste.
Ele segura na mão de JOVELINA.
JOVELINA
Devia ser somente isso a vida. Mas não é.
RANULPHO olha JOHANN segurando a mão da moça e se
aproxima dos dois.
RANULPHO
Você é bonita podia ser artista de cinema?
JOVELINA
Não, eu não.
RANULPHO
Não? Por que não?
JOVELINA
Porque eu quero ser feliz. Esse povo que
aparece ai não tem cara de quem é feliz, nem
parece gente de verdade, de carne e osso. Nem
tem linha da vida.
JOHANN
Preciso parar e colocar água no motor. Tenho
pouca água no reservatório.
RANULPHO
Pode dar uma parada aqui na sombra onde tem
essas pedras que eu vou naquela casa pedir um
pouco de água para o motor.
JOHANN
RANULPHO?
RANULPHO
Acordou?
Diga. Estou ouvindo.
JOHANN
Você acha que eu vou morrer?
RANULPHO
Vaso ruim não quebra.
JOHANN
Eu preciso muito de um favor seu e eu pago
bem para você fazer isso.
Se eu morrer eu queria que você mandasse
avisar a minha família.
RANULPHO
Como eu vou escrever para eles?
JOHANN
Você escreve para a fábrica que eu trabalho e
eles avisam.
RANULPHO
Mas como eu vou saber fazer isso.
JOHANN
Tem um caderno de capa verde dentro do cofre
do carro que tem o endereço da fábrica no
Rio.
RANULPHO vai até a cabine e pega o caderno. Ele começa
a ler um endereço que encontra.
JOHANN
É esse mesmo. Você manda um telegrama para a
fábrica avisando. O dinheiro também está lá
no cofre. O que sobrar fique com você. Agora
preste atenção diga no telegrama que a última
coisa que falei foi que pedi desculpas aos
meus pais.
RANULPHO
Homem. Deixe dessa conversa que não gosto
disso
Que conversinha de morte é essa?
JOHANN
Você tem medo da morte?
RANULPHO
Eu? Se eu fosse o senhor tava me cagando de
medo.
JOHANN
E você acha que eu estou como?
RANULPHO
Está cagado, não é?
JOHANN
Acho que, medo, medo mesmo, não tenho. Queria
viver mais, só isso.
Quem tem medo da morte, tem medo da vida.
RANULPHO
Mas esqueça isso.
Fique olhando as estrelas. O moço não gosta?
JOHANN
Pelo menos eu vou morrer em um lugar
tranqüilo, uma noite calma, estrelada.
(silêncio)RANULPHO?
RANULPHO
Diga.
JOHANN
Você acredita em Deus?
RANULPHO
Nessas horas eu acredito. Segure firme nesse
rosário que a AGRICULTORA lhe deu, segure.
É hora de acreditar.
Olhe, o senhor faz exercício, é forte. Sangue
forte. Se você fosse um cabra mais fraco aí
era complicado.
Longo silêncio.
JOHANN
RANULPHO por favor, conversa mais comigo. Eu
me destraio.
RANULPHO
Está certo. Vou pensar o que.
Breve silêncio.
RANULPHO
O senhor já quis ser outra pessoa? Já quis?
JOHANN
(rindo)Não.
RANULPHO
Apois ontem, eu devo lhe dizer que quando o
senhor me falou que ia passar a vida viajando
e eu vi o seu trabalho, passando filmes com
essas máquinas, viajando pelo mundo, e depois
quando vi o doutor com aquela moça.
JOHANN
Você viu?
RANULPHO
Ah bobagem. Ai eu pensei: Por que eu não
nasci esse camarada?
Isso aí é que é sorte.
JOHANN
Veja que sorte.
RANULPHO
Quer trocar de sorte. Ainda aceito a troca,
mesmo o senhor envenenado.
JOHANN
Você está dizendo muita bobagem.
Eu estou fraco não consigo mais falar.
Mas fique aí dizendo bobagem por favor.
RANULPHO
Falar o quê?
JOHANN
Por que você não me conta uma estória para
mim?
RANULPHO
A única estória que sei é a minha.
JOHANN
Então me conte, vai ajudar a dormir.
RANULPHO
Vai dormir mesmo. É a coisa mais sem graça.
Começa pelo lugar que nasci. Chama, com
licença da palavra: Bonança, umas cinco
casas, uma cruz no meio, uma viv’alma na rua,
sol de matar, o dia é morto e a noite mais
ainda.
Meu pai foi embora de casa com uma dona, se
amancebou com ela e vive pro lado da Paraíba.
Deixou minha mãe e minhas duas irmãs e eu
para tomar conta das três. Que filho da puta
aquele camarada, viu.
Minha tem uma venda na beira da estrada.
Desde pequeno era assim: minha mãe na
cozinha, minhas irmãs brincando no quarto. Eu
tomando conta da venda, organizando as
compras, as vendas, conversando com os
viajantes, botando bêbado pra fora.
Um dia minhas irmãs já crescidas, eu olhei
para um lado, para o outro e disse é hoje,
chega.
Me mandei. Deixei três mulheres atrás de mim
penando e chorando de saudade, um choro
miúdo, fino de doer. Não olhei nem pra trás
se olhasse desistia. Fui em frente.
(RANULPHO pára, olha de lado)
Seu Johann? Já dormiu?
JOHANN não responde. RANULPHO começa a contar a estória
como se fosse para ele mesmo.
RANULPHO
Penei, penei, mas cheguei no Rio, na capital,
mas não consegui nada.
Quando a fome começou a bater, eu voltei de
novo com medo de morrer de fome. Voltei pro
lugar que tinha saído, voltei derrotado.
Olhe que encarar um derrota na vida é triste.
Tristeza minha, alegria da minha família
quando me viu.
É isso! No Rio de Janeiro não consegui nada.
Mas também lá é assim: nordestino é somente
para viver de mangação.
Juntava o povo e diziam fala ai de novo
rapaz. Era uma mangação quando eu falava.
Diziam assim: mais um Paraíba, e aí tu usa
uma peixeira embaixo da calça que nem
cangaceiro? Tu come calango?
Ai eu baixava a cabeça.
Agora dessa vez vai ser diferente. Já começou
diferente. Já estou empregado e nem cheguei
lá.
E aí eu vou dizer: como? diga de novo?
Calango? Como calango sim e como o cu da tua
mãe filho da puta e aí mostro minha carteira
de trabalho assinada com o emprego na fábrica
da Aspirina.
Depois disso, no outro dia escrevo uma carta
para minha mãe. Conto tudo. Do novo trabalho
na fábrica e essa carta minha mãe vai ler em
voz alta para todos os moradores de Bonança
ouvir.
JOHANN dorme. RANULPHO transpira, respiração ofegante,
olhar triste. Parece ter tomado consciência de sua
própria história. Ele se levanta vai até o rádio e liga
o rádio tentando se destrair. O LOCUTOR anuncia a
programação para o próximo dia.
LOCUTOR
Nesse momento desfaz-se a nossa cadeia
transmissora, mas antes a programação de
amanhã: sexta-feira 26 de Agosto de 1942.
Nove horas Boa dia PRA8; Dez horas jornal
contra a tosse, onze horas alomço
musicado,doze horas intervalo. treze horas
almoço musicado.Treze horas repórter Esso com
o boletim da guerra. Catorze horas folhinha
de produtos santa clara. Quinze hora música
popular brasileira, dezoito horas ave maria.
Dezenove horas programa política da boa
vizinhança transmitida pela Mutual
Broadcasting System. Vinte três horas
despedida e Hino Nacional. Fiquei agora com o
hino nacional brasileiro.
RANULPHO desliga o rádio.
CLAUDIONOR
Um matador de aluguel fez um serviço aqui
ontem. Matou um rapaz.
Briga de família. Essas bobagens de lugar
atrasado.
Tá todo mundo trancado em casa com medo.
O puteiro está fechado.
Agora se o senhor quiser tomar um drinque é
meu convidado na minha casa.
CLAUDIONOR
Ele vai ficar mais a vontade com os
empregados. Vamos conversar sobre negócios.
Coisa chata.
RANULPHO
É isso doutor tô indo com o rapaz aqui.
O olhar de RANULPHO é só constrangimento.
JOHANN
O meu ajudante vai ficar para a conversa. Ele
trabalha comigo.
RANULPHO
Não tenho nada que fazer aí dentro.
JOHANN
(para RANULPHO) Você trabalha comigo e não
com ele.
CLAUDIONOR
O que é isso. Não quero atrapalhar nada.
Fiquem vocês a vontade a casa é de vocês.
Manuel fique aqui também conosco. Por favor.
O clima é de constrangimento. CLAUDIONOR, JOHANN,
RANULPHO e MANUEL entram na sala.
CLAUDIONOR se adentra pela sala e em voz alta diz a
insígnia do caminhão, como se estivesse declamando para
uma grande platéia:
CLAUDIONOR ASSIS
Aspirina, o fim de todos os males!
Pois sim, quanta honra, Aspirina e cinema na
minha Triunfo, pela primeira vez.
Uma mulher na sala, próxima a janela observa as
estrelas através de uma luneta. Ela é esguia, bonita,
elegante, cerca de trinta anos, cabelos escuros, olhar
cortante. Seu nome é ADELINA. Ela parece não pertencer
àquele lugar.
JOHANN
(querendo ser simpático)
Triunfo é muito longe.
CLAUDIONOR ASSIS
O Brasil é um continente. Maior do que a
América sem o Alaska, é claro.
Como é a sua graça mesmo? É seu nome?
JOHANN
É Johann Tellen.
CLAUDIONOR ASSIS
Claudionor José Pereira Carneiro de ASSIS, às
suas ordens. O que precisar aqui, fale
comigo. Essa é minha patroa ADELINA. Uma
senhora maravilhosa, mas não entende nada de
política.
ADELINA
Enchanté Hern Tellen. E o seu nome?(para
RANULPHO)
RANULPHO
Ranulpho
ADELINA
Prazer.
Ranulpho sorri. Adelina responde ao sorriso.
CLAUDIONOR ASSIS
Minha querida, vamos ter um jantar de
negócios.
ADELINA
Fiquem a vontade. Estou terminando uma
observação de um planeta depois me junto a
vocês.
ADELINA
Não sou grande fã de carne de bode, mas sem
dúvida nossa cachaça e inigualável.
CLAUDIONOR
(sorrindo carinhosamente)
Isso é que dá casar com uma AGRICULTORA
avançada.
CLAUDIONOR ASSIS
Isso é: quero que o senhor mande trazer outro
carregamento do Rio de Janeiro para eu
revender. É possível.
JOHANN
Mando um telegrama amanhã cedo. Não vejo
problema.
CLAUDIONOR
Agora somente eu revendo na região e mais
ninguém.
JOHANN
Sim. Acho que a fábrica vai querer.
CLAUDIONOR ASSIS
Então é isso.
Vamos brindar.
Ao sucesso da nossa empreitada, e ao
progresso de Triunfo.
ADELINA
E ao final desta guerra tão absurda.
JOHANN se espanta com que ADELINA fala, CLAUDIONOR
também. RANULPHO abre um sorriso encantado.
JOHANN
Sim. Ao final de todas as guerras.
CLAUDIONOR
Não repare não, ADELINA foi educada na
França, quer dizer, ficou só um ano e meio na
França, mas com estas besteiras na cabeça.
ADELINA
Fiquei dois anos na França. Educação não é
besteira e bem que você gosta das coisas que
saem da minha cabeça não é meu amor.
ADELINA, inusitadamente, pega a garrafa de cachaça e
enche o copo dela e dos outros dois. JOHANN vira o copo
dele rapidamente. Ela também. Existe um sorriso
cúmplice entre os dois.
A empregada entra e os serve um prato cheio de carne,
uma carne escura. Há, no prato, carne suficiente para
alimentar um batalhão. Ela serve JOHANN primeiro.
JOHANN termina seu copo de cachaça, como se para tomar
forças, para comer o bode.
JOHANN
O senhor sabia que esse é a maior divulgação
feita sobre um produto no mundo inteiro?
CLAUDIONOR
É mesmo! E pra isso, vou fazer uma exibição
especial. O que o senhor acha de fazer a
exibição na praça principal?
JOHANN
Mas tem umas barracas lá.
CLAUDIONOR
A gente tira. Amanhã prepraro tudo. Mas me
fale mais do produto.
JOHANN tira um exemplar do bolso. CLAUDIONOR e ADELINA
examinam os frascos.
ADELINA
Mas eles deviam tomar mais cuidado com as
embalagens dos frascos. Deveriam ser mais bem
desenhadas.
CLAUDIONOR
Isso é frescura ADELINA. O que importa é a
qualidade do produto, o que está dentro.
ADELINA abre um frasco e experimenta uma Aspirina. Ela
experimenta e faz um silêncio. Depois abre um sorriso.
ADELINA tira do frasco outra Aspirina e toma.
CLAUDIONOR
Calma ADELINA. Isso num é cachaça não.
JOHANN não se controla e ri. RANULPHO fica sério.
ADELINA
Com licença a todos vou voltar para as
estrelas.
MANUEL
Com licença doutor tô indo.
60a .INT. SALA DE JANTAR CLAUDIONOR – NOITE(LOGO
DEPOIS)
NARRADOR
Passou o carnaval. Já não resta mais em nosso
espírito senão a doce lembrança da alegria
passada. Assim é a Ventura. Passa depressa e
custa caro! E o pior é que nos sentimos
cansados, tristes, com o corpo mole e a
cabeça a doer.
Imagens de um salão de carnaval. Pessoas fantasiadas se
divertem. O Pierrô, visto anteriormente, se diverte
freneticamente. Ele pula, dança e bebe muito.
NARRADOR
São as conseqüências dos prazeres do homem,
da fadiga, das danças e do abuso de bebidas
alcoólicas. Mas fossem assim todos os males
do mundo!
O pierrô agora toma um comprimido e troca a fantasia
por um terno para ir trabalhar.
NARRADOR
Este ao menos tem remédio pronto e imediato:
basta que tomemos o conselho da Experiência
fazendo uso previdencial da ASPIRINA. Para
que nos sintamos novamente fortes.
Vemos agora a projeção do filme institucional
“Inauguração da Fábrica do Rio”, que mostra imagens do
Presidente Getúlio Vargas inaugurando a fábrica da
Aspirina no Rio de Janeiro.
São imagens do tipo cartão-postal em preto e branco do
Rio de Janeiro em 1942.
LOCUÇÃO DO FILME
A Capital da República, encantadora cidade do
Rio de Janeiro, famosa por sua beleza, as
montanhas, a lagoa e as praias, acompanhou
mais um passo em direção ao futuro: a
inauguração da moderna fábrica de remédios da
ASPIRINA.
RANULPHO
O Rio de Janeiro.
JOHANN
Por que você não tinha me dito que já tinha
ido lá?
RANULPHO
Como?
JOHANN
Por que você não me disse antes que já
conhecia a capital?
Você contou na sua história.
RANULPHO
Tu não tava dormindo?
JOHANN
Não.
RANULPHO
Era mentira.
JOHANN
O quê?
RANULPHO
Eu nunca viajei pra lugar nenhum. Inventei
tudo aquilo. Nunca tive a sorte de sair
viajando.
Falei do que acontece com o povo daqui que
vai pra lá. E só penso se eu fracassar.
Fracasso é difícil deixa a gente com uma
revolta, uma raiva.
E eu que já tenha a natureza assim azedo.
JOHANN
Mas você nunca teve a oportunidade.
RANULPHO
Não
JOHANN
Mas agora você sabe até dirigir caminhão.
RANULPHO
É se der errado, eu desisto.
Os dois rapazes ficam calados. Agora o que se vê são
imagens da fachada da fábrica, e, no seu interior,
autoridades acompanham o Presidente cortar a fita de
inauguração. RANULPHO e ADELINA se olham durante toda a
exibição.
LOCUÇÃO DO FILME
Autoridades civis, militares e religiosas
ASSIStiram com atenção ao próprio Presidente
Getúlio Vargas cortar a fita e minutos
depois, ligar a primeira máquina, dando
início no Brasil, à produção de ASPIRINA.
CLAUDIONOR
(megafone)
Viva o presidente Getúlio Vargas!
PÚBLICO
Viva!
RANULPHO
Pronto, o filho da puta vai se eleger com seu
cinema.
CLAUDIONOR ASSIS
Sim, isso é bom. Principalmente pros cornos.
Claudionor ri, solitariamente, da piada.
RANULPHO
Mas o senhor já gosta de piada de corno.
CLAUDIONOR
É
RANULPHO
Eu acho a coisa mais sem graça. É história de
corno e
CLAUDIONOR
(para JOHANN)
Abusado o seu ajudante.
(ele se vira para uma moça que serve a todos)
Oh Maria da Paz, traga duas meninas pro rapaz
aqui para tirar o abuso dele.
RANULPHO
O coronel arretosse.
CLAUDIONOR
(rindo)Eu não sou coronel, sou empresário.
RANULPHO
É a mesma coisa.
CLAUDIONOR
(sério) Não é não.
RANULPHO
E qual é a diferença?
CLAUDIONOR
(calmo falando perto do ouvido de RANULPHO) A
diferença é que se eu fosse coronel eu já
tinha mandando meus capangas fazerem algo
com você matuto. Mas como sou empresário eu
mesmo posso fazer não mando ninguém.(rindo)
RANULPHO
Isso sai com quê?
JOHANN
Com o tempo.
PALESTRANTE
Lutaremos nas paragens, nos campos, nas
colinas, nos arrabaldes, nos bairros, nas
praças, nas casas, nos porões e nas
catacumbas. Só tenho a oferecer ao povo
sangue, suor e lágrimas.
RANULPHO
Eita exagero da gota.
Palestrante
No momento do perigo, todos os brasileiros
acorrerão à defesa da bandeira e o estado
convosco pronto para lutar, para vencer e
para morrer.
LOCUTOR
Você ouviu em rede nacional o discurso do
presidente.
RANULPHO
A tua gente fez uma merda danada, hein?
JOHANN
Eu nunca pensei que a guerra ia chegar aqui.
RANULPHO
Eu também.
Escuta-se agora uma séria de reclames: sabonete,
biotônico fortificante, Casas Slopper. A programação
normal da rádio continua, como se isso pudesse atenuar
a gravidade do anunciado.
A notícia deixa JOHANN triste, deprimido. A sintonia do
rádio vai aos poucos se esvaindo. JOHANN olha para um
lado e para o outro. Ele bate na parede com força.
Grita alguns palavrões em alemão. RANULPHO
prudentemente se cala.
JOHANN
Eu com tanto medo de morrer com a mordida
daquela cobra. Agora a morte está mais perto
ainda.
RANULPHO
Mas rapaz, é danado. A gente se divertindo
que só e o mundo se acabando todo.
JOHANN
E agora?
RANULPHO
(olha para o céu)
Rapaz, eu juro a você que até daqui eu tava
gostando. Juro tava começando a gostar de
tudo.
JOHANN
Você acha ainda que aqui é o fim do mundo?
RANULPHO
Acho, mas tem outros piores.
JOHANN
A vida aqui é dura, mas eu gosto do espírito
das pessoas é humano, natural, familiar.
RANULPHO
Eu não sei não. Não tenho como comparar.
Nunca sai daqui.
JOHANN
Sim. Mas todos os lugares tem coisas boas e
ruins.
RANULPHO
Fazer o que né. Lugar é que nem gente.
Mas o doutor tem família?
E cadê esse povo todo?
JOHANN
Alemanha.
RANULPHO
E lá num está em guerra?
JOHANN
E eu devia estar protegendo minha família e
meu povo.
RANULPHO
E por que não está?
JOHANN
Porque eu não concordo com essa guerra e não
nasci para matar gente.
RANULPHO fica constrangido da pergunta que fez.
RANULPHO
(ainda adormecido)
O que foi rapaz?
JOHANN
Não consegui dormir.
RANULPHO
Mas já sabe o que vai fazer?
JOHANN
Não, não sei!
O rádio continua chiando.
RANULPHO
O senhor fica aqui eu vou lá naquela cidade
ali perto. Vou comprar comida.
JOHANN
E compre tinta.
RANULPHO
Tinta?
JOHANN
Tinta e pincel.
VENDEDOR
É coisa fina e com essa guerra tá tudo pela
hora da morte.
RANULPHO
Dou cinco e olhe lá.
Vendedor
Cinco não paga o cuspe do rapaz que fez. Essa
mercadoria está aí faz tempo. Somente pra me
ver livre dela, me dê quinze e num me
esquente mais o juízo.
RANULPHO
Doze e num se fala mais nisso. E eu ainda
levo essa brilhantina.
É preço de amigo.
VENDEDOR
Ô peitica! Fazer o quê?
Com rádio ligado, ouvimos o LOCUTOR anunciar que em
trinta minutos mais um noticiário especial de guerra
irá começar.
JOHANN
A minha história é mais sem graça ainda. Eu
vim de um lugar frio, sisudo, severo: a
Alemanha. Mesmo antes da guerra, eu tinha
grande vontade de viajar pelo mundo.
Antecipei essa vontade com medo de servir o
exército eu fui trabalhar de garçom em um
barco que vinha para a América e nunca mais
voltei.
Se voltasse, tinha que ir para a guerra. Ai
viajei muito e cheguei no Brasil.
Foi difícil , não sabia a língua. Difícil
sobrevivência. Meus pais sempre escreviam,
exigindo que eu voltasse.
Tenho uma família grande cheia de irmãos e
irmãs. Eles acham que vai ser uma vergonha
para a família se eu não voltar.
Eu ouço as notícias da guerra e penso neles,
mas tenho tanto horror do que está
acontecendo que prefiro ficar longe.
Eles nunca vão me perdoar.
Dei a sorte de cair aqui no sertão. Porque se
tivesse no Rio de Janeiro já teria sido
mandado embora para a Alemanha.
RANULPHO
Para você ver não é? Se tu tivesse no Rio tu
ia virar camarão enlatado.
A sua história é mais triste que a minha. Nem
sei qual é a pior.
JOHANN
Agora eu só tenho a vida e algum dinheiro.
RANULPHO
E eu só tenho a vida e olhe lá.
Vamos brindar com mais Termosinha.
Vamos brindar. Isso são dois cabras fudidos.
82. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – NOITE(logo depois)
JOHANN
Já pensou se eu fosse para a guerra e você
também. Nós poderíamos nos defrontar em um
campo de batalha?
RANULPHO
Rapaz e eu nunca pensei nisso.
JOHANN
Aí eu ia dizer olha lá aquele brasileiro que
reclama de tudo.
RANULPHO
E eu ia dizer olha lá aquele alemão que acha
tudo bonito e que é tão feliz que é chato.
JOHANN
Olha aquele brasileiro que tudo está ruim,
tudo é um abuso. Mas ele é o que mais se
diverte sempre.
RANULPHO
Olha aquele alemão que somente pensa nas
viagens dele enquanto o mundo está se
acabando.
JOHANN
Olha lá aquele ladrãozinho de Aspirina.
RANULPHO
Olha lá o alemão que eu salvei a vida dele. E
eu agora vou ter que matá-lo.
E vou fazer isso antes que ele me mate.
JOHANN
Olha lá aquele meu amigo que salvou minha
vida. Agora eu vou ter que matá-lo.
E vou fazer isso antes que ele me mate.
Um atira hipoteticamente no outro, os dois caem e não
se levantam mais de tão bêbados. Eles desandam a rir.
RANULPHO
Eu já tomei várias, mas isso não faz efeito
em mim não.
Ele vai lavar o rosto. Enquanto lava o rosto, observa
que JOHANN está ainda mais calado e preocupado.
RANULPHO
É ressaca?
JOHANN
Também.
Eu tomei uma decisão.
RANULPHO
Vai para guerra?
JOHANN
Não.Amanhã eu vou para a Amazônia e você pode
ser meu ajudante.
RANULPHO
Tufo. Olha aí já tenho um trabalho.
JOHANN
Você acha que eu devia estar na guerra?
RANULPHO
Olhe, pergunta danada essa!
(fica pensando olhando ao redor) Eu acho o
seguinte. Veja isso aqui, olhe para sua
frente. Isso aqui é uma guerra não é?
JOHANN
Mas é diferente.
RANULPHO
É diferente, mas o povo aqui morre de fome
faz duzentos anos. O governo não faz nada. E
eu faço o quê? Fujo. Eu estou fugindo do
mesmo jeito.
Agora eu lhe digo, se tivesse um jeito de
resolver a situação desse povo, eu resolvia.
Se pudesse acabar com essa situação eu
acabava, mas não posso. E é mais fácil ajudar
a acabar com isso vivo do que morto.
Eu acho que você está certo. Vamos preparar
nossa viagem.
JOHANN está paralisado, olhando ao redor e pensando em
tudo que RANULPHO falou e ao mesmo tempo, perplexo com
tudo que ele falou.
JOHANN
Onde você aprendeu tudo isso? Quem lhe falou
tudo isso?
RANULPHO
A vida.
JOHANN
Primeiro vamos viajar um pouco depois ficar
em Manaus a procura de um trabalho.
RANULPHO
Eu não quero isso não.
JOHANN
Mas você vai para lá em outra condição.
RANULPHO
Eu sei. Mas tem uma coisa que eu vou lhe
dizer. Eu vou lhe acompanhar até o trem
chegar.
Depois eu estou indo embora.
JOHANN
Como isso? Desistiu?
RANULPHO
Não, vou enfrentar.
Vou fazer o que o senhor vai fazer lá na
Amazônia.
Vou fazer o meu destino.
JOHANN
E por que não pode ser lá?
RANULPHO
Porque minha história é outra.
JOHANN
E qual é?
RANULPHO
Sair por aí. Conhecendo uma coisa aqui, outra
lá. Juntar um dinheiro e depois ver o que
fazer. Tomei gosto pela coisa. Peguei o
vício.
JOHANN
Sabe aquela estória de querer ser outra
pessoa?
Me deu vontade de ser você.
RANULPHO
Vige, ainda bem que vontade dá e passa.
Mas é isso, minha vida agora vai ser uma
estrada.
Para você é melhor ficar escondido até todo
esse pesadelo passar.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E tu?
RETIRANTE 2
Jeremoaba.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Onde é isso?
RETIRANTE 2
Perto da Bahia.
O funcionário chega perto de RANULPHO. Se aproxima dele
com um olhar de poucos amigos. JOHANN esconde o rosto,
fica aterrorizado, com medo de ser reconhecido.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E você, metido a engraçado, é donde?
RANULPHO
De Bonança.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E tu?(para JOHANN)
RANULPHO
Ele é meu vizinho.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
De onde?
RANULPHO se levanta, fica na altura do funcionário, e
olha bem nos olhos dele.
RANULPHO
Eu já disse de onde.
(para JOHANN)E tu perdeu a língua e precisa
do vizinho pra falar?
Tudo na estação é silêncio. RANULPHO olha nos olhos do
funcionário.
RANULPHO
Da Alemanha! Meu vizinho da Alemanha.
JOHANN, por um segundo, fica perplexo com a declaração.
O funcionário está com um olhar de raiva fixo em
RANULPHO.
JOHANN
E apois!
A risadagem é geral. O funcionário desiste de insistir
na pergunta.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Agora fica todo mundo sentado que a polícia
vai fazer a vistoria.
Ele se dirige ao escritório, mas antes, se encontra com
soldados que acabaram de chegar na estação.
JOHANN começa a sentir um certo pânico.
JOHANN
Eu vou ao banheiro, fico esperando o trem de
lá.
RANULPHO
Melhor.
RANULPHO começa a conversar com o flagelados. Pergunta
o nome de um grupo que está perto iniciam uma conversa.
93. INT. ESTAÇÃO – DIA (MAIS TARDE)
RANULPHO
Oxe. É agora mesmo.
Olhe e você meu amigo, cuidado com os índios.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Avante, avante tropa da borracha, viva o
Brasil, sempre em marcha!
JOHANN entra no vagão e se posiciona na janela.
RANULPHO observa a cena. O trem começa a apitar e a
partir. Imagens do ponto de vista de JOHANN olhando as
diferentes texturas da região passando pelos seus
olhos, uma sinfonia de tons. Corte para.
Fim