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CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS

Um roteiro original de

Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz.

Um filme inspirado em um relato de viagem.


Quand vous montrez un arbie, il faut qu’il
vous parle de sa beauté dárbre, une maison de sa
beauté de maison, un fleuve de sa beauté de fleuve. Et
les hommes et les animaux aussi. Un tigre, un
éléphant, un singe, c’est aussi intéressant qu’un
gangster ou une femme du monde. Et vice versa.

Jean-Luc Godard.
1. ABERTURA

Série de Planos.
A visão é de alguém que espreita o mundo da janela
de um carro em movimento.
Imagens borradas, sem contornos, mal definidas que
se assemelham a pinturas impressionistas.
Apenas compreendemos a matriz cromática
predominante em cada imagem. Uma sucede a outra em
fusão. Começamos no verde-escuro passando pelo
verde-claro, verde-queimado, cinza, branco, seco.
É como se percorrêssemos diferentes regiões do
Brasil, diferentes paisagens representadas pelas
suas cores características.
A primeira imagem que rasga a tela tem contornos
onde predomina o verde-escuro de uma floresta
densa, úmida, uma Mata Atlântica.
Sincronizada à imagem, um ruído de um rádio
tentando sintonizar uma estação.
LOCUTOR
Senhoras e senhoritas a partir desse momento
a Rádio Nacional transmite diretamente dos
seus estúdios no Rio de Janeiro. a novela de
maior sucesso do rádio brasileiro: Em Busca
da Felicidade. Um vento de emoção que varre o
país.
Uma música romântica segue a apresentação.

A sintonia da rádio se esvai e entramos em outra


estação.
LOCUTOR
O seu Repórter Esso, testemunha ocular da
história com as notícias do front de batalha
dessa quinta-feira, 18 de agosto de 1942.
Em fusão, a segunda imagem aparece. Cor predominante:
verde claro. A vegetação é menos densa, permite
que a luz do sol esteja mais presente.
LOCUTOR
Para seu bem estar, Gotas Amargas Arthur de
Carvalho, o melhor remédio para estômagos
empachados, indigestão, mal estar. Gotas
Amargas podem ser encontradas em qualquer
farmácia de Governador Valadares ....
Fusão para imagem onde a velocidade do travelling faz o
verde bem claro se misturar a tons de amarelo das
folhas e o marrom da terra.
Rádio é sintonizada.
LOCUTOR
A Rádio Liberdade da Bahia anuncia a festa
paroquial que vai ter lugar na praça da
catedral para comemorar a reeleição do
coronel Paulo Ferreira prefeito de cidade de
Vitória da Conquista......
Fusão, o verde já está quase todo queimado e o marrom
claro predomina, mas ainda sem contornos
definidos.
O som foi cortado, é como se o rádio perdesse a
sintonia, tivesse saído fora do ar.
Agora a imagem que segue tem cores marrom claro e
cinza, a luz é intensa. O silêncio é total.
Abruptamente uma rádio é sintonizada.
LOCUTOR
PRA Oito Rádio Clube de Pernambuco a pioneira
do nordeste transmitindo para o mundo em
ondas curtas e médias. Começa agora o seu
programa de recados. Anunciamos nascimentos,
batizados, parabéns, missas e enterros. Um
recado para o ouvinte senhor Torres de
Salgueiro, seu funcionário Caetano Ferreira
informa que somente chegará a Salgueiro na
terça-feira o motivo do atraso é o
falecimento de ente querido no Recife.
Nessa imagem final o marrom dá lugar ao cinza e branco,
a luminosidade cega, arranha as pálpebras.
Corte para

2. EXT - CRÉDITOS DO FILME – DIA

Vários raios de luz incidem diretamente na lente. É


como se a câmera apontasse na direção do sol. A imagem
funde com os créditos do filme.
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS.

3. EXT - AÉREA DO SERTÃO – DIA

Imagem aérea do sertão nordestino. Na terra castigada


pelo sol, nada se move. No canto esquerdo da imagem
começa a surgir um caminhão que cruza uma pequena
estrada de terra. Apenas podemos identificar no teto do
caminhão o desenho de um grande comprimido de Aspirina.
Uma sombra de um Urubu rasga o chão branco e seco da
caatinga.
4. EXT - CHEGADA NO SERTÃO – DIA

O caminhão vai reduzindo a velocidade, parando


lentamente. A imagem começa a tomar contornos definidos
e nos trás a textura do mundo que cerca o viajante. A
geografia áspera, espinhosa e seca se impõe.
O motorista pára e desce do carro. Ele é JOHANN. Tem
um biótipo europeu-caucasiano, cabelos curtos,
alourados, rosto afilado, barba a fazer, aparenta 25
anos, tem um corpo magro, mas musculoso, pouco peludo,
um rosto fino, mas um queixo largo.
Johann desce do caminhão e joga um olhar curioso e
fascinado. Ele começa a observar os detalhes da
paisagem que se descortina na sua frente: o sertão, com
poucas árvores, mato seco, diversidades de cactos. Uma
paisagem silenciosa, espremida entre um céu azul e uma
terra branca. Ele observa aquela natureza pré-histórica
tentando decifrá-la.
Johann acende um cigarro e passeia pelo lugar, caminha
um pouco, estica as pernas, estende os braços e o
pescoço. Faz um pouco de exercício físico. Quase cai ao
escorregar em pequenas pedras no chão da estrada.
Ele se recompõe e entra no carro prosseguindo a viagem.

5. EXT. - ESTRADA DO SERTÃO – DIA

O viajante continua seu percurso, olhar atento a todos


os detalhes que vê. É como se tentasse traduzir a
geografia local.
No percurso ele vai observando pequenas casas de barro
perdidas na vastidão, mato queimado, árvores secas sem
vida, um urubu que voa no céu de brigadeiro.
Uma música toma conta do ambiente, em seguida um
locutor.
LOCUTOR
Músicas da manhã é um oferecimento de Cilion
os cílios postiços das estrelas, Agora mais
um sucesso.......
Acaba o sinal da rádio tudo é silêncio. O caminhão faz
uma curva.
Vencer uma longa reta sem horizontes é a próxima meta
do viajante. Uma placa enferrujada e crivada de balas
indica à direção para algum lugar. As letras se
esvaíram com o tempo e a leitura é impossível. Ele
procura um mapa para se localizar, fica ainda mais
confuso, mas, em todo caso, segue em frente.
6. EXT./INT. - PLANÍCIE NO MEIO DA ESTRADA – DIA

Johann chega no fundo da planície. Bem ao longe, ele


avista um ponto que se move. O ponto animado, pouco a
pouco, se transforma em duas pessoas.
As duas pessoas estão paradas no meio da estrada se
protegendo do sol abrasador com as cabeças cobertas por
um véu preto. Eles aguardam uma carona.
Johann chega perto e pára.
Os caronistas são: um AGRICULTOR e uma AGRICULTORA. O
homem aparenta 45 anos, usa um pequeno bigode ralo,
cabelo crespo e despenteado, pele marcada pelo sol; um
caboclo. A mulher, 50 anos, cabelo liso, rosto largo,
pele branca e avermelhada do sol.
JOHANN desliga imediatamente o rádio. Ele abre a porta
e saúda os caronistas com um sorriso.
AGRICULTORA
Moço, uma condução.
Eu vou ficar logo ali na frente.
Johann faz um gesto de cabeça afirmativo. O casal entra
no carro. A viagem segue em silêncio.

7. INT. - CABINE DO CAMINHÃO – DIA

Estamos em outro lugar da estrada. JOHANN tenta manter


uma conversa com os caronistas. Ele fala em um
português truncado. O casal que pediu carona tem
dificuldade de entendê-lo. Eles estão no meio de uma
prosa.
AGRICULTORA
Fale mais alto?
JOHANN
Sim aqui, o nome daqui?
AGRICULTORA
Ninguém sabe direito. Tem gente que chama
Serra dos Enjeitados outros chamam
Tupanapim...
AGRICULTORA do CASAL
O senhor não é daqui não, não é?
JOHANN
Não. Sou da Alemanha. Aqui sempre muito seco?
AGRICULTORA do casal
Ah sim. É aqui às vezes é pior. Esse ano está
ruim. Não chove faz tempo.
Ela oferece rapadura. Ele aceita, mas tem dificuldade
em partir com os dentes. Ela oferece um pouco de
rapadura para o homem que permanece calado.
JOHANN
Vocês fazem o quê?
AGRICULTORA
Nós trabalhamos na roça.
JOHANN
O quê?
AGRICULTORA
Agricultor.
JOHANN
Mas como plantar assim?
AGRICULTORA
Tem que chover em duas semanas.
Tudo que era semente que a gente tinha
plantamos.
Agora é esperar.
JOHANN
Como?
AGRICULTORA
Estamos esperando as notícias de Deus.
Se num chover nessa próxima semana, não temos
nada o que fazer.
JOHANN
Sim.

Silêncio. JOHANN parece que tenta entender o que a


agricultora acaba de falar.
AGRICULTORA
Olhe moço, eu fico ali. Aquela é a minha
casa.
O casal desce e Johann segue viagem sozinho e
rapidamente liga o rádio.

8. INT. – CABINE DO CAMINHÃO – DIA

O sol vai a pino, o calor deixa tudo inerte, nem mesmo


os urubus voam mais. JOHANN solitário se diverte com a
paisagem ao redor. Ele segue seu caminho, rádio ligado.
LOCUTOR
...e agora os nossos heróicos correspondentes
de guerra com os fatos mais sangrentos dos
campos de batalha da Europa...
JOHANN dá uma olhada para o rádio e faz uma cara feia
como de quem não está com vontade de ouvir tais
notícias. Ele muda de estação e sintoniza uma música
animada que contagia todo o ambiente. O caminhão
prossegue se perdendo na caatinga.
O veículo diminui de tamanho diante de um sertão
esturricado de estradas estreitas.
Urubus voam em um céu sem nuvens.
Uma sonoplastia de carro na estrada domina o ambiente.
O rádio e uma música dramática toma conta da situação.

9. INT./EXT. – PONTE SOBRE ESTRADA DO SERTÃO – DIA

JOHANN faz uma parada brusca. Ele está sobre uma ponte
de ferro que contém uma data 1929. Ele desce do carro e
observa a paisagem. Uma grande ponte e embaixo um rio
totalmente seco.

10. INT./EXT. - ESTRADA DO SERTÃO – DIA

Estamos em outro local a aspereza do sol se impõe por


completo. JOHANN, de tanto transpirar, tem sua visão
embassada. Olhos mareados, visão fora de foco, olhos
cheios de suor. JOHANN tem até dificuldade de enxergar
a hora em seu relógio que marca 10:40h.
JOHANN não suporta o calor. Ele pára o carro no canto
da estrada de forma que a traseira do veículo fique por
trás de uma pedra. Ele vai até o depósito do caminhão.
O caminhão é tipo baú. A parte de cima da lataria é
pintado em cinza e a parte de baixo em preto. Na área
lateral superior, uma propaganda toma todo espaço.
É uma pintura em verde-limão cintilante, onde um homem
sorridente segura uma caixa de comprimidos e anuncia:
ASPIRINA O FIM DE TODOS OS MALES.
Ele pega um pequeno balde com água vai até a traseira
do caminhão, tira a roupa, e toma um banho de cuia.
O rádio anuncia o fim de um programa o início de outro.
JOHANN se sente aliviado com o banho. Ele começa a
trocar de roupa, e então, percebe que bem ali perto tem
um homem armado. Ele termina de trocar de roupa e se
dirige ao homem, tentando ser cordial.
JOHANN
Bom dia!
O homem balança a cabeça. Ele é um CAÇADOR, um homem de
barba grisalha, cabelo bem curto, moreno, aparentando
uns 40 anos, dentes estragados, pele cheia de rugas.
CAÇADOR
O senhor pode me levar ali adiante?

11. EXT./INT. - CABINE DO CAMINHÃO – DIA

JOHANN examina o Caçador com seu rifle sempre em


posição de ataque. A areia branca rebate o sol. A
luminosidade dói nos olhos de Johann. Ele tem
dificuldade de dirigir de tanta luz. Johann inicia uma
conversa.

JOHANN
Mas o que o senhor caça?
CAÇADOR
Mas o senhor não é daqui não?
JOHANN
Alemão.
CAÇADOR
Ah sim.
JOHANN oferece cigarro e o caçador diz que não quer e
mostra o fumo de rolo. O caçador fica a olhar para o
relógio de JOHANN. O alemão tenta continuar a conversa.
JOHANN
Mas para quem o senhor caça?
CAÇADOR
Para mim mesmo.
JOHANN
E para quê?
CAÇADOR
Para comer.
JOHANN
Caçar muito aqui?
CAÇADOR
Agora somente Arribação.
JOHANN
É uma ave?
CAÇADOR
Um pássaro.
Essa época é só o que tem.
Não tem três dias, eu cacei um tatu bola lá
pro lado de Deserto Feliz.
Carne pouca, mas boa.
JOHANN
Mas o senhor vive de caçar?
CAÇADOR
As vezes a gente tem que fazer uns serviço
por fora.

O caçador vê algo na estrada.


CAÇADOR
O senhor viu?
JOHANN
Não, o que?
CAÇADOR
Pare aqui. Agora.
Devagar, devagarzinho.
Ele pára, o homem sai caminhando lentamente para não
fazer barulho. JOHANN olha para um lado, para outro e
não vê nada. O caçador se embrenha pela mata. JOHANN
desce para ver o que acontece. Ouve os tiros.
O Caçador volta feliz segurando a caça morta como se
fosse um troféu. JOHANN olha para o animal morto. O
Caçador volta para o carro. JOHANN entra. É um animal
de porte médio e o sangue do bicho começa a pingar no
chão do carro.

JOHANN
O que o senhor caçou?
caçador
Uma raposa. A carne é dura, mas é boa. O
senhor me deu sorte. Quer ficar com um
pedaço? Eu corto agora.
JOHANN
Não obrigado.
JOHANN extremamente incomodado com o fato do sangue se
espalhar no carro vira o olhar e coloca sua atenção na
paisagem ao invés de mirar aquele animal morto. A
viagem reinicia.
JOHANN
O senhor vai ficar aonde?
12. EXT/INT. - CABINE DO CAMINHÃO - DIA

JOHANN está sozinho, a estrada pela frente parece


infinita. A única companhia é o rádio que permanece
ligado. Ele passa por uma pequena casa a beira da
estrada. JOHANN pára e vai até a casa. Bate palmas mas
ninguém aparece. Ele vê uma janela aberta olha para
dentro e a casa está abandonada, apenas um bode dentro
da casa fica a olhar para o viajante.

12A. EXT/INT. – PORTEIRA NA ESTRADA - DIA

Ele continua sua viagem solitária. Chega até uma


porteira fechada. Ele desce, abra a porteira e continua
o percurso. O rádio continua ligado.

12B. EXT/INT. - CABINE DO CAMINHÃO - DIA

Em outro momento da estrada ele olha o mapa, ao lado


uma pequena casa. Um homem na porta na casa observa a
cena. Ele olha para o homem que fica mirando o caminhão
e o motorista. JOHANN pára o carro, segura um mapa onde
está escrito:
3 MEZES DE PROPAGANDA E VIAGEM DO CARRO ASPIRINA SOUND
TRACK II –
INÍCIO - MATRIZ RIO DE JANEIRO
FINAL – SERTÃO NORDESTINO
Embaixo do título o mapa com a rota. Ele pensa em
descer para pedir uma informação, mas desiste e segue
em frente.

13. EXT. - ESTRADA DO SERTÃO – DIA

O caminhão está parado. JOHANN buzina freneticamente.


Na sua frente, uma vaca preta, magra, mirrada pára
tranqüilamente na estrada. O buzinaço parece não
alterar em nada o andamento da boiada. Ele deixa o
rádio no volume máximo e ainda buzina freneticamente,
mas nada adianta. Ele decide acender um cigarro e
esperar, pacientemente, a vaca sair de seu caminho.

13A. EXT/INT. - CABINE DO CAMINHÃO - DIA

O caminhão na estrada diminui a velocidade para cruzar


um trilho do trem que está transversal a estrada.
Nenhum um sinal de trem nem de um lado nem de outro.
14. INT. CABINE DO CAMINHÃO – DIA

A estrada é cheia de buracos. JOHANN dirige lentamente.


O rádio não consegue sintonizar nenhuma estação. Ele
mantém uma atenção redobrada para se livrar dos
buracos. Ele passa por uma pedra, um grande lajedo onde
vários cactos nasceram em cima da pedra. Ele observa
aquela estranha formação vegetal em cima da pedra e
segue viagem.

15. INT. - CABINE DO CAMINHÃO - DIA

Outro homem divide cabine do caminhão com JOHANN. Ele


tem cerca de 50 anos, cabelos claros, rosto cheio,
barba por fazer, ativo, gestos mecânicos. Ele transpira
muito e se chama MARCONDES.

MARCONDES
O senhor quer ir para onde?
JOHANN
Eu estou indo...
MARCONDES
Mas o senhor não é daqui, não é?
JOHANN
Sou da Alemanha.
MARCONDES
Vige Maria, a situação lá está uma
calamidade. Não é mesmo?
JOHANN
É. Um absurdo! Um louco está no poder.
MARCONDES
Que horas são?
JOHANN
12 horas.
MARCONDES
1 horas a gente está lá.
Uns quinze quilômetros à frente, tem um posto
de gasolina.
Eu fico lá.
JOHANN
Ah, bom. Eu também preciso de gasolina.
MARCONDES
Eu preciso comprar querosene Jacaré para
matar um ninho de cupim que apareceu na minha
casa.
Um rapaz pede carona na estrada.
MARCONDES
Esse aí deve estar indo pro posto também.
Johann pára. Estamos no meio de uma bifurcação.
Enquanto os rapazes continuam a conversa podemos ver
pela janela do caminhão o rapaz se despedindo de uma
senhora que está na frente de uma casa. É uma despedida
emocionada.
MARCONDES
Que carrão esse.
Quantos quilômetros faz por litro?
JOHANN
Depende da estrada, faz uns cinco quilômetros
por litro.
MARCONDES
Isso é que é a ciência.
Eu era motorista, faz mais dez anos atrás e
naquela época, era um Ford 29. Na época era
um litro para cada quilômetro.
Viajei muito por aí. É a coisa que eu mais
gosto.
JOHANN
Eu também gostar muito.
Agora aqui é difícil.

O rapaz entra no carro e cumprimenta os viajantes.


MARCONDES
É, como o sertão não tem igual não.

16. INT. CABINE DO CAMINHÃO – DIA(LOGO DEPOIS)

Os três homens estão na cabine. Seu MARCONDES continua


a conversa com JOHANN. O rapaz que entrou no carro fica
calado. Ele é RANULPHO tem 24 anos, rugas de sol no
rosto largo, nariz grande, moreno claro, um pequeno
buço, cabelo aparado, camisa engomada, ombros largos.
RANULPHO é um pouco gordo, mas nem tanto. Um olhar de
poucos amigos, cismado.
MARCONDES
Mas qual o seu caminho?
JOHANN
Pensei em Picote e Triunfo.
RANULPHO permanece calado, apenas escuta a conversa dos
dois. Ele observa cada detalhe do que está na cabine:
mapas, manuais em uma língua estranha, uma bússola, um
rádio grande a bateria e um relógio de pulso que JOHANN
carrega.
RANULPHO
(para MARCONDES interrompendo a conversa dos dois)
O senhor podia afastar um pouco. Porque daqui
a pouco estou sentado em cima da janela.

MARCONDES
Não está vendo que eu estou conversando com o
doutor.
RANULPHO
Pode continuar conversando mas não precisa me
apertar por causa disso.
Seu MARCONDES não gosta da observação de RANULPHO, mas
não fala nada, afasta um pouco e continua a conversa.
MARCONDES
É melhor fazer Picote e deixar Triunfo por
último.
Caminho difícil viu. É longe, estrada ruim.
Se eu tivesse com saúde eu levava o senhor lá
e agora.
É difícil chegar lá sozinho.
JOHANN
Mas como faço para chegar lá.

RANULPHO
O moço está indo pras banda de Triunfo? Eu
também.
MARCONDES
Mas você não ia ficar no posto.
RANULPHO
Eu ia ficar no posto esperando uma condução
para lá.
MARCONDES
Mas que coincidência. Danosse, todo mundo
agora vai para Triunfo.
RANULPHO
Todo mundo não, o senhor, por exemplo, não
vai.
JOHANN
(para RANULPHO)
O senhor sabe este caminho?
RANULPHO
Se estou falando que sei é porque sei.
seu MARCONDES
É fácil. Eu explico para ele(se volta para
RANULPHO).
É o seguinte, em São Caetano tem uma
estradinha que o senhor tem que pegar.
Pega essa estrada e depois, na primeira saída
a esquerda, o senhor segue toda vida, passa
por Picote e depois pega a estrada para
Triunfo.
RANULPHO
Tem caminho melhor.
Seu MARCONDES
Então me diga qual é?
RANULPHO
A estrada para São José do Egito.
MARCONDES
Eu não conheço.
RANULPHO
É nova.
JOHANN
O senhor pode ajudar?
RANULPHO
O moço me ajudando eu posso.
JOHANN
Como?
RANULPHO
Paga quanto pelo serviço?
JOHANN
Paga?
MARCONDES
Paga?
RANULPHO
Uma coisinha para ajudar a continuar a minha
viagem.
MARCONDES
Mais é o fim do mundo mesmo. Tu não estás
indo para lá, é somente ensinar o caminho.
RANULPHO
(ignorando MARCONDES e falando para JOHANN)
É porque eu vou ter que esperar o moço nas
cidades que vai parar.
Isso vai atrasar o meu passo porque por mim
eu chegava em Triunfo amanhã.

MARCONDES
Amanhã, Triunfo? Nem por milagre.
RANULPHO
É, e com milagre fica mais caro o serviço.
MARCONDES
Tu pensa que tem o rei na barriga, é sujeito?
JOHANN
Eu pago.
MARCONDES fica sério calado olhando para RANULPHO, um
olhar desconfiado. JOHANN feliz com o negócio que fez
mantém sua marcha em frente. RANULPHO observa a estrada
e mantém o mesmo olhar de abuso.

RANULPHO
Chegando hoje em Picote está de bom tamanho.

17. EXT. - POSTO DE GASOLINA – DIA

O posto de gasolina na estrada se restringe a uma placa


escrita a mão e uma casa onde dentro mora uma família e
vários galões de combustível. JOHANN e MARCONDES chegam
para comprar a gasolina.
Dentro da casa de barro e taipa nenhum móvel. Três
bancos na sala. Duas crianças brincam com pedaços de
madeira no chão. A AGRICULTORA recebe o dinheiro e o
marido leva a gasolina até o caminhão. Crianças
pequenas de um lado, galões de combustível do outro. Um
velho senta no banco na frente do posto.
JOHANN
Dois galões.
dono do posto
Gasolina só pode um.
JOHANN
Como?
MARCONDES
(para JOHANN)Por causa da guerra.
Dono do posto
Oi moço eu não inventei esse racionamento.
Ele já começou eu só posso lhe vender um
galão.
MARCONDES
Deixa de besteira rapaz qual a fiscalização
que vai chegar aqui?
Daqui que passe outro carro aqui pra comprar.
(para a AGRICULTORA)Coloque lá no carro esses
dois.
dono do posto
Apóis tá certo dois galão e pronto.
Seu MARCONDES compra um pouco de querosene Jacaré e a
AGRICULTORA coloca os dois galões no depósito do
caminhão.
MARCONDES
O caminho é um só. Siga o giro da venta que
dá certo. Boa viagem, meu filho, e cuidado
com aquela murrinha.
JOHANN
O que?
MARCONDES
Cuidado com aquilo lá no carro.
JOHANN
(sem entender o que o homem falou) Ah sim.
Adeus.

18. INT. - CABINE DO CAMINHÃO – DIA

O carro já de volta a estrada. JOHANN tenta puxar


conversa com RANULPHO.
JOHANN
Perigoso àquela situação. Muito combustível
dentro de casa e com crianças.
RANULPHO
Viver aqui é um perigo de qualquer jeito
doutor.
JOHANN
Como assim?
RANULPHO
A fome é braba.
A miséria se alastra toda vez que tem seca.
Olhe moço, se eu fosse presidente do Brasil
proibia morar gente da Bahia para cima.
JOHANN
Como assim?

RANULPHO
É isso. Ninguém pode morar aqui, nessa seca
infame.
JOHANN
O senhor não gosta daqui?
RANULPHO
Gostar de quê?
Daqui? Eu gosto agora porque estou indo
embora.
E o senhor vem de onde?
JOHANN
Da Alemanha.
RANULPHO
Eu perguntei onde o senhor começou sua
viagem, de onde veio com esse caminhão e não
de onde o senhor é?

JOHANN observa o rapaz com curiosidade.


JOHANN
Venho do Rio de Janeiro.
RANULPHO
E quanto tempo leva de lá pra cá?
JOHANN
A minha viagem é muito longa, eu parei em
vários lugares no caminho. E o senhor para
onde vai?
RANULPHO
Vou para onde o moço veio.
JOHANN
Rio? Vai fazer o que lá?
RANULPHO
Tentar a vida. Cansei, cansei dessa miséria
aqui.
E a viagem? Me diga. O moço parece cansado?
JOHANN
São três meses de viagem. Já viajei a
distância de quatro vezes a Alemanha.
RANULPHO
O seu país é pequeno?
JOHANN
É. Meu país cruzo em 3 dias. Mas o
Brasil...parece que não vai acabar nunca.
RANULPHO
(olhando para a paisagem e falando baixo)
A miséria. É, essa sim: parece que não acaba
nunca.
JOHANN
O que disse?
RANULPHO
Nada. Viagem difícil, né?
JOHANN
Gosto muito de viajar, às vezes muito
cansativo. Mas gosto muito.
JOHANN tira um cigarro do bolso acende.
JOHANN
O senhor quer um cigarro?

RANULPHO
Não. Obrigado doutor.

19. EXT - SOMBRA DE ÁRVORE NA BEIRA DA ESTRADA – DIA

JOHANN vai até o depósito do carro, joga um pouco de


água no rosto e pega duas latas e dois garfos. Fica com
uma e entrega outra lata a RANULPHO. Ele mostra a
RANULPHO como abrir a lata. Ele recebe com curiosidade.
Esse espera JOHANN começar a comer para depois comer
vagarosamente. Na estrada um agricultor caminha e fica
a olhar aquela cena inusitada. Aquele caminhão e
aqueles dois rapazes comendo naquelas latas.

JOHANN
É comida enlatada.
RANULPHO
(titubeando) Conheço.
Ele experimenta a comida como quem achasse aquele gosto
normal, conhecido.
RANULPHO
Faltou o doutor combinar o preço do meu
trabalho.
JOHANN
Como é seu nome mesmo?

RANULPHO
Ranulpho. E seu mesmo como é que se diz?
JOHANN
Johann.
RANULPHO
O senhor podia repetir.
JOHANN
Jo-hann. E o seu diga de novo.
RANULPHO
Ra-nul-pho.
JOHANN
Eu não posso pagar mais que 800 réis.
RANULPHO
(abre um sorriso)800.
Tudo bem eu aceito somente para lhe ajudar.

RANULPHO
E qual o negócio do doutor?
JOHANN
Medicamentos.
RANULPHO
E qual é o remédio que o senhor vende?
JOHANN
Chama aspirina? Já ouviu falar?
RANULPHO
Ah, é o nome que está escrito no carro.
Nunca ouvi falar.
JOHANN
É novo. É ácido acetil-salicílico.
RANULPHO
(titubeando) Sei.
JOHANN
É a primeira vez que é vendida aqui no
sertão. É muito bom para dor de cabeça e
dores em geral. Vende muito.
RANULPHO
Se servir para matar a fome do povo aqui o
senhor vai fazer dinheiro.

JOHANN abre um sorriso. Fica olhando para RANULPHO.


JOHANN
O senhor é sempre assim?
RANULPHO
Assim como?
JOHANN
Assim, assim, ácido.(rindo)
RANULPHO
O moço podia explicar?
JOHANN
Vamos falar de negócios. Posso pagar 800, mas
é até Triunfo.
E o senhor tem que me ajudar no trabalho.
RANULPHO
Quem tem medo de trabalho aqui?

20. EXT. ESTRADA NA PLANÍCIE – TARDE

Eles fazem uma curva fechada e JOHANN pára o carro


bruscamente. Dez vacas magras e mirradas estão
estacionadas na estrada.
JOHANN tenta espantar os animais usando a buzina do
carro e novamente não obtém sucesso.
RANULPHO olha para JOHANN sem dizer nada. Ele desce do
carro, pega um pequeno pedaço de madeira e tange
rapidamente os animais, que saem do meio da estrada.
Ele volta para o carro.
JOHANN
Obrigado.
Não muito distante dali, Urubus fazem de refeição um
animal já morto.
21. INT. CABINE DO CAMINHÃO – DIA

Os rapazes já estão na estrada. JOHANN meio que


cochila.
JOHANN
Essa hora muito sono.
O caminhão na estrada prossegue a viagem, os dois
viajantes permanecem em silêncio. RANULPHO mantém a
atenção na forma de JOHANN dirigir, observa cada
detalhe da direção.
O caminhão passa por um lugarejo de quatro casas na
beira da estrada. Algumas crianças na janela aguardam o
caminhão passar

JOHANN
Gosta de música?
RANULPHO
Esse rádio é uma potência!
JOHANN
O rádio é a única companhia às vezes.
RANULPHO
Faz tempo que o moço trabalha nisso?
JOHANN
Faz quase um ano. Somente viagens pequenas.
Essa é a mais longa que fiz.
RANULPHO
O senhor estudou para fazer isso?
JOHANN
Não. Quer dizer estudei, mas não para fazer o
que faço.
RANULPHO
Ah sim! E é bom o trabalho?
JOHANN
(sem muito interesse) É. A viagem é a melhor
parte.
RANULPHO
Gosta da viajar?
JOHANN
Não há viagem que eu não goste. E aqui bem
diferente. Gosto muito.
RANULPHO
Viajou para muito lugar?
JOHANN
Eu trabalhava de garçom em um navio somente
para viajar.
RANULPHO
E já foi para onde?
JOHANN
Somente pela Europa e América.
RANULPHO
É muita viagem não é?
JOHANN
Quero viajar mais, o mundo inteiro.
RANULPHO
O mundo inteiro?
JOHANN
Junto todo dinheiro que recebo somente para
isso.
RANULPHO
E quando vai ser?
JOHANN
Quando tiver o dinheiro.
RANULPHO
Então o negócio do moço é viajar. Gosta até
de viajar por aqui por esse lugar infame.
JOHANN
Sim. O senhor viaja muito?
RANULPHO
Não. Viajo pra trabalhar. É isso.
Um homem trabalha na roça. O caminhão passa, a poeira
baixa, tudo volta a ser igual: o cotidiano inerte
permanece.
O caminhão levanta uma poeira fina e segue por uma
estrada onde a seca está em todas as direções.

22. EXT. – CHEGADA EM PICOTE – TARDE


O caminhão se aproxima de uma pequena cidade.
JOHANN
O senhor me ajuda nas vendas.
RANULPHO
Como é que o doutor consegue fazer isso
sozinho?
JOHANN
Eu sempre contrato alguém.
RANULPHO
Então, agora eu sou o seu contratado?

JOHANN
É, mas eu já acertei o pagamento com o senhor
por isso.
RANULPHO
Apois está certo, a diferença fica por conta
da carona que o senhor vai me dá até o Rio de
Janeiro.
JOHANN
Como isso?

22A EXT. – CHEGADA EM PICOTE – TARDE

O caminhão com os dois viajantes chega em Picote.


JOHANN eleva o som do rádio para chamar atenção da
população e dá voltas na cidade e decide parar em uma
praça. As pessoas vão saindo das casas. Olhando
curiosamente para aquele caminhão que parece ter vindo
de outro planeta. Os meninos são os primeiros a chegar
perto e os adultos observam de longe.

23. EXT – PRAÇA DE PICOTE – TARDE.

Os dois começam a cavar buracos para colocar madeiras.


Organizam tudo para a exibição. Algumas crianças e
curiosos assitem a cena. RANULPHO faz uma cara de
poucos amigos para eles. Ele reclama com um garoto para
afastar do carro. Em seguida pede para outras pessoas
ajudarem ele no trabalho.(AD LIB).
RANULPHO
O moço não vai se incomodar com isso, não é?
Eu sei o caminho. Posso fazer companhia.
JOHANN
O senhor já foi negociante.
RANULPHO
Trabalhava na venda da minha mãe.
JOHANN
Você é muito rápido.
RANULPHO
Agora falando em negócio.
Olhe para esse povo aqui, é pirangueiro,
mesquinho, cismado, do tempo do ronco. Como o
senhor vai convencer eles?

JOHANN
Não entendi nada do que você falou.
RANULPHO
O povo daqui é cismado com novidade. Como o
senhor vai vender um remédio novo a esse povo
atrasado?

24. EXT - PRIMEIRA EXIBIÇÃO EM PICOTE – NOITE

A luz do projetor se acende. Um lençol branco se


transforma em tela de cinema.
Na tela, uma velha benzedeira reza uma jovem pálida que
agoniza em uma cama.
NARRADOR
Uma enxaqueca. A tia Joaquina prontifica-se
em fazer umas rezas e benzeduras com galhos
de arruda e alecrim. Pobre velha! Deixem a
tia na inocente ilusão da crendice. Mas não a
deixem sofrer inutilmente a mocinha.
Um ou dois comprimidos de ASPIRINA vão
aliviá-la dessa terrível dor.
RANULPHO, assim como toda a cidade, está hipnotizada
pelas imagens em movimento e pelo som do filme. Olhares
de espanto, alucinação, felicidade. Olhos arregalados,
imantados, sem tempo para piscar. Olhos cheios de
emoção.
Aquelas imagens em movimento invadem o ambiente
trazendo poesia ao cenário pobre e isolado do sertão. A
população da pequena cidade está paralisada.
JOHANN coloca uma criança que não consegue assistir o
filme direito dentro da cabine do caminhão para poder
ver melhor.
Pode-se ver, neste momento, os olhos de RANULPHO cheios
d’água. Ele está hipnotizado pelas imagens em
movimento. JOHANN fica admirando a reação daquela
gente. São rostos, tipos humanos que no modo de olhar
transforma aquela exibição em um teatro solene. Todos
batem palmas ao final.
RANULPHO
(para JOHANN)
Como a gente diz aqui: isso faz vender Bíblia
pro Satanás!
JOHANN
Você não conhecia?
RANULPHO
Não. É mais do que eu pensava que era.
Mas o cinema de verdade é dentro de um lugar
fechado. Uma sala escura. Não é assim não no
meio da rua com um pedaço de pano.
JOHANN
É. Mas eu prefiro assim. É mais divertido.
Agora os comprimidos.

25. EXT - PRIMEIRA EXIBIÇÃO EM PICOTE – NOITE(LOGO


DEPOIS)

JOHANN, ajudado por RANULPHO, vende os comprimidos.


Alguns consumidores experimentam ali mesmo. RANULPHO
pede a JOHANN um comprimido para vender para um homem
que se aproxima.
velho
Oi moço.
RANULPHO
Quer quantos cachetes?
Velho
(para RANULPHO)
Nenhum, mas vai passar os filmes de novo?
RANULPHO
Não. Pensa que é festa?
velho
Era só isso. Num quero comprar nada não.
RANULPHO vai devolver o remédio para JOHANN que está
ocupado com uma venda. Ele aproveita a situação e
coloca o remédio no bolso.
26. EXT. BEIRA DA ESTRADA - NOITE

JOHANN está dentro do depósito do caminhão procurando


algo. RANULPHO está na cabine pensativo com tudo o que
aconteceu. JOHANN sai do caminhão e entrega a RANULPHO
uma rede.
JOHANN
Eu comprei na Bahia. Nunca usei. O senhor
pode armar e dormir.
RANULPHO
Uma rede?

JOHANN sobe em cima do caminhão.


RANULPHO
O senhor não vai dormir lá dentro do
caminhão?
JOHANN
Não. Durmo aqui fora. Olhe o céu. Nunca vi um
céu desse na minha vida. Na Alemanha não
poderia dormir assim, do lado de fora olhando
para um céu como esse.
RANULPHO
Por quê?
JOHANN
Por causa do frio.

Antes de dormir, RANULPHO começa a dar voltas ao redor


do caminhão. Ele olha para o alemão lá em cima dormindo
ao relento, a propaganda da Aspirina pintada no
caminhão, olha para o projetor, as latas de filme, as
caixas de remédio. Tudo tem um brilho especial. É um
mundo novo que se abre para ele. Sua excitação é tão
grande que não consegue dormir. Ele entra dentro da
cabine e fica admirando tudo ao redor. Enquanto isso,
em cima do veículo, JOHANN admira o céu. RANULPHO pega
no sono dentro da cabine.

27. EXT. – PROXIMIDADES DE PICOTE – DIA

O sol acabou de nascer e JOHANN está acordado. Ele faz


educação física. RANULPHO, que pegou no sono na própria
cabine, acorda. JOHANN faz uma série de abdominais,
inflexões, enquanto RANULPHO observa tudo da cabine.
JOHANN vai até um balde d’água que carrega, lava o
rosto e escova os dentes. RANULPHO permanece
observando, parece impressionado com o rapaz. JOHANN
passa uma pomada no braço que parece bem inchado.

28. INT. - CABINE DO CAMINHÃO – DIA

A dupla na estrada. O braço de JOHANN está inchado e


dolorido. Ele reclama.
JOHANN
Alguma coisa me atacou hoje cedo quando
dormia.
RANULPHO olha para o braço do rapaz.

RANULPHO
Deixe ver. É Marimbondo.
JOHANN
O que é isso?
RANULPHO
Incha. Dói. Depois passa.
Em um calendário da aspirina do ano de 1942, pregado no
volante do carro, JOHANN marca os dias de viagem.
RANULPHO
Mas me diga uma coisa, seu, seu..
JOHANN
Jo-hann.
RANULPHO
Ganha muito dinheiro para fazer isso?
JOHANN
O suficiente para juntar.
RANULPHO
É.
JOHANN
Está doendo muito. Difícil dirigir. Você sabe
dirigir?
RANULPHO
(com olhar constrangido responde) Não.
Para arder desse jeito, deve ter sido mesmo
marimbondo.
E o doutor fica aqui quanto tempo?
JOHANN
Eu tenho mais uma semana para terminar aqui,
voltar para o Rio de Janeiro e começar outra
viagem.
RANULPHO
Isso é que é vida.
JOHANN
Ainda vai ser. Isso aqui ainda é trabalho.
Ainda tenho serviço, depois quero fazer o que
quiser. Ir para qualquer lado da estrada, e
passar o tempo que eu quiser em cada cidade.
O que mais gosto de fazer é conhecer lugares,
conhecer gente.
RANULPHO
Já notei, o moço não pára de dar carona.
Com um carro desse deve ter muita diversão no
caminho?
JOHANN
Na Bahia foi muito bom. Em um lugar chamado
Valença.
Tinha um cabaré lá, muito bom.
RANULPHO
Essa parte é a que mais me interessa.
Alguém pede carona na estrada. Eles param. É uma MULHER
COM UMA GALINHA. Eles deixam o assunto de lado.
A agricultora sobe no carro cumprimenta e agradece aos
viajantes e RANULPHO vai logo reclamando.
RANULPHO
E se essa galinha sujar tudo aqui, como é que
vai ser?
MULHER COM UMA GALINHA.
É logo ali. Eu vou ficar logo ali, meu filho.
Não vai dar nem tempo do bicho fazer os
serviços dentro do carro.
JOHANN faz sinal de que não há problema. Ela entra e
fica calada o tempo inteiro.

29. INT./EXT. BEIRA DA ESTRADA HOMEM CERCANDO UM RIO -


DIA.

Outro momento da estrada, a Mulher com a Galinha


continua no carro. RANULPHO olha para ela com cara de
poucos amigos. Ela está constrangida. JOHANN pára e
observa na estrada um homem cercando um rio quase seco.
Eles observam esse homem colocar uma cerca onde antes
passava um rio.
JOHANN
Para que será que ele faz isso?
RANULPHO
Eu acho que não tem serventia nenhuma.
MULHER COM GALINHA
É a seca.
RANULPHO não se preocupa com o que a mulher fala, desce
do carro e vai perguntar ao homem que está à beira do
rio. RANULPHO volta com a resposta e eles continuam a
viagem.
RANULPHO
O rio tava tão seco que toda a boiada estava
fugindo pelo leito. Ai ele teve que cercar.

30. INT. - CABINE DO CAMINHÃO – DIA.(LOGO DEPOIS)

Viajantes em silêncio. Rádio ligado, uma música é


sintonizada. JOHANN observa um rapaz que passou pela
estrada em um burrico tangendo umas cabras.
RANULPHO
O que o senhor acha de interessante num lugar
tão miserável.
JOHANN
Eu nunca estive em um lugar como esse.
RANULPHO
Mas aqui é muito pobre e seco. Que graça tem
isso?
JOHANN
Muita.
RANULPHO
Mas por trás dessa graça tem muita miséria,
muita coisa ruim que acontece e a gente nem
sabe.
MULHER COM GALINHA
Olhe moço eu fico aqui e eu peço desculpas
pela galinha.
JOHANN
Eu peço desculpa pelo rapaz.(rindo)
A caronista desce no meio de lugar nenhum. RANULPHO não
fala nada fica a observar a cena.

31. INT. CABINE DO CAMINHÃO(LOGO DEPOIS) – DIA.

RANULPHO folheia alguns manuais do projetor 16mm que


JOHANN carrega, são todos em alemão.
RANULPHO
Está chegando perto da hora do almoço. Eu
queria fazer um pedido ao senhor.
Se dava para parar em um lugar que tem comida
feita. Eu não me dei bem com a sua comida,
não.
JOHANN
Como comida feita?
RANULPHO
Comida de panela.
RANULPHO liga o rádio para vencer o tédio.
LOCUTOR
Informativo da Rádio Difusora: Os horários de
partida dos navios do governo para a Amazônia
foram mudados,...
RANULPHO
Vou colocar numa música.
JOHANN
Não, não, deixe ai. Quero ouvir mais....
LOCUTOR
...agora serão dois cargueiros saindo do
Porto do Recife nas quartas e sextas e de
Fortaleza quintas e sábados. Os interessados
podem se inscrever nas prefeituras e “Avante
soldados da borracha e o Brasil sempre em
marcha ...”.

32. EXT. – RESTAURANTE NA BEIRA DA ESTRADA – DIA

Em uma casa à beira da estrada, uma AGRICULTORA


improvisa um restaurante para os rapazes comerem. É
apenas uma mesa grande, algumas cadeiras. O vento
sopra, a poeira levanta, bate na comida. É servido um
bode com farinha. RANULPHO devora o prato. JOHANN come
com cautela.
JOHANN
Mas como assim?
RANULPHO
O governo pega os retirantes. É. Os
miseráveis e mandam todos para a Amazônia.
Chegando lá, você se embrenha no meio da
selva trabalhando só no seringal, produzindo
borracha para os americanos usarem na guerra.
JOHANN
Mas quem paga a passagem.
RANULPHO
O governo. Vive passando os trem lotado de
retirante. Se for para a Amazônia é de graça.
JOHANN
Você não pensa em ir?
RANULPHO
Não, meu negócio é no Rio de Janeiro.
Mas me diga, essa sua firma só contrata
alemão ou qualquer pessoa?
JOHANN
Qualquer pessoa.
RANULPHO
Eu podia procurar emprego lá?
JOHANN
Precisa saber dirigir.
RANULPHO
Mas eles contratam?

JOHANN
Nessa época de guerra o emprego é difícil.
RANULPHO
Mas é uma loucura essa guerra mudando a vida
de todo o mundo. Uns indo para a Amazônia,
outros perdendo o emprego. E o senhor, mudou
a sua vida essa guerra?
JOHANN
Quando sai da Alemanha ainda não tinha
guerra.
RANULPHO
E depois?
JOHANN
Depois não voltei mais. Fiquei no Brasil e
aqui pacífico. Nada de guerra.
RANULPHO
É aqui nem guerra chega.
JOHANN
Que comida é essa?
RANULPHO
(apontando para um bode)Está vendo aquele
bicho ali no pasto. É aquilo que o moço está
comendo: bode.

JOHANN
É saudável?
RANULPHO
Já dizia minha avó. Feliz do bicho que come o
outro.

33. EXT./INT. CABINE DO CAMINHÃO - DIA

Alguém faz sinal na estrada. JOHANN reduz a velocidade


pensando em parar.
RANULPHO
Se senhor parar na estrada para toda essa
corriola que pede carona. A gente chega no
Rio de Janeiro o ano que vem.
JOHANN
Mas é a melhor coisa da viagem.
RANULPHO
Esse povo só faz sujar seu carro.
JOHANN
(falando sério para RANULPHO) Mas esse povo
que o senhor fala. Esse povo o senhor faz
parte dele.
RANULPHO
Mais ou menos.
JOHANN
Como mais ou menos? O senhor é daqui, sua
família é daqui?
RANULPHO
É.
Uma mulher que pede carona. Ela é JOVELINA entra no
carro carregando uma pequena mala e um olhar triste. Os
dois rapazes olham para ela. É uma jovem bonita, pele
bem branca, maçãs do rosto grandes, cabelo crespo,
aparentando 21 anos. RANULPHO em vez de colocar a moça
sentada ao lado dos dois rapazes, como fez com os
outros caronistas, coloca ela entre ele e a janela.

34. EXT./INT CABINE DO CAMINHÃO - DIA

O carro começa a seguir em frente e a moça desanda a


chorar. Chora, chora e chora copiosamente. Os rapazes
ficam em silêncio, sem ação. JOHANN tira um lenço e
entrega para ela que continua a chorar mais. Eles se
entreolham.
JOHANN pára e vai buscar um pouco de água para a moça
beber. RANULPHO tira uma Aspirina do bolso e a oferece.
RANULPHO
Tome isso vai lhe fazer bem.
JOHANN
Onde você pegou isso?
RANULPHO
Tinha uma aqui solta no carro. Alguém
esqueceu.
Aos poucos, bem aos poucos a garota vai se recobrindo.
Ela vai enxugando as lágrimas e se olhando no espelho
retrovisor do carro.
JOVELINA
Minha desculpa viu, moço. Na agonia eu nem
perguntei para onde o senhor vai.
RANULPHO se antecipa na fala de JOHANN.
RANULPHO
Até Triunfo e a moça?
JOVELINA
Eu fico bem antes, em Flores.
JOHANN
A senhora precisa de alguma coisa.
JOVELINA
Não obrigado. O senhor é muito gentil.
RANULPHO
Se a senhora quiser comer alguma coisa fale
comigo.
JOVELINA
Não quero nada, somente quero chegar até
Flores.
Silêncio no caminhão. JOVELINA se cala. Os dois rapazes
não sabem o que dizer. O silêncio se impõe e permanece.
Algum tempo depois JOHANN toma alguma iniciativa.
JOHANN
Quer ouvir uma música?

JOVELINA
O senhor tem rádio?
JOHANN liga e procura uma das poucas rádios que toque
música. Ele consegue sintonizar uma música, é uma
música triste que fala de partida. Ela fica feliz com a
música para depois desandar a chorar novamente.
JOHANN
Se chorar de novo vai perder a carona.
JOVELINA
(rindo com a piada)
Está certo não vou chorar mais.
RANULPHO olha para o decote da moça que é um tanto
ousado para aquela região. JOHANN flagra RANULPHO
olhando para os seios de JOVELINA. A moça também
percebe os dois rapazes olhando para seus seios.
Silêncio.
RANULPHO
Mora em Flores?
Está voltando para casa?
Está com saudade, não é?
JOVELINA
O senhor quer mesmo saber por que eu estou
chorando desse jeito, não é?
RANULPHO
Não. O que é isso.(encantado com a moça)
JOVELINA
Meu pai chegou em casa depois de ter tomado
umas e me mandou embora.
JOHANN
Como umas?
RANULPHO
Tava bêbado.
JOHANN
E agora vai fazer o quê a moça, como é seu
nome?
RANULPHO
O meu é Ranulpho.
JOVELINA
Jovelina. Vou para a casa da minha irmã em
Ricifi. Vou pegar o trem que sai amanhã
cedinho.
E o seu nome?
JOHANN
Johann.
RANULPHO
Bom, a vida em Ricifi é melhor que aqui.
JOVELINA
E a minha mãe e meus irmãos. E a saudade
deles?
RANULPHO
Saudade é bom porque passa.
JOVELINA
Passa para o senhor, a minha só aumenta.
JOHANN
Olhe moça, também estou muito longe da minha
família e tenho muita saudade.

JOVELINA
É. O senhor é o quê?
JOHANN
O quê? De onde eu sou? Alemão.
JOVELINA
Não é isso, o signo. Eu sou Câncer. E
você(para RANULPHO).
RANULPHO
Nasci dia 05 de novembro, é o quê?
JOVELINA
Vige. Escorpião.
RANULPHO
É bom?
JOVELINA
É bom e é ruim. Agora tem um fogo. E o
senhor?
JOHANN
Eu o quê?
JOVELINA
Seu signo?
JOHANN
Signo?(fica pensando)
Ah, stern zeichen.
Sou stier.

JOVELINA
Tem esse não.
JOHANN
20 de abril.
JOVELINA
É finzinho de Áries.
Rapaz feliz, aventureiro e sonhador.
JOHANN
É.
RANULPHO
E eu? Fale mais.
JOVELINA
Tu és os pés da besta.
Eu tenho uma revista que só fala disso. Eu
posso ler?

JOHANN começa a dirigir bem devagar, parece querer que


aquele encontro se estenda.

35. INT. - CABINE DO CAMINHÃO – DIA(LOGO DEPOIS)

Os três estão rindo. O clima é de completa


descontração. Ela está lendo um livro que carrega e
fala para RANULPHO. Depois ela pega o braço de RANULPHO
e começa a ler a linhas na palma da mão.
JOVELINA
Você vai ter uma longa vida.
RANULPHO
Vaso ruim não quebra.
Os dois riem e JOHANN não entende a piada. RANULPHO
tenta explicar a piada e logo desiste.
JOVELINA
Agora o senhor que é Áries. A casa do
dinheiro não está muito animada não.
E vai acontecer uma mudança, o seu destino
vai mudar.
JOHANN
Mas o destino eu faço.
JOVELINA
Ah! Eu acredito que destino já está traçado e
a gente segue.
RANULPHO
Eu acredito em mim.
JOHANN
Quem faz o meu destino sou eu.
JOVELINA pega novamente na mão de RANULPHO.
JOVELINA
(para RANULPHO) Apois você vai ter que
trabalhar muito na vida, é bom acreditar.
Tem muito trabalho aqui. Seu destino diz
trabalho.
Aqui é: os amores e os filhos. Dois filhos.
É, mas um de cada agricultora. Tudo já está
traçado.
RANULPHO
A moça é romântica?

JOVELINA
Pois é, sou de Câncer.
RANULPHO
Qual a sua idade moça?
JOVELINA
19 anos. E o senhor(para JOHANN).
JOHANN
25 anos.
JOVELINA
E tu?(para RANULPHO)
RANULPHO
(titubeando e falando baixo) 22.
JOVELINA
quantos anos?

RANULPHO
(para JOVELINA)É , é 23. Ele é mais velho.
JOVELINA
Parece mais.
Chegam a uma bifurcação. JOHANN fala em um tom mais
alto.
JOHANN
E agora Ranuulpho, para que lado?
RANULPHO
Por aqui, doutor à esquerda.(avisa para
JOHANN)
JOVELINA
É esse o caminho? Tem certeza?
JOHANN
Já está escurecendo, daqui a pouco a gente
pára.
Eu não gosto de dirigir à noite.
JOVELINA
Mas não vai chegar hoje?
JOHANN
Somente amanhã. A senhora poderá dormir aqui
dentro do caminhão. Eu dormir do lado de
fora.

JOVELINA
Que é isso?
JOHANN
Por favor.
JOVELINA
Me Desculpe o trabalho.
RANULPHO
Não tem nenhum.
JOVELINA
Mas me diga uma coisa, vocês tão viajando
para onde? Fazem o quê?
36. EXT. SEGUNDA EXIBIÇÃO NA PEDRA– NOITE.

O projetor começa a rodar e emitir imagens para uma


pedra que foi adaptada como tela de cinema. As imagens
absorvem os contornos da pedra.
JOVELINA fica fascinada com o que vê. Enquanto a moça
ASSISte a exibição os dois rapazes trabalham perto do
projetor.
JOHANN
(para RANULPHO)
Esse ser um projetor de 16mm. Fácil de
operar. Você começar colocando a película por
aqui, depois por esse carretel, passa por
essa janela e depois amarrar aqui.

RANULPHO observa tudo, mas parece desorientado com a


quantidade de informações, de novas palavras, tudo
acentuado pelo sotaque do alemão.
RANULPHO
O que, doutor? Projetor?
Ele aponta o que é película, o que é projetor, o que é
carretel, como se estivesse falando com uma criança.
Segue-se então a projeção do filme que começa com uma
cartela.
ASPIRINA O FIM DE TODOS OS MALES

37. EXT. – ARREDORES DE FLORES – NOITE.(LOGO DEPOIS)

JOVELINA está encantada com o que vê. Eles param para


trocar a lata do filme.
JOHANN
(para JOVELINA) O que você quer assistir?
Temos ainda filmes naturais, desenhos
animados, corridas de automóveis,
motocicletas, cowboys e comerciais.
JOVELINA
O mais romântico.
JOHANN coloca um novo rolo no projetor. No filme uma
garota aparece na sacada de uma janela toda florida.
Ela parece triste até que um rapaz se aproxima da
janela e começa a cantar para ela, que passa a
expressar um belo sorriso.
LOCUTOR
Felicidade. O que é felicidade? Um sentimento
profundo. Uma alegria sem fim. Os momentos
mais importantes da vida são os momentos
felizes. A qualquer hora esses momentos podem
perder a sua magia.
A moça na varanda começa a espirrar. O rapaz fica
preocupado. Em um corte a moça toma uma cápsula de
Aspirina e volta para a varanda.
LOCUTOR
Com as novas cápsulas de Aspirina, os
momentos de felicidade podem ser duradouros e
às vezes para sempre.
Cápsulas de Aspirina contra todos os males.
Os rapazes estão desligando o projetor e guardando os
filmes e nem notam que JOVELINA está chorando baixinho.
JOHANN se aproxima dela.
JOHANN
Algum problema?
JOVELINA
Não, nada. É que esse filme é tão triste.
JOHANN
Mas o rapaz termina com a moça. Happy end.
Tudo feliz.
JOVELINA
É feliz, mas é triste. Sei lá, a gente começa
a pensar na vida. E pensar na vida da gente.
Uma vida que devia ser assim, buscar a
felicidade e mais nada. E cada vez que a
gente procura acontece uma coisa errada.

JOHANN
A moça está triste com a vida? Eu também
estou.
JOVELINA
Mas nem parece. O senhor parece feliz.
JOHANN
É o meu jeito, mas estou muito triste.
Ele segura na mão de JOVELINA.
JOVELINA
Devia ser somente isso a vida. Mas não é.
RANULPHO olha JOHANN segurando a mão da moça e se
aproxima dos dois.
RANULPHO
Você é bonita podia ser artista de cinema?
JOVELINA
Não, eu não.
RANULPHO
Não? Por que não?
JOVELINA
Porque eu quero ser feliz. Esse povo que
aparece ai não tem cara de quem é feliz, nem
parece gente de verdade, de carne e osso. Nem
tem linha da vida.

38. EXT./INT. – ARREDORES DE FLORES - NOITE

A garota prepara a cama dela. Os rapazes estão


encostados no caminhão, sem sono, parece que um está
vigiando o outro.
RANULPHO
Está sem sono doutor.
JOHANN
Aquela comida me fez mal, estou sentido dores
no estômago. Não consigo dormir. E você?
RANULPHO
Eu estou sem sono mesmo. Tenho muita insônia.
Desde pequeno.
JOVELINA prepara a sua cama na cabine do caminhão.
RANULPHO
(para JOVELINA)
Tudo certo aí.
Ela não responde, fecha a porta e deita. JOHANN fica
rindo.

39. EXT. – ARREDORES DE FLORES – MADRUGADA

RANULPHO acorda no meio da noite com um barulho que vem


de dentro da cabine. RANULPHO tenta não fazer barulho
e, de longe, percebe que duas pessoas estão copulando
na cabine. Ele fica um tanto irritado, volta para a
rede e não consegue dormir. O barulho aumenta. Ele fica
nervoso, inquieto.

40. EXT. – ARREDORES DE FLORES – AMANHECER.


É de manhã, JOVELINA não está mais lá. Na cabine
somente um pequeno vestígio de sua passagem. As folhas
dos signos de Áries e Escorpião estão coladas no vidro
do carro. Um presente para cada um dos viajantes.
JOHANN dorme em cima do caminhão e RANULPHO na rede.

41. INT. – CABINE DO CAMINHÃO – DIA

RANULPHO e JOHANN estão na estrada. RANULPHO coloca o


papel de JOVELINA no seu bolso e JOHANN deixa-o preso
em um local visível para recordar-se. Os dois não falam
nada sobre o desaparecimento repentino da garota. Como
em um acordo tácito eles não querem investigar o que
aconteceu. RANULPHO está com a cara emburrada. JOHANN
mais feliz do que antes. O silêncio fica cada vez maior
a ponto de incomodar JOHANN. Ele decide fazer algo para
quebrar o gelo.
JOHANN sorri, acende um cigarro e oferece para
RANULPHO, que agradece.
RANULPHO
Não obrigado já disse que não fumo.
JOHANN ri baixinho com o abuso de RANULPHO e decide
ligar o rádio para reduzir o desconforto do silêncio.

42. EXT. – CARRO SOBE LADEIRA EM ESTRADA CHEIA DE


PEDRAS - DIA

O caminhão está em outra parte da estrada. Ele sobe uma


ladeira.
RANULPHO
Essa serra é lascada de grande.
JOHANN
O que disse?
JOHANN baixa o rádio.
RANULPHO
(sem paciência) O motor.
Isso é que é maquinaria!
JOHANN
Sim.
RANULPHO
Quantas velas?
JOHANN
Não sei ao certo posso ver no manual. O
senhor gosta de máquinas, não é?
RANULPHO
É a coisa que mais gosto.
JOHANN
Você trabalha com máquinas?
RANULPHO
(apreensivo)
Não, mas vou trabalhar.
JOHANN
Onde?
RANULPHO
No Rio de Janeiro.
RANULPHO
É vou arranjar um emprego lá.
No Rio de Janeiro. Me conte de lá?
JOHANN
Eu passo pouco tempo lá. Eu sempre estou
viajando. Gosto mais do Rio quando estou
viajando.
RANULPHO
Mas me fale da cidade.
JOHANN
É. É bonita.
JOHANN observa o motor que está quente.

JOHANN
Preciso parar e colocar água no motor. Tenho
pouca água no reservatório.
RANULPHO
Pode dar uma parada aqui na sombra onde tem
essas pedras que eu vou naquela casa pedir um
pouco de água para o motor.

No local que eles pararam tinha alguns Urubus em uma


árvore e com a chegada dos rapazes eles promovem uma
revoada. JOHANN desce, abre a tampa do motor e começa a
fazer contas no seu caderno das vendas realizadas.
RANULPHO segue até a casa.
43. EXT. – CASA A BEIRA DA ESTRADA - TARDE

RANULPHO bate palmas na casa e aparece um casal e dois


filhos. Eles são PAI DE FAMÍLIA, caboclo sertanejo, e
uma jovem MULHER MÃE DE FAMÍLIA, morena. Eles não tem
filhos.
De repente, um grito ecoa em todo o ambiente, um grito
frio, doloroso, de morte. É a voz de JOHANN que grita.
RANULPHO corre para o local do grito com os moradores
da casa.
Chegando lá, JOHANN está gritando muito e mostrando a
perna com uma picada.
JOHANN
Um bicho, um bicho.

Procuram o animal ao redor e não encontram.


RANULPHO
Foi cobra?
JOHANN
Não sei.
HOMEM
(tirando a faca da bainha)
Já que não se sabe se foi uma cobra tem que
fazer a sangria agora.
(mostra a faca para RANULPHO)
HOMEM
Toma sangra o homem.
RANULPHO
Eu?
HOMEM
Ele não é teu amigo?
RANULPHO fica com a faca sem saber o que fazer. O homem
grita de um lado e JOHANN de outro.
RANULPHO pega a perna do rapaz e faz um corte com a
faca para em seguida chupar o sangue, cuspindo-o
depois. JOHANN grita e é segurado pelo casal. Acabado o
trabalho, RANULPHO vai lavar a boca. JOHANN está quase
sem forças de dor. O homem faz um torniquete e amarra a
perna do rapaz.
HOMEM
O senhor viu o tipo do bicho?
JOHANN
Não.
HOMEM
Tinha um barulho de chocalho?
JOHANN
Não. Não lembro.
HOMEM
O senhor tem que ficar parado para o veneno
não se espalhar.
Mulher vai traga uma água quente e umas
raízes de mandacaru.
Vamos deitar ele num lugar na sombra pra ele
num se mexer.

44. EXT. ESTRADA DE PEDRAS - TARDE.

JOHANN está sendo transportado em um cama de campanha


para um árvore perto da casa. A mulher coloca ungüento
na perna de JOHANN.
RANULPHO
E agora?
homem
(para RANULPHO)
E agora é esperar, meu filho, não tem mais
nada o que fazer. É esperar.
Ele começa a transpirar bastante.
homem
Não se mexa, não se bula senão o veneno vai
andar, fique parado, sem sair daí..
JOHANN
Eu estou ficando tonto, o que é isso? O que
vai acontecer.
homem
É assim, tem que ficar tranqüilo.
RANULPHO
O que eu faço.
homem
De vez em quanto coloque mais desse ungüento
no ferimento. A noite toda.

45. EXT. NOITE DE PESADELO – ENTARDECER


A boca da noite começa a chegar. Uma atmosfera
melancólica de final do dia toma de assalto o ambiente.
Um vento frio derruba o que restou do dia.
JOHANN arde de febre, tem calafrios. RANULPHO apenas
assiste.
A mulher trás uma comida para ele, uma sopa quente que
ela mesma fez. Ela também dá um rosário do Padre Cícero
a ele.
MULHER
É 30 contos. Coloque esse rosário encostado
nele.
RANULPHO
Caro, não é?
RANULPHO paga para a AGRICULTORA pela comida.
MULHER
Obrigado. Qualquer coisa o senhor grite que
nós acordamos.

46. EXT. ESTRADA DE PEDRAS – NOITE.

Na noite nada acontece. JOHANN agoniza, arde de febre,


começa articular algumas palavras em alemão misturadas
com português. RANULPHO de vez em quando vai até onde
está o rapaz coloca um pouco do ungüento e volta para a
rede. RANULPHO espera, não consegue dormir. JOHANN
continua em seu delírio misturando palavras em alemão
com nomes de portos do mundo como se ele tivessse
imaginando uma rota de
viagem.(Hamburgo,Rotterdam,Lisboa, Las Palmas, Cidade
do Cabo, AD LIB)

47. EXT. ESTRADA DE PEDRAS – DIA

O sol ilumina a caatinga, mas de uma forma mais branda,


suave. É de manhã bem cedo, a paisagem parece lunar.
Sobe uma poeira fina. O céu toma contornos de laranja,
rosa, vermelho. Um vento sopra trazendo a brisa da
manhã. JOHANN dorme, RANULPHO também.

48. EXT. ESTRADA DE PEDRAS - DIA

Sol a pino. O Homem, AGRICULTORA e RANULPHO observam


JOHANN que dorme profundamente.
HOMEM
Ele está respirando?
RANULPHO
Está.
HOMEM
Então deixa ele dormir.
RANULPHO
O senhor acha o quê?
HOMEM
Eu não sei não. Vamos esperar mais um dia.
AGRICULTORA
Eu vou fazer uma comida bem forte para ele
comer.
RANULPHO
(irritado) Não, não! Precisa não. Primeiro
deixa ver se o homem acorda.
O casal vai embora e RANULPHO fica ali. JOHANN dorme,
ele fica sentado a esperar. o sol levanta e vira brasa.

49. EXT. – ESTRADA DE PEDRAS – NOITE

Anoiteceu e o quadro não mudou. JOHANN dorme e RANULPHO


começa a ficar impaciente andando de um lado para
outro. Vai até a cabine do carro, abre o cofre, olha o
dinheiro, fecha o cofre, mas não pega nada. Ele vai até
a carroceria olha a mala, começa a pensar. Depois volta
para o local onde JOHANN está deitado. Olha para a
estrada. Fica imóvel. Imobilidade típica de quem
reflete sobre a vida, olhar de quem rumina. Ele volta a
sentar na cabine do caminhão.

50. EXT. – ESTRADA DE PEDRAS – NOITE(LOGO DEPOIS)

RANULPHO está sentado ainda com um olhar de reflexão.

JOHANN
RANULPHO?
RANULPHO
Acordou?
Diga. Estou ouvindo.
JOHANN
Você acha que eu vou morrer?
RANULPHO
Vaso ruim não quebra.
JOHANN
Eu preciso muito de um favor seu e eu pago
bem para você fazer isso.
Se eu morrer eu queria que você mandasse
avisar a minha família.
RANULPHO
Como eu vou escrever para eles?
JOHANN
Você escreve para a fábrica que eu trabalho e
eles avisam.

RANULPHO
Mas como eu vou saber fazer isso.
JOHANN
Tem um caderno de capa verde dentro do cofre
do carro que tem o endereço da fábrica no
Rio.
RANULPHO vai até a cabine e pega o caderno. Ele começa
a ler um endereço que encontra.
JOHANN
É esse mesmo. Você manda um telegrama para a
fábrica avisando. O dinheiro também está lá
no cofre. O que sobrar fique com você. Agora
preste atenção diga no telegrama que a última
coisa que falei foi que pedi desculpas aos
meus pais.
RANULPHO
Homem. Deixe dessa conversa que não gosto
disso
Que conversinha de morte é essa?
JOHANN
Você tem medo da morte?
RANULPHO
Eu? Se eu fosse o senhor tava me cagando de
medo.
JOHANN
E você acha que eu estou como?
RANULPHO
Está cagado, não é?
JOHANN
Acho que, medo, medo mesmo, não tenho. Queria
viver mais, só isso.
Quem tem medo da morte, tem medo da vida.
RANULPHO
Mas esqueça isso.
Fique olhando as estrelas. O moço não gosta?
JOHANN
Pelo menos eu vou morrer em um lugar
tranqüilo, uma noite calma, estrelada.
(silêncio)RANULPHO?
RANULPHO

Diga.
JOHANN
Você acredita em Deus?
RANULPHO
Nessas horas eu acredito. Segure firme nesse
rosário que a AGRICULTORA lhe deu, segure.
É hora de acreditar.
Olhe, o senhor faz exercício, é forte. Sangue
forte. Se você fosse um cabra mais fraco aí
era complicado.
Longo silêncio.
JOHANN
RANULPHO por favor, conversa mais comigo. Eu
me destraio.
RANULPHO
Está certo. Vou pensar o que.

Breve silêncio.
RANULPHO
O senhor já quis ser outra pessoa? Já quis?
JOHANN
(rindo)Não.
RANULPHO
Apois ontem, eu devo lhe dizer que quando o
senhor me falou que ia passar a vida viajando
e eu vi o seu trabalho, passando filmes com
essas máquinas, viajando pelo mundo, e depois
quando vi o doutor com aquela moça.
JOHANN
Você viu?
RANULPHO
Ah bobagem. Ai eu pensei: Por que eu não
nasci esse camarada?
Isso aí é que é sorte.
JOHANN
Veja que sorte.
RANULPHO
Quer trocar de sorte. Ainda aceito a troca,
mesmo o senhor envenenado.
JOHANN
Você está dizendo muita bobagem.
Eu estou fraco não consigo mais falar.
Mas fique aí dizendo bobagem por favor.
RANULPHO
Falar o quê?
JOHANN
Por que você não me conta uma estória para
mim?
RANULPHO
A única estória que sei é a minha.
JOHANN
Então me conte, vai ajudar a dormir.
RANULPHO
Vai dormir mesmo. É a coisa mais sem graça.
Começa pelo lugar que nasci. Chama, com
licença da palavra: Bonança, umas cinco
casas, uma cruz no meio, uma viv’alma na rua,
sol de matar, o dia é morto e a noite mais
ainda.
Meu pai foi embora de casa com uma dona, se
amancebou com ela e vive pro lado da Paraíba.
Deixou minha mãe e minhas duas irmãs e eu
para tomar conta das três. Que filho da puta
aquele camarada, viu.
Minha tem uma venda na beira da estrada.
Desde pequeno era assim: minha mãe na
cozinha, minhas irmãs brincando no quarto. Eu
tomando conta da venda, organizando as
compras, as vendas, conversando com os
viajantes, botando bêbado pra fora.
Um dia minhas irmãs já crescidas, eu olhei
para um lado, para o outro e disse é hoje,
chega.
Me mandei. Deixei três mulheres atrás de mim
penando e chorando de saudade, um choro
miúdo, fino de doer. Não olhei nem pra trás
se olhasse desistia. Fui em frente.
(RANULPHO pára, olha de lado)
Seu Johann? Já dormiu?
JOHANN não responde. RANULPHO começa a contar a estória
como se fosse para ele mesmo.
RANULPHO
Penei, penei, mas cheguei no Rio, na capital,
mas não consegui nada.
Quando a fome começou a bater, eu voltei de
novo com medo de morrer de fome. Voltei pro
lugar que tinha saído, voltei derrotado.
Olhe que encarar um derrota na vida é triste.
Tristeza minha, alegria da minha família
quando me viu.
É isso! No Rio de Janeiro não consegui nada.
Mas também lá é assim: nordestino é somente
para viver de mangação.
Juntava o povo e diziam fala ai de novo
rapaz. Era uma mangação quando eu falava.
Diziam assim: mais um Paraíba, e aí tu usa
uma peixeira embaixo da calça que nem
cangaceiro? Tu come calango?
Ai eu baixava a cabeça.
Agora dessa vez vai ser diferente. Já começou
diferente. Já estou empregado e nem cheguei
lá.
E aí eu vou dizer: como? diga de novo?
Calango? Como calango sim e como o cu da tua
mãe filho da puta e aí mostro minha carteira
de trabalho assinada com o emprego na fábrica
da Aspirina.
Depois disso, no outro dia escrevo uma carta
para minha mãe. Conto tudo. Do novo trabalho
na fábrica e essa carta minha mãe vai ler em
voz alta para todos os moradores de Bonança
ouvir.
JOHANN dorme. RANULPHO transpira, respiração ofegante,
olhar triste. Parece ter tomado consciência de sua
própria história. Ele se levanta vai até o rádio e liga
o rádio tentando se destrair. O LOCUTOR anuncia a
programação para o próximo dia.
LOCUTOR
Nesse momento desfaz-se a nossa cadeia
transmissora, mas antes a programação de
amanhã: sexta-feira 26 de Agosto de 1942.
Nove horas Boa dia PRA8; Dez horas jornal
contra a tosse, onze horas alomço
musicado,doze horas intervalo. treze horas
almoço musicado.Treze horas repórter Esso com
o boletim da guerra. Catorze horas folhinha
de produtos santa clara. Quinze hora música
popular brasileira, dezoito horas ave maria.
Dezenove horas programa política da boa
vizinhança transmitida pela Mutual
Broadcasting System. Vinte três horas
despedida e Hino Nacional. Fiquei agora com o
hino nacional brasileiro.
RANULPHO desliga o rádio.

51. EXT. - ESTRADA DE PEDRAS - DIA

RANULPHO está no banco do motorista do carro. Ele está


passando as marchas no caminhão. Em algum momento, o
caminhão sai do lugar e ele, atordoado, puxa o freio-
de-mão do carro que pára.

52. EXT. - ESTRADA DE PEDRAS – DIA(LOGO DEPOIS)

JOHANN acorda. Ele olha para o céu e observa que vários


urubus planam lá no alto.
JOHANN
Eles estão esperando por mim?
RANULPHO
Eles quem?
JOHANN
Lá em cima.
RANULPHO
Então vamos tratar de se levantar daí, não é?
JOHANN consegue andar ajudado por RANULPHO. Ele se
senta e come um pouco. Uma comida que a AGRICULTORA
trouxe.
JOHANN
Quanto tempo faz que estou aqui?
RANULPHO
Dois dias e duas noites.
AGRICULTORA
Olhe, eu acho que se tivesse que acontecer o
pior, já tinha acontecido.
Ela sai e JOHANN agradece.
JOHANN
Muito bons eles.
RANULPHO
É bondade, mas eu estou pagando para eles
trazerem comida para o senhor.
JOHANN
Obrigado.
RANULPHO
Não me agradeça não que eu paguei com o seu
dinheiro lá do carro.
JOHANN
Obrigado, por ter salvado a minha vida.
RANULPHO
É melhor esperar mais um pouco para
agradecer.
JOHANN
Eu lhe devo a vida.
RANULPHO
É fácil pagar.
JOHANN
Como posso pagar a minha vida.
RANULPHO
Dá-se um jeito.

53. EXT. ESTRADA PRÓXIMA A FAZENDA DOS BODES - DIA

A primeira aula de direção começa. RANULPHO é um


péssimo aluno e complica muito. JOHANN não tem
paciência para ensinar. O carro morre várias vezes. A
aula prossegue. O alemão fica mais paciente, RANULPHO
começa a progredir.

54. INT. FAZENDA DOS BODES – DIA

JOHANN está do lado de fora do carro, descansando


embaixo de uma sombra. RANULPHO tenta dirigir sozinho.
Nesse momento um homem recolhe sua criação de bodes
para o curral. Os bodes cercam JOHANN que começa a
conversar com o vaqueiro.(AD LIB). Depois da conversa
JOHANN vai até o carro e tira RANULPHO da direção. A
aula já acabou. O carro ainda parado JOHANN fala.
JOHANN
Sabe qual a primeira coisa que vou fazer
quando chegar em Triunfo?
RANULPHO
Exibir os filmes.
JOHANN
E depois?
RANULPHO
Descansar, o homem está fraco ainda.
JOHANN
Descansar?
Eu passei os últimos anos da minha vida
juntando dinheiro e agora podia ter morrido
ontem e pronto.
O dinheiro iria ficar pra quem? Para você? Eu
vou é fazer um cabaré e comemorar que estou
vivo e você é meu convidado.
RANULPHO
Agora eu vi vantagem. Rapaz, o que deu em tu?
Assim que se fala.

55. EXT. ESTRADA PERTO DE TRIUNFO – DIA

Dois homens bêbados pegam carona com os rapazes. Nada


que eles dizem faz sentido. Eles falam alto e JOHANN
e RANULPHO não conseguem conversar. RANULPHO desliga
o rádio, mas ainda não consegue entender o que JOHANN
fala.
RANULPHO
Lá no Rio de Janeiro o doutor acha que eu
poderia continuar esse trabalho com o senhor.
Os bêbados continuam falando alto entre si,
prejudicando a conversa dos viajantes.
JOHANN
Está difícil a situação.
RANULPHO
Então é possível?
JOHANN
Sim, mas.
RANULPHO
Mas o moço pode me conseguir um
trabalho......
A conversa em voz alta e as risadas dos dois bêbados se
tornam ensurdecedores.
JOHANN
O que disse?
RANULPHO
(gritando com os bêbados)
Cala a boca porra.
Será possível que a gente não pode nem falar.
Agora fica todo mundo calado aqui dentro.
bêbado
Quem manda aqui no recinto é você? Não.
É o galego ai. Quem é tu para mandar calar a
gente?
JOHANN
Quem manda aqui é ele, não eu.
Eu trabalho para ele.
bêbado
Vige apois nem parece.
RANULPHO olha para JOHANN com olhar de cumplicidade
para em seguida ligar o rádio.
JOHANN
Vou ligar o rádio e ninguém fala.
Todos ficam calados.
LOCUTOR
... seria impossível imaginar senhores, que a
guerra ficaria tão violenta a esse ponto e já
começa a atingir nossos irmãos. Os navios
brasileiros foram afundados por tropas
alemães a cem quilômetros da costa brasileira
e o presidente deve decretar guerra contra os
alemães a qualquer momento. O povo exige.
Detalhes daqui a pouco no repórter especial
da guerra.
bêbado
Vige que a coisa está pegando. Vai morrer é
todo mundo.(ri)
outro bêbado
Vamos acabar logo com essa cachaça antes que
os alemães cheguem.(ri muito)
JOHANN parece preocupado. Fica triste com a notícia.
RANULPHO percebe e tem a iniciativa de mudar a estação
para alguma música.
56. INT. – ARREDORES DE TRIUNFO – TARDE

JOHANN parece mais recuperado do acidente. O olhar de


preocupação dele continua, é o mesmo da cena anterior.
RANULPHO novamente aprende a dirigir. Pode-se notar
algum progresso.
JOHANN
Tente ir dirigindo até a entrada de Triunfo,
quando chegar na cidade eu dirijo.
RANULPHO corre.
JOHANN
Devagar.
RANULPHO começa a dirigir com cautela.

57. EXT. – CHEGADA EM TRIUNFO – ENTARDECER

JOHANN e RANULPHO chegam na cidade e começam a procurar


um local para a exibição. Diferentemente do que
aconteceu nos outros lugares onde o caminhão sempre
atraia a atenção em Triunfo não existe ninguém nas
ruas. A praça principal da cidade está vazia. Uma cabra
cruza o local que está ocupada por barracas de feira. O
curioso é que todas as barracas estão vazias. Apenas um
esqueleto de feira. A maioria das casas fechadas. Eles
vasculham as ruas cidade que parece fantasma. Chegam a
uma outra pequena rua logo ali perto, o local parece
mais pobre e menor, mas está livre para exibição.
Ninguém chega perto. Apenas algumas janelas se abrem.

58. EXT. - EXIBIÇÃO EM TRIUNFO - NOITE

O público é pequeno. Final da projeção. RANULPHO vende


os cachetes enquanto JOHANN brinca com as crianças que
estavam assistindo o filme. Ele faz sombras na luz do
projetor que incide no pano branco. A criançada se
diverte. Ele mais ainda. Parece que está comemorando o
simples fato de estar vivo.
JOHANN apaga a luz do projetor para a tristeza da
criançada. Ele decide então continuar a brincadeira com
o farol do caminhão. Ele fica longe das vendas que fica
a cargo totalmente de RANULPHO.
RANULPHO ordena a fila, manda que todos fiquem calados,
pede silêncio e forma uma fila indiana.
Um homem e seu ajudante, que assistem a exibição de
longe, se aproximam dos dois rapazes. Não existe mais
quase ninguém no local. Ele é CLAUDIONOR ASSIS, tem 35
anos, simpático e educado, com ares de viajado. Usa um
corte de cabelo moderno, roupa fina, chapéu panamá. Um
empresário do Sertão.
Ele está acompanhado de MANUEL, que tem cerca de 50
anos, um olhar fiel, roupa simples, chapéu de goma,
jeito tímido.
CLAUDIONOR ASSIS
(se dirigindo para JOHANN)
Parabéns pela apresentação.
JOHANN
Obrigado.
(para RANULPHO) Acabe logo com isso que daqui
a pouco o cabaré vai fechar.
CLAUDIONOR ASSIS
O problema que o senhor escolheu o dia errado
para vender seu produto.
JOHANN
Como?
CLAUDIONOR ASSIS
O cabaré da cidade está fechado.
Hoje nada funciona aqui.
JOHANN
Mas o que aconteceu?
CLAUDIONOR
Antonio pernambucano passou por aqui.
JOHANN
Como assim?

CLAUDIONOR
Um matador de aluguel fez um serviço aqui
ontem. Matou um rapaz.
Briga de família. Essas bobagens de lugar
atrasado.
Tá todo mundo trancado em casa com medo.
O puteiro está fechado.
Agora se o senhor quiser tomar um drinque é
meu convidado na minha casa.

59. INT. CASA CLAUDIONOR ASSIS - NOITE

Um grande alpendre circunda toda a casa. É uma típica


casa grande de fazenda do Sertão. Nem tanto pelo luxo,
mas pelo tamanho e solidez de sua estrutura. Uma
estante de livros ,divide espaço com símbolos da
modernidade: rádio, uma cadeira moderna, quadros de
pintores modernistas pernambucanos.
CLAUDIONOR ASSIS entra pela varanda com JOHANN, Manuel
e RANULPHO. Chegando no topo do alpendre, CLAUDIONOR se
dirige para JOHANN.
CLAUDIONOR
(para JOHANN)
Manuel vai levar seu ajudante para ficar com
ele. E senhor entre por aqui.
JOHANN
Como assim?

CLAUDIONOR
Ele vai ficar mais a vontade com os
empregados. Vamos conversar sobre negócios.
Coisa chata.
RANULPHO
É isso doutor tô indo com o rapaz aqui.
O olhar de RANULPHO é só constrangimento.
JOHANN
O meu ajudante vai ficar para a conversa. Ele
trabalha comigo.
RANULPHO
Não tenho nada que fazer aí dentro.
JOHANN
(para RANULPHO) Você trabalha comigo e não
com ele.
CLAUDIONOR
O que é isso. Não quero atrapalhar nada.
Fiquem vocês a vontade a casa é de vocês.
Manuel fique aqui também conosco. Por favor.
O clima é de constrangimento. CLAUDIONOR, JOHANN,
RANULPHO e MANUEL entram na sala.
CLAUDIONOR se adentra pela sala e em voz alta diz a
insígnia do caminhão, como se estivesse declamando para
uma grande platéia:
CLAUDIONOR ASSIS
Aspirina, o fim de todos os males!
Pois sim, quanta honra, Aspirina e cinema na
minha Triunfo, pela primeira vez.
Uma mulher na sala, próxima a janela observa as
estrelas através de uma luneta. Ela é esguia, bonita,
elegante, cerca de trinta anos, cabelos escuros, olhar
cortante. Seu nome é ADELINA. Ela parece não pertencer
àquele lugar.

JOHANN
(querendo ser simpático)
Triunfo é muito longe.
CLAUDIONOR ASSIS
O Brasil é um continente. Maior do que a
América sem o Alaska, é claro.
Como é a sua graça mesmo? É seu nome?
JOHANN
É Johann Tellen.
CLAUDIONOR ASSIS
Claudionor José Pereira Carneiro de ASSIS, às
suas ordens. O que precisar aqui, fale
comigo. Essa é minha patroa ADELINA. Uma
senhora maravilhosa, mas não entende nada de
política.
ADELINA
Enchanté Hern Tellen. E o seu nome?(para
RANULPHO)
RANULPHO
Ranulpho
ADELINA
Prazer.
Ranulpho sorri. Adelina responde ao sorriso.
CLAUDIONOR ASSIS
Minha querida, vamos ter um jantar de
negócios.
ADELINA
Fiquem a vontade. Estou terminando uma
observação de um planeta depois me junto a
vocês.

60. INT. SALA DE JANTAR CLAUDIONOR – NOITE

Uma grande sala de jantar. Uma mesa bem posta, serviço


importado, louça portuguesa.
À mesa, estão CLAUDIONOR ASSIS na cabeceira, JOHANN à
sua esquerda e ADELINA à sua direita. RANULPHO e MANUEL
mais distantes e retraídos. Tudo parece grande demais
para a ocasião: a mesa, a quantidade de comida, a
pompa, a formalidade. Uma empregada, negra, entra e
sai, servindo a todos.
CLAUDIONOR
Com essa guerra tá faltando tudo, mas mesmo
assim eu arranjo um jeito de não ficar sem
minhas especiarias. Isso aqui veio da
capital: camarão enlatado.
ADELINA
Faz dias que os senhores só devem comer bode,
não é?
CLAUDIONOR
Mas tem bode aqui também, mas um bode que o
senhor nunca comeu antes.
CLAUDIONOR
Experimente aqui uma cachaça também feita em
um alambique da nossa empresa. Um veludo.
CLAUDIONOR versa a cachaça num pequeno copo até a borda
e o oferece a JOHANN e somente depois a RANULPHO para
em seguida encher seu copo. ADELINA olha para ele, como
se perguntasse se ele não a servirá.

ADELINA
Não sou grande fã de carne de bode, mas sem
dúvida nossa cachaça e inigualável.
CLAUDIONOR
(sorrindo carinhosamente)
Isso é que dá casar com uma AGRICULTORA
avançada.

Ele enche o copo da AGRICULTORA e somente em seguida o


de RANULPHO.
ADELINA
(sorrindo para JOHANN)Muito obrigado.
Todos brindam.
CLAUDIONOR
É isso seu JOHANN. Vamos dizer o seguinte: o
senhor fez a exibição no dia errado.
Olhe bem, eu posso comprar todo o seu estoque
e anuncio para toda a região comparecer aqui
em Triunfo.
E ai o senhor vai ver o que é vender. Com
aqueles filmes se vende qualquer coisa.
JOHANN
Muito bom!
ADELINA enche novamente o copo. RANULPHO fica a
observar a mulher que o observa. Manuel come muito.
CLAUDIONOR
É isso eu compro adiantado e vendo pelo meu
preço para compensar os custos.
Tudo certo?
JOHANN
Tudo certo. Somente preciso consultar a
matriz.

CLAUDIONOR ASSIS
Isso é: quero que o senhor mande trazer outro
carregamento do Rio de Janeiro para eu
revender. É possível.
JOHANN
Mando um telegrama amanhã cedo. Não vejo
problema.
CLAUDIONOR
Agora somente eu revendo na região e mais
ninguém.
JOHANN
Sim. Acho que a fábrica vai querer.
CLAUDIONOR ASSIS
Então é isso.
Vamos brindar.
Ao sucesso da nossa empreitada, e ao
progresso de Triunfo.

ADELINA
E ao final desta guerra tão absurda.
JOHANN se espanta com que ADELINA fala, CLAUDIONOR
também. RANULPHO abre um sorriso encantado.
JOHANN
Sim. Ao final de todas as guerras.
CLAUDIONOR
Não repare não, ADELINA foi educada na
França, quer dizer, ficou só um ano e meio na
França, mas com estas besteiras na cabeça.
ADELINA
Fiquei dois anos na França. Educação não é
besteira e bem que você gosta das coisas que
saem da minha cabeça não é meu amor.
ADELINA, inusitadamente, pega a garrafa de cachaça e
enche o copo dela e dos outros dois. JOHANN vira o copo
dele rapidamente. Ela também. Existe um sorriso
cúmplice entre os dois.
A empregada entra e os serve um prato cheio de carne,
uma carne escura. Há, no prato, carne suficiente para
alimentar um batalhão. Ela serve JOHANN primeiro.
JOHANN termina seu copo de cachaça, como se para tomar
forças, para comer o bode.
JOHANN
O senhor sabia que esse é a maior divulgação
feita sobre um produto no mundo inteiro?

CLAUDIONOR
É mesmo! E pra isso, vou fazer uma exibição
especial. O que o senhor acha de fazer a
exibição na praça principal?
JOHANN
Mas tem umas barracas lá.
CLAUDIONOR
A gente tira. Amanhã prepraro tudo. Mas me
fale mais do produto.
JOHANN tira um exemplar do bolso. CLAUDIONOR e ADELINA
examinam os frascos.
ADELINA
Mas eles deviam tomar mais cuidado com as
embalagens dos frascos. Deveriam ser mais bem
desenhadas.
CLAUDIONOR
Isso é frescura ADELINA. O que importa é a
qualidade do produto, o que está dentro.
ADELINA abre um frasco e experimenta uma Aspirina. Ela
experimenta e faz um silêncio. Depois abre um sorriso.
ADELINA tira do frasco outra Aspirina e toma.
CLAUDIONOR
Calma ADELINA. Isso num é cachaça não.
JOHANN não se controla e ri. RANULPHO fica sério.
ADELINA
Com licença a todos vou voltar para as
estrelas.
MANUEL
Com licença doutor tô indo.
60a .INT. SALA DE JANTAR CLAUDIONOR – NOITE(LOGO
DEPOIS)

CLAUDIONOR e JOHANN conversam e bebem cachaça.


RANULPHO
Com licença eu espero o senhor no carro.
RANULPHO sai caminhado bem devagar pelo corredor da
casa observando os quadros na parede, as cadeiras
modernas e chega até a sala onde ADELINA observa as
estrelas. Ela faz sinal que ele pode observar pela
luneta. Ele senta bem próximo dela. Ouvimos a conversa
dos dois na sala enquanto ADELINA começa a se aproximar
de RANULPHO.
CLAUDIONOR
Mas como funciona aquele carro me explique.
JOHANN
No Brasil já há vários anos que faz isso. São
4 toneladas de equipamento esse sistema chama
Sound Track tecnologia.

ADELINA aperta a calça de RANULPHO e ele parece em


transe.
JOHANN
12 autofalantes, os filmes são musicados e
falados pelo moderníssimo system movietone. E
ainda temos um rádio muito forte.

RANULPHO alisa os seios dela com delicadeza.

61. EXT. RUAS DE TRIUNFO - DIA

Plano fechado de um altofalante pregado em um poste na


praça. Escuta-se:
MANUEL
(ele lê o texto de um papel)
Povo de Triunfo, pela primeira vez vocês vão
ASSIStir à maior novidade, o remédio que cura
toda dor. É só tomar um cachete com um copo
d’água e a dor vai embora na hora. É o
remédio mais vendido do mundo.
E pela primeira vez em Triunfo o carro Sound
Track da Aspirina e mostrar filmes modernos
sonoros com seus murmúrios encantadores das
metrópolis. Uma ligeira síntese da
civilização dos grandes centros.
Não perca, hoje à noite, na praça da matriz.
Isso tudo patrocinado pelo doutor CLAUDIONOR
ASSIS.
Na praça, empregados do coronel preparam tudo para a
exibição.

62. INT./EXT. PRAÇA DE TRIUNFO – DIA(LOGO DEPOIS)

RANULPHO e JOHANN estão coordenando os trabalhadores na


praça. RANULPHO reclama de todos eles. Uma AGRICULTORA
passa pela praça e é encarada por JOHANN. Ela é MARIA
DA PAZ. Ele fica esguio na cadeira e observa a moça que
sorrateiramente lhe passa um sorriso.
JOHANN
(para RANULPHO) Vou no correio enviar
telegrama e volto.

63. EXT. PRAÇA DE TRIUNFO - NOITE

A praça está lotada. Gente por todos os lados. Um


palanque foi improvisado para subir o empresário e sua
AGRICULTORA. Várias cadeiras foram colocadas na frente
do palanque para a burguesia de Triunfo. Do alto de um
palanque, ao lado da tela, está CLAUDIONOR ASSIS. Ao
seu lado, ADELINA.
O povo de Triunfo ouve atentamente as palavras de
CLAUDIONOR.
CLAUDIONOR
(megafone na mão)
O povo de Triunfo, pela primeira vez, vai
ASSIStir à maior novidade: o remédio que cura
toda dor: a As-pi-ri-na. Dor de cabeça, dor
nas costas, dor na perna e no braço, toda
dor...até dor de corno.
Ele tenta ser engraçado, mas somente poucos riem da
piada. JOHANN e RANULPHO assistem.
RANULPHO
(para JOHANN)Coronel nesse sertão é tudo
igual, sem graça e sem coração. Filhos da
puta.
O negócio agora é dele.
JOHANN
Você não gosta de ninguém?
RANULPHO
Coronel aqui é dono de tudo. Comprou até seu
cinema.
JOHANN
Só por uma noite.
RANULPHO
Por enquanto.
CLAUDIONOR ASSIS
É só tomar um comprimido como esse com um
copo d’água e a dor vai embora, o remédio
mais vendido no mundo. E Triunfo recebe essa
novidade e agora é o lugar mais adiantado do
Sertão.
Todos aplaudem. RANULPHO olha para ADELINA. O casal
desce do palanque.
Silêncio. Olhares de expectativa, interrogação para a
tela branca. O projetor começa a rodar e todos olham
pra trás, por conta do barulho da máquina.
Até que uma luz branca invade a tela. Os moradores de
Triunfo chegam a fechar um pouco as pálpebras tal é a
intensidade de luz naquela noite tão escura. A primeira
imagem aparece refletida no lençol.
O público, no primeiro momento, fica paralisado. Os
olhos das pessoas não desviam da tela, como se
estivessem todos hipnotizados, como se estivessem vendo
uma miragem.
Na tela uma cartela aparece:
A ASPIRINA PARA AS DORES E O CINEMA PARA OS SONHOS.
Um homem fantasiado de PIERRÔ descansa em um salão
vazio, apenas restos de carnaval: serpentinas e
confetes no salão.

NARRADOR
Passou o carnaval. Já não resta mais em nosso
espírito senão a doce lembrança da alegria
passada. Assim é a Ventura. Passa depressa e
custa caro! E o pior é que nos sentimos
cansados, tristes, com o corpo mole e a
cabeça a doer.
Imagens de um salão de carnaval. Pessoas fantasiadas se
divertem. O Pierrô, visto anteriormente, se diverte
freneticamente. Ele pula, dança e bebe muito.
NARRADOR
São as conseqüências dos prazeres do homem,
da fadiga, das danças e do abuso de bebidas
alcoólicas. Mas fossem assim todos os males
do mundo!
O pierrô agora toma um comprimido e troca a fantasia
por um terno para ir trabalhar.
NARRADOR
Este ao menos tem remédio pronto e imediato:
basta que tomemos o conselho da Experiência
fazendo uso previdencial da ASPIRINA. Para
que nos sintamos novamente fortes.
Vemos agora a projeção do filme institucional
“Inauguração da Fábrica do Rio”, que mostra imagens do
Presidente Getúlio Vargas inaugurando a fábrica da
Aspirina no Rio de Janeiro.
São imagens do tipo cartão-postal em preto e branco do
Rio de Janeiro em 1942.
LOCUÇÃO DO FILME
A Capital da República, encantadora cidade do
Rio de Janeiro, famosa por sua beleza, as
montanhas, a lagoa e as praias, acompanhou
mais um passo em direção ao futuro: a
inauguração da moderna fábrica de remédios da
ASPIRINA.
RANULPHO
O Rio de Janeiro.
JOHANN
Por que você não tinha me dito que já tinha
ido lá?
RANULPHO
Como?
JOHANN
Por que você não me disse antes que já
conhecia a capital?
Você contou na sua história.
RANULPHO
Tu não tava dormindo?
JOHANN
Não.
RANULPHO
Era mentira.
JOHANN
O quê?
RANULPHO
Eu nunca viajei pra lugar nenhum. Inventei
tudo aquilo. Nunca tive a sorte de sair
viajando.
Falei do que acontece com o povo daqui que
vai pra lá. E só penso se eu fracassar.
Fracasso é difícil deixa a gente com uma
revolta, uma raiva.
E eu que já tenha a natureza assim azedo.
JOHANN
Mas você nunca teve a oportunidade.
RANULPHO
Não
JOHANN
Mas agora você sabe até dirigir caminhão.
RANULPHO
É se der errado, eu desisto.
Os dois rapazes ficam calados. Agora o que se vê são
imagens da fachada da fábrica, e, no seu interior,
autoridades acompanham o Presidente cortar a fita de
inauguração. RANULPHO e ADELINA se olham durante toda a
exibição.
LOCUÇÃO DO FILME
Autoridades civis, militares e religiosas
ASSIStiram com atenção ao próprio Presidente
Getúlio Vargas cortar a fita e minutos
depois, ligar a primeira máquina, dando
início no Brasil, à produção de ASPIRINA.
CLAUDIONOR
(megafone)
Viva o presidente Getúlio Vargas!

PÚBLICO
Viva!
RANULPHO
Pronto, o filho da puta vai se eleger com seu
cinema.

JOHANN fica observando para RANULPHO e refletindo sobre


o que ele falou.
Operários trabalham nas máquinas da fábrica, mostrando
a limpeza, segurança e velocidade da produção.
LOCUÇÃO DO FILME
Agora o Rio de Janeiro pode ser chamado de
cidade do progresso. A sua fábrica de
ASPIRINA usa as máquinas mais seguras, limpas
e rápidas do mundo.
Alunos da escola primária do subúrbio onde fica a
fábrica cantam o hino nacional, enquanto o Presidente
Vargas hasteia a bandeira do Brasil, na frente da
fábrica.
Ao final da projeção, novamente o povo da cidade
aplaude entusiasmado. Todos parecem abismados,
maravilhados com o que acabaram de ASSIStir provando o
sucesso da projeção.
Todos aplaudem e vão apertar a mão do empresário, de
sua AGRICULTORA.
CLAUDIONOR
(com megafone)
Já está a venda aqui mesmo no caminhão,
Aspirinas no valor de cinqüenta réis!
As pessoas estão ávidas. Formam grandes filas e, à
medida que compram, ansiosamente vão experimentando a
nova fórmula. Manuel coordena a venda.

64. INT. - BORDEL DE TRIUNFO – NOITE

Um bacanal improvisado no bordel de Triunfo. Uma grande


sala, portas grandes, paredes ainda maiores. Um
primeiro andar, de onde sai uma escada semicircular, de
mármore. As janelas estão fechadas, e a cor
predominante é o amarelo e o rosa. A decoração em tudo
lembra uma casa de bonecas.
Uma MULHER dá de mamar a um bebê enquanto um cliente
ansiosamente espera.
MULHER
Calma homem. Puta também dá de mamar.
JOHANN e RANULPHO estão radiantes e brindam em uma mesa
perto de uma SANFONEIRA que dedilha uma sanfona.
JOHANN
Vendemos tudo. Amanhã é nosso caminho de
volta.
RANULPHO
É muita felicidade.
JOHANN
Você vai ser meu ajudante, está contratado.
RANULPHO
É muita sorte. Não sei o que fazer com tanta.
(para um segundo) Hei! Mas não se anime com
minha alegria não que a gente tem que depois
acertar o preço.
JOHANN
Você é muito chato.
Os dois começam a rir e beber. Estão impregnados de
felicidade.
RANULPHO
Vamos comemorar e eu pago sua bebida.
JOHANN
Você está muito feliz mesmo.
RANULPHO
Eu vou lhe dizer uma coisa. Eu tenho que
beber muito hoje viu.
JOHANN
Por quê?
RANULPHO
É a primeira vez rapaz. Quer dizer, em um
cabaré. Sempre foi no meio do mato, no
escuro. Nunca fui em um puteiro, rapaz. To
aqui agoniado de tanta tesão.
JOHANN
Cuidado para não gozar logo.
Raparigas fortemente maquiadas se esforçam para
esconder a feiúra e a miséria.
A sanfoneira e canta um lamento triste. A música satura
o lugar de melancolia.
Numa das mesas, CLAUDIONOR conversa com um grupo de
homens que não vimos antes.
CLAUDIONOR
Rosalina toque uma música mais alegre, por
favor.
Eles estão vestidos de terno de linho, com estirpe de
classe alta. CLAUDIONOR chama JOHANN que se dirige à
mesa do coronel que apresenta a todos e decorre sobre o
novo produto.
CLAUDIONOR
Meus prezados. Triunfo vai ser a capital de
todo o Sertão. Estamos inaugurando uma nova
era. E, por isso mesmo, eu quero brindar a
proeza desse alemão autêntico que fez essa
viagem para trazer o futuro para nossa
cidade.
JOHANN é admirado por todo o bordel: dos homens
importantes às mulheres, ninguém tira o olho daquela
criatura estranha. Eles acompanham os movimentos, seus
gestos. JOHANN se sente tolhido, mas tenta manter a
desenvoltura necessária para a ocasião.
RANULPHO assite a tudo de longe e continua na mesa
perto da sanfoneira. Ela toca um baião, uma música
alegre por ordem do coronel.
RANULPHO
Essa música eu não gosto.
SANFONEIRA
Num diga isso rapaz.
RANULPHO
E daí?
SANFONEIRA
Mas tem que gostar. Aqui no sertão é obrigado
gostar dessa.
RANULPHO
Mas eu não gosto.
SANFONEIRA
Tu és capaz de morrer dizendo isso aqui,
danado. É uma ofensa. E foi o coronel que
pediu.
RANULPHO
Gosto menos ainda.
SANFONEIRA
Hei, hei(chamando RANULPHO para falar algo
bem baixo, no ouvido.)
Eu também não gosto não.
CLAUDIONOR oferece um brinde a JOHANN e o grupo o
acompanha.
JOHANN vai para a mesa de RANULPHO. Todos no bordel
seguem os seus passos.
A sanfoneira se dirige à mesa dos importantes e começa
a nova música.
RANULPHO está um tanto alto e excessivamente eufórico.
Ele fica de olho numa rapariguinha muito nova, que
dança sozinha no salão, tentando encontrar o ritmo da
música.
CLAUDIONOR senta com os ajudantes e JOHANN.
RANULPHO observa o líquido estranho que CLAUDIONOR
bebe.
RANULPHO
O que o doutor bebe?
CLAUDIONOR
Fermé, uma mistura de cerveja com Vermute. Da
Paz traga um fermé pro criado aqui. E traga
também aqueles camarões e as castanhas.
RANULPHO
Está todo mundo admirado com o moço. Acho que
ninguém aqui tinha visto um estrangeiro
antes.
CLAUDIONOR pede para uma das meninas encher novamente o
copo de JOHANN com o fermé. RANULPHO não resiste, e
estende o copo.
CLAUDIONOR
Vai ser um sucesso. Vou representar a
Aspirina por todo esse Sertão. Meu nome vai
estar escrito em cada arruado e antes de cada
filme vai aparecer: Aspirina, uma organização
doutor CLAUDIONOR ASSIS.
RANULPHO não tira os olhos da rapariga que dança
próximo a sanfoneira.
JOHANN
(para CLAUDIONOR)
Toda cidade vai querer remédio.
RANULPHO tenta novamente se inserir na conversa.
RANULPHO
É, o senhor vai ganhar é dinheiro.
JOHANN
Eles são muito bem feito e impressiona todo
mundo. Pessoas que nunca ter dor de cabeça
começa ter somente para tomar o remédio.

CLAUDIONOR ASSIS
Sim, isso é bom. Principalmente pros cornos.
Claudionor ri, solitariamente, da piada.
RANULPHO
Mas o senhor já gosta de piada de corno.
CLAUDIONOR
É
RANULPHO
Eu acho a coisa mais sem graça. É história de
corno e
CLAUDIONOR
(para JOHANN)
Abusado o seu ajudante.
(ele se vira para uma moça que serve a todos)
Oh Maria da Paz, traga duas meninas pro rapaz
aqui para tirar o abuso dele.
RANULPHO
O coronel arretosse.
CLAUDIONOR
(rindo)Eu não sou coronel, sou empresário.
RANULPHO
É a mesma coisa.

CLAUDIONOR
(sério) Não é não.
RANULPHO
E qual é a diferença?
CLAUDIONOR
(calmo falando perto do ouvido de RANULPHO) A
diferença é que se eu fosse coronel eu já
tinha mandando meus capangas fazerem algo
com você matuto. Mas como sou empresário eu
mesmo posso fazer não mando ninguém.(rindo)

RANULPHO fica sem graça. JOHANN se aproxima.


Duas meninas chegam com Pazinha. MARIA DA PAZ, vulgo,
Pazinha, é magra, um olhar que é um misto de sonsa e
triste. As duas meninas sentam no colo dos rapazes.
Elas são jovens, não mais que vinte anos, não muito
bonitas, mas muito sorridentes, fazendo um enorme
esforço para serem simpáticas. Elas se chamam NEIDE e
LINDALVA.
JOHANN presta atenção em Pazinha.
Pazinha também observa JOHANN, que fuma um cigarro
atrás do outro.
CLAUDIONOR dá dois tapas na bunda das prostitutas, e
depois se despede de todos.
CLAUDIONOR ASSIS
Seu JOHANN amanhã bem cedo na minha casa.
Quero acertar logo os novos carregamentos. E
por favor vá sozinho, sem ajudante.
RANULPHO nem se preocupa com o que o coronel disse.
Pelo contrário parece um menino, pega nos peitos de
Neide, a beija com gosto.
JOHANN pega Lindalva e coloca-a sobre RANULPHO junto
com Neide. Ele se levanta e vai até onde está Maria da
Paz. Lindalva é fisgada por RANULPHO.
65. INT. QUARTO UM DO PUTEIRO - NOITE

Um quarto pequeno, na penumbra. Maria da Paz arruma


coisas espalhadas enquanto JOHANN fuma um cigarro,
sentado na cama.
JOHANN
Você estava na praça hoje de tarde, não foi?
MARIA DA PAZ
Maria da Paz. Me chame de Pazinha que está
bom.
JOHANN
Bonito. JOHANN.
MARIA DA PAZ
Tu és galego, não é?
JOHANN
Como.
MARIA DA PAZ
Tu és do estrangeiro, não é?
JOHANN
Sou. E a senhora?
MARIA DA PAZ
Eu só trabalho no balcão e, por favor, não me
chame de senhora.
JOHANN
(olha para o vestido dela cor de rosa) Cor-
de-rosa fica bonito em você...
MARIA DA PAZ
É a cor que eu gosto mais.
Maria da Paz abre o vestido e agora está somente de
sutiã e calcinha, se coloca na frente de JOHANN. Ela
afoga o rosto de JOHANN entre os seus peitos, decidida
a calá-lo e fazê-lo mudar de assunto.
MARIA DA PAZ
Venha cá!
Ela esfrega os peitos no seu rosto e enche a mão com o
sexo de JOHANN, por sobre a calça.

66. INT. QUARTO DOIS DO PUTEIRO - NOITE


RANULPHO brinca com os sutiãs das duas mulheres que
estão com ele. Ele se diverte tal uma criança com um
brinquedo novo. Ele as provoca, corre pelo quarto, ri,
brincando com a duas, que gostam da situação. Elas são
NEIDE e LINDALVA.
NEIDE
O doutor CLAUDIONOR disse pra fazer você se
divertir.
RANULPHO
Então arrocha.
RANULPHO agarra as duas meninas e tenta beijá-las ao
mesmo tempo. Elas tentam se desvencilhar dele, mas ele
as acocha, cheirando as duas com vontade.
RANULPHO
Eu já sou quase um contratado da firma, vocês
vão fuder com um homem importante.
LINDALVA
(rindo muito alto)
Tu vai dar conta das duas?
RANULPHO
Com o queijo que eu estou, misericórdia.

67. INT. QUARTO UM DO PUTEIRO - NOITE

JOHANN está deitado no colo de Maria da Paz. Uma cena


improvável. Ele enche um copo de cachaça e acende um
cigarro. Um clima pós-coito. Ele procura o seu relógio
por volta da cama e não encontra.
JOHANN
Onde está a relógio? Marquei amanhã bem cedo
com o CLAUDIONOR.
MARIA DA PAZ
(imitando JOHANN)
Onde eshta a rrôloj, fala de novo, fala?
Rrôlogi.
JOHANN ri de Maria da Paz.
MARIA DA PAZ
Que relógio galego, isso é lá hora de falar
em relógio. Ainda está cedo (gemendo
exageradamente)
Maria da Paz olha fixamente pra JOHANN. Ela toca nos
cabelos do seu peito, nos seus mamilos, nos seus
pentelhos, no seu pau, como se fosse uma flor.
MARIA DA PAZ
(rindo muito)
T’áqui o rrolôj, t’a qui a rola.
Ela beija o sexo de JOHANN com gosto, como se pedindo
mais.
MARIA DA PAZ
Galego safado.

Ela agora o beija longamente, os olhos mareados.


JOHANN fica constrangido com tanto romantismo. Senta-se
na cama, afastando-se dela.
Maria da Paz volta a olhar pra ele e exclama:
MARIA DA PAZ
Eu te amo!
JOHANN
Você não me conhece.
MARIA DA PAZ
E daí! Eu te amo! Diz pra mim agora galego,
diz, diz que tu me ama. “Ô te mamo” Vem!

68. EXT./INT. PRAÇA DE TRIUNFO – AMANHECER

O arrebol já começa a tomar contorno no céu.


Pedaços de papéis da exibição estão por toda parte da
praça. Uma paisagem que nos remete a uma quarta-feira
de cinzas.
JOHANN abre a porta da cabine e se depara com RANULPHO,
espalhado nos dois bancos, dormindo.
A entrada de JOHANN acorda RANULPHO. Ele se senta no
banco do passageiro e continua dormindo. RANULPHO abre
o olho aos poucos.
RANULPHO
Isso é que é um trabalho bom, arretado.
JOHANN observa um arranhão na testa de RANULPHO.
JOHANN
O que foi isso na testa?
RANULPHO
A guenza fez um estrago na minha cara.
JOHANN
O quê?
RANULPHO
Bati a cabeça.
RANULPHO se olha no espelho do retrovisor e vê a marca
na testa. Ele vai até a carroceria, abre a porta, abre
o cantil e molha o rosto com água. Volta em seguida
para a cabine e começa a se olhar no espelho.
JOHANN
Isso não sai com água não!

RANULPHO
Isso sai com quê?
JOHANN
Com o tempo.

69. INT. CORREIOS E TELÉGRAFOS DE TRIUNFO – DIA

O correio de Triunfo se constitui de um homem, um


balcão, uma máquina de código Morse e poucos móveis. Um
lugar esparso, burocrático e árido.
O funcionário é um homem jovem, muito sério, bigode,
jeito eficiente. JOHANN é o único cliente. No momento o
jovem recebe uma mensagem pelo código Morse e
transcreve o conteúdo para o papel(fica claro que o
funcionário sabe o conteúdo das mensagens que recebe)
JOHANN está na agência dos correios.
FUNCIONÁRIO CORREIOS
Chegou desde ontem. A resposta chegou na
mesma horinha que o senhor mandou aquele
outro.
O senhor tem negócio com o coronel, não é?
JOHANN
É! Vendo Aspirinas para ele.
FUNCIONÁRIO CORREIOS
Dou por visto. Nunca recebi um telegrama
desse tamanho. Olhe custou umas horas.
O funcionário fica olhando para JOHANN, em silêncio. O
alemão pega o telegrama e abre, quando abre observa que
o funcionário lhe encara. JOHANN resolve sair. O rapaz
dos correios, estranhamente, começa a fechar o
estabelecimento.
70. EXT. PRAÇA DE TRIUNFO – DIA(LOGO DEPOIS)

JOHANN está sentado na beirada da carroceria.


RANULPHO limpa tudo, organiza a cabine, prepara a
viagem de volta.
RANULPHO
Vamos chegar no Rio de Janeiro com tudo
organizado.
JOHANN abre o telegrama, olha a mensagem, mas não lê.
Ele passa o telegrama para RANULPHO que olha pra ele,
não entendendo o seu gesto.
JOHANN
Leia para mim, por favor.
RANULPHO
Mas doutor…
JOHANN
Por favor, lento.
RANULPHO apura a visão e começa a leitura. Ele lê
lentamente.
RANULPHO
Caro senhor Tellen pelo Decreto 2132 de 31 de
agosto de 1942.O governo brasileiro decidiu
declarar guerra a Alemanha e seus aliados.
Nesse processo a Companhia Aspirina fica a
partir de agora sob intervenção federal. Seus
principais diretores e gerentes presos e
levados para campos de concentração no
interior de São Paulo. Com exceção de um
funcionário da contabilidade e um
farmacêutico da área de produção, todos os
demais funcionários brasileiros estão
demitidos. Senhor JOHANN Tellen, como não
possui cidadania brasileira, deve voltar a
capital e partir imediatamente para seu país
de origem a Alemanha ou caso não seja
possível se dirigir a algum campo de
concentração a ser determinado.
JOHANN fica em silêncio, depurando as informações.
Ele olha para a paisagem à sua frente como se esperando
uma resposta para tudo aquilo.
Como em um acordo tácito, os dois ficam em silêncio.
JOHANN encosta-se na carroceria. Uma dormência toma
conta dele. Parece não querer pensar por um momento.
RANULPHO salta da carroceria e se dirige à cabine,
deixando JOHANN sozinho.
JOHANN fica paralisado, olhar perdido, ausente. A
câmera é táctil se aproxima dele lentamente, tentando
chegar perto da dor do personagem e ao mesmo
encurralando-o. Ele se senta na praça onde tem um
cachorro dormindo.
Ele não se sente muito bem. Nesse momento RANULPHO vê o
rapaz do correio andando rápido na direção da casa do
coronel. Ele olha para RANULPHO e JOHANN e desembesta a
correr.
RANULPHO
Viu aquilo?
JOHANN
O quê?
RANULPHO
O coronel já lhe pagou o que é devido?
JOHANN
Sim.
RANULPHO
Então, pelo sim e pelo não, vamos embora.
JOHANN nem pestaneja e entra no carro, sai desembestado
pela estrada.

71. INT. ESTRADA DO SERTÃO NOS ARREDORES DE TRIUNFO -


DIA

JOHANN dirigi sem piscar, como se estivesse longe dali


e a paisagem na sua frente não passasse de uma miragem.
Ele tem olhar de quem rumina.
Com uma lata de comida nas mãos, RANULPHO tenta comer,
mas a velocidade do caminhão faz com que tudo fique
mais difícil.
RANULPHO
(falando de boca cheia)
O doutor tem certeza que não quer comer.
JOHANN
Não.
RANULPHO
Está pensando na vida?
JOHANN
Ë.
RANULPHO
Vai fazer o quê?
JOHANN
Ainda não sei.
JOHANN parece apreensivo. Perdeu aquele brilho que
sempre carrega durante toda a viagem.
O caminhão passa por um buraco e a comida de RANULPHO
cai sujando toda a cabine. O rádio narra mais um
boletim extraordinário.
LOCUTOR
Um multidão incontrolável invadiu a fábrica
italiana de refrigerantes Fratelli Vita
localizada no Recife. A multidão lançava
pedras no prédio. Enquanto isso funcionários
assustados balançavam bandeiras do Brasil no
interior da fábrica. Foram ainda depredadas
as lojas Van Thuil, Herman Stolz a casa
Lohner e as lojas Sloper. O repórter PRA8
volta daqui a pouco depois do intervalo dos
patrocinadores.
LOCUÇÃO DE COMERCIAL
Todo gordo quer emagrecer. Todo magro quer
engordar. Para o gordo exercício fazer. Para
o magro biscoitos Pilar.
JOHANN desliga o rádio.

72. EXT. ESTRADA ARREDORES DE TRIUNFO - DIA

JOHANN estaciona o caminhão em um acostamento e sai da


cabine, sem dar nenhuma explicação.
RANULPHO, perplexo, o procura com o olhar e o vê
sentado atrás de arbustos, pensativo.

73. EXT. CARROCERIA DO CAMINHÃO - NOITE

JOHANN tenta sintonizar o rádio. Fica bem próximo a ele


tentando ouvir algo, o sinal é muito fraco. Uma voz
oficial faz um pronunciamento.

PALESTRANTE
Lutaremos nas paragens, nos campos, nas
colinas, nos arrabaldes, nos bairros, nas
praças, nas casas, nos porões e nas
catacumbas. Só tenho a oferecer ao povo
sangue, suor e lágrimas.
RANULPHO
Eita exagero da gota.

Palestrante
No momento do perigo, todos os brasileiros
acorrerão à defesa da bandeira e o estado
convosco pronto para lutar, para vencer e
para morrer.
LOCUTOR
Você ouviu em rede nacional o discurso do
presidente.

RANULPHO
A tua gente fez uma merda danada, hein?
JOHANN
Eu nunca pensei que a guerra ia chegar aqui.
RANULPHO
Eu também.
Escuta-se agora uma séria de reclames: sabonete,
biotônico fortificante, Casas Slopper. A programação
normal da rádio continua, como se isso pudesse atenuar
a gravidade do anunciado.
A notícia deixa JOHANN triste, deprimido. A sintonia do
rádio vai aos poucos se esvaindo. JOHANN olha para um
lado e para o outro. Ele bate na parede com força.
Grita alguns palavrões em alemão. RANULPHO
prudentemente se cala.

74. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – NOITE

RANULPHO sai da carroceria, ajudando JOHANN a tirar o


rádio e a bateria.
Ele auxilia JOHANN a levar o rádio para cima de uma
pedra muito alta, próxima ao caminhão. O rádio é pesado
e a bateria mais ainda. Eles fazem tudo com muito
esforço.
JOHANN liga o rádio na bateria. Mas só se escuta o
chiado e mais nada. JOHANN insiste.
Aos poucos, eles escutam barulhos intermitentes que vão
sendo decifrados.
JOHANN pede para RANULPHO ir repetindo o que não
consegue entender.
LOCUTOR
Notícias da Paraíba: contra a pirataria
nazista. Foi preso nesta manhã, na Paraíba,
um alemão que supostamente enviava mensagens
de localização de navios na costa brasileira.
Dentro da casa do referido alemão foram
encontradas suásticas e propagandas a favor
do Nazismo. O alemão foi levado ao campo de
concentração em Aldeia perto de Recife onde
ficará preso com outros cidadães daquela
pátria.
A ansiedade de JOHANN vai se transformando em aflição e
agonia à medida que ele escuta as palavras de RANULPHO,
misturadas às palavras do LOCUTOR.
Ele se levanta e começa a se distanciar do rádio e se
embrenhar na caatinga, tentando diminuir o volume do
rádio, tentando apagar a notícia. Ele se distancia,
anda e termina por desaparecer entre os arbustos.
RANULPHO pára de repetir as palavras do LOCUTOR.
Escutamos apenas a voz metálica que, intermitentemente,
aparece e desaparece.

75. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – NOITE

O acampamento montado: a rede, o pequeno fogareiro,


objetos espalhados.
JOHANN permanece deitado, olhos abertos. Ele desliga o
rádio e o joga longe quebrando todo o aparelho.
JOHANN
Eles tanto que fizeram que o mundo inteiro
está contra eles.
RANULPHO
Olhe não é por nada não, mas eu tava pensando
e acho que é melhor o senhor falar pouco
daqui para frente e quando perguntarem de
onde o senhor é diga que é, sei lá é dos
Estados Unidos. O que acha? Pelo menos agora.
JOHANN
Eu gosto do Brasil e não mereço essa pressão.
Tem alemão que não é nem nazista nem judeu.
RANULPHO
É eu sei. Olhe, quando eu disse que sou
nordestino no Rio de Janeiro todo mundo vai
dizer que é paraibano. Não pode ser outra
coisa também não.

JOHANN
Eu com tanto medo de morrer com a mordida
daquela cobra. Agora a morte está mais perto
ainda.
RANULPHO
Mas rapaz, é danado. A gente se divertindo
que só e o mundo se acabando todo.
JOHANN
E agora?
RANULPHO
(olha para o céu)
Rapaz, eu juro a você que até daqui eu tava
gostando. Juro tava começando a gostar de
tudo.

JOHANN
Você acha ainda que aqui é o fim do mundo?
RANULPHO
Acho, mas tem outros piores.
JOHANN
A vida aqui é dura, mas eu gosto do espírito
das pessoas é humano, natural, familiar.
RANULPHO
Eu não sei não. Não tenho como comparar.
Nunca sai daqui.
JOHANN
Sim. Mas todos os lugares tem coisas boas e
ruins.
RANULPHO
Fazer o que né. Lugar é que nem gente.
Mas o doutor tem família?
E cadê esse povo todo?

JOHANN
Alemanha.
RANULPHO
E lá num está em guerra?
JOHANN
E eu devia estar protegendo minha família e
meu povo.
RANULPHO
E por que não está?
JOHANN
Porque eu não concordo com essa guerra e não
nasci para matar gente.
RANULPHO fica constrangido da pergunta que fez.

76. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA - NOITE

É tarde da noite. Apesar de espatifado o rádio ainda


mantém algum sinal sonoro que penetra na noite.
RANULPHO dorme profundamente.
JOHANN está sentado. Olhos arregalados.

77. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA - AMANHECER

JOHANN acordado. RANULPHO ainda dorme. Mal clareou o


dia, JOHANN acorda RANULPHO.

RANULPHO
(ainda adormecido)
O que foi rapaz?
JOHANN
Não consegui dormir.

RANULPHO
Mas já sabe o que vai fazer?
JOHANN
Não, não sei!
O rádio continua chiando.
RANULPHO
O senhor fica aqui eu vou lá naquela cidade
ali perto. Vou comprar comida.
JOHANN
E compre tinta.
RANULPHO
Tinta?
JOHANN
Tinta e pincel.

78. EXT. VENDA EM SERTÂNIA - DIA

O viajante compra mantimentos. Ele pede ao VENDEDOR


para dar uma olhada em um pente de plástico exposto
atrás do balcão. O VENDEDOR é um homem magro, 25 anos,
alto, uma cara de poucos amigos, sem paciência, bigode
branco ralo.
O dono da venda passa a mercadoria para RANULPHO que
fica se olhando no espelho e penteando o cabelo.
RANULPHO se aproxima do vendedor e faz cara de
desinteresse quando aponta para o pente.
RANULPHO
Quanto custa isso?
VENDEDOR
O pente é vinte réis.
RANULPHO
Eu não quero comprar a venda inteira não,
rapaz. É somente o pente.

VENDEDOR
É coisa fina e com essa guerra tá tudo pela
hora da morte.
RANULPHO
Dou cinco e olhe lá.
Vendedor
Cinco não paga o cuspe do rapaz que fez. Essa
mercadoria está aí faz tempo. Somente pra me
ver livre dela, me dê quinze e num me
esquente mais o juízo.
RANULPHO
Doze e num se fala mais nisso. E eu ainda
levo essa brilhantina.
É preço de amigo.
VENDEDOR
Ô peitica! Fazer o quê?
Com rádio ligado, ouvimos o LOCUTOR anunciar que em
trinta minutos mais um noticiário especial de guerra
irá começar.

79. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – TARDE

O sol é menos abrasivo do que antes. A tarde já começa


a domar o calor intempestivo. JOHANN está na cabine.
Ele organiza os mapas e papéis que estão espalhados.
Retira uma foto que está colocada no painel e a
observa: uma foto familiar. Estão todos vestidos com
roupas de inverno.
Ele abre o cofre do carro e, de lá, tira uma pequena
pasta.
Ele verifica o conteúdo da pasta: seu passaporte
alemão, dinheiro, uma outra foto da mesma família.
Ele desce da cabine com a pasta, fecha a porta e sai
caminhando caatinga adentro.
Um besouro o ataca. Ele se assusta, se livra do inseto
e continua andando.
Ele se senta numa pedra não muito longe do caminhão e
escrutina a paisagem.
Ele procura as pedras ao redor e decide levantar uma
delas para colocar a pasta embaixo. Quando se prepara
para fazer isso uma cobra sai debaixo da pedra
assustando o alemão.
Ele corre. Em seguida pára, pega um pedaço de madeira
que está ao alcance dele e corre para cima da cobra.
Ele começa a bater na cobra a pauladas. O sangue começa
a jorrar para todos os lugares. Ele vai batendo e
espatifando a cobra. O sangue do animal resvala no
alemão.
A caatinga nos remete a um grande campo dilacerado após
uma batalha. Ele volta caminhando lentamente para o
carro.
RANULPHO vai chegando naquele momento e não entende o
que vê: o alemão com um pedaço de madeira e sangue na
roupa.
Imediatamente RANULPHO corre para dentro da caatinga.
Chegando lá, ele encontra os documentos do alemão
espalhados e uma cobra espatifada.
Ele olha os documentos, observa, verifica os detalhes
do passaporte alemão de JOHANN.

80. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – ENTARDECER

Os dois rapazes pintam o caminhão. RANULPHO tira algo


do bolso.
JOHANN
Meu medo era perder um dia meus documentos.
Sem eles eu não podia fazer nada no Brasil.
Ele tinha minha foto, a digital, o lugar de
onde venho, o barco que cheguei a cor dos
meus olhos e dez páginas de regulamento da
polícia de estrangeiros. Tinha até pesadelos
com isso. Agora é melhor não ter nenhum
documento.
RANULPHO
Olhe o que comprei.
Pente para usar na capital.
JOHANN
Com a guerra deve estar tudo mais difícil por
lá pelo Rio.
RANULPHO
Eu já pensei nisso, mas agora até dirigir
caminhão eu sei.(imitando JOHANN)
JOHANN
Tem um lugar no Brasil que eu querer conhecer
muito.
RANULPHO
E qual é?
JOHANN
A Amazônia!
RANULPHO
Aquele matagal desgraçado.
Eu já tenho medo de mata, assim, fechada e
cheia de índio. Num é comigo não.
Agora pensando bem, é um bom lugar para se
esconder, viu.
Sabe o que comprei também. Uma Termosinha.
JOHANN
O quê?

81. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – NOITE

Uma noite escura. Um lampião de gás ilumina o local.


Distinguimos apenas os vultos dos personagens.
RANULPHO está no alto de uma pedra, pintando a lateral
superior do caminhão e JOHANN a lateral inferior.
RANULPHO abre uma garrafa de uma bebida onde está
escrito no rótulo: TERMOSINHA.
RANULPHO
Bebe aí rapaz. Acalma o juízo.
JOHANN
O que é isso.
RANULPHO
É a tal Termosinha que falei.
JOHANN
Sabe porque lhe convidei para me ajudar na
viagem?
Porque você disse que estava indo para
Triunfo e eu sabia que estava mentindo e
gostei disso.
RANULPHO
E eu gostei do caminhão, não do senhor.
JOHANN
Você não gosta de ninguém?
RANULPHO
Sei lá, acho que não.
Os dois riem.
JOHANN
E de sua mãe? Eu ouvi sua história.
RANULPHO
É, é verdade. Então me conte agora do senhor?

JOHANN
A minha história é mais sem graça ainda. Eu
vim de um lugar frio, sisudo, severo: a
Alemanha. Mesmo antes da guerra, eu tinha
grande vontade de viajar pelo mundo.
Antecipei essa vontade com medo de servir o
exército eu fui trabalhar de garçom em um
barco que vinha para a América e nunca mais
voltei.
Se voltasse, tinha que ir para a guerra. Ai
viajei muito e cheguei no Brasil.
Foi difícil , não sabia a língua. Difícil
sobrevivência. Meus pais sempre escreviam,
exigindo que eu voltasse.
Tenho uma família grande cheia de irmãos e
irmãs. Eles acham que vai ser uma vergonha
para a família se eu não voltar.
Eu ouço as notícias da guerra e penso neles,
mas tenho tanto horror do que está
acontecendo que prefiro ficar longe.
Eles nunca vão me perdoar.
Dei a sorte de cair aqui no sertão. Porque se
tivesse no Rio de Janeiro já teria sido
mandado embora para a Alemanha.
RANULPHO
Para você ver não é? Se tu tivesse no Rio tu
ia virar camarão enlatado.
A sua história é mais triste que a minha. Nem
sei qual é a pior.
JOHANN
Agora eu só tenho a vida e algum dinheiro.
RANULPHO
E eu só tenho a vida e olhe lá.
Vamos brindar com mais Termosinha.
Vamos brindar. Isso são dois cabras fudidos.
82. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – NOITE(logo depois)

Os dois rapazes já estão completamente bêbados.


RANULPHO mal se segura em pé. JOHANN tem a língua
enrolada. O lampião começa a ficar fraco. RANULPHO pega
um fósforo e acende um cacto chamado facheira que
provoca um fogo grande. Acende outro.
RANULPHO
Isso aqui se chama Facheiro. Já sabe porque
né. Isso é lampião de noite sem lua.

JOHANN
Já pensou se eu fosse para a guerra e você
também. Nós poderíamos nos defrontar em um
campo de batalha?
RANULPHO
Rapaz e eu nunca pensei nisso.
JOHANN
Aí eu ia dizer olha lá aquele brasileiro que
reclama de tudo.
RANULPHO
E eu ia dizer olha lá aquele alemão que acha
tudo bonito e que é tão feliz que é chato.
JOHANN
Olha aquele brasileiro que tudo está ruim,
tudo é um abuso. Mas ele é o que mais se
diverte sempre.
RANULPHO
Olha aquele alemão que somente pensa nas
viagens dele enquanto o mundo está se
acabando.
JOHANN
Olha lá aquele ladrãozinho de Aspirina.
RANULPHO
Olha lá o alemão que eu salvei a vida dele. E
eu agora vou ter que matá-lo.
E vou fazer isso antes que ele me mate.
JOHANN
Olha lá aquele meu amigo que salvou minha
vida. Agora eu vou ter que matá-lo.
E vou fazer isso antes que ele me mate.
Um atira hipoteticamente no outro, os dois caem e não
se levantam mais de tão bêbados. Eles desandam a rir.

83. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – DIA

É de manhã. JOHANN já está acordado, pensativo.


RANULPHO acorda gemendo de ressaca.
RANULPHO
Rapaz parece que tem uma guerra na minha
cabeça.
JOHANN
Quer tomar uma Aspirina?

RANULPHO
Eu já tomei várias, mas isso não faz efeito
em mim não.
Ele vai lavar o rosto. Enquanto lava o rosto, observa
que JOHANN está ainda mais calado e preocupado.
RANULPHO
É ressaca?
JOHANN
Também.
Eu tomei uma decisão.
RANULPHO
Vai para guerra?
JOHANN
Não.Amanhã eu vou para a Amazônia e você pode
ser meu ajudante.
RANULPHO
Tufo. Olha aí já tenho um trabalho.
JOHANN
Você acha que eu devia estar na guerra?
RANULPHO
Olhe, pergunta danada essa!
(fica pensando olhando ao redor) Eu acho o
seguinte. Veja isso aqui, olhe para sua
frente. Isso aqui é uma guerra não é?
JOHANN
Mas é diferente.
RANULPHO
É diferente, mas o povo aqui morre de fome
faz duzentos anos. O governo não faz nada. E
eu faço o quê? Fujo. Eu estou fugindo do
mesmo jeito.
Agora eu lhe digo, se tivesse um jeito de
resolver a situação desse povo, eu resolvia.
Se pudesse acabar com essa situação eu
acabava, mas não posso. E é mais fácil ajudar
a acabar com isso vivo do que morto.
Eu acho que você está certo. Vamos preparar
nossa viagem.
JOHANN está paralisado, olhando ao redor e pensando em
tudo que RANULPHO falou e ao mesmo tempo, perplexo com
tudo que ele falou.
JOHANN
Onde você aprendeu tudo isso? Quem lhe falou
tudo isso?
RANULPHO
A vida.

84. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – DIA

Atrás de um mar de arbustos esturricados vemos o


caminhão parcialmente camuflado de galhos.
JOHANN e RANULPHO trabalham arduamente tentando
esconder o caminhão.
JOHANN está sem camisa e sua pele está avermelhada de
tanto sol.
RANULPHO não pára, determinado.
JOHANN e RANULPHO entram na cabine para pegar suas
coisas. JOHANN olha para o papel que anuncia os dias de
viagem. Ele pega algum dinheiro e nenhuma mala.

85. EXT. ARREDORES DE SERTÂNIA – DIA

Os rapazes saem do caminhão e JOHANN usa uma roupa que


parece ter sido de RANULPHO. O alemão tirou a roupa
mais formal que usava e agora se veste como um
nordestino.
JOHANN
Não está ridículo?
RANULPHO
Rapaz é melhor assim.
Os rapazes saem caminhando pela estrada. Alguns urubus
começam a pousar no caminhão e vasculhar a carcaça do
carro.
Eles saem caminhando e cruzando as cercas das fazendas.

86. EXT. ESTRADA MAIOR– DIA

Os rapazes se aproximam de uma estrada maior. Eles têm


que cruzar uma última cerca para se aproximar da
estrada. É uma cerca de arame farpado.
RANULPHO
Já disse o poeta Deus criou o mundo e o
Satanás, o arame farpado.
Eles descansam na estrada esperando uma carona.

87. EXT. ESTRADA MAIOR - DIA

Um caminhão pipa aponta no horizonte. RANULPHO vai para


o meio da estrada e levanta o braço pedindo carona.

88. INT. CABINE CAMINHÃO PIPA – DIA

Um homem tem de cerca de 40 anos, barba por fazer,


jeito tranqüilo, conduz o caminhão com habilidade.
JOHANN e RANULPHO estão acomodados no banco de
passageiros.
MOTORISTA
São duas por dia.
RANULPHO
Quer dizer que o senhor já está voltando pra
fazer a segunda viagem?
MOTORISTA
Isso.
RANULPHO
Tem alguma notícia da tal da guerra?
motorista
Que guerra, rapaz?
RANULPHO
Dos nazismos?
MOTORISTA
Ah, Os que afundaram aqueles navios? Sei não,
negócio de guerra.
JOHANN
O senhor não saber da guerra?
O motorista olha para JOHANN, como se tivesse acabado
de ouvir as palavras de um alienígena. Ele olha para
RANULPHO, como se pedindo ajuda a entender o que se
passa.
RANULPHO
Esse rapaz é assim, nasceu com esse problema
na língua. Língua presa.
O senhor sabe se tem alguma novidade?
MOTORISTA
Que eu saiba, não tem nada. Só tem de velho.
Esse vai-volta nessa banheira, levando água
de um lugar pra outro, de outro pra um. Isso
é lá vida. Água não se leva, concorda? Água,
ou vem de cima ou vem de baixo.
RANULPHO
E ainda ficam falando de guerra. Ora, onde já
se viu? Guerra é essa seca, que ninguém luta
para acabar.
O motorista ouve atentamente o que RANULPHO falou e
fica calado, pensativo.

89. EXT. ESTRADA DO CAMINHÃO PIPA - DIA

O motorista faz entrega de água em uma casa para uma


AGRICULTORA que espera na porta. Ele se volta para os
rapazes que estão do lado de fora do caminhão.
MOTORISTA
Tá vendo essa estrada. Andando cinco léguas
vocês chegam em Campo Formoso. Lá tem uma
estação. O trem passa por lá. Bem cedo já
fica uma mundiça de gente esperando que é uma
tristeza.
Eles agradecem e saem caminhando.
RANULPHO
(animado, falando com JOHANN)
Eu falo e pergunto tudo. Fique na surdina.
JOHANN
Surdina?
RANULPHO
Calado
90. INT. ESTAÇÃO DE TREM DE CAMPO FORMOSO - DIA

Em pequenos grupos, retirantes chegam em frente à


estação de trem de Campo Formoso. Algumas outras
pessoas já estão lá.
Johann e Ranulpho estão chegando.
São pessoas tristes, mal-vestidas, magras.
RANULPHO
Que situação desse povo. Perdeu tudo e ainda
é obrigado a ir para aquele fim de mundo.
Para o senhor é diferente, mas a situação
dessa gente...

Ranulpho olha os flagelados ao redor.

JOHANN
Primeiro vamos viajar um pouco depois ficar
em Manaus a procura de um trabalho.
RANULPHO
Eu não quero isso não.
JOHANN
Mas você vai para lá em outra condição.
RANULPHO
Eu sei. Mas tem uma coisa que eu vou lhe
dizer. Eu vou lhe acompanhar até o trem
chegar.
Depois eu estou indo embora.
JOHANN
Como isso? Desistiu?
RANULPHO
Não, vou enfrentar.
Vou fazer o que o senhor vai fazer lá na
Amazônia.
Vou fazer o meu destino.
JOHANN
E por que não pode ser lá?
RANULPHO
Porque minha história é outra.
JOHANN
E qual é?
RANULPHO
Sair por aí. Conhecendo uma coisa aqui, outra
lá. Juntar um dinheiro e depois ver o que
fazer. Tomei gosto pela coisa. Peguei o
vício.
JOHANN
Sabe aquela estória de querer ser outra
pessoa?
Me deu vontade de ser você.
RANULPHO
Vige, ainda bem que vontade dá e passa.
Mas é isso, minha vida agora vai ser uma
estrada.
Para você é melhor ficar escondido até todo
esse pesadelo passar.

91. EXT. URUBUS NA ESTAÇÃO - DIA

Os urubus sobrevoam o lugar. Eles parecem farejar


vítimas.

92. INT. ESTAÇÃO DE TREM – DIA

O sol está mais alto.


Os retirantes se aglomeram na estação. Todo o espaço é
tomado pela massa de flagelados. Pessoas esquálidas,
fracas, esperam pacientemente a vez de embarcar.
Um homem fardado, FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO, explica aos
retirantes como será a viagem e fiscaliza a procedência
do todos.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Vocês vão até Fortaleza de trem e de lá tomam
o navio até a Amazônia.
As pessoas na estação conversam sem prestar muita
atenção ao que o funcionário fala.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Cala boca mundiça, senão, ninguém me ouve. Só
entra no trem quando eu mandar e lá, em
Fortaleza, só sai quando eu mandar e ensinar
o caminho até o vapor. Estão me ouvindo?
RANULPHO
(para JOHANN)
Esse país tá cheio de filho da puta. Bota uma
farda e pronto. Quer gritar com todo mundo.
Isso é jeito de tratar gente. Somente porque
é flagelado.
JOHANN
Você, às vezes, tratava as pessoas assim na
viagem.
RANULPHO
Eu fazia o que fizeram comigo. Agora mudei.
Posso, não?
JOHANN
Pode.
RANULPHO
Qual é a chance dessa gente. Se embrenha na
selva pra ajudar o país e quem vai ajudar
eles? Isso é que é país e ainda entrou na
guerra. E precisa mais uma?
Ninguém responde nada. Continua o funcionário a falar.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Fortaleza é uma cidade grande e vocês,
matutos da bexiga, vão se perder lá.
RANULPHO
E apois!
Todos começam a rir e o funcionário não gosta. Ele
começa a fazer perguntas aos retirantes e distribuir os
tickets de viagem. JOHANN é o que mais se diverte.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E você, veio de onde?
RETIRANTE 1
Mirandiba!

FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E tu?
RETIRANTE 2
Jeremoaba.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Onde é isso?
RETIRANTE 2
Perto da Bahia.
O funcionário chega perto de RANULPHO. Se aproxima dele
com um olhar de poucos amigos. JOHANN esconde o rosto,
fica aterrorizado, com medo de ser reconhecido.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E você, metido a engraçado, é donde?
RANULPHO
De Bonança.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
E tu?(para JOHANN)
RANULPHO
Ele é meu vizinho.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
De onde?
RANULPHO se levanta, fica na altura do funcionário, e
olha bem nos olhos dele.

RANULPHO
Eu já disse de onde.
(para JOHANN)E tu perdeu a língua e precisa
do vizinho pra falar?
Tudo na estação é silêncio. RANULPHO olha nos olhos do
funcionário.
RANULPHO
Da Alemanha! Meu vizinho da Alemanha.
JOHANN, por um segundo, fica perplexo com a declaração.
O funcionário está com um olhar de raiva fixo em
RANULPHO.
JOHANN
E apois!
A risadagem é geral. O funcionário desiste de insistir
na pergunta.

FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Agora fica todo mundo sentado que a polícia
vai fazer a vistoria.
Ele se dirige ao escritório, mas antes, se encontra com
soldados que acabaram de chegar na estação.
JOHANN começa a sentir um certo pânico.
JOHANN
Eu vou ao banheiro, fico esperando o trem de
lá.
RANULPHO
Melhor.
RANULPHO começa a conversar com o flagelados. Pergunta
o nome de um grupo que está perto iniciam uma conversa.
93. INT. ESTAÇÃO – DIA (MAIS TARDE)

O trem chega na estação. Existe um vagão vazio em


frente à multidão.
A porta do vagão é aberta e os retirantes entram
rapidamente. A confusão é grande.
RANULPHO vai procurar JOHANN pela estação.

94. INT. CORREDOR/ BANHEIRO DA ESTAÇÃO DE TREM – DIA

No corredor não existe ninguém.


RANULPHO vai caminhando, lentamente pela estação de
trem.
Ele dobra a direita e vai abrindo cada porta de
madeira, não encontra nada nem ninguém.
Ele procura devagar. É como se estivesse com medo do
que poderia encontrar ou não encontrar.
Ele vai procurando em cada lugar da minúscula estação.
O trem já começa a dar sinal de partida.
Ele entra no banheiro.
JOHANN está escondido na última cabine, sentado na
privada, de cabeça baixa.
RANULPHO
Pode sair.

95. INT. ESTAÇÃO DE TREM – DIA

O espaço na estação é dividido milimetricamente.


JOHANN se despede de RANULPHO. É uma despedida seca, um
aperto de mão e um abraço. Os dois ficam com os olhos
mareados, cada um carrega um riso no rosto, um riso
burocrático, para esconder a tristeza do momento.
JOHANN
Eu tenho um presente para lhe dar.
RANULPHO
Eu não acredito? É esse relógio?
JOHANN
Esse relógio eu não dou a ninguém. É de
estimação.
JOHANN tira a chave do carro do bolso e passa para
RANULPHO.
JOHANN
Cuidado com as estradas, rapaz.
RANULPHO fica sem saber o que dizer.
RANULPHO
Mas e pode?
JOHANN
Posso não? O caminhão não é mais de ninguém.
RANULPHO
E eu faço o que?
JOHANN
Vá ser feliz.

RANULPHO
Oxe. É agora mesmo.
Olhe e você meu amigo, cuidado com os índios.
FUNCIONÁRIO DA ESTAÇÃO
Avante, avante tropa da borracha, viva o
Brasil, sempre em marcha!
JOHANN entra no vagão e se posiciona na janela.
RANULPHO observa a cena. O trem começa a apitar e a
partir. Imagens do ponto de vista de JOHANN olhando as
diferentes texturas da região passando pelos seus
olhos, uma sinfonia de tons. Corte para.

96. EXT. ESTRADA DO CAMINHÃO ESCONDIDO – TARDE

RANULPHO abre a porta da carro liga o motor. Ele mantém


uma marcha altiva, decidida, cabeça em riste, um olhar
de quem tomou uma decisão inexorável.
Ele se posiciona na direção, marca em um papel no
painel do carro a data. Ele fecha a porta e segue sua
viagem em frente, altivo, determinado, confiante. Na
sua frente uma longa estrada se apresenta. O sol começa
a cair deixando toda a região com tons de amarelo,
laranja e dourado. O caminhão segue a direção do sol.
Toda a paisagem fica dourada. No meio da estrada um
ponto se move. A medida que o carro se aproxima podemos
decifrar aquele ponto como alguém que pede carona na
estrada. RANULPHO para um sertanejo sobe. Eles
continuam a viagem.

97. EXT. AÉREA DO SERTÃO – DIA

Imagem aérea do sertão nordestino. Na terra castigada


pelo sol, nada se move. A câmera não ressalta nem o céu
nem a linha de horizonte e sim a extensão de terra
seca. No canto da imagem começa a surgir um caminhão
que cruza uma pequena estrada de terra. Uma luz dourada
invade toda cena. A mesma luz da cena anterior. O
caminhão está com seu teto pintado.

Fim

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