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Cartografias do ensino do teatro


t!)UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÃNDIA

REITOR
Alfredo Júlio Fernandes Neto

VICE-REITOR DIREÇÃO EDUFU


Darizon Alves de Andrade Humberto Guido

CONSELHO EDITORIAL

Daurea Abadia de Souza José Roberto Mineo


Décio Gatti Júnior Márcio Chaves-Tannús
Ernesto Sérgio Bertoldo Rejane Maria Ghisolfi da Silva
Gina Maira Barbosa de Oliveira Roberto Rosa
João Carlos Gabrielli Biffi

CORPO TÉCNICO ADMINISTRATIVO


Maria Amália Rocha

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Maria Clara Tomaz Machado

ED FU
Editora da Universidade Federal de Uberlândia
Av.João Naves de Ávila, 2121 - Campus Santa Mônica - Bloco A - Sala IA-OI
Cep 38408-100 - Uberlândia - Minas Gerais
Te!: (34) 3239-4293
www.edufu.ufu.br c-rnail: Iivraria@ufu.br
Adilson Floren tin o
N arciso Telles
organizadores

Cartografias do ensino do teatro

ED FU
2009
ED fU
Editora da Universid ade Federal de Uberl ândia

Copy righ t © Edufu - Edito ra da U nive rsidade Federal d e Uberlân dia/MG


To dos os d ireitos reservados. É pr o ibida a rep rodu ção parcial ou to ta l se m permi ssão da ed itora.

Dad os Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP)

C32S Cart og rafia do ensino do teatro / Ad ilson Florenti no. N arci so


Tr iles (o rgs.). - Ubcrlândia : EDUFU, 2009.
328 p.

Inclu i bibliograiia.
ISBN 978-85-7078- 190-1

1. Teatro. I. Florent ino, Adil son. 11. 'Icllcs, N arciso.

C DU: 792

Elaborados pelo Sistema de Biblioteca s da UF U / Seto r de C ataloga ção c C lassificação

Equipe de reali zação

Revisão grama tical Alin e Coelho

Maria Cristina Go nça lves

Revisão ABNT Maira N ani França

Pro jeto grá fico e capa Ivan da Silva Li m a

Di agramação Alexan dr e Ca rva lho


"
SUMÁRIO

7 A PRESENT AÇ AO

9 A PROB LEMATI CIDADE EPIST EMO LÓGICA DO SABER TEATRAL


Adilson Florentino

17 T EATRO - F ó RUM: UMA PEDAG OG IA D A INT ERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS PO SSíVEIS


Antonia Pereira Bezerra

29 M ETO DO LO GI AS CONTEMPO RÂNEAS DO ENSINO DO T EAT RO - EM FOCO, A SALA 111 ,\ ;; i .

Arão Paranagua de Santana

37 D O ROTH Y H EATH COTE - MEDIAÇÃO E INTERVENÇÃO N A CO N STRUÇÃO


DA N ARRAT IVA TEA::rRAL EM G RU PO
Beatriz Cabral (Biange)

49 P EDAGO GI A DO JOGO TEATRAL: UMA PO ÉTICA DO EfÉMERO


Carmela Soares

61 PERFORJvl AN C E, TEATRO E ENS IN O : POÉTI CAS E POLÍTI CAS DA INTERDISCI PLINARIDi\D E


Eleonora Fabião

73 M ECANI SMO S DE Cm,lIClDA DE NO ENS INO DO TEATRO


Elza de Andrade

85 A POSIÇÃO DO ESPECTADO R: PERSPECT IVAS PEDAGÓG ICAS


Flavio D esgranges

95 I MPRO VISAÇ ÃO: DA ESPONTANEIDAD E ROMÂNT ICA AO "M OMENTO PRESEN'[ E"

Gilberto Id e

103 C ENO GRAFIA E IN DUMENTÁRIA NA ARTE- EDUCA ÇÃO


Gilson Motta

113 A RTS E D UCATI O N IN L ATIN A MÉRICA AND THE


CARIBBEAN M EETING OI' E XP ERTS

Ingrid D orm len Koudela

117 TEATRO CONTEM PO RÃNEO: O SENT IDO EM DEBAT E


José da Costa

133 O T EATRO N A TERCE IRA IDAD E


José Luiz Ribeiro

145 D A APRO PRIAÇÃO ESTÉTICA DAS AN OMALIAS


José Tonezzi
155 C RUZAN DO ESPAÇOS: O TEATRO NO H OSPITA L

Lu cia Helena de Freitas (Gyata)

165 ELEMENTOS DO TRA GICO N O EST U DO D O T EXT O TEATR.A..L


Luiz Humberto Martins Arantes

173 T EATRO E CO MUN IDA DE

Marcia Pompeo Nogueira

185 F ORMAR E FORM AR-SE EM TEATRO

Maria Beatriz Mendonça (Bya Braga)

193 P ESQU ISA N A LI CENCI AT URA EM ARTES CÊN IC AS

Maria Lucia Souza de Barros Pupo

201 T EATRO, JOGO E BRINCADEIRA: UMA PROPOSTA DE REE LAIIO RAÇAo DO CAVA LO- MARIN H O
EM PROCEDI :--I EN T O S PEDAGÓGI COS PARA O ATOR

Mariana Oliveira

209 C ARACTERIZAÇ AO TE ATRAL: UM A ARTE A SER D ES\'EI'\[):\ DA

Mona lHagalhães

221 J OGOS CO RPORAIS EM SA LA DE AULA


N ara Keiserm an

233 As OFIC IN AS DE TEA TRO E A PRÁTI CA DO ART IST:\ - DOCEN TE

Na rciso Telles

239 J O GO DRMIAT ICO SEGU NDO J EAN- P IERRE R YNC\F IZT

Renan Tavares

249 G ATO& RATOS: ATIV IDADE TEATRAL N A PRÉ- ESCO LA

Ricardo Otoni Vaz}apiassu

271 SO BRE A VOZ EM SUA FUN ÇAo PO ÉTI CA


Sara Lopes

283 O ENSIN O DO TEAT RO DE AN IMAÇA O

Va lmor Nini Beltrame

299 J OGO T EATRAL E C RI AÇAo LITERÁRI A


Vi/ma Campos dos Santos Leite

309 D OI S ECOS LONG ÍNQU OS DE TAMB O RES NA NO ITE


Wa/der Geruasio Vágu /ino de Souza

323 SOBRE OS AU TORES


r

APRESENTAÇÃO

De tempos em tempos surge a necessidade de nos embrenharmos no espesso


bosque das idéias e práticas teatrais a fim de clarificar o lugar onde estamos e de
vislumbrar o lugar para onde vamos. Hoje, esse trânsito pelo bosque, essa espécie
de passeio, constitui uma empreitada difícil em um labirinto cuja saída não é fácil de
ser encontrada. Isto porque as espécies se misturam, os caminhos se entrecruzam
e os pontos de referência se tornam obscuros. O mundo do teatro, das idéias e das
práticas, torna-se cada vez mais complexo e as classificações em eixos temáticos são
essencialmente controvertidas.
Somos conscientes, portanto, dos riscos que uma leitura organizada, sob o
domínio das classificações temáticas, poderia causar no enquadramento das ques-
róes postas pelo teatro. Ao invés disso, optamos por um desfile de textos e temas
que pode orientar o leitor na livre escolha de onde se inicia e termina este livro. O
eixo norteado r de nossa proposta para o leitor é contribuir com o debate sobre as
múltiplas possibilidades de entendimento das teorias e práticas teatrais que se têm
ampliado nos últimos tempos nos contextos nacional e internacional. Desafiamos
o leitor para a seguinte provocação: exercitar a crítica e a reconceptualização das
tendências e perspectivas que atravessam os textos e temas aqui reunidos.
Os fios condutores que conectam o conjunto da obra têm como espaço
de interseção a preocupação com o ensino de teatro e, mais diretamente, com
a formação do professor de teatro no Brasil. Portanto, diante da diversidade
temática que a produção do conhecimento teatral está submetida, atualmente,
cabe-nos como pesquisadores, professores e profissionais de teatro a tentativa
de elaborar um mapeamento, pelo menos provisório, das principais linhas de
pesquisa desenvolvidas pelos "atores acadêmicos" que atuam no espaço das uni-
versidades, investigando o fenômeno teatral.
N essa perspectiva, a racionalidade construída na organização dos temas e tex-
tos aqui problematizados é a do tipo estético-expressiva - no sentido weberiano - ,
fazendo emergir a dimensão polifônica, dialógica e plural no intercruzamento das
vozes que remetem ao leitor. O princípio e o final desse itinerário assumem um
sentido na medida em que desafiam, principalmente, o leitor em formação ao esta-
belecimento de uma profícua interlocução.

7
A reunião de vinte e nove textos pretende oferecer ao estudante de Teatro
e ao leitor de uma maneira geral a utilização de um caleidoscópio para o q1ll 1 " I'
fluem diferentes teorias e práticas que têm como foco de análise o teatro , j I , u.i.:
nuances e matizes. Todavia, a policromia que envolve a questão teatral não constrtui
a garantia de um brilho suave e harmonioso, mas a efusão de um brilho incandes-
cente a deixar na margem a solidão das cores monocromáticas. Oueremov r-ocar
que as tensões e contradições colocadas pela questão teatral emergem no conjunto
dos textos como um modo de situar o teatro como um campo de conhecimento
perspectivado pelas lutas e disputas paradigmáticas. E no leitor o efeito deve ser o
de exercitar a reflexividade e a criticidade, sem perder o entusiasmo e a paixão pelo
teatro.

Os organi71ilcirt·\

8
A PROBLEMATICIDADE EPISTEMOLÓGICA DO SABER TEATRAL

Adilson Florentino

As discussões analisadas neste artigo são frutos de alguns insights, de caráter


reflexivo, produzidos no cerne da minha pesquisa de doutoramento cujo eixo in-
vestigativo tenta problematizar as perspectivas paradigmáticas do ensino do teatro
a partir das condições históricas de produção do Teatro como um campo de conhe-
cimento, tencionado nas relações entre o saber científico e o saber escolar. Assim
sendo, o Teatro como um campo de conhecimento representa um terreno episte-
mologicamente conflitado, no qual diferentes teorias, tendências e práticas lutam
pelo modo como a realidade teatral deve ser produzida, reproduzida, significada e,
sobretudo, interpretada.
O objetivo aqui elaborado é o de refletir sobre o problema do conhecimen-
to teatral a partir do pressuposto de que o conhecimento do teatro não tem sido
examinado sempre do mesmo modo, pois existem diferentes padrões de análise
que orientam o modo de compreensão dos estudos investigativos sobre o teatro.
Defende-se o pressuposto de que o problema não se situa na diversidade de paradig-
mas, mas na possibilidade de estabelecer critérios homogêneos de análise a respeito
do conhecimento teatral.
Falar do conhecimento do teatro é o mesmo que interrogar-se acerca do teatro
como objeto de conhecimento, o que equivale a formular uma dupla indagação:

a) O que é necessário conhecer para entender e dominar o campo do teatro


ou quais são os componentes constituidores do fenômeno teatral que têm de
ser dominados para entender este fenômeno?
b) Como se dá o conhecimento desse campo ou que garantias de credibilidade
se pode obter acerca do campo do teatro?

O objetivo, quando se analisa o conhecimento do teatro, é o de estabelecer


um eixo de interpretação que nos permita, com critério lógico, compreender a dis-
tinta consideração que o conhecimento do teatro possui. Para isso, é preciso tentar
descrever as propriedades que permitem caracterizar os diferentes momentos de
constituição do teatro como objeto de conhecimento. O objetivo não é a produtivi-

9
dade existente em cada um desses momentos; o que preocupa não é a quantidade' de'
investigações realizadas, mas, sobretudo, saber como é considerado o teatro (()IIl()

objeto de conhecimento em diferentes investigações.


O interesse deve recair mais sobre as análises dos pressupostos que IH) J I II

tem entender, de certa perspectiva, o teatro como objeto de conhecimento. 1\ rc·


cundidade da hipótese que aqui está sendo colocada aponta para os conccit ox ('
precisões terminológicas que são, sucessivamente, estabelecidas. O que inlcr(";\:l,
especificamente, é o entendimento da própria transformação do teatro como objeto
de conhecimento e sua progressiva inserção no contexto estudado. Interessa saber,
portanto, quais são as propriedades que definem, em diversos momentos, o 1<:11 r, ;
como objeto de conhecimento e como se dá a justificação de que determinada 1)1

vestigação é a que se deve proceder para a análise do objeto em questão.


Esse tipo de questão recebe a denominação, segundo Khun' de paradigma
investigação. No trabalho de Khun acerca da estrutura das revoluções cicnt i i .1 I

.possível detectar dezenas de usos diferenciados do termo paradigma. Os paradig-


mas podem ser entendidos como marcos de interpretação ou modos de pensar acer-
ca de algo; em si mesmos, eles não constituem teorias, uma vez que o pesquisador se
compromete ou assume um único marco ou modo específico, o que pode conduzir
ao desenvolvimento de teorias.
A preocupação básica desta reflexão é a de estabelecer o marco de interpreta-
ção que permita compreender a distinta condição de possibilidade do conhecimento
teatral. Nesse sentido, o ponto de partida está centrado na convicção de que não
tem existido a mesma consideração para a função teatral, porque o conhecimento
do teatro não possui sempre a mesma significação, entendida como a capae Jll.lde
que esse conhecimento possui de responder aos problemas das práticas teatrais.
Assim sendo, os critérios estabelecidos para elaborar o marco de interpreta-
ção permitem, segundo o tipo de respostas, configurar uma concepção especíiic.i de
teatro e, portanto, um modo peculiar de relacionar a teoria e a prática.
Em analogia com a historicidade de outros saberes, as práticas investigativ.i- .lo
teatro se distinguem em vários campos e tentam responder às seguintes questões:

1) a consideração do teatro como objeto de conhecimento;


2) o tipo de conhecimento a ser obtido pelo saber teatral;
3) o modo de resolver o ato de intervenção;
4) a possibilidade ou não do estudo "científico", das ciências do espetáculo ou
da teatrologia.

Cada uma dessas questões cna um padrão de justificativa da ação teatral e


estabelece os limites e as potencialidades de resolução da problemática do conheci-
mento teatral. Cada uma dessas questões elabora um tipo de discurso em que a rela-
ção teoria-prática se dá de um modo diferente. O discurso teatral, a função teatral e
a prática teatral se relacionam de modos diferentes em cada uma das questões aci ma
porque as respostas produzem distintas visões sobre o teatro, ou seja, produzem
diferentes concepções de teatro.

I KHUN, Thomas. La estructura de las revoluciones cientificas. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura

Econômica, 1995. 320 p.

10 ADILSON hOfU'.NTINO
As concepçõ es podem funci onar como paradigmas, isto é, como mar co s in -
terpretativos assumido s pelo pesquisador e podem produ zir teoria s so h re ,1 r ll !l U ! )
teatral, o discurso e a prática teatrais. Com o pre ssupostos de in vcst i ~ 'A " I () '; ' ll l l
cepções funcionam co m o uma antecipação daquilo que se deseja cons cguir l ' OI i " I I I , \
a observação do fen õmeno teatral na perspectiva daquilo qu e adquire um scnt ;dl) no
interior de uma específica perspectiva.
Um ponto cur ios o dessa que stão é que a perspectiva teatral, mu itas \' ('Zf'S ,
n ão se encontra explicitada no exercício da inv estigação e, contraditoriamcnrr-, de la
depende o sen tido do que é afirmado e ne gado sobre o t eatro. Talvez, por isso, cada
concepção redefine o campo de conhecimento do teatro, produz no vo s \ ' . d ~ )) , ' S e
reformula os já exist entes.
Cada concepção sobre o teatro deve exi gir rigor ló gico e significação, () rigor
lógico se define com o uma das características defendidas com exclusividade ( '111 111iJ , ]
dada concepção e, ao mesmo tempo, determina um modo distint o (k L11 1, l i ' ! , I . :
teatro como objeto d e conhecimento. Por sua vez, a sign ificação se define co mo
a cap acidade qu e tem a representação do co nhecim ento teatral, resultante llc uma
ló gica, de organiz ar hi storicamente a produ ção desse co n hecimento. A siglJiJ iL',lção
possibil ita identificar a tendência do conh ecim ento teatral d e um a determ inada pes-
quisa, de um livro so b re o teatro o u até m esmo de uma prática teatral con creta. O
fato de serem incluídos em uma tendência pressupõe a defesa de uma determ i nada
concepção de teatro co mo objeto de conhecimento.
C ada tendên cia tem um mar co referen cial que permite uma respo sta específica
às qu estões de análise das investigações teatrais. Precisam ente por isso, plll!C <; 'ii' t'r
que tudo o que afeta o tema de estu d o (do teatro), desde qu e não contr.id ip..; , i l-Lv,
resp ostas, cabe no território de uma dada tendência. Por est a razão, as tend ências n ào
se definem nem por um método nem por um a co ncepção de ciência, !l l.' : ~ ; ' ' '1'
filo sofia de vida. N un13 tendência, cabem todos esse s eleme nt os , des.l. ', I' . i.u .
compatíveis com o marco refer enci al estabelecido. O que há de variar em C.1J .1 .u u Jus
elemen to s acima descritos são as finalidades qu e defendem so b re o te.it r, "
O teatro é um cam po ampl o e profundo para investi gar ; sua riq w / 1 -. "il ' i

ções, te oria s, práticas e processos form am parte de um material qu e pl'r n' I!' ' ;", la'
di stintas invest igaçõ es. Junto de sse material enco ntramos a co m plexidad e ( 1 1)': ff'..
nômenos teatrais qu e só podem ser capt ados mediante investi gaçõ es 1"1,' ." " 1

algumas persp ecti vas e, desse modo, o es tudo heurísti co do teatro P OS:"IL11i l.l u n ia
ampla variedade de modos de inve stigação.
Não existe acordo na classificação dos métodos e variações de C:H1 1 )l - , in ';t
investi gação no campo teatral. O método pode ser colocad o a serviço de \ ariad os l i-
pos de ob jetivos, no s ma is diferentes ramos do saber e, no se u interior, co :u '.!;'; c rsas
persp ecti vas e caracte rísticas. As diferen ças ent re os m ét odo s de invest .i ga çâo não
radi cam no fato de qu e podem ser co nc ebidos co mo "ias alt ernativas para alcan çar o
me sm o fim ou re sp onder de man eir a diferente a me sma pergunta o u quest ão . ( ) qu e
distin gu e radi calment e os mét odos entre si nã o são o s procediment os q\ll: apl icam .
mas sim , fundam entalmente, o tip o de quest ões que pretendem ou p O J l' !11 re« .lvcr.
assim como pres supostos e postulados bá sico s que determinam e es\',. ific,illl os
critérios de evidência e a interpret ação das resp ostas obtidas.
A diversidade m etodoló gica da in vestigação teatral re sponde à existê ncia de

:1 PRO/iLLl /,;[JCJD.W[ [ P/S7 "Ll/O LO G/C,; /)0 H/iLk lLHR.I L 11


vários paradigmas que, por sua vez , estão enraizados em algumas tradi ções discipli-
nares, tais como a Semiologia. O espetáculo teatral está repleto de significação e se
co n st itu i numa con stelação de signos complexos". Na perspectiva da Serni ótica, De
Marinis assinala que esta área de estudos relaci ona-se à dimensão central do objeto
teórico do teatro que se revela tipicamente co mo sendo um fen ômeno de significa-
ção e de comunicação. No cerne desse debate, ma s a partir de uma o utra vertente ,
merece consideração a an álise que Ubersfeld empreende em relação à problernatiza-
ção da questão do signo no teatro, argumentando que a relação texto-representação
se organiza partindo da hipótese que afirma que o fato teatral se con stitui como
relação entre dois conjuntos de signos: verbais ou não verbais }.
No entanto, é De Marinis que defende o que ele denomina de teatrologia ou
ciências do teatro que se reveste de um caráter transdisciplinar, a fim de permitir es-
tudar o complexo mundo do teatro. A complexidade dos fenômenos teatrais exige
a operação de enfoques plurimetodológicos, co nfo rme afirma Pavis , pois somente
através de enfoques flexí veis pode ser possível captar e aprofundar a efetivação do
objeto-espetáculo rumo ao objeto-teatro".
Assim sendo, há possibilidade de se pen sar na investigação teatral entenden-
do-a dentro do sistema aberto que as ciências do teatro formam . O teatro é um
cam po de estudos que contém fenômen os , pr oblemas e processos qu e constituem
em si me smos o mat erial para reali zar investi gaçõe s em diferentes per spectivas.
Todavia, o teatro nã o é uma ciênci a no se n tido daquelas ciên cias discutidas
por Fe yerabend, Khun, Lakatos e Popper. Para Ubersfeld, o teatro é uma arte do pa-
radoxo, cujos fios paradoxais se entrelaçam na rela ção entre texto e representação,
a primeira contradição in scrita na arte do teatro".
Nas considerações do debate em torno da arte, foi seguram ente Adorno"
quem confrontou a análise da natureza dela como conhecimento, apontando o con-
teúdo de verdade qu e caracteriza e fundam enta, em seu aspecto mais essen cial, toda
a obra de arte. A partir da perspectiva que a sua teoria estética propõe, a caracterís-
tica da arte contemp orânea não pode ser senão a impossibilidade de transparência.
De fato, o carát er enigmá tico da obra de arte, so b o viés lingüístico , consiste naquilo
que as obras dizem e não no que ocultam. A arte, como forma de ocultamente, atua
através de seu apar ente contrário: o jogo da hipervisibilidade, da hiperdernonstra-
ção . Es se procedimento co nsiste, segundo o próprio Adorno, qu e aq uilo que a obra
de arte tenta ocultar se manifesta, porque ao se manifestar se oculta. Daí que em
todos os seus momento s mais ambiciosos a atuação artística se situ a mediante um
paradoxo desvelam ento das convenções e recurso s utilizados.
Desse ponto de vista, o conhecim ento que é arte não é discursivo , pois sua

2 GUINSBURG, Jaco; C O ELH O NETO, J. Teixeira; C ARDO SO, Ren i C haves. Semiologia
do teatro , 2. ed. São Paulo: Perspecti va, 2003. 380 p.
.i MARINIS, Marco. C omp rem/a el teatro: cl lineam icnt os de una nueva teatr olo gía. Buenos Aire s:

Galerna, 1997. 287 p.; UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006 . 202 p.
J MARINIS, 1997; PAVrS, Patrice. A análise dos espetácu los. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
323 p.
; FEYERABEND, Paul. C on tra o método. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 1997 .364 p.; KHUN,
1995; LAKATOS, Imr e. Historia de las cten cias )' 5/(S reconstruciones racionales, 2. ed. Madrid:
Teenos, 1987. 188 p.; POPPER, Karl. A lógica da pesqu isa científica. 2. ed. São Paulo : Cultrix,
1980.256 p.; UBERSFELD, 200 6.
(, ADORNO, Th eod or. Tem-ia estéti ca. 2. ed. Lisb oa: Edições 70, 2006. 294 p.

12 A Dl lSO rJ h O Kf rJTI NO
verdade não é reflexa de um objeto. Impõe- se ao artista mai s que a exposição de
resultados ou conclusões ao expor o próprio caráter problemático do p en sar l' , ]. ,
conhecer. A verdade da obra de arte não pode ser outra coisa do que a co m unic.i.j.. .
do incomunicável, a manifestação explosiva da consciência oprimida. Para Adorno,
as obras de arte são evidências do inevidente, a compreensão do incompreensível.
pois em nenhum momento cabe à tarefa da filo sofia da art e elucidar o inc ompree n -
sível, senão tratar de ente nd e r a própria incompreensibilidade.
A arte seria capaz, segundo Kanr' de servir de ponte de mediação entre dois eixos
contrapostos: a natureza e a liberdade, entre as funções intelectuais e a atividade moral,
a fim de garant ir uma unidade harmônica no ser humano. A espontaneidade da razão l'
levada ao terreno da sens ibilidade, cobrindo o imenso abismo existente entre ambas.
Schiller", o fundador da educação estética como disciplina, considerava-a como
o fundamento principal da educação humana, como a essência da própria educação :10
entendê-la como media ção entre racionalidade e sensib ilidade. Para Schiller, a arte con x .
titui uma síntese de natureza e liberdade, realid ade e identidade, ent re matéria e forma.
No entanto, Hab ermas? propõe que a experiência est ética não deve ser capa z
de ren ovar as interpretações da s necessidades à luz do que percebem o s do mund o,
pois d everá ser capa z, também, de intervir na articulação co gnitiva da s experiências
norma tivas, transformando o m odo como os discursos est ético, prático-moral e
factual se referem un s aos outros. Habermas optou em co nsiderar a obra de art e
como uma possível função de mediação, sustentando que as experiências estéticas,
as int erpretações co gn iti vas e as re gula çõe s normativas não são independentes entre
si. Isso significa pr essupor qu e os discurso s es té t ico, prático-moral e Iactual não es-
tão se pa rados entre si por um abi smo , mas es tão relaci on ad os de múltiplas forma s.
Toda essa di scu ssão de caráte r filo sófico es tá aqui apresentada para ju stificar
;1. importân cia e o aprofundamento que a qu estão art íst ica e, mais esp ecificament e,

a qu es tão teatral evo cam no que co n cerne à problemáti ca do conhecim ento. O qu e


nos int er essa neste trabalho é capturar os n ex o s existentes ent re teatro e ciência, a
fim de localizar um a possível epi stemologia do saber teatral. O pres suposto fun -
dam entaI por nó s defendido é que a metodol o gia de in vesti gação teatral pos sui um
vínculo referencial co m o conhecimento científico.
A te oria geral do teatro parte de uma t eoria do te xto dramático que desemb o-
ca na teoria do espaço cên ico sob as perspectivas de diferentes propostas interdi sci-
plinares. É exatame nte essa dis ciplina do conhecimento científico-artístico que D e
Marini s denomina teatrologia. É nesse carát er epistemol ógico que a vinculação da
ciência com a arte t em seus laços mais estreitos.
A ssumir o estud o do teatro o u empreender uma investigação sobre o teatro
é correr o risco de se deparar com a segu in te questão: com o ciência, o est udo do
teatro não é totalm ente o b jet ivo , poi s o seu cará t er é expli cit amente su b jet ivo e tem
uma amplíssima vantage m de se r uma ciênc ia d o espírito humano, me sm o qu e tal
afirmati va pos sa correr o risc o d e sua radicalidad e na m edida em qu e se tece a inda-
gação de qual ciên cia nã o é humana.

7 KANl Immanuel. Cbseroacion es acerca del sentu n iento de lo bello y de lo sublim e. 2. cd. Madrid:

Alianza, 1990. 304 p.


S SCHILLER, Friedrich . A educação estética do homem . São Paul o: Ilum inuras, 1990. 164 p.

~ HAB ERM AS, Jürgcn . O di scu rso fi losófico da mo dern idade, São Paulo: M. Fontes, 2002. 540 p.

A I'NO /i LL IJA Fl C II H /! C U /s TL IJOL( )(;JC.4 no SA RCR I H TR.4L 13


Para fundam entar esse desidera to , part o da premi ssa de qu e o te atro é uma
manifestação cult ura l e art íst ica, de caráte r cênico e que po ss ui espec ificida de s pró-
prias circunsc ritas nos plan os sintáti co , semânt ico e pragm áti co. O estu do do teat ro
co nsti tui um âmbito de realidad e ins ta lado numa esfe ra de co nhecimento, co nte n do
um obj eto próprio e uma cientificidade específica qu e tentam definir um estatuto
epis te mológ ico para a con stru ção de um discu rso teóri co e disciplin ar que desen-
volve o seu edifíc io acadê mico e ins t ituc io nal de m od o a se r capaz de pr o blematizar,
fo rmaliza r e sistematizar aquilo que denominamos tea tro .
É neste momento qu e a vin culação com a ciên cia se torna mais evidente, pois
a investi gação cria um amplo esp ectro de possibilidad es para o nosso ob jeto de es-
tudo que, necessari amente, requer um procedimento analít ico e interpret ati vo . Tal
pr oc ed imento exige, por sua vez , como crit ério pa ra a p rodução do conhecim ento,
o uso da heurística, da epist emolo gia e da hermenêu tica.
Sob re tudo nas últimas décadas, o campo da investi gação teatral t em cresc ido
mui to no Brasil. H ou ve diver sificação das linh as de pesqui sa em tea tro, co mo tam-
bé m hou ve a ampliação dos paradigmas e da adoção de abo rdagens metodoló gica s
que utili zam as técn icas de análise de dados , muito mais complexas e so fist icadas ;
para isso, recom endo a leitu ra do livro Metodologias de pesquisa em motes cênicas,
o rganizado por Carreira e outros l 0.
N esse se ntido, devem os aglutinar esforço s em rela ção à pr odução do co n he-
cimento em teatro apo nt ando uma alt ernativa de ação urgent e e necessári a: a forma-
ção de pr ofessores-p esqui sadores de t eatro. Ente nde mos que o professor-pesq ui-
sado r de teatro deve estar ate nto ao co ntexto co ntem porâneo, observar os limites
imposto s p elas metodolo gias adotadas, produ zir n ovas fo rmas de aprofundar o s
co nh ecimentos sem sujeitar-se a esque mas pr econ cebidos; t udo isso com o o bjet ivo
de me lhorar a teori a e a pr ática tea trais e de inc idir na realidad e histó rico -social.
Po r fim, gostaríamo s de enfa t izar que a noção do sabe r-fazer artístico co m -
porta, em si, uma segunda prem issa fundaci onal para este trabalho refl exiv o: a rei--
vin dicação de uma episte mologia própria para a investi gação levada a cabo po r pes-
quisadores, p ro fess ores e art istas de tea tro. Muito mais que propor um rótulo de
desig nação histori cist a, in te ressa ques tio nar ati vamen te o território do tea tro como
lugar privile giado de experimentação e interrogação que se alar ga para âm bitos nã o
estritamente rese rvados à pesqui sa es té tica. Trata- se, portan to, de um a pro pos ta de
abo rdage m de am plitu de alargada, uma opção pel a inter/tran sdi sciplinaridade que,
ao ser capaz de gerar esta espécie de epist emo log ia para o lu gar da inter ro gação tea-
tr al, terá a capacidade de refletir - nã o por inclusão, mas por alar gamento - o ut ras
discipl inas, com part icular ên fase naqu elas qu e qu estio nam diret amente o envolvi-
mento das realid ades com que o teatro se co ntext ua liza para existi r.

ic CA RREIRA , And ré e t a]. (O rg.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de J an eir o: 7
Letras , 2006. 159 p.

14 AD IL ; ON h O KEN T IN O
r
!

REFERÊNCIAS

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A I'R()8LDi.HIC/[l \P[ EP/.IILW)L ÓG/ U DO 5.4J:[R !L4FR4L 15


TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA
INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Antonia Pereira Br. , ,..

Em julho de 2004 , no âmbito d o P ro grama Instituci onal d e Bol sas d e I tu


ciaç ão C ientífica, Pibic/CNPQ , ficou e m ca rt az na Sala 5 d a Escola d e TCJ lI i
Universidade Federal da Bahia, UFB A , o es pe tác ulo teatral Um dia na uid., .l.
enfa meira ali o porquê dos animais domésticos?, t exto d e Arm and Ga n i (F ran.:
19 70 - tradu ção no ssa). Este espetáculo co nsti tu ía o re sultado práti co do pl ( ' i ' ,
pesquisa intitulado O papel do espectador-ator, da pessoa e da personagem nus, "" .
de Augusto Boal e A rmand Catti.
A metodol o gia da encenação co ns istia na elaboração de um espet ácul:
tro-I órum, técni ca em blem át ica do Tea tro elo O p rim id o, an coran do- se, d1.1 ! ;
camente, nas peças didáticas d o Pequeno manu al de guerrilha urbana', pr oj ci .
co-pedagógico d e Armand Gani, o qual co m port a, entre outras, a peça SUl : .

Nosso interesse prin cipal concentrou-se n o exa me da inserção/parti cip ação (j,

tador no fen ômen o da representação te atral, interrogando o pape l! desernpcn!», . I


espectador-ator; dessa pessoa-personagem n o es pe tác ulo. Essa pe squ isa co m p rec n.i. "
priori, trê s etapas es t ru turadas em torno d e uma problemática qu e co nside ro ».
• a rela çã o ao engajam ent o polític o ;
• a rela çã o pedagógica: "educaçã o e lib eração elo espectador-pessoa";
• e, finalmente , o s questionam en to s so b re as preocupações est ét ic.
de ação, improvisaçã o e perjeição artística são compatívei s? Toda palavra ;{," .
porque aut êntica e portadora de uma r eivindicação legítima, m er ece ser CIlL" ~> : : I.: I
Foi ne sta perspecti va que escolh emo s in te rr ogar, no c rivo da atu alida de . 1.1 1; 1 1
técnica e um tex to teatral oriundo s d e po ética s historicam ente datad as: O 'I eat ro-
Fórum e O p equ en o manual de gue rrilha urbana. Antes de e xp or detalhad an li " ·
bases ele n ossa hermenêutica e nossa problemática, convém ef etuarmo s uma bn>' "
apresentação dos autores e seus resp ectivo s projetos.

I Após os aco nt ecime n tos de maio de 1968, in spirand o-se em Che Gu evara, Ga n i puh li! 1 lê

Petit manuel de gu érilla urbain e.

I;
Armand Gatti e Um dia na vida de uma enfermeira

Para Armand Cattr', diretor de teatro, o mais importante é a relação ao es-


petáculo e não o espetáculo em si: a obra só passa a ter sentido na medida em que
exerce uma ação. Gatti quer agitar o público, "levar aos espíritos um certo núme-
ro de elementos susceptíveis de fomentar atitudes'". Seguindo essa lógica, após os
eventos de maio de 68 e a exemplo de Che Guevara, Gani publica em 1969 o Peque-
no manual de guerrilha urbana" composto de uma série de mini-peças, as quais com-
preendem um número reduzido de papéis (de um a sete), não necessitando nem do
lugar teatral convencional nem de orçamento importante, sendo, por conseguinte,
adaptáveis e transportáveis.
Assim, em 1970, a peça intitulada La journée d'une Injirmiêre ou les Ani-
maux Domestiques (A jornada de uma enfermeira ou o porquê dos animais do-
mésticos), é representada em "Ioyers", centros para jovens e em hospitais. Uma
única atriz e uma equipe de apoio bastante reduzida são suficientes para a rea-
lização desse espetáculo que conta com a participação dos militantes do meio
hospitalar, disseminados na platéia, durante cada sessão. Gatti define e resume
o objetivo e a essência do espetáculo e da protagonista nestes termos: "para que
Louise junte-se ao combate de seus camaradas, é necessário que a estrutura da
peça tenha um «defeito», um esboço sabiamente sedimentado, aberto às ima-
gens a serem recebidas e aceitas, com o objetivo de exorcizar a vida (sua vida)
profunda que ela castrou".

Augusto Boal

Augusto Boal, artista, militante ativo, presidente dos Centros de Teatro do


Oprimido - CTO do Rio de Janeiro e Paris, pode variar seu projeto em função
dos lugares, das circunstâncias, das pessoas e suas necessidades, mas preserva in-
tactos os objetivos essenciais de sua poética: transformar o espectador, serpassivo c
depositário, em ator, em protagonista da ação dramática; nunca se contentar em refle-
tir sobre o passado, mas em preparar o futuro 5. Na origem e considerando o contex-
to latino-americano, a Poética do oprimido investe no combate à dupla opressão
(individual e coletiva) exercida no teatro e na sociedade: liberando o espectador da
sua condição de espectador, ele poderá se libertar de outras opressões, acredita Boal.
Desta premissa, nasce o conceito boaliano de espect-ator. A trajetória de Boal é
desenhada pouco a pouco e obedece a uma lógica de criação teatral que se recusa
a conceber a arte como isolada da vida. Numa atmosfera de experimentação e
controvérsias, Boal cria gradativamente novas técnicas: Dramaturgia Simultânea,

2 Sobre a trajetória de Gatti e as peças do Pequeno Manual, remetemos o leitor ao artigo de


nossa autoria, intitulado Annand Catti: informando e formando espectadores-atores. BEZERRA,
Antonia Pereira. Armand Gatti: informando e formando espectadores-atores. Sala Preta: Revis-
ta do Departamento de Artes Cênicas, São Paulo, n. 2, p. 293-299, 2002.
3 GOZLAN, Gerard; PAYS, Jean-Louis. Catti aujourd'bui. Paris: Seuil, 1970. p. 166.

4 O título foi voluntariamente escolhido em resposta à acusação do Comissário de polícia Sr.


Grimaud que, no dia seguinte às manifestações do 10 de maio de 68, declarou: Nós tivemos quc
lidar com verdadeiros especialistas da gucrrilha urbana (apud GONZLAN; PAYS, 1970, p. 252).
5 BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 25.

18 ANTONlA PERLlM BEZERRA


r
Teatro I nv isív el e Teatro-F orum ': C onhecida co mo a mais co m p let a e es petacular
das téc nicas do arsen al, a fórmula/fórum , aliás, deb at e teatral, tran sf ormou_se no
stan da rte do Teatro do o prim ido",

o Teatro-Fórum
Um espe tác ulo de Teatro-Fórum se d ecompõe em três partes: um aqueci-
men to para favor ecer o contato e aproximação de atores e espectadores pr esentes,
seguido da repre sentação da peça den ominada antim odelo e, finalm ente, do fórum
propriamente dito . Pr eliminarmen te à montagem do espetáculo, a troupe deve efe-
tuar u m a pesqu isa de ca m po (caso a opressão se ja exterior aos membro s do grupo ),
ou então ela organiza um estágio de sensib ilização com o grupo implicad o na opres-
são debatida. Após a representação do antim odelo, o Curinga' expõe brevemente
os m ecani smos das ações/ intervençõ es que se seguirão. Passando rapidamente (b
te ori a à pr át ica, ele co nvi da os espectad o res a " invad irem" a cena para se expressar
co m o corpo (assim ilar algumas posturas, co ns t ru ir imagen s a partir d e outras) ,
ma s também para tomar co nsciência da sua profunda mecanização . Est es exercíci os
sim ples dist end em a at mosfe ra e un em o públi co presente. A esse ritu al seg ue-se
a representação do Antimodelo , peça escrita so b um tema úni co, a opressão. Após
a presentaçdo, a troupe propõe-se a reapresentar a peça. Por ém, desta vez, quando
um esp ectador con sid er ar que um dos persona gens comete um erro, favorecendo a
o pressão, ele pod e gritar Stop!, entrar em cen a para subs titu ir a personagem op rimida
e os o ut ros atores irão im provisar co m ele a so lução propost a. Mas, o jogo não é tão
sim ples! Co mo na vida real, se a solução do espectador não é v iáv el, ele perde e é
d evolvid o à plat éia pelo o rg aniz ado r do jo go, o Curinga.

Nossa experiência

Em nossa pesqu isa, para viabilizar o jogo ent re atores e espectadores, foi necessá-
rio invert er um pouco a orde m dos fato s. Tend o em vista que a base do nosso anttmo de-
lo era o texto Um dia na v ida de uma enjen neira, primeirament e fizemo s a presentaçdo
do espetáculo para, so me nte em seguida, aqu ecermos o público pelo viés da técnica do
teat ro-imagem. Em out ras palavras, apenas no final da prim eira presentaçâo, construía-
mos três imagens, que captu ravam e retratavam os momentos mais cruciais da opressão
debatida e exibíamos ao espe ctador. Essas imagen s eram a única ponte ent re a sala e a
cena, o único viés ent re a ficção e o jogo, o motor da entrada do espectador em cena.
O espe ct ador pod eria, se quisesse e quando quisesse, assumir uma ou todas as imagen s,
usand o da palavra ou apenas de gestos, e propor um a solução à opressão de Louise, a
en ferm eira prot agon ista'}.

(, Para saber mais sobre o Teat ro do O primido ver nosso livro Le Tb éâtre de I'Opprimé et la
notion du spectateur-acteur ( G cn êse personne, p ersonllage, personnalité], BEZ ER RA, Anrania Pe-
reira . Le tbéâtre de l 'opprim é et la notion du spectateur-acteur (C enêsc personn e, pers onn age,
personn alité). Lille: AN RT, Pre sses U nivcrsitaires de Lille, 2002. 245 p.
; O Teat ro-Fórum nasce na periferia de Lima, Peru, em 1975, mas evolui na Europa.
x In spirado nas técni cas brecht ianas, este personagem aparece em Arena conta Tiradentes (Tea-
tr o Arena de São Pau lo, 1968) . Numa sessão de Teat ro -Fórum, o Curinga desem penh a o pap el
de med iador do jogo, exege ta e tem um a função m ai êut ica , pedagógica.
9 Para se ter um a idéia mais con cret a e global dos disp ositivos dramatúr gicos e técni cas de jo go

Teatro -ján on: uma pe dagogia da illtePí.,.·enpio e outros dii[(}gos possh'cis 19


N o toca nte à dram aturgi a, em face das caracte r ís t ica s emin entem ent e ép i-
cas do t exto de G atti, tivemos qu e efetuar uma série de m odificações para to r n á-
lo mai s d ra m át ico e ad aptável à t écnica do Teatro- Fórum . La]ournée du n : h l '
[irmi êre, por exe mplo, era um m on ólo go qu e comp ortava ap en as a prot ago ni sta ,
Loui se, e no qu al acr esce ntamos mai s d oi s antago ni st as, conferin do à rra mi
m ais sus pe nse e ação. E m o u t ras palavras, fom o s alé m de um a sim p les adap t.l'
ção e reescrevemos a peça, pois para conferir uma dimensão mais dial ética ao
co nflito d e Loui se, centrado na narração o b jet iva e crítica, ins erim os n a trama
de G atti, mom ento s de inte ns a su b jetivação e obje t ivação , alternando a so lidão
de Loui se co m a invasão do s antago n istas, seus o p r esso res qu e irrompi am no
se u es paço, nas figuras da chefe do hospital (Sra . Kopalewski ) e da co lega d o
sin dicato (N oune).
Qu anto ao resultado final , é evid ente qu e em um mês , e mais al gum as
ap rese n tações, não en cont ram o s resp ost as para todas as quest õe s levan tad .i - ,
qu e muitas das hipóteses avançadas n ecessitam , ain da, d e um co ntato m ais lon-
go e int en so co m o públi co . N ão o bs ta nte, n o qu e co n cerne à participação d o
es pecta do r, al go nos int erpelou profun dament e: o espetáculo m ontado d entro
de uma es t ét ica realista-naturali st a (no que diz respeito à interpret ação d as at ri-
zes), co m uma abo rdagem é p ica para a narrati va, os cená rios e demais acessó rios,
intimidava os espectado res. A centuando delib er ad am ente o símb ol o, a fo rça da
co nve nção teat ral, evide nc ian do as fr ont eir as qu e se pa ra m o palc o da pl at éia e
se m prepararm os previament e o es pec ta do r par a sua interven ção teatral, n os
preocup ávamos, essencialm e nt e, em su scitar as interven ções sem ab rir m ão de
uma técni ca teatral ela b o rada, aliada a um a co nsc iê nc ia política clara , a fim de
ev itar a m anipul ação e o sac r ifício d o ri go r es tético em detrim ent o da mil itân cia
e d o im ediati sm o qu e toda e qu alqu er encenação so b re o pressão imp õ e. Ess e
fo i um gran de desa fio, um a di m en são pensa da ao lon go de to da a pes q u isa e em
to das as ap resentaçõ es.
Teoricam ent e, constata mos que o Teat ro do O prim ido - a técni ca d o Teatro-
Fóru m em particular - aliado à dramaturgia de Ga tt i, precisam en te às p eças do
Pequeno manual, amplia a problem áti ca do esp ectad or e sua impli cação n o jo go
teatral. A mbos os proj eto s discu tem a d ificuld ad e de se r, ao mesm o te m po, pessoa
e personagem, de ocupar, sim u ltaneam ente, um esp aço de vida e ficção interrogan-
do as poéti cas teatrais, a nature za e os fin s do jogo teatral. Entre tanto, noite após
noite, na p ráti ca, durant e a co ns t rução das imagen s e diante de um lon go e pontu al
silênc io, co mo se nin guém pudesse ou qu isesse intervir, até que um a m ão ti m ida-
ment e se elevasse e um a silh ueta sa ísse da penum bra da platéia e irro m pesse o palco
iluminad o; diante da avalanche de intervençõ es qu e se su cediam, vence n do es t e pri-
meiro m omento de pudor, não m ais nos co locávamos qu estões de o rdem es tética
o u pol ít ica, não mais pen sávam o s em o prim idos nem o pressores strictu sensu. Por
alguns ins tantes, impa ctados, di ant e do ete rno enca nto d o teat ro , per guntávam o-
nos, ape nas, co mo e o nde, ao longo da hist óri a, já estariam prefiguradas po éti cas nas
quais o "a to r soci al" desnuda o "ator teatral" e aponta o problema de seus des tinos
co muns . Rem ontando o fio da hi stória, em quan to s outros gêneros e form as tea-

aplicadas ao espetác ulo, ver nosso vídeo so bre ele qu e est á di sp onível n o acervo videográfico da
Escola de Teat ro /PPG AC da UF BA .

20 ANTO NI A PERUM B EZf. KKA


trai s os pe rsonage ns já simulara m algumas cri ses, aban do nando a cen a e in vadindo
a vida? Em o u tras palavras, para além do s ob jetivo s político s, terap êu tico s, o n de c
como, no tún el d o tempo, o Teatro- Fórum e sua an cestral e imanen te ped agogi a dJ
interven ção já se prefi guravam?

Outros diálogos possíveis ou a gênese do Teatro-Fórum

Quand o d e sua chegada à Europa, perguntaram a Boal se era possível aplicar


ali as técnicas co ncebidas e realizad as em re sp o sta - es té tica e política - à intolerável
repressão qu e se exercia na Améri ca Latina. Perplexo, ele hesit ou em di zer sim . Atu-
almen te, essa qu est ão não se co loc a mais. A prát ica re afirm a que essas têcnicas n ão
foram inv entadas por alguém, nem para um co nt inente es pecífico, co m o se m p re
proclam ou o seu autor: o Teatro do Oprimido sempre existiu.
Inúmeras são as trupes e ence na dores moderno s que, no ocidente, tentaram re-
enco nt rar e reafirmar os vestíg ios das origens, resga ta ndo a pedagogia da int ervenção
e do lúdico na representação. Se ado tarmos o ponto de vista do historiad or, nesse so -
brevôo desp ro vido de rigor cro nológ ico, poderíam o s di zer qu e o Teatro- Fórum e sua
pedagogia da inte rven ção já se prefiguravam a partir do m omento em qu e o homem
primitivo co meçou a "represent ar" se u med o, su as an gú sti as e suas obse ssões a fim
de exorcizá-los. Quand o evocamo s o fenôm en o da representação e su a "orige m ", o
que nos vem ao espíri to é, indubitavelmente, a image m do homem pré-hist órico acre-
ditando poder co nt ro lar, domar os animais recri and o- o s, representando- os, com sua
mão pen sant e 10. Rem et em o-n os, igua lme nte, às dan ças xamâ nicas, aos [eux da Idad e
Média - o s mistério s e milagres, os laudus - com suas incidên cias políti cas e socio lógi-
cas co nside ráve is. Certame nte, ta l viage m no temp o ultrap assa o alcance dest e traba-
IL1, mas não no s impede de sobrevoa r até a met ade d o séc ulo XVII', at é à Commedia
dcll'arte, por exem plo.

A Com media dell'arte

Esse gênero teatral fecundou do is séculos de civilização européia e mode lo u as


form as teat rais mais reconhe cidas co mo o teatro de Shakes peare ou de Moliere. Seu s
traços princ ipais - a improuisaçâo, os personagens fixos, a espontaneidade - privile giam
o ator e o texto e não a personagem . Assim , pela utili zação qu e se faz, neste gêne ro , da
espontaneidade a partir de cann ovaccios pre estabelecidos, ousamos aproximar o Tea-
tro-Fórum da Commedia dell'arte. C om efeit o, esta como aquele levant am e, de certa
maneira , simplificam o paradoxo do co mediante . Ma s, ao contrário do Teat ro-Fórum,
se a Comme dia dell'arte permite a ab -reaçdo", paralelamente ela não co nduz o esp ecta-
dor ao distanciam ento; se ela o fere ce ao públi co um espelho , não o au to riza, todavia, a

I [ C laud c L évi-Stra uss, Michel Lciris, Roger Bast ide c Sigm und F rcud , entre outro s, co nt ribuí-

ram para o esc larec iment o desta questão .


II Me sm o se o usa mo s infri ng ir a cro no lo gia da "h istó ria d o [e nórnc no da re pr ese n tação, em
geral, e da re p re sen taç ão teatral, em pa rt icular".
li Psican álise: descarga emocio nal m ais o u menos inten sa, em qu e o ind ivíduo revivc um aconte-

ciment o tr aumático qu e o libera da rep ress ão à qual estava sub me t ido e que pode se r espon t ânea
ou ma nif esta r-s e no cur so de certo s pr o cessos psicotcr ápico s, por ação deles. p SrC A NALIS E.
In: F ERREI RA , Auré lio Buarqu e de H olanda. No vo dicionário Aurélio de língua portuguesa . 2.
ed. rev. e amp l. Rio de Jan eiro : N ova fronteira, 1986. p. 13.
torna r-se o o utro - o per sona gem ati vo (o ator), mas apen as ele mesmo, a pessoa passiva
(o espec tador). A Commedia dell'arte se co ntent a em oferecer um rico e "b elo arsenal"
de máscaras, de espelhos e disfarces. Se quatro séculos mais tarde a representação se In l O•.
te nde o duplo da v ida, co mo desejou A rtaud em seu pr ojeto visionário, atu almen t e, 110

Teatro do Oprimido, ela pretende desfazer- se de todo um revestiment o anacrôn ico para
tornar-se a própria vida. Boal sustenta, com efeito, que o Teatro-F órum, em parI icu l.ir,
é um meio "muito mais rico qu e um a asse mbléia" onde acontece, freqüentement e, qu e
se digam coisas co mo se diriam mu itas o ut ras.

O teatro shakespcariano: Hamlet (v. 1600)

As rep rese n tações do A ntimodelo e se us as pectos p edagó gico s compor-


t am , igua lme n te, algu m as anal o gi as co m o t eat ro sha kes peariano. E m H amlet,
por exemp lo, é feita u m a mag is t ra l uti lização da ab-reacção, pelos jo go s \Ic r e-
flexos e de espelhos. O desejo d e "desaliena r-se " desencadeia não som ente uma
b usca pe la ve rda de, m as tamb ém p o r a lte rna t ivas de com portamento face à situ-
ação co nflituosa q ue se re prese nta. Se m qu er er reforça r o cl im a "fre udi an o " , qu e
m uitos críticos acre ditam discernir n as gra n des t ragéd ias shakespearianas, pen-
samos que Hamlet é ma is q ue " tea tro n o t eatro ". A exemplo de Sonho de uma
noite de verão (v. 1595 ), essa p eça recria um a atm o sfera at ravessada p ela a gulha
das pa ixões h u ma nas, po rt ado ra d e t odas as po ssi bilidad es de in t er pret a ção , de
esclarecimento e, até mesmo, d e (re) ut ilizações. Não é p o r acaso se cada época
so ube encontrar em H am let ref erên ci as a sua próp r ia história. A peça dent ro da
p eça po de ria ser lida co mo um Teatro- F ó rum o nde o "C ur inga H am lct " v ig ia c
dirige o jogo, so b os traço s de um es pectado r d iss im ula do na sa la, inquirindo,
"j ogando v erde para colher maduro" .
O personagem de H aml et ab orda a que stão da p rimazia d o p ape l, onde
a catarse d o espectado r reli ga- se a do ator. Mas, n ot em o s q ue a cata rse qu e se
opera aq ui, a da "gran de peça", di s t an cia- se da n o ção boaliana do t er m o para
aproximar-se, a prlori, d a conce pção aristotélica, pois, embora ne st a p eça uma
metalinguagem ten ha lu gar, alé m d e Claud ius, d a rain h a Genrud e e d e Ham-
le t , os ou tros es pectado res, ign orant es da "s ituação", p erm an ecem pas sivo s : ec o
desconcenan te com o Tea t ro - I nv isíve l que Boa l, atua lmente, hesita em pra ti car.
A lém di sso , o papel d e H aml et é u m pape l imposto. H am let aceita a sit u a ção
m es m o revoltand o- se co ntra ela . Tal q ua l os oprimidos, é constrangid o e [or çado
qu e desemp enha o se u pap el. Haml et bu sca lib erar-se d a opressão po rq ue el e é
o utro além da perso nagem, ele a ul trap assa. O Teatr o- F óru m não rei vindi c a esse
desenvolvimento do ind ivíd uo p el o viés d o personage m que se realiza na direção
q ue lh e é pró p ria ? R eaval iar-se n o Teatro- F ó rum sign ifica tornar-se a si m e smo,
co n fro n t ar-se à s ua id entidad e humana pro fund a pe la m edi ação do dra ma, da
opressão vivida e rep rese n ta da .
Essa peça dent ro da peça p o d eria ser um fór um onde H am let , o Curinga,
vigiaria as ve rdade iras ações d e se u t io, o rei fratricida, inca paz de sup ortar a
representação d e se u crime. Um f órum o n d e, graças ao t eat r o , p r ocu ra-se a ve r-
dade e d liberação. Se H aml et está di vidi do entre ser e não ser, os prota goni stas
do Antimodelo, esses "personage ns" com "pe rso nalidade s" diferentes, pod em

22 ANTüNIA PEREI I\.~ B EZ ERRA


- um a vez qu e a representação e diant e da s alte rn at ivas a s uas quest ões - d e-
cidir fugir, acom odar-s e ou lutar. Não é d epoi s da repres entação, pela voz d o
real e não pela vo z , tal vez enganadora, d e um fantasma , qu e Hamlet sa be ond e
se encontra a verdade? Por outro lado, é preciso admitir qu e e le cai numa n o va
armadilha; a partir daí, ele se impõe um outro papel: o d o ju sti ceiro, para qu em é
tard e demais para renunciar. Mas, toda p edago gia da int erven ção não pressup õ e
uma implicação?

Luigi Pirandello (1867 - 1936)

Sempre nes se espírito de busca por uma "prefiguração" do Teatro-Fórum e sua


pedagogia da intervenção, como não pensar em Luigi Pirandello, em seu teatro de m ás-
caras e reflexo s? Como não pensar nessa exploração das profundezas de identidades te-
lescopicament e examinada s e nesse questionamento não somente da no ção de barreira
ent re o palco e a platéia, mas também das no çõ es de realidade e ficção? Seispersonagens
a procura deum autor nos parece mo strar qu e o teatro é qu e é verdade e o travestimento,
nudez; qu e a máscar a, no sentido etim o lóg ico d o termo, é qu e é real. Pirandello nos
mostra qu e os verdad eiros vivos de sua peça são personagen s aparente mente irreais, qu e
qu estionam a identidade e a presença carnal dos chamados vivos. Entretanto, ao exami-
nar m ais de perto, esses personagens recusam o monopólio do s atores de carn e e sangue
qu e representam a pe ça de um certo Pirandello, num certo teatro, diante de um certo
público. Eles reivindi c~m , assim, o dir eito à existê ncia. Isso nos rem et e, de certa man ei-
ra, às disputas (esté t icas e políticas ) ent re oprimidos-artist as e atores pr ofission ais.
M oderam o s, p oi s, a co m paraç ão, uma vez qu e o t eatro d e Pirand ello, se n ão
abo rda a qu estão da " lo uc ura" diretament e, no mínimo , alu de co m fr eqü ên cia ao s
jo gos de es pe lhos d a lou cura. É pro vável qu e o dram a fa mi lia r de Pi rand ell o , a
"doe nç a" de sua mulh er Antonietta es te ja na o rige m d o lu gar at ribu ído à lou cura
e m s uas obras. O jo go constante en t re o real e a aparên cia impregn a suas peça s
d e uma dial ética cortante e patéti ca do ser e d o parecer. Isso é, particul arm ente ,
impactante em H enrique IV (repres en tada pela primeira vez em 1925 ) . Ressalte-
se, t amb ém , qu e a maior parte da s peças d e Pirandell o fo i co nceb ida pa ra ser
representada de m an eira co nvencio na l, mesmo se, às vezes, os ato res inva de m a
sa la e co nvi da m os es pec tado res a su b ir n o palco , a exe m p lo de Assim (Assado) ,
repres entada pela primeira vez em 1926 \3. Enfim, sua trajet ória d e h omem n ão
te stemunha de nenhuma rejeição à instituição teatral.
Em Seis personagens a procura de um autor, quando o Pai rea ge contra a into-
lerância do Diretor, o qual se recu sa a acreditar qu e está, realmente, di ante de p er-
so nagens, cujos dramas da vida ima ginária perman ecem ina cabad os, co nf issões em
ap ar ên cia pat éticas, mas , na verdade profundas, jorram:

13 N essa peça, um a trupe represe nta o dr am a verd ad eiro de um a atriz decadent e (La Mareno, a

qual se enco nt ra na sala). Indi gnada, ela ameaça entrar em cena, mas se u marid o a co ntém . N o
entreato , ela decide ir às cox ias invectivar a trupe e, particularmente, a atri z qu e repr esenta seu
papel. Isso lembra um F órum relat ado por Ba al, em }ogos para atores e não atores , oco rrido em
1980, em Grod ano (povoado da Sicília), o nde o pr efeito , to mado de có lera diante do ator qu e
represent a seu papel (é um opressor, se é pr eciso esclarece r) e, não se co ntendo, mais grita Sro p l,
entra em cena e rep resenta ele própri o.

Teatro-jôrum: uma pedagogia da interuençdo e outros diálogos possiveis 23


[...] o sen hor di z qu e nã o tem tempo a perd er co m lou co s e, n o entan to, n in gu ém
m elhor qu e o senho r pode saber que a nature za se serve da imagin ação hum ana p:ll :\
co nt inuar nu m plano mai s elevado seu t rabalh o d e criação" .

Apesar da sin ceridade de sses propósito s, o Diretor e a trupe do s "verdade iro s


atores" não con segue esc apar de julgar a situ ação absurda e inver oss ímil. NU JlH ' )( ) '
sas são as sessõ es do Teatro-Fórum em qu e, quando o Curinga (duplo de Boal) grita
Stop é mágico!, os espec(atores), indignados, recusam-se a dei xar a cen a, per su adidos
de qu e suas proposiçõ es, julgadas "ilusórias" pelo diretor do jogo , são perfeitamen-
te re alist as e aplicáveis.
Também os cannovaccios do An tim odelo, qualificados de inferiores em relu-
ção à "dramaturg ia clássica e dominante" , remetem à cena em que o Diretor pergun-
ta ao s seis per son agens o nde est á o manuscrito de suas vidas. O Pai (dupl o de Pi··
randello ), vítima das zo m barias dos "ve rdade iros atores ", repli ca: "Ele est á em IH) <; ,
sen ho r Diretor. O drama está em nó s; nós somos o dram a e est am os imp acient es
para representá-lo, como no s impele a paixão qu e ferve em nó s!". Assim, eles rei-
vindi cam que seus pap éis sejam represent ado s por eles e não pela trupe profi ssional
que se "recusa" a deixar o palco. Não pod eríamos encontrar eco mais justo para (re )
ev oc ar os desacertos dos espect(atores) , em suas improvisaçõe s na cena "sagrada" do
te atro. E, mais particularmente, no qu e concerne à inten sidade em otiva qu e revir a
tod a sessão do Teatro d o Oprimido. Como Pirand ello com seus "perso nagens ",
Baal nã o cessa de clamar às "pessoas": "Deixemos os oprimidos se exprimir, porqu e
so m ente eles podem nos mostrar onde está a opressão"! '. Esse descomprometid o
so b revôo nos leva a um a o u tra interrogação importante.

A representação e o sagrado:
outra vez o lúdico, outra vez a pedagógica da interven ção

H á uma idéia muito difundida de qu e a n oção de sag ra do , na represent.nà o


em ge ra l, está es trita me n te ligada à hi st ória do hom em, po st o que ela apan:cc
n as danças xamânicas (o u ainda nas dan ças ritu ais dos Orixás n o Br asil ), m as
também nas pinturas ru p estr es". Do m esm o modo , a reen cont ram o s na tea t rali-
dade d o s cult os de po ssessão o u da representa ção - o qu e é dad o em espetácul o,
o que reatualiza o mito permitindo o exorcism o e suce ssivo est abelecimento e
quebra da magia. Quer co ns ideremos as danças xamâ nicas, o vo d u haitian o, as
dan ças de p ossessão do s Sonrhais do Ni ger e m esmo os Mestres loucos, d o film e
e tnográ fico de J ean Rou ch 17 - do qu al J ean G enet tiraria sua o b ra prima Les
N êgres, em 195 8 - o t empo parece ter so frid o uma esp écie de curt o- circuito ; ou ,
talve z, seja a prova da unicidade do hom em, id êntico a si mesm o para além do s
mil êni o s. Tan to no homem da pré-h ist ória , q uan to em n o sso s co n t em po râ neos,

H PlRA NDEllO , lu igi. Six penonnagcs en qu ête d 'auteur (suivi de Chacun sa uérité, H enri l\~

Comme ci (ou comme ça) . Pari s: Gallimard, 1950. p. 17.


15 BüAl, Augu sto. Stop! C ' est magique. Paris: ~Éch appée Belle/ Hac he tte Litt érature, 1980. p. 22.
16 Sobre o tem a, consult ar MARINGE, Jean . L'bomme préhistorique et es Dieux. Pari s:
Anh aud , 1958.
)7 Film ado em 1955 no subú rbio de Accra, em Ga na (que se cham ava, ent ão, Gold Coasr), esse
film e recebeu o prim eir o prêmi o entre os film es ernográficos, geog ráficos, turístico s e folcl óri-
cos, no "Fes tival Internacional d e Veneza", em 1957. Fala remos mais tarde de sua tem át ica.

24 ANTO NIA PERFI"" B EZER"A


subm etidos à aceleraçã o aparent e da hist óri a, reen contram os as m ('s111:1 S p reocu-
p aç õ es esse nc iais, a m esm a t entat iva de do m ina r as situações pela r c j : , ' I JULI O,
seja co m relação a D eu s - p elo viés do sag ra do -, se ja co m rel açã o .J . :d,(;,w de
d ependên cia ao s fa tos .
E em quai squ er da s sit uações, o lúdi co e a ped ago gia da inter vcu-:....l se co n-
figuram co mo um a via pri vile giad a para se at ing ir os fin s, de so rte tI",-, t.uubcrn
nesse domíni o, a bus ca po r "contro le", qu e passa pela representação , p'Jr.1 cr ia ser
vista co mo uma so rt e de eco lon gínquo da Poética do Oprimido, do Tcar ro-Fó-
rum, n otad am ente em seu dram a/debat e qu e, pretendend o liberar o homem de uma
opressão vivi da, incita a pe ssoa a "transgr edir " os lim ites de sua person .di da.l« peh
metam orfo se do espectador em personagem. Não o bs tan te, precisam o '; : 'b t i,,;/.lJ J
n oção de rito e levar em considera ção o conteúdo diferencial, ainda qu e o mim eti s-
mo id entificado no s " ritu ais de pos sessão " como um a const ante - "PO S I I) . t u . : 1' ,1 \ <.; 0
me to rna r você, eu te domino " - é, de ce rta man eira , um a das bu sc.i., do I C.Ülü.
Um d os pos tu lados fun dame nta is da Poética do O p rimido não é a " ficção antes d a
realidad e", o u seja: " posto qu e po sso representar minha libert ação , p osso rea lizá-Ia
em seguida na vida? "

Os me stres loucos

Para aprofunda r essa qu est ão, evoca rem os Os mestres loucos, film e q ue no s
mos t ra uma cerimô n ia sac rificial entre os afr ica nos do subúrbio de Accra (cap ital de
G an a) . H abi tantes d o vilarejo da et n ia H aou ka transfo rm am-se em po ss uid . « : um
cão é de golado (nesse m om ento , o s iniciad o s be be m seu sang ue), dep o is l ' SYU .llIC) ,l-
do e comido . A lém da dan ça e do tr anse, podem o s int erro gar-n o s como o cine asta ,
por que co me r um d o ? Po sto que se trata de uma carn e to talment e proil .i.l.r. , l \ H .l ·
o ukas pensam qu e ao ingeri-Ia se rão mais po der o so s que to do s os o u t ro s ho. u cn x.
n egr o s ou bran cos.
O film e de J ean R ou ch rem et e não so me nte aos rituais do sac rih c .» ,:.l ' h · . i o
b ode, mas também à refei ção tot êmi ca fr eudi an a, o mi to dos irmão s C1S ';l d os qu e
mat am e comem o pai, o ances tral do gru po, o esp írito pr ot etor. Tran sgred ilHlo J
o rde m das co isas, do sag rado co ns agra do , eles se to rnam tabu s. Ora " 1 ( , i.i l-u r...
é um ato proibid o, em cu ja d ireção o in consciente inclina-se co m urn a ' cn ,k i:cu
mu ito forte"!"'. Essa que stão concerne não so mente o teatro, mas também todo um
ramo m édico e político . Em Magia e religião, Claude L évi-Strau ss part i' di.' ;"ill t ,
pio qu e "eficácia sim bólica, cura xam ânica e cura psican alít ica são reu !"l.; l IJ1. .il,' '' ::·,
estruturais entre corpo e psiqu ism o". A ess e respeito ba sta escutar a voz em ojJ' de
]. Rou ch para se conve ncer:

[...] q uando o sac rifício é co me tido , o inco nsc iente é liberado; os miras podem entra r
em ação. E des ses O P RIMI DOS, livres do s limites, a chaga do med o jo rra à lu z dia: o
mai s constra ngedor d e seus mi ra s, a imagem d e seu s O PRESSO RES, eles cnc.un.uu
a imagem incoerent e, incom preensível, qu e se fazem dos bran co , poderosos e diie-
rent es at é parecerem desuman o s.

IR F REUD, Sigmund. Totem et Tabou . Paris: Pavor, 1965 . p. 57.

Tea tro-iám m: w ntl p edagogia da il1ter",,'t'11Çdv e OUi l"OS didlogos possivcis 25


Não se trata aqui de procurar saber se os "possuídos" fingem ou, ainda, de
diagnosticar a po ssessão. Se é verdade que o possuído alcança um estado que põ e em
jogo a totalidade de seu ser, poderíamos, então, perguntar-nos se o teatro, COHW .i
pos sessão, não seria uma busca por "remédios" para "cu rar a vida"? Ora, na manha
seguinte ao ritual, Jean Rouch vai reencontrar os Haoukas - com sua câmera - não
mais na floresta, mas na cidade, cada um em seu papel, sua função so cial habitu a].
Diante de seus ro stos sorridentes e seus comportamento s "pacíficos ", o aut o r se
pergunta "se esses homens da África não conhecem certos remédios que lhes per-
mitem, por uma via incomum, integrarem-se perfeitam ente a seu meio [...] Remé-
dios que nós os ocidentais não conhecemos ainda".

Antonin Artaud

Em bu sca de rem édi os para curar a vida, a exemplo de Freud, mas ao contr.iri..
de Brecht qu e concebia o poder ideoló gico apenas com o uma potência "e xteriora",
Artaud, em sua inquietante trajetória, também sab ia qu e o no sso "ser profundo" é
infectado por monstros, por todo um conjunto de pul sões destruidoras acumula-
das em nós desde a infância. Porém, Artaud jamai s pôde praticar seu teatro. Suas
aplica ções teóricas conheceram o frac asso, suas peças nã o tiveram repercus são nem
na França nem alhures ". Les Ce n ci foi "um desastre fin an ceiro" (som en t e dezessete
representações), ainda que, para ele, tenha sido "UJn sucesso no absoluto"?". A breve
aventura do teatro Alfred Jarry (192 6 - 1930) faz nasc er no plano te órico - e com
furor - aquela do teatro e seu duplo: poesia, loucura, filo sofia e profecias dialogam
de maneira ext raordinária. Em 1935, o autor parte para o México, país dos Tarahu-
maras, em busca do mana. Ma s, as montanhas mexicanas, gravadas com corpos de
hom ens esculpidos como sinais na rocha, já ronda vam o ima ginário de Artaud des-
de 1933, an o em qu e inicia suas p esquisas so bre Héliogabale ou o anarquista coroado .
Em 1934, ele publica um primeiro en saio, EI GabaI - encarnação do mito hermafro-
dita adorador do so l e da pedra negra ELAGABALE: "Esse Deus ELAGABALUS,
ou saído da m ontanha, cume brilhante, vem de muito lon ge"!' ,

Considerações conclusivas: o fim do começo

Se as noções de jo go , de o press ão e de interven ção concernem tanto o teatro,


a psi cologia, quanto a política e a educação, a necessidade de diálogos como estes
que estabelecemos ao longo deste ensaio torna-se imprescindível, sobretudo pelo
fato da técnica aqui analisada trabalhar, dialeticamente, com todas essas noções . Ora
o Teatro-F órum é uma peda go gia da e pela interven ção t eatral. Assim , interrogamo-
no s, ainda, enq uant o pr ofessora e pesquisad ora: o que en sejamos pr ecisamente? Fa-
zer dos estudantes melhores es pectado res, amadores esclarecidos e mais exigentes
ou transformá-los igualmente em «ato res»? Será nece ssário então iniciá-los numa
arte co n ce b ida como separada da vida ? Teremos que eng ajá-los em montagens de
espetác ulos, levando-os a preser var, paralelamente, a ruptura entre mimesis e criação

19 N otadam ente Ventre brul éou la mére f olle (1926) , L es C enci (1930) adaptada de Shelle y, di-
rigida e representada pelo própri o Artaud,
zo ARTAUD , Antonin . Le tb éâtre et son d ouble. Paris: Payot, 1960. p. 10.
l i ARTAUD , Antonin. H éliogabale ou l'an arcbiste couronné . Pari s: Gallimard, 1979. p. 17.

26 A NTONIA P ERW <rI BE ZERRA


nos seus co m p o rt ame ntos sociai s? Ou será qu estã o de ensinar-lhes, de uma só ve z ,
que o teatro é uma dim en são substancial do se r hum ano, o Solar e o Lunar, Ap ol o ('
Dionísio, a clareza de espírito e as profundezas noturnas d o se r ? Não se trata, <1 'l1l 1,

de estabelecer um equilíbrio estático entre Apolo e Dioni sio ou, para retomar as
oposições binárias, de co locar um pouco de «pap el» e um pou co de "pers onalidade" ,
um pouco de Brecht, um pouco d e Artaud, so b pena de co n fu ndir do is en fo q uc ~,
abs olutamente distintos: o da art e e o da vida co tid iana. Seguir quem acre d it a qu e
"o hom em-espectad or " pode se r o criad o r e me stre d o d estin o do "ho me m -pe rso -
na gem ", qu em clama como Bo al "Não di gam! Venham em cen a e mo strem-n o s suas
visões d o mundo" :", o u qu em prefere, como Gatti, ir ao encontro do s "at ores da re -
alid ade" e reapropri ar- se com eles d o "p o der da lin gua gem t eatral" para se to rn arem
"criadores" seria uma opção eficaz? A dimen são prática d es se projeto re spondeu a
muitas dessas importantes questõ es.

\
i
~

12 BO.A.L, 1980, p. 50.


REFERÊNCIAS

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ARTAUD, Antonin. Le thédtre et son double. Paris: Payot, 1960.

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Sala Preta: Revista do Departamento de Artes Cênicas, São Paulo, n. 2, p. 293-299, 2002.

BEZERRA, Antonia Pereira. Le théâtre de l'opprimé et la notion du spectateur-acteur (Genese


personne, personnage, personnalité). Lille: ANRT, Presses Universitaires de Lille, 2002.

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

BOAL, Augusto. Stop! C' est magique. Paris: L'Échappée BellelI-:Iachene Littérature, 1980.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas politicas, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1988.

FREUD, Sigmund. Totem et Tabou. Paris: Payot, 1965.

GATTI, Armand. Théâtre completo Paris: Verdier Lagrasse, 1970. 3 t.

GOZLAN, Gerard; PAYS, Jean-Louis. Catti aujourd'bui. Paris: Seuil, 1970.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Paris: Plon, 1958.

MARINGE, Jean. Ehomme préhistortque et es Dieus: Paris: Arthaud, 1958.

MANNONI, Octave, Les clefs pour l'imaginaire. Paris: Seuil, 1980.

PlRANDELLO, Luigi. Six personnages en quête d'auteur (suivi de Chacun sa uérité, Henri
IV, Comme ci (ou comme ça). Paris: Gallimard, 1950.

PSICANÁLISE. In: FERREIRA, Aurélio Buargue de Holanda. Novo dicionário Aurélio de


língua portuguesa. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

ROUCH, Jean. Lês maitres fous. Paris: Cinématheque, 1953.

28 ANTONIA PlRElRA BEZERRA


M ETODOLOGIAS CONTEMPORÂN EAS DO ENSINO DE TEATRO:
EM FOCO A SALA DE AULA

Arão N. Paranaguá de Santana

N a virada do milênio, as concepç ões culturais emergent es germinaram no campo


da educação valores co mo respeito ao receptor, intertextualidade, fragmentação de um
discurso anteriorm ente linear, pluralismo, utili zação de meios tecnológicos inovado-
res, dentre out ros fenômenos que vislumbram, a um só temp o, ruptura e crise, face ao
co nvívio com procedimentos desgastad os, embo ra recorrentes - didáticas auto ritárias,
práti cas repetitivas, o novo que se acha belo porque desconhece memória e tradição.
Perplexidades co mo essas têm moti vado o debate em enco nt ros de especialistas,
pesqui sas e publicações, fazendo- se presente, so bretudo no trabalho cotidiano dos do-
centes. N esse esteio surge m estudos consubstanciados na nova soc iologia da educação,
na psicopedagogia, na teoria crítica, na pedagogia dos conteúdos, no multi culturali smo
e no utras vertentes qu e co mpõem o imenso arquipélago da teoria soc ial da atualidade.
Esses trabalho s têm contribuído para o avanç o de propostas teóri cas e meto -
doló gicas relativas ao ensino e ao aprendi zado, possibilitando ao s educadores certo
di stanciamento para qu e possam relativi zar as diferenças entre os estág ios de desen-
vo lvimento mat erial e cultural do s alun os, co ncedendo-lhes, também, as estra tégia s
para co mpreensão do s percurso s de entrada e saída numa modernidade alcan çada
apenas por pequ ena par cela da população mundial '.
Em face desses fenômenos estampados no tecido social e suas implicações na
escolarização, creio qu e o ensino de Arte, ou pelo menos uma parcela significativa de
seus praticantes, tem procurad o fund amentar-se em obras e conc eito s revelados na arte
co nte mporânea, no faze r dos artistas , no pensar do s críticos, nas práticas culturais co-
munitárias, nas prop osta s de museu s e instituições culturai s, sem ignorar, cont udo, a
realidade da sala de aula. C reio, também, qu e essa jornada rum a para a superação do fa-
zer que caracterizou o sent ido da formação em art e pred ominant e durante séculos, bem
como do sentir enquanto esfera da liberdade expressiva de fund o psicológico que alude
à iman ência estética, mas que, na verdad e, não penetra na essência da arte, retomando
a qu estão da reflexão co mo estatuto de um pensar que existe para tec er con exões entre
esses três componentes da ação artística e pedagógica - fazer, sent ir, pensar.

1 CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratég ias para ent rar e sair da mod ern idade. São Paulo:

EDUSp, 1998. p. 17-30.

29
r

Com o objetivo de contextualizar essa argumentação perante às' indagações


deste VI Seminário de Linguagens Artísticas, sou levado a guiar-me a partir de alguns
pontos: i) em que bases metodológicas constituiu-se a área de Teatro-Educação? ii)
como adaptar as proposições mais interessantes à realidade da sala de aula? iii) qual
o perfil e o que pensam os professores, já que são eles os responsáveis diretos pela
produção de conhecimentos e práticas escolares?
Considerando o quadro complexo que se apresenta para a compreensão de
questões tão abertas, tentarei verificar, a partir de uma perspectiva histórica, se no
caso das didáticas do Teatro é possível- ou não - assumir um discurso vanguardista,
como nas Artes Visuais, por exemplo, campo onde florescem metodologias pós-
modernas.

Significados do teatro na escolarização

Desde Aristóteles, tem-se pensado muito sobre o potencial reflexivo que per-
meia o fazer e o fruir, o pensar e o sentir contidos na arte dramática. A palavra drama
vem de dromenon, referindo-se à ação, ao passo que teatro, vocábulo que também
veio do grego, significa lugar donde se vê. Essa capacidade de ver-se em ação, cri-
ticando e apreciando os próprios gestos e atitudes, constituiu-se num recurso vital
para o processo de humanização da natureza e, sendo inerente à atividade artística,
tem implicações ontológicas no campo da educação.
Os nexos epistemológicos originários do Teatro-Educação remontam a um
passado longínquo, embora sua vertente no ensino formal tenha sido consolidada
somente nesse século, em resposta às necessidades do teatro moderno e aos recla-
mes da sociedade em prol de uma consciência cidadã plenamente democrática.
Assim, no âmago de sua própria historicidade, criou-se uma cultura COIll-
preendendo os fins do Teatro na escolarização, suas metas pedagógicas e estéticas.
conteúdos, atividades Iacilitadoras do aprendizado e procedimentos de avaliação.
Ao longo desse processo de tomar-se disciplina foram sendo configurados métodos
e teorias, visando-se superar os obstáculos suscitados através da ação.
Não consigo pensar em desenvolvimento curricular sem visualizar a imagem
dos sujeitos que, na prática, são os deflagradores do processo de ensino e, como
motivadores do aprendizado, escolhem os caminhos da ação pedagógica.
Para Gisêle Barret, o especialista em Teatro-Educação é um personagem estra-
nho entre-deux, considerando-se a ambigüidade de sua atuação no limiar do teatro
e da educação. A autora entende que essa área carece de definições no âmbito do.:
fundamentos, apesar de sua história importante no cenário acadêmico e escolar,
propondo as seguintes reflexões:

Somos generalistas, especialistas, generalistas-especialistas ou especialistas-generalistas?


Nós jogamos ou criamos arte? Fazemos teatro, teatro na educação, teatro improvisacio-
nal ou educação através do teatro? Usamos arte, ensinamos arte ou fazemos arte?2

2 BARRET, G. Le spécialiste en théâtre éducation: une personnage étrange entre-deux. IDEA


Journal: Polyphonic voices, rainbow worlds: one destiny, v. 1, n. 1, p. 6, 1997. Tradução livre do
autor em parceria com Ulisses Ferraz de Oliveira.

30 AH.W N. PARANAc;uA IJE 5.4,v/:1,\',1


Acirrando ess e debate, Charles Combs o bs erva que para reali zar bem sua fun-
ção o esp eciali sta em ensin o de Teatro estabelece metas, objetivos e p ro c c dl1 !1 l' ~ )1 ( I "
atribuindo , porém , propósito s bem mai s específicos para sua co nduta:

N ó s qu er em os qu e o estudante aprenda, t ran sform e- se e bu squ e desen vo lve: .-; -", 11."';
ens in amos, agimo s, en cenamos , cr iam os per formances cotidianam ent e c' ;'" ,., i \ r : )(\ '

medi ando ações dentro das esco las, em co ntextos formai s o u infor mais ; lI S .1 t~ H ) ' ' !1 C~­
todo s de ensin o, formas art ísti cas e valores culturais no nosso trabalh o ; trabalh am os
co mo art istas , pr ofessores e mediadores - nó s de sejam o s que o estu dant e o u pessoa
co n tin ue a aprend er e :I de senvolv er- se através da vida sem a nossa in terv e uç ào ' .

Citei o s POntos de vista desses dois especialistas internaci onais com a in-
tenção de atu alizar o debate sobre os alicerces do Teatro-Educação e, a"~;'n ,
compreend er melhor o perfil atribuíd o ao s docentes, alimentand o ! 1 I. " . \ :

acerca de um dilema sempre recorrente - es t ar en tre dois. Para a su p e ração des-


se entrave, C ombs estabelece conex õ es en tr e quem e on de são produ zida s as
teoria s e as propostas did áticas, asse gurando que há uma fu são e n t re o que as
lideran ça s int ele ctuai s realizam e a ação da s in stitui çõe s; com o co ro lário de ssa
argumentação , cita exemplo s d e parcerias qu e se re ve stiram de sucess o acadê-
mic o em se u país' .
N o caso brasileiro, pode ser com provada uma situ ação semelhante, consideran-
do-se a atu ação decisiva de algumas uni versidades na pó s- graduação, de se us professo-
res na pesqu isa e publica ção de livro s, além dos personagen s pioneiros e ou t ros mc xtre«
do pre sente qu e, com sua ação, vêm dando notoriedade ao ensin o de Teatro' .

Breve historiografia da didática do


teatro na realidade escolar brasileira

Até aqui bu squei situar a disciplina Teatro frente ao estad o atual ,11 ",;ll.-i j
como pan o de fund o para entend er sua pr áti ca escolar numa época "d e teu j!,)ut, ia
avançada, iluminism o científico e iluminação es t ét ic a?", ao tempo em qu e propus
uma refle xão so b re algumas qu est ões pontuais. Tentarei agora discutir a insurgência
do s m ét odos a partir de contribuiçõ es histori camente situadas, dand o ê nfase ;í <, in-
flu ên cias abso rvidas pela edu cação b rasileira.
O apre ndizado cê n ico secularizo u-se através do fazer e, so b re t u do, funda-

.\ C01\IBS, C. E. Th e drarna/th car re/ artist /teach cr / cduca to r/ scho lar matrix.YDEA Journal: Poly-
phoni c voiccs, rainbow wo rlds: one dcstin y, v. 1, n. 1, p. 10, 1997. Tradução livre do auto r em
parceria co m Gera ldo Salvado r de A raújo .
, C orn bs regist ra :I seguinte r el a ção de person agens e instituições: Winifred Ward / N orthwest-
em U niversitv: Kcnncth C rah arn / Th c U nivcrsitv of M inneso ta; Geraldin e Silks / Th e U nivcr-
siry o f Washil;gro n; Jcd Davis / Th c Un iver sity of Kansas (C O MBS, 1997, p. 11).
, Mesm o correndo o risco de esq uece r nomes imp ortant íssim os para a história do Teatro-Educa-
ção nacio nal, cito os seguintes: Aladir Santo s Lopes, Amic y Sant os, Anton io Janu zelli, Augu sto
Boal, Beat riz Angela Vaz, B. de Paiva, C lóvis Garcia, Dilza Délia Dut ra, Fanny Abramo vitch.
Flávio Império, H elena Barcelos, Hilton Carlos de Araújo, Ilo Krugli, Ingrid D ormien Koudcla,
Joana Lop es, Laís Aderne, Lúcia Bened etti , Luiza Barreto Leite, Luiz Paulo de Freitas, Maria Ali
ce Vergueiro, Maria C lara Machado, Maria Lúcia Pupo, Paschoal Carlos Magno, Olga Rcvcrlxl ,
Santa Rosa, Yan Michalski, Yara Silveira e mui to s out ro s (a relação foi elaborada, originalmente,
por Marcos Bulhões).
(, N UNES, B. Educaç ão artisttca e filosufia da arte. Rio de Janeiro: MEC: FUNARTE, 1986. p. 3.

J1LT o !JOLO (;/ .i \ (, O.\' TL.lIl' OK4S í. 4S no LN H NO J)[ fCtTRU : [.1 / fOCO .~ \ .-IL -1 D[ A Ul A 31
mentado na instrução do mestre, procedimento que assegurou a existência de troupes
e famílias de artistas, inclusive nos momentos em qu e O teatro era uma at ividade
proibida pelo poder instituído.
Na per spectiva da educação , Rousseau, Pestal o zzi e Froebel ob servaram q ue o
jogo proporcionado pelo teatro era um poderoso estímulo para o desenvolvim en to
da criança, sug erindo pista s para a in vestigação de pensadores como D ewe y, Pi"t,Cl c
Wygotsky. Esse legado conceitual possibilitou ao s ed ucado res do pre sente sé culo a
formulação de id éias e métodos de ensino, calcados no m ovimento conhecido mun-
dialm ente por escola nova. Foram muitas as tendências teatrais representativas desse
momento da pedagogia ocidental, destacando-se o play w ay, de Caldwell C oo k;
jogo dramático infantil, de Pet er Slade; creatiue dramati cs, de \X1inifred Ward l: DI ia n
Way; dança moderna educacional, de Rudolf Laban, Alan Garrard e Lise Ullman;
linguagem criativa, de Marjorie Hourd; psicodrama , de Jacob Moreno.
Apesar do s avanços te óricos e metodológicos qu e vieram à tona com esse,
movimentos, predominou na escola uma visão espontane ísta que velava a essência
da arte dando ênfase à livre-expressão, ao invés de instaurar exp erimentos geradores
de saberes, práticas e frui ção de obras . Educadores e artistas de sfraldaram bandeiras
alardeando a imp ortância do processo educativo em detrimento do produto estético ,
seja nas escolas ou nos movimentos políticos de co n scientização popular?
Era esse o pensamento praticado na escola bra sileira quando a Educação Artística
foi implantada, salvo raríssimas experiências isolada s. Nas aulas de Artes Cênicas, os
professor es limitavam-se a propor temas e distribuir material, deixando os alun os livres
para improvisar à vontade. Som ente aqueles mais tradicionais incorporavam o texto dra-
mático, sendo muito comum a montagem de pecinhas em datas comemorativas. Nes se
cenári o, desen volveu-se uma pseudoteoria que separava o que era arte do qu e poderia
ser edu cação, mapeando em cate gorias estanques o teatro formal e o teatro educativo.
Durante an os de 1980, o quadro da Edu cação Artística polivalenre - e, portanto ,
das Artes Cênicas - transfigurou-se aos poucos. Foram implantados cursos superiores
em proporção geom étrica, os professores tomaram as réd eas de sua pr ópria história,
ao tempo em que surgiram pesqui sas sobre o Teatro na educação fundamental , dand o
início a uma profusão de idéias e práticas que hoje em dia vêm sendo avaliadas .
Além das experiências que se avolumaram no interior de esco las e instituições
culturais, o ut ro s fatore s contribuíram para esse salto qualitativo do Teatro-Educa-
ção, ressaltando- se os seguintes : i) o intercâmbio com o es t rang eiro , seja através da
divul gação de livr os ou da vinda de especialistas renomados para ministrar curso s,
participar de seminários e dar consultoria; ii) a lar ga difusão de obras como Impro-
visação para o teatro, de Viola Spolin, indic ativa de caminhos para o ensino da lin-
guage m cênica para crian ças, ad ole sc entes e adulto s; iii) o surgimento tímido, mas
eficiente de cursos de pó s-graduação esp ecíficos em Arte, bem como a ab ertura de
linhas de pe squisa sobre ensino de Teatro nos me strado s de áreas afins; iv) o agru-
pamento de profissionais em ent id ades para-acad êmicas, fed era çõe s e sind icatos, o
que pr opiciou a realização de sim pósios regulares.

7 O ideário dos movimen to s de con scientização popular dos an os 60 - a exemplo dos CPCs da
U nião Nacional dos Estudantes -UNE aproximava-se ao difundid o pela esco la no va e muitos
dele s baseavam-se no culto à livre-expressão, embor a seu o bje t ivo fosse a resist ên cia cu ltu ral.
Ver C AN C LI N I, 1998, p. 139-14 0.
No bojo desse moviment o, emergiram exper iências de pessoas interessadas
em contemporiza r as idéias de Stanislavski, Brecht, Artaud, Gr ot owski, Barb ;l t'
Perer Brook , dent re out ros aut or es qu e referenci am a inovação metodol ógica COI!
temporânea. Em meio a essas tend ências, as mais relevantes privilegiam o jogo c a
improvi sação, e não se cercam , co mo no passado, de receios quant o ao uso do te xto
e à instrução enquanto regra didátic a. C on siderando- se a diversidade de enfo ques c
procedimentos pedagógicos disseminados por escolas, instituições culturais, me s-
tres e grupos teatrais, to rna-se extremamente salutar o estu do dessas diferent es
propo stas, embo ra seja compli cado analisar, sistematicame nte, seus resultados".
C om a con figuração dos fen ôm en os anunciados at é aqui, a discussão de pr á-
ticas e a divulgação de pesquisas nas várias linguagens artística s - marcas dos anos
90 -, percebe-se agora um cintilar alvissareiro no espaço do Teatro-Educação, muito
embora, no plan o prático da escolarização, tudo isso seja ainda uma incógnita.
Na grande maioria dos Estados brasileiros são raras as redes de ensino dota-
das de profe sso res devidamente pr epar ados e, até mesmo nas escolas públicas das
capitais, a realidad e insiste em ofuscar o brilho das conq uistas. Dentre os fato res
que sobrevivem co mo fant asmas atormentando o ensino de Arte, sobressaem-se :
turmas abarr ot adas de aluno s; espaço inadequado para a prática teatral; tempo in-
suficiente para preparação e desenvolvim ento das aulas; má qualidade do mat erial
didáti co; diálogo truncado e falta de parcerias, mesm o entre docent es; inexist ên cia
ou desconti nuidade no aperf eiçoam en to profissional; mentalidade servil e avessa à
ousadia; e baixa re muneração dos trabalhadores da educação .
Tend o em vista o enfrenta me nto dessas questões o pod er público vem an un-
ciando uma série de medidas, a exem plo dos Parâm et ro s C urr iculares N acionais
- PCN. Essa estra tégia repr esent a um a novidade substantiva para a área da A rte,
pois, pela primeira vez, o Mini stéri o da Educação c Cultura - MEC pr esta orient a-
ção formal para o planejamento cur ricular da Música, das Artes Visuais, da Dança e
do Teatro. Mu ito já se disse sobre o assunto e, pessoalmente, acho que os PCNs só
deixarão de ser mais uma ação burocráti ca e prescritiva caso seja possível superar...

[...] a visão redu cioni sta d a esco la, ins erindo -se u ma no çã o de cu rríc ulo como te c id o
ar ticulador no qual a fo rmação d e profes so res, as p ráti cas pedagógicas e o s processos
de en sino, aprend izag em e avaliação se relac io ne m mutu amente. No momento, esses
vínc ulo s não existem"!

Fundam entand o- se na Psicop edago gia e na Propost a Triangular, os PC N s não


se limitam apenas a filosofar sobre os co nceitos que suste ntam as quatro áreas da
disciplina Arte e a relacionar os respectivos objetivos e co nteú dos; prop õem tam-
b ém encamin hamentos didáticos e critérios de avaliação. A o rientação metodo lógi-
ca apresentada aos docentes sugere orga nização do espaço, do temp o, instrumen to s

I
Ii S Aind a não existe no Brasil um estud o siste matizado sob re as me todol o gias prati cada s no en si-
no do Teatro. A bi bliog rafia estran geira tam bém não é muito exten sa, exce t uando-se trabalhos

l Como o de SO MERS, J. Drama and theatrc in educat ion : contemporary research . O n tario : Captus
University Publi cation s, 1996.
9 SANTANA, A . N . P. Recon siderando o en s ino de artes cênicas. In: CO NGRESS O NACIO-

NAL DA FED ERAÇÃO DE ARTE ED UCADO RES DO BRA SI L, 11., 1998, Brasília.
A nais.. . Brasília, DF: FAEB, 1998. p. 9- 10.

J / r ! ü / lOLOG/.4\ ( .o s r [.l !PO R.-lS L 4S DO [,\/ \/.'\1{' 1)[ TLATko : L.\I FOCO .-1 S.-lL-t IJL .-Il fL 4 33
d e registro e documentação, como forma de organizar as atividades e as interven-
çõ es do professor junto ao aluno.
A ação de planejar um curso requer do educador uma atitude criad o ra, a se le-
ção d e conhecimentos e práticas que tornem possíveis desc obertas e construção de
saberes, desconsiderando o método enquanto modelo pronto. Essa é uma tarefa cs
se n cial ao ato de ensinar, pois "os encaminhamentos did átic o s expressam a seria ç:« I
dos co n t eúdos da área e as teorias da arte e da educação selecionadas pelo docen ..
t e' ?" . Contudo, como este precisa conhecer referenciais e utilizá-los na prática pe-
dagógica, é recomendável que se aproxime de experiências s ist em atizadas, teorias,
pesquisas e, sobretudo, que participe de oficinas práticas no seu campo de saber/I .

Formação de professores c prática docente

Para que as teorias e metodologias traduzam-se em avanços concretos na sal:!


de aula, é essencial que se leve a sério a formação de professores. E, como as demais
áreas que compõem o currículo, o Teatro precisa de profissionais com conhecimen-
tos adequados para a tarefa da escolari zação - não o professor faz de conta qu e atu a
improvisadament e e torna tudo superficial, nem tampouco o profissional deus ex
machina que tud o sabe da linguagem artística e que, a cada situação, lança mão de
se us poderes miracul osos. Num mom ento de crise na educação , faz-se nece ssário
redirecionar a formação inicial e o aperfeiçoamento contínuo dos docentes, tend o
em vista a grandeza da mi ssão que cabe a esses profissionais.
A tarefa de preparar educadores é de toda a sociedade, cabendo às universida-
des e aos ó rgãos executores do en sino em p re ender ações ob jetivas, visando tradu z ir
o estado do conhecimento qu e se tem ac erca do assunto fr ente às perplexidades
in stauradas no proces so da escolarização.
Pensand o- se na sala de aula, nã o é mais po ssív el co nce b er uma forma ção t ra-
d icionalmerite di cotômica; não t em mais lugar também a abordagem polivalente
q u e, por ser vaz ia de conteúdo, concebe um profi ssional cuj o p erfil assemelha-se à
imagem pejorativa do pato - nada sem mergulhar, t em asas mas não voa e anda de-
sen go n çado. Na condição humana qu e se ap resent a nes se fim d e século, seria mais
interessante considerar a metáfora sug erid a por Leonardo Boff:

Cad a um ho speda dentro de si uma águia . Sente-se portador de um projeto infini-


to. Qu er romper os limite s apertado s de seu arranjo existencial. Há moviment os na
política, na educação e no processo de mundialização que pretendem reduzi r-no s J

simples galinhas, confinadas aos limites do terr eiro. Como vamo s dar asas à águia,
ganhar altur a, integrar também a galinh a e sermos heróis de nossa própria sagal 2 ?

10 BRASIL. Ministério da Educação. Parâm etro s curriculares nacionais da área de arte: r e rr ci-

cios. Brasília, DF: 1997. p. 105.


1I Refiro-me aqui ao trabalho de professores que construíram teorias a partir de suas práticas ins-
titu cionais, a exemplo de Ingrid Dormien Koudela/USP e Helena Barcelos/UnB (in m em orian'[,
dentre outros. Refiro-me também a livros como os de Viola Spolin, especialmente Tb eatre gam e
fi le (SPO LIN , Viola. Tb eatre gam e file. Evanston: Northwestern Univ ersity Press, 1989). que de
talham com precisão métodos de ensino em Teatr o. Não existem muitas obras publicadas no Brasil
a esse respeito - mesmo esta nunca foi traduzida - , embora um número considerável de relatóri os
de pesquisa, dissertações e teses comprovem a existência de boas referências.
12 BOF!', L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. São Paulo: Vozes, 1997. 206 p.

34 A RA0 N. P.•R.. ,v.4Gu4 D[ S.4N G N.4


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SPO LIN, VioJa. Th eatre gam e file. Evanston: N orr hwes tern U niversiry Press, 1989.

M[TODOLOGh~S CONTf.HPOR.4NLH DO ENSI N O DE TEATRO: LlI FOCO A SA L< D E .w u 35


D OROTHY HEATH COTE : MEDIAÇÃO E IN T ERVENÇÃO
NA C O N STRUÇÃO DA NA RRATIVA TEATRAL EM GRUPO

Beatriz Cabral (Biange)

Est e es tudo fo cal iz a as sim ilarida de s en tre as abo rdage ns de D orothy H e-


ath cote ' , A ugus to Boal e Bertolt Brech t, ch amand o aten ção, particul arm ent e,
par a o potencial da forma de "inte rve nção", u sad a po r Heath cor e p ara inte ns ifi-
car a dim en são crít ica na p rá t ica usualm ent e frag me nta da do teatro n o cont exto
curr icu lar. A partir des ta s si m ilar ida des é po ssível obse rva r mais cl ar am en t e o
' pa rt icu lar' do es tilo da au tora - a fo rma pela q ual ela, con tinuam ent e, amp lia e
res sa lt a a q ualida de da co nt ri buição do alu no.
H earhc ot e pr om ove experiê ncias de dram a a partir de mater iais históricos:
fato s, d ocu men to s, ob jetos, frag me ntos de texto de auto res d iverso s. Sua abo rda-
gem é totalmente op ost a à rep resentação . C aracte riza-se com o intervenção. C omo
resultad o, desen volve uma narrati va co letiva simi lar a uma colagem , e os elem entos
dest a cola gem pod em se r reo rganizados novam ente em qu alqu er direção e a part ir
de o utra pers pectiva. A interve nção se dá ao nível da est ru tura e do qu estionam ento
- os significados são produ zidos pelos participantes e por eles transformados; não
há ass im uma 'verdade' autora l estabelecida pel o professor. N o drama, e em especia l
na abordage m de H eathcor e, o material ofere cido aos alunos (im agen s ou texto s) é
desco nst ru ído; torna-se uma pista para mediar as interaçõe s.
Tal co mo Boal e Brech t, Heathcote manifesta um a pre ocupação com a for ma:
co nfro ntos espaciais, sig nos vis uais de lin guagem (cartões, post ers, b anners, rótu-
los, manchete s), atuação dialéti ca at ravés de um a troca de enquadram en tos e papéis,
foco no gesto (ide ntidade a partir de um cód igo d e relaçõe s sociais) .
O s três teatrólogos, na esfera da pedago gia, usam intencionalmente a lógica e
a lin gua gem para trazer à tona as co nt radições do s personagens e sua hi st óri a. N est e
sentido , a dialét ica é sua piéce de r êsistan ce. Associar a dialéti ca ao pó s-modern ismo
po de parecer contraditó rio; en t re tanto, a dialétic a hoje é reconh ecida como parte da
natureza da comunicação humana. De acordo com Elizabeth Wri ght, "a dialética é

I Dorothy H eath cote é co nsiderada a criadora do proccss drama, form a teatral in glesa, desenvol-

vida no co ntexto escolar, e equivalente ao Teat ro -Edu cação brasileiro.

37
o padrão de mudança de qualquer co nceito ou significado que resulta da co locação
da fo nte de refer ência em um novo co ntexto de relevância, um a nova per sp ectiva
inten cion al:".
O s crít icos de Br ech t apo ntara m para o fato d e q ue "o fo co na for ma
reduz o eleme nto dialétic o das peças em tal grau que n ada rest a lá a não ser a
di alética'> ". Porém , não apenas Bre ch t, mas tam b ém Bo al e H eathco re, em di -
fer en t es cu lt u ras e at ravés de m étod o s distintos, usam a fo r ma para d esa fi ar os
códigos de re p resentação ace itos e es ta belecidos. É jo gando co m a form a que
eles interrom pem, co n gelam e m arcam a ação , a fim de sa lient ar as con tradi çõe s
da o rde m social.

Brccht e Boal na perspectiva do drama inglês

D o is artigos são referen ciais para se co nside rar a influên cia de Brecht e Bo,"
na práti ca d o teatro na esco la nos países de língua in glesa: "Ways of seeing'" e "D ra-
ma in educ atio n an d radical theatre practice'". A mb os se refer em ao efeito de di s-
tanciamento e ao lugar do especta do r na aula de dram a.
O 'N eill observou em 1989:

[...] a ún ica experiên cia d e p lat éia q ue o s participa nt es deveriam ter d urante um a
au la de dra ma ser ia qu an do ' ap resentaçõ es e m peq u e n o s grupos ' o u im prov is a-
çõ es ' p o lidas' fos sem co m parti lha da s com o restan t e da tu rm a, usua lme n t e co mo
co n cl usão de u m t rab alh o . E sta é t alvez o t ipo de pla t éia me no s ú t il para int er-
p ret ar o u se r pa rt e do pro ces so. Tal plat éia po d e ser ego ísta, crí tica o u m esm o
d est rutiva em suas re spo stas [.. .]i'.

Alternativamente, ela ch ama ate nção para a dup la realidade de ser part icipante
e especta dor ao mesmo tempo, e lembra que Boal esclarece u a natureza desta dupla
realidade, desen volvendo um mé todo onde os espectad o res não só recebem idéias, ma s
tamb ém sobem ao palco e as pra ticam, criando um a dup la co nsc iência, por ele den omi-
nada 'metaxis'.
M as, se pa ra Boal os espectado re s são obs ervado res ativos que supostamente
intervém na ação como indi vídu os, o ' espe cta dor con sc ien te' de O' Neill im p lica um
gr upo co m 'un icidade de resp os ta' :

o co ntágio so cial opera para cr iar pressão em dire ção a um a conformidad e do gru p o ,
acordo e aceitação [...] o professor de dr ama pode co ntro lar esta energ ia d o gru po,
am p liar se u efeito e fo rça r o aco rd o, especialmente nas etapa s iniciais do trabalho ,
para es tab elecer o co nt exto dram áti co ".

! WRIG HT, Elizabeth. Post-m odern Brecbt. Londr es: Rou tledgc, 1984. p. 14.
) WRIG HT, 1984, p. 15.
• O 'NEILL, Cc cily, Ways of seeing: aud icnce function in dr ama and th eatr e. 2D, n. 8, p. 17-29,
1989.
S LACEY, Stcphan; WO OLLAND , Br ian. D rama in education and radical rheat re p rac t icc, N ew

Th eatre Q Ualterl)', v. 8, p. 4- 15, 1992.


(, O'NEILL, 1989.
7 O 'NEILL, 1989.

38 Bt.vmt: C. W RAL ( B I.' NGE)


É possível atingir este estado mental através do 'professor-personagem' (te-
acher-in-role) e O'NeilI comenta sobre a habilidade de Heathcote para tornar o
grupo espectador de seu papel. Esta uniformidade de resposta é atingida, ela argu-
menta, quando a ambivalência de sentimentos é a resposta individual predominante.
Esta ambivalência é algo que Heathcote explora de forma positiva, diz O'NeilI,
trabalhando papéis com potencial para provocar hostilidade (comandante militar,
guardião de prisão, etc.), os quais unem o grupo contra ela e, conseqüentemente,
reforçam e fortalecem os papéis dos alunos.
Além dessa unicidade de resposta ao professor-personagem, a ambivalência
de operar em dois níveis ao mesmo tempo estimula os alunos a trabalhar, segun-
do Ken Robinson", "com um forte sentido de ser espectador de si mesmos e de
suas próprias ações". É a partir desta combinação de participante e espectador
que Gavin Bolton constrói a idéia de "percipiente", para designar o participante
ativamente engajado naquilo que ele observa e responsável por criar a cena ou
apresentação em primeira mão. De acordo com O'Neill, o "percipiente" resulta
do entendimento de Bolton de que a luta dos professores para promover a re-
flexão dentro do processo dramático tem sido inimiga da forma, uma vez que
seria necessário interromper a atividade para conseguir um tempo para reflexão.
O conceito de percipiente introduz a idéia de que a observação é possível em ação,
isto é, sem interromper o processo dramático.
Para O'N eill, o percipiente ou a mente de espectador (o estado mental de
ser espectador) deve estar presente no fazer teatral, "pois, se sairmos completa-
mente da ação para iniciar a reflexão, podemos descobrir que não há nada lá para
ser refletido?". Como um exemplo de "observar" enquanto um princípio estru-
turaI no drama, a autora cita as estratégias de enquadramento de Heathcote, as
(mais estabelecem a observação e o julgamento a partir do início da atividade,
através dos papéis escolhidos para os alunos (vide na frente).

o relacionamento espectador-ator
Para Lacey e WoolIand 1o, "o Drama Educação não apenas se entrelaça com o
teatro por caminhos marginais, mas é em si uma forma de prática teatral". Eles ilus-
tram seu argumento discorrendo sobre aspectos do modernismo pós-Brechtiano
na Inglaterra, principalmente sobre a influência de Augusto Boal e Paulo Freire na
prática do drama. Em vez de focalizar o percipiente, eles analisam a troca de funções
durante a atividade - os participantes como platéia, uns dos outros.
Os autores enfatizam que para Brecht, a forma não é apenas o que é dado aos
participantes para ser interpretado, mas é também o que deve ser negociado. A de-
corrência foi colocar o espectador no centro do debate e a criação da Lebrstucle", As
lehrstücke, segundo Lacy e Woolland, foram criadas, inicialmente, para uso com um
grupo de participantes sem a presença de um público além dos próprios atores. O ob-

s ROBINSON, Ken. Exploring theatre and education. Londres: Heinemann, 1980. 185 p.
~ O'NEILL, 1989.
ic LACEY; WOOLLAND, 1992.
11 Brecht traduziu Lehrtuck como 'lcaming play' (peça de aprendizagem) em seu ensaio "Das deuts-

che Theatrer der Awanziger Jahre", Arquivo Bertolt Brecht 147/33-36. Referência de Reiner Steinweg
em KOUDELA, Ingrid. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 98.

DOROFlfj" HLiíHCOTL -- "\/[lJJ.1Ç~O [INTER\L"v'(Ao N.o1 COi\'STRL'ç.'.40 1).4 .\.4RR.4TlU TEATRAL FI! CRUPO 39
r
i
jeti vo era trans formar a arte numa prática so cial atr avés de um processo de observaç ão I!
e ação, traba lhar e re-trabalh ar o texto, o q ua l es tar ia sem p re abe rto a mudanças.
Boal baseo u seu m ét od o em Brecht e n a pedagogia radical de Paul o Freire .
Am bos foca liza m o co nceito de "p ráxi s" e enfa tiza m qu e n ó s p o dem os co m preen-
d er e tran sformar o mu n do at ravés da associação entre te oria e prática, isto é, at ra-
vé s d a reflexã o e da ação . N o âmbito da m e tod ologia, es ta pe rs pec tiva propõe u m
ex pe rim enta r de alte rnativas basead as n a es colha do espectador, e abre espaço para
to m ada s de decisão , o qu e oferece m eio s d e co nt ro le sig nifica tivos ao o bse rvado r-
participante. Segun do Boal, o esp ectador "delega poder ao at o r, qu e então age em
seu lu gar". Lace)' e \X/o oll and exe mplifica m s ua pr ática com es ta atuação de exp ec ta-
ti vas através da descri ção de uma aula o n de os person agen s n ão são apenas vistos ser
cons t ruídos , são tamb ém p roposit alm ente cri ad os por espectado res ativo s.

o espectador de si mesmo (self-sp ectator)


O s ensa ios comentados acima se refe re m às influências de Brecht e Bo al no
Drama, mas sua s abordagens ao papel do es pectador no dese nvo lvime nto d o texto
coletivo são bem di stintas.
E m \\7a)'s ofseeing, O 'Neill" enfa tiza o espectador implícito co mo a contribuição
m ais útil para mant er o env olvim ento com o processo dram ático e evitar a sep aração
entre a ção e reflexão . O co nceito de "me tax is" é obse rvado em sua dimensão tem poral
- co mo um a dupl a consciência de pertencer a doi s mun dos ao m esm o tempo.
Para Lacey e Woolland, o bservar e at uar são atitudes d isti ntas quanto às di m en-
sões formais e tempo rais. M etaxis, para ele s, significa a po ssibilidad e do ato r m anter
ambos os papéis, observado r e ato r, em dife rentes momentos. C omo obse rvadores,
eles são capaz es de su gerir alte rnativas para aq uilo que lhes foi apresentado.
Entre tanto, as d uas abo rdagens são m ais similare s do que pa rec em. A sim i-
laridade resid e no fato de qu e não há pl atéia além do próp rio grup o . Q uan do es te
se su bd ivide em pequ en o s grup os o u eq u ip es, to do s estão en vo lvido s no m esmo
eve nto e suas alte rna t ivas resp o nd em ao m esm o contexto de ficção.
Qual a o rigem pedagó gica des t a p er sp ect iva metodol ó gic a?
A partir de 193 0, Brech t passou a in sistir em uma "reg ra básica" par a diferen ciar
o jogode aprendizagem da p eça épica: "atuar p ara si pr óprio é o pressupost o para a rea-
lização do jogo de ap re ndizagem como um ato artístico!". Segundo Walter Ben jamin,
"o jogo de aprendizagem fig ur a co m o uma situ ação específica devido à sua po breza
d e aparato, simplificando o relaci on am en to entre ator e espec tado r. C ada espec ta dor
é, ao m esm o temp o, um o bservado r e um ato r '!". A infl uência de Brecht na p rát ica
d o Drama se refere p rincipalm en te a es te as pe cto de sua te oria da ap re nd izagem : não
sen do plat éia das apresentações de o utras pe ssoas, os part icipa nte s tornam-se es pec -
tad ores de si mesm os" , d e seus próprios arg u me ntos e at itudes.

12 ü 'NEILL, 1989.
13 ST EINWEG , Reiner. Das lehrstuck . Stu tt gart: M et zler, 1972. p. 87.
1-1 BENJAM IN , Walter. Versltche iiber Brecht. Fran kfurt: Sührkamp, 198/. p. 36.
I S D orothy H cath cor e cunhou a expr essão "sclf-spcct ato r" (auto -espectad or) para identi ficar a

situ ação aqu i descrita como "espectador de si mesm o ".

40 BEATRI7. C. 4BRAL ( Bl.4S GE)


Implicações da influência d e Brecht .~ Boal no Drama

o trab alho didáti co de Brecht est ava baseado não ape nas em textos, ma s em
bons textos. As Lehrsr ücke contê m um teor desafiant e (quanto à fo rma e ao as-
sun to ) e de gran de dramati cidade, qu e chamam po r diferentes atitudes e permitem
desvelar vieses ideológi co s.
Baal re-trabalh ou os critérios de Bre ch t e intro duz iu novas convenções para
aumentar o dist anci am ento ent re o obse rvador e o personagem , por exem plo, o
"sistema coringa", através do qual os atores se alte rna m para rep resent ar a mesm a
personagem. Ba al não usa texto , mas trabalh a co m um grupo de ato res co m ha bili-
dad es para aceitar as su gestões da plat éia e ex peri mentá -las para checar possíveis al-
tern ativas para o problema". Para tradu zir estas experiências para o Drama, em sala
de au la, sem um tex to dramático ou atores que interpretem as contribuições dos es-
pect adores, a ampliação do campo de referê nc ias e do conceitual dep end erá do input
do professor. -Isto se refere tant o à qu alidad e da atuação do pr ofessor (pedagóg ica
o u artís tica), quan to ao (s) texto (s) usado (s) para en gajar os part icipantes co m a
cons t rução verbal (falada, escr ita ou cantada) e visual (física, espa cial e cênic a) do
processo do Drama. Um procedimento que assegura ao profes so r a delimitação de
um campo de atuação, o nde pod erá ampliar, grad ualmente, a int rodução de referên -
cias, problemas a serem resolvidos, e desafio s (confrontos) , sem perder a coerência
int erna da narrativa em co ns tr ução, tem sido o uso de um texto co mo pr é-t exto.
O texto , co mo pr é-t exto, segundo Cecily O'Nei ll, "o pera em diferent es mo -
mento s como uma espéc ie de 'forma-sup ort e' para os demais significados a serem
explorados!". Como pano de fundo, o texto torna-se uma referência para altern ativas
de ações, e subsidia o pro fessor na seleção e orientação dos jogos teatrais na identifi-
cação do contexto e na busca de coe rência int ern a para a narr ativa em processo.
A noção de pré-texto indica a necessidade de desconstru ir o tex to dra mático
a fim de adaptá-lo às co ndições e mot ivações do grupo, ou int roduzir parâmetro s
artísti cos de estrutura e linguagem a fim de tran sgredi r os limi tes do co tidiano e do
"já visto ". Trata-se de um pr ocedimen to metodológico que permi te, por um lado,
delimitar as int eraçõ es dos parti cipantes a partir do cruzame nto de fra gmentos do
texto com hist órias de vida, e, por outro lad o, ampliar as form as de olh ar e en ten-
der o texto e a cen a através do jogo teatral. Ent retanto, a re- construção do te xto
dramático ou a cria ção coletiva a partir de fra gm entos do tex to , exige a habilidad e
de um dramatur gist a. N o co ntexto esco lar, es ta constatação exige uma invest igação
metodológica co ntín ua.
A preocup ação co m o que os alunos aprendem ao part icipar do D rama tem
sid o expre ssa e anali sada po r D avid H ornbroo k, o qu al sugere que devem os inves-
tiga r métodos que possibilitem aos alu nos seu desenvolvimento co mo leitore s do
D rama, co mo espectadores das hist ó rias de o ut ras pessoas, to rna ndo-se assi m "al-
fabe tizados nas qu est õ es do palco '?",

1(, N ão esto u incluindo aqui o "teatro de imag ens", por con siderá-lo uma estratégia c não um a

form a teatral que introdu za element os da linguagem cênica - estes podem ser trabalhados se o
prof essor acrescentar o ut ras estratégias de leitur a ou construção da cen a.
17 O'NEILL, Ce cily. Dra m uiorlds: a framework fo r process drama. Londres: H einemann , 1995.

p. 22.
IM H O RNB RO O K, D avid. Education in drama. Lo ndres: Falm er Press, 1991. p. 6.

D o so ru v H U !H(;O TE - J!EDl.4 ç Ao [ IN IE RID"çAo NA CONSI R L'ç Ao DA N 'RR.iTl IA IE ArR., L LlI G RUPO 41


Em princípio, pod e-se argumentar qu e "alfabetizar em t eatro" depende mais
da habilidade do professor para estruturar a atividad e, selecio nar as conven ções
apro priadas e apontar as múltiplas faces d o te xto teatral durante seu processo de
criação do que da seleção de um texto, gêne ro o u tema.
O fato de que muitos professores se exime m de trabalhar com montagens
no co ntexto escolar é tão verdade qu anto aq ue le dos professores qu e costum am
envo lve r os alun os co m uma peça simplesme n te pedindo que distribuam os perso-
nag en s entre si, memori zem e apres entem o texto. Par âmetros curr icu lares, semana
de planejamento e co o rde nação de área ajudam ap enas em parte, se o profes sor não
tiver habilidade, co nh ec ime nto espe cífico e ex pe riência para estruturar e seqüenciar
o trabalho, de man eira a possibilitar qu e o s alunos per cebam e compreendam as
regras e co nvenções t eatrais durante o desenvolvimento do processo dramático -
enqu anto as usam. É esta compreensão que irá permitir que eles se tornem leitores
crít icos tan to de espe tác ulos teatrais quan to de out ros meios de comuni cação. O
importante aqui é que o drama, quer desen vol vid o como con strução coletiva co m
ba se na escolha temática dos alunos, quer a partir de um texto dram ático, exige um
co ns iderável input do professor durante o processo de descoberta gradual do te xto
e de seus subtexto s pot enciais. E m ambos os casos, o papel do leitor e o espaço da
leitura são fund amentais.

Dorothy Heathcote - significação em processo

M uito tem sido escri to a respeito da influên cia de D orothy H eathcote so bre os
professores de Drama e o alto grau de intervenção de seu modo de ensino. O argumen-
to, aqui , é que este co ns iste em um método dialético, no qual a interven ção funci on a
co rno um quebra-cabeça que oscila constante mente ent re os níveis metod oló gico e ide-
ol ógico. No seu aspecto extern o, a int erven ção reside na esfera da m etodolo gia - ao
estru turar e seqüenciar o trabalho - cada tarefa proposta por Heathcote põe em chequ e
a criação ant erior e traz à to na as implicações das atitudes to madas pelos alunos na tarefa
pr ecedente. Quanto ao nível ideológico, a int erve nção de H eath cot e tem como foco o
"leitor?" - ela aceita todas as contribuições dos alunos e int erage com eles atra vés de de-
safios postos pelas tarefa s que vai introduzindo a seguir. Pode-se dizer qu e ao selecion ar
as conven ções e estra tég ias e em dar prosseguimento à narrativa, Heathcote administra
a percepção dos participantes sobre a situação em pauta e, dest a forma, intervém ideo-
lo gicam ent e no processo.
Entretanto, em bo ra ela determine o material de trabalho" , ao introduzi-lo
e propor as tarefas para sua explo ração, os alunos o lêem e o u sam à vo ntade.
Su a interven ção não é ex plícit a; ocorr e in d ire ta m ente, atravé s d e ta refa s q ue
to rn am evid ent e as impl icaçõ es das ações to m adas ante rio rme nte . A cada novo
epis ódio, H eath cote leva em consideração as decis õe s e ritmo d os alunos, tal
co mo o bservados na et apa ant erior - isto t orna po ssível di zer qu e são os alunos

1'1 O co nceito de leitor, qu e nas recent es teo rias de p rod ução e recepção adquiriu um fone senti -

do de "produto r de significado s", mantém aqui as noções de esp ectador e percipiente; e tem sido
com umente usado para af irm ar a auto ria do aluno so bre o texto que está sendo prod uzido .
20 Ma terial de trabalho refere-se aqui a tud o o que o pro fessor intro duzir para in iciar o Dram a ou

durant e seu proces so - texto o u fragmentos de texto, objetos de cena, foto s e o ut ros impressos,
figu rino, etc.

42 B r.\ TRIZ C. BRA L ( B IAX l;[)


que, em última instância, definem a seqüência e a estrutura do trabalho, e que
sua abordagem dialética leva a um processo contínuo de ampliar e aperfeiçoar as
formas de recepção dos participantes.
Trata-se assim de um método de trabalho onde o professor amplia e aperfei-
çoa o conteúdo (o quê está sendo investigado cenicamente) através da forma (o como
está sendo trabalhado).
A participação em processos de Drama coordenados por Heathcote, entre os
anos de 1990 e 199421, permitiu-me observar um padrão comum às diferentes expe-
riências:

• o professor "lê" tanto o contexto quanto a atitude dos participantes, c


questiona o conhecimento destes sobre o assunto a ser investigado através do
Drama;
• o professor amplia e realça a contribuição do aluno, reformulando-a ou salien
tando aspectos que possam representar boas oportunidades de aprendizagem;' .
• o professor pinça no Drama em andamento um problema com potencial
dramático, introduz uma nova convenção e direciona o processo nesta direção;
• o professor desafia a leitura que os participantes fazem das circunstâncias que
estão sendo exploradas, principalmente através da introdução de novas
convenções que promovam uma troca entre expressões verbais e visuais;
• o ponto de vista ou perspectiva predominante no desenvolvimento de um
episódio será o ponto de partida do próximo.

o bom samaritano
"Um homem caminhava de Jerusalém para Jericó quando caiu nas mãos de
assaltantes. Os ladrões tiraram tudo o que ele tinha, bateram nele e o deixaram
semimorto à beira da estrada. Aconteceu que um padre seguia pela mesma estra-
da; mas quando ele o viu, passou para a outra margem. Assim, também um Levita
chegou ao local e quando o viu passou para o outro lado. Mas um samaritano que
estava fazendo a mesma jornada, chegou até ele e ao vê-lo foi tomado pela piedade.
Ele o levantou e fez uma bandagem em seus ferimentos, banhando-os com óleo e
vinho. Então, ele o colocou em seu próprio animal e o levou consigo para uma es-
talagem, cuidando dele ao chegar. No dia seguinte, ele deu duas moedas de prata ao
estalajadeiro e disse, 'cuide dele; se você gastar mais, eu lhe re-embolsarei em meu
caminho de volta"?".
Dorothy Heathcote, ao propor o uso de O bom samaritano como pré-texto
em um seminário do curso de Mestrado em Drama Educação, na Politécnica de
Birmingham em 1992, salientou a importância de o professor lembrar dois procedi-
mentos básicos para se iniciar qualquer processo de drama:
1. achar o elemento de tensão em cada episódio, sempre lembrando que lidar
com limitações evita que nos fixemos nas circunstâncias. Por exemplo, o homem
não poderá evitar a viagem, mesmo sabendo ser ela perigosa;

21 Neste período, participei dos scguintes trabalhos: "Mary Morgan", "O bom samaritano", "Dr
Knox", "Vivendo sob uma ditadura", "Channel Islands durante a ocupação nazista", "O projeto
de pcsquisa Oxfam", todos disponíveis em vídeo no Centro de Estudos em Drama na Educação,
da University of Central England, em Birmingham.
22 Lucas 10,29-35

DOR O inv Hr4THCO!E - MElJJ4ÇW E INJTRVENÇAo NA CONSTR['çio D,' NARIUT/I',4 IL4FRAL LII GRUPO 43
2. a tarefa escolhida não deve ser negociada, pois o tipo de aprendizagem ge-
rado relaciona-se com ela. Cabe ao professor determiná-la.
De acordo com Heathcote, o professor deve definir os elementos de tensão e
tarefas para cada episódio a partir do enquadramento e perspectiva da cena. Com a
parábola do samaritano, ela pretende levar os participantes a considerar a natureza
de correr riscos, aqui decorrentes da ajuda a inimigos moribundos. Assim, seja qual
for o enquadramento escolhido, o objetivo da escolha é se aproximar deste entendi-
mento sobre a natureza dos riscos. Os diferentes enquadramentos vão determinar
o relacionamento do grupo com a parábola e seu olhar sobre as situações propostas
em cada episódio. Como ressalta Heathcote, em sua prática, se as crianças querem
uma "batalha", rememorá-la, compreendê-la e entender suas estratégias é de dife-
rente ordem do que interpretá-la.
Perspectivas de Enquadramento - alternativas para O bom samaritano:
Agente: como argumento é proposto um programa de TV, onde um comer-
ciante aleijado (juntamente com seu libertador) está relembrando o momento
em que foi atacado. O programa dará a seu salvador uma medalha de bravura.
O contexto requer uma imagem acurada e detalhada - repórteres, câmera, som,
tribunal. A violência seria demonstrada e não interpretada - não haveria o fazer
de conta.
Observação: a linguagem gerada é a de um quadro sobre como "as coisas
eram" na época em que ocorreram. Há distanciamento e os papéis são de interme-
diários - os agentes que construirão a imagem do passado.
Guia: pastores encontraram evidências de que pessoas andam usando seu
abrigo - sinais de cavalos, lixo. À distância, observam um encontro entre ladrões e
um comerciante. Ficam com medo de interferir, mas foram vistos pelos ladrões. Na
vila, suas mulheres esperam ansiosas, vão ao seu encontro e os descobrem amarra-
dos e bastante machucados.
Observação: a linguagem gerada é a dos que contam - eles viram - eles esta-
vam lá. É importante que a violência haja ocorrido no passado, e que a tensão do
momento presente esteja concentrada na impossibilidade de revidar. É fundamental
que os alunos não sejam solicitados a fazer de conta que estão lutando, porque isto
seria inverossímil e, portanto, ridículo.
Autoridade: os participantes, como os pastores e suas mulheres, são con-
duzidos ao templo para fornecer detalhes sobre rumores de que haviam sido
atacados após um roubo, e que um padre e um Levita deixaram de socorrer o
homem que fora ferido, passando com indiferença pelo local. Os pastores e
as mulheres são pressionados a mudar de opinião e admitir que estavam en-
ganados. A cena estará centrada na força da autoridade e na pressão. A classe
representará as autoridades, o professor será o pastor que estará representando
todo o grupo de pastores. O contrário seria problemático, pois o professor ao
assumir um personagem de autoridade corrupto estaria ensinando posturas e
linguagem equivalentes.
Observação: a linguagem gerada é a do questionamento sobre o assunto - exi-
gir esclarecimentos, definições, explicações, de tal maneira que o registro seja útil
para as investigações.
Repórter: os pastores já se incomodaram o suficiente com este evento e com o

44 BEATRIZ CABRAL (BIANCE)


samaritano e não qu erem mais problemas. Eles se sent em am eaçados pel a atitude de
seus interlocutores. Formas distintas de entrevistas podem ser exploradas: d \,. "I. " "
ná-Ia para agradar as autoridades e considerar "o caso encerrado"; para realizar v : ;;;
reportagem sensacionalista e m o strar "um mundo cão "; para estabelecer a ord e m.
identificando os responsáveis.
Observação: a linguagem gerada é de doi s tipos: diálo go, durante a entrevi sta.
e forma escrita ou narrada para veicular a notícia.
Pesquisador: um hospital a ser inau gurado pretende utilizar a parábola "O
bom samaritano" como símbolo para divul gar que : a) eles dão assist ência a todos
que pr ecisam de ajuda; b) dar assist ência requer recursos financeiros , lugar se guro e
tempo integral; c) todos podem ser bons samaritanos - basta querer.
Observação: a linguagem gerada é a da busca de como este evento será visto
à luz das questões mais amplas. O grupo deverá incluir a hi stória na lo gomarca e na
divul gação do hospital. É neces sário considerar que: a) o hospital precisa de alguIn:1
forma mostrar qu e existe; b) o planejamento do apelo - a forma, o estilo, os meios;
c) a autorização daqueles que planejam.
Crítico : uma empresa de marketing preparou um programa referente à cam-
panha d o hospital e de spertou tanto interesse que está co nc orrendo a um prêmio
jornalístico. O mat erial está sendo examinad o por críti co s que darão seu parecer
posteriormente.
Observação: a linguagem gerada é a de pessoas qu e analisam e interpretam o
evento a fim de expressar sua opinião sobre o assunto. O professor dev e considerar
que : a) o programa deve ser percebido com o se realm ent e existis se; b) de ve haver
evidê n cias comuns disponíveis a todos os participant es; c) deve haver meios de
examinar estas evid ên cias; d) é neces sário tempo para ab sor ver as evidências; e) é
ne cess ário tempo par a comentar o estilo, a forma e o co nteúdo; f) é ne cessário um
público convidad o pelo s críti co s.
I
A s perspectivas de enquadramento apresentadas acima vão requ erer papéi s
f e fun çõ es distintas por parte d o s participant es. Em d ecorrência, es te s usarã o
I
! lingua gem e atitudes de acord o co m sua fun ção e s t at us . Ao propor "O b om
t samaritano" com o pré-texto , Heathcor e co nd uz iu um process o d e Drama es -
truturado através de episó d ios , e indicou a alternati va d e alterar a p er spectiva d e
i' enquadramento da sit uação e d o gru po em cad a e p is ó d io , ou em grand e part e
1 deles. N este sent id o, foi possí vel observar e vivenciar a parábola so b perspec-
tivas di stintas. Ao fazer isso, o s participant es perceb em as implicaç ões das ati-
tudes tomadas, o u não tomadas, e usam Jo gos de lin guagem próprios de cada
contexto.

Episódios: decomposição e significação

H eathco re co nd uz proc essos de Drama caracte ri za dos como uma seq üê ncia
de episó d io s delimitados pelo me smo pré-t exto. Cada episó dio significa - em - si,
isto é, focaliza um aspecto do pré-texto qu e é apresen tado e apreciad o independen te
do que o antecedeu. Trata-se de um processo de decompo sição - de uma peça, um
texto, um problema ético, de paradoxos e metáforas d e o rdem pes soal ou social -
que já possui um percurso traçad o na área da pedago gia d o teatro.

Doso n t v Hr.cnn .ort - .If[J)H ç:Ao [ },\' rE RI '[.\'Ç.40 NA CO SS1 R U Ç4() D.' N 4RR4TJ\:' nA r R.U [11 GR UP O 45
Ao anali sar as cenas Brechtianas, Ban hes parte da es tét ica de Diderot e sua
identificação entre cen a teatral e pintura: "a peça perfeita é uma sucessão de qu a-
dro s, isto é, uma gal eria, uma exposiçã o : a cena oferece ao es p ecta dor tant o s qu a-
dros reais, quantos momentos há na ação, favoráveis ao pintor" 13. No teatro ép ico
de Br echt (qu e procede por qu adros sucess ivos ), diz Banh es,

[...] toda a carga significante e aprazível incide sobre cada cena, não sobre o conjunto ;
ao nível da peça, não há desenvolvimento, não há amadurecimento, há um sent ido
conceptual, certa mente (até mesmo em cada quadro ), mas não há um sent ido fin al,
são apenas recortes, cada um com suficiente força dem o nstrativa" ,

Esta carga significante e aprazível que incide sobre cada cena foi con siderad a p o s-
teriormente por Lessing como instantes plenos. O teatro de Brecht e o cinema de Ei-
senstein, diz Banhes, são seqüê ncias de instantes plenos. O cin ema de Eisenstein inclui
todas as ausênc ias (lem branças, lições, promessas), que to rn am a história simult anea-
mente inteligível e desejável. Em Brecht, é o gestus social qu e retoma a idéia do instante
pleno. Este:

[...] é um gesto, ou um conjun to de gestos (mas nunc a uma gesticulação) o nde se


pode ler to da uma situação social [...] nem to dos os gestus são sociais: não há nada de
social no gesto qu e faz um homem para espant ar uma mosca ; mas se esse mesm o ho-
mem, mal vestido, debate-se contra cães de guarda, esse gestus torna-s e social [... r 5

Par a Brecht o gesto soc ial pode se r o bservado até m esmo na língua. U m a lin -
guage m pode ser gesrual, ele afirma , qu ando ela indica ce n as atitudes que o o rad o r
ado ta em relação ao s outros. Assim co mo a lin guagem , as at it ude s são socialm e n t e
co nst ruídas , e de term ina m a fo rm a co m q ue perc ebem o s o mund o . D esven dar es ta s
at itu d es, e perceber o qu e Witt gen st ein co n sid era co mo "o p oder en ganador da lin-
g uagem" é o d esafio da educação co nte m po râ ne a. Segundo o filósofo , as fo rmas de
falar não são elemen tos isolados e sim u m a pan e profun dam ente arra igada de n o sso
estilo de pensar e ex p ress ar, que no s m antém so b co nt ro le". El e esclare ce que n ão
podem os forçar o pen samento, ma s para se ch egar a um a at itude pen sante é n eces-
sá rio qu e se produ za um corte. Ao lon go de seu tr abalh o , fez algu mas obs erv ações
sobre a maneira pel a qual podemos chegar a o bservações esclarece do ras ao abordar
um fenôm eno (o u problema) por uma per sp ectiva difer ente: memórias, de scriçõ es,
chistes, m etáforas e ironia. Acima de tud o, bu scar clar eza e co m preensão através d a
linguagem.
O trabalh o de Heathcote revela um método de ensin o ce ntrado em diferentes
níveis de inte rven ção do professor nas formas de ver o mun do e int era gir em grupos,
em torno de conflito s e so lução de co nflitos. Ao prop or fo rma s dist intas de enquad ra-
mento para um me smo texto ou pré-texto, ela está mudando per spectivas e priorizando
a linguagem co mo fo rma de intervir na ação do gru po e levá-lo a interagir ent re si e em

23 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. 4. ed. Rio de Janeiro: Nov a Fronteira, 1990. p. 86.
24 BARTHES, 1990, p. 87.
2S BARTHES, 1990, p. 88.
2(, H EATON, John M . Wittgenstein y e]psicoaná fisis. Barcelona: Gedisa, 2004. p. 14.

46 B LATR/ l C.'BRAL ( B /AN e L)


rela ção ao texto e co ntexto. Segund o H eathcote, Drama não é um recontar de hist óri as;
ao alte rar perspect iva e função na inves t igação d e atitu des e ações, o su jeito co meça ;)
notar n a-J OS aspectos da situ ação sendo explo rados e os co nflitos se dissolvem co m ;1

compreensão decorrente do que se diz e se faz no novo co ntexto . A situação de in -


vesti gar um problema no decorrer de distintos episódios permite, assim, co mpreende r
e dar nom e às confusões de linguagem e pensam ento, esclarece ndo as relações que se
enc o ntram em esta do de co nfusão.
As diferent es fo rm as de focaliz ar e ana lisa r uma narrati va desen volvida atra-
vés d e episódios t êm em co m um a identifica ção e acentuação d e um foc o d e atenção
para torna r cada m omento sign ificante em si. Em t ermos estruturais, é possível te r
um a hist ória, e divid i-la em episódios , a fim de explorar diferent es p erspectivas o u
enfati zar detalh es (p ro cesso de segmentaçã o ), ou ter um episódio inicial que irá
gerar situ ações ou qu estões para novos episódios que deverão ser con ectados po s-
terio rm ente para form ar a narrativa (pro cesso d e co m posição).
A importâ nc iade se con sid erar as formas d e estruturar a narrativa em Tea t ro/
Dram a-Educação es tá associada ao fato d e qu e o cres cimen to e reconhecimen to
d est a área do fazer teat ral passa pela ne cessidade de es ta belece r sim ilarida des e di-
ferenças co m faze res af ins, co ndição esta que delimitar á se u es paço ent re as art es
co nte m po râneas .

D O RO Il Il · H é.4THCO {[ - .I1[}! I.4(.:40 [ I NUR\ ,[N(.A o -:..4 CON\JR i :(Ao 1).4 NARRATII :; TL.n R.·'L [.<1 C RUO 47
r

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48 B C1TRI7. C AnR1L ( B I.1,\ 'GL)


PEDA GOGI A DO J O GO T EATRAL: UMA PO ÉT ICA D O EFÊMERO l

Ca rmela Soares

Como professora de t eat ro do sistema mu nicipal e estadual do ensino público


do Rio de] ane iro , procuro refletir, neste estudo, so b re as possibilidade s de se realizar
na práti ca, especificame nte dentro da grade curric ular, uma ação pedagógica co n dize nte
co m os princíp ios da lingu agem t eatral. Neste sentido, atribuo ao jogo te atral, papel
cent ral na formulação de uma ped agogia, que se propõ e a desenvolver e es tim ular a
educação estética do aluno.
A gran de questão que se col oca em evidên cia é qu e fu nção o jo go teat ral oc u-
pa na práxis ped agó gica?
E ainda, como o jogo te atral permite ao aluno enco ntrar o gan cho d o praz er e
reconhecer a natureza e o valor esté t ico do co n hec ime nto?
Portanto, de qu e maneira, dentro do caos da so ciedade contemporân ea e dentro
de. co ntexto esco lar, o aluno ainda po de encontrar e dar significado à sua vida e às ações
humanas? Segundo Carlos Byingtorr' , o aprendizado escolar e o desenvolvimento do
ser human o devem passar pe la capac idade do ind ivídu o e da escola de cria r sí mbolos e
image ns sig nificativas o u "es t ru turantes do selí " - de si m esm o - como ele de nomina.
A função principal dest as im agen s é a de apoia r (n o sent ido de suste nt ar) a forma-
ção de u ma person alidade integr ad a com o to do, a partir da visão de unidad e, e não de
fragmentação , que tem pr evalecido no mund o contemporâneo. C ertamente, propor-
ciona r aos alunos uma educação estética é um dos gran des desafios da soci eda de atu al,
um a vez qu e ela está sofrendo, em escala gigant esca, os clichês, as imagens e o s símbolos
de mem óri a curta que os meios de co mu nicação de m assa multiplica e reprodu z.
Encontram os, assim , n o ato de levar o jogo t eatral para a escola, um m eio va-
lioso de pr opo rcionar ao alu no uma ed ucação es tét ica , fun dada na ex pe rime ntação,
na relação se nsíve l e diret a co m o espaço e co m o o u t ro , na pr odu ção e ap reciação de
fo rmas e im agens teatrais, qu e lh e permitam exp erim entar e criar n ovo s uni versos
simbó lico s, d o tad o s de maior sig ni ficação para Sl\3 vida.

I Este art igo teve ori gem a parti r de mi nha di ssert ação de mes trado, int itu lada Pedagogia do jogo
teatral. SOARES, C armel a. Pedagogia do jogo teatral: uma po ética do efêmero. O ensin o do Te-
atro na Esco la Pública. 2003. D isse rta ção (M estrado) - Ce nt ro de Letr as e A rte s, Universidade
Federal do Estad o do Rio de Jan eiro , Rio de Janeiro, 2003.
! BYIN GT O N, C arlos Ama deu Bo te lho. Pedagogia simbólica: a construção amo rosa d o co nhe-
cimento do se r. Rio de Janeiro: Reco rd: Rosa do s Tempos, 1996.

49
Em sua n atureza , o jogo teatral pressupõe a inv en ção e a rein ven ção , a partir
d o vazi o; dos jo gos de corpos e do uso d o espaço, nas co n d içõ es em qu e se apresen-
ta. E até mesm o da falt a. D a falt a d e int eresse do s alun os , da falta de escuta, da falt a
de co m unicação, da falta de auto-es t im a e, principalmente, da falta de ot im ismo qu e
caracteriza o s jovens de no sso país, muitas veze s massac rados por uma realidad e
social, famili ar e escolar, qu e os dist an cia de si mesm o s e de se u pod er e direito d l'
expressão.
Partindo- se desta per spect iva, o jo go teatral é elevado à categor ia de obj eto
est éti co, ou se ja, p ossui um a elabo ração formal e, enq ua nto tal, é produtor d e um a
te atralidade em sala de aula, que poderá se r reconhecida e ap re ciada à medida que o
olhar do alun o , como também d o pro fe ssor, for trabalhad o n esta dire ção.
Esta teat ralid ade , no en tanto , tem características particulares ao co ntexto es-
col ar e está sujeita a inúmeras variá ve is. Seu aspe cto é t ênu e, impreciso e manifest a-
se em meio à profusão de corp o s, ges tos, sons, ru ídos, num m o vim ent o de o rde m l'
de sordem, caract erístico da sala de aula. Ela não se define co mo no teat ro profissio-
n al, po r seu alto grau de acab amen to formal , mas, mesmo assim , pod e se r reco n he -
cida, enquant o forma expressi va dotada de qu alid ades es té ticas.
E n qua n to objeto est étic o , o jo go te atral ca m p a n a, e m sua an ális e, doi s
el em entos di st in to s e co m pleme nta r es: um eleme nto m ateri al e o ut ro n ão m ate-
ri al. I sto sig n if ica qu e, se po r um lado , o jo go teatral p ode ser rec onhe cid o por
suas ca rac te r íst icas formai s, ist o é, p or seu asp ecto co ncreto, visíve l e se ns íve l,
p o ssui tamb ém um a dimen são sim b ó lica, o u seja, é da o rd e m d o vivido, d a ex pe -
ri ênci a e, en qua nto tal , é capa z de co locar o aluno e m co n t ato com o d entro e o
fo ra d e si m es m o. Ass im, at ravé s d e um subs tra to m at eri al próprio da lin gu agem
t eat ral, pod em o s ve r s urgi r, em sa la d e aul a, im agen s poé tic as de grande sig n i-
fi cac i o para o s alu no s. Tr adu zidas e m sens açõ es, se nt ime n tos , pen sam en t o s e
percep ções int eri ores, est as im agen s n ascem d a rela ção d e tro ca ent re o s u je ito
- jo gad o res e es p ect ado res - e o obje to , ou sej a, as fo rm as sens íveis gerada s n o
d ecorrer d o própri o jo go.
A ssim , a n oção d o objeto esté t ico permite-nos reco nh ecer que o jogo teatral
praticado em sa la de aula comporta um sent ido qu e perten ce à própria es fera d a
expe riênc ia do te at ro, co m pree nd ida como um aco ntec ime nto ún ico , realizado n o
m om ento presente e dotado de uma carga expressiva capaz d e despertar, n o alun o ,
o co nhec ime nto de si mesm o e do mundo .
Portant o , o n de resid e a beleza d o jogo teatral realizado em sala de aula ?
Segundo Duarte" a beleza nã o é atributo ali pr opri edade qu e pertença ao su-
jeito ou ao ob jeto, mas se local iza n esta zo na de enco n t ro ent re um e outro .

A be leza hab ita a relação . A rela ção o nde os sent im en to s en tra m em co n so nâ nc ia


com as formas que lhes tocam , vin da s do exter ior. O prazer estét ico resid e na viv ên -
cia da harmo n ia descob erta ent re as fo rmas din âmi cas dos sentim ent os e as fo rmas
da arre' .

j DUARTE J Ú NI O R, J oão Francisco. Fundamentos estéticos da educaçdo. 2. ed. Ca mpinas, SP:


Pap irus, 2000.
4 D UARTE , 2000, p. 93 .

50 C4 R I / [ U S"' R[ '
D a mesm a maneira, a beleza do jogo teatral resid e ne ste espaço int errnedi ário
entre sujeito e ob jeto, que Winnico rr 5 den omina de "espaço em potencial ". Seglll l L
es te autor, o jogo tem localização particular, ocorre num en tre doi s, não esi a 1 )( )I :
d en tro e nem fo ra do sujeito, mas se dá nest a relação de tro ca, de intercâm bio , C I I UC
su jeito e objeto, ent re realidade e fanta sia. É então, por m eio do jog o, que o h (lll ll ' l ]l
ass ume, em relação à realidade, uma po stura at iva e dinâmica de transforrna çào da
mesm a. Por co nseguinte, é jogando qu e o homem atribui sentido e significado à vida .
A realidade é, dest a maneira, uma criação do indivíduo qu e joga. Aqu eles qu e têm
prejudicada sua "cap acidade jogo " ou interação lúdica com a realidade, encontram-se
num estado de to tal "s ubmissão" , de indiferencia ção em relação a si mesmo e ao (lI!
t ro, o qu e termina por acarretar no indivídu o pr obl ema s d e o rde m psicológica.
O "espaço intermediário" característi co do jogo , como defin e Winniccon h , ~
também o espaço da ex periência est ética, "o pla)'ground", o u mai s especificamo» te , " . \
campo de experimen tação criativa da realid ade", que permitirá ao bebê e, mais t.n de,
ao homem, em relação a este mundo, desenvolver um sen t ime nto de perten cimento ,
de int egração, de totalidade e, ao mesm o tempo, descobrir sua própria singularida d e.
Na experi ên cia esté tica co m o jogo teatral , a co nsc iê nc ia do alun o é la n -
ça da n este espa ço int erm edi ário , ond e a pe rce pção d o o bje to pa ssa a oco rre r a
partir de um a co nsc iê nc ia mai s expandida em qu e cabe aos se nt im ento s e às se n -
sações , difer ent em ent e, da con sciên cia p ráti ca (n o se n t ido d e ape nas co nce it ua l,
rac io n al), o rie nta r a rela ção su jeito-o b jeto, agor a d ent ro d e uma per sp ecti va d e
to ta lida de .
Ao conceb er a n o ção de "es paço-vazio" , inspirad o no pen sam en to de d i··
ve rsas cult uras , veri ficam os qu e Br o o k também no s rem et e à id éia do terceiro
espaço , ou se ja, d o "es paço em po ten cial", definido por W in n ico tt. N o "espa co -
va zio", o sent ime nto d e du alidad e, pro voc ad o pela vivência de se paração sujci « ,.
mundo, é supe rad o . O joga do r, através d e um a at itu de lúdi ca, que co m po rt ;l o
in esp erado , ent re ga-a ao mom en to presente , alcançaria um a área de silênc io q ue
co rres po nderia à ex periênci a do sag ra do, do absoluto o u d a to talidade, em ljl ;, '
s u jeito e mund o são per cebid os co mo pa rt es integrant es e, ao mesm o tem p o , di -
ferenciadas de uma m esma realid ad e.
Pela co nce pç ão do "espaço vazio", as ações cênicas n ão estariam restritas o u
limitada s a construçõ es mentais, ma s surg iriam de dentro d e um espa ço in teri o r
am p lo, aberto, enraizado. A partir deste es paço, não é preciso "fazer nada", n ão é
ne cessári o "pensar em n ada": toda ação na sce espontaneamente da completa prc··
sença e disponibilidade do ato r em cena. Quand o o ator alc ança est e esp aço , ele ext á
totalmen te im er so num estado criativo. N ão recorre a cli ch ês o u a ações me cânicas
como forma de ex pressão , mas é capaz de se co locar aberto e se m m edo, diante d a s
in certezas qu e es te lu gar provoca.
Par a Brook", n o teatro, a inte ns a ativid ade mental qu e d iri ge as ações hum a-
n as, princip alm ente do ho mem oc ide ntal, a partir do es paço-vazio, cede lugar à vi-
vê nc ia de um a expe riênc ia sensível e dire ta co m a realidad e cê nica e, portan to, m a is

5 W INN ICOTT, D o nald Woo ds. O b rincar e a reillida de. Rio de Jan eiro: Im ago, 1975. p. 7 1.
(, WI NI C OTT, 1975.
7 BRO O K, Pete r. A porta aberta : reflexões sobre a inter pretação e o teat ro. Tradu ção A nt ô nio

Me rcado . 2. cd, Rio de J aneiro: C ivilização Brasileira, 2000. p. 19.


x BRO O K, 2000.

p [ J).-it;U (; !4. D O j O< ,O JL J,TR:,I-: 1.'1/.4 j'O[nC4 lJU ( rL.l1rRO 51


autêntica e viva. Por isso, mais do que um espa ço físico de spojad o, "o espaço -vaz io"
consiste numa disp onibilidade int erna de se dar ao jogo, qu e gera, por sua vez, a
capacidade de reco nhe cer a beleza qu e perm eia as relaçõ es e as formas.
Na esco la públi ca, podemos perceb er qu e grande part e do s alunos vive o de-
safio de existir verdad eiramente, ou se ja, de superar o esta do de "submissão " ou
esquecimento a qu e mu itos estão sujeitos . Encont ramos, pois, no jogo teatral um a
possibilidade de desp ertar o aluno para este "es paço-vaz io ", para est e "espaço em
potencial", autênt ico , criativo em cada um.
Para compree nde rmo s a expe riê ncia de beleza propor cion ada pelo jogo teatral
em sala de aula, é importante recorrerm os também às idéia s de Huizin ga? a respeito
do jogo. Huizin ga aproxima o jogo do domínio da estética ao esclarecer que ele
produz ordem e é o rd em . "Os laços qu e un em o jogo e a bele za são muitos e bem
íntimos. Em suas formas mais complexas, o jogo está saturado de ritmo e harmo-
nia, que são os mais nobres dons de percepção estética de qu e o hom em dispõe".
Descrevendo as qu alidades formais do jo go , ele destaca: a inten sidade, a ten são ou a
incerteza, o prazer, o divertimento, a ati vid ad e volunt ária, o cará te r de sinteressado
do jogo, sua delimitação em limites de es paço e tempo, a criação de uma realidade
paralela diferent e da vida habitual, o cará te r fictício ou representati vo, a sujeição do
Jogo a cert as regras.
Da mesma maneira, o jogo teatral na esco la pode ter sua beleza reconhecida,
quando realizado dentro de um clima de alegria, intensidade, prazer e tensão; quando
obedece às regras propostas pelo pro fessor ou pelo grupo ou , ainda, quando reinventa
o utras; quando tem carát er livre e não é imp osto ; quando instaura um a realidade cênica
diferente da vida co tidiana; quand o tem sua área de jogo delimitada ou enquadrada e
quando, pela imaginação, cria inúmeras imagens e metáfora s deco rrentes de um proces-
so contínuo de simho lização.
D e aco rdo com o conceito de jo go proposto por Hui zin ga" , podemos afir-
mar que o jogo teatral, enquanto obj eto esté t ico, possui uma estrutura ou realidade
independente , autô no ma, portadora de se nt ido próprio, confi gurada no decorrer
do próprio jogo, pel a manipulação de uma materialidade espe cífica ao fazer teatral.
Isto significa que , por meio do jogo, os elem entos materiai s do tea tro co mo text o,
espa ço , person agem , gesto, so m, movim ento , corpo, serão o rga nizados, ativa e di-
namicamente, dentro de uma linguagem , de um a estrutura sign ificante que garan tirá
à cena a criação de uma forma exp ressiva, ou seja, de um a teat ralid ade.
D essa man eira, o jogo teatral deixa de ser um simples exe rcí cio, a ilustração
de um tema ou mesmo um mero momento de brincadeira e se defin e como um a
experiência esté tica. Exp eriência qu e surge pela interação im edi at a do sujeito co m o
o bjeto confecc iona do no mom ento pr esente e que é, portanto , d inâmi co e efêmer o,
mas so bretu do vivo e pulsante.
Por est e motivo , encontramos na textura viva do jogo te at ral, a própria es-
sên cia e caracte rística fundamental do objeto estético. N a sua int ensidad e, o jo go
teatral realizado em sala de aula apresent a um sentido de orde na ção , ritmo e har-
monia e, enquanto tal, resulta num to do o rgânico, vivo, expressivo, capaz de lan-

9 HUIZINGA,]oh an. H omo Ludens: o jogo co mo elemento da cultura. 4. ed. São Paulo: Perspec-
tiva, 1996. p. 10.
10 HUIZINGA, 1996.

52 C 4R,IfEU SOARE.\
çar jogador e espectador numa experiência de troca -e de partilha. Nesse momento,
podemos perceber, em meio ao movimento de corpos, ruídos e sons caracter ísticos
da aula de teatro no ensino público, o tra çado de pequenos desenhos cêni cos, isto
é, de "pequenas forma s", pequenos momentos de criação. Estas pequenas form as
estão fortemente determinadas pelos valores expressivos da contemporaneid ade,
uma vez que a falta de se nt ido do mundo atual e o aspecto desarmônico das estru-
turas sociais resultaram na criação de uma linguagem teatral em qu e o fra gmento e a
descontinuidade predominam, enquanto qualidades estéticas e formais.
Por conseguinte, as imagens criadas no decorrer da aula de teatro nem sempre são
nítidas ou totalmente delineadas. Podemos compará-Ias a um borrão no pap el, onde as
formas se esboçam, mas não se desprendem totalmente, imagens tran çadas num tempo
ínfimo, num segundo, mas, assim mesmo, com poderes de encantamento e formadoras
de memória.
À semelhança co m o teatro contemporân eo , podemos verificar qu e o jogo
teatral realizado em sa la de aula produ z im agen s independentes, flashes, supe rpo -
sições, que um olhar at ento e bem treinado poderá captar. D este modo, basta tr a-
balhar sobre esta forma expressiva, dar-lh e dimensão , acentuar seu aparecimento e
desap ar ecimento, m ostrar sua exist ência e as m aneiras co mo del a podem os di spor,
inten cionalmente, no ato da comunicação te at ra l.
A comunicaçã o dentro da escol a oco rre nesta dimensão múltipla do olh ar,
caract erística do teatro e do mundo cont emporâneo. Um olhar qu e já não abarca o
tod o como no teatro rena scentista, época em qu e o homem é co locado no cent ro
do espaço e, a partir daí , relaciona-se co m a natureza e com o mundo ao seu redor.
O o lhar contemporâneo tem a visão dos frag m ent os que compõem es te tod o, a sua
supe rfície, virt ualidad e e desdobramentos, como no s lembra Fayga O strow er !'.
A ocupação desordenada do espaço feita pelo s alun os ao ent rare m em sala Jc
aula, a pr ofusão de movim entos, uma guerra de papel, o repicar do sino da igreja ao
lado, o chão cobertos de folhas de amend oeira s podem transformar-se em motivo de
jo go. Tudo pode ser usad o para aprender a lin gua gem do teatro: seus elementos, cli-
mas, tons, a importância de um objeto no espaço, a força express iva do silêncio, o sig-
nifi cad o do "espaço-vaz io" que comporta o ges to, o olhar e suas inúmera s representa-
ções . Trata-se, portanto, de identificar, no cotidiano da escola e da vida, a pres en ça de
uma mat erialidade específica ao fazer teatral, qu e não está restrita apenas ao domínio
do texto e do diálogo. D este modo, antes m esmo de qualquer tentativa de teatraliza-
ção da cena, que muito fr eqüentement e leva à aplicação mecâni ca do s có digos teatrais,
é importante direcionar o olhar do aluno, co m o nos faz recordar Ryngaert " , para os
elementos de teatralidade, involuntários, advindos do lugar real.
A per spectiva é de qu e os alun os possam identificar os ele me ntos de teatrali-
dade manifestos espontaneam ent e, como também sejam capa ze s de incorporá-los,
progres sivamente, dentro do campo da ação cênica propriamente dita. Assim, um
espaço, um gesto, um balançar de árvores, uma mudança de luminosidade, o baru-
lh o re pentino da ch uv a, tud o pod e ser tomado pelos alunos , durante o jogo tea-
tral, co mo signos con cr etos de um a teatralidade. D essa maneira, o aluno aprende,

11OSTRü WER, Fayga. C riatividade e processo de criação. Petróp olis: Vo zes, 1999.
11RYN GAERT, Jean -Pierre.Jouer, représenter: pratiques drarnatiques et for mat ion . Paris: C edic,
1985. p. 60.

P [ DAGO GIA DO JOGO TL4TIVIL: UMA POtTlCA DO utM[RO 53


paulat inamente, qu e o jo go é um campo ab erto, enriquecido pelos si gnos, que se
co ns t it ue m no decorrer da própria ação e não um ca m po fechado , det erminado por
convençõ es rígidas e tran sp o stas mec anicam ente par a o se u int eri or.
Na sala de aula, buscam o s est imular a ent rada do aluno no jo go , com o tam-
bém refletir e analisar a di nâmica de criação das im agens: sua or gani zação formal,
suas cores, intensid ad e, m ovimento ou a man eira como se desenh am no esp aço. O
o b jet ivo é desenvolver o o lh ar int enc ion ado, o o lha r co nsciente so b re as fo rmas
dim en sionadas no esp aço, ampliando a exp eri ência se n sível dos alunos em torno das
qualidades estéticas do jo go teatral e, por conseguinte, tornand o poss ível o desd o-
bram ento do seu campo de sig ni ficação.
D entro do co n tex to rude e ant iesté t ico, carac te rís tico da esco la pública, pen-
sa r uma "p oé tica do efêmero", co mo proposta me todol ó gica para o ensino do tea-
tro, torna-se fundamental. Por meio do jo go teat ral, procuramos articular, dentro
de u m to do significat ivo para os alunos , as image ns qu e se esboçam , ain da que de
ma ne ira fra gm entada e in acab ad a, no co t id iano escol ar e da vida.
As sim, mesmo qu e as condições do ensino público não sejam as mais ad equa-
das, tentamos supe rar as dificulda des tirand o partido da situação con creta que se
ap resenta em sala de au la, at ravés do reconh ecim en to e da exploração d o s sig n os e
da materialidade dos có d igos teat rais.
Por est e motivo, a noção do jo go teatral, enquanto obje to estético, permite-
no s reco n hece r na esco la, em m eio à sua rotin a diár ia, a co nfeccão e a leitura de um a
teatralid ad e que, mes mo mar cad a por uma tessitura ef ême ra, está carregada de bel e-
za e p oesia. A partir desta persp ecti va, encont ramos na fo rmulação de um a ped ago-
gia do jogo teatral com o poética do efêmero , a p ossibilidade co ncreta de en sinar e
de apre n de r teatro na escol a pú bli ca, seg un do os princíp ios da lingua gem teatral.
Cons ide ramos fun dam ental, n o ent anto, destacar e analisar a fu nção de dois
eleme ntos pedagógicos importantes para a realização dest e obje t ivo . São eles: o
olh ar e o esp aço. Es tes d ois elemento s estão inter-relacionados. Nest e sentido, o
o lhar é trab alh ado em fu nção d e um espaço enqua d ra do, ou seja, à me d ida que um
d et erminad o espaço é delimitad o, o o lhar so b re este espaço é int ensificad o. Isto é,
to rna -se mais co nsciente, focado, inte ressad o so bre as fo rm as, mo viment os, o bje-
tos e se n t ime nt os es t ruturad os no de correr do próprio jo go. O olhar ga n h a, então,
uma q ua lidade nova: deixa de se r um olhar práti co e ut ilit ário, para, ago ra, ass u mir
uma di men são est éti ca. D esta man eir a, pelo en qua d rame nt o do esp aço , o o lhar,
sob re es te mesm o espaço, m odi fica- se, passand o a se r percebido ou vivenc iado no
se u elemento de bel eza. Esta é, portanto, a m agia do jogo teatral na sala de aul a. Por
se u intermédi o, os alun o s tr an sformam o esp aço institucion al em es paço lúdico , em
es paço poéti co.
Segu n do Stanislavski!' , o o lha r est á n a ba se do jo go teat ral: "É ess enc ial nos
reeducarmos para o lhar e ver n o palco, para escu ta r e ouvir".
Diante dest e prin cípio, St an islavski !' d esenvol veu um recurso didático , cu ja
fun ção é au xili ar o alu no a concen tra r a ate nção no es paço da cena, ist o é, na-o
qu ilo qu e aco n tece na esfe ra do jo go teatral. A o trab al har sob re os " cí rcu los de

13 STAN ISLAVSK I, Constantino A preparação do ator. Tradução Pontes de Paul a Lim a. 17. ed .
Rio de J an eiro: C ivilização Brasi leira, 200 1. p. 112.
H STAN ISLAVSK I,200 \.

54 C 'k,l/LU SOAREI
atenção", que correspondem a enquadramentos espaciais diferenciados, pequeno,
médio e grande, o aluno estabelece um foco de atenção em relação aos, d" ' )
colocados mais próximos ou mais distantes dele. Ao realizar tal objetivo \, j ,i

colocar de forma atenta na relação com o espaço do jogo, o desconforto d , ' UJI
diante de uma platéia é superado, ampliando-se a consciência do aluno em relação
aos elementos necessários à criação da realidade cênica.
Neste estado de atenção concentrada, o aluno, de acordo com Stanislavski lS
tem sua percepção estética ampliada, pois intensifica a relação com o espaço ao
redor e com os elementos necessários à criação da realidade cênica. Desta forma,
percebe os objetos nos seus detalhes mais intricados e, ao mesmo tempo, entra em
contato com as variações e os matizes dos seus sentimentos e pensamentos.
Outro aspecto importante da teoria dos "círculos de atenção" é a perspectiva
de que o olhar, direcionado dentro de um espaço delimitado, leva o aluno à ação,
Ao entrar na relação com o objeto, através da observação, o aluno é movid. a af~ ir I

e agindo descobre novos aspectos do mesmo objeto, expandindo o seu campo de


percepção, como se pode verificar através das palavras de Stanislavski:

A observação intensiva de um objeto naturalmente desperta o desejo de fazer com


ele alguma coisa. Fazer qualquer coisa com ele intensifica, por sua vez, a observação
do mesmo. Essa inter-relação mútua estabelece um contato mais forte com o objeto
I6.
da atenção de VOCêS

Partindo deste princípio, o espaço pode ser considerado o elemento tunda-


dor do jogo teatral. Na escola, podemos verificar que o procedimento prático de
enquadrar os espaços ajuda o aluno a vencer a resistência inicial de se colocar em
Jogo. O espaço funciona, assim, como um elemento concreto que estimula .1 ll,10
e a exploração sensível. Desta maneira, o espaço apresenta-se como um convite de
entrada ou como um elemento facilitador do jogo.
O procedimento metodológico de diferenciar o "espaço do jogo" do "espaço
do não jogo" possibilita também aos alunos irem fazendo, de modo progressivo, a
passagem entre a simples brincadeirinha e a experiência teatral. Ao entrar e sair de
um espaço definido, aos poucos, eles começam a perceber que a ação no teatro se dá
segundo regras e convenções específicas, diferentes da realidade. Nesse momento,
o jogo deixa de ser sinõnimo de "bagunça", "maluquice" e a simples diversão em
sala de aula ganha um novo estatuto, o jogo passa, então, a ser chamado de impro-
visação, cena, teatro.
Por conseguinte, a delimitação de uma área de jogo coloca o olhar dos alunos
sob perspectivas diferentes, ora assumindo o lugar dos jogadores, ora dos especta-
dores. É, pois, através deste jogo de olhares, que o fenômeno teatral passa a existir,
como nos revela Pavis, ao definir o significado da palavra grega theatron:

A origem grega da palavra teatro, o theatron, revela uma propriedade esquecida, po-
rém fundamental, desta arte: é o local de onde o público olha uma ação que lhe (-
apresentada em outro lugar. O teatro é mesmo, na verdade, um ponto de vista sobre

lS STANISLAVSKI,2001.
16 STANISLAVSKI, 2001, p. 111.

PElJo4GOGJ4 DO fOGO TL4TR4L: UHo4 POÉTICA 1)0 [[ÉlfERO 55


um acontecim ento: um o lhar, u m ân gul o de visão e raios ópt icos o cons tit u em . T ão
somente pe lo de slocamento do o lhar e objeto o lhado é que ocorre a co nstrução o nde
tem lugar a re p rese nta ção".

Por esse m otivo, Ryn gaert 1S ressalta que a prática do jo go n o ensino do teatro
deve levar em consideração o lu gar de o n de se vê e o lu gar de o n de se é vis to . f'\k '; -
t e se n t ido, é im portant e colo car o o lh ar d o s alunos em rel ação ao espaço do jo go, t
levá-l os a o bserva r e a p er ceb er o es paço, antes, durant e e de pois do jogo ; lev á-los !
a compreender e a an alisar as ima gens qu e dali surgira m, a sua te xtura e a man eira I
co mo foram elaboradas. I
Na prática, o bse rvamos, portanto, que o enquadramento d o espaço estim u la ()
aluno a enfrentar os riscos inerentes ao " es paço-vazio" , inten sifica a atenção do grupo e
prepara internamente os jogadore s para apreender o espa ço em suas possíveis relações
es té ticas . Marca, portanto, a en trada do aluno num círculo m ágico, diferente do 1Ja1o iw ·
aI. Lembremos, também , qu e para Huizin ga' ", a criação de um círc u lo mágico é um dos
elementos formais d o jo go, que no s permi t e reconhecê-l o no seu carát er est ético. D essa
m aneira, o jogo oc o rre dentro de um espaço-tempo, qu e lhe é es pecífico. Por sua vez,
O berlé" chama nossa atenção para o fato d e o espaço ser um elemento estrut urante d o
próprio jogo, propondo o seguint e parad o xo: "Jogar implica a ex istê ncia de um espaço,
um espaço diferente da realidade; mas é ap enas jogando que este espaço se co ns t itui.'! "
A ssim , se po r um lado, o espaço p ermite o surgiment o d o próprio jo go , po r
o ut ro lad o, é ta m bém um eleme nto sig n if ican te e, en q ua nto tal, es tá repleto d e
sentido. Nes te aspecto, Ryn gaert" es cla rece: "Os es paços ins t ituc io na is o nd e c ir-
culamos es tão ca rrega dos de se ntido pel o s que neles vive m o u trab alham. É be m in -
t eressante esva z iar esse sentido e t er o prazer em todo s os cruzame nt os de sentido
qu e aparece m . O jo go é um meio de recarregar os espaço s".
Por meio do jo go tea tral, po d emo s desdobra r o s ign ificado original d e um
m esmo esp aço, e pro por in úmeras imagen s e leituras. O s alu n o s se surpreend em c
se d ivert em ao pe rcebe re m as possibilidades de inven ção e reinven ção de u m nies-
m o espaço, a par t ir de sua pr ópria im agin ação. Des t a m an eira, ini ciam os O t ra balh o
p rático , deli mitando um a área de jo go, de pois explorando com o corpo sua ge o gra -
fi a, volumes, di stâncias, aberturas, reentrâncias, lumin osidade, cri ando a partir d aí
n ovas metáfo ras. Assi m , de um m esmo es paço, su rge um co n fess io ná rio, urn a casa
d e d et en ção, um a ca de ira de rodas, um a ca rrua gem e, portan to, d este modo, o aluno
p ercorre um t ra jeto pedagógico que vai d o plan o real, fís ico, p ar a o plan o im agi-
n ário, estabel ecendo o "e spaço po ético ", qu e pode se r d efinido, segundo L essa" ,
co mo o enco n tro d est es dois espaços: o real e o ima ginário .
Bu scan d o d escobri r espaços de ap rendizagem e do fa zer t eatral "não -con ven-
cionais " o u "não -t ra dic io nais", percorremos co m os alu nos os d iverso s espaço s da
sala de aul a, da es co la, do bairro e d e outras lo calidades, con ferindo-lhes maior sen -

17 PAVIS, 1999, p. 372.


I. RYNGAERT, 1985.
19 HUI21NGA, 1996.
20 O BERLÉ D O MI NI Q UE . j eu dramatique et déueloppement pers onnel. Paris: Retz, 1989. p. 49 .
21 Tradu ção livre.
22 RYNGAERT, 1985, p. 7 L
23 C f.: LESSA, Bia (O rg.). C onhecimen to teat ral. 1985. Ap ostila mimco gr afada.

56 C.' RMfU SOAREI


tido e humanidade. Encontramos na perspectiva de joga r, em es paços "não-tra dicio-
nai s" (a sala de au la) u ma ação pedagó gica de extre ma riq ueza e import ância. F <1 !
ação auxilia a ro m per com um a condição de co nf inamento, a que estão subm ci it L \ ,
os alunos na esco la; pro põe uma ati tu de d inâ mica e ativa dian t e do conhecim en to ;
aumenta a proximidade entre professor e alun o; que sti ona as relações de saber c
po der, carac te rísticas do ens ino tr adicional; susc ita um a experiência de p razer c de
liberdade junto ao es paço e nos permi te superar o espa ço at rava ncado de carte ira s.
O jogo teat ral está dot ado de gran de significação para o ens ino do teat ro n a es-
cola públic a, principalmente nos grandes centros urbano s, o nde a falta se faz presente
em tod os os sentidos, seja na carênc ia de co ndições físicas, seja no cresce nte empo-
brecimento human o, soc ial e político co m qu e nos deparamos co ns tante me nte .
Uma ou tra ques tão qu e se levanta ao analisar o ele m ento espaço para a co ns -
tru ção de uma pedagogia dojogo é qu e ele n os permite ap roxim ar o ensino do teat ro
na escola aos princípi os do jogo tea tral co nte m porâneo, d e m odo diferen te d e u m
tea t ro tr adicional, em que há o pred omíni o do text o e do d iálogo. O jo go teatral
na at ualidade privilegia o espaço com o subs t rato co n creto, onde se art iculam tod o s
os d emai s signos da lin gu agem teatral. A ssim, a teatralidade é co nstruída n o es paço
diret o da cena e, d est a maneira, a palavra passa a se r mais um dos elementos sig n ifi-
cantes da lingua gem e não o úni co. O teatr o é, portant o, a lin gu agem do espaço, é
"p oesia no espaço" , com o nos recorda Artaud14 •
Send o assim, é preciso , na sala de aul a, "penetrar o es paço", ocup á-l o dinam i-
came nt e para a criação da rea lidade cêni ca. É o qu e Spolirr" cha ma de "f isicalização ",
ou seja, é pela ex perimentação sensível e orgânica do co rpo n o espaço qu e o alun o
irá apreende r os dive rsos signos da lin guagem te atral e suas po ssíveis relaçõ es . N es-
te se n tido, podem o s dizer que a teat ralidade enq uan to fo rma expressiva, co nte m -
porânea , inscreve -se n o espaço . Ela em erge das relações que os alunos estabelecem
no es paço, física e concre ta mente, a partir da relação d iret a com os co legas e co m o
amb iente no próp rio mo mento do jo go.
Pod emos verificar que por meio das brincade ira s do co r po no espaço, d o
correr, do saltar, do esconder, a criança co m eça, desd e bem pequ ena, a o rg an iz ar
seus primeiros d esenhos ou co m posições cênicas. Seg undo Slade 1{" o apre ndizado
do t eat ro tem in ício co m "o jogo pessoal", através do qual a crian ça se lança n o
esp aço, percebend o- o em sua tr id imensionalidade, geografia e distâncias e, ainda,
inventando per sonagen s e co nse que nte me nte espaço s d e rep resent ação. El a vai, aos
pou cos, adquirin do noções de pro fun didad e, tam anh o , vo lu me e eqüi d istânc ia, o u
seja, co meça a est abelecer relações fo rm ais a partir do próp rio esp aço. O o b jet ivo
do jogo teatral n a escola é, portanto , retoma r esta primeira experi ência d e liberdad e
da criança no es paço, agora apr een d id a e elaborada de um a man eira consciente e
expressiva. D este modo, a const rução da teatralidade na escola co nsis te em d esen-
vol ver, no aluno, este o lh ar progressivamente co nsciente, tornando cada gesto e
cada ação no espaço, int en cion al.

~. ARTAUD , Anton in. O teatro e seu duplo. Tradução Teixeira Coelho . 2. ed. São Paulo: M . Fon-
tes, 1999. p. 37.
~; SPO LIN, Viola. I m prov isação para o teatro. Trad ução In grid Dormi en Koud ela. São Paulo :
Perspect iva, 1982 . p. 15.
~ (, SLA D E, Peter. O jogo dram ático infa ntil. Tr ad ução Tat iana Belinky. São Paulo : Su mrnu s,
1978. p. 17.

P EIJ,H ;OGIA DO lOG O rU 7R,4L: UlI.4 N JÉTIU DO UÉ .lILRO 57


É também pela ocupação e exploração do espaço que o aluno progressivamente
r!
descobre e conquista o seu próprio espaço pessoal. As sim, no início do curso de teatro,
aquele espaço que se mostrava ameaçador, "grande" (como se refere um dos alunos ),
torna-se paulatinamente "pequeno", acolhedor; ele é enfim conquistado. O espaço do
jogo não é mais fonte de medo, mas de prazer. A timidez dá lugar ao enorme desejo de
jogar. As tendências exibicionistas do jogador são sub stitu ídas pelo sentido do coletivo,
pelo reconhecimento da troca e da parceria mútua. O espaço passa, então, a ser "lugar"
de identidade e de relação do sujeito com o mundo, a partir do qual se constrói uma
história, como define Auge?
P or sua vez, a questão da valorização do espaço no teatro contemporâneo co-
loca o ato r num lugar de importância dentro do processo criativo, uma vez que há
uma retomada da improvisação e do jogo. Neste momento, segundo Ryngaert", "o
corpo do ator passa a ser encarado como fonte de invenção". O ator não fica mais
preso apenas às indicações do diretor, ma s tem aut onomia, experimenta, pesquisa,
fa z valer suas idéias e percepções da cena.
Da mesma maneira, a prática do jogo t eatral permit e ao aluno realizar seu
potencial criativo e reafirmar seu lugar de sujeito dentro da esco la e do mundo. Ao
assumir uma po stura ativa e dinâmica, a realidad e deixa de ser apreendida como um
dado acabado, imutável e pa ssa a ser construída e transformada pela ação particular
e coletiva dos próprios alunos que, cada vez mai s, apropriam-se de suas ações e pala-
vras. Esta atitude lúdica estimula, nos alunos , o conh ecimento sensível e, portanto,
estético da vida. Encontram, deste mod o , em m eio a um co tidiano árid o, uma tes si-
tura deli cada e poética, capaz de conferir no vo se nt ido às su as vidas.
Portanto, a noção do jogo teatral, enq uan to objeto estético, permite-nos co-
locar no centro do processo de en sino-aprendi za gem do teatro a questão da teatra-
lidade, su a criação e leitura, no cotidiano da escola. D esta man eira, podemos afirmar
qu e é através da lin gu agem, de sua materialidade, qu e o aluno poderá alcançar, d e
maneira mais profunda, o sent im en to de trans cendência, de integração, de harmo-
nia , de forma e bele za , que deveria reger a edu cação e a vida, em todos os seus mo-
mentos.

27 A U G É, Marc. Não lugares: introdu ção a um a ant ropo log ia da supermo dern idade. Tradução
Mari a Lú cia Pereira. 2. ed. C ampinas, SP: Papi rus, 200 I. p. 50.
2S RYNG AERT, 1985, p. 46.

58 C AR .I/ ELA SOA RES


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Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

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WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

PW.,(;OG1.' DO JOCO TLHlêK' IJ.I/A votnc:» J)O rrtsiu«, 59


PERFORMANCE, TEATRO E ENSINO:
POÉTICAS E POLÍTICAS DA INTERDISCIPLINARIDADE

Eleonora Fabião

Abordarei aqui aspectos relativos à performance e ao teatro no âmbito da


criação e do ensino. Na primeira parte do artigo, introduzo o tema "performance" e
na segunda defendo a importância da inserção teórica e prática da performance em
contextos de ensino superior de teatro.
Esta reflexão se baseia na minha experiência como performer, atriz, pesquisa-
dora e professora. Assim como as vivencio, as atividades artística, crítico-filosófica
e pedagógica são momentos distintos de uma mesma experimentação corporal, po-
lítica e poética que proponho como performer. A sala de aula, o palco, a rua, a folha
de papel, o corpo são dimensões de uma mesma busca: fundar espaços de reflexão e
criação onde proponho que nos perguntemos não apenas o que seja "arte contem-
porânea", mas o que queremos, contemporaneamente, que a arte seja.

Performance

Ao longo dos últimos anos coleciono histórias verídicas baseadas nas práticas
de artistas que se auto-definem perjormers. A história do homem que arrastou um
bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México até seu derretimento completo. A
história da mulher que se submeteu a nove cirurgias plásticas combinando em seu
rosto traços de nove beldades da pintura ocidental. Do homem que introduziu uma
boneca Barbie no ânus e, com controle absoluto de sua musculatura abdominal,
expeliu-a lentamente na frente de uma audiência. Ou do homem que se trancou
numa cela por um ano e não leu, não falou, não escutou música, não se comuni-
cou com nada nem com ninguém. Este mesmo homem propôs-se a ficar um ano
sem adentrar qualquer tipo de espaço coberto, ou seja, passou 365 dias "sem-teto".
Este mesmo homem levou a cabo o seguinte projeto: clicar um auto-retrato a cada
hora certa, ou seja, 24 vezes por dia, ao lado do mesmo relógio de ponto e no mes-
mo lugar, ao longo de 12 meses. A história de outro homem que raspou a cabeça,
cobriu-a com mel e folhas de ouro, tomou uma lebre morta nos braços e explicou-
lhe, silenciosamente, os quadros de sua exibição. E outro que se trancou por 5 dias
consecutivos num escaninho (60 em de altura x 60 em de comprimento x 90 em de

61
profundidade) recebendo água por um tubo e expelindo urina por o utro . E outro
qu e con vidou amigos para mastigar páginas do célebre Art and C ultu re, de C lem cnt
Greenberg, juntou à polpa ácido sulfúrico, açúcar e bicarbonato de só dio , dep osi-
to u a mistura num pote qu e etiquetou com os di zer es "Art and C ul t ure" e retornou
o o b jeto para a biblioteca (perdendo, nest a ocas ião, seu emprego co mo pr ofessor
n a San Martin's Sch o ol of Art). A mulh er que to mou o metrô sába do à noit e c foi
a uma livraria movimentada vestida com ro upas que havia deixad o de molho por
uma semana num cald o d e vinagre, leite, ó leo de rícino de bacalhau e ovos. U ma
m u lhe r que con struiu uma miniatura de palco Italiano, tap ou os se ios nus com a
maq ue te e con vidou os passantes na ru a a toca r-lhe os peito s at ravés das cortinas
do pequ eno palco. A mulher que subiu co m os pés descal ços um a esca da cujo s de-
gra us eram feitos de lâminas cortantes. O homem que comem orou seu an iversár io
na ru a, partilhou seu bol o, trocou abraços e receb eu votos de felicidad e dos ami go s
desc onhecido s. A mulher que giro u uma longa vo lta (cerca de uma h ora de duração )
numa praça do Rio de J an eiro. A dupla (um homem e um a mulhe r) qu e, por um
ano, ma nteve-se atada pel a cintura por uma co rda de cerca de do is metros e me io
se m tocarem-se. A mulher qu e con vidou os es pe ctadores a usarem nela, enquanto
se manteve passiva e parada por seis horas, inúm er os obj etos, dentre eles um a rosa,
uma pistola, um a bala , t esoura, mel, correntes, cane ta, bat on, um a câm era Polaro id,
faca, chicote e vários o utros "instrument os de pr azer e de dor" (os objetos puderam
se r utili zados livrem ent e e a performer ass um iu plena resp o nsabil idade pelos ato s
dos es pectadores) . O h om em negro qu e se se ntou numa calçada cinza, exibiu três
vid ros de maion ese branca, e tentou vend ê-l os por 100 dólares cada. A mulh er qu e,
t rajando camisolão branco , usou terços para realizar desenhos de pêni s no chão . A
mu lhe r que per guntou a se us compatriot as palestinos exilados: "Se eu pudesse fazer
algo para você, em qu alqu er lugar na Palestin a, o que ser ia?" E, graças a seu pass;\-
po rte A mericano, cruzo u a front eir a inúmer as vezes e atendeu ao s pedid os que lhe
fo ra m feitos: regar uma planta, pagar uma co n ta, co mer doces, visita r um túmu lo,
tirar fo to grafias, jo gar fu tebol com menin os, ch eirar o mar '.
Estas e muitas o ut ras histórias descrevem pro gramas co ncebidos e perfo rma-
dos por artistas int eressad os em relacion ar co rpo, estética e política at ravés de ações
intensas e extre mas. G osto de passar estas hist óri as adiante, de artic ulá-las em fra ses
curtas, de lançá-las como dardos de adr enalina, sem detalhá-Ias, sem adjetivá-las, para
que cravem secas; estilhaços de mitologia co ntem porânea. Penso qu e estas práticas
alarg am, que estes programas oxigenam e din ami zam nossas maneiras mesmas de agir
e de pensar ação e arte contemporaneam ent e. Es ta é, a meu ver, a fo rça da per fo r-
mance: des-automati zar a relação do cidadão co m a polis; do agente histó rico com
se u contexto; do vivente co m o tempo, o espaço, o corpo, o o utro e co ns igo mesmo.
Es ta é a potência da performance: não se trata de operações bizarr as e provocat ivas
promovidas por um punhado de sado mascq uistas e idioss inc ráticos para choc ar o
"senso-co mum" (que atu rd ido pergunta-se "o qu e é isso?" "para que isso ?" "afinal, o

I Es tas ações foram resp ect ivam ent e criadas pelos seg uintes art istas: Fra ncis A lys (2000), Orl an
(an os 9o) , D enis O'Con no r (1999), Th echin g H sieh (1978/79, 1981/ 82 e 1980/ 81), Jo seph
Beuys (1965), C hris Burden (1971), John Lath an (1966) , Adri an Piper (1970) , Valie Exp ort
(1968 ), Gina Pane (1971), Eduar do Flores (2002) , Eleonora Fabi ão (2003) , Lind a Montano e
T hechin g H sieh (1983/ 84) , Ma rina Abram ovic ( 1974) , William Po pe.L (199 1), Márcia X (2000-
03) , Emi ly Jacir (2003) .

62 E LfONOI<A r ABIAo
qu e eles qu er em dizer co m isso? " "e nt ão isso é art e co ntemporânea?"), m as da expan -
são da noção de dramaturgia, ou seja, da idéia do que seja ação e "artisticidade" da ação,
COlpO e ''politicidade'' do C01pO .
Chamo as ações perforrnativas de programas 2, pois esta me parece a pal avra
mai s apropriada para de screver um tipo de ação metodicamente calculada, conceitu -
alm ente polida, que exig e extrema tenacidade para ser levada a cabo, e qu e se ap ro -
xim a d o improvisacional única e exclusivamente na m edida em qu e nã o será pre-
viame n te ensaiada. O performer não improvisa uma idéia: ele cri a um progr ama e
programa-se para realizá-l o. A o agir seu programa, necessariamente, des-programa
seu o rg anism o e seu m eio. Tratam-se de expe rime ntaçõe s, de açõ es "extracotid ia-
nas ", da vivência de estados psicofísicos alterados que disseminam disson ân c ias di-
versas: dis sonâncias de ordem econômica, política, emocional, orgânica, ideoló gica,
psicológica, espiritual, identitária, senso rial, sexual, social, racial... Programas criam
C01p OSnaqu eles qu e os performam e naqueles que são afetados pela p erform an ce.
Pro gramas anunciam qu e "corpos" são sistemas relacionais abertos, alt amente sus -
cetíveis e cambiantes . Programas geram corpos com proporções qu e ultrapassam
em mui to os limites da pele. O performer é um criador de corpos in d ivid ua is e
col eti vo s, públicos e pri vados. Se o performer potencializa a relação co m se u cor-
po é para disseminar uma reflexão e uma experimentação sobre a corporeidade do
mundo, da s relações, do pensamento.
Su giro que pro gramas performativos ba seiam-se em elem entos dram atúrgi-
cos di sc erníveis. D estaco algun s: 1) o desl ocam ento de referências e signos de se us
habitats naturais; 2) a apro xim ação e fric ção de ele me ntos de distintas es pécies,
naturezas e esferas o nto lóg icas; 3) acumulações, exage ros e exube rânc ias de todos
o s tipo s; 4) aguda sim plificação da forma e co n de n sação de mat eriai s e idéia s; 5)
a acele ração ou des-a celera çã o da experiênc ia de se nt ido at é seu co lapso; 6) a ace -
lera ção o u de s-acelera ção da n o ção de identidade até se u co lapso; 7) a recu sa de
performar personagen s fict ícios e o interesse em explorar cara ct erísticas próprias
(e tn ia, nacionalidade, gêne ro , es pe cificidades corporais) , em exibir se u tip o o u es-
tereótipo so cial; 8) o inv estimento em dramaturgia s pes soai s, por vezes bi o gr áficas,
o nde posicionamento s e reivindicações pessoai s sã o publicam ente perfo rm ad o s; 9)
o curto- circuito entre art e e não-arte; 10) o es t re it am ent o ent re pol íti ca e es té t ica;
11) ag udez co nceitu al; 12) o en curtamento ou a di stensão da duração at é limites ex-
tremos; e 13) a ampliação do s limites psicofísicos do performer e de s ua audiência;
Porém , veja bem, restrinjo-me a apontar tendências dramatúrgicas ge néricas,
pois considero vão e mesmo equivocado qualquer esforço no se nt ido d e definir o
qu e seja "p erformance". Trata-se de uma forma d e expressão tã o híbrida e flex í-
vel qu e dribla defini ções rígidas d e "arte" , "art ist a", " es pectado r" o u "cena" . N est e
sen t ido, proponho, ao inv és d e uma investigação so b re o qu e significa a performan-
ce, uma refl exão so bre o que move a pelfonnance e o que a perjorma nce é capaz de
mov er. Estrategicam ente, a performance escapa a qualqu er formata ção , tanto em
t ermo s da s mídias em p reg adas quanto do s materiais o u espaços utili zad o s. C o mo
suge re Eduardo Flores numa assertiva propositadamente gene ralizan te, "a matér ia

2 A inspiração para a esco lha d est e vocábulo vem do texto "C om o criar para si um corpo sem
ó rgãos" (D ELEU Z E, Gill es; GUATTARI , Féli x. A thousand plateaus. Minn eap oli s: Univer sity
of M innesota Pr ess, 1987. 107 p.) o nde se prop õe qu e o programa é moto r de experimentação.

P [ Rr OR,II,' .vC[ , l L< TRO [ [NSINO : rotrtc»s [ POLÍTICAS D" l NTCRD/SC1PLl NAR1D,W [ 63
da performance é a vida, seja do espectador, do artista, ou ambas'", Flores sugere
que a arte opera sempre no sentido de transformar algo, seja matéria em objeto, ou
movimento, som, palavra em composição. No caso da performance, a matéria a ser
trabalhada é a própria vida. O ofício do performer seria o de "transformar a vida"
como sugere Flores, ou ainda, o modo como a vida pode ser vivida. O performer é
aquele que evidencia e potencializa a mutabilidade do vivo.
A performance desafia definições, pois ativa dinâmicas paradoxais que com-
plicam estatutos tradicionais tanto do fazer quanto da fruição artística: trata-se
da fundação de uma cena-não-cena equiparável ao teatro-não-representacional
vislumbrado por Antonin Artaud. É trans-real, pois que move e move-se por múl-
tiplas camadas de sentido sem deixar-se fixar. Artaud preconiza um "teatro da
crueldade" sendo que, como explica, "crueldade não é sinônimo de sangue, mar-
tírio e inimigos crucificados. Essa identificação de crueldade com vítimas tortu-
radas é um aspecto menor da questâo":', Ele esclarece: "Eu disse 'crueldade' como
.. poderia ter dito 'vida' ou 'necessidade?". O projeto artaudiano, assim como a
performance, não visa tampouco a formação de um teatro inconsciente. "Qua-
se o oposto", argumenta Jacques Derrida: "Crueldade é consciência, é lucidez
exposta'". A performance, assim como o teatro artaudiano, é cruel na medida em
que ativa fluxos paradoxais, ou seja, lógicas que escapam à regulamentação da doxa
(senso comum e bom senso); é cruel na medida em que ativa consciência crítica
atrelada à consciência corporal, ou seja, ativa consciência como "coisa corpórea".
A performance, assim como o teatro de Artaud, é cruel ao minar fundamentos
determinantes da cultura ocidental: logocentrismo e tirania teológica. Fundamen-
tos estes que silenciam, anestesiam, minguam nossos corpos; forças de subje-
tivaçâo que descorporalizam nossas maneiras de nos relacionarmos e criarmos
mundo. Como propõe Artaud, o julgamento de Deus precisa ser erradicado para
o nascimento do Corpo (self corpóreo); a fúria logocêntrica precisa ser acalmada
para o nascimento do Corpo (self corpóreo). Como propõem os performers com
seus programas cáusticos, o tipo de conhecimento de que precisamos no presente
momento se faz nos Corpos, através dos Corpos, com Corpos, como criação de
Corpos. Ou como convoca Gilles Deleuze: "É preciso que estiquemos nossa pele
como um tambor para que uma nova política comece'",
A partir de uma perspectiva histórica, destaco ainda a (in)definição da "ori-
gem" deste gênero. Alguns pesquisadores associam a origem da performance ao
teatro de vanguarda europeu do início do século XX - especificamente às práticas
cênicas futuristas e dadaístas e ao "Teatro do Absurdo", como sugere RoseLee Gol-
dberg'. Diferentemente, outros historiadores e teóricos propõem que a origem da

J Notas tomadas na visita do artista mexicano Eduardo Flores a uma aula do curso "Performan-

ce!" que ministrei no primeiro semestre de 2005 como disciplina opcional para alunos de sexto,
sétimo e oitavo períodos do curso de Direção Teatral, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
4 ARTAUD, Antonin. Tbeater and its doublé. New York: Grave Prcss, 1958. p. 102. Traduzido

do inglês.
s ARTAUD, 1958, p.114.
(, DERRIDA, J acques. A escritura e a difererzça. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 165.
7 DELEUZE, Gilles. The fagic of sense. New York: Columbia Univcrsity Press, 1990. p. 72. Tra-

duzido do inglês.
s GOLDBERG, RoseLee. Perjormance art, from futurism to tbe present. New York: Thames and
Hudson, 2001.

64 ELWNORA FABIAo
performance está relacionada não ao teatro ou à dança, não às art es cêni cas, mas a
transformações ocorr idas nas art es pl ásticas em mead os do séc ulo; espec ificame nte
à in serção do m ovim ento como elemento da composição plásti ca e à decorrente
e gradual des-materialização do obj eto de arte . Fato é qu e a valorização da ação
resultou num encontro do artista com seu próprio corpo, num confronto co m a
m at erialidade de sua pr esen ça que se tornou material de trabalho. Ou, co mo se con-
ve nc ionou dizer, o artista tornou-se sujeito e objeto de sua obra. D e aco rdo com
esta perspectiva, o marco de origem das práticas performativas teri a sido a action
painting norte-am ericana e experim entos correlatos acontecendo em outros países
protagonist as da Segunda Guerra Mundial, especificamente na Ásia e na Europa
como suge re Paul Schimmel", D e fato, enquant o gêne ro, a performan ce começa a
adquirir feiçõe s m ais definidas depois da Segunda Guerra Mundial e suas cat ástro fes
correlata s. A exp eri ência de morte massiva e, significativamente, a experiênc ia da
ex plosão at ômica, foram refer ên cias det erminantes para um certo entendimento
d e "co rpo", "co m unicação" e' '' experi ência'' investi gad o por performer s. A par-
tir de então, começaram a espocar pe lo mundo afora sé ries de práticas difíceis de
cla ssificar, a mai oria dela s envolvendo o corpo do artista d e fo rma inédita e radi cal,
baseadas em aguda materialidade e força co nceitu al.
Ent retanto, sej a afirmando qu e a performanc e origin ou-se a partir o u de prá-
ticas cênicas o u d e prática s plásticas, muito pouco muda em relação ao estat uto
artísti co da performance e sua in serção na tradição cultural oc idental. Este é o ar-
gu me nto de Th omas McEvilley em "Stages of En er gy: Performance Art G ro u nd
Z ero?"lo. N est e art igo, o aut or defende a idéia de qu e a performanc e é u ma forma de
recu sa aos valo res e procedimento s da arte ocidental, o u, mai s enfaticame nte, um a
ruptura e um afa st am ento desta tradição. McEvill ey suge re qu e o "n ovo gênero" se
originou em mani festa ções rituais antiqü íssima s, prát icas qu e o autor define como
" p ré" o u "ex t ra" civilizató rias.
Pessoalm ente pen so qu e uma discussão sobre a "orige m" da perfo rm an ce é
inte ressante ap en as na medida em qu e se mantém ab erta. Se co nside ramos o ca-
ráter emine n teme nte híbrido do fato perforrnativo, ter d e optar se foi a pintura, a
dan ça, o teatro o u qualquer gênero artístico o ber ço da performance, soa redutor.
Diferentem ente de McEvilley, não penso que a performance represente uma refuta
ma s uma contrapa rtida a valores predominantes da cultura oc ide nta l co n te m porâ-
n ea - nomeadam ente: reprodutibilidade, eficiência, eficácia, efe tividade , durab ili-
dade, segurança identitária e material, conforto e solidez - se m contudo deixar de
ser um compon ente cada vez ma is importante da no ssa cultu ra. A performan ce
atualmente é refer ência contund ente, ainda qu e marginal; é prática margina l, ainda
que con t unde n te!'.

9 SCHIMM EL, Paul (O rg.) Qut of actions: between performance and the object 1949-1 979. Los
A ngeles: Th aru s and Hudson , Th e Mu seum of Conte mporary Art, 1998.
10 McEV ILLEY, Tho mas. Stages of ene rgy: perform ance art gro und zero ? In: Artist's o

body . Milano: C harta, 1998.


11 N ão percebo, por exemplo, uma rejeição, mas uma relação conturbada com valores de mercado.
A perform ance parti cipa, ainda que com o crítica e recusa, da econ omia repro dutiva e do mercado
de arte. Basta pensarmos no frisson editorial, na quant idade de catálogos, livros, expos ições de
doc umentos e relíquias de performances, na quant idade de souvcnirs, postais, canecas decoradas e
DVD s dedicados à "mais efêmera das art es".

P ERFO RMA NCE, TEATRO E ENSINO: rotrtcss E rouncss D.' INTLR/JISClPLlNARID.WE 65


Performance e ensino de teatro

A pergunta é direta: por que considero fundamental, cont ernp oraneam cnrc,
en sinar, ou ainda , instigar o debate e a pr áti ca da performanc e em co ntextos de
en sino superior de teatro? E de que maneira uma aproximação ped agógica entre
pe rformance e teatro pode beneficiar estudantes de teatro"?
Fato é que entrecruzamentos entre teatro e performance são moeda corrente nos
palc os contemporâneos. Grupos de teatro exp erimental com o o bri tânico Forced En-
tertainment, os norte-americanos \Vooster Group e Goat Island, ou os brasileiros Teatro
da v ertigem e Companhia dos atores13, bem como Denise Stoklos e seu Teatro essencial,
para cit ar alguns casos , desenvolvem trabalhos influenciados e/ ou consonantes com es-
téticas e éticas performativas. Em nível peda gógico, porém, o ensino da performance
em cursos de teatro no Brasil ainda é prática embrionária e precisa ser cuida dosamente
discutido.
C onsidero a inserção da prática e da teoria da performance no' circuito peda-
gó gico tea tral estimu lan te por vários motivos e destaco algun s dos principais: 1)
sofisticação de pesquisas corporais; 2) ampliação do repertório de métodos compo-
sicionai s; 3) investi gação de linguagens e dramaturgias não-convencionais e hibri-
da ção de gêneros artísticos; 4) discussão de questões cênicas através de outro vié s
qu e nã o os da teoria do drama ou das histórias e po éticas espetaculares; 5) aprofun-
damento de debat es e práticas teatrais fo cados em políticas de id entidade e em pol í-
tica s d e pr odução e rec epção cada vez ma is articuladas e acutilantes; 6) valorização
da in vestigação sob re dramaturgias do espec tado r. Est es serão os temas abordados
ao lon go das próximas página s.
Para o alun o de teatro em gera l (não apenas fut uros at o res, mas ta mb ém
futur o s diretores, professores e t eórico s) pen so ser de extrema valia confrontar-
se co m ex pe riênc ias psi cofísicas ba seada s na tradi ção da performance. Tais v i-
v ências (para usar o t ermo cunhado po r Lygia C lark e Hélio Oiticica nas fases
de seus trabalhos vo lta das para a exp an sã o da sen sorialidad e d o espectador)
visa m à de sconstruçd o de hábit os cotidianos (e automatisrno s teatrais ). A pro -
po sta consi ste em op erar mudanças radi cais nas dinâmicas es p aço s-tempo rais
habituais par a que outros estados psicofísico s possam aflorar. Trata-se de uma
op ortunidade para o aluno abrir horizonte s perceptivo s in su speitados, aprofun-
dar auto conhecimento e questionar-s e a respeito de padrões culturais e sociais.

12 N os últim os anos lecion o cursos e workshops em performance para faz edo res de teatro e

dan ça em diversas instituições e países, em nível de grad uação e pós-gradu ação. Ser professora
é parte do meu proj eto art ístic o. Considero est es cursos performances em si, programas que
realizo com grupos de alun os atr avés de uma pedagogia relaciona!. Com o en sinadora da per-
for man ce, prop onh o diversas experiências psicof ísicas bem co mo a leitura e debate de texto s
hist óri cos e filosóficos, e apo nto técnicas de co mpos ição para que os participantes criem peças.
N ão tr abalho propond o exercícios em perf orman ce ou co nduzindo ensaios para a realização de
futuras peças. Sou uma pro positora de experiên cias. Como profess or a-perforrn er, meu trabalho
é propor e vivenciar experiê ncias. Tais experiências visam o desenvolvimen to e a inte gração
das capacidades orgânica s, criativas e co municacio nais do atu ante (perfo rrner, cidadão, sujeito
hist órico, vivent e) e visam seu fortaleciment o através do aum ento de agilidade, flexibilidade e
dispo nibilidade. Consider o a sala de aula um dos mais int eressant es espaços p erforrn ativos, pois
qu e estabelecemos , de ant emão, um pacto colab or ativo. Trata-se de um espa ço de criação e ex-
perimenta ção, um microcosm o político a ser poeti cam ente e pedagogicam ente explorado.
IJ N o caso da carioca Cia. d os atores, percebo este tônus perf ormativo especificame nt e numa
m ontagem recente: Ensaio . Ha mlet.

66 E U O NO RA F.~ BI A o
Não se t rat a de focar na c r iação de person age n s ou na ex plo ração de téc n icas
in t erpret ativas o u jo go s improvisacio nais, ma s de acessar algo q ue an tecede ,
que en ervá at uação e at ua nte. Trata-se de um confro nto do faze do r de teat ro
com sua psico fisica lida de , com sua m etafi sicalid ade, com seu C o rpo e hist ó ria;
confron to este que , pe ns o , sofist icará enormem ente a rela ção com p ersonagen s,
pa rc eiros de equipe, es paç os, ob jetos, esp ectad ores, co nceitos . Co mo pr op ô s
Gro towski "O Perjo rmer, co m maiúsc ula, é o home m de ação . Não é o ho m e m
que faz o pap el d o o utro. É o dan çant e, o sacerdo te, o guerreiro : está fora d o s
gêne ros estét icos . [.. .] Po de co m preen d er apenas se fa z. Faz o u não faz. O co -
nhecime nto é um prob le ma d e fazer"! ",
Aq ui, interessa evo car as fo rmas de conhecimento ativo do gr upo paulis ta Tea -
tro da Vertigem. Interessa co mo o Vertigem invest e em mecan ismos dram atúrgicos
de alta vo ltagem perfo rmativa pa ra a criação de se us esp et áculos". O gru po pri-
vileg ia o que chamo dramaturgia do ator, o u seja, processos criativos onde o ato r
não é exclusivame nte um intérprete, mas u m co-autor do espetáculo assim co mo
o direto r, o cenógrafo, o iluminad or, o figuri nis ta e todos os dem ais membros da
equipe q ue, geralmente coorde nados por u m d iretor, colaboram pa ra a criação da
dramaturgia do espetácu lo . Ou, como os atores do Vertigem definem sua função,
o ator "é sim ulta neamente au tor e performer"". N o artigo "O qu e fazemos na sala
de ensaio" os atores-aut ores-perf ormers d o Vertigem de stacam a importância do
que chamam "depo im en to pe ssoal": "D epo ime nto pessoal é sua col o cação como
ser hu m ano, como cidadão e artista. [. . .] É deixar que sua experiênc ia vire arte, seja
ma ni p ulada"!' , escla rece Ma riana Lima. Como di zem, não estão in teressados em
"ca m uflar característ icas, m as am pliá-las"".
Q uanto aos m étodos de ensai o, com posição de cena e personage ns, o grupo
des taca quatro modalidades de práticas: a uiuência (método que se aprox ima do
labo rat ório teatral, semp re po nt uado com atividade de escrita auto mática), a impro -
utsaç áo (im provisações se m preparo prévio a partir de mat eriais diverso s relaciona-
dos com o te ma pesquisado ), os uiorkshops (cena-respos ta a u ma qu est ão lan çada.
com posição a ser preparada de um dia para outro ut ilizando qua lquer tipo de mídia )
e as v isitas (pesquisa de cam po, sempre em espa ços públicos, a pa rti r d a qual o ator
elabora cenas e/o u personagens).
Atrelada à pe sq uisa dramat úrgica em sala de ensaio há o utro elemen to de-
terminante: o interesse em oc upar espaços não co nvencionais" . "A apresentação
em lu gares impró pr ios pa ra o aco nchego do público ou para o confort o dos ato res
abre ou t ras possibili dades, que reinventam o teatro nã o ape nas como ent reteni-
mento, mas co mo experiência"?". Refle tindo sobre a relevância des tes espaços ativos
para o de senvolvime nt o de suas práticas teatro-perforrnativa s afirmam: "A relação

14 REV ISTA JvlÁSC A RA. C idade do México : Fond o de Cultura dcl M éxico , [19--] p. 78. Nú-

mero esp ecial em homenagem J ] erzy Grorowski.


15 Refiro -m e J criação e en cenação da Trilogia bíblica co mposta pelas peças O paraiso perdido

(1992 ), O livro de}ó ( 1995) e Apocalipse 1,11 (2000) . NESTROVSKI, Art hur (O rg.) . ]i'ilogiü
bíblica: teatro da vert igem . São Paulo: Publifolha, 2002 . 359 p.
1(, "O que faze mos na SJb de ensaio" em NEST ROVSK I, 2002, p. 45.

17 N E ST RO VSKI, 2002, p. 46.

I, NESTROVSKI,2002 ,
19 No caso da ]i'ilogia bíblica, respectivamen te, igr eja, hospital e pr esídio .

! O NESTROVSKI, 2002 , p. 48, destaque nosso.

P LR/ OR II,IX CE, JLXIRO E LVI/XIJ: rotrn». / ro unc:« IH n -nL RD l.lu n / SARID ADE 67
com o público é conseqüência de uma situação híbrida em que representação e re-
alidade se confundem ":". A criação de uma cena híbrida onde elementos fiet i<:i(,s
e nã o-fictícios são justapostos, a ativação políti ca provocada por tal just J p ( , ~ i ~ ;í f\ .
a ocupação de espaços " ex t rac ênicos" (para que possam circular outras d in.i m ic,ls
relacionais), a ampliação de características pessoais (em busca de uma dramatu rgia
pe ssoal, por vezes bio gr áfica) , a valorização da experiên cia e da experimen ta ç.io i' ~ ; .
cofísica através do s métodos criat ivos utilizados, a valo rização do ator-dramaturgo
e do artista-etnógrafo, são elementos marcadamente períormativos ex p lo rado s pelo
Teatro da Vertigem. Grupo qu e, como o próprio nome diz, não pretende um teatro
de es tabilidade ou uma relação co nfortável co m a "cena".
Da me sma forma, a performance. Sua inserção no âmbito de en sino do teat ro
cau sará algum desconforto e desassossego, mas, segu rament e, proporcionará fricções
interdisciplinares de enorme valia. Por posicionar-se como uma prática "antiteatral"
- ou seja, desinteressada nos espaços teatrais, m étodos criativos , fun çõe s espccial-z,,-
das , possíveis hierarquias na s equipes, poéticas e ec o n o mias de ensaio e repetição - a
performance representa um referencial dialógico fascinante (no mínimo uma pedra
no sapato que nos faz parar, descalçar, sacudir, e voltar a caminhar com novas per-
cepções do pé, do terreno em que se pisa, do calçado que se escolhe usar, ou seja,
das relaç ões entre corpo , objeto e meio ). Um perfonn er não apenas colo ca proposi-
tadamente pedras em seu sapato, mas usa sapatos de pedra para qu e o s flu xos ditos
"naturais" sejam interrompidos e outras maneiras de percepção e rela ção possam se
des envolver. Muito me interesso pelo valo r crítico - pedagóg ico de atos que su speitam
dos "padrões de normalidade ".
Penso qu e o alun o de teatro se benefi cia nã o apenas no contato prático, mas no
estudo da teoria da performance através do qual poderá refletir sob re aspecto s cen-
t rai s do teatro do sé cu lo XX. Interesssa por exe m p lo, à luz da performance, ab orda r
temas como o ilusionism o (co ns trução e dem oli ção ) e a narratiua [iccional (ade são
e de sconstrução). A performance, em sua aguda materialidade, des-narratiuização,
antificcionalidade e instantan eidade, ou seja, por operar em ext rem a op osiçã.\ ;l ()
ilu sionismo e ao narrativisrn o , torn a-se uma referên cia importante para um certo
teatro contemporâneo interessad o em di scutir se us espa ço s de atuação, p olíticas de
produção e recepção, n oções de corporeidade e dramaturgia.
Est e é o caso do grupo de teatro Forced Entertain ment (Ent re ten imento For-
çad o ), esp ecificament e em suas peças de lon ga duração. O grupo expõe o projeto:

Dep ois de anos fazendo teatro, em que uma parte do trabalho con sistia em ensaiar e
fixar coisas - fazer a mesma peça funcionar da mesma maneira repetidas vezes - nós
resolvemos fazer algo diferent e, algo mais extre mado. As peças lon gas foram um
passo nessa direção: trab alhos ent re seis e vinte e quatro horas de du ração nos quais
os ato res improvi sam dentro de um sistema pré-definido de regras. [... ] C onsidere
cada peça como uma tarefa ou um jogo [.. .] e considere que cada jogo tem regras,
estratégias, movimentos conh ecidos e também limit es".

21NESTRO VSKI, 2002 ,


22"No tas sobre as peças de lon ga duração" em ::. HEATHFIELD, Adrian. (Ed.). L iv e art. M lI S -
tang: Tare Publishing, 200 4. p. 101. Traduzido do inglês.

68 b r.O N O I{A r Al\IAo


Um destes trabalh os - Quizoola!, um jogo de perguntas e respo stas para doi s
part icipantes - tem a duração de se is horas. O público está livre para ent rar e <: .1i r
qu ando e quant o qui ser. Três ato res da companhia explorando as três combinac óc,
de dupla possíveis, reve zam-se por p eríodos de duas h oras. O s atores in t er ro gam- se
mutuamente ba seados num questionário com duas mil perguntas sobre os mais va-
riados tem as - esportes, hist ória, am or, filosofia , fatos .. . C o mo expli cam, as rc s p o ~ ·
tas podem ser verdadeiras, fal sas, lon gas, curtas, confessionais, abstratas, de aco rdo
com de cisõe s im ediatas. O design da cena é extremamente simples. Lâmpadas elé-
tricas ligadas em série formam um círculo no chão que delimita o espaço do jo go.
O s atores es tão vestidos com roupas cotidianas e maquiados como palhaço s. Duas
cadeiras, as folha s de papel com as p erguntas e algumas garr afas d'água p ontuam o
quadro.
Em Quizo ola! nã o há vestígio de narrativa, ficçã o, personagem ou qualqu er
esp écie de mediação dramática. O "fechament o" da cen a cir cun scrito pelas lâmpa-
das no chão é meramente alegórico: a cena che ga aos es pectado res de forma direta
através de interpretações abertas (ou seja , através de atores não ap enas cientes da
pres ença dos esp ectadores, m as capazes de transformá-los em elementos d a ação se
assim de sejado). A dramaturgia da peça é outro ele m ent o de abertura : cada vez que
um a pergunta é lan çad a abre- se um vácuo qu e é imediatamente ocupado mental-
mente pel o s espectadores. A cada interro gação su sp ens a, um salt o mental. A lon ga
duração da peça tanto exaure co mo exalta atores e espectadores fazendo daqu ela
cen a uma experiência psic ofísica úni ca. Por vezes, a ar güi ção é côm ica e am igável;
em o ut ros momentos, transf orma-se numa form a de tortura; noutro s, ade n t ra-se
um espaço desarticulado, demente, vazio, dislé xico, m ole. O s semb lant es de palha-
ço os cilam significação de acordo com a atmosf era da cena. Quizoola! é um jo go
de p er guntas e respostas a partir de um a inte rrogaç ão ess encial: quais os lim ites da
cena teatral?
Esta é um a interrogação fundamental para o aluno interessado tanto em
aprender técnicas e tradi ções quan to em posicionar-se crí tica e criativamente em re-
lação à tradi ção e seu arcabo uç o t écnico e teórico . A per form ance sug ere que parte
do aprend izado é inserir-se na tradi ção e dialogar com ela, e parte do aprendizado é
forçar limites preestabelecido s e criar ruídos. Ou, em outras palavras, parte do estu-
do é conhecer o teatro e parte do estudo é perguntar-se so bre o qu e se ja "teatro ".
Pen so que interessa particularmente ao aluno de teatro - num momento his-
tórico em que outras mídias dramáticas (indus triais, eletrônicas, digitai s) ex igem um
investimento na s especificidades da cena da presença compartilhada - uma refle xão
dir etamente vo ltada par a a dramaturgia do espectador como aqu ela proposta pela per-
formance. Se o espetáculo teatral é único em cada apresentação, e de fa to é, a per-
forman ce acirra ainda mais a efe me ridade da presença e a precariedade d o evento: a
performance é radicalmente irrepetíve1. O imediatism o da performance deve-se jus-
tamente à falta de elementos de mediação, seja o enredo, o personagem ou o palco.
C onforme dito ant erio rm ente, a performance funda uma cena com característ icas
muito parti culares uma vez qu e propõe a realização de açõ es não-fictícia s em tempo
"real". Ou ainda, a performance di stende a idéia de " cena" propriamente dita: do
drama do palco passamo s ao drama da sala, da rua, da cida de. A "cena" p erforma-
tiva trata da exe cução de pro gramas psicofísicos e da vivência das relações que est es

I f' U f O R,IIA NCé , T[,HP O L [ S .l/SO: I'ot n c.ü [ rounc»: DA J,VIER D/I C I/' UN.U<1IJ.1/JE 69

l
programas deflagram (relações consigo, com o outro, com o objeto, com o meio).
É determinante o fat o de que o decréscimo ficcion al, ilusionista e narrativ o implica
num acréscimo de presença e participação do espectador. O es p ectador torna- se um
elemen t o fundam ental na trama performativa, um ag ente direto ou indireto,
uma te stemunha, ou, por vezes, um co-autor da ação proposta pelo performer.
C o memo rar o aniversário de um desconhecido na rua, abraçá-lo, dese jar-lhe
sinceros ou in sinceros voto s de felicidade e comer do se u bolo; ver uma pessoa
co rt ar-s e e não impedi-la; interferir co m objetos qu e provocam dor ou pra-
zer no corpo de um alguém des conhecido e passivo; comprar ou não um vidro
de maionese por 100 dólares; divertir-se ou chocar-se com o fato de qu e uma
p essoa transforma seu próprio rosto , a cirurgia plá stic a e o set cirúrgico num
circo macabro; indi gnar-se ou não com um cidadão que decide, não por falta de
recursos , tran sformar-se temporariamente num sem-tet o e chamar isso "arte";
revoltar- se ou rir com outro qu e esculpe caralh os com terços; optar por tocar
ou não nos seios de uma mulher atravé s das cort ininhas de um teatro à italiana
são provocações qu e implicam não num en saio psicol ó gico de posicionam ento,
mas em tomadas de posição imediatas . O chamad o da performance é justamente
este: po sicione-se já, aqui e agora. Chamad o este que in sti ga n o aluno de t eatro
um posicionament o político consciente e ativo e apo nta para a importância da
dramaturgia do espectador, ou seja, para as man eiras co m o o teatro ativa seu
público.
Entretanto, é preciso esclarecer: me sm o abolind o a fic ção, não escapamo s
da narrati va, visto que o processo de co gni ção humana é fortement e narrativo.
A desaceleração narrativa tampouco elimina por compl eto a dimensão represen-
tacional , pois co m o ressaltado anteriorment e, estamos tratando de cenas, ainda
que im ediatas e cruas. Porém, ao esva ziarm os ao má xim o a narratividade de um
eve nto, sua condi ção de decifração através de um ato de " leit ur a" será minimizada
em favor de uma experiência relacional com o mesmo. Conforme propo sto na
primeira part e deste ensaio, nã o pens o que a melh or man eira de acessar o evento
se ja definindo o significado ou sign ificados da ação performada, mas bu scand o
per ceber qual seja sua força motriz e que novas força s daí se rep ercutem. (Defin ir
O que significa um sujeito arrastando um blo co de gelo pela Cidade do México ou

alguém rodando por um longo período de tempo numa praça pública do Rio de
Janeiro me parece menos importante e interessante do que atentar para as moti-
vações dramatúrgicas e políticas de seus agentes e para as ações e reflexões que se
derivam nos que experimentam tais programas - se ja assistindo, performando ou
o uvindo falar ).
E ne st e ponto ad entram o s, tal ve z, a mai or z o na de turbulên cia ativad a
pela perform ance: sua maneira de opera r "com unicação". C o mo sabe m os, o con-
ceito de comunicação sofreu si gnificativas alterações quand o se flexibilizaram
as no çõ es de su jeito , objeto, lin gua gem, meio, corpo .. . (co m Einst ein , Freud,
H eisenberg, Merleau-Ponty, Beckett e tanto s outro s qu e dem onstraram como o
relativi smo, a inconsci ência, a indet erminação, o parad oxo e o vaz io são forças
constitutivas da experiência comunicacional). A ilusã o da comunicação co m o
t ran smissão mecânica de uma men sa gem - que trafe ga invari ável entre emiss o-
re s e receptores d e forma transparent e e inequ ívoca - espatifou-se. O t emid o

70 EU ONO IC" f ABIAo


"ru íd o" tornou-se elemento paradoxicalmente co m u n icac io nal, elem ent o inclu-
ído por vári o s artistas em seus discursos. O performer não pretende exar amc rur
co m unicar um determinado conteúdo ao espectador, mas, acima de tudo , p ro ·
mo ver uma experi ência através da qual conteúdos serã o elaborados. Em gC } aJ, ()
foco não está na transmissão de determinado conteúdo , mas na potênci a rc la.i o -
nal promovida pela experiência proposta (no caso do espectador, na expcr it l1ci,1
que este estabelece com o performer, consigo, com os outros da audi ência, com
o espaço ond e a operação se dá e seu contexto histórico). É sobretudo nest e
conteúdo rel acional que reside a for ça política do ato perforrnativo. Para os es-
tudantes de t ea t r o , o desafio lançado pela performance (e todas as práticas q ue
provocam di stúrbios comunicacionais) é direto: como o teatro vem tra l.l llc! (1
destas questões e quais as conseqüências éticas e estéticas destas manobras? Tra-
ta-s e igualmente de uma pergunta-chave para professores de teatro, ocupad o s
em liderar cenas comunicacionais abertas a tantas correntes interdi scip lin.n l . '.
como a sala de aula de teatro .
Por fim , penso que especificamente em nosso paí s, um país marcado tão pro-
fundamente por ato s de violência e de irresponsabilidade política, a aproximação
entre performance e teatro indica caminhos prolíficos para uma renovação da dis-
cussão política da e na cena bra sileira. Como, depois do apogeu da era Bertolt Bre-
cht, estamos articu lando no ssas poéticas políticas? C omo a cena contemporân ea
resp onde às políticas da globalização "pós-colonial"? Ao refletir sobre a ver ve polí-
tica da arte contemporânea, Lucy Lippard esclarece:

Está claro que h oje em dia até a arte existe como parte de uma situação políti ca . ( )
que não quer di zer que a art e tem de ser vista em t ermo s políticos ou ser ex p licita-
mente en gajada, mas a man eira co mo os arti sta s t rat am sua art e, o nde eles a fa/ ('fl) , • .
chances qu e se tem de fazê-la , co mo ela será veiculada e para qu em - é tud o part e de
um estil o de vid a e de uma situação política-' .

Ou seja, tratar-se ou não de militância política, não é o ponto nevrál gico d o


problema. O ch am ado é por uma ati va ção da consci ência política, a noção d e qu e
participamos d e um contexto históric o e, sobretudo, d e que nossos atos formam tal
contexto. A performance é a arte da n egociação.
Espero que ao fim deste artigo estejam claros alguns dos principais motivos pe-
los quais pen so que a performance deva ser incluída nos currículos de teatro em nível
supe rior de ensino. Espero qu e esta discussão se fortal eça na academia assim cou ro
vem fortificando-se nos palco s e festi vais de teatro pelo mundo afora. A interdisci-
plinaridade nã o é um modismo, mas um caminho contemporâneo de pot encializaçâ o
política e po ética.

23 LIPPARD, Lucy R. Six yean: th e demat erialization of th e art object. Berkley: Uni ver sit y of
Ca lifornia Press, 1973. p. 8-9. Traduzido do inglês.

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72 ELFON ORA f AIII Ao


M ECANISMOS D E C O MICIDADE NO EN SIN O DO TEATRO

Elza de Andrade

O s diverso s escritos sobre construção do personagem não faz em distinção


entre o sério e o cômico. Quem, entretanto, vive a prática da cen a (e do ma gist éri o)
sabe qu e efetivame nte existe um a diferença ent re seus processos de co ns trução. E
que, na maioria das vezes, o desconheciment o desse processo em relação aos perso-
nagens de comédia leva-n o s a atribuir sua representação a um talent o particular; ou,
então, a tentar encontrar algumas justificativas equivocadas e preconceituosas qu e
acreditam na inviabilidade de a comédia ser en sinada, negando qualqu er po ssibilida-
de ao ator de repre sentá-la por meio de estudo e técnica.
Já há algun s an o s, portanto , como professora e diretora d e t eat ro , est udo
alguns co ncei tos do cô m ico e da com édia , procurando tran sformá-l o s em prática
cênica, no sent ido de ofe re cer ao aluno-ator uma estrut ura técnica, po r meio da
qual ele possa cam inha r para cons tr uir seus per sonagen s, se m dep end er exc lu-
sivame n te de um dom particul ar. Na minha o pin ião, é eq uivoc ado acred it ar que
"co mé d ia não se aprend e na esco la", procedimento qu e me parece d em o nstrar a
negação do gêne ro.
N a tentativa de escapar do pr ocedimento co mum qu e é co mp reender o cô -
mico ape nas partir do texto dramatúrgico, isto é, propondo a leitura e mo nt agem
de cenas de diverso s com edi ógrafos, minha pesqui sa tem caminhado no sent ido de
elaborar um conjunto de exercícios práticos, pen sad os a partir de conceitos teóricos
sobre o cômico. O o bjetivo principal desse s exercício s é ofe rece r ao alun o e ao ato r
a con sciên cia e o domínio daquilo que chamo de mecanism os de comicidade, o u
seja, um acervo técnico de procedimentos atoriais.

Modelo de atuação do ator cômico - Marco De Marinis

M arco De Marinis é um dos mais importantes teóri cos teatrais co ntemporâ-


neos, pr ofessor da Universidade de Bologna e auto r de diversas o bras so bre teoria e
prática do teatr o. Sua obra propõe uma revisão profunda tan to do m étodo como do
objeto dos estudos teatrais, oferecend o novas ferramentas, cujo enfoqu e hist órico é
completado substancialmente por outros aportes das nova s ciências d o espetá culo,
e para tanto propõe uma nova "teatrologia". Superando o conceito "textoc ênt rico",
que durant e muito tempo redu ziu a históri a do teatro à hist ória da lit eratura dramáti-
ca, D e Marinis invest e numa hist ória do teatro glo bal, isto é, numa nova perspectiva

73
teat rológica não mais parcial, e sim orgânica e inte gradora. Uma perspectiva capaz de
enfatizar um a visão global e unitária do fato teatral, ba seada em seus eleme ntos fun-
dantes - o ator e o espectad or - e, mais pre cisamente, na relação que os un e, qu e ele
den omina simplesm ente relação teatral.
De Ma rini s ', analisand o o ator cômico no teatro italiano do sé culo XX,
constrói um m odelo de atuação, do qual utili zo algu ns procedimentos na o rga -
ni zação da metodologia de es tu do dos mecanismo s de comicidade. Escolhi esse
te xto com o um a das principai s refer ên cias de uma p arte de minha pe squisa por
encontrar nele ele m ento s de uma estrutura mais ampla , que pode ser a d o ator de
teatro em geral, e não apenas do cômico italiano do sécu lo XX. Além di sso , esse
m odelo apres en ta procedimentos ligado s diretamente à cena, ao trabalho d o ator e
à rec epção da comicidade, sendo, p ortanto, muito apropriado para o entendimen-
to da essência da represen ta ção cômica, encarada com o uma tensão entre atuação
(ges to , vo z, pala vra , em oção ) e o público. Ten são qu e só p ode ser compreendida
e test ada a partir do olhar do o ut ro, que é o espectador. Estudar a comicidade se m
con siderar a presença d o público é perder um per sonagem fundamental, que serve
de guia e est ím u lo par a o ator.
Trabalh o tamb ém com as an ális es conceituai s de N o r t ho rp Fry e (19 12-
1991 ) , Vl adimir Propp ( 1895- 19 70) e H enri Bcr gson ( 1859- 194 1) sobre o fe-
nômeno cômico . Est as análi ses t êm caráter eminentement e te órico, a partir de
refer ências literárias, folc lóricas, dramatúrgicas e fil o sóficas. Pr o curei destacar
da o br a de cada um dele s algun s princípios qu e pro curo co m pree nder e utili zar
com o "matri ze s de comicidad e" , co m o intuit o d e se rvir de ref er ência à reali-
zação do s exercícios práti cos para o ator, posto qu e tra zem implíci to caráter
dramático , teatral e cênico .

Vocação para o solo

Segundo De Marinis, est a é a prim eir a e principal característica qu e difer en-


cia o ator cô mico do ato r burgu ês (o u dramát ico ): se r, por vo cação, um s o lista.
Um a fort e caracte rística do ator burgu ês é a de se limitar a in terpretar aq uilo que
est á escrito pel o autor, em ri goroso resp eito à palavra do dramaturgo, enq ua nto
o cômico é aqu ele qu e inventa partes de seu pr ópri o texto, num procedimen to,
muitas vezes, co-autoral.
Sua vocação para o so lo refere-se a diferentes as pectos do trabalho teat ral.
Um dele s pode se r a ausênci a do te xto dramático, uma esp écie de solidão dramat úr-
gica, que não diminui significativame nt e qu and o existe o text o a prion , H á também
a solidão cêni ca: o ator geralme nte está sozinho no palco , diante de seu público . Ele
só tem a si próprio, sua pessoa , su a té cnica. Além dis so, di sp õe de um tempo curt o
para convencer o esp ectador. Daí a nece ssidade de u m a inteli gênci a imediata, rápi -
da, ágil e sintética, alim entada por um ar cabouço técni co , um co nju nto de acervos
textuais, das mais variadas pr ocedências, que prote gem o ator em seu so lo, e qu e
podem vir a ser aprendidos e elabo rados.

I D E MARINIS, Marco . Comprender el teatro: lineamiemo s de un a nova teat ralo gía. Bueno s

Aires: Cal erna, 1997. p. 158-170.

74 EL ZA m A :--; OR.\DE
Autotradiç âo: bricolage; bricoleur

o ator cô m ico vive em um a so lidão hist óri ca. Não é possível faze r referê n cia
a um m odelo único de trad ição atorial côm ica. Encontra mo s um a série de "tra-
dições" individuais ou, melhor, de "aut ot radiçõe s". E ssa autotradi çâo nã o nega a
existê nc ia de mestres nem de par adi gm as; apenas não concebe a atuação como algn
já preexistente, e sim co mo invenção d e algo novo - portanto, co mo reco n strução
do próprio mecan ismo de atuação.
A au to tradi ção deve ser considerada nece ssidade vital para o at o r côm ico,
fonte de reo rgani zação de seu próp rio acervo, por m eio da relação livre co m o pen-
same nto. E la pode ser co ns truí da p o r mei o de um trab alh o minucioso e com p lexo
de bricolage: seleçã o, desmon tagem , recomposição, assimilação e reelaboração.
O antrop ól ogo fr ancê s C lau de L évi-Strau ss, em sua ob ra O pensamen to
selvagem (1962) , exp lora as n o çõ es de "brico lage e bricoleur" co mo conc e it os
fun dant es p ara o ca mpo da ant ro po logia qu e t ra ba lha com mitos, arte e c iê nc ia.
Par a ele, esses con ceitos ref er em- se à refl exão mi top o éti ca das cu lt uras prim i-
tiva s em qu e bricoleur é aqu ele qu e "e xecu ta u m trab alho usando meio s e expe-
dient es qu e den u nciam a ausência d e um pl an o precon cebid o e se afas ta m d os
pro cesso s e n o rm as adota do s pela técni ca. Carac te riza-o especialme nte o fato
de ope rar co m m ateriais fra gm entári o s já elabora d o s, ao contrári o, p or exe m p lo ,
do 'en genh eiro ' qu e, para dar exe cuç ão ao seu trab al h o , necessit a da m atéria-
prima"".
A regr a do jogo para o bncoleur é arra n jar-se co m os "meios-lim ites ", isto é,
um co n junto sem pre fini to d e ut ensílio s e de mat eriai s bastante sing ulares (h eter ó-
elites) . Esses elem entos são reco lh idos segun do o princíp io de que "isso p o d e servi r
para alguma coi sa", e não em função de algum pro jeto . Os materiais do bricoleurv s
io ram usado s ant es par a o utros fins o u em o utros contextos, sendo agora ada p ta dos
a outras funç õ es, de acord o com as n ecessidade s. Ele co nstrói co m restos/fragmen-
to s algo novo e pess oa l, a qu e ele soma seu pró pr io m o delo e lhe dá uso d iferente
daqu ele que t iver am suas part es com po nentes . Sua for ma de tra balha r supõe a ca-
pacidad e de criar, tra zendo implícita a necessid ade de ada p tar-se às circ u ns tâncias e
ao in esperado.
Lévi-Strauss chama ate nção para as decisões q ue o bricoleur to ma em face dos
elem entos predet erminad os qu e entram na co ns trução de sua bricolage; são escolhas
e permutas que se ent relaça m, crian do um a nova estrut ura .
Apro ximando o co n ce ito d e bricoleur do universo do ator cômi co, po-
dem o s percebe r que a auto t radição a qu e D e Ma r in is se refere es tá rel aci on ad a
à man eira pela qua l o ato r o pe ra suas ref er ên cias/ fr agm ent os. Sua ass ina t ura -
bem co mo s ua co m pe tê nc ia, seu virt uosis mo - t radu z-se na man ei ra p ela qual
ele as reún e e reelabora, criando, a partir de materia is já co nh ec id o s, um n ov o
mod elo , um a n ova est rutu ra.
Pod em os ob servar qu e, muitas vezes, a comicidade é co nseqüência dessa nova ar-
rumação. O espectado r ri ao iden tificar as partes com po nentes colocadas em um novo
padrã o.

2 LÉVI-STRAU SS, C laude. O pensam ent o selvagem . 3. ed. C ampin as, SP: Papirus, 2002. p. 32.

M Ee A N I U / O.1 D[ COI/ /U/HD [ vo [NSINO DO I L4 TR O 75


Variedade de linguagens teatrais

o ator cô m ico n ão trabalha dentro num a única fo rma es petacu lar, mas circ u la
e m meio a gran de variedade de lingua gen s teatrais:

Aqui nasce o tão celebrado ecleti smo do ato r cômic o (algumas vezes um pou co me -
diat izado) que sabe recitar, cantar, dançar, rep resentar uma farsa ou uma comédia sé-
ria e muitas outras co isas. Daqui nascem a amplitude, a variedade e tamb ém a pr ecisão
de seu saber-fazer, em comparação aos limit es técnicos (e por out ro lado tam bém
culturais) do ator bu rguês, que é, esse ncialmente, um ato r de voze s, um declamador,
bem mais desajeitad o no manejo corporal' .

São muitas as des cendências d o a to r cômico popular, e muito antiga é a su a


orig e m ; nesse longo p ercurso ele foi ape r feiço ando se u sabe r- fazer na soma d e t an -
tas a rt es e técni cas da cen a. Sua trad ição englo ba quase toda a h istória da arte cêni ca ,
se considerarmo s qu e el e es tava lá nas pro cissões dioni síacas, nas praças m edi evai s,
n as t avern as, no circo, n o s cabarés , no s pa vilh õ es, no boulevard e, agora, está tam-
b ém na s telinhas e n o s tel õ es. O s qu e so b revivera m, fizeram-no independentem en-
t e dos estilos ou da s ida des históricas, enten d endo a tradi ção como rep ert ório de
acervos qu e devem ser utili zados a partir de uma assinatura própria.
Nos dia s de hoje, portanto, preci samos pen sar no ecl e ti smo do ator c ô -
mi c o com o um a meta a se r atin gida. O ator contemporân eo dev e ala r gar suas
p o s sibilidades cê n ic as para es ta r apto a en fre nta r diferen t es lin gua gen s e co n -
c ep ções, po stura fund am en tal ao exe rc ício da pro fissã o . Co n hece r algun s m eca-
ni sm o s de co m icid ade util izado s pel o at or cô m ico/ po p u la r é a m p liar sua té cn ic a
e se u es paço d e atu ação na ce n a d o t eat ro co nte m po râ neo. A o b ra d e alg u ns
d e n o sso s pr inc ipai s e nce nado r es, ass im com o as p esqui sas ato r iais das úl tima s
d écadas d o teatro brasil eiro, apont a para a nec essidade d e formação d o profis-
s io n al capaz d e domin ar diferente s ace r vo s té cni co s em bu sca de uma atua ção
múltipla e, prin cipalm ent e, au to ra l.

Metatuaçâo carnavalesca

Para De Marinis, a atuacâo do ator cômico de ve se r ent e nd ida co mo uma


metatuaç âo , isto é, com o uma atuaçã o sobre a atuação, um te atro so b re o t eatro,
na qual a comicidade se aplica mais à realidade teatral do que à realidade cotidiana;
mais exatamente, à interpretação propo sta pelo t eatro sério do fin al do século IXX,
o u seja, o ator cô m ico sat ir iza e caricatura a representação se nt imen t al, che ia de d or
c ên fases sublimes, d o gr a nde ator burgu ês.
Pen sand o o te atr o sé rio co mo a forma can ôni ca d e re p rese nt ação, p od e-
m o s perceber aq ui um a a na logia com o c o n ce ito d e "ca r navalizaçâ o " apresenta-
d o p or Bakhtin . Segund o o auto r, "as formas da c u lt u ra cô m ica da Idad e M édi a
tinham urna r elaç ão ca p it al co m o tempo, a mud an ça, o de vi r. E las de stronavam
e renovavam o poder d iri gente e a ve r d ad e oficial. Faziam triunfar o retorno de
t empos m elh ores , da abundância uni versal e da ju sti ça. A n o va co n sciê nc ia his-

3 DE MARINIS, 1997, p. 162.

76 ELZ.~ V I. A NV I<.~ VI
tórica se preparava nelas também. Por esse motivo, essa consciência encontrou
sua expressão mais radical no riso'",
Todas as imagens da festa popular estavam dialogando com essa nova sensação
histórica, produzindo uma despedida cômica e popular do velho poder e da velha ver-
dade:

Naquela época, era absolutamente necessário estar armado do riso não oficial para
aproximar-se do povo que desconfiava de tudo que era sério, que tinha o hábito de
estabelecer um parentesco entre a verdade livre e sem véus e o risos.

o jogo de contrastes entre rebaixamento e elevação também remete ao con-


ceito bakhtiniano de carnavalização. Segundo Bakhtin, uma das características dos
festejos carnavalescos na Idade Média e no Renascimento é a inversão da hierar-
quia vigente: personalidades elevadas, como o Rei, ganham sua versão rebaixada,
normalmente representada de maneira grotesca, tomo, por exemplo, o Rei Momo;
por outro lado, o povo permite-se imitar os trajes e as maneiras fidalgas. Nesse
°
sentido, carnaval transmite a impressão de "mundo às avessas"; além disso, esti-
mula os exageros relacionados com o baixo corporal, e a presença de uma multidão
de pessoas provoca a mistura de corpos, característica do grotesco. No carnaval, o
grotesco, associado ao riso alegre, adquire um sentido positivo.

o verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e com-
pleta-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo
e do espírito categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do didatismo, da
ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano único, do esgota-
mento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada
da existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade arnbivalente".

A relação com o espectador

o teatro ilusionista preserva seus atores ao fechá-los dentro da caixa preta, po-
rém o ator cômico incorpora o espectador no centro de sua atenção, convertendo-o
em sujeito e objeto de seu espetáculo. O espectador é arrancado de seu voyeurismo
quando o ator derruba a quarta parede e fala diretamente com ele, atribuindo-lhe
uma dupla função ao transformá-lo em confidente e parceiro de cena.
Invadindo a intimidade do público, o ator torna-se também vulnerável a uma
reação imprevisível, pois não tem certeza da resposta do espectador. O ator cômico
fica exposto a sofrer diretamente todas as conseqüências de sua atuação: indiferença,
agressividade, fascinação ou, então, uma reação totalmente inesperada e imprevisível. E
precisa saber incorporar essas reações a sua atuação, transformando-as em possibilidade
de diálogo, de texto na cena, o que exige o domínio de técnica específica.

4 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 85.
s BAKTHIN, 1993, p. 87.
6 BAKTHIN, 1993, p. 105.

MEUS/I.llm J)E COAfICIIJAf)E NO ESSINO [)O TEATkO 77


Matrizes d e comicidade - Frye, Proppe Bergson

o teóri co canad en se No rt h ro p Frye? o bserva que Aristóteles, n o seg undo ca-


pítulo da Poética, refe re-se às diferentes posiçõ es d os person agens, qu e pod em ser:
melhores, piores e igu ais a nó s. Em co ns eqüê nc ia, as ficções pod em se r classificadas
pela força da ação do her ói : se maior do que a nossa, ele é um ser divin o, e a sua hi s-
tória será um mito. Nessa cate go ria estão também a lenda e os co nt os maravilhosos,
em que o herói é um ser humano cuja s açõe s são extrao rdiná rias, porque algumas
leis da natureza foram mom entan eamente sus pensas . Tem os também o herói do
m odo imitativo elevado, da m aior parte da epo pé ia e da tra gédi a.
O her ói do modo imitativo baixo, da m aior parte da comédia e da ficção rea-
lística, apresenta-n os a categoria de persona gens qu e não são superio res aos out ro s
homens. N esse plan o, há dificuldad e em manter a palavra herói. Se de poder ou
inteli gên cia inf erior es aos noss os , de modo qu e temos a sensação de o lha r de cima
(m esm o qu ando o leitor sente qu e está ou poderia estar na mesm a sit uação), o per-
so nagem pertence ao m o do irô nico. Frye ac rescenta ainda qu e "exami na ndo esse
ro l, pod em os ver que a ficção europ éia, durante os últimos qui nze séc ulo s, desceu
constantemente seu centro de grav idade, lista abaixo'".
Para o teór ico canade nse, o tem a do cô m ico é a integração da sociedade. Po r-
tan to , a ação da comé d ia m ove- se no sent indo d e incorporar O person agem à soc ie-
dad e a q ual ele natu ralm en te se ajus ta; isso q ue r di zer qu e o movimento da com édia
é de m udança de uma classe social para out ra. O s o bs táculos aos desejos do herói
co ns tit ue m-s e na ação da co m éd ia e sua superação no desenlace cômico. Em geral,
o s o bs tác ulos vêm represe ntados pelos desejo s de um seg mento mais velho ou mais
podero so, o qu e faz co m qu e se atribua à co mé d ia um movim en to de subve rsão da
o rdem co ns tit uída. A ten dên cia é incluir o maior número de perso nage ns na soc ie-
d ad e fina l, med iant e a recon ciliação ou a co nve rsão das part es. Para os person agen s,
cuja prin cipal fun ção é o divertimen to do público, o princípio da conversão torn a-se
m ais claro, po is a tend ên cia da so ciedade côm ica é incl uir e não excluir.
Na comédia, os per so nagen s obs t ruro res são mais absurdos d o qu e maus,
poden do-se dizer qu e o ab su rdo está pert o de uma norma cô m ica. Mas , afinal, o que
torna absurdo o personage m o bs truto r? Um a possibilidade enco nt ra-se na obses -
S3 0 . O prin cípio da idéia fixa é o d e que é eng raçada a repetição sem clímax.

Para Vladímir Propp, filó logo sov iético, a contraposição do cômico ao tr ágico
e ao su b lime não revela a natu reza da co micida de em sua especi ficida de . É pr eciso
d efi nir o cô mico co mo tal, e nã o co mparativa o u negati vam ente, poi s seria negar a
especificida de do gênero.
Pod e-se rir do hom em em qu ase todas as su as m anife st ações, podendo ser en-
co nt rados aspectos ridícul os em sua vida física, mo ral e intel ectual. A única exceção
co loca -se nas mani festaçõ es de dor e sofrime nto que, inst antaneam ente, bl oqueiam
os im p u lsos do riso.
P rop p e Bergson co nco rda m qu e a natu reza não é ridícula - não existe m
flo rest as, est relas, mo n ta nhas en graçadas. N o en tanto, o ani mal po d e ser rid ículo
qua ndo n os lembra o ser humano e seus movimentos. Podem os concluir, então, que

FRYE, N or throp , An atom ia da crítica. São Paulo: C u lt rix, 1973. p. 39- 40.
, FRYE, 1973, p. 40.

78 EL!.'I IH A NIJRA LJI


o cômico sempre, direta ou indiretamente, remete-nos ao human o .
O extraordinári o ator Charle s Chaplin ( 1889- 1977) declara q ue' 11
toda a comicidade "não há sen ão um co n h ecime nt o da natureza h u 1l'
cunstância de um cha pé u vo ar não é por si só cômica, mas sim o vc r-:« : .
prietário a co rrer, co m os cabelos no vento [...) . Os filme s cômi cos ri \ .
sucesso im ediato porque a maior parte apresentava policiais que caíam , i
de esg o to " 9.
Um dos princípios que percorrem qua se toda a obra de Propp afir m a q1ll'
SÓ é provocado quando o físico revela um a falha oculta do espiritual. Por exe m p lo
geral as pessoas gordas (ou muito magras, altas, baixas, com nari z avantaj:ul.
etc. ) co stumam parecer ridículas. No entanto, existem gordos que não tu\ i

que um princípio espiritual prevalece sobre o físico, sobrepondo-se a ele. Dcnr J,


mesma idéia , encontramos algumas ações e funções corporais que também )1'
comicidade. Por exemplo, a embriaguez. A embriaguez exagerada, no enta:
não é ridícula, mas lamentável, porque se aproxima da idéia de doença e sofrime ru . "
também qua se sempre ridículas as fun ções fisioló gicas involuntárias do co rpo : .ur . :
gazes, soluços, cheir os.
Charles C haplin ac res cen ta a essa idéia a qu estão da tentati va de manuren ci .
da di gnidade por part e daqueles qu e infrin gem o padrão "no rm al", colocand o l1 l " , · .

pret en sã o , o núcl eo da co m icidade.

A inda mais di vert id a é a pe ssoa ridicul ari zada q u e, apesar d isso , se rec u sa :l 1'11' "

qu e lh e aco ntece u algu m a coisa de ex traord iná rio e teima em def en d e r ,1 • J ' "

de. O melh o r exe m p lo nos é dad o pelo h om em éb rio, qu e denun ciad o I ·i


e p el o seu andar, n o s q ue r co nve ncer bastante di gnam ent e d e q ue es tá em ic i']'
bebed eira no cine ma é geralm ent e ligad a a um a tentativa de se ma nte r
p oi s o s rea lizado res aprenderam qu e est a pret ensão é divertid a" .

O cô m ico é um mecanismo d e subve rs ão e destruição: ele r evel "


destrói a fal sa aut oridade e o fal so pod er d aqueles que são submet id-
cu lo . A c omicidade, p ortanto, é pr ov oc ad a pel a de scoberta d e al gul l:
o cu lto .
O se r hum an o , em ge ral, possui um co nj un to de idéias que co ns idera ' 1 .
o padrã o. Essas normas referem-se tant o ao asp ecto ext erior do h ome u. q. I
vida m oral e int electual. Provo cam a co m icidade os de svios, as qu ebra- .1" I ' "

ou do p adrão .
É po ssível parodiar tudo: os mo vim en to s e as ações de um a p esso a, .~ L U
to s, o and ar, a mími ca, a fala , o s háb ito s de sua profis são e o jar gão pro fi" i' ,11 :
paródia busca dem onstrar qu e por trás das formas exteri ores de um a m anih-s;». ;
es piri tu al não há nada, qu e p or trás delas existe o vaz io . A par ódia é cômica quan d . .
re vela a fr agilid ad e inte rio r do qu e é par odiado . Para Pr opp":

9 CHAPLIN et al, Chaplin: cadernos de cine ma . Lisboa: Dom Quixote,


110.
1':' CHAPLIN e t al., 1969, p. 110. ,
11 PROPp, Vladimir, Comtculade e riso, São Paul o : Ari ca, 1992. p. 84 -85.

1\1 EC1 N I S,lIO "> D[ CO .tl! CJlJ.4D[ ;\' 0 [ N ~ / ;V U /) ( I lL17 :~ ; ,


A paródia co nsis te na imitação das características ext er io res (a forma) , de um fen ô -
men o qu alqu e r de vida, de mod o a ocu ltar o u negar o sentido in t erior daquilo qu e (-
su bmetido à paro di z a çâo , D esse m odo , a pa ró d ia representa um m eio de de sven d a-
men ta da inconsis tê ncia int er io r d o que é parodi ad o.

Segundo Pavis !' , e m se u Dicionário de teat ro, a paródi a e um a peça o u


f rag me nto qu e tra n sform a iro n ica m ente um t ext o pre exi st ent e , zomband o d ele
p or to d a espéc ie d e efei to cô m ico" . O tex to parod iant e nun ca pod e esq uece r o
al vo parodiado; ca so c o n trá rio, d esaparecerá a for ça crít ica , p oi s ele cita o t e xto
o r ig ina l d ef ormand o - o. A paródia é, ao m esm o t em po , citação e criação ori ginal.
A in versão do s sig nos sub stitui O el evad o pel o vulga r. A in versão , em ge ra l, é
fei t a co m o objetivo de de gradar, mas é p o ssível tamb ém qu e um t exto vulgar
p o ssa se r substituíd o por um t exto n obre. Nesse cas o, o co n tras t e e seu efeito
cô m ico pare cerão a in da m ais surp ree n de ntes.
Pavis" acresce nta qu e a paródia d e um a peça não se restrin ge a uma técnica
cô m ica. "Ela in stitui um jo go de co m par ações e com entári os com a obra parodiada
e co m a tradi ção lit erária o u teatral. Con stitui um m etadi scurso crít ico sob re a pe ça
d e o rige m" .
Linda Hut ch eon 14 comenta que a par ódia é tamb ém uma fo rma de imitaçã o
qu e se caracteriza por um a inversão irônica qu e nem sem p re acontece à cu st a do
t exto parodiado . É uma re pe tição co m di st ân cia cr ít ica, qu e m ar ca a dif erença em
vez da se me lhanç a. Po rta n to , a inv ersão ir ôn ica es t á presente em toda paródia.
A co micidade está se m pre muito pró xima d o exagero, no en ta nto, o exage ro só
é cô m ico quando revela um defei to. São três as formas fundamentais de exagero : a ca-
ricatura, a hipérb ol e e o grotesco. A cari catura co ns iste em to ma r-se qualquer particu-
lari dade e aumentá-Ia até qu e ela se to rne visíve l para to dos. A hipérbole é um a variação
da caricatu ra. Na ca ricatura ocorre O exagero d e um por men or; na hipérbole, o do todo.
O grau mais elevado e ext remo do exagero é o gro tesco , no qual, o exagero atinge tais
di m en sões, qu e ex trapo la os limite s da realidade e pen etr:l o domíni o do fant ásti co. O
gro tesco é a fo rma d e co m icidade preferid a pela art e popular desd e a A nt igüidade.
Para Pavis" , o grotesco é um a d ef ormaçã o sig nifica t iva de uma form a co-
n h ecida o u aceita como n o rma e aparece est reitam ente associado ao tragic ômico,
m ant endo inst ável eq uilíb rio en tre o risível e o t rágico.
Bakhtin" por sua vez, afirma qu e a verda d eira natureza d o gro tesco é in sepa-
rável do mundo da cult ura cô m ica popular e da visão carnaval esc a d o mund o, p oi s
el as de stroem a seried ade e as pretensões de sig nificaç ão in condicional, liberando o
p en sam ento e a imagi nação human as par a n ovas po ssibilidad es.
Chapliri", porém, cham a at en ção para o exage ro excessivo, que também pode
m atar a comicidade . "Po de rei mais facilmente m atar o riso por exagero qu e p or qual-
qu er outro meio". É preciso, portanto, sab er o que exagerar e qu al sua medida ad e-
q ua da.

12 PAVIS, Patrice. D icionário de teatro, São Paulo : Persp ecti va, 199t). p. 278 .
u PAVIS, 1999, p. 279 .
I , H UTCHEO N , Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 17.

I ' PAVIS, 1999, p. 18S-I St).

I h BA KTH IN, 1993, p. 41- 43.

17 C HA PLIN et al., 196t), p. 121.

80 E lZ.' Df i\NDRADf.
A descoberta d o s defeitos d as pe ssoa s e o u t ras de scoberta s seme lh antes
só levam à comi cidad e quando são in e speradas. Uma piad a nos fa z ri r pn , . I
final es p irit uoso e s ur p ree nde n te. A essên c ia da piada é a inesperada c LL " ; '

aproximação de doi s o b jetos que por sua natureza pert en cem a duas Categ ol'.!
diferentes.
H enri Bergson \ S, filósofo fran cês, ven cedor do Prêmio Nobel de lit erat ur.i
de 192 7, apre senta uma visão metafísica do riso. Pa ra ele, rim o s se mp re do human o
que d eix ou de ser, circu ns tancialme nte, humano para se tornar m ecânico , autômato,
envo lvido na rep eti ção e na caricatura. Ber gson propõe a ex ist ên cia de mecani s-
mo s que interrompem, d esarranjand o a vida es po nt ânea, cri at iva, livr e. Uma de suas
idéias principai s d em onstra que o cô m ico é o mecânico que se so b repõe ao vi vo .
Para Bergson, o ris o é uma espécie de gesto social:

[...] uma cert a rigidez do corpo, do espírito e do caráter, qu e a sociedade gostaria ,t,
eliminar para ob ter de seus memb ros a maior elasticidade e a mais elevada sociabili-
dade possíveis. Essa rigidez é a comi cidade, e o riso é seu castigai".

A utoma tismo, ri gidez, hábito adquirid o e co ns ervado são alguns traços físi-
cos qu e pr ovocam o cô m ico e qu e ganh am ma is intensidad e quando lh es so mam os
uma cau sa profunda, que os relacionam a um desvio de caráter. No cômico da s
forma s e dos gestos, Bergson propõe que a co m icidade surge quando o corpo nos
leva a pen sar num sim ples mecanism o , perdendo sua humanidad e. Nesse princípi o ,
e nc aixam-se muitos do s art ifícios usu ais da co mé d ia, com o a re pe t ição de ges tos,
expressões e movim ent o s.
O o ut ro me cani s m o de comi cid ade o co rre quando se dá uma transfer ência d e
a t en ção da alma para o co rpo. A co rpo ralidad e do persona gem e suas necessidad es
físicas e fisiol ógi cas n o s remet em ao cô m ico. Seg u ndo Bergson", essa é a razã o pcl.i
qual o poeta trágic o evita "tudo o qu e possa cha mar a nossa ate nção para a materia-
lidade de seus herói s".
Esse princípio pode te r vár ios desdobram entos, como , p or exemplo, a fo r ma
qu e se impõe ao co nte úd o, o ridícul o físico e o rid ículo pr o fissional.
D entro da co m icidade de situação e de palavra s, Ber gson de staca a inversã o ,
que pode ser ente ndida também como o contrast e, um dos m ecani smos mai s traJi -
ci onais, se mpre presente nas co mé dias anti gas.
Chaplin confirma a tend ência do público para gostar d o s contrast es e das xur-
presas, e do confli to ent re o bem e o mal, o ric o e o pobre, o bobo e o espert o . Por
isso, na maioria de se us filme s, quando seu per sonagem é per se guido por policiais,
esses são pesad os e d esajeitados, enq uanto ele, pequeno e ág il, es capa por ent re as
pern as de seu per seguidor:

É evidentement e um a sorte que seja pequeno e possa assim fazer estes co ntrastes S~ 111
custo. Sabendo des ta inclinação pelo fraco, arra njo sempre uma maneira de acent uar
a minha fraqu eza enc urvando as costas fazend o uma cara medrosa e tom ando um ar

is BERG SO N , H enri. O riso, São Paulo: M. Font es, 200 1. 152 p.


19 BERGSON, 200 1, p. 15.
1:; BERGSON , 200 1, p. 39.

J / LU W I.IIOI ot. C()UKJl)4/JL .'iO L" S/ N O / )O ILH R ') 81


assustado. Tudo isto, naturalment e, é a arte da pantomim a; mas se eu fosse um pouco
maior teria mais dificuldade em ser simp ático".

o contraste é um do s mecani sm os mais presentes na comi cid ade d e to do s (J '

t empo s da hist ória do ator e d o teatro. Exi st e uma ló gica nas oposições qu e se pode
m anifestar de várias formas: na própria lin guag em (na fala do personagem ), em seu
corpo (d iferenç as no andar, na dimensão, no ges to), na pul sação rítmica e temporal ,
no temperamento e na m oral, no figurino e na caracterização, ou seja, em qu ase
to d as as possibilidades de co m pos ição externa e interna dos personagens.
Por co n t raste, podem o s pen sar em vár ios ní vei s de o pos ição, co mo, por
exe m p lo, na cen a da com m edia dell'arte, em qu e en co n t ram os d oi s plan o s d e
ação: um "sé rio" , com a pres en ça do s en amo rados, e outro " ridíc ulo", do s cria-
d o s e dos velhos, rep res entantes de tradiçõe s e códi go s at oriais dife rente s. O
co n t ras t e, tã o nitidam e nt e característi co d a ce na d a commedia dell'arte, ap re -
se nta-s e em vá rios ou t ros m omentos da hi st ória do teatro, também com o um
recurso de co m pleme n t ar idade e n t re o s persona gen s; e, amplian do se u se nt ido,
p odem o s lo calizá-l o na b ase fu nda n te d o t eatro e da dr am atu rgia se enten d er-
m o s o co nfl ito também co mo um jo go d e contrast es.

Mecanismos de comicidade - arte ou técnica?

O grande legislador ateniense, Sólon , empreendeu uma reforma estrutural da


polis grega a partir de 594 a.c. Um dos pontos dessa reform a foi o estím ulo ao de-
senvolvime nto e ao enr iquec imento dos art esãos, pat ro cinand o as técnicas e criando
honrarias para os ofícios, sendo esse um do s motivos do declínio do poder das família s
ar istoc ráticas. Segund o C haui22 , a polis dem ocrática humanizou as técnicas ao desfazer
a co nce pção mítica de que elas haviam sido dadas aos hom ens pelos deuses, como, po r
exe mplo, o gesto heróico de Prometeu rouband o o fog o sagrado de Zeus, trazendo-o
para os hom ens. Essa humani zação das técn icas sig nifica também a valor ização de um a
classe soc ial não aristoc rática cu jo valor não vem do sangue. Em resumo, a po lis dem o-
crá tica enfatiz á e destaca o valor da ação humana na natureza e na cidade. O humano em
sua relação com o mundo, a expe riência e a ação são, portanto , os tem as da técni ca.
Seg undo Platão, a técnic a é um saber especializa do capaz de co nc re tizar algo
que existia apenas potencialmente. N a cultura greco-latina não havia distinção para os
conceitos de té cnica e arte. Segu ndo C haui, na sociedade greco-roma na " téc nic a o u
arte é toda ação hum ana qu e fab rica alguma co isa que não existia na natureza, sub me-
tida a regras, po rtant o orde nada, em oposição ao acaso, ao espo nt âneo e ao natural ".
Po ré m, em nosso co nt exto hist órico, a palavra técni ca adq uiriu u m sen tido
afas tado do conceito de arte, que provo ca um em pobrec imento de sua ação . E m
geral, co mpre ende-se a técni ca co mo algo frio, buro crático, auto ma tizado, qu e não
respei ta o espaço ind ividual, muito p róximo da m áquina e distante do univer so da
criação.

! IC HAPLIN et al., 1969, p. 117.


zz C HAU I, Marilena. Introdução ti história da filosofia : dos pr é-socrát icos a A rist óteles. 2. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994. v. l , p. 116.

82 EL ZA D E ANDKA DE
Em nossa sociedade, fomos acostumados a distinguir técnica e arte. Técnica é a apli-
cação de um conhecimento com finalidade prática e instrumental. Arte é ,i.i iCICác,

desinteressada de coisas belas pela fantasia e imaginação. Para os antigos ,_',I'


romanos arte e técnica eram a mesma coisa, tanto assim que a palavra latina ";
tradução da palavra grega "téchne":".

No âmbito do ensino do teatro, deve-se trabalhar pensando nessa parceria anti-


ga entre técnica (o processo) e arte (um momento do processo). É acreditando nessa
conjugação de conceitos que proponho o estudo de mecanismos de comicidade na for-
mação do ator.
A divisão clássica - aristotélica - dos gêneros perdeu sua validade; portanto, ()
cômico não se restringe apenas ao gênero da comédia. É um fenômeno que age em
vários campos distintos, ligados à história do homem e à sua capacidade de represen-
tar aspectos insólitos, ridículos e humanos de sua realidade externa, interna, pessoal
e coletiva.
A cena brasileira tem evidenciado, em suas últimas décadas, grande comple-
xidade e a necessidade de atores mais preparados tecnicamente - entendendo "téc-
nica" como sinônimo de "arte" - para enfrentar seus desafios; portanto, essa é uma
demanda efetiva. Acredito que o estudo de alguns mecanismos de comicidade pode
fornecer elementos para a construção e o enriquecimento do acervo técnico do ator
contemporâneo.

23 CHAUÍ, 1994, p. 106.

MECAY1IJI0\ J)E Cl!JIlClD.,J)E NO [NS1,Y(J IJO IIA1RO 83


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84 ELZ A IH A N D !{AD I
A PO SIÇÃO DO ESPECTADOR: PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS

Flávio Desgranges

o pensamento a respeito da posição do espectador em sua relação com a obra


teatral permite qu e se apontem enfoques diversos e, qu em sabe, complementares
acerca das perspe cti vas pedagó gicas que podem ser traçadas a partir de ste enco nt ro
entre aquele que age em cena e aqu ele que ob serva da sala. Al guns aspectos podem ser
destacados com vista s ao desdobramento da que stão, tomando por diferentes ângulos
esta pedagogia do esp ectador: 1) pode-se tomar a atividade proposta ao espectador
como sendo por si peda gógica, apoiando-se, por exemplo, na máxima benj aminiana ',
que aponta que na pr ópria experiência artística reside seu potencial educacional, pois
este lhe é inerente; 2) um outro feixe reflexivo se descortina ampliando a questão, ao
se reconhecer o jogo de linguagem formulado pelo artista nas provocações esté ticas
(,ue faz ao espectador, co mo proposições pedagógicas; 3) pode-se ainda abordar esta
relação entre palc o e plat éia sob o âmbito da formação de espectadores apo ntan do a
relevância de um público teatral especializado, além dos procedimentos pedagógicos
que podem ser adotados tendo em vista a dinamização da recepção teatral e a criação
do gost o por esta art e.
Trataremos, aqui , o assunto tendo em vista especialmente o último dos aspectos
ressaltad os, traçando possíveis de sdobramentos para a formulação de uma pedagogia
do espe ctador res salt ando a pertinência da qu estão e os procedimentos pedagó gi-
cos a serem adotados no âmbito da formação de espectadores teatrais. C ontudo, ao
enfocarmos o teatro épico de Berrolt Brecht, serão abordados também algu ns dos
aspectos citados no item dois, dando conta, ainda que de maneira breve, de como as
proposições estéticas formuladas pelo artista teatral podem ser tomadas como pro-
postas pedag ó gicas.

A formação de espectadores

As pesquisas acerca da importância da formação d e espectadores vêm tendo


grande desenvolvim ento nos últim os anos em todo o mundo. São d oi s os fatore s
preponderantes qu e sustentam esta s investigações, e ap ontam para a necessidade

I "A art e é educado ra enquanto arte , não enquanto arte educadora", \Valter Benjamin [1892-
1940], filóso fo alemão.

85
cada vez maior de implementação de práticas de formação: a necessária participação
do s espectadores no desenvolvimento da arte teatral, o que sugere a efetiva aru a çâo
de um público teatral interessado nos próprios rumos desta arte ; e a formação crítica
do indivíduo contempo râneo qu e, numa so ciedade espetac ularizada, vê-se exp ost o
cotidianamente a uma enx ur rada de signo s, diant e do s os qu ais precisa encontrar- se
apto para dialogar e produzir sentidos próprios.
Assim, o primeiro dos asp ectos citados di z respeito à importância de que haja
espectadores int eressados em ver e debater teatro, já qu e não há desenvolvimento
da arte teatral que possa se dar sem a efetiva participação dos espectadores. Não existe
teatro sem platé ia e a importância da presença do esp ectador nele precisa ser vista
n ão so ment e por uma razã o eco nô mica, de suste ntação finan ceir a das produçõe s. l'.~
evidente qu e o fator econômico é vital e não pode ser esquecido, at é porque o pre-
ço do ingresso torna o ace sso inviável, excluindo das salas um a parcela do público
qu e tal vez fosse a mai s inter essada. Como um livro que só exist e quando alguém o
abre, o teatro não existe se m a pre sen ça deste out ro com o qual ele dialoga so b re
o mundo e sobre si m esmo. Sem esp ectad ores interessad os neste debate, o teatro
perde co nexão com a realidade a qu e se propõ e refletir e, sem a referência deste
outro, o seu discur so se torna ensimesmado, desen contrado, est éril. Não há evolu-
ção ou transformação do teatro que se dê, portanto, sem a efetiva participação dos
es pecta dores.
O olhar do obse rva do r sobre o espe tá cu lo suste nt a o pr óprio jogo do teat ro .
A necessidade de companheiros de jogo, companheiros de cr iação , anima o mo-
vime nto de formação d e espect adores. Uma pedagogia do esp ectador se justifica,
assim , pela necessária presença de um outro qu e exija diálo go, pel a fundamental
p articipação criativa deste jogad or no evento teatral; participa ção que se efetiva na
sua res pos ta às prop o siçõ es cênicas, na sua capac idade de elabo ra r os signos trazi-
do s à cena e de fo rmu lar um juízo pr óprio do s se nt idos .
O público participativo é aqu ele qu e, durante o ato da representação, exige
qu e cad a instante do es pe tác ulo não se ja grat uito, o qu e não sign ifica que seja ne-
cessário, pois, se manifest ar o u int ervir diretamente para parti cipar do evento. A sua
presen ça se efetiva na cum plicidade que ele estabelece com o palco, na vontad e de
co m pa ctu ar com o evento , na at ençã o às proposições cên icas, na atitude desp erta,
no o lh ar aceso. Este espe cta dor crítico, exigente e participativo é aliado fundamen-
tal nos diálogos travad os acerca dos rumo s da arte teatral.
O outro fator rel evante para se pen sar uma pedago gia do es pectador, em no s-
sos di as, diz respeito à es pe ta cularização da soc iedade, ocasionada pela proliferação
de meio s de comunicação de massa. Esses m eios condicionam a sensibilidade e a
percepção dos indi vídu os contemporâneo s, e indicam a necessidade de uma forma-
ção reflexiva do obse rva do r, visando a sua ap tidã o tanto para per ceber os recursos
es p etac ulares util izados, quant o para analisar a produção de se nt idos veiculada po r
estes canai s de comunicação.
Em um a sociedad e baseada na espetacularidade do s aco ntecime ntos e apo iada
na indústri a mo dern a, q ue "não é fort uitame n te o u superficialme nte espetacular, ela é
fundam entalmente 'e sp etacularista'", em que o espetáculo é "o sol qu e não se esconde
jam ais sobre o império da passividade moderna":', formar espectado res con siste tarn -

2 D EBüRD, G uy. La soci ét édu spectacle. 2. cd. Paris: G allimard, J 992. p. 21.

86 FL AVIO D ESGM NGES


bém em estimular os indivíduos (de todas as idades) a ocupar o seu lugar não so ment e
no teatro, mas no mundo . Educar o espectado r para que não se contente em ser a pe-
nas o recept áculo de um di scurso que lhe proponha um silênci o passivo. A f llr !ll <[l" l{ \
do o lhar e a aquisição de instrumentos lingüísticos sensibilizam o esp ectad o r par:l , )
diálo go que se estabelec e nas salas de espetáculo, além de estimulá-lo para enfrentar
o duelo que se tra va no dia-a-dia. O o lhar armado busca uma interpretação .1i'.Ul.h
dos signos utilizad os nos espetáculos diári os, na propaganda, no s no ticiários, no s
programas eleitorai s, ou mesmo nas produções da cultura de massa. Com um sen so
crítico apurado, este consumidor-espectador, eleitor-espectador, cidadão-espectador
procura estabelecer novas relações com o entorno e com as diferentes manifest ações
esp etaculares que buscam retratá-lo.
Se nesta so ciedad e "a linguag em do espetáculo é constituída pelos signos da
produção reinante'", tomar conhecimento dos mecanismos que envolvem urna en -
cen ação, desvend ar e apreender a ló gica da teatralidad e significa conquis tai ir' , rrn
mente s que viabili zem a refl exão acerca dos procedimentos utilizados nas diferen-
tes produ ções espetaculares. O espectador especialista se encontra em condições de
decodificar os signos e de qu estionar os significados pr oduzidos, seja no palco o u
fo ra dele.
A forma ção de esp ectadores se justifi ca também pela urgência de um a tomada
de posição crítica frent e às representações dominantes, pela neces sária aptidão do
indivíduo-espectador para qu estionar os pr ocedimentos e desmistificar os có digos
esp eta culares hegem ãn ico s.

Viabilizar o acesso do espectador ao teatro. Duplo acesso

O despertar do interesse do espectad o r nã o pod e acontecer se m a imp' l'lllt'tl-


ração de medid as e pr o cedimentos que to rne m viáveis o seu acesso ao teatro. Na
verdade, duplo acesso: o físi co e o lingüístico. Ou seja, tanto a possibilidade do
indivíduo freqüentar os espetáculos quan to a sua aptidão para a leitura das o br as te-
atrais. Antes disso, é fato, torna-se nece ssári o qu e tenhamos boas condições de pro-
duç ão para um of ere cim ento quantitati vo e qualitati vo de esp etáculos teatra is. No
entanto, não é suficiente ter oferta de peças em cart az, é preci so mediar este encon-
tro entre palco e platéia. Prim eiramente, é preci so criar condições para o espect ado r
ir ao teatro, o qu e en volv e uma série de m edidas para favorecer a freq üent açàc , tais
como: divul gação competente das peças em cartaz, qu e atin ja públicos de di versas
regiões e classes so ciais; promoções e inc entivos que viabilizem Iinanceiramcn te ' 1
acesso das diferentes faixas de público; condi çõ es de segurança; rede de transportes
efici ente ; e tantas out ras atitudes de apoio e incentivo que vise m, em última ins tân-
cia, a colocar o espectado r diante do espetác ulo (o u vice-versa). O acesso ao teatro ,
porém, não se resume a possibilitar a ida às salas (ou a levar espetáculos itinerantes
a regiões men os favorecidas). Formar esp ectadores não se restrin ge a apoiar e es-
timular a freqü entação, é preciso preparar e estimular o espectador para um rico e
inten so diálogo co m a o b ra, criando, assim, o desejo pela experiência artíst ica.
Portanto, a pedagogia do espectador, no âmbito da formação, est á calcada
fundament almente nos procedimentos ad otado s para criar o gosto pel o deba te es -

3 DEBüRD, 1992, p. 18.

A l'o sl (.A o J) [ LlPLCT.W O R: PLRSP[ CTJ \'A5 P[ {),4(;ÓC1C,4S 87


t ético, para estimular no espectador o de sejo de lançar um olhar particular à peça
teatral, de empreender uma pesquisa pessoal na int erpretaç ão que se faz da ob ra,
despertando o seu interesse para uma batalha que se trava nos campo s da lin guJglln.
Assim, contribui-se para formar espectadores que estejam aptos para d ecih a: \ )~;
signos propostos, para elaborar um percurso próprio no ato de leitura da encenação,
colocando em jogo sua subjetividade, seu ponto de vista, partindo de suas experi-
ências' da posição, do lugar que ocupa na sociedade. A experiência teatral é úni ca c
cada espectador descobrirá a sua forma de abordar a obra e de estar disponível para
o evento.
Figura chave nas reflexões traçadas entre teatro e educação, Brecht afirmava
que a leitura crítica, a capacidade de compreensão de uma obra de arte, no entan t "
pode e precisa ser trabalhada. A capacidade de elaboração estética é uma conquista
e não somente um talento natural.

É uma opinião antiga e fundamental que uma obra de arte deve influenci ar todas as
pessoa s, independente da idade, status ou educaçã o [...]. Todas as pessoas podem
entender e sent ir praz er com uma obra de arte porque todas têm algo artístico den-
tro de si [...). Existem muitos artistas dispostos a não fazer art e apenas para um
pequeno círculo de iniciados, que querem criar para o povo. Isso soa democrático,
mas, na minha opinião, não é totalmente dem ocrático. Democrátic o é tran sform ar o
pequeno círculo de iniciados em um grande círculo de iniciados. Pois a art e necessit a
de conhecimentos. A observação da art e só poderá levar a um prazer verdadeiro, se
houver uma arte da ob servação. Assim como é verdade que em todo hom em existe
um artista, que o hom em é o mais art ista dentre tod os os anim ais, também é certo
que essa inclinação pod e ser desenvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um
saber conquistad o através do trabalho".

A especialização do esp ectado r se efetiva na sua aquisição de co n h ecime ntos


de teatro , o prazer que ele experimenta em uma encenação se intensifica com a S U;l

apreen são da linguagem teatral. O prazer est éti co, portanto, solicit a aprendizado . A
arte d o espectador é um saber que se conquista co m trabalho.
Familiarizado co m os código s teatrais, es t e es pect ad o r iniciado descobre
pistas próprias de como se relacionar com a obra, perc ebend o- se no ato da re-
cepção capaz de dar unidade ao conjunto de signos utilizados na encenação e
d e estabelecer conexões entre os element os apres entad o s e a realidade exterior.
A conquista da linguagem teatral propicia ao e s p ec tado r uma atitude nã o su b -
mi ssa diant e do fato narrado e da s opçõ es cê n icas propostas. Conhecendo o s
si gno s que vêm sen d o estabelecido s ao longo da hi stória do teatro, bem como o
funcionam ento dos m ecanismos utili zado s em uma en cenação, e os efeito s qu e
produzem, o espectador gan ha di stância para m elh or apreciar como estes ele-
mentos de sign ificação podem ser apresentad os em um esp etáculo. A aqui sição
destes conhecimentos permite qu e o observador es t eja em melhore s c o nd içõe s
para tra çar linhas d e reflexão a resp eito d a obra e elaborar um juízo d e valor da
mesma.

j BRECHT apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Bre cbt: um jogo de aprendizagem. São Paulo:
Perspectiva, 1991. p. 11 0.

SS FLAVIO DE SGI<.', NGES


A distância possibilita qu e o espe ctador problematize a enc enação, faça per-
guntas à cena, tais com o: Que temas este espetáculo aborda? De qu e maneira 1S1 f) Se'
relaciona com a vida lá fora? Que signos e símbol os o arti sta se utili za para ,lPI( S(' II -
tá-la s? Eu já vi algo parecido ? Como eu faria? D e que outras man eira s esta rucxm.i
idéia poderia ser encenada? O pra zer de assistir a espetáculos teatrais advém just a-
mente do domínio da lin gua gem que amplia o interesse pelo teatro na medida ('])1
que possibilita uma compreensão mais aguda, uma percepção cada vez mai s apur ada
das encenações.

Procedimentos pedagógicos

Os procedimentos visando à especialização de espectadore s podem ser di-


vidido s em: espetaculares e ex t ra-espetaculares. O s primeiro s dizem respeito J
própria constituição do es pe tác ulo teatral, ou seja, esp et ácul os criados es pecial-
mente com o in tuito de formar espectado res espe ciali stas; e aí iremo s n o s apro -
ximar ne cessariament e da te oria de teatro épico , criada por Bertolt Br echt. Os
procedimentos extra- espetaculares constituem-se, em suma, no fornecimen to
de mat erial did ático so b re a en ce nação (biografia do autor, prop osta de encena-
ção, hi stórico do grup o, erc. ) o u na proposiçã o de jo gos e exer cícios dram átic os,
ant es e/o u depoi s dos es petá cu los, co m o obj etivo de dinami zar a re cep ção dos
es pec tado res. A se gui r, ab ordaremos mais de talhadam ente cada um de st es pro-
cedim entos pedagógic os.

o teatro épico como prática de formação de espectadores


N est e breve co mentá rio ace rca do caráte r formador do teatro épico, em sua
vo ntade de pr oporcion ar a apreensão da linguagem teatral pelo s espectadores , será
enfatizado especialmente o asp ecto narrativo dest e teat ro brechtiano.
Em suas formulações teóricas co m referência a arte teatr al, na primeira meta-
de do século XX, Brecht clamava por um teat ro qu e se co nt rapusesse ao teatro da
burgu esia, o qual classificava como ilusionista, pois este se valia de algumas técni cas
de representação - bem como de algumas inovações científicas da época, em especial
a iluminação elétrica. Seu intuito era su scitar, no espectado r, a ilusão de estar diant e
da realid ade, como se o artista pretendesse trazer para o palco um a fat ia da vida.
Impo ssibilitado de se co locar enquanto sujeito que assiste a uma peça de teatro, o
esp ectador deste teatro burguês, segun do Brecht, seria condu zid o emoc io nalmente
pel a trama, o que diminuiria a sua capacidade re flexiva.
Os recursos cên icos utili zados p elo teatro épico br echtiano tê m , assim, o in-
tuito de afast ar o espectador da ação dramática, interromp endo a corrente hipnótica
e p ossibilitando a su a atitude crítica. " O esp ecta do r não deve viver o qu e vivem os
personagens , e sim que sti on á-los'". O ence nado r alemão propõe, em seus espetácu-
los, qu e o espec tado r se distan cie e reflita so bre o que vê, ao invés de e n t regar-~ c a
um envolviment o em ocional qu e inviabilizaria o raciocíni o. Est e efeito de distancia -
menta é a viga mestra do teatro brechtiano.

BRECHT, Bertolt . Ecnts surle th éâtre 1. A lenço n: L'Arch e, 1989. p. 131.

A l' osl ç:Ao tu: f.l PECT W OR: I'ERSPEC Tl HS I'ElJ AG O G I CAS 89
o dist an ciamento proposto p elo teatro épico brechtiano ao espectador tem
nos eleme ntos narrativo s trazidos par a a encena ção se us principais recurso s art ísti-
cos e pedagó gicos.
O épico é um gênero literári o em que a hist ória é contada tanto por um nar-
rador, em sua descrição dos acontecimentos, quanto pelos pers onagens, n os diálo-
gos que interrompem a narrativa. O épico tem , portanto, um caráter fort emente
narr at ivo, ao contrário do gênero d ram átic o, em qu e a hist óri a vai sendo contada
so mente por meio do diálo go dos personagens ent re si, se m a interferên cia direta
de um narrad or (auto r).
N o gêne ro épico, o auto r rel at a uma hist óri a já ocorrida e, em geral, uma hi s-
tó ria qu e aco nteceu com uma outra pessoa. Portan to, o narrador fala n o pret érito
(a história foi assim) e na terceira pe ssoa do sin gular (aconteceu com ele). "Isto
cria uma certa distância entre o narrador e o mundo narrado'" , pois, se a hi st ória já
aco nteceu e aquele que a co nta conhece bem tod o o seu desenrolar, este narrador
não tem o me sm o envolvime nto em ocional com o fato oco rri do que tem o au to r do
texto dramático, já que este apresenta o fato no tem po presen te, como se o es t ivess e
conh ece ndo pela primeira vez . D a mesm a maneira, o leitor qu e entra em co ntato
com um texto épico, com uma hi st ória já ocorrida, hi st ória que lhe é narrada, man-
tém cert a distân cia do fato e nã o tem o mesm o envo lvimento que o leitor do texto
dramático, ao qual os fato s, mesmo quando se trata de um acontecimento hi st órico,
são apresentados como se estivessem aco ntecendo naquele mom ento.
O texto no teatro épico, portan to , procura ap rese ntar as situações d e forma
narra tiva, trat and o os fato s co mo histó ricos - fato s já ocorridos e que têm relevânc ia
hist óri ca. Esta dist ância qu e se estab elece entre o espe cta do r qu e assiste no presente
a um fato oco rrido no passado permite qu e ele mant enha um a atitude refl exi va acer-
ca do assun to narrado. N o texto do teat ro dramát ico , o au tor se ausenta da h ist ória,
que parece gan har vida pró pria; o es pectado r vivencia a hist óri a que acontece diante
dele no tempo presente. Vinculado em ocionalme nte à trama, o espectado r do drama
teria diminu ída a sua capacidade de refletir sobre a m esma.
C o mo o texto, os elementos cê nicos do teat ro épico também têm um cará ter
narrativo. Embora a fábul a seja considerada o co ração do teatro épico, pois é ela qu e
revela as vicissitudes soc iais que enreda m os perso nagens , na concepção brechtiana,
no entanto, não ape nas o texto, mas a encenação co mo um to do assum e o papel
narrativo; o palco co nta de mane ira crít ica a hist ó ria. Tod os os recursos cê nicos - a
luz, o cená rio , os figurinos e adereço s - podem desempenhar função narrativa, co-
mentando a ação, tomando posição em face dos acontecimentos. O palc o assume
uma fun ção narrativa.
Um dos recursos épicos utilizad os por Brec h t em suas encenações era, por
exemplo, a co locação de grandes t elas, em que se proj et avam document os co m ci-
fras con cretas, ou foto s ou citações, e que permitiam trazer à memória o utros pro-
cessos qu e se desenrolavam simu lta neament e em out ros lu gar es e que co ntradi ziam
ou comentavam as palavras e ati tudes de alguns personagen s.
Est a postura narr ativa do palc o diante dos fatos trazidos à cen a, ressalte-se,
somente se torn ou viável devido a certas conquist as técnicas do período. A partir de
então, par a efe tivar esta postura, podia-se contar co m as proj eções de slides e co m

(, ROSENF ELD, Ana to l. O teatro épico. 3. ed. São Paulo: Pe rspectiva , 1985. p. 25.

90 FL AVIO D l SGRANGf S
os recursos cinematográficos, além de um maquinário motorizado que aumentou
as possibilidades de transformação do palco . Esta s ino vaç ões permitiram ao te ;! 1) t l
incorporar est es elementos cenográficos, qu e davam à en cenação um caráter i]lJ ,: ;'-
literário, co m a inclusão na peça de críticas e comentári os do autor qu e, p or vezes,
assemelhavam- se a notas de pé de página.
A cena co m eça, assim , a exercer uma funç ão p edagó gica. Distante da ae,;.1 u
dramática, o espectador do teatro ép ico pode deparar- se com questões que lhe di-
gam resp eito . Assim, o petróleo, a inflação, as lutas sociais, a família, a reli gião, a
manteiga, o pão e o com érci o de carn es passam a ser objetos de repre sentação t ea-
tral. A intenção era trazer o pano d e fundo social para a ce na, afirmando a dimens ão
hist órica do acont ecimento apresentado por meio d o s elementos narrativo s qu e
a golpeiam, interrompendo a corrente dramática e afirmando a atitude crítica do
esp ectador. Brecht elaborou uma série de técnicas e recursos cênicos com est a fina-
lidad e, entre eles se de st acam , por ex emp lo: jornaleiros qu e per correm a sala, anun -
ciando man ch etes que caracterizam o clima soc ial, ou slides com fot os ·hist óri cas,
ou ainda canções (songs) e cartazes com diz eres que propunham uma visã o crítica
so b re o fato representado.
Outro importante aspecto pedagó gico dest e teatro brechtiano está n o fato de
qu e cada elemento da encenação (cenário, figurino, iluminação, etc.) ser apres en-
tad o sep arad ament e, e manifestar-se com voz pr ópria em face dos acontecimento s.
Assim , ao obser var em os element o s da encenação, os es pectado res podem perceber
a existência, o fun cionamento, e a utilização de cada um del es. Isto porque a ence-
nação deixa cla ro co mo o artista teatral (direto r, ce nóg rafo, figurini sta, at or, e rc.)
os es tá utili zando , possibilitando que o esp ectador perceba que , se a cen a é assim
apresentada, ela poderia também ser concebida de outras maneiras; e que as cons-
tru ções da e nce nação são sem pre o pç ões do artista, que se apresenta enquant o aut or
uo espet áculo e assume uma po sição em face da h ist ória qu e apresent a. Ao se torn ar
conhecedor da utili zaçã o dos div ersos elementos que co m põ em uma en ce na ção, e
atento para a dim en são hist órica d o s fat os , o esp ectad or do teatro épico se torn a
um especialista, ap to a compreend er criticamente as cenas apresentadas n o palco , e
estimulado a produ zir sent idos próprios par a os acontecim entos hist óricos.

Dinamizando a recepção teatral

A expans ão das práticas extra-espetaculares de formação de esp ectadores se


dá es peci alme nte nos ano s 1960 , na esteira do s movimentos contraculturais que
clamavam pela dem ocratiza ção da arte teatral, e qu e, entre outras tantas conquistas,
propuseram o est re itame nt o das relações entre teatro e esc ola. Artistas e educado-
res passam , a partir de então, a propor às escolas, com m aior freqü ência, diversas
at ividades de ex press ão dram ática, co m o obj eti vo de se ns ibilizar crianç as e jo vens
para o teatro. Dentre estas práticas, que passaram a ser conceituadas como anima-
ções teatrais, es tão as qu e se organ izavam em torn o de um espetác ulo t eatral, dina-
mi zando a compreen são da enc enação vista pelos alu nos.
Est as práticas de form ação de espectadores podem dividir-se em dois aspec-
to s, principalm ent e: o s proced imen tos p edagógicos de in tegração escolar e o s procedi-
m en tos pedagógicos de leitura .

A l 'o \lç Ao In LS/' [CI:, /WR : /'[RI P[CT/\ :4> 1'[ [). 4(;O(;IC4I 91
Os procedimentos pedagógicos de integração escolar, como o pr óprio termo
sug ere, buscam integrar a obra teatral ao processo de aprendizagem escolar. O esp c -
táculo motiva atividades variadas, torna-se o pivô de um estudo que pode interl igar
diversas disciplinas do currículo escolar, se ndo utilizado com o ati vidade de reforço.
A peça propicia, assim, a aplicaçã o de exercício s, visando a uma dinami zação do
aprend izado em múltiplas áreas do conh ecimento.
O s procedimentos pedagógi cos de integração escolar acontecem, por via de re-
gra, após o espetáculo e estabelecem relações entre a encenação vista pelos alunos e as
diversas áreas do co nhecime nt o. As atividades de desdobramento da peça enfo cam, por
exem plo: noções de matemática (exercícios de con junt o, os personagens são em gru-
pos); abordagens históricas; exercícios de expressão escrita (redações sobre a peça ou
aplicaçã o de ditad os); atividades de artes plásticas (a criação de cartazes para a peça ou
de desenhos animados que retratassem a história contada). Entre outras tantas ativida-
des que variavam em fun ção das possíveis ab ordagens suscitadas pelo espetáculo e (I.t
faixa etária dos alunos.
Estas práticas de pr olongamento de um espetáculo, visando à integração da
art e ao cur rículo da esco la, têm sid o muit o criticadas, acu sadas de "pedago gizar " o
teatro pelo fato do esp etáculo ser utilizado como instrumento de aprendiza gem de
determinadas disciplinas da grade curricular ou como mero pretexto para atividades
normalmente apli cadas n o cotidian o esc olar. A art e teatral acaba, deste mod o, por
se r "fagoc itada" pelo sistema de ens in o. Co nsidera-s e qu e a utili zação do t eatro
co m o ferramenta para a apreensão de conteúdos disciplinar es empob rece o diálogo
d o aluno-espectador (e os desdobramen tos deste diálogo ) com a peça, e torna a
ex periência estética padronizada , ao atrelar a recepção às ne ce ssidades imediatas da
escola.
O s procedimentos pedagógicos de leitura podem ser divididos em horizontal c
transversal. N os pr oc edim entos de leitura horizontal , o co nte údo da peça é priori-
ta riam ente abordado no s exercícios propostos. O s artistas e ed ucado res estimulam
o gru po de alunos a debater o assunto em questão e a imp ro visar cenas qu e se re-
lacionem co m o tem a da peça. Es tas práticas chamam a at en ção dos participantes
para o discurso da ob ra, para a atu alidade dos temas tratados, além de provocar a
o bs ervação dos es pe ctado res para como a encenação lida com tais que stões e que
t écnicas teatrais são utili zadas nesta aborda gem.
Est es prolon gamentos, que enfocam primordialmente a temática da peça, po-
d em, por exem plo, ser es t ruturados a partir das seg uintes atividades: 1) expos ição
prévia so bre a vid a d o autor, de seu tempo (em se tratando de uma peça de época) e
do conteú do do texto; 2) debates po steriores ao espetáculo abordando a atualidad e
das situações en cenadas; 3) proposição de exercícios dramáticos em que os alu-
nos transpõem cen as da peça para aco ntecim entos contemporâneos ou mesmo para
situ ações o ut ras qu e, de algum mod o, este jam relacionada s àquelas apresentada s
pelos ato res.
N os procedimentos pedagógico s de leitura transversal, que têm co mo ob jetivo
estim ular os alun os-esp ect adores para o re conhecimento, a decodificação, a inter-
pretação dos sign os do espetácul o e o enfoque dad o às atividades propostas redu-
z em a imp ortância da per cep ção imediata provocando o es pec tado r a empreender
uma análise det alh ada da encenação, est im ulan do -o a efetivar a sua compreensão

92 FLAI' 10 D l SGKA N(, f S


do s significados co nt idos na s co nc epções dramatúrgicas, nas intençõ es ges ruais, n as
o pções cenográficas e nas demai s criações d o s realiza dores d o espe táculo. Prop i('n )'
ao s alu nos a compreen são do espetá culo não se redu z, ass im, à trama, mas se ( l l l
ritui de uma totalidad e de signos, pois se possibili ta a per cep ção da esp eci ficidade rh
arte teatral e a elab oração dos elementos serni óticos pres entes na encenação, F.<:ta <:
práticas são fundam entalmente impl ementadas a partir de co mpan hias teatrais q ue
co ns troem os seus espe tác u los tendo em vista a bu sca de um a esc ritura cê nica p ro -
voc at iva, nem semp re evidente, qu e valoriz a a atitude do espectado r diante da o b ra,
incitand o- o a enge nd rar uma leitura própria, in ventiva do s sig nos prop o sto s.
Partindo do prin cípi o de que a capacida de de ler os signos não é um fenôm eno
natural, mas um a co nquista cultural, estes pro cedimento s peda gó gicos Je lei l li / . i
teatral tê m o intuito de estimular e sensibilizar os espe ctadores para a decifraç ão
dos códigos e a efetivação de um a leitura plural do espetáculo.

A "o u ç.' o DE ESPLCUJ)OR: PLR5PLCm :H rW,H; (Ír;f(;.4\ 93


R EFERÊN CIAS

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94 I' I.ÀVlú DlSGKANGf.l


I MPROVISAÇÃO : DA ESPONTANEI DADE RO MÂNTICA
AO "MOMENTO PRESENTE "

Gilberto Iele

Este; texto pret end e aborda r de man eira in tro du tória o te ma da impro visação
teatral co rno natureza e procedimento do trabalh o do ator. É preciso in iciar escla -
rec endo qu e o term o ator, aqu i, pode ser generalizado para to dos os âm bitos nos
qu ais seres humano s se dã o a ver em sit uações espetaculares o rganiza da s. Ass im,
podem os incluir crianç as em situação de jogo, ato res pro fission ais num palco à ita-
lian a ou oficiantes de um ritu al religioso. Con tu do, neste texto, vo u o cu par-me da
atividade sistematizada na qual os praticantes jogam em situ ação d e com o se. Ou
seja, t rata-se de atividad es na s qu ais os jo gad ores se tran sp ortam para um a sit uação
fictí cia, brincando , faze ndo de co nta ou atuando t eatralm ente.
O senso com u m, f reqüent em en te, ac redi ta q ue a improvisação é fru to de
um talent o espo n tâ neo, d e um jogo qu e ini cia e se compl eta ape nas n o m omento
em q ue é revelad o. No en ta nt o, co mo vere mos a seg ui r, a idéia de improvisação
é mui to mai s complexa e envo lve um movimen to entre o passa do, a p ro jeção d e
futur o e o momen to p resente.
A idéia de improvisação perp assa o próprio cerne do tr abalho do ato r, pois tudo
o qu e o ato r faz diante do público consiste nu ma impro visação, cont udo, não se trata
de pen sar a improv isação co mo um a revelação, pois em bora o ator faça parecer que suas
ações são realizadas naquele instant e, elas são fruto de um trabalho ou d e uma co nstru-
ção anteno r.
Por o utro lad o, p rincipalm ente no séc ulo XX, a imp rovisação teat ral foi tid a
como um procedimento para alcanç ar êxito na at uação. Ela passou a co ns tituir mé-
tod o s e modalidades que ajudam o ator a co ns t ru ir um personagem , a edificar sua
presen ça cênica, a acessar uma det erminada lin guagem cêni ca, a ligar di fer entes ato-
res na co ns tituição de um ensem ble teatral ou, ainda, a auxiliar dire tores e ato res na
inves ti gação de p rocesso s po éti co-p eda gó gico s.

A commedia dell'arte como arte da improvisação

A commedia dell'arte co nsis te num marco hi st óri co para a im provisação te-


atral, po is antes dos ide ais m o dern os de ori gin alidade, que fizeram co m que a im-
provisação teatral at in gisse o status de procedimento privilegiado par a a pedagogia
teatral, os ato res desse tipo d e tea t ro ma scarado, improvisado e popular levaram a
cabo, co m imp ressionante profu nd idad e, a idéia de improvisação.

95
o primeiro aspecto que e mreressante reter da experiência da Commedia
dell'arte, principalmente nos séculos XVI e XVII, é o fato de que a noção de impro-
visação tem pouco a ver com espontaneidade. Ao contrário, os atores desse tipo de
teatro europeu, principalmente italiano, eram esp ecialistas em uma única máscara
por toda sua vida. Os documentos da época revelam que em pouquíssimos casos
um mesmo ator jogava mais de uma máscara. Isso, aliado ao fato de se tratar de
exímios cantores, instrumentistas, acrobatas, oradores, mímicos entre tantas outras
habilidades, oportunizava a esse ator um jogo bastante rebuscado. Trata-se de uma
intervenção de temas e assuntos do presente, de cada lugarejo no qual a trupe esti-
vesse , no repertório de histórias, gags, piadas e roteiros já conhecidos.
O canovaccio era um instrumento precioso a esses atores. Tratava-se de um
roteiro que os atores tinham de memória, com o qual era possível atuar de forma im-
provisada, pois ele era constituído de forma aberta, delimitando apenas as entradas e
saídas e algumas situações básicas, para se poder introduzir a imitação de um político
corrupto daquele local ou uma piada sobre um' adultério conhecido dos moradores ,
por exemplo. Esse roteiro passava de geração a geração, mas o que o público via em
cena era a dialética sempre renovada entre essa tradição, essa história roteirizada e
quase arquet ípica - que muitas vezes envolvia a figura do Arlecchino (criado faminto e
atrapalhado) - em confusões com seus patrões e o momento presente.
Taviani ' afirma que a idéia de espontaneidade associada à improvisação é fruto
do romantismo, pois até o século XVIII a improvisação era um exercício comum em
academias e escolas e consistia em saber muitos poemas de memória, para se poder
improvisar uma poesia, por exemplo. Tratava-se de um exercício de memória, de reor-
ganização do conhecimento constituído, de mostra de saberes. Mostrava-se o domínio
de um determinado campo de saber e não um dom espontâneo. Na Commedia dell'arte
não era diferente.

A improvisação como procedimento do ator: os marcos históricos

Os principais marcos históricos instauradores da improvisação como proce-


dimento de preparação dos atores, construção de personagem e processo de mon-
tagem de um espetáculo tiveram lugar no Sistema de Stanislavski (1863-1938), no
iníci o do século XX, na Rússia, e no trabalho de Jacques Copeau (1879-1949), na
França, quase ao mesmo tempo. Ambos foram muito importantes para a instaura-
ção da idéia de improvisação nas tradições pedagógicas teatrais, numa perspectiva
parecida, mas com pontos distintos.
Copeau chegou a propor um retorno da improvisação, numa atualização da
Commedia dell'arte, na qual máscaras de tipos contemporâneos a ele serviriam de
base para a reconstrução de um teatro improvisado.
Contudo, Copeau legou a improvisação como procedimento de preparação do
ator e essa tradição instaurada por ele se desenvolveu em muitas escolas na França,
com o no trabalho de Dorcy, Daste, Decroux, esse último, por sua vez, foi mestre de
professores influentes como Thomas Leabhart, Luiz Otávio Bumier e Jacques Lecoq.

I TAVIANI, Ferdinando. Once puntos para entender la improvisacion em la Com media


dell'art e. Máscara: C uaderno Iberoamericano de Reflexion sob re Escenolo gia, México, an o 4,
n. 21-22, p. 4-23, jan . 1997.

96 G I L.BI KIO Icu:


Na trilha de Copeau encontramos no ções fundamentai s para a improvi sacão,
Uma das mai s importantes talve z se ja a no ção de ne~tralidade. Com o uso d.l" ;' 1:'"
caras, ele promoveu uma verdadeira revolução no trabalho do ator, pois j))' :, a ; , ! 'I '
a necessidade del e desconstruir seu corpo cotidiano, eliminar os obstácul os IJ " I ' i ."
emocionais e neutralizar o rosto, minimizando a expressão facial em prol de 11)):;' re
velação mais contundente do corpo como suporte e natureza da expressao ar! I , í i C: J
do ator. Esse processo de eliminação, de tentativa de neutralização, de descont ruçâo
do corpo cotidiano foi chamado de v ia negativa.
A máscara subsidiou as tentava s de Copeau, pois permitia, ao mesmo tempo ,
mostrar e revelar o universo interior do ator, na medida em que escondia se u ro su I,
Esse o cultamente e sua correspondente revelação, proporcionados pela (')\ jll'J i <' , IC U
primitiva da máscara, constitui um modo de trabalho com a improvisação que per-
passou a prática de muitos homens de teatro no decorrer do século XX.
D a mesma forma, o Sistema de Stanislavski constitui um modo de o pera r com
a improvisação teatral amplamente difundido, recriado e de sen volvido durant e o sé -
culo XX. Ao contrário dos herdeiros de Copeau , os quais se abri garam muit o m ais
em estúdio s, pequena s escolas, gru po s de teatro; o Sistema stanslaviskiano o cupou
muitas das escolas ofi ciais e do s di scursos he gem ônicos so bre a peda go gia do ator.
Embora o trabalho inicial de Stanislavski, resumido no que se tornou conhe-
cido co mo a Psicotécnica, tenha sido mais difundido em nosso meio, foi seu tra-
balho ulterior, resumido no Método das ações físicas, qu e consiste na co ntrib uiç ão
inau gural da improvisação como forma e processo de criação para o at or.
Trata- se de um conjunto de improvisação que visa fazer o ator se apro ximar dI>
universo do texto dr amático , con struir um persona gem em coe rência com as indicaçôe-,
que o dramaturgo apr esenta , formar uma paut a, ou linha, o u partitura de açõe s físicas
capaz de tradu zir em expressão física, e não somente m ental ou emocional, as ut it lH1cs
e motivações do personagem e, por fim, constituir com v erdade cênica as respectiva s
cenas do espetáculo.
A proposição de Stanislavski constituía-se de uma seqüência de improvisa-
çõe s. Nessa fase, ao con trário d o trabalho ant erio r, ele aboliu praticamente p or
co mpleto o trabalho de mesa, ou se ja, as leituras coletivas, interpretações e an álises
) do text o previam ente às improvi sações pr ática s.
a N essas improvisaçõe s, o ator deveria reconhecer a fábula e os fat os motores;
colocar-se como se esti vesse dentro das circunstâncias mínimas dadas pelo tex to;
a com a ajuda do diretor, improvisar todas as circunstâncias dadas pelo texto; impro-
visar circunstâncias imaginárias que completariam o universo do texto; improvisar
a o univ erso comple to do ator e os acontecimentos da peça.
e Enfim, Stanislavski propõe e, consequentemente in st aura , a tradição da im-
pro visação como caminho para a criação do ato r.
o
1, As modalidades de improvisação
le
Exist em muitas modalidad es de improvisação. Se nos ocuparmos da improvi-
sação como procedimento podemos elencar diversos tip os, mas se n os ocuparm os
da improvisação como nature za do trabalho do ator, quase tudo o qu e um ator faz
la para se preparar o u atu ar pode se r considerado com o improvisação.
4,

1.1I/'RO \"}I.1Ç 40 : D.; tl PON7: 4:';[{ D.;{)[ R O.\iÁN Tl C.' AO "J IO J/[ N TO PRES[ N n " 97
.•i'C'

O s procedim ento s mais gerai s podemos classificar como processos de com-


posição. Esse procedim ent o é muito comum nas tradiç ões co d ificadas das ar: n
cênicas, consiste em agrupar elemento s já conhecidos por uma tradição co d r-
ficada e lh e conferir vid a, élan, corpo. Um ex empl o fá cil d e compreend er to (l
aprendizado de danças clássicas, como o Ballet europeu, o Gdissi, ou Bharatn
Na tya m hindu. Nessa s tradiçõ es, o aprendiz d eve mem oriz ar por imitação u m .:
seqü ência de movimento s já estabelecidos pela tradiçã o e torn á-los orgâni co s,
ou s eja, torná-los seus , fa zer parecer que e xecu ta, sem esforço , moviment o s e
aç õe s que exigem uma deformação do co r p o e da vo z .
Um outro procedimento, muito popular em escolas de educação básica, é a
dramatização. Nesse ca so, trata-se de tornar dramático algo que não é em sua o ri-
gem preparado para isso. Assim, podemos incluir aí a construção de espetáculos
partindo-se de um conto , uma história, uma imagem. A improvi sação serve como
elemento para a co ns truç ão temática, para se dar a ver, da m elhor forma pos síve l,
a narrativa. São secundárias, freqüentement e, as preocupações com a lingua gem
te atral. A ên fase está na fábula e no enredo e não no s aspectos da formalidad e da
lin guagem.
A dramatização lembra muitos procedimentos livres, nos quai s grupos de joga-
d ores, sem a orientação de um diretor ou professor, buscam produ zir um espetácu-
lo sem preocupações que ultrapassem a co m u n icação de uma mensagem. C ontudo,
o pro cedimento de dramati zação tem sido u sado por gru po s de teatro imp ortante s
n o pan orama brasileiro, co mo recurso para a co ns trução dramatúrgica .
Dos procedimentos e modalidades de improvisação teatral mais co m uns entre
n ó s p odemos destacar d oi s: o jogo dramáti co e o jogo teatral.
Esses dois tip os de improvisação se caracterizam por pr opor aos jogadores situ -
a ç ões em que esses deve m atuar como se. O princípio dramático de personifi cação ou
d e atu ação estará sem p re pre sente, ou se ja, o jo gad or se rep ortará, com o corpo e não
ap e:1as com o tarefa mental, a uma ação qu e envolve a imaginação na expressão de uma
circunst ância, de um tempo o u de um a pessoa que estão ausentes e que se rão pre senti-
ficados pela ação.
Segundo Pupo' ,

[00'] jogo teatral e jo go dram átic o, fun damentam-se na id éia d e qu e a depuração est éti-
C1 da comu nicação t eatral é indi ssociável d o cr escim ento pessoal do jogador. Ambos
têm na plat éia - interna ao grupo de jo gad ores - um eleme nto essencial para a ava lia-
ção dos avan ços co n quis tados pelos participantes. Prescindem da no ção de tal ent o
ou de qu alqu er pré-requi sito anterio r ao próprio at o de jog ar e ap resentam propostas
de caráter est rut ural, deri vadas da lin guagem do teatro , qu e permitem a formulaçã o,
pejo próprio grupo , da s situações, tem as, desej os , qu e quer traze r à tona.

O jo go teatral - tbeater game - foi sist ematizado p or Viola Spolin, nos Esta-
do s Unidos, e se diferen cia d o jo go dramático, prin cipalmente porque no primeiro
há a n ece ssidade d e se es tabe lece r regra s preci sas qu e en vol vam os princípios tea-
trais, dentre as quais o estabelecimento da rela ção palco/platéia, ou seja , jogado-

2 PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. O lúd ico e a con stru ção do senti do. Sala Preta , São Pau-
lo, v. I, n. 1, p. 181-1 87,2 001.

')8 G lI l lf KTO le u
res que atua m e jogado res q ue assist em. Al ém disso , Spolirr' propõe um Ponto de
Concentração para ca da jogo, pautand o a atuação d osjo gad ores em regras pontu ais
a sere m obse rvadas durant e a atuação e a serem discutidas na ava liaçã o. A id éi.i de
In strução tamb ém é uma característica diferenciadora do J o go Teatral, po is o orien -
tador do jogo pode in struir os participantes durante o próprio jo go a fim de garanti r
o an da me nto do m esmo e o melhor cum pr ime nto das regras.
O s exe rcíc ios d e Vio la Spolin se ag r u pa m principalm en te na inves tigação c
proposição de circ uns tâncias - ao gosto d a t rad ição instaurada por Stanislavski -
resu midas, pr incipalm ent e, em gru pos de exe rcícios de O nde, O que e Quem.
Pa ra Ryngaerr", o jogo dramáti co pode se r ca racte rizado por sete elem en t os:
1) aná lise da realidad e tradu zida em lin guagem não naturalista; 2) trabalho coleti -
vo; 3) não subo rd inação a um te xto co mo p on to de partida, m as poderá existir um
t ex to imp ro visad o ; 4) di scu ssão sobre o qu e se fez no jo go , ava liação d o pro cesso ;
5) negação do virt uos is mo ou de habilidades, todos se co loca m como jo gad o res,
não como ato res profiss io nais; 6) descart e d e cenograf ia e indu m entária, t udo é
produzido pelo próp rio jogo, no corpo e co m o co rpo; 7) prazer como elem en to
indispensável.
O jogo dram át ico não necessita de gru pos distint o s de jogado res, embora
p ossa utili zá-los, co mo no jogo teatral no qu al deve haver atuado res e assis tentes,
m esm o qu e esses pap éi s se jam constantemente trocados en t re os jo gad o res, em b o ra
ambas as mod alid ad es d e jo go trabalh em co m os princípio s do d ram a.

o momento presente
Ao mesmo tempo em que o t raba lho do ator é fruto de u m complexo e contí-
nuo processo de const rução de co nhec ime nto q ue o faz est ruturar conhecim ent o s
precisos e d ife rentes do m undo cot id iano, o gran de desafio do jogo da atuação é
consegu ir estar no momento presente.
Quando fala mos em improvisação , es ta mos pretend en d o evocar um dupl o
p ro cedimen to: es ta r n o aq ui-ago ra e, ao m esmo tempo, refaz er o proc esso qu e
nos conduziu a esse momento . Vejamos qu e paradoxo complicado: estar no pre-
sente recu per an d o o p assad o.
Para Brook", "o teat ro não tem a ver com edifícios, nem com textos, ato re s, es-
t ilos ou formas . A essênc ia do teat ro resid e num mi st éri o chamado 'o mom en to p re-
sente'". Mas co mo é po ssível ao ato r estar d e co rpo e mente no momento present e?
Pod e par ecer fác il, ma s unir mente e co r po numa úni ca ação é o grand e desafio
d o ator. No mund o co t id iano nos aco stum am os a auto ma tizar no sso co mporta-
mento. Fazemos ações, mov imentos e gestos auto maticamente . Podemos diri gir
u m carro e pensa r no q ue faremos a noi te; faze r co m pras e programar mentalmente
u m a viagem; caminhar e relem brar um acontecimento. O ator não pode deixar sua
mente viaja r além da ação do present e. É esse conhecimento que caracteri za o qu e
chamamos tea t ro e define a dif er en ça ent re co ti d iano e extracotidiano".

J SPO LIN, Viola. i mp rov isação para o teatro . São Paul o : Persp ect iva, 198 7. 349 p.
4 RYNGAERT, Jea n- Pierre . O jogo dramático no meio escolar. Coimbra: Centelha, 1981. 230 p.
S BROOK, Petcr, A po rta aberta: reflex õe s sobre a interpre tação e o teatro. Ri o de Janeiro: C i-

vilização Brasileira, 2002. 145 p.


6 IC LE, Gilb erto. O at or como xamd: confi guraçõ es da consciência no su jeito extr aco t idiano .

I. II PROI 'I\AÇA o : D.' ESpmn .NEID A[) [ RO.l/.' N Tl CA .• 0 ",II Ol f [NTO PRESENTE " 99
Ao permanecer no mom ento presente, o ator cria um comportamento qu e
se diferencia do co mporta me n to cotidiano . C ha mo extracotidian o o co m porta -
m ent a qu e se caract eriza pela sist ematização de aç ões, ob jetivando se dar a ver dt'
m od o distinto do cotidian o. N esse momento, o pe ra-se um salto o u uma t ran s-
cend ên cia do cotidiano a um estado no qual corpo, mente e espírito se unem
numa fun ção supe rla tiva. O co rpo parece mai or, o tempo parece sus pe n so e quem
ass ist e é to cado e condu zido ao illud temp us.
É esse co mpo rt ame nt o extracotidiano que a improvisação visa atin gir. Assim ,
a idéia de um a improvisação teatral como procedimento permite pen sar qu e a im-
provisação é também a nature za do tr abalh o do ator.
Mas como o ato r lo gra acionar essa união m ente/corpo no momento presen-
te? Da me sma forma qu e os atores da Comm edia dell'arte conseguiam improvisar,
porque possuíam de memória um repertóri o de te xtos, cenas , gags, entre o ut ros ,
um at or qualquer atinge a capacidade de imp ro visar no momento pr esente po rq ue
improvisou muitas situ ações e acumulou um repertório de açõ es, textos, gags, ce nas,
ef eitos que podem ser utilizadas agora, no entanto, produ zida s no passado.
Es sa dialética en t re passado e momen to presente é bastante complexa, pois ao
m esm o tempo em que o ato r usa esse repertório de açõ es do passad o, ess a utili zação
não pode ser plan ejad a. Ela flui no momento pr esent e sem qu e o ator de va (nem
precise) pen sar de an temã o na s soluçõ es cên icas. O qu e, de fato, caracteriza o at o
d e improvisar é essa dial ética qu ase impossível d e recuperar o passad o e fazer del e
mom ento presente. Tão presente que parece se r realizado de fo rma espontâ nea,
como se nada hou vesse sido planejado, com o se nad a foss e organiza do, co mo se
t ud o es t ivesse send o reali zado ao acaso, pela prim eira vez.
Mas só parece. Al guns poucos minu tos do tr abalh o do ato r podem ser tão
im pr essionantes e to cantes qu anto os an os de trabalh o que eles esconde m .
O exercício dessa dialéti ca em recupe ra r o passad o e co nvertê -lo em m omen-
to presente permite ao ator a in corporação do qu e acontece no momento pr esente.
Co nverter em mo men to pre sente o passado é, também , incorpora r os dados do
aqui-ag o ra: as reações ou a falt a d e reação d o pú blico, um imprevisto com algum
eq uipa m en to, as reaçõ es d os o ut ros atores, en t re o ut ro s.
E sse jogo entre pa ssado e presente faz trans cender as ações e, de certa forma,
faz o ator prever o futuro . O ato r seria, então, um vide n te? N ão é bem assi m, con-
tudo, a improvisação, co mo nature za e pro cediment o, faz o ator oferecer resp ost as
antecipadas aos problemas cênicos, faze ndo parecer qu e se antecipa aos aconteci-
mento s. O momento presente é, também, futuro.

São Paulo: Perspectiva, 2006. 123 p.

100 G I LBERTO lct E


REFER ÊN CIAS

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I.lf PROI '/ S.' ç. ÜJ: /) 1 [5 /'OS1ANU/).4 0[ RO ,I/A,' 1flU AO ",lfO.I/ L \'TO PnE5L\,f[" 101
CEN OGRAFIA E IN D UMENT ÁRIA NA A RTE-ED UCAÇ ÃO

Gilson Mott«

o tema deste ensaio - a Ce nografia e a indumentária na A rt e-E ducação - foi


suge rido pelos organi zad ores dest e peri ódi co visando desen volver o debat e em to r-
no da reforma curricular no âmbito das licenciaturas. Nes te t exto, tento contribui r
para es te debate fazend o um a reflexão so bre os fundam entos des tas atividades , pen-
sada s aqui de modo ind iferenci ado. O elem en to que se ant ep õe de modo não explí-
cito é a própria idéia d o teatro, isto é, as caracterí sticas básicas do fenôm en o teatral
enquanto elemento co nf igur ado r da plasticidad e. Pensar no sent ido de cenografia e
ind umentária no co nt exto da formação do arte-edu cad or implica, antes, um pe nsar
crítico sobre o sis tema de pr odu ção teatral. Est a reflexão pode co nduzir. .!c um
lado, à ratificação do s procedimen tos criativos herdad os pela tradição, mas, po r o u-
t ro, ela pod e apo n ta r para metodolo gias d ifer en ciadas vo ltadas par a a um a ,1 111 (~ nt i c ;l
for mação esté tica d o aluno. Num prim eiro m om ent o, farei uma carac teri za ção ge!' d
d esta s disciplinas, valorizando sua nat ureza teóri co-prática; n um se gun do, sit uare i
estas disciplinas no âmbito do ensin o destacand o aspectos qu e considero relevantes
para a fo rmaç ão d o arte-educador.

C enografia e indumentária como artes visu ais

Cenog rafia, indumentária, iluminação e maquia gem são chama do s de elem en-
tos visuais do espe tác ulo . Em sua int er ação e integração no espe tác ulo, eles t ra ns-
mitem mensagens visuais , construindo um efeito visual. Em b ora os at o rr- t:111.\ ,(~ n1
possam ser vistos co mo elemento s t ransm isso res de men sa gens visuais :.L ,Iu ' l d o
com sua pos ição e deslo camento no espaço, só os elementos acima co ntêm um a lin-
guage m visual, isto é, um co nj unto de signos visuais arti cula do res de um se n tid o.
Codificada p ela psicologia da G estalt e pela Bauh aus, a lin guagem visual m a-
nifest a sua pr esen ça nas obras, so b re a pla sti cidade do teat ro , produ zidas na Europa
e nos Estado s Unido s a partir da décad a de 1950. Ass im, a m odernidade no teat ro é
co ns t ruída co m os es tu dos so bre a lin gua gem visual e co m as expe riência'; lu t'l1 1.lis
desenvolvida s entre o final do século XIX e as van guardas artíst icas. Po r um lado ,
as experiências form ais geram nov as relaçõe s entre os elem entos da lin gua[;t'!li v'i-
sual; p or outro, tai s eleme nt os tornam legíveis os estilos e for mas teatrais. Este fato
tornou possível - em espec ial nos textos norte-am eri can os - a presen ça de c1assifi-

103
cações de cenários, por tipos ou estilos'. Embora esta classificação não tenha mais
efeito na cena contemporânea, ela é importante por permitir realizar na esfera da
composição visual do teatro aquilo que Donis A. Dondis chama de "alfabetização
visual'": o entendimento da s mensagens visuais presentes em cada estilo ou form a
teatral. Este entendimento da cultura visual é o ponto de partida para o desen volvi-
mento do gesto criativo do aluno.
Em suma, enquanto pertencentes ao universo da visualidade e da plasticidade,
os elementos visuais do espetáculo são regidos pela linguagem visual, sendo idênti -
cos em seu s fundamentos. Daí a interdependência dos mesmos, quando da cria ção
de um espetáculo teatral. Portanto, um primeiro aspecto a ser considerado na Indu-
mentária e na Cenografia é que ambas são atividades artísticas cuja criação e recepção
f unda-se na linguagem v isual.

o invisível na cenografia e na indumentária


N o capítulo anterior, indiquei o vínculo ent re a linguagem visual e os elem en-
tos visua is do espe táculo . Subentende-se qu e, numa relação de en sin o-aprendiza-
gem, é ess encial caracterizar cenografia e indumentária como art es visuai s. Ap re-
senta rei agora a relação da cenografia e da indumentária com um elemento não
visual: a palavra.
O sistema de produção teatral vigente susten ta-se, por via de regra , na rela ção
diretor-autor. N esta relação, o diretor propõe uma interpretação do texto, det ermi-
nando um conceito ou temática básica de encenação, que informará as demai s ativi -
dad es criado ras. O texto constitui-se, portanto, como um elemento de o rigem , qu e
cont ém uma antecedência e uma autonomia em rela ção à cena . E, embora, na atu-
alidade, o texto já não oc upe um lugar pri vilegiad o na estética teatral, ele contin ua
exerce ndo a fun ção de elem ento de referência, articulador do sent ido do es petác ulo .
Enfim, a criação visual no teatro é informada pel o drama.
A palavra ou tex to pertence ao elemento temporal, so no ro e, portant o, ao
invisível. Em "A exibi ção da s palavras", Denis Guénoun afirma qu e o fen ô meno
teatral se con strói a partir da tentativa de tornar visívei s as palavras. A teatralidade
relacio na-se à visibilidade. "A teatralidade não está no texto. Ela é a vinda do texto
ao o lhar. Ela é este pr oces so pelo qual as palavras saem de si mesmas para pro d uzir
o visível. A teatralidade é o próprio pôr/ em / cena'". A encenação seria a arte da pas-
sage m do elemento lin güístico ao visual e vice-versa.
Esta s observações são importantes para se pen sar a dimensão interpreta tiva da
cen o grafia e da indumentária teatrais, pois ambas transformam o qu e é conceito em
ima gem, de modo a configurar a linguagem do esp etáculo. Esta dupl a interpret ação
envo lve o conhecimento das artes visuais, mas, sobretudo, um conhecimento da dra-
maturgia, mais preci samente, da teatralidade do drama, de sua visualidade virtual.

I Est a classificação apresenta-se em várias obras. Ver, por exemplo: SELDEN, Samuel; SELL-

MAN, Hunton , Stage scelle1J' an d lighting: a handbook for non-profession als. New York: Appl e-
ton -C cntry-Croits, [19--]; PARKER, Oren; SMITH, Harvey K. Scene design and stage lighting,
N ew York: H olt, Rinehard and Winston, 1966; NELMS, H enni g. Scene design: a guide to th e
stage. N ew York : D over Publicatons, 1975.96 p.
2 Cf. q ONDIS, Donis A. Sin taxe da linguagem v isual. São Paulo: M. Fontes, 2000 . 236 p.
3 GUENOUN, Deni s. A exibição das palavras: uma idéia (política) do teatro. Ri o de Jan eiro :
Teatro do Pequeno Gesto , 2003 . p. 55.

104 G ILSON M orrx


.IS
Ora, por ser um a art e integrada, o tea tro p o ssu i um a linguagem ex t rema me n-
la te co m p lexa. A lém de fu ndare m-se na lin gu agem vis ual, ceno grafia e indurn r-n r.iri.i
10
são part e de um sistema se m io lóg ico ampl o qu e en volve a inter ação da s ar tc.. J\)
1;\
espaço e das artes do tempo. Esta inter ação atri bui ao signo t eatral uma int c n s .i
')-
mobilidade: a escrita cê n ica é uma co nfiguração d e sent ido origina da d o di nami smo
en tre o ato r, os elementos visu ais e os ele me ntos so noros do espe tác u lo . Ass im, !l U
.e, tea t ro, as relações forma is po ssu em um campo de ab ra ngê ncia mui to extenso, já q ue
]- os elem entos móveis e temporais estão aí co n ti dos .
10
Enfim, cenog rafia e indumentári a são artes visua is que co nse rva m um a re la-
!( -
ção co m o invisível: o te at ro com po rta um a visualidad e di feren ciad a, p orquanto in -
ia form ad a por eleme n tos dinâmi co s visíveis (ator e lu z ) e invisíveis (pa lavra, m úsrc.i ).
Entender a articu lação entre o v isível e o in visível é essencial para a criaç ão visual n o
teatro. Por conseguinte, no âmbito do ensino do teatro, é fundam ental v alorizar este
aspecto.

11- Apresentação de um problema: form ação técnica e form ação estética


a-
e- Cenografia e in d ume ntá ria são at ividad es qu e envolvem conte údos t eó ricos
10 e práti cos. O s capí tu los anteri ores apo ntaram para du as dimen sõ es n as ati vid ades
dos criadores vis uais d o esp etácul o. Uma rel acio na -se à exte riorida de num sent ido
10 ampl o, poi s os pró prios in strumen tos e aparelhos do palco, por exe m p lo, são ap re-
11 - endidos co mo eleme ntos de co ns t rução da plasticidad e do espetáculo . A out ra di z
/ 1-
resp eito a um a dim en são in tro sp ect iva, a um a co ns ta nte ação q ue o art ista exerce
ue so bre si mesmo . .J untas , as du as det erm inam o es t ilo, enqua nto escrita absoluta me n-
lI -
te pessoal. Portanto, es tas du as d imen sões são in sep ar áveis, co mo no ta .J osé D ias:
lia
.0 .
o êxit o do cenógrafo n ão depende ap enas de um bom t exto , de u ma boa propost a da
direção o u de uma inspiração genial, m as de todos esses fato res. Se os primeiros, o

ao t exto e a direção , como fatore s ex te rnos, d ependem às vezes de so rte, d e oportunida-

10
de, os fat ore s internos, a in spi ração e a capacidade do art ista, depende m do talento e

de da formação profiss io nal; da chamada alma de art ista, bem como de paciência e calma

tO
para desenvolvê-la'.

IS-
Uma dime nsão é es té tica n o se nt ido d e um trab alh o co m as for mas (a co mpo-
sição , o sign ifica do do o b jeto artístico) . Outra é es té tica por se refe r ir ao p roc esso
da dinâmi co da sensib ilida de. A p resença simultânea destes fato res externos e internos é
:111
um fator problemático na formação do arte -educador, po is os elementos técnicos e ex-
ão pressivo s nem sempre podem ser contemplados nos CU1"50S de formação .
ra- Cenógrafo e figurinis ta são pro fission ais q ue devem dominar técnicas de pro jeção
gráfica, téc nicas de construção, devem sabe r dialoga r co m profission ais diversos, devem
ter o co n hecimento de d iversos materiais expressivos . O oficio do figurinis ta e do ce-
.L- nó grafo envo lve um a grande gama de co nhecime n tos (históricos, teóricos, artístico s,
,Ie- técni cos, cu ltura is), ma s é somente na pr ática art ística que a razão de ser destes conheci-
IIg.
.hc mentos é pos ta à prova. O fundamental nest es dois ofícios é, portanto, o domínio técni -
co, u m sabe r instrumental que possa vir a fornecer soluções para problemas tópicos. Se

ro:
4 DI AS, Jos é. A import ância da cenografia. O Perceucjo, Rio de Janeiro, ano 7, n. 7, p. 29, 1999.

C EN O (: R..FH E INU WIENJ.<RH N A Jl RTE- E IJUCA ÇA O 10S


este fato dá a tônica do trab alho do criador visual no teatro, ocorre então que ele entra
em conflito co m o própri o oficio do arte -educado r, já que o alun o de licenciatura possu i
um a abordagem mais generalizada dos aspecto s da art e teatral. Ele não é um especialista
do fazer teatral. Contu do, em seu ofíc io, O arte- edu cad or deve estar apto a resp onder
às questôes gerais relativas a áreas com o direção, interpretação, iluminação, figurino s,
cenozrafia.
:=.
Esta so licitação de resp ostas imediatas ocorre, por exemplo, quand o são Iei-
tas montagens teatrais com alunos. O ra, a especificidade da for mação do arte -ed uca do r
está men os na capacidade de propor so luções técnicas do qu e na capacidade de fo rma r
sensibilidades e potencialidades. Cenografia e indumentária devem ser apenas meios para
que o m1e-educador possa vir a desenvolv er nos alunos outrasqualidades de sensibilidade,
outras formas de inteligência e outros comportamentos criativos.
Os asp ectos destacados aqu i - a lingua gem visual, a interpretação, a fu são da
estética e da técnica visam determinar as característ icas esse nciais da cen og rafia e
da indum entár ia. É a parti r dest es traços essenciais que pod em os pen sar n o m od : I

co mo elas devem ser abo rdadas no co ntexto do ens ino .

Cenografia e indumentária na
forma ção e na prática profissional do arte-educador

A fo rmação do cenógrafo e do figur inista envo lve co nhecimentos t e órico s


e de conhecimentos técnicos. A matriz curricular do curso de C enografia e de In-
dume ntá ria da Universid ade f ed eral do Rio de Jan eiro - UNIRIO, por exempl o,
co ns ta de um a extensa carga h o rária vo ltada para o dese nvo lvime nt o da expressão
plásti ca (desen ho , geo m etria, perspectiva, modelo vivo , p erspe ct iva e so m b ra, entre
o ut ros) e para os conheciment o s técnicos (co rt e e m ontagem , model agem , ad ere -
ços , entre out ros) .
Qua ndo ofe reci das a o ut ros cursos - d ireção, int erpret ação , teo r ia, licen-
cia t ura - Ce nog ra fia e Indum en tária tê m seu enfoq u e transfo rmad o, já qu e ela s
t ornam -se m ais condensad as em fun ção da redu zida ca rga horári a, a qual , na
m aio ria das esco las de teatr o (U N IRIO, U FM G , ECA -U Sp, UF O p, U FRG S,
UDESC , ent re o utras) t end e a var iar ent re 60 e 120 ho ras. De minh a p arte,
quando mini stro es tas d isciplin as para cursos com o Direção Teatral , Interpreta-
ção e Licen ciatura, evito valo r iza r os as pectos relativo s à cenotéc nica, preferin -
d o dest aca r os eleme ntos da co ns t rução es té tica d o e sp et ácul o : rel ação diret or-
ce nóg rafo ou figuri nista, se m io logia, lin guagem vis u al d o es pe tá culo, tip ol o gia
d o espaço cênico, lu z-cen a, at or-espa ço, et c. Na Licen ciatura, em particul ar, h á
ainda um a o ut ra mu dan ça de enfo q ue, poi s o fund am ent al aq ui é m ostrar co mo
o professor- ori en tador pod e u sar d o s eleme ntos vis uais d o tea tro para p od er
fo rm ar a se nsi b ilidade d o aluno . Nes te se nti do , estão em jogo qu est õ es rel ati vas
à perc epção d o esp aço, ao en t endim ento dos valores e qual idade s esp ac iais, à
apree nsão d o s elemen tos visua is que to rnam ex press ivo o espaço, ent re o u t ros .
Co ntudo, esta mudan ça t em sido mais difícil e problem ática devid o ju st a-
mente às refe ridas so licitações t écni cas, as quais trazem muitos probl emas pa ra o
professor ori entador. D entre o s problemas que con sidero mai s freqü entes e mai s
int eressantes, pod em os list ar os seguintes :

106 c;11 , O N M U IT A
1) O professor-orientador tem poucos recursos de expressão gráfica ou plás-
tica, mas precisa elaborar um cenário para cenas criadas pelos alunos.

2) O professor-orientador elaborou junto com seus alunos os figurinos e cc


nários para um espetáculo, mas não sabe como elaborar os planos de custo
para a execução da montagem.

3) A instituição e/ou comunidade dispõe de um espaço para criar uma espécie


de centro cultural, onde haverá um pequeno teatro e solicita ao professor de
teatro a elaboração de um projeto para o espaço.

4) Uma montagem teatral está sendo realizada com trajes recuperados, mas a
diversidade das peças dificulta o estabelecimento da unidade do figurino.

Esta lista foi construída a partir de situações concretas vivenciadas ou por


mim ou por meus alunos, cada item diz respeito a um aspecto específico do fazer
teatral. As situações 1 e 4 estão relacionadas à linguagem do espetáculo teatral,
envolvendo questões de ordem técnica e estética. A situação 2 relaciona-se à pro-
dução e à técnica. Já a situação 3 diz respeito à arquitetura cênica. Aquilo que
todas estas situações têm em comum é o fato de elas exigirem a presença de um
profissional especializado, já que não podem ser resolvidas por um professor de
teatro. Isto é, o licenciado em teatro não tem a menor obrigação de dominar estes
conteúdos. E, o fato dele desconhecer tais procedimentos não constitui uma falha
em sua formação.
Mas é justamente neste ponto que tem início o problema: por força de sua
formação específica, o professor de teatro desconhece os aspectos técnicos envol-
vidos na indumentária e na cenografia, mas seu ofício lhe exige constantemente a
S necessidade de propor soluções técnicas para problemas concretos. Considerando
1 que, nem sempre, ou quase nunca, a instituição tem condições de contratar profis-
sionais especializados para executar tais serviços, devemos nos perguntar se existe
uma maneira de atenuar este problema, durante a formação do arte-educador.

Desenvolvimento da expressão gráfica: o desenho

a Como vimos, quando transpostos para o universo da Licenciatura, cenogra-


á fia e indumentária sofrem uma condensação de seu conteúdo. Assim, num curso
)
de 120 horas, divididas em dois semestres, o aluno lida com uma multiplicidade
r de informações complexas que abrangem todos os elementos necessários para a
s elaboração de um projeto cenográfico para um texto (teoria, história, expressão,
à técnica). Os conteúdos teóricos são de mais fácil manipulação, visto dependerem
exclusivamente da análise das obras; já os conteúdos de mais difícil transmissão são
os que envolvem elementos técnicos e expressivos, em especial, o desenho. Em sua
o grande maioria, os professores de teatro possuem mais conhecimentos nas áreas de
s interpretação e de direção teatral, pois, em geral, são atores que manifestam inte-
resse pelo ensino. Raramente encontramos cenógrafos ou figurinistas que optaram
também pela licenciatura.

CENOCRAI IA I INIJ.:JJlLN I:-tRI., NA JlIUL-Ev{,'C.1ÇW 107


A s exp e riên ci as d e sala de aula têm m e mostrado que , em sua grande mai o-
ria, os alunos têm gra n des difi culd ad es de realizar um pro jet o ce nog ráfico, p oi s
ist o implica vári os co n h ecime n tos técni co s fundado s na ex pre ssã o gráfica ('
pl ástica. Ao sere m so licit ados a elabo rar projetos de ceno grafia par a um t ex-
to teatral, eles t end em a resistir à dim en são t écnica (o qu e envo lveria croqui s,
p erspectivas, plant as bai xas, cort es, plant a d e cons t ru ção, m aqu ete) e ao s el e·
mentes pr átic o s, co mo elaboraçã o d e pl an o d e custos, orçamentos, quantitativ o
d e materiais. Se, p or um lado, esta resi st ên ci a não afeta o o bje tivo ce nt ra l da
disciplina, por o ut ro , oco rria qu e a m ai or parte dos alun o s nunca sab ia com o
uma det erminad a idé ia se ria executad a: a t écnica, enquanto m eio para se chegar
a um fim , perm an ecia alijada do pro cesso. Um projeto ceno gráfi co se limitava
a uma boa idéia (e n t en d a-se, um bom di scurso) e a alguns d esenhos mal feitos.
Em suma, a cen o grafia era traída em sua natureza. De minha parte, eu traía os
ensinamentos d o professor Anísio Med eiro s, que repudiava a idéia de uma" C l
nografia falada ". O d esenho se fa zia, p ortanto, necessário.
Ora, assim co mo qualquer forma de ex pressão artística, a arte de desenhar
implica a exist ência de um a capacidade prévia e de um tempo de exercício para se u
desen volvimento. Mas, num curso de 30 aulas, são reservadas 5 aulas - no máximo-
para o desenh o, o qu e considero absolut am ente improdutivo. Assim , a possibilida-
de de desenvolv er o poten cial expressivo do aluno é tolhida em função do tempo .
Deste m odo , um procedim ent o aca dê m ico que con sid er o imp ortante é
propiciar ao aluno d e Li cenciatura em Te atro o co n tato com aulas de d esenh o :
livre , artísti co , técn ico , de moda. Estas au las devem se co nfigura r co mo di sci-
plina s optati vas o u co mo o ficinas, se n do o fe recidas no m esm o per íod o o u n u
período ant eri or ao da s di sciplinas em qu est ão . O ob jet ivo d estas aulas nã o de ve
ser o de gerar d esenhi sta s: mais imp ort ant e é fazer o alun o en te nde r o de senh o
como um a ferram enta básica para ele ex po r suas idéias. Igualm ente importante
é preparar o olhar do aluno para os t ratam entos gráficos esp ecífi cos, isto é, fa-
zer o aluno compreender a representaç ão d e tecidos, de caim en to s, de volumes,
entre outros. C om isso, ele poderá m ant er um diálogo mai s fluid o co m o s pro-
fi ssionais qu e executam seu proj et o, evita n do erros de inte rp ret ação. O q u e se
n ota assim é qu e o co n h ecim en to bási co do d esenh o pod e co n tr ib uir par a q ue o
futuro pro fesso r d e teatro pos sa resol ver alg uns dos p robl emas list ad os acima:
a visã o do co nj u n to d e p er sona gen s p ossibilita a co rreção da falta de un idade ;
o desenh o permi t e ainda uma prim eira pro je ção o u mat eri ali zação da s id éias,
possibilita ain da a p roj eção do es paço .

Lab orat óri os de criação: dos m at eriais expressivos à cena

Ini ciem os com as palavras de Gi anni Ratto:

o material de desenho é imp ortante para poder tradu zir em linh a, co res o u so mb ras
no ssas idéias, m as acho que se pensarm os em m ateriais nos sa t ar efa ficará potencializa-
da: quer diz er, deixar que a matéria aceite o u não ser utilizada p or nossa imaginação'.

5 RATTO, Gianni. A ntitratado de cenografi a. São Paulo: Senac São Paul o, 1999. p. 52.

lOS G Il.SON M OITA


o tempo reduzido conduz também a uma desvalorização de um elemento
específico das disciplinas de Indumentária e de Cenografia: o conhecimento da,
potencialidades expressivas dos materiais e, por conseguinte, com as técniCJ" de
confecção e montagem. Na matriz curricular do curso de Licenciatura em !\ it ('''
Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto há uma disciplina chamada "Mate-
riais expressivos", cujo objetivo é possibilitar aos alunos um contato com os divc)
sos materiais utilizados na criação teatral (madeiras, papéis, tecidos, metais, plás-
ticos, etc.), e com as diversas técnicas de transformação destes materiais. Assim,
de acordo com a abordagem do professor, a disciplina pode conter elementos de
cenotécnica, de adereços, de figurinos e de confecção em geral.
Feito a partir de visitas a espaços de produção (oficinas de bonecos, ccnotéc
nicas, carpintarias, oficinas de costura, etc.) ou a espaços culturais (teatros, museus,
edifícios históricos, festas, manifestações folclóricas, entre outros), este contato per
mire ao aluno dois tipos de aprendizado. Num nível mais imediato, eles tomam (('.
nhecimento das técnicas e soluções 'plásticas empregadas por artistas e técnicos tea-
trais, ou seja, eles assimilam procedimentos para empregá-los em outro contexto. No
caso da indumentária, uma visita ao guarda-roupa do Centro Técnico do Palácio das
Artes, por exemplo, possibilita uma assimilação de soluções de acabamento do traje,
tratamento das peças, materiais alternativos usados para a confecção do traje, entre
outros. Na cenografia, uma visita a este mesmo espaço permite assimilar as diversas
possibilidades formais de um único material, as diferentes técnicas de tratamento dos
materiais, assim como os "macetes" dos cenotécnicos. Este contato com os materiais
e com os profissionais pode auxiliar o aluno a elaborar planos de custo, orçamentos c
especificar quantidades de materiais.
Num nível mais amplo, visitas desta natureza estabelecem um contato com o
fazer coletivo. Os grandes espetáculos envolvem imenso número de artistas, artes.ic,
e técnicos e, conseqüentemente, uma diversidade de ofícios e uma variedade de mo
dos de fazer. Os alunos são lançados no ambiente do fazer teatral, numa cultura VIva,
onde teoria e prática não se distinguem, onde o conhecimento é transmitido aind a
sob outros moldes, tais como, a relação mestre e aprendiz. Assim, a observação dos
materiais conduz aos produtores e ao sistema de produção e, por fim, ao fenômenu
cultural cuja natureza é essencialmente política. Em suma, ao se pensar nos materiais
expressivos, pensa-se também nas práticas culturais, num conjunto de procedimemus
técnicos e nos agentes da criação.
Concluindo, no que se refere à formação do arte-educador, ao me referir
aos materiais e às oficinas de criação, aponto para a necessidade de a', escolas
de teatro possuírem laboratórios onde o aluno possa fazer experiências cênicas
sistemáticas com os diversos materiais, explorando os elementos da linguagem
visual. Laboratórios não somente de criação plástica, mas de experimentação
cênica, que permitam o desenvolvimento de pesquisas com o ator, o espaço, a
luz, o objeto, o traje. Por outro lado, tendo em vista o aspecto social e político,
s convém destacar que o professor de teatro ou o aluno de licenciatura encontra
nestas práticas culturais um grande material de exploração para o desenvolvi-
mento de uma série de atividades, as quais envolverão outros conteúdos didáv i
cos e outras disciplinas.

CE.YOGRAFlA E INJ)UJIENJARIA NA ARTE-EDUC4Ç"AO 109


Aietodologia da criação v isual no teatro: entre o mesmo e o di/aeme

Vimos que a criação visual no teatro funda-s e numa articulação entre os ele -
mentos visuais e os não visuais, na interpretação do conceito de en cena ção e do
texto dramático, e, por fim , na capacidade técnica. Acredito que, para atender ao
mercado teatral, a metodol ogia presente nas obras didáticas ou técnicas so bre cen o -
grafia e indumentária são suficien tes.
O modo pelo qual um cenógrafo ou um figurinista chega a uma idéia envolve
vários fatores subjetivos, de forma que tentar estabelecer um "método" comum a
todos é um contra-senso , já que , por sua nature za, este proc esso resiste à transmis-
são ou à reprodução. Contudo o sistema de produção teatral determina um mod o
de cria ção semelhante para todos os artistas. Por co nseguint e, apesar da dimensão
subjetiva, é possível se identificar fatores gerais, sujeitos a um registro objetivo, logo,
passíveis de tran smissão. São estes "fato res gerais" q ue aparecem nas o bras didáticas
ou técnicas. Para orient ar e estim ular o pr ocesso criativo, algumas obras apresentam
que stões que o figurinista o u cen ó grafo deve col ocar na ocasião em que elaboram
projetos. Qual o sentido do texto (análise drarnat úrgica)? Qual o con ceito da encena-
ção? Que tipo de espaço cênico é mais apropriado para a encenação? Qual o estilo da
representação? Que abordagem de figurino s deve ser adotada (realistas, estilizados,
abs t ratos)? Quais as necessidades do ator em relação aos figurinos? Qual a dinâmica
do movimento dos atores? Que materiais iconográficos serão nece ssários para a defi-
nição form al? Que cores e formas podem traduzir melhor uma idéia?
Estas perguntas constituem um estímulo válido para o aluno apreender o
modo como o drama informa a cenografia e a indumentária. Mas, deve-se entender
que , o processo de cria ção visual no teatro env o lve uma experimentação contínua.
Ist o é, es tas per guntas não são respondidas conceitualmente, mas sim plasticamen -
te. A idéia gera formas que, por sua vez, esclarecem a idéia dando-lhe materialidad e.
É neste ponto que a confecção de maqu etes tem se afirmado como um elemento
fundamental do estu do e da criação: nela, os materiai s são potencializados, de modo
a supe rar as pr óprias dificuldades de expressão gráfica. Na maquete, as mas sas, as
core s e os vo lumes são postos em cena, são visuali zados concretamente, po ssibili-
tando uma antevisão do fe nô m eno cênico.
Aqui, mais uma vez, sugere-se que as escola s de teatro possuam oficinas ne-
cessárias para tais experimentos. Mas, além disso, sugere-se também que haja uma
inter-relação das disciplinas: Direção Teatral e Dramaturgia, por exemplo, podem
ser di sciplinas gerado ras de materiais para a exp er ime nt ação plástica. O mesmo pode
se dar com as disciplinas de Interpretação em rela ção à prática do figurini sta. Enfim ,
o que se vislumbra aqui - no interior da metodol ogia tradicional - é que os cursos
de teatro sejam mais centrados na prática ou experimentação cênica, envolvendo
ati vidades interdisciplinares. Isto porque C eno grafi a e Indumentária são di sciplinas
teóri co-práticas que contêm elem entos conceituais e elementos ref erentes à ordem
do faz er. Um t erm o não existe sem o outro, eles se alimentam e se interpenetram,
num mo vimento circular, o nde a teoria gera o faz er e o fazer gera a teoria.
Mas, devemos pen sar ainda que o licenciad o em teatro atuará, em boa par-
te dos casos , em cir cu itos alhei o s a este gran de mercado . De vemo s pensar tam-
bém que, por nature za , o ges t o cri ador é sem p re transformacional. Ele é agent e

110 G I LSON M O ITA


e pa ci ente d e uma infinidade d e for ças. D e tal m odo qu e nem sem p re as so luçõe s
e p ro cedim entos p re se ntes nos livros did áti co s são as mais apro pria d as, não de-
vendo, p o rt anto, co nsti t uíre m o úni co o bje to d e int er esse do art e-edu cad o r. E
necessário pen sar em o utros ca m inhos para a criat ivida de, ca m in hos difere nte s
da " té cn ica" tradi cional e da cu lt ura visual a ela aliada. É necessári o ter em vist a
qu e as n ovas tecn ol o gias d a im agem e o s ca m in hos da arte co nte m porânea pro -
põ em n o vas sens ibilidades, d et ermin and o o u t ras m etod ol o gias. D e minh a pan e,
ten h o ex perimentado inv e rsões do pro cesso tradicional: gera r a ce nog rafi a e o
traj e não a partir do te xt o, m as a partir d e o u t ras espacialid ade s (p in t uras, fo tos,
eleme ntos arquite tô nicos, entre out ros).
Paradoxalmente, o que es tes cam in hos revel am ao aluno e a nós m esm os 0
sem pre o mesm o: um espaço d e visão onde se dá o enco n tro (nes te caso, virtual)
do ator e do públi co, um espaço da metam orfos e do ator, do jogo das má scaras , da
fusão d o real e do irreal. Trata-se nada mais d o qu e fo rmas difer entes d e Se \ ' ( '1 : '
me sm o fen ômeno.

CLN O GRA n " t: I ND U,I/LNT'R IA NA I1 R1L - E DU CI ÇA() 111


REFERÊNCIAS

DIAS, J osé. A imp ortância da cenografia. O Percevejo, Rio de Jan eiro, ano 7, n. 7, p . 11-17,
1999.

DONDIS, D on is A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: M. Fontes, 2000.

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Teatro do Pequ eno Gesto, 2003.

HO LT, Micha el. Phaidon Theatre manu al: costu me and mak e-up. Lond on: Phaidon Press ,
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NELMS, Henn ig, Scene design: a guide to the stage. Ne w York: Dover Pub licaron s, 1975.

PARKER, O ren; SMIT H, Harvey K. Scene design and stage lighting, New York: H olt, Rine-
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RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia. São Paulo: Sena c São Paulo, 1999.

SELDEN , Samuel; SELLMAN , H un ton, Stage sce/le) )' and lighting: a handb ook for non-
profession als. N ew Yor k: Appleton-Centry-Croft s, [ 19--] .

112 GII.SO N M orra


A RTS EDUCAT ION IN LATIN AMERICA
AND TH E CARIBBEAN MEETING OF EXPERTS

Ingrid Dormien Koudel»

o "Encont ro de Esp ecial istas de Ed ucação A rt ística da América Latina e Ca-


ribe", realizad o na Uni versidade de Uberaba, de 16 a 19 d e o ut ubro de 20 01 , com
apoio da O rganização das Nações U nidas para a Educação, a Ciência e a Cu ltu ra
- Unesco -, t eve p or o bjetivo di scutir o cur rículo do ens ino de arte . Pelo fato d e a
Am éri ca Lat in a e o Caribe já p o ssuírem curríc u los na cionais est ru tu rados, p assou-
se 3. discussão das recomendaçõ es a se re m feitas pelo s di ver sos grupos, assim co ns-
ti .u ídos: Teat ro, D an ça, M ús ica e A rtes Visuais.
O grupo d e Teat ro chegou à co nclusão de que essa área é imp ortante para
o desen volv imento da criat ivida de e da capac ida de sim bólica de cri an ça s, jo ven s e
adultos, se ndo também uma for ma d e abrir as portas da escola para a en t rad a dos
',ala res da co m u n idade e suas tradi ções art íst icas e culturai s,
A pont e ent re a sala de aula e ins titu içõ es co m u n it árias artís tic as e culturais
cria rela ções ent re crianças, artistas e produtores culturais.
A Unesco se propõe incentivar a pr omoção de um ensino/ aprendi zagem em
Arte e Teatro visa n do ao des envol vim en to da criat ivid ad e das crianç as, jovens e
adultos, e à aprec iação de ben s art ísticos e cultura is.
As segui ntes recom endaçõ es fora m feitas pelo gru po de espe cialis tas de Tea-
tro, formad o por In grid Dormi en Koudela e A rão Paranaguá de Santana d o Brasil;
N olma Co ley-Agard da Jamaica , Lílian Ga lván d o Peru , co m a co labo ração do s
ob servad ores, Larry O 'F arrell d o C ana dá e Tintti Karppin en da Finl ândia.

Teatro na Educação Básica

Em um a p ersp ecti va p eda gó gi ca, Teatro e Drama são ut ili zad o s e m dife-
rent es cu lt u ras co m di ferent es conce pções e sig n if ica dos. O Teat ro é uma áre a
de aqui si ção e co ns t ruç ão d e co n heci mento na esc o la. Deve ri a es t a r pre sen te
no cur rí cul o escolar, sen d o - lhe atr ib uída a mesma imp o rt ân ci a que as outras
áreas de co n hec im en t o .
Na Edu cação Básica (infantil, fund am ental e média), o Teatro deveria ser par-
te da ár ea de co n hec iment o den ominada Arte, ao lado da Dança, da Música e das
Artes Visu ais, dentro de um pro grama integrado e interdi sciplin ar.

113
Nas últ imas sé ries do Ensino Fundamental e ao lon go do Ensino M édi o, o
Teatro deveria ser considerado como uma disciplina autôn oma, de forma articu lada
com as outras lin gu agen s artísticas.
As quatro lin gua gens artísticas (Teat ro, Mú sica, Dan ça e Artes Visu ais) de -
ve riam estar pr esentes no currículo escolar, tant o individualm ente como através de
pro gramas int erdi sciplinares. O Teatro deveria estar pre sent e todas as vezes q ue for
concebido um programa multidisciplinar.
O Teatro dev e ser considerado como uma metodologia de ensino na Ed uca-
ção Básica.

Formação de professores de teatro

Para desenvolver atividades de ensino em Teatro, recomendam-se doi s mo-


delos de forma ção, um co m caráter generalista, voltado para a Educação In fant il c
primeiras' séries do En sin o Fundamental, e o outro com cará ter de espec ialização,
para as últimas séries do En sino Fundamental e Ensino M édi o.
A educação de professores de Teatro deveria acontecer em dois est ágios:
- Pré-serviço ou formação inicial antes da profissionalização;
- Em servi ço ou formação continuada a acontecer em qualquer mom ento da
carreira,
O s programas formativos deveriam enfatizar a relação ent re a teori a e pr át ica,
o es tu do de merodol o gias específicas e a relação entre ensin o e pesqui sa.
Artistas de teatro qu e atuam nas escolas deveriam participar de program as de
educação co nt inuada.

Formação pré-servi ço

Na formação do professor gen eralista, a área de Teatro deve compo r o cur ríc u-
lo em co njunto com as o ut ras linguagen s artísticas (D ança, Mú sica e Artes Visuai s)
reservando-se como um mínimo de 60 horas para cada uma delas. Recom enda-se que,
dep ois de cumpridas essas quatro disciplinas, sejam reservadas mais 60 horas para o
desen volvimento de pr ojetos interdisciplinares. O s professores qu e atu am na Educa -
ção Infantil e primeiras séries do En sino Fundamental qu e não tenham recebid o essa
fundamentação em cada uma das linguagens artísticas deveriam participar de cursos
equivalentes.

Formação em serviço

Todos os professores qu e atuam na Educação Infantil e na s primeiras sé ries


do Ensino Fundamental (incluindo aqueles que tenham recebido a fundam entação
em cada um a das lin gua gen s artísticas) deveriam se r incentivad o s a particip ar em
cursos de forma ção continuada, na s várias artes. Model os es pecíficos de desen vol-
vime nto profissional pod em incluir o seguint e:
- oficinas, conferências e seminários, para dar ao professor as habilidades básicas
para trabalhar nos termos do pr esente programa;
- participação de professores especialistas em Teatro para coorde na r oficinas
e rmrustrar cursos;

114 I NGRID D OR"mN K OUDE LA


- particip ação de art istas de teatro em oficinas;
- inclu são de pro gramas culturais, so b retu do na ár ea de teatro.

Estratégias para implementação

Os mod elos pJ.ra J. implementaçã o do cur rículo de Teatro podem incluir:


- o convite a pr o fessores especialist as para coordenar o ficinas de Teatro ;
- o convite a arti stas de teatro para ensinarem Teatro na escola, bem como orza ~

nizar oficinas para professores;


- o convite aos pais e membro s da comunidade com habilidades em Teatro;
- a inclusão de políticas cultu rais int egradas às atividades das escolas, uruvr: , i
dades, conservató rios, museus et c., com o objetivo de ampli ar as oportunidad es
para a aprendizagem do Teatro.

O s pro fessores de veriam colab orar .com os mu seu s que ut ilizam o Teatro
para to rn ar viva a hi st ória e a cultura. Eles deveriam coop er ar com o t ea t r o
profissional , proporcionando aos a lu nos o aco mpan ham ento do pr o cesso d e
produção de uma enc enação teatral, a discuss ão com atores e diretor, incluind o
esse tema na s au las de teatro. Deveri am incentivar seus alun o s a parti cipar d e
fe stivais de te atro d e alt a qualidade, d esde que tenh am uma o rie n tação ed uca-
cio na l; deveri am in centivar seus alun o s a se aprese nta re m em ho spit ais, asil o s ,
fábri cas e o u t ros lo cais co mu nitá rios; e in centivar se us alun o s a desen vol ver e
apresentar ce nas e peças sobre event o s locais, acont eciment o s hist órico-, " ou -
tro s . Por ex emplo, os aluno s podem p esqui sar um tema entrevi stand o f" \ ,,< ',I '
co m co nhec ime nto e desen vol ver uma peça de teat ro qu e e nvo lva todas as lor-
ma s de arte. Por fim , os prof essores d everiam co nvida r os pais a se (: 11 ,',.1 j.II "Il 1
nas ativ idade s de teatro, fazend o fi gurin o s, ce ná rios etc .

Elementos do currículo de teatro para a


educação infantil e o ensino fundamental

Objetivos
Ao final do pro gr ama , os alun o s devem estar ap to s a:
- Usar estó rias e jogos tradicionais para criar teat ro
- Inici ar suas próprias atividades cênicas
- Realizar ati vid ades de mímica usando a experiênci a pessoal
- Usar a narração na s aprese ntações teatrais
- Usar boneco s e o bjetos animad o s na s suas aprese n tações
- Usar ade reços e figurin os para criar per sonagens
- Improvisar diálogos
- Escrever e grava r diálogo s a part ir de improvisaçõ es
- Inter agir com o ut ras persona gen s em cenas imp ro visadas e escritas
- Exp erimentar várias formas d e apresentação do teatro
- Conhecer formas at ravés das quais o teatro afet a a vid a
- Apreciar e criticar sua apresentaçã o dram ática e aquela d e seus pares
- Apresen tar diante de fun çõe s da escola, da co m u n idade e em festivais
- Entender e ap rec iar várias form as culturai s

A RT,) un.csrto« IN L'l rFS A,II L R1C4 AS/) TH E CARI HHl.tN .UEL T/ ;\( , oi L \ P f RT'i 115

1
- Apreciar a co ntribuição de praticant es de teatro e o desenvolvimento dessa for
ma de arte.

Propostas metodológicas

- Pesqui sa e exploração de jo gos t radi cionais, jo gos teatrais, canções, provér


bios, gestos e lin gu agem corporal nas oficinas ped agógicas de teat ro.
- Pesquisa e explo ração de exercícios sensório-corporais, co m a voz e o espaço
cênico.
- Pesquisa e desen volvim ento da conce ntração (foco), instrução e avaliação no
jogo teatral.
- Pesquisa e experimentação com as vári as formas poéticas na explo ração do
corpo e da vo z (narrativa, texto dr am ático, poemas, conto s) .
- Criação e anim ação de adereços, figurinos e cenários.
- Pesqui sa e explo ração de vário s espaços nas oficinas pedagó gicas de teatro ~
n os espetáculos teatrais realizados co m os alunos.
- Pesqu isa e criação de cen as e episódios a partir de estí mulos o riundos das
"ce m linguagens da criança", através da integração entre as lin guagen s art ís
tr cas,
- Seqü ênci a de ce nas e epi sód ios na dem onstração e no espe tác u lo teatral.
- Pesqui sa e experime ntação do recep tor: a rela ção palc o (at ua nte ) e platéia
(apreciador da ob ra de art e).
- Visita a teatr os, circos, event os musicais e de dança, museus e outros cent ros
art ísticos e cultura is.
- E ntrevistas com produ tores e artis tas de teatro.
- Experimento co m várias formas de publi cidad e so bre espetác ulos de teatro em
cartaz .
- Experimentos co m projetos mult iculturais e interculturais nas o ficinas pedagó
gicas de teatr o.

116 I :<C RID D O R'lIE N KOll DI.IA


T EATR O CONTEMPORÂ NEO : O SENTIDO EM D EBATE

J osé da Costa

Segundo N elson de Sá, N ova velha estória, es petá cu lo qu e Antunes Filho reali-
zo u a part ir do co nto de Chapeuzinho v ermelho d o s irmãos Grimm, e ra um a es péc ie
de pan flet o co nt ra o teatro visual: "O diretor, com 40 anos de teatro, ch utou glórias
passad as e saiu a cam po con tra o teatro ininteligível , de ima gen s e ge lo seco". C om
essas palavr as, o crítico paulista se referia aos procedimentos cênicos ut ilizados po r
Ger al d Thomas. N elson d e Sá justifica o caráte r de o bv iedade que enxe rga nos sig-
nos e na dramaturgia de Nova v elha estória co mo uma man eira pela q ua l A nt unes
Filho es ta ria co nt ra po ndo -se à rar efação do sign ificado em certo teatro b ras ileiro
co n te m porâneo e co mo um a reação ao ch am ad o teatro visual. A referên cia a G erald
Tho mas, no co me ntá rio à p eça de Antunes, ex p lícita-se sem am bigü ida de :

Nova 'velha bist ôna é, po r assim dizer, o fundo do poço. Depois de cinco anos de Gerald
Th omas, era preciso uma "terra arrasada" para mudar. O próprio Thom as tentou isso
com MO/te, espetáculo contido, apesar do título. A peça de Antunes Filho é um novo
passo nessa direção. Um espetáculo mais para destruir do que para apont ar alt ernativas'.

Ma s não é só N elson d e Sá qu e se inqui eta com o cresciment o do suposto teat ro


visual no Brasil durante os anos 80 e 90. Em edição da Revista da Univer sid ade de São
Paulo - USP - , ded icada ao teatro brasileiro contemporâneo, a pesquisad ora Tânia
Brandão discut e o panoram a teatral do Rio de Janeiro naquele mom ento" Preocupa-
vam, en tão, à ensaísta a auto ma tização dos int érpret es em decorrência da primazia dada
à "ma terialidade plástica qu e os envo lve" no teatro de Gerald Thomas, mas também no
de Bia Lessa, em cujo tr abalho "a direção de ator e os problemas de int erpret ação não
são valo rizados". Essa espécie de redução do papel criativo desempen had o pelo ator
ating ia também, co nforme as avaliações de T âni a Brandão, as produçõ es liderad as por
Moacyr G óes e por Márcio Vianna à époc a em qu e o ensaio foi escrito. Nas peças desses
dois últimos diretores, a exacerbação da int ensidade corporal, a qual os intérpretes eram
levado s, acarretari a o pr ejuízo da capacidade de modulação da emoção e da enunciação
do te xto na visão de T ânia.

ISÁ, N elson de. Diva s!Idade: um guia para o teatro dos anos 90. São Paulo: H ucitec, 1997. p. 49.
!BRANDÃ O, Tânia. Visionários ou alienados. Revista da U5P, São Paulo, n. 14, p. 28-33, jun./
ago. 1992.

11 7
N o trabalho dos quatro diretores tomados como representantes das tendên-
cias dominantes no teatro carioca no final dos anos 80 e início do s 90 , a ensa íst a
verifica outro traço comum. Trata-se de uma segun da redução, aquela imposta ,!
função do texto verbal , levando a uma espécie de "morte da palavra", que teria a ver
com razões diver sas interligada s ent re si. A rejei ção por vários daqueles diretores
de en cenarem textos disponibilizados pelo repertório da literatura dramática oci -
dental seria uma das causas do sacrifício da palavra dia gnosticado pela pesquisadora
carioca. A única exceção seria Moac yr Góes, que lan çou mão de obras de Brecht,
Büchn er, Marlowe, Guelderode, Sakespeare e Sófocles em su a trajet ória de encena-
dor. Entretanto, na visão de Tânia Brandão, a ênfase dada à corporeidade (em uma
orientação mecânica ou automatizada) reduzia a importância do texto nos empre-
endimentos teatrais realizados por Moacyr.
Entre as razões da dupla redução da palavra e do ator, a ensaísta menciona a
tendência a se priorizarem narrativas de ficção livremente teatralizadas a partir da s
exigências dos projetos cênico-visuais dos diretores (T h o m as em relação a obras de
Kafka, Bia Lessa em relação à de Virgínia Wolf etc.); bem como uma tendência apa-
rentada à primeira, qual seja, a de os próprios encenadores escreverem textos "em
geral, bem pouco densos, desprovidos de relevância enquan to dramaturgia e até de
importância secundária na dinâmica da montagern'". Para Tânia Brandão:

N ão há dú vid a de que as tendências teatrais cario ca s mai s recentes e de maior re p er-


cussão acontecem tendo como pano de fund o o processo de diluição da linguagem
teatral moderna, cuja institucionali za çâo não oco rreu pl enamente. Por isso, parece
preocupant e que ess as novas tendênc ias reúnam produtores que , dedicado s à livre
criação e à expressão pessoal de seu ideário, não tenham um cálculo nítido de diálogo
o u atrito co m os temas da modernidade hist ó rica. N ão há como não sentir um sa bo r
am ar go qua ndo se co nsta ta q ue cert o s temas, o ni pre se ntes e cruciais para o teatro d o
sé culo XX, não são tr abalhad os ou são descart ado s com razoável facilidad e. Pode ser
que aí esteja o te atro do futu ro, o rascunh o da cena d o séc ulo XXI - a di st ânci a fren-
te ao probl em a d o sentido, o aban d o no do con ceito tradicion al de ação dram ática, a
ên fase na plasticidade e na constru ção visual, o de spre zo ou a indife ren ça diante d a
hipót ese da palavra, a au to ma t iz açã o do ator seriam indícios de uma ce na-de - u m -
o u t ro -tem po-que-v ir á',

Tânia Brandão tem desenvolvido em vários trabalhos a visão de que o vié s


dominante no te atro brasileiro atual, centrado em certo tipo de estrelismo do s dire-
tores (no teatro mais experim ental) e do s atores (no teatro mai s comercial), implica
uma espéci e de desvi o ou degenera ção do movimento modernizante da cena no s
anos 40 e 50. M ovim ento esse que não teria, co mo dem onstra a estudiosa, apenas
focali zado a construção de uma po éti ca da encenação, mas teria também reali zado
esforços de transformação do mercado profissional e da inserção institucional do
teatro, ainda qu e esses esf or ço s não ti vessem atingido , conforme a avaliação de T â-
nia Brandão, su ficiente consist ên cia o u continuidades.

] BRANDÃ O , 1992, p. 32.


4 BRANDÃO, 1992, p. 33.

5 Um exemplo de trab alho em que T âni a Brandão aborda essas quest ões é o brilhante ensaio

118 j ost OA C OSTA


o movimento modernizante do teatro no Brasil se iniciou no Rio de Janeiro
pelos amadores (Teatro Brasileiro do Estudante e Os Comediantes, Iundamemal-
mente) e, profissionalmente, foi empreendido pelo TBC e pelas companhias I ~( 1(
procedentes ou a ele aparentadas em termos de projeto artístico-cultural, como, p\Jr
exemplo, o Teatro Popular de Arte de Sandro Polônio e Maria Della Costa, surgido,
como o TBC, no ano de 1948. É, aliás, ao Teatro Popular de Arte (que surge nu
Rio de Janeiro e só depois se transfere para São Paulo) que Tânia dá a primazia em
termos de profissionalização de uma prática teatral moderna no Brasil".
O afastamento com relação ao moderno detectado por Tânia no palco con-
temporâneo começaria, segundo sua avaliação, na fase nacional-popular do Teatro
de Arena de Boal, Vianinha e Guarnieri, no final dos anos 50; atingiria, ainda em São
Paulo, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Correia, a partir de seu momento
tropicalista com a encenação de O rei da vela, de Oswald de Andrade, em 67; ins-
talando-se também, no Rio de Janeiro, em uma companhia como o Teatro Ipanerna
de Ivan de Albuquerque e de Rubens Correia no início dos anos 70 7• O resultado do
desvio de rota ou desagregação do teatro moderno seria um teatro que se aproxima
da prática pré-moderna - segundo os termos da própria autora" -, experiência de
tipo voluntarista, dos grandes atores dos anos 30 c 40, a exemplo de um Procópio
Ferreira e de um Jaime Costa? e tradição iniciada no contexto romântico oitocentis-
ta de João Caetano 10. Na densa e complexa discussão da noção de moderno, em sua
tese de doutoramento, a autora tem o cuidado de evitar dualismos como, por exem-
plo, o do binômio avançado-atrasado como correspondente da dicotomia moderno
versus não-moderno". Esse cuidado aponta para a percepção de que esses dualismos
acabam por desqualificar um dos termos da oposição, como desqualificam também
todas as alternativas que escapam à versão priorizada hierarquicamente, podendo
!!erar, como conseqüência, raciocínios históricos unilaterais ou unívocos.
Mas de modo crucial, o que parece à pesquisadora estar na base do subjetivis-
mo voluntarista que vê nos trabalhos dos diretores, no final dos anos 80 e início dos
90 no Rio de Janeiro, é o desprezo "frente ao problema do sentido" e o "abandono
do conceito tradicional de ação dramática". São esses os fatores que reduziriam a
um papel secundário tanto as palavras, quanto os intérpretes no teatro carioca do
período comentado no texto da Revista da USP
Nesse ensaio, Tânia Brandão explicita a posição de que a co-habitação de referên-
cias a contextos histórico-culturais muito díspares em uma mesma obra seria, em sua

°
Teatro brasileiro do século XX - As oscilaçõesvertiginosas. BRANDÃO, Tânia. teatro brasileiro
do século 20. Revista do IPHAN, Brasília, DF, n. 29, p. 300-335, 2001b. Mas também na tese
de doutoramento da pesquisadora, Peripécias modernas: companhia Maria Della Costa (1948-
1974), aparece o tema da extinção da experiência do teatro moderno no Brasil a partir da década
de 60 e principalmente de 70. BRANDAO, Tânia. Peripécias modernas: Companhia Maria Dclla
Costa (1948-1974). 1998. p. 323, 332. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciência So-
ciais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. Não publicada. O interesse
da historiadora pelo percurso de um certo teatro moderno profissional ~parece ainda no livro em
que estuda a trajetória da companhia carioca Teatro dos Sete. BRANDAO, Tânia. A máquina de
repetir e a fábrica de estrelas: Teatro dos Sete. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002. 330 p.
6 BRANDÃO, 2001b, p. 320

7 BRAND~O, 2001 b, p. 325-326, 329.

8 BRAND~O, 1992, p. 33.

9 BRAND~O, 2001b, p. 315, 324.

10 BRAND~O, 2001b, p. 303-305, 309.


11 BRANDAO, 1998, p. 1-69.

TEATRO ( (J,\'JE.lIf'ORANW: O SE,\'TJJ!o /..lI jJL!IXIT 119


opinião , um do s exemplos da atitude vo luntarista dos dire tores. Tr ata -se de um trecho
em qu e a ensaíst a se refere a Gerald Thomas como sendo, dentre os diretores eirad o s
(M o acyr G óes, Bia Lessa e Márci o Vianna, além do próprio Thomas), aquele:

[...] cujos tr abalh os estão mais estr eitamente ligados à pr ópria personalidade c .10'

maneirismos do criad or, inclusive devido às citações gratuitas, episódicas ou ,111(' (k, ·

ricas de outras o b ras de arte (o caso mais grave, aqui [no Rio de Jan eiro] foi a mon -
tagem da ópera O navio fantasma, de \\!agner, em que o diret or se deu ao luxo dê' S é'
referir à Docum enta de Kassel e a obras de art es plásticas do século XX) 12.

Em suma, os procedimentos d e aglut inação d e referências dí spares, as t l-cn;·


cas de colagem e de montagem , associan d o aspectos relativos a contextos histórico s
e c u lt urais hetero gêneos, foram vistos pela pesquisadora em certo mom ento co m o
sin to ma de uma es pécie d e subjetivismo gra t u ito e, por isso, reprovável.
Sábato M agaldi., em se u en sai o de ab ertura da me sma publica çã o!', compar-
tilha, de certo m odo, o tip o de visão exp re ssa por T ânia Brandão sobre o teatro d o
início do s anos 90, afirmando se r re comendável :

Que os en cenad ores-criadores admitam um pouco ma is de modéstia, reflitam que


não são deu ses todo-po deros os e acolham a col ab ora ção de dramaturgo s e inté r-
pretes, já que o bom senso diz qu e não se faz bom teatro se m boa literatura':'.

Já A lberto Guzik" não reproduz esse apel o ao "bom se ns o", naturalizado nas
pala vras de Ma galdi , que opta por rec orrer às noçõe s de "bom teatro" e de "boa liter a -
t u ra", como se elas fo ssem au to -evide ntes e não nec essitassem maiores esp ecifi cações
d e cr ité rios ou de perspect ivas seg undo as quais se po ssa aludir às m esma s. Ape sar ,k
não recorrer à expressão tão sing ela quanto "boa literatura", Gu zik também lida co m a
d icotom ia teatro da palavr a versus teatro da imagem, a que se refer e como "drama turgia
d o espaço", exercida, segu ndo ele, por encenadores como Bia Less a, Ul ysses C ruz e
Gera ld Thomas.
Estamos em um determinado campo de ap rec iação do t eatro con te m porâ n eo
que, apesar de diferenças em vário s ní veis, co ns iderand o os di stinto s perfi s intelec-
tu ais, profissionais e ge racionais do s crít icos mencionad o s, compartilha ce rta pers -
pectiva comum no que diz respeito ao modo de entender determin ados asp ectos d o
teatro atual. De fato é, por exemplo, bastante habitual, em vários se tores da crít ica
jornalística e acad êmica, uma visão ra zoavelmente pessimist a (ex p ress a, muitas vezes,
também em depoimentos de arti stas) em rela ção à tendên cia d o teatro contemporâ-
n eo de priorizar adaptações de textos o rig inalme n t e não escritos para a cen a; a ence-
na ção integral de narrativas d e ficção ra zoavelmente lon gas; e, ain da, a ênfas e dada
na s co m posições dramatúrgicas empreendidas pelo s próprio s enc e na do res (ef o u po r
dramaturgo s ou dramaturgistas integrados às companhias), às técni cas d e colagem,
d e montagem lit erári a, d e bricola gem e d e livr e manipulação de referên cias art ísticas

12 BRANDÃO, 1992, p . 32.


IJ MAGALDI , O nde está o teatro. Revista da USP, São Paulo, n. 14, p. 6-9, jun./ago. 1992.
H MAGALDI, 1992, p. 8.

I; GUZIK, Alberto. Um exercício de memória: dramatur gia brasileira anos 80. Revista da USP,
São Paulo, n. 14, p. 10-15 , jun./ ago. 1992.

120 j osr DA C OSTA


e culturais. Esses procedimentos de criação escapam ao que, do ponto de vista do
drama tradicional e do play-writing mais atual, é considerado o domínio da chamada
carpintaria dramatúrgica, da eficiência no ofício especializado da composição do t.cx-
to dramático, entendido dentro das pautas particulares de um gênero definido ou de
certa expectativa de comunicabilidade com o público médio.
Entre as ressalvas de Bárbara Heliodora em relação ao espetáculo A paixão segun-
do C.H., com adaptação teatral do romance de Clarice Lispector assinada por Fauzi
Arap e direção de Enrique Diaz, o aspecto dramatúrgico foi especialmente destacado
e serviu a uma avaliação mais geral de certa tendência do teatro brasileiro atual.

Trata-se, portanto, de mais um exemplo da síndrome da literatura que vem atacando


o teatro nacional nesses últimos tempos. Se fazer teatro não é fácil, não chega a ser
muito compreensível esse insistente acréscimo nos obstáculos a serem superados al<-
a hora do espetáculo, pelo uso de textos que não foram criados para o palco".

Patrice Pavis, não partilhando da sensação de incompreensibilidade a que alu-


de Bárbara Heliodora, apresenta uma outra visão do mesmo fenômeno no contexto
francês:

Ninguém (exceto os teóricos do drama) acredita mais na especificidade do texto


dramático, na existência de regras e de leis do diálogo, do personagem, da estrutura
dramática, etc. Por prova, esta pesquisa de textos não escritos inicialmente p:1L1 ,\

cena e que permitiram as experiências do teatro-relato. [...] Trata-se de tomar o texto


romanesco não como substrato para uma fábula e personagens, mas de fazer uma
leitura cênica daquele texto mais ou menos dramatizada pelas improvisações de seus
diversos leitores J 7.

Jacó Guinsburg, em texto que focalizava um outro aspecto, incluído na mes-


ma publicação da USP a que venho recorrendo aqui, questionava a recepção crítica
de certo teatro contemporâneo:

o fato de o teatro dos anos 80 distinguir-se por ser em grande parte criação de direto-
res, e muito menor escala de dramaturgos, suscitou na literatura especializada uma su-
cessão de especulações sobre a impotência teatral da escritura dramatúrgica como sinal
de fenecimento da arte dramática. Nem o surgimento de autores como Heiner Müller,
Botho Strauss e outros é considerado como uma demonstração de poder criativo de
textualizaçâo, sendo apontado como confirmação do processo de decadência, pelas ca-
racterísticas de suas peças. As colagens, as citações, as montagens de fragmentos, as
transposições do épico para o dramático, os enredos soltos, as estruturas abertas e a

16 HELIÜDüRA, Bárbara. Cuidados e carinhos com Claricc. O Globo, Rio de Janeiro, 4 dez.
2002. Segundo Caderno, p. 4.
17 PAVIS, Patrice. Le théâtre au croisement des cultures. Paris: Librairie José Corri, 1990. p. 74.

Tradução nossa.

TEATRO CONTLIIPORc4NEO: o SENTlf)O LlI f)EBA!'E 121


própria potencialização dos recursos e das intervenções cênico-direroriais tornam-se
outros tantos argumentos em favor da desvitalizaçâo da força do teatro, de seus com-
ponentes essenciais e constitutivos, e não são tidos como elementos de uma linguagem
que faz da montagem de teatro um teatro de montagem".

N o mesmo número da Revista da USP em que aparecem os ensaios de Tânia


Brandão, Sábato Magaldi, Alberto Guzik e Jacó Guinsburg, dentre outros autores e
autoras, chama a atenção a posição expressa por Sílvia Fernandes:

Para desobstruir o palco dos rótulos ou, pelo menos, observá-lo sob nova luz, é pre-
ciso enxergar no trabalho autoral de (Gerald) Thomas uma das matrizes de análise
da encenação nos anos 80. [...] As peças musicais de Hamilton Vaz Pereira, as expe-
riências plásticas e espaciais de Bia Lessa, o Corpo de baile de Ulysses Cruz ou o A
bao a qu de Enrique Diaz afirmam-se, tanto quanto a ópera seca de Thomas, como
concretizações de um discurso da encenação I').

Sílvia Fernandes se aproxima de Guzik, uma vez que a idéia de um "discurso


da encenação" se associa a de uma "dramaturgia do espaço", a que alude o crítico
paulista. Em seu livro sobre o teatro de Thomas, Sílvia dedica um dos capítulos ao
estudo da construção cênico-dramatúrgica a partir da análise do espaço, do tipo
de sintaxe livre ou aberta que ali é proposta por meio de repetições, de citações e
de variações de quadros cênicos e cenográficos. Sílvia Fernandes também se une a
Tânia Brandão, uma vez que, como Tânia, ela enxerga, nos anos 80, uma espécie de
retorno a uma autoria individualizada e centralizada nas mãos do encenador. Para
Sílvia, essa tendência marca uma diferenciação em relação tanto às experiências de
criac io coletiva dos anos 70, quanto à concepção da encenação teatral como criação
espetacular que se dá a partir de um texto dramático prévi0 2D•
Apesar da aproximação sob certos aspectos, Sílvia Fernandes apresenta uma
perspectiva claramente diferenciada em relação àqueles que fazem do trabalho cêni-
co de Thomas o paradigma de um teatro semanticamente estéril:

I' GUINSBURG, Jacó. O lugar do teatro no contexto da comunicação de massa. Revista da

USP, São Paulo, n. 14, p. 92-96, jun./ago. 1992b. A posição de Jacó Guinsburg mais aberta
J certas práticas criativas contemporâneas aparece igualmente em texto da Revista Sala Preta
(GUINSBURG, Jacó. Texto ou pretexto. Sala Preta: Revista de Artes Cênicas, São Paulo, ano
1, n. 1, p. 87-88,2001), como pode também ser pressuposta a partir de pelo menos alguns dos
ensaios escritos a quatro mãos reunidos no livro Diálogos sobre teatro. GUINSBURG, Jacó.
Diálogos sobre teatro. Organização de Armando Sérgio da Silva. São Paulo: Edusp, 1992a. 262
p. Lembre-se ainda que o autor é um dos organizadores do livro coletivo Um encenador de si
mesmo: Gerald Tbomas. FERNANDES, Sílvia; GUINSBURG, Jacó (Org.). Um encenador de
si mesmo: Gerald Thornas. São Paulo: Perspectiva, 1996.295 p.
/9 FERNANDES, Sílvia. O espectador emancipado. Reuista da USP, São Paulo, n. 14, p. 70-71,

jun.! ago. 1992.


cG Sílvia Fernandes - que se dedicara aos grupos de teatro dos anos 70 em estudo realizado antes da
pesquisa sobre a obra de Thomas, ainda que publicado posteriormente (FERNANDES, Sílvia. Gru-
pos teatrais: anos 70. São Paulo: UNICAMp, 2000a.268 p.) - enxerga hoje, no Teatro da Vertigem de
Antônio Araújo, o exemplo de uma mentalidade (a da prática colaborativa de criação cênica e dra-
matúrgica) que não se coaduna nem com o espírito da criação coletiva da década de 70 e nem com o
domínio do encenador verificado nos anos 80 (FERNANDES em NESTROVSKI, Arthur (Org.).
Trilogia biblica: teatro da vertigem. São Paulo: Publifolha, 2002. p. 35-40). Para a pesquisadora, o
Teatro da Vertigem aponta um outro modo de criação participativa, envolvendo simultaneamente
encenador, atores e dramaturgo.

122 Josi DA COSI'


Muitas críticas começaram a alvejar o teatro de Thomas. E st eriza ção , herrn etism o,
auto-referência, simulacro, era m alguns dos co nce itos que rotulavam o palco do
encenador. Subjacente a elas, o que est ava em jogo era um determi nado co nce ito
de teatro, const ruído pacie ntemente desde Ari st ó te les. Teatr o de verdade tinh a de
ter co nflito, texto dialoga do, ator identificado (ou, qu ando muito , distanci ado) e se
possível, nó dramático. E no caso de Th om as, o jogo da teatr alidade se desenr olava
através das imagens em cena" .

A pe squisadora se refere aqui às críticas que Thomas começou a re ceber n o


Brasil a partir da exibição do s primeiro s espe tác ulos re alizad os co mo co mposições
inte ira m ente escritas pelo própri o Thomas, co mo Electra com Creta (Rio d e J aneiro,
1985) e Carmen com filtro (São Paulo, 1986) e não como en cen açõ es de t extos de
outro s aut o res, a exe m plo de Quatro vez es Beckett (R io de Janeiro, 1985 ) , com text os
curtos d e Sam uel Beckett, e d e Qua rtet, de H ein er M ü lle r (R io de Janeiro , 198 6).
Sílvia Fe rna ndes havia antecipado, em seu ensa io da Revist a da U Sp, as pectos qu e
viriam a ter um desdobram ento m ais extenso na tese sob re o teatro de Gerald Thomas,
que veio a de fende r e publicar algu ns anos depois. Estudo em que dedica um dos ca-
pítul o s à d iscu ssão da co ns trução d a personagem pe lo encenado r-drama turgo G erald
Thomas e p ela atriz Bete Coelho n o espetácul o Carmen com filtro. Nesse cap ítulo, a
pesquisadora chama a at en ção para a co mposição po r p rocedimentos de acumulação
de referências literárias e histórico-culturais muito variadas e m esmo díspares so bre o
suporte da figura de Carmen, dest acando ainda a importân cia da co laboração cria tiva de
Bete Coelho no espetáculo.
N o ens aio da Revista d a U5p, a ens aís ta co n fr onta o fe ch ament o do p alco po r
uma co rt ina de filó (co locad a no pro scénio em algu m as da s ence nações d e Gerald
T homas] c o m a teorização d a q u arta par ede na p erspec tiva naturali st a d e A nd ré
Amo in e. A pesq uisadora, ao cont rário de T âni a Bran dão , apreende, assim, u m diá-
log o (co m dife renciação) d o trabalh o d e Thomas co m ce rt as ex pe riências fundant es
do teatro m oderno do iní cio d o sé cu lo passad o.

o fechamento do palco conte mporâneo não parece obedecer a essa necessidad e (re-
fere- se à demanda de ilusão teatral, que marcara a pr odução de An dré Ant oine no
início do século XX). Em pr ime iro lugar porque aqu ilo que vemos em cena (no caso
do teat ro de Th om as) é ficção elevada à última potên cia, ou melhor, é desest abiliza-
ção dos mecanismos de preservação da ficção. Em seg undo, porque a rep resentação
não pr etende ent regar ao público um sentido, uma visão de realidade , uma mensa gem
ou qualquer outro elemento exteri or a ela!!.

Sí lvia Fe rnan des en xe rga n o teatro d e Gerald Tho m as o "esboço d e um a nova


concepção de representação", que n ão op er a a partir da unificação d o s elementos de
cena, co m a redução d e sua p o ssível hetero ge nei dad e, visand o à co ns trução u nitár ia
de um se n t ido co mum . Co mo lembra a p esquisad ora, ess e m odo d e o pe rar - com
aplaina mento do het ero gên eo - es tá na base d as prát icas d o m odernismo te atral

!l FERNANDES, Sílvia. Mem ória e invenção: Gerald T homas em cena. São Paulo: Perspectiva,
1996. p. X .
2! FERNANDES, 1992, p. 72.

T EA T RO C ON JLlIPOR.4,VfO: o SENT ID O LlI {) [BATf 123


.'

desde suas primeiras teorizações em Wagner, em Craig ou em Adolph Appia.


Segundo Patrice Pavis, o sentido no teatro pós-moderno é marcado pela mo-
bilidade ou pr ovisoriedade num grau que não se via no teatro moderno da primeira
m etade do século XX 2' . N esse último, as operações de harmonização d os elemen -
tos sígnicos e semân ticos tenderiam, conforme o pensamento do teóric o francês, a
produzir certas síntes es significacio nais após todas as dispersões (tempo rais, es pa-
ciais et c.) que tenham por ventura sido admitidas e todas as contradições dialéti cas
que tenham sido acionadas ao longo da peça , ou seja, tenderiam a constituir uma
univocidade e uma estabilidade controladora das po ssíveis derivas do sent ido . De
fato, são as operações harm onizadoras e 'estabilizado ras do sentido que parecem ser
colocadas fortement e em questão por certo teatro d os dia s atuais.
No Brasil, não é apenas a voz de jornalistas ou de estudiosos que se levanta
em defe sa de um princípio de cau salidade e de certo tipo de narratividade linear ou
de base referencial mais est ável. Muitos criadores, em depoimentos públicos e em
textos de refle xão , apegam-se a essa perspectiva. Ad ere-se a ela, várias vezes, como
um modo de recuperar platéias perdidas para outras forma s de lazer e di stração. O
dramaturgo Luiz Alberto Abreu ", por exemplo, defende, em dois arti gos publi-
cados recent emente em revistas acad êmicas de teatro, tanto a retomada de eixos
narrativos raz oavelmente unificado s e harmônicos - me sm o mencionando, contra-
ditoriamente, exemplos de autore s que não trabalham nes sa perspectiva como Hei-
ner Müller e Bernard-Marie Kolt és" -, quanto de personagens estáveis e co nt ín uos ,
capazes de ter uma co nsc iência de si e d o mundo".
Para Abreu , a revalorizaçâo da dimensão narrativa seria fundamental para a rea-
proximação do teatro em relação ao público, que ter-s e-ia distanciado, em decorrência
da perda da capacidade do s criadores de falarem "a mesma lín gua" que os espectadores,
de veicularem "imagens extraídas de um ima ginário co m um ":" , A recup eraç ão dessa
capacidade, fazend o o teatro vo ltar a to car no que o dramaturgo chama de "imagin .i-
rio coletivo" e levando à superação dos "guetos com suas diminutas plat éias'P''podera
contribuir, na o pinião do dramaturgo, para a criação ou reconstituição de laços mai s
gerais entre as pessoas, laços de tip o comunitário ou nacional.
Penso qu e a defesa do aspecto narrativo, no texto da Revista O Percevejo, b z
Luiz Alberto Abreu confundir os traços formai s de um teatro narrativizado (a presença
de coros, narradores et c.) com algo que é distinto disso que é o eixo narrativo-dieg éti-
co (Iabular) do texto teatral, tenha esse texto um formato dramático mais fechado ou
rompa ele o caráter absoluto da ação, por meio da utilização de traços épico-líricos. De
fato, o que o dramaturgo, nos ensaios mencionados, está defendendo (talvez sem maior

2 .\ PAVIS, 1990, p. 65-87, 89- 1OS; PAVI S, Patri cc. Vás U Jl C tb éorie de la pratique tb é
âtrale: vo ix ct
image s de la sc ên c. Septentrion : Pr esses univcrsitaircs de Scptcntri on, 2000. p. 193-2 06 .
2. Luiz Albert o Abreu é autor de pe ças com o Foi bom , mCI( bems , Bel/a C iao, Li ma Barreto ao
terceiro dia e gl/Cl'ra santa dentre out ras, tend o diver sas vezes trabalhado co mo dramaturgo no
in ter ior de p ro jeto s d e ce rtos gr upos de t eatro co mo, po r exe m plo , o G rupo G alpão e Teatro
da Vert ige m .
2; ABREU, Luiz Albert o. A restauração da narrativa. O Percev ejo: Re vist a de Teatro, C rí t ica l'
Estética, Rio de Janeiro, ano 8, n. 9, p. 115-125, 2000.
21, ABREU, Luís Albert o . A personagem co ntemporânea: um a hip óte se. Sala Preta: R evista de
A rt es Cênicas, São Paul o , ano 1, n. I, P: 61- 68, 200 I.
D ABREU, 2000, p. 121.

2, ABREU, 2000, p. 121.

124 Jo, '. DA CmTA



>~ consciência desse fato) parece ser a retomada de det~rminados valores de caráter b<1s-
....~ ranre tradicional na história da arte e da literatura ocidentais, valores que tiver.m , u m ;:
p
";: configuração mais objetiva nos séculos XVIII e XIX e que dizem respeito a fU ll ~: i )(' s 1)(' .
1
dagógicas da ficção (narrativa ou dramática) e da lírica para a con strução de idcl)\J(Ltdcs
coletivas, das bases da nacionalidade e mesmo da formação do indivíduo burgu ês.
a
A ruptura da forma dramática pode levar a uma narrativização do teatro )lIais UII
men os problematizadora da noção de verdade, da realidade como algo estável e d ispn-
s
nível à apreensão cognoscitiva e à reconstituição pelo discurso narrativo. Luiz Alberro
a
e recorre de maneira nostálgica à complexa noção de intercâmbio de experiências extraída
r do conhecido ensaio de Walter Benjamin sobre o narrador". O que Benjamin dem ons-
trou foi a inviabilidade do que chama de transmissibilidade de experiências no co m .x: o
histórico em que se desenvolve o romance moderno. A ruptura é constatada como defi-
a
u nitiva dentro de um novo quadro sócio-histórico e cultural. O crítico alemão afirma que
n é a inviabilidade daquele intercâmbio de exp eriências que afasta radicalmente o ram al H .;
o como o conhecemos modernamente (gênero ligado fundamentalmente ao campo da
) vivência individual) do quadro das narrativas tradicionais, cuja função era precisamente
1-
promover as trocas capa zes de solidificar ou de reforçar os elos e valores coletivos.
IS
Luiz Alberto Abreu fala em "conteúdos narrativos ", para aludir tanto a aspecto s
l-
referenciais, quanto a traços formai s o u de gênero. Ma s o que realiza, no texto da Re-
I- vista O percevej o, é, em suma , a defesa de um teatro de conteúdos temáticos defini-
S,
dos e de significados comunicáveis, de um reforço do funcionamento co gnoscitivo ou
formativo e do caráter referen cial tradicional da arte teatral. A reflexão que o drama-
(

l-
tur go realiza no texto que publicou na Re vista Sala Preta a propósito do personagem,
Ia ainda que tenha relação com as questões qu e ele levanta so bre a narrativa no texto de
s, O Percevej o, parece mais concentrada e esp ecífica, enquanto no texto de O Percevejo
sa a discussão assume um teor meta-hist órico (ont ológico e axi ológico) sobre a na rrati-
a- va. D e fat o, o texto sobre o per sonagem tem carát er mais técnico-dramatúrgico (d e
ra análise de problemas sobre procedimentos composicionais) e se mostra mai s delimi-
tIS
tado, enquanto levantamento de questões so bre caminhos possíveis de cons t ruç ão do
pers onagem pel os au to res no contexto da contemporan eidade. Des se mod o, o te xto
1Z
se apresenta como a exposição das inquietações de um dramaturgo inserido em se u
ça tempo e não ganha ares de uma teorização su pra-histó rica e nostálgica no grau em que
[I-
isso ocorre no texto de O percevejo.
)U

)e
ar
Em outro diapasão, Mariân gela Al ves de Lima, e m pequeno arti go inclu-
ído em publicação do início dos anos 8030, po stula o u t r os hori zontes d e análi-
et se. Ela tenta, n esse trabalho , entender o de sapontament o que os críti cos e os
ao produtores teatrais pareciam sentir no momento da atenuação dos mecanism os
no repressivo s e da cen sura no final da década de 70. E sse de sapontamento, ampla-
:ro

ae
29 BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a ob ra de Ni colas Leskov. In: _ _ .._ .
de Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet , São Paulo: Brasiliense, 1987. p.
197-221. (O bras escolhidas, v. 1).
3DLIMA , Mariân gela Al ves de. O caos é muito grande. Rev ista Ensaio Teatro, Rio de J aneiro, p.
7-12, 1983.

T LATRO COS JL II/'OR.4M O: o S[ X n DO i» DL fl.4)[ 125


,
ment e referido (Ya n Michaski , Sábato Magaldi, Guzik e outros) , relacionava- se
à fru stração da ex pec tat iva de que , com o fim da vigê nc ia d o At o In stitu cional
- AI-S e com uma retomada (ainda que muito parcial) d e certa liberdade de
ex p ress ão na fase final da ditadura militar, vie ssem à lu z numerosos te xtos dra-
máticos construído s a partir de persp ectivas formais e políticas variada s, m as
t endo sempre uma capacidade de d ebat er as questões políti co-sociais ou de co r
responder aos ampl o s an seios de discu ssão acumulad os n o s anos anteri ores e
r eprimidos pel o poder ditatorial no Bra sil.
Ao tratar da s itu ação de certo s dramaturgos no s ano s 70 e início do s 80,
Yan Michaski cunhou a exp ressão premiados inéditos para se referir a autores
que eram reiteradam ent e premiado s em concursos de dramaturgia do extint o
Servi ço Nacional d e Teatro e que não eram encenado s (co m o Wil son Sayão ),
se ja porque a monta gem de seus textos era impedida pela censura, seja p orqu e
e le s n ão eram ab sorvido s pelo mercado t eat ral. Os diretores mais experi en t es
priorizavam outras temáticas, distintas das abordadas nas obras de ss es autores
premiados ou preferiam peças de mais fácil sucesso junto ao público. Já as eq u i-
pes m ais joven s estavam envolvidas em proc essos com o o s da criação col etiva e
s e m o stravam an siosa s p or falarem de seu cotidiano e das qu estões que surgiam
no seio da sua convivência art ística".
A expectativa de que o teatro rev elas se, com o fim da ditadura, a for ça de
uma dramaturgia at é então reprimida era alimentada, por um lado , pelo co n he -
cimento da enorme quantidade de peças que eram escritas e que reiteradament e
eram impedidas de se re m encenadas durant e o período mais duro da dit adura
militar. Por outro lad o , o aparecimento de aut ore s d e gran de vigo r no come ço
do período repressivo - co mo Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Consu elo d e
Cas tro, José Vicente, Ant ônio Bivar e o ut ros - levav a a c re r que a capacidad e
d e produ ção no ca m p o da dram aturgia t in ha tud o , um a ve z d esmant elad o s o s
m ecanismos da repressã o e da censura, para gerar um verdadeiro boom, qu e,
e n t ret ant o, nã o se verific ou na prática, quand o o ri gor do aparato autoritári o d a
ditadura come çou a se at enuar.
A análise que Mariângela Alves de Lima empreende começa por co locar em
questão o conceito de obra no teatro .

Autores e teóri cos pensam o texto dramático como alguma coisa a que a encenação
dá vida, reinterpreta e amplia. Entretanto, como obra do aut or, ele já está completo.
A encenação seria o afluent e dessa so bred ererrninaçã o".

Referindo-se ao período da ditadura e ao momento em que se en sej á a aber-


tura gradual da vida política, momento no interior do qual escre ve se u art igo da
Revista En saio Teatro, M ariân gela afirma ainda qu e:

Durante todos esses anos foi impossível para o dramatur go expressar com clareza as
opiniões e as deliberações de consciência sobre o que percebia. Agora é igualmente

31 MI CHALSKI, Yan. Uma categoria paradoxal: os premiados in édito s. Reuists Ensaio Teatro,
Rio de Janeiro, p. 21-3 0,1 983.
31 LIMA, 1983, p. 8.

126 [ osi DA C OSTA


difícil compreender- se dentro de um processo cu lt úral que deliberadamente rejeita a
auto rida de da consciê nc ia. Aparent ement e o co t id iano se encarrega de provar a de .
sim po rr ância d o di scurso para o rgan izar qualqu er form a de resist ência",

Mariângela aqui est á fazendo uma menção direta à sensação contemporânea de


impo ssibilidade (por m eio de narrativas ordenadas e causais) de sintet iza r-se o u de
.~

expli car-se (mesmo met aforicamente) a co m p lex ida de do mundo social e hist óri co
em qu e se vive". A sus te n tação de discurso s de ordenamento e de explicação pres-
supõ e, de fato, a existência de horizontes compartilhados como , por ex em plo, os d e
identidad e de classe ou de aversão ao au to ritarismo político. Co mo Mariãn gela ex-
plic a, os elos que eram favorecidos durante a ditadura tornavam viável a identificaç.io
do es pectado r com tod o tipo de personagem rebelde ou marginal, com todo tipo de
discurso metafórico da "lo ucura", selando uma espécie de pacto que envolvia drama-
turgo s, criado res da cena e rec eptores.
O qu e a aut ora indica é qu e, no novo co nt ex to dos anos 80 (co m o in ício da
dilui ção da imagem de um inimigo co m u m) , a au toridade da co ns ciênci a discursiva-
mente organizada, assim co m o o peso da voz au to ral (entendido o autor como sujeito
capaz d e expressar um se nt im ento colet ivo o u co m u nitário) perdem o alcan ce qu e
tiveram na cultu ra o u n o teatro br asileiro no s an os imediatam ente anteri ores. Ago ra,
nem o en gajam en to de per sonagens de p eças políticas do início do s an o s 60 e nem os
desbundados, lou co s ou m arginais qu e figuram em t extos afinados à contracultura o u
à t rop icália nos anos 70 dão conta de m obiliz ar o interesse da platéia. Interesse esse
qu e o teat ro, ent retanto, angario u ampl am ente em momento s ant erio res (em qu e J
imprensa estava calad a, a univer sidad e reprimida e todos os m eios d e comu ni ca ção
extre ma mente controlado s).
Pod em os, assim, dizer qu e, nesse contexto, foi bastante viável a conti n uida de
náo p ro blemá tica de certa concepção m oderna do es petác ulo teatral canonizada no
ocidente" . Conce pção ess a qu e compreende o esp etáculo como uma produção qu e
reúne art istas dist int o s, que se dispõem a faze r resso ar o discurso de uma obra deter-
min ad a escrit a po r um autor e co letiva mente ass imi lada pelo elenco e pelo s criadores
da ce na (cenógrafos, iluminad or es etc.), so b a lideran ça ou a regên cia d o ence nador.
Com efeito, o centram en to e a unificação do sen tido teatral, como projeto intencional
ou deliberado, dat am do início do teat ro m oderno e da afirm ação da encenação como
lingu agem artís tica, no final d o século X IX e nas primeiras décadas d o séc ulo XX. Po-
dem o s, com Ma riâng ela A lves de Lima, afirmar qu e o mesm o proje to de centramcnto
e de unificação do sentido foram a base da resistência no teatro b rasileiro dos ano s 60
e 70, ta n to da resistên cia in spirada por um pensamento mat eriali st a de esq ue rda (mais
dir et amente repr imi da) , quanto daqu ela d e caráte r co ntracultural (co nectada co m o que
1
J) LIMA, 1983, p. 9.
l4 M ariân gela não se refere a Je an -Franço is Lyo tard, m as sua reflexão t em ev iden tes po nto s
de co nexão co m o livro já clássico qu e Lyotard publica na Fra nça em 1979, pratica me nte no
me sm o momento em q ue a pesqu isadora es tava escreve ndo seu ensaio, produ zido em 1980.
e Lyo ta rd, como é sabido, d iscorre so bre o co ntexto cultural do pós- mode rnismo co mo sendo o
do naufrágio do qu e chama de as gra ndes me ta- na rr ativas da m odernid ade e d e sua auto ridade
para fo rn ece rem exp licaçõ es e ordenam en tos conceituais defi nit ivos sob re o real. LYü TARD ,
J ean- Fran ço is. O pos-modemo, R io de J aneiro : J. Olí m pio, 1986. 123 p.
" li Em um a orientaçã o realist a-n aturalist a (St an islavski, A n toi ne) ou co m in sp iração si mbo-
list a (Jacques Copeau ).

T L4 TRO r:ONIVIPOP.ANLO: o SLNJ'lJ)O [ li DEB.4TL 127


ficou co n hecido no Brasil co mo o tropic alismo e a margiIi.ália, que tamb ém sofreram os
constrang imento s da censura e do govern o militar).
Para concluir, gostaria ainda de reco rrer brevem ente a um texto em que Flora
Süssekind analisa o trab alho teatral de Gerald Thomas e o de Bia Lessa", destacando
em especial um modo complexo de figuração do tem po e uma ênfase na vo z narrativa
ou na inst ância organizadora do discurso cênico-dra matúrgico nos espetáculos dos dois
encenado res. Para a autora, um do s elementos mais sig nificativos na co ns trução das
peças de Bia Lessa e de G erald Thomas diz resp eito à co nvivência ou à interação
ent re tempos distintos na estrutur a de cada espe tác ulo. Exempl o de ssa im agem de
um t empo múltiplo ou bipartido é dad o pelas duas Elas, per son agen s d e The flash
and crasb days, de Th omas. A s dua s Elas foram interpretadas por atri z es bastant e
co nhecidas , qu e são mãe e filh a - Fernand a Montene gro e Fernanda Torres - e qu e
representavam ficcionalm ente as relações de poder e os conflitos ge rac ionais de
uma mãe e um a filha.
No qu e diz respeito à vo z narrativa - ou àquilo a que no título do ensaio
a auto ra designa co mo a "imaginaçã o monol ógica" -, o texto se ref er e aos vários
modos d e auto-represe ntação ficcionalizad ados dois enc enadores no interi or de
seus es pe tá culos. Um de sses modos de auto-r epresentação dos orga n iza do res do
discurso são as voz es of!, que podem ser ou não as dos pr óprios ence nado res (no
caso de Thomas a utili zação de sua vo z em of! é, como se sabe, freqüe n te) ref eren-
cialme n t e assoc iadas aos criadores das peças. As personagens também podem ser
mer as representações mais o u men os episódi cas e irônicas do sujeito en u nc iado r do
discurso teatral. É ne ssa condi ção que as duas Elas de The flash and crash days são
vis tas p ela ensaísta.
Esses mod os de auto-re prese ntação da voz o u da instâ ncia organ izad ora do
discu rso são submetidos, ent re tanto, a procedi mentos diversos de divisão (co mo é
o caso das du as Elas), de auto- iro nia e de desauto riz ação . Assim, a ên fase em um
su ieito do discur so qu e presid e, de algum mod o, ao qu e se vê e ao que se ouve no
espaço da cena, colabo ra, co nfo rme o raciocíni o da ensaísta, para ate n uaç ão par a-
doxal da unidade e da centralidade desse sujeito. Retira-se da voz qu alqu er função
de autolegitimação e de autori zação dos conteúdos discursivos possivelmente vei-
culados. De fato, pod emo s di zer a resp eito do s es pe táculos dos dois criadores qu e
tudo o que aparece neles e tudo que é dit o ali pod e ser igualmente verdadeiro ou
falso, pois se assoc ia a um sujeito qu e pode dizer indiferentemente a ve rdade ou a
men tira, es tar brincando ou falando sé rio, se m o fe recer nunca qu aisquer garantias
de legitimidade confiáveis.
O núcl eo reflexivo da leitura realizada por F lora Süsse kind constitui-se pelo tem a
da impo ssibilidade conte mporânea de reconstituição narr ativa segura do mundo co mo
objeto, tema que se associa ao da fragmentação do sujeito individual e de sua auto-

)(, SÜSS EKIND, Flora, A v oz e a série. Rio de Janeiro: Set rc Let ras; Belo H oriz onte: UFMG ,
19')8. 29 7 p. Publicado origina lmen te no mesm o núm ero da Revista da US P em qu e aparece r3.m
os ensaios de T ânia Brandão, Alberto G uzi k S ábato Magaldi e Sílvia Ferna nd es, ante rior mente
me ncio nados (SU SSEKIN D , Flora. A imaginação monol ógica, Revista da U5P, São Paulo , n.
14, p. 43-49, jun./ago. 1992) , o en saio de Flo ra passou a se r referência impo rta nte no s estudos
volt ado s para o teatro co ntemporâneo , co mo , por exem plo , os de Renato Co he n c de Luiz Fe r-
na ndo Ra mos , além da pr ópria Sílvia Fernan des. O texto apa rece ta mbém em Um en cenador de
51 mesmo: G erald Tbomns (F ERN A N D ES; G UI NS BU RG, 1996).

128 J O '1 UA C m TA
s imagem como fonte de um saber racionalmente sustent ado e sustentável. C reio que
por trás de várias das análises do teatro contemporâneo mais ou menos ce ll ir:! . L ~ · " fl
1 dicotomias hierarquizadoras co mo "teatro de texto" v ersus "teatro visual" OI } , : ' " I . . I, .
ator" v ersus "teatro da imagem" revelam-se as dificuldades de se confro ntar ; ' C ) l i " n
1 negação ou ânsia de retorno a um a estabilidade perdida) com o problema crl! c i~l l '1 11(' é
S o das derivas ou do nomadismo do sentido no teatro e na arte contempo r:II""! : ~'; l!'
S a necessidade dessa reflexão que aponta m certos posicionamentos como n ': ele F lora
) Süssekind e de outros dos críticos aqui comentados, a exemplo de Mariângela Alves de
e Lima, no seu texto do início dos anos 80.
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T EATRO CONJD!N)/a~ UJ: o 5EA'T1DO LlI IJElU IL 131


o T EATR O NA T ERC EIRA IDADE
}osé Luiz Ribeiro

A sociedad e co nte m po rânea, frag mentada e es pec ializada, gerou um novo seg-
m en to do faze r teat ral: o gru po da terceira idade. Apa rece ndo co mo uma faixa d e
co nsum idor ideal, esse segmen to enco nt ro u no teatro um m o tivo d e satisfação. No
o utono, as folh as cae m, po rém esta preparação para o inverno é um es tágio qu e, co m
o pa ssar das estações, apresenta u m m ovimento d e ete rno reto rn o. É justam ente nes-
se desprendimento qu e vamos encontrar, na t erceira idad e, a oportunidad e de um
reenc ontro co m desejo s íntimos.
Um a lar ga fa ixa de o pções é es te n d ida ao ant igo "ancião ". Um verdadeiro s u-
pe r mercado de p roduto s su rge esti m ulan do tan to as açõ es físicas co mo o s cui da do s
com a saúde, co m a hi giene co rpora l e m ental. Turmas esp ecia is de aul as d e da nça de
salão , grupo s de viagem, bingo s benefi ce nt es, o u não , curso s de atua lização e aula s
de co m putação lh es são ofe rec idos.
Per cebendo esse vigor, várias em p resas, de o lho na potencialidade eco nô m ica
dessa faixa de mercad o , começam a co n t rat ar ato res ido so s pa ra criar uma imagem
sim pá t ica de velh in hos incríveis qu e an un ciam viage ns, esp o rt es radicais, aco ns elham
plan o s de saúde m aravilh oso s e u ma infin idad e de produtos d irigi dos ao be m-es tar
d o id o so .
D entro dessa gam a de o fertas , o teatro se ap resenta como u m a at ivida de sau-
d ável qu e am plia a p o t e ncialidade d a qu alidad e d e vida, res ta u ra o fa zer da cida dania
e alimenta o cam po em o cional co m at ivida des físicas, ações e mo t ivas, desen vol vi-
ment o d a personalid ad e e exercício da m em ória. Assim, o preparo d o pro fissi onal
que se d edica ao trab alho com a terceira idade necessita d e juntar conhecimentos
cênicos , um certo last ro de sab er es e uma prát ica de valores humanos.

Por que fa zer teatro na terceira idade?

A. cada atividad e q ue se realiza bu sc and o o faz er teatral, é n ec essário um ma-


pe am en to do pú bl ico-alvo . Não ape na s levan d o em co nta a ida de , m as o nível so -
cioecon ôrnico, a p r o ced ência regional e o s h áb it o s de entre te n im ento . O lastro m e-
morial é de grande im portância para se defini r o b jeto s e obje t ivo s.
O teatr o p ar a a fa ixa de tercei ra idade t em uma força muito g ra nde no im a-
ginário da mem ó ria colet iva. A força d o rádi o e o mi to de ato res qu e pe rco rr iam

133
o interior em apresentações mambembes integram-se, à cultura popular. O s me-
lodramas apresentados como complemento de fun ções circen ses, acrescentam -se
também a esse patrimônio.
No interior, companhias itinerantes levavam atores com o Procópio Ferreira,
Dulcina, Henriette M orin eau , Jaime Costa, Rodolfo Mayer, dentre outros , para
apresentações que marcavam o evento dos jovens de outr ora. O teatro foi, para e SS:1
geração, um encontro com a emoção, com o riso e com histórias que caracteri za-
vam ou se acrescentavam ao universo cultural local do brasileiro.
Exist e, ainda, um resquício do teatro escolar. A glória de um talento abor-
tado pela vida fica reprimida como um sonho irrealizado. A recuperação de mo -
mento s felizes são os principais instrumentos que proporcionam , aos grupos de
terceira idade, o encontro de motivações para buscar no teatro um momento de
realização pessoal.
Muitos dos que procuram um grupo de apoio encontram aí uma forma de so-
ciabilização qu e supre carências afetivas, devolv e a segurança perdida e possibilita a
criação de novo círcul o de amizades. Recuperando a voz, abafada pelo cotidiano de
tarefas domésticas ou burocráti cas desenvolvidas m ecanicamente, eles bu scam, na
atividade teatral, uma forma de rever conceitos e assumir novas atitudes. A magia, o
jo go e o poder de tran sformação são caminhos a percorrer.

A identidade do grupo

O teatro é uma arte de contágio. Reali zando-se a partir da inclusão do s atores


num jo go em que a plat éia atu a como parceira, necessita de um preparo de inclu sâo
social para atingir seu s obj etivo s. O primeiro passo é o da identificação dos compo-
nen te s de um grupo. Esse princípio básico, qu e cara cteriza qualquer m etodolo gia
do la ze r teatral, é necessári o em gru pos diverso s, mas exige um cuidad o especial
quando se trata de um grupo de terceira idade.
Estabelecer parcerias é um bom passo para su a formaçã o , e isso vai ser fei to
através da fixação das re gra s do jogo. A construção do ator ativa o afl oram ento
das alteridades. Um grupo de t erceira idade po ssui muitas certezas e opiniõ es so-
lidificadas, e par a eliminar os conflitos deve-se aparar as arestas, evitar desenten-
dimentos ou incentivar a evasão de individualismos aflorados durante essa no va
experi ência de resgate identit ário. O encontro de motivações comuns estabelece
os objetivos para o mapeamento do gru p o.
O primeiro encont ro é cerimonioso. As apresentações tornam-se necessárias para
enfrentar os dois instintos básicos: o de platéia e o de representação. O jogo tem início
com um seminário de revelaçõe s pessoais. Cada participante, mostrando-se, torna-se
um ator de si mesmo, vivendo uma personalidade delineada pelos interditos e cuidado-
sament e dosada.
Nesse primeiro encontro é necessário perceber a divisão do s caracteres, das
posturas e da forma de exposição. É comum que pe sso as de terceira idade, ext re-
mamente tímidas, pr ocurem fazer parte de um grupo de teatro como forma de
vencer esse traço inc ômodo de personalidade. O t eatro é uma forma de dar vo z
a esses incluídos. Ma s o em ba te com outros membros, extrovertidos e falantes,
gera o primeiro estrem ec imento, mas também a fre sta do entendimento. Para se

134 [o st L UIl R , HU RO
equilibrar através dess as primeiras revelaçõe s, pa ssamos para o entro sam ento das
identidad es variadas.

Jogos de outono

o teatro é um ato de comunicação estéti ca e nature za lúdica. O jl ' l!," k h : ;,

libertar o homem de suas tensões cotidianas e isso acontece na repres entação. O


primeiro estágio para conseguir a integração do gru p o é deixar claro qu e a coletivi-
dade solidá ria é a principal regra de sse jogo. Não é difícil para uma pe ssoa madura
percorrer cam inhos de vo lt a através da remem oração. Para vencer a inibição dos
prim eiro s instantes, gerada pela postura de observador crítico, muitas ve ze s t íruido,
podem o s recorrer às apresentações protocolares.
O primeiro jogo se organi za quando o grupo se desper sonaliza para se contar
individualmente. Pedimos aos participantes qu e falem de si como se fo sse de l i , ' :
outro. Cont a-se, então, uma história na terceira pessoa. Ao elim inar o eu, transfor-
mad o em ele ou ela, inicia-se a narrativa de fato s co tid ianos .
A edição de uma vida , buscando fatos marcantes a partir do s in significantes,
permite uma dia gn ose de má scaras sociais. Rever a vida para o idoso é como percor-
rer o mito de Fau sto, um julgamento de perdas e dan o s. É recontar fato s encadea-
dos de forma emocionada, despertando ernpari as, risos e lágrimas.
O s primeiros encontros decantam as personalidades e manifestam comporta-
mento s. O grande impacto está, agora, na organi zação de uma comunidad e dotada
de massa crít ica. O jo go teatral terá grand e importância para formar essa co m u nida-
de, crian do objetivos qu e serão alcançados e difi culdades qu e serão ve n cidas .
A cada passo des sas apresentações distanciadas encontramos a qu ebra do gelo
inicial . Revelações sem pre geram interesse para uma comunidade qu e pretende t or-
nar- se um gru po teatral. C o n tar e recontar é u ma forma de ritualizar b on s e maus
momen to s.

Riso com muito siso

Um gru po que se reún e para fazer teatro na t erceira idade bu sca o prazer. Mas
a ale gria d e participar de um espetáculo inclui também um investimento n o método.
É importante que se trace uma linha de obj etivos a serem alcançados: que tipo d e C'i '
pet ácul o que se quer produzir, qual o trabalh o a ser des envolvido e a pot en cialidade
de cr escimento do elenco.
A éti ca será o principal caminho a percorrer. A disciplina dos encontros deve
ser mantida ferream ente e cada participante conscientizad o de que um gru p o qu e
se forma para fazer teatro de ve ter plena co nsc iên cia d e qu e, co mo n o s diz Piran-
dell o , em Seis personagens à procura de um autor, "o pa lco é um lugm' on de se brin ca
a sério '". A s normas de co m po rtame nto precisam t er linhas preestabelecidas quant o
à pontualidade e a assiduidade de cada participante.
Um do s grand es em p ecilhos para a ati vidade da terceira idade está no proces-
so de vitimização. C omo nos afirm a a sab ed oria popular, " O diabo é sábio porqu e
é velho" e por isso não podemo s nos esquecer de que existem alguns compona-

I PlRANDELLO, Luigi. Sei s persona gens à pro cu ra de IInI au tor. São Paulo: Abril, 1977. p. 134.

o I L lI RO ,vA 'JTRCr: R.4 lD.4Df 135


mentos qu e escamo te iam a verdad e diante do grupo. O idoso , por tradição social,
é encarregado pela família de cum prir tarefas "por amor": ficar co m os neto s ou
bu scá-los na escola; so mando -se a isso ainda tem a sé rie interminável de exames e
co nsu ltas m édicas nos horários do s ens aios .
H á qu e se exi gir o "arrebatam ento dos jogadores para se chegar à imaginação
criadora?', Ao integrar um grupo teatral, deve-se ter um co mpro misso com o "sa-
cro ofício" e doar-se de form a inte gral ao empreendimento: respeitar o in gresso n o
tempo míti co do teatro de fo rma o rto doxa. O jogo teatral tem suas regras e, pa ra
qu e aconteça, é preciso que sejam respeitadas. Cada participante será seu fiscal e de-
verá zelar para que a o rdem rein e soberana em bu sca da concretude dos objetivos.

Movimentos dialógicos

As ati vidades tribai s inclu em se mpre um rito. Um gru po deve, aos pou co s,
criar nos ri to s o fator de int egração. Para isso é importante notar qu e cada ind i-
víduo traz dentro de si um campo de expe riências vividas . Essa formação envo lve
um a filos ofia vivencial, caden ciada pela sociedade e pelo campo de aspiração q ue
dime nsiona carênc ias e son hos. Diante desses fatores, um grupo de te rceira
idad e bu sca acertar as contas co m a vida. A busca do lucro, depois de tantas pequ e-
nas perd as, é um in stru ment o de so brev ivência. O co n flito so cial, qu e alijo u o velho
do pod er familiar, elegeu nov as estratégias para recomposição do estar no mundo
de um grupo que se nega à imobilida de do s co nde nados à morte.
Assim , det ect ar os campos de experiência comum a cada participante importa
em criar um lastro não só para a vivência teatral , mas também para a pr eservação
identit ária das nações, possibilitando a pre sença da diversidade em co nvivênc ia com
o globa l. Ao estabe lecer tó picos para a discussão, pode- se criar um vasto arse nal
de remin iscências. O encadea me nto desta s mem ó rias vai desp ertar mo ment o s de
recuo temporal em que as lembranças atuam na esfe ra da mem óri a afetiva exorc i-
zando antigos recalqu es.
Buscar resp ostas em sent ime ntos vividos vai permitir o desenvolvim ento da
atuação dr am áti ca acordando a memória de emoção tão praticad a pela he rança do
Método Stan islavski. Reviver é viver de forma crítica, assim com o rever é ve r com
o utros olhos . N as raízes da es po ntane idade vamos enco n t rar um processo de ações
e reações qu e motivam o jogo dramático, conferindo certa "ve rdade cênica" ao t ra-
balho. Esse mod elo de repre sentação, que busca convencer a si mesm o de suas po-
te nc ialidades, é a primeira resp osta a se r procurada para uma atuação seg ura.

As ações corpóreas

A fisio log ia de um grupo de idos os é variável. Qualquer um qu e pret enda


faze r part e da at ividade teatral é movid o por um vigo r ad ol escente. Ao enco nt ra r
identificação, as rel ações to rn am-se afeti vas. Rapidamente passamos a deixar de
lado o protocolo par a, atr avés de ati vidades diri gidas, elim ina rmos co nceitos e pre-
conceitos .

H UIZINGA, J oh an. Homo L udens: o Jogo co mo elem ent o da cultura . São Paul o:
Perspectiva,1971. p. 20.

136 j ost L uIZ R IBEIRO


Recorrer aos folguedos populares é um bom princípio . Cirandas, cantigas de
trabalho ou modinhas são importantes p or dois motivos: o primeiro é o reencontro
com a infância, com as lembranças de brincadeiras infantis ; o segundo é a formaça. .
de um repert ório de atos vivid o s em pa ssado não muito próximo, mas que a sabe -
doria da natureza se encarrega d e privile giar na memória .
As rodas de energia são um bom começo para ven cer a barreira d o co nta to
físico . Iniciando com apenas d e mão e terminando com abraços calorosos, o gru p o
começa por se tocar, vencendo barreiras culturais e étnicas. A dinâmica do corpo é
importante para recuperar eixos e posturas.
O uso de música, aliado a exercícios respiratórios, pode permitir, no s jogos de
leveza, um momento d e descontração com balões que flutuam a um suave toque. A
busca do movimento e a harmonização do gesto podem ser conseguidas e utilizadas
como instrumentos para os jogos de integração.
O lúdico deve ser adotado. Mú sicas folcl óricas ou de raízes populares sáo,
então , utili zadas com o marcação rítmica em qu e as palmas criam a rela ção gr u p al,
atra vés da me cânica rítmica. D essas manifestaçõe s surge m risos pelos erro s com e-
tido s c estarem os preparados para o próximo passo: os ex ercícios de alongamento,
deslocamentos co m a utilização de relaxamento e tensão. C antar e se movimentar é
uma et apa importante para elaborar a planilha de atividades para a terceira idade.

Passos e compassos

A idade faz com que o ser human o perca, ao s pouco s, a intensidade d o exercí-
cio de seus sentidos. O treinamento da at enção é um princípio bá sico para a recupe-
ração de ssas ati vidad es. E como motivaçã o, o teat ro fornece muitos impul so s para
q ue as pessoa s recuper em, de forma lúdi ca, qualidades para uma boa atuaçã o: sab er
o uvir para melh or re sp onder.
A dança é o prim eiro pa sso do treinament o. Recordar o temp o em qu e dan çar
reproduzia normas coruportarnentais e n t re damas e caval eiros, em que a dança d e
salão era oruani zada em direcão às relac ôes pra zerosas d o lazer, sem as exivências
.....J J J b

perlorrn áticas imprimidas pel o s m odern o s cursos do gên ero, ond e o s pares se enla-
çam com a m at emática d os vo lte ios exibi cionista s, é uma tar efa di vertida.
Ao se tocar na dan ça, ao acenar os pass o s, temos o iníci o de uma atividade
corporal que se autorna tiza impulsionada pelo ritmo. A atenção passa a fazer pane
dos exercícios, c r iando espírito crítico diant e de acert o s e erros. A preocupação
com o s pas so s e a execu ção da s propostas co nsegue um aprimoram ento para futura s
execuçõe s de marcas coreográfica s.
Das lembranças d o s anti gos bail es, passamos a exercícios mais elaborados co m
jogos dramáti cos incentivando a atençã o rumo à execuçã o de coreografias gr u p ais.
Passos coreo grafados , o u criado s pelo gr upo, podem sofrer alterações e e n cad ea-
ment os geran do form as diferent es d e treinam ento.
Temo s, agora, um gru po que canta, dan ça e exe cut a marcas coreo gráficas.
Cada acerto é gra t ificado com a ale gria de ter vencido mai s uma etapa e se cad a
erro é mostrado como uma nova dificuldade a se r vencida, os acertos sã o vitórias
comemoradas e que imprimem se guranç a a cada participante e afirmação no grup o .
A integração se dá através da dinâmica co rpo ral.

o IL.H /(O .\ .; f [ RU I/<.·\ I/ JW / I37


Do cantar ao falar

A intercessão do teatro co m literatu ra co nfere ao texto uma im po rtânc ia do cu -


m ental. Se o texto é a sem ent e do espe tác ulo, sua inte rpretação é a fo rm a de torná - lo
vivo e próximo ao tempo em que vivemos. Di zer um texto co nfe re ao intérprete uma
respo ns abil idade que n ecessita de trein am ento e abert ur a dos po ros sensíveis.
Para o ator de terceira idade o co ntato co m a literatura se fez, mui tas vezes, no s
banco s da escola. Talvez ess a seja uma das grandes dificuldades par a quem se pr op õe a
fazer teatro na ter ceira idad e. É pr eciso dem onstrar, em primeiro lugar, qu e falar de cor é
fala r de coração. O rumor da língua envolve um a musicalidad e conferida pela retórica.
Durante mui to t empo, a decl amação po ssuía um man eirismo, co mo qu an -
d o o t eatro brasileiro , relembrando Ban deira, de "Recife", " macaqueava a si nta xe
lu s íada". Para o ato r de terc eira idade a d eclamação com trinados na vo z ainda é o
m odelo. A prim eira di fi culdade é ap ro ximar es te aspirante a ato r de um discurso
col oquial co ntem porâ neo. Tornar a fala natural, ma s sen sível e co lo rida, torn a-s e
o u tro desafio a ve ncer.
A in venção da dim en são sim bólica e a m us icalida de da ento nação to rna m -se
um bom m ote para o exercício nas leituras de m esa, com ent en dim ento prévio da s
in t enções das falas. D ep endendo d o nível de escolarida de d o gru p o, est a fas e deve
me recer cu idado es pecial. Partir da poesia líric a, interpretar cr ôni cas, passar por
contos e textos dial o gados são itinerári o s a pe rco rr er.
É n ecessári o criar um a no ção d o ritm o da frase em pro sa. Per ceber a pontu-
ação co mo sinalizaçã o de intençõe s, as pau sas respiratórias, busca r intençõe s nas
pala vras é saber usar sua fo rça. A mu sical idad e da fala pe rm ite t raçar imagen s n a
m ente d os especta dores. Entender, falar e co nve ncer são passo s par a que um ator
viab ilize a sua interpretação . Libertar-se da leitura mecâni ca, fixa e sem co lo rido é a
. .
m e t a a atingIr.

o drama do esquecimento
A qu estã o da m emori zação talve z seja o maior pe sadel o para um grupo de
t erceira idade qu e co meça a fazer teatro. A preo cupação com palavr as d eve ser, d e
im ediato, subs t ituída pel a lógica de ação, através d o exe rcíc io criat ivo de sucessão d e
im agens. A dispersão da at enç ão, gerada pela preocupação em rete r auto m aticame n -
t e o t exto, deve ser co m b at ida .
O h omem pen sa p or ima gens. As so ciá-Ias é um bom exercício para a m emo-
ri z ação das falas. Mas o m ais importante, q uando se t rata de um texto dialo gad o ,
é sa be r ouvir como personagem . Dividir cada réplica de ma ne ira minuci o sa e pro-
ce d er ao estudo da s intenções da per sonagem , aliad o à diagn o se do papel, poderá
faz er nascer gran de s discu ssões so bre o pro cedimento de cada pap el co nfo rme a
co nfig uração da personalidad e a ser re p rese nta da .
A fixação de pal avras- cha ve qu e determinam a ação pro po siti va de cada fa la
pode res ulta r em um a reel ab oração t extual. A palavra torna-se, en tão, marca par a o
treinamen to mn em õnico. A ab sorção da qu alifi caçã o com o primeiridade do signo
pod erá fornecer o des envo lvime nto orgân ico da int erpretação . Esse p rocedimen to
vai elimina r a fala dura, sem co lo rido e artificial.

138 j Ol l L UI Z R I H[f HO
Certamente o idioleto do ator é um fator de predomin ância quando trata-
mo s d e um grupo que pretende montar um es petáculo. As característ icas pesso -
.- ais devem ser aproveitadas no mom en to da distribuição d os pap éis, IlU S um 1> <" 1\
o exercício de aprimoramento é também a imitação, pel o s membro s do c l( 'II « ),
a dos idioletos gru pais mais marcant es. Nesse jogo de divertiment o, cria- se o di s-
tanciamento que, at ravé s do riso, possibilit a a improvi sação. A respo sta r:' I)i(!:J
IS e o estado de pr ontidão poderão levar um bom rendim en to ao desempenho d os
a atores e venc er problemas da mem ória.
é
o ator médium
}-

:e A criação da personagem no grupo de terceira idade passa por um processo de


o transferência de vivências. Um segundo momento é o de alertá-lo sobre a diferença
o entre palco e vida. Muitas vezes a escalaçâo do papel pode ser prejudicada pcl,) ! l. l f-
;e cisismo, que será vencido na medida em qu e.nasça a consci ência do fazer teatral.
Um ator r é-apresenta o mund o. Em alguns casos é mui to difí cil conven cer a
,e um iniciante de terceira idade de que o pap el que lhe foi atribuído não está lig:ldo :I
1S
sua vida pessoal. O co nvencimento de que teatro é um jogo é o primeiro estágio para
le vencer conflitos que perpassam os mais diversos grupos: o triunfo da vaidad e.
) r
O co nflito entre o real e o imaginário percorre a história do teatro desde que
Th éspis, o prim eiro ator, foi severam ente adv ertido por Sól on . Para o ator de terc ei-
u- ra idade, numa expe riência amadora , o ob jet ivo pessoal pod e superar a humildade
as necessária ao aprendizado e aprim orament o. Exist e um eleme nto que pcrt urh» .1
ordem espetacular: a existência da co mpetição originada dentro do pr ópri o ~',rll P (\ '
or Entretanto, a co mpetição natural, gerada pela vomade de participar, tem que ser
colocada como um princípio de afirmação da alteridade. Para que isso aconte ça é P1TI'is()
fortalecer o sentimento de grupo e isso se faz diante do resultad o final. A cumplicidade
é um fator primordial a ser desenvolvido num grupo que se propõ e a fazer teatro.
Viver a per sonagem não é ser a personagem. A consci ência de um ator em ser
médium sem, no entanto, perder o senso de representação nasce da utilização d e
de saber ouvir para melhor responder. Essa sint onia só se dá quando ele amadurec e sUJ
de criação. Esse passo é primordial num grupo maduro que procura ter vo z ativa numa
de at ividade artística. Ou vir para responder co m lógica a cada situação é fazer afllirar .1
n- denúncia cidadã na sensibilidade e canalizar a expressão da atu ação.

0-
A relação espetacular
lo,
·0-
A red e exp ress iva da polif onia teatral é um fato. Co n hece r as etapas da
~rá
estrutu ra de pr odu ção de um esp etácul o é respeitar o to do da cria ção artísti-
ca e não abast ardar qualquer fase de co m posição da men sagem es petacular. O
re sp ei to ao fazer t eatral deve se r de spertado no grupo par a assegu rar um bom
ala pr oduto fin al.
1 0
O mecanismo cênico move-se na instância grupal. A supe rpos ição das indi vi-
no dualidades sobre o objetivo do grup o pode gerar desgastes relacionais que têm que
lt O
ser resolvid os. Para isso, a clareza de objetivos, a solidariedad e do jogador e a gene-
rosidade da doação são propostas a serem exercitadas a cada dia, num compromisso
constant e com a renovação dos valore s da humanidade .

Ü/ L 1TR(J 8.1 T[I<CUR .I /I,,1/) 1: ) 39


Uma casa dividid a, não se sus t enta. A ssim, cada ponto de apoio deverá ser
co nt em plado, e o reconh ecimento da import ân cia de cada detalhe faz er part e do
projeto comum . Isso vai po ssibilitar ao at or melhor des empenho no palco e no
grup o . A percepção de que o cenári o, o figurino, a luz, a mú sica e a coreo grafia estão
a serviço de uma cau sa comum amplia a qualifi ca ção do ator e sua consci ência do
fenômen o t eatral.
Ao rec onhecer o univers o es pe tacular e id entificar sua importânci a, o ator
sab erá ente nd er que figurino é mai s d o que um a fantasia carn avalesca, qu e a cor uti-
lizada n em se m pre é a d e su a preferência ou a qu e mais lhe favore ça esteticamente
ma s, com ce rt eza, é a mais apropriada ao es pe tác u lo . Aumentando o conhecimento,
el iminamo s a fogueira da s vaidades .
O prazer da representação está no aro da transformação. As representações
revestem-se de maior autenticidade quando o at or se liberta do real para atingir o
universo dramático. O di stanciam ent o, at ravés d o cô m ico, subs titui a atração nar ci-
sist a pela ep ifan ia do at or su po rte e essê ncia da c riação dram áti ca.

Ritual de troca

Depoi s do treino, che ga a h ora do jo go. A c riação d o es petáculo culmina no


moment o mágico da apresentação. Dividir com um público es pecial o seu trabalho é
para este ator, também es pecial, qu e procura o teatro na terceira idade, um momen-
to de afirmação social e familiar. A o vencer a barreira que pare cia instransponível,
ao e lim ina r medos e tem ores chega à vitó ria fin al.
Se, co m o no s di z M c Luhan , "a função da arte na sociedade tribal não é orientar
a população pa ra a novidade, mas f undi -la com o cosmo " ', a int erli gação en t re o pal-
co e a platéia cria um ri to d e cel ebraçã o no qual se p enetra co mo numa experi ência
cat árt ica. Não existe nesta cel eb raçã o lugar par.1 ;1 ratio, apen as o path os triun fa,
através da co m unhão do s pertenc ent es .
Ob serva-se, então , o fenômen o da tran sfi guração, quand o filhos, esp osos e
es posas descobrem um art is ta em suas famílias. O público am igável deixa o es paço
da co nsc iê ncia crít ica para in gressar na co m un hão di onisíaca na qual , como no s fala
Stanislavs ki:

[...] muit os sentim ento s in comuni cáveis s u pe rco nsc ient es, invi sfve is, qu e
nem o equipamento fí sic o mai s perfeit o po d e transmit ir. São pa ssad os dire-
tam ent e de alm a para alma. A s pessoas co m un gam um as com as o u t ras por
mei o de corrent es interiores in visíveis , radi ações de se u espírito, compulsão
de s ua vontad e [.. T.

A g ran d e ca rac te ri z aç ão d o es pet ác ulo d e gr u pos d e t erceira id ad e es tá


n o seu públ ico. Esse es pec t ador t em co mo POnt o refer en ci al os la ço s afetivos.
É um público que não vai a pe nas ass is t ir a uma p eça teatral , vai re veren ciar um
en t e quer id o .

.1 McLUHAN, Marshall; WATSON, \Vilfrcd. Do clichê ao arquéti po. Rio de Jan eiro: Record,
1973. p. 208.
4 5TAN I5LAVSKI, Co nstanti no A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964. p. 102.

140 1 0 .\ [ L u z RI/' URO


Tud o isso ge ra um a co r re nte d e en erg ia po si ti va através da aten ção co m p ro -
metida. A es pera an siosa pela entrad a d o representante familiar na aprese n tari . . ,-
os apl au so s e ncantados a cada ce na , m arcam o tempo míti co da fes ta qu e se in ct , u I :
soberano na cas a d e espetác ulos .

Colhendo os frutos

Ei s o m omento de listar os b en ef ício s para o idoso qu e participa de um gru po


teatral. O primeiro d eles é a re st auração de envo lvime nto n u m rito so cial d ent ro d e
um a cul tura ca da ve z mais te cn o ló gica e di stanciad ora d o co nt ato hum an o. Q ua nt<J
maior a t ecnol ogia, maior a ne cess id ad e de magia. E o teatro fornece o círc ulo m.i-
gico on d e o se r se reest rutura num a ligação cos mogô n ica.
A rel ação social gera o resp eit o pela alt eridade e ness a cont rapart ida o au-
to conhe cim ento pa ssa a se r um p onto de d esbl o queament o de prec on ceit o " /".
visão d e m u ndo , se m se nt im ento de auto piedade, p roporciona mai o r se gura nç a
para e nfr enta r a realid ade. D es envol ve- se, a partir de e ntão, a co nsciê n c ia ci d adã
plena d e rei vindi caçõ es.
O ap ri mo ramento do di scurso permite o uso d e um a retó rica seg ura q ue dia-
loga e d efende ponto s de vista; a saúd e co rporal é b en eficiad a pelos p ro cedim ent os
de aqu ecim ento, po stura e rea val iação de poten cialidades ; a saúde mental d esen vol-
ve-se com treinamento s d e atenção e memori zação; a sensib ilidade ampli a- se com
uma visão m ais acurad a do mund o se ns o rial. A real id ade pa ssa a ser vis ta d e m an eira
mais racional : aprendem- se es t ra tégias co m u nicati va s qu e permitem ab ord agen s d e
novas políticas so ciais, cult urais e ed ucac iona is.
E, por fim, enc ont ra mos um p ro cesso de reab asteci m ento da sens ib ilid ade
e da organi za ção psicol ó gica diant e d o mund o. Co m o num in cêndio na flore sta.
em q ue os animai s fo gem ju ntos em b usc a d e p reservação , o s ido so s se jun tam
num m un d o ju venili zad o pela soc ieda de de co nsu m o , mas m ant êm su a id entidade
através va lo res pres er vad o s, mas re n ovad o s. A d ecantação d o co t idian o reorganiza a
tribo e a afirma ção de identid ade adq u irida pelo s a to res d a te rce ira idade é p rova da
exis tê ncia da q ue les que se recusam a ca pitular e se rein ventarn co m nova m áscara .

Conclusão: a arte de empinar pipas

O profissio nal que se destin ar a d esenvolver um trabalh o teatral co m u m gru po


de terceira id ade deverá, antes d e tudo, saber empinar pipas. Saber medir a fo rça do
vent o, pu xar a linha em pequen o s arrancos e liberar, co m seguran ça, para qu e a pipa voe
mais alto.
U m g r u po de terceira id ade, ao co nt rár io d e um gru po jove m , o rg an iz a-s e
co m u m p assa do e u m cam po d e as piraç õ es p rópri o. Ao buscar uma at ivid ad e artís-
tica em qu e o supo rte é o h om em, o aspiran te a ato r te m dese jo s recônd it o s d e re-
encon tra r um so nho int er d ita do , viver uma exp eriên cia juveni l o u rumar e m di reção
a um m und o m ágico desconhecid o q ue o atrai.
E xi ge-s e do co nduto r de st a trib o uma gran d e do se d e paciência, carism a e
senso an alítico capaz de criar novas es trat égias di ante de n o vas propostas. A carên-
cia que en vo lve o ido so o faz buscar um o uvinte ate nto e alguém qu e lh e de d iq ue
ate nção e afe ti vida d e. Po rém , é im p ortant e per ceber qu e o avan ço da hu m a n id ade se

on URO NA ILR( [J}(., t o srn: 141


faz diante de novos desafios. Assim, seria interessante notar que só o temor cons-
trói. Ele modifica o ser humano, cria novas estratégias e engendra novas soluções
para velhos problemas.
Existe em grupos de idosos um comportamento juvenil. Há necessidade do
riso, da festa e, em especial, a carência de comemorações de datas festivas. As cele-
brações rituais com pequenas lembranças, atividades de entretenimento, demons-
trações de afeto fazem parte de qualquer grupo humano, mas em se tratando de um
grupo que faz teatro isso é marcante.
O teatro é um instrumento de transformação social que permite, a quem o
pratica, uma revisão constante de sua natureza e uma visão renovadora do mundo.
Para quem se prepara para viver grandes emoções, ainda que tardiamente, o teatro é
o portal do prazer, da festa e da alegria.

142 .I()\[ Lu? RI/:UR()


REFERÊNCIAS

HUIZINGA, Johan. H omo Ludens: o Jogo como elemento da cultura. São l'a,J! () :
Perspectiva,1971.

McLUHAN, Marsh al]; WATSON, Wilfred. D o clichêao arquétipo. Rio deJaneiro: ReCt '!o.
1973.

o PlRANDELLO, Luigi. Seis personagens à procura de um autor. São Paulo: Abril, 1977.
J.
é SOEIRO, Alfredo Co rreia. O instinto de platéia. Pano: Edições Afrontamento, 1990.

STANISLAVSKI, Constantino A preparação do ator. Rio de Jan eiro: Civilização Brasileira,


1964.

o /LllR O S'< URUIR1 !D.WL 143

I
D A APROPRIAÇÃO ESTÉTICA DAS ANOMA LIAS

José TO'1 e; .·/

Refletir so bre o ~nsino do teatro e a formação do ato r já se apresenta comument e


como algo de extrema complexidade. O que dizer ent ão sobre as condições dadas para
esse debate num regim e de exceção, com o é o caso de ato res ou candidatos a ato res que
aprese nte m algum tipo de disfunções, sejam elas de caráter físico, sensitivo ou neurológi-
co ? Ass im, cumpre esclarecer que, embora o present e estudo tenha por objeto o trabalho
cênic o envolvendo anomalias, o envolvim ento deve ocorrer no âmbito da com petência
estética, daí a imp ortân cia de que a abo rdagem não considere projeto s necessariamente
conceb idos para deficient es ou que tenham como premissa a participação deles.
Q uando se dest aca o termo apropriação estética se quer significar o apl'ssar-se
das di sfun ções pelo fazer artíst ico, de ma ne ira a adequá- las e to rna r a elas o u :lO S
seus sint o mas instrum en tos para o exercício e a experiênc ia estét ica, no CJ\ O , da
ar te d o teatro. Assim, dife renteme nte de um cará te r te rapê ut ico o u p Cd J ~ ( ~ ~> d , (.
en sejo é pensar o p ro cedimen to artíst ico qu e d esco ns idere poss íveis an orma lidade s
como empecilho ou impedimento mas, ao co n t rário, perceba-os com o ma téria d e
efetiva criação e expe riê ncia est ética, sendo correto afirm ar q ue se tL1 L1 d e um.i
abo rdage m so bre a ace pção cênica das d isfun çõ es. Mes mo assim, na parte final do
texto, tent a-se um a referência mais es pecífica ao ensi no teatral nesse âmbito.
D e início, vale u ma b reve alusão à p rópria evo lução da cena o co rrida no :; (~ C U ­
lo XX, quando o espetáculo teat ral passa a se r ti do cada ve z ma is co mo um o bjeto
distinto e ind ep endente do texto dramático. Es te, em gera l valo rizava a compo sição
de per son agens previamente conce bid as, qu ase semp re requ er endo e estimu lando
o trabalho de atores co m biotipos sem elhan tes . As exceções ficavam po r co nt a de
even tuais perso nagens exó ticos ou est ereo tipados, levado s à cena pel a cam uflagem
co rporal e pela maqu iagem d esses mes mos ato re s. O que se pode afir mar é q ue, até
en tão, as ano ma lias eram vistas co m u me n te co mo bizar rices, ad mitidas ape nas no
seio de det erminad o s espetáculos e at ivida des de ent reten ime nto, com o o circo,
onde eram aprec iada s co mo objeto de curiosidade.
Com a au ton o m ia da cena em relação ao texto, novos pro cedimento s co-
meç am a ser percebi do s, dentre os quais, um a criação co m b ase na din âmica e nas
característ icas corporais do artist a. Es sa transfo rmação se dá de form a grad ual c se
mo stra mui to mais como estratégia n ecessária à sobrevivê ncia e evol ução de am -
bos, texto e ce na, da ndo co nta de uma nova rea lidade que parece im po r-se ao pa pe l

145
desempenhado pelo próprio teatro. O desafi o começa na co mplexidade cada vez
maior co m qu e o m undo e a vida modern a passam a se apresenta r e, ao s )1(11lC O<;,
mesm o o s me canism os de um drama ab solu to calc ado em qu estões intersllhjclivas
d o s personagen s não darão co nta das int ricad as rela çõe s sociais modernas.
O aparecimento da perjorma nce ou body art, em princípi o restrita às art es plás-
t icas, log o influenciará nas diver sas outras formas de expre ssão, dentre as quais ()
teatro. Sur gida com o re sultado de manifestações artísticas ocorridas desd e o final
d os novecentos, a perjormance terá imp ortân cia capital para a incorporação cênica
das ano malias, já que nela são enfatizadas just am ente a efem eridade e a falta de aca-
bam ento da produção. Novas alternativas serão simbo licamente det onadas e inéditas
per sp ectivas serão abertas para a concepção d o corpo como mat éria signific.llJ tc, o
que altera e desestabiliza as relações até ent ão perenes ent re a obra e o observad or:

O processo comu ni cac io na l a nível co rpo ral inclu i pre ssuposto s - os có d ig()s cultu -
rais co mpart ilhados - e seu valo r ilocur ório se este ndeal ém da zo na de co nsciência
do recep tor: afet a núcleos profundos, so b ret u d o no caso de experiên cias trau máti cas
co mo as amputações o u a presen ça de co rpos ma rca do s, tatu ad os, fer idos ' .

O conceito ganha novos contornos e acaba incorporado por áre as diversas.


Para o sociólogo Er vin g Coffma rr', perjorm an ce é toda ativid ade desen vol vida por
um particip an te em dad a oc asião qu e sirva par a influenciar de algum a m aneira ou-
tros pa rt icipantes . Interessando-se pela est ru t ura da experiência individual em to -
do s os mom en to s da vida social, ele ampliaria ao extrem o a con cep ção par a o termo
ator, ass im den o minand o todo e qu alqu er ind ivíduo a desempenh ar "papé is/p erso-
nag en s" qu e seguem um a trama pr eviam ente es tabe lecida.
A partir dessa premi ssa, passa a ser poss ível perceber o elem ento perf ormáti co
num a sim ples int erven ção pública de algo inu sitad o , o que incute o status de pc/for-
m er so b ret udo àqueles ind ivídu o s qu e apresent em co ndições alteradas d e expre ssão
o u co m port amento. Pode- se afirmar, inclusive, que as cond ições pr é-e stab elecidas
de apar ên cia o u cond u ta q ue o alçam do mei o co mu m favore cem no indi vídu o for a
de padrão a criação de um est ado de surpresa , muit as vezes só alcanç ável pelo ator
não deficiente através de um efe tivo trabalh o de preparação. E é justam ente o qu e
se d en ota como sur preen den te qu e, na perjovm ance, normalm ente at rai o inter esse
e a co nseqüent e ate nção do espectado r:

[...] in o rder to attra ct an d direct th e spect at o r 's attent io n , th e performa nce mu st


fir st man age to surp rise o r amaze; th at is, th e p erfo rm an ce must put im o effecl dis-
rupt ive o r rnan ipulat ive st rategies wh ich will un settle the spe crat o rs exp ecta tio n -
b oth short and lon g t errn - and, in p art icul ar, her/his pe rc eptive habits'.

I GLUS BERG , Jor ge. A arte da perjormancc. São Paulo : Perspectiva, 2003. p. 98 .
2 G OFFM AN , Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 191-217.
; D E MA RINIS, Mario. Dramaturgy of th e Spect ato r, The Tbeatre D rama R euieto , N ew York, v.
.i l , n. 2 (T 114), p. 100-114, Surnmer, 1987. Tradução nos sa. " [...] a fim de atr air e d irigir a atenção
do espectado r, a performance deve ant es conseguir surpreender ou asso mbrar; isto é, a p erforman-
ce deve fazer uso de estratégias m an tpuladoras 0/1 destruidoras de mane ira a pert urba r a expe ctat iva
do espec tado r - ambas a curto e lo ngo prazo - e, em parti cular, a sua percepção habitu al".

146 [ os: To -ar»


Portanto, as reações e comportamentos previsíveis, inesperados ou mesmo
inoportunos que as chamadas disfunções e distúrbios do corpo e da mente ocasio-
nam passam a mostrar-se como fatores que, se eficientemente trabalhados, Sl'C10
capazes de mobilizar a assistência e mover o exercício da cena. Isso faz com lJUC
diretores e dramaturgos se apercebam cada vez mais das anomalias, para extrair-lhes
o que de mais performático eles possam ter.
A apropriação estética das condições e particularidades, em si, decorrentes
das disfunções que acometem o indivíduo, poderá se dar tanto por parte dele pró-
prio como ser ocasionada e estimulada por quem o orienta ou o dirige cenicamente.
Ambos os casos, no entanto, estariam invariavelmente vinculados a uma experiência
vivida e compartilhada, pressupondo uma relação de mútua confiabilidade, em que
o sujeito esteja inserido num contexto de significação. Fala-se, então, em compe-
tência poética para a constituição da cena quando se mune tais pessoas de condições
mínimas para que atuem e se desenvolvam. E isto, a partir de um maior ou I1hIH)j
conhecimento e apropriação dos elementos que 'compreendem a composição e a
estru turação dramática.

A experiência de Robert Wilson

Sem dúvida, diversas iniciativas poderiam ser citadas no que tange ao uso cê-
nico das disfunções, algumas até bem mais recentes, mas o processo de criação
desenvolvido por Robert Wilson, sobretudo em seus trabalhos iniciais como dire-
tor, permanece emblemático. É o que acaba, efetivamente, por determinar a própria
trajetória de sua arte e abre um novo campo de visão para o teatro ocidental con-
temporâneo.
Atuando, na juventude, como arquiteto e interior designer, além de pintor,
~vilson terá boa parte de sua obra no teatro realizada a partir do contato e u)ope-
ração com dois artistas deficientes: os meninos Raymond Andrews e Cristopher
Knowles. Coincidentemente, as dificuldades de ambos incidem sobre a liT';;uJ-
gem, já que o primeiro é surdo-mudo e o segundo, autista. E é justamente isto que
chamaria a atenção do diretor, que vê nessas características a chance de exploração
de novas possibilidades de expressão.
Na verdade, ele havia participado de trabalhos dessa natureza já na universida-
de onde, sob orientação da bailarina Byrd Hoffman, desenvolvia atividades teatrais
com crianças cérebro-lesadas. Esse contato, ao que parece, além de ajudá-lo a supe-
rar um problema de fala de infância, permitiu-lhe o acesso a uma série de exercícios
por ela criados com base nos primeiros estágios da atividade física, cujo intuito
seria ativar determinadas células cerebrais daquelas crianças. Neste sentido, Galizia
é enfático: "O contato de Wilson com a Sra. Hoffman estimulou seu interesse por
terapia com surdos, retardados, autistas, senis e deficientes; porém, mais do que
isso, abriu para ele as portas de uma nova visão das artes teatrais?".
Assim, uma das maiores características de Wilson será justamente sua visão
não autoritária do processo criativo. Ao buscar uma forma de acesso ao universo
pessoal e ao imaginário, ele está muito mais interessado em aproveitar a expressão

4 GALIZIA, Luiz Roberto. Os pmcessos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 1986.
p. XXI-XXII.

DA APROPRIAC40 EsTÉneA DAS ANOJlALlA\ 147


de cada indivíduo de maneira particular. Ao contrário de um processo tradicional de
criação, em que uma n ova estrutura de lin gua gem é normalmente aprendida, o seu
pelformer deve na verdade familiarizar-se e aprofundar o seu próprio vocabulário.
Em N ova Iorqu e, ele forma e dirige uma companhia que denomina Byrd Ho-
ffman School of Byrds, numa homenagem a sua antiga professora. Todos, exceto um
d os integrantes do grupo, eram amadores sendo que alguns, inclusive, foram tira-
dos da rua por Wilson. O trabalho deles, conseqüentemente, era livre de modelos
pré-estabelecidos, apresentando modos de comportamento e tipos de fala bastante
distintos entre si. Nos workshops experim entais que realiza com o grupo, o diretor
estimulava-os a uma criação sem preconcepções estéticas, evitando trabalhar nos mol-
de s do teatro convencional.
Sem dúvida, a colaboração com artistas amadores, diversos deles tidos como de-
ficient es sen sorial ou intelectualmente, será um do s meios mais bem sucedidos utiliza-
dos por Wilson em sua busca por uma expressão que se pode diz er idiossincrática. O
primeiro del es a contribuir para o seu teatro foi o pintor Raymond Andrews, menino
surdo e sem fala que, até conhecer Robert Wilson, nunca havia ido à escola. Excluído
do mundo e de suas conseqüentes idéia s e normas, Andrews desenvolveu uma genuína
e rica vida interior:

H e was not o nly an accomplished visu al arrisr , posses sin g an ex trao rd ina ry sens e of
co lo ur and spacial cornposiri on, hi s paint ings als o provided Wil son with an enrirely
o riginal iconography, a network of ima ges that wa s unique to his imagination' ,

O principal fruto de sta co operação será o es pe tácu lo "O o lhar do surdo'", que
durava três horas, contava com cerca de cem atores e apresentava cenários gigantescos.
Era excepcional não apenas por sua grandiosidad e e pelas imagens criadas, mas, so bre-
tudo, pela aparente ausência de ló gica, cu jo sent ido era inacessível ao público. Base ando-
se em grande parte no s des enhos e visões de Andrews, que também aparecia em cena,
eram trazid as à cena imagens oníricas e figura s tão diversas quanto belas e desconexas,
co m o anões, ossos e animais diversos. Essa multiplicidade de so ns e forma s era , na
verdade, refl exo do mundo e das referências internas de seu s criadores, não comparti-
lháveis culturalmente.
Re curso s como moviment o s em câmera lenta, atividades sim ult ân eas e repeti-
ção foram gradat ivam ent e tornando-se uma marca do trabalho de Wilson no teatro.
É nos limites do dizer que Bob Wil son produzirá, nesse período, espetáculos em
qu e a palavra será minimamente utilizada, passando as ima gen s e as atividades não-
verbai s a impor-se sem, n o entanto, significar algo específico e pré-det erminado,
mas, ao contrário, abrindo possibilidades diversas de significação - ou não. Isto, é
cert o, em pres ta um se n t ido poliss êrnico à cena, poi s qu e a po ssibilidade do múlti-
pl o, ba se da polissemia, se co ns t itu i justamente pela in co mplet ude.

iC O U NSELL, Co lin. Signs ofpClf ormance: an intro duct io n to twenticth-century theatre. Lon-
don: Romled ge, 1996. p. 182. Tradu ção nossa. "Ele era não ap en as um talentoso artista visual,
possuindo um extraordinário sent ido de cor e composição espacial, suas pinturas muniram Wil-
son com uma icon ografia inteiramente ori ginal, um sistema de imagen s que era extraordinário
para sua ima ginação."
& DEAFMAN glance. Criaç ão e dir eção de Robert Wilson . New York: Byrd H offman Founda-

tion, 1970.

148 J OSÉ T O \ T7.l 1


Entretanto, a partir de sua colaboração com Christopher Knowl es, ini ciad a
em 1973, a palavra passa a ocupar um espaço cada vez mai or na obra do diret or
norte-am ericano. Buscando um resultado cênico, Wilson tentará de scobrir qual
estrutura de lin guagem era capaz de permitir a Kn owles, um menin o considerado
auti st a, ex p ress ar-se. Percebe então que sua habilidade no manej o da palavra era de
ordem matemática:

o bo m da poesia de Christ opher é qu e se tr ata de mat em ática e geo metria, mas tem a ver com
image ns poéticas. H á um sent ido de construção e mat em ática no mod o com qu e as co isas se
junt am . Essa é a sua maneira de pen sar: Chris tem qu ase um a obsessão por o rdem",

A ssim, o material ve rbal utilizado em algumas de sua s performances com


Knowl es ba seia-se, sobretudo, nas estruturas lin güísticas geométricas por e le de-
senvo lvidas, em qu e fragm entos de uma pala vra p od em se r ditos mui to depressa e
rep etid o s d e maneira normal ou de trás para fr ent e, o qu e acaba por cri ar um padrão
visual na mente daquele que ouve:

In u sin g lan gu age in an t i-sens ica l ways - b reaki ng th e u su al t ies bet w een a sou n d/
image and its meanin g, or between o ne word and th o se which follow it gra ru rna ti-
ca lly - Kn owl es and Wil son elude rh e to rmulati on s o f th e exterior scree n . In doi ng
so , h o wever, they reduce w ord to raw ph on eti c O I' visua l material w h ic h ca n then
b e u sed to cr eat e patt ern s of a differ enr kind . Kn o wl es a nd Wil son d o n or s t r u ct ure
t heir wo rds tO ge nerate n ew meanin gs; rat her, t h ev st ri p words of th eir us ua l mea-
n in g in order to bu ild n ew st ructures.?"

A fim de estimular criativam en te Knowlcs, levand o- o a tr avar co ns igo um diálo-


go co m posto de jogos verbais, Wilson fará uso de um pro cedim ento qu e se rep et e em
diversas das periormances qu e criaram. O recurso seria a evoca ção de estágios primários
do relacionamento entre eles, como se a reativação daqu eles momento s bem -su cedidos
de co m unicação pud esse funcionar como meio de ab ertura para novas possibilidad es de
interação e de criação. Assim, na peça lon gam ente intitulada "U m homem lou co, um
gigante louco, Um cachorro louco, uma ur gência louca, um ro sto louco", estreada em
maio de 1974, a frase "Emily Iikes th e TV ", por exem plo, excerto de um diálo go gravado
ocorrido entre amb os, servirá como estímulo à improvisação de Knowles, gerando frag-
mentos de fras e, fonemas e sons diversos e rep etitivos, co mo explica \X!ilson:

Qu and o di zem o s uma palavra há mu ita s o u t ras co isas aco ntece n do. N o segu n do que
util iz am o s para di zer essa palavra mui to s o u tros p en sam en to s já passaram por n ossas
m entes: pu d emo s ex pe ri me nta r at ravés do s o ut ro s se nti dos, muitas o u t ras co isas . Eu

7 DE LA FALAISE, M. Einstein at the mct (an o pcrat ic int cr view) . Feb. 1977. Int crvi ew, Di sp o-
nível em: < http: / / ww\\..rob ertwil son. com > . Acesso em: 19 jul. 2008.
x COUNSE LL, 1996, p. 192, tradu ção nossa. " Usa ndo a linguagem de ma ne ira ant i-se nsitiva-
rompe ndo os laços habituais ent re um so m/ image m e o se u sign ificado, ou ent re uma Palavra e o
qu e a co rnp lemc nta gramat icalm ente, Kn owlcs e \V'ilson tran scendem as formul ações d o mundo
exte rio r. Ent re ta n to , ao fazer isso eles redu zem a palavr a a um material fon ético o u visua l bruto,
que então po de se r usado para criar padrões de difer ent es tipos. Kn owles e Wilson não es tru tu -
ram suas palavr as de mod o a gerar nov o s significados; par a além dist o, eles desp oj am as palavras
do seu significado habitual para co ns t ru ir no vas es t rutu ras ."

D.' .'PROPRJ" Ç-'O E1TiTlU DAS .,.vO.IJA LH ' 149


queria sabe r como poderia tran scr ever todas essas outras coisa s que se passam , ao
mesmo tempo, para o som das palavras. Parecia-me que muitas das coisas qu e Ch ris
estava faze ndo relacionavam-se dir etament e com o que ele estava vivenciand o''.

Acreditando que há, na linguagem, uma espécie de energia, um elemen to qu e


precede o significado tornando possível a comunicação, \'\1ilson observa sem e lh an -
tes reações entre Knowle s e Andrews, percebendo que antes de aprenderm o s o
significado d e uma palavra, nós re spondemos ao seu som. Conclui que algo muit o
básico e universal existe na linguagem, tornando-a possível de ser compreendida em
qualquer lu gar. Para ele, a comunicação pode perfeitamente ocorrer nesse ní ve l e o
t eatro pode ser a instância privilegiada para ess e processo .

Conclusão

Ampliando- se a di scu ssão para o âm bito do ensino t eatral e da formaçã o d o


ator, é preciso entender qu e num re gime de exceção, como é o caso, o assunto se
torna tão importante quanto difícil. Vale, porém, a lembrança d e que a art e do ator
quase se m p re se colocou à margem d o que se convencionou chamar "mainstream "
vi gente. Num pa ssado não tã o distante, eram comuns as intervenções da I greja o u
d e autoridad es civi s que impediam as trupes teatrais de se instalar por muito t empo
numa mesma cidade. Isso para não falar do tratamento em geral dado à cate goria,
cla ssifi cada no me smo rol de atividades tidas co mo impuras, ilícitas e im orais. D ono
d e um mod o d e vida peculiar e normalm ente muito diferente da mai oria d o s se us
contemporân eo s, o ator acabava excl u ído , fo sse por inveja , rejei ção ou repro vação,
tid o como um herético aos olhos dos se us contemporâneos . E ainda qu e o seu
es tat uto soc ial tenha se m odificado e ele já não seja banido co mo oco rr ia no séc u lo
X V lI , o co med ian te gan ha um a no va co n fo rm id ade :

II est un marginal de socier é globale et n éanmoins mernbre d'un e cornrnunau t é réellc


[... ] A quelqu es exceptions pr ês, il est en rupture avec so n milieu d'ori gine. N on
seulemenr la precarit é financie re de l'avenir effraic la famill e, mais le 'deso rdre' de
moeur s, co nsé quence de la profession est enco re plus inqui étant. Les pr éjugés more-
ax à l' égard des jeune s gens et des jeun es filies qui cho isissenr une 'vie libr e' persitent
aujo urd' hui sans que l'Eglise ait besoin d'excommunier".

É essa tradicional condição qu e lh e foi de stinada pela so ciedade qu e perm it e ao


teatro mostrar-s e como um fértil reduto para a preservação e exercício da s diferença s.
Isso , no en tanto, não exime os seus p rofi ssionais de preconceitos o u d e desinforma-
ção qu and o o ass u n to é a di fer en ça no se n tido da s limitaçõ es impo stas por di sfun çõ es
e distúrbios d o corpo e da mente.

~ GALIZIA, 1986, p. 79.


IC MO UNI ER, Cat he rine. D even ir comédien. Les Vaies de la Création Tbéatrale, Paris, n. 9,
p. 17, 1983. Tradução nossa. «É um marginal da sociedade global e, contudo, membro de uma
sociedade real. [...] Salvo exceções, ele está sempre em ruptura com o seu meio de origem. N ão
apenas a precariedade financeira do futur o assusta a família , mas a desordem dos costu mes,
conseqüência da profissão, é ainda inquietant e. Os prejuízos morais com respeito aos jovens
que escolheram uma 'vida livre' persistem ainda hoje, sem que a Igreja tenha a necessidade de
excornung á-los.»

150 jo« T O NU 7.1


Neste sentido, bastante útil e esclareced or é o conceito implementado pela Or-
o
15
ganização Mundial da Saúde (O MS), qu e conceitua distintamente as defici t llci:l', .,,:
incapacidades e os impedimentos, comumente tidos so b um único enr cn d i.u .u .o
Segundo esse critério , uma situação pode dec orrer em out ra e em ordens diJn (')ll(,\ ,
re Uma deficiên cia visual profunda e precoce, por exempl o, d ecorrerá em ce rta s in ca-
1-
pacidades, dentre as quai s a de identificar à distância a forma e a dimens ão das (', I) " .1'. ,
o o que por sua vez acarreta como desvantagem a restrição de trânsito do indivíduo
o pelo mundo e o seu impedim ento na reali zação de determinadas tarefas. Num sent i-
11
do inverso, algumas desvantagens o u impedim ent os (a miséria, por exemplo) podem
O
decorrer em incapacidades (a de domíni o da expressão sim bólica e manipul acao dt)
pensamento hipotético) que, por sua vez, podem levar um observador men os .ncn to
de testes a concluir por certa «deficiên cia» das funç ões cog n itivas do indi vídu o.
A partir des sa percepção, tem se buscado reduzir ou re mediar as incapacula
des com base nas capacidades da pessoa: " Isso impli ca transformar o olhar d irigid, '
em sua dir eção: não se trata mai s ape nas de determinar seu s limites e sim, além
se diss o, de res saltar aquilo de que de fato é capa z"!'. Portanto, quando se fala em
) r limitação pode se es tar falando também em potencialidades e alt ernativas, se n do a
questão muito mai s de atitude diante do fato do qu e uma simples concessã o .
Iss o torna fundam ental que o indivíduo seja aceit o no interior de um grupo de
>0 atores con siderados "normais" e qu e o programa tenha em conta e promova as dife-
.a, renças, realçando justamente as sing ularidades de cada um , avivadas pela pr esen ça de
lO alguém tão distinto. O fato pode, inclu sive, constitu ir-se como diferencial para um
L1 S exercício cênic o inovador e instigante. N ão se trata , porém, de se admitir um a pesso .1
O, pela simples razão de po ssuir algum tip o de anomalia, e sim de pro mover uma co ncr.r a
inte gração daquelas que dem onstrem sen sibilidad e e disponibilidade para a exp ressã o
lo dramática, característ icas perc eptíveis a partir de uma sessão de jogos e exerc ício s.
Em gera l, du as açõ es di stinta s e com plementa res se ap rese nta m, se n d o
a prime ira d elas a qu e diz resp e ito ao reconh ecim ento e apr opri açã o , e m s i,
lle das co n dições e particularidades d o ind ividu o , já ab ordada s anr erio r mcm , .
Jn A seg u n da está r elaci onada à id en ti fi cação e u so das h ab ilidad es por ele ad-
de quiridas, gra ças a uma form açã o ant erior e esp ecífi ca, junto a in stitui çõ e s o u
~e - profissionais espec ializ ad os . Es sa condi ção pressup õe uma cultura as similad a
e co m p art ilha d a, e m ge ral, no se io d e um co let ivo, p erpetrada por prá r ir as
reconh ecidas de ens ino para defi cient es , es pec ialme n t e os auditi vo s e vis uais .
Tais habilidades se valem , em geral , de altern ativa s qu e compen sem imp edi-
ao mento s rela cionado s ao uso d a lin guagem e da comun ica çã o. São cód ig l\" e
as. pro cedim en to s técni co s c riados de man eira a facilit ar a rela ção e trân sito d a
la- pe ssoa no mund o. Aqui, podem m o strar- se útil ao ori entador o ac esso e o
reconh ecim ento d o s ele me ntos que co mpõe m esse universo , a fim d e prom o -
ver um efeti vo intercâmbi o d e p o ssibilidades e de int eresses, a se re m tran s-
portado s para o ex e rcí cio cê n ico . Servem de exemplo a lin guag em d e sin a is
utilizada pela com u ni da de d e su r dos e os pro cedim ent o s le vado s a efe ito pa ra
9,
a integração so c ia l d e cegos, como os m eio s e in strum ent o s d e id en ti fi cação
ma
fão sonora e tátil.
.es,
~ ns
11 LEPOT-FR O ME NT, C hr isriane. Introdu ção. In : Educação especializada: pesq uisas e
de
o

indicações para a ação. Bauru: EDUSC, 1999. p. 11.

D A .;PROPRI.IÇ.j O ts i t nc:« IH I4,'<J.IIAUH i 51


Para cad a caso haverá uma confi guração bastante particular, em qu e a pe s-
soa t em o direito e se rá capaz, se ass im estimulada, de va ler-se d e meio s cri:l-
ti vo s e o riginais para um a expressão cê nica. Portanto, um efe t ivo t rab alho dl'
reconh eciment o, ex p lo raç ão e reorgani za ção es quemática d o corpo-vo z mo st ra,
se imp ortant e par a sua restituição com o es paço primeiro de aut orn ani l cs t a çã. ,
e relação co m o mund o. A s práticas d evem se r capazes d e levá-I a a u rna (1'<' )
d es cob erta das habilidad es intrínsecas à ex p ress ão e à co m un icação hum ana,
inc orporando de ma ne ira dinâmi ca as suas con dições e limitaçõ es, o qu e in corre
numa afirmação d a ca pac idade sing ular d e m anifestação q ue cada um po ssui.
Para tanto, import ante será reconhe cer a validad e do s re curso s epiling üíst icos
e metonímic os na ex p ressão e na co m u ni caç ão, o que recol o car á o indivíd u. l
com dificuldade d e fala ou de expres sã o na condição de um interlocutor efetivo,
autorizado a pr oc essar as informações, re constituindo-as de acord o co m as suas
experiência s próprias e contextualizand o- as d e acordo com as suas co n di '. x.
Portanto, através d e sim ulacros verbais e corp orais o su jeito torna- se capaz de
a m p liar sua capac ida de de comunicação, aind a que fora d o s padrõe s no rmat iza -
d o s e socialmente tid o s como co rr etos . A p ro d ução e uso de ges tos e d e so ns, a
arti culação de palavras pró ximas ou si mi lares, q ue sema n tica me nte co nt ex t uali-
ze m o enunciad o d evem , p oi s, se r es ti m ulados d e manei ra a int e gr ar o repert ó-
rio expressivo d o indi víduo .
Reinventar form as d e di zer, co m pa rt ilha r e pr o d uzir se nt idos deve , poi s,
s e r o propósi to mai or d as ati vidad es t eat rais num a sit uação qu e envo lva as ano-
malias. É nesse âm b ito qu e o poder d o t eatro co mo jo go e, so b re t u do, a partir
d e s e u in egável valo r co mo es paço de cri ati vidad e e imp ro visação pode atuar d e
manei ra in estim ável e, co m iss o, est imul ar um nov o o lhar, que nã o ap enas in-
dul cent e o u inclu sivi sta, às pot en cialidad es e ca rac terís t icas d e pesso as cons ide-
racias inc apazes seja pela deformidade co rpo ral ou por sua s co ndições inc omuns
de expressão e d e co m u n icação .

152 J ost T OM lZI


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D,; ,;/'~OPR/.;<:.i () t str rtc:« DAi ,<.YO.tiALlAI 153


CRUZAN DO ESPAÇOS: O T EATRO NO HOSPITAL

Lucia H elena de Freitas (G)'ata)

Este artigo é parte de uma pesquisa de doutoramento' qu e analisa modos c


efeitos da inser ção do jogo teatral no espa ço hospitalar público a partir do enfoque
de trabalho s experimentais realiz ado s, so b minha orientação, por alunos da Licen-
cintu ra em Artes C ênicas da Escola de Teatro da U nir io, desd e 1999 at é 2005 .
Estas inter venções teat rai s faz em parte do projeto de exte nsão "O hosp ita l
como univer so cênico" , uma parceria ent re a Uni rio e o Hospital da La goa, e foram
so licit adas pela in stituição hospitalar visando au xi liá- la a torn ar o atend ime nto de
seus pacient es mai s human izado .

Diverso s fatores que caracteri zam o s se rv iços h ospitalares fo ra m apontad os pelos


profi ssionais de saúde com o elem entos de desumaniza çã o - a eno r me quantidade de
d oentes ate ndida pelos profi ssiona is diariamente, o alto gr au d e estres se d esses pro-
fissionai s qu e lidam co nt inuament e co m o sofrim ento e a morte se m recebe re m um
treinam ento especi alizad o; a pri ori za ção de cu id ad o s somente co m o corpo físico do
pacient e em detrime n to d o s asp ecto s afetivo s e, princ ipa lmente, a difi culdade d e co-
mun icação ent re o médico e o paciente. A proposta, por pane da in stitu ição hospita-
lar, d e interv en ção teatral visa va est abelecer outras relações de comuni caçã o naquele
es p aço que facilitassem o d iálo go e am eni za ssem o estres se, tanto o do s profissionais
qu antO o dos paciente s.
Tratava-se, p ortanto, uma ve z aceit o o de safio de reali zar ess as interve nções tea-
trais, da apropriaçã o t ea t ral de um esp aço nâ o tradici onalm ente dest inado à práti ca
cê n ica, o qu e abriu p ersp ectivas n ovas para o profe ssor d e tea tro , para alé m da in sti -
tui çã o esco lar. Foi a o p o rt u n ida de d e m o strar a p ertinênc ia e viabilidad e da criação de
es p aço pa ra a atu ação de sse pro fissi onal na in sti tui çã o ho spit alar.
Por Out ro lad o , a reali za ção d e expe riências te atrai s no esp aço h o spitalar permitia, do
p on tO de vis ta da form ação a rt ística do s alun o s engajado s nest e projeto, que fo sse
experim entada a prát ica teatral em es p aços a princípio nã o d estinad o s a ela, in do ao
enco ntro da chamada explo são do es paço teatral, qu e acont eceu n o século XX2.

I Cru zando espaços e olha res: o teatro no h o spital de Lucia Hel ena de Fr eitas (Cyara) - tes e de

dou to ram en to - Pr ograma de P ó s- graduação em Teatro - Uni rio.


2 Es te século , seg undo Jean -] acques Roub ine em A lin guagem da encenação teatral, foi m arcado
por forma s d iversas dc recusa do teatro burguês e de sua estrutura cênica mais t ípica: o palco

155
o H ospital da Lagoa é um ho spital públi co, sit uado no Jardim Botânico , às
margen s da Lago a Rodrigo de Fr eitas. Seu s pacientes são o riginários de Iavelas ró-
ximas e da Baixada Fluminense. Com o h ospital público, in sere-se numa soc ied e
de desigualdades eco nô micas, soc iais e culturais. Seu s pa cientes são indi víd uo s d~ s ­
tit uídos de bens materi ais e soc iais e q ue, em gera l, encont ram -se privad o s de poder
político para falar de sua condição e d e lutar por po ssívei s transformaçõ es.
A inser ção educativa do teatro no hospit al vai dar-se pel a possibilidade de tra-
ze r novas formas de sensibilização qu e desp ert e estes indivíduos, que desvele outras
po ssibilidades d e pen sar e sent ir, qu e provoqu e ima gen s não-usuais no s es paços já
em bo tados , q ue ab ra espaços de diálo go em qu e suas hi st órias possam se ma teria-
lizar po r algu ns instantes ou qu e, em fra ções mínimas d e tempo, eles id ent ifiq u m
afe tos e possam experimentá-los co m inten sidad e.
Ace itar, portanto, a soli citação do H ospital da La goa par a desen vol ver um
pro jeto teatral naq uele esp aço o po rtu nizou um d esafio ao curso de licenciat u r.i: o
de sair de seu âm bito tradi cional d e atu ação , ou se ja, a escola, e poder pensar e ex -
perim entar formas teatrais para um es paço diverso e de sconhecid o. Is so susc ito u,
im ed iatament e, algumas per guntas e algu ns tem as para refl exão. Reflexão importan-
te para alavanca r as açõ es qu e, ali, co meçamos a em pree n de r. A primeira per gunta se
referiu à imp ortância desta int erven ção para a formação dos alun os de licen ciatura
em tea t ro . Pod er iam eles atualizar m etodolo gias es pe cíficas d o ens ino do tea t ro na-
quele espaço? A segu nda per gunta di zia respeito ao modo co mo a int ervenção t ea-
t ral poderia aux iliar o hospital em se u proj eto d e humani zar suas práticas. A terceira
per gunta inc idi u so bre as relações e nt re estas du as áreas d e co nhec ime nto: tea tro e
medicina. Co mo seria esta co nvivênc ia sim ultâ nea n um m esm o espaço?
U ma abordagem em qu e sob ress ai a reflexão crít ica so bre a realidade h o spi-
ta lar. seu espaço polí tico- social, sua o rgani zação e as relaçõ es int erpesso ais ali ex is-
tent es fez -se fundame nt al para o d esen vo lvimento de um a p ráxis que, igualm ent e,
se vo lto u para a impo rtância da co ns t rução de um espaço d e teatralidad e, cuida n do
em pesq uisar e desen volver fo rmas teatrais.
Es te espaço de cons t rução teatral, onde o aluno d e licen ciatu ra foi inseri d o,
abriu para ele du as perspecti vas dentro da mesma expe riênc ia: a pri meir a se refere à
sua pr eparação co mo futuro professor d e ensino do teatro , para a qual ele deve d e-
senvo lver a capac idade de joga r, co mo u m pré-requi sito para o trabalho no cam po,
e, ass im, ao mesm o tempo, apropriar- se dos fund am ent o s d o ens ino d o teat ro . A
seg u nda persp ectiva é a experi ên cia peculiar vivida no h o spital: pensar e prod uz ir
interven çõ es para aque le espaço, se nt ir e perceb er suas necessid ades, d esenvo lver
um o lhar sens íve l ao s espaços esco lh idos para as interven çõ es, int era gir co m sua
população e co m as relações várias qu e ali estão co ns t it uí das. Ao licenci and o cabe ria
art icular seu ap re nd izado teóri co e práti co para pen sar, elabo rar e expe rim entar fo r-
mas de int ervençõ es teatrais no es paço ho spitalar, ana lisa ndo sua int erferên cia nesse
espaço e verifica ndo a pertin ência o u nã o das formas de interv en ção esco lh idas em
relação ao s ob jet ivos propostos.

italiano e a repr esentação ilusioni st a. Di ver sos encenado res co mo G ro towski, Bro o k, Artaud,
entre outros, bu scaram, para a atividade teatral, espaços não convencionais, com o grandes gal-
pões, pátio s de most eiros, hospitais etc., ao mesm o temp o em qu e pr op unham concepções ino-
vadoras da linguagem tea tral.

156 Lccu H a V i A D[ Fetr n s ( C H H)


s As interven ções teatrai s qu e vie ra m a se realizar no hospital mostraram a im-
possibilidade de possuir um o bjetivo único. D esta form a, integrar as demandi. d,)
e hospital - seu desej o de humani zar os serviços - com as dem and as do l e a l i \ ,I

pr odução de formas teatrai s co nseguida s por meio de jo gos imp rovisacion ais - I ( li \ I
r
nosso propósito ao partir para as intervenções.
Em relação ao licenciand o, o co nhec imento co nquistado junto ao co n ju n to dl
disciplinas teóricas e práticas qu e fazem parte de sua form ação tornou-se a baga f'cm
s pessoal, artística e pedagógica que ele traria para o trabalho no hospital. C analizar
á estes co nheci me nto s teóricos e habil idades práticas, acrescentando a eles leituras es-
pecíficas sobre a área da saúde, fo i o qu e se procurou realizar, fazendo com que cada
n licenciand o pudesse explorar, ao máximo, suas possibilidades criativas, desen vol ve .
suas técnicas, aperfe içoar seus sentidos, sua sensibilidade, num tr abalho de constru-
n cão
, coletiva das intervencôes,
,

o U m pon to nodal do trabalh o referiu- se, precisame nte, às forma s teat rais d«
.- interven ção e ao p ro cesso de jo go esc o lhido para sua co nst rução . É fato qu e, assim
1,
com o no teat ro em geral, o ensino d o teatro é fortem ente mar cado por um ap ego
[-
ao ilusioni sm o e à relação frontal, própria do palco it alian o. Jean Pier re Ryngaert,
e em [o uer, rep résenter, referindo-se ao s jogos de improvi sação realizados na esc o la
co m alunos o u em o utros locais co m o co lônias de féri as, clube s etc ., pr at icad o por
1-
não-atores, co nstata que:
1-

'a As prim eira s improvisa çõ es e m geral po uco levam e m cont a o espaço. N o ssa ed u -
cação lim ita o teatro a uma relaçã o fro nt al, n em sem p re claramente percebida, n em
e
ver da deirarn e n te assu mida como tal. As idéias receb id as sob re o te atro rem e t e m ;1

1-
u m "est rado" o u a um " palco " , se m que o espaço se ja levado em conta co mo um

,- element o d o jogo. A fort e trad ição lit erária de no sso teat ro co nside ra o espaço so l,

e, a dimen são p lás tica, ou e m ú lt im a in st ância pela vaga n o ção de ce nário. A rel.i ç.io

o ent re o lu ga r d e o nde se vê e o lu gar d e o nde se é visto n ão é p er cep tí vel n est e tip o d e


ab o rd age m d o fen ômeno teatral. Vel hos háb ito s, o rigin ár io s d o naturalism o , h /,em
o resto e, sem a preocu pação co m as co nve nções, o s jo gadores esco lhem o s espaço s
J,
reais para n eles jo gar 'como q u e d e verdade".
à

J,
Tornar o espaço um eleme n to in dutor do jog o tea tral, pr ovocand o uma edu -
A cação do olhar por intermédio de proposições que incitem a enquadrar os elemen tos da
Ir
realidade 4, passou a ser uma de nossas propost as.
:r Afe tar o espaço e ser afetado por ele seria a prim eira prop osta a ser trab alhada
nas int erven ções. Ad ent rar o hospita l, int eragir co m doen tes, acompanhan tes, mé-
dicos e funcioná rio s e criar um at rito, naq uele espaço específico, que provocasse o
r- ato criativo foi o obj et ivo dessa propost a. Atri to que o teatro, no seu fazer provoca-
tivo, pret endia explo rar, criand o tensões que, de cert a forma, acabaram por desvelar,
m tam bém, tensões qu e já ali exist iam. Tensões essas pro vocadas, pôd e-se cons tatar nas
experiênc ias realizadas, pelos confronto s ent re concepções antagônicas a resp eito da
medicina. Tensões que vieram intensificar aquelas ad vindas do atrito entre o ritu al
medico est abelecido e o jogo teat ral.
d,
li-
0-
3 RYN GA ERT, j ean- Pierre. j'ouei; représenter. Paris: Cedic, 1985. p. 69.
4 RYN GAE RT, 1985.

C RC 1A N f)() C, PAÇO \: o [[A fR O ,\ () IIOSf'IIAL 157


Consideramos que o teatro no hospital não deveri a ficar co nfinado a um es-
paço d eterminado, caracterizado como único local pos sível para su a práti ca. Pelo
contrário, deveria surgir onde não se esperasse jogar com o imprevi sto, com o aca-
so. Aparecer no meio dos atos cotidianos e causar um estranhamente, propor um a
ati vidade incomum qu e pudesse gerar reflexões e afetos diverso s.
Para que o atrito ocasionado pela atividade do jogo teatral que "desarrumava" de
certa forma os espaços e os tempos hospitalares pudesse acontecer seria preciso que
o teatro percorresse diverso s espaços do hospital: o saguão, os corredores, as enferma-
rias. Espaços não apropriados integralmente pelo poder institucional da saúde, espaços
intervalares, onde toda a população do hospital circula e, também, algun s espaços mais
restritos, as salas de at endimento médico e as enfermarias, ocupadas pelos doent es ('
acompanhantes.
A apropriação destes diversos espaços, com suas diferenças de tamanho, fo rma
e fun ção, pro vocaram problemas específicos para cada jogo teatral ali realizado. O s
espaços que denominamos intervalares caracterizam-se por um público móvel, um
público que se desloca de um lugar a outro. Ali o público se torna imprevisível por-
que pode levantar-se a qualquer momento e sair do espaço destinado ao jogo. Ap esar
disso , no s espaços intervalares toda a população do hospital, em algum mom ento,
encontra-se, independente de sua posição na hierarquia hospitalar e, por isso , consi-
d eramos importante a sua apropriação. Ali pudemos perceber e anali sar as princip ais
ten sões própri as da instituição e aqu elas que o teat ro viria provoc ar. Já os espaço s
restritos - as enfermarias -levavam a uma aproximação maior com os pacientes e seus
dramas, gerando a necessidade de criar intervenções mais intimistas ou de adaptar
aquelas realizadas nos espaços intervalares para esse outro espaço, levand o em conta
sua redução e características próprias.
J o gar com e nesses es paços que se apresentavam sempre imprevistos: as arru -
ma çõ es de mobili ári o são diferentes em cada en fermaria, o hall das escadas, às vezes,
es tá livre, outras ve zes, guarda maca s e caixotes; invasões con stantes no espaço são
realizadas por carrinho s com material ho spitalar, aparelhos médicos e pessoas, tudo
isso se to rno u parte inte grante de no ssa proposta de jogo, faze ndo da flexibilidad e e
da constante mudança características de cada interven ção. O espaço era compon en-
t e provocativo do jogo, o qual era modelado em cena, em cada apresentação.
A apro priação dos espaços do hospital pelo teatro se fez ini cialm ente pe la
criação de algumas oficinas de jogo teatral e por int ervenções interativas par a pa-
cientes, acompanhantes e funcionários . A proposta era a de levar o não-ato r (os
profissionais e pacientes) a participar do jogo teatral ou como jogado r o u co m o
observador ativo. A intenção era transformar os espaços materiais do hospital em
espaços de imaginação. Transformar os elementos conhecidos e os espaços já im -
pregnados de sent id os e, assim, criar outros espaços foi este o ob jetivo dest a ação'.
As intervenções teatrais aconteceram nos espa ços intervalares e nas enfe rma-
rias, tendo o espaço se tornado um dos indutores do jogo pela variedade de formas

s Uma oficina infantil, por exe mplo, realizada na salin ha de recreação do se tor pedi átr ico, traba-
lhou com a confecção de ded och es (bo necos de d edo) feitos com gaze gess ada e, posteriormen-
te, com a criação de improvisações com os bon ecos. O emprego de um mat erial característ ico
do trat ament o hospitalar - a gaze - , com o elem en to do jogo, dem on st rou a possibilidade de
flexib ilizar, por meio de pr oc essos de imaginação, o significado crist alizad o de um det er minado
eleme nto, dando-lh e novos sentidos.

158 LL'cH HELL.\'.~ D[ FRrn:H (C):;)A)


físicas que o caracterizavam e, também, por suas qualidades psicossociais -lugar de
dor, sofrimento, miséria, morte, mas, também de cura e de possibilidade de riso, de
alegria.
O esboço dessas intervenções foi construído em sala de aula, na Escola de
Teatro, por mim e pelo grupo de alunos participantes do projeto, e a proposta foi
a de encenar textos, em princípio narrativos, que seriam dramatizados nos corre-
dores do hospital por alunos-atores e por não-atores convidados - os pacientes
que aguardavam as consultas.
Utilizar o exíguo espaço do corredor, as disposições espaciais dos pacientes,
as portas de consultórios que se abriam e se fechavam a cada momento como ele-
mentos do jogo teatral foi o desafio que o grupo se dispôs a enfrentar. Os pacientes,
às vezes, eram assumidos como elementos que compunham o ambiente - por exem-
plo, árvores numa floresta - ou, ainda, sua disposição podia estabelecer caminhos
por onde os atores se deslocavam. As histórias, no início das intervenções. ('111 11
conduzidas por um narrador principal que funcionava também como um diretor,
pois indicava situações aos atores a serem realizadas cenicamente. A proposta do
grupo era jogar com o imprevisto, estabelecendo vínculos e cumplicidade com a
platéia.
A escolha de textos para as intervenções recaiu sobre textos literários, não
dramatúrgicos, que pudessem estabelecer relações com o universo hospitalar.
Os processos de trabalho para a realização de intervenções, em determina-
do momento, diversificaram-se. Havia a proposta de um trabalho de improvisação
mais livre, em que os atores tinham mais liberdade de criar, e outros em que essa
liberdade se tornou mais restrita, em razão da encenação escolhida. Apesar disso.
o processo de construção do segundo tipo de intervenção se caracterizou sempre
pelos jogos de improvisação e direção compartilhada pelo grupo.
Para desenvolver estímulos nos alunos-atores, partia-se de um levantamento
dos efeitos sensoriais (imagens, cores, sonoridades) que eles experimentavam logo
nas primeiras leituras do texto e que resultavam na criação, por eles, de formas so-
noras e visuais. Estas formas se relacionavam com os outros elementos que iam sen-
do criados a partir das improvisações. O texto inicial induzia a descoberta de uma
dramaturgia em cena pela fisicalização das ações selecionadas pelos atores e pela
realização de um texto oral. A condução do olhar do espectador era realizada pelo
movimento corporal dos atores que desenhavam o espaço cênico, modificando-o
de acordo com a necessidade de encontrar lugar para as ações. Ao texto cinético es-
crito pelos atores no espaço, ligava-se o texto verbal e os outros elementos sonoros
não-verbais, formando o enunciado que, a cada manifestação concreta, ganhava um
sentido.
Por exemplo, a encenação de A história de urna folha, de Leo Buscagglia, uma
adaptação de um texto não-dramático, apresentado no corredor para adultos e crianças,
foi conduzida pelos atores que se transformavam em árvores, velhos, crianças, vento,
a partir do jogo de transformação de objetos, no caso, lenços coloridos, que eram mo-
vimentados por eles, às vezes representando folhas, outras vezes vento, e, em outras,
indicando o personagem (transformado em fita indicava uma criança, enrolado na ca-
)
beça indicava uma velha). Havia a coexistência de narração e diálogos na cena, sendo
e
)
que os atores desempenhavam as duas funções, narrar e dialogar, podendo a função

CRI'ZANDO LlP.1ÇO\: o TL1TRO NO HO\pn:1L 159


de narrador passar de um para outro ator dentro da m esma cena. Procu rou-se qu ebrar
um po ssível caráter ilusionista do jo go, pois o ato r so me n te indicava o personagem por
m eio do objeto lenço, dand o-lhe voz e gestua l e, em det erminados momentos passava,
também , a ser o narrador qu e co nduz ia a ação.
Muitas vezes, co m as crianç as, usam os fo rm as animadas: ob jetos e bon ecos
para criar per sonagens. O s b oneco s se mo straram importantes para o jo go pela sua
cap acidade d e criar um espaço lúdico qua se que in stantâneo.
A esco lha de est ím u los visuai s e so no ros marcantes ocorria pelo desejo de
sens ibilizar o espaç o hospi talar co m co res, fo rmas e so ns diversos dos co nve ncio-
nai s. Es ses es tímulos agiram co mo agentes mobilizadores para a cria ção d e estados
de sens ibilida de qu e puder am abri r, no público, espaços possíveis de ima ginação.
Quando se tr abalha co m o en sin o do teat ro na esco la, um do s ob jet ivos é de-
senvolver a apreciação artística com as crianças e ad o lescentes, porqu e é importante
apre nde r a ve r. E ver não é some nte a apree nsão das formas que impressionam nos-
so se n tido d a visão. Du arte Jr. di z que há du as man eiras de perceb er as' coi sas: uma
prática e a outra estética. A prim eira buscaria a utilidade dos ob jetos, indagari a so-
bre seu valo r e as van tage ns a sere m obtidas, enq ua nto a out ra perc eb e, co m pr azer
e se ns ib ilida de, suas formas e maneira s de aparecer, q ue r dizer - o olhar estético deixa
fluÍ1~ deixa ocorrer o encontro entre uma sensibilidade e asf ormas que lhe configuram
emoções, recordações e promessas de felicidade". É tarefa, portanto do pro fessor de
teatro ense jar as oportu ni da des para qu e a sens ib ilida de esté tica po ssa ser trabalha-
da, ao longo da trajet ória d o aluno, no mei o esco lar. D everia ser assim, ma s sabe m os
das defi ciências qu e as esco las, de um modo gera l, ap resentam na forma ção de seus
alu nos . N o H ospital da Lagoa , porém , esta mos diante de uma realid ad e m ais pr ecá-
ria, p ois lidamos com crianç as pr oveni entes de um m eio social muit o pobre, onde
as escolas, em geral, não pro porcionam um tr abalh o pr odutivo de desen volvim en to
art ís tico, n em no âmbito do faze r, nem do apreciar e mu ito menos no corit ext uali-
za r, C rianças, co mo já dissem os, que nunca fo ram ao teatro, nun ca fjzeram teatro.
E, para agravar, nosso encont ro co m elas, na maioria da s vezes, é úni co. Q ue faz er
então, se não temos temp o nem espaço significat ivo em suas vidas para fazer criar o
gosto e a n ecessidade pelo teat ro ?
Com noss as pequenasformas teatrais, o qu e procuramos foi intensificar o co n-
tato, o pr azer e o diálo go, m ostrando que é possível falar, é possível di scordar, é
possível brin car. Talvez seja isso - mostrar um possível d iferente da quilo qu e elas
conhecem.
Cons ta te i, à medida que as interv en ções foram sendo realiza das no hospi -
tal , várias ten sõ es recorrent es, tais co mo : as dificuldad es de diálo go d os m édi co s
com os paci entes, a incompreen são d o pr oj eto por alguns méd icos e fun cionários,
a d ificu lda de co m os espaços e te m pos hospitalar es para as ence nações, a apatia
dos pacientes, o mal-estar vivido por algu ns licen ciand os diant e de quadros de do r,
entre o ut ros . Estas ten sõ es levaram-me à nec essidade d e empreender a pe squis a
sobre a instituição hospitala r. Era importante, dentro daquele espaço, perceber qu e
lugar era ofe rec ido ao teat ro , onde ele se encaixava, o nde era rechaçad o e por qu e
estas tensõ es e co ntradições aconteciam. Q ue fatores levaram médicos a acenar ao
teatro, propondo sua inte rfe rê nc ia e que fato res faziam com qu e o ut ros médicos e

6 D UART E JÚNIOR, j oão-Francisco. O sentido dos sen tid os. C uritiba: Criar, 200 1. p. 98.

160 L l.'CI.1 H U C,vA DL Fst nw. ( G l:H:<)


ar fun cionári os manifestassem uma reação, às vezes, expressamente contrária e, outras
) r
vez es , d e neutralidade apática.
Torn ou-se, portanto, necessário empreender o levantamento d o n j\ , .'. ' ~ ; ' s ­
pitalar em todos os seu s aspectos relevantes : o aspecto físi co, o asp eCll l ; I: ,: . : ,, '- r,) -

)S nal , O asp ecto discursivo. E então confrontá-lo com o espaço teatral: seu .1"pec! o
ua conceitual , as formas de experiência que ele provoca e s ua capacidade d e o rg;l!1 íz.lr
sign o s numa lin guagem própria.
Je Nas intervenções hospitalares priorizamos o jo go por sua flexibilidade em ti-
0- rar partid o dos espaços , não importa de que natureza e forma eles se apresentass em.
OS
Ao iniciar o projeto no Hospital da Lagoa esco lh e mos trabalhar no s corredores. <; ;\ -

guão e quartos porque decidimos por uma proposta agressiva em relação ,I<) " ' j',\I.,1l

le- no se nt ido de realizar intervenções na rotina e n o ritual hospitalares. Não usam o s o


rte auditório do hospital como esp aço para as apre sentações, não preparamos enc ena-
lS- ções para se rem representadas ali , descartando, assim , a arquit etura qu e s ub linÍl.l :1
na divisão palco e platéia. Não ficamo s agu ardand o um público para no s assi stir, pelo
0- contrário, fom os ao encont ro dele e reali zam o s o jo go teatral em cada brecha de
.er espaço possível.
xa O s pacient es vão ao H o spital da Lagoa em bu sca de cura para suas enfermi-
Im dade s. A gran de maiori a nunca foi ao t eatro. Estes dado s m e levam a c re r que o
de teatro se encontra di stante destas pess oa s. Nã o é uma necessidade percebida por
esta popul ação. Desta forma , o sentido da intervençã o foi m ostrar com o o t c.u ro,
lOS e num se nt ido mai s amplo, a arte é necessária. E tão nec essária quanto a dro ga o u a
.us inte rv e nção cirúrg ica, p orque o p era em to das as in stâncias d o indivíduo.
:5- A cr iação de um es p aço teatral nã o é som ente o corte espacial que se fa z em
Id e um determinad o espaço físi co, é b em mai s d o que isto. É so b retu d o um espaço
lto d iverso d e relação . R elação que se estabelece en t re o s qu e atuam e os qu e a"" j'! ','\I1 ,
ili- Relaçã o qu e se faz p el o o lha r, pel o co nt ato fís ico . Esse co nta to é m ediad o p o r um
ro. conjunto de sign os qu e se espacializa na apresentação teatral.
Ler Pod e- se creditar à noção de es paço teatral um fechamento em relac i. \ n"i lfj
ro qu e se enco nt ra exte r io r a ele . N o mom ento , p or exe m plo , em que se in xt uui u
esp aço teatral c a apresentação se proc essa, haveria um corte espaço-temp' ;r,li em
)n- rela ção ao espaço mai or, neste caso, o h o spital. Isto, porém, não aco n tece . ( )c or-
r, é rem co rt es e int erpen etrações dos tempo s e espaços h o spitalares n o cspal:' ' ·1 ! ' II1 P O
~ las do jogo e são aproveitados n o próprio jogo, e é isto que alm ejam os : tran sf o rmar, em
alguns m omen tos, o ritual do h o spital em jo go , mostrar que é po ssí vel um .i cert a
leveza ..
cos Ryn gaert, em [o uer, R cprésenter, ao anali sar as relaç õe s qu e se estabelecem
lO S, ent re o t eatro e os locai s di verso s, não teatrai s, u sad o s p or enc en ado r e s CO Ilt l'lllpO-
lUJ râneos, apo nt a para o fato d e qu e:
[or,
u sa O s es paço s institucion ais onde c ircu lamos são muitas vezes carregado s de senti-
d o pel os qu e neles vivem o u trabalham. É bem interessant e esvaziar esse se ntido c
ter pra zer em tod o s o s cruzame n tos de sen t ido qu e apa rec em. O jo go t; um meio
. JO de ' re carregar ' o s esp aços ' .
)S e

7 RYNG AERT, 1985, p. 71.

C /<l;l,n IJO nl'.4( O\ : o JL 4'IR O ,\ 0 IIU\ !'Jl H 161


Ubersf eld diz qu e teatro é es paço' . Ryn gaert di z qu e o espaço é fundad or d o
jogo t earral.Trabalhar com o esp aç o co m o um do s indutores do jogo é um pro cesso
que d emanda um a educação do o lha r para qu e este po ssa, part indo do rel eren ci.il
de ste es paço, faz er in stalar, ali, uma dimensão art ística.
A qu est ão, n o ho spital, não era modifi car fisicam ent e o es paço, cobri-lo o u
m aquiá-l o para estabelecer um es p aço ilu sóri o. Nada d o espaço real era mud ado
as cam as desocupadas n o saguão serviam para sen tar, as latas d e lixo dividiam áre as
de jo go, das es cadas surg iam- pers onagens, as cab ec eiras da s camas serviam para a
m ovimentação d o s b onecos e ass im po r di ant e. Quer di z er, criava-se um esp aço d e
jo go que tran sformava o espaço real p or mei o de novo s m odo s de utili zá-l o. Es t e
espaço de jogo se ca ract eri zou por estabelec er uma co nt in u id ade entre o ator c o
esp ectador, o qu e propiciou um contat o muit o inten so . A co m un icação e o di álo go
se est abelecera m efetivamente em cada interv enção reali zada por gr and e parte do<;
pacientes e acompanhant es, apesa r da apat ia de algun s e h o stilidad e de alg u ns [un -
cion ários,
A esco lha d o jo go recaiu na p os sibilidade, nun ca descartada, ape sar d e to d as
as difi culdades, d e que tod os pudessem se converter em jogado res. Portanto, não
houve uma preo cupação da minha parte co m virt uos is mos, n em co m en ce nações
mui to elab orada s. Havia, em nossa propo st a, esta ca rac te ríst ica de não acabam ento
proposital. Er am nec essários a flexibilidade e o espa ço abe rto par a, a cad a instant e ,
es ta be lece r rela ção, contato e resp o stas qu e manti vessem ati vo o cana l d e comuni-
ca ção através do qual o teatro acont ecia, faz end o surgir olhares e dis cursos di versos
d os habitu ais.
A ên fase n o ato d e jo gar ap o stava em sua capac idad e de mo strar a pos sibi-
lid ad e criativa própria d os indi vídu o s e qu e, m esm o e m botada e re pri m ida p elas
injun çõe s socia is, pod eri a se r resgat ada. E st es indi víd uo s Sé enc ontram de tal form a
destituíd os de auto-est ima, tão fr agili zad os pe la indi gên cia eco nô mica e cult u ra l,
q ue di sso result a a ca rê nc ia de um o lha r q ue os in divi d ua lize e qu e perceba a s ua
importân cia co mo indi vídu os e cida d ãos . São cr ianç as e ad ultos qu e desde muito
ce do vivcnc iam a vida co mo um dram a de ex periê nci as d ol o ro sas. A dor psic ol ó gica
e moral, em cert o s caso s, é muitas ve ze s m aior d o qu e a do r físic a.
Se, par a o ad u lto, esta r doent e e se r hos pitaliza do é algo perturbad or, para a
crian ça a ang úst ia e o med o, diante d o d esconh ecid o , inten sifi cam- se. A interna-
ção hospitalar, dep endendo do t empo d e perman ência, da grav ida de da do en ça, d o
ap oio fam iliar e da faixa etá ria da crian ça, pode vir a se r especialm ente traum ática,
traz endo dan o s p sicoló gic os irreve rs íve is.
Par a a criança em idad e escolar qu e t enha qu e passar por p er íod o dem orad o d e
internação, o afas t ame nto da escola pod e prejudic á-la em d oi s important es aspec-
to s: a escolar idade c as inter- relações qu e são travada s n a sala d e au la.
Para re sponder a esta demanda, fo ra m criadas as classes hospitalares, fun cio-
nand o dentro d o s h o spitais e te n do com o o bje t ivo prin cipal s u prir a esco larid ade
da s cri an ças e do s jov en s internado s.
Estas classes são um d ireito o b r igatório, reconh ecid o pela legislação brasile i-
ra , con stando da Declaração do s Direi tos da C rianç a e do Ad olescente Ho spitaliza-

, UBERSFELD, Annc. Lire le tb éâtre lf . Paris: Gallimard, 1996. p. 49.


~ RYNG AERT, 1985, p. 69.

162 L I 'U1 H eLL\ .1 ot. Fst n » , ( C H IA)


dos, em it ida em 199 5, mas já previ st a pelo MEe, através d a p ub licação da Pol íti r a
N aci onal de Ed ucação Especial" . É u m espaço qu e o licen ciad o em Teat ro 1( '11 1 1<- .
galme nte o dir eito d e oc upar, restando so me nte que se emp reenda uma l ULl j" l l l ! ; ,
para qu e isto se to rne possível.
Uma pe dagog ia h ospitalar na qua l a arte estives se present e pr ovocar ia o :Jfh .
rar d e out ras rela çõ es humanas.
A ex periência d o teatro no ho spital bu sca, portant o , por me io da l in gll ;q~(' m
artís tico-tea tral, apo ntar para um a vida em qu e a se ns ib ilida de e a perc ep ção de ex is-
tir sejam inten si ficad as. Brook ex p lica q ue, no teat ro , a v ida é mais compreensível
e in tensa porque é m ais concentrada. A lim itação do espaço e a comp ressão do temp o
criam essa concentração".
Ao realizar os jogos dramátic o s em n o sso trabalho no ho spital, o intuito foi o
de conseguir a participação da platéia, to rnan do-a também jo gad ora , o u, como di;
Brook, a cúmplice da ação lê.
O ritual d o h o spital, que separa o s pacientes, seleciona- os em filas, di vide-o s
em con sult ó rio s, am bu lató rios, exami na- o s e lhes prescre ve medicam ent o s, choca-
se com o jogo t eatral, poi s este in stitu i um o utro ritual que integra os parti cipant es,
promove sua expressão , faz com q ue se t ornem também age ntes do pro cesso de
criaç ão . O jo go é uma ati vidad e livre, co mo afirma Hui zin ga em H om o L udcns
( 1996) , qu e se d istin gu e da vida hab itual, realizad a num recort e de esp aço e t empo
- como um inter valo em no ssa vid a cot idia na - e qu e se caracte riza po r ab so r ver d e
fo rma inten sa o s jogado res. Lo go, a real iz ação do jogo teatral q ue bra a ro t ina h o s-
pi talar e pode levar o s pacient es a encont ra r, em seu es paço, po ssibilidad es d e cri .u
no vas realid ad es.
D entro desse jo go de es paço-te m po, o teat ro faz com q ue es pec ta do res e
atores se encont re m, favo rece ndo a cada indivíd uo perceb er sua capaci da de c t ! " : v.:
Capacidad e q ue pod er á ser usada, t alvez, pa ra recriar sua próp ria vida. Cri.u UI )I (l U ·
tro pres ent e é a po ssibilidade que o tea tro pode abrir no espa ço d o hospital. C>riar
e projetar, nest e es paç o de dor e m ort e, esp aços livres e difer en ciad os de di ,í!( . '" ('
imaginação.

10 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Politica N ammai iu. í <lu

cação Especial. Brasília, DF, 1994.


u BROOK, Pcrer. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 8.
i2 BROOK, 2000, p. 23.

C RL Z.-L\ /)O L ';'A( U \ : () TL H Jiu \C I i / { j \ !'1 f_I! 163


REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de


Educação Especial. Brasília, DF, 1994.

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BROO K, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. O sentido dos sentidos. Curitiba: Criar, 2001.

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RYNGAERT, Jean-Pierre. Jouer; représenter. Paris: Cedic, 1985.

ROUBINE, Jean-Jacques. A llnguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.

UBERSFELD, Anne. Lire le tbéâtre lI. Paris: Gallimard, 1996.

164 L !'C/A HU[,VA /)[ FRnJ:4S (GlA/:,)


E LEM ENTOS D O TRÁGICO NO ESTUD O DO TEXTO T EATRAL

Luiz Humberto Ma rtins Arantes

Escrever é um a certa m an eira d e d esejar a lib erdad e; ten d o começado de


bom grado ou à f orça, você esta rá engaja do'.

Se alguém me pedisse para dizer a prin cipal crença da j uventude de minha


geração, eu diria sem tit ubear: a atribuição à arte de uma função transjor-
madora da sociedade'.

Por uma questão de tempo e espaço, as m erodologias de pesqui sa e estudo do


texto de teatro existentes não pod eriam ser resumidas neste artigo, tam anh a a qu anti -
dade e compl exidade das mesmas ao lon go de mai s de dois mil anos de cultura teatral e
criação literária' . Isto, considerando a tradi ção ocident al, que tem co mo marco a Poética
aristot élica".
N o decorrer dest es quase doi s milêni o s e meio se alternaram, e se co njugaram,
análises qu e privil egiaram ora a aborda gem es t rut ur al ora a per sp ectiva temáti ca,
coincidindo mom entos em que amba s tinham importância aos olhos d os est ud io-
sos . Assim , pod e-se entender que a primeira foca estudos em torno da personagem ,
d os diálo gos, do enre do, enfim, do s pr ocedimentos qu e fazem funci onar a textu-
alidade; enquanto a seg unda procura o lhar os elementos psicol ó gico s, hist óri co s e
socio lóg icos qu e regulam o funcionam ento da narrativa teatral, permitindo qu e a
m esma libere as marcas de um tempo, o tempo que a tornou possível.
Pensand o assim , o inglês Rayrnond Willians é um do s est udiosos da literatura
e d o texto teatral qu e mai s se destacou no decorrer do século XX, fez amp lo uso
de análi ses qu e combinaram a análise do texto na sua relação co m o co ntexto e

I SA RT RE, Jean-Paul. Que é a lit eratura? Tradu ção de Ca rlos Felip e M o isés. São Paulo: Árica,
1989. p. 53.
2 MAC IE L, Luiz Ca rlos. Geração em transe: mem órias do tr opicalism o. Rio de J aneiro: N ova
Fro n teira, 1996. p. 73.
J Co ntribuíram para este art igo os processos e resultad os adquiridos co m o trab alh o de pesqu isa

e ens ino no C urso de Teatro na Universidad e Fed eral de Ub erl ândia, ao qual es tão vinc ulados
os projetos de Pesqui sa: Estudos do Texto Teatral: história, criação e tem as e Biblioteca D igital
de Peças Teatrais, amb os reali zad os com apoi o e financiamento institucional da Uni versidad e
Fede ral de Uberl ândia (U F U) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Esrad o de Minas Gerais
(Fapernig).
4 ARISTOT ELES. Arte poética. São Paulo: M. C larct, 2003. p. 26.

165
vic e- vers a, não deixando de res saltar a importância da aproximação entre o literári o
e o per forrn áti co , ou se ja, as po ssibilidades de ce na que são in erentes a to do t exto
teatral.
Em suas pesq uisas a resp eito d e gê ne ros e hi st ória d o texto teatral, \Villians
sem pre se in comodou com certos d et erminismos lit erários, um exemplo foi o d ebate
qu e t ravou co m o crítico lit erári o G eorge Steiner a resp eito da qu estão d o tLí.gi co t'

sua histor icidade, poi s Steiner acreditava na " [...] impo ssi bilidade da experiên cia tr á-
gica no s tempo s m od erno s [...]. A cidentes de au to móvel nã o podiam ser c ha ma dos
de tr ágicc '".
D este deb at e, surge a idé ia d e qu e não se d eve nega r a tragédia co mo tradi ção,
ma s que se d eve sim reconhecer a pertinência de se falar em 'elementos tr ágico x' pn '-
sentes n uma o bra literária, teatral e até mesm o nas no ssas ex per iências co nt em porâ neas.
Mas, para isso , acreditou ser necessário enfrentar o s princípi os da teori a da tragédia, tais
co mo orde m e acidente, a destruiçã o d o herói, a ação irreparável e a m orte e a cn I ,l ~ ('
sob re o mal",
Em recente ent rev ista jo rnalíst ica, o crít ico literário britânico Terry Eagleton, ao
ser indagad o se não est aríam o s fadados a 'v iver atualmente' uma tra gédi a grega, o Ea-
gleto n resp ondeu qu e sim, poi s indícios e elem ento s trágicos estão mui to presentes nos
tempo s atuais, principalmente qu ando se toca na qu estão d o s recentes ato s terroristas:

[...] O s mito s da G récia A ntiga conta m h ist ó ri as d e limit açõ es human as, de barrei -
ras qu e n ão podem se r u ltrapas sa das e so b re o alto preço qu e pagam o s ao t ran s gre-
di r esse s limit es. Par a o Oc idente, princ ipa lme nte no t o cante à cult u ra a m eri can a. ()
problem a ex iste no desejo infin ito . O Ocide nte vive u m mi to laust iano de ga nún ci;l
per pétu a, q ue nu nc a se co n te n ta . E isso ce rtam ente n o s leva rá à au to desrrui çâo ".

Pen sando na arualizaçâo d est es eleme ntos tri gica s no âmb ito do lit erário/ tea-
tral e do rea l é que um importante d ramaturgo brasileiro mer ece ser recupera d o, pois
ta m bé m t ran sitou pelas fronteira s d o s gêne ros, qu al seja: o d ra maturgo Jo rge Andrade
( 1922- 1984). É O qu e aco ntece ao se an alisar textos como A lv/oratória (1954) e Rastro
Atrás ( 1965) , o b ras em que ten ciona elem entos formais como o drama e caracte rísticas
do épico . Com perspecti va se me lhante é o que o autor irá também realizar em Pedreira
das A /mas (1957), ob ra em que art icula um enredo tecid o a partir das proximidad es c
distanciamentos entre o dram a e o trágico, ou melh or, elementos do trá gico.
Os te xtos t eatrais de J orge A n drade foram esc ritos en t re o in ício d o s an o s
1950 e m ead o s d a d écada d e 1960. D entre todas as caract erísticas des se p eríod o,
se m p re se lembra a inten sa d em o crati zação qu e marc ou tal inter valo d e tempo. M o -
m en to em qu e se deb atiam os resultados do período Va rg as, avaliava- se se u r eto rno
ao po d er e pesavam -se os impacto s da abe rt u ra d o país ao capi tal au tom o bilístico
est range iro . Tamb ém um p eríodo d e exp ectat iva com a pro spe ridade pro jetada pel o
gove rno Ku bi t sc he k, assi m co mo de end ivid ame nto, visa n do à realiz ação d e gran-
des proj eto s, co mo fo i o caso da co nst ruç ão d e Brasíl ia.

; \VILLIANS , Rayrn ond. Tragédia moderna. São Paul o : Cosac & N aiíy, 2002. p. 14.
I,W I LLIANS, 2002, p. 70.
, EAG LET O N, Terry, Duelo d e T itãs . Folha de S. Paulo, São Paul o, 04 jan. 2006. C ade rno Mai s l,
p. 4.
Ao lado di sso , também foi um período em que se "respirou aliviado", com
a saída de um momento marc ado p or guerr as e ditaduras. Numa conju n n u . , ,'
ampla, pensando a América Latina em sua totalidade, a ten são acerca d.. \ 1\ •. ;

do poder estava solta, haja vista que a Guerra Fria entre capitalistas e ( (1 / ; " " : ,.l '"

informava o debate ao sul do Equador.


Diante de tudo isso, algo pareceu evidente n o debate público, a di SI \. , \( .:; ,
torno do tema da liberdade. Fora debatido em suas várias nuances: negação d ,; diu ·
dura anterior, liberdade para construir a nacionalidade e liberdade para evita r o u t ras
experiências ditatoriais.
É possível perceber que o debate sobre a questão da liberdade perpaSSOll .1 ap»-
rente conotação política, alcan çando também o meio artístico e estético do s :' i :, . · i 'j ( f.j
e 1960. Para restringir-se apenas ao meio teatral, basta lembrar a evidência que o tema
recebeu com o Teatro de Arena, o Teatro Oficina e o Teatro Opinião, especilir.mu -n tc.
com a cre scente pressão das forças conservadoras para a efetivação do golpe d,. , )(" .
O dramaturgo Jorge Andrade viveu ess e contexto em toda a sua inten sidade.
Estudou e formou-se em teatro, dialogou com referências teatrais e historiográficas
do momento e, co m a publicação e encenação de suas p eças, procurou interferir no
debat e público que então se realizava em torn o da questão da liberdade, fos se re spi-
rand o democracia fosse receando a proximidade d o golpe militar.
Diante da necessidade de enfrentar presente, J orge Andrade não esc reve u
ape nas uma pe ça, pois a rique za da temática e a urgência do momento levar.uu-u o J

tecer tramas e personagens que dialogavam com importantes bandeiras de luta polí-
tica da dé cada de 1960, o qu e pode se r observado e m A s Confrarias ( I 96S), Pcdrcnu
das A Lmas ( 195 7) , A Escada ( 196 0), Rastro Atrás ( 196 6) e O Sumidouro ~ I q !, " ) .
Se há um tema em Jorge Andrad e no qual se vislumbra a pres ença de ' ele-
me n tos trá gi co s ' em sua o b ra, se m dúvida é a forma como ele processa .1 l.u. .. i J I
liberd ad e e, princip alment e, como o dramaturgo te ce suas per sonagen s d iam (' ,tes ta
clássica ' ban de ira' d e luta política.
A ssim , pode-se perceber que o tema da liberdade e m J orge Andrad e !Ú " p m·
priamente inau gurad o na década de 1960, poi s, já em 1957, o te xto Pedreira da, /s im as
apontava para a presença do tema em sua dramaturgia. N esta peça, o dramaturgo arti-
cula uma tripla temporalidade, visto que é escrita no final d e década de 1950, ma s possui
um enredo qu e remete à Revolta Liberal de 1842. N o entanto, ela é publicada, ao lado
do conjunto da obra, em 1970, quando o país atravessava os momentos mais truculen-
tos da ditadura militar.
A busca da lib erdade é su stentada por ten sõ es qu e tamb ém aparecem e m ou-
tras peças, tai s com o a relação passado/presente, tradici onais/pro gres sistas, no con-
flito en t re aqu ele s que desejam partir e aquel es qu e preci sam ficar.
Diante d essa polarização , a personagem Urbana destaca- se, poi s ela viu a vila
de Pedreira surgir, c resce r e, frente à sua decadência, não quer d eixá-la. A su a ver-
dade é permanecer junto aos mort os de seu passado . Ela é a continuidade de uma
t rad ição co ns t ru ída na 'rocha':

Urbana: Encontraram sinais estranhos na rocha, e uma imagem de São Tomé nu


nicho de pedras. "Este é o lugar para a cidade. São Tom é nos protegerá, co rno nus
prot egeu da tormenta! " D escobriram ouro na grut a. Abriram galerias que foram sair

E LLtIL S 1"o \ /) 0 rr..'ú ;u o XCI tsrctx. J) () rt: FO 1"[.1.11<.·1/ 167


em dez pontos diferentes do morro, como se fossem dez portas de Pedreira. Mais
tarde, partindo daqui, abriram lavras por todo o vale e fundaram novos lugarejos'.

A firme opinião de Urbana irá contrastar com o espírito novidadeiro dos mais
jovens, entre eles, aparece Gabriel, que vê na partida para outras terras o único (';1-

minho de busca da prosperidade. Para cumprir seu objetivo, Gabriel procura :lllcLiJ

Mariana a Martiniano, ambos de filhos de Urbana.


Esse conflito, que tem como pano de fundo o embate político entre liberais e con-
servadores, em 1842, prevalece até a chegada, em Pedreira, de um batalhão de policiais
comandados pelo delegado Vasconcelos, que traz, algemado, o 'subversivo' Martiniano.
Logo na sua entrada à cidade, Vasconcelos propõe trocar a liberdade de M.lJ .
tiniano pela delação de Gabriel. Inconformado com a possibilidade da troca, Marti-
niano - mártir? - se solta dos soldados e sai correndo. Aos gritos, a mãe e toda :l vil.;
vêem o jovem cair fuzilado. Após a morte, um novo conflito se apresenta, pU)S ,. 1

não há mais lugar no cemitério, ninguém pode sair da vila para buscar terra para se
construir novos túmulos. Como desafio à autoridade e às atrocidades do poder de
Vasconcelos, Mariana sugere que o corpo fique exposto como exemplo.

Mariana: Leis! Leis! Não aceitamos, nem o povo de Pedreira das Almas aceitará suas
leis.
Vasconcelos: (Áspero) Falo com dona Urbana.
Mariana: Respondo por ela e por Pedreira. Todas as leis que o senhor representa, não
nos poderão arrancar nenhuma palavra, nem um gesto de acatamento às suas ordens.
Abra as suas portas das prisões, traga os instrumentos de tortura, revolva e dextru.i
a cidade, derrube as torres de nossa igreja... ! Mas de nossas bocas jamais sairá uma
única palavra de delação Os mortos sairão das lajes e os impiedosos serão destruídos!
(Os soldados entreolham-se, admirados] Que um anátema caia sobre suas cabeças!
Que o corpo de meu irmão fique exposto... ser.i uma lembrança viva do seu pecado,
da sua indignidade!
Vasconcelos: Veremos mais tarde, minha senhora, se não falam.
Mariana: O senhor tem as espadas ... nós, aquilo que assassinos de sua espécie desco-
nhecem: respeito à liberdade. É o que Gabriel representa para nós. Pagaremos, por
ele, qualquer preço')!

Mais uma vez, retoma a imagem do corpo que permanecerá insepulto, o que
reforça novamente a tensão entre as leis naturais e as leis do Estado. Diante do
fuzilamento do irmão e a iminente prisão do namorado, a jovem Mariana assume a
defesa da liberdade, pois se, anteriormente, seu direito de ir e vir era ameaçado pela
força da tradição da mãe, no momento seguinte, a situação transforma-se, já que a
questão da busca da liberdade ganha uma conotação política.
Após a perda do irmão e a fuga do revolucionário Gabriel, coube a Mariana o en-
írentamento da opressão, no caso, representado na figura do delegado Vasconcelos.

, ANDRADE, Jorge. Pedreira das almas. In: o Marta, a árvore e () relógio. São Paulo: 1970.
p.81-82
') ANDRADE, 1970, p. 97.

168 LL'IZ HU.\IBf RI<) Iv!'RTI,'o" Ak.\I'T1 \


Mariana: Ent re na igreja, dia nte de seu s so ldados, e pro ve q ue suas leis não são
ímpias. O nde está sua justiça para ajudá- lo a transpor es ta porta? O nde o poder
q ue o levará até aque les corpos? Não passam de morto s, d isse o senhor! EIll ;j(l.
deve ter coragem para insultá-l o s co m sua presença. [...] Se o se nh or não supo rt a,
por qu e suportarão eles? O senhor n o s prometeu um túmulo, se revel ássem o s
o nde está Gab riel. Ga brie l es tá lá, co mo m inh a mãe, caído so bre Mar t inian . i. O
senhor nos imp ôs, como co ndição da sua o pressão, o co rpo exposto de Ma rt inia -
no. N ós só lh e impom os, para a n o ssa de lação, a su a ent rada na igreja. Ent re e veja
o que suas leis fizeram dos hom en s, dep ois de terem feito à província, empobre-
cendo a terra co m seus tri bu tos e toda so rt e de impiedade s 10!

A s leis d o Es tado parecem chegar àq ue la localidad e p elas vias da fo rça e d a


impo sição, o que jus t ifica as reações d e Mariana e das d emai s mulh er es. C o n side -
ra n do qu e ess e texto p erpassou os an os 19 60 e só veio a se r publicad o em 1970 , !1.l
qu e se o bservar qu e e le es tab elece um ínt imo di álo go co m a idé ia de engaja me nto
do p eríod o . A na rrati va ap onta claram ent e pa ra o s pod er es opressivo s e at é m esm o
para os mé todos d e t o rt ura exer cido s pel o E stado dita torial.

Vasconcelos: Será proce ssada e respo ndera pelo crime de G abrie l.


Marian a: Já estou com as mãos ama rradas. f aça cumprir suas leis! Martini ano tam-
bém estava, co mo está o povo da Pr ovíncia desde os dias da Bela C ruz. D esde que
nossa montanh a passou de sesma ria de ouro a pedra para os mo rto s. O nde está Ga-
briel ? O nde os mortos estão expostos, e os vivos preso s nas rochas, sonham com
uma terra mais justa. Gabriel é a única saída deste túmul o imen so que seu GO\T rnO
fez de Pedreira das Almas. Faça cumpr ir suas leis, i,i que não pode fazer os morto s
reviverern. Este é o nosso preço, senho r. O meu e o seu. O senhor não terá nu nc.i
Gabriel. porque matou Martinian o... e cu... porque deixei Martiniano e minha Il1 Je
morrerem! C hame seus soldado s e ent re 11.l igreja! Prove a eles que não tem e os m or-
tos. Que pode encarar seus crimes. (Silêncio. \ ~ ls coil cclos continua imóvel) Govern o s
co mo o seu, senho r, só executam leis ímp ias, mas com b raço s subordinados ou mã os
escravas. Nã o pre senciam nunca a verdadeira imagem de sua s vítimas. Se o senhor
ent rar... (VaCIla , fazendo um grande esfên'Ço)... naquele ro sto desfigurado... que era
a próp ria imagem do nosso sonho ... ver.i a que ficou redu zida a Província so b sua
justiça! Só aí po der á saber o qlle Gab riel rep resenta para n ós. Entre!... e Gab rie l será
seu! Eu tamb ém pr ometo"!

Ac eitando o desafio, o delegado resolve entra r na ig reja, e o que o lei tor p e r-


ce be é a indicação d o dram aturgo qu e desc reve a expre ssão de h orror que d o mi n a o
rosto d e Vasco nc e los . O q ue ele teri a visto? Os co rpos amontoados? Desfigurado s?
As indicaçõ es do au to r n ão são diret as, deix ando n o subt exto o que o dele gado t eria
presen ciad o de nt ro da igreja. Co m toda ce rteza, estavam lá os co r po s de Mart in ia n o
e U rb ana, m as o es t ado em qu e estava m n ão é descri to claramente, cabe ao lei to r!
d ire tor/ esp ectad o r a co nst rução do sent id o .
Sab e- se, ain da, qu e o acontecido fo i o suficiente p ara os soldados fu girem e

10 AND RADE , 1970, p. l OS.


11 AND RADE, 1970, p. l OS.

E L Ll / [ S l ü \ ]) O 1l\ ,';( ;f C O t :O ts noo J) {J rLY1'o 7LU1U I 169


o delegad o desistir de Gabriel. Em seguida, Mariana entra para a igreja e proíbe as
o ut ras mulh ere s de contarem a Gabriel os fato s oco rrid o s. Nin gu ém d eve co mentar
ou lembrar a ima gem que se viu de Martiniano .
Ao fim , a vila apresenta sin ais de abandono, ernpoeirada e co m papel sendo
levado pelo vento aos quatro cantos. Mariana, cada vez mais parecida co m a mãe, é
observada por Padre Gon çalo, dando indício s de que não vai partir com o re stante
da vila , nem mesm o para acompanhar Gabriel.
O diálogo final é entre Gabriel e Mariana, também é a última t entativa de
derno v ê-la da idéia fixa de não partir para o utras terras.

Mariana: Mais forte do que as promessas é a morte que no s liga à terra. Sinto tudo
dentro do meu corpo, como se fizesse parte do meu sangue. As roch as... a igreja... o
adro!
Gabriel: Mariana! N ão podemos passar a vida venerando mortos. Fo i para escapar a
isso que sonhamos partir. É preciso saber escolhe r, Mariana.
(...) .
Mariand: Gabr iel! Du as pessoas perderam a vid a. N ão compreend es? Du as pessoas
qu e eram a minha famíl ia. C om o queres que seja a mesm a?
Gabriel: Também perdi a minha.
Mariana: Há mui to tempo. Viveste sem ela.
Gabriel: Prometest e um a para mim. N ão te lembras.
Mariana: N ão a este pre ço.
Gabriel: M:lS que pr eço ? Foi o próp rio mundo de Ped reira qu e matou Ma rt iniano,
co mo matou minh a família.
M a riana : N ossos mortos não pod em ser ab an do nnd os !".

A jo vem Ma riana assume todo o apego da mãe à vila de Pedr eira. Não bastan-
do, quer também es tar junto aos mortos. Tal co m o a mãe quer valori zar o passado
em detrimento do presente, o qual é representado pelo personagem Gabriel. Na
despedida do jo vem casal, é marcante a emoç ão co ns t ruída:

Gabriel: Pedreira! Vista de longe, perdid a ent re as nu vens, parece um a est rela branca
de mármor e! (consigo mesmo)
o nde vamos !'!
°
passado é um mon stro... qu e nos aco m pa n ha para

A personagem Urbana simboliza um a t ra d ição consolidada , qu e va lo riza o


passado e os m ono s da vila. Diante da 'velh a se n ho ra', Gabriel preci sa sat isfazer às
necessidades hi st ó ricas d o presente, por isso , precisa do rompim ento, des eja partir
para outras terras e co ns t ru ir o n ov o. N o início , Mariana acredita na urgên cia da
partida, ma s, diante d o pa ssado, que pode se r es q u ec id o, resol ve ficar e d efender o
direito à lembran ça. Ela se rá uma inv entora de tradições, a sua ati t u de de ficar irá
provocar uma n o va coesão na coletividad e, não a mesma da m ãe, m as sim , novas
definições de comunidade e de pertencimenro a um grupol4.

12 ANDRADE, 1970, p. 112.


U ANDRADE, 1970, p. 114.
14 PINTO, Júlio Pimentel. Uma mem ória do mu ndo: ficção, memória e histór ia em J orge Luis

170 L UIZ H uxnn no M AKII N\ i\ KANTI S


Essa peça de J or ge Andrade traz a defesa da liberdade, mas com o uma bandei-
ra daqueles que acreditam que as mudan ças são possíveis, mesmo sacrificando vidas.
Martiniano pagou este preço. G abri el partiu para con struir o novo, e Marian a articulo u
a novidade e o arcaico, o passad o e o presente, rebelou-se contra as leis artifi ciais do
Estado, ent retanto, ao fim, apostou na conservação da tradição deixada pela mãe e seus
ant epa ssados.
Ess es três personagen s de Pedreira das Almas, mai s uma vez , re forçam a idéia de
que Jorge Andrade construía se us textos co m os o lhos no passado, mas co m os pés
no presente. Por ser esc rita em 1957 e divulgad a nest e conte xto auxiliou o dramaturgo
a parti cip ar do debate do mom en to , qual seja : o processo de cons t rução do 'homem
no vo 'I C,.

A partir da década de 1950, vários seto res da sociedade bra sileira passaram a
refletir a con strução desse novo homem. Havia, assim, uma valorização da vontade de
transformação, da ação humana capaz de mudar o curso da hist ória. As raízes dn l (
homem bra sileiro deviam, portanto, ser bu scada s nopassado , no 'a utê nt ico homem
do pov o', ainda co m caracte rís ticas rura is e sem a co nt aminação da urbanidade capi-
talist a 11,.
Pen sand o assi m, Jorge Andrade aproxi ma-se das influências de esquerda, d os
co m u nis tas ou trabalh ist as do fina l da década de 1950. Mas esta aproxim ação tem áti ca
não é tr an qüila no uni verso ficcion al. Se as idéias da 'utopia revolu cion ária' propu-
nham a ruptura, J o rge And rade diferencia-se e lan ça um olhar sing ular so bre esse
homem novo ,
'. O dramaturgo mostra a coragem de Ga briel para romp er co m a tradição de U r-
bana. Mas, ao mesm o tempo, apresenta as agruras de M ariana co m um a co nsciência que
Se divide ent re o ficar e o partir. Se o dramaturgo ressalta a força do rompim ent o, não
deixa de ser verdade que este se realizou com perdas, pois Gabri el teve de parti r sem a
noi va Maria na.
) Se o homem n ovo das 'utopias revolucionárias' é decidido e es tá pronto para,
se necessári o, pegar em armas, o de J or ge Andrade titubeia entre passad o e presente,
ao duvidar da t radição e não vislumbrar qu e o novo que se aproxim a deixa florescer
toda sua humanidad e, o que o faz pensar e pesar as perdas de suas dec isões .
a Po r fim, a image m d o corp o inse pulto em pra ça pública, tecida po r J orge
a Andrade, não carac teriza o te xto co mo t ragédi a, tal co mo ocorre em A nt ígo na de
S ófocles, mas é um a interrextualidad e qu e apo n t a par a o qu e R aymond Willians
descr eve co mo a presen ça d e 'e leme ntos trágic os' nos texto s da m odernidad e.
J

S
r

s Borges. São Paul o : Es tação da Liberdade, 1998. p. 57 .


l i O fin al da década de 1950 reforçou , no campo d as esquerdas, a pro cura deste homem JlO ,,"'O ,

aquele " [...] a qu e se r eferia o jovem M arx, t erm o recuperado com en tus ias mo na época pela
revolução cuba na - e pelos escritos daquele qu e é cha m ad o romanticam ente em C u ba de 'guer-
rilheiro her ó ico ', C he G ue vara". RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da
revolu ção, d o C PC à era da TV São Pau lo: Record, 2000. p. 120.
1(, RID ENTI , 2000, p. 24 .
IS

E U ItL VTUI /)() IR-iCIC() so tvnoo IJ() I n /O 7L<TR-H 171


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WILLIANS, Ravmond, Tragédia moderna. São Pau lo: Cosac & Naif)', 2002.

172 LUIZ H U' 1I11 "'n 1\1.~"'I N' AIt\ NT"


1-

le

TEATRO E COMU N IDADE


le

Marcia Pompeo Nogueira

10 Teatro na Comunidade é um fen ôm en o qu e se manifest a de diversas fo rmas ,


assumi ndo d iferent es nomes e m di ferentes países: teat ro po pular, teat ro para o de-
senvolvime n to, teat ro radi cal do povo, teat ro para a libertação, etc. Assi m co mo
nom es difer entes podem significar a mesma co isa, nom es iguais podem sign ificar
coisas diferentes. Nos Est ado s U nid o s, por exem plo, o Teat ro Comu nitá rio é o
.IS no me dad o pa ra o que cham amos no Brasil de Teatro A mad or. Trat a- se d e uma
modalidade tea tral dif ícil de d efini r, já que adquire di ferent es formatos, ligad a a di-
ferentes inst itui ções e finalidade s. Baz Kershaw p rop õ e a seguinte defini ção:
v
Se mp re qu e o po mo de part ida [de uma prática teatral] for a naturez a de se u públi co
e SUJ co munidade, Q ue a est éti ca de suas per form an ces fo r talhada pela cu lt lir a d.1
:1- com u nida de de sua audiência . N est e semi do es tas pr át icas pod em se r catcgo r iz. ada s
enqUJl1to Teat ro na Comunidade I .

o au tor cha ma atenção para a natu reza política de st e tip o de teat ro direciona-
do a platéias "cuidado samen te sc lecionadas'" . Mas antes de apr ofundarmos n osso
ente nd iment o dest a mod alidad e teat ral, precisamos ter claro o que vem a ser com u-
nidade. Ai nda se pod e falar de comu n idad e no s dia s d e hoj e?

o conceito de comunidade
Q uan do falamo s de co m u nida d e a prim eira imagem que geralme n te se faz é
de um a co m u nidade rural , pequ en a, es tável, isolad a geo graficamente.

Pesso as inte ragia m u rnas com as o ut ras enquanto seres so ciais "to tais" informa dos
p o r u m amplo co n hec ime nto de cada um, cujos re lac io nam en to s são fre qüe nteme nt e
form ad o s po r ligações de afin id ade e co nsa ng üi nidade '.

I KERSHA\'v, Baz The poluics of perjorm ance: radical theatre as social intervention. Londes: Rout -

ledge, 1992. p. S.
2 KERSHA\'v, 1992, p. S.

J C O HEN, Anr hon y The symbolic con struction of commun ity . Londres: Routl edge, 1985. p. 25.

173
E st a persp ect iva seria completamente di stinta da com u n ida d e urbana, carac-
teri z ada pela mult iplicidade de contexto s, n o qual as pesso as:

Vivem em um [lugar) e trabalham em o utro, viajam para ainda out ros, indo talvez
para outro lugar no seu tempo de laze r. Esta plu ralidade de co ntextos é reprodu zida
estrutu ralment e na próp ria ecologia da cidade, dividida em zo nas, clarament e disrin .
guível pela popula ção e função. O s vest ígios da comunidade seria m soment e enco n.
trados no nível das vizinhanças",

Diante desta fra gmentação e diferen ça s internas, pod e-se até concluir
qu e a co m u n id ade nã o p oderia so b rev ive r à indu stri ali za ção e urbani za ção. E n -
tretant o , Cohen cha ma aten ção de qu e a uni cidade apa re nte das comunid ad es
rurais são simplifi caçõ es, escond em diversidades, hi erarquias, base ada s e m di-
fe re n tes ba ses: id ad e, po sição soc ial etc . O qu e dari a a apa rê nc ia d e uni cid ad e
seria , seg u n do est e au tor, a ace ita ção de sí m bolos co m u ns so b re o signi ficado
da co m u nid ade . A aceitaçã o dos me smos sím bo lo s identifica uma comunidade ,
m esm o quand o cad a indi víduo o int erpreta a sua man eira . Co m u n id ade impli ca-
ri a, p ortan to, em se me lha nças e d iferen ças.
Qualquer comunidade - rural ou urban a - o u formas de associações , teriam a
fun ção es tru tural e id eológica, segu n do Raym ond \X!illians, de m ediar os indivídu o s
e a socieda de mais am plas.
Para Ker shaw, toda comunidade é parecida no que di z re speito às dif erenças
internas que ab riga e ao pap el de m ediação qu e ass ume entre o ind ivíd uo e a soc ie-
da d e. El e cita doi s tip o s d e co m u nida de:

' C o munidade de local' é criada por uma rede de relacionamentos fo rmados po r inte-
rações face a face, nu ma área delimitada geogra ficamente.
'Comunidade de int eresse', como a frase sugere, são form adas po r uma rede de as-
sociações que são predominant emente caracterizadas po r seu co mprometimen to em
relação a um inte resse com um. Q uer dizer que estas co mun idades pod em não estar
delimitadas por um a área geográfica parti cular. Q uer diz er tamb ém que comunidade s
de interesse tende m a ser explicitas ideo log icamente, de forma a que mesmo se seus
membros venham de áreas geográficas diferentes, eles pod em de forma relativame nte
fácil reconhe cer sua ident idade co mum".

No primeiro se nt ido, ac re d ita -se que pesso as qu e vive m e/ou trabalham numa
m esma região possuem d et erminadas vivê nc ias e pro blem as co m u ns, enquanto o
segu n do indica qu e alg u m as pessoas comun gam id éias, se id entifi cam por um o lha r
precon ceituo so co m q ue são vistas, o u sofrem uma m esm a excl usão, co mo po r
exe m plo : mulh eres, h om o ssexu ais, negr o s, m en in o s de ru a, d om ésticas, ent re o u-
tro s. Boal chama esses gru pos de "tem ático s - formado s por participantes que, por
alguma razão , ou idé ia, algum fo rte o b jet ivo se un iram [.. . ]"7.

4 SPENGLERapud COHEN, 1985, p. 25 -26 .


WILLIAMS, Raymond. The long, reoolution. H armondswonh: Pelican, 1965. p. 95.
I. KERSHA\X~ 1992, p. 3 1.
BOAL, Augusto. Teatro legislativo. Rio de Janeiro: C ivilização Brasileira, 1996b. p. 70.

174 ,\fARe I., Pn lI N o N o r.I'[f. /{4


D est a form a, ass u m im os a co nceit uacâo d e Anthon ,v Coh en em re lac ão ao
~ ~

en t en d ime nto d o q ue é co m un ida de:

z Comunidade não se defin e apenas em term os de localidade. [. .. ] É a enti dade à qu al

a as pessoas perten cem, maior qu e as relações de parentesco, mas mais imediata do qu e


a abstração a qu e chamamos de "soc iedade" . É a arena ond e as pess oas adquirem suas
experiências mais funda menta is e subs ta nciais da vida socia l, fora dos limites do lar".

Origens do teatro na comunidade


r
A o rigem deste t eatro p ode se r assoc iada à própria o rige m d o teatro , quand o
não havi a separação ent re qu em faz e quem ass ist e o te atro . Ou como di z Boal, à
S
festa p opular:

e
"Teatro" era o povo cant ando livremente ao ar livre: o povo era o criador e o destina-
o
, tário do espetáculo teatral, que se pod ia então chamar "cant o ditirârnbico". Er a um a
"
festa em que podiam todos livrem ente part icipar".

Nest e sentido , são co ns ideradas ra ízes d ess e teat ro as t ra d ições p opulares pré-
a
coloniais e greco-romanas. Já as raí ze s mais im ediatas dessa modalidad e p odem ser
IS
associadas a movim entos mais recentes de reap roximação d o teatro d e seu público.
De forma b astant e resumida 10, p ode-se di zer qu e o ponto de partida de sta
IS
reaproximação do t eatro com a com u n id ade fo i o se u mo vim ento d e d isseminação ,
cuj o o b jetivo ini cial era am p liar se u acesso p ara alé m d o p ú bl ico burgu ês, qu e p odi a
pa gar os in gres so s. Co mo, po r exe m p lo", o Movim ento Socialis ta, es pecialme nte
d uran te a seg un da inte rn ac io na l ( 1890 - 1914), ente nd ia-se co mo men sageiro d a
cu ltu ra, com a fun ção d e levar educação e co n hec ime nto pa ra as m assas. Ba sea d o
inicialmente em dram aturgia alh eia aos interesses específi co s da classe trabalhadora,
s-
envolvendo uma ga ma de peças qu e iam do m elodrama ao naturalism o , o teatro era
11
ainda limitado ao u so de estilo s tradi ci onai s. A propo st a e ra o fere cer alt a cu lt ura,
lr
evitando qualqu er t entativa de in strumentalização.
~s

1S

te Arte podia levar um a men sagem social, mas era senso co mum, entre seus ideól ogo s
e críticos [do movimento socia lista], qu e ela serviria melh or ao movim ento se fos se
verdadeira para si mesma , abso rvendo idéias emancipató rias, mas expr essas, em pri-
la meiro lugar, art isticamente".
o
H
)r H CO HEN, 1985,p. 15.
J- 9 BO Al, Augusto . Teatro do oprimido: e outra s poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983. p. 14.
l u Para mais detalhes, ver NOG UE IRA, Marcia Pompeo. Touiards a po etically correct theatre fOI'
) r

deoelopment: a dialogical approach. 2002. 224 p. Tese (Doutorado ) - U niversidade de Exe re r,


2002. Não publicada.
11 Existem outros exempl os de práticas que integram este moviment o de dissem inação do teatro.

Ver, entre outros, GARCIA, Silvana. Teatro de militância. São Paulo: Perspectiva, 1990. 208 p.
12 SAMUEl, Raphael; MACCOll, Ewan; COS GR O VE, Stu art , Tbeatre oj the lejt, 1880-

193 5: workers' th eat re movern en ts in Britai n and Amer ica. l ond on: Routledge & Kegan Paul,
1985. p. XV II.

T L H RO [ CO I/ O 'JIJ.W[ 175

J
Contribuiu para es te movim ento de disseminação do teatro o novo entendimen-
to do pap el da classe trabalh adora na sociedade. Segundo a filosofia marxista, () pro leta-
riado passou a ser visto co mo classe revolucion ária, qu e poderia guiar a sociedade !l<1IuLI
pela super ação do capitalismo. At ingir este público passou a ser um obje tivo de \'árias
uu ciatr vas.
A origem dest e percurso também está as sociada a espetác ulos te atrai s qUl',
a partir do iníci o do séc u lo XX, passaram a assumi r um a perspectiva p olítica de
transformação da realidad e, e en frent aram os lim ites da depen dên cia econô m ica do
teat ro p rofissional. M ontagen s co m objetivos pol íti cos explíci tos, apresentad as em
teatros de regiões centrais , evidenc iavam, na verdade, uma contradiç ão : o co nte údo
po líti co , o bje t ivo dest e teat ro , er a apresen tado ape nas para um público burgu ês qu e
podia pagar o ingresso. Es ta contradição im pul si on ou dois mo vim ento s: de um lado
div ersas ini ciativa s de atin gir um nov o público se efetivam at ravés de turn ês p:1r;1 ()s
lu gar es mai s remo tos d o globo ; de outro expe riê nc ias em qu e o público se t L U1S i, ' 1 -
m a em ato r ganham esp aço " . . .
O percurso do Teatro de Arena, no Brasil, inclui um exemplo de questiona-
m en to da co ntradição vivida po r grupos qu e tinh am lima pr áti ca de teatro pol ít ico
e atu ava m em casas de es petác ulo situa das em re giões centrais. Como ex p resso po r
Vianinh a:

o Te at ro de Aren a t ra z ia d entro de sua es tr u tu ra um es t ra ngulame nto q ue aparecia


n a medida me sm o e m qu e se cu m p ris se sua ta refa. O Aren a era porra-vo z das m assas
po p u lares num teat ro de ce nto e ci nqüenta lu gare s l 4•

Ess a co n tradição mob iliz ou o Arena e mui tos outros grupos , em di versos paí-
se s, rara b uscar um no vo p úb lico , para sair das ca sas de es pe tác u lo, gan h ar a estrada .
e le.. ar o t eatro para o p ovo .
finalm ente, inden t ific amos com o raízes im edi atas do Tearo na Comun idad e
as ru pt uras formais das co nve nções teatrai s, fru to de diver so s m ovim ent o s de vau-
guarda artís tica, qu e revolu cio naram as prát icas teat rais no séc ulo XX : o cenário
h avia deixado de ser n ece ssári o , e at é me sm o o palc o; teatro poderia ser feito em
qu alqu er lu gar. O fazer te at ral passou a ser visto, p or algu ns art istas, co mo ace ssíve l
a to dos, os métodos de trab alh o se d em ocr at izaram e pro cessos de criação co leti va
se multipli caram.

Formas do teatro na comunidade

Se gundo Van Erven, os diferentes est ilos do Teatro n a C omunidade se


un em p or "s ua ênfase em hi st ó rias pessoais e lo cais (em vez de peças prontas)
que são trabalha das inicialmente através de im provisações e gan ha m fo rm a teatral
col etivamente"!' . Seus materiais e formas se m p re em ergem diret am ente (se não ex-
cl us ivamente) da co m un ida de , cujos interesses se tenta expressar.

Li O próprio Teatro Didát ico de Berr old Broche, o nde não havia ne cessi dade de expcct adorc s,

era fr uto d o enfrcntamen ro dessa co ntradição .


I. V IAN IN HA apud BE RLINK, Ma noe l. O centro popular de cultura da UNE. Cam pinas:
Pap iru s, 1984 . p. 20.
" VAN ERVEN , Eugene . Com munity tbeatrc: globa l persp ect ivcs. Londres: Ro utlcdg e, 200 1. p. 2.

176 _I/ ' RU .' Po vrt.c. No(.;I"U,,-'


1-
N o percurso assumido p ela prática d e Teatro na Comunidade , identifica-

1-
mos basicamente três m odelo s, fruto s d e um a ev o luç ão hi stórica. P od e- s e d izer
qu e ess es modelos part em de práticas decididas de cima para bai xo, p ara p r a: lU S
.a
is
cujo o b je t ivo e mét odos são d ecididos p el as pessoas que participam do s pru··
jeros t eatrais. Entretanto, este percurso nã o é o único, pois todas es sas etapas
podem se r encontrada s ainda h oje. O que exi ste de comum entre tod o '; (";s c ·~
e,
le mod el o s é que "são representad o s fora do s h ol ofotes m etropolitano s"! ". O s três

o mod el o s s e r iam :

11

:0 1. Teatro para comunidades


le E ste modelo inclui o teat ro feito por artistas para comunidades pcriicn cas,
lo desconhecendo de antemão sua realidade. Caracteriza-se por ser uma abordagem
)S "de cima pra baixo" , um teatro de mensagem. Como nos diz Boal:
r-
U sávamos nossa arte para dizer verdad es, para en sinar soluções: ensin ávamo s os
a- camponeses a lut arem por suas terra s, por ém nó s éram os gent e da cidade grande;
:0 ensinávamos aos negros a lut arem cont ra o preconceito racial, mas éramos quase to-
)r dos alvíssimos; ensinávamos às mulheres a lutar em co nt ra os seus opressores. Quais?
N ós mesm os, pois éramos femini stas-homens, qua se tod os. Valia a int en ção ".

2. Teatro com Comunidades


as E ste m odelo, em gera l, parte de uma crít ica do modelo anteri or e m termo s
da fra gilidade dos resultados a ting idos. Aqui, o trabalh o teatral parte d e um a inve s-
ti gação d e uma determinada comunidade para a criaçã o de um espetácul o . Tanto a
11- lin gu agem, o co n te ú do - assuntos esp ecífic o s qu e se quer ques t io n ar - o u a form a
la, - manifestações populares típi cas - são in corporados ao es pe tácu lo .
A idéia de vinc ulaç ão a um a comunidade es p ecífica estaria ligada à ampliação
:1e da efi cácia política d o trabalho .
n-
10 O s an os de co ntato co m pú blicos especí ficos e comunidades específicas ens inaram
m uma importante lição aos trabalhad or es do teatro rad ical: cada tip o de co munidade ,
'el cad a tipo de gru po reque r uma abordagem so b medida - de forma a se tornar eficaz
va cultur almente c, talvez social e politicamente I' .

3. Teatro por Comunidades


O terceiro m odelo tem grande influência de Augusto Boal. Inclui as próprias
pessoas d a comunidade no processo de criação teatral. Partindo de uma perspecti-
se va c r ít ica ao teatro d e mensa gem, Boal enfrenta um outro tipo de contradição do
.s) teatro co m objeti vos p olíticos. Es ta propo sta é relatada por Boal n o formato d e
ral uma hi st ória sobre a rea ção de um camponês n ordestino , das ligas camponesas. El a
x- exp ress a os fund am ento s da evolu ção do teatro de mensagem em relaçã o ao teat ro
partIClpatlvo.

es,
1(,VAN ERVEN, 2001 , p. 243.
as: 17 BüAl, Augusto. O arco-Íris do desejo: métod o Ba al de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 1996a. p. 17-18.
IN KER5HA'W; 1992, p. 165.
2.

T L H R O [CO.lIl :NJI)AD [ 177


A hi st ória n arrada po r Boal co meça quando, ao fin al de um espetác ulo, os
atores emo cionado s di ziam: "De rrame m os no sso sangu e!". Ap ós o espe t áculo , n
Sr. Virgílio veio conversar com os atores, emocionado , qua se chorando: - , ( U i 1\ !
bele za ver vocês, ge nte moça da cidad e, que pen sa igu alzinh o qu e nem a gCIJI c . i \
gente tamb ém ac ha isso, qu e tem que dar o sangue pela terra"!"

Boal revela a alegria dos atores p or sen tirem qu e a m en sagem tinha atin gid o o
público, ma s Virg ílio, um homem de scrito com o alto e fort e, con tinu ou:

- E já que vocês pen sam igua lz in ho qu e nem a gente, vamos fazer assim: pr im eiro
a gente almoça (era mei o dia ), de pois vamos todos junto s, vo cês com este s f U:'. h ;l I'

vo cês , e nó s co m os nossos, vam o s d esalojar os jagunços do coronel que invadir am a


roça de um companheiro no sso [. . TO.
Ass us ta dos, resp onderam, co m mui to cuidad o , q ue os fu zis eram ade reços ,
qu e não eram arm as de verdade. M as S1'. Vir gílio continuou:

- Se os fu zi s S3.0 de ment ira. po de jogar for a, mas vocês S3.0 gente de verdade, eu vi
vocês cantand o pra derramar o sang ue, sou test emunh a. "Vocês são de verda de, então
ven ha m co m a gente ass im mesm o p o rqu e nós te mos fu zis para to do mund o "! ' .

Boal diz qu e "o m edo fez-se pâni co":", E, co m muito custo, explicou q ue eles
eram art ist as e que nem sabia m atirar. E ntão Sr. Virg ílio co ncluiu: "-Então aq uele sa n-
gue qu e vocês acham qu e a gente deve d erram ar é o no sso , não o de vocês ... ?''' '.
Esta história marca a o rigem do Teatro do F órum. Boal cit a Che Guevara para
ex plicitar a apre nd izage m qu e esta vivê nc ia lhes proporcionou : "Se r so lidário si g nitiL;1
co rre r os m esm os riscos'?'. Marca a crít ica ao teatro de m ensagem e um a abertura para
um a nova perspe ct iva de teatro na co m un ida de. Em vez de faz er peças dizendo o que
os o utro s devem faze r, passou -se a pergu n tar ao po vo o co nteúdo do tea tro, o u dar ao
po vo o s m eios de produção tea tral. Transformar o povo de espect ador em ato r.
Esta evo lução propos ta por Boal in flue nciou mu itos trabalhos de teatro e co-
munidade no mundo to do . G an ho u fo r ma um no vo Teat ro na Com unida de, cuj a
fun ção seria fo rt alecer a co m unidade. O Teatro passou a ser a ar ena pr ivilegiada pa ra
se reflet ir so bre q uestões de identidad e de comunidades específicas, contribuindo
para o aprofundamento das relaçõ es e n tre os diferen t es seg m entos da comunidad e
qu e pod em, at ravé s da improvisação , d o jo go teatral , ex plicitar suas seme lhanças e
difer en ças. O teatro seria, nest e sen tido, porta-voz de ass unt os locai s, o qu e p od eria
contribuir para expres são de vozes silenc iosas ou silenc iada s da co munidade . Com o
dizem alguns auto res, o teat ro feito pela co munidade cont ribu iria para a "contínua
regen eração do es pí rito de co m unidade":".

I" BOAL. 1996a, p. 18.


c~ BüA l , 1996a. p. 18.
21 Bü Al , 1996a. p. 18.
n BüA l , 1996a, p. 18.
2; BüAl, 1996a. p. 19.
2; BüAl , 1996a, p. 19.
2, KER5H A\\~ 1992, P: 60. Referênc ia de Baz Kershaw aos resultados de uma conferênc ia so bre

178 M.4 ~ ( 1.4 l' O H/' f " :\'( Hil LlK4


Um exemplo de teatro comunidade africano

A evolução de um teatro preocupado em trazer mensagens para o PO\'CL ),."


um teatro feito pelas pessoas teve também, na história do Kamiriithu, no QUh]j,i. , 11
modelo.
N gugi wa Thiong'o e outros artistas do Departamento de Literatura da l J I ;

versidade de Nairobi, que já assumiam uma postura política crítica através de SU:lS
peças teatrais nacionalistas radicais e antiimperialistas. Além da perspectiva crítica
do conteúdo dessas peças, buscavam também quebrar os limites de um teatro for-
maI e, ao mesmo tempo, buscavam ampliar o acesso a suas peças.
Ngugi wa Thiong'o foi procurado, em 1976, por uma moradora do Kamirii
thu, vilarejo próximo a sua casa, para apoiar as atividades de um centro comunitário
que estava passando por dificuldades. Como resposta a esta solicitação e pela inxis-
tência da senhora, ele resolveu contribuir. O resultado foi um projeto fant:ís 11el)
Trabalhadores, camponeses, professores, desempregados e empresários construí-
ram, com suas próprias mãos, um teatro ao ar livre de 2.000 lugares, que integrava o
centro cultural, o qual passou a abrigar um curso de alfabetização e teatro.
A peça Ngaahika Ndeenda (Me Caso Quando Quiser), escrita por Ngugi wa
Thiong'o e Ngugi wa Miiri, para a comunidade do Kamiriithu, bebeu nas fontes
da luta por terra e liberdade, parte das lutas pela independência do Quênia, na qual
muitos dos trabalhadores e camponeses da comunidade participaram, seja de forma
ativa ou passiva. "Muitos viram suas casas serem queimadas; suas filhas estupradas
pelos Ingleses; suas terras roubadas; seus parentes mortos":".
A peça celebrava esta história e ao mesmo tempo mostrava como a indepen-
dência, pela qual muitos quenianos morreram, estava sendo expropriada pelo poder
neocolonial, ainda dominado pelos interesses britânicos. A peça também retr.u 1 \1
as condições sociais contemporâneas dos trabalhadores, tanto nas multinaciunais
como nas plantaçóes",
A escolha da língua falada na peça foi crucial. Muitas peças revolucionária- d1.
época eram representadas em inglês - língua duramente imposta pelos colonizadores
e ensinada nas escolas - mas os camponeses não podiam entendê-Ia bem. A escolha
do Gikuyu, língua local, ampliou a participação. Esta foi a primeira vez que Ngugi wa
Thiong'o escreveu em Gikuyu. Educado em inglês, teve que aprender novamente sua
língua mãe.
A experiência do Kamiriithu representou um enorme processo de aprendi-
zagem para os professores universitários. Eles aprenderam com os atores e com
a platéia, que contribuíram com elementos de suas experiências de vida, e até em
relação às idéias gerais apresentadas na peça, que foi re-escrita durante o processo
de criação:

° processo, particularmente para N gugi wa Miiri, Kimani Gecau, e para mim foi de
aprendizagem contínua. Aprendemos nossa história. Aprendemos o que acontece

Teatro na Comunidade, em 1983, no Dartington Collcgc, Inglaterra.


2(, THIüNG'O, Ngugi \Va. Deccionising tbe minei: the politics of language in Africa» lirerature.

London: ]ames Currey; Nairobi: EAEP; Portsrnouth: Hcincmann, 1986. p. 45.


27 THIüNG'O, 1986, p. 44.

[["IRO [(,()lfl·lf),Wr 179


nas fábrica s. Aprendem os no ssa língua, já qu e os camponeses eram essencialmente
os guardiões da língua por anos de uso . Ap rendemos também um a nova forma de
Teatro Africano":

A aprendi zagem da forma veio do reconhecimento de como as músicas e as


dan ça s eram centrais para a vida das pessoas no Quênia, presente na s celebrações
especiais como nas co nve rsas cotidianas.

Em N gaahika N deenda tentamos incorpora r músicas e danças, como parte da estru-


tura e do movimento do s atores. A música vinha do que estava acontecendo em cena
e liderava a cena que se seguia. A música e a dan ça viravam a continuidade da con versa
e da açã o".

A montagem durou nove me se s: d e janeiro a setembro d e 1977. Os ensaios


aconteciam aos finai s de sem an a e eram assis tidos por cerca de 300 pessoas da co -
munidade, que contribuíam para o processo di scutindo a forma como sua hist ória
viv id a era apres entada, su ge rin d o detalhes sobre as danças e músicas, ajudan do a
reconstruir os rituai s, encontrando a linguagem correta para personagens especí-
fic o s em relação a sua idade e ocupação. Debates acalorado s aconteceram durante
tod o o processo em rela ção à forma e ao conteúdo da peça. M esm o o processo de
representação era parte d o processo educacional compartilhado e da s contribuiç ões
co le t ivas :

A prática do Kamiriirhu foi parte de um processo educacional, enqu anto um processo de


desmistificação do co nhecimento e portanto da realidade. As pessoas podiam ver com o
,)S ato res evoluíam do momento em que mal conseguiam mover suas pernas e dizer suas
falas para o moment o em que conseguiam conversar e se movimentar no palco como se
tivessem nascido lá dizend o estas falas. Algumas pessoas eram recrutadas para o elenco
depois de uma intervenção em que mostravam como este ou aque le personagem deveria
ser mostrad o. A platéia os aplaudia para qu e cont inuassem fazend o o papel. Perfeição foi
assim mostrada como sendo um processo, um proc esso histórico social, mas era mesmo
assim admirada. Pelo cont rário se identificavam ainda mais com esta perfeição porqu e era
um produt o deles e de sua contr ibuição. Era uma elevação deles mesmos enquant o uma
comunidade".

A peça foi um sucesso en orm e. Veio gen te de todos os lugares para assistir. I sto
assustou o govern o , que agiu violentamente. Em 16 de no vembro d e 1977, o govern o
do Quênia baniu qu alqu er outra apresentação do espetáculo. N gugi wa Thiong' o foi
preso em 31 de dezembro de 1977 e passou todo o ano de 1978 em prisão de segurança
m áxima.
O espaço abert o que ajudou a co m un id ad e queniana a re conectar-se com suas
raíz es rompidas representou uma ameaça mai or para o governo do que as peças po-
líticas feitas anteriormente por N gu gi wa Thion g'o, ape sar da s últimas terem um

1S THI ONG 'O, 1986, p. 45.


29 THIONG'O, 1986, p. 45.
3D THIONG'O, 1986, p. 57.

180 M .l RCI.l P O I/ f'[(J Nocctuu


conteúdo revolucionário mais explícito. Lendo , por exemplo, a peça de N gugi wa
Thiongo's, Tbe Tria! of Dedan Kimatbi (O Jul gamento de Dedan Kimathi), seu con -
teúdo revolucionário é bem mais evid ent e do que em Vou me Casar Quando C) l1 iser.
Mesmo assim , o efeito político foi mui to mai s am eaçador para o gove rno, e provo co u
uma pressão políti ca muito maior. A relevância política deste teatro na co m unidade ia
além de seu conteúdo , qu e incluía a participação da comunidad e no processo criativo .
A participação da co m unidade em torn o de se us próprios intere sses representou um
nova tipo de des en vol vimento.
Outras expe riê ncias em muitos o ut ros países africanos guiaram -s e nesta dire-
ção de uma arena dramática da comunidade, in spiradas pelo modelo d o Kamiriithu ,
bem como nas idéia s de Augusto Boal e Paulo Freire. O m étodo evolu iu de acord o
com a experiência em outros contextos, es p ecialmente durante os an os 1980.

Aspectos estéticos e éticos do teatro na comunidade

O s processos de criação nesta áre a envo lvem freqüentem ente a interação de


artistas classe médi a co m pessoas de co m u n id ades periféricas. Em termos meto-
dol ó gicos, esta interação exige o enirentarn ent o de muitas qu estõe s: como evitar
uma relação de inva sã o cultural? C om o criar uma relação dial ó gica? C omo pode se
dar a interação de cu lt uras diferent es? Q ua l o papel do facilitad or? Paulo Freire"
forne ce as bases de muitos trabalh os que en fre ntam este tip o de desafio. Seu m é-
todo fundado no di álo go , no respeito pelo diferente, exige períod os preparatórios
de conhecimen to mútu o, em qu e ambo s, co m u nidade e facilitadores, p esqui sam .1
comunidade na bu sca de temas s ign ificat ivos q ue podcm estar na b ase d c prnceSSllS
teatrais co n juntos.
Freq üent em ente, em trabalhos de Teatro na Comunidade, os o b jetivos \Ju
definido s em term os do s conteúdos:

o trabalh o de teatro na comunidad e é de criar uma dialética entre o es ta d o prC\el1tl' c


as pos sibilidad es futuras de uma co m u n id.ide particular, moderad a pel o co nhecim cn -
to sob re e a ide ntificaç ão com estas co m un ida des" .

Mesm o não sendo o principal fo co ex p lícito de muitos trabalhos de Teatro


na Comunidade, a questão estéti ca tam bé m es tá presente. Co mo di ssem os ant e-
riormente, a produçã o de teatro , nest a área, é talhada pela cu lt ura da comunidade.
Trata-se de um a est ética com padrões particulares que não pode se r jul gada seg un do
parâmetros estranhos a ela:

o status de tod a arte legítim a e da alta c u lt ura é co n firma do por u m a elite burgue sa
qu e prom o ve se u própri o gos to so cial e cu lt u ralm ent e det ermin ad o e nqua n to na-
turalm ente su perio r e rele ga a arte co m u n itá ria para lima categoria d ecididam ente
inferi or de ex p ress ão cu lt u ral".

31 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 204 P
32 KERSHA\V, 1978 apud KERSHA\'Y, 1992, p. 6 I.
}; HAWKINS apud VA N ERVEN, 2001, p. 252.

T I. 1Tk O [ '011/ sIlHJ)[ 181


A su peração dest a perspectiva pode contribuir para enfo car um novo enten-
dimento da es tética do Teatro na C omunidade, de modo a supe rar a forma como
es ta área art ística vem se ndo marginalizada: " [...] não são so me nt e os participantes
cons id era dos 'periféricos' [da periferia], teatro na comunidade enquanto uma for-
ma artística também o é"·". Esta marginalização, que se reflete na falta de publica-
ções a respeito, na falt a de debate sobre seus resultados e da especificidad e de SUa
esté tica, preci sa ser superada para qu e possamos no s informar mais so b re as práticas
existentes, para que estas práticas po ssam ser aprimoradas e que revertam e m mais
benefício s para as comunidades.

5. VAN ERV EN, 200 1, p. 2.

182 Jf.' RCI.' P O.III'[ () NO(;{DIi.'


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Ttsrno r C ()I I/ S /W N 183


F O RM AR E FORMAR- SE EM TEATRO

Maria Beatriz Mendonça (B)'a B raga)

o presente t exto trata d e al guns asp ectos da red escoberta do corpo n o t eatro
do sé cu lo XX e co mo a rep ercussão d este fato é ev id ente na formação d o ato r d esde
este período , qualifi cando este ato d e formar.
Isto se revela não so m ente na prática de formação técnica em si, por meio d as es-
colas formais de atuação, dos teatros-escola, teatros-laboratório, ou mesm o em grupos
artísti co s, como também pela difusão da ação-física como unidade mínima da atuação
teatral, fruto da organização e codificação de seu próprio material-corpo, numa compo-
sição ex press iva autoral . Também, nota-se tal valorização do corpo na expe rimentaçã o
cên ica d e um " te atro teatral ", uma teatralidade da fo rm a revelad a ao logo do séc u lo XX .
Jacq ues Co pea u fo i um d o s protagonist as d o fen ômen o da ret eatrali za çâo d o
teatro n a F ranç a, valo riza n do o es tu do co rpo ra l na s suas práti cas ped agó gicas, e m
sua Esco la Vie ux -Co lom b ie r na Paris d e 1920. Em busca d e uma po éti ca n o va par a
o ator, Co pe au propô s um m odo diferen ciad o d e ed uc aç ão t eatral ex iste nt e, qu e era
fundada na tradi çã o do s chamado s "Conservat órios de Art e Dramática ", comuns
na Europa desde o século XIX.

A escola deve servir (na pr op ost a de Copeau) para 'ult rapassar o ator'. Se por um lado,
Copeau se distancia dos 'cabo rinos do músculo ' e da 'afe tação' produzida por certos
méto dos n ovos (a refer ência à Rítmi ca de Dalcro ze é explícita), ao mesm o t empo,
por out ro lado, ele estabelece no 'conhecimento e expe riência do corpo humano'
um a das tarefas prioritárias da formação do ato r e elo gia a 'ação real' no palco ' .

o conhecim ento d e t écnica s corporais, da s di sciplinas física s qu e envo lviam


m o vim en tos ginás t icos, rítmic o s, es tu dos da s má scaras da Commedia dell 'A I"te e d e
neutralidad e, es tu dos de dramati za çã o mímica, dan ça s e improvisaçõ es co rpo rais,
é um va lo r priorizad o na formaçã o do arti sta cê n ico, no Vieu x C ol ombier, co m a
inten ção d e " fazer co m qu e o ator adquirisse consciência d as possibilidades exp res-
sivas, em gra n de mai oria ine xpl oradas, e qu e estavam à su a di sposição, p ondo-o , as-
sim , na s condições de poder transformar-se d e intérprete-executante em criador?' ,

1 MARIN IS, Marco de. Copeau, Decroux e o nascimento do mim o corpo ral. Trad ução de J. R.
Faleiro. Revista O Teatro Transcende, Blumenau, p. 46, 2004.
2 MARIN IS, 2004, p. 48.

185
o valor do trabalho co rporal também é difundid o nas ex pe riências de ence -
nadores e peda go go s teatrais como C. Stanislavski , V M eyerhold, E. D ecr ou x, J.
Grot owski, J. Lecoq , E. Barba e T. Suzuki, o u mesm o nas proposições de G. C raig,
A . Appia e C. Dullin. A preocupação destes teatrólogos era (e é) com a "formação
técnica do ator ". Par a uma conceituação d esta formação destaca- se, por exem plo ,
o pensamento de qu e a condução do exer cício do ofício d ev e ser realizada, espe-
cialmente, por pou cos professore s, ou mesmo por um só m estre qu e pud esse pro-
porcionar um desen volvimento harmonioso entre o corpo d o ator e seu pr óprio
caráte r.
Entretanto , "es te m od o de formação segundo o qual os atores elegem um
m estre do mesmo modo em que este último os elege é um modelo pouco freqüente
nas escolas institucionais":'. Por outro lado , percebe-se qu e as escolas formais de
teatro no Brasil, curso s d e forma ção de atores em nível m édi o ou os bacharelad o s
de interpreta ção te at ral, têm buscado, na m edida do possível , se inspi rar nas práticas
difundidas pelos referidos teatrólogo s, re s guardando-s e, evidentem ente, os ob jeti-
vos d e cada propost a d e ens ino e prática n os referid os co nte xtos . Mas, é evidente
qu e as visões de atuação exercitadas no s teatros-lab oratório e teatros-escola rep er-
cute m so bremaneira no dia-a-dia da esco la in stitucional d e teatro co n te m po râneo.
Se isto não se dá na pr ópria atitude do arti sta-professor e na sua pr áti ca de ens ino,
se revela em projetos de pesqui sa-prática qu e valorizam o teatro d e gru po e os pro-
cessos de pr eparação técnica co nt inuada d e ator. Fortalecer na esco la fo rma l modos
alte rn ativos de aprendiza gem associados a pesqui sas-práticas é di fundir um a idéia
de atuação que está agregada ao exercíc io di ári o de treinament o técni co, bem como
ao trabalho da int eri oridade do ator. Um trabalh o com o es te, o rient ado por u m
art is ta-professor, pod e se inspirar na ética d e trabalho dos m estres oc ide ntais. Além
di sso, tais práticas, por es tarem men os su jeitas às leis do m er cad o pr ofi ssion al do
teatro, podem e devem sus te nta r o apro fun dam ento do tra balho téc nico na bu s-
ca d e co mpos ições realm ente experime ntais. Portanto, na esco la fo rmal, há espaço
pa ra um exercício de atuação diferen ciad o e m " Labo rató rios d e A tuação".
Ao lado da pr áti ca de ens ino na esco la institucional pod e- se observar no Bras il
pro cessos de aprendizagem em meio ao trabalh o de grupos e co mpa nhias teatr ais
- tea t ros- laborató rio -, o u ao redor da prática de algun s encen ad ores qu e po ssu em
tamb ém uma visão peda gó gica.
Talvez o que es te ja de fato na base de to das estas expe riênc ias e tentati vas
de aprofundamento técnico de ator é a aquisiçã o e o exercício co nt inuado d e um a
"c iência da ação ". Para isso, em qualqu er contexto, é necessári o reconhecer o co r-
po, expandi-lo, sens ib ilizá-lo, isto é, "refaz er o corpo", ma s bu scando- se o se nt ido
profundo do fazer teatral e sua relação co m a soc iedade.
Nes te momento, é imp ortante lembrar qu e a neces sidade d o ato r " ref aze r o
co rpo" foi marcad a de m od o radical em Antonin Artaud. Sua esc rit ura te at ral, po-
ét ica funda mental, revelou a imp ortância d o ato r dar fo rm a à sua vida interi or, isto
é, diminuir uma defasagem qu e há entre o sentir e o express ar. Apesar dele não ter,
na verdade, valorizado a técni ca-práti ca co rpo ral co mo meio d e dimi nuir es ta fen da,

J FÉRAL, j osett e. A atu ação se ensina? In: o Teatro, teoria)' práctica: más aliá de las fron-
leras. Bueno s Air es: Ga lerna , 2003a. p. 2 11.

186 M ARIA ll LH KIZ MI.N DO N C,:A ( II )A B K..\ GA)


ele elabo ro u em se us escritos qu e o ator deveria experimentar a revelação de si na
exp eri ência física e sen sorial. M as, quand o Artaud entra em contato com o teatro de
Bali, ba stante codificado corporalmente, um teatro de tradi ção cultural, ele par C(C II
"
)
co m preende r, en tão, a idéia da o rganicida d e da forma. E, portanto, percebeu qu c a
eficácia técnica não d estr ói a espontaneidade, o sent ir, mas o faz du rar no temp o por
"
mei o da ação . A técnica não é, po rém , algo sim ples, frágil, ou m esm o sem utilid ade
na prática do ato r. Pelo contrário. Nos es critos de Artaud pode- se perceber a val o -
)
rização do ato de "refazer o corpo" com o at o complexo, forte e a té violento. Tran s-
formação esse ncialme nte nec essária ao ato r. E em qualqu er âm b ito de formação.
1
Falar em transfo rmação do corpo , estado físico numa natureza diferen ciad a,
e "ex t raco tidiana", é pedir qu e a aqui sição d est e out ro co rpo passe por um pro cc ssu
e de d ecomposição. D ecompor para re compor. A decomposiçã o , do ponto de vista
s técnico corporal, pode ser revel ada no tr abalho de consciência, seg mentação e fle-
s xib ilida de, em bu sca d e mo vim entos plástico s que exteriorize m também o tr abal h o
co m a in terioridade, num ato de esc uta int erna e externa para a com pos ição de um a
e exp ressão o rgânica. D o s teatról o go s cita dos nest e texto , cad a um, à sua man eira,
'- exp erimentou ou aind a exp erimenta isso em diálo go co m out ras culturas e outros
l.
campos do conhecimento.
i,
Refazer o co rpo trata , portanto , do ato de re-elaboração físic a e mental qu e é
"c riação de si mesm o ". Ou "alquimia, ciênc ia da arte, recriação , m etamorfose".
s Faço agor a um co m entário esp ecífico, a t ítul o de curios ida de , qu e nos ap on-
tam valores do ato d e refa zer o corpo e podem fo rt alecer a id éia d e fo rmação trat ad a
o aqui . Falo da so cied ade indígena e seu s mitos, qu e entendo pos suir conexão com o
n assunto dest e texto.
n Segundo Eduardo Viveiros de C as t ro:', a mitol o gia indígena ente nde qu e é
o pe la co rpo ralidad e qu e no s enraizamo s no co smo s e nos di fer en ciam o s. N o X in gu.
J reclusão pubert ária tem o o bjetivo d e mu dar o co rpo do índ io. Mas, porqu e fa/ cllI

o isso se o co rp o irá " m udar" mesmo n o proc esso da adol escên cia? O índi o adoles-
cente, nesta "clausu ra", faz um a dieta co m plexa, exe rcita apr endi za gem art esã, tom a
il rem édi os vegeta is na b usca de uma es pécie de purgação e de criação d e um a fo rma
.s co rporal est éti ca d esejável na tri b o. A passa gem do índi o por esse processo o torn a
11
"be m-educado ". H á uma ligação da evo lução física com a evo lução moral. N esta so -
ciedad e edu car sign ifica "t ransfo rmar o co rp o" . C ert as atividades que con sideram o s
IS
simbólicas, tr an scend entes, para os índ io s são at ividades corpo rais. A atividade do
.a Xarnã, por exemp lo, ex ige um a co nd ição corporal apta ao seu trabalho. Sua ef icá cia
-: de ação relaciona- se diretamente à sua co n d ição de preparo pessoal. Outro as pe cto
o curioso da relação co m o co rpo é qu e a noção de par entesco , n a visão amerín d ia,
pode- se dar pós-natalmente, e nã o só pr é-natalm ente. Es ta é um a conce pç ão qu e
o se relaciona às aquisiçõ es adquiridas na co n vivência. Pode-se, assim, "a ssimilar " o
)- corpo do outro pela co nvivênc ia. A co rporalidade co m um se dá pela tr oca estabele-
o cida p elo grupo . O corpo é, então, vis to co mo um "organismo ab ert o ". E, co m isso ,
r, pode- se, de fato, "faze r co rpo s" . Tal fazer rela cion a-se diretame nte com a abe rt u ra
do corpo às trocas po ssíveis, mas reconh ecen do ta mbém a resp onsabilidade com o
outro.

1-
• O ant ropólogo Ed uar do V. de Cas tro (U FRJ) pro feriu palestra na UFMG, no C urso de A rtes
C ênicas, em 16/ 05/ 05, a q ual assisti, cont ribuindo , então, para algumas reflexõe s expos tas aqui.

F C R.lIAR [ { O fl IlA R- I[ t.st rt.s tt«, 187

I
Da exposição acim a, de staco a questão da " me t am o rfos e", pois no uni verso
ame rí n d io o corpo é o lu gar da di fer ença, e nã o o d a se melhança, do co m u m a todos,
como muitas vezes acreditam os .
Vo lto, ent ão, ao p en sam ento so b re o ato r c riad o r, o ato r "me t amo rfos e -
ador ", aque le qu e forma e se form a com a arte do teatro, e qu e precisa de uma
técn ica para isso .
N a preparação para es ta m etamorfose, que p ode gerar um a co m pos ição no
sent ido d e uma teatral id ade da forma, elabora-se uma estruturação por m ei o de
princípio s q ue podem se r traduzidos aqui pelo o q ue di z Fayga O strow er:

F o rmar imp orta em tran sformar. Todo proce sso de elaboração e dese nvo lvimento
abrange um pr oce sso d in âmico d e transf orm ação , em qu e a matéri a, q ue orienta a
ação c riativa, é tran sf orm ad a pel a mesma aç ão . Tran sf o rmando-se , a maté ria não é
d est itu íd a de seu ca rá te r. Pelo cont rário, ela é m ais d ifer en ciada e, ao mes mo te m-
p o , é dehnida co mo um m od o d e se r. Tran sf o rm ando-se e ad qui rin do fo rm a nova,
a m at éria adqu ire uni cid ad e e é reafirmada em su a essência. El a se to rna m at éria-
confi gu rada , matéria-e-fo rma, e ne ssa sí ntese e n t re o gera l e ún ico é imp regnada de
si cnificacões'.
c ,

A p er cepção sobre a forma na ex pos ição de O stro wer é imp ort ant e para
que va lo rize mos o ato c r iado r d o art is ta cê nico na bu sca de su a própria rec riação
de id entidade.

A fo r m a é algo em si de lim ita do - ma s não n o se n t ido d e um a área d em arcada por


fro n te iras . N em , aliás, nas a rtes pl ásticas a fo rm a se resume a co nfiguraçõe s d e super-
fíc ie, a uma espéc ie d e silh ue tas . A form a é o m od o por qu e se rela cion am o s ien ó-
me no s, é o mo d o co mo se co nfiguram ce rta s rela ções d ent ro d e um con texto . [...J A
fo rm a se rá sem p re com p re endida co mo a es t rut ura das relaçõe s, co mo o mod o po r
qu e as relações se orde n am e se co n figura m".

Talvez sejam ne stas rela çõ es que mai s n os formam os, nos cons truí mos, elabo -
ram o s e n os expressamo s. No ato de fo rmar, exe rcit an d o o form ar- se, trabalham os
so b re nó s m esm os. Exe rc itamos uma prime ira co nfiguração por m eio de técni cas
apreendidas e de princípios de ordem filos ófi ca, so cio ló gica, ent re outros.
M as, consid erand o-n os à parte d o pen sam ento am eríndio citado , locali zando-
n os no mundo urbano contemporâneo, em mu itas ve ze s dissociado de tradiç ões
cult urais e hi st óricas, como despertar este "t rabalho so b re nós m esmo s"? Ou , ain -
da, co m o aprofundá-lo, m ant ê-l o , t ran smiti-lo?
Fundamentalm ente, faz -se necessário conhecer as experiências realizad as na for-
maçã o de atores do século XX e refletir sobre suas ba ses ideoló gicas e esté ticas. É im-
pr escindível t ambém possui r um diagn óstic o claro so b re o momento h ist órico atual da
aprendizagem cên ica no Brasil, e nos locais qu e será exercitada, bem como sua relação
co m a profi ssionali zação, isto é, co m o aspecto eco nõ mico do fomento e m anuten ção
da arte teat ral. Tamb ém , é ne cessário o desen volvimen to de uma preparação técnica

5 OST RO W E R, Fayga. C riatividade e processos de cnaçâo. Petrópo lis: Vozes, 1987. p. 51.
I, OSTROWE R, 1987, p. 79.

188 M A"I.'\ Ik .' rRIZ ivh.NlJONÇA ( Ih A B"AGA)


artístic a es pe cífica, mais difundida como trei nam ento de ator, em ba ses técnicas cor-
o
s, porais consoantes com o momento cultural e hi stórico (de cada um ou cada gr!!pn ),
que pr omo va a vivência do aprendizado sobre o próprio co rpo do atuante, seus l n il ! l ('~;
e bloqueios. A partir do trabalho de sensibili za ção corporal e consciência, qu e podem
ser fundamentados no s trabalhos da Educação Somática, pode-se elaborar um progra-
a b
ma de vivências corporai s e exercícios físicos de acordo com o perfil dos parricipam.-;
Começa-se, então, um trabalho na direç ão de um treinamento continuado de ator, mas
o
.e que sem p re deverá estar apto a transformações.

Para que o treinam ento se ja o percurso de uma vida, deve inscrever- se na dura-
o
ção. [...] É pr eciso co nc ebê -lo como uma 'formação contínua' para qu e pcr mi t,

a
realmente que o ator, como o músico ou o bailarino, mantenha seu instrumento
é (físico e psíqui co) em condições, quer di zer em estado de criação ",
1-

a, o treinamento pode se reali zar de m od o -coletivo e individual. N o m odo in-


1-
dividual há a po ssibilidade de se in vestigar as próprias resist ências para o ato da me-
le tam orfo se necessária, e de m odo mai s ade qu ad o às po ssibilidades físic as e mentai s
de ca da um. Mas, o jo go do treinamento não d eve se distanciar da bu sca d e esboços
de est ru t uras, do ato d e configuração."C om o lembra Grotowski, todo s ess es movi-
mentos não devem ser produzido s inutilmente. A pesqui sa da forma é importante,
o pois é unicamente através dela que escapamos do treinamento repetitivo para entrar
na arte'" .
Se o treinamento de ator é um a proposição para uma formação humana, de re-
) r
criação e metamorfose, podemos dizer que este é um sentido imp ortante d o ens ino da
r- atu ação .
) -
Para Copeau, o ensino teatral em si é tamb ém uma art e. Isto porque seu princípio
A de ve se r o de elevação do ser human o, não algo exclus ivame nte técnic o. Trat a-se de um
)r
projeto de formaçã o que prevê espaço de escutas internas, extern as, bem co m o espaço
de exp o sição extrema. Se é técnica psicofísica , esta prevê o exercício do humano, das re-
lações interpessoais, da reflexão de valores éti cos e estéticos da atualidade. A prática de
)-
o rien tação deste caminho nec essit a não só de sabed o ria conteudístic a. N ecessit a vivên-
)s cia, tolerância, rigor, clareza, cuidad o, humor, esc uta e olhar refinados, resp onsabilidade
as extrem a e desejo de co nvivên cia co m um outro em todas as suas complexidad es.
Trata-se, portanto, de uma lid erança di fícil e qu e exige constante aprim o ra-
)-
m ento . É tentador co n co rd ar com G. Crai g qu ando ele di z que "atuar nã o se en si-
~s
na", ou mesmo apoiar certo pensamento ba st ante difundido de que ator não se faz,
1-
nasce. E , ain da, de defender qu e o treinamento é somente um meio pelo qual há o
de spertar da inspiração , o estabelecim ento d o estado de cri ati vidade e qu e não est a-
bele ce a co n figuração. "Es tas co nv icçõ es diversa s sobre a natureza da atuação rem e-
[1-
tem , de fato, a um a qu estão mui to mais pragmáti ca e mui to mai s co m plex a sob re a
:la pert in ên cia d o en sin amento teatra l. Que é o qu e se pode ensinar ve rda d eiram ente
io ao ato r? Que formação pode ser dada a ele" '".
io
ca 7 FÉRAL, Josette. Voc ê disse trainin g? In: o Teatro, teoria J' prácti ca: más allá de las fron -
leras. Buen os Aire s: Ga lerna, 2003b. p. 174.
x FÉRA L, 200 3b, p. 176.
9 FÉRA L, 2003a, p. 204.

F O R.IIA R [ rO R.\ /.' R- \ [ Ll I iEl1 R O 189


Esta questão, às vezes, se apresenta a mim por es t u d ant es-ato res em período
de inicia ção d e sua formaçã o. Exist e um a ans iedade e uma n ece ssidade de afirmação
da s pe ssoalidades qu e revelam , de fato , pressões so frid as com a questão da forma-
ção art ística, so b re o que é isso de fato, e o qu e conseguirão conquistar num curso
de atuação. Somado a isso existe uma crítica pública de artistas importantes, como
Eu gêni o Barba, às escolas formais (co mo os cursos de gra d uação em art es cênicas,
por exem plo ) qu e, seg undo ele, m esmo p ossuindo profissionais eficazes es tão su jei-
tos a contextos estruturais o u ideol ógi co s complexos, que interferem diretam ente
em sua pr ática influenciando negativam ente na forma ção n o s aspirantes a ator.
Já tratei desta qu estão mais acima e o qu e posso ain da diz er é qu e percebo a
formação do ator com o algo mó vel en t re arte e ciênc ia.

Certamente, a ciência de que se trata aqui não é uma ciência pura cujos preceitos
são claros, uní voc os e normati vos. Trata-se mais de métodos diversos criado s de
man eira pra gmática por meio de exp erim entaç ões diver sas. Eles permitem esc a-
par de um a apr endizagem intu itiva da atua ção! ".

Se o teatro pode ser ens inado, pod e-se apr ender de di ver sas maneiras, m esmo
porque existem variados teatros, mesm o qu e eu defenda aqui técnicas corporais
como técnicas fundamentai s para o ator. Há pessoas qu e necessitam aprend ê-las
por mei o de artistas-profes sores , mestres únic os ou o rientado res profissionai s. Há
aqueles que diante d e uma vivênc ia pe sso al artísti ca co nt in uada, em grupos o u não,
co ns egue m est abele cer as pr óprias o rientações , o rgan iza n do, inclu sive, propo si ções
técnicas de formaçã o para si e para o u t ros . Talvez nã o exista uma regra única de for-
mação de ato r. O qu e de fato está implícito na co nvivên cia co m os arti stas-forma-
dores talvez se ja, em si, a idéia do trabalh o continuad o , o ex ercício permanent e d o
atu ante, so b urn a orientaçáo expe r iente e sensível, qu e co n d uza trabalh os d e revisã o
t écnica, experim entações pr áticas e composições aut orais. Mas, ainda penso que o
qu e está mesm o no cerne da quest ão da formação é a bu sca d o formar-se . E para isso
é preciso uma rigoro sa metamorfo se.

IC FÉRAL, 2003a, p. 206.


10 REF ERÊNCI AS
lo
FÉRAL, J o sene. A at uação se ens ina? In : . Teatro, teoria y práctica: más all.i (L h ,
a-
[ro nte ras. Bue no s Aires: Galerna, 2003a. p. 203-2 18.
50
10
FÉRAL, [ oserre. Você disse trainin g? In: . Teatro, teoria y práctica: m.ix ..11:: ,1, b .,
IS,
[ro nt eras, Bue nos A ires: Galern a, 2003b. p. 165-180.
~I -

te
MARINIS, Marco de . Cop eau, Decrou x e o nascimen to do m imo co rpo ral. Tradu ção de J.
R. Fa leiro. Revista O Teatro Transcende , Blurne nau, p. 45-5 6, 2004.
la

OSTRüWER , Fayga. C riativ idade e p rocessos de criação. Petróp olis: Vozes, 1'187.

os
de
:a-

10

1lS

as
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ro ,
-es
lr-

lo
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'o
So

F OR.If.' R 1 r OR.I/.' R- \ l DI n A TRO 191


P ESQUISA NA LIC EN CI ATURA EM ARTES C ÊNI CAS

Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

En t re as atri buições do pr of essor uni ver sit ário, a ativ idade de ensino, para-
d oxalm ente, não goza ent re nós do me sm o pr estí gio pr oporcion ad o pela at uação
em pes quisa. O fato, por exemplo, de o ens ino ser men o s suje ito a avaliações e a
m o dalidad es de co nt ro le por parte da in stituição ilustra bem essa co nsta tação. Se a
autono mia do pr ofessor é um a pr er ro gati va inc ontest ável de seu trabalho, a obser-
vação indi ca que o re lativo isolam en to d o doc ente acaba não favo rece ndo o debate
so bre ques tões d e ens ino /a prendiz age m, ce nt rais em seu cot idiano . Raram ent e en -
sino e pesqui sa são enc arados com o dimen sões que se alim entam reciprocamente,
no co njunto das fun çõ es doc entes; a seg unda delas tende a gan ha r proemin ência em
detr imen to da prim eira.
Nos limit es restri to s dest e art igo, nossa inte nção é levantar questões acerca
da relação entre a fo rmação e a pesquisa dent ro da Licenc iatura em Artes Cênicas,
de mod o a indicar ca m in hos, tendo em vista a superação da dico tom ia entre essas
du as esferas da atuação docente.
A referência d a qual nos valemos é a Licen ciatura em A rtes Cênicas oferecida
pela Escola de Co m u nicações e Artes da Uni ver sidade d e São Paul o. Em seu âmago,
o que se pro põe é um a reflexão so bre as fina lidades, as co nd ições, os méto do s e os
pro cediment os relativos a pr oc essos de ens ino / aprendiz age m dentro de mani fest a-
ções da ce na co n te m po rânea .
A met a é formar um pr ofission al ca paz de coo rde nar pro cessos artís ticos efe-
tivament e sinto niza dos co m os d esafios das manifest ações cênicas de nosso tem po,
seja em term os da ed ucação forma l - esco las de educação infant il, ens ino funda-
m entai e ens ino m édi o - seja no âmbi to da ação sóc io-c ult ural- no qu adro das pol í-
ticas públicas, em o rga nizações não- governam entai s, ce ntros cult ura is, associações,
prisões, hospitais e o ut ros co ntex tos .
Ass im sendo, faze mos nosso o en unc iado formulad o pel a Com issão Perma-
nente de Licen ciaturas da USP qu e, em 2004, tr abalhou em prol da valorização e
redime ns iona mento das licenciaturas o fere cidas por aqu ela uni ver sid ade. O que se
pretend e é a "fo rmação de um pr ofi ssion al co m pete nte, socialmente crítico e res-
pon sável pelos d estinos de uma sociedade qu e se deseja jus ta, dem ocrática e auto-

193
sus te n táve l'" , N osso d esafio , portanto, é tradu zir essas metas em term o s artísti cos,
mais precisamente, cê nicos.
O recrutamento dos es tu dant es da Lic enciatura em Artes Cênicas é feit o já h;l
cerca d e 15 anos, de mod o es pe cífico. Ao se in scr ever para o co ncu rso vest ibular, o
can d id ato já é levad o a optar ent re o Bacharelado - qu e compreende as habilitações
de Interpretação, Di reção Teatral, Teoria e C rí t ica e C enografia - e a Licenciatu ra.
A s prova s específicas do co ncurso vestibular para a Licenciatura ocorrem na segun-
da e última fase da seleção e têm como objetivo avaliar a disp onibilidade de jogo do
can d ida to, sua capacida de d e reflexão crítica a part ir de leituras esp ecífica s, assim
co mo suas condições de an alisar criticamen te uma prát ica artísti ca na áre a.
À primeira vista pode parecer est ran ha a so licitaç ão de tal escolha a joven s
recém sa ídos do ensino m édio, antes me sm o de se re m admitidos na universidade.
Sep arar assim de modo cat egórico Bacharelado e Licenciatura, dim en sões do co-
nh ecimen to teatral tã o entrelaçadas ent re si, pod e par ecer, de ime d iato, incoerent e.
Tal medida, no enta nt o , tem uma razão de se r: ela busca enfat iza r a importância do
pap el da universidade na formação de do centes. Co ns ideramos de primordial im-
portân cia qu e a USP de stine an ualme nt e dez vagas no vestibular para a formação de
pr ofessores de Artes Cênicas, na perspectiva de ass egurar para essa ár ea - nem sem-
pr e suf icien te men te co nhecid a pel o grande públi co - a relevânc ia qu e cara cteriza as
relaçõe s ent re as artes da ce na e a tarefa edu cacio nal.
A p osição de dest aqu e at ribuída pela US P j formação de docentes em Artes
Cên icas apresenta sem dú vida rep ercussões favor áveis em to do o ter rit ório nacional
e con t ribui para qu e a Pedagogia do Teatro se desenvolva entre nós. A organização
cur ricu lar em pauta foge à fórmula inde sejável "c onhecimentos específicos da área
+ d isciplinas did áticas". D esd e o início da escolaridade, es tudantes da Licenciatura e
do Bach ar elado, juntos, problernatizam as co mplexas ques tões vinc u ladas às fun ções
sociais do teat ro em nossa sociedade. D entro de disc iplinas co mo "Tea t ro e Edu cação
I e II" e "P rá tica de En sin o I a UI ", cent rais dentro da ha bilitação Licenciatura e ofe re-
cidas dentro do pr óprio D epartamen to de Art es Cê nicas, são tr azidas à tona teorias,
experiênc ias, inda gações, qu e co nf igura m o corpo d e co nhec ime ntos na área.
Dest ac arem os a partir d e agora doi s disp o siti vo s de tr abalho n o s quais se dá
de m odo tan gível a art icu lação entre formação e pesq uisa à qu al n o s referim os há
pouco. Graças em gran de parte a eles é qu e n o sso curso vai além da simp les tr ans-
mi ssão d e conteúdos tidos co m o desejávei s, mas se propõe a gerar n ovos conheci-
mentos sob re a Peda go gia do Teatro . O prim e iro desses disp osit ivo s d iz re speito à
int egração entre a grad uação e a p ós- gradu ação ; o segundo está vinc u lado à práti ca
de ens ino.

Graduação c Pós-graduação, uma via de mão dupla

D esd e os anos noventa, a USP abri ga o Pro grama de A perfe iço a mento de
Ens in o - PAE, de stinad o a alu n os de pós- gr adua ção de mes trado e d outorado nela
matriculad o s, cuj o objet ivo é o de aprimo ra r a forma ção do pós- gr aduando para a
ati vidade didática de graduação. Co m exc eção dos es tudantes beneficiados co m a

I UN IV ERSIDAD E D E SÃO PAULO . Pró -Reitoria de Graduacão. Co missão Per manente de

Licenciatu ras. Program a de form ação de professores. São Paulo, 2004. p. 7.

194 clt·:klA L OU .4 1)[ So u ., BAT<ROI PI 'po


)s, Bolsa D emanda Social da Fundação C oord ena ção de Aperfeiçoamen to de Pessoal
de N ível Superior - Capes , para os quais o estág io é obrigató rio, o PAE é opcional
há para os alunos de pós- graduação da Universidad e.
.0
O s prof essor es de graduação desejosos de receber um est udant e PAE em sua
es sala de aula apresentam um programa de atividad es destinad o a um estagiário a ser
~a .
posteriormente determinado. O s estudantes int eressados em desemp enhar es se pa
n- pel passam por um a preparação pedagógica em forma de conjunto de co nferências
10 co m esp ecialistas das áreas de Educação e de Art e, tend o como tema que stões vin-
m culadas ao ensino superio r. Uma vez acerta da a dupla docente-discent e que vai tra-
balhar de modo associ ado, iniciam-se as atividad es, que normalmente se estendem
ns por um ou dois semest res leti vos.
le. A títul o de ilus tração, apresentam os em rápid as palavras um exemplo de es-
a- tágio PAE, dentro da disciplina "Prátic a de Ensino IlI ", por nó s asse gurada. Duas
te. verte n tes complementa res caracteri zam o domíni o dessa disciplin a: por um lado, iY;
:lo estudantes observam situações de aprendi zagem teatral em diferentes locais, fora
n- dos muros da Universidade; por outro, no s enc ontros que correspondern às aulas
de propriament e ditas, os processos observad os são objeto de exame pelo co njunto
n- dos alunos, à luz da biblio grafia especializada e de discussões de caráte r pedagógico ,
as assumidas coletivamente.
N o contexto das aulas de "Prática de Ensino I, II e IlI", de fato , os estudant es
:es se defr ontam com as mais variadas quest ões envo lvidas em processos educacionais.
lal Aspecto s de carát er artístic o, instituci onal , e, naturalment e, de caráte r especifica-
ão mente didáti co se ent recruzam dentro de situações concretas de apre ndizagem do
'ea teatro, co nfigurando, por si só, a complexidade e a relevância da disciplin a.
1 e N o caso em pauta, pr opusemos ao esta giário um esquem a de atu ação de seis
ies hor as semanais, dist ribu ídas entre diferent es tip os de ação pedagógica:
ão O rganização do cronog rama de estágio dos estu dant es da turma, a part ir do
.e- elenc o de institui ções e ent idades propos to pela pr ofessora resp on sável;
as,
- Apr esent ação e discussão do pr o jeto de pesquisa de mestrad o ou dou tora-
dá do Em curso ;

IS-
- Levantam ento de bibli ografia específica relacionada às quest ões suscitadas
CI-
pelos estudantes nos co ntextos obse rvados;

rca - Contribuição no trabalh o coletiv o de elaboração de instrum en to s de ob-


servação a serem utilizados pelos estudante s;

- Coordenação de seminários de reflexão sobre a práti ca;

de - Orienta ção relativa à elabora ção dos relatórios finais de est ágio .
ela
aa Essa aproximação ent re a graduação e a p ós- gradua çâo strictu sen su, sem dúvi-
1 a da, con stitui um avanço palpável para o estreitam ento das relações entre a tran smis-
são do conhecimento já adquirido e a formulação de novo s saberes, missão precípua
de do ensino superior.

P n Q l'/\ .; " .1 l1 CL \(.IAJ'I ' /( ; [ I! A Rf[ 1 C [ s/C<I 195


Muitos são os benefício s d o proj eto do ponto de vis ta do pós- graduando. O
contato diret o com a problemática do ens ino do teatro em diferentes es feras po de
se r de gra n de va lia para o desen vol vimento de sua pesquisa, caso se u tem a te nli.i
correlaçõ es com ess a diversidad e. Sem dúvida, o interes se por que stõe s d e en sin o
se rá ampliad o , assim com o as h abilidades de cun ho p ropriament e didátic o . Tomar
conhecimen to d o conteúdo da dis ciplina de graduaçã o , assim como reunir elemen-
tos q ue perm itam uma visão m ais ab ran gent e da s rel açõ es humana s dent ro da sala
de aula são, ce rtam ent e, out ras co n q u istas efetivadas.
Na ó t ica do s es tuda n tes de gr;ld uação as va nt age ns tamb ém são n ítidas. E les
passam a co n t ar co m a co labo raç ão s is te má t ica d e um p esquisador envo lvid o Com
in vesti gação aca dê mica dentro d o próprio cam po para o qu al estão se n do Íorrna-
dos, o que, ce rt ame n t e, passar á a co ns t itu ir font e de novo s que stionam en t o s e
ref lexões. Ao en trare m em co n tato co m os embates e d esafi o s da pesquisa at ravé s
da ex pe riê nc ia d o es tag iário PA E, su a visão so bre o en sino se rá din ami zad a e enr i-
qu ecida, p oi s pe squi sa impli ca , in evitavelmente, ca pac ida d e' de faz er perguntas, de
co locar em xe q ue o já in stituído, a ca pacidade de in ventar. O s futuro s profes sores
ne sse m omento em forma ção ini ci al são , assim, inc enti vad o s a levantar qu es t õ es
so b re sua própria práti ca co m o regentes de cla sse o u coo rde nado res de o f ic ina,
prátic a essa que, aliás, não raro se in ic ia bem an te s do momento previ st o den tro
da cha mada "grade curr icu lar" .
Um terceiro ponto de vista qu e cabe levar em conta é o do docente responsável
pela discipli na de graduação. As re pe rc ussões advin das d o diálo go siste mático com o
estagiário se faze m se nt ir em term o s de um estímulo à contínua reformulaç ão, t an to
do co n teúdo pro posto, quanto das m odalidades escolh idas para tr abalhá-l o . Os riscos
de cristaliza ção d o desempenh o d o pro fessor uni versitári o ficam, assim, sig nificat i\'.1-
mente reduzido s.

Processos de aprendizagem teatral na berlinda

Gradativamente, ao lon go das di sciplinas "P rá t ica de En sin o I a III" e, 11:1

seqüê ncia, dent ro do cha ma do "Tra b alho de Co n cluso d e C urso (T C C )", os es tu -


dant es passam d a o bservação d e situaçõe s de apre nd iz age m de teatro, para a co o r-
den ação de s itu ações dessa natureza.
A o longo d os es tágios d e o bse rvação - em edu ca ção formal e in formal - os
estudant es aprendem a pro blemati zar as sit uações obj eto de sua ate nç ão. O qu e se
dá, em úl tim a aná lise, é um a in ve st igação so bre as p rática s; eles são co nv idados a
int erro gar a ação pedagó gica qu e se d esenrola diant e de sua presen ça, a p re n de n do
a valer-se das referên cias te ó ricas - o riun das tant o d o s es tu d os teatrai s q uant o da
peda gogia - co mo in strumento para abrir fért eis perspectivas de an álise .
O T C C , qu e se sucede àq ue les es tág ios, é um m oment o- cha ve n a formação,
o casião em q ue o estud ant e é co nvo ca do a se val er d os diferentes co n h ec ime n tos
elabo rado s ao lon go da esco lar idade universitári a, tendo em vista a formulação de
um p roj eto de apren di zagem t eatral a se r por ele co o rdenado .
Como já se po de vislum bra r, es ta mos diant e de um a persp ecti va d e formação
profi ssional fun da da na re flexão so b re a própria p ráti ca, n o s m old es de trabalh o s já
bastante difund ido s, co mo é o caso, entre outros, de autores com o Girou x e Per-

196 :11.41<14 L r: U .1fJ/. SOI ?A 8 ANR()\ P U 'O


renoud. Parte-se de problemas ligados a processos de ensino-aprendizagem, que se
tornam objeto de exame por parte do estudante. Na seqüência, se dá o caminho in-
verso: a partir da investigação sobre a própria ação pedagógica, ele é novameru c: :,
metido à prática, agora em um novo patamar, ao qual foi integrada a análise críuc.a.
Nessa medida, espera-se que o estudante da Licenciatura, uma vez formado,
esteja em condições de produzir novos conhecimentos, sendo capaz de:

- Formular com precisão questões sobre o significado, a natureza e as moda-


lidades da sua intervencão;
- Prever procedimentos sistemáticos e rigorosos que possam ser colocados
a serviço da busca de resposta a essas questões;
- Proceder à apresentação e divulgação dos resultados obtidos.

A elaboração do chamado ICe se inicia, portanto, com um projeto tearr.il


preciso, envolvendo a coordenação de um processo de aprendizagem em teatro
dentro de um contexto escolhido pelo aluno. No bojo desse projeto, nosso estu-
dante é convidado a levantar uma ou mais perguntas sobre sua própria prática, de
modo a poder refletir sobre suas opções, sua conduta e/ou demais aspectos de sua
intervenção.
Subjaz a esse encaminhamento um ponto de vista singular sobre a subjetivi-
dade do pesquisador; longe de ser encarada como um obstáculo, ela é incorporada
como parcela relevante para a produção de conhecimento em arte.
Ao longo do semestre letivo no qual se dão os encontros de trabalho sobre
os passos do ICC dentro da universidade, os estudantes apresentam seus projetos
em forma de seminário. Cada um desses textos é colocado na berlinda, de modo a
receber contribuições dos demais membros da turma, estimulados a examinar sua
formulação, ainda em processo. Percebe-se sem dificuldade a riqueza de tal disposi-
tivo, no qual cada um aprende com as aspirações e as dificuldades do outro.
Dois ou três meses mais tarde, no final do cronograma previsto para a duração
do processo teatral, dispositivo semelhante é instaurado, tendo agora como meta co-
locar em palita a redação da monografia correspondente ao ICC propriamente dito.
As hesitações e impasses característicos do desafio representado pelo ato da
escrita em circunstâncias dessa ordem foram por nós analisados em artigo recente! e
constituem, sem dúvida, tema para caudalosas considerações. Por ora, vale lembrar
que se trata de um momento delicado na perspectiva do estudante, que deve orga-
nizar seu pensamento e registrá-lo, de modo a partilhá-lo com leitores estrangeiros
ao seu percurso.
O procedimento ao qual acabamos de fazer referência é o da discussão coleti-
va a partir do sumário de cada um dos textos de ICC, em fase de elaboração. Pro-
mover o debate em torno do sumário do texto final apresenta a vantagem de focali-
zar o âmago da organização do pensamento do autor; a estruturação entre as partes
é reveladora de conquistas e de fragilidades no plano da exposição das idéias.
Cada um dos sumários, uma vez colocado na berlinda, engendra comentários,
críticas, sugestões cuja manifestação constitui, em si mesma, outro aprendizado.

2 ruro, Maria Lúcia de Souza Barros, Rituais de iniciação. Reuista da FUNDARTE, Montenc-
gro, ano 4, v. 4, n. 8, p. 42-44, jul.Zdez. 2004.

P[IQ1"I\.' .\'.4 UCE!iCl.4FUê4 [.(1 AIU 1\ CtSIU\ 197


Ent re as contribuições verificadas, salientam- se:

- Indicações b ibliográf icas;


- A po ntamento s que contribue m pa ra a explicitação m ais clara de rn ouv.i.
çõe s, inten çõe s, dificuldades;
- Indicaçõ es relativas à precisão d e referên cias teóricas, temas e conceit os:
- Sugestõ es relativas à documentação da pesquisa;
- Propost as refe rentes à organ ização do s tópi cos , visando a arti culaçõ es mais
coerentes, produtivas e originais entre eles.

É em relação a este último item que se revela de mod o ma is nítido a riqu cv.i
d o pro cedimento. O exame do sumário do co lega pode ser espec ialme n te revelado r
d as fragilidades do se u próp rio. En volv idos com o desafi o de co nc eb er um a estru-
turação satisfató ria par a as co nsiderações pretendidas, o s es t uda ntes se mo st ram
particularment e sensív eis às solu çõe s en contrad as pelos com pa n he iros. Examinar o
s umário do out ro cons titu i, simulta ne ame n te, um eficaz exercíc io de autoc rítica.
H á um asp ecto que chama a ate nção dentro de ssas co ns ide rações, po r seu
ca ráte r recorrente nas di ferentes turmas: a desejável tessitura entre o refe re ncia l
t eórico e a experiênc ia emp írica. Ad vertido s ao lon go de vár ios sem estr es so b re a
n ecessária alime ntação recíproca ent re essas es feras e co loc ados diante do desafio
de m o strar essa articulação no cerne d o text o em processo, o s alu nos se dão conta,
q ua se sem pre pela primeira vez , d a co m plexi dade da tarefa. N esse se nt ido , mult i-
pli cam-se as pro po siçõ es ten do em vista a elaboração de u ma tessitura qu e po ssa
respon der, pelo men o s provisori amente, a esse difícil requ isito .
O tra balho de co nclusão de cu rso vem sendo to rna do público por ocas ião de
um a mos tra anual organ izada pelos licenci an d os, que reúne também a apresentac.io
d as manifest ações teat rais po r eles coorde nadas. G ru pos de di ferentes po ntos da capi-
ta l e m unicípios vizin hos, trabalhados pelo s fo rm and os, compa rece m à univer sidad e
par a mostrar as realizações que, direta o u indi retam ent e, estão na base do s T C C. A
variação do form ato d essas apres entações é o co ração mesm o da prop osta ; de aulas
abe rta s a encenaçõe s já b ur iladas, passando por performances e fo rmas breves, um
sig nificativo lequ e de m odalidades evide nc ia para o públ ico a mul tipl icidade da cena
co nte mpo rânea.
A mon ografia, por sua vez, é o bje to de uma sessão também pública, na qual
inte rvêm pelo me no s d oi s docentes: um professo r co nv ida do e o professor resp o n-
sáve l pela disciplina "TCC", além de a palavra ser estendida ao público presente.
Es tamo s novamente diant e de um a rica situação de aprendizagem : na berlinda,
a produ ção de cada um dos alun os gera descob ertas relevant es para o conjunto da
turma.
O leito r desta s páginas certa me nte sabe que os cam inho s aq ui descritos não
são tão reg ulare s qua nto pod em levar a c rer, co mo tampou co são ise ntos dos recu o s
e hesita çõ es que cos tu m am estar no cern e d a tarefa de fo rmaçã o .
Ao destacar, por um lado, a art icu lação ent re a gra duação e a pó s-gradu ação
e, por out ro , o que stionament o da própria práti ca teatral co m o fo nte de pe squisa,
no ssa in te nçã o é aponta r pist as qu e con d uzam à p rog res siva au to no mi a do estu da n-
t e em sua busca de co ns t ruç ão de conhecimento.

I 98 .I/AR/.' l .ic.t« /)1 S OU .1 B .1RR( 1\ /'U 'O


REF ERÊNCIAS

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Ritu ais de iniciação. Revista da FUNDAK1'f , .\'1, ·;,
renegro, ano 4, v. 4, n. S, p. 42-44, jul.!dez. 2004.

UNIVERSIDADE D E SÃO PAULO. Pró-Reito ria de Graduação. Comissão l' crm .u u -ru.e
de Licenciaturas. Programa de formação de professores. São Paulo, 2004.
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T EAT RO, JOGO E BRINCADEIRA:
UMA PROPO STA D E RE ELABO RAÇÃO DO CA \'A LO MARI NHO
EM PROCED IMENTO S PEDAGÓG ICOS PARA O ATOR

Mariana O liveira

Este art igo apres enta part e dos res ultados da pe squisa de m estrado O jogo da
cena do Ca va lo Marinho : diálogos entre teatro c brincadeira, desen vol vida no âmbi-
to d o p ro jeto integrad o U m estu do sobre o côm ico : o teatro popular no R/'(N! entre
rito s e festas , so b o rientação da Proí-. Bct i Rabct t i (Maria de Lo urdes Rabetti), no
Pro grama de Pós-G rad uação em Teatro da Uni-Ri o. At ravés d e trabalh o de cam po
co m o bs ervação participante na zo na da mata n ort e pernambuc ana, especialme n te
na cidade d e Co nd ado , e de laboratório ex peri me n ta l realizad o na Esco la de Teatro
d a Uni- Rio, pro curou -se d iscu ti r o lu gar, no te atro, da brincad eira, Cal(':-:('ria ado -
i .id a pelos realizad ores do Cavalo Marinh o ao dc sig ,ü- lo. Ma n ifestação l"pt't xu\.ir
de mú lti p las o rigens, da s qu ais aq uela lo calizada ent re os escravos na s se nza las d o s
engenhos canavieiros cos t uma ser a ma is refer ida pel os brincadores , aprese n ta -se
h o je pri ncipalmente po r co nt rato nas fe sta s de rua muni cipais por ocasião do Na ta l,
d o A no Novo e das hom enagen s aos santos padroeiros nos m eses d e d ezembro e
j an eiro.
Os diálogos travad os en tre os d oi s fe nômenos, tan to n o pl an o t e órico, ana -
lítico e conceitual qu anto no d a exper imen tação prática, que em verdad e oc o rr em
não di sso ciados, ma s ent re laçados e d e maneira o rgânica, são atravessa d o s pela no-
ção d e jo go: prim eiro p orqu e pa rt icipa das essê nc ias de am bos, se n do o " pr óprio
m odo d e ser da o bra d e ane l", e, seg u ndo , porqu e se te m mo strad o reco rren te na s
refl exõ es acerca do teat ro co nte m po râ ne o.
A s idéias gerais da brincad eira e d o teatro ap ro ximam-se em pon tos que con st i-
tuem também carac terísticas lúd icas: faz-de-co nt a, u niverso ima gin ati vo , estado dife-
renciad o de presença, ambie nte instável, estabeleci me nto de relação , har m o nia, ritmo ,
absorção, enca nta me nto, circu ns crição es paço-tem poral, capacidade agregadora, regra-
mente , rep etição, acaso , atenção, relaxame nto, liberd ade, o rde m, cre nça , co nsciência' .

I GADAMER, H ans-C eo rg. A o nt olog ia da obra de arte e se u significado herm enêu ti ca. In :
. Verdade e m étodo. Pet r ópol is: Vozes, 1997. p. 174-20 I .
-;-:::-=-=-:=
H UI ZI N GA, j oh an. H om o ludens. 5. ed. São Pau lo: Per spec tiva, 2004. 243 p.

201
Al guns desses fato res evidenciam-se quando o teatro funci ona plenam ente, quand o se
diz qu e "o jogo acontece". Um últim o elemento que participa tanto do ser jo go, quanto
do ser teatro e do ser brincadeira é a "d iversão", ist o é, uma "volta ou 've rsão' de no sso
ser para o ultravit al ou irreal":' , para um mundo "diferente", termo usado pel os brin.
cad ores para designar com po siti vidade a autonomia da brincadeira em relação às leis
da realidade co tid iana. Acerca disso, vale o comentário fei to po r mestre Mariano Teles
durante entrevista dada à aut ora em 31/12/ 04, em Chã de Camará, zon a rural do mun i-
cípio de Aliança/PE, sobre a co n fecção das máscara s do Cavalo Marinho:

A máscara [...] pod e sair at é um pouco parecida co m a gente , mas ela pode sair
uma coisa mais divulgada , diferente, ela pode não ficar me smo a feição de um a
pe ssoa [...] a gent e tem qu e fazer ela mais est ran ha [...] tem que fazer a m áscara
diferente e a gent e nunca faz que nem uma obra da natureza [...] só é bonita por-
que é feia, que se fosse bonita, a gente não qu eri a nem o lhar.

A in stauração de um am b iente es p ecial e d e um universo ima gin at ivo faz da


" cena em jogo " uma realidade aut ônoma, livre da preocupação de representar fiel-
m ente o qu e es tá além dela e qu e trabalha com o que se d á n o ato, no present e. Para
jo gar em t eatro, além de sabe r rep etir, é n eces sário estar ab ert o para o inesp erado e
lidar co m ele de forma não m ecani zada, mas co m di sp onibilidade e escuta. Exe cutar
opõ e- se a jo gar, aç ão qu e se dá cons igo mesm o, co m o am b iente, co m o o u t ro ator
e co m o públi co.
Ap ós ess a sé rie de aprox im ações, é ne cessári o at entar para a nã o ide n t idade
ab soluta ent re jo go, teatro e brincadeira. Se no jo go em geral todos são jo gad ore s,
n o representativo, n o t eatro o u na in st ân cia esp etacular, como a brinc ade ira, a ação
se dá em relação a algu ém :

o jogo não é mais, aqui, um mero repr esenta r-se de um movimento orde nad o, nem
mesmo um mero representa}", no qual se revela a criança que brinca, mas é, "repre -
sentando para...". Essa indicação, próp ria a to do representar, também será resga tada
aqui, tornando-se const ituti va para o ser da arte' .

Assim, dá- se a transformação do jogo em configuração, isto é, sua co ns umação


em ser arte. A separação palco/platéia marc a o lim ite entre o princípio lúdi co e o jo go
teatral '.
No que tan ge às práticas teatrais contemporâneas, incluindo as performances, per-
cebe-se qu e ganham espaço reflexivo qu estõ es tais co mo as da presença, do imprevi sto,
da escuta (ato res/ ato res, atores/ esp ect ad ores, ato res/ambiente) e das dualidad es lúdicas
evide nc iadas em experiências qu e exploram os limites entre tempos, espa ços e su jeitos
reais e ficcion ais.
A an álise d e alguns asp ec to s fu nda me ntais da brincad eira d o C avalo Mar in ho
estreita o s diálogos com o fa zer teatral co ntem p o râneo :

) O RTE GA Y GASS ET, ]osé.A idéia do teatro, São Paulo: Per sp ect iva, 1991. p. 51
, GADAME R, 1997, p. 184, destaques da autor a.
PAVI S, Patrice. Dicionário de teatro , 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. 512 p.

202 M ,' "I AI\ A 0 11"'1''''


1) a ab ertura e a fragmentação da din âmica d e apresentação, com diss olução
do en cadeamento causal, mi stura de gêneros e valo rização do est ilo épico-
narrativo, rem etem dir et amente à estrut ur a nã o aristo télica, ma s feita p o r
co lage ns, justa e so bre posições, sem necessária sucessão lógica ou coerente
de açõ es bem definidas, também encontrada nas performances e em o u t ros
exe mplos da cena contem porânea;
2) a apre ndizag em não siste má ti ca, mas por b ricolagem, observando a di ver
sidade de sabe res e fontes, re lacio na-se à man eira d e se estudar teatro ho je, e m
meio a uma enormidade de estil o s, escolas e tradicõ es;
3) a con fig uração espac ial da roda co loca atuantes e especta do res e m rel a-
ção di versa da quela qu e define es paços di stintos d e at ividade versus pu r.i
passivid ad e, contribuindo para a in vestigação conte m po rânea acerca d as
possíveis formas d e rela ção entre atuação e recep ção;
4) o modo de "co locar fig ura"" re po rta à int erpretação citac io nal o u ilu stra-
tiva vista em mui tas exp eri ên cias teat rais co ntem porâneas nas qu ais n ão se
co nstitu i exa ta mente nem o personagem dr am áti co n em o narrador, mas algo
en tre eles, numa função en u nciat iva, como a que cu m pre a figura de mestre
A mb rósio no Cava lo Mar inh o . Numa espécie d e p ró lo go e at ravés d e mími-
cas e dan ças específicas, ele apresenta as dem ais figu ras . Essas, próxim as d o s
person agen s- tipo, são co loc adas p or um pequ en o número de "fig u reiros" ao
longo de um a brin cadeira, em ep isódios curtos , verdadeiras passagen s. Man-
têm -se num plan o bast ante supe rficial, não t ridim en si onal e sem pr o fundid a-
de, e q ues tio nam a representação pela ambigüid ade es ta belecida em rela ção à
próp ria pessoa do figurei ro;
5) o destaqu e da dimensão do significante sob re a d o significado con stitui as-
pect o tam bém verificáve l no teat ro co nte m po râ neo. N a brincade ira, o m o do
de co nstrução poéti ca e a rep etição de tr ech os dialo gad os fazem esrnaece r o
sentido pro fund o do texto falado e chamam a at en ção para sua so norida de.

As experiê ncias teatrais co nte m porâneas, como "p rát icas significantes'" qu e não
visam à revelação de um sent ido preexistente, mas geram um a polifonia de significa dos,
são ainda marcadas por recorrên cias: paródia, citação, lin guagem lírico-narrat iva, ten-
dência miscelânica, indecisão quanto ao gênero de manife stação art ística, multiplicidade
)
de referências culturais, mobilidade ou ambigüidade de sen tidos (o signo perde a relação
)
estável ent re o significante e o sign ificado), auto-ironia, ten são ent re atu alidad e cê n ica
e relato, probl ernatização da representação do sujeito e da est ru tura trad icional do per-
sonagem". D entre elas, alguma s clarame nt e dialogam com os aspectos da b rincade ira
"
acima citados.
s
s
I, Figur a é o term o utiliz ado no Cavalo M arinho para designar espécies de pers o nagen s-t ipo,
elaborados princ ipalme nte a part ir de um no me enunc iativo e de um ro teiro de aç ões na ro da da
)
brincadeira. Ex.: o Soldado da Gurita vem prender os nega s Ma tc us e Bastião, para que dêem a
licença para o Cap itão "dar o baile na cida de"; a Véia do Bamb u vem atrás de seu pássa ro perdi-
do, a Ema, e demonstra ser mui to "fogosa" dia nte dos homen s presentes, coloca ndo-os de baixo
de sua saia.
7 PAVIS, Patri ce. La herencia clásica dei teatro post mod ern o. In: EI teatro y 5It recepci ôn,
o

semiologia, cruce de culuiras y postmodcrnismo . C uba: UN EAC , 1994. p. 207-223 .


x DA COSTA, J osé. Narração e represent ação do suje ito no teat ro co ntemporâneo. O Perceue-
jo: Revista de Teatro, Crítica e Esté tica, Rio de Janeiro , ano 8, n. 9, p. 3-24,2000.

T C.'IR O, l OCO [ BRINC .H)UR.4 203

J
As arte s da performance também constituem espaç o d e releitura e redi scus-
são do s conceitos estruturais da cena, rompendo com a representação e aproximai, ..
do-se da vida . São alguns de seu s traços característicos: estrutura não aristorclic.i,
ambi güidade entre personagem e a própria pessoa do artista, caráter de event o, de
rito, dialética entre tempos e espaços ficcionais e reais, que convivem sobreposto s,
relaçã o m ais mítica ou ritual ística qu e estética entre esp ectador e objeto art ís i ico ,
com po ssibilidade de maior grau de ati vidade daquele", Aqui, também se verifi cam
coincidências em relacão ao ob servado n a análise da brincadeira.
Estabelecidos esse s assuntos comuns, propõe-se es tender os diálo gos entre
teatro e brincadeira para o campo da experimentação prática. Para tanto, é pr ecis o
refletir acerca da maneira de enfrentar o obj eto do Ca valo M arinho:

No que se refere à possibilidade de percep ção de acervos técni cos, talvez devês sem o s
suspender o encanta mento aflorado pela visão de uma natu reza característica, c, (" 1 1 ·
tão, indagar por um sistema de códigos, tão singulares quanto longame'nte elaborado s.
E, acredito, será at ravés do cuidadoso exercício de comp reensão e recuperação deste s
códigos, e atrav és de sua precisa reelabo ração em métod os e técnicas adequados à art e
da cena, que um teatro popular pode vir a se articular de maneira mais efetiva, isto é,
como expressão artística e criadora au r ônorna [...] I:.

Ou seja, os "c ó d igos da brincadeira" pod em se oferec er para "reelabora ção "
n o âm bito teatral, se m se deixar de atentar paL1 o fato de qu e esse proces so consti-
tui " [... J não uma absorção cênica estreita e simplista de persi stentes manifestaçõ es
populares enc ontradas nas correntes artísti cas o u Icst ivas de culturas tradicionai s
[...]"" . Não se trat a de reprodução, m as de um "d iálogo forte" com a tradição ,
de maneira qu e sejam percebidos "códi go s (persistê ncias) e variáveis (aptas para
ad equ açõ es a novos tempos ou a no vos sent idos)" capazes de gerar "co mbinações
in ovadora s"!", Essa experi ência materi alizou-se no âmbi to d o laboratóri o experi-
m entai () jogo da cena do Cavalo Marinho: experimentando teatro e brincadeira .
Aqu i a noção de jo go volt a a se r importan te, mais especificamente no modo
de trabalho com os atores-pesquisadores do laboratório , qu e lançaram mão de di -
verso s exercícios lúdi cos reelaborados a partir do universo t emático, do rep ertóri o
t écnico e de mom entos esp eciais do Ca valo Marinho .
Ao long o do tempo, os jogos dramáticos e teatrais passam a desempenhar atraente
função pedagógica no en sino do teatro: na década 1940, en cenadores franceses criam a
Educação pelo jogo dramático, estabel ecendo tradi ção verificável nas propostas de Jean-
Pi erre Ryn gaerr ": na década de 1950, Viola Spolin con strói um sistema de jogos teatrais
e improvisacionai s amplamente difundido no teatr o-educação ; no Brasil, os exemplos
d'O Tablado de Maria C lara Machado e de Au gusto Boal confirmam a tendência para o
recurso do jogo no ens ino da linguagem teatral. O laborat óri o seguiu esse caminho.

') CO HEN, Renato. Perionnance como linguagem , São Paulo: Perspectiva, 2002. 176 p.
I: RA BETTI, Beti. Memória e culturas do "popular" no teatro: o típico e as técnicas. O Perceue-
jo: Revista de Teatro, Crítica e Es tética. Rio de Janeiro, ano 8, n. S, p. 7- 8, 2000 ..
1I RA BETTI, 2000, p. 11 .

I ~ RAB ETTI, 2000, p. 11-1 2.


U MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo : experimento de aprendizagem e criação do

teatro. São Paulo: Hucitcc, 2004. 245 p.

204 1\1". r., ,,,\ 0 11\1 11\.\


,.

.- Ass im, redimen sionou-se a no ção de b rin cadeira, não mais exclusivame nte a
t-
categoria usad a pelos praticantes do Cavalo Marinho par a designá-lo, mas tamlx- rn
i,
a próp ria defin ição para determinada man eira de se pesquisar e trabalhar ('1lJ lC;J1 10 .
e Nest a nova co ncepç ão, out ros dois conceitos são fundam entais: o "es tado da brin ca-
i,
deira" e o "co rpo -que -b rinca". O prim eiro traduz-se por um es ta do de con cenrracâo
l,
rela xada ou de ate nção se m tensão que ocorre em corpos co nec tados, trabalhand o rn I
n conjunto, e o segun do refere-s e ao corpo que exp erimenta tal estado, promo, preci so ,
em escuta, e qu e se organi za com soltura art icu lar, opo siçõ es segm entares e agilidadé'
e de movimentação .
o O "co rpo-que -b rinc a" avizinha-se da im edi ata resp o sta à exc itação do s refle·
xos preconi zad a po r Meye rho ld, em 1969 e d o "cor po dec id ido" de Barba I j . I :,·i..
den cia- se no tr abalh o energético prom otor d e disponibilidade física e mental para
a criação, con struído a partir da dança d o Cavalo Marinho e, ainda, numa sé rie de
1-
jogos úte is par a o tr ein o de hab ilidades específicas para um ato r pr esente, ati vo ('
s. ágil, e para o est ím u lo à sua capacidade im agin ativa.
:5
O trab alh o ene rg ét ico desen vol veu-se através do tr einamento na danç a d o
:e C ava lo Marinho, fei to livrem en te n o es paço a part ir da célula rítm ica usada n o
,
-, "Tombo do mar guio", espécie de jogo-dança em roda. N o centro da roda, duplas d e
participantes se alterna m , estabelecendo instiga nt es diál o go s co rpo rais, e dos " pas-
so s so ltos ", man eira enco nt rada para d esi gnar os passos de dan ça qu e con st itue m
" o rep ertóri o geral da b rin cad eir a. Cam inhand o e marcand o a pul sação da m úsic.i,
1- os alunos -pesq uisa do res acresce ntavam, aos p oucos, contratempos, pau sas, qu ed as,
:5 suspensões e aproximações com cole gas. Ess e exercício gero u um estado de di s·-
IS
ponibilidade, tanto fís ica, pela mobiliza ção d o corpo tod o, co mo tam bém de j() y,() ,
isto é, de est ab elecim en to de relação co m o o utro, at ravés do o lhar e do diálo go
'a co rpo ral. D esen vol veu a am pliação do cam po de visão, além de um relin .uucn to du s
.s se nt ido s e da perce p çâo , e revelou -se um jogo de pr esença ao requerer atcncao m ú]
1- tipla, distribuída entre ritmo, espaço , o lh ar, en contro. N este jo go de conjunto, t o -
dos marcam o tem po juntos e vigo ros ame nt e, est abelecendo conexão co m .1 t cr: .1 . '\
o pul sação, a exaus tão e o desafio diant e d o s limites relac io na m-se à ge ração d.lllU ek
1- "es ta do de brincade ira" co m parável à diver são e ao prazer da b rin cadeira de cr ia nç.i ,
o Em de termin ado m om en to, o corpo , impul sionado pel o d iálogo co m o outro é' pela
força coletiva, ult rapa ssa o est ágio do cansaço p ara alcan çar um a espécie de 1, , \, ( , /. 1.
e Entre o s o ut ros jo gos experimentados, vale comen tar, especialmente , o "Tom -
a bo do marguio", o "Não pague não , Capitão!", o "Sinhá v éia, sinhá moça ", o "Cap it:i«
1- viu? ", o "Roda de figuras" e o "Capitão m andou chamar? ". O primeiro, realizad o i al
IS qu al no C avalo Marinho , revela có digo s es t ru turant es da brincad eira. N ele, impo rt.i
>s nã o tanto o desempen h o indi vidual, ma s o aspe cto coletivo, como no próp rio se n t ido
o de jo go:

Se co nsid erarm o s o us o da pal av ra jo go (00 '] se m p re es tá im p líc ito o vaivém d e u m


m ovime nto , o qu al n âo est á fixado e m nenhum alvo, n o q ua l ter mi ne . A isso corres -
po nd e tamb é m o orig inário sig ni fica do da palavra jo go co mo d an ça, q ue sob revive

14 MEYERH OLD , V. O ator e sua arua çâo. In : CONRADO, A ldo rn ar (O rg.). O teatro de

o Meyerhold. Rio de J an eiro : C ivilização Brasileira, 196 9. p. 173- 174; BA RBA, Eugenio . A canoa
de papel: tr atado de ant ro po log ia teatral. 55.0 Pa ulo: Hu cit cc, 199 4. p . 54.

TL" "" , [O L O [ RliI.\ U /) [/ !U 205

I
em múltiplas forma s de palavras [...). O movim ent o, que é jogo, não po ssui nenhum
alvo em que termin e, mas renova-se em permanent e repetição. O movimento de v:l i- ,
v érn é obviamente tão cent ral para a determinação da nature za do jogo que Ch \' ~~,l ,)
ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. [...) O jogo é a co nsum nç.i. ,
do movimento com o tal" .

No "Tombo do mar guio" , jogo-dança, o vaivém do movim ento é expcri .


m entad o praticament e n o s corpos do s jo gad ore s-dan çarin o s qu e di sp õem de
um a es t ru t ura básica de pa sso dentro da qu al lh es é permitido o improvi so.
A ssegurada s a continuidad e e a fluência d o jo go, o asp ec to pessoal pode e deve
. . .
m serir- se no conjunto .
O "Não pague não, C apitão !", reelaborad o a partir da s chama das "c o bran-
ças" d o Cavalo Marinho, realiza-se em roda ao som de músi ca. Em determinado
m oment o, um jo gador, de " co rpo decidid o ", entra na rod a de safiando o u t ro CU! I:
o o lha r. O primeiro "cobra " o seg undo, am eaçando-o com rasteiras, pernadas, gi-
ros ou o ut ros movimentos até imobilizá-lo através de uma "chave de pernas". A
intenção de prender o o ut ro gera tensão lúdica, constituindo uma das tarefas do
jo go , ma s não o seu úni co objetivo: "[...] o verda d eiro fim do jo go n ão é, de forma
alguma, a solução dessas tarefas, mas a regulamentação e a confi guração d o próprio
m o vimento do jo go" I/'.
Isto é, os jo gadores d evem pr eocupar-se co m o qu e faz em na trajet ória em
direçã o ao s fins. Assim, a alternância de dinâmicas de m ovim entação (r ápidas ou
lentas, curvilíneas o u retas), o se u uso criter io so (pa ra distrair o u am eaça r, por
exempl o) , o o lhar conce nt rado no outro, a manha, a malícia , o entrentarnen to, ()
corpo tático , qu e joga para de sfazer o jo go d o outro, encon trand o brechas para
esc apar quando enc urr alado, fazem daqu ele m omen to um aconteciment o vivo c
m t ere ssan t e.
O "Sinhá v éia, si n há mo ça" utili za uma cu rt a passagem do epi sódi o da V éia
do Bambu, figura do C avalo Marinho, para estabelecer um jo go em roda. Uma pes-
soa entra e co loca uma máscara de Véia; os d emais canta m anun ciando a chegada
de seu marido que lhe tra z um presente. A V éia esc olhe algu ém e pergunta de qu e
present e se trata. Rep etindo-se ess a dinâmi ca uma sé rie de ve zes, confi gura-se um
jo go cu m ulativo em qu e o jo gad or qu e cu m pre a fun ção da V éia tem qu e lembrar a
cad a vez tod os os presentes tra zidos pelo m arid o . Al ém disso, porém, importa fun -
damentalm ente que o alun o-ator con strua aos p oucos, na ação e na relação com os
d emais, a sua V éia, sem ter es tabe lec ido a pnori c omposição de voz o u d e postura.
N o "Capitão viu?" uma célula textual do diál o go ent re me stre Ambrósio e
C apitão , figuras do Cavalo Marinho , é reutili zada, ob jetivan do d esenvolver um a
" palav ra q ue brinca", isto é, uma palavra que segue uma estrutura pré-definida, mas
qu e tem lib erdade de variar, de improvisar, desde q ue de man eira precisa e sem per-
der de vista o rot eiro . A repeti ção também faz c o m que o foc o não esteja na o be-
di ênci a ao t empo psicol ó gico de ação, refl exão e reação co ere ntes, mas na própria
so no rida de gerada, na fo r ma de se dizer. Em rod a, ao so m da música, um vo lunt ário
en t ra e reali za a dança de uma figura. Em seguida, pergunta ao Cap it ão se a rcc onhe-

\; GA DAME R, 1997, p. 177.


GA D AME R, 1997, p. 183.
1( ,

206 l\ 1.·\ KL\ r<.\ O LI\ " K.\


111
ceu, desencadeando o diálogo pré-definido. Ao final, deve realizar a dança de outra
1-
figura e assim por diante. O jogador tem que ter atitude e decisão.

a
Os dois últimos jogos, mais propriamente de reelaboração, "Roda de figuras"
LO
e "Capitão mandou chamar?", visam à criação de novas figuras, inspiradas no re-
pertório técnico e temático do Cavalo Marinho. No primeiro, em roda e ao som de
música, uma pessoa entra realizando uma dança que revele o estado de sua figura.
1-
Os demais participantes propõem um nome significativo para aquela figura. No
le segundo, alguém assume a função de Capitão, dizendo para que mandou chamar
aquela figura e, assim, auxiliando na definição de sua ação específica.
Te Além dessas atividades, exercícios improvisacionais calcados nas idéias de ro-
teiro, repertório e figuras, à semelhança da dinâmica estudada na brincadeira do
1- Cavalo Marinho, constituem interessante engrenagem cênica teatral que, a partir
lo de estrutura mais ou menos fixa, oferece espaço para inúmeras novas combina-
m ções. Essa noção de improvisação como espaço combinatório assemelha-se àquela
.l- da Commedia dell'arte, cuja imagem da liberdade e da espontaneidade constitui uma
A falsa idéia do que, na verdade, está relacionado a uma habilidade derivada de intensa
lo prática geradora da possibilidade de uma "composição veloz"!' Como diz mestre
Antônio Teles, irmão de Mariano, deve-se "criar pela memória", ou seja, não se trata
10 nem de jogo totalmente livre, no qual se improvisa acerca de um tema mais ou me-
nos definido, nem de texto ou partitura absolutamente fixos e imutáveis; trata-se de
. . . .
rn um Jogar entre o roteiro e o ImprovIso.
lU Assim, o modo de trabalho constituído, passível de aproveitamento em pes-
Jr quisas ulteriores para elaboração de eficaz treinamento para atores, caracteriza-se,
o de maneira geral, pelas discussões diárias acerca do fazer, pelo trabalho coletivo, do
ra qual a configuração dos exercícios em roda é emblemática e, ainda, pela atividade
e rrazerosa perpassada por divertimento e comicidade.
Os elementos estéticos, o recurso da máscara, a metalinguagem, o estilo
la épico-narrativo integram, ainda, o "sistema de códigos"LS da brincadeira colocado
s- à disposição para direta utilização na cena com vistas a potencializar sua força
:la expressiva. Os materiais do Cavalo Marinho oferecem-se, assim, como poderoso
acervo "indutor", isto é, "propulsor da criação em arte"!", enriquecendo os diá-
m logos entre brincadeira e teatro e, de maneira efetiva, as próprias práticas teatrais
'a contemporâneas.
n-
)S
1.

as
'[-

e-

10
17 TAVIANI, Ferdinando. Once puntos para entender la improvisacion em la Cornmcdia
e- dcll'arte. Máscara: Cuaderno Ibcroamcricano de Reflexion sobre Escenologia, México, ano 4,
n. 21-22, p. 5, jan. 1997.
I, RABETTI, 2000, p. 7.

IY RABETTI, 2000, p. 4.

TIlII"', lOCO [RIU\CA!JUIê4 207


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208 M AKI. ' N A Ouvm o,


I: C ARACT ERIZAÇ ÃO TEATRAL: UMA ARTE A SER DESVENDADA

Mona Magalhács

.o Este t ex to tem como ob jetivo ressaltar ponto s para o estudo da caracteriza-


ção e, em parti cular, da maquiagem cênica, nas escolas, e s ua utilização prática nos
espetácul os t eatrai s. São m uitos os fatores relevantes dentro dest e tema. De início,
ie enfren ta-se uma barreira pe la esca ssez de literatura específica, de informações e de
pr ofi ssionai s capacitados ne ssa área. A s poucas obras encontradas, normalm ente
em o utros idi omas, enfoc am principalm ente o uso de t écni cas. O s livr o s q ue pri-
vilegiam um pen samento so b re a cri ação da caracterização ainda estão aqu ém da
dem anda em relação ao ensino e à prática, qu e vê m se fazendo cada vez mais pre-
sent es nas escolas , festi vais de teatro e mercado de trabalho. Tal lacuna foi o qu e
me in centivou a pe squisar este tema, sob re o qual foi feita a minha dissertação d e
p- 1 mestrado, intitulada Um rosto para a personagem: o processo criativo das maquiagen s

~e -
I do espetáculo teatral 'Partido', do Grupo Ga lpão. D es te modo, destacarei neste arti-
go algun s ponto s em caráter in t ro du t ó rio, que se encontram mais apro fun dado s n a
minh a dis sertação .
Primeiramente, há a necessidade de definir o conceito de cara cterização, para
depois discutir as suas funçõe s no t eatro. A caracterização, em um sent ido lato,
:lia signifi ca d esd e a co nstru ção dos atributos físicos e caracter ísticas psicológicas da
no pe rsonagem pel o s escritores até a sua materializaç ão n o palco o u nas te las (cin em a
ou te levisão) . A maneira que o es critor encont ra pa ra apresentar a p er sonagem ao
leito r se dá p or meio da caracterização. As personagens, seres fictíci o s, rep rodu zi -
do s ou inv entad o s, saídos da m emória, da ob servação o u da im agin ação dos aut o-
res são di sp o stas no romance de uma m an eira fra gmentária, para que, ass im com o
acon te ce na vida real, o leito r po ssa co nhecê - las ao s pouco s, porém de uma forma
mais ló gica, com LIma "linha de coe rê n cia fixada para sem p re, delimitando a curva d e
sua existê nc ia e a natureza do seu mod o-d e-ser'", Para um es tudo mais detalhado a
respeito das téc nicas de caracterização da s personagens utili zadas pelos escritores,
podem se r ve rificadas as seg uintes o b ras :

l CANDIDO, A nto nio et aI. A personagem de ficção . São Paulo : Perspectiva, 2000 . p. 59.

209
Decupagem das características da personagem

Como um modo de id entificação dos atributos das personagens e futura uti-


lização na materialização cênica, utilizo um quadro de anális e baseado no s estudo s
de Renata Pallotini (1989):

Quanto ao espetáculo: Estilo: Proposta texto/montagem.


Época em que se passa a história, ou época em que foi escrita.
Com relação às personagens são verificados os seguintes itens:
Posição sócio-cultural; Sexo ; Idade (C ro noló gica/ aparên cia) ; Raça;
Estado físico do momento;

a) Interferência por uma atividade física (su jeira, suor etc .);
b ) Influência climática (chuva, sol , vento etc.);
c) Sinais particulares/defeitos físicos (cicatrizes, anomalias, queimaduras
etc. ) ;
d) Conformação especial (beleza/aparência grotesca) .

A materialização da personagem

No cinema, na televisão e no teatro, a personagem é encarnada pelo ator, o


que possibilita, des se modo, a sua pas sag em do estado virtual (palavra escrita) para
o estado real construído. Mediante o ator, ela ganha consistência, alterando , assim ,
a perc epção ima ginária do papel, qu e era d e po sse do leitor, e introduz uma persp ec ··
tiva que não é imaginada e, sim , determinada pela encenação .
Robert Abirached observa que o caminho percorrido pela personagem escrita até J
personagem na cena passa pel o imaginári o do ator, e esse imaginário é a dimensão huma-
na do pap el que "a torna legítima aos olhos daqueles que a apreciam [os espectadore s] :",
Conforme pensa Abirached, o ator se submete aos elementos fornecidos pelo escritor
co m o : algumas características físicas ou os chamados atributos, no romance (altu ra,
voz, vestuário, forma de andar) e de algumas coordenadas históricas ou sociais (me io ,
edu cação, profis são et c.). Por meio de sua experiência e sensibilidade, o ator constrói
sua personagem, objetivando-a, dirigindo-a, desfazendo, por conseguinte, a fronteira
atribu ída ao real. Sendo assim, a transformação visual do ator na personagem passa a ser
de grande importância tanto para ele próprio quanto para o espectador. Verifica-se, en-
tão, a real importância da caracterização para a construção facial das criaturas ficcionais,
tanto pela necessidade do ator de se desvincular de sua imagem quanto para a concepção
est ét ica e visual do espetáculo.

A caracterização do ator

É a partir da caracterização que se fará com que a personagem, criada por um


autor, possa ser verossímil ao ser humano, ou seja, como pensa Renata Pallotini:
"[...] seja ela vista pelo ângulo físico, psicológico ou social- ou outros -, a caracte-

2ABlRACHED, Robert . La crisis del personaje em el teatro moderno. Madrid: Asociacion de


Direct ore s de Escena de Espana, 1994. p. 217.
r ização é um con jun to de traços o rg an iz ados, qu e visa m a p ôr d e pé um esq u ema d e
ser humano":'. Para o ator, no te atro, a caracterização é um conjunto de técniC:1S qu e
1- lh e po ssibilitam a c on strução da personagem criada ant eriorm ente pel o .u u o r.
lS N a e nce naç ão, a co ns trução d o ros to d a personagem es tá ins e r ida lia ( ' ,11.1(' "

reri zação que o ator utili za para co m pô- la d e uma forma gera l, e tamb ém (1 <; re-
c u rsos qu e ele ut ili z a p ara criar s uas p ersona gen s, co mo co r po e vo z . N,) cn r.un.o .
trat a- se aqui , da con strução visual do s se r es fi ctícios, es pecific a me n te (1:1 co ns t ru -
ção d o rosto p or mei o da maquiagem. Lembrando, aind a, que o figurin o fa z pan e
d a ca rac te rização vis ua l da p ersonagem .
Para o arq ui teto e fotó grafo Cláudi o A raú jo Kubrusly, o ro sto é ,1 verdadei-
ra id entidade d o se r hum an o, que m esm o com o pa ssar d o s a nos é P I):;:.! \,,, 1 (I seu
re conhecimento. El e se ria co mo páginas de um livro que contam uma história qu e
pode ser lida por seu s sem elhant es. "O rosto ide nt ifica uma única pes so a e evoca
se u m odo de se r, s u a p ersonalid ade e, eve n t ua lme nte, suas idéias'".
1S A art e qu e p o s s ib ilitará a cri ação d ess e ro sto pa ra a p ersonagem é a m a-
qui agem . Para P avi s , e la p o d e se r co ns ide rada o fig urino vivo qu e se in scre v e
na p el e d o ato r, qu e " faz o r o sto pa ss ar d o a ni m ado a o in animad o , fl erta co m
a m áscara'" .

A maquiagern n ã o é, n o e nta nto, u m a ex t en são do corpo como p odem s er a m ás ca ra,


o o figurin o o u o aces só rio . Não é ta m pouco u ma ' téc n ic a d o corpo ' , um .i ' m .i n ei ra
ra com a q ua l os h o m en s sabem uti liza r se u co r po'. É. m elh or di z e ndo , u m filt ro, um a
n, películ a, uma fin a m emb ran a colad a n o ros to : nada est á mais p erto do c urpo do at o r,
na da m el h o r p a ra serv i-lo o u traí-l o q ue e s se i ilm e t ênue",

Constant in Sta n islavski relat a so b re a vinc ulação natural e es!t i, iu que ",
pro ced e entre um a tor e s ua pe rso nagem, co mo p ri vilegia a atuação realista do linal
" d o séc ulo XIX, abordando a relevân cia da carac teri za ção para a trans fo rmação d o
int érprete em personagem , e, de urna m esma iorma, preservá-lo para (r 'c ele pos
sa se tran sformar p or co m p leto em s ua p e rsonagem. "Assi m, a caracre rizaç.io é ,}
o, m ásc ara qu e esco n de o indivídu o-a to r. Prot egid o por ela, [ele] pode despi r .1 alin.i
ói at é o últim o, o mais íntimo detalh e. Es t e é um impo rt ante at rib uto o u traço da
ra - " 7.
tran s fo rm açao
er A caracterização co m o um todo, e a maq uiagern em particular, é um recurso im -
n- portantíssim o pa ra o ator, pois irá ajudá-l o a reve lar a sua pe rsonagem pJr.1 )i 1I1C ~11l0 ,
IS, duran te o seu pro cesso de co nst rução e, mai s adi ant e, n o d esvelar que ir.í proced e r
io em relação ao público qu e o ass ist irá. Tal p ensam en to é co rrobo rado por Rich ard
Co rso n, qu e diz qu e a m aq uiage rn irá ilum ina r a p erson agem tan to para o ato r qu ant o
para o público, proven do seu ve rd ad eiro retrato para ambos . E, p o sso dizer que a m a-

PALLOTfI NI, Renat a. Dmmaturgia: a co nst r u ção d o p er so nagem. São Pau lo: Ática, 1';189 . p.
111
67.
11 : KUB R USLY, Cláudi o Araúj o . O qlle éfowgmfia. São Pau lo: Brasilie n se , 199 1. p. 35.
e- ) PAVIS, Pat rice. D icionário de teatro , São Pa u lo : Persp ectiva, 1999. p. 23 2.
PAV IS, Pat rice. A an álise dos espetáculos: teatro , mímica, dan ça, dan ça-teatro. c inc m» . S;i"
Paul o : Pers pe ctiva, 2003 . p. 170.
7 STAN ISLAVSKI, Consta ntinoA construçâo da persOl/agem. Rio de J aneiro : C ivilização Bra , i1ci ra,
de
1986. p. 53.

C 4K4C lL Rfl.4\.Ao I L 411i.4L: 1'." .4 .4RIL .4 l / R /) [ 51 I NIJ.llH 2 11


quiagem irá tornar a pers onagem palpável para seu intérprete, o qu e antes era, com o
defin e Pallottini, "um fanta sma se m forma "R, a partir do momento em que o ator a vê
sobre seu ro sto este se torna mais vivo, é como se foss e o seu real nascimento.
A maquiagem cênica também é um importante preparo para o ator oriental ou
ocidental, como é relatad o por Pronko. Em seu Íivro é encontrado um depoimento
de um ator do Kabuki em excursão aos Estados Unidos, em 1960 : "Quando voc ê
vai ao teatro cedo, você com eça fazendo sua maquilagem vagarosa e calmamente, e,
na hora em que você está pronto, então você está olhando a personagem no espelho.
Você está preparado'",

Máscara x Maquiagem

Para Roubine, o rosto do ator numa caracterização pode estar nu , maquiado


ou mascarado " . Para Jean-Louis Barrault, "a m áscara e a maquiagem ap es ar de se-
rem um caso extremo se aproximam em algumas estéticas teatrais"!', com isso, faço
algumas o bs ervações acerca da primeira, já que a segunda será vista com mais aten-
ção . Para Amleto Sartori e Abirached, a máscara nasceu da necessidade d e se anular
as características do ator para que ele pudesse se d escobrir um indi vídu o com vida
independente, permitind o de senvolver diferentes caracteres morais sem se preocu-
par com o julgamento so bre su a conduta, pen samento análogo ao de Stanislavski!'.
A máscara, segu ndo Roubin e, "[...] se di stingue da maquiagem pelo fato de
anula :', com uma su perfície rígida, a mobilidade expressiva do ro sto! '. Para Pavis,
es ta mesma " [...] más car a d esrealiza a personagem , ao introduzir um corpo estra-
nh o na relação de identificaçã o do es pectado r com o ator" !', m otivo pelo qual, para
Roubine, "[...] o códi go mim ético dominante a b aniu d o palc o moderno" !", cuj o
o b jet ivo é o da ilusão so b re o real.

A maquiagem e suas funções

"Um rosto no meio do palco. Uma plat éia inteira na frente". Zeca Camargo co-
meça co m esta frase o capítu lo relativo à maquiagem da s artes cênicas, do livro A m a-
quiagem atrav és dos temposI!>. Com certe za, uma da s funções da maquiagem cênica é a
de tornar o ros to do ator perceptível ao público. N o entanto, ela não se redu z apenas a
valorizar e a ressaltar traço s verossímeis e realista s, d o ator ou da p ersonagem. Segundo
Pavis, ela " [...] assume um relevo particular, visto ser o último toque dos preparativos
do ro sto do ator e porque contém uma série de informaç ões?". Seguindo esse pensa-
mento, Corson acredita que assim co mo a expressã o vocal e corpo ral, "a maquiagem

, PALLüTINI, 1989, p. 63.


'iUTEM ON apud PRü NKO , Leonard C. Teatro : lest e &: oes te. São Paul o: Per specti va, 1986.
p.1S I.
I: ROUBIN E, j ean-j acqu es. A arte do ator . Rio de J an eiro:]. Zahar, 1987. p. 56.
11 BAR RAU LT, [ can-Loui s. Pr éia sc . In : BAISSE, G uy; ROBIN, Jean. M aquillages ct p en-uqucs
au théatre . Par is: Librairic Th éarralc, 1954 . p. 6.
, ~ STA N ISLAVSKI, 1986
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I ~ PAVIS , 1999, p. 235.
l i RO U BINE, 1987, p. SlJ.

1(, C A MA RG O , 1987, p. 80.

17 PAVIS, 19lJ 9, p. 231.

212 M O N A I- I.\ CA I IlM'


faz parte do o fício do ator?", e a ne gligência neste cam po poderá levar ao fra casso o
projeto visua l preciso e cuidadoso da maquiagem. Para Corson, o co rpo do ator é seu
cana l de comunicação visual co m o públi co e o descui do co m esse aspecto, certa men te,
dimi nu irá o possível impacto de sua performance. Sem dú vida, " [...] a maqu iagem veste
tan to o corpo como a alma daqu ele qu e a usa, daí sua importância estratég ica ta nt o para
a sed utora, na vida, co mo para o ator, no palco?"
São encont rados vários es t ilos e fu nções da maqu iagem teatr al. Pavis des taca
cin co funções : embe leza r, acentuar o u reforçar os t raços, codi ficar o ros to, t eatrali-
zar a fisionomia e est en de r a m aquiagem.

A maquiagem como m eio de em belezar o rosto

A maquiagem independente d e sua nature za , ou se ja, social , cin emato gráfica,


de sociedades orient ais ou oci de n tais, t radi cion ais o u não tradicion ais, d as divcrs.is
civilizações, possui di ferentes sig n ificados culturais, sociais e espiritua is, co n t udo,
não perde o se nt ido est ét ico.
Não se pretende aqui jul gar o gos to ou costu m e d e cada civilização , soc iedade
o u época, e sim, verifica r como ela é vista cenica mente. N o teatr o ela é valo ri zada
pela ca pac ida de de camuflar p equ en os defei to s da pel e e do ros to d o ator: " [...]
co mo retirar bolsas dos o lh os, disfar çar um qu eixo dupl o, eliminar um a espinha":".
Tais cuidados podem ser trat ados co m cert a ironia para os qu e desconh ecem as
n ecessid ad es teatrais, poré m, para Barrault , mesm o n o em belezame nto par a se es-
tar no palco , assim co mo fazem as mulhe res e, em algu n s caso s, os h o m en s, par a a
socieda de em qu e vivem, "es tá emb uti do um a m agia"21.

A maqu iagem para acentuar os traços do rosto

N um a out ra função, a m aqu iagem teatr al é usad a dev ido à necessid ade de se
aume ntar os traç os expressivos do ator para suport ar o excesso de luz e para com pen-
sar a di stân cia existente ent re a platéia e o palco, nest e caso refiro -me à ar qu itetu ra
do palco italian o, visto q ue os palco s de arena e de câma ra prop or cion am uma certa
proximidad e da platéia co m o palco, fazendo co m qu e a intensidade da maquiagem
usada no pr imeiro deva ser dim inuída. A luz art ific ial t ende a empalidec er e acha tar
a fisionomia do ato r, além de levar a perda de 30%, da int ensidade da maquiagem e a
dist ân cia, qu ando muito grande, faz co m qu e o espec tador não cons iga ter uma defini-
ção da expressão facial do ator. Desse mod o, co mo p ens a Pavis, "os traço s exp ressivos
dev em ser aumentados de m aneira a aparece rem naturais, mesmo lon ge d o palco ?" ,
inclusive o de talhe sutil deve ser visto. J ean-J acqu es Rou bine a def ine como um ros-
to nu, ou seja, tec nicamente o rost o esta rá maqui ado, porém será um a m aquiagem
invi sível ao es pectador, diss imu lando, desta maneira, a natureza de art ifício. É uma
maquiagem que evita qu e "o ator pareça pálido so b a luz d os reflet ores":".

IS CO RSON, Richard . Stagc malscup . New Jcr sc)": Prc nricc- H all, 1975. p. 3.
19 PAVIS, 2003 , p. 170.
20 PAVIS, 1999, p. 23 1.
21 BARRAULT, 1954, p. 6.
11 PAVI S, 2003, p. 171.
23 RO UBI N E, 1987, p. 57.

C -l RA<:i L RI Z.-1 ç A o f L4TR4l: 1'.lJ:I .4RJ'f"; -t.« /J{\\ '[,\'J).4JJ4 21 3


Roubine", ao co nt rário de Pa vis, co ns idera a acentuação d os traç os ap enas
uma nec essidade té cni ca e não um in strumento de teatralidade, assim, ele acresc enta
o ut ras nece ssidades alé m dessa acim a descrita, ou seja , a utilização de um det erm i-
nado artifíci o para at en d er uma solicitação de um autor ou d e um encenado r. R elata,
aind a, a exigê nc ia hi stórica para as produ ções de época. A m aquiagem propriam ent e
dita, ele cons id era como sendo o uso de pinturas de cores e traços sem o compro-
misso mim ético, co mo as do Ex tre mo Oriente.
A maquiagem técnica seria, para Roubin e, aquela usada por um ator branco qu e
representaria O telo , d e Shake sp eare, n ecessitand o, desta man eira, aplicar sobre o ro s-
to uma base mais escu ra que permita um a verossim ilhanç a co m o real. Pos so adotar
aqui, diante da questão do rosto nu (Ro u bine) , ou se ja, da ace itação da maqui agem em
um es petáculo realista/naturalista , a m esma pergunta feit a pelo dramaturgo japo nê s,
Chikamatsu: "s erá que negamos a maquilagem do ator sim p lesme nte porque a p er so-
nagem por ele retratada jamais iria usar maquilagem na vida & ír ia""5?

A maquiagem proporcionando a codificação do rosto

A codificaçã o do rosto no teatro ac ontece em alguma s tradi çõ es teatrais o rien-


tai s, co mo na Ópera de Pequim (C h ina) , no Kathakal i (Í nd ia) e n o Kabuki (jap ão) .
Fundam entam-se "num sistema puramente sim bó lico de corresp ondências ent re
cores e caract erísticas so ciais":".
N a Ópera de Pequim, a maquiagem é considerada "um espelho da alma ":", por
toda simbo logia e pela fácil co m un icaçã o co m o p úbli co . O ros to d o ator é t ra nsfor-
mad o em uma más cara, cujas cores, formato de linhas e de senhos são códigos que
p ermitem aos es pec tad o res decifrarem as caract eríst ica s d e cada p er sonagem.
Jáno teat ro japon ês Kabuki o código soci al também é evide nte inclusive na pin-
tura & .) S dentes. O Omzagata, "ator que representa papéis Ienuninos':" , segue uma
"carto grafia" do rosto, qu e não deve ape nas tr ansform ar o ato r, ma s, co mo diz Bar ba
e Savaresc, "realçar a sensualidade dos o lhos". Ele é, portanto, segundo Pr onko , "u m
sí m bolo profund o da m etamorfose, que é o mist éri o do tea tro"?", ele partic ipari a de
d ois mundos distintos, além da dupla identidade ator e pers onagem, mas também da
dualidade mulher-homem.
D eve- se ressaltar um a importante diferenç a entre a m aqui agem da Ópera chi-
n esa, qu e "oblitera a feiçõe s", e a maquiagem do Kabuki, que as ace ntua." . Outro
p onto que diferencia o Kabuki do s outros doi s estil os ori entais de teatro é a po sição
que ele oc upa, o u sej a, se gundo Pronko, ele es tá a "me io ca m in ho entre o realism o e
a estilização, torna- o um ponto de enco n t ro aces sível e proveitoso para os teatro s d o
Oriente e d o Ocidente">l .

c4 ROUBINE, 1987, p. 59.


2; PR O N KO , 1986, p. 183.
2(, PAVI S, 1999, p. 232.

2 7 MENGLI N , Zh ao: J IQ ING , Yan. Peking opcra painted faces. Beijin g: Morning G lory Publi sh -
ers, 1996. p. 11.
2' BARBA, Euge nio ; SAVA RESE, N icola. A arte secreta do ator: dicion ário de antropolo gia tea-

tral. Ca mpinas, SP: U NIC AMp, 1995. p. 117.


2'} PR O NKO , 1986, p. 185.

' ü PR ONKO , 1986, p. 147.


31 PRONKO,19 86,p.14 7.
s No teatro d e dan ça indi ano - o Kath akali - a maquiagem também não bu sca
relação co m a cor natural da pele, assi m co mo nas o ut ras du as tradi ções ())i( ' J] I : l i ,;
a
acima citadas, as cores são simbólicas e significam a expressão da emo çào d .I·, 1<1' ) -
so nage ns. "A aplicação da maqui agem é um longo e len to pro cesso que (; f ( . d i / ,I d ( )
L,

e por especialistas enqua nto o dançarino relaxa, gradualm ente vai se transfo rm ando
em um a figura fo rte me nt e caracteri zad a que ele irá interpretar":" ,
Mais det alh es podem ser enco nt rados nos livros:
e
A maquiagem como elem ento de teatralizaçâo da fi sionom ia

r
A maquiagem [...] se torna uma máscara mais ou menos opaca e flexível q uv :'" " ,', . '.
1
utiliza a mobilid ade do rosto. O ato r às vezes produ z caretas que ela m.uu cm ". l· .. J
"
Na arte do semblante, a maquiagem pode, ao mesmo temp o, acentuar a i c.iu ,dld.l' lc.
a maquinária facial [...] e dar novament e impressão de vida, renaturaliz.u (' ' ; . 11( 1 I ' "
rizar' a expressão mímica. Ela joga com a ambigüidade constitutiva da representa çao
teatral: mescla de natural e arti ficial, de coisa e de signo".

Não se pode ne gar qu e a maquiagem cênica é fund am ental para o tea tro d e
persp ectiva psicol ó gica (realista, naturalist a), a qual, seg undo Pavis" , em ge ra l, for-
e nece o maior núm er o de inf ormaçõ es acerca da personagem. No entanto, d esde os
primórdi os do sé c. XX várias teorias estéticas oc id entais colaboraram P ,llt Ij ll\ ;l S
r formas da representação facial não psicol ó gica. Como dest aca Roubine: o "expres-
'-
sion ismo e o teatro br echtiano, a teoria art audiana e, em te m pos mais n ', l ' I I\(' S, .1
e expe riê ncia de Jerzy Gro rows ki na Pol ôn ia. [...] Será preciso tamb én: l'\' O C lJ' a -.
contribui ções de Gordon Craig, [...] ou de Alfred Jarr y ":" e mais tarde, se de staca -
riam Samuel Beckett e Gener".
a Ca be ressaltar, neste momen to, co nfo rme pensa R ou bin e, que as ex peri ên -
a cias desses ence nadores vêm co nf irm ar uma caracterís t ica co mum ent re' (, l \ ,; . ( ' li
n seja, "com ou sem ajuda da maquiagem , a prátic a de uma representaçã o ( ,. ;, 1 , '. .
e psicológica leva se mpre a fazer o rosto trabalhar co mo u ma m áscara !)( ' 11 \ dl l.: I. ,
a ao m esm o tempo capaz de expressões múltiplas e deliberadam ente limit.h h e ; I ' ·.ua
abund ância":". A ssim, desta maneira, percebe-se que houve um a fu ga da maquiaaern
comprom etida co m mim etism o. Par a esse gru po tudo o qu e p udesse q ur l» ,11" ., ,1,)_
o são cênica era bem vindo .
o O que se per ceb e é que a utili zação do rosto , maquiado ou não, nas d iLrl'l1' e~
e est ét icas teatrai s aco mpanha as transformações sofridas pela personagem, ' ,.'i;) cl l n.ir-
o rati va ou teatral. E nfim, o ro sto se to rn a um cenário am bulante, com se u- m úsc ulo s
sendo tr abalhad os de mane ira co ntrolável ou não. Ele é, co mo diz Pavis, "() l u ~ ,u () Il J e
o sentido desen ha signos na car ne" :" , no enta nto , pode-se dizer que não se pode negar

i, GRONI NG, Karl. B ody decoration : a wo rld surycy o f body-art . N ew York: Vcnd o rn « 1'11" ; \ .

1998. p. 184.
i l GROTOWSK I, 1971, p. 64 apud PAVI S, 1999, p. 232.
1-
" PAVIS, 1999, p. 232 .
L-
\) PAVIS, 1999, p. 234.
'h ROUBIN E, 1987, p. 64.
RO U BIN E, 198 7, p. 66.
.i S RO UBI N E, 1987, p. 66.

39 PAVIS, 1999, p. 243 .

CA R.KT[ RllAÇA o rEA 1R H : UI1.WIT A ' IR n/ \\ '/ .: m.w.\ 2 15


a importância da maquiagem para a construção da personagem de cunho realista /
naturalista ou para a cria ção das per sonagens nas demais tendên cias teatrais.
Sobre esta questão da teatraliza çâo do rosto do ator podem ser consultada s
as seg uint es obras:

A maqu iagem saindo dos limites do rosto

N esta funçã o, di scriminada por Pavis, a maquiagem é que assumirá a fun ção
de cenário, antes limitada somente ao ro sto. El a, agora, se expande para o resto do
co rp o. Um cená rio também ambulante, "es t ranh ament e sim bólico" que "não mai s
caracteri za de maneira psicológica e, sim, contribui para a elaboração de formas tca -
trai s do mesmo modo que o s outros objetos da representação (m áscara, iluminação ,
figurino ) ",0.
A pintura co rp oral , muito utilizada pelo s povos de cultura tradicional, pr o-
m ove a valorização da multidimensionalidade dos corpos assegurando assim a co-
ne xão da cabeça ao corpo , d eixando de cons ag rar apena s o ro sto, como ocorre na
cultura moderna, de acordo com o pensamento de Deleuze", Es sa valorização do
co rpo é den ominada de co rporalidade, de acordo com o que é relatado por Lu x
Vidal e Aracy Lop es d a Silva , e a pintura corporal, de uma forma mais ampla a body
art "faz d o co rpo uma matriz de símbolos e um objeto de pen sam ento" 42, cujos te-
mas são mi toló gico s, cerim oniais e refletem também uma organização so cial, assim
co m o o corpo do ator é tra nsfo rmad o em cenário por meio da maquiagem cêni ca.
Cenicamente, a maquiagem deixa de apena s acentuar os tra ço s de expre ssão ou
os asp ecto s psicológico s, co mo prima o uso realista, para salient ar sua própria conduta
e se torn ar body art , como pensa Pavis, passando, a não servir aos outros signos, mas
chamando at enç ão para "sua pr ópri a práti ca aut ôn oma?". Ao pro curar conhecer o cor-
po humano, por meio da body a rt , paSS;1-se a vivê-lo, retirand o o feti che, "eliminando
toda a exaltação à beleza a qu e ele foi elevado durante séculos pela literatura, pintura e
esc ultu ra - para trazê-lo à sua verdad eira funçã o: a d e instrumento do homem, do qua l,
por sua vez, depend e o homem ":", Sendo est e o princípio qu e rege o mo vimento que
te ve seu auge nos ano s 1970, fazend o com qu e desd e os pr imórdio s os seres humanos
de corem as suas peles de infinitas maneiras e por variadas razõe s, como pensa o autor
de Body Decora tion , Karl G ro ning.

C arr ega dos co m men sa gen s cu ltura is, e imbuído s co m experiênc ias estét icas, a d e-
co raç ão co rpo ral é o princípi o fundam ental d a pr ópria expressão em que o arti st a
c ria para si mesm o, um a seg unda pel e como um te st emunho par a a socieda de em
q ue vivem, como um es pe lho de sua pr ópria individualidad e e co rno uma refl exão d o
so bre natu ral".

40 PAVIS, 1999, p. 232.

,: D ELEU Z E, Gi lles; G UATTARI , Félix. Mil platôs: capi talismo c csq uiz o frc nia. Rio de Janci-
ro : Ed. 34, 1996. v. 3, 120 p.
42 V IDA L, Lux: SILVA, Aracy, Grajism o indígena. São Paulo: ED USI; 1992 . p. 283 .
.1 5 PAVIS, 1999, p. 172.

-, G UJ. SBERG , Jo rge. A arte da perjormancc. São Paul o: Per spect iva, 2003. p. 42-4 3.
•, G RO N ING , 1998, p. 09.

21 6 I\lt )" A M AC." 11.\ 1'


Ao sair do s limites do rosto, a maquiagem cênica form ará , então, "um sist ema
estético qu e ob edec e ap enas às suas próprias regras", correndo o risc o de "aban-
don ar a federa ção d as artes qu e constitui representação para fundar sua pr ópria
república"4f> .

Considerações finais

Acredito que antes de se pen sar em de senvolver uma maquiagem para qu ais-
qu er per sonagens e es pe táculos, deve- se ter claro em m ente os princípios acima
mencionados. Não é apenas uma técnica sem fundam ento que deve reg er a cria ção
de um rosto para a personagem. Como tamb ém de nada adianta uma t écnica scn:
a prática, assim co mo uma bela maquiagem se m um bom ator. O treino para se
maquiar bem é tão essencial quanto o s en saios para a construção das personagen s e
da s cenas. De preferência devem vir juntos, ens aiar maquiados e ve stidos, só assim
é possível sair da realidade do ator para ent ra r na realidade da p ersonagem, uma
vez qu e enq uanto se es tá no palco se vive a realidade e o que es tá fora del e é pura
fant asia.
Tanto o ensino quanto a prática da maquiagem partem de uma intuição, que
é inat o ao ser human o e qu e não deve se r ab ando n ada. A técnica da maquiagem
vem para apurar essa intuição. Em um processo de criação nã o exi ste uma lei, "só
há a inv entividade e a ori ginalidade do arti sta"47. E, continuando a parafrasear Lui gi
Par ey son, ''[. ..] o ve rdade iro artista é aque le que en contra sem p re insights em torno
de si, não pr ecisa procurá-los: basta olhar em to rno de si para lo go ser assedi ado por
suges tões não so licitadas "4S.
Um método, talvez o úni co, pelo qu e eu saiba, que en sina didatic am ente a ma-
quiagern, é o de Rich ard C o rso n. Este mé todo faz com que se pense em cada área do
ros to e, conseqüente me nte, para cada personagem que se cria, de forma a não deixar
escapar qual quer detalhe. O m étodo da reprodu ção de uma outra obra é limitador, pois
a cópia imp ede a ori ginalidade. Em br eve, publicar ei um livro que versa so bre os mé-
tod os de ensino da maquiagem , que utili zo nas di sciplin as de caracterização I e 11, da
escola de teatro, da U ni-Rio. O que me fez pensar nessa pos sibilidade foi a car ência de
literaturas nacionais na área da maquia gem cê nica. Espero pod er preencher essa lacuna,
difundir o ensino e, co m isso, valorizar um detalhe preci oso da criação da per sona gem
e do esp etáculo teatral.

"I,PAVI S, 2003, p. 172.


•7 PAREYSO N , Luigi. Os pro blema s da estética . São Paul o: M. Fo ntes, 199 7. p. 182
"' PAREYSON, Luigi . Estética : teori a da fonnativid ade . Petrópolis: Vozes, 1993 . p. 80.

I C .I R.1U LRI1.1Ç W IV TR.; t: ( ·.I/.1 .1Rn .1 st:« /! 1.\\ T S /!. I/ U 2 I7


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I
J O G O S CORPORAIS EM SALA D E AULA

NaYLl Kciscrman

D entro d o im ens o rep ert ó rio de J o go s Teatrai s, há aq ue les em qu e o Mov i-


men to é usad o pelo aluno co mo prin c ipal m eio de ex p res são, em qu e se pode dize r
qu e é o co rpo qu e fala. Es tes jo go s fa vorecem a aquisição e/o u aprim o ram ento d e
diferent es qualidades, referent es ta n to a asp ectos propriam ente físic os, co m o ou-
tra s de caráte r so cial e mesmo psicol ó gico.
Pen san do a Ed uc ação com o ins t rume nto efe t ivo para o desenvo lvim ento
harm on io so da pessoa por inteiro e aco mpanha ndo o pen sam ento de M n ';\ w Fe l-
den krais, em seu livro Consciência pelo Movimento , cre d ito ao Movim ento um im-
purtant e pap el nes te contexto ed ucac ional. Segu n do o aut o r, q uando est amo - ac o r-
d.id os lançamos m ão do s qua tro co m p o nentes da vigília, q u e são as se nsaç ões, os

I se ntim entos, o p en samen to e o movimento . D e aco rdo com a t arefa pr ati c ada, est es
compon entes estão mais ou men o s at ivad os, mas a falta to ta l de um deles é sin to ma
j garan ti do de doen ça o u desequil íbrio. Felde nkr ais ch ama de AT ENç Ãe y . , sl Ti to
1 ass im, com mai úscula e aste risco) o es ta do almejado em q u e o s co m ponente s da vi-
gília estão em perf eito equilíb rio , po ssibilitan do ações efe t ivas e harm o n iosas - em
o utras palavra s, o esta do de co m po ne ntes qu e favorece um a vida feliz e sau dável.
N o caso do ad u lto, o objetivo d o trab alho é restabel ecer o flu xo de co m u n icação
en tre aqueles qu at ro co m po nen t es . Quando se trat a da cria nça, o obj etivo é o fe-
rece r o po rtu n ida des de Jogo para que ela se mantenha em co nt at o plen o co m su as
sensaçõ es (advindas dos cinco se n t id o s) , seu s sen tim ent o s (q ue não pode m ser bl o-
queado s), se u pe nsam ento (fért il, espo n tâ neo, int eligen te ), p or mei o da at ivação e
ex pres são através do Movi mento.
Para qu e haja um b om aprove ita mento das propostas de J o gos Co rpo rais lis-
ta dos aba ixo, é preciso alguma s palavras so b re o pro fessor q ue vai propô -los e o
modo co mo isso se rá feito.

o professor e a aula
o profes sor é um guia, u m o rien tad or. É um parceirodos jogos que vai propor,
em qu e exerce a função de dar ind icaçõ es e sugeri r cami nhos. N ão apo nta m odelo s a

22 1
sere m seguidos, mas oferec e oportunidades d e encont ro de cada um co nsigo mesm o.
Esse pr ofessor é um parc eiro de seus alunos e deve, mais do que tudo, amar e respeit ar
os se us corpos e o seu pr ópri o, para pod er obse rvar atentamente as suas expressôes,
manifestas ou escarnoteadas, ao mesmo tempo em que sent e o seu pr óprio corpo, qu e
certa me nt e tamb ém fala uma língua qu e os alun os ent endem e com a qual dialogam ,-
m esmo no silêncio . Se o pr ofessor pretend e qu e os alunos joguem espontaneanu-nn-,
qu e sejam capazes de exerce r plenamente suas percep ções, ele pr óp rio deve ser capaz de
fazê-lo. Isso é muito clar o em outras matérias, mas no Teatro , às vezes, se esquece que
é preciso saber fazer para saber ensinar.
O pr ofess or é aque le que vê to dos os alunos, que sabe ler as suas men sagens
corporais, que sabe o uv ir, qu e sabe tocar n os se us corpos no s momentos necessá-
rio s, qu e reconhece qu and o deve falar ou silenc iar. O professor é aquele que sente.
H á algun s aspec tos ou princípios que organi zam a prátic a dos Jogos Corpo -
ra is, qu e serão alte rados pelo professor de aco rdo com as circ uns tâncias em qu c
trabalha, e que convé m que os alunos conheçam logo na primei raaula. São eles: dar
prefer ên cia ao uso de ro upas co nfortáveis, qu e não impeç am os mo vimentos e que
possam sujar e aos pés descalços, para um melh or co nta to co m o chão e a libert ação
dos pé s do dom ínio torturante dos sapatos - isso vale também para o pr ofes sor.
N ão há um jeito certo de realizar os jo go s proposto s, já qu e cada um del es possibili-
ta mui to s e mui to s m od os de execução possíveis, criativos , o riginais, o que significa
q ue de nada serve espiar os co legas e que a avaliação do pr ofessor não vai se guiar
por crité rios de certo o u er rado . As dú vidas qu an to à co mpree ns ão da prop osta d o
] o go devem ser feita s antes de se iniciar a jogar e o professor só vai responder aqu ilo
qu e co ns ider ar imprescindível para qu e o aluno dê início ao se u m ovim ento. Uma
id éia vaga do que é para faze r é suficiente para co meç ar. As instruções dadas duran -
te o jo go vão suprind o as dú vidas que po ssam gerar inseguran ça, ao mesm o temp o
em q ue ajudam o alu no a manter-se no jogo, o u seja, a pen sar no que faz enq uanto
faz - um a das pr incipais me tas do tra balh o co m os Jogos Co rporais. O s alunos não I
j
deve m o lhar para o pro fesso r dura nte o J o go, de qu e este parti cipa ap en as como Vai,
e isso porque há um estado almejado de im aginação ficcional que o pr óprio aluno I
esta b elec e e de que o pro fes sor não faz pane.
Ca be, portan to , ao profe ssor, ser econô mico no enunc iado da proposta, d e
m od o a não antecip ar o u dar pist as sob re co mo realizá-Ia; nas instruções dadas du-
rant e a sua realização , orientar os alu nos no sentido de encam inhar o seu percurso
!
em direção ao objet ivo da prop osta e a descoberta de um a lin gu agem pessoal de
expressão pelo movimento; ter como critério para a avaliação o s ob jetiv os (que
par a isso devem ser cla ros, tanto para o professo r quanto para os alunos) e o que
vai ava liar é em qu e m edida o grupo os alca nço u, te ndo o cuidado de não expo r as
fraque zas ou dificuldade s indi vidu ais, mas semp re salient ando os asp ectos positi vo s
do q ue fo i realizad o .

Jogos corporais

A seguir, uma lista gem de propostas de Jogos C orporais que ad m item muitas
variações, a serem se lec io nados pelo pr ofesso r de aco rdo co m as necessid ades de
seus alunos e co nd ições em qu e tr abalha, co mo d imensões da sala, duração da aula,
i,
organi zação curricular, faixa etária, número e exp eri ênci a dos alun o s, ent re ou tras .
Certamente, todo s estes aspec to s interferem no resultado obt ido.
r
O sJogos, ponto s de partida para a elab oração de mu ito s ou tros, estão o rga ni-
"
e zados de acordo co m o foco principal das propostas e assim denominados: Percep -
ção Sensorial, Partes do Corpo, Locomoção e Espaço - sem esquecer qu e, em todos
, eles , o Movimento é o canal privil egiado de exp ressão e realização pe ssoal.
-,
e
e
Percepção Senso rial
Aqui se trab alh am os Sentidos e sua rel ação com movimen to em dua s dire-
s ções: com que m ovi mentos se podem apreender as sens ações e qu e movimen to s
- .
l-
esta apreensao va i gerar.

I-
Audição
e Esta propost a não deve ser anunciada previamente. Os alunos devem estar
ir numa po sição confortável, em atitu de aquiet ada , serena, de o lhos fechados. O pro-
e fe sso r deve sab er o qu e propor para colocar os alunos nest e estado, de ate nç ão se-
o rena, de dispo sição sem alarido. Ir indicando cada etapa, dand o o tempo necessári o
r.
.para a sua realização - é preciso qu e o professor tenha essa percep ção do gru po.
(-
Pedir que os alun os ab ram os olhos quand o começ arem a se de slo car no espaço -
.a caso isso não oc orra espo n taneamente, o professor poderá indicar.
Ir 1) Ouvir o so m que vem de mais lon ge. 2) Imaginar quem ou o que produ z
o este so m (a imagem do so m, a fonte sono ra) . 3) Ouvir o so m que vem de mais per-
o to, mas fora da sala de aula. Visualizar a fonte. 4) Há algu m so m vindo de um pon to
la int ermediário , ent re o mais distante e o mais próxim o ? O uvir e im aginar a fonte.
1-
S) Pa ra cada um d o s sons ima ginar mai s de uma fonte. 6) Movime ntar-se co nfo rme
'o 1 u m d os so ns qu e vem d e fora. 7) C anta r um a mú sica mentalmente e imaginar q ue
o ela perc orre o corpo po r dentro. 8) Ir movim entando cada part e do co rpo por o nde
.0

IZ
i a música passa. Como se fos se o movimen to que produ zisse o som . 9) Alternar
(por indicação do professor ou a critério do aluno) as du as atitudes de resposta ao
.0
so m de fora e música d e dentro, sem pre co m m ovim ent os - que podem ser mu ito
pequen os. 10) Reagir com movimento aos so ns da sala, que podem ser produ zid o s
le por C Ds, instrumento s mu sicais ou o utros. 11 ) Altern ar: quando há so m dentro
1-
da sala, mo vimentar- se; quando há silêncio, movimentar-se de acordo co m a mú sica
;0
interna; por indi cação ou não, ou vir os so ns de fora, sem movimen to.
ie C omo na p roposta anterior, os aluno s devem esta r aquietad o s fisicam ente
Ie e com o pensamento vivo. Não há neces sid ade de explic ações prévias e a posição
le inicial é deitada.
15
1) Pedir ao s alunos qu e observem os úni co s movimento s existe n tes no seu cor-
)s po no mom en to em que eles não estão se movimentando, que são os da resp iração.
2) Nela, observar: a) o con tato do co rpo co m o chã o se mo difica na inspira ção e na
expiração? b) onde, no corpo, sente q ue che ga o movimento da respiração? c) existe
pau sa entre os movim entos de inspiração / expiração? d) qual o tempo de cada movi-
men to e da pau sa? e) perceber que o peito, na in spiração, alarga-s e lat eralmente, sobe
as na dire ção do teto, e a pélvis como que pressiona o chão, a cin tura afasta-se levemente
:Ie do chão e o retorn o destas partes do corpo, tr azendo um a sensação d e relaxamen to ,
.a, na expi ração. 3) Imaginar um term ômetro co locado dentro do peito , começando no

'/ 0 (; 0 \ CO RPOR.4h [ .1/ ~.H.4 nt: A l.' L4 223


pescoço e indo até a altura do umbigo. Imaginar qu e ao inspirar o mercúrio desce e na
expiração so be; e dep ois ao co n t rá rio, ao inspirar sobe e ao expirar desce. 4) C o locar
movimento na respiração : ao in spirar, elevar qualquer parte do corpo, na expiração
exec utar movimentos des cendentes e, nas pausas, não se movimentar. A duração de
cad a m ovimento e das pausa s deve corresponder exatamente aos tempos da respira -
ção. 5) Ao expirar, deixar que produza um som, que poderá ser de S ou F. 6) Substituir
este som pelos son s dos fon emas que compõem o seu nome. Criar mo vimentos para
cad a som, sem mais a preocupação com o seu de senho no espaço (ascendente ou
descendente). Buscar variedade na emi ssão dos so ns (duração, força , altur a, timbre)
e que os m ovimentos tenham alguma relação com eles. C ompor a seqüência de so ns
e movimentos até o nome todo. 7) Alternar: realiz ar ap ena s os sons, visualizando os
movim entos; realizar apenas os movimentos, ou vindo os sons mentalmente. Decorar
as duas seqüências, de sons e movim entos. 8) Andar pel a sala, parando a cada pessoa
qu e encon t rar e se apres entar com este seu novo nome (sem o movimento). "Falar"
e ouvir e só então andar, para um novo encontro'. R epetir até que cada um tenha pas-
sado por to dos . 9) Em roda, em pé. Cada um faz o seu movimento, o uvindo o so m
mentalmente. O s outros obse rvam tentando asso ciar com o som que ouviram. Em
seguida, rep etir o movim ento obse rvado, todos ju n tos . É o que se chama de imitação
eco. 10) R etomar a sua própria seqüência, modificando-a em funçã o do qu e viu, ouviu
e realizou. 11 ) N ovamente na roda, cada um realiza a sua seqüência d e so ns e movi-
mentos, com Imitação eco .

Visão
Dividir os alun os em dois grupos. Um observa e o out ro joga. O s jo gad ores
ficam de cos tas para o lo cal do jo go .
1) O primeiro aluno se coloca no espaç o e faz uma pose. 2) O próximo, do
grupo de jo gad or es obs erv a-o com a int enção d e reprodu zir a pose co m o m áxim o
de fid elidade. Depois de um certo tempo, qu e d everá ser curto, o primeir o aluno
d esfaz a pose e o segundo a rep ro d uz . 3) Vem o terceiro, obse rva a pose do segu n-
do. Est e d esfa z e aqu ele a executa. E assim por diant e. Quando o últim o aluno do
grupo de jo gadores a fiz er, to d os se co locam em linha e cada um faz a sua po se. 4)
O grupo d e ob ser vadores vai ap ontar as alte rações que foram feitas na po se o riginal.
Tr ocar as fun ções .
É importante que o aluno qu e ob ser va o faça se m imit ar, de modo qu e sua
cap acidade de ver e reter o que viu pos sa ser exercitada.

Tato
I
Anunciar aos alun os qu e se rá feito um trabalh o d e per cep ção sens o rial at ra-
vés do ta to - sen tido qu e só é ati vad o quand o toca mos um objeto o u uma pe ssoa ;
qu ando milhares de célu las que entram em ação para nos informar se algo é qu ente
I
í
o u fri o , ás pe ro ou macio, seco o u úmido. Assim, é nisto qu e esta rá a sua atenç ão, de j
m odo que ao tocar o o bjeto dev e ser evitado o pen sam ento comumente imediato de I
pensar na sua util idad e. O pen sam ento que acompanhará tod os os moviment os se
dá em fun ção das sensações que ele desp erta. D eve ser evitado a todo custo agir com
um a caneta na mão co mo qu em es creve no ar - por exe mp lo. O s movim entos que a
can eta vai trazer para o aluno se dã o devido a sua forma, textura, densidade.

224 NA "A K m ER.\ IAN


a o jogo :
.r
To dos estarão sentados em ro da enq uanto o p ro fessor conversa sobre () qu e
o foi explicitado acima. Cada aluno vai lembrar dos objetos que tem na sua b01s.1 c
e sele cionar um deles para o Jo go. De maneira tranqüila e sem comentári os verbais
cada um vai apanhar est e objeto o u outro que chame mai s sua atenção.
.r 1) C olocar o objeto no centro da roda e voltar a sent ar. 2) Observar o ', obj e-
'a tos à medida que vão sen do colocados, observando sua s características, e evitand o
u pensar ne les por seu nome . Vo ltando ao mesmo exemplo, não pensar "can et a", mas
:) sim objeto fino, transparente et c. O professor chama a atenção do alun o para o
IS
quanto a visã o e a experiência podem suprir o próprio toq ue. Basta olhar um obj eto
para que se saiba se ele é flexível ou não, áspero o u nã o, e até mesmo para sen t ir ,)
rr seu aroma e paladar. 3) Fechar os o lhos e colocar as mãos em concha, à frente do
corp o . O profess or vai dis tribuir o s objetos, co locando-o nas mãos de cada alun o.
" 4) A ssim qu e o sentir nas mãos, iniciar a pesquisa sensorial do o b jeto, conferind o
,- pelo tato aqui lo que a visão já havia in form ado . Experimentar o objeto em 'várias
n partes do corpo, ob servando as diferentes percepções. Experimentar equilibrar o
n obj eto em diferentes partes do corpo, de modo a prescindir das mãos . 5) Co locar o
o o bjeto b em perto dos olh o s e abri-los. Movimentar-se a part ir das in dicaç ões d e ter
u o objeto no corpo, perto do corpo, longe do corpo - sem e com deslocam ento no
1-
espa ço. 6) Seguir a instrução: eu movim ento o o b jeto / o objeto me movimenta. 7)
Trocar de o b jeto com a pes soa que estiver mai s próxima, fazend o deste momento
um acontecimento de troca ef etiva. 8) Movim entar-se co m o novo objeto . 9) N ova
t ro ca, nova m ovi mentação . Instruir o alun o para qu e permita qu e cad a n ovo o b jeto
:s tra ga novos moviment os. 10) Colocar-se em duplas e comunicar-se através dos o b-
jetos . Indicar que se trata de um jogo entre quatro parceiros, em que d oi s são obj e-
o tos . 11 ) A dupla seleci ona um do s objetos e seg ue seu diálogo através d est e obj et o .
o 12) Trocar o o bjeto, apanhando o qu e havia sido deixad o de lado . 13) Separar- se do
I

o
i
1 par, se gu in do com o o bjeto que er a inicialmente do outro. 14) Nova d up la, me sm o
l- procediment o. 15) Trocar de o b jet o até que t enha na s mãos o seu obj et o , aq uele
.0
I qu e apan h o u na sua bol sa. Instruir para a diferença entre olhar aberto par a o jogo
~) enquanto nã o enc ont ro u o seu o b jeto e, ao contrário , o olhar co m foc o definido no
d. 1
1
objeto quando tiver en co nt rado o seu. 16) A ssim que tiver o seu o b jeto na s mãos,
movimentar- se em função dele . 17) Para finali zar, pode-se pedir que simplesm ente
la devolvam o o bjeto na bolsa, o u que o co loquem no centro, vo ltando para a roda.
Nest e caso: olhar todos os o b jetos , identificando aqueles com qu e trabalhou e ob-
servar o novo olh ar que pode t er para est es objetos e eventualmente até m esmo par a
os o u t ros. O que mud ou nã o foi o obj eto, evidentemente, mas sim o o lhar.
1- I Paladar e Olfato
a;
te
le
I C ada aluno tra z um obj eto de comer, devidamente embalado (já qu e vai ser jo-
gado, manuseado et c.), e outro que tenha um ch eiro qu e consider e especial. O ponto
Je de partida é o me sm o usado n as propostas para o aprimo rament o do Tato co m foco
se
111
] nos o bjetos . Pode-se fazer em duas etapas, sen do a prim eira com os objetos de ch eiro,
de modo que este determine os m ovimentos executados. Para o objeto de comer, a
·a partir do momento em que cada um est á com o seu objeto nas mãos, o s alunos vão
ser orientados para:

JOG OS CORPO RAl , Flf ' A LA nt: .;I :U 225


1) Visuali zar o obj eto por dentro da embalagem. 2) Sentir seu gos to só de o
ter nas mão s e o lha r. 3) Colocá-lo muito perto do s olhos e ir, lentamente, ah rind"
a embalagem , ouvindo o barulho que isto pr oduz, apreciando cada movime n t oq u-
faz para isso . 4) Cheirar o objeto. 5) Sentir seu gos to só de o ter nas mãos, o llJ.l\ c
ch eirar. 6) Finalmente, quando não agüentar mais , col ocá-lo na boca. 6) Andar l' ch
sala, mostrando o seu ob jeto e partilhando-o com os o ut ros . 7) De volver o \.I-l;" , -.
ou o que sobrou dele, ao centro da sala. 8) O lhar para cada o b jeto sentindo seu SJ -
bar e aroma e d an çar a sensação . 9) Sem o lhar para os ob jetos, dan çar a sensação.

Partes do C orpo:
O objetivo principal é dar oportunidade ao aluno de mobilizar as difer cn f í" ~
partes do corpo, numa idéia de isol am ento (o alun o ser capaz d e mo vimentá-la s de
forma independente) assim como de composição, em que o mo viment o de u ma
parte determina as po siçõe s ou movim en tos de out ras. Entram no jogo os co nc e u o.,
d e repercussão e fluência. O aluno é o rientado para permitir qu e o moviment o ini-
ciado numa parte do corpo reper cuta n o corpo inteiro e aind a qu e ob serve o m odo
co mo o movime nto se espalha, fluind o pel o corpo inteiro .
É claro qu e a percepção e a consc iên cia do corpo ap ar ecem aqui com o caus a e
conseqü ênci a, o u seja, elas são sim ult anea me nt e favorecedoras do resultad o alca n-
çado na exec ução da proposta, co mo se b eneficiam dela.
Est es Jo gos permitem que se faça analog ias entre as partes do corpo, favorecen-
d o um a co mpree nsão de sua estr ut ura. É fácil para os alunos perc eber em seu corpo
co mo formado por tr ês vo lumes em pilha dos: a cabeça (uma espécie de aq uá rio) , o
peito (caixa to rác ica) e a pélvis (bacia) , os t rês unid os por um fio que é a co luna. D o
vo lume de cima saem doi s "penduricalhos", os braços, e do vo lume de baixo out ros
dois, as pern as. H á du as cin tu ras: a de cima une o aquário à caixa, e a de baixo , a caixa
à bacia. Os volumes não se partem ao m eio, seus movi me ntos são compactos: vão
int eiros para cima, para baixo, para fre n te, para trás, para a direita e para a esquerd a,
enq uanto os penduricalhos pod em ser revir ados em todas as direções de forma inde-
pendente uns dos outros.

As propostas seguem o seguinte padrão:


Movimentar-se co m o foco em tal parte do corp o, iniciando pela posição dei tada
at é chegar a ficar em pé, seguind o com deslocamentos no espa ço. A realização é de iní-
cio individual, seguindo em duplas. Os do is alunos pod em esta r colocados à dist ância,
ou próximo s um do outro, por muito pouco tempo, trocando de par constan tem ente
- o que ob riga a rápidas adaptações de resp osta cor por al - ou perm anecend o por um
tempo maior, de mod o a apro fundar a relação. Esta deve ser de diálogo entre as partes
do corp o, de co mun icação efetiva. A cada t roca de par deve haver uma mudança nas
qualidades dos movim ento s, cons ide rando qu e há um estímulo vindo do par, a quem a
resposta corpo ral será sempre única.
A pane d o co rpo qu e está com o foco pod e ser d eterminada pel o profe sso r
ij
o u selecionada pelo aluno . Nas dup las, os dois pod em ou não es ta r se co munican do
co m a mesm a parte do corpo. Pode ser fe ito em gru pos m aiores. Pode-se ter ma is d e
!J
.n foco, por exe m plo: um na part e alta e o ut ro na parte baixa d o co rpo, consider an-
uo a cintura a linha m édia, ou um para cada lado do corpo, direita e esqu erda. Ii
226 N AKA KtI " K' I.\ N

I
Locomoção
A base para os J ogos Corporais de Lo comoção pode ser encontrad a no ); \ I rl
La expresi án corporal)' el nino, de Pat rícia Sto koe . A li, ela se refere aos M ( 1\ I II li ! I "
to s Fundamentais de Lo comoção, identificando cinco deles, ordenados dr .1l ()) c1 "
com a sua circun scrição espacial: arrast ar- se, em que o corpo está todo na lin h a nn
chã o; engatinhar, em qu e o tron co está fo ra do chão, eng lobando as I O COI1I () (J W \
sobre joelhos e sobre os glúteos; andar, quando nos encontramos sobre os dois pés;
correr, em que se alternam suce ssivamente pé e outro sobre o chã o; e saltar, em qu e
a ênfase está em sair do chão , em ganhar o espaço aéreo. Ca da um deste s movimen-
tos de Locomo ção admite muitas var iaçõ es, de acordo co m : a postura de base. o u
seja, o modo como o corpo se coloca o espaço para ini ciar o movimento, e q l! l ' ; I' ~ I
mantida durant e sua realização ; a parte d o corpo que conduz o m ovimento; o m od o
co mo as part es do corpo vão se m ovimentando de fo rm a simu ltânea ou suc essiva;
os graus de en er gia empregados nas diferentes panes d o corpo ; o desenho no c sp::·
ço; o andamento ad otado, por exemp lo .
O s movim entos podem ser sugeridos aos alunos na sua ordenação espacial, do
chã o para o ar ou vice-versa, ou indi car a sua realização por contraste, fazendo co m
qu e o corpo tenha qu e se organizar par a faz er muda nças bruscas e repentinas, co m o
em: arrastar-se e andar; engatinhar e correr; andar e saltar. Pode-se ainda propor uma
realização em qu e cab e aos alun os o rganizar a sua seqüência, selecionando a orde m c O
tempo de perm an ên cia em cada movim en to , de acordo co m sua ima ginação e im pu lso
)
co rpo ral.
)
C onvém co nve rsar com os alu n os sobre os m oviment os de Loco mo çã o , o
I
) 1 q ue diferencia uns dos o ut ros, ant es d e propor os Jogos.
s I O movim ento de andar pod e ser assim trabalhado: 1) O professor vai ind i-
1.: cando uma por uma as panes do co rpo envolvidas no andar, so licitando dos alun o ;
a
)
um a atitu de de per cep ção em relação ao seu modo de at ua çâo . Por exe mplo: o q Ut
í faz em os dedos dos pés? Movimentam-se juntos ou separados? Q ual o tam anho do
l, j
pa sso? Para o nde ap ontam os pés? Quando e co mo se dá a transferên cia de F CW
de um pé para o o ut ro? 2) O pr ofessor vai indi cand o uma por uma as articu la çôcs
1 en volvidas no an da r, pedindo aos alunos qu e exagere m no seu m ovim en to e d ep o is

a
i
J
que as an ulem. Ao chega r à articulação que un e a coxa ao quadril, o aluno de sco-
brirá que é impossível andar. 3) O professor sugere variações nas dim en sões (~ n o
andamento do passo, do movimento dos braços, da cab eça , da pélvis, d o tr onco. 4 j
t,
Cada aluno observa ate nt ament e seu m od o de andar at é de scobrir qual o seu t ra ço
e mai s fo n e e evide nte . Vai aos pou cos exa gerando nisso at é te r uma caric atura d o ' cu
n pr ópri o andar. 5) Observar o anda r de um colega, sem qu e ele perceba e sem modi-
s ficar o seu própri o, qu e possivelm en t e está sendo ob servad o por out ro . Ao sina l do
.s pro fessor, tran sfo rmar imediatamente o seu andar, repro du zin do o do co lega ob-
a servado . D escobrir aí, então, a sua ma rca mais fone e ir, aos poucos, exagerando até
I a caricatura . C ada um vai obse rvando os dem ais, sem m odi ficar o que está faz en do ,
I
,r
j tent ando recon he cer- se no andar do o utro . Isto não deve ser revelado o u apo ntado .
1
o 1 a não ser pelo próprio aluno imitad o qu e ass im o dese jar, manifestando-se espo nt a-
e
1- ! n eamente a respe ito .

'/ 0 (, 0 1' COR POR.1/\ [, 11 ).; L! f) [ . I C U 227

I
Espaço:
É co nsiderado nas categ o rias de Esp aço Interno ou Pessoal, Espaço Parcial e
Espaço Tot al ou Gl ob al.
Espaço Interno o u Pessoal é aqu ele que se oc upa pelo simples fato de existir.
Convé m conversar com os alunos sobre isso, so bre o ar qu e se desloca para que se
possa, sim plesmente, es tar aqui, ali, aco lá. É uma ótima opo rt unidade para se con-
versar também sobre a pele, lembrando que ela é o maior ó rgão do co rpo humano
e responsável pela sens ib ilidade tátil, realizando várias e com plicadas funções como
pro teção, manutenção da temperatura, defesa imunológica. É a pele que possibilita
a troca entre o mundo intern o e o externo, definind o o desenho de cada pessoa, seu
perfil, sua silhueta.
Es paço Parcial é o que oc upamos se m locomoção, sem deslocamento. Nes te
caso, predo minam os gestos, qu e são os movim en to s que exec utamos no ar, ocu-
pando o espaço à nossa vo lta . Seu desenho é basicamente retilín eo o u arredondado.
Conforme Rud olf Lab an , em se u livro Domínio do Mouimento, sig nifica o uso do
espaço diret o ou indireto , de sua oc upação em linh as retas o u sin uosas.
Espaço Total o u Gl ob al é aqu ele par a o q ua l não há limi tes, e sua ocupação
pode se r tam bém co ns iderada co mo diret a o u indireta. Pen san do a oc upação ou
des locamento do espaço em relação a um objetivo (o bjeto o u pessoa), as possibi li-
dades são as de aproxima r-se, afastar-se o u rod eá-lo.
Como no caso dos J ogos de Locom oção , convém aqu i esclarecer os alunos
sob re o que vai ser trab alh ado. A pr op osta pode ser indicada já com os alunos na
pos ição inicial.

J ogos:
Es paço Intern o
1) Posição inicial: deitados no chão, com as pernas estendidas e afastadas natu-
ralment e, os braços tam bém estendidos ao longo do corpo. Visualizar o contorno do
corpo, percebendo o seu desenho, o quanto de ar foi deslocado para dar espaço a ele, a
marca deixada no chão se este fosse de areia. Visualizar o corpo co nfo rme a estrut ura já
mencionada: três volumes unidos e seus penduricalhos, as duas cinturas. 2) Dobrar os
joelhos, colocando os pés no chão e repeti r a visualização, observando o que se modifi-
co u: quais as partes que encostam agora no chão, como algumas afundam mais do que
antes e do que outras . 3) Tirar os pés do chão, levand o as coxas em direção ao peito e
repetir a visualização, com os mesmos pontos de observação. 4) Cada um vai elaboran-
do outras posições, e em cada um a delas, rep etir o exercício de visualização e percepção,
respo ndendo-se: como está o desenho do meu corpo? Como ele está apoiado: no chão ,
no ar, so bre si mesmo? Estão pr óxim os ou afastados os volumes e seus apêndices? Os
mov imentos que levam de uma posição a o utra devem ser simp les e contínuos, só in-
terro mpidos quan do a posição parecer, ao alun o, int eressante. 5) Organizar a seqüência
de pos ições e moviment os de mod o que cada vez vá ficando com um número menor
de apo ios sobre o chão, até finalment e ficar em pé. Ca da posição o u pose pod e ser as-
sociada a uma atitude de expansão ou recolhimento; de espalhar ou reco lher; de dar ou
tomar; de adesão ou resist ência. Pedir aos alun os qu e identifiqu em a sua atitu de. 6) An-
dando, e ao sinal do pro fessor, for mar dupla s ou grupos ao acaso. Apoiar-se um no ou -
tro fo rmando uma pose, em que se perm anece para realizar a mesm a pesquisa ant erior:

228 N .\ KA K~I S ~ ""I A N


o desenho dos dois corpos juntos, sua silhueta, o recorte que fazem no espaço, como
estão apoiados, um no out ro, no próprio corpo, no ar e a atitude. Important e ajudar ()
aluno a perceber a diferença entre encostar .e ap oiar, e que nenhuma das du as Jl; (lC S (' ,\
de empurrar. 7) Em grupos de quatro ou cinco. Um aluno se coloca numa pose. Out ro
se ap óia nele, servindo de apoio para o próximo e assim por diante. Realizar a mesm a
pesquisa. O primeiro sai do seu lugar, sem que a pose já formad a se altere e vai se ,1p UJ::"
no último. O que foi o segundo sai do seu lugar e se apóia sobre o primeiro e assim por
diante até que tod os este jam numa no va po sição. Nova pesqui sa. E assim por diante.

Espa ço Parcial
C onsidera-se a possibilidade de movim entos em qu e o desenh o do Cn l ptl
todo adquire diferentes formas, quais sejam: uma forma arredondada, a "bola", em
que as partes afastada s do corpo quando estamo s na posição ereta se aproximam; d
"seta", em que predominam as linhas retas e as partes do corpo se afa sta 1l1 . ~· (l pJ '
rafu so ", em que as partes do co rpo apontam para várias dire çõe s de forma sucessiva
ou sim ultânea. Tod o s esse s são de senhos trab alhados no Espa ço Parcial, ou sej a,
sem locomoção, de forma indi vidual, em dupla o u em grupos maiores. É necessári o
expli car aos alunos do que se t ratam esses desenho s antes de pedir qu e se co loquem
na posição deitada.

O jogo:
1) Levantar descre vendo um parafuso, qu e vai de baixo para cima, at é qu e fique na
po sição de pé. 2) Movimentar-se em bola. 3) M ovim entar-se em seta. 4) Movimentar-
se em parafuso. 5) Colocar-se rapidamente em poses com a forma que o pr ofessor \ ' ,l i
so licitando. 6) C olocar-se numa po se em parafuso, movimentar-se em bola até che gar
à o utra pose em parafuso. 7) Colocar-se numa pose em set a, movimentar-se em bola
até chega r à outra pose em seta. E assim por diante, até que se tenha proposto todas as
combinações possíveis.
Quando feito em duplas o u grupos mai ores, instruir os alunos para a idéia de ,
ao reali zar a forma , ir dando espa ço para o m o vimento do o utro, ao m esm o tempo
em qu e, com seu s movim entos, interfere no es paço ofer ecid o.

Es paço Total
1) Em grup os de quatro, os alun o s se col ocam numa formação espacial em
losan go, todos volt ad os para a mesma dire ção. Os mo vim entos que executam, com
locom oção, são lider ados pelo que está à frent e. Quando est e mudar a direção. exe-
cutando um quarto de vo lt a ou mei a volta, o que passará a esta r na frent e vai guiar os
m ovim entos. O importante é qu e se mantenham as distâncias inici ais est abelecid as
entre eles de que não se perca o desenho do losan go.
2) Locomover- se em espiral, ao redor d e um ponto im aginário, d o eixo menor
para o mai or, at é aba rcar a sala toda, e vo lta n do na dire ção inversa at é retornar ao
ponto de partida. É a própria traj et ória qu e va i determinar o movimento de loco-
moção, o andamen to, a parte do co rpo que lid era , o modo como o m ovimento flu i
pelo co rpo etc. Pode ser feito em duplas, em que um tem a função de eixo, ou em
grupos maiores, em qu e um faz o eixo ou todo s se locomovern simultaneamente, ao
redor un s do s outros.

[ oc c» C O RPO R HI LI/ SALA ot. .,, ·u 229


3) Estabelecer um ponto de at ração, imaginário ou real. Ir até ele em linha
ret a. Ao chegar lá, alguma co isa es tabe lece um im pu lso de repul são, qu e faz a pessoa
afas ta r-se em linh a sinuosa até um out ro pont o qu alquer do espaço. Mes ma coi sa,
co m atração e repulsão em linha reta; em linh a sin uosa; at ração em linha sinuosa l'
repulsão em linha reta.

Considerações finais

Meu objetivo foi o de oferece r um a pequ ena am ostragem, entre as inúmeras po s-


sibilidades de propostas de jogo s co rporais qu e podem ser feitos em sala de aula . A
seleção dest as catego rias, Percepção, Locom oção, Partes do Corpo e Esp aço, fo i por
co nside rar qu e elas ofe recem uma base sólida para a iniciação dos alunos na linguagem
do M ovimento.
Os jogos list ados po d em se r prop ostos de di ferentes maneiras, co mo j.i foi
d ito. Cada pro fessor saberá de suas necessidades, pod endo elimina r etapas sugeridas
o u ac resce n tar outras, oc u pa r mais de um encon tro para cada um deles, enco nt rar
po n tos de contato e jun tar mai s de um numa única proposta, torná-los mais sim ples
o u sofis ticados, usar mú sica o u o u tro estí mulo so noro.
A int en ção é provocar no p rofesso r o dese jo de inventar seu próprio t rabalho
co m os J o gos Corporais.
Lembrar de: dar o tempo necessário para que os alun os possam compreender c
responder co rpora lmente às prop o st as de jogo; instruir, durant e o jogo, para a elabora-
ção de imagen s que acompanhem os movimento s, enfa tizando a necessidade de pe nsar
no qu e faz enquanto faz. Po r exem plo: ao se locornover, o aluno deve imag inar para
ao nde está ind o. E se está indo para um lugar é porque est á em um lugar e então: que
IU b:lr é esse? O que o faz se locomo ver? Está indo p:lra aond e? Por quê?
A liás, essa é um a boa per gu nta par a o pro fes so r de Teatr o na Edu cação: vo cê
es tá ind o pa ra aonde? Po r q uê ?
Seja para aond e for, vo cê não est á soz inho.
la R EFERÊN CI AS
la
a, BRIKMAN, Lola. A linguagem do m ovimento C0I7)0I"<lI. 2. ed. Tradu ção de lk 11 1 I. \ '. .i n-
e nabrava. São Paulo: Summus, 19 89.

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TI
LABAN , Rudolf. D omínio do m ovim ento. Tradução de Ann a Maria Barros de Vecchi e Ma-
ria Sílvia Mourão N ett o. São Paulo: Summus, 1978.
) 1

15
STOKOE, Patricia. La expresi ôn corporal)' el adolescente . 2 . ed. Buenos Aires: Barry, 19 76.
Ir
:s STOKOE, Patricia. La expresion corporal y el niiio . Bueno s Aires: Ricordi, 19 72 .

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As OFICINAS DE TEATRO E A PRÁTICA DO ARTISTA-DOCENTE

NdrCIS() j clh)

Os cursos de licenciatura em teatro, muitos originados dos "antigos" cursos


de Educação Artística, habilitação em Artes Cênicas, formam, basicamente, pro-
fessores de teatro para atuarem, prioritariamente, nas salas de aula das escolas de
educação básica. Pouco pensamos na formação deste licenciando e sua atuação em
espaços estritamente de formação teatral, como as escolas técnicas e profissiona-
lizantes ou ainda no bacharel em teoria, interpretação, direção ou cenografia que,
por uma demanda, acaba trabalhando como professor. Assim, este texto apresenta
reflexões sobre os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos por grupos te-
atrais brasileiros, na perspectiva de apontar novos caminhos de atuação profissional
?ara os bacharéis e licenciados em teatro que desenvolvem atividades em espaços
rormais e informais de ensino.
Para tanto, escolhemos o campo da pedagogia do teatro como nosso ponto de
vista. Segundo Ingrid Koudela:

[...] o termo pedagogia do teatro visou 11.10 .1pel1aS ampliar o espectro da pesquisa na
área, trazendo para a discussão os Mestres do Teatro - dramaturgos, teóricos e ence-
nadares, como também, fundamentar a epistemologia e os processos de trabalho em
teatro, inserindo-os na história da cultura I,

Conduzir nosso olhar pelo campo pedagógico teatral significa traçar diálogos
com educadores, artistas, alunos e demais envolvidos, percebendo seus pontos de
intersecção na construção do fenômeno teatral e sua assimilação pelas instituições
formadoras de atores, professores de teatro, diretores, cenógrafos e teóricos. Assim,
focalizaremos as oficinas de teatro utilizadas pelos grupos na formação de atores e em
prOjetos SOClalS.
Decifrar o cotidiano não é tarefa fácil para o pesquisador interessado em tra-
duzir a dinâmica e a riqueza de um determinado processo pedagógico. Tal aventura
implica numa disposição por parte do pesquisador em ampliar sua percepção de

I KOUDELA apud SANTANA, Arão Paranaguá (Coord.). Visões da Ilha: apontamentos em

I
1
1
teatro e educação. São Luís: Grupo de Pesquisa em Ensino do Teatro & Pedagogia Teatral, 2003.
p. 17.

l
I
233
um a d eterminada realidad e "b us cando refe rê nc ias de so ns, sen do capaz de en golir
sent in do a varieda de d e gostos, caminhar toc an do as co isas e p esso as e [se] dei-
xan do to ca r por ela s, ch eirando os o do res qu e a realidade co lo ca em cada POnt o do
caminho diário'" , A ap ree ns ão dos mod o s d e faze r e en sinar d o s es p aços cotidia no s
nec essita de uma "pa rce r ia" ent re os suje ito s da pesquisa, d e for m a a pos sibili tar J

compreensã o do s ele me n tos presentes n estes m o d o s, suas arti cu lações, seus co nt e.


údos e formas.
C omo, ent ão , pod erem o s compreender os p ro cediment o s co t id ian os em uso
nas o ficin as de te at ro ? N est e se nti do, ap o iam o-n os n o s estudo s de Mi ch el de Ce r-
teau so b re as práticas cotidianas.
C erteau de sen vol ve as noçõ es de estratégia s e táti cas:

[...] as estratégias são, portamo, açõ es qu e, graças ao postulad o de um lu gar de po-


der (a propriedad e de um pr óp rio), elaboram lugares teóri cos (sistemas e discu rso -,
tor alizanres), capazes de articu lar um co nju nto de lugares físicos o nde as for ças
se dis tribuem. Elas co mb inam esses trê s tipo s de lugare s e visam dominá-los un s
pel o s outros. Privilegiam , portam o, as rela ções espaciais [...]. As tát icas são proce-
dim entos que valem pela persistência qu e dão ao tem po - JS circ u nstâncias q ue o
in stant e preci so de uma intervenção tran sforma em situ ação fav orável, J rapide z de
mo vim ento s qu e m ud am a orga nização do espaço, JS relações entre os ma mem os
sucessivos de u m " go lpe", .1O S cruza me nto s possíveis de duraç ões e ritmo s het ero-
g ~n eos, etc.'.

En tender o cotid ia no das o ficinas d e tea t ro é, assim, um trabalh o q ue bu sca


compreender as táti ca s utili zadas p elo s mini strantes para seu fa ze r p edagógico, pe-
ne tra nd o as tu cios ame nte e d e rno do part icular em cada m omen to .
Pe la mu ltipli ci dad e das práti cas co tid iana s, as mesma s, segu n d o Ce rtcau, de-
ve m ser e n te nd ida s co m um n ú mero fin ito de pro cediment os, q ue aplicam os có -
di go s e n ormas existen t es numa d eterminad a " o casião ", qu e resulta de um cert o
núm ero d e fo rm alida de s, di z ele:

Em primeir o lugar, os ' jogo s' específico s de cada sociedade [...] dão lugar a es-
paço s o nde os ' lan ces' são pr op or cion ai s a sit uaçõ es [...] os jo go s 'form ulam' as
'regras' orga nizadoras do s lances e co n stit ue m tamb ém um a ' memó ria' (armaze-
nam en to e classific ação ) de esquem as d e açõe s arti culand o n o vo s lance s co nf o r-
m e as ocasiões. {

Sendo assim, as táti cas utili zadas em um a situaçã o específica pos suem uma for-
nuli d ad e p rópria, que n ão p ermite o desvelam en to do jogo em su a to ta lida de . As
regras são sem pre as m esmas, ma s o s lan ces, q ue são m últ ipl os, serão escolhido s pel o
participante.

2 ALVES, Nilda. Decifrand o o pergaminho: o co tidia no das escolas nas lógicas das redes cotidi a-
nas. In : O LIVEIRA, Inês; ALVES, N ilda (O rg). Pesquisa no /do cotidiano das escolas sobre redes
de sab eres, Rio de Janeiro: D P&A, 20 01. p. 17.
.\ C ERTEAU, Michel de. A in•.:cnçâo do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1999. p. \
102 1
~ CERTE A .J, 1999, p. 83-84 i
234 N,,,,,,,r" " , I
Adentrar no cotidiano das oficinas é a possibilidade que temos de perceber
as escolhas táticas de cada artista-docente para o ensino do teatro, assim como de
compreender os lances dos participantes em cada trabalho proposto.

o que chamamos de oficina?


Um primeiro ponto a ser tratado concerne à utilização da oficina de teatro
como recurso pedagógico. O dicionário A linguagem da cultura, produzido pelo
SESC-Sp, define assim o termo:

Oficina -' 2) curso informal de breve duração ministrado para o aprendizado dt'
uma técnica ou disciplina artística, sem objetivos oficialmente profissionalizan-
tes; 4) laboratório (local ou recinto); em francês ateliê, em inglês workshop'',

\Vorkshop - 1) termo inglês correspondente a oficina ou ateliê; 2) curso inten-


sivo ou condensado nas áreas artística e esportiva; 3) experimentação de uma
técnica ou de uma estética, principalmente nas áreas teatral e coreográfica, com
a função de 'laboratório', ou seja, de pesquisa formal. Com esse sentido foram
constituídas escolas de renome no séc. XX, como a Dramatic \Vorkshop de NY,
na qual trabalhou Erwin Piscaror, o Theatre \Vorkshop, da encenadora inglesa
Joan Litlewoad ou o American Lyric Theatre \Vorkshop, do centro de aprendiza-
do e de criação de dança do coreógrafo Jerome Robbins.-

A oficina de teatro é um recurso amplamente utilizado nas atividades artístico-


pedagógicas. Caracterizada como uma ação pedagógica ativista, em que o professor/
nficineiro direciona as atividades de forma a estabelecer um exercício dialético entre
o seu conhecimento e o que os participantes trazem de seu universo sociocultural.
N esta medida, a oficina torna-se um momento de experimentar, refletir e elaborar
um conhecimento das convenções teatrais, buscando instrumentalizar os partici-
pantes de um conhecimento teatral básico, vivência de uma atividade artística que
permite uma ampliação de suas capacidades expressivas e consciência de grupo. No
caso dos grupos teatrais, valemos da observação de Argelander:

Historicamente, os workshops (oficinas) de teatro foram organizados dentro de uma


estrutura flexível de atuação do grupo; o workshop em si mesmo funcionava com
duas capacidades básicas: a primeira e mais importante, como um lugar para se livrar
das classes dogmáticas de atuação no sentido de explorar novas idéias e, segunda,
como forma prática de fazer produções que poderiam refletir mais os valores pesso-
ais do grupo do que os valores padronizados do teatro comercial'.

iAteliê - estúdio, recinto ou local de aprendizado de técnicas e de criação de obras artísticas, equi-
pado com ferramentas, máquinas e materiais adequados a uma ou várias expressões. CUNHA,
Newton (Coord.). Dicionário SESC. A linguagem da cultura. São Paulo: SESC: Perspectiva, 2003.
p.81.
(, CUNHA, 2003, p. 474.
7 CUNHA, 2003, p. 677.

, ARGELANDER, Ron. Performance workshops: three types. Tradução de Zeca Ligiéro.


TDR: The Drama Review, New York, v. 22, n. 4, p. 4, dez. 1978.

j As OF!C,].\'..1.S D[ JLn1\O [A N<'41'1C.i f)O .4RrJ'.,;:·l-/)OCLSFL 235

I
As o ficinas são estruturada s, qua se sempre, por exercícios de voz, corpo, jo-
gos e improvisação. O s jogos e as improvisações, eleme ntos básicos no ens ino do
teatro, são utilizados nestes t rabalh os , pois permit em que o material co lhido na tr a-
jet ória do gru po ou do artista seja apropriado e canalizado para o desenvolvim ent o
da criat ivida de e expressão cê nica d o s parti cipantes.
As o fici nas de teatro ofe re cid as têm o objetivo d e socializar elementos ideo-
ló gicos e técnicos adquiridos e trabalhados pelo artista-docente em sua práxis artís-
tic a ao lo ngo de sua carreira. N elas o pensam ento ético e esté tico são inc orporados
às ativida des pedagógicas e atores e enc enadores vão assumindo o pap el de art istas -
do centes e ass im, configurand o uma pedagogia teatral.

Alguns exem p los

A O ficina de Experimentação e Pesqui sa Teatral, de senv olvida pelo O i N óis


Aqui Traveiz, obje tiva desc obrir novas formas d e lin guagem e elaborar ence nações
de intervenção social no cotidiano da cidad e. Tal propo sta surg iu da neces sidade de
ex pe rime ntação e desmistifi cação da atividade teatral, enquanto espec ialidade de
pouco s, e d a necessidad e de discus são da própria realidade. Trabalha-se co ntínua e
siste m aticame nte na elaboração de improvisaçõe s col etivas qu e serão apresentadas
em ru as e parques da cidade .
U m o ut ro exempl o , a o ficin a de despressuri zaçâo d o Grupo T á na Ru a, é as-
sim descrita pela atriz e professora Ana Carneiro:

[...] as pessoas chega m, e o m at erial já est á na sala , dis po sto de modo a ser visto e
enco n t rado co m facilidade: má scara s, pan os, roupas, peru cas e outros objetos qu e
favo recem a transformação , mat er ial já usado , doado ao grupo e que co nstitui seu
patrimônio. São cores, brilhos, text u ras que modificam os co rpos , contrib uem para a
liberação dos senti me ntos e es tabelece m um esta do de teat ro , de repr esentação , em
relação a tudo qu e ali acontece, t ransformand o em rcatralidade/t earro os amores, as
paixões, os ó dios, os med o s, a vio lênc ia e tu do mais que al lora",

N ormalmente, as atividades artístico-peda gó gicas de um grupo ficam a cargo


de um me m b ro específico, qu e terá a fun ção de o rga nizar peda gogicament e os ma -
teri ais técni cos trabalhados por todos os integr ant es ao lon go de sua carre ira. Em
alguns casos, cada membro torna-se um esp ecialista num determinado instrumental
técn ico e sua oficina será co nduz id a a part ir dele. D esta forma, acred itam os qu e
a disso ciação ent re a prática artíst ica e a pr ática d o cente, muito co m um no meio
acad êmi co, não alcan ça a m esma dimensão nas práticas peda gó gicas dos gru pos.
N est es, as es feras artísti ca e pedagó gica en contram-se interli gadas, num processo
recíproco d e aperfeiçoam ento.
A edu cado ra e dan çarina Isab el Marqu es, ao tec er consideraçõ es so b re a rela -
ção ent re prática art ísti ca e prática pedagógica, propõ e o conceito de art ista-doce n te
como uma prática educac io na l de integração ent re estes dois uni ver so s, coloca dos

~ CARNEI RO, Ana. Espaço cênico e comicidade: a busca de uma definição para a)inguagcm do
ator: Grupo Tá na Rua 1981. 1998. p. 66. Dissert ação (Mes trado em Teatr o) - Ce nt ro de Letra s
e Artes, U N IR IO, Rio de Janeiro , 1998.

236 'AKC ISo T u l.lS


como distintos, tanto por artistas como por educadores, mas integrados em sua
práxis na construção de um trabalho artístico-educativo, "não abandonando "I))S
possibilidades de criar, interpretar, dirigir, [que] tem também como fum:,' () ( "
explícita a educação em seu sentido amplo"!".

Considerações finais

É nesta direção que trabalhamos na disciplina Prática de Ensino 3, com alunos


do curso de teatro, modalidade licenciatura, da Universidade Federal de U berlân-
dia, discutindo, problematizando e experenciando a organização e feitura de lima
oficina de teatro com conteúdos variados e para um público diversificado \H11

graduando apresenta seu pré-projeto de trabalho, que é discutido por todos, <.: '1ue
gradativamente vai se constituindo como um projeto final de execução. A unica
exigência que faço é que este projeto seja feito a partir do interesse pesso.il ,L ,,1 lu-
no sobre alguma técnica, escola ou procedimento teatral e esteja, de preferência,
vinculado à sua prática artística 11. Com isto, procuramos uma articulação entre a
produção artística do licenciando e os procedimentos pedagógicos a serem aciona-
dos numa futura relação de ensino-aprendizagem, procurando romper com o velho
chavão "quem sabe faz, quem sabe ensina" para uma nova perspectiva na formação
do artista-educador "quem sabe faz e ensina".

I~ MARQUES, Isabel. Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Concz, 2001.
p.112.
II Cf. TELLES, Narciso; MASCARENHAS, Márcia. Trilhando os caminhos do menino-na-
vegador: Ilo Krugli e o ensino de teatro. In: SANTANA, Arão Paranaguá (Coord.). Visões da
IlI;a: apontamentos em teatro e educação. São Luís: Grupo de Pesquisa em Ensino do Teatro &
Pedagogia Teatral, 2003. p. 61-74.

A \ O{/(J,\1\ ])[ n.'FRO [.4 l'RinC4 ])0 AR rII F 4- ]) CJ CL S I [ 237


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C ARN EIRO, Ana. Espaço cênico e comicidade: a bu sca de uma d efinição para :!J i ll f~ I ! ; I " ' 1; :

d o ato r: Grupo T á na Rua 1981. 1998. 241 p. Di ssertação (Mest rado em Teatro) - ( ' I' ! 11 : ' . de
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da llh«: apo n tame ntos em teatro e educação. São Luís: Grupo de Pesquis a em Ensin o do
Teat ro & Peda go gia Teat ral. 2003. p. 61- 74.
JOGO DRAMÁTICO SEGUNDO JEAN-PIERRE RYNGAERT

Só há Idéias burguesas no que a escola da burguesia divulga. É bur-


guês catapultar Victor Hugo em "para-quedas" para crianças que
ninguém preparou panl acolher, é burguês Interpretar Victor Hugo
de maneira puramente formalista deixando na sombra as suas to-
madas de posição essenciais: já não é burguês iniciar as crianças
em Victor Hugo leuando-as pouco a pouco a ir além do seu Tintin
habitual. E a melhor das oportunidades para que finalmente \cjLl.m
é

eles próprios a extrair, quer dos seus livros, quer da sua cxpevrenci,«,
aquilo que irá alimentar uma tomada de consciência criadora do
mundo de hoje. (George Snyden)

A mudança, ou como diz Snyders, "a purificação revolucionária entre os con-


tributos que a escola burguesa se compraz precisamente em amalgamar", .i.. ' li ,1,\
de uma demanda de fora para dentro. É a convite dos alunos que a pedagogi,l do
professor tenderá mais ou menos para a "escola progressista" que, no que diz res-
peito à arte, deve buscar "separar as exigências efetivamente fundadas da cultura c
as mistificações, os disfarces a que essa mesma cultura dá lugar".
Como relacionar a importância desta demanda dos alunos, sob a perspectiva
de uma escola progressista, com a teoria e prática do jogo dramático de ] can Pll'lrt.
Ryngaert?
Seu primeiro livro, Le Jeu dramatique en m ilieu scolaire, datado de 1977, é por-
tador de um capítulo exclusivo para definir o jogo dramático para o qual devemos
dedicar uma leitura cuidadosa e investigativa. Em linhas gerais, o autor preocupa-se
em delimitar as fronteiras entre o jogo dramático, o psicodrama e o teatro, amplian-
do largamente o universo teórico que até então enfocava o jogo dramático de forma
generalizada, a partir de pressupostos que não lhe diziam respeito diretamente.
Neste artigo, vamos nos limitar a tratar desta definição em dois momentos
distintos e entrelaçados no intuito não só de provocar a leitura da obra de .J can -
Pierre Ryngaert, como também de proporcionar material para atividade de refle-
xão em sala de aula do Curso de Licenciatura/Formação de Professores em Artes
Cênicas (Ens ino do Teatro) . No primeiro m om ento, no ssa pre ocupação principal
re cairá so bre alguns asp ectos qu e tratam da rela ção ent re jo go dram ático e teat ro
contemporâneo.
Ao afirmar que o jo go é um meio de co n he cim ent o da realidad e, Ryn gaen não
deixa d e se questionar so bre que realidade se reprodu z no jo go e que relações o jogo
m ant ém com a art e - " um outro instrumen to d e rnod elização do mundo":

o jogo dramát ico d eve se r simultanea me nte u m m eio co nc reto d e criação de situa-
ções e de aqu isiçã o de t écni cas, e um me io de reflexão d esta s situações a fim de fazê-
las tender par a a in venção. É a coexistênc ia d o mod elo ab strato e d o modelo lúdico
que permite avanç ar e esc apar ao impasse que repre senta a re p rod uç ão d e clichês'.

Sendo esta uma da s ab ordagens mais importantes par a definição do jogo dra-
m ático , importa deixá-la exp licitada de forma qu e nã o se criem idé ias falsas. Ca be
também acrescentar qu e o qu e se tenta aqui não excl ui a leitura do desenvolvim ento
inte gral dos argumentos sel ecionados pelo autor. A n ecessidade de abrir um debate
por este enfoque resid e n o fato de en contrar na proposta de Ryn gaert um desl oca-
m ento da pr eocupação co m a expressão para aqu ela qu e recai so bre a co m un icação.
A relação entre a forma e o co nt eúdo , a importân cia que a Escola atribui ao signifi-
cad o, à sua co mpreens ão, ao fato de tud o se r racionalmente en te nd ido e ex plicado,
ad q u ire no jogo dr amát ico uma particularidad e:

É po r isto que não co locamos a aquisição de urn a técn ica anterior à elabo ração de um
di scurso. O fundo só pod eri a es tar su bordinado à fo rma o u só po d eria visar a sua
clar ificação. A invenção d e formas originais m ais adaptadas a qu alqu er novo dis cu rso
é o o b jetivo det erm in an te em direção do q ua l rendem o s-,

A s mist ificaçõe s e os di sfar ces, a qu e Snv dc rs se refere, o ra se reali zam so b


enfoqu e exclusivo da forma, ora so b enfoq ue ex clusivo do conteúd o. Assim , "a
pesqui sa da expressão está es t reita m ente ligada às ex igênc ias do co n te údo, e o tra-
balho so b re a forma a uma crí t ica do conteúd o", ex p licita Ryngaert quando se refere
di retam ente ao qu e ele cham a de co m po rt amento lucidamente elabo rado . O jogo
d ramáti co se dá semp re numa situação de co m u n icação, na medida em qu e bu sca a
in venti vidade, o que sti onam ento dos modelos cult u rais, a aproxim aç ão co m a es-
tét ica teatral. Um instrumento que , desta maneira, evita as arm adilh as da imitação
est éril. "É por isto qu e se to rn a não so me nte um instrumen to de aná lise do mundo,
m as também um a ar ma diant e do mund o":'.
A improvi sação tem, assim, d e se preo cupar lucid amente com as formas
qu e s erão co nvoca das par a ex plici tar a si t uação qu e se qu er m o strar aos obse r-
vado res . São es tes que vão re tornar aos jo gad ores os co m e n t ários p ertin ent es à
m elhoria de sua ex p ress ão , tend o como referência à clare za quan to ao teatro de
qu e se fala .

I RYN GAERT, j ean-P icrr c. Le jCII dramatique en milieu scolaire. Paris: CED IC, 1977. 175 p.
RYN GAERT, 1977.
3 RYNGA ERT, 1977.
Da mesma forma, a noção de distância do ponto de vista brechtiano é fundamental
no nosso trabalho, não só para evitar uma abordagem exclusivarnent l' psico!úgica
do fenômeno teatral, mas também para familiarizar os futuros espect.1, ,c's com ,IS

técnicas de jogo contemporâneas'.

o analfabetismo teatral e estético, apontado por Richard Mon. ).i rm S1L1S

aulas no Institut d'Etudes Théâtrales e em seus artigos, refere-se, entre outros as-
pectos, às manifestações teatrais recentes, aos autores dramáticos contemporâneos,
aos diretores e ao conceito de direção propriamente dito. Quando não se tem claro
de que teatro se fala, é quase sempre comum se ter em mente o teatro hUq~ll0s,
canastrão, bem "arrumadinho", detentor de mensagens bem comportl("" Ih) LIIl:ll

há inexistência de ousadia ou de ruptura. A imagem cultural por ele transmitida,


entretanto, não pode ser confundida com o Teatro, na medida em que nao passa de
uma das concepções as mais comuns de uma forma de teatro. A conten.p -: .tlll'lcLIL1c
no' teatro, se tomada como ponto de referência, pode trazer para o universo da sala
de aula a noção de ruptura que lhe cabe e que convém aos alunos tomar conheci-
mento e dela se apropriar no jogo. Neste sentido, o jogo dramático se define como
uma arma diante do mundo. Para reforçar esta idéia, atentemo-nos para o que diz
George Snyders:

A escola atual não sente o mínimo escrúpulo em funcionar segundo perspectivas


temporais a longo prazo, que só actuarn a longo prazo e que esmagam o presente.
Isto de dois modos: 'Trabalhem bem para que mais tarde triunfes'. Mas a sua nf1.m·
são presente, a plenitude da sua existência juvenil, serão realmente objc. tu d,· l" ('('
)
cupação? E por outro lado, a actualidade tem enorme dificuldade em se introduzir
como objeto de estudo: a classe dominante teme-a. prefere guardar SilC'I1L ill" l' :.d.l!
doutra coisa. Com isto condena todos os alunos à apatia'.
)

1
o jogo dramático vai tentar caminhos, assim como fez o teatro no século XX.
mais particularmente as experiências cênicas e performáticas do teatro, a partir dos
e anos 1960, em que se opera uma ruptura com o compromisso de reproduzir de for-
)
ma fiel a realidade. A fragmentação, a coexistência do verbal, da imagem e do som
1
sem prioridade de um sobre o outro, a noção de grupo minimizando, a ('sltU'IIL1
,1
i hierárquica e a escala de valores, a preocupação com o processo são, dentre OUlIUS,

)
I novos compromissos estéticos para, em lugar de reproduzir, analisar a n'.ilidldL'.
escuta deste teatro, o jogo dramático estrutura-se e organiza seus comeu' J.).,.
A
,
1, Através do enfoque estético e da adoção de novos compromissos em relação
S
à forma que realize a ruptura com o naturalismo, torna-se possível a aquisic.io de
novos hábitos na prática do jogo capazes de colocar em questão tanto os modelos
1
culturais estandardizados quanto as formas estereotipadas de leitura do real. Uma
mudança de qualidade na investigação do mundo passa obrigatoriamente p(lr um.i
""
mudança de qualidade no modo de fazê-la. Assim, o jogo dramático determina um
comportamento político e uma opção pedagógica.

, RYNGAERT, 1977, p. 45.


SNYDERS, Georges. Escola, luta e luta de classes. Lisboa: Moraes Editores, 19:\ I. p. .3':15.

JOGO DR.ll/:\fiCO SECI'.\!)().!L4S-PIIIUU Rl",\C..1 UIl 241


O s bon s se ntime nto s p od em tirar suas vant age ns num jogo qu e fala d o raci sm o
de fo rma geral e bombardeado d e clichês. M as o jo go só oferece real interesse
1
~i
1
qu and o ela fala do racism o at ravés da experiênc ia que os jogad ores têm , COm

as dú vid as, as co nt radições, as interro gações (e também a imagin ação ) qu e lh es


pertenc em. O jogo torn a-se produtivo na m edid a em qu e ele é preci so, que
d eixa falar as sub jetiv ida des e qu e leva em co ns ideração o s desejos pro fund o s
d o s part icipantes. O qu e é em princípio um a c o n d ição indispen sável pa ra qu e 'Ij
I
ha ja prazer". '1

1I
A ga ra nt ia do jogo se r produtivo passa por esta concepção de en gaj am e nto e i
"

in vestim ento p essoal d et erminada pelo jo gar a parti r d e s eus própri o s int eres ses. O
qu e se coloca em jo go são sit uações que, en focadas so b ex p ress iva oscilação d e se u
sign ificad o , p olemizando-se a partir de diferent es p ont o s d e vista, podem se r traba-
lh ad as es te t ica m ente através da s se n has de jogo, d ada s pelo an im ado r, qu e aj u da m
a di z er, a m elhor di z er. Segundo Ryn gaert; as se n ha s vã o favorecer a "gin ást ica do
imagin ár io" , quando fo rm ula das levand o em co ns ide ração, por exe m plo , o acaso e
o alea tó r io :

A situ ação a mais banal, recaio cada num espaço previsto, adquire às vezes uma co r
nova. A co nfront ação insólita de person agens não espe rados co m antecedênc ia per-
mite renova r o esto que de inven çõ es dos parti cipantes, de tr azer um po uco de fanta -
sia a um imaginário limitad o ou fechado nas co nvenç ões' .

o m á gi co , o n ão-ló gico , nã o só é perm itid o co mo atravé s dele se p o d e ch e-


ga r a p roj eta r sob re o real um n o vo o lh ar, ro m pe n do co m a "bem ríg id a m ím esis
que eles procuram em vão reen contrar at ravés da s vias convencionai s". Provo cando
co n sta n te me nte o aum en to da capac id ad e de jogo, d eixa-se ao jogado r a d eci são
d e assumir o u n ão os riscos, gara nt e-se a auto no mi a d o s gru pos e dos indi v ídu o s.
A través d o vai-e-vem d o jogo ao se u questionam ent o p elos o bservado re s at ivos, o
pro cesso pedagó gi co avan ça e m ritm o pró p rio .
A referência qu e se quer ao t eatro contemporâne o é a font e pa ra in strumenta-
liz ar o p rofessor e ajudar o aluno a di z er, a co m u n ica r d e o u t ra fo rma:

Um contato sólido com o teat ro co nte mporâ neo é indispen sável, a fim de que os
jo gado res cons t ruam para si pontos de referência, qui çá model os cont raditó rio s. Ler/
escrever é uma dupla que faz pane da aprend izagem do franc ês. Jo gar/ olhar dev eria
ser um a du pla també m natu ral, as experiências do es pec tador retroaliment and o aque-
las do jogado r, e vice-vers a. A dupla experiência se impõe para que sejam extrapo la-
dos os exem plos simplistas de sket clies impo stos pe la televisão, para que seja poss ível
o usar co nfro nt ar-se às fo rmas co ntempo râneas de escri ta e de jogo. Um a real relação
ao teat ro par ece-m e indi sp en sável ao pr ofessor'.

I. RYN GA ERT, Jcan-Pierre. Le jeu drarnariquc en milicu sco lairc (anexe). In QUATRE art icles
SU l'art , créatiuit é, expression et jeu x dramatiq ues mis CII relation avec ces pra tique s, Paris: Insrirur
d ' Et udes Th éâtrales, Sorbonne N ouvcll e, 1984. p. 32. Traduzid o por Renan Tavares. R elatório
de p esqu isa: an exo artigos traduzidos. CN PQ, 1990.
r RYNGAERT, 1984 , p. 33.
x RYNGAERT, jcan-Pierrc.jovo; représen tcr. Paris: CEDIC, 1985. p. 40 .
A intervenção do professor é bastante delicada, há riscos de manipulação, de
omissão, de dirigismo. A atividade pedagógica do professor difere daquela do d)lc) (11"
de teatro, ainda que ambos se preocupem com a teatralidade e com a pesql!l (_
mática nos códigos culturais de seus elementos para a construção de produtos J()~~\ \'Ó
ou espetáculos.
Na escola, não cabe trabalhar a diversidade de interpretação com f C LI 1\) rl;
reta às diversas formações de ator, nem a aquisição de alguns elementos de c(Jdi~,,()s
de jogo e relação à história da arte. O jogo da farsa, da commedia dell'arte, do palha-
ço, assim como o jogo interessado em elementos de outra cultura, a oriental, por
exemplo, não podem ser apreendidos no tempo restrito da programação ClI1TIC\!I:11.

Da mesma forma, evita-se entender o jogo teatral, como comumente se Lv, l (' I i 1(' ,I

alargamento do gesto e seu exagero, o tratamento grosseiro que se dá ao traço.

Meus objetivos, mais modestos, orientam-se para a tomada de consciência 'i ,.


funda o teatro enquanto tal, independentemente do texto e do diálogo.' A identi-
ficação de alguns sistemas de convenções já é uma etapa satisfatória, que pode ser
atingida no interior do jogo, através de algum,1s "bricolagens artísticas". Elas 11<Ío
conduzem à mestria absoluta das convenções, nus permitem a consciência de sua
existência".

o trabalho pedagógico em relação à teatral idade também não se define pela


separação entre forma e conteúdo. Não se trata nem de realizar uma teatralização
vazia de sentido, nem de utilizar um código como conjunto de truques só para em
belezar uma idéia. A pesquisa de um código acompanha a elaboração do ,1H1l1';('.

num mesmo movimento e determinadas pela mesma necessidade.


Segundo Ryngaert, a tomada de consciência dos diversos códigos· :'(':dl/\
pela opção jogo/não-jogo. A aprendizagem de regras simples que marc.n I, l' -

sagem do estado de disponibilidade ao estado de jogo significa o questionamento


da transparência em teatro. Ela remete a não mais fazer a diferença entre .1 , (\;

a personagem, a falar dela como se fosse verdade, a falar do jogo como se tratasse
do mundo. O jogo inscrito num sistema determinado se realiza como reconheci-
mento da "mentira". A aprendizagem desta passagem do não-jogo ao jogo assinala
a existência das convenções e que a seleção de uma delas é necessária par" 'flj, n ur
verdadeiramente" .
Na medida em que a teatralização não é encarada como um molde pZira v,v;tir
um significado a priori estabelecido, o jogo dramático procura se realiza' z, ~)"";r
de senhas concretas que provoquem a teatralidadc no momento da produção dos
signos. São elas que relativizarn a anterioridade ou posteridade da forma e m relac.io
ao conteúdo e vice-versa.

Todas estas senhas trabalham sobre a materialidade do jogo e, em primeiro lugar, as


senhas espaciais que impõem convenções rigorosas. Limitar-rne-ei ao exemplo de jo-
gadores que devem considerar o espaço imposto, que não corresponde ao lug:11 ll.'al,
onde se desenvolve a situação que escolheram. Tomando consciência
espacial, descobrem também que a teatralização não se limita ao exagero ou ao efeito.

9 RYNGAERT, 1985, p. 58.

.!()<;<) J)R.4II4IJ/<) SfC/'.\'J)() .ltvs-Ptts)«: R I XC.'i u u 243


Ela com eça co m a de rrapagem, o d esl o cam ento do se nt ido, a m etáfora. Qu and o as
sen has p ro vo cam estas derrapagens, e las ca m inh am n a direção de uma teatralização
qu e brota d o coração da inven çã o I:.

o autor acrescenta ainda que a t eatralidade deve ser identificada no jo go, nas-
cida involuntariamente do lugar real , da s atitudes sem jeito d o s jogadores, de UIlI

efeito de luz fonuito , de uma situação ligeiramente in sólita. Uma teatralidade d o


cotidiano qu e independe de artifícios , de palco. Trata-se d e uma edu cação do olhar
que trabalha so b re a o bs ervação d o jo go em rela ção ao ambi ente em qu e se reali za.
"A teatralidade do espaço não começa no teatro, assim co mo a d o gest o o u da mí-
mica, ela inte rvé m n o co tidiano "!'.
A so lidariedad e, que se reivindica ao realizar o jogo dramático entre jogado-
res e observadores, explicita uma atividade estético-pedagó gica que faz interagir
di aleticamente: a realidade cotidiana e a criação esté t ica, a in venti vidade em sala de ;
!
aula e os pro cessos cr iat ivos na ar te . As s im, ela não ex cl u i a pre ssão qu e o gru po, o 1

coletivo de alun os, po ssa fazer n o sent id o d e avan ços reai s. Esta pressão se tradu z I
!
J
p or um a demanda ex p lícita de faz er a cultura escolar m ant er uma relação co m o s 1
j
problemas da vida . A cu ltur a pas sa a se r um m eio d e açã o sob re o real e de modifica- I
1
ção : nã o ma is se re vela na esco la at ra vés de eva sivas, grat uida des nem sim p les m ente
se restrin ge a exercíci o s puramente formais.
1
iI
A educação est ética poderia contribuir para a constru ção de uma esc ola pro- i
gress ista se ela realm ente der co n ta d a desmistificaçã o d o ilu sório e da men tira qu e
um a d et erm inada classe social atribui 3 es té t ica ade q uada e aos produtos difu s ores
d e sua ideol o gia.

Q ua nto mais ob ra s-pri mas se co n hecere m. mais o peso da verda de e da realidad e Sl'

sobrepor á ,10 artifi cia l burgu ês. A s exigê ncia s d os alun o s p rol et ári os, to madas e m
cont a e interpretad as por professores pro gr essi stas, corresp ondem à passagem da
classe de André Th euriet a Eluard, A cultura o perária ca rece da escola nã o pa ra se
ren egar, mas p;lra se rea liza r. A escola p re cisa de qu e a pressã o operária seja fon e: d e
o utro mo d o co rre o risco de se es quece r d e tirar das ob ra s c u lt u rais sua substâ n c ia
revo lu cioná ria I ~ .

N o segu nd o m omento, p ropomo-n o s a, at ravés de duas refl exõe s com b ase


nas idéi as d e Ryngaen , interrogar n o ssa prática pedagógica n o Ensino Fundamental
e Médio, nos quais o jo go marca presença cotidianamente.
Em primeiro lu gar, vamos tratar de sua d esconfiança em relação ao s "exer-
cíc ios" e à tran sm issão sim plista d e t écni cas d e inte rpre tação para o ator. M esm o
sabe ndo co mo é di fícil para a m aioria dos gru pos se lan çar de im edi at o em um
t rab alho ap rofun da do, se m es ta esp écie de "aquecim ento ", o u "t em po d e rela ciona-
m ento ", ou ainda "lim peza do esp aço ", lembra-nos que os jo gos e exercíc io s difun-
did os por A ug us to Bo al, ent re o u t ros ex is te ntes , ret i l O S d e se u co ntexto, de s ua
sig n ificação ide o lógica (co m o n o caso do Teatro do 0prim id o ), correm o risco d e

I: RYNG AE RT, 1985, p. 60.


II RYNGA ERT, 1985.
12 SNYDERS, 1981 , p. 403.
se reduzirem a momentos superficiais, mecânicos. Sua desconfiança no tocante aos
exercícios se faz acompanhar do desejo de abrir polêmica contra o "não importa ()
quê" proposto aos alunos, simplesmente porque havíamos feito ou teríamos vis t ('
fazer em algum lugar. É necessário ser mais prudente neste sentido. É necessário
refletir sobre os objetivos da expressão dramática no meio escolar antes de decidir
sobre a escolha destas "entradas" - propostas ou impostas - antes do jogo dramáti-
co propriamente dito. Elas podem se dar por elas mesmas.
Sem dúvida alguma, é necessário colocar os indivíduos e os grupos em relação,
mas que seja permitido o direito à utopia. Pois estas formas de criar condições para o
jogo são inevitavelmente dirigidas por um emissor único (o animador/o professor),
que decide no lugar dos participantes o estado que eles devem atingir para produzir
"bons jogos". E se os indivíduos tivessem direito a estados diferentes? Ou ainda,
se fosse o caso de, ao final do caminho, serem capazes, por eles mesmos, de chegar
como bem entendessem a este estado? Para Jean-Pierre Ryngaert, a autonomia do,
indivíduos e dos grupos permanece o objetivo maior de seu trabalho. Neste sentido,
ele preconiza que estas seqüências iniciais ou "entradas" não se caracterizem como
bengalas (a aprendizagem de truques desgastados, ou o esconde-esconde da imagi-
nação) de propriedade única do professor/animador.
Em segundo lugar, acredito ser interessante trazer à tona algumas refle-
xões deJean-Pierre Ryngaert sobre seu insistente interesse em "jogar o mundo",
fortemente presente em seu primeiro livro, O Jogo dramático no meio escolar,
de 1977. Apesar de ser mal compreendido, como, por exemplo, a necessidade de
provar no jogo uma boa vontade ideológica um pouco inocente ou uma certeza
política qualquer, o jogo dramático, correndo o risco de ser ou não didático, não
escaparia dos "grandes temas" - quer renovados pela moda ou pela necessida-
de: a poluição, a violência, a miséria, a família, as drogas, a mídia. Ryngaert nos
revela que, ao propor aos jogadores de se investir pessoalmente no jogo, como
uma alternativa, corre-se o risco de sermos considerados suspeitos de favorecer
o olhar voltado para seu próprio umbigo, a confissão íntima ou o psicodrama
pirateado,
É bem verdade que o que os participantes jogam não apresenta interesse al-
gum (nem para eles, nem para os outros), a não ser quando coloca em questão uma
imagem do mundo que lhes diz respeito diretamente, em que eles podem se incluir.
O jogo dramático, assim, torna-se produtivo, pois deixa falar as individualidades e
leva em consideração o desejo profundo dos jogadores. Torna-se, assim, fonte de
prazer.
O prazer reside também no interesse que cada um adquire em jogar o que lhe
atrai e a fazer comungar seus interesses. Ryngaert nos lembra que é preciso nos en-
corajar a ter paciência, quando as situações abordadas não nos agradam pessoalmen-
te. Por que diabos um grupo ou indivíduos aceitariam, da noite para o dia, lançar
sobre a área de jogo preocupações que lhes pertencem ou às vezes lhes questionam?
Por que estas preocupações seriam expostas diante dos outros, do professor/ani-
mador, nos quais eles, em princípio, não vêem razão para depositar confiança? Em
nome do quê este professor/animador decidiria bem rapidamente o que é importan-
te e o que não o é? As situações impostas ou caídas de pára-quedas não se revelam
produtivas; são as senhas que ajudam a dizer, afirma Ryngaert.

fOC() /)RA'Ur!C() SLr;I.SI)ofL4,\-f'lfRRf R".Y",.\LRF 245


N o sent ido de trazer mai s clareza a es ta refl exão, vejamos o exemplo que ele
no s d á com uma t ur ma d e 2". Série do En sin o Médio: foi prop o sto se trabalhar em
to rn o d e Mãos Sujas, de Jean-Paul Sartre, peça es tu dada em sala de aula de literalura.
Os ad ol escentes decid iram jog ar as cenas não es critas, simplesm ente mencionadas
no texto de Sartre, as qua is ti n ha m uma rela ção co m a infância ou a ado lescência do
pers onage m Hugo. A má sca ra do per sonagem serviu para que eles fala ssem daqu ilo
qu e lh es di zia respeito: situações imediatas que eles tinham difi cul dad e de ver clara-
m ente, qu e os confro n tava m co m suas próprias famí lias. O jo go encont ra um a fo r-
midável alegria, quand o introduz no aqui e ago ra image ns co ncre tas d e um algum
lu gar qu e diz respeito diret am ente aos jogado re s, rea firma Ryn gaert. Assim, du as
jovens da Martinica, recém-ch egadas no Liceu d e um subúrbio de Paris, jo gam co m
delí cia e um certo alívio, uma cena em que cam poneses de seu país ch ega m em casa
ao fina l de um a jornad a de trabalho. Falando em cri oul o ao s personagen s turista s
e se m o vimentando de forma que nin guém da t urm a jamais as viu se m oviment ar,
elas afirmam, co m um a força t ranqü ila, uma identidade que elas não tinham ainda
podido (ou qu erido) assum ir n o espaço escolar. Ryngae rt acresce nt a ainda qu e num
m om ento posterior ao jogo, as jovens o resumira m co mo o de sejo de jo gar "lá",
fazendo este "lá" entrar na turma simplesm ente porq ue lhes di zia respeit o, porque
elas se incluíam na image m do mundo qu e ap re sentava m e da qua l se ap ro priaram
ao jogá-la.
Sendo assim , ele vo lta a nos falar da paciên cia, pois, JS veze s, são necessários
d ez jo go s so br e situações desgastadas ou falsame nte imitadas para qu e nasça um a
im agem fort e. Aprende r a dize r leva tempo, ma s, seg undo Ryn gaert, este tempo
nun ca é inu tilmente perdid o.

Concluindo

O jogo dr amático na ed ucação prio riza co locar em tensão o jogo espontâneo


e aquele regido por có d igos teatrais. N ão se tr ata d e negar a "livre ex p res são ", mas
de pro vo cá-la em relação às fo rmas e estrut ura s nas q uais se realiza m as inúm eras
possibilidade s da rep rese ntação teatral. A provoca ção visa o deslocam ento da livre-
express ão para um enca m in ham ent o lúcid o, ain d a q ue de exp erimentação das fo r-
mas d e re presentação da arte teatral, da apropria ção das po ssib ilidades exp ressivas
realizávei s segundo có digos p reciso s. Do pont o de vista pedagógico , há que ser
não-diretivo e saber respeit ar o dir eito do alun o à sua autonomia e à sua o pção pelo s
. . .
fi SCO S qu e quer assu mir no Jogo.

Quando Jean-P ierre Ryn gaert coloca em qu estão as lon gas séries de jogos ou
exe rcíc ios qu e precedem o jogo dram ático (co mu m a muitas práticas) , ele, ao mesmo
tempo, elabo ra a crítica à manu tenção do esp ontan e ísmo no jogo qu e, em geral, esta
fase prep arat ória opera. O comportame nto lúcido e aut ônom o que se es pe ra do aluno
entra em tens ão co mo o que se entende ser espo ntâ neo , nat ura l, próprio , livre. Na
nossa prática pedagógica, pe rcebem os em cr iança s, ado lescen tes e adu ltos um a redu -
plicação de mod elos cu ltura is, do "déjà vu" qu e co loca m rad icalme nte em ques tão a
possibilidade de se entender o jogo espo n tâneo co mo expressão ino cente, im aculada,
nã o adulterada.
O comportamento lúcido passa por uma ap ropriação da express ão estética,

246 rz, N A N T W AKt '


e colocando em questão o s inevitáveis estereótipos que acompanham 'q ualq uer mani-
n festação d e livre expressão. A viabilidade deste co m p o rt am en to lúcido só pode ser
l.
garantida pela relação que o jogo dramático estabelece com a estética t eat ral.
s
J
Os professores d e arte deveriam de fato m ost rar a seus alunos que o inc on scien te

J
nã o deve ser reprimido , que ele pode tornar-se a font e de um a gra nd e vir.ili.iadr I· .1
mas somente quando dominado pe las força s d o ego e enrique cid o por ele, O que é

- necessário é um trabalho di sci plinad o do mater ial incon scie nte caótico; é necessário

n que ele seja tran sf ormado e moldado em formas que sejam signifi cativas tanto para o

s
j art ista quanto para os outro s. Nossos alu nos dev eriam aprender q ue o in con scien te.

n
a I qu ando util izado como uma fonte natural, pode enormemente dar vida ao co n ju.n o
da personalidade; enquanto que a expressão livr e e desenfreada do incon sciente é um

s
.,
.
I pas so em dir eção à des inte gração da pers o nal idade!',

Bruno' Bettelheim acrescenta à preocupa ção com o espon tan eí sm o , ao fazer


•1j
a
n não importa o quê , ao não ter nenhuma postura crítica face à reprodução de mod e-

e
n
II

,1
J
lo s culturais, os risc os da livre-expressão de senfreada, inconsciente, na ed ucação .
Cham a a atenção do s professores so bre o fato d e q u e os risc os pode m se r evit ados ,
ao levar em conta o trabalho lúcido do art is t a, da arte, com o referência central e
:1 prioritária para um trabalho d e ed uca ção es té t ica.
s
"i
Não se pode esquecer da importân cia da relação ent re jo gadores e o bser va-
"]
a dores no jogo dramático no s en t id o de determinar os avanços d o grupo e de cad a
) in d ivíduo no tocante à luc ide z e à au to no mi a. Não cabe ao pro fessor nem ace lerar,
nem at rasar o process o q ue o gru po d esenvolve, ma s saber usar de pa ciência p,lr;l
ev itar diretividade neste processo . A ref erência à arte, de forma co ns tante e opo r-
t,-1I1a, é u ma garan tia par a uma pedago gia não -direti va , para o aum ento gra d:lti'/(o d,1
capacidade d e jogo d o s es tu d antes e não d evem os jam ais nos esqu ecer d e que u pr\)o
) duto artístico é poliss êrnico, abre possib ilid ad es de caminhos, opç õ es e recusas. O
s que, se m dúvida, favorece u m a ed ucaçã o estética associada à "to mad a de co nsciê ncia
s criadora do mundo d e hoj e".

s
r ~
s i
J 1i
)

a
)

a
r,
13 BETTELHEIM, Brun o . Pontos d e vista pessoais so bre a art e e a edu cação artística. In: QUA-

,
. TRE articles SUl' art, créatiuité, exp resston et [eux dra m atiqu es m is en relation auec ces pratiqu es.
Pari s: In stitut d "Etudcs Th éâtral cs, Sorbonn e N o uvelle, 1984. p. 3.

Io co D l!.1.1 /.inco \[C;l ·,' /JoI L1" . P f[li R[ R , ",\( ;A[fO 247
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QV A T R E articles sur art, créatiuué, express ion et jeux d ram attques mis en relation avec ces
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RYNGAERT, jean-Pierre. Le jeu dr amatique en milieu scolaire (anexe) . In QVATRE arti-


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Tavares. Relatório de pesqui sa: an exo artigos trad uzidos. CNPQ, 1990.

RYNGAERT, j ean-Pierre.j'orrer; représenter. Paris: CE D IC , 1985.

SNYDERS, G eorges. Escola, luta e luta de classes. Lisboa: Moraes Editores, 1981.
GATO&RATOS: ATIVIDADE TEATRAL NA PRÉ-ESCOLA

.~ Ricardo Ottonz Vaz Japiussu

o problema da formação de Teatro-Educadores para a


educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental (1 a a 4a série)

A inserção obrigatória do Teatro como "área do conhecimento" no currículo


oficial da educação básica nacional deu-se a partir da entrada em vigor da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação - LDB 5692/71 e consolidou-se com a promulgação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN 9394/96. Pode-se
constatar, por exemplo, que tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNS
I quanto o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil- RCNEI 2 reco-

mendam o desenvolvimento do trabalho pedagógico com as Artes Cênicas respec-


tivamente nas séries iniciais do ensino fundamental e na educação infantil'.
Seria redundante aqui um exame crítico do tratamento didático-pedagógico
dispensado ao Teatro por estes documentos, porque isso já foi feito em publicações
anteriores", A principal questão que emerge com a problemática da "disciplinari-
zaçâo" do Teatro no Brasil, hoje, no meu entendimento, é a do locus da formação
docente dos Teatro-Educadores que irão atuar na educação infantil e séries iniciais
do ensino fundamental (la a 4a série).
Sabe-se que a "licença" para ensinar nestes níveis da escolarização é prer-
rogativa do pedagogo. Mas o fato é que os currículos dos cursos de formação de
professores e de Pedagogia não têm oferecido aos seus cursistas um programa
educacional com o Teatro que satisfaça as necessidades formativas do Teatro-Edu-
cador, ou seja, preparando-o para intervir pedagogicamente na educação infantil e

1 Orientações oficiais dos conteúdos a serem trabalhados pelas várias áreas do conhecimento no
ensino fundamental (la a 8'\ série).
2 Orientações oficiais dos conteúdos a serem trabalhados na educação infantil.

j Cf. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curncu-


lar nacional de educação infantil. Brasília, DF, 1998.v. 1-3; BRASIL. Ministério da Educação. Secre-
taria de Educacão Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília, DF, 1997. v. 1-10.
• PENNA, Mama (Org.). É este o ensino de arte que queremosi Uma análise das propostas dos
parâmetros curriculares nacionais. João Pessoa: Universitária UFPB, 2001; JAPIASSU, Ricardo.
O lugar do lúdico na educação infantil brasileira. Revista da FAEEBA: Educação e contemporanei-
dade, n. 16, p. 191-199, jul./dez. 200la.

249
série s inicia is do e n sin o fundamental (fundamental menor ) ". O problema agrava-
se em ra z ão de as lic enciaturas em Teatro não chama rem para si a re spon sabilid ad e
1
,I
.~

de formarem, também, Teatro-Educadore s habilitados para atuar ne stes nívei s d e


esco laridade.
Tanto a educação infantil quanto o s níveis inicias d o ensino fundamental (1a ;1
4;1 série) possu em , cada um, no que tan ge à atividade dram ática e cên ica, esp eci fici-
dade s ludopedagó gicas próprias (n a educação infantil a ên fas e é n o "faz-de- conta"
ou "j o go co m re gras impl íciras'"; nas sé ries iniciai s do ens ino fund am ental, fo caliza-
s e mais o jo go co m re gras expl ícitas)",
H á nitidamente uma lacuna na forma ção d o cente d e Tea tro-Educad ores p or-
qu e n em os curs os de Pedagogi a n em as licenciaturas em Teatro preparam o s profi s-
s io n ais habilitados para a o rgan iz aç ão da a t iv idad e pedagó gica co m as Artes Cêni cas
na educação infantil c fundamental m enor. I sto preocupa.
Sou d a opini ão d e qu e as li cen c iaturas e m Teatro d e vam t amb ém o fe rec er
a habilitação profi ssional para -esse s n ívei s da escolarizaçã o - se m prejuíz o da
forma ção d o s profe s s ores ge ne ra lis cas respon sá vei s p ela t r an spo si ção peda gó gi-
ca do s cont eúdos da s diferent es á rea s do co n h ecime n to qu e oc orre n o s curs o s
d e Peda go gia s.
Se os cursos de Pedago gia nã o têm sido capazes d e at ender à demanda formati va
de Teatro-Educad ores para ;1 edu cação infantil e para o fundam ental menor, então,
que as licenciaturas em Teatro o use m faz ê-l o . O que não se justifica, de m odo al gum,
é fec ha r os o lhos para essa problemática e fin gir qu e ela n ão existe . Talvez a iorm a çâo
d e Teatro-Edu cad ores para atuarem nestes níveis da escolarização, no âmbi to d as li-
cencia t uras em Teatro , po ssa ser, com efeito, um cam inho para a soluç ão d o problema ,
porqu e precisamo s d e pe ssoal capacitad o para o rga n izar a at ivid ade dramáti ca e cênica
n a ed uc ação in fantil e n o fun dam ental m en or - se de fato qu eremo s o desen volvimen -
to ao Teatro-Educa ção .
Em resum o : so u da o p in ião d e q ue nã o d evem o s co nfiar unicam ent e ao s
curso s d e Peda go gia a tarefa de formar Teatro-Edu cad ores pa ra os prime iro s ní-
ve is d a es co larid ade . A real ida d e ed uc ac io n al brasileira demo nstra que as faculd a-
de s d e Educação e In stituto s Normai s Su pe rio res t êm falhad o n o atend im e n to J
ex p ec tat iva do s Arti stas Cênico s, Peda go gos e Pai s con sci entes da rel evância d o
p ap el d o Teatro n a p erspectiva de uma educaçã o in fantil e ma nc ipado ra n a con -
t em p oraneidade".

; JAPIASSU, Ricard o. Desafio s da (in) fo n n açã o docente: o trab alho pe dagógico co m as arte "
n a esco lariza ção . Ec cos Revista Cientiji ca d o Centro U niuersitdrio NO "i)C de J ulho: Esco la B ás ica
e Sociedade , São Paul o, v, 6, n. I, p. 65-8 3, jun. 2004.
I, VYG OTS K1~ Liev S. O pap el do brinqued o no d esenvol vim ento . In : oA forma ção so cial
da mente. São Pau lo : M arti ns Fontes, 1996 . cap, 7, p,121-13 7.
7 PIAGET, J ean. A classificação dos jo go s e sua evo lução, a partir d o apare cime nto da lin gu a-

gem. In : ' Afonnaçãu do sím bolo lia criança : imitação , jogo e so nh o , im agem e represe n-
ta ção . Rio de J an ei ro : G ua naba ra Koo gan, 19 78. ca p o5, p. 137-1 80; PI A GET, J ean . As reg ras do
jo go. In: o °
ju ízo m oral na criança, São Paulo: Summus, 1994. cap o 1, p. 23 -91.
x H á u ma int eres sa nt e d iscu ssão a respeito da fo rmação de professo re s gen eralistas x es peci al is-
ta s para a ed ucação infant il e fundame ntal m en or. C f. SAYÃ O , Roscly, Q ua l o melh or, gene ralis-
ta o u especi alista? Presen te! Reuista de Educação, Salvad or, C EAp, n . 48, ano 13, p. 25-2 6, m ar./
ma io 2005; SAMPAI O , Ter esa C. F. d e M . Polivalência o u ... ? Presente! Reviste de Educação,
Salvado r, ano 13, n. 48, p. 27-2 8, mar./maio 2005.
') A DO RN O, Th eod or \YI. Educação c emancipação . Rio de J an ei ro: P az e Terra, 200 0.

2 50 R I< .\K DO O IT O "1 V .\Z J .\I'I.\ " l'


Adiante passarei a expor alguns resultados obtidos com uma pesquisa-inter-
venção realizada em 1998 numa pré-escola da rede municipal de São Paulo I:, n
objetivo do que será exposto a seguir é unicamente o de compartilhar descobcn :15
a respeito de alguns aspectos didático-pedagógicos específicos da atividade c[;) 1i\~1
lúdica na educação infantil que possam (in)formar Teatro-Educadores desejosos de
atuarem neste nível da escolarização.

A pesquisa-intervenção

(1) Pré-escolares podem interagir mediados pela linguagem teatral?


(2) Quais as principais características da atividade teatral dos pré-escolares
(3) Como se aprende a jogar o jogo teatral na pré-escola?
Buscando responder a estas questões eu realizei uma pesquisa-intervenção
pedagógica que tinha por objetivo promover o desenvolvimento da capacidade ('-
tética em pré-escolares. É preciso, no entanto, esclarecer que não tive - nem tenho
- a pretensão de encontrar respostas definitivas para as questões apresentadas aci-
ma. Os resultados da pesquisa aqui apresentados devem ser considerados tendo-
se em mente (1) o contexto sociocultural da intervenção pedagógica; (2) aspectos
idiossincráticos da atuação do coordenador de jogos teatrais e (3) os processos de
crescimento pessoal e desenvolvimento cultural únicos dos sujeitos acompanhados
pela pesquisa.
O relatório completo da observação participante que se expõe neste artigo
foi formalmente apresentado à Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo -FEUSP como tese de doutoramento sob a rigorosa orientação da pro··
fcssora doutora Marta Kohl de Oliveira. O projeto desenvolveu-se na Escola
1\1 unicipal de Educação Infantil - Emei Prof" ] onise Máximo da Fonseca, corno
proposta de intervenção pedagógica com a linguagem teatral ao longo de um
ano letivo. A pesquisa-intervenção foi implementada após ser aprovada pelo
Colegiado da escola e contou com o engajamento espontâneo de Claudia Fuga
(professora regular da Emei) na investigação.
Todos os jogos teatrais propostos às crianças foram coordenados por Claudia,
sob minha orientação. As sessões de jogos foram exaustivamente áudio-foto-vídeo
registradas por mim. Entre uma e outra sessão Claudia e cu nos encontrávamos,
na sala de vídeo da Emei, para consultarmos os registros do encontro anterior com
os pré-escolares, refletirmos conjuntamente sobre o processo do nosso trabalho,
discutirmos e planejarmos as próximas propostas para atividade teatral que seriam
apresentadas às crianças nas sessões subseqüentes. Foram colocadas 12 crianças
juntas em uma classe experimental multisseriada (4 a 6 anos) com o objetivo de
praticarem - semana sim, semana não - jogos teatrais. Ocorreram ao todo 14 ses-
sões de trabalho com os pré-escolares ao longo do ano letivo.
Os sujeitos foram selecionados considerando-se (1) o desejo da criança de
fazer parte do grupo, (2) a autorização de seus pais e (3) indicação justificada da
professora de sua classe regular. Todos os pais concordaram com a participação de

rc JAPIASSU, Ricardo. Jogos teatrais na pré-escola: o desenvolvimento da capacidade estética na


educação infantil. 2003. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2003.

G4m&Rn05: A1II iDADL lL41R.4L \4 t-ut- or(Ju 251


1
;J

seus filho s no pr ojeto, inclusive autorizando -me, por escrito, a util izar, com ob je-
tivo s es t rita me nte acad êm ico s, as imagens e nom es ve rdadei ros das criança s. Ao
enc erramento de cada se ssão de trabalh o, uma cópia em víde o invariavelmen te CL l
lo go pro viden ciada e perman ecia em pode r da Em ei, para que pu d esse se r exam ina-
da p elos pais e pela equi pe pedagógi ca da pré-esc ola.
C la u dia e eu parti cipam o s aind a de re u n iões reg ulares com os pais das
criança s n as quai s e ram ( 1) ap res entado s o s regi stro s em víde o da s s ess õ es de
jo gos; (2) co lerado s d ep o im ent o s so b re o co m po rta me n to do s p ré- escolares em
suas casas ao lon go do d esenvolvimento do projeto e (3) exp o stos e di scutid o s
o s fu n da me ntos aca dê m icos da pe squi sa.

o contexto social da investigação


A Em eiJ on ise lo caliza-se no J ardim C abuçu - um bairr o da zo na no rt e de S:lU
Paul o atravessado pela movimentada rodovia Fe rn ão Dias, pr óximo à divis a da capi-
tal co m Guarulhos. J ard im Cab u çu é uma zo na su b urba na per iféri ca qu e ap res enta
gran de s co nt rastes soci ais e econômicos. Por exem p lo, ao lado d e grande s fáb ricas e
préd io s co me rciais lu xu o sos, ex istem mu itas ilh as d e pobreza (in ú meras o cupações
irregulares de terren os e gra nd es co njunto s habitaci onais populares) .
G ra nde pane das crianças aten didas pela pré-escola (30%) morava no s con-
junto s habitacion ais C ing apu ra Jaçanã e Mutirão . D ad o s coler ad os, em me ad o s dos
an o s no venta, por uma pesq uisa que examino u as co nd içõe s de m o radia da s crianças
da EMEl , revelaram que: (1) 86% das crianças viviam em habitaçõe s fe ita s de alve-
nari a; (2) 59(1'0 delas divid iam o lar co m mai s de cinc o pessoas; e (3) em 59°t ) de suas
fam ílias apenas uma pesso a tinha alguma oc u pação remunerada co m renda men sal
var ian d o entre um e d ois salários mínim os.
A Eme i Pro f' J o nise Max im o da Fo nseca fo i aberta ao pú bli co em ma rço de
198 8. Em 1998 (ano em que se de senvo lveu a pesquisa de que trata este artigo ),
exist ia um total de 407 criancas matri culadas, di stribuídas nos trê s t u rnos diários
de se u fu nc io name nto: tr ês clas ses no primeiro pe ríodo (7h- l 1h ) ; o utra s t rês no
segu nd o período ( 11h- 15h ) e m ais trê s no úl tim o período ( 15h- 18h) . Cada classe
era co nst itu ída por aprox im ada me nte 30 crianças, qu e ficavam so b os cuidados de
u ma úni ca pro fesso ra. As crian ças eram separadas e m grupos por idade: qu atro anos
( 1° estágio ) ; cinco anos (2° es tágio) e seis anos (30 estágio).
A E me i possu ía então 14 professoras. Todas haviam ingressado na pré-esco la
at ravés d e co ncurso p úbli co e recebi am ent re doi s a qu atro salários m ínim o s, de
aco rdo co m seu nível de qua lificação pr o fissional e jornada d e t rabalh o . Apenas
du as p ro fesso ras eram grad ua das em curs o su pe rio r d e Peda go gia. As demais pos-
suíam habilitação para o magist éri o de níve l méd io .
A lém das pro fesso ras, t raba lhava m na Emei seis aux iliare s de se rviç o geral,
t rês vig ias c qu atro pesso as na eq uipe ad min ist ra tiva (d ireto ra, asses so ra d a di re to ra,
coordena d o r pedagó gico e sec retário) . Tod as as crian ças da tu rma mulriss eri ada ex-
perim en tal const it uída par a a pesquisa era m filhas de (1) trabalh ad o res au tô no mos,
(2) trabalha dore s assa lar iados o u (3) pequen os co me rcia ntes do Jardim C abu çu .
A atividade teatral da criança na pré-escola

A p ropo sta metodol ó gica de Viola Spol in II para a atividade teatral 1ucl "l' ;·,h ·
gógica tem sido exausti vam ente es tu dada por p esquisadores da dimen são '.·(!::c.· .· , :
do Teatro no Brasil desd e final dos anos set enta! ', O sistema de jo go s tea tl".' ;, de
Spo lin, do mod o com o ve m se ndo apli cad o na escol ari zação brasilei ra, 1H' ;. . . \ '1
d e ponto de apoi o para a intervenç ão pedagó gica co m a lin gu agem tea tral des en-
vo lvida na Emei". Isso eq u ivale diz er qu e ao lad o dos qu atro pr ocedim ent os ope-
racion ais qu e estruturam a ludopedagogia cênica d e Spolin (foco, instrução, platéia
e ava liação), utili zou-se o u tros três no vos procedi m entos: (1) o círculo de d isc u:-. -
sã o - im po rta do da pedago gia do oprimido d e Paulo Freire; (2) a no ção d·. Hca d .
jo go - construída so bre as idéi as do teatro invi sível de Baal ; e (3) os protocolos de
sessão - com base na teoria da peça didática de Br echt e na prática t erapêutica psi-
co d ra m áti ca de Moren o.
A pr op osta metod ol ó gica para a atividade teatral na escolari zaç ão da qual se
fala aqu i cos tu ma se r em oldurada pela seguinte " ro t ina" o u ritu al: (1) círcul o ini cial
de di scussão - quando o protocolo da sessão ant erio r é apresentado à turma e elei to
o jo gador qu e se res po n sab ilizará pela red açã o do protocol o daqu ela sessão ; (2)
propo sição e delimitação da ár ea de jogo; (3) d ivisão d o gr upo em equipes; (4) apre -
sent ação de propost as para a ati vidad e teatral : (5) avalia ção lo go ap ós a apresentação
de um a equipe na área d e jogo; (6) novo círculo de discu ssão para o encerramen to
dos trabalh os do dia.
Al gun s ajust es na " ro tina" de scrita acim a foram necessári os para qu e cst a pr o-
po sta metodológi ca pudesse ser im plem entad a na pr é-e scola: (1) ao término de UI11 J
sessão as crianças sem pre faziam desenhos da sua ati vidade teatral naqu ele dia e (2) os
pro tocol os de sessão eram invar iavelm ente o rais e apoiado s no vídeo -reg istr. i . f· <I , lS c
d esenh o s da sessão ant erio r (reco rdação estim u lada) . Ou tra co isa que precisa se r di ta
aq ui é q ue a maioria da s proposta s par a ati vidad e teatral apresentada ao s pré- escolares
baseava-se em jogos tradi cionais infanti s brasileiro s adaptados ao sist ema de jog0S
teat rais!'.

II SP OLIN, Viola. j ogos t ea t rais: o fichári o de Viola Spol in . São Paulo: Perspe cti va, 2001; SP O-
LIN, Viola . O jogo teatral 110 [iuro do di retor. Sáo Paul o : Per sp ectiva, 1999; SP O LI N, Vio la.
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DELA , In grid D . Texto c jogo. São Paulo: Perspecti va: Fap csp , 1996. \3 0 p.; KOUD EI A, Ingrid
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São Paulo: Persp ectiva: Edu sp , 1991 ; PUPO , Mar ia Lu cia de S. B. Palaura s em jogo : te xto s lite-
rár ios e t eatro- ed ucação . 1997. 230 p. Tese (Livre D oc ência ] - Esco la de Cornu ni cacà« c Art es,
U niversidade de São Paulo, São Paulo, 199 7; VA Z, Beat riz A. C . Teat ro ali l'I.'tTeaçâo ? \ 9 84 . D is-
sertação (Mest rad o em A rt es) - Escola de Com u nica ção e A rt es, Uni versid ade d e São Paulo , São
Paulo, 198-1; C O ELH O , An a F lo ra F. de C. Lntroduç.io d o tex to literário ou dra m ático n o jogo com
crianç as. 1989. D issertação (M estrado em Art es) - Esco la de C omunicação e A rt es, Un iversidade
de São Paul o, São Paulo, 193 9; C H AGAS , A mara. A brincadeira prometida ... o jogo teatral e os
fo lglledos. 1992. D issert ação (M est rado em Artes) - Esco la de Com unicação e A rtes, Univer,id,\(J, ·
de São Paul o, São Paulo, 1992; J API ASSU , Ricardo. En sin o d o teatro nas séries iniciais dd edm<'\ iio
básica : a form ação de co nce itos so ciais no jogo teat ral. 1999. D issertação (Mes t rad o em Art c';) ..
Esco la de C omunicação e A rt es, Universidad e de São Paulo, São Paulo, 1999.
U J AP IASS U , Ricardo. Metodologia do ensino de teat ro, C am pinas, SP: Pap irus, 200 1b. 224 P:

" Vár ios jo gos tr adicionais in fant is br asileiros adapta do s ao sistema formu lad o po r Spu li fl po-
dem ser en contrad os em j api assu (200 1b) .

G , m&R.I /( !>: .1FJI1f)W [ l L HR.11 . .\ 1 N IL · [ .\U ) Ll 253


A seguir, descrevo com o as crianças do projeto interagiram ao longo da imple- ':j
menta çâo do jogo den ominado Gato&Rato s, respectivamente durante a 1a C 4a sess õr -,
de trabalho do / com o grupo. A descri ção é útil para que se possa entender m elh or a
proposta ludopedagógica para a atividade teatral na pré-escol a que se apresenta aqui:

Claudia pedepara que as crianças retirem ossapatos e as meias e os coloquem em


um determinado canto da sala próximo à porta de entrada. Risos. Algumas interações
verbais entre os pré-escolares. As crianças vão se sentindo, literalmente, mais à v on-
tade. Claudia solicita então que f ormem um círculo em torno a um tapete retangular
posicionado no centro do ambiente. Em oldurando o tapete, encontram-se colchonetes
empilhados um sobre o outro, dois a dois. As crianças sentam -se sobre eles.
Claudia - Bom ... O jogo que nós vamosfazer primeiro chama-se Gato&Ratos.
Rapbael (4 anos / r estágio) - Quem vai ser o Gato?
Gutierre (4 anos / r estágio) - Eu sou o Gato!
Jéssica (6 anos / ] 0 estágio) - E eu sou o Rato!
Claudia - \tamos saber prim eiro quais são as regras destejogo?
Alguns - Vamos...
Claudia - Então nós vamos escolher uma criança, que é o Gato. E as outras, serão os
Ratos... Aí, o Gato, ele'vai pegar uma criança. Quando ele pegar nessa criança (segura no
braço de Guti eITe que está a seu lado) ela {a criança} vai ficar parada. Tá bom?
Todos - Tá!
Claudia - O Gato pega o Rato, ai, o Rato[ica parado. Os outros Ratos poderão tocá-lo
e aí ele volta a brincar. Tá?
Todos - Tá.
Claudia pede para as crianças posicionarem os colchonetes nos quais estão senta-
das em apenas um lado da sala. Após a (re) signirz'caçdo (co ilaboratioa do espaço f ísico
da saia de aula, a projessora uolta a se dirigir aos pré-esco lares .
Claudia - Pronto?
Alguns - Pronto!
Claudia - Então, quem quer ser o Gato?
Todos - (Co m o braço elevado e dedo indicador em riste, saltitantes) Eu! Eu!
Claudia - Então, vamos escolher. : Como que nós vam os escolher?
Cam ila (5 anos / ]0 estágio) - (Ref erindo-sea uma parlenda de escolha muito conhe-
cida das crianças da Emei) Minha m de!
Claudia - Então, levanta a mão quem quiser ser o Gato. Vamos lá!
Claudia "ca nta" a parlenda" e Gilvan ( 5 anos / ]O estágio) é escolhido para ser o Gato.
Nã o há divisão do grupo em equipes ou explicitação da área de jogo nem tampouco
indicação da área de obseruaç âo (platéia).
Claudia - Então, ele (toca em Gilvan ) é o... ?
Todos - Gato!
Claudia - E 'vocês são os... ?
Uns - (Ao mesmo tempo em que outros) Rato!
Outros - Ratos!
O jogo tradicional infantil Gato&Ratos tem início.

I ; O texto da parlenda é o seguinte: Minha mãe man dou eu escolh er este daqui, mas como eu sou
teim oso(a) eu escolho este daqui!
Aqu i será feita uma interrupção no relato da 1a sessão de jogos com o s pré-
escolares para se expo r a de scrição deste jogo - adaptado por mim ao sistema de jo -
gos teatrais de Spolin - conforme foi apresentado à professora Claudia no en contro
de planej amento daquela 1a sessão de trabalho:

Gato&Ratos

Pr é-condição:
Platéia de jogadores.
Foc o:
Tentar agir como "gato" e "ratos" mantendo as l-egras que enquadram o descu-
volvimento da atividade.
Descrição:
Div ide-se o grupo em equipes. Define-se a equipe que iniciará a ativ idade nu
área de jogo. Um dos sujeitos da prim eira equipe toma o papel de "gato". Todos
os demais da mesma equipe são os "ratos". O "gato" precisa pegar todos os "ra-
tos". Os "ratos" precisam escapar do "gato". A um sinal determinado pelo(a)
professor(a) tem início o jogo. Os "ratos " alcançados pelo "gato"fica m un oucis,
como se estivessem congelados, na posição em que [oram tocados pelo "gato ".
In struções do (a) professor (a) durante a atividade da equipe na área de jogo:
Como um gato se move? Como um gato fala? Como se movem os ratos? Como
falam os ratos? Procurem deixar a gente uer como um rato se moue! Tentem dei-
xar a gente v er como um gato fala! Procure ficar na posição em que você estiver
quando for tocado pelo "gato".' Tentem se manter nos limites da área de jogo!
N ota:
Deixar a atiuidade prosseguir até que todos os jogadores da prim eira equipe, se
possioel, tenham sido "gato". Solicitar o revezamento das equipes na área de jogo
(a primeira equipe assiste agora à segunda equipe jogm) . Fa zer avaliação coletiva
e auto-avaliação logo após a apresentação de uma equipe na área dejogo. Só após
todas as equipes terem desenv olvido a atividade deve ser introduzida nova regra.
A nova regra a ser acrescentada pode ser a de que os "ratos" paralisados poderão
ganhar movim ento e se libertarem da "paralisia", desde que outros companheiros
"ratos" os toquem, libertando-os do "congela mento". Propor novamente o jogo in-
~ corporando nova regra.

~,
Observar:
,
As crianças conseguem cumprir todas as regras do jogo? Conseguem permanecer
I "congeladas" após terem sido tocadas pelo "gato"? Elas interagem verbalm ente
durante a atividade? O que dizem? Elas agem como "gato" e "ratos"? Falam
como "gato" e "ratos"? Lemb ram-se de "salvar" os companheiros imobilizados
pelo "toque" do "gato"? Conseguem se manter nos limites da área de jogo?
Avalia ção col eti va e auto-a valiação:
Conduzir a avaliação logo apósa apresentação de uma equipe na área dejogo. For-
mular perguntas, inicialmente, às crianças que se encontram na área de observação
ou platéia, em seguida, aosjogadores da equipe que se apresentou na área de jogo:
1) Os jogadores desta equipe cumpriram as regras do jogo ?
'.I 2) Quais são as regras deste jogo?

-:
G.HO& f\.H O I: «nvtnsot: } U n<AL .\'.4 PRÉ-ESCO L! 255
3) Os jogadores se mantiveram na área de jogo?
4) Onde começa e onde termin a a área de jogo?
5) O que cada um descobriu jogando este jogo?
6) Como v ocê se sentiu quando era "gato"?
7) Como você se sentiu quando era "rato"?
8) O que é melhor: ser "gato" ou "rato "? Por quê?
9) Os que eram "gato" se moviam como um gato? Falavam como um gato?
10) Os jogadores que eram "ratos" se moviam como )'atos?
lI) O que acontece quando o "gato" toca em alguém que é "rato"?
12) Como um "rato" que ficou "congelado" pod e v oltar a se mover?
13) É difícil a gente ficar parado como uma estátua? Por quê?

De volta ao relato da 1J sessão de trabalho:

As crianças se divertem com Giluan rto pape! de Cato tentando alcançá-las : cor-
reria, gritaria , risos. \Vel!ington (6 anos / 3° estágio) é "tocado" por Gilvan, mas não
consegue permanecer im óvel. Claudia intervém v erbalmente.
Claudia - (P âra W/el!ington) Fica duro!
W/ellington a obedece. Gilvan pâra de correr atrás das outras crianças, põe o
dedo polegar na boca e v olta-se para a professo1"t7. Alguns permanecem muito excitados
ainda, movendo-se por todo o espaço da sala, Outros interagem verbalmen te. Todos,
porém, invariav elm ente, permanecem a alguma distância de Gilvan.
Claudia - (Para Gilvan ) A gora vai atrá s de outra criança.'
Gilvan sai em di sparada. Logo alcan ça j éssica. Jé ssica (6 anos / 3° est igio),
como Wellington, também não consegue ficar im óvel . As outras crianças par ecem
não se lembrarem da regra que possibilita a um Rato ser "salvo" por outro e esque-
cem de tocar em Wellill gton para "libert á-l o". No va int er venção verbal de Claudia.
Nova interrupção da ação na área de jogo.
C lau dia - (Para ] éssica) Ele [Giluan] pegou, tem que [icar. .. (Sim ula estar "conge-
lada ") na hora! (A s crianças, ofegantes, con versam animadamente) Gente, tem uma
reg)'a que v ocês tão esquecendo: v ocês podem tocar nele (ref erindo-se a Wel!ington ) pra
ele v oltar a se mexa
O jogo prossegue. Novas interuençôes de Claudia e novas interrupções da atividade.
A s crianças saltitam de contentamento durante o desenvolvimento do jogo. As ações não se
limitam ao tapete (que deuena ter sido explicitado como área de jogo pela professora) .
Observa-se no decorrer da atividade que algumas crianças-Ratos já conseguem
fi car imóveis - não exatamente na posição em qu e se encontravam na hora da "pegada "
da criança -Gato. Também, pode-se constatar o fat o de crianças-Ratos serem "liberta-
das" da "paralisação" a que estavam condenadas p or outros j ogadores-Ratos.

o relato deste fragment o da primeira sessão revela alguns problemas ocorrí-


dos durante a condução do jogo Gato&Ratos. Abordá-los aqui é importante para
o esclarecimento de certos procedimentos necessários ao funcionamento adequado
desta proposta para a atividade teatral, conforme a dinâmica do sistema de Spolin.
Claudia, por exemplo, esquece - em razão daquele nervosismo típico da "pri-
meira vez" - de explicitar a área de jogo (no cas o, o tapete). Embora a professora
d ê in ício à (re)co n figuração do espaço físico a partir do moment o' em que pede às
crianças para ajuntarem os colchonetes numa da s laterais do ambi ente, con stara- se
que ela "salta" as instruçõe s que delimitari am, com rigor e clareza, o local desrin.ulo
a ser área de jo go e, co nseqüentement e, tamb ém o esp aço reservado à ár ea de 0 1)-

servação.
A ansi ed ad e típi ca d e um a "es t ré ia" não lhe permite d ivid ir o gru po em equi -
pes para o ne cessário revezamento das crianças na área de jogo. E mais, as regra s
(1) d e agir cenicamente como gato e ratos e (2) de os jo gadores se manterem no s
limites físicos da área de jo go foram, ambas, totalm ente ignoradas pela profess ora.
Al ém di sso, Claudia introdu z - já de iníci o - a regra de o s jo gadore s-Ratos poderem
libertar seus companheiros alcançados pelo pegador-Gat o .
Eu poderia tê-Ia "corrigido", mas considerei inoportuna qualquer intervenção
de minha parte naquele momento que me parecia ser "difícil" para ela. Afinal , ('),,
seu "d ébut " na co nd ução do trabalho co m jo go s teatrai s na Emei. Jul guei qu e urna
manifestação de minh a parte, no sentido de retifi car sua atuação , a deixaria ainda
mais nervo sa. Preferi ag uardar o enco nt ro de avaliação-planejamento para p od er-
mos ent ão anali sar, com calma - e algum distanciamento crít ico - o vídeo-regi stro
da se ssão: "Claudia - E u tava tensa e acabei me esquecendo".
A par dos problem as identificados acima é preciso reconhecer algun s pontos
muito positivos da atuação de C laudia. Refiro-me particularm ent e à sua habilidade em
problematizar a escolha da criança que seria o "prime iro" Gato: "Como que nós vamos
esco lhe r?".
Ora, ela poderia ter determinado arbitrariamente qu em seria primeiramente ()
Gato, o u ter definido qu al o procedimento para a esco lha da crianç a que tom aria es ll'
pap el no jo go. No entanto, obse rva-se qu e C laud ia prefere co locar na s mãos do grupo
d e pré-escolares est a "dec isão ". A so lução en contrada pelas crianças é o uso de um .i C C)-
nhec ida parlenda de escolha sugerida por C am ila: "Minha mãe!" A suges tão de Cam ila
é aceita pela pr ofessora, que dem ocratiza assim a "eleição " - aleató ria - de qu em seria,
inici alm ente, o Ga to .
O ut ro pon to po sitivo da atuação de Claudia, no m eu ente nd imento, são as
suas interven ções d eliberadas durant e o d esen volvimen to da atividade, bu scando
levar as crianças a cumprirem as regra s do jo go : "G ente, tem um a regra qu e vocês
tão esquecendo: você s podem tocar nel e (referindo-se a \X1ellington) pra ele voltar
a se m exer. " .
É bem verdade qu e a introdução desta regra, compl icad ora d o comportame n-
to da crianç a, deveria ape nas t er sido apresentada após os pré- escolare s t er em se
exe rc itado em permanecerem im ó veis ao "t o q ue" do jo gad or-Gato. Mas a id éia d e
o co ordenador dos trab alhos int ervir, deliberadamente, fornecendo instru ções ao s
jogadores - qu e os ajud em a (re) ativarem a aten ção no foc o e nas re gras da ati vidade
propo sta foi , em part e, ap ro priada por C laud ia.
Um olh ar aten to à perf ormance das crianças de qua tr o a seis anos durante suas
ações na área de jo go , ao lon go do de sen vol vimento desta pr oposta de atividade , revela,
com nitidez, a dificuldade que elas experim entam ao terem que permanecer imóveis ao
serem "tocadas" pelo jo gador-Gato. Perc ebe-se qu e o controle voluntário sobre xeux
movimentos, que é so licita do pela regra, exige grande esforço físico - e mental - por
parte dos pré-escolares.

G.,m &R.' FOI: .U Il 1 IJA/) [ rLM R.H '\ ' f'Rt.- [ SUJ Ll 257
1I
:~

Permanecer im óvel lo go após o "toque" do pegador-Gato requ er o "d escola- J


ment o " do pensam ento da criança das açõe s físicas ao seu redor, isto é, so licita que
haj a uma "separação" do pensamento do suj eito em relação ao seu campo pc rcep i ].
vo co ncre to. "Fugir" do jo gad or-Gato, neste jo go , constitui o objet ivo dornin.inn -
do s jo gadores-Ratos . A esse "fugir" acabam sendo subordinadas todas as ações físi-
cas da cri ança durante o desenvolvimento da ati vidade lúdic a.
O co ntágio emo cio nal dos gritos e movimentos dos companheiros em fu ga
"des esperada" do jogador-Gato é de tal ma gnitude, que se torna muito árd ua, so-
bretudo para crianças de quatro a seis anos, a tarefa de "suspender" os movimentos
pe ssoais ao "to que" do pegador.
Permanecer parado, ne ste jogo é uma ação auto-regulada e não dependente dll
cam po perceptivo concreto do suj eito. Ficar sem se m exer ao mesmo tempo em qu e
se percebe outros companheiros em movimento ao redor não é tarefa fácil. Trat a-se
de uma "convenção" que exige uma ação vo luntária, ou seja, uma "regra" que implic..
sub jug ar o impulso de "mover-se" , gerado, no caso, pelo contágio cinético-afetivo
da s açõe s do s outros companheiros que se enco ntram em "fuga" do peg ador-Gato.
É preciso, no en tan to , que o leitor tenha conhecim ento de que o jo go
Gato&Ratos foi retomado outras veze s ao lon go do processo de trabalho co m
o s pré-e scolares. A ret omada de um m esm o jogo é fundam ental para o aperfe i-
çoa m en t o das ações na área de jogo por part e d os jogadores. E , em se tratand o
de crian ça s de quatro a seis anos, a rep eti çã o de proposta s para ati vidad e lúdi ca
com a lin guagem teatral torn a-s e extremam ent e n ecessária para uma po ss e ge-
nuína da s regras do jog o e real compreensão do fo co da atividade cênica sug eri -
da ao jo gad ore s.
Durante os en contros de avaliação-planejamento, diante da const ata ção das
dificuldades exper im entadas pelas crianças em ( I) permanecerem imóveis ao to -
que d o pegador-Gato c (2) de se recordarem de "l ibertar" os companheiro s-R atos
im obilizados, Claudia e eu decidimos (re)apresent ar esse jogo ao grupo enfatizan-
do, desta vez, apena s a re gra de os su jeito s perman ecerem "parados" ao toque do
pe gador-Gato.
Só após fosse observado por nós um desempenho satisfató rio dos pré-escolares -
no sentido de controlarem voluntariamente suas ações - introduziríamos a regra de os
jogadore s-R atos poderem "salvar" os outros companheiros imobilizados pelo toque do
pegador-Gato.
Veja-s e abaixo o qu e con versam os, Claudia e eu, lo go apó s termos assistido ao
vídeo-registro de sua atuação na condução das propo stas para atividade lúd ica co m
a lingua gem teatral durante a primeira sess ão :

C lau dia - Eles não tinham assim ilado a regra de tocar para v oltar a ser Rato [para v oltar
a se m ou erem no papel de Ratos] . . . Eu tive que fa zer uma interoenção . . . Tanto que eu
Jalo: - Vocês estão esquecendo de uma regra que é tocar no am igo para ele v oltar a brin
cal'. . . Algumas crian ças queriam ser o Gato. Foram todas, né ? Quando começaram a
jogar não bou ue discriminação quan to à idade: todos brin caram juntos sem se ater a pegar
apenas os qu e eles já conh eciam .. . O jogo Joi assimilado [pelas crianças] no dec orrer da
brincadeira e o que pm 'ece é que, no in ício, as ações são individuais e só dep ois há um a
interação entre elespara que o jogo seja possível de ser realizado.
·1,·.·.
~

'1 Eu - Você observa queagentegeralmenteinicia o trabalho com um jogo tradicional infantil


~ teatralizado... Nojogo Gato&Ratos, por exemplo, sobreas regms que emolduram essa ati -
r1
'~ v idade lúdica sãopropostas nouas regms, novos desafios: agir como gato, agir como rato .
:5
:~ Quer dizer: além das regras que tradicionalmente instalam essejogo há um compltcador .
.~

há a superposiçdo de novasregras.. . essas novas regrasvão ativar o foco da criança, dojoga-


d01; na atividade cênica que lhe é proposta: mOVC1"-se e atuar comogato e ratos... Então, h,í
a introdução desse dado novo... Com isso, a gente está acentuando, ressaltando, grIfando
aspectos de teatralidade presentes - de maneira latente - nesses jogos... E o que ocorre com
isso? A criança começa a trabalhar intuitivamente a noção de papel, de personagem, do
que seia a interpretaç ão de um papel, do que é a construção de uma personagem, projeção
vocal, dicção, entonação, expressão corporal, jeito de se mover etc. E de uma maneira ab-
solutamente lúdica, sem estar ensaiando, sem qlte sefale em Teatro, sem qlte a gente esteja
prescrevendo como a criança deve se movimentar, falar, agir.
a enunciado da professora Claudia de que "no início, as açõ es são individuai ,
e só depois há uma interação entre eles para qu e o jogo seja po ssível d e ser realiza-
d o" tradu z a grande dificuldade experimentada pelas crianças em coordenarem as
ações de (1) se coloca re m em fu ga do pegad or-Gato e, ao mesmo tempo, (2) busca-
rem "salvar " os jogado res-Ratos imobilizad os pel o toque do pegador. Ma s Claudia
levanta a po ssibilidade de existir urna out ra interpretação dest e desempenho "errá-
tico " da crian ça ao levar em consideração a su b jetividad e de cada um a delas:

Cl âudia - O que eu fiquei pensando Algumas questões que esse jogo nos coloca em
relação ti individualidade de cada um No começo, ele quer ser o Gato... Então é
uma coisa indiuidual. Depois é que ele percebe que ele pode tá jogando com os outros...
Então eu, Rato, também sou ativo como o Gato... Talvez seja por isso que eles não
tocavam uns nos outros a princípio... Será qlte não é por isso?

No m eu ente ndim en to, o "esqu ecim ento" dos companh eir o s-Ratos imo-
bilizado s o co rre em função da sobreposição de regras. Essa sob repos ição solicita
um comportam ento mais complexo por parte da criança: recordar- se de "salvar"
o s companheiros-Ratos imobilizados é um co m plicado r do desempenho da criança
ne ste jo go por exigir a coordenação das ações d e (1) colocar- se em fu ga do pegador-
G ato e, par alelamente, (2) bu scar libertar os co mpan heiro s-Ra to s d e se u event ual
"imobilismo". Além disso , (3) o jogador pre ci sa mostrar agir co rno gato ou rato;
(4) necessita mant er-se nos limites da área de jo go e, finalm ente, (5) de ve permane-
cer, se m se m exer, na posição em qu e foi alcan çad o pelo pegador-Gato.
Vejamos a seguir como se deu a retomad a d esta proposta de ativida de durante
o qua rto enco nt ro do gru po .

G .4To&RYHH: A.T1rm.HJl ":L 4Tl\.1L .\' .-1 I'Rt - nCO L -t 259


1
,

Figura 1. Vídeo-registro do jogo Gato&Ratos : recordação estimulada

Inicialm ente, o v ídeo-registro do jogo Gato&Ratos, realizado duran te a p rimei-


ra sess.io, f oi exibido para as crianças durante o círculo de discu ssão (círculo da m em o-
ria}, Obs erv ou- se que os pré-escolares dem onstraram acompanhar as imagens na TV
com grande interesse.
Há um m om ent o em que Claudia , no uideo, pergunta: - Quem quer ser o Gat o?
E Raphael (4 anos / r estágio) , que assiste à T\( levanta o braço em resposta á p ergun-
ta [ei:a pela professora no uideo. Mas, logo em seguida, ele abaixa o braço. A s demais
crianças permanecem sentadas muito atentas á exib ição da gr.roaçâo. Ap ós assistirem
ao uidco-registr o , a professora solicita a retomada do círculo de discussão e [ormula
algumas questões ao grupo.
Claudia - Quem já 'u h! um gato?
A s crianças fa lam todas ao mesm o tempo , e com entusiasm o, de suas experiências
com gatos.
Claudia - C om o que é um gato?
Jéssica (6 anos /] 0 estágio) - Ele é loiro , tem orelha, tem boca, tem nariz , tem tudo!
Claudia - O s gatos fa lam?
Quase tod os - Não!
Luis Ramon (6 anos / ] 0 estágio) - Falam : (Conten do o riso) f alam m iau...
Algumas crianças p rontam ente começam a m im:
Jéssica (6 anos / ] 0 estágio) - Os gatosfalam . Só que elesmiam quando estão C011'1 f om e...
Claudia - El es miam quando estão com f om e?
Gutierre (4 anos / l a estágio) - Eles m iam p orque... Eles miam p orque eles ndo acham
a comida deles...
Claudia sorri.
Claudia - Os gatos têm casa?
Alguns - Não!
Outros - Têm!

260 R ,UR DO o n u" , V Ai J.-\ I'I."S~l'


1
I
j
As crianças discutem animadamente seus pontos de vista a respeito do local de
moradia dos gatos.
Claudia - Qu em tem gato em CaSt1 ?
Alguns - (Leuantando o braço com o dedo indicador em riste) Eu!...
Claudia - (Para G utierre] Você tem gato? Como que é seu gato?
Gutierre (4 anos / 1" estágio) - O nome dele é Cinza, mas ele m orreu.
Claudia - Ah, você tinha...
Gutierre (4 anos / }O estágio) - É: a f uli que matou ele...
Claudia - Ah, é?
Gutierre (4 anos / 1" estágio) - Ela pulou... ele pulou... embaixo dele, a[uli.
Luis Ramon (6 anos / ] 0 estágio) - Que bicho é essa []uli]... que bicho é esse!
Guti erre (4 anos / 1" estágio) - Não é bicho, é cachorro. Daí, é...
Claudia - É um cachorro? Não é um gato?!
Gutierre (4 anos / 1" estágio) - É um cachorro que matou ele... Daí, a Ferna nd.i... ,
internou ele.. . .
Claudia - O gatinho ou o cachorro?
Gutierre (4 anos / 1" estágio) - O gatinho. O cachorro tamb ém tá internado...
Claudia - Ah! O cachorro que chama f uli...
As criançasfalam com entusiasmo dos seus animais de estimação (ga tos, cachor-
ros, periquitos, passarinhos e hamsters).
Raphael (4 anos / r estágio) - (Para Claudia) Deixa eufalar! Não quer deixar eu j:zl.n<'
Claudia - Agora é a vez da Bruna. Você tev e sua vez de falai: Agora, éa 'vez da Bruna,
não é?
Raphael (4 (mos / 1" estágio) - Mas é que eu tenho outra coisa (para dizer}...
Claudia - (Para Raphael) Então, deixa a Bruna [alar . Depois é você. Tá bom assim?
Cutie rre (4 anos / 1"estágio) - (Para Claudia] Não! Depois da Bruna é ele! (: lJiIiI:; 'i
para Luis Ramon] Depois dele, sou cu.
Claudia - (Para todos) Então, deixa a Bruna falar agora, tá bom ?
Bruna (5 anos / 2° estágio) - Afeu gato é laranja e o nome dele é Tim.
Claudia - O que que os g(1tos gostam de comer?
f éssica (6 anos / ]0 estágio) - Ração.'
Claudia - Ração. O que mais?
Luis Ramon (6 anos / ]0 estágio) - Rato!
Claudia - Rato. O que mais os gatos gostmn de comer?
Gutierre (4 anos / 1" estágio) - É: cachorro!
f éssica (6 anos / ]0 estágio) - Lixo!
Raphael (4 anos / 1" estágio) - Barata!
Edvana (5 anos / 2° estágio) - Mosquito!
Claudia - De que jeito os gatos andam?
As crianças rapidamente respondem: - Assim! E sepõem a engatinhar pelo espaço.
Claudia - Quem já viu um rato?
Todos - Eu!
As crianças contam, todas ao m esmo tempo, suas experiências com ratos.
Claudia - Perai! Vamos falar para que todo mundo escute: todo mundo scnt.t na roda
e cada um fala de uma vez...

G1TO &R.4IU.' : .1111'!/).; f) [ 1I.4I R 1/. X.I I'R( · /. I< O i 1 26 1


,
.)
Após esse "aq ue cim ent o" verbal e cognitivo, o jogo Gato&Ratos é retomado
1
.;

com apenas a regra de o jogador permanecer imóvel após o toque do pegador-'(;;llo .


A área de jogo é explicitada e, também , a área de observação. Claudia en ia tiza a n r--
cessidade de as crianças m ostrarem co m o gatos e ratos se movem e falam duram c o
desenvolvimento da atividade. O grupo é dividido em duas equipes: uma equipe d('
m eninas e outra de m enin os, espontan eam ente formada s pelas crianças.
A primeira equipe a se apresentar é comp osta por Edvana (5 anos / 2° C S 1~ ­
gio) , Bruna (5 an os / 2° estágio), Marcela (4 anos / 1° estági o ), J éssica (6 an os / 3"
es tá gio), Camila (5 an o s / 3° estági o) e Bianca (6 anos / 2" estágio ).
Camila é escolhida para ser, primeiramente, o Gato. As crianças não se mantêm
na área de jogo, apesar de reiteradas instruções da professora lembrando-as para pcn n.r -
necerem dentro dela. Em alguns momento s, na fuga do pegador-Gato, as menina s inva-
dem a área de observação (platéia). As qu e são tocadas pelo jogador-Gato, no entant o,
co nseguem permanecerem "paradas". Todas se revezam no papel de Gato. Algum as, J 11'
papel de pegador-Gato, mostram agir como gato. Outras, no papel de jogadores-Ratos,
mo stram agir como ratos.
A segunda eq u ipe a se apresentar na ár ea de jogo é compo sta por Lui s Ramon
(6 an os / 30 est ágio )', Raphael (4 anos / 1() estágio) e Gutierre (4 anos / 10 está-
gio) . O desempenho da equipe do s meninos é bem melh or. El es demonstram mai or
apropriação das regras do jogo e do foco da atividade cênica proposta: (a) todos se
mant êm na área de jogo ; (b ) todos cons egu em permanecer paralisad os ap ós o ro q 1Il'
d o pegador-Gato e (c) tod os mostram agir como gato e ratos.

Figura 2. Equipe na área de jogo

Rapbael (4 an os/ F estdgio] no papel de pegador- Gato, alcança Gutierre (4


anosl l " estágio) . Luis Ram on (6 an os/3 ° estágio) encontra-se imobilizado, de p é. \lê ··
se a platéia de observa do res intragrupo.

Note-se, na foto, a postura de Lui s Ram on e Gutierre, ambo s no papel de ratos.


Eles movem- se sob re dois pés, porém mostram possuírem garras na s mão s. J á Ra-
phael, no papel de gato, inicia a perseguição engatinhando e "miando", mas só 10m a a
postura bípede quand o est á muito próxim o d e alcançar algum par ceiro de jogo.
A retomada do jogo Gato&Ratos, no quarto encontro, deu-se a partir da c xi-
bi ção do vídeo-registro desta proposta para atividade teatral ocorrida na prim cir a
sess ão . A discussão que se seguiu J recordação estimulada deste jogo - das a(:ô cs
de senvolvidas pela criança no jogo - ofereceu a real pos sibilidade d e que as regLls l'
o foco da atividade pudes sem ser mais bem entendidos pelos pré-escolares.
O s comentários e observações feito s pelas crianças sobre o vídeo-registro do
jogo Gato&Ratos, ocorrido na primeira ses são, foram inicialmente so licitados atra-
vé s de perguntas semelhantes às que se encontram relacionadas no item "avali;ll) o
coletiva" e "auto-avaliação" da descrição d esta proposta de atividade apresent ada
anteriormente.
A s interações verbais que foram transcritas aqui oco rrem logo apó s o s co-
mentários do s pré-escolares sobre o víd eo-registro do jogo que lhe s fo i exibido.
Elas se dão a partir do momento em que Claudia pede às crianças para qu e falem d'e'
s uas experiências pes soais com gatos e ratos.
Esse procedimento revelou-s e eficaz no sentido de auxiliar os pré-esc olares a
agirem efetivamente com o gato e ratos durante o jogo. Paralelamente, a sup ress ão
da re gra que po ssibilitava "libertar" os companheiros-Ratos da imobilidade contri-
buiu para o desempenho sat isfató rio das crianças nesta atividad e.
É imp ortante destacar o papel decisiv o qu e possui o revez am ento das equipes
na área de jogo para mai or apropriação, por parte das crianças, do foco e regra s da
at ividad e propo sta. Al ém do reve zam en to do grupo no s papéis de observadore s ('
jog'ldores, a avaliação col etiva e auto- avaliação, qu e se dá lo go após a apres enta çào
d e uma equipe na área de jo go, sinaliza clara mente os caminhos a serem percorri-
d o s pelo s sujei to s rumo ao desenvolvimento de de sempenho ad equado às regra s do
jogo e à manutenção do foc o da ati vidade cênica pr op osta . Não foi por acaso que os
in te grantes da segun da equipe demonstraram atuar de maneira correta na per specti-
va dó cum prime nto da s regras do jo go e de atenção ao foco da atividade pr o p( , S! .1.
A condução da quarta sessão por Claudia foi plenamente satisfatória do meu
ponto de vista. E a cada novo encontro com o grupo de crianças sua atuação co mo
coo rde nado ra de jogos se aprimorava mai s e mais. A transcrição da s interações ver -
ba is revela ainda sua habilidade na animaçã o d e uma roda de conversas com prc -
esco lares. Note-se também as interven çõ es da professora no sentido de asse gurar o
direito democrático da palavra no círculo de discussão: "Deixa a Bruna falar. Depois
é você. T á bom assim?" e "Pera í! Vamos falar para que tod o mundo escute: todo
mund o senta na roda e cada um fala de uma ve z ...".
Considero necessário de stacar, uma vez mais, a imp ortância pedagó gica da
retomada de pr opostas para a atividade teatral durant e o de senvolvimento do tra-
balho com a ludopedagogia de Spolin na educação infantil. A repetição do jog o
Gato&Ratos, na quarta sessão, demon stra ex emplarmente a dial ética processo-pro-
duto que caracteriza, em geral, as pr áticas teatrai s de nature za lúdica na esc olari zação ,
o u seja, explicit á o caráter sem pre provi sório dos resultados obt id os junto ao gr u po
de jogadores e sinaliza a permanente (re)o rientação da práxis do coordenado rtu ) d<:
jo gos em funçã o d e uma refle xão pessoal na / sobre sua ação pedagó gica.

Gxro &R·\«) \' ,lI l\ '!1J; f) [ IEM R.H .,\''; fRt -[SCO U 263
Eu - Fundam ental vo cê ter percebido a importân cia da repetição das propostas para
1
I

atividade.. . Q ue elas não se esgotam em uma sessão... Que a sessão não é apenas um
"desfile" de jogos .. . Porque, às v ezes, é difícil para a criança de quatro anos entender
logo as regl'tlS de um jogo... Esse é um processo lento em que, a cada vez que se joga, ()
desempenho da criança se toma sempre melhor.
Claudia - Eu acho que essa revisão que a gente faz depois (nos encontros de ava liação)
é muito impo rtante. Para a gen te estar avaliand o o que está sendo bom, e o que não tá.
Então, esta ava liação, ela nos dá a oportunidade de estar rev endo as propostas, de a'l,.'a-
liar o que é melhor, o que fu nciona mais... As coisas que eles gostam, eles querem repetir
udrias uezes... E é aquela coisa m esmo: cada vez que eles repetem, é alguma coisa que
eles resolvem - e que não se esgota porque nunca é resolvido tudo, né? Acho isso bárba-
ro! Eu acho que esse tempo de 15 dias é um tempo super bom para a gente tá refletindo.
E para as crianças, também . Eu penso que esse tempo é importante porque eles {as
crianças] resolvem as questões postas pelos jogos teatrais em casa, na hora do parque...
Qu er dizer, eles continuam fa zendo osjogos teatrais em outros momentos, né? E a gente
tem esse tempo de 15 diaspara tá avaliando, tá repensando. (. ..j [Sobre o reveza mento
das equipes na área de jogo] Eu acho isso super interessant e, principalmente porque
eles se situam em duas perspectivas: como observadores e como jogadores. Então eles
experimentam 05 dois lados do jogo teatral: a hora de assistir, de observar; a hora de
atuai; de agir, de verificar se as regl'as do jogo estão send o cumpridas pelos colegas - e
de se exercitarem, eles mesmos, n o cumprimento das regras de um jogo. E isso é muito
importante para a criança assimilar mais o f un cionam ento de uma ativi dade. Em uma
sala com um número maior de crianças, issofaz com que todos realmente tenham a pos-
sibilidade de estar atuando em um papel "principal" ou como uma personagem "princi-
pal". Isso é uma coisa mu ito important e: todos podem bri ncar; todos podem ser aquela
personagem . Percebi que é impo rtante ter todos aqueles momentos: de uocê senta r, de
você conversar com eles, de perguntar o quê que eles acharam dos colegas na área de
jogo... Minha postura mudou bastant e: estar observando mais certas coisas neles; deixar
II espontaneidade deles fluil:.. Porque, às vezes, a gente é mu ito... a gente quer dirigir o

tempo todo as ações da criança e essa era uma condu ta que eu tinha mesmo - an tes do
início desse nosso trabalho. Essa postura minha m udou bastante: Bastante!
Eu - Bacan a... Agora, em relação à tomada de dep oimen tos no sentido horário e
anti- horário, no círculo da memó ria, acho que você deixa mu ito solto e aí, o que
que acon tece? Os mais uerbaliza dores dominam absolutam ente o círculo da me-
mória, e há também um certo caos, porque todos querem fa lar ao m esm o tempo,
todos têm mu ito a dizer, qu erem espaço para se comunicar, para se colocar . .. E o
que ocorrei A gente deixa de traba lhar a auto -regulação da criança .. . Essa coisa
dos progressos na auto -regulação... O círculo da memória ajuda muito nisso...
Em alguns momentos v ocê exigiu o cumprime nto das regras {ordem horária ou
anti-horária dos dep oime n tos], v ocê f ez isso, vo cê fa lou : - Rapbael, agora é a vez
de fu lano .. . Você já falou! En tão, a criança va i se tocan do e acaba esperan do a sua
vez de[alar .. . Eu consider o muito imp ortante este hábito de tomar 0 5 dep oi mentos
no sentido ho rário e anti- hor ário, po rque pode ser uma regra do fun cion amento do
sistema de j ogos {do f uncionam ento do círculo de di scussão] ... 15 50 ajuda a criança
a se exercitar na escuta do colega. . .
Claudia - Eu sinto assim: Com eça a Bianca, depois a Jultann e e então a Jéssica. Daí

264 RI C AKJ' O o r n ) N J V.<Z J Ai'I A" l'


a J éssica fa /aJa /aJ a/a O que vem após a [éssica , se é uma crian ça tímida, e/a repete
o que a J éssica falou Então, eu acho que a gen te po der ia também tá faze ndo isso:
Co locan do pra fa lar, de alguma [orma, na roda, primeiro, as crianças que menos se
com un icam e, por últim o, as mais u erbalizadoras...
Eu - Sim ... Acho que este pode ser um cam inho, uma tentativa de soluciona r o proble-
ma de todos estarem falando ao m esm o tempo ... Outra possibilidade seria não repetir
a m esm a pergu n ta para todos. .. Ma s, a cada criança que v ai sendo solicita da a fa lar,
no circulo, po de -se perguntar algo no vo, dif erente. .. E ntâo, foi n esse sentido que eu
cheguei a pmpor algumas pergun tas que se estaria fazen do a elas. . . Mas n ão são só
aquelas perguntas.. . Elas são apenas algumas perguntas para p r07.Jocar a in tu ição do
coordenado r dos jogos. .. D eix e sua intuição fl uir. . . D eixe-se levar pe la corre n te das
interações v erbais, tentando exercitar a maiêutica, fazendo sempre nova s p erguntas .
Claro, é um a sabedoria elaborar p erguntas que podem levar O aluno a uma reflexão .
E isso só vem com a prática. Então, é preciso a gente estar se exercita nd o n isso. . . E isso
que você está sen tindo, eu também sinto quan do estou iniciando um trabalho com jogos
teatra is. . . No in ício, a gente trava m esm o.. . D epois flu i ...
C lau d ia - É ue rdade. Eu sin to que fica muito repetitivo ffaze r as me sm as pergun tas
para todos e ater-se unicamente às pergu ntas do planejamen to da sessão] E f iquei pen -
sando, desde a última sessão, por que que as crianças estão respondendo as m esm as
coisas? Porque talv ez a pergun ta que eu fiz para todas, a prim eira criança já respondeu
o que ela, a próx ima criança , queria responder. . . Então é uma hora de eu ui p ensando,
da gen te tá pensando , qua is são as boas interv enções ou as boas pergun tas para fa zer
pam a próxima criança . . .

O u tra co isa qu e vale a pen a ser assinalada aq u i é o pa pel d o vídeo-regist ro


como fe rra me n ta úti l na (rej o r ie n t a ção da at ua ção d o s jo gad ores e d o dese m pe nho
do (a) pró prio (a) coorclenado r (a) do trabalho pe dagógico co m jogos tea trais . Veja-
mos o qu e di z Claudia a es se re sp eit o:

Claudia - Antes, era uma coisa que eu não percebia. E o v ídeo, ele nos traz a prática.. . Eu
acho que todos osprofessores deveriam fi lmar uma aula sua pra depois estarem se ana lisando .
Aquela coisa do "Não!", do "Perai!" , sabe, de dar um breque na criança? Eu parei pra pensar
sobre isso e modifiquei. Também acho, assim , importan te o respeito do espaço da criança.
Porque a gente quando está em sala de aula - por exemplo, eu tenho 38 alunos - então, você
fi ca m uito preocupada de estar perdendo o controle, de fica r aquela agitação e toda hora estar
retoman do as coisas. Isso eu também m odifiquei na minha sala de aula: deixar eles falarem
no m om ento em que eles realmente querem e precisam [alar; né ? O uvi -los!

A recordação est im u lada - at ravés do vídeo, no caso - ofe rece a po ss ibilidad e


de um d ist an ciam ent o crítico d as nossas ações, nec essári o à uma refl exão des apai -
xo na da so b re a própria perfo rm ance. Trata-se de um recurso podero so n o sent ido
de po ssib ilitar aos jo gadores alg um reto rno sobre o qu e acredi ta m es tar ce nica me n-
te mo st rand o ao s ob servad ores d e suas ações na áre a de jogo, e qu e co m p leme nta
os pro cesso s de aval iação coletiva e auto-avaliação su b jacen tes à dinâm ica d os jogos
teatrais.

C;.Hu &R -lTO\: .~1'I\'1J). tJ)[ JL~ JR.4L .\.-i !'Ia. - [\«)L ~ 265
1
í- :
'~
,
Claudia - Quando eles (as crian ças] aparecem no 'vídeo, eles param e prestam m ais 1
atenção ... Eu ach o que eles fazem nesse momento uma auto-análise de si mesmos. . .
Quanto a eu m e uei, m uitas coisas eu descobri sobre mim .. . A ssim: a postura , a en to -
nação de v oz, o jeito de f alai; o olhar.. . Eu refleti sobre bastante coisas... Contribuiu .. .
É m uito importan te v ocê estar recendo um trabalho com imagens, porque aquilo real-
mente aconteceu . .. Então , muitas coisas não são percebidas durante a ação da gen te.
C om o v ídeo , há oportun idad e de a gente estar falando : - Puxa, isso foi bacana! Já,
aquilo lá, nã o foi legal, eu p oderia ter feito de uma outra m aneira. D a próxima vez v ai
ser melhor! No ssa, para mim, o uso do vídeo é uma auto-reflexão!

É preciso que se di ga um a vez mais que o jogo Gato&Ratos foi retomado


também em outras sess ões - e não apenas só no quart o encontro do grupo. A
rep etição desta proposta para atividade lúdica co m a lin guagem teatral condu ziu
a (co) laboração de um desempenho sat isfató rio do pr é- escolar na perspectiva do
cumprimento da s re gras do jo go e de manuten ção do fo co da atividad e cênica
propo sta.
A retomada d e propostas para a atividad e co m a lin guagem teatral sinaliza
caminhos a serem perc orridos pelo (a) profess or (a), objetivando-se a superação da
dicotomia processo x produto qu e tem caracte rizado as pr oposta s para a ed ucaçã o
estética, em geral , na escolarização . A avaliação do de sempenho do pré- escolar, no
sistema de jog os teatrais, oco rre prospectivam cnre. ou se ja, tendo-se em m ente a
apropriação progr essiva, por parte do sujeito, do foco da atividade proposta e das
regras do jogo.
Essa visão prosp ectiva do de senvolvimen to (ia capacid ad e estética cênica do
sujeito solicita uma intervenção deliberada do (a) professor (a) ou coordenador (a)
de jo gos no sen tido de estar de safiando ce nicamente os jogadores a solucionarem
problemas de atuação cada vez mai s complexos.
Quanto mai s se joga, melhor se joga e mais se quer jogar. Esse entendimento
da provisoriedade do s resultado s o btidos ao lon go do pro cesso de tr abalho liberta
o (a) professor (a) e o s (as) alunos (as) da valori zação exce ssiva de apenas um deter-
minado produto, o u seja, da ên fase em um produto que se rel aciona apenas a um
determinado momento da trajetó ria desenvolvim ental da capacidade est éti ca cênica
dos sujeitos.

Algumas descobertas

Ampliação do repertório de jogos e mai or incid ência da atividade lúdica


foram observado s em todo s o s su je itos d o grup o multi sseriado. Verific ou-se
também qu e crianças de diferent es está gio s da Em ei pa ssaram a se relaci onar
so cialmente, apre sentado s un s ao s outros pel o s su jeitos d a turma expe r ime n tal.
Isso reforça a id éia de promoção da cultura infantil a partir da s interven çõe s
pedagógicas ba seada s em grupo s multi sseriado s.
Os resultado s o b tido s apontam ainda para um impacto positivo da dinâmi ca
operacional desta proposta metodológica para a atividade teatral (part icularm ente do
círculo de discu ssão) na quantidade e qualidade das interações verbais das crianças do
projeto,

266 R' CAK[)() OnON. VAZ JAI'I." ' ''-'


o uso instrumental do sistema d e jo gos teatrais de Spolin para a pr omoçã o d o
au t oco ntrole e o rgan ização mais co m p lexa do comportamento da própria c r i ;Il )(~ ; 1
se revelou eficaz d e ac o rdo com os resultad os obtidos pela pesquisa. Ver ifico u se
qu e este tip o de int ervenção lud op ed agó gica, ancorada no conceito cotidiano ,k
jogo com regras (jogo com regra s exp lícitas), é uma podero sa ferramenta par:1 lrv ar
as crianças a uma maior apropriação da cultura escolar e de comportam ent o S(l c j;ti
m ente desejável.
O mod o "a t ivo" com o qual as regras do s jogos são ap rese ntadas pelo s istt'-
ma de jogos teatrais preenche as nec essidad es de "pensame n t (o )ação" por parte da
crian ça pré-esc ol ar. Apenas uma exp os ição verbal das regras do s jo gos por par te do
professor seria insuficiente para o des empenho cada vez melhor da crian ça na ,11 C : i
de jogo, em razão da complexidade subjacente à coordenação da s açõe s solicitad as
por algumas prop ostas para a atividade teatral e das características do tipo de penS:l-
mento predominante nesta faixa etária.
Espero ter d emonstrado e destacado aqui - ainda que muito bre vemente - a
J
I importância fund am ental de algun s pr o cedimentos absolutamente necessários à d i-
\
.
1
,
.
nâmica do sistema de jogos teatrais na pré-e scola: (1) definição da área de jogo e da
ár ea de observação; (2) divisão do gru po em equipes; (3) revezamento das equipes na
áre a de jogo; (4) exp licitação do foco da ati vidade proposta e das reg ras do jogo; (5)
in struções durante a apresentação das equ ipes na área de jogo ; (6) avaliação co let iva
e auto-avaliação lo go após a apres entação de um a equipe; (7) forma ção do círcu lo de
di scussão (roda de co nve rsas ou círculo da mem ória ) para apr esentação dos pro to co-
los orais da sessão ante rior.
Esses pr oc edimentos revelaram-se essenc iais ao plen o fun cionament o do n .c-
todo proposto por Spolin e extremam ente importantes para o trab alh o co m a lin-
gu agem teatr al ju n to aos pré-escolares. A pr om oção de avan ço s no desenvol vim. n '
to da capacidad e es té tica cênica da criança pré-escolar, através do siste ma de jog<"
teatrais, solicita red obrada atenção ao s se te procedimentos enum er ad os acima.
Afinal, acre dito t er exposto aqui algumas razões para a promoção da Up.i c j,
dade estética cêni ca de pré-escolares através de jogos teatrais:

(1) J ogos te atrais constituem uma modalidade de ati vidade lúdica qu e reClu er
um fun cionam ento mental co m p lexo na pe rspectiva do desen volvim ento ~ u l-
tural ;
(2) J ogos te atrais redimensi onam o faz-de-conta infantil enquanto at ivid ad e
consci entemente diri gida para o bservado res;
(3) J ogo s tea trais são ferramenta s út eis para promover o de sen volviment o da
capacidad e es té t ica cênica da criança na pré-e scol a;

G.un&Run s: .U'II'I/1.4/)[ [ L4 TRA L S A /'k [ - [.\ COLl 267


.,

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G.4To&RATOS: .1mm.·:N TUrR.4L N.1 PRL-[SCOU 269


SOBRE A VOZ EM SUA FU N ÇÃO POÉTICA

Sara Lopes

Um conceito, uma função ...

A co mpreensão do papel da voz como objeto da arte faz pre ssentir a existê ncia
de um plan o mais profundo em suas funções e características, qu ando utilizada como
material da linguagem de representação. Esse nível de comunicação oral, d o qual
emerge a fun ção poética da vocalidade, constrói seu significado ent re a materialidade
das vibrações so no ras de uma voz e a so no ridade - mel ódica e rítmica - de uma fala.
Entenda-se, por vo calidade, o uso imedi ato de um a vo z qu e pede por uma express ão
qu e som ente se conc retiza na co-presen ça intérpret e/espectador: ela só se reali za no
encont ro ent re aquil o que o intérpret e exterioriza co m o interior do ou vinte.
Por poética, co mo adjetivo, fica den ominada a fun ção qu e tem um a voz de ir
além de seu uso utilitário na linguagem, da transmi ssão de id éias ligada s ao sign ifi-
cado das palavras, criando o gesto vocal, gerando impressõe s, dizendo de si mesma
e se comentando enquanto co menta e diz, mantendo o movim ento intern o ao pro-
cedimento técnico qu e leva à expressão diferen ciada .
É pela vo calidade poética qu e os signos se to rn am coi sas. Porque as palavras não
são as coisas; são represent açõe s conven cionadas, abstraçõe s. A coisa da palavra falada
são as forma s dos sons. N o exercíci o da vocalidade poética, o revestimento co ns ti-
tuído por um texto se rompe e, pelas aberturas, um outro discurso é proposto. Um
discurso que, de maneira específica, marcada e diferente a cada tempo e lu gar, trans-
gride os esquemas discursivos comun s: nas vibrações de uma vo z se desenrola um fio
que liga, às palavras, os sinais vind os da experiência. O qu e permanece, como força
referencial, põe em destaque o co ntato entre os suje itos corporalmente presentes: o
que tem a voz e o qu e a recebe . O s valores que a voc alidade poética torna relevantes
fundam entam-se sobre as qualidades d a vo z, sobre a técnica voc al do ator o u cant o r,
tanto ou mais que so bre o conteúdo da mensa gem. Ela faz emergir, da lin gua gem,
tudo o qu e não serve à informação, tudo o que defin e a sit uação de comuni cação.
Os pr essupostos da vocalidade poética enraízam-se e extraem sua validade da
tradição oral , na qual toda palavra se liga ao corpo por meio de sse atribut o físico que é
a voz. Seus significados mantêm a integridade da arte vocal, e pod em ser construídos

271
"'

na busca de uma experiência diferenciada de linguagem . Uma linguagem que eSlrj ;)


viva no corpo, em que o pen samento se ja exp erienciado no corpo, as em oçõ es 1 (' 11) 1;': 'I

existê ncia física. Na qual, plenas de pensamento e emoçõe s, as ondas sono ras 11 11 ;, rn
através de um corpo e sejam percebidas, sensorialmente, por outros corpos qu (' ('-,()l' .
rim entern o (s) pensamento/emo ções contido (s) na s vib rações do som.
Esse momento supõe competência: saber fazer, saber di z er, saber ser n o C" IX'
ço e na dura ção - o corpo dando forma ao vaz io, a vo z dando forma ao silênc io , (' ()
movimento de ambos recriando o tempo.
Corporifica-se então, uma ação vo cal que oferece, a qu em ouve, uma p ala vra
na qual nã o há lugar para dúvidas ou indecisões: uma publicação oral não tem ,',1'"
cunho; não permite ao ouvinte qualquer po ssibilidad e de vo lt a - independem (' J u
efeito buscado, a comunicação é imediata, É assim que o t exto, publicado oralm en-
te , apóia-se sobre um efeito de presentificação instantânea: me smo que a audi ção
aconte ça muito d epois de ter sido composto, ela só pode se r imediata.
À medida que o intérprete canta, declama, di z, limitações mais ou menos for-
t es, dec orrentes d o moment o, geram su a ação. Esta , em qualquer caso, em p en ha
uma totalidad e pe ssoal: o conhecimento, a inteligência, a sensibilidade, os n ervos,
os mús cul os, a re spiração e o tal ento para reelab orar tudo isso num espa ço d e tem-
po muito breve. O sentido da repres entação adv érn des sa unidade, resultado de um
procedimento qu e a orienta e da posse d e uma técni ca express iva particular, que é a
arte da voz. D esse modo, os valores qu e emergem da aç ão vocal estão mui to além
da s det erminações lin güí sticas e deri vam da própria faculdade da lin gua gem , t or-
nando a voc alidade poética.
E sta pal avra poética é int ens a, arqui vo so no ro da s voze s cotidiana s; s ua
finalidade é representar o todo existe nte, reveland o o que h á por trás do g ra n d e
dis curs o social. Garantindo um a id entidade, a transmis são, a tradi ção , e dando
início a tran sformaçõe s, à criaçã o, à difer en ça, a p ala vra p o éti ca é, ao m e s m o
tempo, memória e inven ção: a palavra qu e lib erta o canto , que dá vida às narra-
tivas, a palavr a qu e si gnifi ca o t eatro.
No teatr o, o di scurso sem p re se es t ru t u ra por um art ifí cio que ab ra nge a
tot alidade de uma situação e p õ e em jo go um a qualid ad e própria da voz: e m s ua
função primeira, anterior à influên cia da esc r ita, a vo z nã o de screve ; ela a ge e
dei xa que o ge sto indiqu e as circun stân cia s. Dada es sa amplitud e, é em torno do
. ges to que se organi za a cena int eira, su b o rd ina n do a palavra. Ma s el e, em vez de
sufocá-la, vai valorizá-la, enquanto ela explicita seu s ign ifica do , pois, ao que o
o lha r re gistra, falta a espe ssura co nc reta da voz, a p ercepção d o so pro , a ur gên-
cia da respira ção; falta a condição de retomar, sempre, o jogo de pre sentificar
um o b je to au sent e, p elo so m da palavra.
O trabalho vocal que se estrutura sobre esse conceito bus ca a condição que
tem um a vo z, ao apropriar-se de um texto o u can ção , de atu alizá-los, por um m o-
mento, ao assumir a imediatez e a in stantan eidade da " p erfo r m anc e" mantendo, ao
me smo tempo, a memória do enunciado e da sonoridade, as segura ndo o es paço da
, -
cnaçao .
O intérprete pode assumir a in stantan eidade da "performance" e integrá-la na
forma de seu di scurs o. Isso impli ca uma cap acidade particular de eloqüên cia, flu ên-
cia de fras e e dicção, poder de suge stão, domínio dos ton s e dos ritmos, todo um

272 SAI<." Lon.s


saber técnico, além d o conhecim ent o da s form as: a posse d e um vocabulário e das
regra s para sua combinação , numa espé cie d e gramática po ét ica. Então, mais q uc dt'
procedimento s literários, a estruturação da pala vra po éti ca resulta do discur so ; mais
que em termos de gra mática, as n ormas se d efinem em term o s de dram atur gia.
A opção por ess e percurso vai determinar o papel qu e, n a represent a ção, arri-
bui-se ao desempenho vocal, assumindo que a magia pressupõ e a perf eição th I cc
. .
ruca e qu e o acaso te m multo pouco a ve r com a arte .

... alguns princípios...

Interfer ir na natureza e transformar a mat éria faz parte da vocação cu lt u l I !


humana. Presente na arte, por definição, essa tarefa é d esempenhada sem p re nu
limite d o sagrad o e da magia, manipulando a matéria conhecida para dar-lh e outro
significado , fazendo com que um a co isa se torn e outra, m esm o continu ando :1 S I"
ela mesma.
Se a mat éria é carn e, em oções e pensam ento, um co rpo fab ricado pela cu lt ura
qu e o cerca vai re cri ar a sua pr ópria subs tância, superar limites e imposições, ext ra ir
o ut ras configurações de seu todo, potenciali zar ao máximo suas fun çõ es para ela b o-
rar, co mo um mágico , na perfeição da t écnica, a representação . Um co rpo que n ão é
uma obviedad e física é um devir sim bó lico n o qual se articulam, a cad a instante, as
imagens dadas pelo m eio em que vive e podem se rearticular tantas ima gens quan ta,
ele for capaz de im aginar, buscar, o bservar, exercita r. Ven cendo as imp osições da
gravidade , a parte mais flexível do co rpo é livre para tr an sp or e mover- se no espa<.; o .
E, n o entanto, m an tém sua realid ade física , co nsti tuin do-s e em matéri a co ncreta'.
Es te princípi o abre a voz à interferên cia det ermin ada c co nsciente em sua
co ns t rução, co mo a tela e as tintas se oferece m a um pin to r: o supo rte m.uc ria], ~
subs tâ nci a que per m ite a manifestação da forma, t rans fo rm and o o abst rato em con
ereto, to rna ndo visível o invisível, faz en do , do ausen te, p resen ça. A ssim, um a vo .:
respond e mais pr opriamente à sua fu n ção, na rep resentação , quando se des prcn d«
d os signi ficados abstrato s contidos na palavr a para se ligar à co ncretu de da m.it c r ia -
lid ade sono ra.
A geração d essa voz est á diretament e ligada à id ent ificação e ao reconh eci-
men to de sua co rporalidade, e a um redi m en sion am en to físico pela expal1 ' ,li ' do
-i!
corpo , essa unidade psicof ísica qu e decididam ente se organi za para uma lun çáo es -
'i
,
;~ pecífica, poética, h arm onizando seus m ovim entos intern os e ex terno s, re un in do
"

"j pensam ento, emoção , fisicalidade .


J
!
O tr abalho vocal que se desen volve pela adoçã o e imi tação de um modelo , p or
mei o da rep eti ção de fo rmas acab adas, fó rmulas prontas, so luções permanent es, é
lim itad o e to rn a-se lim itador, quer se ja propo sto so b re si me smo, qu er seja na rela-
ção com um a lin gua gem. Per correr esta via é admitir qu e um a téc nica existe p o r si
mesma, sem dep ender de um organism o vivo , co nscien te e do ta do d e imagin ário ,

I O som é resultado d e um fenôm eno físico qu e só acont ece n um meio onde exista rnat éri«, r:

acontece por meio de uma seqüência periódica de compressão e descompressão dela. Qua nd u 11111
som é produzido, alterações ocorrem no me io. O mesmo se dá co m a voz. A vibração das l' rq~ ,l : ,
vo cais alte ra o fluxo de ar que passa por elas, e este meio material, ar, alterado, é o so m vocal. Um
som, pro duzido, m ultip lica a alteração da mat éria: uma porção alterada modi fica a qu e lhe está maix
p ró xima, e essa seqü ência de alterações, at ravés da matéria, é a propagação do som.

S O /lR[ A l U 7 [11 5 l'.; r ux (..io rot.n c., 273


qu e adote seus procedimento s e a construa em seu corpo, a seu m od o, criando, pela
matéria que lhe é própria, a individuação da forma .
A identificação, o reconhecimento e a apreensão física do funcionamento dos
m ecanismos do corpo levam, mesmo que mai s lentamente, a um aprendizado diferen-
ciad o: re laciona a estrutura corporal interna à existê ncia e à ocorrên cia da sensação, da
emoção, do movimento e libera uma voz pronta para revelar essas relações. É um per-
curso qu e permite organizar o saber para além das formas, incorporando os conteúdos:
aquil o qu e existe em termo s de estrutura, fun ção e ene rgia. O qu e se aprende, então, é
estar disponível a um processo constante, pessoal, de elaboração e reelaboração de um
rep ertório técnico individual, ancorado na ado ção de procedimentos que se organiza m
pela apreensão de princípios e fundamentos ap oiados na absorção de um conceito sobre
a vo z, qu e se estabelece a partir da definição de sua função como elemento inte grante
da atuação. É a apropriação física de um trajeto qu e busca a autonomia: um saber que
se se dime nt a de forma única, pela memória e de coração, que é propriedade privada do
artista, uma "tradição de si mesmo"], para disp or co mo quiser.
Uma distinção qualitativa emerge do trabalho com a fisicidade e a percep-
ção corporal: a noção d e tridimensionalidade d o corpo, por exemplo, torna-o mais
env o lvido no movimento e otimizá sua capacidade de utilização tridimensional do
es paço; ao mesmo tempo, cria-se um estímulo à imaginação e um impulso individu-
ali zado para a ação , dotando-a de origem, autoria.
F ica estabelecido, então, que voz é co rpo, num corpo vivo em cada uma de
suas partes, capacitado a estabelecer relações funcionais entre o espírito, a mente
e a matéria. E se a voz é físic o , é possível concebê-la como ação , ambas ori gin ad as
num m esmo impulso de respiração . O som vocal gera sens ações e impressões,
pela vibração, e as mantêm presentes, em emoção, no movimento. É o princípio
da vo z co mo mat eriali zaçã o d a ação física, perm eand o da pele ao siste ma ner voso,
se n do p ercebida através d o s poros e dos ossos, e nã o ap ena s pelo s o u vidos; esse
atributo qu e estabelece o contato físico entre seres humanos di stantes um do
o ut ro : a manifestação d e um a interioridad e livre para invadir o u t ros co rpos, pro -
vocan do resp ostas fisi ol ó gicas internas, profundas.
Na fun ção poéti ca da vo z, é assim que se dá a comunicação: corpo-ar-corpo,
qu e vib ra em conjunto, que so fre alterações sim u ltaneam ente, e qu e forma um tod o
uni ficado pelo so m. Tratada assim, a voz é concreta, um prolon gam ento físico qu e,
pel o toque, estabelece a comunicação.
A vo z, pois, é a coordenação de muitas coisas, a começar de uma coordenação
fun cional que se dá pela conexã o de todo o corpo t ecendo seu mecanismo e de todo
o ser tramando seu sent ido .
E stabel ecer a li ga ção e n t r e a realidade física e todo o sim b ó lic o a ser tra-
balh ad o e representado por ela é função d o im a ginário, ess a p ont e e nt re a co n-
c re t u de e a ab stração .
O so m é invisível. A tendência, então, é entender a voz como algo abstrato,
so b re tu do porque no s chega ligada às palavra s :' seus sign ificados . Sab er como tudo
se o rga n iza, fisicam ente, para produzir o som vocal, é esclarecedor quanto à sua

1 O termo foi ut ilizado po r Franco Ruffini em Conferê ncia durant e o Seminári o Inrern acional
"Teat ro em fim de milêni o ". Tradu ção e tran scriç ão da fala por Ricard o Ponti, M ari a Lucia Rai-
mundo e N air d'A gostini.

274 SAKA Lon.s


co nc re t ude e revelad or quanto à con vivên cia ent re o uni verso d o s s ím bolos e as
det erminações da matéria son ora.
Como o mecanismo de produção do so m vo cal não é aparente, é n eces sár ia
um a es t ru tu ra ima gin ária pa ra entender o qu e ac ontece: um pro cesso m ental que
co m b ina ima gen s e se nsaç ões, dotando a vo z d e concrerude e pla sticidad e, disp o ní-
ve l à interfer ência propo sital em sua elaboração .

... e outros tantos procedimentos.

Visuali zar a ossat u ra para co ns t ruir sua im agem co mo estr utu ra d e suste n-
tação d o co rp o é um procedimento que libera a mu sculatura para os m o virncm os,
de sd e os mais simples e evidentes at é o s mai s co m plexos e suti s. Recuperar, alo n-
gando , os esp aços qu e a tensão rouba entre as articulações, es pe cialme nt e entre
as vé rte bras, ini cia o redirnensionamen to co rpo ra l qu e pode se r percebido ( U Jl I( \
sensação nascida d e uma alt eração física real. O pe so do co rpo se apóia no chão,
direci onando a grav idade, num a disp er são abe rta e eq uilib rada, t endo o s pés como
ra íz es que se espalha m e se apro fu nda m para s us te n tar a pélvis, o sacro e o en caixe
da s coxas. Esta é urn a boa ba se para o so m de senvolver gran de extensão, so bretudo
se a coluna vert ebral es t iver realmente abert a, em const ante ene r gia ascendente,
adap tand o- se à troca de p eso da respi ração , " m us c ularme nt e" eq uilib rada e neu ro -
lo gic am ente sens íve l, p ro n ta par J. resp o nd er. Os músculos livres, em torno do torso,
tornam -se sensíveis à percepção do m ovi m ent o tridim ensional do diaji-agma, na res-
piração, ampliando o espaço ocupado pelo corpo. Na mesma medida, increm enta -se a
capacidade de experimentar sensações e imp ressões mais sutis a serem incorp oradas na
construção de uma imagem corporal.
Visua liza r a im agem qu e o pr ópri o co r po recorta no es paço traz a co nsciênci a
d e s ua trid imen sional idade, num a percepção par a se r ex plorada e incorpo rada à m e-
m ória e ao pen sam en to físi co.
A ossatura, pela resistência de seu material é, ainda, co ndutora das vibraçõe s d o
so m, através das art iculações, aos limit es co rporais ma is distantes do se u pon to inicial,
exp andindo, am plificando, e proj etando o co rpo, em sua sonoridade, para além de seus
limi tes.
Quando o corpo, como um tod o, se compromet e na manifestação da sonori-
dade, os esf orços são dividido s por uma área mu scular e óss ea muito mais extensa, se
co mparada àque la en volvid a na ado ção da vo z co mo eleme nto d otado de existê ncia
aut ônoma.
O so m in au gural, produ zido por um co r po o rga niza do em su a ossatura e
mu sculatura, tem a am p lit ud e d e um sus piro d e al ívio , e es tá suj eit o à pa ssagem d a
respiração at ravés d as pregas vo cais, na g3r ganta, par3 criar as vib rações que são
rec onhecidas co mo um a voz ind ivid ua l. A resp ira çã o depende d o s pulmõe s, qu e
se es te nde m até a m et ad e d o do rso. A mus culatura d a respiraçã o é en t retec ida em
to rno d a ca ixa d as co st el as, co n t in ua n do p or b aixo d os pulm õ es, n o di aira gm a,
co nec tan do-se co m a co lu na ve rte bral e en ra iza n do -se profund ame nt e na pélvis .
Nã o é metafórico di z er que o co rp o re spira.
O rec onhecimen to da respiração deve id entificar o m ovimento qu e se in icia
n o ce n t ro do di afragma e ex pa n de o co rpo em se is di reçõ es, na in spira ção , perrni-

SO /IR[ A \'02 [ I( SU A r is ;..40 r o er/ LA 275


rindo a sensa ção de tridim ensionalidade do tron co qu e é, então, um invólucr o em
torno do ar. O movimento inver so, de retorno das se is dir eções para o ce ntro, na
expiração, dá uma prim eira noção de apo io, resultad o da pressão da mu scul atura do
t ors o, em to rno do ar, para voltar à sua posição inici al.
A coluna vertebral é part e fu nda mental da re spiração. O eixo central da co lu-
na é indi spensável para prover a força do movimento pa ra a respiração , nas di reções
alto e baixo. A pressão ne gativa do ar, na pélvis, cria uma troca co m a part e su perio r
do corpo, no enchimento do s pulmões, dand o suporte à respiração. Se a co luna
pe rmanece r rígida, se as vért ebras perderem sua ação seqüe nc ial, isso vai afetar a
respiração e, por con seqü ênci a, a qu alid ade do so m .
Est a res p iração consciente integra a repr esentação co mo um elemento visua l
e esp acial, quando é conc ebida e utilizada dessa forma ativa, tridimensional. Confi-
gur ada assim , amplia as po ssibilidades de significação ao pr opor a percepção da vida
no co rpo , reveland o com o se faz, enq uanto faz, co mo pen samen to físico.
A respiração é o início do so m vocal, tant o quanto da ação e do mo vim ento,
e fund e esses esforços nu m impul so úni co; voz , ação e movim ento terão a amp li-
tude qu e tiver o impulso inte rno, inicial, da respi ração num corpo sens ível para
reconhecê-lo e dar-lhe forma.
A opçã o po r somar o corpo ao tra balh o sonoro torna a resp iração co nsc ient e
indisp ensável e faz necessário apre nde r um mod o de respirar qu e suste nte a ação e o
so m enco ntrando, no corpo , o impulso que vai cr iar a coorde nação entre os do is.
Trabalhar dessa forma alinh a a pr esença e a abertura estrut ural do co rpo , qu e
se torn a supo rte para um som claro e abe rto . A qualida de do so m reflet e o estado do
corpo e o qu e, nele , está vivo. Se houver tensão, o som vai refleti-Ia. Se o corpo estiver
abert o nas art iculações, respirand o livr e e sem tensão na m usc ulatura, a voz vai refletir
este estado.
A respiração age sobre a pe rcep ção. Cria, no co rpo, um a tendência fisicame n-
te mais rece ptiv a, " muscularme nt e" mai s suscetível.
A resp iração co nsciente e a per cepção difer en ciada do corpo são pro cedim en-
tos fundame n ta is para a pro du ção d o som voca l na p er sp ect iva de sua fisicidad e.
É a respi ração qu e det ermina co mo se cria o so m no co rpo porque seu pe rc urs o e
espaço abrem, antes, o caminho da se nsação e da percep ção.
É fundam ental, para o ima gin ári o, buscar ver além do mecanismo func io na l
da respiração . Há um a energia respirat ór ia, no co rpo , q ue es tá além do sim ples ato
de respirar, num ní vel mais pr ofundo , numa expe riên cia corporal total.
O elo en tre a respiração e a energ ia inte rna é dad o pela sens ibilida de e d epen de
dela para o des envolvimento de uma capacidade de exp ressão ampliada. Al gun s atri-
but os pod em ser ligados à voz do ato r: extensão, var ieda de, beleza, clareza, poder,
int ensidade. M as é a sensibilidade qu e valida to dos es tes atribu to s, que perman ecem
nebulosos se não reflet irem a exte ns ão das sensações , a variedade do pen sam en to , a
be leza do co nteú do, a clareza da im agin ação, o poder das emoçõe s, a inten sidad e do
desejo de se comunicar. Se a comunicação do interi or pa ra o exterio r pr et ende ser
verdadeira, as energias que abastece m os múscul os da voz precisam esta r af inada s,
co m extrema sensibilidade, às energias aind a mais refinada s da criação.
N essa opção de trabalh o vocal, é pr eciso partir d o en ten dimento de qu e cada
corp o tem seu próprio ritmo e pode encontrar sua própria respiração. O corpo

276 S AIU LoJ'fS


1
B

pode usar mais de si mesmo do que apenas a superfície muscular.


Nossa primeira relação com o som é através da respiração. Assim, o trabalho
com a respiração deve ter improvisação, atividade, estímulos, consciência, sensaç.u.
física e atenção à percepção.
O corpo quer respirar plena e confortavelmente. A tentativa de se manter
dentro de padrões familiares restringe a respiração. Respirar traz vitalidade, que
traz sensações, que podem trazer o novo e, às vezes, há a tentativa de evitá-las. O
trabalho deve, então, instalar um espaço diferenciado, dedicado à construção de
elementos que se destinam a uma finalidade específica, a representação, permitindo
a liberdade do corpo para que as sensações aconteçam. Trabalhar estas relações per-
mite e propicia que a respiração se torne multidimensional.
A voz se organiza com a ação do diafragma, num trabalho de coordenação
seqüencial entre os músculos abdominais e torácicos, na inspiração e expiração. Esse
arranjo se equilibra com o aparato vocal, que permite a saída do ar para a produção
do som.
A ação do diafragma, que se contrai ativamente na inspiração, expandindo o
corpo, descontrai-se na expiração. Os dois movimentos são coordenados à força da
liberação do ar através do laringe e das pregas vocais, resultado da pressão exercida
pela musculatura do tronco no retorno à sua posição original. A imensidade do som
depende desta relação. Manter a imagem de um centro, do qual parte e para o qual
retoma o movimento da respiração e do som, traz o benefício fisiológico do equilí-
brio da pressão do ar sobre as pregas vocais, apurando o timbre: ar demais força uma
separação sustentada das pregas, provocando sopro. No entanto, equilíbrio não quer
dizer contenção. A imagem do suspiro de alívio é proposta exatamente para afastar a
idéia de resistência, de restricão.
A cada tom, as pregas vocais vibram - para cima e para baixo e de lado a lado
- numa freqüência específica. Um tom alto tem freqüência de vibração mais rápida
do que um tom baixo. O tom também depende da espessura das pregas: se grossas
- baixo - ou delgadas - alto. A abertura e o fechamento das pregas criam uma fenda
no meio do laringe: se ela se alarga, o tom é baixo; se ela se estreita, o tom é alto.
Há mais do corpo envolvido nessa relação de respiração, voz e tom.
O diafragma pode ser considerado apenas nesse trabalho com os músculos
abdominais e torácicos na respiração. Há, porém, uma outra imagem que o visualiza
como uma camada estendida entre duas regiões de órgãos - a de cima, contendo
pulmões, coração, esôfago; e a de baixo, sobre a qual o diafragma descansa, conten-
do estômago, intestino, rins e fígado. Os órgãos e seu peso têm mobilidade, dentro
do tronco, movimentando-se para cima e para baixo com a ação do diafragma. Se
os órgãos não estiverem rigidamente tensos, em seus lugares no torso e, sim, mais
sensíveis, respondendo à ação do diafragma, ele pode trabalhar de forma mais plena
e efetiva. Para isso, contribui o alongamento e a liberação da coluna, articulações e
musculatura do tronco, ampliando os espaços internos do corpo e tornando a pos-
sibilidade de ressonância do diafragma mais aberta e livre para se expandir por entre
os órgãos, incrementando a intensidade do som.
A emissão do som é muscular e sua anatomia ganha contornos nas alterações
dos canais por onde fluem livremente suas vibrações, na abertura e posicionamento da
boca, nas possibilidades de encontros entre a língua e o palato, no desenho dos lábios,

S()/iR!:A 101L1!\lArI'\(,,11j/,<)E;H.A 277


ajudando a criar texturas, core s, timbres, em formas que a fon ética chama de vogais,
cujas características indi viduai s decorrem de uma acomodação dos sons nas cavidades
de ressonância do corpo. Tonicidade e plasticidade em toda a musculatura que for JTJ ::l
a boca, liberdade de movim entos para os m axilare s, na práti ca, aumentam e refin am a
emissão do som em sutileza s na revelação de emoções, impressões e sensações atrav és
do som.
O som qu e emerge de sua fonte profunda, no corpo, projeta-se no espa ço
co mo um jorro contínuo, em torno do qual a boca recorta e esculpe forma s so no ras.
A boca é tridimensional e seu formato e espaço de ressonância co nduzem o so m
para o espaço extern o.
A articulação e suas po ssibilidades de experimentação põem a voz em mo vi-
mento, estabelecendo a ligação entre os so ns numa ação co ordenada de resistência e
adesão dos lábios , língua, palato, dentes, maxilar, à saída do ar, definindo os ruíd os
nomead os como co ns oa ntes .
Um procedim ento muito comum no trabalho vocal utiliza a criação de so ns
que, es cut ados, são guias para ajustes feitos so bre sua forma ex te rn a, sobre a m a-
téria qu e já não está mai s no corpo, dispersando a integridad e do trabalho inte rno.
Mas há uma outra escuta po ssível, com o co rpo, fundame nt al quando se trabalha,
primeiro, a sensação do so m. É um ouv ir se ns ível; sent ir/o uvir e promover aju st es
nas ba ses internas para alterar os resultados. A penas escuta r e m anipular o resulta-
do so no ro é fazer dua s co isas separada s, quebrando a unidade que deve presidir o
desempenho.
Este trabalho não é para ser reali zad o co m o pen sam ento crítico, bu scando
aquilo que soa bem. Ele deve acontecer num nível mais puro, focado, antes de tud o,
na expressão do co rpo, na sens ação do so m e na resp osta, no corpo, a esta sens ação .
Esta atitude isenta da o brigação de tentar soar bem ant es de estar apto a se expre s-
sar com a voz. H á, aí, uma orientação diferen ciada, men os avaliad ora, qu e muda a
q ualid ade do som: ele se torna mais pe ssoal.
O som que , em sua produção, co n té m um co rpo, é mais enraizad o nas emo-
ções e soa diferente, tem outra textura. O s ton s se to rn am mais plenos, mais ricos,
co m mais harmônicos, que vão caracterizar melh or o so m. Caracterizá-lo a partir
daquilo qu e é dad o pelas sensaçõ es geradas pela vibração, mais do qu e a partir daqui-
lo que o som pare ce ou deve ser, inicialmente. A partir daí, o desenvolvimento pode
se dar pelo uso do ritmo no corpo, do espa ço, das dinâmicas do m ovimento e seu
peso na criação do som. Este é um tipo de orientação particul ari zada na constru ção
da voz poética.
A associação do movimento físico ao so m não supõe um a sincro nicidade nem
uma imitação. O corpo não se limita a duplicar o so m e o so m não fica preso à rei-
t eração do co rpo: eles interagem .
Alinhando o impulso, a int enção da fisicalidad e com o som, é possível encon-
trar a fonte comum co m o movimento, no corpo. A interação traz algo consigo qu e
revela não serem, ambos, um únic o elem ento. O impulso criado no corpo não precisa
ser sempre sonorizado ; nem todos os so ns têm de ser refletidos no m ovimento. Tam-
bém há silêncio e im obilidade. Corpo e som podem interagir num percurso mais vital
e menos previsível.
O potencial do trabalho com movimento - mesmo que em alguns momen tos

278 S ARA LO PI S
este não aconteça - desenvolve a habilidade de imaginar o movimento do corpo
no espaço, o que é importante para a produção sonora como ação; se o som existe
como um pressuposto, no movimento, a concentração e o movimento serão dife-
renciados, mesmo que os sons não se concretizem.
Procedimentos ancorados em princípios definidos e conceitos claros abrem
a prática a uma experimentação sem restrições: o que deve ser preservado é a con-
cepção que, construída pela experiência de cada um, sustenta a atitude do artista no
confronto com os desafios de seu ofício.

SOBRE A I'()l [\/ SIA ILSÇj() porFIe; 279


1
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282 5.\1\.\ Loi -rs


o ENSINO DO TEATRO DE ANIMAÇ ÃO

Valmor Níni BcitrmtiL

o tea tro de animação co ns tit ui um campo artís tico qu e co mpreende as lin-


guage ns do teatro de máscaras, so m b ras e bonecos/objetos. Cada uma destas lin -
guage ns possui téc nicas e espec ificida des qu e obedecem a regras e a um vo cabu lário
próprio . O ens ino dessa arte deve co ntemp lar alguns eixos fun damenta is: o estu do d e
sua hist óri a; o co nhecimento do M amulen go, tea tro de bonecos popu lar brasileiro; a
co nfecção de bo necos e a m ontagem de cenas, nas qu ais os princípios técni cos dessa
lin gua gem sejam ut ilizados.
A incl usão do ens ino de teat ro de ani mação em unive rsidades brasileiras é
bastante recen t e. Iniciou-se por vo lta de 1980 e deve se r cred itada pr incipalmente a
duas instituiçõ es: a Escola de Belas A rte s da Un ivers idad e F ed eral de Minas G erais
e a Escola de Com u nicações e Artes da Un iversidad e de São Paul o. H o je, a at ividad e
se expandiu para o ut ras universidades b rasileir as, principalmente junto aos cursos
de Licenciatura em Artes Cênicas.
O estudo que seg ue pretende di scu tir alguns dos eixo s a sere m co nte m p lad o s
no ensino do teatro de animação n o âmb ito acadê m ico , co m ênfase na lin gu agem
d o teat ro de objetos/bo necos. A id éia é form ular uma propost a qu e possa co n t r i-
buir na formação aca dê mica do art is ta professo r interessado em trab alhar com essa
lin gua gem .

As vanguardas hi stóricas e o teatro de animação

O s últim os anos do séc ulo X IX e os prime iros do séc ulo XX são marcados pel o
cres cente interesse de dr am atu rgos e enc enadores pela mari onete. A mario netiza ção
do ator, a sub stituição do ator por b on eco s, po r fo rmas , e a human ização de o bjetos
são discussões que animam a pr odução t eat ral. Em to rno des sa discussão , estão ar-
tistas qu e negam a estética do rom an tism o, do melodrama e do realismo en quan to
correntes artíst icas, e se abrigam sob o movi me nto simbo list a. Tal int eresse aparece de
forma visível em du as direções: a mario nete co mo referência para o comportamento
do ator em cena e o teatro de marionetes co mo gênero artístico. D est aca-se, desse
modo, o fascíni o pela m arionetiza çào do trab alho do ator e exp erim entaçõ es em tor-
no da humanização de objetos.

283
Encenadore s e dramaturgos, decep cionad os com a atuação dos atores, seu hi s-
trionismo, excessos, care tas e condicionamentos psicofí sicos, expressam a necessi-
dade de o ator assumir outro comp ortamento em cena e apontam a marionete C())) lO
referência para seu trabalho. Na raiz dessa discussão está a defesa do controle so bre o
trabalho do ator, a ser efetuado pelo diretor; a ne gação do esp ontaneísmo e do vede-
tismo (predo minant es no comportamento dos atores naquela époc a) ; a teat ralizaçào
do teatro; a necessidade de consolidar a fun ção do diretor co mo o maior respon sável
e criador do espetácul o teatral.
Hoje, o ator m ari onetizado pode ser visto como o "ato r perfeito ", o ato r que
com seus gestos e m o vimentos pre cisos, refinad os , atingiu o ideal de bele za. Trata-
se do ator que aband ona a condição de vedete e uma atuação pautada na gestuali-
dade cotidiana. Ele deixa de lado as características de seu comportamento diário,
os traços marcantes da sua personalidade para realizar uma outra experiência, dis-
tanciada das propostas de interpretação reali sta e naturalista. É o ator que ating iu .l
capacidade de representar a personagem se m mesclar suas em oções e pers on alidade.
E sse aparent e "d esurn ani zar-se" revela a essê ncia humana. N o seu trabalho, utiliza
recurso s técnicos comuns ao trab alh o do ator-animador: a eco no mia de meios, a
preci são de gestos e m ovimentos, o o lha r como indicado r da ação, o foco, a trian-
gulação, a partitura de ações, o subtex to; a id éia de que o m ovimento é frase, além
de outros aspecto s t écnicos utilizados na animação de bonecos e objetos'.
A pr oposta de interpretação tendo a marionete como ref erência foi co ns t ru í-
da com a colabora ção de diversos pen sadores, dentre os quai s se destacam Heinrich
Von Kleist , Maurice Maeterlinck, Alfred Jarry, Edward G o rd on Craig e Vsévolod
Meyerh old. Ao estudar o pensam ento de sses dr amaturgos e ence nado res, é impor-
tante eviden ciar pontos comun s e diver gências em relação à idéia de mari on etiza ção
do at or e, ao mesmo tempo, destacar que essas idéias vão influenciar o trabalh o de
marion eti stas na produ ção de espetáculos cada vez mais het er o gêneos.
O ator perfeito de Kleist - Heinrich Von Kleist (1777-1 811) foi um dos pio-
neiros nessa discussão ao publicar o ens aio Sobre o Teatro de Marionetes, em 181 0,
cu jas idéias passaram a ani mar polêmicas entre encenadores.
N o diálogo estabelecido ent re a personagem Senhor C e o primeiro bailarin o
da Ópera da cidade, Kl eist diz que a marionet e é o verdadeiro art ista, porque dispõe
de qualidades como euritmia, mobilidade e leveza. Ela pod e realizar movimento s
com graça, impossíveis de serem co nseguidos pelo ser human o, porque o homem
não tem co ntrole sobre o centro de gravidade do movim ento. E outra vantagem
decisiva é que a marionete não é "afetada", como ocorre com a maioria dos atores
e bailarin os.
D epois de disc orrer sobre o movimento, so bre os deslocamento s e sua rela-
ção com o cent ro de gravidade, e de afirmar qu e estes devem ser co nseguidos pel o
co nt ro le exte rn o, Klei st evoca um ato r meio máquina, meio deu s, capaz de realizar
o s de sejo s da alma e encarn ar o homem como criador do mund o.

I Diversos espetáculos teat rais brasileiros utilizam esse pro cedim en to: UBU, do Grupo Sobre-

vento; Buster, do Grup o XPTO; espetáculos dirigidos por Gerald Th ornas, como Electra com
C reta, Trilogia Kafka , M .O .R .TE. No teat ro europeu e norte-am eri cano, destacam-se espetácu-
los diri gidos por Mn ou chkine, Bob Wilson , Leszek Madzik. N o cine ma recen te, são not áveis
as atu ações das atriz es Kati O ut inern, em O H om em sem Passado, de Aki Kauri smaki; e Scarllet
J oh ansson , em A Moça com B rinco de Pérola, de Pet er Weber.

284 V .<L.1 /0R Nis .tBrrnu su.


o ator desencarnado de Maeterlinck - Maurice Maeterlinck (1862-1949),
dramaturgo simbolista, apelava para a palavra pura, em que a verbalização o ator
seria quase uma estátua falante, adquirindo uma sobriedade gestual com movi-
mentos que obedeceriam a princípios de economia, contenção e elegância, imo-
bilidade e face congelada, explorando silêncios. Insistia em que o espectador, :10

ver homens materialmente representados e personagens se expressando em lin-


guagem comum, percebia na cena um caso e um indivíduo e não o ser humano
universal. E afirmava:

Talvez fosse necessário suprimir totalmente o ser humano da cena ... Ou - quem sahe
- o ser humano poderá ser substituído por uma sombra, um reflexo, projeções num.i
tela de formas simbólicas ou por um ser com toda a aparência da vida, sem ter vida.
Eu não sei, mas a ausência do homem me parece indispensáveP.

Fica evidente que o que contrariava o autor era a presença física do ator - se me-
xendo, falando -, porque acreditava que isso destruía a ficção e impunha a realidade CC)J1-
ereta, e limitada, de homens em seu cotidiano. Como se a realidade não conseguisse dar
conta da verdade da existência. E tudo o que o ator fazia parecia ridículo, inadmissível,
intolerável.
As indicações para a nova forma de interpretar são genéricas, mas fica claro que o
ator precisa encontrar novos meios de expressão, cujas referências estariam, talvez, nas
marionetes, nas figuras de cera, nos autômatos, nos andróides, nos reflexos, objetos,
máscaras.
O ator boneco de Jarry - Alfred Jarry (1873 -1907) foi um dos precursores
do retorno ao uso da máscara e pela busca de uma interpretação "despersonalizada",
tendo como referência a marionete. Ele propôs um teatro no qual as máscaras subv-
tituern o retrato sociológico de uma pessoa pela "efígie da personagem". Na estréia
da peça Ubu Rei, em discurso para a platéia afirmava:

Nestas noites, os atores quiseram tornar-se impessoais e representar cobertos por


máscaras demonstrando mais precisamente o homem interior e a alma das mario
netes que vocês vão ver [...]. Estarão cobertos por uma máscara com o caráter da
personagem: o avarento, fraco, sovina, criminoso'.

Jarry fazia a defesa da personagem tipificada, a negação da personagem psico-


logizada. Referindo-se ao boneco e ao ator que usa máscara, salientava que ambos
devem se mover pouco e lentamente, com o fim de oferecer ao espectador uma
imagem ambígua, afastada do contexto do qual surgiram.
As referências do teatro de marionetes presentes nas personagens da peça
Ubu Rei são evidentes pelas mudanças bruscas das suas reações; pela rapidez com
que mudam de atitudes e opiniões; pela coexistência de atitudes próximas da vul-
garidade; pela proximidade entre o bom senso e a idiotice, entre a nobreza e a
infâmia.

2 MAETERLINCK, Maurice. Menus propus, le théâtre. In: PLASSARD, Didier. Les mains de

lumiére. Charleville-Mézieres: Institut International de la Marionnette, 1996. p. 20.


J JARRY, Alfred. Todo ubú. Barcelona: Bruguera, 1980. p. 24.

o LVI/NO J)O/[AI'RO D[ ASI.lI.1ç..io 285


o ator máscara de Craig - Edward G ordon Craig (1872- 1966) crit icava a es-
t ética realista dando a impressão da impossibilidade de o ator estar em cena. D entre
as polêmicas afirmações d o autor, destaca-se esta afirmativa: "A representação do
ator n ão constitui uma arte; e é forçadament e que se dá ao ator o nome de artista.
Porque tudo o que é acidental é contrário à arte'",
A publicação do seu ensaio O Ator e a Supermarionete, em 1908, exp res sava Sua
rejeição ao teatro produzido na época. Negava a arte realista como imitação fotográ-
fica da natureza, o teatro em que predomina a submissão ao texto, o teatro escrito, a
interpretação submetida ao s caprichos e emoções humanos. Dizia que os gestos do
ator, a expressão de seu rosto, da sua voz, não obedecem a controles e se traem cons-
tantemente. E desafiava :
Suprima-se a árvore aut ênt ica que se colocou em cena, suprim a-se o tom natural, o
gesto natural e chegar-se-á igualmente a suprimir o ator. [00']
O ator desaparecerá e em seu lugar veremos uma per sona gem inanimada qu e usa-
rá, se quereis, o nome de Sur-marionnette - at é que tenha conquistado um nome
mais glo rioso ;.

o pesquisador franc ês Plassard, ao manus ear escritos de Craig dos anos 1905
e 1906 , período em qu e este último formul ou a idéia da Superm arionete, conclui:

Meu s estudos constatam já nas primei ras páginas do Caderno A que a idéia de super-
marionete não está separada do ato r usando máscara, em part e inspirado no ator do
teatro antigo grego. N otas e croquis demonstram o ator int eiramente cob ert o, des-
per sonalizado, com máscara, tornando impossível ao int érprete mesclar suas emo-
ções e personalidade na represent ação da per sonagern ''.

C ra ig lan çou as ba ses de uma tendência qu e se co nso lidaria mai s tarde: a


teatraliza çâo do teatro, in staurando o monopóli o da figura do dir etor na cena. Para
ele, o ator é a Sup ermarion ete, um a má scara co b rin do além do rosto, todo o co rpo
d o ator.
A polifonia meyrholdiana - Para o diretor Vs évolod M eyerhold (1 874 -
1940), o te at ro de b oneco s p opular ru sso , o Petru shka, é referência important e
n a preparação do seu el enc o . Ele via na síntese do s m ovimen to s conquistas qu e
seu elen co de veria fazer. O ator Igor Iliin ski relata exercí c ios proposto s pelo
diretor:

Me yerh old apre ciava altam ent e a express ividade do corpo. Fazia a demonstra-
ção co m um bon eco de guinhol: introduzindo os dedos, obtinha os efeitos mais
diversos . Ap esar da sua máscara parada, o bon eco exprimia quer a alegri a - os
braço s abertos, co mo a tri st eza - a cabeça caíd a, ou ainda o orgulho - a cabe ça
inclinada para trás/o

, C RAIG, Edward Gordon. Da arte do teat ro. Lisboa: A rc ád ia, 1973. p. 87.
C RAIG, 1973, p. 108-1 09.
" PLASSARD, Didier. L 'acteur en Effigie. Paris: L'Age D'Homme, 1992. p. 47-53.
7 IUIN5KI apud MEYERHOLD, Vsévolod. O teatro teatral. Lisboa: Arc ádia, 1980. p. 189 .

286 F A LI /O I< N/,\1 B [ uR.W~


-.
}

o boneco é referência importante na superação da interpretação psicológica,


colaborando para a expressividade do gesto, precisão e síntese do movimento.
Em seu estudo O Teatro de Feira (1912) recorre à marionete para marcar a
diferença entre o "ator da interioridade" e o ator de uma linguagem cênica original.
Para ele, o primeiro "só busca revelar seu estado de alma pessoal. Recusa-se a obri-
gar sua vontade a dominar os procedimentos técnicos". Ao segundo, perguntava:
"ele deve substituir a marionete e perseguir esse papel auxiliar, que lhe recusa toda
liberdade de criação pessoal, ou deve fundar um teatro análogo ao que a marionete
soube conquistar, negando-se a se submeter à vontade do diretor de modificar a sua
naturezar", Ele mesmo respondia dizendo:

A marionete não quer se identificar completamente ao homem, porque o mundo que


ela representa é o maravilhoso mundo da ficção, porque o homem que ela representa
é um homem inventado, porque o tablado onde ela evolui é o espaço de harmonia
onde se encontram os fios de sua arte. Sobre seus tablados, é assim e não de outra
maneira, não de acordo com as leis da natureza, mas porque essa é a sua vontade, e
porque o que ela quer não é copiar, mas criar",

A idéia de marionetização em Meyerhold apresenta-se de maneira diferenciada,


eventualmente o boneco é referência para que o ator elabore o que ele considera es-
sencial: a construção de uma técnica particular fundada na expressividade do gesto e
do corpo. O ator, criador dessa nova forma de interpretar, distancia-se da cópia pura e
simples da natureza para chegar à harmonia plástica, à criação artística. Usa o boneco na
cena com freqüência; porém, como alegoria, figuração, metáfora da personagem que re-
presenta. Conforme Krisinski", "Meyerhold propõe um teatro sincrético e polifônico
qUê: integre o boneco, sem outorgar-lhe a função primordial de símbolo absoluto".
Com Maeterlinck, Jarry, Craig e Meyerhold é possível perceber a existência
de eixos, para analisar o trabalho do ator marionete. São tendências que por vezes se
apresentam profundamente imbricadas e noutros momentos parecem tomar rumos
distintos.
De acordo com Jarry, o ator é boneco com comportamento cênico e inclui
uma gestualidade desconcertante. O boneco é referência tanto para a construção da
personagem em seus textos dramáticos como para a interpretação.
Craig explora, através da marionete e suas múltiplas formas, as condições de
reorganização do jogo teatral em linguagem única, numa homogeneidade plástica,
em que o ator é tão somente parte integrante de uma totalidade mais ampla: o es-
petáculo. O ator inteiramente mascarado é quem pode concretizar essa forma de
Interpretar no novo teatro.
Já Maeterlinck desenha o perfil de um ator mediado pelo visível e o invisível.
O ator é o ser desencarnado, símbolo do homem submetido ao servilismo absoluto
de normas sociais estabelecidas.

S MEYERHOLD, Vsêvolod. Le théâtre de foire. In: PLASSARD, Didier. Les mains de lumiêre.
Charleville-Méziêres: Institut International de la Marionnette, 1996. p. 232.
9 MEYERHOLD,1996.
ISKRISINSKI, \Vladimir. Un desorden sofisticado. In: PUCK: el títere y las otras artes: cuerpos
en el espacio. Bilbao: Institue International de la Marionnette: Centro de Docurnentación de Tí-
teres de Bilbao, 1992. n. 4, p. 19.

o [,\.\J\(j J)O IL.1IRO J)[ ANJIUçio 287


1\)

Para M eyerhold, o Petrushka eventualmente é referência tanto para a encenação


qu anto para a formação do elenco. O diretor buscava a teatralidade e assim torna rela -
tiva a função do boneco, integrando-o à sim ultaneidade de outros recursos, fazend u -·"
colaborar com a polifonia cênica em qu e se con stituíam seus espetáculos.
Ma s é possível perceber um eixo comum n os autores estudados: a mari one-
te sempre aparece como síntese dessa nova forma de teatro, em que o espet ácu lo
se aproxima do cálculo matemático, obedecendo a re gras e normas de visib ilid ade
cênica, compreendendo movimento, cores, gestos, so ns , ritmo. Aí está a espeta-
cularidad e n o teatro apoiada na marionete, num momento da história em que o
teatro se rebela contra a encenação realista e a interpretação psicológica. Para esse s
dramaturgos e diretores, vale insistir, a marionete é referência, por vezes síntese d a
perfeição, rumo a essa nova forma de interpretar e conceber a arte do teatro.
No en sino do teatro de animação é relevante estudar as trajetórias desse s dra-
maturgos e diretores, porque demonstram a imp ortância do teatro de marionete ',
como caminho na formulação de propostas para um novo teatro, no qual as fron-
teiras en t re diferent es linguagens artísticas já eram tênues; evidencia um período da
história do teatro marcado pela inquietude, pela irreverência e pela rebeldia contra
as distintas formas de um teatro comercial.
Mamulengo - Em alguns estados d o N ord este brasileiro e mais especialmen-
te n o estado de Pernambuco, existe uma forma de teatro de bonecos conh ecida
como mamulengo!' . É uma art e praticada por artistas d o povo, homens sim p les,
vivendo em difíceis condições materiais, qua se todos anal fabet os, mas conhecidos
como "M estres ". São artistas, homens qu e fazem a "b rincadeira do mamulen go",
criam e detêm o conhecimento sobre como se faz essa arte; são os portadores d o
patrimônio t écni co , artístico e cultural d o marnulen go.
O mamulengo consiste em um teatro do riso. como o são tantas outras for-
ma s dram áti cas populares: " [... J n o mamulen go to das as inverossimilhan ças são
permitidas porque nada é real e todo o prazer decorre das convenções, atingindo
um realismo su perio r, mais verdade iro qu e o verdad eiro, porque é poético? ".
A es trut uração dram ática obed ece a um sistem a de pequenas peças ou pa s-
sagens não escritas, entremeadas por números de dança e por improvisações fei -
tas pela personagem apresentadora, conhecida como Simão , Tiridá, João Redond o.
Tratam-s e de espetáculos de estruturação arbitrária, as pas sagens acontecendo de
modo independente, sem muita preocupação de ligação ló gica ent re si. Embora se
constituindo de peças ou passa gens não escritas, o mamulengo pode ser considera-
do próximo ao "g êne ro revista", ou teatro de vari edad es, em que uma sucessão d e
pequena s passagens com assuntos cômicos, sociais, morais , religiosos se su ced em
como esquetes, incorporando ele m en tos qu e perten cem ao s gêneros dos mu sicai s
e ao gên ero do circo ':'.

I I Em Pernambuc o a mani festação é conh ecida como Mamulen go, porém no Rio Grande do

N orte é deno min ada J oão Redond o ou Ca lunga; na Paraíba, Babau ; na Bahia, Man é G ost oso.
BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e espírit o do ma m ulengo , Rio de Janeiro: Mine, In acen ,
1987. p. 55; PIMENTEL. Altimar de Al en car. O mundo mágico de J oão Redondo. Rio de Jan ei-
ro: Minc, Fundacen , 1988. p. 7.
11 BORBA FI LH O , 1987, p. 227.

U SANTOS, Fernand o Au gusto. Mam ulen go: um povo em forma de bonecos. Rio d e Janeiro:

Mec: Funartc, 1987. p. 142.

288 V ALI/O R N i x l BUJRA I/E


--,
,

Por constituir uma tradição cuja prática vem desde a época do Brasil-Colônia, pre-
dominantemente agrário e escravocrata, o mamulengo representa simultaneamente uma
dramaturgia e uma história de transmissão oral, emque foram sintetizadas personagens
típicas, temas, fórmulas e estruturas, as quais têm inspirado desde então inúmeras adap-
tações, e formas de expressão artística. Os mestres das várias brincadeiras pernambuca-
nas são também responsáveis pela criação de inúmeros versos e cantigas, expressões e
ditos que freqüentemente se tornam populares e podem persistir, tomando-se típicos!'.
A continuidade e preservação da arte do mamulengo estão intimamente liga-
das à transmissão oral, na relação que se estabelece entre mestre e aprendiz, sobre-
tudo a observação da prática, a forma de apresentar e "brincar" do mestre, pois estas
são as características que preservam e sustentam a continuidade da brincadeira. O
que é transmitido pelo mestre pode ser compreendido como "técnicas?" ou "estru-
turas materiais ou imaginárias", ou ainda, "técnicas codificadas de longa duração".
Para Eugenio Barba '\ técnica é a "utilização extracotidiana do corpo", e para falar
das técnicas codificadas refere-se a "princípios que retornam". Os estudos de Barba
concentram-se no treinamento corporal, na preparação psicofísica do ator, cuja his-
tória vai construindo um acervo composto de técnicas incorporadas por mestres do
ofício, ao qual o aprendiz e seu seguidor recorrem e que as utilizam.
Os mamulengueiros vivem processos bastante semelhantes. Por isso, rela-
cionar os estudos dessa arte com conceitos da antropologia teatral trabalhados por
Barba ampliará a compreensão dessa manifestação. O ensino do teatro de animação
no Brasil deve estabelecer como prioridade o estudo dessa arte, apoiando-se em
pesquisas, bem como na leitura e encenação de textos dramáticos do repertório do
Mamulengo recolhido por pesquisadores 17.
Nomenclaturas - É freqüente o uso de expressões como "teatro de mariorie-
te" , teatro d e b onecos,
n cc " ccteatro d e ±-ormas anima
. das" ," teatro d e o bijetos ""
, teatro
de animação" para designar essa linguagem. Muitas vezes essas nomenclaturas são
usadas como sinônimos, mas existem diferenças entre elas. Atualmente a expressão
mais aceita no Brasil é "teatro de animação", por se tratar de uma arte com a peculia-
ridade de animar a forma inanimada. É, de fato, a arte na qual a relação com a platéia
é mediada pela presença do objeto animado.

14 DUTRA, Patrícia Angélica. Trajetórias de criação do mamulengo do professor Benedito em

Chão de estrelas e mais além: ato, ritual arte e cultura popular. 1998. p. 180. (Dissertação) -
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianopólis, 1998. E possível registrar não só no Nordeste Brasileiro, mas em outras regiões
do Brasil, a trajetória de grupos teatrais que têm sua base de inspiração no mamulengo. Obser-
vando sua estrutura e elementos presentes na brincadeira recriam o mamulengo, apresentando
espetáculos originais, cujas referências são a arte dos mamulengueiros.
I; Em A arte secreta do ator, Barba e Savarese escrevem: "O modo como usamos nossos corpos

na vida cotidiana é substancialmente diferente de quando usamos em situações de representação.


Na vida cotidiana usamos uma técnica corporal que foi condicionada pela nossa cultura, nossa
posição social e profissão. Mas, numa situação de representação, o uso do corpo é completamen-
te diferente. Portanto, é possível diferenciar entre a técnica cotidiana e a técnica extracotidiana."
BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral.
Campinas, SP: UNICAMp, 1995. p. 227.
16 BARBA; SAVARESE, 1995, p. 27-58.

17 Refiro-me a BORBA FILHO, 1987; CANELLA, Ricardo Elias Ieker. A construção da perso-

nagem no [oão Redondo de Chico Daniel. 2004. 178 p. (Dissertação) - Programa de Pós-Gradua-
cão em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2004; DUTRA,
i 998; PIMENTEL, 1988; SANTOS, 1987.

o ['\\/'\1' no In/RO I)[LV/II\( jo 289


1.

Também existe m difer entes nom enclaturas para definir qu em é o pro fis-
sio na l que se expr essa co m a lingua gem do t eat ro de animação. Historicam ente,
" t it eriteiro" e "ma r io ne t ista" foram as ex p re ssõ es mais ut ilizad as. No ent ant o,
a partir de 1975 já se fazi am rupturas estéticas visíveis em relação ao t eatro de
bon eco s tradi cional , e co m o teatro gera lme nt e produzid o em escol as, bastante
conh ecido com o "t eatro de fantoche s". E "b on equ eiro" passou a se r a nomencl .i-
tu ra co rr ente. Mas lo go apa receram outras designaçõe s, com a jus t ificativa de q ue
"b o ne queiro" é a expre ssão mais adequada p ara qu em trabalha com o boneco do
ti po ant ropomorfo e, por isso , nã o aglut in a tendências ma is co nte m po râ neas da
lingu agem.
A den omin ação mais aceita foi "man ipu lado r", po rqu e cr editava a est e art ista
a res po nsabilidade da encenação. No entanto , muitos pr ofi ssionais da área passa-
ram a considerá-la inadequada, porque pr essupõe uma relação vert icalizada do ato r
so b re o boneco ou o b jeto. Tal visão não co nte mpla um aspe cto fundamental no
trabal ho desse artista: o diálogo entre a maté ria de que é feito o títere , os mec ani s-
m os de articulação e an imação, assim como as intenç ões do ator-animador. Ou seja,
a rel ação que se esta belece entre o artista qu e se expre ssa co m bonecos e obj et os
o u for mas anim adas é mai s complexa do qu e o sent ido da palavra "rnanipulado r"
co n fere a este artista. C erta mente por essa ra zão, mais recente me nte é comum o
uso de nomenclaturas co mo "ator-bo neq ue iro", "ato r-animado r" . Isso evidenc ia a
intenção de reafirm ar a co nce pção de qu e o artist a em qu est ão é ator, é int érpret e.
N o ent anto, ainda persist em as dú vida s qu e pairam so bre a denominação mai s
ade quada ao tr abalh o desse pro fissional. H á o entendimento de qu e o ato r-anima -
dor é um artista qu e en cena espetá culos expressand o-se com bonecos. E na realiz a-
ção desse tr abalh o, normalmente, con ceb e o texto : é dramaturgo; co nfecc iona os
bon ecos , os objetos, o qu e lhe exige co m petê nc ias para esculpir, pintar, costu rar:
é esculto r, pint or e fig uri nis ta; co ncebe e exec uta o cenário e mat eri ais de cena : é
cen ó grafo e aderecista; seleciona a trilha so no ra e, às vezes, compõe mú sicas para
o es pe táculo: é músico ; interpreta utili zando bonecos e objetos para represen tar e,
atualmente, é co mum extrapo lar os limites da "tenda" ou "palquinho" tr adicional
do s bo necos e atu a numa rela ção dir eta com o públic o: é ato r; diri ge o pr óprio es-
pet ácul o: é direto r; co ncebe a iluminação par a o espetác ulo: é iluminad or; levant a
os recursos financeir os e as condiçõe s materi ais para a realização do tr abalho, além
de divul gar e vender o espe táculo: é pr odutor; defin e o mat erial gráfico, tais co mo
programa e carta z: assim, também é artista gráfico.
C om o se vê, trab alh ar com teat ro de an im ação é at ividade qu e envolve o co-
nhecimento das práticas de outras pr o fissõe s, exigindo a realização de tarefas qu e,
me smo nã o tend o formação na área, os atores-an imado res precisam executar.
O s tip os mais comuns na co nfecção de bonecos são o bon eco de fio, mai s
co nhecido co mo mari onet e; bon eco de luva, popularizado co mo fan to ch e; boneco
de vara; marot e; boneco à tringle, bo neco de me sa ou balcão .
Boneco de fio , mais conhecido no Bra sil como "m arion et e" , é um boneco de
co nfecção e manipulação co mplexa, po rqu e, além de ter ent re cinco e 30 fios, é um
gênero que exige movimentos lentos e deli cad os , qua se sempre próximos dos movi-
men to s humanos ou an imais. Boneco de lu va , também chama do de fanto ch e, é sem
dúvida o gênero mai s popular do teatro de animação. A luva é a roupa do boneco,

290 F ALIIO R NiN I!JL U R.4.11[


a mão e os dedos do marioneti sta constituem o co rpo e fazem os movimentos d o
boneco . É conhecido co m o guignol (França), D Oi] Cristôbal (Es pan ha) , plfnch (I n-
glate rra) , karspel (A lema n h a), pulcinella (I tália) , petrusblea (Rú ssia) e nJJ)l1ul t'l1f',o
(Bras il) , para citar apenas algumas das formas mais conhecidas. No Orient e iam-
bérn é uma arte muito praticada, sobretudo na C h ina, local onde exi stem grandes
virt uos es no gênero. Boneco de vara, derivado d o Wayan g, é o bon eco tr adicional
da ilh a de J ava, na Indonésia, que é su stentado por uma vara principal que fixa sua
cabeça e manipulado de baixo para cima. Normalmente, o boneco po ssui uma se -
gunda vara em uma da s mãos. Marote é uma variação simp lificada do boneco de
vara . Trata-se de um boneco montado em torno de uma única vara prin cipal , pr esa
na cabeça. Não po ssui varas que controlem as mãos, mas um bom mari oneti st a
sem pre consegue tirar muitos efeitos, principalmente em cenas de dança e figura-
çõe s. Boneco à tringle: o riginá rio do franc ês tringle, tem uma vara, haste de metal
fixad a na cabeça e também apa rece com vara s de manipulação fixas num pé ou m ào .
Geralmente apre senta m ovimentos bruscos e rápidos. Boneco de mesa ou balcão:
manipulado por tr ás do corpo do boneco, o m arionetisra o apó ia numa me sa ou
balcão. Derivado do bunraleu japonês, é um boneco que exig e até três animadores
para sua atuação. Difundiu-se amplament e no Ocidente a partir da seg un da metad e
d o séc u lo XX, ori ginando div ersas variantes. A mais conhecida é a forma de teatro
em que o s marionetistas se ve stem de preto, atuam à vista do público e se tornam
quase invi síveis devido ao jogo de luz.
A expressão do boneco - inerte, o boneco é um objeto, e o que o transforma
em eleme nto teatral é a ação dramática, a interpretação diante do espectador. Ao
animar o boneco, o ator-bonequeiro também atua. É equivocad o pensar qu e quand o
o ator é defi ciente em seu trabalho de intérprete, pode se reali zar profissionalmente
no ca m po do teatro de an im ação, porque ali se t rabalha só co m as mãos. "D ificil-
m ente algu ém pode se r um b om titeri reiro se nã o for bom ator " I ~ .
Animar é transformar o objeto em personagem, e o qu e caract eriza o teatro
de an imação não é apenas o obj eto em si, tampouco seu desenh o, forma, peso , vo-
lum e e mat erial d e que é co ns t ruído, em bo ra esses elementos se jam determinant es
na sua animação e no processo de en cena ção do espetáculo. É a animação que faz
com que ele exist a, e só a açã o justifica sua presença na cena. A vida presente n o s
b on ec os cria uma ou t ra realidade, e isso se deve ao trabalh o do bonequ eiro. Por isso ,
é p o ssível afirmar que o boneco é a extens ão do corpo do ator- animador.
A animação não pode ser confundida co m a realiza ção de qualquer movim ento
do objeto em cena e nã o tem o brigato riamen te relação com qu antidade e intensida-
de de movimentos. O movimento sut il, mínimo, bem com o o am p liado, bru sco, o u
seja, todo tip o de movim ent o pod e fazer parte da animação , de sd e que tenha um a
intençã o. A aus ên cia de movimento também pode ser uma ação da personagem. A
animação dá a impressão de que o boneco tem autonomia, possui co nsciência, age
por vo n tade pr ópria. C omo afi rma Nicul escu , "[...] é imp ortante qu e as mar ion et es
pensem . Uma mari onet e qu e não pensa é uma marionete manipulada?" .

I, ER U LI, Brunella. Le dernier pas dépcnd du premier, In: PU CK: la marionnette et les aut res
ans. C harleville-Méziêres: In stitut Intc rnational de le Marionnctte, 1994. n. 7, p. 85.
I ~ Margareta Niculescu, então dir etora da Éco le Supé rieure National des Ans de la Marionnctte
em C harlevillc-M éziêres, Fra nça, em entrevis ta ao autor em 07 de dezembro de 1998.

o UNXO j){) rt.crt«. [)[ .1X I.tl . l ( A o 291


o aror-b onequeiro define e o rdena a seqüê n cia de gestos e açõ es q lW quali-
ficam a presença do obj eto/pers onagem. O desafio é produzir a impress ão I
num corpo qu e se enc ontra fora do seu próprio co rpo . O qu e qualifica a ,1 !l; \ , ,~.J L
é, portant o, a adequação dos m ovimentos, dos ges tos, das ações selec ionadas pe1r >
ator-animador e pela dir eção do espetáculo com o conjunto da obra.
Atualmente, os espetácul os de teatro de animação têm uti lizad o co m i' !uil.1
freqü ência a presença visível do ator-animador no espaço de atu ação, na ren .i . F
comum ver esp etáculos em que ele interpreta uma per sonagem e contracena co m
o boneco ; às vezes é neutro em cena, atuand o de m odo a valori zar a performanc e
do boneco. Re gistra-se ainda outra maneira, na qual, enquanto atua , estabel ece um a
relaçã o de cum p licidade com o boneco.
Assim, quando se toma como referência o teatro de bonecos com a est ética
da manifestação popular, ou aquele pertencente às grandes tradições , com o o M J -
mulengo, é possível constatar que o teatro feito atualm ente usa variados ll.1(' ; ; ) ~ clt-
expres são, abandona o boneco do tipo antropo rno rfo , romp e com o palquinho do
tradicional teatro de bonecos e se torna um teatro de animação bastante heterogê-
neo. Sua pr oximidade co m o ut ras lin gua gens artísticas, incluindo a dan ça, a mím ica,
o circo, o teatro de atores, as art e plá sticas e o esp etáculo multimídia torna esta arte
reconh ecid am ente mais con te m po rânea, porém heterogênea, distanciada d os có d i-
gos e registros que historicamente a torn aram conhecida do grande públi co.
A h etero gen eidade não elim ina as especificidades pr óprias de sse campo
artísti co , ao contrári o, ela merece de st aque no ens in o de ssa art e. C om o af irm a
Jurkowski, "[...] o teatro de títere s é uma arte diferen ciada do teatro de atore s
pela sua caracte rística mais fun dame ntal, ou seja, o su jeito que fala, qu e at ua, L'I
bon ec o] faz uso temporal de fo ntes de podere s voc ais e m ot oras qu e est ão [o ra
del e. não são seus atributo s pr óprios":". Essa diferen ça aparentement e simp lc-, ') '
revest e d e co m plexida de à m edida qu e o desafi o d o ator-animador con sist e em
animar a fo rm a inanimada, em tran spor suas em oções ao títere.
Princípios da linguagem - out ro aspe cto a ser prio rizado no ensino cit-ssa
arte é o conhecim ento de princ ípios técnicos para a animação de bon eco s e o bjetos.
Existem "n ormas", qu e vistas em conjunto e de forma interligada, definem pr incí-
pios da lin gua gem artística em estudo, co mo as list ad as abai xo.
A " econ omia de mei o s" - princípio que se utiliza do mínim o de recurso s
para reali zar determinada aç ão . Implica em selecio n ar os ges tos mai s ex pre ss i-
vos, o mo vim ento pre ciso , limpo, sem titubei o s e claramente definido. É co mo
compreender que "meno s vale mai s", o u seja, não é a quantidade de ge sto s que
gara n te a qualidad e da ação.
O "foco" é a defin ição d o centro das ate nções de cada ação. A noção de foco
pode ser exe m plificada em momentos em que o bonec o pr ojeta seu o lha r par a o
ob jeto o u per sonagem co m que co nt racena. Quando ex iste m diverso s b on ecos em
cena e apenas um está realizand o alguma ação, todos diri gem seu olhar ao qu e age.
Isso dá a no ção de foco, define o lu gar para o nde o públi co deve co ncent rar seu
o lha r.
O "olhar com o indicador da ação" - princípio que se realiza quando o bo neco ,
antes d o início de det erminadas ações, olha para o pont o exato de desl o cam en to .

2C JURKO WSKI, Henryk. Sobre el teatro de titeres. Bilbao: Concha de la Casa, 1990. p. 39.

292 \'.u \lOR N is : 8 U TR Ul r


Est e princípio também serve para d est acar a presen ça de um o bjeto em cena . A pre-
cisão do se u o lha r é determinante e ind ica ao es pec tado r o qu e deve ser obser ve ) ' J .
Isso requ er um movimento da cabeça am plo e definido, par a dar a sensa ção ,-k" . J
o boneco o lha. É comum ou vir d e ato res-bo ne que iros ex pe rie ntes que "o bo neco
olha co m a cabeça e não apenas com o o lho ".
A "t riangu lação" - recurso qu e se realiza co m o o lhar e colab ora para "dialo gar "
com o especta dor, fazen do-o "entrar " na cena. Trat a-se dee um "truqu e" e f etua do com
o olhar para m ostrar ao espe ctador o qu e aco ntece na cena, evid enciar a reação de uma
personagem , d est acar a presença de um objeto . O boneco interr ompe a ação co m o
objeto (co ngela) , dirige o seu olhar ao público, vo lta a olhar para o objeto e reinicia a
ação".
A "partitura de gestos e ações " - é a escrita cênica que detalh a a seqüência de
movimentos, ações e gestos de cada personagem no espaço, em cada uma das cenas
do espetáculo. A construção da partitura é criação do ator-animador em parce ria
com o diretor, o bedecendo a determinações das t écnicas de animação , à matéria
co m a qual foram confecc ionad os os b on ecos, às articulações da sua est rut ura físi ca
e à co nd u ta da person agem . Vale destacar ainda a vincu lação existe nt e entre os ges-
tos e ações do boneco co m o s princípio s esté ticos d o esp et ácul o. Portan to , a criação
da partitura d e gestos e ações nã o é criação alea tó ria d o ato r-bo neque ir o : sua cons-
t rução m antém est reitos víncu los co m a co nce pç ão do esp et áculo teatral.
O "sub tex to" é uma criação int ern a do ato r, pautada nas intenções de cada perso-
nagem, e que apóia a cons truç ão e apresent ação da partitura de gestos e açõ es. Con for-
me Pavis, é "[...] aquilo qu e não é dito explicitame nte n o texto dramático , ma s que se
salienta na man eira pela qual o texto é int erpretado pelo at o r. O subtexto é uma espécie
de come ntário efet uado pela en cen ação e pelo jogo do ator, dand o ao espe táculo a ilu-
minação necessária à boa recep ção do espet áculo?" . A cons trução do sub texto po de
funcionar como guia ao ator-bonequcir o para sustentar a atuação da marionete .
"O eixo do bon eco e sua manuten ção" - consiste em re speitar a estrutura cor-
poral e su a coerênc ia com a coluna vertebral do ser humano, ou obedece r à postura
animal quando a perso nagem é d essa origem. É importante apr oximar o boneco da
forma "natural" da perso nage m qu e represent a. Exige observar a posição das pernas,
co luna ve rteb ral, verticalidade d o corpo do bon eco quan do se trata de boneco do tipo
antro po mo rfo . Q uando o ator-bonequeiro não mantém o eixo co rpo ral do bo neco,
colabo ra para a perd a da credib ilidade da personagem em cena, porque evidencia qu e
ela est á sendo manip ulada.
"R elação fro nt al" - mantê-l a é atu ar de forma qu e o público não per ca de
vista a fa ce (m áscara) do boneco. Q ua ndo o b on eco reali za açõe s qu e escon de m
totalm ent e se u rosto por tempo p rol on gado é difícil manter o foco e a ate nç ão do
espec ta do r na cena. Ass im, a personagem perde fo rça e dá a impressão d e qu e vo lta
a ser o o bj eto o u a mat éri a da qu al o bon eco é co nfeccio na do.

21 Qu and o exist em dois boneco s dialo gan do em cena, um a das man eir as mais com u ns de realizar
a triangulação é fazer com que o bon eco q ue age e fala, olhe para o público enq ua nto é o bser-
vado pelo out ro bon eco, que permane ce im óvel. Ao terminar sua fala ou ação , devo lve o olhar
para o segund o e os papéis se invertem. Ou seja, o qu e age e fala, olha par a o púb lico enquan to (
observad o pel o o utro bon eco. Faz-se o triângulo: a personagem que atua, o pú bli co e a segunda
pers on age m . Isso também define o fo co da cena e capta a at en ção do espectad o r.
22 PAVI 5 , Pat rice. Di cionário de teatro . São Paul o: Per spect iva, 199 9. p. 368.

O [, \\/.\ 0 1) 0 [r.411<O J)[ .1.\"I.'I4 (, j o 293


"Movimento é fra se " - trabalhar com essa noção supõ e ultrapa ssar a idéia
de movim entar aleatoriamente o u sa cudir o b oneco em ce na. Implica em di ssecar
os movim ento s, faz endo a "po n tu ação " adeq uada, incluindo "ponto" e "vírg u-
las ". C ada ação t em seus m ovimentos realizados numa se q üência que implica em
finali zá-las para dep oi s ini ciar o m ovimento su bse q üe nte . Remete à n ece ssidade
de cuidar da finali za ção de cada ges tO ou ação. Ajuda a definir os diferentes ritmos
pre sentes em cada ação. Binômio s como ação- rea çã o , imobilidade-m ovimento,
sil ênci o-ruído, podem ser referências importantes para o ator-b onequeiro realizar
esse trabalho.
A " re spi r ação do boneco" - fa zer com que o boneco " res pire" cornple-
m enta a n oção de estar em m o vimento, de estar vi vo . Encontrar o movimento
justo para dar a id éia d e que o boneco re spira exi ge a ampliação d es se movimen-
tO, uma ve z que o bone co "respira" com o corp o int eiro Por isso , O ator-anima-
dor bu sca enco n trar o mo viment o ju sto, para dar ve racidade a essa respiração .
Muitas ve zes o b oneco " res p ira" em sintonia com a respiração do seu an imado r.
Muito s ges tOs são impul sionado s pel o ato de in spirar. As em oçõ es v ivid as pela
personagem-boneco tamb ém estão relaci onadas com a inspiração/ expiração: re-
a gir co m rai va impli ca em respirar de forma distinta à que o co rr e ao receber um
afago. É n ec ess ário lon go t empo de " co nvivê n cia" com o bone co para encontrar
o movim ent o justo. Trata-se de um moviment o dilatado, dif erent e do at o de
re spirar human o , m as fundam ental p ara dar qu alidade à sua atua ção. Quando a
re spiraçã o é feita ade q uadam ent e, o boneco parece vivo e sua atu açã o t orna- se
co nvinc en te.
A '''neutralidade' do ator-bonequeiro em cena" - E ste princípio t em gerado
muitas co nt rové rs ias, p orque é difícil con ceber a id éia de pre sen ça neutra na ce na,
um a vez que tud o o que está n o palco adquire sign ificado . A "neut ra lidade" é aqui
concebida co mo predi sp osição d o ato r-a nimado r para es t ar a ser viço da forma ani-
m ada, tornar-se "invisível" em cena, atenuar sua pres ença para valori zar a do bone-
co. Supõe eliminar ca re tas, sus p iros, olhares e eco no m iza r ges tos do at o r-an imado r
pa ra evide nciar as açõe s do boneco. Trata-se d e trab alhar com a no ção de con sci -
ênc ia de es tar em cena, o qu e ex ige m ovimento s co med idos, discretos, ele gantes,
su ficientes para que se remeta o fo co da s aten çõe s ao b oneco pr esente na cena e nã o
ao seu animador. Quando os ges tOs do ator-bonequeiro e sua pre sen ça são mais elo-
qü entes que a presen ça do b oneco, cria-se um dupl o foc o que desvalori za a cen a".
Quando o at o r-an im ado r conhe ce esses elementos, certamente realiza me-
lh or o se u trabalh o . Iss o o corre qu and o o ato r- rna n ip ulador está imbuído do qu e
diz Brecht : "[... ] há mu itos objeto s num só o b jeto":". Ou seja, ver além do apa-
rente, o lha r mais profundam ent e e ver a possibilidad e do m ovimento , o "v ir a se r"
co n t ido em cada o bjeto ou bon ec o. A t écni ca e a qualidade da anim aç ão nas cem
de sse tip o d e concep ção, aliada, naturalment e, ao exe rcí cio diári o, ao trabalh o
pa ciente e prol on gado.

23 Em O ator e seus duplos, Am aral dis cute esse tem a e propõe uma série de exercício s para a
com pree nsão e do mínio desses pr incípios técnicos. AMARAL, An a Maria. O ator e seus dup los.
São Paulo: Scnac : Edusp , 2001. 159 p.
2 ~ BREC HT apud KOUD ELA , In grid. Brecbt: um jog o de aprendizagem. São Paulo : Perspe c-
nv a, 1991. p. 80.

294 F., u /Ol< Ni»: H [ U kW[


Considerações finais

o ens ino do teatro de an imação deve privilegiar o aprendizado da mais peculiar


característica dessa arte, ou seja, a interpretação, a repres entação mediad a pelo objeto-
boneco. Ainda que seja indispensável para sua atuação, o co nhecimento necessário ao
trabalho de ator não é suficiente. Ser ator não significa, nec essariamente, ser ator-ani -
mador. A animação do objeto, incumbência prin cipal desse arti sta, exige o domínio de
técnicas e saberes que não são necessariamente do conhecimento do ator. Ao me sm o
tempo, é preci so salient ar qu e se o ator-bonequ eiro se confinar nas especificidades
dessa linguagem, dissociando- se do trabalho do ator, terá uma atua ção incompleta e
inadequada. Ou seja, o ator-animador não pode prescindir dos conhecimentos que
envolvem a profissão de ator.
É possível con siderar o te atro de animação como uma linguagem com regras
próprias, que estão em permanente proces so de transformação, podendo ser atu-
alizadas, recriadas ou superadas. Os acontecim entos mais recentes nos di stintos
campos das artes revelam mudan ças, evidenciando um movimento em direção à
ampli ação das formas de atuação que se mesclam com outr as linguagen s artísticas.
O ensin o do teatro de animação pr ecisa, ob viam ente, cons iderar essa realidade.
Eis algumas das proposições a serem co ns ideradas no ensino do te atro de ani-
maçã o. Mas é preciso repetir: essa atividade é relativamente nova nas universidades
brasileiras e as diversas experiên cias que vêm sendo reali zadas em distintas regiões
do país cert am ente co nt ribuem para o enriquecimento d o ensino dessa art e.

o [S.I IN O D O TL<fRO J)[ .;NJ.II A Ç.j() 295


11

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J-

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J OGO TEATRAL E CRIAÇÃO LIT ERÁRIA

Vilm a Campos dos Sant o, Leu e

o sistema d os jo go s teatrais de Vio la Spolin (190 6- 1994) está entre as abo r-


d agen s de aprendizage m teatral que traba lha co m a noção de q ue to dos são capaz es
d e atuar e pressupõ e que a habilid ad e d e comun icação cênica po de ser apre ndida , e m
co n t rapos ição à no ção d e talento inato.
Tal estru t ur a, ao propor uma ruptura com a noção de d om , é pertinent e para a
inclusão da esc rita liter ária enquanto hab ilidade que também pode ser desenvol vida.
Ao incluir o pape l do jogador-escrito r, po nh o em foco as intersecções e sim ilarid a-
d es ent re a esfera criativ a do escrever e d o fazer teatral.
Origina lme nte no s jogos teatrais, o s participantes são revezados em do is pa-
p éi s: "jogado res do palco " e da "platéia". To do s passam po r eles suces sivam ente.
m as não sim ultaneam en te, ou seja, enquanto os joga do res d o palco estã o P I H)C U-
pados em resolverem de te rminado pro blema cê n ico ou "fo co ", os jogador es da pla-
té ia, durant e o jogo, estão atentos ao m esmo para a "avaliação " po sterio r.
É a partir das ob servações da plat éia, da interação entre ela e os jogado res do palco ,
be m como do revezam en to ent re os dois papéis, que a aprendizagem teatral aco ntece.
Em A criação literária e o jogo teatral I , acrescento ao sistema de Spolin a figura
d o joga do r-esc rito r co mo terceiro papel. O conceito de dialo gismo do pensador rus -
so Bakhtin (1895-1975) fu ndame nt a o tr ab alho enquanto in ter ação entre os su jeitos e
o s textos, co nsiderando o ponto de vista do ou t ro para um a co ns trução próp ria.
C om o para os "jog adores do palco" e "d a platéia", h á uma troca suces siva. s()
que neste caso, enquanto alguns jo gam na área de jogo e o ut ros na plat éia avaliam,
uma ou mais pessoa s tr abalham co m a im agem d o jogo com o sugestão de esc rita. Em
um out ro jogo ou sessão de trab alho , aque le qu e escreve u se to rna jogador da platé ia e
palco, enquanto qu e um outro qu e assu m ira estes dois papéis ex pe rime nta a escrita.
O papel d o jo gador- escritor é est im ulad o a part ir d a d ispo nibilida de inicial
de um ou mais jo gad ores em exp erimentar esta nova posição do jogo. O texto o u
textos produzidos, a avaliação e o tornar o texto escrito objeto de novo s jogos im-
pulsionam outros jo gad ores a escrever.

J LEIT E, Vilma Ca mpos do s Santos. A criação literária c o jogo teatral. 2003. D issertação (M es-

tr ado) - Escola de Comunicações e Art es, Un iversidad e de São Pau lo, São Paulo, 2003.

299
Destaco o pro tocolo como procedim ento fundam ental durante todas as fases
do processo. O protocol o é o in staurado r do exercício da escrita. A materiali za-
ção dele com o ato criativo e como instrum ento dialágico numa prática strnulr ânc.i
revela-nos possibilidades iniciais de gêneros d e texto em d eterminado grupo c ;1
tran sformação desses textos no decorrer das sessões.
Podemos estab elecer pelo menos três fase s de trabalh o ne sse processo: jo gos
e protocolos com ponto de partida, te xtos de autores alheios ao grupo e a introdu -
ção do terceiro papel, o do jogador-escritor, ao jogo teatral.

Jogos teatrais c protocolos como ponto de partida

O protocol o é um procedimento que Brccht já incorporara ao jogo co m o


instrumento de avalia ção estética. A prática desse instrumento como propósito da
aprendizagem teatral tem se mostrado também como um exercício de apropriac.io
do ato da escrita. Cada je gador tem po ssibilidades de partir de gênero s que lhe são
mai s convenientes na escrita, sem se afastar da avaliação na linguagem teatral.
Como no s informa Koudela' durante a fase de experim entação do s Versu -
cbe, Brecht protocolava as reações dos participantes com preocupação científica de
compará-Ias e como subs ídios de avaliação, porque ele concebia as peças did áticas
co mo ponto de partida ou como experim ento s escritos em elos de uma mesma
cadeia.
Tenho procurado utilizar o protocolo como avaliação estética dos jogos e tex-
tos em jogo, bem como oportunizar o ato com o exercí cio de escrita criativa. Tod o s
o s jog adores avaliam cada sessão de trabalho. Relatando ou ficcionando. Em prOS;l
o u verso. Ao focar cada protocolo, col oco a materialidade de cada te xto escrito para
dialogar e int eragir.
Se inicialm ente os jogadores nã o qu erem escre ver, eles d esenham o u produ -
ze m imagens gráficas. O intuito ne ssa fas e é deixar cada membro o mais "livre"
possível para uma criação pes soal. A diferen ça é acolhida e bem- vinda .
É fundam ental fomentar o exercício constante, ind ependente de aparecer
mais ligado a uma de scrição contextual, ou de ser trabalhado esteticamente.
Emissão oral, recepção auditiva e at é a troca de textos escritos têm sido aç õ es
que garantem o não e ncaminhamen to para um diário íntimo, principalmente por-
que é necessário incentivar a interação e o diálogo entre os participantes.
Enquanto orientadora de uma ses são d e trabalho, tenho me deparad o com
a prática de incentivar o jogador a dizer ou mostrar o seu texto, en corajando .1
socialização. Ma s, por outro lado , cada enunciador do protocolo pode optar por
lima enunciação o ral e feita por ele, sel ecionando os tre chos qu e quer comunicar ao
gru po . É uma condução que preza o papel ativo de cada membro.
N o decorrer d o pro ce sso, quando os participante s ficam mais seg ur os de
su a enunciação pes soal , so cializ am os protocolo s tamb ém p or escrito. A co o-
peração vai se fa zendo pres ent e. Escrever e dizer protocol o s pa ssa também a
fazer parte do Jogo, e m bo ra num m om ento distinto e não sim u lt âneo co m o
jogo teatral.

2KOUDELA, In grid Dormien. Brecht: um jogo de apr endi zagem. Si o Paulo: Edu sp: Perspectiva,
1991. 176p.
s Para cada um do s jogadores é um dos asp ectos de cada sessão que chama a
atenção. Cria-se uma expectativa quando alguém vai dizer o seu protocolo porque
a há um di álogo entre eles. Esse olhar do "outro" alimenta o "eu" de cada jogador:
a
Ao olhar para trás do cam inho, percebo o qu ant o me confund i, m e embaracei nas
s linhas do s te xtos esc r itos no início da caminhad a. Havia uma preocupação em csc rc-
ve r. Só. Mai s nada. Acho que todos assim pen savam. Depois, gradativamente, isso
foi se tornando necessário, imprescindível. A s experiências, vivên cias e sensações
precisavam ser registradas; na memória se perderiam. O s textos flu íam , dançavam, se
so ltava m co m um a mai or 'facilidade' . A preo cupação não era mai s escrever [...] , mas
co mo escrever [...], como expressar tantas em o ções [...]. Como, na tela , saber as cu -
) res que se vai usar. C h egar para trás, olh ar a tela, comparar, fechar um pouquinho os
1 o lh os para perceber as nuanças , forma s, linhas, a composição! A escrita agora era um a
pintura. C uida dosa me nte pen sada, anali sada e reescrita (jogado r 12 - auto-ava lia ção
em 23 de abri l de 200 2).

N o relato an terio r, é perceptível a trajetória do jogador. A natureza esté tica


ganh ou importância. A diversidade de protocolos e os diálogos pr ovocados confi-
guram-s e em parâmetros dentro do próprio grupo, preparando o ob jetivo final, que
é a cria ção de textos de natureza literária a partir dos próprios jogos.

Apropriação lúdica de textos

Esc rever ainda aqui é um hábito que vai sendo exercitado no processo de ava-
liação es té tica da linguagem teatral (pro to co lo), mas que vai também se alimentan-
d o pe los texto s de autores alheios ao grupo, que passam a ser objeto de jo go. Est es
textos pod em ser de natureza diversa: em prosa o u verso, em diál ogos ou não.
Os jogadores são levados a familiari zar-s e co m procedimentos de sensibili-
zação do texto em jog o . Para tal apropriação, utili zo os procedimentos de Pupo':
todos caminham e lêem ao me sm o tempo; um pára, todos param de caminhar e de
ler; um caminha, todos continuam a ler e caminhar; caminhar e a um sinal enunciar
para alguém: próximo ou distante; ler para jogadores com olhos fechados etc.
O ut ros procedimentos de leitura e experimentação com o texto das práticas da
Prof", Dra. Maria Lúcia de Barros Pupo e da Prof", Dra. Ingrid Dormien Koudela' são
exemplares, entre eles: todos os jogadores numa roda virada para fora , cada um escolh e
uma passagem do texto e a retoma não simultaneament e, mas sucessivamente, em dife-
rentes ent onações.
A instru ção ness e o u em outros pr ocedimentos é a emissão "ao outro". A
en unciação para alguém. Na escuta ou no olhar. Cada enunciação como reação à
ação anterior, pr ovo cando o diálo go e auxiliando os participantes a saírem do "eu "
en qua nto grupo e irem a um "o ut ro" mais distante, presente na materialidade da
leitura do texto.

3 PUP O, Maria Lúcia de Souza Barros. Palavras em jogo. Texto s literários e teatro educação.
1997. 160 p. Tese (Livre-D ocência) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1997.
• Professora s e pesquisado ras da linha Teatr o e Educação da Escola de Comunicaçõe s e Artes da
Universid ade de São Paulo - ECA-SP.

J OGO 7L ITlu L [ CRl.1çA o L1JIJ(A RI.1 301


,

A o pção por trabalhar em um det erminado m omento do processo com


te xtos qu e podem ser também de autores consagrados é um elemento a mai s para
alimentar o papel do jogador-escritor que será introduzido na terceira fase do tra-
balho.
Quando os textos de autores diversos passam a ser objeto de jogo, percebe-se
uma transf ormação na silhueta dos protocol os. A escrita vem acrescida dos elemen-
to s lúdico s vivenciados na área do jogo. Há jogadores que arriscam protocolos em
verso s ou outros elemento s literários da pr osa que não se manifestavam quand o
estava em foc o o jogo se m es tím u los de fra gm entos ou textos escritos. A s alitera-
ções, rimas, enunciação de nomes próprios que não correspondem ao s verdadeiro s
do s jo gad ores, clamando por personagens passam a ser recorrentes. É uma tran s-
po sição para o univer so ficcional. Os protocol o s manifestam imag ens, anal ogia s
e metáforas, anunciando o momento de introduzir o terceiro papel ao jogo: o do
jogad or-escritor.

O papel do jogador-escritor

finalmente, jogadores da platéia são convidados a fazer alg o di stinto da


avaliação do jogo. O foc o dos vo lu n tários é regi strar ima gen s por es crito, en-
quanto um det erminad o jo go teatral acontece o u logo após a sua ocorrên cia, ao
m esm o pa sso que os jogad ore s da platéia o avaliam do ponto de vista da lin gua-
gem cênica.
A instrução dada aos parti cipantes é: não eSC1TV;l um texto inteiro, pronto, aca-
bad o. Parta de uma imagem, metáfora ou analogia que você faça com o pre sente desse
jo go. N ão o fereça uma reprodução do real. Não de um o qu ê, onde ou personagem real
que envolve os jogadores do palco, mas da s sensações ou imagens que tal foc o em jogo
pr o ', oca em você.
O s jogadores utili zam o jo go como uma imagem gerad ora no sentid o que lhe
dá Salle s enquanto pr ocesso de criação art íst ica: "As imagen s geradoras que fazem
parte d o percurso criador fun cionam, na verdad e, como sensaçõ es alimentad oras
da trajetória, pois são resp onsáveis pela manutenção do andamento do processo e,
co nseq üenteme nte , pelo crescim en to da obra '" .
Essa s imag en s são trabalhadas pelo jogador-escritor até a sessão seguint e (dois
dias, duas semanas, enfim , de acordo com a periodicidade de encontro do grupo). D e
posse do te xto escrito, este é copiado para todos os jogadores, a fim de que a enu n-
ciação não fiqu e apenas no nível da oralidade e para qu e se possa experimentar o texto
em um no vo jo go, similarmente ao s texto s de autores alh eio s que são trabalhados na
fase anteri or.
Para exemplificar o percurso do jo gador-e scritor n o terceiro papel, reproduzo
e anali so a seguir o texto In quietação, escrito a partir da ima gem "carro ssel" de um
parqu e d e div ersões, no jo go Um objeto move os jogadores('.

, SALLES, C ecília Alm eida. C esto inacabado. Processo de criação art ística. São Paulo: Anna Blumc,
1998. p. 57.
., SPO LI N, Viola. l mproui saçâo para o teatro. São Paulo: Perspe cti va, 1987. p.64 ; SPO LIN , Vio-
la.Jogos teatrais . O fichári o de Viola Spolin. São Paulo: Persp ectiva, 2001. p. A4 6.
Inqui et ação
1

Sab rina . inqui eta co m tanto calo r, levanta do sofá e vai at é o se u arrn ári." .
gavetas sem suce sso. Corre para o quarto do irm ão e tamb ém revira suas g ;1\' , l ' il ' ,; ,

não acha o que pr ocurJ. Vai at é o banheiro e o acha pendurado e molhado " T;'j'('

imp orta, afina l está quente e ela qu er se refr escar. Então vest e seu lind o l I, .
biqu íni ver de, co rre at é o pbyground e mer gulha co m sat isfação na min úscu h !' ;', C;nl1
de plásti co (jo gador-escrito r - 19/ 03).

É importante informar que a p er sonagem Sa b r in a (q ue não corn-xr- -. » j,1


nenhum n ome de jo gad or da turma) já vinha se fa zend o presente enqu l\II:( , . ,:.
nos últim o s protocolos da jogadora-escritora em questão, ma s lá eviden ciando ava-
liações estéticas de elementos reai s da sessão d e trabalho.
O s jo gadores da turma trabalh aram na sessão posterior co m o t ex r. ,'}j (l ft l '
ração na s m ão s, d e acordo co m o s procedimento s de apropriação sensíve l d o te xto
com o o s ap ontados em PUp Ol, já utilizados em t ext o s de autores terceiro s .
Nesse ex em p lo, co m o em outro s, o pro t o colo c ontinua reali z and o a s ua
fun çã o d e av aliaç ão es té t ic a da lin guagem t eatral e tamb ém contribui para o
desenv ol vim ento sen so rial e p o éti c o , estab el ec endo di ál o g o entre o t exto In -
quietação e os jogos. Evidenciam di álogo de relações e sen sações entre o jogo e
o texto:

Com o co rpo , 3 Sabr inas a representar


Eu fa ria, inqu ietação, se nsação de bem-e star
Levan ta, co rre , revira a procurar
Em um es p.1ço livre a br incar.
(jogad o r 11- pro to colo 14 d e 26 de março)

Ah! É você inquietação?


Q ue avança com o um fura cão
Q ue vem em minh a direção
Q ue abala minh a emoç ão
Q ue exp lode meu coração
D e tanta perturbação.
(joga do r 13 - pr otoc ol o 14 d e 26 de mar ço)

Sabrina? ou Sabrin as? Os lu gares? Onde? Inquietações? Ações? Quem ? Surgiu a


irmã de Sabrina? A piscina ? E o sofá qu e voa? Quan ta coisa um texto t r.is... F 11 g 0 rJl

que a auto ra viu o seu texto d ram ati zad o, ela vai reesc rever a no ssa Sab rina.
(jogado r 3 - pr o to colo 14 de 26 de março )

O s p rotocol o s dial o gam inclu si ve co m o po ema d e C ecília Meirel e s, C] l H' Fora


trabalhad o por ess e gr upo, quand o en u n ciam a movimentaçã o física : " 1.l'\';11 It 1, " ' 1'-

re, revira a procurar/ em um espaço livre a brin car". Os objetos tamb ém lI IIlIJ.II: () S

moviment o s emprestado s: "E o sofá que voa".

7 PUP O, 1997.

J O GO 7LA r RA l. I l.R l..' (.:; () l iILN A NI.4 303


o "e u" vai tã o em direção ao " outro" ("O coração ex p lo d e") , tanto qu ant o
o "o ut ro " in vad e o "eu ": "Ah! É você inquietação? Qu e avança como um furac;i( I ,
Que vem em minha direçã o".
Sabrina nã o é mais criação única de um jogador. Ela se materializa, se fi si c l iiL'\
e se tran sforma na "nossa Sab rin a" . O dialogismo, o u a interação ent re o s jo gC's ('
textos, permite qu e outros jogadores apropriem-se de Sabrina.
O s p onto s d e vista evide n ciados ou compartilhado s p or esse di alo gism o fa-
z em com qu e o jogador-escritor re escreva seu texto:

Um a típi ca tarde de um domingo de verão; a alta um idade do ar, o suor a esco rr er


sobre a pele já úmida, a roupa grudada no corp o...
O calor é tant o que até o sofá parec e ter calor própri o.
Sabrina, que ali está deitada, revira- se tentando achar uma posição mais co nfo rt áv e l,
mas o conta to dir eto da pele com o sofá plastificado pro duz pequenas p i ~ ~· " l . l", '. Iv
suo r qu e se espalham entre ele e ela.
Ent ão levant a-se, vai em direção à sacada e abre a porta de vidro que dá para o play-
gro und.
U ma brisa suave entra pela po rta, passeia pela sala e envo lve Sabrina em uma d elicio sa
sensação de fresc or e liberd ade, conduzind o-a para fora.
Recost and o-se no parapeito , vo lita ent re brisas e ruíd os in fanti s, procurand o em ga-
vetas anti gas algo que faltava o u talvez que não chega ra a ter.
Vozes, gritos, risadas e choros sempre se calavam com água, fosse de uma lágrima o u
de um mergulh o, de saliva ou de merc úrio.
A brisa agora ecoa dentro de gavetas vazias, passando de uma a Dut ra, silencios a,
confusa e perd ida.
De rep ent e: um ruído, e um chamado a tr az de volta, e Sabrina finalment e perceb e
que o que pro curava estava todo tem po ali. Com um lind o sorriso no ro sto, um bi-
quín i fof o a co mbin ar com seus olhinh os de esmeralda, molh adinh a a pingar to da a
sala, ela entra e co rre em direção a Sab rina.
Cari nhos amente as duas se abraçam e, em meio à água e ao suor que ali se mistura-
vam, o frescor e o calor se fund em em um único e verdadei ro sentimento (jogador-
escritor 2 - segunda versão de Inquietação).

O enco ntro acontece não só na narrativa ("ca rin hosame nte as dua s se ab raç am .
[...] se fundem em um único e verdadeiro sentimento") , mas também enquanto reali-
dade de trabalh o. O jogad or-escri tor teve percep ção para intera gir com os elem en to s
surgidos nos jo gos t eatrais, retrabalhand o-o s no texto. Os jogadores do palco e da pla-
téia também co nt in uam a int eragir, por m eio dos protocol o s, com o text o do jo gad or-
escritor: "Sabrina ficou mais legal onde es tav a mais viva a presença da irm ã. O texto era
m ais detalhista. Foi um texto um pouco difer ente, mas ainda era a Sabrina." (jogado r
4 - pr otocol o 16 em 9 de abril).
A Sabrina não é m ais "o eu " o u "o t ro ", ela é "o no sso" , ma s nã o como um a
m as sa indistinta. Imp orta men o s a auto ria, importa m ai s a co n t rib uiçã o pessoal e
única de cad a jo gador.
O dial o gismo acontece u na situ aç ão d e jo go e tamb ém com a sit uação d e es -
cr ita e reescrita, sob retu d o porqu e o jogador-escrito r p ôde o u vir diferentes versões

304 V IU \.' C \ .\ II'OS DOS S ANTOS L U TI


so b re a sua cria ção, sensibilizada pelo exercício do jogo e do pr otocolo. O protoco-
lo ampliou o rep ertó rio d os jogadores, avan çou a produção escrita.
No jogo, a interação entre os sujeitos leva à aprendi zagem da linguagem teatral
porque contribui para a so lução do problema ou foco. No presente proce sso, o proto-
colo foi ponto de partida para a intera ção ent re os textos e tornou-se objeto de apren-
dizagem escrita, na medida em que incentivou o exercício simultâneo e sistemátic o co m
a criação literária.
O s jo gadores puderam sentir-se mai s capaz es e interessad os em escrever. De-
talhamentos sens oriais dos jogos tamb ém aconteceram na escrita. Elementos poéti-
cos e narrativos foram se fortalecendo ne ssa tr oca de protocolos.
Podemos ter jo gadores na platéia cu ja fun ção é escrever a partir de uma ima -
gem , metáfora ou analogia do jogo. O texto Inquietação, po r exemplo, surg iu da
imagem de jogo. O texto não simplesmente sublinha, descreve o u relata o jogo . Ele
é uma imagem o u um a anal ogia que a jo gad ora fez. Esse processo foi "aqu ecid o" l '
"pr eparado" com o protocolo co ns tante em todas as sessões de trabalho.
Quando o texto criado pelo jogador-escritor volta para o jogo, os jogadores des-
co brem novos elementos ao brincar e trabalhar com o texto. Percebem que o texto de
um co lega é tão rico de po ssibilidades quan to o texto de um autor co nsagrado. Pontos
de vista são visíveis no jogo. Esses pon tos de vista diversos levam o jogador-escri tor a
reescrever o texto , numa manutenção do dialogism o ent re os texto s e ent re os própri os
interlocutores.
A segunda ver são de Inquietação é mai s detalhada e aprofundada do que a
prim eira porque pôd e dialo gar co m os jo gos e com out ros textos. O s eleme ntos
se nsoriais, por exemplo , torn am-se mais int en sos, assim com o de ve aco ntecer num
jo go teatral. A personagem do texto não se levanta do sofá aleatoriamente, são os
efeitos da alta temper atura descritos de man eira minu ciosa qu e a levam a ag ir. A
auto ra desta versão nos leva a enxe rga r, o uvir, che irar, pegar e sent ir o gosto .
Destaco, também desta segunda versão, element os simbó licos que foram tra-
balhados pela au tora a partir das imagen s de jogo. O eleme nto líqu ido é reit erad o
se ja pela água da piscin a, seja pelo calor que qu ase dissol ve os elem entos só lid os,
co m o o sofá. Outro eleme nt o simbó lico é o biquíni. Sabrina o procura, mas talvez
nem "chegara a ter " o traj e. A bu sca é pelo qu e o ob jeto biquín i represen ta.
Real e imagin ári o misturam- se em Sabrina e essa amb igüid ad e é out ro eleme n-
to interessante que o jogador-escritor consegue alcançar. Sabrina abraça a imagem
do passado, ela me sm a ou a irmã?
Esses res ulta dos nã o teriam sido po ssíveis se não tivessem o protocolo co mo
ponto de partida. Ele foi imp ortant e recurso de int eraç ão, um a qu e por meio dele
transformaçõe s textu ais acont eceram , com o, por exemp lo, a utili zaçã o do tex to
po éti co e depoi s a utili zação do personagem de ficção . O protocolo revelou que
o in strumento instaurad o por Brec ht para o jo go em m uito se aju sta à conce pção
dialó gica. "Ao almejar como fun ção ma is nobre dar conta do car áter estético d o
ex pe rimento com m odelo de ação (im age m el ou texto) , o pro to col o pr omove a
dial ét ica como método de pensamento '".

, KüUDELA, In grid D ormien . Brecbt na pós modernidade. São Paulo: Perspectiva, 200 1. p. 92.
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JOGO !L4FR4L [CRIAÇ10 UlTR.4RI.4 307


DOIS ECOS LONGÍNQUOS DE TAMBORES NA NOITE
ou
exercícios livres (o u seja, tratados com hum or) em torno das açõ es e liçõ es .I. d"i-;
dramas m odernos ped agó gicos, escrito s por alem ães da ex-RDA antes da queda do
muro d e Berlim

\'ííald er G eru ásio Virgulill o d e Soura

Uma parábola-diálogo com a infância do teatro

Um dia, numa Alema nha dividid a, conheci um espe ct ado r que era cego . A p reci a v;]
o teat ro de rua, mas não supo rt ava o teatro que se fazia em espaços fechado s. f>1I 1'111l'

ama va o fato de pod er deslocar seu olhar, em liberdad e, de um lado para o utro, pelas
praças em que os espetácul os de rua aconteciam ; porque ama va deslocar-se guia dc) P(H

SU2. mulher, espectado ra como ele, atraídos os dois pelas canções que os atores can t.iv.u u,
por suas vo zes múltiplas que surgiam ora daqui, o ra dali, vindas do alto ou de baixo, da
direita ou da esqu erd a.
Meu ami go cego (to rn am o- nos ami gos) revelou-me, então , qu e as imagens
cên icas se formavam d iante dele, em torn o dele - e le as "via"! - e se sen t ia, J.O me s-
mo tempo , part icip ando não so me n te co m os o u t ros espectador es, m as também
co m os at ores d e um úni co jo go te atral, do espetác ulo d e ru a. Er a um jogo cole t ivo ,
contou-m e, em ocio nante demais, ao qua l se sent ia co m p leta me nte integrado.

o jogo teatral do ponto de vista do espectador ou


olhares sobre aquele s que olham

- [. . .] E u sem p re vo u am aldi çoá - lo [o teatro] por perturbar a paz de minh a cas a


por tu a paixão imo de rada por este pr azer. [. .. ] disse a mãe.
-Mas qu e diferença qu and o es tamos senta dos d iante dela (a co rti na do t eatro)!
M esm o se tiverm os qu e esp era r mui to tempo, sabemos qu e ela se levantará e ve-
rem os as coisas mais variadas qu e nos distraem, nos instru em e no s elevam' .

Gostaria sem pre de falar (enquan to ator e professor) ou de esc rever textos

1 GOETH E. Les ann ées d'apprentissage de W/ilhclm Mcister. Traduit de l'allcmand par Jeanne
Ancc let- H ustac hc, Paris: Aub icr-Mo ncaigne, 1983. p. 44 .

.309
teórico s qu e pudessem fazer mex er meu s espectadores, alunos ou leit ores, o q ue
não quer diz er, necessariamente , qu e de sejo fazer com qu e pul em para a C(' )l1 , ; IH í -
tand o-o s a se levantarem de suas cade iras e agirem . M as, sim plesmente, L l >~ n - !IH' :;
(faze r- me ) refl etir um pouco m ais sobre nos sa condição de indivíduos c dar-n o s
con sciên cia do papel ativo qu e representam os em qu alquer tipo de fazer teatral.
Uma sit u açã o particular de minh a vida profi ssi onal , no entant o, lev a-n i.,
ne st e texto, a ini ciar minha viage m a partir da lembran ça do instante e m q ue
ret om o, a cada se mes t re, minh as at ividades de profess or do Depart am ento d e
Teoria da Escola de Teatro da Uni-Rio e tenho de es co lh er os textos t eatrai s que
trab alharem o s juntos, eu, na p o si ção de profess or-ator-teórico , e ele s, q u ase
meia centen a de rapazes e m oças, de idades as mai s var iad as, todos in gr cssanll' \
na Universidade , co mo alun o s- atores, teóri co s, diretores, cen ó grafos o u lic en-
ciandos em te atro . D esen vol verei aq u i exercíci o s em t orn o de doi s text o s ale -
mã es exem p la res, que tratarei co m o m od elos d o trabalho mais ampl o d e ( ()I] ' , -
cien t ização profissional qu e reali zam o s em ati vidad es co let ivas, numa sa la d e
aula vista se m p re com o espaço dramático, e em qu e no s revezaremos, profes sor
o u alu n os, o ra com o atores, ora co m o es pect ad o res d e um jog o te atral esp e c í-
fi co , que exi girá, de cada um d e nós , uma preparaçã o em total lib erdad e e uma
legítima at it u de lúdi ca.
Pod eri a, cert amente, centrar minha reflexã o , d esde o início, sobre a ma-
n eira co m o atores e es pec tad o re s parti cip am ju n t os do jo go teatral, ma s preferi
privil egiar, co mo o b jeto de minha s prim eir as o bserv açõe s, ape nas a co n d u ta e
as rea çõ es isolad as do s qu e o bse rvam o jo go d esempenhado pelo ator. E m doi s
livr o s qu e teo r iza m so bre o ass u n to : Les [eu» et les liom mes (0 5 jogos e os hu-
nu ns), de Ro ger C ailloi s, e Le [eu (O Jogo) , d e Ja cque s Henri ot , esses auto r es
se inte ress aram pela defini çã o e cl assifi cação da s co isas d en ominad as " jo gos" o u
p ela at ivida de ele " jog ar", co ns id e ra n d o -os prin cipalme nt e do pon to d e vis ta d o
jog ad or (o u d o ator, no qu e se refere aos jogos de sim u lacro ) e es qu ec iam o u só
atribuíam um a fu nção sec u n d ária ao jo go do espec t ado r, qu e é, po r s ua ve z , el e
t ambém um " jo gador ".
Par a Caillo is, o sistema do s jo go s apresenta quat ro tip o s diver so s, na m ed id a
em qu e nele s pred omine a fu nção d e co m pet ição, de acaso , d e simulacro o u d e ve r-
ti gem . N o jo go teatral, segu ndo o au to r, predomina o simulacro. Para designá-lo,
escolheu a exp ressão inglesa mimicry; qu e corresp on d e a " m imetismo" :

Encontramo-n os, então, diant e de um a série variada de manifestações que têm por
caráter comum apoiar-se no fato de que o sujeito acredita ser ou faz os outro s acre-
ditar em que ele é um outro qu e não ele [.. .] e [nestas manifestações] ele inventa um
mundo fictício.'.

(Tais jogos de simulacro] aparece m na criança sob a forma do jogo simbólico


e, no adulto, em to das as condutas psico- sociais que são a máscara, o pap el qu e
repre .i ta soc ialmente, o per sonagem' ,

C AILLO IS, Ro ger. Les [eu» et les hom mes. Paris: Gallimard, 196 7. p. 61 , 103.
H ENRI O T, Jacqu es. Le jelt, Paris: Syno ny m e, 1983. p. 46.
D e saída, uma distin ção se impõe. Apesar de o ator e a criança proporem uma
conduta associada a imagens, o ator, ao c ontrário da criança, sabe que ele represen-
t a para os outro s. E assim, de imediato, s urgem el ementos que são regras, limite s,
c o nve nções d o jogo, embora atuad o s com relativa lib erdad e. Em princípio, sent e-se
o b r ig ad o a apre sentar co nd utas id entificávei s, na m edida em q u e pretende comuni -
car-s e co m os o u t ros . A partir daí, o utro s ele m en tos vê m co m po r esta co m p re e ns ão
do que seja um jogo teatral. Atu almente, este tipo específi co de encontro d e se r es
human os está dividido em dois su b gr u p o s: espectadores e ato res, que juntos vão
participar de uma ati vidad e prática de ruptura com a realidad e quotidiana, em qu e
imagens de repre sentaçã o mental são con struídas e começ am a circ u lar da m an eira
mais econôm ica p o ssível ent re ele s. Trata-se de um ima gin ári o co m um simb ólico
que, num dado gr u p o so cial, pode tomar toda espécie de formas e de signifi caçõe s
s u ce ssivas. O jo go teatral vai se dar, exatamente, n o ponto d e tensão ent re a co m u -
nicação tota lme nte codificada e a m ai s livre inv enç ão. O qu e um esp ectad or per cc] '(
d o jo go do ator e vice-versa? Quais são o s sign os que percebem e o que con st roem
a partir do qu e percebem?

A atitude lúdica: uma visão de jogo como êxtase dinâmico do homem

(. .. ] C ada homem t raz em si a SUJ dose de ópio natural, ince ssant emente segregJda
e renovada; e do nascimento à morte, qu antas hor as podem o s co ntar cheias pelo ver-
dadeiro prazer, pela ação feliz e resoluta? Viveremos jamais, co nheceremos algum dia
esse quadro que o meu espírito pintou , esse quadro que se parece co nt igo ? [.. T .

Ma is um a vez de ve ser lemb rad o qu e essa missão [do ato r] é a de recre ar os filhos
r
de um a era cient ífica os espec ta do res] propor cionando -lh es o pr azer dos se n t idos
e a aleg ria. [... ] D o prazer sexual, ext raímos devere s co n jugais; () pr azer artíst ico
está ao serv iço da cultu ra, e aprender não sign ifica conh ecer aprazivelmenr e, mas,
sim, aferra r o nari z ao obje to d o conhecimento. Nad a do que fazemos representa
um esforç o ap razível, e, para justificarm os os no sso s atos, não invoca m os o qu e
go zam os co m is to o u co m aq u ilo , m as, sim, qu ant o suo r nos custou).

Torna-s e necessári o que os ato res e es p ectado res tenham consciência d o fato
de estarem juntos e jogarem junto s ao lon go do "espetáculo " teatral. Na verdade, só
há tro ca teatral qu ando estes d oi s su jeitos , o ator e O espectad or, podem compreen-
d er e ace itar a dim ensão d e seu próprio jo go e do jogo d o o ut ro. O ator é, ev id e n -
t emente, o primeiro a agir, cabendo-lhe a in iciati va d e jo gar, m as o jogo teatral só se
compl et ará ap ó s a inclu são da s reaçõe s do público .
N o entanto, em n ossos esp aços de jogo, estarão sempre incrustradas e pressu-
p o stas, nos gestos e atitud es do ato r o u do es pec tad o r, as cha nc es d e de senvol verem
as pectos secretos e misteri oso s de todo s os particip antes, qu e poderão e d everão ut i-
lizar sutilezas d e su as livres asso ciações, p ro venientes d o foro particular e do mai s

4 BAUDELAIRE, C harles. O convite à viagem. In: Pequenos poemas em prosa, Tra-


o

du ção de Aurélio Buarqu e de Holl anda. Rio de Janeiro: J. Olyrnpio, 1950, p. 58-59. (C oleção
Rub áiyac ).
; BRECHT, Ben olc. Pequeno organon para o teatr o (fragmento 75) . In: Estudos sob re o

teatro . Tradução de Fiarna Pais Brandão. Rio de Janeiro: N O\'a Fro nt eira, 1978. p. 133.

D oIS [C () \ f O ,\ (; I..\ { JI '() ) IJI: IA,I/ {i () k [ \ ,\ .1 .\ ( )I T [ 31]


íntimo de cada um . A ent rada no jogo é, portant o, este momento em qtle o ato r ou
o espe ctado r ficcionali zam o mundo real, isto é, aquele momento em que vivem atos
que aparentemente n ão pertencem ao real qu otidiano, mas a um mundo fictíci o, se-
parado. Para analisarmos o teatro enquan to jogo, devemos nos colocar sempre nest a
es pécie de entre-dois, nest a evidente zona de fronteira , de um real qu e pod e ser visto
co mo ficção, que pode ser vivido como falso , ma s que se admite, mesmo assim, com o
um pseudo-real (o u um verdadeiro real).
U ma outra característica da atitude lúdica é a incerteza. Segundo J. H enri o t,
aquela margem de indeterminação, qu e tornaria o comportamento dos jogad ores
totalmente imprevisível. N a minha opinião , o fundament o me smo do ato te atral
en qua nt o expres são coletiva de um gru p o d e pessoas , de uma turma de alunos de
uma dada sociedad e.
Expliquemos. Quando um aluno o u um ator entra em cen a, n o s exercício s de
cada aula ou de cada e ns aio, propõe ao es pec tad or o resultado parci al de um tr aba -
lh o paci ente de preparação de sua leitura de uma obra. C omo se t rata de um artista
em ensaio, vivendo uma situ ação experime ntal, o público presume que este ator, ao
qu al t eri a delegad o seu pod er de representar, es tá aprendendo a dominar técni cas de
sua arte e que ele lhe mo strará, com seu corpo e movimentos, ima gen s cujos por-
m en ores estarão se n do o b jeto de sua pesquisa em cena.
Trata- se, assim , d e uma aventura col eti va vivenciada por ato res e esp ectadores,
durante a qual se constituirão ima gens comuns. Uma avent ura que deve ser qu alifi-
cad a. segundo o fenomenol o gista jank él évitch, co mo "avent uro sa" , o qu e não tem
nada a ver com uma mera aventura "aventureira". Os ato res e espectado res aventu-
ro sos representam " [...] um verdadeiro estilo d e vida, enqua nto qu e os avent ure i-
ros não passariam de meros profi ssionais da s aventuras. [. . .] A s bai xas e inf eri ores
ave nturas aventureiras não passariam de ca ricat u ras das aventu ras ave nt uro sas?".
Esta avent ura impli caria, na verda de, numa osc ilação da co nsc iência en t re o
jogo e o sério. C ont inua o fen omen ologista:

Supr imam um dos contrários - o jogo ou o sério - e a aventu ra deixa de ser aWI1-
turosa. O ptando pela supressão do elemento lúdico, a avent ura to rna-se tragédia;
suprimindo o sério, a aventura vira jogo de carta s, passatemp o derris ório, aventura
fingidora'.

Da pseudopassividade do espectador à ocupação dos espaços


A nda, Luzia, pega o pan deiro e v em pro Carnava l. . .
Anda, Luzia, que esta tristeza lhe vai muito mal.

o trabalho de fato começa quand o di go aos alun os que o semestre em que no s


co n hec emo s será marcado por um a eno rme ave nt u ra avent uro sa pelo mundo das possi-
bilidades do teatro contemporâneo. Prop onho qu e a escolha dos te xtos seja feita, então,
d e aco rdo co m a nec essidade de cada tur ma e co m a possibilidade de cada um de nós
descobrir e experime n ta r, em nossas vidas e em no ssos corpo s, qu e o teat ro pod e não

" ] ANK ÉLÉVIT CH , Vladi mir. Eatrentu re , l'en nui, le s érteux. Paris: Aub icr-Mo nra ígne, 1963.
p. lO.
7 JANKELÉVIT CH, 196 3, p. 13.

3 12 \ \ '.4W [ R G [RU , /(I \ 'I RG I 'U XO J)[ S O L 7.;


ser nada do que conhecemos até agora; que houve muitos experimentadores de formas
novas, que abalaram e propuseram saídas, ao longo do século XX, tanto no mundo
da dramaturgia tradicional como no mundo da pesquisa de soluções (e revoluções) da
própria cena. Falo muito das novas formas de representação e não só das teorias da
representação de Aristóteles ou das formas de um teatro psicológico, que Antonin Ar-
taud enxergava como partindo das tragédias de influência jansenista de Jean Racinc.
Mostro o mundo das peças didáticas de Bertolt Brecht, da explosão crítica de seu teatro
nas mãos e na sensibilidade de Heiner Müller. Encorajo-os para que leiam muito sobre
as experiências de Artaud e de sua busca consciente de um corpo sem órgãos, de como
suas teorias foram retomadas e sistematizadas, na segunda metade do século XX, por
homens de teatro como J erzy Grotowski, Bob Wilson, Peter Brook. Incentivo meus
alunos para que entrem em contato com as obras críticas contemporâneas de brasileiros
e estrangeiros e que comprem muitos livros (não só peças) e discutam todas as formJs
do fazer teatral. Que leiam, se possível, como me recomendou um dia o diretor Amir
Haddad, uma peça (ou um texto teórico) por dia: Que questionem bastante o que lhes
ensinamos em nossa Universidade, que sejam capazes de dialogar com nossas diferen-
ças e tomem, por favor, sempre por base o lema da leitura infinita, que considero a
arma mais eficaz para determinar a escolha do teatro que querem fazer. Divido a turma
(refiro-me, ao longo deste texto, sempre aos 50 alunos que ingressam na Uni-Rio por
semestre) em grupos menores com sete ou oito integrantes e digo-lhes: "Cada grupo
deve buscar sua leitura particular, saindo de sua pseudo-passividade de espectador, ex-
perimentando com base no que vêm aprendendo nos palcos do 'mundo', nas salas de
aula, em que talvez sejam também professores e, principalmente, a partir da bela ou
triste história de vida múltipla de cada um". Imaginei esta longa introdução como um
exemplo da necessidade de que haja, além das experiências de cada grupo, uma proposta
de leitura e experimentação, ao longo do semestre, das peças oferecidas como temas
e formas de discussão teatrais possíveis. Na presente análise, ilustrando a questão "O
texto dramático na sala de aula", forneço algum material para reflexão a partir de minha
leitura pessoal - integrado às descobertas de cada grupo isolado - destes dois autores
alemães fundamentais. Ao longo de minha vida, descobri as linhas centrais de meu in-
teresse de estudo, as oferecidas pela cena alemã e as imaginadas pelo teatro brasileiro
a partir da dramaturgia de Nelson Rodrigues, bem como pelo teatro desenvolvido na
França em todos os tempos.

O diálogo possível entre Mauser, de Heiner Müller, e A Decisão


(Die Massnahme), de Bertolt Brecht, duas peças didáticas do século XX

N osso exercício tentará estar atento ao diálogo imaginário entre os textos de


duas peças didáticas do teatro alemão moderno.
A Decisão, de Brecht, é nosso ponto de partida. Escrita entre 1929 e 1930, após o
suicídio de Maíakovski, esta peça teve o mérito de descrever o problema fundamental do
socialismo "de que sejam sempre os melhores, em suas próprias fileiras - a elite intelectu-
al, portanto - que tenham de ser eliminados"!'. A Decisão tem a força destes grandes tex-
tos, destes tambores eloqüentes que, começando a ressoar já no final dos anos vinte do

, GOTSCHEFF, Dimirer, N ous maintiendrons le virus en vie. In: o Brectht apres la chute:
confessions, mérnoires, analyses. Paris: CArche, 1993. p. 28.

D()/~ ECOS Lo",ci.. \'OIOS 1JL 'J:4.I!HUR[) .\_1 .'.( .nt: 313
século XX, vão tornar-se documentos essenciais à compreen são do s anos hitlerista s que
virão a seguir e dos julgamentos sumários que ocorrerão ao longo dos anos stalinistas de
co ns tru ção da República D em ocráti ca da Alemanha - RDA, esta ent ão nova Repúbli ca
socialista européia.
Ma user é um eco lon gínquo de ste tamb or brechriano que bate na noite, o u
seja , da te oria e da prática de su as peças didáticas. Es crita em 1970 por Heiner Mül-
ler, ela é a t er ceira de uma sé r ie experimental, "sendo a primeira Philoktet (Filoc-
teto) e a segunda Der Horatier (O Horacian oi ?" e pode, talv ez , ser co ns id erada
co mo uma va riação em torno d e aspectos formai s e temáticos de A Decisão. Existe,
na Alemanha, esta tend ên cia a se trabalhar, de form a experimental, te m as trata-
d os anteriormente por outros escritores, a retomar criticamente o que chamam de
"antigas situações-modelo". Ali ás, é o pr óprio Müller que no s advert e, a propó sito
d e Mauscr , que nã o se trata de uma "peça de repert ório", ma s de uma peça experi-
mental. "Escrevi um a pe ça qu e, pelo assunto, é um a variação de A Decisão, o u um .i
continuação. [... ] Pr os sigo com esta peça a partir do momento em qu e A Decis ão
foi int errompida?" . O co nt eú d o das duas peças.

BR ECHT - "A Decisão mostra um tribunal do Parti do Comunista. A comissão de


cont rol e, encarnada pelo Co ro, deve julgar qu atro agitadore s qu e trab alh am na clandes-
tinidad e. No int ere sse da causa, foram ob rigados a sup rimir um quin to companheiro,
um jove m militant e qu e, sen sível e indisciplinad o demais, ameaçava o partido co m um a
ca tás rro te"" .
o C O RO D E C O N T RO LE - (... ) também ness e país a revolução es tá em marcha,
e as fileiras est ão o rgan izadas. Estamos de acordo co m vocês.
OS QUATRO AGITAD ORES - (... ) Queremos comunicar a morre d e um cama-
rad a.
O C O RO DE C O N T RO LE - Quem o m atou ?
OS QUAT RO AGITAD ORES - N ós o matam o s. At iram o s nele e o jogam os numa
min a de cal.
O C O RO D E C O N T RO LE - O qu e ele fez para qu e voc ês o mata ssem?
O S Q U AT RO AG ITA DO R ES - Muitas vez es fe z o qu e era certo, algumas vezes o
que era errado, ma s po r último coloco u em risc o o m ovim ento. Ele queria o ce rto e
fe z o errado. Exig imos sua se n te nç a.
O CORO DE CONTROLE - M ostrem-no s co mo e por que acont eceu e o uvirão
no ssa sen tença".

(U ma passage m do jul gamento de Brecht pela C omissã o de D efesa do go vern o do s


Est ado s Unid os).

') M ÜLLE R, He iner. Q uatro textos para teatro: Mau ser, H amlet-máquina, a missão, quart eto .
Apresenta ção de Fern ando Peixoto . São Paulo: Edito ra H uci tec: Assoc iação C ultu ral Berto lt
Br ccht, 1987. p. 21.
I: Ap ud MA IE R-SC HA FF ER, F. H eÍ Il eJ" M üller et la Lehrst ück: Bcrn e: P. Lan g, 1992 . p. 86.
11 Apud 13ET 2, Albrecht et aI. L étar d'urgence chez C arl Schmitt et La décision ch ez Bertolt

Brccht, In : STO RC H, \'Volfgang (D ir.). Brecbt aprês la chute. Confessions, m érnoi res, analyses.
Paris: CArche, 1993. p. 36- 37.
" BRE CHT, Bertolt. A decisão (192 9- 1930). In: o Teatro completo. Tradu ção de In grid
D orm ien Ko udela. Rio de J aneiro : Paz e Terra, 1988. V. 3, p. 237 .

BRECHT - Esta peça [A Decisãu] é uma adaptação de uma antiga peça religiosa ja-
ponesa, e é um a "peça did áti ca", Segue fielme nt e a narrati va o riginal e mo st L I .' :'_! 11

qu e se sac rifica por um ideal , che ga ndo ao po nto d e m o rr er po r ele.

ST RI PLING - Entâo , senho r Brecht, poderia co nfirmar à Com issão se é exaro '~. '(' um
dos per sonagens de A Decisão fo i assassinado por seus camaradas pelo bem d" !' . ' " l" .
do Part ido Comunista . ..
BRECHT - D e forma algu ma . ( . . .) Este rapaz, ao m o rr er, estava persu adi d o dI' ter
co loca do em risco a cau sa em qu e ac reditava, e ace itav a m orrer para não pr e judi car
ainda m ais o m ovimento. Por es te m oti vo, ped e a seus ca ma radas que o .u u-L " 1 1

mo rr er. E le se atira num precipício, depois de ter sido levad o até lá. É cs Lo. , : 1 '-

ria".

o J OVEM C AMARA D A - Meu co ração bate pela Revolu ção. Ela est.i ,I ' ,

Mas ago ra seria melh or se eu nã o exist isse. (... ) No interesse do co m u nismo/ De


acordo com o avanço da s ma ssas prol et árias/ D e todos os pa íses'; Afirm and u .\ rev o -
lu ção mun dial. (... )14 .

CANÇÃO DA ME RC A D O R IA
(.. .) O qu e é um hom em , afin al?
Eu lá sei o que é um hom em ?
(00') Não sei o que é um hom em .
Eu só co n he ço o seu preço.

MAS Q UEM É O PARTID O ? ( . . .)


OS 3 AG ITADO RES - O Part id o so mos nós.
Você e eu e vo cês - nós todo s. (00') '

O CORO DE C O N T R O LE
EL O CI O AO PARTIDO
O indiv íd uo tem dois o lhos .
O Pa rtid o tem milhares de o lho s. (... ).
O CO RO D E CONT ROLE - Não fo ram você s qu e p ronunciaram a sua SI'lll l'nça.
mas sim a rea lidade. (... ) .
OS Q UAT RO AG ITADO R ES - Então perguntam os: você est á de acordo ?

Pausa.

O J O V EM C A MARA D A - Sim, Vejo que sem pre agi errada mente. (.. .).
O C O R O DE CON T RO LE - Co m pree nsão da parte e co mpree nsão do to do :
Só en sin ad o s pela realida d e é qu e po demo s
Tran sfo rm ar a realidade" .

13BRECHT, 1988, p. 45-49.


14BRECHT, 1988, p. 260-265.
" BRECHT, 1988, p. 254 - 266.

Do t, [ CO \ L O.\' (,·J.\ Q l ·() ~ 1>[ IA I/ H( IRE.'> X·i <i n rt. 315


HEINER MÜLLER - "Mauser, por sua vez, expõ e também um "processo judicial "
em que "A", um revolucionári o experiente, ao co nt rário d o J ovem C amarad a, U Jl1

jove m mi litant e, é acu sado di ante d e um tribunal, no qu al de ve se di ze r d e ;ll"ord , )


co m sua própri a co nde nação à m orte. A última ce na de Mauser, a execução ti" "/\ ",
co rr espo nd eria ao ponto de partida da peç a de Br echt"! I,.

C O RO - (. . .) Você apl icou a mo rte n a cid ade de Wi t ebs ki


Aos in imigos da re vo lução, po r nosso enca rgo
Sabendo que o pão de cada dia da revolução
Na cidade de Witebs ki c om o em out ras cida des
É a m orte de seus inimi go s, sabe ndo qu e ain da
Precisamos arrancar a relva para qu e o verd e permaneça (... )
A- Cumpri a minha mi ssão.
CO RO - C u m p ra agora a sua derrad eira
A- Eu m atei pela revolu ção.
CO RO - M orra ago ra por ela.
A- Com eti um erro .
CO RO - Você é o er ro.
A- So u um ser human o.
CO RO - O qu e é isso ?
A- Não quero morrer.
C O RO - (... ) A revolu ção não p rec isa mais d e você. Ela precisa da sua m or-
te. Mas antes de d ize r SIM ao NÃ O qu e foi sente nc iado co nt ra você,
Nã o terminou a sua tar efa".

o "Coro" e "A" se tr atam por "você" e ficam assim mais à vo ntade para ex plicar
os motivos de suas ações e dec isões. E stã o to dos num plan o d e igualdade, ao co n t ra -
rio de Jl Decisão, em qu e os Quatro A gitadores falavam a uma instância su pre m a, o
Coro de Con trole. Esta modificação form al vai torna r po ssível a "A" se mo strar co mo
indi vídu o, no sen t ido psicológico ou m esm o psicanal ítico do term o. Se o per sonagem
quer fazer refe rê nc ia a sua ação enq uanto membro de um co let ivo, enquanto ins t ru-
m ento do Partido Comunista, de imediato passa a utilizar o tratamento "nó s".

A - (.. .) Co nt ra a dú vida qu ant o à re vol uç ão, não ha via


N enhum o ut ro rem édi o senão a m orte d o cé tico .
E eu n ào t in h a o lho s para suas n1<1O S
Q uando es tava di ante de meu revó lve r, d e ro sto virad o para a pedreira
Se elas es tavam o u não arruin ada s pel o trab alho
Estavam, sim, be m amarrada s com co rd as
E o matamos com a m inha mã o
Sabendo q ue o pão de cad a d ia da revolu ção
É a morte de seus inimigos, sabe n do que ainda
Tem os que arra nca r a relva para q ue ü verde fiq ue IS ( grifos n o sso s).

1( , A pud MAI ER - SC HA FFE R, 1992, p. 86.


I ~ Mü ller, 1987, p. 3-4.
IS M üller, 1987, p. 9.
A repetição deste refrão: "Sabendo que o pão de cada dia da revolução [. .. ] ,
sabe nd o que ainda tem o s que arrancar a rel va para que o verde fique " rem ete às
so luçõ es formais sugeridas pelo compositor Hanns Eisler para A Decisão que ,
segu nd o Albrecht Bet z, deveria ser uma espéci e de anti-oratório, uma inversão
de uma Paixão de Bach, principalmente da Paixão segundo São Mateus. "Tudo
que tem valor positivo no modelo cristão, isto é, a fé, a compaixão, o sacrifício ,
etc. mostra-se falso ", (pe rigoso) para o Jo vem Camarada e m otivo para sua con -
denação à morte pel o C oro de C ontrole de A Decisão. Em Mauser, o " pão de
cada dia " da oração cri stã torna-se o refrã o qu e anuncia na peça esta esp écie de
anti-Parábola do Julgamento Final , em que o ens inament o, a lição que nã o deve
ser esquecida, consiste em aceitar a condenação à morte de todos os inimigos da
revolução, mesmo na hipótese de o inimigo ser ele próprio.
O "Coro" e "N' repetirão esta lição doutrinária oito vez es em três ou quatro
páginas do conjunto do texto, justamente nas páginas destinadas ao aconteciment o
extern o, isto é, ao processo judicial. O restante das páginas, em torno de uma s dez
aproximadamente, tratará de tudo que se passa no interior do indivíduo, referente às
dúvidas do ser human o "A".

A - Ma s n o clam or da batalha, que havia c re scido


E cre scia ainda mai s, estava eu com as mJOS ensangüentadas
Eu soldado e bai onet a da revolu ção
E procurava com a minha voz por uma ccrte z.i '".

A (CO RO) - A m im , no entanto , os meu s se me lhant es co nd u ze m agora ao paredão


E eu que entendo isso não o ent endo
Por qu êr" .

Neste particular, devem ser lembradas as razões pelas qu ais Müller decidiu-se
pela retomada do tema de A Decisão. Mauscv é uma peça em qu e ele se interro ga jus-
tamente so bre a necessidade da violên cia a ser viço da Revolu ção . Em suas tr ês peça s
experimentais - Filocteto, O Horactano e Maltscr - investi ga a relação, no interior do
marxismo, entre humanismo e terror. Mauser , conforme o próprio Müll er o di z, é
"a práxis do comunismo que Brecht naturalm ent e não poderia conhecer em 192 0,
que ele se recusa a consid erar durante sua luta co nt ra o nazi sm o, mas que ele tem de
encarar de frente, em 1953, em seu retorno à RDA".

A peça didática brechtiana, uma forma revista por Müller

A peça didátic a é um exe rcício formal cumprido por u m Heiner Müll er em


busca de uma forma ad equada para suas peças. Müll er escrev e Mauser num mom ento
de crise , em qu e des confia da reação passiva dema is do seu son hado "novo público" ,
cuja participação ati va durante a experiência do espetáculo era, naqueles anos, su a
preocupação maior. Ele queria que este "novo público" se torn asse seu co-autor, con-
forme declarou no Prólo go de sua peça O Achatador de Salários, assumindo assim a

19 MÜLLER, 1987, p. 14.


20 MÜLLER, 1987, p. 16-1 7.

lJ O /\ [ (0\ LO ,\( ,f,VQ/ ' OI J)[ H lJHO R[ .\ .\!.. xon [ 3 17


tarefa d e encontrar a so luç ão do "co nflito en tre o Antigo e o Novo qu e o escritor f:
in capaz de resolver ":". Com Mauser; Hein er Müller colocava à prova, em 1970, a pril-
tica brechtiana. Segundo M ayer-Schaffer, esta peça , a última "do ciclo de experiências
destaca- se igualmente como a primeira d e uma o utra tril o gia". Primeira etapa de um a
recepção ativa, ela terá prosse guimento numa crítica mai s veemente, em 1977, co m a
peça H amlet-Máquina, qu e o levará, em 1979, até A Missão, um a peça qu e se po deria
qualificar com o mai s tipicamente mülleriana.
Por outro lad o , não se deve esquecer qu e, também em 19 77 , doi s an os antes
d e A Missão, Heiner Müller encenou o Fragment-Fatzer a partir de fra gmen to s da
peça Declínio do egoísta [ohann Fatzer, qu e Bre ch t começar a a esc rever no s an o s
1929-1930, mas não chegara a concluir. O Fragment-Fatzer contém elemento s de
toda a o bra de Brecht o u, pelo m enos, de toda sua utopia e, par a Müller, est e traba-
lho s ign ificou a reali za ção de uma monta gem que se situa nu m momento de cisi vo
d e s ua carreira, em que se enc o nt rava diant e da alternat iva: "de se nvo lve r um a no va
dram aturgia ou renunciar à escritura de pe ças teatrais. Não con si go enx ergar o u tra
saída":". Müller se sent ia num impasse provo cad o pel o "perío do de es tagnação" qu e
reinava em seu país.
Müller, por es ta época, perdera para se m pre sua cre nça em peças co m um fim
e revelara a importância d o interesse d o fr agmentári o:

Existe ainda qu em escreva peças com uma co nclusão . Estas peças me entediam, talvez
menos ao públ ico. [... ] Mas nest a hora qu e estamos vivendo, torna-se necessário uti-
lizar este instrum ent o para fazer o que lhe interessa, sem levar em conta o que possa
estar interessand o ao p úblico".

N esta me sma f ont e citada, Müll er retoma o t em a d o e te rn o re torn o, o u


se ja, d e q ue, para um t ex to ser eficaz, to rna -se n ece ssári o q u e se retrab alh e n el e
a lg u mas sit ua çõe s- mo d elo do pa ssad o. Se gu n d o o dramaturgo, o s Nibelung os
SJO um es boço de Fausto; Os Bandoleiros, de Sc h ille r; d e A morte de Danton,

de Bü chn er et c. P or es te motivo, a fá b u la d o Fragment- Fatzer, a des er ção de


quatro homen s d u ra n te a prim eira gue r ra mundi al , qu e ac redi ta m n a im inê nc ia
da rev olu ção qu e não virá jamais, será citada por Brecht em A peça didática de
Baden -Baden sobre o A cordo. E a m ort e d o J o vem C am arada será o p ont o de
p artida de Mauser.
Se o Jo vem Camarada de strói sua máscar a e os clássicos ("é tudo uma merda")
e se de cide a partir lo go para a ação ("po is o homem, o homem vivo, urra e sua mis éria
ro m pe todos os diqu es da doutrina"), "N', por sua vez, em Mauser; não hesitará também
em urrar e revelar su as dúvidas com relação às ordens do Partido. Ele se dirá um ho-
mem e recusará a co nde nação à m orte qu e lh e é impost a. São "atos de loucura" de d ois
p ersonagens que se identificavam com o Part ido e a atitude de "~' gan ha peso maior na
m ed ida em qu e é de scrito como um seguidor incond icio nal do Partido qu e co nhece o
preço da Revolu ção.
Esses doi s personagens , n o entan to, chegarão à m esma conclusão de Fat z er:

cl MÜ LLER apud IvlP: "ER-SC HAFFER, 1992, p. 83.


11 Apud MAIER-SCh ""FFEI" 1992, p. 128.
23 M ULLER, 1987, p. 7.

318 \V.U /J[ R CLR' .<lI " V IR(; (.l 1.\ ( /)[ So e-l.'
Para mim a guerra acabou,
vo lto correndo para casa.
Estou cagando para a ord em do mundo.
Estou perdido.

C u rio same nt e, a s it uação é a me sm a da p e ça A verdadeira história de Ah Q,


de Chri sroph H ein, outro autor contemporân eo alem ão, em qu e Wang e AhQ ,
do is prisi oneiros, es tão ta m bé m es pe ra ndo p o r uma revolu ção imin ente qu e
virá, m as qu e, ir oni cam ente , nã o os co nv ida rá para int egrar o n o vo go ve rno
revolu ci onári o .
F at z.er, co m o o J ovem C amarada, se rá assassinado por seu s co m pa n hei ros
por se tr atar d e um hom em qu e tem visõ es, de alg u ém qu e luta co n t ra o quoti -
di an o . "U m se r at ivo", seg u n do Dimit er G ot s ch eff, o diret or búl garo qu e, ': ' 11
1993 , m ont ou Fatzev n o Schaus p ie l d e Co lô n ia , em 'qu em ele vê uma represen-
taç ão d o gra n de

[...] dilema tragicômi co do socialismo. Tudo com eçou com Maiakovski [Não esque-
çamos que Brecht escreve A Decisão em hom enagem a Maiakovski] e Babel para
ati ngir, em seguida, enge nheiros, médicos, militares. O s indivíduos mais fon es for am
massacra dos, pois a soc iedade não pod ia suport ar que alguém pud esse for mular as
coisas de for ma difere nte, pudesse entrever o ut ras so luções, e tc.".

Em contrapartida, se Fat zer e o J ovem Camar ada são liquidad o s p or suas re-
açõ es espo ntâ neas, po r erros sucessivos at rib uídos à sua juventude e in experiência,
q ue co locarão em peri go o ut ras pessoas, "A" e o person agem d e A Miss ão scrào
esco lhidos, just am ent e, po r d et erem um a gra nde ex periênc ia.

CO RO
Você ["A"] lutou na fre nte da guerra civil
O inimi go não enco ntro u fraqu eza alguma em você.
Nós não havíamos enco ntrado fraqueza algu ma em você" .

A partir de um t exto de janeiro de 1977, Adeus à peça didáti ca, Müller se di z


a favo r do "derro t ismo co ns t r u t ivo" e nega a eficácia da lição . Para el e , o apoca lip-
se d e A Decisão ter ia "cad uc ado , a hi st ória dev olveu o pro ce sso p ar a a ru a, m esmo
os co ros sa bi do s de cor nã o ca n ta m mais, o hu m ani sm o quand o se m ani festa é
at ravés d o t errorism o , o co q uete l Mo lorov é o ú lt imo aco ntec ime nto ed uc at ivo
burgu ês"26.
M as, em 1988, M üll er ret orná cur iosa m en te à pe ça di dá tica. Esc rev e A Estra-
da de \'(Iolokolamsk (e m fra ncês, t rad uzida com o La Route des chars [A Estrada dos
Ta nques)), em que um p erso nagem , o Coman d an te, ob rigado a m at ar um "tra ido r",

2
J
GOTSCHEFF, 1993, p. 28.
2; MÜ LLER, 1987, p. 3.
2(. MÜ LLER, H ciner, Hamlct-machlne, H orace-Mauser-Héraclês 5 et autres pi êces. Traduits de

l'allcrnand par Jean Jourdcuil et H einz Schwarzingcr. Paris: Les Editions de Minuit, 1985. p. 68.
co ncre tiz a se u de sejo de libertar o condenado num so n ho que ele tem, e qu e co ns i-
d era um "movimento esp ontâneo de se u outro eu ".

E m se u uniform e m eu o ut ro eu
Queri a pedir perdão ao mono,
D esta morte que tinha sido m eu trabalho e7.

Conclusão: para que serve uma peça didática ?

Para Bre cht, peças didáticas são aquelas a serem interpretadas

[...] de forma idêntica a aluno s numa escola, at ravés de um a elocução voluntariamen-


te marcada, revendo sem cessar as passagens difíceis, para de scobrir seus sign if'c HJ ns
ou fixá-los na mem ória. Não são pe ças para se re m "vistas" pelo público tu":I , ' I ; I, " ,

teat ros - o públi co burgu ês - m as autênti co s exe rcíc ios dramáticos de st inados às
cria nças das escolas, aos membros de grupo s de jO\'em, de gru pos leigos, de assoc ia-
ções prole tárias e pr in cipalmente aos co rais ele t rabalhado re s.

É para instruir os participantes dessas colerivid.ides qu e ele propõe suas peças


didáticas, "na esperança de que ele s possam ser so cialm ente influenciados pela exe-
cução de modos bem precisos de a çâo"".
Segundo Bernard Dort, em seu ensaio Exercidos didáticos, Bertolt Brecht es-
tava radiante com estes co rais operários qu e chegaram a te r, na Alemanh ,l, m eio
milhão d e participant es, e insistia em que se deveria cham ar a atenção para a " Io r ma
d e ating ir o resultado, para sua exe cu ção , e nào para o re sultado deste novo trabalho
tea tral" :". Tornava-se necessário ofer ecer a esses co rais um novo repert óri o.
;.
I No qu e se refere à D ecisáo, por exempl o, Brcc h t dizia que esta pe !,;a nunca

l deveria ser rep resent ada , pois, in sistia, "só o int érprete d o Jovem Camarada pode
aprender com ela alguma coisa e, mesmo assim , se tiver representado também um
dos agitadores e tiver cantado no C oro de Control e":".
Quand o , em nosso s dia s, au tores contemporâneos do teatro alemão conti-
nuam a utili zar est e tip o de teatro épico por exc elência, cent rado na interrupção
con stante da ação dram ática por intérpretes q ue se perguntam so bre o sign ificado
de certas passagens de um te xto ou de uma can ção, podemos pen sar na gra nd e atu-
alidade d est a form a didática, longe d e estar definitivamente esgotada.
Para Müller, a peça didática é um trabalh o entre outros, "organizado pelo
coletivo e o rgan izando o coletivo ", cuja repres entação diante de um público só é
po ssível na medida em qu e esse públ ico tem a po ssibilidade de controlar o jo go com
, . ,

respeit o ao texto e o text o com respeito ao Jo go .


Voltam o s, então, a esta pre ocupação co nstante do teatro müllerian o , de um
teatro em qu e o público possa chegar a uma parti cip ação ati va, de um espetáculo em

27Apud M AY ER-S CHAFF ER, 1992, p. 115, .


2XBRE CHT, Bcrtolt. Sur la picce dida ctiqu c. In: ' Ecrits SUl' le th éâtre 1. Pari s: CArche,
1972. p. 341.
2" ])ORT, Bcr nard. Dc s cxerciccs didactiqu es. In: o Lccture s de Brecbt, suiui de pédagogie
et forme épique. Pari s: Seuil , 1960. p.76 .
': DORT, 196 0, p. 351.

320 W"'lI f) [ R GI.~H \I() I'IR (;/ 'I I ,\() f) [ Soiz»


que o público torna-se ator e em que todos atuam juntos.
Chegar-se-ia, assim, a uma repartição do texto propo sta a partir de um
esquema variável.
A exemplo de Brecht, Müll er sugeriu uma multiplicidade de variantes po ssí -
veis na distribuição de papéis: 1) o coro põ e à disposição do protagonista um intér-
prete do protagonista (Al); 2) Todos os membros do coro, sucessiva ou simultane-
amente, atuam como protagonista; 3) o protagonista fica encarregado de algumas
partes corais, enquanto Al o representa.
O jog o, consistindo, principalmente, em tornar pos sível a tod os os membros
do grupo uma transmissão coletiva das várias experiências.
Para transformar uma sociedade, é preciso compreendê-la em sua unicidade e,
ao mesmo tempo, em seu movimento, o que permitirá "analisar esta sociedade [. . .]
como o produto instável de situações individuais e de condições objetivas ":".
A comparação entre os dois textos revelou-nos um fen ômeno que no s in-
teressa particularmente: a conexão vital entre um texto que cita e um texto que se
descobre citado. O prazer de descobrir em Müller o eco longínquo de idéias suge-
rida s ori ginariam ente por Brecht, a emoção de desc obrir no di scípulo a possibili-
dade de faz er reviver, em textos novo s, uma inten ção o cult a, não explícita do texto
antenor.
Da ascese religi osa do Jovem Camarada às dúvidas de "A", em suas difi culda-
des individuai s para estar de acordo, podemos ouvir, enquanto leitores, um grito de
vida que passa de um indivíduo ao outro. E foi este grito de vida que nos contami-
nou a todos, professor e alunos (ato res e espectadores), na s apresentações de nossa s
leituras das duas peça s didáti cas alemãs.

51 DüRT, 1960, p. 9 1.
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322 IF.1W [ R (; [ RL is / O I'/" ' . / ·U S O 1)[ 5 0 / '7..1


SOBRE OS AUTORE S

ADILSON FLORENTI NO, professor, pesquisad or, mestre em Educação (1992) pel a
UERJ, doutor em Tea tro (2006) pela UNIRIO. É profes sor no Departam ento de
Interpretação Teatral da Escola de Teatro e do Pro grama d e Pó s-Graduação em Ar-
t es Cênicas da Universidad e Federal d o Estado do Rio de J an ei ro - UNIRIO.

A NTONIA PEREIRA, d ram aturga, diretora teatral, pesquisad ora, mestre (1995) e dou-
to ra em Letras Modernas ( 1999) pela Universid ad e de Toulou se 11. É professora n o
Departamento de Art es C ênicas e no Progr ama de Pós- gr adu ação em Art es C êni-
cas, na Universidade Federal da Bahia - UFBA.

A RÃo P ARANAGu A DE SANTANA, pr ofessor, p esquisador, m estre em Edu cação p ela


U nB (1983) , dourar em A rtes (1999) pel a ECA-USP. É professor do Departam en to
de Artes da Univer sid ad e Federal do Maranhão . Líde r de gru po de pesqui sa Ensin o
do Teatro & Pedago gia Teatral (U FMA -CNP q). Autor d o livro Teatro e formação
de professores (ED U F MA, 2000 ) e coo rdenador do livro Visões da ilha - apo nta-
m entos so bre teat ro e ed uc ação (U F MA, 2003 ) .

BEATRIZ C ABRAL (BIANGE), direto ra te at ral, m estre em Art es ( 1984) pela EC A- U Sp,
d outora em Teatro ( 1994) pela U niver sit y o f Cent ral En gland. É profe sso ra n o
Departamento d e Artes Cênicas e no Progr am a de P ós-gradua ção em Teatro , na
Uni ver sidade do Esta do de Sant a Cata rina - U D ESC. Auro ra do livro O drama
como método (H ucitec, 2006) e organizado ra do livro Ensino do Teatro: experiências
in terculturats (C A PES/ U F SC, 1999).

CAIUvIELA SOARES, professora, atri z, mestre em Teatro (200 3) pela UNIRI O. É pro-
fessora no Departam ent o de Interpretação Teatral da Escola d e Teatro da U niversi-
dade Fe deral do Est ado do Rio de Janeiro - UNIRIO o nde at ua na licen ciatura.

ELEONORA FABIÃO, atri z, perform er, mestre em Hist óri a da C u ltura pela P U C-Ri o
( 1997), doutora em Es tu dos da Performance pela N ew York Unive rs ity (2006) . É
professora do Curso de Direção Teatral da Escola de Comun icação da Uni ver sidade
Federal do Rio de J an eiro (U F RJ).

EUA DEANDRADE, diretora teatral, mestre (1996) e doutora em Teatro (2005) pela UNI-
RIO. É pro fessora no D ep artamento de Interpret ação e no Programa de Pós-graduação
em Artes Cê nicas, na Universidade Fed eral do Estado do Rio de Jan eir o - UNIRIO.

F LAVIO D ESGRANGES, d ire to r teatral, professo r, mestre em Ed u cação pela UFf


(1995) e doutor em Ed uc ação (200 I ) pela U SP. É professor n o D epa rtam en to de
Artes Cênicas e no Pro grama de P ós-Gradu ação em Art es Cê nicas da ECA-USP
Autor dos livros Pedagogia do Espectador (H ucitec, 2003 ) e a Pedagogia do Teatro:
provocação e dialogismo (H ucite c, 2006 ).
GI LBERTO Icu, ato r, mestre (2000) e dou tor (2004) em Educação pela UFRGS. É pro-
fessor no Departamento de Ensino e Currículo, da Faculdade de Edu cação da UFRGS.
É diretor do Núcl eo de In vesti gação Usina do Trabalho do Ator, em Porto Alc~re, c
autor de diversos arti gos no Brasil e exterior, além dos livros Teatro e construção de co-
nhecimento (Mercado Aberto, 2003) e O ator como xam d (Persp ectiva, 2006).

GI LSON M OTTA, cen ó gr afo, pesqui sador, m estre ( 199 5) e dou tor (2000) em Filo so -
fia pel a UFRJ. É professor no Departam en to de Artes da Uni versidade Federal de
Ou ro Pr eto.

INGRID D ORMI ENKOUDELA, diretora teatral, professora, pesqui sadora, me stre (1983) e
doutora (1988) e livre-do cente (1997) em Artes pela ECA-USP. É profess ora colab o-
radora no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP Autora dos
seg uintes livros, entre o utros, Jogos Teatrais (Pers pectiva, 1990), Brecht: um jogo de
aprendizagem (Perspectiva, 1991') e Brecbt na pós-modernidade (Perspectiva, 2001 ).

J OSÉ DAC OSTA, diretor teatral, pesquisador, m estre em Teatro pela UNIRIO ( 1997),
doutor em Lit eratura C omparada (2003 ) pela UERJ . É pr ofes sor no D epartam ento
de Teoria do Teatr o e no Pro grama de Pós- gradu ação em Artes C êni cas, na Un iver-
sidade Federal do Estad o d o Rio de Jan eiro - UNIRIO.

J OSÉ LUIZ RIBEIRO, ator, diretor de teat ro , mestre e m Teatro pela U NIRI O (1992),
dout or em Comuni caç ão e C ult ura pela UFRJ (2 00 1). É professor do Departamen-
to d e Co mu nicação e A rt es da Universidad e Fe de ral de Juiz de Fora (U FJ F) .

J OSF T ONEZZI , ator, pro fes sor, mestre em Educação pela UNICAMP (2003) , do u-
tor em Teatro pela U NIRI O (2008) . É pro fessor do D ep art am ent o de Art es da
U ni ver sid ad e Federal da Paraíba (UF PB) . A u to r do livro Distúrbios de linguagem e
teatro: o afásico em cena (P lex us, 2007) .

LUCIA H ELENA DE FREITAS (G yata) , profes sora, m estre em Educação pela UERJ
(1995), doutora em Teat ro pela UNIRI O (2005) . É pr ofessora no D ep artam ent o
de Interpreta ção Teatral da Escola de Teatro da Universidade Fede ral do Es tado do
Rio de Janeiro - UNIRIO o nde atu a na licenciatura.

LUIZ HUMBERTO MARTINS ARANTES, historiador, dramaturgista, me stre (1999) e


dou tor (2003) em Hist óri a da C ult ura pela P UC -SP É profe ssor no Departamen to
de M úsica e Artes Cê nicas e do Pro gram a de P ós-Gradu ação em A rtes, na Un iver-
sidade Federal de Uberlândia - UFU. Autor do livro O teatro da memória: história e
fi cção na dramaturgia de J orge An drade (A n na blu me / FA P ESP, 2001 ) e organi zad or
do livr o Perspectivas Teatrais (ED U FU , 2005 ).

324
M ARCIA POMPEO N OGUEI RA, professora, mestre em Artes (1993) pela ECA/USP,
doutora em Teatro na Universidade de Exerer, Inglaterra (2002) . É professo ra n o
Departamento de Artes Cênicas e no Programa de Pós-graduação em Teat ro , na
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC - onde atua, tanto na gradu -
ação como no mestrado, na área do Teatro para o Desenvolvimento de Comuni da-
de s. Coordenou o Grupo de Trabalho nesta área nos dois últimos Con gresso s da
A ssociação Internacional de Drama e Teatro na Educação - IDEA. Autora do livro
Teatro com meninos e meninas de rua (Perspectiva, 2008 ).

M ARIA BEATRIZ M ENDONÇA (BYA BRAGA), atriz e diretora cênica, mestre em Estud os
Literários pela UFMG (1995), doutoranda em Teatro pela UNIRIO. É professora no
Departamento de Fotografia, Cinema e Teatro da Escola de Belas Artes, na Universida-
de Federal de Minas Gerais - UFMG. Coordenadora artística do GRUPA (G rup o de
Pesquisa-prática em atuação) na UFMG. Coordenadora Adjunta do FIT-BH 2004.

M ARIA LUCI A SOUZA DE BARROS P u r o, professora, pe squisad ora, me stre em Artes


p ela ECA-USP ( 198 1), doutora em Teatro pela Universidade de Pari s 111 ( 1985 ),
p ó s-doutora pela E sc ola Normal Sup erior d e Paris-França ( 1996) . É professora n o
D epartamento de Artes C ênicas e MARIANA OLIVEI RA, atriz, professora, me stre em
Teatro pela UNIRIO (2006). É professora de Teatro do Colégio de Apli cação da
Univer sidade do E stado do Rio de Janeiro - UERJ.

M ONA MAGALH Ã ES, atri z, caracterizadora, mestre em Ciência da Arte (2004 ) pela
UFF, doutoranda e m Letras - Semi ótica Pl ásti ca pela UFE Esp eci alista pela Lo s
An geles Sch ool o f Make-Up, É pr ofessora no D epartament o de Interpretação d a
Es co la de Teat ro n a UNIRIO. Caracr eri zad ora do Grupo Galpão.

N ARA KEISEIUvI AN, preparadora corporal, atri z, diretora teatral, mestre em Artes pela
E CA-USP ( 1986), d outora em Teatro pela UNIRIO (2004). É professora no D e-
p artamento de Int erpretação e no Programa de Pó s-graduação em Artes Cênicas,
na Uni versid ad e F ed eral do Estado do Ri o de Janeiro - UNIRIO.

N ARCISO T ELLES, ato r, professor e diretor, m estre ( 1999) e dou tor (2007) em Teatro
p ela UNIRIO. É professor no Departamento de Música e Artes Cênicas e do Pro-
grama de Pós- graduação em Artes, na Universidade Federal de Uberlândia - UFU.
Autor do livro Pedagogia do teatro e o teatro de rua (Mediação, 2008) e organi zad o r
dos livros Teatro: ensino, teoria e práti ca (ED U F U , 2004) e Teatro de Rua: olhares e
p erspectivas (E-PA P ERS, 2005 ).

R ENA T AVARES, pro fessor, me stre em Comunicação e Cultura (1980) pela ECO -
UFRJ , doutor (198 5) e p ós-doutor ( 199 7) em Teatro pela Univer sidade de Pari s III.
É pro fessor na Esc ol a de Enfermagem e no Programa de P ós- graduação , M est rado
em Enfermagem, na Universidade Federal do Estado do Ri o d e Janeiro - U N I R I O .
Autor do livro Teatro Oficina de São Paulo: seus 10 prim eiro s anos (Yendis, 2006)
e o rganizado r do livr o Entre Coxia s e recreios - recortes da produç ão carioca sobre
ensino do teatro (Yen dis, 2006).

325
RICARDO J API ASSU, professor, pesquisad or, mestre em A rtes pela ECA-USP ( 1999)
e dou ro r em Edu cação pela USP (2003) . É professor do D epartamento d e Edu cação
da Universidade do Estado da Bahi a, em Valen ça, Autor dos livros Met odologia do
Ensino de Teat ro (Papirus, 2005) e A lin guagem teat ral na escola ( Papiru s, 2007) .

SARA LOPES, preparadora vocal , direto ra de cen a de ó pe ras e mu sicais, me stre em Ar-
tes pel a UNICAMP (1993) , doutora em Artes pela ECA -U SP (1997) . É professo ra
no Ins ti tu to de Artes e no Program a de P ós-Gradu ação em Artes da UNICAMP.

VA LMOR N ÍNI BELTRAME, bonequ eiro, diretor teatral, me stre (1995) e d ou tor em
Artes (200 1) pela ECA-USP. É profe ss or no D epartam ento de Artes C ênicas e no
Programa de P ó s-graduação em Teatro, na Universidade do Estado de Santa C ata-
rina - UDESC. Pesquisa distintas forma s de teatro d e an imação .

VIU,IA C AMPOS DOS SANTOS LEITE, dire tora teatral, atri z e profe ssora, mestre em
Artes (2003) pela ECA-USP e doutoranda no Pro grama de Pós-Graduação em
Hist ória d a UFU. É pr of essora n o Departam ento de Mú sica e Artes Cên icas, na
Uni versid ade Fed er al de Uberl ândia - UFU.

\'11 ALDER G ERVASIO VIRGULI NO DE SOUZA, professor, pesqui sad or, mestre em Letras
pela U FRJ ( 1992), mest re ( 1995) e d outor (200 2) em Teatro pela Univer sidad e de
Paris III. É professor no D epartamento de Teoria do Teatro e no Pr o grama de Pós-
graduação em A rtes Cênic as, na Uni ver sidad e Fed er al do Est ado do Ri o de J an eiro
- U~IRIO.

326

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