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Sena
O Século de um Intelectual Indispensável
8937b611-0671-4e47-900b-ba78d0ac1bf7
Jorge de Sena
O século de
um intelectual
indispensável
Uma série de trabalhos
que reflectem a diversidade
da obra e a riqueza
do pensamento de
um dos mais influentes
intelectuais portugueses
do século XX
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
ÍNDICE
A política em Sena
António Araújo
LER ARTIGO
O crítico prodigioso
Joana Meirim
LER ARTIGO
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
O poeta em Sena
Joana Matos Frias
LER ARTIGO
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
A política em Sena
Apesar de ter dedicado ensaios eruditos a figuras como
Maquiavel, Rousseau ou o admirado Marx, Jorge de Sena
não desenvolveu propriamente um “pensamento político”
sistemático e estruturado nem articulou uma concepção
ideológica singular ou especialmente original.
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
“N
ão sou prostituta, nem pederasta público, nem chefe
comunista, nem director de editorial, nem seareiro, nem
vértice, nem o diabo”, escreveu Jorge de Sena a Eduardo
Lourenço, em Junho de 1967, numa recorrente e quase
obsessiva proclamação da sua independência de carácter, que era,
segundo ele, a causa maior para que a pátria tardasse em reconhecer-lhe
o talento, genial e imenso. Na ausência de louvores alheios, o próprio se
encarregaria da solitária tarefa de cuidar do ego, informando Lourenço:
“Eu não preciso que ninguém me diga que sou um dos maiores poetas de
língua portuguesa, um dos contistas mais originais, um dos críticos mais
importantes, autor de algum do teatro mais significativo do século.”
A conturbada relação do poeta com o seu país, agravada por um longo
exílio de quase duas décadas no Brasil e nos Estados Unidos, dominou
por completo o modo como Sena encarava a realidade política, a nacional
e mesmo a estrangeira. Todos ou quase todos os seus “textos políticos”
versam sobre Portugal, desde os artigos contra o “rato” Salazar, saídos
nas páginas do Portugal Democrático, jornal da oposição portuguesa
publicado em São Paulo, ao discurso proferido na Guarda em 1977,
nas comemorações do 10 de Junho. Apesar de ter dedicado ensaios
eruditos a figuras como Maquiavel, Rousseau ou o admirado Marx, Jorge
de Sena não desenvolveu propriamente um “pensamento político”
sistemático e estruturado nem articulou uma concepção ideológica
singular ou especialmente original. O que dele existe nesse domínio são
considerações avulsas e textos esparsos sobre questões da actualidade,
redigidos após ter-se exilado no Brasil em 1959, na sequência de um
convite para ensinar em São Paulo, feito aquando da sua participação
num congresso de estudos luso-brasileiros na Bahia. Tomada aos 40 anos,
a decisão de viver no estrangeiro com a numerosa família foi indissociável
do seu envolvimento, em Março de 1959, no falhado “golpe da Sé”.
Antes disso, Sena viu o seu livro As Evidências ser apreendido
pela PIDE em 1955, sob a acusação de “subversivo e pornográfico”,
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
não era novo. Dez anos antes, em carta a José-Augusto França, afirmara,
no mesmo registo: “Acho a Europa irremediavelmente reles; e as
Américas irremediavelmente reles.” Com este estado de espírito, o
convívio nem sempre era fácil e já em 1959 António José Saraiva tinha
de acalmar Óscar Lopes, cunhado do poeta, dizendo-lhe: “Estou quase
a concordar contigo, no que respeita ao Jorge […] O que não obsta a
que seja um homem imensamente lido, de prodigiosa memória e muito
inteligente”. Para além de ter escolhido a América como lugar de exílio,
Sena piorou o seu caso perante a intelectualidade da “resistência” por
nunca na vida ter sido afecto ou militante do PCP ou navegado sequer nas
águas do neo-realismo. Em 1961, com a bravata habitual, declarou que iria
processar por difamação todos os que lhe chamassem comunista. E, na
correspondência com Sophia, são frequentes as alusões à “comunistada”
e aos “comunistóides”. Numa carta para a poetisa, datada de 1964, avisou
que não se convertera ao “anticomunismo de indústria”, mas tinha
chegado à conclusão de que aos comunistas faltava “o mínimo de ética
para lidarem com as pessoas decentes”. Acrescentou: “Sempre os achei
assim: mas, às vezes, as conveniências forçam uma certa honestidade…
e já lhes passou a oportunidade ou, melhor dizendo, esse oportunismo.”
Se o seu declarado anticomunismo era um handicap no panorama
intelectual da altura, Sena enfrentava também o facto de ter tido uma
longa e ininterrupta carreira de engenheiro ao serviço do Estado e dos
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
Na América
O “equívoco de fronteira”
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Um “esquerdismo lúcido”
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
O “reino da estupidez”
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
Cultura e costumes
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Jorge de Sena gostava de recordar que o seu primeiro contacto
físico com o Brasil ocorrera na juventude, mais exactamente em
1937-38, na qualidade de primeiro cadete da Marinha, em viagem
de instrução no navio-escola Sagres. Para alguém sempre tão
empenhado na arqueologia dos processos histórico-culturais, o que
o fazia traçar vastos e minuciosos panoramas em que cada camada se
sedimenta sobre a anterior sem quase nunca resolver os conflitos de
que se fazem história e cultura, o episódio juvenil funcionava como uma
espécie de prova de que o contacto de Sena com o Brasil não nascera em
1959, ano em que se muda, com armas e bagagens, para esse país, mas
mais de 20 anos antes.
Ou seja, a mudança não fora um evento circunstancialmente motivado,
havendo pelo contrário toda uma história pessoal que longamente a
preparara ou mesmo pré-figurara. No texto inacabado que prefacia
o volume de Estudos de Cultura e Literatura Brasileira (1988), Sena
evoca o episódio mas faz recuar à infância a sua ligação literária ao
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
O
centenário do nascimento de Jorge de Sena é uma óptima
oportunidade para lembrarmos o papel único que este poeta,
romancista, contista, dramaturgo, crítico e ensaísta ocupou na
cultura portuguesa. E a genialidade da sua obra deve impedir-
nos de sentir excessivamente o facto de ser a efeméride a sugerir que
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
revisitemos essa mesma obra, já que esta fala por si e sempre nos
convidará a estudá-la, independentemente do quão presos à espuma
dos nossos dias possamos andar. Por outro lado, o silêncio em relação
a Jorge de Sena ao longo deste centenário do seu nascimento — até por
comparação com as celebrações, justas, do centenário do nascimento
de Sophia, ou do cinquentenário da morte de Régio —, quebrado
praticamente apenas em Novembro, indicia uma evolução na forma como
o escritor tem vindo a ser percebido.
Qualquer autor tem de se confrontar com os caprichos da memória ou
da amnésia colectiva e o tempo dirá qual o papel que a história reserva
para Jorge de Sena. Contudo, eu sugeriria desde já que o silêncio acerca
de Sena ao longo de 2019 é sobretudo um sintoma do quanto a sociedade
portuguesa tem evoluído desde a sua redemocratização em 1974, já
que se tem afastado cada vez mais, felizmente, de realidades que muita
da escrita de Sena tantas vezes denunciou. Não é de todo o caso que a
literatura de Sena apenas faça sentido se lida contra o pano de fundo
da ditadura, já que a leitura de livros como Metamorfoses e Sinais de
Fogo, entre outros, certamente não está presa a esse período. Contudo,
é inevitável reconhecer que a própria existência de Sena coincidiu quase
totalmente com o longo período de supressão das liberdades mais básicas
em Portugal, já que a Ditadura Militar se instalou quando Sena tinha
ainda seis anos (Maio de 1926), e a Revolução dos Cravos chegou quatro
anos antes de o autor falecer. Não é sem consequência que durante toda a
juventude e vida adulta se vê o país de origem debaixo de uma ditadura.
No essencial, a vida de Jorge de Sena coincidiu cronologicamente com
o fascismo português, e mesmo à distância a sua obra foi erigida contra
esse regime. Foi sobretudo escrita contra todas as limitações à liberdade
de pensamento, criação e expressão, e contra a castração dos desejos
— do desejo amoroso e sexual, ao desejo de conhecer o pensamento e
a arte de várias partes do mundo, para lá das fronteiras de um Portugal
orgulhosamente só. Importa continuar a assinalá-lo até porque, passados
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
O crítico prodigioso
Como escritor temerário que sempre foi, e sentindo-se “outcast
de grupos literários e profissionais”, Sena falou de tudo, de todos
e da maneira que entendeu ser a certa, mesmo que por vezes
tenha sido desagradável ou agressivo.
N
a obra crítica de Jorge de Sena, e apesar da vastidão do tópico, que
abrange inúmeros estudos de história, de cultura e muitos outros
de literatura, é possível reconhecer a prática persistente de quatro
verbos: “elucidar”, “corrigir”, “desmentir” e “analisar”. Ainda que
recorrentes ao longo da sua produção ensaística, surgem enunciados
por esta ordem na introdução a Estudos de História e de Cultura (1967),
um volume monumental que faz o escrutínio genealógico do primeiro
rei de Portugal e termina com um extenso ensaio dedicado à evolução
do mito de Inês de Castro, comentando autores e épocas diferentes. Os
quatro verbos em causa podem aplicar-se ao espírito crítico deste autor, e
julgo que são também os princípios orientadores e, ao mesmo tempo, os
objectivos da actividade crítica de Sena: a vontade de esclarecer (a si e aos
outros), de corrigir (eventuais equívocos), de desmentir (repor a verdade)
e de fazer a análise e “observação concreta” do que são as obras e as
personalidades que as criaram, procurando provas cabais de que as suas
intuições eram realmente certeiras e não se reduziam a meras opiniões.
Várias vezes, Sena defendeu a necessidade de uma ciência da literatura
contra o chamado impressionismo crítico, e certamente também como
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que queriam que ele simbolizasse. São vários os textos que questionam
o eterno silogismo, conveniente a um certo tipo de discurso oficial sobre
Camões, de que falar d’Os Lusíadas é igual a falar de pátria enquanto
discurso laudatório. Num estudo publicado em Dialécticas Aplicadas da
Literatura (1978), Sena defende que a análise da estrutura d’Os Lusíadas
lhe permitiu provar que o poema de Camões “pode ser tido por belo,
fascinante, e atraente para espíritos modernos, por essas intenções serem
muito mais ambiciosas e universais do que se depreenderia da concepção
tradicional de o poema ter sido escrito apenas para celebrar a História
de Portugal”. Ainda sobre os estudos camonianos, Sena defendeu,
contrariando o espartilho da periodização literária, o maneirismo da sua
poesia lírica. Em “O Fantasma de Camões (uma entrevista sensacional)”,
texto publicado originalmente no Suplemento Literário de O Estado
de S. Paulo, em 1962, Sena tenta convencer Camões das vantagens do
seu método crítico e revela-lhe, entre outros achados, a descoberta de
“que ele era um ‘maneirista’ e dos maiores da época, e como era uma
falácia de caixeiros-viajantes da literatura, que, apesar de aposentados,
ainda continuam tendo circulação, aquela de ele ser um homem do
Renascimento”.
Para além da diversidade dos temas, das suas ideias e intuições, do seu
método crítico, há também uma atitude geral como investigador, como
pessoa que estuda os autores, que merece especial menção. Como crítico,
e mais tarde como professor universitário, Jorge de Sena deixou sempre
bem marcado o seu apreço pela liberdade intelectual, pela liberdade de
poder estudar os autores que entendia, sem ter de prestar vassalagem
ou pedir permissão (que não teria) à “indústria camoniana”, aos “donos
encartados de Pessoa” ou aos cafés literários do seu tempo. No fundo,
como crítico revela frequentemente “a coragem de pensar e sentido das
responsabilidades quanto ao que se pensou”, definição de pessoa culta,
que não é mero repositório de informação acumulada, dada no texto
“Citar ou não citar – eis a questão”, de O Reino da Estupidez.
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Um “realismo que
não recua”: a ficção
de Jorge de Sena
A obra de Jorge de Sena, que consabidamente se reconhecia
(e, sobretudo, queria ser reconhecido) como poeta,
dá testemunho de que o engenho versátil do autor
não resistiu à tentação da narrativa.
N
a sua desmesura quase inabarcável, a obra de Jorge de Sena,
que consabidamente se reconhecia (e, sobretudo, queria ser
reconhecido) como poeta, dá testemunho de que o engenho
versátil do autor não resistiu à tentação da narrativa, como
atestam as suas reincidentes experimentações ficcionais sob vários
formatos: conto, novela, romance.
Num escritor culturalmente omnívoro e criativamente proteico
como Sena, essa vontade efabulatória – remota, visto que surge em
concomitância com as suas primeiras tentativas líricas e dramáticas –
inscreve-se, coerentemente, num programa crítico e criativo, em que se
tornam indivisas estética e ética (ou, para retomar palavras dilectas do
autor, testemunho e linguagem) e que se desdobra em inúmeros registos
expressivos, irmanando o poeta, o narrador, o dramaturgo ou o ensaísta
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Paulo Alexandre Pereira é Doutor em Literatura e exerce funções como professor auxiliar
no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde, desde 1991, tem
leccionado várias disciplinas de licenciatura, mestrado e doutoramento na área da Literatura
Portuguesa e desenvolvido actividade de investigação no domínio dos Estudos Literários.
É investigador no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde
presentemente coordena o projecto de investigação Entregéneros: Literatura e Hibridismo.
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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável
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orge de Sena começa a existir literariamente num momento decisivo
da literatura portuguesa moderna: o seu primeiro livro de poemas é
de 1942, Perseguição, e é nesse preciso ano que começa a grande saga
das publicações póstumas de Fernando Pessoa, com o aparecimento
do ortónimo com muitos inéditos, e logo os heterónimos: Álvaro de
Campos em 1944, Ricardo Reis em 1945 e Alberto Caeiro em 1946.
Uma tão rápida profusão de publicações, em que se incluem livros
capitais de toda a literatura portuguesa, desencadeia respostas diferentes
das gerações novas. Quanto à geração de 27, ou da presença, que tem
as maiores dúvidas em relação à poética do Modernismo mas não deixa
de ser constituída por homens inteligentes, é quem começa por editar
e comentar a obra de Pessoa, mesmo assumindo com reservas a sua
genialidade. Em 1940, uma nova geração, a dos Cadernos de Poesia:
Ruy Cinatti, Jorge de Sena e Sophia publicam os seus primeiros livros
entre 1941 e 1944. Esta geração, tal como uma outra, que marca o final
da década de 40, a dos surrealistas, choca, na força da idade, com um
problema sem solução: o brilho excessivo de um poeta já morto, mas cuja
obra completa lhes desaba em cima de uma vez, e com fragor.
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O poeta em Sena
Ensaio de: Joana Matos Frias
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orge de Sena é um dos escritores mais polígrafos e prolíficos da
Literatura Portuguesa, mas a multiplicação do seu talento de escrita
por domínios tão distintos quanto a ficção e o teatro, o ensaio
teórico e o comentário crítico nunca diminuiu – terá até intensificado
– o papel preponderante que a criação poética desempenhou no conjunto
da sua obra. Claro que, tratando-se de campos de actuação diferentes que
se intersectaram e mutuamente iluminaram no plano criador, uma tal
contaminação não deixou de ser recebida amiúde como uma espécie de
contágio, conforme registaria o próprio Sena num poema que viria a ser
incluído no volume póstumo Visão Perpétua (1982): “Quando publiquei
Pessoa/ passei a ser discípulo de Pessoa. Mas,/ logo que foi público que eu
estudava o Camões,/ a crítica notou logo a camonidade dos meus versos”.
Talvez não seja exagerado constatar que pertencem exactamente ao
campo poético um conjunto de palavras e de expressões senianas
que, como é próprio de alguma grande poesia, se destacaram já dos
contextos originários para correrem livremente de boca em boca:
seria o caso de versos como “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o
mundo inteiro”, “Das aves passam as sombras”, “Falareis de nós como
de um sonho”, “Amo-te muito, meu amor, e tanto”, “Conheço o sal da
tua pele”, “Estão podres as palavras”, “Podereis roubar-me tudo”, “De
morte natural nunca ninguém morreu”, “nunca perdoarei o que me fez
esta música”, ou “Não leiam delicados este livro”, entre tantos outros.
Não significa isto, naturalmente, que a força da obra poética de Sena o
tenha transformado numa espécie de poeta popular – menos ainda se
pensarmos que chegou a ser acusado de hermetismo e eruditismo –,
mas a verdade é que essa força pode também aferir-se por uma certa
memória colectiva que tem reconhecido o poder epigramático de
muitos dos seus versos. Poder esse que, de uma forma evidente, resulta
também da perícia absolutamente espantosa com que sempre praticou
o verso, nas suas formas mais fixas e mais livres, mais tradicionais
e mais experimentais, ancorado num conhecimento muito sólido e
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orge de Sena nasceu há exactamente cem anos, no dia 2 de
Novembro de 1919, e a julgar pela pouca visibilidade que até este
momento têm tido as comemorações do seu centenário, se de
comemorações se pode falar, é possível que o seu amigo Eduardo
Lourenço se tenha precipitado quando, em Abril de 1968, profetizava na
revista O Tempo e o Modo: “E os tempos estão próximos, ou já chegaram,
em que o urso mal lambido das nossas letras receberá as flores tardias da
admiração com salário dobrado”.
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Com notável acuidade, o poeta e tradutor José Bento, que nos deixou
há dias, escrevia em 1968 no já referido número de homenagem de O
Tempo e o Modo: “Situo Jorge de Sena entre os escritores, raros, que
procuram a totalidade e não um ou outro dos seus aspectos. Esta procura
o obrigou ao poema e à tragédia, ao conto e à farsa, à crítica e ao ensaio,
e em cada uma destas formas a descobrir as diversas faces com que a
totalidade o chama”.
Decompondo essa totalidade e começando pelo poeta que quis ser
acima de tudo, não restam quaisquer dúvidas de que Jorge de Sena é um
dos autores centrais da poesia portuguesa do século XX. Avesso à muito
lusa tradição do lirismo bucólico e sentimental, afastou-se também das
principais correntes do seu tempo – do presencismo ao neo-realismo e ao
surrealismo –, mas sem deixar de as integrar criticamente, e sem cair nos
excessos formalistas a que o desejo de renovar o discurso poético levaria
alguma poesia dos anos 60 e 70.
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Um pacto de sangue
Rosa Maria Martelo lembra, a este propósito, a resposta que Sena, numa
entrevista recolhida em O Reino da Estupidez (1961), dá ao pedido para
que identifique as correntes de maior destaque na cultura portuguesa.
“Suponho que bastará, em linhas gerais, dizer que há, como em tudo,
duas correntes: a do ar livre e a da estufa”, resume Sena. “Uma síntese
muito seniana, acutilante, irónica, lapidar”, descreve a ensaísta, que
todavia acha ainda mais significativo o que o poeta irá defender a seguir.
“Sena considera que a corrente do ar livre ambiciona uma ‘integridade
sem capitulações’, mas ao mesmo tempo recusa-se a pensá-la fora da
ideia de comunidade”, observa Rosa Maria Martelo, para concluir:
“Creio que esta perspectiva está sempre presente em tudo quanto ele
escreve, quer como criador, quer como ensaísta e crítico. Toda a sua
obra é expressão de uma exigência radical de liberdade cruzada com um
desejo de comunidade tão intenso que chega a ser doloroso: o desejo de
uma comunidade em que a verdadeira dimensão do humano não fosse
rebaixada pelo protagonismo medíocre de incompetentes e arrivistas”.
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Camonista e pessoano
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de organizar, em meados dos anos 60, aquela que teria sido, com quase
vinte anos de avanço, a primeira edição do Livro do Desassossego.
Feijó salienta ainda o seu extenso e menos conhecido estudo centrado
no poema Ela canta, pobre ceifeira. Lembrando que o primeiro biógrafo
de Pessoa, João Gaspar Simões, “que via na heteronímia uma espécie
de dramaturgia falhada”, atribuía a este poema, em particular na sua
versão revista de 1924, um significado “decisivo”, já que corresponderia
ao momento em que o poeta se teria “libertado da charada heteronímica
e reencontrado a tradição lírica portuguesa”, Feijó chama a atenção
para o facto de Sena, “com a sua erudição”, ter percebido que esse
“poema decisivo” tinha origem num poeta romântico inglês, já que
dialogava com um poema de Wordsworth intitulado The Solitary Reaper
(a ceifeira solitária).
Se a todas estas parcelas, juntarmos o tradutor de ficção inglesa e
americana, ou o especialista de estudos brasileiros, ou as extensas
correspondências que manteve com Régio, Vergílio Ferreira, Sophia,
Eugénio de Andrade, José-Augusto França ou Eduardo Lourenço, para
citar apenas uma pequeníssima parte dos destinatários das suas cartas,
torna-se francamente difícil perceber como lhe foi possível produzir
a sua obra gigantesca ao mesmo tempo que cumpria, e de modo
exemplar, ao que rezam os testemunhos, os seus deveres de professor
universitário (e antes disso de engenheiro em serviços públicos), mesmo
dando de barato que Mécia de Sena terá tomado bastante a seu cargo a
criação dos nove filhos do casal.
Quase toda a sua obra ficcional, por exemplo, foi escrita nos seis anos
que passou no Brasil, onde se radicou em 1959, na sequência do seu
envolvimento na frustrada intentona anti-salazarista conhecida como
“golpe da Sé”, e de onde partiu para os Estados Unidos em 1965, pouco
após a instauração da ditadura militar brasileira.
Após um primeiro período na Universidade do Wisconsin, mudou-se
em 1970 para a Universidade de Santa Barbara, a sua última paragem,
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