Você está na página 1de 73

Jorge

Sena
O Século de um Intelectual Indispensável

8937b611-0671-4e47-900b-ba78d0ac1bf7
Jorge de Sena

O século de
um intelectual
indispensável
Uma série de trabalhos
que reflectem a diversidade
da obra e a riqueza
do pensamento de
um dos mais influentes
intelectuais portugueses
do século XX
2
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

ÍNDICE
A política em Sena
António Araújo
LER ARTIGO

Jorge de Sena e o Brasil


Osvaldo Manuel Silvestre
LER ARTIGO

Jorge de Sena, antologista


Ricardo Vasconcelos
LER ARTIGO

O crítico prodigioso
Joana Meirim
LER ARTIGO

3
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Um “realismo que não recua”:


a ficção de Jorge de Sena
Paulo Alexandre Pereira
LER ARTIGO

O poeta não é um fingidor


Fernando Cabral Martins
LER ARTIGO

O poeta em Sena
Joana Matos Frias
LER ARTIGO

Jorge de Sena: o gigante indigesto


da cultura portuguesa
Luís Miguel Queirós
LER ARTIGO

4
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

A política em Sena
Apesar de ter dedicado ensaios eruditos a figuras como
Maquiavel, Rousseau ou o admirado Marx, Jorge de Sena
não desenvolveu propriamente um “pensamento político”
sistemático e estruturado nem articulou uma concepção
ideológica singular ou especialmente original.

Ensaio de: António Araújo

Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional PEDRO CUNHA/ARQUIVO

5
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

“N
ão sou prostituta, nem pederasta público, nem chefe
comunista, nem director de editorial, nem seareiro, nem
vértice, nem o diabo”, escreveu Jorge de Sena a Eduardo
Lourenço, em Junho de 1967, numa recorrente e quase
obsessiva proclamação da sua independência de carácter, que era,
segundo ele, a causa maior para que a pátria tardasse em reconhecer-lhe
o talento, genial e imenso. Na ausência de louvores alheios, o próprio se
encarregaria da solitária tarefa de cuidar do ego, informando Lourenço:
“Eu não preciso que ninguém me diga que sou um dos maiores poetas de
língua portuguesa, um dos contistas mais originais, um dos críticos mais
importantes, autor de algum do teatro mais significativo do século.”
A conturbada relação do poeta com o seu país, agravada por um longo
exílio de quase duas décadas no Brasil e nos Estados Unidos, dominou
por completo o modo como Sena encarava a realidade política, a nacional
e mesmo a estrangeira. Todos ou quase todos os seus “textos políticos”
versam sobre Portugal, desde os artigos contra o “rato” Salazar, saídos
nas páginas do Portugal Democrático, jornal da oposição portuguesa
publicado em São Paulo, ao discurso proferido na Guarda em 1977,
nas comemorações do 10 de Junho. Apesar de ter dedicado ensaios
eruditos a figuras como Maquiavel, Rousseau ou o admirado Marx, Jorge
de Sena não desenvolveu propriamente um “pensamento político”
sistemático e estruturado nem articulou uma concepção ideológica
singular ou especialmente original. O que dele existe nesse domínio são
considerações avulsas e textos esparsos sobre questões da actualidade,
redigidos após ter-se exilado no Brasil em 1959, na sequência de um
convite para ensinar em São Paulo, feito aquando da sua participação
num congresso de estudos luso-brasileiros na Bahia. Tomada aos 40 anos,
a decisão de viver no estrangeiro com a numerosa família foi indissociável
do seu envolvimento, em Março de 1959, no falhado “golpe da Sé”.
Antes disso, Sena viu o seu livro As Evidências ser apreendido
pela PIDE em 1955, sob a acusação de “subversivo e pornográfico”,

6
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Em Julho de 1968, e participou, no ano seguinte, na


fundação da Sociedade Portuguesa
escrevendo a partir
de Escritores. Apesar de lamentar
de Madison, mais tarde que a política lhe tinha
perguntou-se: roubado o tempo imprescindível à
“Gosto de viver na criação literária, Jorge de Sena não teve
actividade oposicionista de monta, e
América?”.
não é por acaso que, antes e depois do
“É difícil a resposta”, 25 de Abril, se sentiu na obrigação de
concluiu, “porque eu invocar reiteradamente credenciais
não gosto de viver antifascistas contra os que o acusavam
de ser um intelectual “burguês” que
em parte nenhuma.”
nunca conhecera a prisão e a tortura e
que, naturalizado brasileiro em 1963,
levava uma existência confortável a ensinar em universidades do Brasil
(Assis e Araraquara) e, a partir de 1965, dos Estados Unidos: primeiro
em Madison, no Wisconsin (1965-1970), depois em Santa Barbara, na
Califórnia (1970-1978).
Em carta a Sophia, escrita não muito depois de se instalar em Madison,
duvidou que os Estados Unidos o prendessem por muito tempo e, em
1972, confessou à amiga estar farto “desta América que perdeu o último
comboio da decência e da dignidade”. De resto, já antes lhe confidenciara
o sonho de se fixar em Itália, na Grécia ou até mesmo no Japão. A
Eduardo Lourenço falaria de outros lugares apetecíveis, em Inglaterra
ou em França. Simplesmente, a América oferecera-lhe emprego para a
vida, promoveu-o ao que chamou “o generalato máximo” e de Lisboa e
de outras paragens os convites teimavam em não aparecer. Em Julho de
1968, escrevendo a partir de Madison, perguntou-se: “Gosto de viver na
América?”. “É difícil a resposta”, concluiu, “porque eu não gosto de viver
em parte nenhuma.” À época, a humanidade surgia-lhe “monstruosa e
bestial”, e a vida uma “monumental chatice”. Este desalento, contudo,

7
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Num autor infatigável e prolífico que, em carta a


Luís Amaro, chegou a dizer que “o meu mal é que
eu precisava de ter três editoras só publicando obra
minha”, a escassez ou a incipiência de textos políticos
e de intervenção cívica é ponto que merece ser
assinalado

não era novo. Dez anos antes, em carta a José-Augusto França, afirmara,
no mesmo registo: “Acho a Europa irremediavelmente reles; e as
Américas irremediavelmente reles.” Com este estado de espírito, o
convívio nem sempre era fácil e já em 1959 António José Saraiva tinha
de acalmar Óscar Lopes, cunhado do poeta, dizendo-lhe: “Estou quase
a concordar contigo, no que respeita ao Jorge […] O que não obsta a
que seja um homem imensamente lido, de prodigiosa memória e muito
inteligente”. Para além de ter escolhido a América como lugar de exílio,
Sena piorou o seu caso perante a intelectualidade da “resistência” por
nunca na vida ter sido afecto ou militante do PCP ou navegado sequer nas
águas do neo-realismo. Em 1961, com a bravata habitual, declarou que iria
processar por difamação todos os que lhe chamassem comunista. E, na
correspondência com Sophia, são frequentes as alusões à “comunistada”
e aos “comunistóides”. Numa carta para a poetisa, datada de 1964, avisou
que não se convertera ao “anticomunismo de indústria”, mas tinha
chegado à conclusão de que aos comunistas faltava “o mínimo de ética
para lidarem com as pessoas decentes”. Acrescentou: “Sempre os achei
assim: mas, às vezes, as conveniências forçam uma certa honestidade…
e já lhes passou a oportunidade ou, melhor dizendo, esse oportunismo.”
Se o seu declarado anticomunismo era um handicap no panorama
intelectual da altura, Sena enfrentava também o facto de ter tido uma
longa e ininterrupta carreira de engenheiro ao serviço do Estado e dos

8
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

poderes públicos (Câmara Municipal de Lisboa, Direcção-Geral dos


Serviços de Urbanização, Junta Autónoma das Estradas). Talvez por isso, o
seu envolvimento activo no oposicionismo foi relativamente tardio, sendo
sintomático que Rever Portugal (Guimarães Editores, 2011), a colectânea
dos seus textos políticos e afins, comece apenas com os artigos do
Portugal Democrático, escritos na segurança do Brasil, com um oceano
de permeio. Neles, Jorge de Sena não faz concessões ao regime e mostra-
se impiedoso para com Salazar: “Some-te, rato!”, é um dos seus textos
mais conhecidos da altura, época em que também assumiu fugazmente a
vice-presidência da Unidade Democrática Portuguesa, de finais de 1961 a
Fevereiro de 1962; no ano seguinte, demitir-se-ia da redacção do Portugal
Democrático. Em carta a José-Augusto França, explicitou o motivo
daquelas demissões, dizendo-se “farto de andar com políticos de merda.”
Além destes cargos efémeros, não lhe são conhecidas participações em
grupos organizados ou em partidos políticos e o que de mais substancial
existe no período do exílio brasileiro, de 1959 a meados dos anos 60, são
textos a assinalar o cinquentenário da instauração da República, diatribes
contra o Presidente do Conselho e as farsas eleitorais, inflamadas
denúncias do assassinato do capitão Almeida Santos, homenagens a
Humberto Delgado e ao embaixador brasileiro Álvaro Lins, prosa de
circunstância. Num autor infatigável e prolífico que, em carta a Luís
Amaro, chegou a dizer que “o meu mal é que eu precisava de ter três
editoras só publicando obra minha”, a escassez ou a incipiência de textos
políticos e de intervenção cívica é ponto que merece ser assinalado.
Nesta fase, deve realçar-se apenas o texto que escreveu em Agosto de
1959 a pedido de Ruy Cinatti, e em que Sena avançou o projecto de
uma Comunidade de Estados Portugueses, implantada faseadamente
seguindo o modelo da Commonwealth, com vista a encontrar uma
solução pacífica para o “problema ultramarino” que salvaguardasse a
presença dos brancos em África, um tema que continuará a abordar em
intervenções subsequentes, como uma entrevista concedida a um jornal

9
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

A propósito de Belo Horizonte, em Agosto de 1961,


onde disse que Portugal teria de resolver
do Maio de 68
o problema da população branca de
em Paris, confessara Angola, “que, até há pouco, vivia em boa
a [Eduardo] paz com os negros.”
Lourenço: Em meados desse ano de 1961,
e acompanhando a trajectória da
“Tenho grande
oposição não comunista, defenderá
receio em acreditar abertamente o direito dos povos
na revolução dos africanos à autodeterminação,
estudantes…” continuando todavia a referir a
necessidade de acautelar o destino
da minoria branca e a salientar que
Portugal nunca praticara uma política semelhante ao apartheid sul-
africano, como escreveria em finais de 1973, no regresso da sua viagem
por África: “O paternalismo português, com todas as suas limitações
(…), nada é, a comparar com a atmosfera opressiva do famoso
apartheid”. Após o 25 de Abril, aquele texto de 1959 em que gizou uma
Commonwealth lusitana servir-lhe-ia para afirmar que fora pioneiro
no pensamento autonomista quanto ao futuro das colónias africanas e
que, se acaso lhe tivessem dado ouvidos e posto em prática o seu plano,
muitas e graves tragédias teriam sido evitadas. “Eu fui das primeiras
pessoas que falou na descolonização quando apresentei em 1958 um
plano nesse sentido”, recordará, em Junho de 1977, numa entrevista
concedida a Fernando Dacosta. E dois antes, logo em Maio de 1974,
diria a José-Augusto França que o seu plano tinha sido um dos esteios
políticos do “golpe da Sé” e que também Spínola se baseara nele para o
projecto que apresentara nas páginas de Portugal e o Futuro.

10
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Na América

Curiosamente, não se lhe conhecem — ou, pelo menos, não se


encontram na citada resenha dos seus textos políticos — intervenções
escritas, públicas e de vulto, sobre a ditadura militar brasileira, cujo
advento presenciou. E Jorge de Sena, que no passado não se inibira
de criticar asperamente governantes norte-americanos (por exemplo,
chamou “Deão Pão Doce” a Dean Rusk), absteve-se também de se
pronunciar sobre a política interna dos Estados Unidos após ter ido
para lá viver. Sobre a eleição de Nixon – e após esclarecer que, como
residente americano, não tinha o direito de a comentar —, disse
que ela resultara de um desejo de estabilidade de “toda uma massa
central da sociedade americana”. Saudou as manifestações contra a
guerra do Vietname, mas congratulou-se igualmente com o facto de
as forças da ordem terem, “com energia”, restaurado a tranquilidade
nos campuses das universidades norte-americanas (a propósito do
Maio de 68 em Paris, confessara a Lourenço: “Tenho grande receio em
acreditar na revolução dos estudantes…”). Sobre os protestos cívicos
dos afro-americanos, mencionou o desejo que os “negros extremistas”
tinham de instaurar um regime de apartheid no país e culpabilizou
pelo racismo os imigrantes que haviam chegado à América depois
dos negros (“as pessoas mais racistas são os imigrantes”, disse ao

Republicano e laico, dizendo não ter recebido qualquer


educação religiosa da sua família “de tradição liberal,
voltairiana”, afirmou-se socialista e defensor da
democracia representativa, mas nunca militou em
partidos nem se deixou seduzir por uma intervenção
política activa
11
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

República, em 1968). Afirmou ainda, repetidas vezes, que a questão


racial no Brasil era incomparavelmente menos grave do que os
“problemas terríveis” que a mesma suscitava nos Estados Unidos.
Não obstante, continuou a apreciar a Califórnia e o seu clima ameno,
dizendo numa entrevista a Nuno Rocha, em 1971, que viver lá era como
“viver no Estoril todo o ano.”

O “equívoco de fronteira”

Com o advento da “Primavera marcelista”, Jorge de Sena alegou


“falta de dinheiro” para não voltar ao seu país, como disse em Abril
de 1968 a Arnaldo Saraiva, em entrevista saída num número especial
de O Tempo e o Modo dedicado à sua obra. Em Dezembro desse ano,
veio a Portugal, mas foi detido pela PIDE quando se preparava para
entrar de comboio por Marvão. Expulso para Espanha, de Valência
de Alcântara conseguiu estabelecer contacto telefónico directo com o
Presidente do Conselho, que autorizou a sua vinda, tendo a Censura
permitido que os jornais relatassem o sucedido como um “equívoco
de fronteira”. Numa carta a Eduardo Lourenço, de Junho de 1969,
afirmou, com exagero, que o caso gerara um “escândalo internacional”
e que, pessoalmente, aquelas horas de detenção fronteiriça o tinham
libertado do velho complexo de nunca ter sido preso durante o
salazarismo, tornando-o, pois, um antifascista de pleno direito.
Depois do 25 de Abril, no entanto, desvalorizou o gesto do Presidente
do Conselho, sustentando que era “o que convinha às aparências
de “reconciliação” dos primeiros tempos do governo de Marcelo
Caetano”.
No Verão de 1973, e a convite da Associação dos Antigos Estudantes
de Coimbra, formulado por ocasião das comemorações do IV centenário
da publicação do Os Lusíadas, Jorge de Sena deslocou-se a Moçambique
e a Angola. Nas entrevistas então concedidas, e apesar de revelar mais

12
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

tarde que a viagem fora paga pela oposição e pela clandestinidade


moçambicanas, teve a compreensível cautela de nunca abordar
questões ligadas à guerra travada em África ou ao destino dos territórios
ultramarinos. Em pleno consulado marcelista, não deixaria também de
ser responsável pela edição das obras de Camões por encomenda da
editora do Estado, a Imprensa Nacional, e, no âmbito das comemorações
camonianas, em 1973 proferiu uma palestra no Centro Cultural Português
de Paris, da Gulbenkian, na altura dirigido por Joaquim Veríssimo Serrão,
o qual, segundo Sena, teve de travar uma árdua luta para vencer as
pressões contra o seu nome, oriundas dos sectores situacionistas. Após
o 25 de Abril, contudo, Jorge de Sena apoiou os saneamentos no ensino;
disse que correspondiam a uma “decisão inevitável” e argumentou que
“a educação, para ser democrática, não pode estar confiada aos próceres
do antigo regime”, ignorando decerto que Veríssimo Serrão, que um ano
antes o protegera, fora afastado do cargo de reitor da Universidade de
Lisboa logo em 29 de Abril de 1974 e saneado da Faculdade de Letras no
mês seguinte.

Um “esquerdismo lúcido”

Assumindo-se sempre como de esquerda, de um “esquerdismo


lúcido”, Sena encarou com vibrante entusiasmo o 25 de Abril,
revelando até bastante compreensão para com alguma turbulência
revolucionária, que entendeu ser normal em conjunturas convulsas
(“houve uma euforia da liberdade que era perfeitamente natural
que existisse”, observou em 1976, acrescentando, dois anos depois,
que “era inevitável que no momento em que abrissem as comportas
houvesse uma explosão”). Contudo, em Outubro de 1974 já confessava
a Eugénio de Andrade a sua desilusão, motivada, como sempre, pela
ingratidão nacional: “quanto ao país, só pelos jornais que escassos me
chegam, e pela imprensa internacional rara, é que sei dele. […] Não

13
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

fosse eu esquerdista e democrata de velha cepa, e o comportamento


do país para comigo justificaria que eu estivesse de mal com a
revolução, que cada vez me parece mais um conluio de continuistas
e de arranjistas, com alguns revolucionários de parvos pelo meio, e
muitos demagogos a agarrar os tachos com muita pressa. Que lhes
preste a todos, e divirtam-se.”
Republicano e laico, dizendo não ter recebido qualquer educação
religiosa da sua família “de tradição liberal, voltairiana”, afirmou-se
socialista e defensor da democracia representativa, mas nunca militou
em partidos nem se deixou seduzir por uma intervenção política
activa. Ideologicamente, definiu-se a partir da sua “crença e filosofia

Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO

14
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

marxistas sem pitada de socialismo de ida e volta” e salientou a sua


“inabalável consciência democrática em que todos têm um papel
efectivo a desempenhar”. Em Maio de 1974, no imediato pós-revolução,
proclamou ser um defensor da democracia pluralista mas, de igual modo,
um “marxista de extrema-esquerda”, caracterização que em breve iria
abandonar, em benefício de registos mais centristas e moderados.
Do ponto de vista político, Sena questionou o imperialismo da política
externa dos Estados Unidos, para logo confessar a sua admiração pela
sua “tradição democrática interna, no melhor sentido da palavra”,
a par da meritocracia da sociedade e do sistema de ensino norte-
americanos, em flagrante contraste com Portugal ou o Brasil (“aqui,
uma pessoa qualquer da working class pode pensar que o seu filho vai
para a universidade”). Aos que criticavam a sua permanência nesse país,
respondia com questões práticas, profissionais, alegando ter carreira e
lugar de catedrático, família para sustentar. E justificou-se a Lourenço por
não ter vindo a Lisboa logo a seguir à revolução, como tantos outros, com
o argumento de que a Universidade da Califórnia não concedia “licenças
súbitas”, pelo que a viagem só seria possível se “loucamente pedisse
a demissão” da cátedra americana. Lamentou, porém, não ter sido
chamado pelos novos governantes a ocupar cargos de relevo ou exercer
funções condizentes com o altíssimo mérito que tinha e, sobretudo, que
proclamava ter (“a única razão pela qual parece que eu proclamo a cada
instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu não o
fizesse, ninguém o faria”, disse em 1968).
Naturalmente, apreciou ter sido feito comendador da Ordem do
Infante, em Abril de 1977 (mesmo que em privado dissesse a Lourenço
que “a comenda foi uma piada da burrice lusitana”), e, mais ainda, ter
sido convidado a discursar na Guarda, nas primeiras grandes celebrações
democráticas do 10 de Junho (não por acaso, num texto de 1978, apelidou
o Presidente Eanes de “símbolo vivo da democracia e das instituições”).
No seu discurso da Guarda, contudo, não se alongou em considerações

15
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

políticas nem expôs um pensamento estruturado sobre os desígnios


pátrios.
Existem, em todo o caso, alguns tópicos recorrentes nas suas
intervenções que permitem descortinar uma certa coerência de ideias,
firmada ao longo dos anos, em prol do socialismo e do pluralismo
democráticos. Após o 25 de Abril, e colocando-se ao lado das forças
que pugnavam pela democracia representativa e plural que sempre
considerou ser o seu modelo político, Jorge de Sena defendeu, logo em
Junho de 1974, ser imprescindível realizar eleições, até para conferir
aos grupos então emergentes “a qualidade de partidos dotados de
representatividade e de significação nacional”. E, em Dezembro desse
ano, retomou a ideia, na altura contestada pelos sectores mais radicais
do MFA e da extrema-esquerda, da necessidade de realizar eleições para
“uma Constituinte que elabore o estatuto fundamental do país”. O avanço
do processo revolucionário iria parecer-lhe excessivo e, em Janeiro
de 1975, já se queixava a Eduardo Lourenço que não existia lugar para
“independentes de esquerda” como ele, “num país aonde a esquerda se
fez chantagem no caminho de um poder mal ganho.” Mais tarde, em 1976,
considerou que era urgente uma “estabilização política e económica”
e, no ano seguinte, falaria, inclusive, da necessidade de respeitar “a
autoridade do governo, pois sem ela não há país, não há nada.”
Ao dirigir-se, mais do que uma vez, à diáspora portuguesa na Califórnia,
teve palavras agrestes contra quaisquer veleidades independentistas
nos Açores, a ponto de mais tarde ter dito a Eduardo Lourenço que a
ele se deveu o facto de nas cerimónias do 10 de Junho se comemorarem
“as comunidades portuguesas” e, acima de tudo, que também a ele se
deveu o facto de os arquipélagos atlânticos se manterem integrados na
terra-mãe. Sendo um adversário da independência dos Açores (insistiu,
vezes sem conta, que as ilhas nunca tinham sido colónias de Portugal),
confessou, porém, que, quando essa independência se desse e um
governo soberano fosse instalado no arquipélago, iria pedir a cidadania

16
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

insular, pois tinha lá ancestrais raízes, que remontavam ao século XVIII


(uma vez, Jorge de Sena instruiu José-Augusto França para não deixar de
colocar “de” no seu nome).

O “reino da estupidez”

E Portugal, afinal? As ambivalências costumeiras da nossa


intelectualidade. O “reino da estupidez” parecia-lhe “uma coisa
medíocre, mesquinha, reles”, como dirá a Eduardo Lourenço, em
carta de 1968, onde também confessou: “São muito poucas as pessoas
que, em Portugal, eu admiro, e menos ainda as que, admirando,
respeito.” Numa missiva de 1977, igualmente dirigida ao ensaísta de
O Labirinto da Saudade, descreveu o país como “aquela caca que
a Providência nos deu para nascer e amar.” A José-Augusto França
declarara, anos antes, que Portugal não passava de “uma fantasia
apenas, muito triste” e de “um Carnaval sangrento e malcheiroso.”
Ou ainda, como afirmou noutro escrito: “Portugal é um país de
amadores.”
Jorge de Sena entendia que os portugueses, contrariamente a certos
mitos, não eram um povo que se adaptava facilmente a outros meios nem
eram gente de brandos costumes
(“os portugueses podem ser tão bons
Sena orgulhava-se de a matar como qualquer povo”). A
sua concepção da portugalidade
ser um exilado (nunca
era profundamente historicizada,
um “emigrante”) e um impregnada por uma visão do
“estrangeirado notório”, passado que, com laivos de algum
mas manteve até ao fim nacionalismo, não deixava de render
culto às grandes figuras e, entre o
a ligação umbilical à
mais, defendia Camões dos que o
pátria, vil e ingrata atacavam por imperialista e o Infante

17
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

D. Henrique das acusações de colonialista (ainda que Sena, em privado,


dissesse a José-Augusto França que o Infante tinha sido “o primeiro
colonialista português”). Além das grandes figuras, o discurso historicista
de Sena prestava particular atenção aos momentos emblemáticos do
passado luso, com natural destaque para os “feitos extraordinários” da
gesta dos Descobrimentos, que “deram aos Portugueses uma específica
dimensão na História Universal”, bem como a outros lugares de memória
escolhidos pelo seu especial significado político e simbólico, como a crise
de 1383 (“um putsch lisboeta”) ou a revolução de 1910.
Sena orgulhava-se de ser um exilado (nunca um “emigrante”) e um
“estrangeirado notório”, mas manteve até ao fim a ligação umbilical à
pátria, vil e ingrata. Em 1973, quando questionado por Baptista-Bastos
sobre se mantinha o contacto com a cultura portuguesa, respondeu
de imediato que achava essa pergunta sumamente estranha, sendo
óbvio que sim. Maldizendo uma entidade abstracta designada Portugal,
reservava os seus raros elogios para outra entidade não menos
abstracta, o povo português: “podem acusar-me do que quiserem, mas
sempre tive confiança no povo português, nunca tive foi confiança nas
chamadas classes altas portuguesas”, disse em 1978, para logo confessar,
desconfiado, que receava o “emburguesamento” das nossas camadas
populares. No mesmo registo de enaltecimento do povo, escrevera a
Sophia de Mello Breyner que, na “pátria vil”, “tirando o povo e uns
raros, é vil canalha, e mesquinha…” e que, “salvo o povo e algumas
excepções honrosas”, Portugal e o Brasil tinham o que mereciam. Quase
recuperando uma velha máxima da propaganda colonial do Estado Novo,
cunhada por Henrique Galvão, Sena disse ao Diário de Lisboa, em 1969,
que “o povo português não é um povo de um país pequeno”. Mais tarde,
e a propósito das conturbações do processo revolucionário e do risco
de uma guerra civil, salientaria a necessidade de “ter esperança no bom
senso do povo português”.
Em seu entender, mesmo nos tempos da ditadura os portugueses

18
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Do ponto de vista sempre foram um povo genuína e


esmagadoramente democrata, ficando
cultural, Jorge de Sena
então por esclarecer a razão pela qual
sustentou que “toda a o regime durara tantas décadas e, pior
cultura é de esquerda, ainda, porque escrevera Sena, em 1956,
pelo que representa que “a maioria dos portugueses não
tem aquilo que se designa por cultura.”
de contestação
Afirmação tanto mais estranha quanto
da injustiça, da Jorge de Sena iria sustentar mais tarde,
desigualdade, da e recorrentemente, que a ideia da
opressão”. imaturidade cívica do povo português
era falaciosa, porquanto “a imaturidade
“Cultura de direita”
de um povo é sempre o espelho da
nunca haveria, imaturidade dos seus governantes.” Em
portanto contrapartida, a tese, propalada após
a revolução, de uma “via portuguesa
para o socialismo” não passava,
segundo ele, de um resquício da “retórica do passado” e de “velhas ideias
nacionalistas”. Nunca renegou o 25 de Abril (“durante toda a vida esperei
por um acontecimento assim”), ainda que algumas vicissitudes do PREC
lhe tenham merecido as maiores reservas, a ponto de ter falado, em
poema e prosa, da “Revolução dos Cravos e dos Cravas”. Em 1975, referiu-
se ao “oportunismo trágico” do PCP e classificou o MDP como “a Ordem
Terceira de São Álvaro Cunhal”. Também nesse ano, numa carta conjunta
a Alexandre O’Neill e a João Palma-Ferreira, aludiu a “clamores de guerra
civil” e mostrou-se alarmado com a possibilidade de se repetir “em pior”
o desastre de Alcácer-Quibir, observando que a crise portuguesa da altura
era “mais complexa e perigosa do que 1580”. Pouco depois, porém,
aparentava estar mais tranquilo, afirmando que “não é a primeira vez que
Portugal passa por acontecimentos que parecem pôr tudo em causa”.
A dada altura, queixou-se que Abril se aburguesara, não sendo,

19
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

pois, “a revolução que nós desejávamos” (entrevista ao Diário Popular,


Setembro de 1976). E chegou a referir, noutra ocasião, que no processo
revolucionário português se tinham cometido “erros tremendos” e que
a revolução almejada e necessária “não se fez”, “provavelmente não
se fará nunca” e até, em boa verdade, “nunca teria sido possível” em
Portugal, o que sempre levará a perguntar porque acolheu com tanto
entusiasmo o 25 de Abril e os tempos subsequentes. Talvez a explicação
esteja em palavras do próprio Jorge de Sena, que um dia proclamou que
“passar a vida a fazer proclamações é uma actividade literária como outra
qualquer.”
Em qualquer caso, a revolução de Abril representou, para ele, um
passo na aproximação ao poder – e ao que este poderia dar. Em Maio de
1974, Jorge de Sena e José-Augusto França já trocavam correspondência
sobre possíveis lugares na Universidade ou mesmo na política, com o
primeiro a aventar – e descartar – a hipótese de uma pasta ministerial:
“não serei ministro de nenhuma Cultura, embora fosse capaz de sê-lo”.
Mais tarde, em 1977, com França colocado na presidência do Instituto
de Cultura Portuguesa e tendo surgido a possibilidade de abertura de
um leitorado na Universidade da Califórnia, onde Sena leccionava, este
escreveu ao amigo para combinarem entre ambos como se iria processar
o respectivo concurso. Sena falou de “cláusulas secretas”, nos termos
das quais não seriam admitidos nomes de “fascistas ou fascistóides”,
não convindo também nomear alguém demasiado à esquerda, por causa
do atávico conservadorismo da diáspora portuguesa na América. Além
disso, Sena exigia, como “patriarca dos estudos portugueses por estas
bandas” e como titular da “mais alta categoria de catedrático”, que
não fosse apresentado alguém que não o respeitasse: “Não admito que
venha uma pessoa que me não respeite” (itálico no original). Havia ainda
que ultrapassar o escolho das entrevistas pessoais aos candidatos, uma
peculiaridade meritocrática das academias americanas, mas para isso
Sena impôs outra “cláusula secreta” ao amigo França: “A gente joga com

20
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

as cartas marcadas”. No final, tudo acabou bem, e foi escolhido um nome


a contento de ambos.

Cultura e costumes

Do ponto de vista cultural, Jorge de Sena sustentou que “toda a cultura


é de esquerda, pelo que representa de contestação da injustiça, da
desigualdade, da opressão”. “Cultura de direita” nunca haveria,
portanto. Existiria, quando muito, uma “cultura conservadora”, cujos
contornos, porém, Sena não especificou. Referiu, noutro lugar, que
“a “esquerda” é por necessidade uma forma superior de inteligência”,
razão pela qual se mostrava impressionado por muita da esquerda
portuguesa “ser tão boçal”, e, mais grave ainda, por faltar à verdade
aos cidadãos, preocupando-se tão-só em “vender o seu peixe”, “sem
escrúpulo nem rebuço”.
Em matéria de costumes, revelou-se um liberal radical, alguém que
entendia que “numa sociedade equilibrada e livre, a “moral” não deve
exceder o nível de apenas regulamentar a eficiência das relações sociais
no âmbito da estrutura do Estado”. Contudo, e no que parecia ser uma
atitude antifeminista, considerou que o “caso das Três Marias” fora mal
apresentado na imprensa internacional, como se o livro tivesse sido
atacado por apoiar o movimento das mulheres, quando tais ataques se
dirigiram, isso sim, à obra em si, não ao tema nela versado. Afirmou-se,
na ocasião, um defensor dos direitos das mulheres, um denunciante da
“síndrome do machismo” patente na sociedade portuguesa (num verbete
de dicionário dedicado ao amor, assinalou que “a mulher portuguesa sabe
a que ponto os homens vivem no seu esófago ou no seu útero”).
Quanto ao mais, advogou a causa da pornografia e da prostituição,
apoiando também a abertura de sex-shops em Portugal, que considerou
serem “uma indústria como as outras”. Em entrevista a Fernando
Dacosta, fustigou o erotismo, que classificou como uma espécie

21
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

de “masturbação mental” por nele as coisas serem meramente


sugeridas, insinuadas, “mas não acontece nada”, havendo o risco de as
pessoas ficarem a imaginar coisas. Ao invés, os filmes pornográficos,
mais salutares, tinham “tudo visível” e neles “não fica nada para
a imaginação”. Mostrou-se igualmente a favor da prostituição,
regulamentada e organizada pelo Estado, por haver pessoas que
não têm “vocação para outra coisa” (aduziu o exemplo dos docentes
universitários, onde “a percentagem das “prostitutas” é a mais elevada”)
e, avançou, a propósito, uma inquietante pergunta: sem prostituição e
prostitutas, “como é que os tímidos, os feios, os aleijados, as pessoas sem
graça, etc., etc., se governavam?”
Em Fevereiro de 1978, poucos meses antes de morrer, regressou ao
tema. Discorreu novamente sobre a “alta percentagem de prostitutas”
nos meios académicos e, também de novo, observou que “as prostitutas
sempre alegraram a vida de muito solitário, e ensinaram a fazer amor
como deve ser a muito rapaz sem talento para isso.”

Uma casa portuguesa

“Portugal nunca precisou de mim para nada…”, queixou-se


amargamente, numa entrevista que em 1976 concedeu ao Diário
Popular. Jorge de Sena, no entanto, precisou de Portugal para muito,
quanto mais não fosse como objecto de estudo, saco de pancada
e, acima de tudo, como muro de lamentações por falta de convites
oficiais, ofertas de emprego ou gestos aclamatórios.
Nos últimos anos de vida, declarou em várias entrevistas que o seu
regresso à pátria não dependia dele, colocando sobre os outros o ónus de
o resgatarem de um prolongado, mas voluntário, exílio. Interpelado sobre
a possibilidade de voltar, respondeu que “esse problema não me compete
a mim”; noutra ocasião, avisou: “o meu regresso a Portugal nunca esteve
condicionado por mim mesmo.” Dito isto, esperou. Numa entrevista

22
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

publicada poucos meses antes


de morrer, o dramaturgo
de O Indesejado foi mais
longe, explicando a falta de
convites por uma conjura
de circunstâncias adversas:
a morte, num acidente
automóvel em Coimbra, do
amigo que tivera a ideia da
sua vinda para Portugal; o
silenciamento, por parte do
poder político de Lisboa,
dos que ousaram propor o
seu regresso; um convite
exploratório, mas nunca
concretizado, formulado
na cidade do Porto. Assim,
e como o chamamento
tardasse, morreu de cancro
em Santa Barbara, na
Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional ENRIC VIVES- Califórnia, a 4 de Junho de
RUBIO / ARQUIVO
1978, com 59 anos. Meses
depois, foi condecorado,
a título póstumo, com a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago, e a Câmara
Municipal de Lisboa reconheceu o seu valor e homenageou-lhe o talento
dando o seu nome a uma pequena rua da freguesia da Ameixoeira, numa
zona limítrofe e pouco conhecida da capital, nas imediações da Calçada
de Carriche. Também no Bairro Codivel, em Odivelas, há uma artéria com
o nome Jorge de Sena, perpendicular à Alves Redol.
O poeta manteve até à morte a sua casa portuguesa, a moradia nº.
225 do Bairro do Restelo, em Lisboa. Em 1968, o ministro Gonçalves

23
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Proença proferiu um despacho a retirar-lhe o uso dessa casa, uma


habitação económica do Estado Novo, propriedade do Ministério das
Corporações, destinada a fins sociais. A mãe do poeta morrera no ano
anterior, ele saíra de Portugal há quase uma década, a casa estava vaga,
até fora ocupada entretanto. Em face disto, Jorge de Sena, que em vários
escritos se manifestara contra a prática do compadrio, das cunhas e
dos favores, considerando-os um inequívoco indício do atraso mental
lusitano, resolveu pedir auxílio a Eduardo Lourenço, outro pensador
da portugalidade, sabendo que este era amigo do ministro Proença há
muitos e muitos anos. Forneceu-lhe, inclusivamente, instruções precisas
sobre como deveria endereçar o pedido ao Gabinete do Ministro, em
envelope discreto, com a indicação de “pessoal”. Segundo Sena, as
circunstâncias políticas eram então favoráveis à sua causa imobiliária:
“Com o alarido, o facto de o Marcelo ter dado ordem para eu entrar
livremente, etc., acho que é ocasião propícia para atacar o problema”.
Lourenço atacou o problema, e em força. Na carta para o Gabinete,
chegou a ameaçar o seu amigo ministro, dizendo-lhe que, se acaso ele
não resolvesse aquela questão vital para o poeta, este poderia “voltar as
costas à Pátria” e até mesmo fazer escândalo, gritando aos quatro ventos
que ficaria para sempre do lado de lá do Atlântico (onde morreu). Não se
invocaram fundamentos jurídicos nem razões legais, até porque, segundo
Lourenço, “na lei se deve basear o Ministério para lhe recusar o direito
à casa.” Passados alguns meses, o autor de Arte de Música agradeceu-
lhe o empenho: por causa da contundente missiva, o ministro alterara
o despacho, a casa ficava sua. Logo a ofereceu a Lourenço, louvando-
lhe as comodidades (“uma casa grande e habitável, ao seu dispor”). Por
meios informais e outras amizades, Sena soubera anteriormente que a
carta de Eduardo Lourenço tivera “grande influência” junto do ministro
de Marcello Caetano, e que o despacho fora anulado, mas só com a
confirmação oficial da notícia, recebida com grande júbilo, agradeceu
ao amigo. De Santa Barbara, pediu-lhe ainda que, em nova carta,

24
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

agradecesse ao ministro, e disse que ele próprio também iria escrever


ao governante, em preito de gratidão. E assim, graças à diligência de
um filósofo e à benevolência de um ministro, o poeta de Metamorfoses
conseguiu manter a sua residência de Lisboa, e dizer, em entrevista ao
Jornal de Notícias, que ela era “património dos meus filhos – o único que
possuem, além da minha própria pessoa.”

António Araújo é historiador e jurista

VOLTAR AO ÍNDICE

25
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Jorge de Sena e o Brasil


O problema da literatura no Brasil, dirá Sena, é “o medo
que os brasileiros têm de que a sua literatura possa não ser
suficientemente brasileira”, razão pela qual tendem a expulsar
a literatura portuguesa de qualquer tipo de relação com ela,
tornando-a, “paradoxalmente, mais estrangeira do que
[as outras literaturas estrangeiras]”.

Ensaio de: Osvaldo Manuel Silvestre

J
Jorge de Sena gostava de recordar que o seu primeiro contacto
físico com o Brasil ocorrera na juventude, mais exactamente em
1937-38, na qualidade de primeiro cadete da Marinha, em viagem
de instrução no navio-escola Sagres. Para alguém sempre tão
empenhado na arqueologia dos processos histórico-culturais, o que
o fazia traçar vastos e minuciosos panoramas em que cada camada se
sedimenta sobre a anterior sem quase nunca resolver os conflitos de
que se fazem história e cultura, o episódio juvenil funcionava como uma
espécie de prova de que o contacto de Sena com o Brasil não nascera em
1959, ano em que se muda, com armas e bagagens, para esse país, mas
mais de 20 anos antes.
Ou seja, a mudança não fora um evento circunstancialmente motivado,
havendo pelo contrário toda uma história pessoal que longamente a
preparara ou mesmo pré-figurara. No texto inacabado que prefacia
o volume de Estudos de Cultura e Literatura Brasileira (1988), Sena
evoca o episódio mas faz recuar à infância a sua ligação literária ao

26
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Brasil: “Quando era criança e já devorava livros, havia em estante de


família livros brasileiros, publicados em Portugal no séc. XIX. Mas um
primeiro contacto com a literatura brasileira, menos romântica e mais
moderna, tive-o quando adolescente cheguei ao Brasil, e nele estive,
cadete de Marinha, por escassas semanas em Santos e S. Paulo”. Nesse
mesmo texto, Sena recorda que nos anos 30 e 40, “a literatura brasileira
moderna, e muito em especial a poesia, teve para os poetas portugueses
uma importância enorme, e poetas como Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima,
Ribeiro Couto, etc. eram a imagem complementar de uma modernidade
que, em Portugal, se manifestara quase só em Pessoa, Sá-Carneiro e
Almada Negreiros, cujas obras, até aos fins dos anos 30 e princípios de
40, eram mais mitológicas e menos acessíveis do que a daqueles poetas
brasileiros”. Esta questão regressará em vários dos textos que Sena
dedicará aos grandes modernistas brasileiros, sobretudo Cecília Meireles
e Manuel Bandeira, sugerindo que a formação dos poetas portugueses da
geração de Sena, numa altura em que Pessoa mal começava a surgir em
livro, se ficara a dever pelo menos em igual grau aos poetas brasileiros
modernos (para não falar já dos romancistas portugueses de 30 e 40,
cuja dívida aos romancistas “nordestinos” seria ainda superior — a
ponto de, como numa das suas típicas charges dirá, em texto sobre
Manuel Bandeira, “os camponeses do lusitano Alentejo fala[re]m como
bahianos”). Num acrescento significativo, Sena dirá que os modernistas
brasileiros “foram um exemplo de libertação poética, na nossa própria
língua, de um valor inestimável”.
A viagem de 1937-38 ganha, assim, uma redobrada pertinência, pois
coloca o jovem Sena em S. Paulo e no arco temporal (as décadas de 20
e 30) emblematicamente aberto pelo movimento modernista brasileiro
com a Semana de Arte Moderna de 1922, na mesma capital paulista. O
episódio “brasileiro” seguinte, na vida e obra de Sena, como o próprio
o apresentou, terá sido a edição, por Cecília Meireles, da (excepcional)

27
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Sena descreve antologia Poetas Novos de Portugal,


em 1944, que incluiu poemas do então
repetidamente uma
muito jovem poeta Jorge de Sena, na
situação em que altura com apenas o seu livro de estreia,
o Brasil funciona Perseguição (1942), no currículo.
em Portugal como Em texto de 1964, por ocasião da
morte de Cecília, Sena confessaria a
um mito, em
sua “dívida de gratidão” para com a
articulação estreita antologiadora, poeta que gozara em
com o do “mundo Portugal de um grande prestígio e
que o português influência, sendo “sempre equiparada
a grandes nomes como Pessoa ou Rilke,
criou”, e Portugal
quando talvez o Brasil não reconhecesse
funciona no Brasil todo, nela, o grande poeta que tinha”.
como o colonizador Esta ressalva é fundamental para
responsável por uma percebermos que se o Brasil, desde o
episódio juvenil de 1937-38, permite
série de erros
a Sena a experiência desdobrada do
cosmopolitismo modernista, dentro
do mesmo idioma, a verdade é que as suas portas de entrada nesse
modernismo, Cecília e Bandeira, representam nele uma variante
minoritária, ou renitente, não apenas por se tratar dos chamados
“modernistas do Rio de Janeiro”, quando o foco do movimento fora S.
Paulo, mas porque uma e outro resistem ao anti-portuguesismo que
define, do plano da língua ao da literatura e da cultura, o modernismo
brasileiro de 22, basicamente paulista. O tópico, nos seus vários planos,
percorrerá toda a obra de Sena, com particular ênfase após a deslocação
para o Brasil. No mais importante texto que dedicou a Bandeira, “O
Manuel Bandeira que eu conheci e que admiro”, Sena chamará a atenção
para que “o caso da língua, há que analisá-lo do lado português”, uma
vez que também os modernistas lusos tiveram de enfrentar “A tirania

28
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

do gramatiquismo académico, do pernosticismo da frase, da rareza do


vocábulo, etc.”, pondo assim em causa um dos cavalos de batalha do
modernismo brasileiro.
Os estudos e ensaios que, a partir de 1963, dedica ao “mundo
luso-brasileiro”, escritos no Brasil ou já nos EUA, exploram
todos os problemas e equívocos da relação luso-brasileira (para a
correspondência Sena reservou o desgaste psicológico, mas também
académico, de tudo isso ao longo dos anos). Recorrendo a um repertório
histórico, cultural e literário esmagador, Sena elabora longamente sobre
a natureza da relação entre os dois países e as duas culturas, elegendo
uma heurística comparatista pois, como justifica no final do grande
ensaio “Literatura Brasileira Comparada com as Literaturas da Hispano-
América”, “Comparar é o único meio de conhecer sem correr o risco
de acreditar demasiado nos outros e em nós mesmos”. Este ponto é
decisivo e deve ser lido em regime alargado, pois sempre que Sena se
exprime sobre a literatura brasileira fá-lo num quadro comparatista cujo
outro polo é, à partida, a literatura portuguesa, embora não apenas. Ao
fazê-lo, Sena põe em causa o devir da própria literatura brasileira, que
se autonomiza progressivamente da portuguesa, desde o romantismo,
até que, com o modernismo, a silencia enquanto parceiro de um
diálogo declarado extinto. Por outras palavras, para escritores e críticos
brasileiros, a literatura portuguesa passa a ser absorvida pela brasileira
“não como portuguesa, mas como ante-brasileira”, o que significa que a
literatura portuguesa só é pertinente até ao advento da independência
do Brasil, em 1822 (Portugal, dirá Sena, “só interessa até ao ponto em
que é pré-história do Brasil”), uma independência que o romantismo
desejaria transpor também para o plano de uma independência
literária, então mais suposta que efectiva.
O problema da literatura no Brasil, dirá Sena, é “o medo que os
brasileiros têm de que a sua literatura possa não ser suficientemente
brasileira”, razão pela qual tendem a expulsar a literatura portuguesa de

29
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

qualquer tipo de relação com ela, tornando-a, “paradoxalmente, mais


estrangeira do que [as outras literaturas estrangeiras]”. A esta “obsessão
da brasilidade” da crítica brasileira, Sena contraporá uma concepção
não-romântica de literatura, já que, a seu ver, o Romantismo foi
inventado “para colocar dificuldades no caminho de um claro
entendimento do carácter internacional da literatura em si
mesma”. Como pano de fundo deste combate crítico, Sena descreve
repetidamente uma situação em que o Brasil funciona em Portugal
como um mito, em articulação estreita com o do “mundo que o
português criou”, e Portugal funciona no Brasil como o colonizador
responsável por uma série de erros (a não criação de universidades,
por exemplo) e desastres que não terminam porque, como não se
esquece de notar, as classes dirigentes brasileiras desenvolveram desde
a independência uma arte particular, que consiste “em mudar as coisas
para que elas continuem a ser como eram dantes”.
Uma e outra vez, Sena proporá programas de acção que aproximem
os dois países, combatendo, desde a escola, o mútuo preconceito
e desconhecimento. Não temos qualquer razão para duvidar das
suas muitas declarações de amor ao Brasil, à cultura brasileira e aos
brasileiros, ainda que entremeadas de constatações como “O Brasil é
um país muito estranho”, tanto mais que o Brasil na obra de Sena não
se confina à sua abordagem temática ou explícita: a produtividade
de Sena na fase brasileira é assombrosa e percorre todas as áreas
do seu trabalho literário ou ensaístico, neste último caso justificada
pela dedicação exclusiva ao trabalho académico que a universidade
brasileira lhe permitiu. Mas o seu brasilianismo, que se manifesta
plena e livremente quando se muda para os EUA, tanto mais que
só aí começa a leccionar literatura brasileira, nunca abandona um
comparatismo que é, em si mesmo, uma crítica ao fundamento
nacionalista da cultura e literatura brasileira, desmistificando-o e
evidenciando todos os nós cegos que ele gera ou deixa para trás,

30
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

encolhendo os ombros. Como se Jorge de Sena revivesse in mente a


experiência daquele jovem modernista, português e anglófilo, que
em 1937-38 visita a capital em que o modernismo brasileiro se prepara
para proclamar a chegada da Idade de Ouro da literatura brasileira –
para achar que, afinal, algo ali não batia certo.

Osvaldo Manuel Silvestre é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.


Tem dividido o seu trabalho pela área de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua
Portuguesa. Dirige actualmente o Instituto de Estudos Brasileiros da sua Faculdade.

VOLTAR AO ÍNDICE

31
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Jorge de Sena, antologista


Qualquer autor tem de se confrontar com os caprichos da
memória ou da amnésia colectiva e o tempo dirá qual o papel
que a história reserva para Jorge de Sena. Contudo, eu sugeriria
desde já que o silêncio acerca de Sena ao longo de 2019 é
sobretudo um sintoma do quanto a sociedade portuguesa tem
evoluído desde a sua redemocratização em 1974, já que se tem
afastado cada vez mais, felizmente, de realidades que muita da
escrita de Sena tantas vezes denunciou.

Ensaio de: Ricardo Vasconcelos

Tantos morreram de opressão ou de amargura,


tantos se exilaram ou foram exilados,
tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos desaprenderam que a liberdade existe —
E agora, povo português?

Nunca Pensei Viver..., 27 de Abril de 1974

O
centenário do nascimento de Jorge de Sena é uma óptima
oportunidade para lembrarmos o papel único que este poeta,
romancista, contista, dramaturgo, crítico e ensaísta ocupou na
cultura portuguesa. E a genialidade da sua obra deve impedir-
nos de sentir excessivamente o facto de ser a efeméride a sugerir que

32
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

revisitemos essa mesma obra, já que esta fala por si e sempre nos
convidará a estudá-la, independentemente do quão presos à espuma
dos nossos dias possamos andar. Por outro lado, o silêncio em relação
a Jorge de Sena ao longo deste centenário do seu nascimento — até por
comparação com as celebrações, justas, do centenário do nascimento
de Sophia, ou do cinquentenário da morte de Régio —, quebrado
praticamente apenas em Novembro, indicia uma evolução na forma como
o escritor tem vindo a ser percebido.
Qualquer autor tem de se confrontar com os caprichos da memória ou
da amnésia colectiva e o tempo dirá qual o papel que a história reserva
para Jorge de Sena. Contudo, eu sugeriria desde já que o silêncio acerca
de Sena ao longo de 2019 é sobretudo um sintoma do quanto a sociedade
portuguesa tem evoluído desde a sua redemocratização em 1974, já
que se tem afastado cada vez mais, felizmente, de realidades que muita
da escrita de Sena tantas vezes denunciou. Não é de todo o caso que a
literatura de Sena apenas faça sentido se lida contra o pano de fundo
da ditadura, já que a leitura de livros como Metamorfoses e Sinais de
Fogo, entre outros, certamente não está presa a esse período. Contudo,
é inevitável reconhecer que a própria existência de Sena coincidiu quase
totalmente com o longo período de supressão das liberdades mais básicas
em Portugal, já que a Ditadura Militar se instalou quando Sena tinha
ainda seis anos (Maio de 1926), e a Revolução dos Cravos chegou quatro
anos antes de o autor falecer. Não é sem consequência que durante toda a
juventude e vida adulta se vê o país de origem debaixo de uma ditadura.
No essencial, a vida de Jorge de Sena coincidiu cronologicamente com
o fascismo português, e mesmo à distância a sua obra foi erigida contra
esse regime. Foi sobretudo escrita contra todas as limitações à liberdade
de pensamento, criação e expressão, e contra a castração dos desejos
— do desejo amoroso e sexual, ao desejo de conhecer o pensamento e
a arte de várias partes do mundo, para lá das fronteiras de um Portugal
orgulhosamente só. Importa continuar a assinalá-lo até porque, passados

33
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

mais de quarenta anos desde a sua morte, é possível ouvir enfatizar,


paradoxalmente aqui na Califórnia, onde o escritor morreu, que Sena terá
escrito vários textos desinteressantes e que a sua romagem ao Brasil e aos
EUA não terá correspondido exactamente a um exílio — esquecendo-se
mesmo essa diferença entre ser exilado e exilar-se, de que fala Sena em
Nunca Pensei Viver.... Apetece perguntar quantos ensaístas não dariam
o braço direito para escreverem algo tão original quanto as páginas mais
medianas que Sena escreveu. E, por outro lado, quanto ao hipotético
não exílio, o escritor, artista gráfico e fotógrafo Fernando Lemos dizia-
me, há alguns anos, em São Paulo, numa entrevista, que partira para o
Brasil na década de 50 já que Portugal, à época, era essencialmente “um
nojo”. É uma síntese que demonstra bem o país que a geração de Sena
suportou. Esquecer isto à distância de
mais de meio século, e no conforto da
Sena procura democracia, é no mínimo um erro de
valorizar as traduções perspectiva.
feitas por poetas, Assim, recorde-se Jorge de Sena e a
sua vasta produção, notando facetas
salientando
menos escrutinadas, de que é exemplo
um conhecimento o seu trabalho como antologista. A este
em primeira mão: respeito, Sena sofre, aliás, a mesma
“Se o poeta que traduz relativa indiferença crítica que tantos
é levado a ver a mais, outros antologistas, já que o mais
habitual em Portugal é uma antologia
quando o espírito causar alguma polémica no meio
crítico o não detém, literário, para depois progressivamente
o não-poeta vê sempre ir sendo ignorada, sobretudo pelo
meio académico, que tradicionalmente
de menos, e não há
considera as antologias como objectos
ciência crítica particularmente transparentes e
que o salve” irrelevantes.

34
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Ao longo da sua vida literária, Jorge de Sena organizou a antologia


Líricas Portuguesas — 3.ª Série e os volumes de poesias traduzidas Poesia
de 26 Séculos (inicialmente vol. I, De Arquíloco a Calderón, e vol. II, De
Nietzsche a Bashô; mais tarde reunidos num só) e Poesia do Século XX (De
Thomas Hardy a Carlo Vittorio Cattaneo), considerando estas colectâneas
duas partes de um mesmo projecto. Publicou ainda dois volumes com
traduções de Emily Dickinson e Constantino Cavafy, e por fim a antologia
da sua própria obra Trinta Anos de Poesia.
As antologias de traduções avulsas de Jorge de Sena, em que
essencialmente reúne centenas de poemas que foi vertendo para o
português ao longo da sua vida, apresentam vários motivos de interesse,
de que destacaria três. Em primeiro lugar, Sena assinala a diversidade
das suas recolhas de poesia internacional, que ilustrava a variedade
dos seus próprios interesses, já que os títulos nestas antologias não
obedeciam a uma selecção prévia de autores baseada em critérios de
representatividade, mas simplesmente correspondiam a poemas que ao
editor tinha dado prazer traduzir. Sena chega a fazer análises estatísticas
sobre a idade média da morte dos poetas reunidos, e a reflectir sobre a
presença de mulheres ou de escritores homossexuais, para notar que,
por exemplo, a Poesia de 26 Séculos reúne poemas de autores que foram
ricos, pobres, novos e velhos, de diferentes estados civis e orientação
sexual, “tal como na vida dos que não são poetas”. Sena procura ainda
valorizar as traduções feitas por poetas, salientando um conhecimento
em primeira mão: “se o poeta que traduz é levado a ver a mais, quando
o espírito crítico o não detém, o não-poeta vê sempre de menos, e não
há ciência crítica que o salve”. Finalmente, Jorge de Sena reporta-se à
velha questão da pretensa intraduzibilidade da poesia, para dizer que
rejeita agir “como se a tradução fosse um pecado”, isto é, uma “infrutífera
tentativa de comunicação”. Diga-se, aliás, que a maior crítica que estas
antologias de poesia traduzida por Sena receberam foi precisamente a
não indicação das fontes, já que incluíam escritores cujas línguas originais

35
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Sena não dominava; o escritor, porém, nunca respondeu a esta crítica —


em rigor essa recusa de se sentir coagido a não traduzir foi sempre a sua
única resposta.
No que diz respeito às Líricas Portuguesas de Sena, esta antologia
ganhou um relevo incontornável e foi sendo recordada por sucessivas
gerações de escritores. Diga-se que as Líricas Portuguesas correspondem
não tanto a um plano editorial organizado previamente, mas a uma
sequência de “Antologias Universais” da Portugália Editora cujos formatos
foram sendo modificados ao longo de décadas. O volume publicado por
Régio, As Melhores Líricas Portuguesas (1944), em edições subsequentes
intitulado apenas Líricas Portuguesas, é uma antologia do cânone da
poesia portuguesa até ao Modernismo, incluindo as figuras de Pessoa
e Sá-Carneiro. A segunda série, organizada por Cabral do Nascimento
(1946), visa apresentar um panorama do fim do século XIX e da primeira
metade do século XX, excluindo os autores coligidos por Régio — e assim,
em boa verdade, condenando-se ao esquecimento.
Em contrapartida, a terceira série, organizada por Jorge de Sena (1958),
apresenta um objectivo radicalmente diferente, já que visa organizar o
próprio meio literário contemporâneo à edição, contrariamente às duas
séries anteriores. Assim, a antologia apresenta duas partes: a primeira
correspondente a sete poetas que no entender de Sena deveriam ter feito
parte da série organizada por Cabral do Nascimento, e a segunda a poetas
nascidos entre 1909 (ano em que Cabral do Nascimento se detivera) e
1929, havendo assim o critério de os poetas coligidos terem entre os
trinta e os cinquenta anos de idade. O próprio Jorge de Sena nascera
exactamente a meio desse intervalo, em 1919. Haverá ainda uma quarta
série (1969) dedicada à década de 60, organizada por António Ramos
Rosa, volume que começa com poetas nascidos em 1930 e que termina
com Gastão Cruz, então com 28 anos.
As Líricas Portuguesas de Sena destacaram-se e são recordadas ainda
hoje pela originalidade da metodologia, pela argúcia crítica das notas

36
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

biobliográficas de Sena, e pela riqueza do prefácio. Neste texto, Sena


discorre sobre o conceito de poeta-crítico e a natureza das antologias
panorâmicas, caracteriza extensivamente a sociedade portuguesa no
período entre guerras e até à Guerra Fria, ensaia uma classificação
estética dos poetas coligidos e problematiza o próprio conceito de lirismo,
fundamental ao título. É um tour de force crítico e teórico riquíssimo.
A metodologia do livro, por sua vez, surpreende o meio literário pela
tentativa concreta de reduzir a subjectividade e integrar opiniões
divergentes. De facto, o antologista faz uma primeira selecção de autores
com estéticas diversas e solicita a estes que indiquem outros autores que
em seu entender devem também estar presentes, acabando Sena por
seleccionar os mais votados. O resultado é um amplo friso que inclui neo-
realistas, surrealistas, autores dos Cadernos de Poesia, poetas ligados
a publicações como Távola Redonda, Graal, Árvore, Serpente, e ainda
outros autores menos alinhados.
O que justifica esta antologia, contudo? Como motivação para a
organizar, Sena sugere que esta geração tão diversificada estava a cair no
esquecimento, o que aos nossos olhos, hoje, parece até surpreendente.
A razão para tal, contudo, é clara e é não tanto uma questão de
esquecimento, mas antes de pura sombra: “É certo que não contamos
entre nós um Fernando Pessoa ou um Sá-Carneiro”, diz-nos Sena, mas
“nem qualquer época é menos importante ou significativa pelo facto
de não ter produzido um Camões ou um Fernando Pessoa”. De facto, é

“É certo que não contamos entre nós um Fernando


Pessoa ou um Sá-Carneiro”, diz-nos Sena,
mas “nem qualquer época é menos importante
ou significativa pelo facto de não ter produzido
um Camões ou um Fernando Pessoa”
37
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

sobretudo a sombra projectada por Orpheu e a Presença que leva Sena


não tanto a enveredar por uma teorização sobre um qualquer supra-
Camões que haveria de vir, em defesa dos méritos da geração, como
antes fizera Pessoa, mas pela organização de um formato de antologia
radicalmente diferente das anteriores, com os objectivos últimos de
criar um espaço para a contemporaneidade e, ao mesmo tempo, de
organizá-la. É um modelo que, como se percebe, acabará por fazer
escola até final do século XX em Portugal. Acresce que, apesar de noutro
lugar ter criticado a auto-exclusão dos antologistas (“acho idiota esse
preconceito”), o facto é que o formato escolhido permite a Sena incluir-se
a si mesmo apenas por ter sido “o mais votado dos que não figuravam na
lista inicial”.
A terceira série das Líricas Portuguesas causa um forte impacto no
meio literário, de Dezembro de 1958 até o fim do primeiro semestre
de 1959, suscitando múltiplos elogios, de que é exemplo o de Casais
Monteiro, que a qualificou como “a melhor antologia, em qualquer
género, que até hoje se fez em Portugal”, e críticas à inclusão de autores
vários, como por exemplo Raul Leal. Décadas depois, à medida que a
antologia vai sendo reeditada, é descrita como uma obra de absoluta
referência, por autores e críticos tão argutos como Fernando Guimarães
ou Assis Pacheco, que lhe reconhecem o mérito de ter aglutinado vozes
díspares de uma mesma geração.
Quanto ao talento de Sena, e à forma como se plasmou na recolha, e
à relação que o poeta estabeleceu com o cânone a partir deste meio, a
antologia, talvez as palavras mais sensatas tenham sido as de Herberto
Helder, poeta que não integrou o volume em virtude dos critérios
etários da edição (acabaria por entrar na quarta série). Numa entrevista
ao Diário Ilustrado, Herberto Helder afirma que essa “antologia
representa efectivamente o panorama da poesia portuguesa actual com
todas as suas inibições, falhas e impropriedades.” Para Herberto, Sena
estava mesmo “acima do período cuja representação organizou. [...]

38
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

O melhor daquela obra julgo ser o prefácio, inteligente esforço para


salvar algumas daquelas gerações irremediavelmente frustradas. Deste
prefácio poder-se-á dizer que é a peça ensaística mais arguta, sólida e
informada que se escreveu em Portugal nos últimos anos”. Em suma,
na opinião de Helder, como “crítico-antologiador, Jorge de Sena tinha
direito a outra época da poesia nacional.” Tenha ou não sido o caso, é
também à capacidade de Jorge de Sena de organizar o seu meio literário,
com recurso a uma antologia, que devemos grande parte da nossa visão
dessa geração. E a ideia de que as antologias podem ajudar a definir
um cânone literário nunca mais foi esquecida pelos nossos poetas, que
a elas constantemente continuarão a recorrer. Quanto ao resto, meses
depois, Jorge de Sena fazia as malas e partia.

Ricardo Vasconcelos, completou em 2010 o seu doutoramento na Universidade


da Califórnia em Santa Bárbara, instituição onde o escritor Jorge de Sena leccionou
até morrer, em 1978. É actualmente professor associado na Universidade Estadual
de San Diego, também na Califórnia. Publicou em 2009 o primeiro estudo de fundo
sobre todas as antologias organizadas por Jorge de Sena, intitulado “Como Vingar-se
de Antologias (segundo Jorge de Sena)”.

VOLTAR AO ÍNDICE

39
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

O crítico prodigioso
Como escritor temerário que sempre foi, e sentindo-se “outcast
de grupos literários e profissionais”, Sena falou de tudo, de todos
e da maneira que entendeu ser a certa, mesmo que por vezes
tenha sido desagradável ou agressivo.

Ensaio de: Joana Meirim

N
a obra crítica de Jorge de Sena, e apesar da vastidão do tópico, que
abrange inúmeros estudos de história, de cultura e muitos outros
de literatura, é possível reconhecer a prática persistente de quatro
verbos: “elucidar”, “corrigir”, “desmentir” e “analisar”. Ainda que
recorrentes ao longo da sua produção ensaística, surgem enunciados
por esta ordem na introdução a Estudos de História e de Cultura (1967),
um volume monumental que faz o escrutínio genealógico do primeiro
rei de Portugal e termina com um extenso ensaio dedicado à evolução
do mito de Inês de Castro, comentando autores e épocas diferentes. Os
quatro verbos em causa podem aplicar-se ao espírito crítico deste autor, e
julgo que são também os princípios orientadores e, ao mesmo tempo, os
objectivos da actividade crítica de Sena: a vontade de esclarecer (a si e aos
outros), de corrigir (eventuais equívocos), de desmentir (repor a verdade)
e de fazer a análise e “observação concreta” do que são as obras e as
personalidades que as criaram, procurando provas cabais de que as suas
intuições eram realmente certeiras e não se reduziam a meras opiniões.
Várias vezes, Sena defendeu a necessidade de uma ciência da literatura
contra o chamado impressionismo crítico, e certamente também como

40
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

reacção àqueles que o julgavam como alguém que, sem licenciatura na


área de letras, vinha meter foice em seara alheia. Num texto de O Reino
da Estupidez (1961), “Sobre a liberdade do dislate ou dos fundamentos
da crítica”, Jorge de Sena fala da necessidade de aplicar aos estudos
literários as noções básicas dos estudos jurídicos, nomeadamente o
discernimento crítico para saber distinguir entre matéria de facto, de
direito e de opinião. Neste mesmo ensaio censura o desfasamento “entre
as pretensões críticas e a modéstia dos conhecimentos factuais”. Este
volume é, aliás, pródigo em ensaios breves e sem aparato citacional,
nos quais Sena reflecte sobre a postura do crítico e o papel do poeta
(chamando a atenção para a importância da independência da crítica, a
procura da verdade, e censurando o academismo supérfluo, o cinismo
intelectual, etc.) e faz ainda um retrato bem-humorado da vida intelectual
e do “Panorama da literatura portuguesa”: “Goza esta (...) da fama de
transbordar de poetas. E, com efeito, nos manuais, o número de senhores
que fizeram versos só tem par com o número, também elevado, de
senhores que não fizeram nada”.
Em todos os seus textos críticos, e não só nos de cariz pretensamente
mais polémico e satírico, existe um tom dominante, que ecoa também
na sua não menos vasta correspondência, e que consiste no “admirável
impudor de não poupar precisamente as palavras que mais riscos
comportassem”, como diz José Saramago no obituário que lhe dedica no
Diário de Lisboa. Como escritor temerário que sempre foi, e sentindo-se
“outcast de grupos literários e profissionais”, Sena falou de tudo, de todos
e da maneira que entendeu ser a certa, mesmo que por vezes tenha sido
desagradável ou agressivo.
A estreia como crítico dá-se em 1939, usando o pseudónimo de Teles de
Abreu, com um ensaio intitulado “Em prol da poesia chamada moderna”,
e desde então que a sua crítica revela um leitor “omnímodo” e “omni-
compreensivo”, nos termos de Eduardo Lourenço ao falar de Jorge
de Sena. O prefixo latino é, aliás, justíssimo para caracterizar não só a

41
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

actividade crítica, mas também para classificar a personalidade literária


de Jorge de Sena no seu todo. Embora a sua obra crítica contemple uma
diversidade significativa de tópicos — a teoria da literatura, a história da
literatura, autores como Camões e Pessoa, as literaturas de língua inglesa,
a literatura e cultura brasileiras, a história de Portugal, entre outros, — é
aos estudos portugueses que sempre deu especial atenção. Dos Estados
Unidos da América escreve a Eduardo Lourenço em Janeiro de 1968:
“Todos os meus estudos e o meu ensino são dirigidos para esse fito –
rever e estabelecer uma teoria geral da
literatura portuguesa, não segundo as
Embora a sua obra ideias que eu tenha, mas segundo os
crítica contemple factos e os textos.” A procura dos factos
e a fidelidade aos textos são orientações
uma diversidade
ético-literárias que sempre privilegiou
significativa de no seu trabalho.
tópicos — a teoria da Se nos estudos sobre Camões,
literatura, a história nomeadamente nas obras que lhe

da literatura, autores valeram a consagração académica e a


entrada na Universidade, no estrangeiro,
como Camões e temos de lidar com a por vezes excessiva
Pessoa, as literaturas numerologia (e.g. Uma Canção de
de língua inglesa, a Camões ou Os Sonetos de Camões e o
Soneto Quinhentista Peninsular), há
literatura e cultura
em vários outros textos camonianos
brasileiras, a história (incluindo os poemas, a ficção que
de Portugal, entre lhe dedicou e o próprio “Discurso da
outros, — é aos estudos Guarda”) momentos de grande agudeza
crítica. Um dos mais significativos é
portugueses que
a tentativa reiterada de devolver a
sempre deu especial Portugal um Camões que deve ser lido e
atenção. estudado pela sua obra e não por aquilo

42
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

que queriam que ele simbolizasse. São vários os textos que questionam
o eterno silogismo, conveniente a um certo tipo de discurso oficial sobre
Camões, de que falar d’Os Lusíadas é igual a falar de pátria enquanto
discurso laudatório. Num estudo publicado em Dialécticas Aplicadas da
Literatura (1978), Sena defende que a análise da estrutura d’Os Lusíadas
lhe permitiu provar que o poema de Camões “pode ser tido por belo,
fascinante, e atraente para espíritos modernos, por essas intenções serem
muito mais ambiciosas e universais do que se depreenderia da concepção
tradicional de o poema ter sido escrito apenas para celebrar a História
de Portugal”. Ainda sobre os estudos camonianos, Sena defendeu,
contrariando o espartilho da periodização literária, o maneirismo da sua
poesia lírica. Em “O Fantasma de Camões (uma entrevista sensacional)”,
texto publicado originalmente no Suplemento Literário de O Estado
de S. Paulo, em 1962, Sena tenta convencer Camões das vantagens do
seu método crítico e revela-lhe, entre outros achados, a descoberta de
“que ele era um ‘maneirista’ e dos maiores da época, e como era uma
falácia de caixeiros-viajantes da literatura, que, apesar de aposentados,
ainda continuam tendo circulação, aquela de ele ser um homem do
Renascimento”.
Para além da diversidade dos temas, das suas ideias e intuições, do seu
método crítico, há também uma atitude geral como investigador, como
pessoa que estuda os autores, que merece especial menção. Como crítico,
e mais tarde como professor universitário, Jorge de Sena deixou sempre
bem marcado o seu apreço pela liberdade intelectual, pela liberdade de
poder estudar os autores que entendia, sem ter de prestar vassalagem
ou pedir permissão (que não teria) à “indústria camoniana”, aos “donos
encartados de Pessoa” ou aos cafés literários do seu tempo. No fundo,
como crítico revela frequentemente “a coragem de pensar e sentido das
responsabilidades quanto ao que se pensou”, definição de pessoa culta,
que não é mero repositório de informação acumulada, dada no texto
“Citar ou não citar – eis a questão”, de O Reino da Estupidez.

43
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

A actividade crítica de Jorge de Sena estende-se a outras áreas do


seu trabalho, sendo a tradução uma delas. É sobretudo nos prefácios
e notas introdutórias às antologias de poesia que traduziu — 90 e mais
Quatro Poemas de Constantino Cavafy (1970), Poesia de 26 Séculos (1972),
Poesia do Século XX (1978) e 80 Poemas de Emily Dickinson (1979) — que
encontramos várias reflexões teóricas sobre o que é a literatura e o lugar
dos poetas na tradição literária.
Na introdução a Poesia de 26 Séculos, Sena revela a principal motivação
para o exercício de tradução: representar “toda a grande poesia deste
mundo”, “em que Arquíloco, um poeta sânscrito e Nietzsche se dão as
mãos, no mesmo saber essencial de que a poesia é tudo”. Esta tentativa
de conciliação do passado de toda a literatura com aquilo que é feito
pelos seus contemporâneos evoca, evidentemente, a tese central do
ensaio “Tradition and the Individual Talent”, de T. S. Eliot, de cuja
poesia e crítica Sena foi leitor assíduo. A sua actividade como tradutor
tem assim implicações de ordem crítica, não só na questão do diálogo
e convívio com toda a literatura do passado, actualizando a tradição
por via da tradução, mas também nas suas preocupações correctivas,
nomeadamente no que diz respeito à historiografia literária. Como
em vários ensaios de Dialécticas da Literatura, também os textos que
antecedem as antologias de poesia traduzida dão conta da necessidade
de rever a história da literatura, sobretudo a visão dominante, que tende
a separar autores por movimentos estéticos ou a submetê-los à rigorosa
periodização literária, não permitindo que Sá de Miranda seja tão ou
mais moderno que Sá-Carneiro. Também a tradução possibilita o desejo
seniano de uma literatura universal, não confinada a um país ou a uma
língua. É contra o paroquialismo literário que Jorge de Sena diz traduzir
profusamente os grandes autores, “homens do seu tempo e de sempre”.
A tradução, para Sena, tem ainda uma importância significativa do
ponto de vista biográfico. Deve a Esorcismi, uma antologia italiana da sua
poesia, organizada por Carlo Vittorio Cattaneo, poeta, tradutor e autor

44
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

do primeiro trabalho académico sobre Jorge de Sena, a sua consagração


poética. É graças à publicação deste volume que ganha o único prémio
literário atribuído à sua obra poética, o Prémio Internacional de Poesia
Etna-Taormina, em 1977.
No discurso de recepção deste prémio, Sena assinala que por via da
tradução também entrou no “panteão da poesia” e, como qualquer
grande autor, sempre se quis e se fez um cidadão do mundo, no tempo
e no espaço.

Joana Meirim é professora na Universidade Católica Portuguesa e investigadora do


Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CECC) da mesma universidade. Fez o seu
doutoramento no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa com uma tese sobre Jorge de Sena e Alexandre O’Neill. Tem dedicado a sua
investigação a estes dois autores, tendo coeditado a correspondência entre Jorge de Sena
e Carlo Vittorio Cattaneo e publicado um livro coletivo de ensaios sobre Alexandre O’Neill.
Coedita o site de poesia e crítica Jogos Florais.

VOLTAR AO ÍNDICE

45
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Um “realismo que
não recua”: a ficção
de Jorge de Sena
A obra de Jorge de Sena, que consabidamente se reconhecia
(e, sobretudo, queria ser reconhecido) como poeta,
dá testemunho de que o engenho versátil do autor
não resistiu à tentação da narrativa.

Ensaio de: Paulo Alexandre Pereira

N
a sua desmesura quase inabarcável, a obra de Jorge de Sena,
que consabidamente se reconhecia (e, sobretudo, queria ser
reconhecido) como poeta, dá testemunho de que o engenho
versátil do autor não resistiu à tentação da narrativa, como
atestam as suas reincidentes experimentações ficcionais sob vários
formatos: conto, novela, romance.
Num escritor culturalmente omnívoro e criativamente proteico
como Sena, essa vontade efabulatória – remota, visto que surge em
concomitância com as suas primeiras tentativas líricas e dramáticas –
inscreve-se, coerentemente, num programa crítico e criativo, em que se
tornam indivisas estética e ética (ou, para retomar palavras dilectas do
autor, testemunho e linguagem) e que se desdobra em inúmeros registos
expressivos, irmanando o poeta, o narrador, o dramaturgo ou o ensaísta

46
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

nas suas compartilhadas obsessões, sempre reconduzíveis, contudo, a um


obstinado desígnio interrogativo do homem como ser-no-mundo.
Remontam, assim, a 1936 as primeiras incursões ficcionais de Sena
e, até 1940, esboçará o autor vários projectos de narrativas que nem
sempre levará a termo. Datam desse período os contos de juventude
“Paraíso Perdido” e “Caim”, compostos em 1937-38 e posteriormente
reunidos em Génesis (1983), mas também as primeiras prosas, coligidas
no volume póstumo Monte Cativo e outros projectos de ficção (1994),
onde se incluem uma narrativa histórica de ambientação medieval –
Século XII (D. Fuas Roupinho) –, um ciclo de narrativas breves (Clarões),
além de um romance embrionário (A Personagem Total). Embora
permita escrutinar os bastidores da oficina literária de Sena, esta
narrativa de juvenília não é, como bem se compreende, comparável
em audácia temática e processual com a ficção de maturidade que,
entre 1959 e 1965, no decurso de um muito fecundo exílio brasileiro,
o autor irá compor: as colectâneas de contos Andanças do Demónio
(1960) e Novas Andanças do Demónio (1966) – agrupadas, em 1978,
em edição conjunta no volume Antigas e Novas Andanças do Demónio
–, Os Grão-Capitães (volume concebido em 1961-62, mas dado à
estampa apenas em 1976, por sabê-lo o autor impublicável em tempos
de censura,) e a novela O Físico Prodigioso (originalmente integrada
em Novas Andanças do Demónio e publicada autonomamente em
1977). O catálogo de ficções senianas fica completo com o romance
Sinais de Fogo, opus magnum publicado postumamente em 1979,
mas, em larga medida, concebido entre 1964-65 e retomado, de modo
intermitente em momentos posteriores, pelo autor. Trata-se do primeiro
(e inconcluso) volume de um ambicioso ciclo romanesco, espécie de
Comédie Humaine à portuguesa, que, desde os anos 40, o escritor
vinha projectando e a que deu o nome de Monte Cativo, mas que,
como explica Mécia de Sena, “a vida e os muitos afazeres dela não lhe
permitiram que escrevesse” (“Introdução”, Sinais de Fogo).

47
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Percebe-se que Tendo pretendido, com a sua


obra, construir um “registo e arquivo
Jorge de Sena tenha
da experiência humana através da
insistentemente linguagem” (“Para um balanço do século
regressado, XX– poesia europeia e outra”, Dialécticas
em prefácios Teóricas da Literatura), percebe-se que
Jorge de Sena tenha insistentemente
proverbialmente
regressado, em prefácios
didácticos e a proverbialmente didácticos e a propósito
propósito da sua da sua própria ficção, ao magno
própria ficção, problema do realismo, equacionando-o
não tanto em termos de sincronia
ao magno problema
literária ou estilo de época, mas antes
do realismo como verdadeira estética (e, mais do que
isso, como política) de representação.
Lembrando, num ensaio de 1976, que “um ‘realista’ é um ser humano
que usa a sua imaginação para usar a realidade” e que “a ‘anti-realidade’,
muitas vezes, longe de ser um deliberado escapismo, pode ser, pelo
contrário, uma ferocíssima crítica da realidade social” (“Algumas palavras
sobre o realismo, em especial o português e o brasileiro”, Colóquio/
Letras), o autor defende um realismo integrativo (absoluto, chamar-lhe-á
no prefácio a Os Grão-Capitães), que admita tanto a deriva onírica e a
liberdade imaginativa, como a figuração dos inomináveis horrores da
História ou da mais repulsiva monstruosidade do homem, até porque
“nenhum realismo o será, se recuar aflito, mas porque, aflito, não recua”
(“Prefácio”, Os Grão-Capitães). É a este realismo que não recua, irrestrito
e sem concessões, que Sena se esforçará por dar substância ficcional,
em narrativas que, com notável desenvoltura, percorrem uma ampla
escala de representação, que se estende da fantasiosa irrealidade da
novela O Físico Prodigioso à veridicção (quase) autobiográfica do conto
“Homenagem ao Papagaio Verde”. Este realismo de largo espectro

48
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

declinar-se-á, esclarece Sena, tanto em narrativas onde prevalece um


realismo “fantástico” ou “imaginoso” – como acontece nos contos de
Novas Andanças do Demónio e, em particular, nessa diablerie anarco-
sexual intitulada O Físico Prodigioso –, como nas ficções alinhadas por
um “realismo fenomenológico” de recorte contemporâneo, nas quais se
procura “tornar mais reais que a realidade, e portanto tão monstruosas
como o que os nossos olhos temem reconhecer na ‘realidade’,
experiências vividas, testemunhadas ou adivinhadas” (ibid.).
Estão neste caso, os contos sombrios de Os Grão-Capitães, colectânea
que o autor, aludindo ao tenebroso quarto de século por eles recoberto,
incisivamente descreveu como “crónica amarga e violenta dessa era
de decomposição do mundo ocidental e desse tempo de uma tirania
que castrava Portugal” (“PS 1974 ao Prefácio que se segue”, Os Grão-
Capitães). Nesta defesa de uma impreterível ética da ficção, que
mesmo quando transfigura ou magnifica o real nunca prescinde de
o interpelar criticamente, não estamos, pois, assim tão distantes da
célebre teoria seniana do testemunho poético e da sua infatigável
celebração da dignidade humana, entendida como “fidelidade integral à
responsabilidade de estarmos no mundo” (O Reino da Estupidez).
Dessa responsabilidade, mas também da “força do amor que tudo
manda” e do “ímpeto da liberdade que tudo arrasa” (“Pequena nota
introdutória a uma edição isolada”, O Físico Prodigioso) nos fala a
magnífica novela O Físico Prodigioso, cujo protagonista Sena não hesitou
em descrever como “[seu] muito amado filho entre outros” e “como
que um alter-ego” (ibid.), considerando ainda tratar-se da sua obra mais
autobiográfica. Ambientada numa (pseudo)Idade Média fantástica, a
narrativa é protagonizada por um cavaleiro andante que, depois de, com
o seu sangue virgem, ter salvo a castelã, por ela se apaixona, dando livre
curso aos seus poderes sobrenaturais, mas também a um “descarado
pan-erotismo” (ibid). São estes que incendeiam a sanha persecutória dos
inquisidores e o conduzirão, no termo de um martírio de reminiscências

49
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

crísticas, à morte. Cruzando, num sofisticado jogo alusivo, esteios culturais


sincréticos (mitológicos, folclóricos, cristãos) e inúmeras tradições literárias
(cantiga de amigo, novela de cavalaria, hagiografia, exemplum), a novela
apresenta ainda a não pequena singularidade de colocar em cena um Diabo
lúbrico que virá, em devido tempo, a revelar um rosto inesperadamente
humano. Personificando o disruptivo poder do amor e a inescapável
lei do desejo, o Diabo seniano parece, como o seu criador, ensinar que
nenhuma líbido será castigada,
ao mesmo tempo que é por
Não estamos distantes da
ele indigitado como porta-voz
célebre teoria seniana do do libelo acusatório que Sena-
testemunho poético e da ele-próprio não se cansou de
sua infatigável celebração dirigir à sexofobia cristã. Mesmo
subliminar, a mensagem política
da dignidade humana,
da novela tornava-se facilmente
entendida como “fidelidade inteligível. A “distância ‘pseudo-
integral à responsabilidade histórica’” (ibid.) era também o
de estarmos no mundo» álibi perfeito para Sena poder
insinuar a revolucionária alegoria
satírica que, num paralelismo de
efeitos calculados, torna o bárbaro terrorismo da Inquisição evocativo da
bem mais contemporânea repressão salazarista.
É esse mesmo temor insidioso, alimentado pela cegueira autoritária ou
pela brutalidade ditatorial, que alastra nos contos – “cruéis”, previne Sena
– de Os Grão-Capitães. Abrindo com uma pungente evocação, de lastro
confessadamente autobiográfico, do terrorismo doméstico infundido por
um pater familias déspota, desenvolvida em Homenagem ao Papagaio
Verde, a colectânea multiplica, com desassombro hiper-realista, os
retratos grotescos do exercício prepotente e arbitrário do poder, em
contexto familiar ou castrense, denunciando-o em contos como “As Ites
e o Regulamento”, “O Bom Pastor”, “A Grã-Canária” ou “Capangala Não

50
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Responde”. Mesmo insistindo na obliquidade literária das experiências


relatadas nestas narrativas, Sena assume-se como actor e testemunha do
tempo de que, sob espécie ficcional, se propõe escrever a crónica.
O mesmo se pode certamente afirmar de Sinais de Fogo. Enquadrando
o relato, em primeira pessoa, de Jorge, o jovem narrador que, no decurso
das férias de verão de 1936, na Figueira da Foz, se estreará na vida adulta
– iniciação que se virá a revelar a um tempo erótica, política e poética
– com o cenário da guerra civil espanhola e dos seus ecos em Portugal,
Sena procede a uma ressignificação dos códigos convencionais do
romance de aprendizagem, projectando a trajectória de maturação do
protagonista no grande ecrã da História, dando a ver o tempo negro do
alastramento do nazi-fascismo na Europa. O herói problemático de Sinais
de Fogo servir-lhe-á para dar voz ficcional a vários mitos pessoais que,
sendo os do protagonista do romance, eram irrecusavelmente também
os seus: a defesa intransigente da liberdade individual e o dever ético
de participação solidária na transformação do mundo, a celebração do
desejo erótico e da fruição amoral do corpo, o papel insubstituível da
poesia na redenção do mundo e do homem.

Paulo Alexandre Pereira é Doutor em Literatura e exerce funções como professor auxiliar
no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde, desde 1991, tem
leccionado várias disciplinas de licenciatura, mestrado e doutoramento na área da Literatura
Portuguesa e desenvolvido actividade de investigação no domínio dos Estudos Literários.
É investigador no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde
presentemente coordena o projecto de investigação Entregéneros: Literatura e Hibridismo.

VOLTAR AO ÍNDICE

51
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

O poeta não é um fingidor


Sena revela determinação em explorar o novo mundo aberto por
Pessoa, aí se guiando pelo instinto e por uma intensa lucidez.

Ensaio de: Fernando Cabral Martins

1. Fernando Pessoa e a busca do novo

J
orge de Sena começa a existir literariamente num momento decisivo
da literatura portuguesa moderna: o seu primeiro livro de poemas é
de 1942, Perseguição, e é nesse preciso ano que começa a grande saga
das publicações póstumas de Fernando Pessoa, com o aparecimento
do ortónimo com muitos inéditos, e logo os heterónimos: Álvaro de
Campos em 1944, Ricardo Reis em 1945 e Alberto Caeiro em 1946.
Uma tão rápida profusão de publicações, em que se incluem livros
capitais de toda a literatura portuguesa, desencadeia respostas diferentes
das gerações novas. Quanto à geração de 27, ou da presença, que tem
as maiores dúvidas em relação à poética do Modernismo mas não deixa
de ser constituída por homens inteligentes, é quem começa por editar
e comentar a obra de Pessoa, mesmo assumindo com reservas a sua
genialidade. Em 1940, uma nova geração, a dos Cadernos de Poesia:
Ruy Cinatti, Jorge de Sena e Sophia publicam os seus primeiros livros
entre 1941 e 1944. Esta geração, tal como uma outra, que marca o final
da década de 40, a dos surrealistas, choca, na força da idade, com um
problema sem solução: o brilho excessivo de um poeta já morto, mas cuja
obra completa lhes desaba em cima de uma vez, e com fragor.

52
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Mais nenhuma geração sentirá esse problema, na verdade, e, a partir


dos anos 60, em casos tão centrais como Luiza Neto Jorge ou Gastão
Cruz, a obra de Pessoa passa a ser recebida com o entusiasmo que
merece a grande poesia, que no caso extraordinário de Pessoa se torna
imediatamente clássica.
Voltando a Jorge de Sena, a situação é particularmente instigante,
dada a intensidade e complexidade da sua própria produção crítica,
poética e ficcional. Para um escritor com a sua dimensão, não se trata
apenas de ler e escrever depois de Pessoa, trata-se de pensar Pessoa.
Mais do que reagir à “angústia da influência” (tema celebrizado por
Harold Bloom: a sombra lançada pelo grande poeta anterior sobre o
poeta novo), o que revela Sena é a determinação em explorar o novo
mundo aberto por Pessoa, aí se guiando pelo instinto e por uma intensa
lucidez. Por exemplo, a poética essencial da obra pessoana, “o poeta
é um fingidor”, é elevada por Jorge de Sena a título de um dos seus
primeiros livros de crítica (em 1961), onde a compreende e justifica com
enorme clarividência e justeza – embora, no mesmo ano, no prefácio a
Poesia I, se afirme devedor de uma poética que lhe é diametralmente
oposta. E, no entanto, pode dizer-se que O Poeta é um Fingidor é o
primeiro ensaio que reconhece a obra de Pessoa a uma altura teórica
que escapa de vez à perspectiva presencista da sinceridade, e a coloca
num patamar de relacionamento com a literatura e a filosofia em que se
encontra com Baudelaire, Kierkegaard, Nietzsche, Mallarmé, Eliot ou
Pound. Sem hesitação, sem resistência nem sombra de emulação.
Além disso, Pessoa traz também uma exigência: encontrar o novo
(na frase de Rimbaud: “É preciso ser absolutamente moderno”). Esse
é o novo que Álvaro de Campos corporiza, que o ortónimo reencontra
no simbolismo, que Ricardo Reis desencanta do classicismo ou que
Alberto Caeiro funda nas raízes da sensação: é Caeiro quem fala da
“eterna novidade do mundo”, pelo que nem sequer é necessário andar
à procura do novo, trata-se só de perceber que tudo é constantemente

53
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

novo. Em suma: a resposta de Jorge de Sena (como a de outros poetas


fortes, Sophia, O’Neill ou Cesariny) tem de ser a divergência, ele não se
pode nunca permitir a exibição de quaisquer marcas de influência, pela
simples razão de que essa seria a infidelidade suprema a um pensamento
que exige o novo. Toda a ulterior evolução da crítica de Jorge de Sena tem
a ver com esta resposta.

2. Uma crítica pessoana decisiva

A relação crítica que Jorge de Sena estabelece com Pessoa mantém-se


coerente ao longo de quatro décadas. Logo no artigo “Carta a Fernando
Pessoa”, de 1940, Sena define um entendimento da heteronímia baseado
na intuição de que todo e qualquer escrito de Pessoa é heteronímico, a
começar pelos que assina com o seu próprio nome. Daqui conclui que
Pessoa é aquele que não quer viver, ou não pode, dado ficar sem nada,
deixado vazio pelas figuras que cria para viverem por ele. Como ele
mesmo se torna heterónimo de si mesmo, o seu é um mundo melancólico
e, numa palavra terrível, virtual.
Eis como formula, numa entrevista de 1977, essa visão deceptiva de
Pessoa: “tudo se conjugou para Pessoa ser esta coisa rara: um inglês
fictício, sem realidade alguma, criando em português uma série de poetas
igualmente fictícios, com toda a realidade da grande poesia”.
As suas posições finais são, aqui, especialmente elucidativas. O último
ensaio de Sena sobre Pessoa (de 1978) é uma homenagem ao heterónimo
que mais considera, Alberto Caeiro. Trata-o como núcleo e origem de
toda a obra de Pessoa, assim tomando a sério a definição dele como
“Mestre”, e caracteriza a sua criação, em 1914, como o “milagre epifânico”
da “grande poesia”. É a apoteose de uma vida dedicada ao comentário
de Pessoa – que também é dedicada à edição dela, desde a organização
das Páginas de Doutrina Estética, de 1947, em que recolhe trechos
críticos fundamentais, passando pelo projecto (frustrado) do Livro do

54
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Desassossego, caso a que voltaremos a seguir, até à tradução comentada


dos Poemas Ingleses, de 1974.
O seu penúltimo artigo sobre Pessoa é especialmente importante. Tem
o título impressivo de “O Homem que Nunca Foi”, e é o seu momento
mais claro de confrontação com a figura do poeta maior. Nele começa
por se queixar: “eu tenho sido chamado um discípulo de Fernando
Pessoa”. Ora, a ambição de renovar a geração modernista, de que Sena
também fala, vê-se ofuscada pelo vulto avassalador que constitui a obra
de Pessoa, que se foi vendo acrescentada com a sucessiva publicação de
inéditos. Nesse ensaio de 1977, um ano antes de morrer, Sena propõe uma
imagem de alta definição. Pessoa é um grande poeta, será até um génio,
mas é-o à custa da sua própria vida, que recusa viver. Ele “era realmente
um fantasma”, sublinha, e acrescenta: “ou, se quisermos, um cabide
para a multidão de seres inexistentes muito mais reais do que ele mesmo
queria ser”. Até o seu interesse pelo ocultismo é associado por Sena a um
“inescapável desejo de morte”.
Curiosíssimo é este modo de caracterizar Pessoa. Mesmo quando refere
o tema fulcral do fingimento poético, que tantas vezes defende em artigos
que contrariam a oposição ingénua de outros, dados ao culto mais ou
menos romântico da sinceridade, logo recorda que se trata de um homem
oco, que se sacrifica por inteiro “na cruz de ser palavras, palavras,
palavras”. Esta ambivalência na consideração crítica de Pessoa deverá ser
entendida como afirmação própria de Jorge de Sena contra a figura tutelar
e dominante de Fernando Pessoa? Será um gesto equivalente à violência
antagonística de que Mário Cesariny há-de fazer um livro na década
seguinte, O Virgem Negra? De todo o modo, é esta mesma forte reserva
que Sophia exprime a partir dos anos 70.
Uma boa parte da animosidade que se sente neste penúltimo ensaio,
que tinge de negro o entendimento crítico do grande modernista,
residirá no facto de este ser cada vez mais contemporâneo, apesar
de morto em 1935. A produtividade da arca dos inéditos, de onde vão

55
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

regularmente saindo livros novos, é da ordem do pesadelo – e Jorge


de Sena tem dela uma experiência directa. Convidado em 1960, pela
editorial Ática, para preparar a edição do Livro do Desassossego,
segue-se uma década inteira de trabalho – prejudicado pela distância
a que Sena se encontra, ele que é professor nos Estados Unidos, mas,
sobretudo, perturbado pela inesperada natureza textual dos materiais
que de Lisboa lhe são enviados. Em 1962, recebe um primeiro conjunto
de 200 originais – e, em 1964, depois já de muito estudo, decifração
e organização deles, aparece, de repente, um novo conjunto de 100
originais, segundo o informa Georg Rudolf Lind por carta. Certo, é que
Jorge de Sena desistirá, em 1969, de fazer a edição.
O trabalho com o espólio de Pessoa escapa aos trâmites habituais da
edição literária. A estranheza daquela obra deixada inédita, manuscrita,
em folhas soltas, numa profusão ciclópica, indicia uma textualidade
incontrolável, perigosa. A materialidade literária a que se chama Pessoa
não se resolve apenas num dado conceito de heteronímia, ou numa
dramaturgia de autores fictícios, mas abre um verdadeiro universo
paralelo. Pelo que, aquele que seria um acontecimento de enorme
dimensão – a edição do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa
realizada por Jorge de Sena – é tornado impossível pelas circunstâncias
geográficas e históricas, mas também pela natureza do trabalho de escrita
de um poeta sem par, aluvião recolhido numa arca fantástica.
Mas Jorge de Sena não é menos, por isso, o poeta-crítico que mais
contribuiu para o conhecimento e a valorização de Pessoa.

Fernando Cabral Martins é Professor de literatura na Universidade Nova,


publicou artigos e livros sobre poetas portugueses modernos e contemporâneos.
Organizou edições, sobretudo de Sá-Carneiro e Pessoa, tendo coordenado
um dicionário do Modernismo Português.

VOLTAR AO ÍNDICE

56
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

O poeta em Sena
Ensaio de: Joana Matos Frias

Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional, em Lisboa ENRIC VIVES-RUBIO

De todas estas palavras não ficará, bem sei,


um eco para depois da minha morte
que as disse vagarosamente pela minha boca.

Jorge de Sena, Ode à incompreensão

57
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

J
orge de Sena é um dos escritores mais polígrafos e prolíficos da
Literatura Portuguesa, mas a multiplicação do seu talento de escrita
por domínios tão distintos quanto a ficção e o teatro, o ensaio
teórico e o comentário crítico nunca diminuiu – terá até intensificado
– o papel preponderante que a criação poética desempenhou no conjunto
da sua obra. Claro que, tratando-se de campos de actuação diferentes que
se intersectaram e mutuamente iluminaram no plano criador, uma tal
contaminação não deixou de ser recebida amiúde como uma espécie de
contágio, conforme registaria o próprio Sena num poema que viria a ser
incluído no volume póstumo Visão Perpétua (1982): “Quando publiquei
Pessoa/ passei a ser discípulo de Pessoa. Mas,/ logo que foi público que eu
estudava o Camões,/ a crítica notou logo a camonidade dos meus versos”.
Talvez não seja exagerado constatar que pertencem exactamente ao
campo poético um conjunto de palavras e de expressões senianas
que, como é próprio de alguma grande poesia, se destacaram já dos
contextos originários para correrem livremente de boca em boca:
seria o caso de versos como “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o
mundo inteiro”, “Das aves passam as sombras”, “Falareis de nós como
de um sonho”, “Amo-te muito, meu amor, e tanto”, “Conheço o sal da
tua pele”, “Estão podres as palavras”, “Podereis roubar-me tudo”, “De
morte natural nunca ninguém morreu”, “nunca perdoarei o que me fez
esta música”, ou “Não leiam delicados este livro”, entre tantos outros.
Não significa isto, naturalmente, que a força da obra poética de Sena o
tenha transformado numa espécie de poeta popular – menos ainda se
pensarmos que chegou a ser acusado de hermetismo e eruditismo –,
mas a verdade é que essa força pode também aferir-se por uma certa
memória colectiva que tem reconhecido o poder epigramático de
muitos dos seus versos. Poder esse que, de uma forma evidente, resulta
também da perícia absolutamente espantosa com que sempre praticou
o verso, nas suas formas mais fixas e mais livres, mais tradicionais
e mais experimentais, ancorado num conhecimento muito sólido e

58
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

aprofundado das expressões autorais mais significativas da tradição da


poesia ocidental, de Safo até aos mais jovens coetâneos dele.
Do papel decisivo da poesia na sua actividade foi o próprio Sena dando
conta ao longo de dé-cadas, em diversos tipos de texto, sendo hoje possível
reconstituirmos um arco de cerca de 40 anos (de servidão, de acordo
com o título de uma das colectâneas póstumas), entre umas estreias sob
pseudónimo datadas do final dos anos 30 e incluídas apenas em Post-Scrip-
tum II (1985), passando pelo primeiro livro, Perseguição, de 1942 – no qual
proclama já com toda a maturidade que “Tudo está feito, tudo está escrito,
/ tudo está murado, e bem, com alicerces nos nossos próprios defeitos/ –
é só ouvir/ é só ler,/ é só pasmar sereno,/ é só ficar” –, até à publicação da
plaquete Sobre esta Praia... – Oito Meditações à beira do Pacífico, espécie de
testamento vindo a lume no ano imediatamente anterior ao seu falecimento.
Foi a propósito da segunda composição desta notável sequência tutelada
pelos amores de Ovídio que Joaquim Manuel Magalhães formulou um dos
mais preci(o)sos comentários acerca de um poema de Jorge de Sena: “É um
poema sobre todo o amor. Sobre, também, o olhar sem repressão”. O juízo
é na verdade amplificável a toda a sequência, se não retrospectivamente
a toda a obra poética, aproximando-se no essencial de uma conhecida
síntese com que o escritor britânico Philip Larkin distinguiu a poesia
de dois dos mais célebres war poets, Wilfred Owen e Siegfried Sassoon:
“a guerra de Owen não é a guerra de Sassoon mas toda a guerra; não o
sofrimento particular mas todo o sofrimento”. Aplicado à poesia de Sena,
tal diagnóstico revela-se da maior importância, ao enfatizar um elemento do
seu carácter inventivo nem sempre devidamente valorizado – a tematização
do amor –, ao assinalar a variedade de planos em que esse amor soube
exprimir-se, e, last but not least, ao destacar esse “olhar sem repressão” cuja
dignidade, depois de um contexto sócio-político marcadamente castrador,
o poeta de Fidelidade quis exaltar: em suma, um diagnóstico pelo qual se
esboçam os contornos essenciais de uma poética da nudez total, como se lê
na terceira dessas meditações inscritas na paisagem norte-americana.

59
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

São mesmo da autoria de Jorge de Sena alguns dos textos de amor e de


erotismo mais completos da literatura em língua portuguesa, aspecto
que tem sido enfatizado por alguns leitores agudos, e que, de resto,
o próprio não se eximiu de sublinhar bastante cedo, prezando-se
orgulhosamente “de ter composto, bons ou maus, alguns dos poemas
de amor mais rudemente sensuais” do seu tempo. Mas a verdade é que,
aquém ou além da pulsão erótica responsável por poemas e versos
admiráveis como “Conheço o sal da tua pele seca/ depois que o estio
se volveu inverno/ da carne repousada em suor nocturno”, há nesta
poesia a perseverante declaração de um amor que é de outra ordem, já
que acolhe todas as dimensões do humano, sempre alicerçado na firme
convicção de que “só os homens interessam”, como se pode ler num seu
artigo dedicado a Rimbaud.
Em boa medida, é este amor extremo (por vezes extremado) pelo
Humano e sua dignidade – “Não desesperarei da Humanidade”, lemos em
Fidelidade, “Por mais que o acaso, a Providência, tudo, / à minha volta
afogue em lágrimas e bombas / os sonhos de liberdade e de justiça” – que
alicerça o essencial de um dos factores mais característicos da atitude
poética de Jorge de Sena, a sua finalidade testemunhal, princípio com
que procurou unificar – no início dos anos 60 e com efeitos retroactivos
actuando também sobre outro tipo de publicações pelas quais foi
responsável, como os Cadernos de Poesia – o registo mais determinante
da sua produção, decorrente
daquilo que resumiu como “a
São mesmo da autoria humildade expectante, a atenção
de Jorge de Sena alguns discreta, a disponibilida de
dos textos de amor e de vigilante” materializadas numa
expressão poética responsável.
erotismo mais completos
Foi graças a esta atitude
da literatura em língua testemunhal – fundada na
portuguesa firme certeza de que “à poesia,

60
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que


compreender o mundo, transformá lo” – que Sena pôde temperar a
sombra de Pessoa que sempre sobre si pairou, autor com cuja obra
manteve uma continuada relação de enorme complexidade, oscilando
entre a mais pura admiração deslumbrada pelo poeta que teria resgatado
a lírica portuguesa de um tom sentimentalóide “suspiroso, modelo
de amantes teimosos e inconsoláveis”, e um assumido e orgulhoso
distanciamento face àquilo que ele – Sena – considerava ser uma certa
soberba pouco convivial do fingimento pessoano, algo apartada do seu
desígnio de autenticidade.
Não se pense, contudo, que o cuidado testemunhal com a
circunstancialidade da situação histórica se traduziu numa produção
rotulável como engagée, pois não se trata de entender o acto poético
como uma acção revolucionária pré-determinada por condições ou
condicionamentos ideológico-partidários, conforme sintetizou a sua
amiga Sophia ao sublinhar que a poesia de Sena “é uma poesia de
resistência não apenas no sentido corrente e directamente político da
palavra, mas uma poesia que resiste a tudo quanto deforma ou inverte
ou desfigura a vida humana”. Em Sena, o testemunho é revolucionário
na medida em que acontece na e pela linguagem do poema, não lhe é
prévio, convicção que o levou mesmo a preconizar uma difícil aliança
entre as intenções antagónicas da poesia social e da poesia pura, e que
no início dos anos 40 se manifestou numa não menos difícil articulação
entre o fascínio pelo surrealismo francês e o respeito pelo neo-realismo
português então em destaque no panorama literário da época. E este
é o principal motivo pelo qual, na sua obra poética, por tantas vezes
encontramos textos veementemente indignados com o destino das
palavras: com o seu aviltamento, por um lado, mas também com o seu
embelezamento oco, alheado de um propósito ético.
Desse “maternal cuidado” com a linguagem e o seu uso indevido ou
asséptico dão conta versos como “Estão podres as palavras – de passarem/

61
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

por sórdidas mentiras de canalhas/ que as usam ao revés como o carácter


deles”, ou como estes do segundo soneto de As Evidências: “Desta
vergonha de existir ouvindo,/ amordaçado, as vãs pala-vras belas,/ por
repetidas quanto mais traindo/ tornadas vácuas da beleza delas”. A uma
tal atenção íntegra à boa ou má sorte das palavras devemos aquela que
é porventura uma das maiores lições da poesia de Jorge de Sena para a
posteridade, e que ele formulou na abertura dos seus Exorcismos, em
1972 – clarificando também o livro antecedente, Peregri-natio ad Loca
Infecta –, ao denunciar “a abstracção, o inconcreto, a impossibilidade
mental de escrever referencialmente” como um dos grandes problemas
da poesia portuguesa sua contemporânea, a fim de defender a urgência
de “escrever duramente e directamente”, e de permitir à poesia “chamar
as coisas pelos seus nomes”. Legado crucial que, no seu caso específico,
muito auxiliado terá sido pelo íntimo e informado contacto com a poesia
moderna em língua inglesa, de Ezra Pound a Philip Larkin, passando por
Auden e Spender, que tanto leu e traduziu (fiel à sua declarada crença
nos benefícios de uma literatura universal), e que lhe terá assegurado –
como a outros companheiros de geração – um valioso domínio da dicção
precisa, mais concretizante do que sugestiva, mais contadora de histórias
do que vazadora de expressões sentimentais egocêntricas.
Não é certo – mas pode ser válido – que se relacione também com o
estreito convívio com essa poesia em língua inglesa o aparecimento de
duas das obras-primas da poesia de Jorge de Sena, Metamorfoses (1963) e
Arte de Música (1968), livros pioneiros na literatura portuguesa do século
XX, ao organizarem-se integralmente em torno do diálogo da poesia com
outros campos artísticos, ou melhor, dos poemas com objectos artísticos
de outras esferas. Mas ainda que Sena conhecesse, como seguramente
conheceria, obras como Sonnets for Pictures, de Dante Gabriel Rossetti,
The Schield of Achilles, de W. H. Auden, ou Pictures from Brueghel, de
William Carlos Williams (publicado no ano imediatamente anterior a
Metamorfoses), esse conhecimento por si só não explica a dimensão e o

62
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

impacto destas suas duas obras de índole meditativa, e, sobretudo, não


esclarece em que medida elas serão provavelmente os mais perfeitos
exemplos daquilo que Sena sempre desejou que fosse “a poesia olhando a
História”: “a alegria que sinto”, explicou, “ante as colecções onde palpita
uma vida milenária, não provém de esta ser milenária, estranha, distante,
bárbara ou requintada, mas sim de eu sentir em tudo, desde as estátuas
aos pequeninos objectos domésticos, uma humanidade viva, gente viva,
pessoas, sobretudo pessoas”. Sobretudo pessoas.

Joana Matos Frias ensina na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se


doutorou com uma tese sobre Ruy Cinatti. Autora dos livros O Erro de Hamlet: Poesia e
Dialética em Murilo Mendes (2001, Prémio de Ensaio Murilo Mendes), Repto, Rapto (2014),
Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português (2015), e O Murmúrio das Imagens (2018,
Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho/ APE). Responsável pela antologia
de Ana Cristina Cesar Um Beijo que Tivesse um Blue (2005) e por Passagens: Poesia,
Artes Plásticas (2016); co-responsável (com Rosa Maria Martelo e Luís Miguel Queirós)
pela antologia Poemas com Cinema (2010), e (com Luís Adriano Carlos) pela edição
fac-similada dos Cadernos de Poesia (2005).

VOLTAR AO ÍNDICE

63
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Jorge de Sena: o gigante


indigesto da cultura
portuguesa
Depois de Fernando Pessoa, não se vê uma figura intelectual
portuguesa que possa verdadeiramente ombrear com
Jorge de Sena. A assustadora dimensão da sua obra abarca
todos os géneros da criação literária, somando-lhes um trabalho
teórico e crítico do qual uma só alínea, como a do pessoano
ou a do camonista, bastariam para compor uma carreira.
Cem anos após o seu nascimento, e a mais de 40 da sua morte,
este truculento e humaníssimo Minotauro das letras
portuguesas continua por domar.

Ensaio de: Luís Miguel Queirós

J
orge de Sena nasceu há exactamente cem anos, no dia 2 de
Novembro de 1919, e a julgar pela pouca visibilidade que até este
momento têm tido as comemorações do seu centenário, se de
comemorações se pode falar, é possível que o seu amigo Eduardo
Lourenço se tenha precipitado quando, em Abril de 1968, profetizava na
revista O Tempo e o Modo: “E os tempos estão próximos, ou já chegaram,
em que o urso mal lambido das nossas letras receberá as flores tardias da
admiração com salário dobrado”.

64
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

É verdade que a própria publicação em que Lourenço escrevia parecia


dar-lhe razão: um número especial da prestigiadíssima revista O Tempo
e O Modo inteiramente dedicado a Jorge de Sena, um autor que ainda
não completara então 50 anos, era algo sem precedentes e que parecia
desmentir cabalmente as proverbiais lamentações senianas de que o
seu labor criativo e intelectual, sucessivamente exercido nos exílios
brasileiro e americano, não era suficientemente reconhecido pelos seus
compatriotas. Mas decorrido mais meio século, e apesar dos muitos
estudos académicos que em Portugal e no Brasil lhe têm sido dedicados,
mantém-se a sensação de que a sua obra poliédrica e colossal não
encontrou ainda uma pacificada leitura global, e o lugar absolutamente
cimeiro que ocupa na cultura portuguesa do século XX é uma evidência
que não lhe tem assegurado, como estas comemorações parecem
demonstrar, uma persistente visibilidade.
O próprio Eduardo Lourenço, noutro texto, adianta algumas possíveis
explicações. “Jorge de Sena não é um autor fácil. É um autor, e um autor
nunca é fácil”, lembra, para depois reconhecer que “acresce (…) às vezes
a escusada mas ardente afirmação da sua superioridade intelectual”, que
“irrita ou fere a sempre sensível epiderme lusíada, coitada”.
Mas se a arrogância de Jorge Sena – admitindo que o termo se aplica
a uma justa consciência do seu próprio valor – e as constantes tiradas
cáusticas que endereçava aos meios culturais portugueses, quer em
entrevistas, quer nos prefácios e posfácios aos livros que ia publicando, não
ajudaram decerto a assegurar-lhe a entusiástica veneração desses mesmos
que ia zurzindo impiedosamente, talvez a mais funda explicação para essa
dificuldade de assimilação resida, afinal, na própria monumentalidade
e exigência de uma obra invulgarmente vasta e diversificada, mas na
qual tudo anda ligado, e que por isso mesmo assusta o mais diligente dos
investigadores, consciente de que dificilmente abarcará o autor na sua real
dimensão se se limitar ao poeta, ou ao crítico, ou ao ficcionista. E qualquer
deles por si só dá pano para compridíssimas mangas.

65
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Com notável acuidade, o poeta e tradutor José Bento, que nos deixou
há dias, escrevia em 1968 no já referido número de homenagem de O
Tempo e o Modo: “Situo Jorge de Sena entre os escritores, raros, que
procuram a totalidade e não um ou outro dos seus aspectos. Esta procura
o obrigou ao poema e à tragédia, ao conto e à farsa, à crítica e ao ensaio,
e em cada uma destas formas a descobrir as diversas faces com que a
totalidade o chama”.
Decompondo essa totalidade e começando pelo poeta que quis ser
acima de tudo, não restam quaisquer dúvidas de que Jorge de Sena é um
dos autores centrais da poesia portuguesa do século XX. Avesso à muito
lusa tradição do lirismo bucólico e sentimental, afastou-se também das
principais correntes do seu tempo – do presencismo ao neo-realismo e ao
surrealismo –, mas sem deixar de as integrar criticamente, e sem cair nos
excessos formalistas a que o desejo de renovar o discurso poético levaria
alguma poesia dos anos 60 e 70.

Esta porra triste

A dimensão cívica e política dos seus versos, a atenção ao quotidiano, a


recusa do sentimentalismo, a violência declarativa, uma oficina que tanto
atingia paroxismos de conseguida experimentação formal (leiam-se os
célebres Sonetos a Afrodite Anadiómena) como se abria à contaminação
da prosa, à intrusão de coloquialismos e a uma frequente dimensão
narrativa, e ainda a sua abordagem da sexualidade, nos antípodas do
languescente erotismo luso, são características que tornaram a poesia
de Sena um tudo nada agreste para o gosto da época, mas que lhe
asseguraram um impacto nos poetas portugueses das últimas décadas
que se impunha começar a reconhecer.
O ensaísta Carlos Mendes de Sousa vê, por exemplo, a marca daquilo
que o próprio Sena assumia como uma “poética do testemunho” num
autor como Manuel de Freitas, e lembra “a pioneira dimensão ecfrástica”

66
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

da sua poesia, em particular no livro Metamorfoses (1963), para sugerir a


provável influência que terá exercido num poeta como José Miguel Silva.
O facto de Manuel de Freitas ter chamado a um dos seus livros Terra
Sem Coroa (2007) e de nele ter incluído uma expressa homenagem
ao autor de Coroa da Terra (1946), o segundo volume de poemas de
Jorge de Sena, já abona em favor desta intuição, mas o próprio poeta
a confirma: “Centraram-se obsessivamente na influência do Joaquim
Manuel Magalhães e não falam do Sena, como não falam do João Miguel
Fernandes Jorge, que também foi importante”, diz Freitas, lembrando
que não é por acaso que o volume que escreveu a meias com José Miguel
Silva, Walkmen (2007), abre com uma citação do poeta de Arte da Música:
“Nada nos salva desta porra triste”.
Mas nessa mesma geração que se revelou entre o final dos anos 90
e o início do novo milénio, a obra de Sena também ecoa num poeta
tão distante de Freitas e Silva como Daniel Jonas, cujo poema Dos
Fuzilamentos da Montanha do Príncipe Pio, incluído em Bisonte (2016)
dialoga com a celebérrima Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de
Goya, incluído em Metamorfoses. Um poema que também Ana Luísa
Amaral já evocara no seu poema Um pouco só de Goya: carta a minha
filha:, onde regista o precedente desse “homem/ que um dia lembrou
Goya numa carta a seus/ filhos”.
Se fosse necessário eleger a obra-prima da poesia de Sena,
Metamorfoses seria provavelmente o candidato mais consensual.
Nada na poesia portuguesa do tempo abrira caminho para este livro
extraordinário, onde Sena presta tributo a criações humanas de todos
os tempos e geografias, da Cabecinha Romana de Milreu – “Essa cabeça
evanescente e aguda,/ tão doce no seu ar decapitado,/ do Império
portentoso nada tem:/ nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,/ na
sua boca as legiões não marcham,/ na curva do nariz não há os povos/
que foram massacrados e traídos (…)” – à Nave de Alcobaça ou à ‘Cadeira
Amarela’ de Van Gogh. E é também aqui que se encontra um dos seus

67
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

poemas mais citados, Camões dirige-se aos seus contemporâneos,


no qual é difícil não sentirmos que Sena invectiva os seus próprios
contemporâneos por interposto Camões, equivalendo os enxovalhos que
este sofreu às ingratas perfídias de que ele, Sena, estaria a ser vítima.
Mas não deixa de ser comovente verificar que o mesmo Jorge de Sena
que ansiava genuína e intensamente por ver o seu talento confirmado e
festejado pelas instâncias de reconhecimento do seu país de origem – da
academia aos críticos de imprensa – foi sempre também visceralmente
incapaz de se pôr a jeito para gostarem dele, ou de condescender em
polir um bocadinho as arestas da sua própria obra. Nunca poderia fazê-
lo, porque lhe foi sempre estranha e repulsiva a ideia de uma poesia
agradável, bonitinha, de consumo fácil.

Um pacto de sangue

Rosa Maria Martelo lembra, a este propósito, a resposta que Sena, numa
entrevista recolhida em O Reino da Estupidez (1961), dá ao pedido para
que identifique as correntes de maior destaque na cultura portuguesa.
“Suponho que bastará, em linhas gerais, dizer que há, como em tudo,
duas correntes: a do ar livre e a da estufa”, resume Sena. “Uma síntese
muito seniana, acutilante, irónica, lapidar”, descreve a ensaísta, que
todavia acha ainda mais significativo o que o poeta irá defender a seguir.
“Sena considera que a corrente do ar livre ambiciona uma ‘integridade
sem capitulações’, mas ao mesmo tempo recusa-se a pensá-la fora da
ideia de comunidade”, observa Rosa Maria Martelo, para concluir:
“Creio que esta perspectiva está sempre presente em tudo quanto ele
escreve, quer como criador, quer como ensaísta e crítico. Toda a sua
obra é expressão de uma exigência radical de liberdade cruzada com um
desejo de comunidade tão intenso que chega a ser doloroso: o desejo de
uma comunidade em que a verdadeira dimensão do humano não fosse
rebaixada pelo protagonismo medíocre de incompetentes e arrivistas”.

68
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

A isto, “a literatura deve responder fazendo um pacto de sangue com


a dignidade humana”, acrescenta Rosa Martelo. “É por isso que Sena não
pode esconder o quanto o irrita a sobrevalorização do lirismo sentimental
por parte dos poetas seus contemporâneos”, e por isso lhe interessa
“uma poesia que não dê sossego à mediocridade reinante, aos falsos
moralismos e às hipocrisias, e que de modo algum contribua para distrair
essa mediocridade daquilo que ela é”.
A mesma intransigência marca a sua ficção, dos contos de Andanças
do Demónio (1960) e Novas Andanças do Demónio (1966), aos do livro
Os Grã-Capitães (1976), demasiado escandalosos para serem publicados
antes do 25 de Abril, passando pela novela O Físico Prodigioso, que levou
um crítico tão dotado como Óscar Lopes a confessar: “Li muitas vezes
esta novela e não estou certo de já ter encontrado o seu essencial para os
horizontes de hoje-em-dia”.
E se Sinais de Fogo não for o grande romance português do século
XX, e talvez seja, é pelo menos plausível admitir que o viria a ser se
Sena tivesse podido completar o seu projecto megalómano de escrever
um romance que ilustrasse o trajecto político e ético da sua geração,
da Guerra Civil de Espanha ao final dos anos 50, e que fosse ainda o
Bildungsroman de um rapaz que se politiza ao mesmo tempo que explora
a sua sexualidade e se descobre poeta.
“Acho que nos podemos atrever, com todas as limitações deste tipo de
juízos, a dizer que Sinais de Fogo, mesmo no seu estado de inacabamento,
é um dos romances fundamentais do século XX”, no qual “estão todas
as grandes preocupações de Jorge de Sena, do diálogo com a História à
importância fulcral da sexualidade”, arrisca a ensaísta Isabel Cristina
Rodrigues. “Ele escreveu em todos os domínios possíveis e era bom em
tudo, e quando olhamos para a sua obra interminável, ficamos a pensar no
que não poderia ainda ter feito se tivesse morrido numa idade mais cristã”.
Os quase dois mil poemas que escreveu, contando com os muitos
inéditos que foram sendo revelados postumamente, e as largas centenas

69
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

de páginas da sua obra ficcional e dramatúrgica, são ainda assim coisa


breve, quando comparados com a desmesura da sua obra teórica e
crítica em sentido lato, incluindo, a par dos seus muitos livros, prefácios
e posfácios para obras suas e alheias, verbetes para enciclopédias, ou
ainda, entre muitos outros textos de natureza diversa, as apresentações
críticas de poetas que compôs para as várias antologias que organizou,
dos dois volumes de Poesia de 26 Séculos e do subsequente Poesia do
Século XX, que no conjunto fornecem um panorama de toda a história
da lírica ocidental, com uma vastíssima escolha de poemas que ele
próprio traduziu, à terceira série das Líricas Portuguesas, onde por vezes
aproveitou as curtas notas introdutórias dedicadas a cada poeta para se
desforrar da imparcialidade a que se sentiu obrigado, mas com resultados
práticos algo irrelevantes face ao impulso canonizante que a mera
presença na antologia veio a significar para muitos autores incluídos.

Camonista e pessoano

Sem de todo se reduzir a essas duas dimensões, a importância do


Jorge de Sena crítico talvez possa aferir-se com a simples constatação
de que é possivelmente o único autor simultaneamente considerado
como camonista e pessoano pelos seus respectivos pares nestas
duas especialidades máximas do ensaísmo literário português.
Acerca do especialista de Camões, autor de livros como Uma Canção
de Camões (1966), Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista
Peninsular (1969), A Estrutura de Os Lusíadas (1970), ou Estudos sobre
o Vocabulários de Os Lusíadas (1982), recomenda-se a obra que lhe
dedicou Vítor Aguiar e Silva, Jorge de Sena e Camões: Trinta Anos de
Amor e Melancolia (2009).
Já do pessoano, o ensaísta António M. Feijó destaca as “intuições muito
agudas” de Sena no prefácio às Páginas de Doutrina Estética, cuja edição
organizou, ou ainda no ensaio que este redigiu para o malogrado projecto

70
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

de organizar, em meados dos anos 60, aquela que teria sido, com quase
vinte anos de avanço, a primeira edição do Livro do Desassossego.
Feijó salienta ainda o seu extenso e menos conhecido estudo centrado
no poema Ela canta, pobre ceifeira. Lembrando que o primeiro biógrafo
de Pessoa, João Gaspar Simões, “que via na heteronímia uma espécie
de dramaturgia falhada”, atribuía a este poema, em particular na sua
versão revista de 1924, um significado “decisivo”, já que corresponderia
ao momento em que o poeta se teria “libertado da charada heteronímica
e reencontrado a tradição lírica portuguesa”, Feijó chama a atenção
para o facto de Sena, “com a sua erudição”, ter percebido que esse
“poema decisivo” tinha origem num poeta romântico inglês, já que
dialogava com um poema de Wordsworth intitulado The Solitary Reaper
(a ceifeira solitária).
Se a todas estas parcelas, juntarmos o tradutor de ficção inglesa e
americana, ou o especialista de estudos brasileiros, ou as extensas
correspondências que manteve com Régio, Vergílio Ferreira, Sophia,
Eugénio de Andrade, José-Augusto França ou Eduardo Lourenço, para
citar apenas uma pequeníssima parte dos destinatários das suas cartas,
torna-se francamente difícil perceber como lhe foi possível produzir
a sua obra gigantesca ao mesmo tempo que cumpria, e de modo
exemplar, ao que rezam os testemunhos, os seus deveres de professor
universitário (e antes disso de engenheiro em serviços públicos), mesmo
dando de barato que Mécia de Sena terá tomado bastante a seu cargo a
criação dos nove filhos do casal.
Quase toda a sua obra ficcional, por exemplo, foi escrita nos seis anos
que passou no Brasil, onde se radicou em 1959, na sequência do seu
envolvimento na frustrada intentona anti-salazarista conhecida como
“golpe da Sé”, e de onde partiu para os Estados Unidos em 1965, pouco
após a instauração da ditadura militar brasileira.
Após um primeiro período na Universidade do Wisconsin, mudou-se
em 1970 para a Universidade de Santa Barbara, a sua última paragem,

71
Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

onde veio a morrer no dia 4 de Junho de 1978, depois de ainda ter


acalentado vagos sonhos de regresso a Portugal no pós-25 de Abril. Os
seus restos mortais só foram trasladados para Lisboa trinta anos após
a sua morte, em 2009, e parece que até ver ainda nenhum político se
lembrou de o propor para o Panteão.
Ele, já se sabe, preferia ter envelhecido a tomar café com o Minotauro,
em Creta, como diz num poema de Peregrinatio ad Loca Infecta (1969):
“(…)Nem eu, nem o Minotauro,/ teremos nenhuma pátria. Apenas o café,/
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,/ da Fedecam, ou de
Angola, ou parte alguma. Mas café/ contudo e que eu, com filial ternura,/
verei escorrer-lhe do queixo de boi/ até aos joelhos de homem que não
sabe/ de quem herdou, se do pai, se da mãe,/ os cornos retorcidos que
lhe ornam a/ nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,/ à Palestina,
e outros lugares turísticos,/ imensamente patrióticos.// Em Creta, com o
Minotauro,/ sem versos e sem vida,/ sem pátrias e sem espírito,/ sem nada,
nem ninguém,/ que não o dedo sujo,/ hei-de tomar em paz o meu café.”

VOLTAR AO ÍNDICE

72
8937b611-0671-4e47-900b-ba78d0ac1bf7

Você também pode gostar