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Da Esperança
Da Esperança
Da esperanc A
1968. A expressão “ Teologia da Libertação" nunca fora usa
da no títu lo de um livro. O editor da Corpus Books (Washington)
examinou o manuscrito, de um autor desconhecido, e disse: "O
texto é bom. Publicaremos. Mas o títu lo terá que ser mudado.
Ninguém jamais ouviu falar nisso. Teologia da Libertação". E
foi assim que, de Towards a Theology of Liberation ele passou
a A Theology of Human Hope.
Naqueles dias a moda era essa, a Teologia da Esperança.
O momento estava grávido: a guerra do Vietnã, os movimentos
negros, fem inistas, estudantis, e a América Latina era sacudida
por fermentos de revolução. Este livro foi um dos prim eiros a
elaborar as implicações da fé bíblica, da perspectiva da luta
dos oprimidos por sua emancipação. E o que se sugere é que
o Nome Sagrado é um horizonte utópico de um mundo novo
quando as espadas serão transformadas em arados, as fardas
ensangüentadas serão queimadas no fogo, os desertos serão
transformados em jardins e os opressores serão derrubados dos
seus tronos.
Este livro foi, assim, o fruto temporão de uma colheita que
se seguiu.
Foi publicado em inglês, francês, italiano e espanhol.
(Trechos do prefácio de Harvey Cox ao
livro A Theology of Human Hope -D A
ESPERANÇA)
“ Prestem atenção vocês, ideólogos,
teólogos e teóricos do mundo rico,
dito desenvolvido. O “ Terceiro Mundo",
de pobreza, fome e impotência impos
tas — e crescente indignação, encon
trou uma voz teológica que se ouve
como um sino. Rubem Alves, um pro
testante brasileiro, e um brilhante e
cortante intelectual latino-americano,
fala com uma autoridade que não pode
■ ■ p o p r ü / EDITORA
Av. Francisco Cilicério, 1314 - 2.° and.
Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736
13013 - Campinas - SP - Brasil
“E em meio ao inverno
eu aprendi finalmente
que bem dentro de mim
morava um verão invencível.”
ÍNDICE
Peço desculpas por ter escrito um livro assim tão chato. Eu não
queria, porque eu não sou assim. Se escrevi deste jeito foi porque me
obrigaram, em nome do rigor acadêmico. Eles pensam que a verdade
é coisa fria e até inventaram um jeito engraçado de escrever, tudo
sempre no impessoal, como se o escritor não existisse, e assim o texto
parece que foi escrito por todos e por ninguém. E foi por causa deste
frio que se interditou o aparecimento da beleza e do engraçado nos
textos de ciência. O saber deve ser coisa séria, sem sabor.
O que me faz lembrar de um mural de Orozco, pintor mexicano
que passou anos ensinando a sua arte num “college” norte-americano,
e foi certamente em virtude daquilo que ele via acontecendo com os
moços que pintou “A Formatura":
o professor, alto, magro, cadavérico, verde,
entrega ao seu discípulo,
sua imagem,
também alto, magro, cadavérico, verde,
a prova final do saber,
o diploma,
um feto morto, dentro de um tubo de ensaio.
As coisas mais bonitas que se escreveram em filosofia não se
riam aceitas nos círculos acadêmicos nem mesmo como uma modesta
tese de mestrado. Assim falava Zaratustra, por exemplo. É um livro
que transgride os interditos acadêmicos de várias formas:
é belo,
poético,
metafórico,
reticente,
uma coleção de fragmentos,
e é escrito com sangue...
Ela não vale pela verdade que possa dizer sobre Deus (seria ne
cessário que fôssemos deuses para verificar tal verdade); ela vale pelo
bem que faz à nossa carne.
Ah! Pensam que sou herege... Nada disto. Estou apenas repetin
do coisa muito velha, esquecida, da tradição protestante, que diz que
“conhecer a Cristo é conhecer os seus benefícios”: de Deus, o único
que podemos saber é o bem que faz ao nosso corpo. Com o que con
corda o sábio Riobaldo:
"Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança, o
mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no
vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas
horas... Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois,
no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licen
ça para coisa nenhuma.”
Aqui se resume a teologia; o resto são floreios.
Há palavras que moram na cabeça e são boas para serem pen
sadas. Com elas se faz a ciência.
Mas há palavras que moram no corpo, e são boas para serem
comidas. Chegam à carne sem passar pela reflexão.
Magia. Ou poesia, que é a mesma coisa.
Dito de forma clara, vi pela primeira vez na Emily Dickinson:
“Se leio um livro e ele torna
o meu corpo
tão frio que nenhum fogo seria jamais capaz
de me aquecer,
eu sei que aquilo é poesia.
Se eu sinto,
fisicamente,
como se o topo de minha cabeça tivesse sido arrancado,
eu sei que aquilo é poesia."
Por isto que, prá mim, poesia e magia são a mesma coisa:
a imagem é coisa bruxa que me possui,
se encarna em mim.
Teologia é um exercício de feitiçaria,
variações sobre o tema da Encarnação...
Deus se fez Carne,
Deus é a Carne em que se revelou,
Deus acontece quando o poema toma conta do Corpo.
Isto é o único que podemos dizer de Deus.
Não que saibamos coisa alguma a seu respeito.
Mas bem sabemos que aquilo que está acontecendo com o nos
so corpo é coisa divina, que deveria existir sempre, eternamente, e
bem merecería que o nosso corpo ressuscitasse, eterno retorno, para
que o Poema fosse etemamente repetido, gozo, orgasmo, ciclo que
sempre volta ao início, canon, contra-ponto, variações sobre um mes
mo tema.
Damos o nome de Deus a este êxtase do corpo (ou da alma; não
sei onde é que os dois se separam) possuído pela beleza.
Não há mistérios fora disto sobre que possamos falar.
Cito, como autoridade, outro teólogo, Alberto Caeiro:
“Pensar em Deus é desobedecer a Deus..."
A única coisa que temos é o tremor na Carne quando nela acon
tece a magia, e ela fica possuída pelo poema. É então que as Ausên
cias se fazem Presenças (fugidias...). Aquilo que .''Jietzsche sugeriu:
“Será que não percebes que o que amam em ti é o brilho de eternida
de em teu olhar?” O Corpo vira altar-ou, como diriam os teólogos, 7o-
cus revelationis" - o lugar onde se toma visível que somos habitantes
de um outro mundo. Não, não me entendam mal quando falo de “outro
mundo". Nada a ver com céu ou inferno... De novo é a Poesia:
* Sobre gigantes verdes e dragões amarelos leia O Flautista Mágico (Loyola), estória
para crianças.
lugar uma noite permanente, as prisões, as delações, o crime de se
pensar, de ter idéias diferentes.
Meu pensamento enlouquecia, na solidão do quarto, dando voltas
sobre si mesmo, amarrado e impotente.
O medo e o ódio se transformaram em diarréia, olhos arregala
dos pelas noites, náuseas, claustrofobia.
E não era possível me comunicar com o Brasil. Falar e escrever
se tornaram coisas perigosas. Em 1984, um homem foi preso porque
falou enquanto sonhava. A ficção se transformara em realidade. Era
preciso cuidar para que nenhuma palavra traísse o pensamento - hábi
to que veio a se transformar num estilo, por muito tempo. Cartas e te
lefonemas eram confissões de crimes...
Passou-se o mês mais longo de minha vida. O tempo se esva
ziou de qualquer coisa que nele pudesse ocorrer e se transformou em
espera, no seu estado puro, todos os minutos sofridos no seu conteúdo
de medo e raiva.
Eu conhecia a psicologia daquele momento que se vivia no Bra
sil: "caça às bruxas”. Eu a aprendera no estudo e na experiência das
Inquisições, períodos em que desaparece a inocência e a simples de
lação já constitui veredicto. A política eclesiástica aparecia como pro
fecia da política secular. As duas são uma mesma coisa. A diferença
está em que se numa os deuses aparecem com vestimentas sagradas
e perfumes de incenso, na outra as roupas são de outras cores e os ri
tuais litúrgicos seguem outros ritmos.
São momentos metafísicos, em que o sentimento do Absoluto é
respirado, de forma embriagadora, pelos Inquisidores. Na verdade seria
possível definir um Inquisidor como alguém que “cheirou” o Absoluto, e
ficou fora de si. A experiência é psicodélica: a pessoa fica possuída
pela certeza de estar pisando em terra santa, no centro mesmo do uni
verso, no lugar onde se decide o futuro da história. Ali, naquele lugar,
naquele momento, está se travando a batalha pela salvação do futuro.
Ela e Deus - não importa o nome que se lhe dê - se con-fundem nu
ma mesma coisa.
Ocorre então uma fantástica transformação na imagem que as
pessoas fazem de si mesmas. As mais insignificantes, perdidas no
sem sentido do dia a dia que se repete, se descobrem participantes de
uma coisa enorme. Elas podem ser cúmplices daqueles que empu
nham a bandeira divina, na luta contra o Mal. Os vitoriosos, é claro.
Porque os perdedores são sempre definidos pelos nomes do Demônio:
bruxas, hereges, subversivos, comunistas, pequeno-burgueses. Tanto a
direita quanto a esquerda possuem os seus deuses, só que adoram
em altares diferentes e seus textos inspirados são outros. Efetua-se
uma operação algébrica: aparece um conjunto daqueles que partici
pam do triunfo do Bem contra o Mal - uma nova Igreja. E, como na
matemática, são essenciais os símbolos que afirmam esta relação de
pertinência. Na religião são os atos sacramentais, as mesmas formas
litúrgicas repetidas, os gestos idênticos: assim os “irmãos” se dão a
conhecer. E assim também os que não pertencem se deixam trair: não
participam dos mesmos sacramentos, não repetem as mesmas ladai
nhas e nem fazem os mesmos gestos. A diferença é a prova da cum
plicidade com o demônio, porque quem não é igual a nós só pode ser
contra nós.
Depois foi a delação direta aos militares. Era uma tarde bem fria,
sábado. O Sílvio Menicucci, prefeito, amigo, me telefonou.
"Plantai árvores,
comei dos seus frutos.
Construí casas
e habitai nelas.
Gerai filhos,
e dai vossos filhos em casamento.
A demora será longa.
Enquanto se espera é preciso viver."
Rubem Alves
(julho/1987)
CAPÍTULO UM
EM BUSCA DA LIBERDADE
loi a era dourada." (J.P. Sartre, em seu prefácio para The wretchedollhe earth, de Frantz Fa-
non, p. 7.)
A obra de Fanon encontra-se traduzida e publicada no Brasil pela Editora Civilização
Brasileira, com o título Os condenados da Terra. (N. do T.)
3. A relação entre o "mutismo" e a impotência para uma ação que produza o novo não
é encontrada apenas entre os povos pobres, pois não constituem primeiramente sintomas de
privação econômica, e sim de uma consciência oprimida que ainda não emergiu para a histó
ria, tomando o mundo tal qual ele é. Assim, o jovem estudante americano dos anos cin
quenta apresentava os mesmos sintomas de a-historicidade. Ele “ desejava muito pouco, pois
tinha muito... e não queria arriscar o que possuía. Envelheceu antes do tempo; chegava quase
â meia-idade antes dos vinte. O universitário dessa época era tipicamente um jovem orientado
profissionalmente que buscava, quase como uma idéia fixa, um lugar que o protegesse e que,
segundo lhe disseram, podería perder se "arriscasse” algo. Mantinha a boca fechada e o olhar
fixo; aspirava apenas a alcançar um lugar melhor, idêntico àquele em que nascera ou a este
ao qual seu pai, recentemente e após muito suor, ascendeu". Esta geração "carregará a ru
brica de Geração Silenciosa", e “ o desamparo pode ser a chave" para a sua compreensão.
Perceba a relação entre o silêncio, o desamparo e a ação direcionada ao estabelecido. (Lipset
e Wolin, Berkeleystudent revolt, pp. 385-386.)
mesticada. Está determinado a se libertar historicamente. No passado,
o futuro esteve-lhe fechado, e a sua consciência cerrada ao futuro.
Hoje, apesar de. o futuro ainda permanecer fechado, sua consciência
está aberta a ele. Este homem se insere num presente histórico como
uma contradição, uma negação, que conduz a um novo amanhã. Tor
nou-se um sujeito histórico, com senso de vocação definido. A nova
linguagem anuncia que um homem novo nasceu na história.
6. Esta paráfrase do texto bíblico (Mt. 6:33) atribui-se a Nkrumah. Bola Ige, repre
tante de uma nação africana na "World Conference of Church and Society" (Genebra, 1966),
comenta que "mesmo soando sacrílego a alguns ouvidos, isso acende a imaginação dos po
vos das novas nações. Para nós, a política é a arma mais importante com a qual se pode criar
um novo tipo de homem e de sociedade, criar o novo e apropriado sistema que desejamos e
gerar a energia necessária para se enfrentar os velhos poderes." (Cf. Adendo ao seu discurso
“ The political dynamics of the new awakened peoples” , mimeografado, World conference of
church and society, Genebra, 1966.)
própria escolha. Trata-se de um humanismo político. E, mais do que
isso, consiste num novo tipo de messianismo, que crê que o homem
possa se libertar apenas através dos poderes humanos: um messia
nismo humanista.7
* Traduzido e publicado no Brasil com o tílulo A condição de homem: uma análise dos
propósitos e fins do desenvolvimento humano, pela Editora Globo. (N. do T.)
suficiente para que todos usufruam os bens da Terra, diz o seu profe
ta.” (Harvey Cox, The secular city, p. 184.*)
A humanidade sofre devido à apocalíptica ameaça de explosão
demográfica. A tecnologia sabe como resolver isso. É capaz de criar
pílulas maravilhosas e dispositivos anticoncepcionais que tornarão
possível a cada homem a racionalização do tamanho de sua família,
não apenas de acordo com os seus recursos econômicos, mas tam
bém com as suas necessidades psicológicas, sociais e espirituais.
A humanidade sofre porque o trabalho tem contribuído para
oprimir e desumanizar o homem. Não é esta a acusação feita por mar
xistas, comunistas, socialistas, cristãos, humanistas e todos aqueles
preocupados com a justiça? Acusação de que todos os trabalhadores
são explorados, pois seu pagamento não corresponde ao valor real de
seu trabalho? A dura realidade do dia-a-dia já não provou que o traba
lho, em vez de constituir uma experiência libertadora, consiste numa
coisa verdadeiramente desumana? A tecnologia sabe como libertar o
homem de tal situação. Através da cibernética, “do acoplamento do
computador à máquina", que “reduz o papel do homem à programação
da tarefa e à manutenção do equipamento", ele se libertará do traba
lho enquanto um fardo. Como será conseguido tal milagre?
“...haverá menos empregos [e] os que houver exigirão um
nível cada vez mais alto de habilidades; porém, [como]
resultado seremos pela primeira vez capazes de produ
zir bens e serviços suficientes, de forma que ninguém
necessite viver na pobreza ou na privação." fibid., p.
184.)
“ Não precisaremos mais forçar as pessoas a trabalhar naquilo
que o mercado define como importante", comenta R. Theobald; “pode
remos deixá-los livres para fazer aquilo de que gostam. Este é um dos
resultados de se dar a todos uma renda: agora temos recursos para
afirmar que, se você quiser cultivar o seu jardim, melhorar a aparência
da cidade, trabalhar com os carentes culturais, nós lhe pagaremos por
isso.” (ibid., p. 188.) Estamos assim vivendo numa “era em que gran-
• Traduzido e publicado no Brasil com o tílulo A cidade do homem, pela Editora Paz e
Terra.
des quantidades de tempo livre estarão à disposição daqueles que as
desejarem.” (Henry Clark, loc. cit., p. 403.)
8. Em uma de suas teses sobre Feuerbach, Marx ataca o materialismo exatamente por
este motivo: por não dar lugar ao homem que cria os latos materiais. "A doutrina materialista,
que diz que os homens são produtos das circunstâncias e da educação e, portanto, homens
diferentes são produtos de outras circunstâncias e de diferentes educações, esquece-se de
que é o homem quem modifica as circunstâncias." (Karl Marx, "Theses of Feuerbach” , em On
religion, p. 70.)
mente determinada por “acimas” e por “foras”. Ela se refere à trans
cendência como algo que “está literal ou fisicamente acima, seja como
uma realidade espiritual, seja como metafísica, mas que se localiza fo
ra daqui.” (J. A. T. Robinson, Honest to God, p. 13.) Tal linguagem não
compreende a transcendência como uma realidade em meio à vida,
como criadora da história. Antes, separa tempo e eternidade, transcen
dência e história. A transcendência torna-se uma verdade maior, acima
e além da história. A consciência, consequentemente, não se expande
na direção de um novo amanhã, mas tenta se mover para o alto, rumo
à experiência de um reino transcendente, localizado além da matéria e
do tempo: a esfera espiritual e eterna. Assim, tal consciência cria a re
ligião como uma casa da transcendência, tomando-se estável e fixa
em meio ao processo histórico.
A estrutura da consciência do humanismo político, porém, não
tem lugar para este tipo de transcendência. Ela se mostra totalmente
secular, nascida da história e com ela comprometida. Sua exigência
ética, seu imperativo categórico para a transformação do mundo, não
se deriva de um além, e sim de seu caráter histórico, de sua inserção
no presente, de sua participação no sofrimento da comunidade huma
na, que constitui o seu único ponto de referência. Tanto a exigência da
situação quanto os recursos disponíveis para a realização da tarefa
são totalmente humanos e seculares. Aqui encontramos um homem
que, nas palavras de Bonhoeffer, “aprendeu a enfrentar todas as ques
tões importantes sem recorrer a Deus como uma hipótese de traba
lho." (Dietrich Bonhoeffer, Letters and papers from prison, p. 191.)
uma escolha política em lavor de uma mudança social baseada na busca de justiça." (Cf. CIF
Reports, vol. V, p. 27.)
dão, assombro, antecipação, expectativa. Finalmente o
horizonte parece-nos livre outra vez, mesmo que não es
teja claro; finalmente os nossos navios podem de novo
se aventurar, arriscando-se em novos perigos; toda a
ousadia daquele que ama o conhecimento é novamente
permitida; o mar, o nosso mar, estende-se aberto outra
vez." (F. Nietzsche, "The gay Science", em The portable
Nietzsche, p. 448.)
Observe como a morte de Deus consiste no complemento de
uma nova liberdade para a Terra, para o futuro: “nossos navios podem
se aventurar outra vez...” Se a morte de Deus significa a libertação do
homem é porque a vida de Deus implicava sua escravidão. Ele consti
tuía os muros de uma prisão, uma limitação da liberdade, uma domes
ticação da ousadia e da criatividade humanas - pelo menos este Deus
de que fala a linguagem da Igreja. Temos de ler Nietzsche como poe
sia e imaginação profética. Não importa que sua descrição não seja
científica nem possua detalhes acurados. O que interessa é o fato de
sua linguagem assemelhar-se a uma lupa, através da qual tudo aquilo
que não percebemos como inumano nos é apresentado em sua brutal
nudez, revelando-se então a sua fealdade e distorção. Ele nos mostra
o Deus presente na linguagem da Igreja como o anti-homem, e aque
les que falam esta linguagem como os perpetuadores de tal inumani-
dade.
"Eis o s sacerdotes; apesar de serem meus inimigos, pas
se por eles em silêncio e com a espada adormecida...
Eles chamaram de ‘Deus’ o que lhes era contrário e lhes
causava dor... E não sabiam como amar este deus se
não crucificando o homem... Quem quer que viva próxi
mo a eles vive junto a lagoas escuras, em que um sapo
agourento canta sua canção com doce melancolia. Eles
teriam de cantar canções melhores para que eu tivesse
fé em seu Redentor: e seus discípulos precisariam mos
trar-se mais redimidos." (ibid., p. 204.)
Nietzsche aponta aí que a linguagem cristã a respeito da trans
cendência expressava uma experiência que esvaziava o corpo, os sen
tidos, a liberdade e a criatividade de toda a sua validade e beleza, ne
gando-as em nome de outro mundo. A glorificação de Deus equivalia,
portanto, ao sofrimento e à aniquilação do homem Seu era o nome
que expressava “aquele ódio contra tudo o que fosse humano, e ainda
mais: contra tudo o que fosse animal, material... uma repugnância para
com os sentidos, para com a própria razão... um medo da felicidade e
da beleza, [um] desejo de afastar-se de toda aparência, mudança e
transformação”, ou seja, expressava a negação da história e do mundo
enquanto casa do homem. (ibid., p. 452.) A vida termina, portanto, on
de “começa o reino de Deus.” (ibid., p. 490.)10 Feuerbach faz a mesma
acusação contra a linguagem teológica: “o empobrecimento do mundo
real e o enriquecimento de Deus se dão num único ato. Somente o
homem pobre tem um Deus rico. Deus brota do sentimento de carên
cia. (...) Deus consiste numa compensação para a pobreza da vida...
Ele é, para a religião, o substituto do mundo perdido.” (L. Feuerbach,
The essence of christiamty, pp. 73 e 196.)
É óbvio que há uma diferença entre Nietzsche e Feuerbach. Para
o primeiro, Deus é a causa do sofrimento humano: ele faz o homem
sofrer. Para o segundo, Deus se mostra uma compensação para o so
frimento humano: consiste no sofrimento e no anseio humanos projeta
dos sob a forma de felicidade e de riqueza. Para ambos, contudo, o re
sultado é o mesmo, já que Deus não permite ao homem vencer a sua
própria miséria. E não permite ou porque ele mesmo consiste na causa
dessa miséria, ou porque reconcilia o ser humano com ela, ao dar-lhe
esperança de uma libertação transcendente e meta-histórica. O sofri
mento e a miséria transformam-se então na causa perene dos seres
humanos. Se Deus causa o sofrimento do homem, ou se deste o liber
ta meta-historicamente, não importa: em ambos os casos o sofrer per
de a sua característica de contradição, contradição esta que precisa
ser superada por intermédio da ação. Assim, o negativo converte-se
em positivo e os homens são levados a "reconhecer e agradecer, como
uma concessão dos céus, o fato de estarem subjugados, conduzidos e
possuídos.” (K. Marx, “Contribution to the critique of Hegefs philosophy
of right”, em On religion, pp. 44-45.)
11. “ O que nos torna ateus", diz Garaudy, "não é nossa suficiência, nossa satis
conosco mesmos e com a Terra, não é algum tipo de limitação de nosso projeto. A razão para
tal consiste em que, de nossa experiência, similar à dos cristãos, quanto à inadequação de to
dos os seres parciais e relativos, não se pode concluir sobre uma Presença, um ‘ser necessá
rio’ que dê respostas a nossas angústias e impaciência. Se rejeitamos o nome de Deus é por
que este nome implica uma presença, uma realidade, ao passo que é apenas uma Exigência o
que vivemos, uma Exigência jamais satisfeita de totalidade e de absoluto, de onipotência sobre
a natureza e de uma pedeita reciprocidade de amor entre as consciências. Podemos viver essa
Exigência e atuar a partir dela, mas não podemos concebê-la, nomeá-la ou contar com ela.
(...) Temos de assumir o risco a cada passo do caminho, já que para nós, ateus, nada está
prometido e ninguém nos espera." (Roger Garaudy, From analhema to dialogue, pp. 65 e 94.)
Como indicado anteriormente, o humanismo político consiste
num paradigma da humanização, um paradigma que se mostra domi
nado pela paixão e pela visão da libertação humana. Seu compromis
so histórico indica o que ele entende por humano e quais são os recur
sos de que dispõe para essa tarefa. E se ele critica a linguagem teoló
gica é porque a percebe como pertencendo a um outro projeto. Se não
estamos verdadeiramente comprometidos com a tarefa de tornar o
homem mais livre, historicamente, então nossa tarefa acaba aqui. Não
há base para reflexões posteriores. Voltamos à nossa linguagem tradi
cional e permanecemos a salvo dentro de seus limites. Se, ao contrá
rio, amamos a Terra, o homem concreto e o futuro que pode ser criado,
temos duas tarefas pela frente. Primeira, a de indagar sobre a veraci
dade da crítica que o humanismo político faz à linguagem da comuni
dade de fé. E, segunda, a de explorar os recursos positivos que a ex
periência histórica da comunidade de fé pode oferecer para o trabalho
de libertação do homem. Passemos então a examinar algumas das
linguagens da comunidade de fé e os paradigmas da libertação huma
na nelas contidos, segundo a perspectiva da crítica que o humanismo
político lhes endereça.
12. “ Se alguém que vive em meio à cristandade sobe à casa de Deus, à casa do ver
dadeiro Deus, com a verdadeira concepção de Deus em seu conhecimento e ora, mas ora com
o espírito falso; e alguém que vive numa comunidade idólatra reza com a inteira paixão do infi
nito, apesar de seus olhos mirarem a imagem de um ídolo; onde existirá mais verdade9 Um ora
a Deus com a verdade, apesar de adorar um ídolo; o outro ora falsamente ao Deus verdadeiro
e, por isso, de fato, adora um ídolo."
73.)13 Kierkegaard, conseqüentemente, vê a sua tarefa como sendo a
de tornar a objetividade cada vez mais fuçidia, de forma a provocar no
ouvinte, por indução, a paixão impossível de ser reduzida a palavras.
Ou, para Bultmann, o instrumento da humanização é a pregação da
Palavra, proclamadora do acontecimento que chama o homem à deci
são, a uma nova auto-compreensão. Quardo a subjetividade é tocada,
induzida à paixão, ou levada a uma decisão de fé, o fenômeno da
transcendência ocorre. O instrumento paré a humanização, por conse
guinte, não pode ser medido pelo seu poder para criar um novo ama
nhã, e sim pelo seu poder para tocar a subjetividade humana.
A importância do evento dessa nova auto-compreensão consiste
no fato do homem ser retirado da história, ser retirado das relações de-
terminísticas que o rodeiam no mundo do tempo e do espaço. A ação
de Deus, o evento da transcendência, “eleva o homem acima de seus
laços mundanos e coloca-o diretamente aerante os seus olhos.” Tal
ato consiste na sua retirada da história, ou na “perda do caráter secular
tanto de Deus quanto do homem." “...Deus, que se posta distante da
história das nações, encontra cada ser humano em sua pequena histó
ria, em sua vida cotidiana, em sua vida dária de entregas e procuras;
retirado da história (isto é, despido de sua suposta segurança, obtida
em seu grupo histórico), o homem é guiacb rumo ao encontro concreto
com o seu próximo, no qual descobre a sja verdadeira história.” (Bult
mann, Kerygma and myth, pp. 25-26.) O mesmo mostra-se verdadeiro
para Kierkegaard. Na ocorrência da pakão infinita, a realidade do
transcendente torna-se presente, destruinto assim o espaço e o tem
po, determinantes que constituem o quacto de referência do mundo e
da história. Desta forma, a transcendêncic consiste no fim do tempo; a
existência escatológica (Bultmann) é aqjela vivida antes do Agora
eterno.
Esta colocação parece contradizer abertamente o que o próprio
Bultmann afirma a respeito da relação eitre fé e esperança, relação
que aparece como uma determinação do ‘êu" para o tempo.
“A 'Fé' não é nenhuma condição contida na alma huma
na, mas aponta para o futuo... [Assim], a F é ’ é também
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rer transformá-lo num lar, num “lugar de recuperação”. O existencia-
lismo, ao contrário, nega o mundo pura e simplesmente. No mundo,
um novo amanhã jamais será possível. Nele, o ser humano nunca se
sentirá em casa. As mudanças possíveis no mundo, sejam quais fo
rem, não têm nada a ver com a questão da humanização e da desu-
manizaçáo.
2. O humanismo político tem esperança quanto a um novo futuro.
Por ser o homem aberto ao futuro, pode tornar o mundo aberto a si
mesmo. A sua esperança, portanto, mostra-se histórica. Tem a ver com
o mundo e com o tempo. Ela seculariza e torna o homem histórico. En
tretanto, o existencialismo, devido ao seu desespero com relação ao
mundo, reduz a esperança a uma dimensão da subjetividade, sem
qualquer importância para a transformação do mundo. Sua esperança
não cria, e sim anula a história.
3 .0 humanismo político entende o homem como “homo creator”,
dono de “poder” para inserir no espaço e no tempo a sua transcendên
cia. Assim, esta se torna ato, história, criando o novo e permitindo a
reconciliação entre o existencial e o objetivo, já que o amanhã irá re
ceber a marca da negação e da esperança humanas. O humanismo
político, por conseguinte, pretende conduzir a paixão e a visão existen
cialista da vida até suas últimas consequências. Quer ver a vida autên
tica, a subjetividade livre, criando um novo amanhã, um novo tempo,
um novo mundo. Por isso entra em conflito com o próprio existencia
lismo, quando este opera a sua divisão fundamental entre o mundo da
liberdade e o mundo do espaço e do tempo. No contexto dessa divi
são, a ação humana toma-se impotente para criar um novo amanhã.
Permanece como um lampejo do Agora Eterno no tempo, sempre tan-
gencial, sempre impotente para fertilizar a Terra.
O existencialismo, apesar de em muitos casos constituir um pa
radigma e uma ajuda bastante preciosa para a humanização, não ofe
rece, assim, os recursos necessários para um projeto de natureza polí
tica. É preciso um novo paradigma para a humanização, e, portanto,
uma nova linguagem de fé.
Crise
14. "Deus revela-se, e isto se afirma em vista da fatual resistência do homem quanto
ao domínio divino... O velho aeon consiste no tempo de Deus confrontando-se com os ho
mens, homens que se jactam de seu próprio poder e, assim, tornam-se pecadores e decaí
dos."
“A consumação do tempo, pela revelação, não significa, por certo, sua realização ple
na, mas tão-só a anunciação da iminência do fim de nosso tempo... Da mesma forma como
a revelação ainda não é a redenção (Mc. 1:15), mas apenas a 'aproximação' do Reino de
Deus, também o nosso tempo continua realmente conservado." (ibid., pp. 67-68.)
metido (XIII.6), podem ser tanto mal interpretados como
transformados num método positivo de conduta huma
na, num meio de justificação, de fato, num titanismo da
revolta, da sublevação e da renovação. O Titã revolucio
nário é mais ímpio e mais perigoso do que a sua con
trapartida reacionária." (Barth, The epistle to the Ro-
mans, p. 478.)
O “Sim" da Escolha
15. "Um ato consiste...numa alteração relativa do meio ambiente que procede dele."
(Loc. cit. acima.)
A revelação, como o ato pelo qual Deus se faz conhecido, significa "a doação dos sig
nos", "significa sacramento, sob a forma de objetividade". (CD 11/1, p. 53.)
nente da eternidade”. (CD 1/2, p. 8.) A afirmação de que a eternidade
tornou-se tempo é válida tão-só para o tempo de Jesus Cristo e para
nenhum outro. É “o tempo de Jesus Cristo [que] constitui o tempo do
Senhor do tempo... tempo dominado e, por esta razão real e consuma
do. (...) Assim, o tempo que Deus tem para nós... deve ser visto como
o tempo eterno. (...) O tempo consumado é aquele dos anos de 1 a
30.” (ibid., pp. 52, 51 e 58.)
Se o tempo consumado, tempo que Deus tem para nós, mostra-
se o da encarnação, da vida histórica de Jesus Cristo, o que se poderá
dizer a respeito do tempo anterior e do posterior a Cristo? Esta ques
tão é de fundamental importância, pois tem a ver com a possibilidade
de humanização num tempo que não seja o consumado.
Barth responde: “Esses são tempos diferentes, distingüidos não
só pela diferença em períodos e conteúdos... mas pela atitude variada
de Deus para com o homem." (CD 1/1, p. 165.)
O tempo anterior ao consumado, mostra-se o da “tentativa insa
tisfatória da pedagogia” (CD I/2, p. 109.), da “expectativa, mas apenas
de uma expectativa quanto à revelação de Jesus Cristo” (ibid., p. 82.),
tempo quando a revelação "ainda não" era, quando "a revelação de
Deus tomar-se-á realidade." (ibid., p. 89.).
O tempo “depois dos anos 1-30”, “como o da pré-história, é um
tanto diferente do consumado.” (ibid., p. 101.)
O problema torna-se ainda mais complicado, já que nem todo o
tempo consumado se coloca no mesmo nível. O tempo da ressurreição
é algo diferente, se comparado aos anos da vida de Jesus, que o pre
cederam. O que faz esse tempo diferente, o que o torna consumado
“por excelência"? Responde Barth: “Quais os pronunciamentos do No
vo Testamento que, devido a serem pronunciamentos de uma memó
ria definida, não são implícita ou explicitamente escatológicos?” (ibid.,
p. 110.)
A única “grande excessão” é o tempo da ressurreição, que con
siste, literalmente, no fim da escatologia. Tal tempo, diz Barth, mostra-
se um “presente sem qualquer futuro... uma presença eterna de Deus
no tempo. E como ele não pode tornar-se passado, nem precisa de
qualquer futuro, constitui um tempo puramente presente.” (ibid., p.114.)
A cruz é deixada para trás. É passado. A intromissão negativa da
transcendência na história não existe mais; está acabada, completada.
O velho aeon não mais existe. Chegou ao fim "com a cruz de Cristo.”
{ibid., p. 56.) Não há mais lugar para a negação histórica. Com efeito,
"se o velho aeon acabou, não precisamos lutar contra ele.” {ibid., p.
107.) A crise terminou.
*Em latim, no original: "a inadequação entre a coisa e o intelecto". (N. do T.)
** Em latim, no original: "promessa". (N. do T.)
*** Em latim, no original: "primeiro movimento". Expressão da filosofia aristotélica
para designar a causa primeira de um processo, aquilo que dá início a uma cadeia de eventos.
(N. do T.)
**** Em latim, no original: "promessa inquieta” . (N. do T.)
***** Em latim, no original: "coração inquieto". (N. do T.)
para negá-lo, sem qualquer dimensão de futuro. Como consequência,
a sua consciência se torna vítima do poder daquilo “que é”. Somente a
palavra de promessa cria uma nova dimensão, a inadequatio rei et in-
tellectus. A promessa consiste então no elemento que, introduzido no
intelecto, provê-lhe a distância crítica necessária para negar aquilo
“que é”. Este ponto precisa ficar claro, pois coloca-se em notória opo
sição à consciência do humanismo político. Para o humanismo político,
não são uma promessa e uma esperança quanto a um reino transcen
dente que tornam o homem cônscio de sua situação dolorosa. Ele se
torna dela ciente simplesmente devido ao fato de ser uma pessoa hu
mana, e de sentir em sua carne a inadequação entre ele, o seu mundo
e a sua comunidade. A inadequatio rei et intellectus, assim, consiste
simplesmente num reflexo da inumanidade da situação. É a partir des
ta inadequatio que a consciência se expande para a exploração do ca
ráter inconcluso de sua realidade, buscando possibilidades que elimi
nem a negatividade do presente. Portanto, sua esperança é filha de
sua negação e por ela totalmente determinada. A esperança, assim, é
histórica, estando relacionada com a forma de dor na qual o homem se
encontra. Para Moltmann, entretanto, a situação é diferente: existe
uma esperança transcendental (porque não está relacionada com ne
nhuma situação específica) que faz o homem ciente de seu doloroso
presente. Chega-se então à conclusão - bastante difícil de ser funda
mentada historicamente - de que não existe proximidade entre o ho
mem e a negatividade de seu presente, e que ele sente a sua negati
vidade apenas quando ela está mediada por uma esperança transcen
dente.
O modelo de movimento histórico que Moltmann oferece mostra-
se, desta forma, basicamente platônico. É Eros (e não a encarnação!)
o que cria o cor inquietum. E mais do que isso: Deus torna-se, como
em Aristóteles, o primum movens que arrasta a história para o futuro,
sem nela se envolver.
Por conseguinte, não pode haver qualquer história separada da
consciência do Messias e de sua esperança, separada da consciência
da promessa. O “sofrimento apaixonado e prolongado” pelo futuro é
“incendiado pelo Messias” somente. (ibid., p. 16.) E por meio das pro
messas que “o futuro oculto já se anuncia e exerce a sua influência no
presente através da esperança que desperta.” (ibid., p. 18.)
O evento da promessa, portanto, consiste no começo da crítica
de tudo aquilo que é. Porque a palavra de Deus, ao anunciar que a
verdade está no futuro, nega todo o presente.
“A expectativa quanto ao que virá, em virtude da ressur
reição de Cristo, tem então de transformar toda a reali
dade que pode ser experienciada e toda a experiência
verdadeira numa experiência provisória e numa realida
de que ainda não contém em si aquilo que é esperado.
Deve, pois, contradizer todas as rígidas definições meta-
físico-substancialistas a respeito do núcleo comum dos
eventos do mundo. ” (Ibid., p. 180.)
“Quando o mundo e a natureza humana são postos em
questão dessa maneira, tornam-se então ‘históricos’,
pois mostram-se sustentados pela crise do futuro pro
metido e a ela submetidos.” (Ibid., p. 164.)
O futuro prometido faz nascer a crise do presente. Não é a crise
do presente que faz nascer a esperança de um futuro promissor. A cri
se do presente depende pois da palavra, que, fazendo nascer a fé, “a-
valia a realidade presente pelo padrão dessa palavra”, (ibid., p. 104.)
O mundo se torna histórico quando nossa experiência fechada se
defronta com o anúncio de um tipo de realidade diferente, que não
apenas a contradiz, mas também vence a sua negatividade. Moltmann
sugere que “o presente e o futuro”, “a experiência e a esperança , con
tradizem-se uns aos outros na escatologia cristã... contradição esta
que se mostra ser aquela entre a ressurreição e a cruz.” {ibid., p. 18.)
De um lado, o presente e sua negatividade; de outro, o futuro onde
Deus revela a sua fidelidade, o mundo que se encontra no fim das
promessas de Deus. Moltmann explica os conteúdos da contradição da
experiência cristã, mãe da inadequatio rei et intellectus, citando Calvi-
no: “É-nos prometida a vida eterna, mas o que temos são os mortos.
É-nos proclamada uma resssurreição bendita, enquanto estamos ro
deados pela deterioração. Somos chamados de justos, e ainda o pe
cado vive entre nós.” (ibid., p. 19.)
A cruz como expressão do presente, como algo que expressa o
conteúdo de nossa experiência humana, representa uma vida com to
das as possibilidades futuras bloqueadas, uma vida na qual cada valor
está reduzido a nada pelo poder da finitude e da decadência. Assim foi
com Jesus. Sua cruz, diz Moltmann, “implica não apenas o fim de sua
vida, mas também o fim da vida amada por ele e na qual tem espe
rança”. (ibid., p. 210.) A cruz representa, deste modo, a morte, o fim,
uma situação sem qualquer possibilidade: o término do futuro e da es
perança. Representa nossa experiência presente, vazia de transcen
dência, já que Deus é puramente futuro. Existe então um “abismo” en
tre a cruz e a ressurreição, que pode apenas ser transposto por um ato
de “creatio ex nihilo"*. (ibid, p. 209.) Este ato, porém, nunca se conver
te em história, tornando-se-nos presente tão-só sob a forma de pro
messa. A revelação não é histórica, mas “arrasta” a história. É, quali
tativamente, “totalmente outra", como em Barth. Em termos de relação
mostra-se tangencial, também como em Barth. O impacto de sua
anunciação produz o advento da “crise", da mesma forma que em Bar
th. O que promete é um novo mundo, que chega quando todas as pos
sibilidades humanas estão esgotadas, ainda como em Barth. A posi
ção de Moltmann sugere-me um giro de noventa graus na idéia de
transcendência do primeiro Barth. A “infinita diferença qualitativa entre
tempo e eternidade” representa o abismo ex nihilo que nos separa do
futuro de Deus, sempre oculto, sempre à frente, nunca presente, nunca
história, sempre ação, nunca ser, apenas apreendido na proclamação
da palavra.
17. Poder-se-ia objetar que. de6de que profano e secular são sinônimos, a expressão
"profanação do secular” constitui uma tautologia. Estou reservando o uso da palavra "profano"
não apenas para designar um mundo que se emancipou do templo [profanus: pro, ante; fa-
num, um templo), mas que, por este mesmo fato, é considerado como tendo se tomado mais
pobre. É este o mundo vazio de transcendência, mundo da causalidade da filosofia kantiana,
mundo das estruturas objetivas do existencialismo. A este mundo "profano" opõe-se uma es
fera de transcendência: o mundo da liberdade, do imperativo categórico (Kant), a esfera do "e-
xistencial" (existencialismo). A palavra "secular", ao contrário, transmitirá a rejeição ao esva
ziamento do mundo, implicado no "profano". Rejeitará a colocação da transcendência numa
esfera não-mundana. Indicará que o secular é precisamente a expressão da transcendência e,
em decorrência, acabar-se-á a oposição entre sagrado e profano, entre mundo e transcen
dência. (Cf. Capitulo Seis deste trabalho: "A Teologia como Linguagem da Liberdade.")
Para Moltmann não há qualquer transcendência no presente. Por
tanto, é impossível para o homem secular a negação a partir de seu
sofrimento imediato. Aquilo “que é", em consequência, mostra-se todo-
poderoso em relação ao homem. Tal consciência permanece profana.
2. O humanismo político entende a esperança como expansão da
consciência humana, na medida em que ela olha para além da incon-
clusão daquilo “que é”. O tempo do futuro, assim, brota da transcen
dência moldada pelo sofrimento. É o presente doloroso que se projeta
em direção a um futuro esperançoso. Em linguagem teológica: a res
surreição é filha da cruz.
Moltmann, porém, não parte da negação do presente, e sim da
promessa transcendental. Esta consiste na origem de Eros, que põe a
história em movimento. Em linguagem teológica: não é a encarnação a
mãe do futuro, mas é o futuro transcendental que torna o homem
cônscio da encarnação. É o futuro transcendental que faz o homem
ciente da dimensão de sofrimento que a sua situação histórica contém.
A encarnação, destarte, permanece em si mesma profana, pois tão-só
contém a possibilidade do “fim”, da “decadência", da “morte”. Somente
a partir do outro lado o futuro torna-se aberto. Como é óbvio, não há
lugar para que a transcendência e o secular coincidam. A influência
do platonismo e o perigo do docetismo são evidentes.
3. O humanismo político vê o futuro como um horizonte de possi
bilidades, aberto e a ser preenchido pela criação da liberdade, que se
introduz na história por meio da ação. Desta forma, o homem cria o fu
turo, futuro este jamais determinado. Por isso a ação é tão importante
para a humanização, pois não existe nada aguardando o homem que
não leve a marca de sua atividade. Moltmann, contudo, vê o futuro
como já estando determinado. Na verdade, ele ainda não está pronto,
mas está, não obstante, determinado. E este futuro atrai o homem
através de Eros: o futuro consiste num objeto, não num horizonte. De
vido ao futuro postar-se como o primum movens da história, a ação
humana não consiste numa criação, e sim num “movimento" (Barth)
que reflete o objeto da esperança.18
18. Encontra-se uma proposta semelhante na obra de Barth, Community, State and
church, â página 169. Ali é sugerido que o Estado deve ser considerado como uma alegoria do
Reino de Deus, de que fala a Palavra. Em decorrência, o Estado tem de ser moldado segundo
O conflito básico entre a linguagem do humanismo político e a
da esperança, sugerida por Moltmann, repousa no fato de a primeira
entender a negação, a esperança e a criação de um novo futuro, basi
camente a partir da condição do homem em sua inserção na história,
em sua “encarnação”; a segunda, ao contrário, vê tal situação como
profana, como desprovida de possibilidades. A única possibilidade se
toma real quando o homem se defronta com uma realidade não histó
rica e transcendente, que não possui qualquer dimensão no presente,
sendo tão-só mediada pela palavra. O conflito se dá entre aqueles que
aceitaram o secular como quadro de referência e “ não procuram pri
meiro por detrás das estrelas por uma razão para se sacrificar, mas se
sacrificam pela Terra", e aqueles que se tornam históricos apenas
quando perscrutam atrás das estrelas e são postos em movimento por
Eros.
esta relação alegórica ou analógica. A maneira platóniça de pensar é tão evidente que não re
quer discussão. O problema com este tipo de proposição, incorporada na idéia de "sociedade
responsável", consiste em que ela não nasce de um presente histórico definido. Consequen
temente, esta visão permanece uma idéia dogmática, incapaz de ser introduzida na história.
‘não obtemos a natureza das palavras perguntando o que elas contém,
e sim o que fazem, o que põem em movimento, que futuro desvelam.”
(ibid., p. 187.) Neste ponto torna-se óbvio a muitos que não é mais
possível falar verdadeiramente a linguagem que aprenderam. A situa
ção constitui um momento crucial de verdade, levantando a questão
da auto-identidade, da autenticidade. Quem sou eu? Serei alguém
primordialmente comprometido com a criação de um novo amanhã, ou
alguém que repete palavras anteriormente aprendidas? Onde está o
meu “espírito”? Para muitos cristãos o conflito entre o espírito da lin
guagem e o espírito de seu compromisso não parece constituir um
problema sério. Aprenderam a viver ao mesmo tempo em dois mun
dos, diferentes e opostos, sem se tornarem divididos. Outros, no entan
to, não conseguem viver num mundo dividido, e precisam necessaria
mente buscar uma linguagem que seja expressiva daquela pureza de
coração comentada por Kierkegaard, a pureza de coração que somente
existe quando há integridade e unidade, quando o homem deseja ape
nas uma única coisa. Devido a essa pureza de coração, cristãos, em
grande número, têm se decidido a desaprender a linguagem anterior
mente aprendida. Chegaram à conclusão de que a fé não pode se tor
nar uma linguagem expressiva de sua paixão pela libertação humana.
Como poderíam estar livres para a tarefa de se criar um novo futuro
para o homem, se a linguagem da fé não deixa espaço para tal liber
dade? Como poderíam estar totalmente comprometidos com esta pai
xão que, como fogo, queima em favor de uma única coisa, se a sua
velha linguagem era falada com “espírito” diferente?
No entanto, outros cristãos têm se recusado obstinadamente a
esquecer a linguagem da fé. A razão para tal recusa consiste em que,
no momento preciso da morte da velha linguagem, descobriu-se oculto
sob o que havia de congelado e de paralisante nela, um espírito muito
parecido com o deles próprios. A morte da velha linguagem, conse-
qüentemente, constitui o fim daquilo que reprimia seu impulso liberta
dor orientado para o futuro. O evento da morte tornou-se ocasião para
a ressurreição, pois uma nova linguagem começou então a tomar for
ma.
Assinalou-se anteriormente que uma nova linguagem, por ser ex
pressiva de um espírito, delimita uma comunidade.’ A criação de uma
nova linguagem, por sua vez, implica a morte de um certo espírito e o
triunfo de outro, novo. Isto significa, necessariamente, a criação de
uma nova comunidade. Se se abandona a linguagem expressiva de
um certo espírito que move uma comunidade, necessariamente um
novo espírito e uma nova comunidade separam-se dos velhos. Não se
pode negar que existe uma certa descontinuidade entre eles. Se este é
o caso, porém, como se pode ainda pretender que se pertença à co
munidade de fé e que se fale a sua linguagem? Não serão a nova lin
guagem e a nova comunidade algo totalmente diferente, totalmente
novo? Para responder a tal questão temos de nos lembrar de que a
comunidade de fé é uma comunidade de homens que vivem na histó
ria, entre outras comunidades. Ela fala com a voz dos homens, e não a
partir de um ponto de referência meta-histórico. Isto significa que sua
linguagem, sendo sempre expressão de sua posição histórica, é relati
va. Consequentemente, como o seu lugar na história se modifica e no
vos problemas surgem, novas tarefas se apresentam, novas lingua
gens são empregadas no mundo, assim também a linguagem da co
munidade de fé se move, responde e se modifica. Sua voz deveria ter
sempre o frescor e a relatividade de todos os sujeitos históricos.
Tal fato significaria que a linguagem da fé consiste simplesmente
num eco de seu meio ambiente? Será ela a linguagem da adaptação?
Neste caso, em que grau se justifica chamá-la de linguagem da fé? A
fé não fornece à sua linguagem um ponto de referência eterno, com
uma estabilidade de rocha entre a relatividade histórica? Tem havido
uma forte tradição na história da Igreja para se interpretar a fé nesses
termos. A fé liberta o homem da história ao retirá-lo dela. Sua lingua
gem deve então ser a expressão de uma ilha de estabilidade e signifi
cação em meio à esfera sempre cambiante do tempo e do espaço. As
sim, considera-se que a fé seja uma “retirada dos ócios e negócios do
mundo e uma volta na direção da quietude e da paz do divino." (ibid.,
p. 21.)
Entretanto, existem elementos na consciência da comunidade de
fé que sugerem não ser apenas possível, mas de fato necessário, en-
tender-se a fé num sentido exatamente oposto, isto é, como um modo
de ser radicalmente histórico, como “a aceitação da verdadeira exis
tência histórica." [ibid., p. 27. Para uma discussão posterior deste tema
veja-se o item “ Uma Linguagem Histórica", no Capítulo Três.) Se for
este o caso, sua linguagem deve, consequentemente, expressar o es
pírito de liberdade para a história, o gosto pelo futuro, a abertura para o
provisório e o relativo. A linguagem da comunidade de fé, por conse
guinte, não pode se estabilizar. Se o espírito da fé está permanente
mente aberto para a história, sua linguagem precisa atravessar conti
nuamente um processo de morte e ressurreição, deixando o velho e
rumando em direção ao novo. Quando a linguagem da fé se recusa a
morrer e permanece como repetição da linguagem do passado, com
o intuito de se preservar, deixa de ser histórica. Assemelha-se, neste
caso, a um cadáver gelado, a algo que um dia foi vivo, mas que agora,
depois da morte, ainda continua no mundo dos vivos. E, como tal, não
permanece simplesmente gelada, mas também congelando tudo à sua
volta, pois se recusa a permitir que o novo ganhe vida.
A vida da linguagem da fé, portanto, depende de sua capacidade
para negar-se a si mesma, de sua capacidade para mudar e para mor
rer, de maneira a ganhar nova vida.
Como este processo de morte e ressurreição acontece? Karl Bar-
th, e depois Paul Lehmann, sugeriram que a linguagem da comunida
de de fé tem de ser entendida como se dando entre a leitura da Bíblia
e a dos jornais. (Barth, The epistle to the Romans, p. 425. Lehmann,
Ethics in a christian context, p. 74.) Não consiste, assim, nem numa
simples descrição do passado que preenche a tela da memória, nem
numa simples descrição do presente que agora confronta o homem.
Ela expressa, sim, uma relação dialética entre os dois. Por um lado, o
presente força o passado a continuar aberto. A comunidade traz, à sua
memória, a sua experiência de sofrimentos e alegrias do presente, sua
negatividade e possibilidades. E ao passado nunca se permite conver
ter-se numa tela, pois a comunidade que se lembra não pode negar o
presente no qual vive. Por outro lado, o passado também força o pre
sente a permanecer aberto. O passado assemelha-se a um horizonte
onde os sinais do alvorecer começam a despontar para o homem si
tuado em meio às trevas do sofrimento e da desesperança do presen
te. Através da promessa que o passado traz, o homem torna-se livre
para pensar na possibilidade de um novo amanhã. O lembrar-se cons
titui, assim, uma expressão do amor pelo presente e, somente como
tal, se constitui numa possibilidade libertadora. Ele provê novos fun
damentos para a negação, novas possibilidades para a esperança, no
va liberdade para a ação. É esta dialética que mantém a linguagem da
fé sempre em permanente movimento. E não deveria ser de outra for
ma, pois seu presente é histórico e jamais estaciona. E é graças a esta
fluidez que tal linguagem se mostra capaz de expressar a vitalidade de
uma comunidade cujo espírito se direciona para o futuro.
A história da comunidade de fé poderia se escrever através da
história do nascimento, morte e ressurreição de suas linguagens. Ve
lhas linguagens perecem ao se tomarem congeladas enquanto o mun
do segue adiante. Quando isso acontece, elas deixam de ser instru
mentos da libertação e se transformam em estruturas repressivas, o
novo é abortado em favor do velho. Contudo, quando a comunidade
começa outra vez a sentir as dores e os desafios do presente, sua
lembrança produz uma nova liberdade, tanto para desaprender a velha
linguagem, como para criar outra nova. A linguagem da liberdade para
a vida, da justificação pela fé foi criada segundo este modelo. Lutero
andava atormentado pelo medo e pela ansiedade, consciente da impo
tência do homem para encontrar dentro de si mesmo as bases da li
bertação . Como se libertar do medo? Será possível para a subjetivi
dade humana expressar-se como tranqüilo abandono, ao invés dos
cálculos estatísticos ansiosos sobre a sua capacidade de desempe
nho? No universo de discurso da Igreja todas as saídas pareciam blo
queadas. Mas, a partir dessa situação de sofrimento, a memória adqui
re uma importância libertadora. Ela se converte na chama que derrete
a linguagem congelada e que mantinha o homem escravizado, toman
do assim possível a criação de uma nova linguagem, expressiva tanto
da superação do medo quanto da liberdade para a vida. E um proces
so semelhante aparece também ligado à linguagem teológica do exis-
tencialismo. O espinho do presente consistiu e consiste tanto na
ameaça do homem perdido nas estruturas massivas do mundo, como
em sua profanação pela razão científica. Assim, como resposta a essa
situação, a memória tomou possível a criação de uma linguagem ex
pressiva da liberdade humana, apesar do caráter fechado dos horizon
tes objetivos da história.
Para Barth, o problema da inadequação da linguagem dominante
da fé era outro. Ele havia presenciado o término das esperanças oti
mistas do século XIX face à eclosão da Primeira Guerra Mundial, bem
como a questão radical por ela levantada, antes e depois de todas as
linguagens que davam por certo o poder humano para libertar a histó
ria de suas contradições. A partir deste presente histórico-crítico, Barth
redescobriu as palavras negativas e críticas do universo de discurso da
Bíblia. Por sua vez, Teilhard de Chardin foi tomado pelo senso de tra
gédia devido à mesma guerra, acompanhado tanto por uma profunda
ansiedade existencial ante a finitude, quanto pelo seu compromisso
pessoal com o mundo da ciência. Perante esses problemas a lingua
gem dominante de sua comunidade de fé permaneceu muda, incapaz
de abrir caminho em direção ao futuro. O diálogo entre o seu presente
e os horizontes do passado tomou-se então ocasião para a criação de
uma nova linguagem, na qual tanto o passado foi revivido como o pre
sente colocado num novo contexto de confiança. Tais casos, selecio
nados aleatoriamente, demonstram a existência de situações nas
quais os problemas do presente não podem ser resolvidos se a velha
linguagem não for esquecida e criada uma nova. Tal evento de des-
continuidade, em vez de significar o fim da fé, consiste, assim, no úni
co meio pelo qual ela pode se manter viva.
Esta análise deixa clara a tarefa que os cristãos comprometidos
com a libertação histórica do homem têm pela frente: a criação de
uma nova linguagem, expressiva de sua “preocupação suprema” e a
serviço de sua realização. Mas, três coisas precisam ser lembradas.
1. Essa tarefa somente pode ser compreendida pela comunidade
de fé na medida em que ela se descubra fundamentalmente preocu
pada com a criação de um novo amanhã para o homem.
2. A comunidade de fé tem de tomar a crítica do humanismo polí
tico e trazê-la à sua própria linguagem. Só assim serão desmascara
dos os seus aspectos contrários ao “espírito” expressivo da visão e da
paixão pela libertação humana.
3. A nova linguagem deve acrescentar alguma coisa ao prometi
do pela linguagem do humanismo político. De outra forma, mostrar-
se-ia supérflua e não poderia pretender-se expressão genuína do espí
rito da comunidade de fé. Consistiría simplesmente num eco do hu
manismo político, numa reduplicação de uma linguagem já existente,
ou em sua tradução para um jargão religioso. Isto significa que a nova
linguagem tem de ser julgada: a) pelo seu poder para criticar cada lin
guagem que, num primeiro momento do processo, negou a linguagem
da comunidade de fé; b) pelo seu poder para oferecer horizontes maio
res e mais amplos para a esperança; e, finalmente, c) pela liberdade
que ela empresta à atividade humana. O método não é imposto de
forma artificial, mas simplesmente segue a dialética da vida da comu
nidade cristã em sua busca de uma linguagem que expresse o seu
compromisso com a libertação do homem.
CAPÍTULO DOIS
125
ralmente serem conflitantes, o fato é que este conflito não elimina a
base para o diálogo, pois o envolvimento de ambos na tarefa de liber
tação somado à vocação para a liberdade oferecem um contexto his
tórico no qual uma permanente conversação crítica, no sentido de es
peranças e tarefas comuns, faz-se tanto possível quanto necessária.
Pode-se muito bem lembrar aos teólogos que a linguagem da fé não
se tem mostrado exemplarmente interessada na libertação do homem,
nem tem sido extraordinário o seu compromisso com a criação de um
novo amanhã. De fato, com a crítica anterior à linguagem de alguns
paradigmas teológicos, tentou-se precisamente tornar a comunidade
de fé cônscia do tom apolítico, a-histórico e mesmo conservador de
sua linguagem. No entanto, é interessante notar-se que, apesar deste
fato, os cristãos vêm se mostrando historicamente mais e mais com
prometidos com a tarefa da libertação humana. E, ao agir assim, estão
simplesmente recuperando um elemento absolutamente central (ape
sar de muitas vezes esquecido) da consciência da comunidade de fé,
qual seja, a sua vocação para a liberdade.
* Traduzido e publicado no Brasil com o título Conceito marxista do homem, pela Zahar
Editora. (N. do T.)
Parece-me que esta constitui, de fato, uma avaliação realista de
nossa presente situação. Nada indica que os horizontes estejam se
tomando mais abertos. Pelo contrário: a abertura de nossa consciência
e o seu surgimento na história estão sendo suplantados pelos poderes
repressivos do conservadorismo. Com efeito, vivemos em meio à con
tradição entre a realidade e a impossibilidade de um novo amanhã.
Esse amanhã é real enquanto dimensão da consciência, mas se mos
tra impossível devido ao exercício do poder por parte dos sistemas
dominantes. O “messianismo humanista”, com sua paixão e visão da
libertação humana apenas através dos poderes do homem, defronta-se
assim com as alternativas, de um lado, do otimismo à custa de seu ca
ráter inteiramente histórico, tornando-o, pois, romântico, e, de outro, da
fidelidade à história e abandono da esperança, transformando-o em
presa do cinismo gerado pela frustração.
3. "Do princípio ao fim Israel declaradamente toma como ponto de partida a abso
prioridade, na teologia, do evento sobre o togos." (ibid., p. 116.)
no de Deus. O Evangelho constitui assim a anunciação da realidade
histórica da política de Deus em marcha, que se expressava não en
quanto experiência mística ou filosófica, mas sim como um poder a in
vadir a história. Jesus era reconhecido pelas comunidades do Novo
Testamento como o “servo” (Jo. 13; Filip. 2:7), obediente até a morte.
(Filip. 2:8) Seu desejo era visto como subordinado à (e como expres
são da) intenção messiânica dos eventos libertadores do Velho Tes
tamento. Através dele, a política de libertação de Deus era levada a
cabo. Sua obediência constituía então uma expressão de total identifi
cação com a atividade messiânica de Deus, e, por conseguinte, ele
podia ser reconhecido como o Messias. Assim, a comunidade cristã
entendeu Jesus a partir do “critério messiânico", como um novo evento
libertador na tradição da intenção messiânica, intenção esta revelada a
partir da libertação e das promessas que a experiência do povo conti
nha. Assim como os eventos messiânicos de libertação no Velho Tes
tamento não resultaram da eficácia humana, e sim de uma dádiva, de
um ato de poder que transcendeu as possibilidades dadas da história,
as comunidades cristãs também viram em Jesus um ato da liberdade
de Deus. Não existe, na consciência da comunidade cristã, qualquer
lugar para o messianismo como algo originário .da realidade humana.
(Lehmann, Ideology and incamation, p. 26.)4 O homem não produz o
“logos” e o "poder" para a libertação humana a partir de uma realidade
previamente dada. Pelo contrário: o poder que cria um novo futuro é
algo novo, consiste na liberdade proveniente do além-história que se
torna história; consiste em liberdade que transcende a história e que é
liberdade para a história. Apenas assim o poder messiânico e a espe
rança para a história se sustentam. “O ‘Logos’ torna-se carne." (Jo.
1:14) "O poder revelador do predicado carne’’, comenta Barth, "susten
ta-se ou cai com a livre ação do sujeito Logos." (Karl Barth, Church
dogmatics, I/2, p. 137.) Parafraseando-o: a possibilidade de libertação
humana na história se sustenta ou cai com a livre ação na história do
poder messiânico provindo do além-história.
5. "O tempo é uma expressão do espírito; seu momento assinala a pressão do esp
a buscar sua meta." (ibid., p. 108.)
um fermento que se propaga ou uma colheita que amadurece. Como
tal, ele se encontra realmente presente, enquanto fenômeno externo,
tangível, visto e ouvido pelos homens." (ibid., p. 227.) Albert Schweit-
zer indicou ser este o motivo dominante da vida de Jesus. Ele não
somente anunciava a irrupção iminente do futuro, como algo que fosse
puro ato de Deus; seu ministério foi mais que isto: era ação que pre
tendia forçar o futuro a se tornar presente. (A. Schweitzer, The quest of
the historical Jesus. Cf. cap. 19, pp. 330 e ss.) Ele não podia, portanto,
se comportar em termos do presente, tomando a esfera daquilo “que
é” como contexto para as suas palavras e obras. Comportava-se, sim,
como estando num ínterim, no caminho entre o hoje e o amanhã e, por
conseguinte, a sua ética tanto expressava a presença do futuro como
funcionava como sua parteira. Schweitzer, ao afirmar isto, o faz de
forma crítica: comportar-se como Jesus o fez, só se se viver a-histori-
camente, dentro de uma “história dogmática” (ibid, p. 359), história
esta que torna o homem indiferente às reais possibilidades apresenta
das pelo contexto real da vida e alienando-o delas, (ibid, p. 353.)6
Contudo, é possível entender-se a vida de Jesus diferentemente, ou
seja, como expressão da obediência a Deus, Deus que consiste na
presença do futuro e que empurra o presente para novas possibilida
des de juízo e libertação humana. Segundo se tentou indicar, isso não
constitui uma idéia dogmática, e sim uma inferência feita a partir da
experiência histórica do povo.
Quando Jesus afirmou que o Reino de Deus estava próximo,
comportando-se de maneira a forçar a irrupção do futuro, estava sim
plesmente pensando e se comportando de acordo com a tradição do
humanismo messiânico do Velho Testamento. Há uma ênfase eviden
te sobre o presente. Agora é o tempo de obediência. Agora “os cegos
vêem, os coxos andam, os leprosos tornam-se limpos, os surdos ou
vem, os mortos se levantam, os pobres são evangelizados.” (Lc. 7:22)
Porém, tal presente tinha algo de especial. Não consistia na presença
do agora eterno, num presente já esgotado. O futuro não se tornou
presente num agora eterno como na escatologia realizada. Nem per
maneceu uma idéia dogmática isolada, independente do agora e sem
6. "Sua vida neste perfodo foi dominada por uma ‘idéia dogmática’, que o deixou indi
ferenteatudo mais."
relação com ele, um futuro caído dos céus, como na escatologia con
sistente. O agora era o tempo em que ocorria uma ação libertadora
que se dirigia ao futuro. Por conseguinte, o "já" e o “ainda não” não
eram pontos abstratos na cronologia do tempo objetivo. O “ainda não”
era aquilo que qualificava e determinava o presente. Não era primei
ramente o ponto de chegada, e sim aquilo que estava sendo engen
drado no ventre do presente. No agora tem-se a presença do futuro
tornado histórico por meio da ação de Deus. Assim, para a comunida
de de fé, Deus não é nem o “presente eterno”, nem o “futuro absoluto”.
Ela percebeu, a partir de sua experiência histórica, que a ação de Deus
criava uma qualidade explosiva no presente, qualidade esta que o ne
gava. Devido à ação de Deus, “cada situação está grávida da possibi
lidade suprema: cada momento torna-se explosivo pela presença de
um poder infinito.” (P. Minear, Eyes of faith, p. 16.) Diz Paulo: “Sabe
mos que toda a criação até agora geme e sente dores de parto. E não
somente ela, mas também nós que temos as primícias do Espírito ge
memos dentro de nós mesmos, aguardando a adoção, a redenção do
nosso corpo. Porque em esperança estamos salvos..." (Rom. 8:22-24)
O homem e a criação estão unidos numa “sinfonia de gemidos", tendo
o "Espírito como regente". (Hoekendijk) O Espírito nos deu os “primei
ros frutos”, o “aperitivo” (Hoekendijk), que faz a criação e o homem,
juntos, ansiarem pela redenção. Assim, o homem e a criação estão
grávidos, com uma nova vida dentro de si, um novo amanhã, engen
drado pelo Espírito que, nas palavras de Paulo, "reside em vós”. (8:11)
E devido ao Espírito estar presente, criam-se a realidade da presença
do futuro, o gemido do parto e a realidade da esperança. Temos espe
ranças, estamos voltados para o futuro, porque estamos grávidos. Es
tamos "infectados” com a presença do futuro.7
A Linguagem do Humanismo
A DIALÉTICA DA LIBERDADE
3. R. Niebuhr observa que "por isso a ortodoxia cristã tem consistentemente detinido
a falta de fé como a raiz do pecado, ou como o pecado que prececje o orgulho. Lutero, em
conformidade com a tradição cristã geral e citando Sirac. 10:14, escreveu em seu Tratado s »
Por mostrar-se incapaz de ser livre para o futuro, e devido à sua falta
de confiança, quer libertar-se da história. Quer ser como Deus, ser o
criador de sua própria história, o único centro determinante das condi
ções de humanização. Sua falta de fé o conduz então ao orgulho da
auto-afirmação e ele se torna o seu próprio messias. Sua subjetivida
de, dominada pelo medo do futuro, projeta-se assim em direção ao
mundo do tempo e do espaço. Torna-se história. Cria a história. Mas a
história assim criada carrega a marca da não-liberdade. É filha do po
der do orgulho, criada à imagem e semelhança desse homem que te
me a liberdade e, consequentemente, carece de esperança.
Como apontou Agostinho, temos uma nova realidade política: a
“cidade do homem", que é a contrapartida objetiva da decisão humana
de não se determinar para a história, para os outros, e sim, segundo
seu amor sui**, para si mesmo. A história constitui o campo de sua au
to-afirmação. As estruturas objetivas por ele criadas no mundo, então,
são projeções de seu próprio medo e de seu cativeiro e, desta manei
ra, pretendem constituir defesas contra a liberdade e o futuro. Em vez
de serem o ponto de partida para a experimentação, para a liberdade e
o futuro, passam a ser o fim da experimentação. A tendência das insti
tuições humanas, por conseguinte, é deixar para trás a abertura de on
de partiram, tornando-se fechadas, congeladas, terminadas, “ontocráti-
cas". (van Leeuwen)4 Parece-me que esse processo de queda da histó
bre a liberdade cristã: 'O homem sábio afirmou: o princípio de Iodos os pecados consiste em
afastar-se de Deus e em não confiar Nele’." (The nature and destiny ofman, p. 183.)
* Em latim, no original: "amor a si". (N. do T.)
4. Tal processo expressou-se de várias maneiras na história das comunidades b
cas. Por um lado, a arca, que uma vez foi símbolo do Deus dinâmico que olhava para o futuro,
acabou estacionando no templo. Buber observa que nesta "relação polar entre a arca (o mó
vel) e o templo (o estacionário) encontramos a expressão clássica das tensões entre o Deus
histórico livre e as deidades acorrentadas às coisas naturais". (M. Buber, The prophetic faith,
p. 83.) Parece que o mesmo processo esteve envolvido na mudança das instituições políticas
de Israel. A busca de um rei pelo povo (1 Sam. 8:5,20) soava ao profeta como uma rejeição da
experiência do Êxodo enquanto normaiiva de suas vidas agora estabilizadas e como uma op
ção pelos caminhos das "nações", ou seja, pelos caminhos da natureza. (Cf. 1 Sam. 8:7-8.) O
rei significaria o fim do caráter aberto de sua sociedade, que passaria então a ser dominada
pela "organização" e pelos requisitos de defesa. (8:11-18.) A lei e a liturgia também sofreram
uma metamorfose semelhante. Se a lei constituía um tipo de disciplina no caminho rumo ao
futuro, a liturgia pretendia forçar Israel a reviver os eventos históricos que o tornaram livre.
Contudo, tanto a lei quanto a liturgia tornaram-se petrificadas e passaram a ter para Israel a
ria para a natureza é bastante instrutivo para o nosso entendimento
daquilo que aconteceu com a tecnologia. Primeiramente a tecnologia
consistia numa ferramenta, um instrumento colocado na mão do ho
mem para a construção de um mundo novo e diferente. Era um ins
trumento revolucionário, portador do futuro. Todavia, ele se transfor
mou num sistema: a sociedade tecnológica. E tal transição, de instru
mento nas mãos da liberdade humana para um sistema que agora
provê as regras a serem obedecidas pela liberdade, explica porque
aquilo que ontem era ferramenta de libertação hoje se tornou criador
do homem unidimensional e de todos os tipos de exploração, opressão
e repressão internacionais.
Agostinho chamou ao amor pelo poder e a esse sistema cons
truído pelo amor sui de “formas particulares de bem". Elas seduzem o
homem na medida em que são capazes de oferecer-lhe algo de bom.
Os “filhos das trevas” exibem uma notável capacidade para produzir
“grandes" ou “utópicas sociedades”. Quem poderia sonhar com algo ou
com algum sistema que pudesse prometer e oferecer mais do que o
sistema tecnológico faz? Examinado a partir do ponto de vista de seu
desempenho quantitativo, as formas particulares de bem parecem in
superáveis em sua produção de mercadorias. A natureza parece triun
far sobre a história. A fim de chegar-se a entender o verdadeiro signifi
cado dessas formas particulares de bem não se pode, no entanto,
permitir que sejamos colocados sob o fascínio da produção e distribui
ção de suas mercadorias. Deve-se prestar atenção ao fato de elas
constituírem formas particulares de bem. Seu próprio bem é o seu úni
co interesse. O que determina todas as decisões é o interesse nacio
nal ou da classe. Os interesses do grupo ou da nação tomam-se o cri
tério último para o julgamento de tudo o que acontece no mundo. Rei-
nhold Niebuhr, em seu Moral man and immoral society (O homem mo
ral e a sociedade imoral), indicou que grupos e nações não agem a
partir do amor e da justiça, mas fundamentalmente em termos de
egoísmo. A justiça põe-se assim a serviço dos interesses econômicos,
militares e políticos da nação.
função que tinham os rituais para as sociedades primitivas, isto é, uma série de regras e ações
que têm de ser obedecidas ou desempenhadas a fim de se preservar a sociedade livre do novo
e do inesperado.
No que consiste o economicamente justo e verdadeiro? Naquilo
que torna o senhor mais rico e as nações por ele exploradas mais de
pendentes e dominadas. No que consiste o politicamente justo e ver
dadeiro? No uso do poder para destruir tudo o que seja “perigoso à
paz e à segurança” do senhor, tudo o que constitua "manifestação de
uma disposição inamistosa contra ele”, tudo o que "ponha em perigo a
sua paz e felicidade”.5 6 O “princípio da auto-preservação”, do auto-en-
grandecimento e da expansão são as leis do senhor, não importa o
quanto ele tente justificar-se. “As atitudes morais dos grupos dominan
tes e privilegiados”, nota R. Niebuhr, “caracterizam-se pelo auto-enga-
no e hipocrisia universais... A inteligência dos grupos privilegiados é
costumeiramente aplicada à tarefa de inventar provas para a teoria
que afirma que os valores universais brotam dos privilégios especiais
que desfrutam e são por eles servidos". (Niebuhr, ob. cit., p. 117.) Foi
Agostinho quem primeiro percebeu que aquilo a que os grupos políti
cos dominantes chamam de direito ou legalidade não é justiça, mas
antes a transformação de sua vontade de poder e das normas egoís
tas e saqueadoras de seu comportamento numa lei que é imposta à
força àqueles por eles dominados. A lei, consequentemente, não é
uma expressão do divino mundo dos valores eternos, como acredita
vam os gregos e romanos, mas sim uma criação histórica da política
da cidade do homem, dominada pelo am orsui, pelo orgulho e pelo de
sejo de poder.6
Elevando seu desejo de poder ao estatuto de lei, a nação ou
classe se absolutiza. “Tu és o meu Deus”. Esta se torna a confissão de
fé que o homem que teme a liberdade dirige às estruturas políticas
e legais criadas pelo seu cativeiro. Mediante tal pretensão, “o orgulho
5. Esta é uma paráfrase da justificativa de Reuben Clark para a Doutrina Monroe. Veja-
se R.A. Goldwin, ed., Readings in american (oreign policy, p. 193.
6. "A justiça sendo roubada, no que consistem então os reinados senão em gran
bandos de ladrões? Pois o que são os bandos de ladrões em si mesmos, senão pequenos rei
nados? Eles próprios são compostos por homens; são regidos pela autoridade de um príncipe
e ligados pelo pacto da conspiração; o motim é dividido segundo um acordo prévio. Se através
da permissão dos derrotados esse mal cresce ao ponto de se apoderar de lugares, fundar vi
las, tomar posse de cidades e subjugar povos, ele assume mais plenamente o nome de reina
do, pois a realidade agora é-lhe manifestamente conferida não pela remoção da cobiça, mas
pela adição da impunidade". (Agostinho, The City of God, IV;4. Para a discussão da relação
entre a justiça e a República Romana, veja-se XIX:21.)
e a auto-afirmação humanas alcançam sua forma suprema e procuram
romper todos os limites da finitude." (R. Niebuhr, The nature and des-
tiny o f man, p. 212.) A classe e a nação passam então a se comportar
como se fossem a corporificação da verdade e da justiça e, por isso,
destinadas à eternidade. Consequentemente, sua prioridade consiste
na auto-preservação, por meio da destruição dos poderes que amea
çam seu projeto de auto-perpetuação. Como assinala Niebuhr, sua
primeira preocupação é com a preservação de seu poder - estabilida
de - e não com a justiça. O medo da liberdade, que havia criado estru
turas para a defesa contra a ameaça do futuro, assume agora uma
forma diferente: ele se utiliza das estruturas criadas para se afirmar
como senhor daqueles não-incluídos nos limites da sua forma particu
lar de bem, da qual ele constitui o centro. O mundo do homem livre dá
lugar ao mundo dos senhores e escravos. O senhor, como Berdyaev
assinalou, não é livre. Ele teme o futuro e, por isso, deseja dominar.
Devido ao medo, não quer ver seu companheiro livre. A liberdade de
outro homem constitui uma ameaça ao seu próprio desejo de poder. A
“ordem da vida na qual todas as coisas criadas são instrumentos da
possibilidade e do poder dado ao homem - através da comunhão com
Deus - para ser ele mesmo através de sua relação com seu próximo,
foi invertida pelo desejo de poder, pelo qual o homem subjuga o seu
ambiente e o seu irmão", assinala Lehmann (P. Lehmann, Ethics in a
christian context, p. 97.) O poder do homem não é mais uma expres
são da liberdade, e sim uma projeção de sua ansiedade em se guardar
para o futuro, mesmo se isso for algo que requeira negar-se ao próxi
mo o direito ao próprio futuro. O poder aqui consiste numa expressão
não do amor e da justiça, mas do orgulho que brota do homem cativo.
A “arrogância do poder” (para utilizar-se um termo do senador William
Fullbright) transforma então o próximo, seja ele um ser humano ou
uma nação, num meio para os fins que o amor sui se coloca, como
único centro do mundo.
7. Cullmann sugere que "Jesus, como Barrabás, foi condenado pelos romanos, <
pelos judeus, de fato como um zelote." (Veja-se The State in the New Testament, p. 48.)
* Em grego, no original: "mundo habitável". (N. do T.)
é aquele que sofre na própria carne a destruição do futuro que as es
truturas de dominação do senhor lhe impõem. Ele é aquele que co
nhece a morte, pois em sua vida experimenta a morte da desesperan
ça. Porque o seu presente é vivido no sofrimento da ausência de futuro,
o escravo é libertado para o risco de um novo futuro que promete vida.
Contra o desejo de poder do senhor, ele extrai de sua escravidão o de
sejo de liberdade. Assim, em meio ao sofrimento e à impotência do
escravo, cujo futuro é roubado pelo seu amo, nascem a negação do
presente e a esperança do novo. Talvez por isso o Evangelho seja tão
cético quanto aos ricos e poderosos, a ponto de exclamar: quão difícil
é para um rico entrar no reino de Deus! O rico e o poderoso desejam
preservar o seu “agora”. O reino, ao contrário, consiste na presença do
futuro, a forçar os homens para fora de cada “agora", rumo a um novo
amanhã. Contudo, o sofrimento do escravo não consiste numa virtude.
Se assim fosse, o escravo encontraria a felicidade no ato de sofrer.
Não teria o direito de esperar suplantá-lo. O sofrimento constitui o pon
to de partida para a dialética da libertação, que nega o velho e se es
tende, na esperança, em direção ao novo. Tal processo mostra-se a
negação do negativo. Porque as estruturas que destroem o futuro fa
zem o homem sofrer, fazendo dele um ser sem esperança, seu caráter
negativo e anti-humano é revelaao. E devido ao sofrimento humano, o
negativo é negado, rejeitado, no ato mesmo do sofrimento.
8. Parece-me estar aqui uma das razões porque a teologia de Niebuhr, de outro modo
tão rica em recursos críticos, manifestou tendências para assumir posições mais conservado
ras. Sua teologia não vê a cruz primeiramente como uma negação radical endereçada pela
presença de Deus na história aos poderes que, numa situação concreta, conduzem a um mo
vimento rumo ao futuro, e sim como a relativização total de tudo na história, o que resulta na
eliminação do senso de direção. É verdade que tudo é relativo. Mas se a cruz não provê uma
direção, e sim uma relativização de todas as direções, como é possível comportar-se de modo
a produzir um novo amanhã? Devo ao prof. Richard Shaull esta observação. Ele demonstra
que o problema com a teologia de Niebuhr consiste em que ela se concentra no aspecto antro
pológico da questão, sem dar lugar para a confiança na atividade de Deus. Para o argumento
total veja-se “ Theology and the transformation of society", em Theology today, n9 25, p. 23.
O sofrimento é, assim, a mãe da esperança. Ao engendrar a ne
gação daquilo que é, prepara o caminho para um novo dia. É o sofri
mento histórico que faz a esperança manter-se radicalmente histórica,
enquanto superação daquilo que hoje impede o homem de ser livre pa
ra o futuro e a vida. Se não fosse assim, a esperança se desvanecería
na indefinição de um futuro abstrato, sendo incapaz de servir ao ho
mem em sua tarefa de criar o novo amanhã.
A comunidade de fé, consequentemente, chegou a perceber que,
a fim de participar da política para um novo amanhã, é necessário par
ticipar dos sofrimentos do hoje. A vida da comunidade no presente,
portanto, não se compreende como um triunfo, e sim como participa
ção nos sofrimentos atuais de Cristo no e para o mundo. (Cf. Rom.
8:17, 2 Cor. 1:5, Gal. 6:17, Fil. 3:11 e Pe. 4:13.) Por Deus ter-se deter
minado para a história e para o homem, o seu sofrimento continuará,
com o homem e a história, até o fim do mundo. O que faz um cristão,
comenta Bonhoeffer, é a sua “participação no sofrimento de Deus na
vida do mundo". (D. Bonhoeffer, ob. cit., p. 223.) A comunidade do futu
ro, assim, não se constitui a partir de um conhecimento esotérico do
futuro mas, antes, a partir de sua identificação com o sofrimento dos
escravos, dos párias, do homem sem esperança e sem futuro, fraco
e impotente: dos miseráveis da terra. É o Servo Sofredor, presente no
sofrimento de todos os escravos do mundo que, a partir do sofrimento
de Cristo, encontra o segredo da libertação e o poder do homem para
tal. “Somente nas profundezas do sofrimento e do desespero", coloca
Buber, “os homens chegam a conhecer a graça”. (Citado por M. Fried-
mann, Martin Buber, p. 155.)
A história, assim, move-se em direção ao futuro através do sofri
mento do escravo. Ela geme em trabalho de parto. Tão-só por meio
desse sofrimento da história nascerá o novo homem. O Deus da histó
ria, por conseguinte, ainda não chegou. Feito o ser humano, ele tam
bém vive com esperança, na espera de uma consumação terrena com
o homem. Na medida em que o sofrimento continua, não há reconci
liação. O sofrimento atual de Deus indica sua irreconciliação com
aquilo que é, bem como o seu compromisso com a transformação. A
reconciliação não descreve uma realidade. Ela pertence ao universo de
discurso da esperança, e existe apenas como aquilo que é possível,
através da liberdade do Deus sofredor. Assinala o Dr. Christian Beker:
“O chamado centro bíblico de reconciliação pode não ser
tão central ao Novo Testamento quanto assegura a
teologia mais recente. A reconciliação precisa passar
pela revolução da cruz; e mesmo sem o auxílio das vi
sões bíblicas, ela não pode ser uma palavra-chave em
nosso tempo, já que uma Igreja burguesa e opulenta in
terpreta-a inevitavelmente como ratificação do status-
quo. A reconciliação, na fronteira da segregação racial,
foi simplesmente traduzida por integração. Enquanto o
que a Igreja deveria ter reconhecido é que a integração
que ignora as exigências do Poder Negro (‘Black Power')
significa uma ressurreição sem a cruz.” (Biblical theo-
logy today, 21/02/68, pp. 9-10.)
É verdade que o Novo Testamento declara estarmos reconcilia
dos com Deus (Rom. 5:1), mas só através de nossa participação “em
Cristo", em seus sofrimentos com e para o mundo. Estamos reconci
liados com Deus na medida em que compartilhamos da sua irreconci-
liação com o mundo, irreconciliação que faz com que ele e os homens
sofram. Por isso a paz com Deus significa uma “espada” para o mun
do: o julgamento permanente e a rejeição da inverdade daquilo que é,
em favor de um novo amanhã de reconciliação e libertação.9
Dentro desse contexto torna-se óbvio que o amor não pode con
sistir num princípio para o comportamento. Quando o amor se trans
forma num princípio, torna-se desconectado da dialética histórica da
política de Libertação, que é a única forma pela qual ele verdadeira
mente existe. O amor descreve a identificação do Servo Sofredor com
a sorte dos oprimidos e aponta na direção libertadora da sua atividade.
Todavia, ele não pode se converter numa fotografia daquilo que ele
faz. Transformar o amor num princípio é retirar dele o seu caráter histó
rico, é transformá-lo numa “ idéia dogmática". Do ponto de vista da ex
periência histórica da comunidade de fé, amor é o nome que se dá à
dialética da libertação na história. O amor é aquilo que Deus faz a fim
de tomar o homem livre. Porque, em grande medida, as nossas formas
teológicas de pensar têm ignorado o conteúdo histórico e dialético da
linguagem da comunidade de fé, a linguagem do amor, em vez de se
mostrar uma ajuda para a compreensão da política de libertação do
mundo, transformou-se num problema. O uso do poder passou a ser
visto não como expressão do amor, e sim como uma concessão que o
amor faz às contingências e imperfeições da vida histórica. Entretanto,
pela perspectiva da dialética, já que o homem que teme o futuro é in
capaz de se libertar, o amor adquire a forma de uma atividade que visa
a destruição das condições objetivas e subjetivas da escravidão. Este
é o lado sombrio da política de libertação: o “ Não”, o amor como um
poder que se contrapõe, como ira, como o opus alienum Dei*. É um
Não, mas um Não que continua sendo uma obra de amor, atividade
que visa a libertação tanto dos senhores quanto dos escravos, pois,
através da destruição das estruturas objetivas e subjetivas que inten
tavam abortar o futuro, ambos se vêem obrigados a rumar em direção
ao porvir. Tornam-se, assim, libertos do passado, na medida em que o
passado, por meio desta ação, perdeu o seu poder político e hipnótico
sobre eles.
Mas o opus alienum Dei é exercido por amor ao opus proprium
Dei**, o Não em favor do Sim, a destruição em favor da construção,
a libertação do passado em favor da libertação para o futuro. O deses
pero que se segue à destruição dos ídolos é sucedido pela esperança
e pela expectativa, pois a atividade que esfacela o velho promete algo
novo. “ Não se lembre das coisas passadas e nem considere as ve
lhas", diz o Libertador. “Veja: estou fazendo algo novo." “ Far-te-ei ouvir
coisas novas, coisas ocultas das quais não sabias. Elas estão sendo
criadas agora, e não no passado”. (Is. 43:15-19; 48:6-7) A política de li
bertação anuncia, portanto, que, como resultado da atividade messiâ
nica de Deus, “o velho se foi e o novo é chegado". (2 Cor. 5:17) O de
senrolar normal da política do velho não pode fazer nascer o novo.
Quando isso ocorre, o novo não constitui mais que o velho sob uma
forma diferente, com uma máscara diversa. Ele se regenera, perpe
tuando assim o velho mundo do cativeiro sob um diferente disfarce.
* Traduzido e publicado no Brasil com o título Vida contra a morte, pela Editora Vozes.
vida sobre a morte, portanto, não resulta da reconciliação humana com
ela. Este triunfo emerge, sim, da irreconciliação do homem com a mor
te, irreconciliação esta que, devido ao seu amor pela vida, assume a
forma de um desejo-de-ser-para-a-morte-em-favor-do-mundo, mundo
que tem de ser recriado em benefício do homem e de sua vida. Esta
diferença se esclarece por meio de um exemplo simples. Uma mulher
não deseja dar à luz um filho porque sabe e reconhece a possibilidade
de morrer nesse ato. A verdade é o oposto: porque ela ama e está de
terminada em favor do filho, ela está pronta a encarar livremente a
morte. Não é a liberdade para a morte que torna o homem livre para o
amor e para o sacrifício, mas antes é o seu amor pelos companheiros
que sofrem que o torna pronto a aceitar o risco da morte presente na
ação sacrificial. “Quando uma mulher está em trabalho de parto", disse
Jesus explicando sua liberdade para a morte, “ela sente-se triste por
ter chegado a sua hora: porém, quando já deu à luz o seu filho, não
mais se recorda da angústia, devido à alegria que sente por uma
criança ter vindo ao mundo." (Jo. 26:21) A angústia e a tristeza envol
vidas na luta por um novo mundo, são, assim, superadas pela alegre
antecipação da aurora de um novo dia. Assim como o medo da morte
congela a liberdade ao criar uma ética de defesa e sobrevivência que
orienta a atividade para a auto-preservação, também a confiança no
futuro prometido pelo Messias deixa o homem livre para expressar o
seu amor, sem estar preso a cálculos. “Por meio de Jesus Cristo, por
meio de sua vida, de sua morte, ressurreição e reino de poder”, assi
nala H. R. Niebuhr, “fomos e estamos sendo conduzidos à... reinterpre-
taçáo de todas as nossas interpretações da vida e da morte. A morte,
não menos que a vida, aparece-nos como um ato de misericórdia. A
ética da morte é substituída pela ética da vida, do futuro aberto, da so
ciedade aberta." (H. R. Niebuhr, The responsible self: an essay in chris-
tian moral philosophy, p. 143.)
2. "Em teu coração sempre sabes que precisas de Deus mais do que tudo; mas não
sabes também que Deus precisa de ti, que na plenitude de sua eternidade precisa de ti?”
(Martin Buber, land Thou, p. 82.)
Esta obra de Buber encontra-se traduzida e publicada no Brasil com o titulo Eu e tu pela
Editora Cortez e Morais. (N. do T.)
ainda inconclusa. Está adiante do homem, como um horizonte que vai
sendo aberto, se oferece ao ser humano como um convite. “Talvez
possamos imaginar que a criação há muito tenha terminado”, escreve
Teilhard de Chardin. “ Isso não é verdade. Ela continua, mais gracio
samente do que nunca... e nós servimos para completá-la, mesmo com
o trabalho mais modesto de nossas mãos... Em cada uma de nossas
obras trabalhamos um pouco, mas de forma real, para construir o Ple-
roma... Na ação me ligo ao poder criativo de Deus, coincido com ele."
(C. F. Mooney, Teilhard de Chardin and the mystery of Christ, pp. 151-
152.) Num sentido verdadeiro, o homem está realmente ajudando a
Deus quando, por amor ao seu companheiro e inspirado pela visão de
uma nova Terra, através de sua ação, ele se envolve com a tarefa de
transformar o mundo de hoje na Tenra nova de amanhã.3
Se a criação consiste num empreendimento conjunto, o Deus en
volvido com a política de libertação continua aberto. Ele não olha a
história a partir de seu futuro, nem a arrasta desde lá. É na história que
Deus e o homem engendram um futuro comum. Este não é simples
mente um futuro que Deus cria para o homem, mas ele é criado por
ambos, numa histórica cooperação dialógica. Esta é a implicação ne
cessária de sua encarnação: ele continua aberto ao homem. Mas aber
tura implica inconclusão, em que ainda se esteja num estágio experi
mental. A encarnação de Deus significa, assim, que ele permanece
histórico e acrescentando a si tudo o que seja humano. No Messias,
todas as coisas do céu e da Terra estão redimidas e unidas. (Ef. 1:10)
“ Deus já não pode fazer nada sem os muitos em meio aos quais está
imerso", observa Chardin, e, portanto, mesmo aquilo que parece perdi
do é novamente aproveitado por Deus. Sua encarnação, então, não
pode se transformar num “ponto de decolagem” a partir do qual Deus
construa uma realidade ontológica apartado do que acontece aqui e
agora. Ele continua histórico. Ele ainda não chegou.
Por essa perspectiva a história mostra ser a história da liberdade.
De fato, ela constitui um processo em marcha e de natureza política,
que liberta o presente para o futuro e o homem para a vida. O foco da
atenção não é aquilo que se tornou passado, e sim o futuro que pode
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dade de fé se recorda de um passado de liberdade, a linguagem a li
berta da servidão do passado. A liberdade da qual este passado fala
pode não se ter esgotado, pois de outra forma não seria mais liberda
de no presente. Ela permanece como fator da história. “O passado é
sempre mediado”, observa R. Kroner. “ Ele não consiste mais em vida,
mas tão-só na imagem de uma vida que já foi." (Citado por P. Minear,
ob. cit., p. 60, de R. Kroner, How do we know God?, p. 111.) O passa
do, quando foi presente, constituiu a arena para a política da liberdade.
Porém, uma vez tornado passado, não pode mais conter a liberdade. O
passado está terminado, está definitivamente além do alcance da li
berdade, liberdade esta que consiste na presença do futuro nesse
tempo que agora é o hoje. A linguagem da comunidade de fé, desta
forma, ignora total mente o problema de como tomar-se contemporâ
neo do tempo consumado da revelação passada. Ignora tanto o pro
blema quanto a possibilidade de transtemporização, possibilidade que
tem sido central para a teologia protestante. A contemporaneidade não
pode ser um problema para a linguagem que fala de Deus como a
presença do futuro.
Assinala Moltmann: “Recordar a promessa feita anteriormente
significa perguntar ao passado acerca do futuro.” A memória da comu
nidade de fé, por conseguinte, mostra-se formadora do futuro. É óbvio
que a capacidade de se ter esperança quanto ao futuro não constitui
um monopólio daqueles que detêm a memória da comunidade de fé.
O poder de projetar é intrínseco à vontade. Consiste numa expressão
intrínseca ao espírito do homem. Este poder de transcendência sobre a
garra hipnótica dos fatos dados do presente, todavia, pode ser nada
mais que uma realização do desejo ou uma fonte de planos dogmáti
cos utópicos para uma sociedade perfeita. Para a linguagem da fé, o
poder de projetar é controlado pela memória da dialética histórica da
libertação; é a linguagem da esperança sobre o que é possível para a
história e para o seu futuro. O futuro e a esperança a que ela se refere
permanecem, assim, radicalmente históricos. Como a memória é a pro
fecia ao contrário, a esperança constitui a memória projetada no futuro.1
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